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MARIA CRISTINA PALMA MUNGIOLI
MINISSÉRIE GRANDE SERTÃO: VEREDAS:
Gêneros e Temas
Construindo um Sentido Identitário de Nação
Tese apresentada à Área de Concentração: Teoria e
Pesquisa em Comunicação da Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo, como exigência
parcial para obtenção do título de Doutora em Ciências
da Comunicação, sob orientação da Profa. Dra. Maria
Lourdes Motter.
São Paulo
2006
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FOLHA DE APROVAÇÃO
Maria Cristina Palma Mungioli
Minissérie Grande Sertão: Veredas:
Gêneros e Temas Construindo um Sentido Identitário de Nação
Tese apresentada à Escola de Comunicações e
Artes da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Doutora em
Comunicação.
Área de concentração:
Pesquisa e Teoria em Comunicação.
Aprovado em: ______________________
Banca Examinadora
Prof(a). Dr(a).__________________________________________________________________
Instituição: ________________________ Assinatura:_________________________________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________________
Instituição: ________________________ Assinatura:_________________________________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________________
Instituição: ________________________ Assinatura:_________________________________
Prof(a). Dr(a). _________________________________________________________________
Instituição: ________________________ Assinatura:_________________________________
Prof(a). Dr(a).__________________________________________________________________
Instituição: ________________________ Assinatura:_________________________________
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Dedico este trabalho
a meus pais, Maria e Ezequiel, que sempre valorizaram minhas idéias e assim me permitiram
pensar com autonomia.
a meus filhos, Rafael, Daniela e Artur e a meu marido, Antonio, que participam de cada momento
de minha vida e que norteiam as travessias.
a meus irmãos, João, Ezequiel, Cida, Lena, Márcia e Eduardo, que estão sempre presentes em
minhas realizações.
4
Agradeço muito à Profa. Maria Lourdes Motter, não apenas as valiosas orientações de
estudo, mas, principalmente, a amizade e o carinho com que me acolheu.
Agradeço à Profa. Alice Vieira, minha orientadora na dissertação de mestrado, a
ampliação de minhas concepções de pesquisa e a acolhida carinhosa. Agradeço também as
orientações e os questionamentos feitos pelas professoras Anna Maria Balogh e Maria Thereza
Fraga Rocco na fase de qualificação deste trabalho.
Agradeço à minha irmã, Lena, a atenção e o carinho e dedicados à revisão do texto e,
principalmente, as perguntas de difícil resposta.
Agradeço ao Prof. Paulo Sampaio Xavier de Oliveira, colega pesquisador da minissérie
Grande Sertão: Veredas, as sugestões e empréstimos de material de pesquisa.
A Bárbara Fazio, esposa de Walter George Durst, agradeço a atenção e a delicadeza com
que sempre me recebeu e o empréstimo das fitas de vídeo.
Ao Prof. Willi Bolle sou grata pelas orientações e sugestões de leitura.
A Profa. Irene Machado as orientações polifônicas e as sugestões de leitura.
A Ottone F. Motter sou grata pela atenção e simpatia que sempre me dedicou.
A Marly Camargo de Barros Vidal, companheira de percurso, agradeço a revisão de texto
e o compartilhamento de indagações.
Agradeço a Christian H. Pelegrini as explicações sobre linguagem cinematográfica.
Aos funcionários da secretaria de graduação do Departamento de Comunicação da ECA
sou grata pela atenção e colaboração durante minhas pesquisas e minha participação no PAE.
5
RESUMO
MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. MINISSÉRIE GRANDE SERTÃO: VEREDAS:
Gêneros e Temas Construindo um Sentido Identitário de Nação. 2006. 290 p. Tese de
doutorado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
O presente trabalho teve como objetivo central compreender um sentido identitário de
nação construído pela Minissérie Grande Sertão: Veredas por meio de gêneros e temas. O
referencial teórico e procedimentos adotados possibilitaram compreender a articulação entre
gêneros literários, gêneros do discurso, gêneros televisuais e acabamento temático numa
perspectiva de construção histórica de um sentido de nação socialmente determinado. Essa
abordagem abriu-nos caminho para discutir questões referentes aos diversos enfoques teóricos
sobre a problemática dos gêneros no campo da Comunicação. Analisamos os discursos dos
principais artífices da minissérie, os discursos da imprensa sobre a minissérie e os elementos
constitutivos da minissérie com base em uma perspectiva dialógica em que a dimensão de
significação das relações humanas é permeada pela ideologia do enunciado. O estudo da
minissérie Grande Sertão: Veredas revelou que a escolha temática e o tratamento estético estão
sujeitos às injunções sociais, que, em certa medida, privilegiam a abordagem de um ou de outro
tema. Como resultado dessas discussões, identificamos características do gênero minissérie
permeadas por um acabamento temático até certo ponto inovador demonstrado pelo tratamento
estético diferenciado de alguns elementos narrativos, como por exemplo: personagens,
sonorização, ambiente. Enfim, o acabamento temático e o tratamento estético se articulam
harmoniosamente e se concretizam num produto artístico no qual é possível discernir o gênero
como articulador de um modelo de interpretação e de visão do mundo.
Palavras-chave: minissérie Grande Sertão: Veredas, gêneros televisuais, teledramaturgia,
temas, sentido identitário, nação e televisão
6
ABSTRACT
MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. MINISSÉRIE GRANDE SERTÃO: VEREDAS:
Gêneros e Temas Construindo um Sentido Identitário de Nação. 2006. 290 p. Tese de
doutorado. Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006.
The central target of this work is to comprehend a sense of nation identity built by the television
miniseries Grande Sertão: Veredas through gender and theme. The theoretical referential and
procedures adopted allow to understand the articulation between literary genders, discourse
genders, televisual genders and thematic finishing in a perspective of historical construction of
socially determined sense of nation. This approach has opened to us a path to discuss questions
referring to several theoretical focus about the question of genders in Communication. The
miniseries main personages discourses, the press discourses about the miniseries and the
miniseries constitutive elements were analyzed based in a dialogical perspective where a
signification dimension of human relations is permeated by the enunciation ideology. The study
of the miniseries Grande Sertão: Veredas revealed that the thematic choice and the aesthetic
treatment are subject to social injunctions which, in certain measure, privilege the approach of
one or other themes. As result of these discussions, characteristics of the miniseries gender were
observed permeated by a thematic finishing untill certain point innovative. This was
demonstrated by the aesthetic finishing differentiated from some narrative elements, for instance:
personages, sonorousness and ambient. In short, the thematic finishing articulates itself
harmoniously and turn into an a artistic product in which is possible to discern the gender as the
articulator of a paradigm of interpretation and a world vision.
Keywords: miniseries Grande Sertão: Veredas, televisual genders, teledramaturgy, themes,
identity sense, nation and television
7
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 5.1. - Página do caderno de anotações de Luiz Fernando Carvalho
– Minissérie Hoje é Dia de Maria ...................................................... 104
Figuras 8.1 a 8.30 – Seqüência do Prólogo e Seqüência do jagunço Firmiano e Riobaldo . 166
Figuras 10.1 a 10.24 – Seqüência da chegada de Riobaldo e dos jagunços ao Cambaùbal e
cantiga de Siruiz.................................................................................. 233
Figuras 11.1 a 11.21. – Seqüência “banquete político” ........................................................... 262
8
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................................... 5
ABSTRACT................................................................................................................................ 6
Lista de ilustrações .................................................................................................................... 7
Sumário ....................................................................................................................................... 8
Apresentação............................................................................................................................... 11
Primeira Parte - Apresentação do objeto, tema e problema
Capítulo 1 - Desfazendo a neblina ............................................................................................. 15
1.1. Inserção epistemológica e procedimentos metodológicos ................................................. 24
1.2. Objetivos ..... ....................................................................................................................... 29
Segunda Parte – Modelando o objeto de estudo
Capítulo 2 – Gêneros e Comunicação ........................................................................................ 30
2.1. Inter-relações: gêneros literários e comunicação ............................................................... 32
2.2. Gêneros: as raízes literárias ................................................................................................. 34
2.3. Gênero literário e cronotopo ......................................................... ...................................... 37
2.4. Gêneros do discurso ............................................................................................................ 41
Capítulo 3 – Gêneros, mediações e construção de mundos ficcionais ....................................... 50
3.1. Gêneros como mediação ...................................................................................................... 50
3.2. Gêneros e Teoria das Mediações ......................................................................................... 54
3.3. Gêneros: contrato e promessa.............................................................................................. 56
Capítulo 4 – Temas, discurso e enunciação.................................................................................. 71
4.1. Temas .................................................................................................................................... 71
4.2. Discurso e enunciação ........................................................................................................ 79
4.2.1. A identidade na tela de televisão: discurso e enunciação.................................................. 84
4.2.1. Discurso e enunciação da Rede Globo: o papel articulador do gênero
teledramatúrgico ........................................................................................................ 86
9
Capítulo 5 – Livros e teledramaturgia: inter-relações ............................................................. 95
5.1. Do livro para a televisão ................................................................................................... 95
5.2. Da televisão para o livro ................................................................................................... 99
5.3. Minissérie: gênero e formato ............................................................................................ 105
5.4. Construindo um gênero: minissérie adaptada ........................... ..................................... . 107
Terceira Parte – O objeto de estudo
Capítulo 6 – A minissérie Grande Sertão: Veredas ............................................................... 117
6.1. Contexto e pretexto ......................................................................................................... 117
6.2. “No ar mais um campeão de audiência” ......................................................................... 125
6.2. Repercussões na imprensa ............................................................................................... 130
Capítulo 7 – Minissérie Grande Sertão Veredas: A criação no contexto da Indústria
Cultural ............................................................................................................. 143
7.1. A minissérie: ponto de tensão entre a criação individual e a indústria cultural .............. 145
7.2. O autor, o produto e a produtora ...................................................................................... 148
7.3. O trabalho coletivo, parcelado e complementar na minissérie Grande Sertão: Veredas . 156
Capítulo 8 - A função social da minissérie Grande Sertão: Veredas ................................. 161
8.1. O prólogo (apresentação, leitura e interpretação do Brasil )............................................. 162
8.2. Em busca da Educação e da Nação ...................................................................... ............ 171
8.3. Entre o pedagógico e o didático: a didacidade .................................................................. 179
8.4. A imagem da nação na minissérie ................................................................................... 187
8.5. A nação na minissérie – A minissérie na nação: o moderno e o arcaico .......................... 189
Capítulo 9 – Minissérie Grande Sertão: Veredas: do livro ao roteiro .................................... 194
9.1. Grande Sertão: Veredas – da visualidade no literário à literariedade no (tele)visual ........ 194
9.2. Da promessa do roteiro à minissérie .................................................................................. 198
10
9.2.1. A reorganização temporal e enunciativa da narrativa ............................................. 203
9.2.2. Expansões narrativas ............................................................................................... 205
Capítulo 10 - Minissérie Grande Sertão: Veredas: do roteiro à minissérie ........................... 210
10.1 Personagens e Ambiente ....................................................................................... 210
10.1.1. O sertão no cinema ................................................................................................ 213
10.1.2. Sertão, Cangaceiros, Jagunços e Coronéis ............. ................................................216
10.2. O som, a fala e a musicalidade do sertão da minissérie ................................................. 228
10.3. A vez e a voz da palavra-imagem ................................................................................. 237
Capítulo 11 – Gêneros e Temas na minissérie Grande Sertão: Veredas ........................... 244
11.1. Homossexualismo e Destino Social ................................................................................ 249
11.2. Religiosidade .................................................................................................................. 266
Considerações Finais ............................................................................................................... 277
Referências Bibliográficas ................................................................................................... 282
11
Apresentação
“(...) havia três sertões. O de Guimarães Rosa é uma criação verbal,
literária. O sertão de Walter Avancini é uma criação e imagens em
movimento, televisiva. O sertão mineiro, de verdade, dificilmente terá a
magia da literatura ou da televisão. A imaginação criadora é uma feiticeira
inesgotável e deixa-nos fascinados pela beleza,
vibração e sensibilidade da obra de arte que é o seriado.”
Carlos Drummond de Andrade
1
Apesar de haver decorrido mais de 20 anos de sua exibição pela Rede Globo de Televisão,
a minissérie Grande Sertão: Veredas continua sendo objeto de pesquisa e de discussão nos meios
acadêmicos; seja por meio de dissertações e teses, seja pela apresentação de trabalhos em
seminários e congressos de comunicação, seja ainda em congressos e colóquios que, mais
especificamente, tratam da obra de Guimarães Rosa. Nos meios de comunicação em geral, a
minissérie é citada, com freqüência, como um marco da teledramaturgia brasileira e, muitas
vezes, serve como exemplo de um padrão de qualidade da programação televisiva.
A importância que essa adaptação pioneira de Grande Sertão: Veredas adquiriu para a
Rede Globo de Televisão e para a produção televisual brasileira pode ser demonstrada pelo
destaque que ainda hoje lhe é dado em apresentações e exposições organizadas pela emissora em
diversas partes do mundo. Apenas para citarmos um exemplo: em 2001 a minissérie fez parte da
mostra Brazil on Screen realizada pelo Museu Guggenhein de Nova York; juntamente com os
filmes Auto da Compadecida e Orfeu e a minissérie A invenção do Brasil – produções
relativamente recentes que obtiveram, em geral, boa aceitação de público e de crítica .
A minissérie Grande Sertão: Veredas foi apontada por seus realizadores (incluindo
adaptadores, diretores e produtores) como um ato de coragem, pois buscou transportar o “sertão
de Guimarães Rosa” para o meio televisual. As dificuldades para a transposição do genial
romance de Guimarães Rosa para a televisão não seriam apenas de ordem técnica, mas
decorreriam, sobretudo, da dificuldade de se adaptar uma obra de “difícil” leitura para o principal
meio de comunicação de massa de nosso país.
1
Em entrevista ao jornal O Globo, 23.11.1985, sob o título Magia do sertão televisivo.
12
Quando analisamos a minissérie Grande Sertão: Veredas, descobrimos que é
praticamente impossível deixar de fazer um percurso mínimo pelas veredas abertas pelo genial
escritor mineiro
2
. Há uma enorme quantidade de trabalhos sobre o romance de Guimarães Rosa.
Há análises que se detêm sobre as questões místicas ou metafísicas da obra, outras dão maior
ênfase à questão da linguagem inovadora (há até dicionários e vocabulários especializados). Há
ainda estudos sobre a cartografia, a hidrologia; alguns analistas detêm-se sobre o exame das
questões sociais e políticas presentes na obra. Enfim, há uma quantidade praticamente infinita de
livros que estudam sob as mais diferentes perspectivas aquela que é considerada a obra-prima de
Guimarães Rosa.
A atualidade e a importância do romance de Guimarães Rosa podem ser atestadas também
pelas exposições de fotografias, mostras e documentários destinados aos “sertões rosianos”. Em
março de 2005 teve lugar na Casa das Rosas, na avenida Paulista, uma mostra de vídeos
produzidos com a intenção de revelar “os sertões de Guimarães Rosa”. Atualmente, ocorre no
Museu da Língua Portuguesa (na reformada Estação da Luz), no centro de São Paulo, uma
exposição criada por Bia Lessa também com o objetivo de fazer as pessoas conhecerem e
interagirem com os sertões de Guimarães. Neste ano de comemoração do cinqüentenário de
Grande Sertão: Veredas terão lugar diversos congressos, seminários e exposições em diversos
pontos do país. Aliás, a comemoração do jubileu do romance de Guimarães Rosa também é
motivo para o ressurgimento na imprensa escrita e na televisão de comentários sobre a minissérie
objeto de nosso estudo.
Na época de veiculação da minissérie, houve um grande número de reportagens e artigos
na imprensa que analisavam a minissérie sob os mais variados aspectos: imagens, prosódia,
música, diálogos, fotografia. Enfim, praticamente nenhum aspecto escapou dos comentários dos
analistas de televisão e dos professores e críticos de literatura. Afinal, não se passa incólume por
Grande Sertão: Veredas.
Nossa pesquisa sobre a minissérie buscou analisá-la como um produto televisual sujeito às
injunções sociais, que, em certa medida, privilegiam a abordagem de um ou de outro tema por
meio do gênero televisual. Alguns estudiosos da televisão propõem que se discutam os gêneros
televisuais sem que se levem em consideração os estudos e discussões acerca dos gêneros
2
Principalmente porque Walter Avancini, diretor da minissérie, é categórico ao afirmar que gravou diversas cenas da
minissérie com o livro nas mãos.
13
literários. Alegam que a comunicação televisual baseia-se sobre pilares diferentes daqueles que
sustentam a literatura. Porém, é impossível esquecermos que a televisão é herdeira tanto de
técnicas de produção quanto de narrativas que provêm majoritariamente do cinema, do teatro e do
rádio, que, por sua vez, beberam em fontes alimentadas pela literatura. Dessa forma, acreditamos
que ao estudioso da comunicação resta a opção de buscar subsídios nas teorias literárias acerca
dos gêneros televisuais, porém acreditamos que os conceitos e as discussões no campo da
literatura devem servir como ponto de partida para a formulação de uma teoria própria da
comunicação de televisão. Coerentemente com essa perspectiva, orientamos o trabalho que ora
apresentamos.
