20
Cabe-nos ainda acrescentar que essa utilização da minissérie desloca totalmente seu
caráter ficcional fazendo com que ela assuma, em certa medida, um caráter mais histórico, como
se se tratasse de um documentário. A idéia da ficcionalidade na televisão, segundo Jost (1997,
2004), por vezes, é marcada mais por características extrínsecas (incluindo dados paratextuais) à
obra que pelo seu conteúdo propriamente dito. Fato semelhante é notado por Schaeffer (1999)
quando da análise da questão da ficcionalidade na obra literária. Para este teórico francês, a
compreensão do que seja um relato ficcional ou um relato não ficcional está mais ligada à
recepção que à obra em si
17
.
Dessa forma, a significação do conteúdo da minissérie original modifica-se, por exemplo,
devido às interferências de um apresentador e de convidados que resumem, explicam e
contextualizam as ações das personagens, situando-as ora no campo da historiografia, ora nos
domínios da literatura
18
. O telespectador muda seu horizonte de expectativa
19
e, ainda, tira-se do
espectador o prazer de descobrir outras interpretações; produzindo, em conseqüência, um único
discurso interpretante; perde-se a fruição
20
que o texto televisual poderia oferecer. Fragmenta-se
17
Para provar sua tese, Jean-Marie Schaeffer, Pour quoi la fiction?, analisa longamente como o livro Marbot, de
Wolfgang Hildesheimer, foi recebido (e estudado), inclusive por intelectuais e historiadores, como relato histórico
quando, na verdade, tratava-se de uma história ficcional.
18
Paulo Oliveira, A televisão como “tradutora”..., p. 277, faz o seguinte comentário a respeito do tratamento dado à
minissérie por ocasião de sua apresentação no programa Faixa Comentada do Canal Futura: “O caráter paradidático
é patente também na já citada Faixa comentada especial do Canal Futura. Nos comentários que acompanham a
exibição do episódio de Maria Mutema, destacam-se primeiramente dados estilísticos e socioculturais. Há duas
intervenções menores, sobre os possíveis significados dos nomes próprios dos protagonistas da historieta, Maria
Mutema e Padre Ponte, e sobre a admiração de Riobaldo pelos missionários. Há também uma intervenção maior, na
qual o locutor Eduardo Martini fala da importância das igrejas em Minas Gerais e aproveita para citar o barroco
como o estilo característico da região, mostrando várias imagens de igrejas e objetos sacros (texto do roteirista Aimar
Labaki). Esse quadro é complementado por uma breve reflexão sobre a perspectiva da narração, a qual é mudada na
TV, de forma mais sistemática,apenas nesse episódio específico. O especialista entrevistado, Afonso Romano de
Santanna, fala da pluralidade de perspectivas como uma das características da “literatura moderna” e remete a um
clássico de Akira Kurosawa, o filme Rashomon (1950), no qual a mesma história é contada várias vezes, de acordo
com a ótica de diversos personagens. Nesse caso, o filme teria servido de modelo para revolucionar a literatura de
nosso século. Ao comparar a narrativa clássica com a “moderna”, o crítico discorre ainda sobre a questão do
descentramento, ou da multiplicidade de verdades que caracteriza o discurso contemporâneo: [Na] narrativa
tradicional, essa que encontramos em José de Alencar, por exemplo, no Balzac, você tem uma estruturação quase que
de um ponto de vista dominante. Mas hoje, depois de Einstein, na física, depois que alguns filósofos disseram que a
verdade não tem centro (não existe mais uma verdade única, existem várias verdades em trânsito), a narrativa
plurifocal – ela representa muito a nossa sociedade: descentrada, e eu diria até um pouco perdida, caótica e niilista.’”
(Capítulo 18, início do 3º Bloco de comentários)
19
Compreendemos essa expressão de acordo com a definição de Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la
réception, p. 54, ao iniciar a leitura de um texto, o leitor teria uma espécie de horizonte de expectativa que é: “(...) o
sistema de referências objetivamente formulado que, para cada obra no momento da história em que ela aparece,
resulta de três fatores principais: experiência anterior que o público tem do gênero do qual ela faz parte, forma e
temática das obras anteriores que ela pressupõe o conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem
prática, mundo imaginário e realidade cotidiana.” (tradução nossa)
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Remetemos aqui ao par prazer/fruição discutido por Roland Barthes: O prazer do texto.