O Capítulo 1, Desfazendo a neblina, destina-se a apresentar a inserção epistemológica e
os procedimentos metodológicos adotados; buscamos uma perspectiva de trabalho
interdisciplinar como forma de proceder à análise da minissérie e do material impresso que
recolhemos a seu respeito. A questão dos gêneros, um dos dois pilares sobre os quais se sustenta
nossa análise, foi abordada no segundo e no terceiro capítulos. No Capítulo 2, Gêneros e
Comunicação, efetuamos um mapeamento acerca das principais linhas de estudo dos gêneros
literários buscando situá-las frente ao campo da comunicação. Dentro dessa perspectiva ganham
destaque os estudos sobre cronotopo e gêneros do discurso efetuados por Mikhail Bakhtin.
Procedemos a uma aproximação maior entre gêneros e televisão no Capítulo 3, Gêneros,
mediações e construção de mundos ficcionais, quando abordamos o gênero como mediação e
como um elemento essencial para que o contrato ou pacto de comunicação ocorra. Há também
nesse capítulo a discussão sobre a idéia de gênero como promessa..
No Capítulo 4, Temas, discurso e enunciação, efetuamos nossas discussões acerca de
temas, discurso e enunciação vistos sob uma perspectiva dialógica em que a dimensão de
significação das relações humanas é permeada pela ideologia presente no enunciado concreto.
Com base nesse pressuposto, tratamos do papel articulador que o gênero teledramatúrgico
adquire na enunciação da Rede Globo de Televisão.
Aproximando-nos um pouco mais de nosso objeto de estudo, no Capítulo 5, Livros e
teledramaturgia: inter-relações, estudamos algumas das relações entre livros e televisão e entre
televisão e livros para efetuarmos a análise de algumas questões de linguagem e de gênero
implicadas na chamada minissérie adaptada.
14
A partir do Capítulo 6, defrontamo-nos mais diretamente com nosso objeto de estudo, a
minissérie Grande Sertão: Veredas. Ao Capítulo 6, A minissérie Grande Sertão: Veredas,
destinamos as reflexões referentes às injunções sociais e artísticas que incidiram sobre a
minissérie e as repercussões que ela provocou na imprensa. Procuramos estabelecer nesse
capítulo as relações entre motivação artística e produção industrial. Relações sobre as quais nos
debruçamos mais detalhadamente no Capítulo 7, Minissérie Grande Sertão: Veredas: a criação
no contexto da Indústria Cultural, em que discutimos o paradoxal diálogo entre criação artística e
produção sob os moldes da Indústria Cultural.
Procurando-nos aproximar ainda mais de nosso objeto de estudo, no Capítulo 8, A função
social da minissérie Grande Sertão: Veredas, efetuamos o estudo da função social da minissérie
com base no discurso presente na apresentação da minissérie (prólogo) feita pelo diretor Walter
Avancini. Por meio de seu discurso, é possível observar a intencionalidade da equipe de criação
da minissérie no sentido de buscar mostrar para o grande público o melhor da literatura brasileira.
Essa intencionalidade revela-se por meio de uma espécie de missão educativa de proporcionar à
imensa maioria dos brasileiros o acesso à grande literatura para que assim o Brasil possa
conhecer-se como nação.
No Capítulo 9, Minissérie Grande Sertão: Veredas: do livro ao roteiro, analisamos
alguns procedimentos de construção narrativa empregados pelo principal adaptador da obra,
Walter George Durst, para transformar o texto literário em roteiro de ficção seriada televisual. No
Capitulo 10, Minissérie Grande Sertão: Veredas: do roteiro à minissérie, damos prosseguimento
à nossa reflexão com a intenção de conhecer os caminhos percorridos para transformação do
roteiro em minissérie. Nesse momento, analisamos o tratamento estético e o acabamento temático
oferecidos pelo diretor às personagens, à sonorização, à prosódia e ao ambiente.
Finalmente, no Capítulo 11, Gêneros e temas na minissérie Grande Sertão: Veredas,
estudamos com mais profundidade os temas: homossexualismo, destino social e religiosidade.
Nas considerações finais, valemo-nos das discussões efetuadas nos capítulos precedentes com a
finalidade de concluir, pelo menos temporariamente – como tudo que se refere a Guimarães Rosa
e à televisão -, nossa análise.
15
Capítulo 1 - Desfazendo a neblina
“A vida é muito discor dada.
Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz.”
(GSV: 520)
A minissérie Grande Sertão: Veredas, veiculada pela Rede Globo de Televisão em 1985,
tem sido apresentada como um marco na história da ficção televisual brasileira. Tal consideração
se deve a um conjunto de fatores decorrentes tanto da cultura televisual quanto da cultura
brasileira num sentido mais amplo.
A minissérie que contou a história de Riobaldo em 25 episódios, de 18 de novembro a 20
de dezembro de 1985, é fruto da adaptação feita por Walter George Durst, com a colaboração de
José Antonio de Souza, do romance Grande Sertão: Veredas
3
, de Guimarães Rosa. O roteiro final
e a direção tiveram a assinatura de Walter Avancini.
O impacto dessa minissérie na ficção televisual brasileira foi extraordinário seja pela
ousadia de se adaptar para a televisão um livro considerado de difícil leitura
4
(famoso, mas de
poucos leitores), seja pelas implicações de se abordarem temas complexos (como
homossexualismo, religiosidade) em um meio de comunicação destinado ao grande público, seja
ainda pelo desafio de conseguir recriar o ambiente muitas vezes considerado místico no qual se
desenrola o texto literário. Ambiente que reflete as contradições humanas numa concretude
multiforme carregada de nuanças que exploram o imaginário popular em diversas perspectivas
(literária, filosófica, mitológica, psicológica).
3
Adotamos a sigla GSV para nos referirmos ao livro de Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
4
É comum encontrarmos na imprensa listas de personalidades e intelectuais que não passaram das trinta primeiras
páginas do livro ou que confessam que nunca o leram. A título de exemplo citamos a resposta de Renato Janine
Ribeiro, O Estado de S. Paulo, 03.07.05, Caderno 2, seção Antologia Pessoal, à pergunta sobre um livro que jamais
lera: “Grande Sertão: Veredas. Todas as vezes que comecei, algo me fez parar depois de 100 ou 150 páginas, e
quando voltei a ter tempo achei que precisava principiar do começo. Nunca terminei de lê-lo, mas será um prazer
quando conseguir.” O especialista em Guimarães Rosa, Davi Arriguci, segundo reportagem veiculada no site
http://diversao.terra.com.br/interna/0,,OI340208-EI3615,00.html
- acesso em 03.05.06, em palestra na Feira
Literária de Paraty de 2004, “reconheceu a dificuldade, que, a princípio, o livro impõe aos que nele se aventuram:
‘Não é fácil ultrapassar as trinta primeiras páginas. Mas quem consegue fazê-lo logo percebe que se trata de um
romance extraordinário, de paixão, amor, morte e guerras.’ ”
16
Boa parte da expectativa
5
da crítica especializada em televisão ou literatura em relação à
qualidade da minissérie deve-se ao próprio prestígio que o romance Grande Sertão: Veredas
possui dentro do universo literário e cultural brasileiro. Prova desse prestígio pode ser encontrada
principalmente neste ano de 2006 em que se comemora o cinqüentenário da primeira edição do
romance. Seminários, congressos, encontros, debates, exposições; enfim, um grande número de
manifestações culturais tem ocorrido em diversas partes do país
6
para comemorar a data.
Cadernos especiais de jornais de grande circulação
7
ou de jornais e revistas especializados em
literatura têm servido para demonstrar o vigor daquele que, muitas vezes, é apontado como o
melhor romance brasileiro. Além disso, têm sido publicados diversos estudos acadêmicos que,
de uma forma ou de outra, alimentam os debates em torno das questões presentes em Grande
Sertão: Veredas. Daniel Piza
8
, em texto que serve como uma espécie de apresentação a um
caderno especial dedicado ao cinqüentenário do romance, afirma:
João Guimarães Rosa (...) se divertia imaginando que sua obra-prima Grande Sertão: Veredas,
publicada em maio de 1956, daria trabalho para os críticos durante 700 anos. Cinqüenta anos se
passaram, e a frase continua a fazer sentido: interpretado de todas as formas, o livro é tema de
debates sem fim e mantém a sensação de que ainda não foi totalmente desvendado, se é que um dia
será.
Outra demonstração do prestígio dessa obra para a cultura brasileira e principalmente
para a literatura nacional pode ser encontrada em uma enquete feita pelo jornal Folha de S.
Paulo
9
, em 1999, na qual vários intelectuais, a convite do jornal, elegeram o romance do escritor
mineiro “o melhor romance brasileiro”. Na consulta, o jornal solicitou a dez intelectuais
5
Em nossa pesquisa, encontramos matérias de jornais e revistas que tratam da minissérie a partir de janeiro de 1985,
ou seja, dez meses antes de sua estréia. Nesses artigos são discutidos os mais variados aspectos: dificuldades dos
adaptadores, artistas, produtores, precariedade do meio televisivo, até mesmo a já então polêmica escalação de Bruna
Lombardi para representar Diadorim. Enquadram-se nesse contexto as seguintes matérias “Globo quer Guimarães só
para ela” (Folha da Tarde, 21.01.1985), “Grande Sertão: no vídeo, a saga de Riobaldo e Diadorim”, “A maior
produção em vídeo do mundo” (Jornal da Tarde-SP, 04.06.85) , “Em Minas Gerais, a Globo revive o “Grande
Sertão”, de 31.05.85) e “Ler ‘Grande Sertão’, enquanto a Globo não vem”, de Rosemary Arrojo, Folha de S. Paulo,
caderno Folhetim, de 02.06.1985)
6
Constatamos que a maior parte das comemorações ocorre em São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, cidades em
que há eventos programados para todo o ano de 2006. São tantos eventos que é praticamente impossível
apresentarmos uma lista deles.
7
Os jornais O Estado de S.Paulo e O Estado de Minas Gerais lançaram cadernos especiais comemorativos da data
no mês de maio de 2006.
8
No caderno especial Grande Sertão: Veredas 50 anos, p. H2, publicado em 27.05.2006, no jornal O Estado de S.
Paulo.
9
A reportagem “Grande Sertão” é o melhor romance brasileiro, publicada na Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, de 03.01.99,
sintetiza os resultados dessa pesquisa. O júri formado pelo jornal era composto por: Leyla Perrone-Moisés, Arthur Nestrovski,
Carlos Heitor Cony, João Alexandre Barbosa, João Adolfo Hansen, Walnice Nogueira Galvão, Luiz Costa Lima, Marcelo Coelho,
Moacyr Scliar e Silviano Santiago.
17
brasileiros que elaborassem uma lista com os dez melhores romances brasileiros de todos os
tempos. No topo da lista surgiu Grande Sertão: Veredas. Há inúmeras outras manifestações
De qualquer maneira, é difícil mensurar a importância de Grande Sertão: Veredas para a
literatura e para a cultura em geral do país. Antonio Cândido
10
afirma, na já célebre crítica No
calor da hora, escrita pouco tempo depois do lançamento do livro:
Não segue modelos, não tem precedentes; nem mesmo, talvez, nos livros anteriores do autor, que,
embora de alta qualidade, não apresentam a sua característica fundamental: transcendência do
regional (cuja riqueza peculiar se mantém todavia intacta) graças à incorporação em valores
universais de humanidade e tensão criadora.
Trata-se de um romance sem precedentes e sem continuadores como o próprio Antonio
Cândido continua afirmando cinqüenta anos depois de sua primeira análise do livro. Para o
crítico, Guimarães Rosa não é um escritor que deixe continuadores e lembra:
(...) escritores como Machado de Assis ou Graciliano Ramos podem influenciar em sentido
positivo a maneira de escrever dos mais moços, porque de certo modo trabalharam dentro dos
cânones da prosa literária de nossa língua. É possível inspirar-se neles sem perder a personalidade.
No caso de Guimarães Rosa, isso não me parece possível. Ele pode ser admirado até o fanatismo,
como acontece, mas não o vejo exercendo influência criadora, porque a sua marca é tão peculiar
que transforma a influência em servidão. Por isso, em relação à sua prosa talvez só caibam
exercícios de imitação consciente e programada, como uma espécie de homenagem, num espírito
parecido ao que os franceses chamam “ao modo de”.
11
Falamos de um autor que desenvolveu um estilo próprio, impossível de ser recriado,
exceto que se queira cair na simples caricatura. Não é de estranhar, portanto, que a minissérie que
ousou levar a trágica história do amor de Riobaldo e Diadorim para as telas de televisão tenha
marcado época e suscitado, tal como acontece a Riobaldo, amor e repulsa, desnorteio e devaneio.
Para a realização de Grande Sertão: Veredas, a Rede Globo de Televisão não poupou
esforços, já que a minissérie fez parte das produções que comemoraram os vinte anos da
emissora. A outra grande produção idealizada com essa finalidade foi a minissérie O tempo e o
vento adaptada da obra homônima de Érico Veríssimo cujo tema central é a formação (tanto no
aspecto territorial quanto humano) do estado do Rio Grande do Sul. De maneira geral, pode-se
10
A crítica No calor da hora, foi publicada no suplemento literário de O Estado de S. Paulo, de outubro de 1956, e
reproduzida no suplemento especial Grande Sertão: Veredas 50 anos, p. H10, publicado em 27.05.2006 no mesmo
jornal.
11
Entrevista concedida a Natalia Engler Prudêncio e Paulo Fávero, publicada no semanário Jornal da USP, p. 14, de
15 a 21.05.2006 por ocasião da realização do Seminário Internacional Guimarães Rosa: 50 anos de Grande Sertão:
Veredas e Corpo de Baile organizado pelo IEB-USP
18
dizer que em ambas as obras literárias observam-se, mesmo que de perspectivas e ênfases
diferentes, as lutas e guerras enfrentadas pelo homem (brasileiro) para conseguir a posse da terra
e o reconhecimento de sua cidadania. Uma terceira minissérie, que contou com orçamento mais
modesto que as duas outras produções, foi ainda produzida no ano 1985: Tenda dos Milagres
12
,
cujo tema central versava sobre a discriminação racial e a “integração” da “cultura africana” à
“sociedade branca”
13
(DG 2003: 317). Observa-se que também nessa minissérie, apresentada na
grade de programação da emissora entre O tempo e o vento e Grande Sertão: Veredas, a questão
da constituição da nacionalidade é posta em foco por meio da busca da integração entre as
culturas africana e branca
14
, mais uma vez busca-se, de alguma maneira, a identidade nacional.
Há ainda um outro traço comum entre as três minisséries produzidas em 1985, todas elas
têm como texto-fonte obras literárias consagradas de autores com grande prestígio no Brasil e no
exterior. Érico Veríssimo e Jorge Amado figuram entre os escritores que conseguiram se destacar
e sobreviver “apenas” de seus trabalhos como escritores no espaço hostil destinado à literatura na
sociedade brasileira. Esses escritores destacam-se pela boa acolhida de público e crítica que
obtiveram não só no Brasil, mas também nos diversos países em que seus livros foram editados.
O uso de suas obras como texto-fonte para as minisséries poderia estrategicamente facilitar a
comercialização dessas produções no exterior, principalmente nos mercados europeu e sul-
americano onde esses escritores possuíam grande prestígio. No caso ainda de Tenda dos
Milagres, os mercados português e africano certamente poderiam ser bastante atraídos pela
temática (como realmente o foram de acordo com a lista de países para os quais a minissérie foi
exportada). (DG 2003: 318)
Entretanto, com a minissérie Grande Sertão: Veredas a estratégia não poderia se basear
na lógica mais ligada à facilidade de penetração de um produto cujo texto-fonte pudesse ser
identificado com um autor conhecido por boa parcela do público. Afinal, Guimarães Rosa nunca
12
Escrita por Aguinaldo Silva e Regina Braga, baseada na obra homônima de Jorge Amado, direção de Paulo
Afonso Grisoli, levada ao ar de 29.07 a 06.09.1985, com 30 capítulos. Dicionário Globo. Volume 1: Programas de
dramaturgia e entretenimento, p. 317
13
Reproduzimos os termos empregados na sinopse constante no Dicionário Globo, p. 317. No decorrer deste
trabalho, discutiremos como o uso dessas expressões denotam um enfoque empobrecido da questão racial e cultural
brasileira.
14
Embora não concordemos com o caráter restrito aplicado ao conceito de cultura e também ao que seja cultura
africana e cultura branca, optamos em colocar a questão mais ou menos como é colocada no Dicionário Globo, p.
317, (que, normalmente, reproduz, parcialmente, o press release da emissora). Em momento oportuno, nesta tese,
efetuaremos a discussão sobre a parcialidade, segundo alguns críticos, com que esses conceitos foram empregados e
que acabaram influindo, obviamente, no conteúdo da minissérie.
19
escreveu best sellers, ao contrário, seus livros são relativamente pouco vendidos, mas contam
com uma aceitação bastante elevada entre a crítica especializada. Segundo Bosi (1994: 29),
Guimarães Rosa somente “(...) obteve reconhecimento geral a partir de 1956, quando saíram
Grande Sertão: Veredas e Corpo de Baile. Mas publicadas estas obras, o reconhecimento cresceu
a ponto de melhor chamar-se glória.” A glória a que se refere Bosi não se restringiu às terras
brasileiras, mas também encontrou eco entre os críticos literários de diversos países que se
dedicaram a estudar em profundidade a obra Guimarães Rosa, principalmente Grande Sertão:
Veredas. Assim, se à obra rosiana não puderam ser adicionados os muitos milhares (ou talvez
milhões) de exemplares vendidos pelos dois outros excelentes escritores (e, conseqüentemente,
de leitores conquistados que se converteriam em potenciais telespectadores), podia-se agregar a
seu nome um prestígio que, em termos de literatura brasileira, talvez só encontre rival na figura
de Machado de Assis. Dessa forma, a vinculação da Rede Globo de Televisão ao nome e à obra
de Guimarães Rosa, mesmo que isso se desse na realidade de maneira indireta, serviria para
agregar um forte prestígio à emissora no mercados nacional e internacional. Fato esse
que, como veremos, a Rede Globo de Televisão soube capitalizar com maestria.
A minissérie Grande Sertão: Veredas foi apresentada novamente no final de 1998 pelo
Canal Futura
15
, dentro da programação denominada Faixa Comentada Especial. Nesse programa,
a minissérie era interrompida, de acordo com a temática desenvolvida, para comentários de um
apresentador. Esses comentários tinham por objetivo explicar ao telespectador, possivelmente a
um estudante (provável público-alvo) as implicações históricas e sociais de determinadas
situações presentes na minissérie. Porém, segundo Oliveira (1999), alguns episódios sofreram
cortes em relação à primeira apresentação exibida em 1985. Segundo esse pesquisador, tais cortes
ocorreram para tornar o conteúdo da minissérie mais apropriado para uma emissão com objetivos
educacionais
16
.
15
Canal de televisão por assinatura com programação de caráter educativo inaugurado em 1997 e mantido pela
Fundação Roberto Marinho.
16
Comparando as passagens do livro em que Riobaldo pratica violência sexual com as cenas das relações sexuais de
Riobaldo na minissérie (de 1985) Oliveira, A televisão como tradutora, p. 216, afirma que houve um abrandamento,
porém em relação à versão apresentada pelo Canal Futura houve cortes que denotam a preocupação da emissora
educativa em tornar o comportamento de Riobaldo mais apropriado para uma emissão de cunho educacional: “Essa
decisão da Globo de apresentar um herói sem máculas é corroborada a posteriori, na reapresentação do programa na
Faixa comentada especial, na qual essa cena é simplesmente suprimida, o que torna Riobaldo um personagem ainda
mais palatável para uma emissão de cunho eminentemente didático.” A cena a que o autor se refere reproduz,
parcialmente, a passagem do livro em que Riobaldo conta uma série de violências sexuais praticadas por ele (e pelos
jagunços), GSV p. 188-189; na minissérie a cena ocorre no capítulo 4. Posteriormente, faremos discussão mais
detalhada dessa cena.
20
Cabe-nos ainda acrescentar que essa utilização da minissérie desloca totalmente seu
caráter ficcional fazendo com que ela assuma, em certa medida, um caráter mais histórico, como
se se tratasse de um documentário. A idéia da ficcionalidade na televisão, segundo Jost (1997,
2004), por vezes, é marcada mais por características extrínsecas (incluindo dados paratextuais) à
obra que pelo seu conteúdo propriamente dito. Fato semelhante é notado por Schaeffer (1999)
quando da análise da questão da ficcionalidade na obra literária. Para este teórico francês, a
compreensão do que seja um relato ficcional ou um relato não ficcional está mais ligada à
recepção que à obra em si
17
.
Dessa forma, a significação do conteúdo da minissérie original modifica-se, por exemplo,
devido às interferências de um apresentador e de convidados que resumem, explicam e
contextualizam as ações das personagens, situando-as ora no campo da historiografia, ora nos
domínios da literatura
18
. O telespectador muda seu horizonte de expectativa
19
e, ainda, tira-se do
espectador o prazer de descobrir outras interpretações; produzindo, em conseqüência, um único
discurso interpretante; perde-se a fruição
20
que o texto televisual poderia oferecer. Fragmenta-se
17
Para provar sua tese, Jean-Marie Schaeffer, Pour quoi la fiction?, analisa longamente como o livro Marbot, de
Wolfgang Hildesheimer, foi recebido (e estudado), inclusive por intelectuais e historiadores, como relato histórico
quando, na verdade, tratava-se de uma história ficcional.
18
Paulo Oliveira, A televisão como “tradutora”..., p. 277, faz o seguinte comentário a respeito do tratamento dado à
minissérie por ocasião de sua apresentação no programa Faixa Comentada do Canal Futura: “O caráter paradidático
é patente também na já citada Faixa comentada especial do Canal Futura. Nos comentários que acompanham a
exibição do episódio de Maria Mutema, destacam-se primeiramente dados estilísticos e socioculturais. Há duas
intervenções menores, sobre os possíveis significados dos nomes próprios dos protagonistas da historieta, Maria
Mutema e Padre Ponte, e sobre a admiração de Riobaldo pelos missionários. Há também uma intervenção maior, na
qual o locutor Eduardo Martini fala da importância das igrejas em Minas Gerais e aproveita para citar o barroco
como o estilo característico da região, mostrando várias imagens de igrejas e objetos sacros (texto do roteirista Aimar
Labaki). Esse quadro é complementado por uma breve reflexão sobre a perspectiva da narração, a qual é mudada na
TV, de forma mais sistemática,apenas nesse episódio específico. O especialista entrevistado, Afonso Romano de
Santanna, fala da pluralidade de perspectivas como uma das características da “literatura moderna” e remete a um
clássico de Akira Kurosawa, o filme Rashomon (1950), no qual a mesma história é contada várias vezes, de acordo
com a ótica de diversos personagens. Nesse caso, o filme teria servido de modelo para revolucionar a literatura de
nosso século. Ao comparar a narrativa clássica com a “moderna”, o crítico discorre ainda sobre a questão do
descentramento, ou da multiplicidade de verdades que caracteriza o discurso contemporâneo: [Na] narrativa
tradicional, essa que encontramos em José de Alencar, por exemplo, no Balzac, você tem uma estruturação quase que
de um ponto de vista dominante. Mas hoje, depois de Einstein, na física, depois que alguns filósofos disseram que a
verdade não tem centro (não existe mais uma verdade única, existem várias verdades em trânsito), a narrativa
plurifocal – ela representa muito a nossa sociedade: descentrada, e eu diria até um pouco perdida, caótica e niilista.’”
(Capítulo 18, início do 3º Bloco de comentários)
19
Compreendemos essa expressão de acordo com a definição de Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la
réception, p. 54, ao iniciar a leitura de um texto, o leitor teria uma espécie de horizonte de expectativa que é: “(...) o
sistema de referências objetivamente formulado que, para cada obra no momento da história em que ela aparece,
resulta de três fatores principais: experiência anterior que o público tem do gênero do qual ela faz parte, forma e
temática das obras anteriores que ela pressupõe o conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem
prática, mundo imaginário e realidade cotidiana.” (tradução nossa)
20
Remetemos aqui ao par prazer/fruição discutido por Roland Barthes: O prazer do texto.
21
mais ainda a narrativa televisual, pois são inseridos intervalos, comentários, outros enunciados,
outros mundos ficcionais ou “reais” que não estavam previstos pelo diretor ou pelo roteirista.
Podem surgir então mais razões históricas e menos motivações das personagens; os conflitos
dramáticos podem ser reduzidos à lógica causal. Em casos extremos, a ficção perde seu
encantamento e beleza e chegamos a um produto audiovisual cuja trama contém ações explicadas
pelo mecanismo lógico da causa e conseqüência e as imagens cumprem um papel secundário em
relação a um discurso verbal exterior construído posteriormente. Assim, como acontece, em
muitos casos, com a literatura (mal) abordada didaticamente como pretexto, a minissérie passa a
ser pretexto para se conhecer o sertão, Minas Gerais, os problemas sociais e as lutas políticas pelo
poder. Desintegra-se o todo da obra literária e emergem pontos que, muitas vezes, pouco dizem
quando retirados da unidade total do texto literário ou do todo do produto televisual. A
minissérie, enquanto obra artística, perde sua função expressiva e poética e surge um novo
produto em que a linguagem é predominantemente usada em sua função referencial.
21
Pode-se
ainda ver esse procedimento como uma espécie de monologização do discurso na medida em que
procura induzir o telespectador a uma única interpretação, a uma cosmovisão determinada pelos
produtores do programa. Obviamente, sempre há possibilidades outras de interpretação como
afirma Bakhtin (2003), porém a estrutura do texto assim produzido busca restringir ao máximo as
possíveis variantes interpretativas do discurso.
Em conseqüência do exposto, sempre que nos referirmos a essa nova exibição da
minissérie Grande Sertão: Veredas não falaremos em reapresentação e sim em um novo produto.
Aliás, está prometido para o mês de dezembro de 2006 um novo produto: segundo notícia
veiculada na imprensa, a Rede Globo de Televisão vai lançar em DVD “uma de suas maiores
obras primas”
22
como parte das comemorações do cinqüentenário de publicação do livro Grande
Sertão: Veredas. Também em razão dessa data, o Centro Cultural São Paulo programou, de 16 a
21 de maio de 2006, a exibição de uma série de filmes e documentários que focalizavam a obra
de Guimarães Rosa; entre as projeções selecionadas, constava o primeiro episódio da minissérie
em DVD. Essa programação foi exibida durante a semana em que se desenvolveu o Seminário
Internacional Guimarães Rosa promovido pelo IEB-USP. Porém, constatamos que a versão
21
Não somos contra ao uso do texto literário ou de outra obra de arte em situação educacional, porém acreditamos
que isso deva ser feito após uma leitura inicial que privilegie a fruição da obra artística, uma vez que o
leitor/espectador não é um sujeito passivo e, por isso, interage constantemente com o texto que lê e é ele, leitor,
quem atribui significados ao texto.
22
Cf. notícia “Globo lança Grande Sertão em DVD”, O Estado de S. Paulo, 04.05.2006, Caderno 2, D5.
22
exibida em DVD foi gerada a partir de uma cópia VHS caseira, uma vez que ainda constavam
parte de comerciais e os plim-plins da Rede Globo de Televisão exibidos em 1985. O
cinqüentenário de lançamento do romance também foi pretexto para o Globo Repórter apresentar,
em 22.06.2006, um programa inteiro dedicado ao parque Grande Sertão: Veredas e mostrar
cenas da minissérie produzida de mesmo nome.
Acreditamos que o lançamento do DVD “oficial” da minissérie seja visto como uma
notícia animadora para os pesquisadores da ficção televisiva, porém ainda é cedo para dizer se
haverá ou não modificações (nova edição) em relação ao produto exibido em 1985. Atualmente,
o acesso ao material gravado tem sido difícil e tem dependido mais da boa vontade de
pesquisadores que gravaram a minissérie à época de sua exibição em 1985 ou de sua veiculação
em 1998 (mesmo levando em consideração o que dissemos acima). Nossa pesquisa, por exemplo,
só se tornou possível graças à gentileza da Sra. Bárbara Fazio que nos cedeu (para que fizéssemos
uma cópia) as fitas gravadas (em equipamento de VHS doméstico) por seu marido, Walter
George Durst, em 1985. As fitas com as quais trabalhamos nem sempre contêm indicações de
início e término dos episódios, o que torna difícil a referência a uma ou outra cena em especial.
Como alternativa, para facilitar a referência, adotamos a segmentação dos episódios conforme
trabalho minucioso realizado por Oliveira (1999); entretanto, como esse levantamento foi
efetuado a partir da minissérie exibida em 1998 a qual foi submetida a cortes (conforme
comentamos anteriormente) é preciso termos em mente que as cenas referidas neste trabalho
podem não corresponder exatamente ao conteúdo de determinado episódio exibido em 1985.
A escolha de transpor obras de reconhecido valor estético-literário para o meio televisivo
apresenta possivelmente uma série de motivações que vão desde a construção de uma imagem de
marca da Rede Globo de Televisão até a sua consolidação como produtora da indústria cultural
numa perspectiva mundial. A criação e a consolidação de uma imagem de marca
23
ocorre em
diversas frentes e pode repercutir no plano nacional ou internacional
24
. Porém, no Brasil a
23
Segundo Richard Perassi Luiz de Souza, A visualidade das marcas institucionais e comerciais como campo de significação, “A
imagem de marca é construída pela incorporação de um conjunto de valores e atributos, os quais lhe constituem uma cultura
específica, ou seja, uma memória coletiva sobre o seu percurso no mercado. Dentre as possibilidades associativas que podem
compor a imagem de marca, encontram-se todas as vivências do consumidor dentro do processo de construção e divulgação da
marca, que, por sua vez, está relacionado a outras associações, decorrentes da herança cultural A marca produz diversos sentidos
envolvendo as sensações, os sentimentos e a cognição
Oliveira (1999), A televisão como “tradutora”..., também discute a questão da associação do prestigio da obra literária e de seu
autor à minissérie.
24
A consolidação das redes de emissoras de televisão como representantes de um sentimento de nacionalismo na América Latina
e no Brasil é amplamente discutida por Martin-Barbeiro (2001), Ortiz R. & Borelli, S. H. S. & Ramos, J. M. (1988), Wolton
(1996) entre outros.
23
consolidação da televisão brasileira como meio de comunicação de massa tem lugar por meio de
um processo em que a televisão privada assume para si um “papel social, nacional e cultural” e
passa a ser “a vitrina” do país conforme afirma Wolton (1996: 154) Esses aspectos serão mais
detalhados no decorrer deste trabalho, porém apenas como forma de introduzir a temática,
gostaríamos de lembrar que também a literatura assume simbolicamente os três papéis
mencionados por Wolton. Um dos conceitos de literatura que permeiam nosso trabalho é tecido a
partir das considerações efetuadas por Antonio Cândido (1965: 169-170) acerca das relações
entre literatura e sociedade.
Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidência, um
esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma “expressão”. A literatura, porém
é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a
imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar de um momento
– para chegar a uma “comunicação.
Assim, não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal, manifestando-
se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem
sempre tenha consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua
produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a
criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma
transmissão e uma herança), que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo.
(grifos do autor)
Portanto, dentro desse quadro teórico, a literatura não se resume a produções individuais
de cunho ficcional que Antonio Cândido (1965: 170) denomina “manifestações literárias”, mas se
constrói em meio a uma teia de significados e valores presentes em todas as esferas da sociedade.
Poderíamos ainda acrescentar que, por sua vez, essa sociedade se constrói por meio das relações
de linguagem impregnadas pelo uso do signo lingüístico prenhe de significado ideológico, uma
vez que foi urdido nas relações sociais que nos envolvem mesmo antes de nascermos.
25
Afinal,
segundo Bakhtin (2002: 122),
a estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração
estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em
última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a
dinâmica da sua evolução.
25
Aludimos aqui à idéia de Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 108, segundo a qual não se
adquire a língua materna, uma vez que: “Os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na
corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência
desperta e começa a operar. (...) Os sujeitos não “adquirem” sua língua materna; é nela e por meio dela que ocorre o
primeiro despertar da consciência.”
24
Assim, de acordo com essa perspectiva, procuramos demonstrar que a escolha das
minisséries que comemorariam o vigésimo aniversário da emissora buscava dar conta das
dimensões social, nacional e cultural, e ainda fazer frente à necessidade de a emissora se firmar
no panorama cultural internacional como produtora competente de programas audiovisuais de
qualidade que poderiam ser comercializados com diversos países
26
. A minissérie O tempo e o
vento foi vendida para mais de vinte países, incluindo Bélgica, Canadá, França, Estados Unidos e
Suíça. Tenda dos Milagres obteve também grande aceitação no mercado externo; foi
comercializada com diversos países entre eles: Angola, Argentina, Bolívia, Colômbia, Cuba,
França, Macedônia, Moçambique, Paraguai, Portugal, Uruguai e Venezuela. (DG 2003: 318).
Nove países compraram Grande Sertão: Veredas (entre eles Estados Unidos e França).(DG: 316-
318).
Enfatizamos, entretanto, que é necessário que tanto o sucesso da minissérie quanto ela
própria sejam estudados não apenas como resultado de estratégias mercadológicas vencedoras.
Acreditamos que seu sucesso não possa ser compreendido sem que se levem em conta as
articulações entre gêneros televisuais, temas e gêneros do discurso e o contexto sócio-histórico no
qual se tecem as diferentes linguagens presentes num produto televisual que se converteu em
sucesso de crítica e de público. O caminho para essa compreensão passa, acreditamos, pela
análise de como essas categorias se entrelaçam e se revelam inovadoras dentro de uma
perspectiva de criação e produção ficcional pautada pela necessidade de produtividade e sucesso
característica da industria cultural. Além disso, serão analisadas as escolhas temáticas efetuadas
pelos adaptadores e diretor numa perspectiva que envolve fatores histórico-sociais presentes à
época da produção televisual e suas correlações com a construção da nacionalidade brasileira por
meio de produtos televisuais.
1.1. Inserção epistemológica e procedimentos metodológicos
Nosso trabalho se insere em um quadro teórico marcado pela compreensão da necessidade
de se interpretar a comunicação em uma perspectiva transdisciplinar que busque não apenas
relacionar os diversos sujeitos e objetos da comunicação, mas principalmente concebê-los e
26
Afinal, é na década de 1980 que a Rede Globo de Televisão ganha projeção internacional por meio da
comercialização de telenovelas e seriados exibidos com sucesso em diversos países do mundo (incluindo grandes
mercados como URSS e China).
25
analisá-los dentro da complexa teia das relações sociais. A necessidade de uma abordagem
transdisciplinar nos estudos de comunicação é defendida por Lopes (2001:112) como uma forma
de fazer frente à complexidade das mudanças econômico-sociais que estão ocorrendo em todas as
esferas sociais no contexto da globalização. Para essa autora, o enfoque transdisciplinar poderia dar
conta:
dos desafios cognitivos trazidos pelos processos de globalização. Como novo constructo teórico-
metodológico e macroteoria das ciências sociais, a globalização envolve necessariamente a
dialética singular-diverso e universal-global. O que implica não priorizar um momento em
detrimento do outro, mas em reconhecer que ambos se constituem reciprocamente, articulados de
modo harmônico, tenso e contraditório, envolvendo múltiplas mediações. (LOPES 2001:113)
(grifos da autora)
Citando Moragas, Lopes (2001) afirma que a abordagem das questões de comunicação
tem tido um enfoque:
meramente pluridisciplinar, isto é, feita com a colaboração de distintas disciplinas para o
reconhecimento de um objeto comum, cada uma delas a partir de sua ótica particular, o que leva
apenas a uma justaposição de conhecimentos díspares, e não à sua integração. Segundo o autor
(Moragas), o desenvolvimento do campo caracteriza-se hoje como interdisciplinar, pois implica o
confronto e o intercâmbio de métodos e pontos de vista. Para ele, um grau superior de colaboração
dar-se-ia na transdisciplinaridade, etapa ainda não alcançada, que não se limita a posicionar um
objeto comum, a compartilhar ou complementar enfoques metodológicos, senão que trabalharia
com conceitos e teorias comuns às distintas ciências sociais.
A abordagem transdisciplinar lembra-nos Martín-Barbero (apud LOPES 2001:115-116)
não significa, contudo,
a dissolução dos problemas-objeto do campo da comunicação nos de outras disciplinas sociais,
mas as construções de articulações – intertextualidade – que fazem possível pensar os meios e as
demais indústrias culturais como matrizes de desorganização e reorganização da experiência social
e da nova trama de atores e estratégias de poder
.
Trata-se de um enfoque que possibilita ao pesquisador trabalhar seu objeto de pesquisa de
maneira consciente e conseqüente com os aportes de diversas áreas do conhecimento humano
numa abordagem dialética que leva em conta as contradições, as semelhanças, a historicidade da
dinâmica social e científica.
Dentro dessa perspectiva, adotou-se como técnica de pesquisa o estudo de caso, uma vez
que essa abordagem permite que se leve em “(...) consideração, principalmente, a compreensão,
como um todo, do assunto investigado (...). O direcionamento desse método e dado na obtenção
26
de uma descrição e compreensão completas das relações dos fatores em cada caso” (Fachin 2003:
42). De acordo com Orozco-Gomes (1996: 109):
o estudo de um caso é um estudo em profundidade: é o esforço por tratar de integrar no
objeto de investigação toda informação constitutiva desse objeto e não apenas parte da
informação, para tomá-lo como exemplo que pode contrastar, ser comparado ou ser
analisado para um conhecimento em profundidade de um objeto de estudo.
Portanto, trata-se de estudar em profundidade um objeto com a finalidade de estabelecer
suas características, para, em seguida proceder a uma interpretação que leve em conta que “o
distintivo e o único” (Orozco Gomes 1996: 109) encontrado nesse objeto permitirá considerá-lo
como “objeto exemplar através do qual ser[á] possível captar outros elementos do contexto maior
(...)”(Orozco Gomes 1996: 109, grifo do autor).
Nosso trabalho de análise envolveu duas perspectivas: a do discurso como constituinte do
gênero e a do próprio gênero dentro da perspectiva da intertextualidade que se estabelece entre os
produtos simbólicos de uma cultura, em nosso caso da cultura televisual. Para atingirmos esses
objetivos, fizemos dois movimentos de aproximação com o objeto de estudo. O primeiro deles foi
coletar documentos que se relacionassem de maneira direta ou indireta com a minissérie Grande
Sertão: Veredas. Nessa etapa, consideramos :
(...) documentos quaisquer materiais escritos que possam ser usados como fonte de informação
sobre o comportamento humano. Estes incluem desde leis e regulamentos, normas, pareceres,
cartas memorandos, diários pessoais, autobiográficos, jornais, revistas, discursos, roteiros de
programas de rádio e de televisão até livros, estatísticas e arquivos escolares” (Ludke & André
1986: 38)
Como se trata de trabalhar com um produto da indústria cultural cujas repercussões
extrapolam a esfera estritamente acadêmica, foi necessário comparar dados e informações
constantes em diversos veículos de comunicação, principalmente em jornais e revistas de
circulação nacional com os trabalhos acadêmicos publicados. Em seguida, procedemos à análise
documental do material coletado “ (...) visando representar o conteúdo de um documento sob uma
forma diferente do original a fim de facilitar num estudo ulterior, a sua consulta ou
referenciação” (Chaumier apud Bardin 1995: 45).
Assim, em nossa pesquisa valemo-nos diversas fontes documentais; as principais
detalhamos a seguir. Utilizamos como texto-fonte fitas VHS gravadas a partir de cópias
registradas por Walter George Durst à época da exibição da minissérie em 1985. Trata-se de uma
27
gravação feita em equipamento doméstico de VHS em que foram cortados os comerciais e
trechos referentes à apresentação de cenas de episódios anteriores bem como a locução do
narrador sobre essas cenas. O material foi-nos gentilmente fornecido pela Sra. Bárbara Fazio, em
2004, quando a entrevistamos, ocasião em que também fizemos cópia de alguns episódios do
roteiro que ainda se encontravam em seu poder. Em 2005, o acervo de Walter George Durst foi
doado ao setor de Multimeios do Centro Cultural São Paulo. Nesse local, tivemos acesso a pastas
organizadas pelo próprio autor em que pudemos encontrar (e posteriormente fotocopiar) diversos
recortes de jornais referentes à minissérie. No local, fizemos também pesquisas sobre a minissérie
em jornais de grande circulação em São Paulo à época da exibição da minissérie. Já em 2006,
entramos em contato com o pesquisador Paulo Sampaio Xavier de Oliveira
27
que gentilmente nos
forneceu o acervo de recortes de jornais e revistas sobre a minissérie organizado por ele durante
suas pesquisas. Também foram encontrados artigos de jornais e revistas no Setor de Publicações
de Docentes da Biblioteca da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas e na Biblioteca
da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Todo o material jornalístico a
que tivemos acesso encontra-se devidamente registrado nas referências bibliográficas desta tese.
Concluída a pesquisa bibliográfica que possibilitou a composição do corpus desse
trabalho, demos início ao segundo movimento de aproximação com o objeto de estudo, que se
caracterizou pela definição de um modelo de análise teórico-metodológico que levasse em
consideração que o processo de elaboração da minissérie Grande Sertão: Veredas e do corpus
são marcados pelo confronto de motivações, de desejos com as imposições do código lingüístico
e da linguagem televisual e com as condições de produção do discurso narrativo que são dados,
em última instância, pelo momento e pela sociedade que o circunscreve. A narrativa não é
entendida como uma realidade estática, acabada; mas como movimento, construção que se realiza
na linguagem.
Dentro dessa perspectiva, nossas discussões sobre as questões de linguagem, de estética
literária e de comunicação
28
compreendidas numa perspectiva ampla que envolve todas as esferas
27
Autor da tese de doutorado A televisão como “tradutora”: veredas do grande sertão na Rede Globo, apresentada
ao Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP em 1999.
28
Para estudo do gênero minissérie, nosso trabalho de análise terá como principais subsídios os conceitos discutidos
por Bakhtin e seu círculo, Machado (2003: 68) afirma que “De todas as teorias do gênero em circulação, a de
Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a mais adequada às obras de nosso tempo, mesmo que também Bakhtin
nunca tenha dirigido sua análise para o audiovisual contemporâneo ficando restrito, como os demais, ao exame dos
fenômenos lingüísticos e literários em suas formas impressas ou orais. Para o pensador russo, gênero é uma força
28
da sociedade tiveram como embasamento teórico principal os estudos de Bakhtin (1993, 1993a,
2002, 2003, 2005). A escolha desse ferramental teórico se deve, principalmente, aos princípios da
responsividade, dialogicidade e polifonia desenvolvidos por esse fecundo teórico russo,
principalmente no tocante aos gêneros do discurso dentro de uma perspectiva comunicacional.
29
Nesse quadro teórico, gênero e gêneros do discurso não são apenas conceitos ou princípios
organizacionais lógicos são a própria matéria viva que compõe dinâmica e dialeticamente as
relações cotidianas numa perspectiva comunicacional bastante ampliada, uma vez que está
baseada nas relações intrínsecas do signo lingüístico como signo ideológico por excelência
30
.
Para as discussões referentes à cultura brasileira, Octávio Ianni (1999, 2004) e Renato
Ortiz (1988, 2005) forneceram elementos que são complementados pelos estudos sobre cultura
literária e literatura elaborados por Antonio Cândido (1965, 1979). Com relação às discussões
referentes aos temas abordados, utilizamos os conceitos fornecidos por B. Tomachevski
articulados com os estudos de Mikhail Bakhtin (1993, 2002, 2005).
aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar idéias, meios e
recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a comunicabilidade dos
produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras.” Seguindo esse raciocínio, o gênero atua como
uma espécie de orientação para o uso da linguagem de determinado meio em determinada situação de
comunicação
28
. Como já afirmamos anteriormente, isso não significa que o gênero se constitua como um conjunto de
discursos permanentemente estável, pois a teoria Bakhtin
28
se funda sobre a dialogicidade que estabelece sobre o
princípio da enunciação.
29
Sobre esse aspecto Arlindo Machado, A televisão levada a sério, p. 68, afirma: “De todas as teorias do gênero em
circulação, a de Mikhail Bakhtin nos parece a mais aberta e a mais adequada às obras de nosso tempo, mesmo que
também Bakhtin nunca tenha dirigido sua análise para o audiovisual contemporâneo ficando restrito, como os
demais, ao exame dos fenômenos lingüísticos e literários em suas formas impressas ou orais. Para o pensador russo,
gênero é uma força aglutinadora e estabilizadora dentro de uma determinada linguagem, um certo modo de organizar
idéias, meios e recursos expressivos, suficientemente estratificado numa cultura, de modo a garantir a
comunicabilidade dos produtos e a continuidade dessa forma junto às comunidades futuras.”
Seguindo esse raciocínio, o gênero atua como uma espécie de orientação para o uso da linguagem de determinado
meio em determinada situação de comunicação (compreendida de acordo com
Ingedore G. V. Koch, Desvendando os
segredos do texto, p. 55: “A escolha de um gênero se dá em função dos parâmetros da situação guiam a ação e estabelecem a
relação meio-fim, que é a estrutura básica de uma atividade mediada.”)
30
Assim, a teoria de Bakhtin (acerca do discurso se baseia na própria construção do signo ideológico como algo
mutável de acordo com as relações sócio-ideológicas que operam no momento mesmo da enunciação. Daí, pode-se
concluir que o gênero como forma que congrega diversos é também mutante.(“O tema e a forma do signo ideológico
estão indissoluvelmente ligados, e não podem, por certo, diferenciar-se a não ser abstratamente. Tanto é verdade que,
em última análise, são as mesmas forças e as mesmas condições dão vida a ambos. Afinal, são as mesmas condições
econômicas que associam um novo elemento da realidade ao horizonte social, que o tornam socialmente pertinente, e
são as mesmas forças que criam as formas da comunicação ideológica (cognitiva, artística, religiosa, etc.) as quais
determinam, por sua vez, as formas da expressão semiótica.” p. 45-46 – In: Marxismo e filosofia da linguagem)
29
1.2. Objetivos
É nosso objetivo proceder a uma aproximação transdisciplinar das questões concernentes
ao estudo dos mecanismos referentes à organização discursiva e temática de uma minissérie
televisual adaptada de uma obra literária. No que se refere à constituição do gênero minissérie
nossas atenções se voltaram para a discussão dos resultados obtidos na etapa de análise dos
elementos constitutivos do texto televisual, levando em consideração as inter-relações entre as
dimensões simbólicas e econômicas envolvidas no processo de produção e veiculação da
minissérie. Para isso, foram consideradas as teorias e pesquisas no campo da Comunicação,
sobretudo aquelas que se dedicam ao estudo dos gêneros televisuais.
Como objetivos empíricos, estabelecemos a busca de respostas para as nossas hipóteses
relativas à existência de um modelo narrativo televisual característico da minissérie Grande
Sertão: Veredas. Modelo esse construído a partir das inter-relações entre as instâncias literárias,
televisuais e mercadológicas determinado, em última análise, não por uma somatória desses
elementos, mas por uma integração presa a uma complexa tessitura envolvendo gêneros
literários, gêneros televisuais e temas.
Acreditamos que os resultados das discussões e da pesquisa efetuadas dentro dos quadros
epistemológico e teórico aqui propostos proporcionarão aos pesquisadores da narrativa televisual
e dos gêneros televisuais elementos para o aprofundamento da questão, sobretudo no que se
refere à valorização dos estudos interdisciplinares envolvendo o tema minissérie.
30
Capítulo 2 – Gêneros e Comunicação
... Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falar nisso,
por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e
lugares. Hão de botar verso em feira, assunto de sair até
divulgado em jornal de cidade...
.
(GSV: 292)
Dentro da perspectiva de análise transdisciplinar adotada neste trabalho, acreditamos que
as discussões dos gêneros em comunicação devam levar em consideração os estudos dedicados a
essa problemática no campo dos estudos literários, principalmente porque é nesse campo que os
trabalhos em relação aos gêneros mais se desenvolveram
31
e acabaram influenciando outras áreas
de criação artística.
A maior parte das ferramentas de análise empregadas para se discutir a televisão provém
do instrumental teórico criado no campo dos estudos literários e lingüísticos. Talvez isso ocorra
devido à própria prevalência, na televisão, do discurso oral
32
sobre as outras formas de discurso.
Apesar disso, não se deve perder de vista que a televisão desenvolveu uma linguagem com
características próprias que não pode ser confundida com outro tipo de linguagem,
principalmente a literária. Nesse sentido Fiske & Hartley (1978: 15) argumentam:
Cada meio tem seu próprio e único conjunto de características, mas os códigos que estruturam a
“linguagem” da televisão são muito mais parecidos com aqueles da fala que com os da escrita.
Qualquer tentativa de decodificar um “texto” de televisão como se ele fosse um texto literário não
estará somente fadada ao fracasso como também provavelmente resultará numa avaliação negativa
do meio (...) (tradução nossa)
Uma das principais diferenças entre a linguagem escrita e a televisual refere-se ao fato de
que a linguagem escrita lida com um desenvolvimento narrativo baseado na lógica da causa e
31
Na apresentação do livro Théorie des genres, (Genette et al.) afirma-se que “(...) a questão dos gêneros literários,
(...) foi ao longo dos séculos – de Aristóteles a Hegel – o objeto central da poética”. (na apresentação não consta o
nome do autor).
32
Cf. A. Machado, A televisão levada a sério, p. 71, “Fala-se muito em “civilização das imagens” a propósito da
hegemonia da televisão a partir da segunda metade do século XX, mas a televisão, paradoxalmente, é um meio pouco
“visual” e o uso que ela faz das imagens é, salvo as exceções de honra, pouco sofisticado. Herdeira direta do rádio,
ela se funda primordialmente no discurso oral e faz da palavra a sua matéria-prima principal.” (grifos do autor)
31
efeito, e a televisão trabalha por meio da “(...) justaposição de signos aparentemente
contraditórios e sua “lógica” é oral e visual.” (Fiske & Hartley 1978: 15, tradução nossa).
Levando em consideração as especificidades da mídia televisiva, os autores afirmam que é
preciso buscar uma linguagem apropriada para estudar a televisão e que leve em consideração a
“(...) singularidade da mídia e seu lugar na história.”
Embora já se tenha avançado bastante com relação à elaboração de uma linguagem
apropriada e exclusiva para discutir a televisão, acreditamos que essa tarefa continuará em
construção devido a pelo menos duas razões. A primeira delas refere-se ao fato de que a
linguagem televisual, como qualquer outra linguagem, é dinâmica e se situa dentro de um
universo cultural do qual se alimenta e para o qual é alimento. Portanto, está sujeita a inter-
relações com outras linguagens das quais, em maior ou menor medida, sofrerá influências ao
mesmo tempo em as quais influenciará. Constituindo uma teia intersemiótica que permeará todas
as produções televisuais (e, num sentido mais amplo, audiovisuais) sejam elas ficcionais ou
não.
33
A propósito do processo intersemiótico de criação de sentido nas produções de telenovelas
brasileiras Motter (2004: 289) afirma:
Ao mesmo tempo em que a telenovela se multidimensiona com os empréstimos que faz da
ficcionalidade que produz e da que incorpora a partir de outros sistemas semióticos, ela extrai do
próprio universo cultural e da realidade brasileira os nutrientes que sua plasticidade absorve quase
simbioticamente para alimentar seu permanente e ininterrupto trabalho de produzir sentidos: nem
sempre novos, mas sempre matizados pelas novas combinatórias semânticas e pelo contexto
histórico.
A segunda razão, em parte decorrente da primeira, refere-se ao fato de que a televisão e
sua linguagem são construções histórico-sociais nascidas e desenvolvidas dentro do imenso
universo cultural da humanidade. Assim, ambas herdaram conceitos, definições, caracterizações
pré-existentes em outras linguagens (literarária, cinematográfica, oral, radiofônica, musical).
A nosso ver, a busca pela linguagem específica para tratar dos assuntos relativos à
televisão deve levar em consideração os referencias teóricos de outras linguagens transformando-
os de acordo com as especificidades da mídia televisiva. No caso específico dos gêneros
33
Fiske & Hartley (1978) referem-se à relação intersemtica literatura-televisão. Apenas a título de exemplo
lembramos aqui que, num sentido inverso (da televisão para a literatura) têm surgido na literatura obras que, segundo
alguns críticos, são escritas num “estilo de vídeo-clipe” ou ainda como ocorre em outra mídia, o computador, o
renascimento dos diários em forma de blogs.
32
televisuais, acreditamos que devemos buscar inspiração nas teorias literárias, porém essas
contribuições devem servir como ponto de partida para a formulação de uma teoria própria dos
gêneros televisuais, pois os fatores implicados na comunicação televisual são bastante diferentes
daqueles da comunicação face a face ou da comunicação mediada pela palavra escrita. A
linguagem televisual se expressa por meio de um suporte relativamente novo (meio eletrônico),
porém, contém elementos herdados da cultura e do conhecimento científico sedimentados ao
longo dos séculos.
2.1. Inter-relações: gêneros literários e comunicação
As discussões em relação à questão dos gêneros literários há mais ou menos 2.500 anos
giram em torno de questões das mais variadas ordens. Questiona-se ou defende-se: ora a
legitimidade da “tríade clássica” baseada nas obras de Aristóteles e Platão, ora o modo
enunciativo como critério de classificação genérica, ora o modelo discursivo empregado, ora a
noção de gênero histórico; enfim há um sem-número de possibilidades de abordagem que, cada
uma à sua maneira, postula sua pertinência em relação às obras literárias. Há ainda teóricos que
se negam a aceitar a noção de gênero, pois acreditam que o que existe é um sistema maior
compreendido pela Literatura
34
.
Porém, como destaca Schaeffer (1989), em outros campos de atividade artística parece
não haver problemas quanto à classificação genérica das obras. O teórico francês acredita que a
“facilidade” encontrada pelas outras áreas artísticas se deva principalmente ao fato de que elas
possuam uma especificidade semiótica ao contrário do que ocorre com a literatura.
35
Isso
ocorreria por que um dos princípios básicos que regem o conceito de gênero se funda sobre a
questão da semelhança.
36
Essa semelhança deve ser julgada sobre elementos ditos “universais
34
Maurice Blanchot, apud Tzvetan Todorov, Os gêneros do discurso, p. 46, argumenta que: “Um livro já não
pertence a um gênero, todo o livro releva da única literatura (...) da literatura que procura afirmar-se na sua essência,
arruinando as distinções e os limites.”
35
Jean-Marie Schaeffer, Qu’est-ce qu’un genre litteraire?, p. 9, “Tudo se complica ainda mais quando se insiste em
tratar a literatura sobre o mesmo plano que as outras artes, ou seja, quando se procura sua definição dentro de uma
especificidade semiótica que lhe seria própria e essencial (como o som modulado, no caso da música, ou ainda como
o traço e a cor, no caso da pintura), a classificação genérica estando unificada por esse suposto traço semiótico
universal.” (tradução nossa)
36
Jean-Marie Schaeffer, Qu’est-ce qu’un genre litteraire?, p. 8, “Toda classificação genérica é fundada sobre
critérios de semelhança, e o estatuto lógico desses critérios, mesmo a relativa dificuldade ou facilidade com a qual
podemos nos servir deles para discriminar entre vários objetos, não tem nenhuma razão de ser diferente de acordo
com os domínios.” (tradução nossa)
33
dentro daquela forma artística. Mas qual seria o traço universal que distingue a literatura das
outras formas escritas que circulam na sociedade? Como distinguir o relato factual da narrativa
ficcional? Por essa razão, Schaeffer (1989: 8) dá uma amplitude ainda maior à discussão dos
gêneros literários, pois para ele:
A verdadeira razão da importância dada pela crítica literária à questão do estatuto das
classificações [genéricas] deve ser procurada em outra parte: ela reside no fato de que, de maneira
massiva, há dois séculos, mas de maneira mais subterrânea desde Aristóteles, a questão de saber o
que é um gênero literário (de ao mesmo tempo de saber quais são os “verdadeiros” gêneros
literários e suas relações) é considerada idêntica à questão sobre o que é literatura (...).(tradução
nossa)
Assim, o problema maior da classificação em gêneros literários estaria vinculado à falta
de uma especificidade semiótica que os distinguisse dos outros usos sociais da escrita. De uma
maneira semelhante, acreditamos que os problemas que ocorrem com relação à discussão dos
gêneros televisuais trilhem o mesmo caminho: como definir por meio de uma relação de
semelhança a diversidade semiótica contida nos e entre os programas de televisão que, como a
literatura, estão imersos, ao mesmo tempo, na aparente falta de especificidade semiótica da
linguagem verbal agora integrada a uma linguagem multiforme que, por sua vez, lida com uma
multiplicidade de signos (de diversas ordens, mas principalmente verbais e icônicos) e faz com
que a análise da linguagem televisual se torne extremamente complexa.
Frente a essa multiplicidade sígnica, Arlindo Machado (2000: 70) chega a afirmar que o
que há em comum entre os programas de televisão é “(...) apenas o fato de a imagem e o som
serem constituídos eletronicamente e transmitidos de um local (emissor) a outro (receptor)
também por via eletrônica.” Segundo ele, “(...) cada programa, cada capítulo de programa, cada
bloco de um capítulo de programa, cada entrada de reportagem ao vivo, cada vinheta, cada spot
publicitário constituem aquilo que os semioticistas chamam de enunciado.” (A. Machado 2003:
70)
Porém, apesar da multiplicidade de enunciados e de suas praticamente infinitas
possibilidades de ocorrência, Arlindo Machado (2003: 70) encontra uma certa organicidade na
constituição da televisão:
Dessa maneira, malgrado único em sua ocorrência singular, ele [cada enunciado] ilustra ou espelha
uma determinada possibilidade de utilização dos recursos expressivos da televisão, um certo
conceito de televisão, e isso se expressa não apenas nos seus conteúdos verbais, figurativos,
narrativos e temáticos, como também no modo de manejar os elementos dos códigos televisuais.
34
Existem algumas modalidades relativamente estáveis de organizar esses elementos, ou, dito de
outra maneira, existem esferas de intenção mais ou menos bem definidas, no interior das quais os
enunciados podem ser codificados e decodificados de forma relativamente estável por uma
comunidade de produtores e espectadores até certo ponto definida. (grifo do autor)
De onde derivam essas “modalidades relativamente estáveis de organizar esses
elementos”? A. Machado aponta sua origem em campos relativamente estáveis como a literatura,
o teatro, o cinema
37
, o jornalismo.
38
Dessa forma, não só os programas de televisão (se fosse
possível pensá-los isoladamente) como também a gramática, a sintaxe e a semântica da televisão
como um todo são tributárias das formas artísticas e não-artísticas desenvolvidas aos longo dos
séculos pelo ser humano e que pertencem a um campo mais amplo: o da comunicação.
2.2. Gêneros: as raízes literárias
A classificação dos gêneros literários tem seu início na Antiguidade Clássica, mais
precisamente nas obras de Platão e Aristóteles. No terceiro livro de A república, Platão,
reproduzindo as considerações de Sócrates, explica que há três tipos de obras poéticas: a imitação
(mímeses), a narração (diégesis) e um tipo misto que possui as duas características anteriores
(epopéia). No primeiro tipo, o poeta desaparece e quem fala são as personagens; no segundo,
“(...) os fatos são relatados pelo próprio poeta” (Platão 1966: 146); o terceiro tipo caracteriza-se
pela fala tanto do narrador quanto das personagens.
A poética de Aristóteles parece enfatizar a prevalência de dois gêneros: o épico
(narrativo) e o dramático (mimesis):
Com efeito, podem-se às vezes representar pelos mesmos meios os mesmos objetos, seja narrando,
quer pela boca de uma personagem, como fez Homero, quer na primeira pessoa, sem mudá-la, seja
deixando as personagens imitadas tudo fazer, agindo. (Aristóteles 1995: 21)
Porém, segundo Rosenfeld (2004: 16), Aristóteles deixa subentendido um:
37
Tanto o teatro quanto o cinema fazem uso constantemente de obras literárias. Cf. Paulo Emílio Salles Gomes, in A
personagem de ficção, p. 105-106, “O cinema é tributário de todas as linguagens, artísticas ou não, e mal pode
prescindir desses apoios que eventualmente digere. Fundamentalmente arte de personagens e situações que se
projetam no tempo, é sobretudo ao teatro e ao romance que o cinema se vincula.” Cf. também Décio de Almeida
Prado no artigo A personagem no teatro, no mesmo livro.
38
Arlindo Machado, A televisão levada a sério, p. 70, “Esses campos de acontecimentos audiovisuais são herdados
da tradição, mas não apenas da tradição televisual (muitos derivam da literatura, outros do cinema, ou do teatro
popular, do jornalismo e assim por diante) tampouco esses “replicantes” são assimilados tais e quais havendo sempre
um processo de metamorfose que os faz evoluir na direção de novas e distintas possibilidades.”
35
terceiro (gênero): (em que os próprios personagens se manifestam) e outro em que se insinua a
própria pessoa (do autor), sem que intervenha outro personagem. Esta última maneira parece
aproximar-se do que hoje chamaríamos de poesia lírica, suposto que Aristóteles se refira no caso,
como Platão, aos ditirambos, cantos dionisíacos festivos em que se exprimiam ora alegria
transbordante, ora tristeza profunda.
Na verdade, segundo Stalloni (2003: 23) a compreensão ternária dos gêneros não é de
autoria nem de Platão nem de Aristóteles, mas sim de estudiosos que se basearam em suas obras
e criaram um modelo que se fortalece no período do Classicismo e é retomado “(...) como
princípio intangível para o Romantismo alemão (...).”
Em uma primeira aproximação, poderíamos dizer que no campo dos estudos literários a
questão dos gêneros tem sido estudada ao longo dos séculos a partir de diferentes perspectivas:
ora privilegiando a categorização a partir do modo de enunciação presente nas obras (tal como
procederam Platão e Aristóteles)
39
, ora considerando, além do modo de enunciação, o conteúdo
temático. Esta segunda forma de compreensão dos gêneros é uma contribuição dos românticos
alemães.
40
Até o Romantismo, a maioria dos estudos privilegiou o aspecto normativo e prescritivo do
gênero enfatizando assim o seu caráter constitutivo. Buscava-se, sobretudo, determinar o grau de
“pureza” de uma obra com relação às características do gênero a que pertencia. Porém, é no
Romantismo (principalmente no Romantismo alemão) que os estudos teóricos referentes aos
gêneros literários ganham força. Segundo Borelli (1996: 174-175), é o surgimento de um novo
gênero de criação literária, o romance, que provoca boa parte das discussões:
O romance recusa a classificação tradicional fundamentada nas três matrizes clássicas – épica,
lírica e drama – e institui forma mista no fazer literário. O que prevalece, a partir de então, é a idéia
de que os gêneros originais servem de guias, modelos de orientação, categorias universais que
articulam, histórica e diferencialmente, as variadas transformações resultantes dos processos dessa
mistura..
É ainda no período romântico que Genette (1979) encontra os elementos necessários para
o surgimento do que ele designou de arquigêneros (lirico/épico/dramático)
41
. Segundo o teórico
39
Gérard Genette, Introduction à l’architexte, pág. 66, afirma: “Com Platão, e ainda com Aristóteles, (...) a divisão
fundamental tinha um estatuto bem determinado, uma vez que ela se baseava sobre o modo de enunciação dos
textos.” (tradução nossa)
40
Cf. Gérard Genette, Introduction à l’architexte, sobretudo p. 66-68.
41
Gérard Genette, Introduction à l’architexte, p. 69, propõe esse termo para qualificar os componentes da tríade
romântica (lirico, épico, dramático). Arqui- uma vez que cada um reagrupa hierarquicamente um certo número de
36
francês, os gêneros se constituem com base em uma relação complexa que envolve história (dos
gêneros, da criação literária), natureza individual do autor e valores culturais. Genette (1979: 73)
afirma que:“ (...) em qualquer nível de genericidade (...) o fato genérico mistura
inextricavelmente, entre outros o fato da natureza e o fato da cultura.”
Assim, o estudo da tessitura genérica presente nas obras deve considerar entre outros
fatores o momento histórico e a base teórica sobre a qual se assentam os procedimentos que
regem sua análise e compreensão
42
. Genette (1979: 73) adverte ainda que não se deve acreditar
que haja tipos ideais genéricos trans-históricos, uma vez que se deve levar em conta que há
restrições ditadas pelo conservadorismo e que estas impedem mudanças.
Portanto, a classificação genérica se estabeleceria não apenas por meio de fatores
intrínsecos à obra literária, mas também por um conjunto de fatores determinados historicamente.
Maingueneau (2001: 63) resume assim a questão:
Hoje prefere-se distinguir com cuidado os gêneros historicamente definidos e o que G. Genette
agrupa sob o termo de “modos” ou “regimes enunciativos”
43
Enquanto os segundos atravessam as
épocas e as culturas, os primeiros são definidos com o auxílio de critérios sócio-históricos (a
tragédia clássica francesa, égloga grega antiga, a canção de gesta medieval...)
Em vez de se buscarem nas obras características genéricas que as classifiquem neste ou
naquele gênero, Genette
44
sugere que seria mais produtivo que se tentasse compreender por que e
como determinadas formas genéricas sobrevivem em culturas diferentes em momentos históricos
diversos.
A complexa tessitura do conceito de gênero leva em consideração, necessariamente, as
relações entre obra literária, contexto (histórico, social, de produção – de base técnica e humana -,
de enunciação) e público e se insere num quadro mais amplo que o da literatura, pois abrange as
relações de comunicação. Não se trata, pois, de circunscrever o conceito de gênero a
gêneros empíricos e gênero- porque sua definição contém sempre “(...) um elemento temático que foge a uma
descrição puramente formal ou lingüística.” (tradução nossa)
42
G. Genette, Introduction à l’architexte, p. 73, “(....) todas as espécies, todos os subgêneros, gêneros ou
supergêneros são classes empíricas, estabelecidas pela observação do dado histórico, ou, no limite, pela
extrapolação a partir desse dado (...).” (tradução nossa)
43
Para G. Genette, Introduction à l’architexte, os “modos de enunciação” referem-se “a uma atitude de enunciação”
(épica/dramática/lírica) enquanto os “regimes de enunciação” referem-se a tipos (ou regimes de enunciação) como
discurso (narrativo, descritivo, didático, satírico).
44
Gérard Genette, Introduction à l’architexte, principalmente p. 74/75.
37
procedimentos característicos
45
típicos desta ou daquela “escola literária”, mas sim de analisá-los
a partir de uma perspectiva ampla que envolve todos os participantes da comunicação sem
prevalência de um ou de outro elemento. Dessa forma, adquire especial relevância o conceito de
gênero não apenas como um esquema composto por características pré-existentes, mas também
por características que se definem no momento mesmo da comunicação (interação verbal ou da
enunciação do discurso). Essas características deixam, portanto, de ocupar o terreno estritamente
literário e passam a fazer parte da comunicação humana constituída por toda sorte de signos
(verbais, não-verbais, icônicos).
2.3. Gênero literário e Cronotopo
No que se refere ao estudo dos gêneros literários, Bakhtin (1993) dedicou especial atenção
ao romance.
46
Ao mencionar os trabalhos relativos a esse gênero, o teórico russo lamenta o fato
de os estudos que lhe foram dedicados até então terem considerado, inclusive durante a segunda
metade do século XIX, somente seus aspectos composicionais e temáticos. Bakhtin (1993: 363)
afirma que isso mudou a partir da década de 1920 com o advento de uma abordagem mais ampla
do romance, porém, na sua opinião, apesar de esses “trabalhos serem ricos em valiosas
observações” não exploram o “specificum estilístico do gênero romanesco”. Segundo Bakhtin
(1993: 364), essas propostas de análise do romance:
(...) em maior ou menor grau, desviam-se das particularidades do gênero romanesco, das condições
específicas da vida da palavra no romance. A língua e o estilo do romancista são tratados não como
a língua e o estilo do romance mas qualquer coisa como a expressão de uma determinada
personalidade artística, como o estilo de um determinado movimento, ou, finalmente, como um
fenômeno geral da linguagem poética. A individualidade artística do autor, o movimento literário,
as particularidades comuns à linguagem poética, as particularidades da linguagem literária de uma
determinada época, em todos esses casos dissimulam o próprio gênero e todas as suas exigências
45
Dominique Maingueneau, in O contexto da obra literária, p. 66, afirma que “Os gêneros literários não poderiam,
portanto, ser considerados como “procedimentos” que o autor “utilizaria”da maneira que lhe aprouvesse para
“passar”de forma diversa um conteúdo estável, mas como dispositivos de comunicação em que o enunciado e as
circunstâncias de sua enunciação estão implicados para realizar uma macroato de linguagem específico” (aspas do
autor)
46
A esse respeito Katerina Clark e Michael Holquist, Mikhail Bakhtin, p. 310, afirmam “Mas, dentre os textos
literários, a novela, como gênero que constituído pela abertura para a mudança e que busca a variedade, indica
deslocamentos nas coordenadas que governam a percepção de modo mais preciso e compreensivo do que todas as
outras formas de arte. Esses fatores todos fazem do romance o meio preferido por Bakhtin para dramatização de suas
idéias sobre a linguagem, a teoria social e a história da percepção. Para Bakhtin, o romance é o grande livro da vida.”
38
específicas para com a língua, todas as possibilidades particulares que este abre para ela. (grifos do
autor)
Se considerarmos essas proposições de Bakhtin como uma forma de procedermos ao
estudo dos gêneros literários de uma maneira geral, podemos constatar que é preciso
compreender que a linguagem e, por conseguinte, o gênero não se funda sobre características
individuais ou estilísticas, mas sim sobre a realidade multifacetada das interações verbais ou, de
maneira mais abrangente, das interações comunicacionais. De acordo com essa perspectiva, o
gênero ganha um status diferenciado na medida em que Bakhtin (1993) relaciona-o
47
ao
surgimento da capacidade de se conceber a literatura como objeto de representação.
48
Isso
propiciou que o autor (desse gênero) desenvolvesse “um novo modus de trabalho criativo com a
linguagem: o criador aprende a ver do lado de fora, com olhos de outrem, do ponto de vista de
uma linguagem e estilo de outrem.” (BAKHTIN 1993: 378-379). Todo esse movimento ocorre
como uma conseqüência do espaço vívido ocupado pelo plurilingüismo presente, principalmente,
em Roma, da “arena” em que se travam as batalhas da palavra “(...) capaz de registrar as fases
transitórias mais íntimas, mais efêmeras das mudanças sociais.”(BAKHTIN 2002: 41)
As conclusões de Bakhtin (1993: 396) em seu estudo sobre o nascimento e as
transformações do gênero cômico (da paródia, da sátira) na Antigüidade e na Idade Média
levaram-no a enfatizar que “(...) o discurso romanesco nasceu e se desenvolveu, não num
processo estritamente literário de luta de tendências, de estilos, de concepções de mundo
abstratas, mas no meio de um conflito complexo e secular de culturas e línguas.”
Destaca-se, por meio dessa conclusão de Bakhtin, o papel extremamente importante do
gênero não só para a compreensão da obra literária em si, mas também pelo papel que ele ocupa
como forma de desenvolvimento cognitivo e estético dos seres humanos. Em sua análise, Bakhtin
demonstra como o surgimento das obras literárias de gênero cômico propiciou o distanciamento
necessário ao autor - e ao publico em geral - para compreender a literatura não apenas como
representação da realidade, mas como a criação de uma nova realidade calcada sobre elementos
47
O autor fala especificamente sobre o gênero cômico, mas, se isolarmos gênero como conceito científico, podemos
falar de todos os gêneros.
48
Para exemplificar seu pensamento, M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética: a teoria do romance, p. 372,
afirma que o soneto apresentado no início de D. Quixote “ainda que eles estejam irrepreensivelmente como sonetos,
não podemos em caso algum relacioná-los ao gênero de soneto. Num estilo paródico a sua forma não é um gênero,
isto é, não é a forma de um todo, mas um objeto de representação; aqui, o soneto é personagem da paródia.” (grifos
do autor)
39
estético-literários. Uma prova disso seria o fato de os romanos e os gregos não se sentirem
ofendidos com as paródias ou sátiras de personagens heróicas de obras clássicas; para Bakhtin,
isso ocorreria por que essas civilizações haviam compreendido que o que estava sendo parodiado
não era a pessoa retratada por meio da personagem, mas sim a forma. Esse distanciamento era
determinado em grande parte pela compreensão do gênero como representação:
(...) o pensamento literário dos gregos não encontrava nenhuma profanação ou blasfêmia nas
elaborações paródico-travestizantes dos mitos nacionais. É característico que os gregos não se
perturbavam em atribuir ao próprio Homero o pensamento paródico d’“A guerra entre Ratos e
Rãs”. (...) Todo e qualquer gênero
direto, todo e qualquer discurso direto – épico, trágico, lírico,
filosófico - pode e deve ser ele próprio um elemento objeto de representação, arremedo paródico-
travestizante. (...) O próprio gênero, o estilo e a linguagem estão como que colocados entre aspas, o
que lhes confere um tom alegre e zombeteiro, e encontram-se no mundo de uma realidade
contraditória que não se insere no seu quadro. O discurso direto sério, tornado imagem cômica do
discurso, revela-se como incompleto e limitado, mas não se desvaloriza com isso. . (BAKHTIN
1993: 374-375)
De maneira geral, pode-se dizer que a compreensão genérica depende de uma operação
cognitiva do leitor/espectador que interpreta a situação apresentada de acordo com parâmetros
estético-culturais determinados tanto pelo conhecimento das características e das relações de
gênero implicadas na representação artística como também pela sua relação (do leitor/espectador)
com essas características genéricas e com os gêneros de maneira mais geral. Gêneros esses vistos
como construções socialmente constituídas ao longo do tempo. Do ponto de vista de Bakhtin,
essas características emergem por meio da inter-relação que se constrói entre forma e conteúdo,
inter-relação essa mediada pela relação tempo-espaço (cronotopo) presente na sociedade e que é
incorporada à literatura
49
.
Portanto, nessa perspectiva, a obra literária contém a inter-relação que se estabelece entre
conteúdo temático, expressão estética e ideologia condensados em uma única instância: a da vida
que se corporifica de maneira multidimensional na totalidade de uma época cuja manifestação
encontra-se na obra literária:
A grande forma épica (a grande epopéia), inclusive o romance, deve apresentar um quadro integral
do mundo e da vida, deve refletir o mundo todo e a vida toda. No romance, o mundo todo e a vida
toda são representados em um corte da totalidade da época. Os acontecimentos representados
49
Katerina Clark & Michael Holquist, Mikhail Bakhtin, p. 296, afirmam que Bakhtin: “Insiste (...) na natureza
histórica de tais conceitos [tempo e espaço], no fato de que, em épocas diferentes, combinações diferentes de espaço
tempo foram utilizadas a fim de moldar a realidade externa. A mais paradigmática expressão de cronótopos passados
encontra-se em textos literários. Uma vez que moldam mundos inteiros, os autores são inelutavelmente forçados a
empregar as categorias organizadoras dos mundos que eles próprios habitam.”
40
devem abranger de certo modo toda a vida de uma época.” (BAKHTIN 2003: 246) (grifos do
autor)
Essa instância vívida é percebida pelo leitor por meio da obra literária ligada, segundo
Bakhtin (1993), irremediavelmente ao momento histórico de sua concepção. Trata-se de um
momento histórico constituído de maneira multifacetada e articulada com todas as esferas da vida
e que influenciará na recepção e na compreensão da obra.
50
Essa “invasão” do momento
histórico ocorre por meio da tematização e da estética da obra literária que, por sua vez, são
construídas pela inter-relação espaço/tempo. Para investigar e compreender essa inter-relação,
Bakhtin (1993: 211) criou o conceito de cronotopo
51
(literalmente tempo e espaço) “como uma
categoria conteudístico-formal da literatura (...)” e o identificou com os gêneros na medida em
que:
O cronotopo tem um significado fundamental para os gêneros na literatura. Pode-se dizer
francamente que o gênero e as variedades de gênero são determinadas justamente pelo cronotopo,
sendo que em literatura o princípio condutor do cronotopo é o tempo. O cronotopo como categoria
conteudístico-formal determina (em medida significativa) também a imagem do indivíduo na
literatura; essa imagem sempre é fundamentalmente cronotópica. (grifo do autor)
Portanto, a relação tempo-espaço é dinâmica e organicamente construída de maneira
concomitante pelo autor, obra e leitor na medida em que todos se inserem no quadro da
comunicação dialógica. O cronotopo assimilado na manifestação conteudístico-formal da obra
literária encerra em si uma imagem do indivíduo que gostaríamos de ampliar para uma espécie de
visão de mundo (Weltanschauung) e é compreendida como tal pelo leitor. Assim, na literatura, a
característica cronotópica emergiria a partir da maneira como as pessoas são representadas
52
nas
produções e, por conseguinte, se concretizaria por meio das expansões/contrações das dimensões
espaciais e temporais nas quais atuariam essas pessoas. Assim, o cronotopo da vida cotidiana é
50
M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética ..., p. 404, encontra as raízes da emergência do romance (como
gênero) no momento histórico por que passava a Europa do século XVIII: “A nova consciência cultural e criadora
dos textos literários vive em um mundo ativamente plurilingüístico, que se tornou irremediavelmente assim de uma
vez por todas. Havia terminado o período da coexistência surda e fechada das línguas nacionais. As línguas se
esclareceram mutuamente; pois uma língua só pode ver a si mesma se estiver à luz de uma outra língua. Terminara
também a coexistência ingênua e consolidada das “falas”no interior de uma certa língua nacional (...).” (aspas do
autor)
51
M. Bakhtin, Questões de literatura e de estética ..., p. 211, explica esse conceito como a “(...) fusão dos indícios
espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se
artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo do enredo e da história. Os
índices do transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo. Esse cruzamento de
séries e fusão de sinais caracterizam o cronotopo artístico.”
52
Cf. Katerina Clark & Michael Holquist, Mikhail Bakhtin, principalmente p. 296-300.
41
caracterizado pelas relações sociais, enquanto o cronotopo de aventuras é caracterizado pelas
sucessões operadas no espaço físico
53
.
Todorov (1981: 129) também compreende a noção de cronotopo desenvolvida por
Bakhtin de uma maneira bastante ampla:
(...) a noção de cronotopo não é utilizada por Bakhtin de maneira restritiva, e não relaciona
simplesmente à organização do tempo e do espaço, mas também à organização do mundo (que
pode legitimamente se chamar “cronotopo” na medida em que o tempo e o espaço são as categorias
fundamentais de todo universo imaginável).
Assim, o conceito de cronotopo, como todos os conceitos desenvolvidos por Bakhtin,
integra-se de maneira constitutiva ao mundo construído por meio das relações mediadas pela
linguagem. Mundo esse que compreendemos e construímos por meio das relações mediadas pelo
signo lingüístico.
Segundo Clark & Holquist (1998: 298), “primordialmente (...) o cronótopo diferencia
categorias mais amplas no âmbito da história da literatura, define gênero e distinções genéricas e
estabelece as fronteiras entre as várias subcategorias intragenéricas dos principais tipos
literários.”
Dessa forma, a inter-relação tempo-espaço se configura como uma espécie de
denominador comum onde se aglutinam, se debatem e, enfim, de onde emergem as
particularidades dos seres construídos por meio das interações sociais. Embora essa correlação
não seja exclusiva da literatura (uma vez que a literatura também é tributária das relações
humanas e sociais), é nela que se torna possível seu estudo mais detalhado. Irene Machado
(1995: 252) lembra ainda que: “a teoria do cronotopo nos faz entender que o gênero tem uma
existência cultural, eliminando, portanto, o nascimento original e a morte definitiva.” Assim,
nessa perspectiva, o conceito de gênero ganha dimensão mais ampla, uma vez que engloba
fatores históricos, sociais, textuais, literários, linguageiros, ou seja, envolve todos os aspectos
culturais da vida humana numa perspectiva dialética. É sob esse ângulo que Bakhtin (1993, 2003)
analisa as relações de gênero - literário e discursivo - na comunicação humana.
53
Cf. Katerina Clark & Michael Holquist, Mikhail Bakhtin, p. 300.
42
2.4. Gêneros do discurso
A preocupação de Bakhtin e dos estudiosos que participavam de seu grupo com a
constituição e a importância dos gêneros nas diferentes esferas da comunicação humana surge,
segundo Souza (2002), pela primeira vez em 1928 na obra assinada por Bakhtin/Medvedev The
Formal Method in Literary Scholarship em que os autores fazem críticas à definição mecanicista
desse conceito elaborada pelos formalistas.
Souza afirma que “a proposta do Círculo
54
é que a análise do todo da obra poética, do todo
desse enunciado artístico concreto, deve ser iniciada pelo gênero, pois ele representa forma típica
dessa construção poética”. (SOUZA 2002: 97) Os estudos realizados pelo Círculo percebem a
tridimensionalidade da obra poética que se articularia pela interação orgânica entre o problema do
todo, o problema do gênero e o problema do acabamento temático.
O gênero é “a totalidade típica do enunciado artístico, e uma totalidade vital, um todo acabado e
resolvido”. Para o Círculo, “o problema do acabamento [zavershenie] – é um dos problemas mais
importantes da Teoria do Gênero”, pois “todo gênero representa um caminho especial de
construção e acabamento de um todo, acabá-lo essencialmente e tematicamente (repetimos) e não
apenas condicionalmente ou composicionalmente.” (SOUZA 2002: 98)
A inter-relação desses elementos não se opera internamente ao texto, mas em uma
perspectiva de comunicação discursiva que envolve o interdiscurso, uma vez que interage com a
memória discursiva
55
. Assim, “são as formas do enunciado, e não as formas da língua, que têm o
papel mais importante, na consciência e na compreensão da realidade”. (apud
SOUZA 2002: 99).
Desse ponto de vista, a compreensão do gênero se converte em condição sine qua non
para a interpretação da manifestação artística. Essa manifestação, como parte integrante de uma
sociedade e de uma comunidade comunicacional, estabelece-se por meio de uma relação
discursiva orientada pela especificidade do gênero a que pertence todo enunciado seja ele
artístico ou não.
54
Geraldo T. Souza, Introdução à teoria do enunciado concreto, p. 19-20, refere-se ao Círculo de estudos composto
principalmente por Bakhtin, Volochinov e Medvedev que se reuniu em Leningrado entre os anos de 1924-1929.
55
Adotamos aqui a definição de interdiscurso apresentada por Eni P. Orlandi, in Análise de discurso: princípios e
procedimentos, p. 31, segundo a qual o interdiscurso se estabelece a partir das relações entre memória e discurso. O
interdiscurso é “(...) definido como aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja: é o que
chamamos de memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob forma do pré-
construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada de palavra.”
43
Assim, estão imbricados de modo irreversível na constituição do gênero: a cultura, o
sujeito, os meios de expressão artística (obras de arte, literatura, cinema, televisão) e as
mediações que se estabelecem entre eles de maneira dialógica. É dentro dessa perspectiva que
Bakhtin e Medvedev propõem uma sociologia do gênero, pois, para eles:
a realidade do gênero e a realidade acessível ao gênero são inter-relacionadas organicamente. Mas
temos visto que a realidade do gênero é a realidade social de sua realização no processo da
comunicação artística. Portanto, o gênero é o agregado dos sentidos da orientação coletiva da
realidade, com a orientação através do acabamento. Essa orientação é capaz de subjugar novos
aspectos da realidade. A conceptualização da realidade se desenvolve e se cria no processo da
comunicação social ideológica. (apud SOUZA 2002: 99)
Souza (2002: 98) afirma que para o Círculo de Bakhtin “qualquer gênero se orienta em
relação à realidade em duas direções:
a) ao ouvinte ou receptor em conjunto com as condições precisas de performance e
percepção;
b) à vida pelos seus conteúdos temáticos (acontecimentos, problemas, etc.).”
Esses dois direcionamentos são inter-relacionados de maneira constitutiva e formam uma
espécie de unidade indissociável, já que um se torna inoperante sem o outro. Isso ocorre porque,
para Bakhtin (2003), toda a comunicação está baseada no princípio da responsividade inerente a
todo e qualquer enunciado. Dessa forma:
O problema da concepção do destinatário do discurso (...) é de enorme importância na história da
literatura. Cada época, para cada corrente literária e estilo artístico-literário, cada gênero literário
no âmbito de uma época e cada corrente têm como características suas concepções específicas de
destinatário da obra literária, a sensação especial e a compreensão do seu leitor, ouvinte, público,
povo. (BAKHTIN 2003: 305)
Portanto, a compreensão da noção de gênero é essencial tanto para o emissor quanto para
o receptor na medida em que é ela que determinará a interpretação do enunciado dentro de
parâmetros genéricos fundados na comunicação cultural.
O princípio basilar da teoria de gêneros do discurso desenvolvida por Bakhtin (2003)
encontra-se na concepção de que a comunicação só se realiza por meio de enunciados concretos.
Tais enunciados não são constituídos por simples aglomerados de palavras ou orações
organizados sintaticamente, mas sim pelo princípio que rege, segundo Bakhtin, toda e qualquer
relação de comunicação humana: a responsividade. Qualquer palavra ou oração é passível de se
tornar parte (ou até mesmo um enunciado completo) de um enunciado concreto a partir do
44
momento em que ela exige ou pressupõe uma resposta de seu destinatário. “Evidentemente, cada
enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos
relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN
2003: 262).
Nessa perspectiva, os gêneros do discurso decorrem de condições sócio-históricas e, por
isso, não se originam de características individuais de um falante ou de um escritor, dependem de
todo um contexto sócio-cultural para se concretizarem como modelos de expressão de uma
comunidade de falantes ou de escritores. A matriz dos gêneros do discurso é a vida das interações
verbais, da interlocução entre as pessoas, enfim, da língua viva. Portanto, os gêneros do discurso,
regidos por todas as esferas das relações humanas (econômica, social, cultural e histórica da vida)
apresentam variações e classificações que caracterizam sua inserção em determinada esfera. Os
gêneros do discurso perpassam todas as áreas do conhecimento humano e adquirem, em cada
uma delas, uma certa tipificação decorrente da atividade social da área
56
. Assim, a cada
atividade humana correspondem alguns gêneros que lhe são “típicos”
57
.
Segundo essa concepção, os gêneros do discurso funcionam como uma espécie de guia de
produção e de interpretação de sentidos, uma vez que os enunciados, falados ou escritos, só
ganham vida e significação quando inseridos numa situação concreta de comunicação, ou seja,
quando se inserem num gênero de discurso. Conclui-se a partir disso que há uma enorme
variedade de gêneros do discurso, uma vez que cada atividade humana demanda um determinado
gênero do discurso o que tornaria extremamente difícil qualquer classificação
58
.
Bakhtin (2003: 263) propõe uma classificação que se caracteriza pela utilização do
critério de comunicação imediata (réplica do diálogo, carta cotidiana) e pelo critério da
56
A teoria da linguagem proposta por Bakhtin não abrange somente a literatura ou os estudos lingüísticos, ao
contrário, abordagem envolve toda a teoria do conhecimento. Susan Petrilli, Bakhtinian categories of literature, in:
Ponzio, A. & Petrilli, S. Philosophy of language: art and answerability in Mikhail Bakhtin, p. 44, afirma: “Para
compreendermos a abordagem de Bakhtin sobre os estudos da linguagem verbal, precisamos lembrar sua insistência
na inexorável conexão entre linguagem , literatura e vida, que é direta e dialética.” E conclui (p. 42): “(...) ao
contrário de outras correntes que reduziam a filosofia da linguagem aos problemas da língua e os separava do
contexto vivo da comunicação social, entendida em termos de compreensão (que é sempre em certa extensão
“compreensão dialógica”, e responsividade ao outro) Bakhtin concebeu a filosofia da linguagem como teoria do
conhecimento, práxis e ideologia desenvolvida à luz da teoria de uma linguagem ao mesmo crítica e dialógica.”
57
Nesse mesmo sentido, Dominique Maingueneau, Análise de textos de comunicação, p. 61, afirma que os gêneros
do discurso não devem ser confundidos com tipos de discurso, uma vez que: “(...) os gêneros de discurso pertencem
a diversos tipos de discurso associados a vastos setores de atividade social. Assim, o “talk show”constitui um
gênero de discurso no interior do tipo de discurso “televisivo”, que, por sua vez, faz parte de um conjunto mais
vasto, o tipo de discurso “midiático” (...)”. (grifos do autor)
58
Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 262, afirma: “Pode parecer que a heterogeneidade dos gêneros
discursivos é tão grande que não há nem pode haver um plano único para seu estudo (...)”
45
comunicação mediada pela escrita (romances, dramas, pesquisas científicas). Os gêneros
característicos da comunicação dialogal seriam os gêneros primários ou simples; os gêneros
secundários ou complexos referem-se aos enunciados presentes nos textos escritos “mais”
elaborados (livros, pesquisas científicas, publicidade). Porém, essa divisão não significa que os
enunciados dessas duas categorias não se inter-relacionem; ao contrário, Bakhtin (2003: 263)
afirma que há uma verdadeira interpenetração:
No processo de sua formação eles [os gêneros secundários] incorporam e reelaboram diversos
gêneros primários (simples), que se formaram nas condições da comunicação discursiva imediata.
Esses gêneros primários, que integram os complexos, aí se transformam e adquirem um caráter
especial: perdem o vínculo imediato com a realidade concreta e os enunciados reais e alheios: por
exemplo, a réplica do diálogo cotidiano ou a da carta no romance, ao manterem a sua forma e o
significado cotidiano apenas no plano do conteúdo romanesco, integram a realidade concreta
apenas através do conjunto do romance, ou seja, como acontecimento artístico-literário e não da
vida cotidiana.
Assim, gêneros primários “invadem” gêneros secundários e os transformam,
complexificando e reelaborando significados, construindo novas relações tanto nos gêneros
primários quanto nos secundários. Trata-se de um movimento extremamente dinâmico
constituído por meio das interações verbais.
Bakhtin (2003: 266) analisa as relações entre gênero e estilo
59
. No seu entender, “no
fundo, os estilos de linguagem ou funcionais não são outra cosia senão estilos de gênero de
determinadas esferas da atividade humana e da comunicação.” Assim, o estilo seria a
manifestação de um determinado gênero em determinada situação de comunicação. Para o autor,
a própria transformação histórica dos estilos de linguagem estaria “(...) indissoluvelmente ligada
às mudanças dos gêneros do discurso” (BAKHTIN 2003: 267) os quais, por sua vez, estariam
ligados a transformações da vida social, pois os “(...) os gêneros do discurso são correias de
transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem.” (BAKHTIN 2003: 268)
“Em cada época de evolução da linguagem literária, o tom é dado por determinados
gêneros do discurso, e não só os secundários (...) mas também primários.” (BAKHTIN 2003:
268). A própria introdução e incorporação dos gêneros primários na literatura é um indício desse
tipo de inter-relação. Encontramos um bom exemplo disso no surgimento, ou, melhor dizendo, no
processo de transformação da concepção e manifestação estético-literária representada pelo que
59
Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, refere-se mais amiúde a estilo como sendo um estilo de determinado
grupo de falantes, escritores; porém, também se refere ao estilo individual (determinado em grande medida pelas
circunstâncias discursivas gerais do ato comunicativo).
46
se convencionou chamar romance cuja tessitura incorpora elementos dos gêneros primários e os
ressignifica por meio dessa incorporação.
60
O uso de determinado estilo reflete os usos sociais dos gêneros, que, por sua vez, estão
implicados nas relações sociais e ideológicas de épocas ou de povos. Essa inter-relação ocorre
mesmo nas produções individuais que denotam um “estilo próprio do autor”. Para Bakhtin, não
existe enunciado fora das circunstâncias genéricas do discurso, pois, como já aludimos
anteriormente, o enunciado só pode ser considerado como tal quando interpretado dentro de um
todo genérico específico de determinada atividade humana. Ressaltamos, novamente, que isso
ocorre dentro das fronteiras cambiantes, porém perceptíveis, dos gêneros do discurso.
Dessa forma, é essencial, para compreendermos o conceito de gêneros do discurso de
Bakhtin, partirmos daquilo que ele considera a unidade de comunicação discursiva: o enunciado
(concreto). O estudo do enunciado deve partir de situações concretas em que a comunicação
ocorre. A comunicação não é uma abstração; quem se comunica possui uma atitude ativa e espera
de seu interlocutor uma resposta (objeção, aceitação; até mesmo a indiferença significa uma
atitude responsiva). Afinal, segundo Bakhtin (2003: 271), “toda compreensão da palavra viva, do
enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva (...); toda compreensão é prenhe de resposta,
e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente: o ouvinte se torna falante.” A compreensão
responsiva não ocorre necessariamente de imediato, ela pode ocorrer algum tempo depois; alguns
gêneros foram concebidos mesmo com essa intenção: uma atitude responsiva retardada (por
exemplo, o gênero lírico).
O conceito de responsividade, essencial na teoria bakhtiniana, adquire contornos muito
mais abrangentes, pois:
(...) todo falante é por si mesmo um respondente em maior ou menor grau: porque ele não é o
primeiro falante, o primeiro a ter violado o eterno silêncio do universo, e pressupõe, não só a
existência do sistema da língua que usa mas também de alguns enunciados antecedentes – dos seus
e alheios – com os quais o seu enunciado entra nessas ou naquelas relações (baseia-se neles,
polemiza com eles, simplesmente os pressupõe já conhecidos do ouvinte). Cada enunciado é um
elo na corrente complexamente organizada de outros enunciados. (Bakhtin 2003: 272)
Portanto, a responsividade é uma propriedade inerente a toda e qualquer comunicação
humana e adquire importância para os estudos da linguagem e do ser humano tanto no plano
60
Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e estética ..., principalmente p. 109-133, oferece uma série de exemplos
em que fica evidente essa transformação que deve ser entendida não como algo que se opera apenas no gênero
literário mas que também ecoa os pensamentos e sentimentos de uma sociedade, ela própria, em transformação.
47
ontogenético quanto no filogenético
61
. No plano ontogenético, respondemos aos enunciados que
são postos diante de nós, no cotidiano das relações interpessoais; enunciados esses que ecoam,
em maior ou menor medida, enunciados de nossos antepassados, de nossa espécie. Nesse sentido,
acreditamos que, por meio desse conceito, podemos conceber a “evolução” humana, como nos
parece que foi o que fez Bakhtin, como uma “evolução” da capacidade discursiva do ser humano,
da capacidade de inter-relacionar discursos, de responder à incompletude inerente de todo e
qualquer enunciado concreto - no sentido de que este exige respostas, posicionamentos, atitudes,
ações.
Portanto, para o estudo do gênero do discurso é imprescindível que se compreendam
algumas peculiaridades do enunciado, visto que é o gênero que emoldura o enunciado.
62
Bakhtin
(2003) destaca algumas peculiaridades do enunciado: 1) alternância dos sujeitos do discurso; 2)
conclusibilidade;
Essas propriedades possuem, como de resto toda a teoria de Bakhtin sobre comunicação,
suas raízes na questão da responsividade. A ênfase na alternância dos sujeitos do discurso nega a
concepção de modelos (ou esquemas) de comunicação que se baseiam na unilateralidade, na idéia
de que há um emissor ativo e um receptor passivo. Bakhtin orienta sua teoria no sentido de
provar que toda comunicação para ser entendida como tal deve estar inserida numa relação
baseada na interlocução, no diálogo entre sujeitos, no discurso que se estabelece entre os sujeitos
e que leva em conta não apenas a comunicação verbal, mas também todo um complexo sistema
de comunicação elaborado do por meio dos gêneros do discurso que refletem (e refratam)
plenamente as relações histórico-sociais.
A segunda peculiaridade, irremediável conseqüência da primeira, refere-se a uma “(...)
espécie de aspecto interno da alternância dos sujeitos do discurso; essa alternância pode ocorrer
precisamente porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que quis dizer em dado momento ou sob
61
Irene Machado, Gêneros discursivos in: Beth Brait (org.) Bakhtin: conceitos-chave, p. 165, afirma: “Do ponto de
vista ontogenético, os gêneros discursivos são realizações das interações produzidas na esfera da comunicação
verbal; do ponto de vista filogenético, é possível acompanhar a expansão para outras esferas da comunicação
realizada graças à dinâmica de outros códigos culturais que se constituem, em relação à palavra, um ponto de vista
contraposto.”
62
Mikhail Bakhtin, Estética da criação literária, p. 286, argumenta que: “Quando escolhemos um determinado tipo
de oração, não o escolhemos apenas para uma oração, não o fazemos por considerarmos o que queremos exprimir
com determinada oração; escolhemos um tipo de oração do ponto de vista do enunciado inteiro que se apresenta à
nossa imaginação discursiva e determina a nossa escolha. A concepção sobre a forma do conjunto do enunciado, isto
é, sobre um determinado gênero do discurso, guia-nos no processo de nosso discurso. A idéia do nosso enunciado em
seu conjunto, é verdade, pode exigir para sua realização apenas uma oração, mas pode exigi-las em grande número.
O gênero escolhido nos sugere os tipos e os seus vínculos composicionais.
48
dadas condições.” (Bakhtin 2003: 280) (grifo autor). Esse tudo, porém, não deve ser visto como
um bloco monolítico, pois possui, por sua vez, categorias que lhe são específicas e que lhe dão
sustentação. Bakhtin (2003: 280) afirma que “(...) o primeiro e mais importante critério de
conclusibilidade do enunciado é a possibilidade de responder a ele, em termos mais precisos e
amplos, de ocupar em relação a ele uma posição responsiva”. Assim, o enunciado deve ser
analisado em sua inteireza, o que significa que a sua completude depende do caráter de
alternância do mesmo que, segundo Bakhtin (2003: 282) envolve: “1) exauribilidade do objeto e
do sujeito; 2) projeto de discurso ou vontade discursiva do falante; 3) formas típicas
composicionais e de gênero de acabamento”.
Assim, a conclusibilidade do enunciado se funda sobre duas variáveis que podem ser
consideradas, em certa medida, individuais ou, minimamente, mais dependentes da vontade do
sujeito e uma terceira que advém de uma certa tipicidade das formas composicionais relacionadas
aos gêneros do discurso (que determinam as “formas de acabamento” do mesmo).
A inter-relação dessas propriedades do enunciado serve para reiterar mais uma vez que,
para Bakhtin (2003: 281), a “intenção discursiva” do autor ou sua “vontade discursiva” determina
o volume e as fronteiras do enunciado
63
, porém tais fronteiras se constituem sócio-historicamente
por meio dos gêneros do discurso os quais o falante domina em razão da própria constituição
dialógica do ser humano nos planos ontogenético e filogenético, como já aludimos anteriormente.
Isso ocorre porque:
As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à
nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas. Aprender a falar
significa aprender a construir enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações
isoladas). Os gêneros do discurso organizam nosso discurso quase da mesma forma que o
organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar nosso discurso em formas
de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras
palavras (...). Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos
de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez
cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível.” (BAKHTIN 2003: 283)
63
Segundo Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 281, a intenção discursiva do falante: “ (...) determina tanto a
própria escolha do objeto ( em certas condições de comunicação discursiva, na relação necessária com os enunciados
antecedentes) quanto os seus limites e sua exauribilidade semântico-objetal. Ele determina, evidentemente, também a
escolha da forma do gênero na qual será construído o enunciado (...).”
49
Trata-se, portanto, de conceber os gêneros do discurso como complexos sistemas de
significação e de representação das relações humanas mediadas pela linguagem constituída
dialogicamente dentro e pelo tecido social numa perspectiva orgânica e dinâmica.
50
Capítulo 3 – Gêneros, Mediações e Construção de Mundos Ficcionais
“quando eu pensava nela,
era mesmo como estivesse escrevendo uma carta.”
(GSV: 444)
As teorias que privilegiam os gêneros como mediação organizam-se em torno da idéia de
que a compreensão de um texto não depende unicamente do emissor ou do receptor, mas sim das
relações de comunicação que se estabelecem de maneira dialética entre os sujeitos da
comunicação - não mais são vistos como pólos opostos.
3.1. Gêneros como mediação
Numa perspectiva que também contempla o caráter de mediação estabelecido pelo gênero
na relação entre emissor e receptor, surge, na segunda metade do século XX
64
, ao lado de outras
perspectivas de estudos literários, uma linha de análise desenvolvida, principalmente por
estudiosos da Universidade de Konstanz, que procura incorporar o destinatário (o leitor) às
reflexões teóricas sobre literatura. Essa orientação teórica, no que se refere aos estudos relativos a
gênero, considera a mediação que a noção de gênero estabelece entre leitor e texto como um
elemento que facilita a compreensão da própria obra. Segundo Jauss (2005: 54), ao iniciar a
leitura de um texto, o leitor teria uma espécie de horizonte de expectativa
65
que é:
(...) o sistema de referências objetivamente formulado que, para cada obra no momento da
história em que ela aparece, resulta de três fatores principais: experiência anterior que o público
tem do gênero do qual ela faz parte, forma e temática das obras anteriores que ela pressupõe o
conhecimento, e a oposição entre linguagem poética e linguagem prática, mundo imaginário e
realidade cotidiana. (tradução nossa)
64
Embora essa preocupação não seja nova nos estudos literários como afirma Jean Starobinski no prefácio da obra de
Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de la réception, p. 12: “A atenção dada ao destinatário, respondente e
“atualizador” da obra, liga o pensamento de Jauss aos antecedentes aristotélicos e kantianos: uma vez que Aristóteles
e Kant são praticamente os únicos que, no passado, elaboraram estéticas em que os efeitos da arte sobre o
destinatário foram sistematicamente levados em consideração.” (tradução nossa)
65
Preferimos “horizonte de expectativa” a “horizonte de espera” com a qual também se traduz a expressão francesa
“horizon d’attente” que corresponde à tradução da palavra alemã “Erwartungshorizont”, pois acreditamos que ela
possui o sentido dinâmico dessa espera tal como foi proposto por Jauss (Cf. Dicionário Houaiss da língua
portuguesa, p. 1287, expectativa: “situação de quem espera a ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência,
em determinado momento”).
51
A compreensão de uma obra implicaria ao menos três dimensões intrinsecamente
relacionadas: gênero (filiação genérica, características genéricas), estética (forma e conteúdo) e
pragmática (conhecimento dos usos e das linguagens relacionadas à ficcionalidade e à realidade).
A correlação entre esses fatores criaria no leitor um horizonte de expectativas quanto à leitura e à
compreensão da obra (literária ou não). Segundo Jauss
66
, não se trata de um horizonte de
expectativa imutável, ao contrário, esse horizonte pode e deve ser mudado sob pena de a obra
passar a se enquadrar no que ele chama de arte “culinária”. O horizonte de expectativa define-se
por meio de um processo dinâmico que se caracteriza por permanências e rupturas das mais
diversas ordens (social, estética, histórica entre outras). Jauss (2005) apresenta duas
possibilidades de mudanças de horizontes, a primeira delas ocorre quando a obra, ao ser
publicada, não encontra nenhuma relação com um público definido, pois altera profundamente os
horizontes de expectativas. Nesse caso, somente a posteriori o público da obra progressivamente
será constituído. Já a segunda forma de mudança de horizonte de expectativa tem lugar quando
esse “novo” horizonte de expectativa se impôs largamente (e se firmou como “modelo”) fazendo
com que o público considere a obra, que lhe faz eco, ultrapassada (obsoleta) do ponto de vista
estético.
Embora os gêneros se caracterizem, por um lado, por seu caráter normativo, prescritivo (e
até coercitivo) para o escritor; por outro, eles são também o ponto de partida para toda
modificação ou subversão estética. Por meio desses conceitos da teoria de Jauss (2005), observa-
se que a compreensão da obra se fundamenta em grande parte na relação entre obra e público
mediada pelo conceito de gênero. Todorov (1980:49) também argumenta nesse sentido:
É porque os gêneros existem como instituição, que funcionam como “ horizontes de expectativa”
para os leitores, como “ modelos de escritura” para os autores. Estão aí, com efeito, as duas
vertentes da existência histórica dos gêneros (ou se preferirmos, do discurso metadiscursivo que
toma os gêneros como objeto). Por um lado, os autores escrevem em função do (o que não quer
dizer: de acordo com o) sistema genérico existente, aquilo que podem testemunhar no texto e fora
dele (...). Por outro lado, os leitores lêem em função do sistema genérico que conhecem pela
66
Hans Robert Jauss, Pour une esthétique de recéption, p. 58, “A distância entre o horizonte de expectativa e a obra,
entre o que a experiência estética anterior oferece de familiar e a “mudança de horizonte”(Horizontwandel) requerido
para a acolhida de uma nova obra determina, para a estética da recepção, o caráter propriamente artístico de uma
obra literária: quando essa distância diminui e a consciência do receptor não mais é compelida a reorientar-se em
direção do horizonte de uma experiência ainda desconhecida, a obra se aproxima do domínio da arte “culinária”, do
simples divertimento.” (tradução nossa)
52
crítica, pela escola, pelo sistema de difusão do livro ou simplesmente por ouvir dizer; no entanto,
não é necessário que sejam conscientes desse sistema.
67
Os gêneros podem funcionar como “modelo de escritura” e até como “modelo de leitura”,
mas isso não significa que eles não sofram alteração; ao contrário, os modelos se atualizam, se
transformam. Os gêneros nunca são exatamente os mesmos. De acordo com Jauss (2005), é
dessa dinâmica, entre o antigo e o novo, que nasce a evolução dos gêneros. Essa evolução
depende das mudanças que as obras operam no chamado horizonte de expectativa do leitor,
porém essas mudanças são feitas numa correlação entre o antigo e o novo num contínuo processo
de permanências e rupturas.
Pode-se concluir que o antigo (o já conhecido) é o que assegura a comunicabilidade entre
texto e leitor. Entra em jogo então a memória (literária, artística) do leitor, que pode ser usada
tanto para confirmar as características de um gênero quanto para colocar em cheque seus
conhecimentos acerca de um autor ou de uma obra. Como exemplo disso, citamos o caso das
paródias de romances, de filmes ou de programas de televisão em que o leitor/telespectador é
chamado a correlacionar a paródia à obra original e a estabelecer, por meio de um
reconhecimento que parte das noções de gênero que possui, o gênero do segundo texto (a
paródia) em relação ao primeiro (por exemplo: romance, filme de terror, debate político). Ocorre
então um processo de contraposição que instaura uma nova compreensão genérica que
proporcionará outras situações semelhantes que podem se repetir ad infinitum (uma nova paródia
será comparada àquela anteriormente apresentada que, por sua vez, está calcada sobre o primeiro
texto....).
Em outro momento, a memória literária ou memória audiovisual do telespectador pode ser
evocada para comparar um trabalho anterior de um autor ou de um ator por meio de relações
explicitas ou implícitas.
68
Constroem-se atualizações matizadas pelos gêneros, pelas personagens,
67
A compreensão do gênero como instituição social é também defendida por Wellek e Austin que afirmam que “O
gênero literário é uma “instituição” – como a Igreja, a Universidade ou o Estado” in René Wellek & Warren Austin.
Teoria da literatura e metodologia dos estudos literários, p. 306/307
68
Maria Lourdes Motter, Mecanismos de renovação do gênero telenovela: empréstimos e doações, p. 268, ao tratar
das personagens que migram de uma telenovela para outra afirma: “Ao introduzir o elemento conhecido, o recurso
aciona mecanismos de memória. Remexemos os arquivos a fim de reconstituir o saber passado. Daí resulta o
entrelaçamento do sentido primeiro que se atualiza no novo contexto ampliando o potencial de significação da
história. O jogo está no exercício da memória e na capacidade de lembrar do telespectador, enquanto a personagem
transcende a história que o criou para ganhar autonomia com a vida interficcional.”
53
pelos autores/produtores
69
que remetem o leitor/telespectador a um conceito de obra de arte, de
gênero, de significação. Pode-se dizer que a memória atua seletivamente a partir da noção de
gênero. Borelli (1995) , analisa o gênero como uma matriz cultural que promove a interlocução
entre passado e presente e atua como forma de mediação que permite à memória atuar
seletivamente:
O resgate das origens e a volta ao passado não deve pressupor a restituição de qualquer memória.
A memória precisa ser seletivamente restaurada, de maneira que matrizes culturais tradicionais
adquiram sentido no momento presente. Acionar matrizes não implica a evocação do arcaico, da
lembrança nostálgica do que ficou para trás ou o desejo de que o mesmo se repita à exaustão.
(Borelli 1995:. 262)
Eco (1986, 1997), seguindo uma perspectiva de análise semioticista, também considera a
noção de gênero como uma das mediações que estabelecem a relação entre a obra literária e seu
receptor, uma vez que ela compõe o que ele denomina conhecimento enciclopédico do leitor
(formado com base na inter-relação de conhecimentos dos usos da linguagem e do contexto, num
sentido bastante amplo). Para ele, uma das formas de ativar o conhecimento enciclopédico
decorre também de elementos paratextuais (título da obra, subtítulos, prefácio, notas) que muitas
vezes remetem ao gênero da obra. Por exemplo: “(...) a simples palavra “romance” na capa do
livro.” (ECO 1997: 126).
Assim, o conceito de gênero como mediador das relações entre os sujeitos da
comunicação implica a aceitação (mais ou menos implícita e já aludida em algumas citações
anteriores) da dimensão ideológica nele contida; Borelli (1996: 180) chama atenção para esse fato
e insere a questão dos gêneros numa perspectiva mais ampla ainda, a antropológica:
Em perspectiva mais abrangente e antropológica, pode-se considerar que os gêneros ficcionais se
revelam como elementos de constituição do imaginário contemporâneo e de construção da
mitologia moderna: reposição arquetípica, aclimatação do padrão originário a uma nova ordem
e instrumento de mediação das projeções e identificações na relação com o público receptor.”
E conclui:
Os gêneros, portanto, em permanente estado de fluxo e redefinição, articulam-se, mesclando
particularidades, conformando novas sínteses, restituindo velhas histórias. Conceituados como
69
Referimo-nos aqui a autores que são reconhecidos pelo público em função do tema e do gênero com que
preferencialmente lidam em seus trabalhos. Por exemplo, no caso das telenovelas, Manoel Carlos é um autor cujas
tramas geralmente se passam em ambiente urbano; já Benedito Rui Barbosa privilegia temas rurais numa perspectiva
histórica.
54
mitologias, reposições arquetípicas, restituições seletivas, estruturas narrativas, matrizes
tradicionais, expressões de ideologias e poder, os gêneros encontram-se presentes em toda e
qualquer forma literária, e também nas produções sonoras e audiovisuais. (BORELLI 1996: 186).
Essas considerações permitem compreender o papel essencial de mediação que os
gêneros desempenham em diversas esferas da vida humana e não apenas na cultura literária. Esse
papel é determinante também para que o ser humano compreenda o mundo e se situe em uma
sociedade mediada pelas relações de linguagem.
3.1. Gêneros e Teoria das Mediações
No campo da comunicação, as relações entre gêneros, produção cultural, sociedade, meios
de comunicação de massa têm feito parte das discussões da chamada Teoria das Mediações que,
segundo Borelli (1996: 187/188),
“(...) pressupõe a existência de uma modernidade ou de um contexto de modernização que se articula aos
aspectos tradicionais, residuais e a tudo aquilo que se coloca como vivo, ativo e participante no interior da
sociedade, situa o gênero como elemento de mediação na cadeia que une produtores, produtos, e receptores
culturais, e como elemento de ligação entre duas lógicas a do produto e a dos usos sociais, a dos sujeitos
receptores. Nessa direção, os gêneros ficcionais são considerados grandes universalidades, pontos de
intercessão nas relações entre literatura popular, erudita e de massa.”
Nessa linha de análise, é praticamente impossível dissociar a narrativa de qualquer
processo comunicacional, pois ela provém mesmo da arte ancestral de narrar
70
, de situar de
maneira objetiva ou subjetiva o ser humano num mundo “real” ou “ficcional”, de dar sentido -
mesmo que seja para causar estranhamento - aos problemas da Humanidade, de inserir a
experiência humana na teia simbólica que permeia todas as relações humanas; notadamente nas
relações de comunicação fortemente marcada pelo caráter ideológico da linguagem.
Martín-Barbero (2001: 211) afirma que “(...) o gênero não é somente qualidade da
narrativa, e sim o mecanismo a partir do qual se obtém o reconhecimento – enquanto chave de
leitura, de decifração do sentido, e enquanto reencontro com um “mundo” (...).” (aspas do autor).
Reencontro que se organiza cultural e cognitivamente por meio das relações inerentes ao sistema
de comunicação estabelecido por nossa sociedade. O gênero, nesse sentido, opera como um
70
Discutimos o papel da narrativa como elemento indispensável para a formação do individuo e da sociedade em
dois outros trabalhos: Apontamentos para o estudo da narrativa e Narrativas e computador ....
55
organizador do mundo na medida em que é por seu intermédio que se interpretam as narrativas
que dão sentido às relações humanas. Sabe-se, por exemplo, que a narrativa religiosa se organiza
e é interpretada mais sob o princípio da fé que da verdade comprovável. Em outras palavras, a
noção de gênero determinará, de certa forma, um “modelo de escritura” (Todorov 1980: 49) e
um “modelo de leitura”. Ou seja, é o acabamento genérico e o conhecimento que o leitor possui
do gênero que permitirá a compreensão de um determinado texto.
Martín-Barbero (2001) considera o gênero uma matriz cultural na medida em que ele
articula não apenas textos literários (ou outro tipo de texto) e compreensão de mundo, mais do
que isso, articula-se ao gênero toda uma dimensão econômica. Dentro dessa perspectiva,
a noção gênero (...) tem pouco a ver com a velha noção literária do gênero como “propriedade” de
um texto, e muito pouco também com a sua redução taxonômica, empreendida pelo
estruturalismo. (....) um gênero não é algo que ocorra no texto, mas sim pelo texto, pois é menos
questão de estrutura e combinatórias do que de competência. (...) A consideração dos gêneros
como fato puramente “literário”- não cultural – e, por outro lado, sua redução a receita de
fabricação ou etiqueta de classificação nos têm impedido de compreender sua verdadeira função e
sua pertinência metodológica: chave para a análise dos textos massivos e, em especial dos
televisivos. (MARTÍN-BARBERO 2001: 313-314)
Martín-Barbero (2001-314), ao considerar a compreensão de gênero com base na
competência comunicativa, desloca o foco da comunicação, antes restrito ao emissor, e passa a
levar em conta também o receptor. Dentro desse quadro, ganham relevância as matrizes
culturais, uma vez que é, por seu intermédio, que se organizam as demais dimensões da
comunicação. O conceito de matriz cultural permite:
(...) uma topografia de discursos movediça, cuja mobilidade provém tanto das mudanças do capital
e das transformações tecnológicas como do movimento permanente das intertextualidades e
intermedialidades que alimentam os diferentes gêneros e os diferentes meios. (MARTÍN-
BARBERO 2001: 17).
Dessa forma, os gêneros não se restringem a categorias ou a conceitos que decorrem de
uma única esfera, seja ela artística ou econômica; os gêneros se constituem e sobrevivem em
todas as esferas da vida social e cultural. Lembramos, ainda, que os gêneros devem ser
entendidos como uma categoria dinâmica que se estabelece por meio da relação dialética entre os
sujeitos da comunicação.
56
3.3. Gêneros: contrato e promessa
Os gêneros televisuais têm merecido atenção tanto da parte dos estudiosos dos meios
audiovisuais quanto dos produtores e emissoras de televisão, porém essa atenção possui causas e
objetivos diferentes. Para os produtores e emissoras de televisão, os gêneros ganham relevância,
pois o gênero, ou pelo menos sua classificação genérica, é mais importante que o programa em si
(ou que a fama e o reconhecimento do público de seu protagonista)
71
. Nessa perspectiva, o gênero
é visto como uma espécie de fórmula que deve ser seguida para que um programa tenha sucesso.
Porém, Nel (1997) afirma que mesmo entre os profissionais de televisão há uma certa indefinição
sobre o que deva ser compreendido como gênero; ora privilegiam a questão temática, ora os
dispositivos empregados. Acrescentaríamos ainda que os profissionais de televisão incumbidos
da grade horária também usam como forma de classificação categorias enunciativas como “ao
vivo”, programas de entrevistas (que se diferenciam do gênero talk-show).
72
Enfim, uma boa
grade de programação deve conter os gêneros que mais agradam ao público visado em
determinada faixa de horário. Trata-se, portanto, de um conceito estratégico para a gestão das
emissoras de televisão e para os produtores de audiovisuais em geral.
Entre outras possibilidades, para os pesquisadores dos meios audiovisuais e da
comunicação em geral, o estudo dos gêneros pode levar a compreender como os meios
audiovisuais (principalmente a televisão) estão lidando com as produções culturais que entram na
composição das matrizes culturais com as quais os seres humanos são construídos social e
individualmente, uma vez que os gêneros, como vimos, são, entre outras coisas, modelos de
construção e de compreensão do mundo “real” e do mundo ficcional que se imbricam na
composição ou no reforço de ideologias e do imaginário popular.
Em razão da composição multifacetada dos gêneros televisuais, de suas implicações
ideológicas e simbólicas decorrentes das características significativas e fluidas do signo e, por
conseqüência, da plasticidade semiótica da comunicação, torna-se necessário buscar instrumental
teórico que dê conta desse movimento incessante e, de certa forma, imprevisível (visto que é
71
François Jost , Seis lições sobre a televisão, p. 23, afirma que: “Mas, para a televisão, o mais importante é saber
qual é o gênero que tem maior audiência. Com os resultados (...), as emissoras de televisão decidem quais são as
etiquetas que vão escolher para suas emissões de forma a agradar a audiência. São as emissoras que decidem em que
categoria ou classificação vão inscrever seus programas.”
72
Acreditamos que uma análise mais detalhada das preocupações que regem a classificação dos programas de
televisão pelas próprias emissoras poderia demonstrar o quanto, para elas, também é fluida a noção de gênero.
57
regido pela própria dinâmica ideológica e simbólica da comunicação). Acreditamos que esse
instrumental teórico possa ser fornecido pela teoria de Bakhtin (2002, 2003) principalmente nos
aspectos em que o teórico russo analisa o signo em suas diferentes manifestações de ordem verbal
e não verbal
73
e os gêneros do discurso como expressão do caráter dialógico e polifônico da
comunicação
74
.
Jost (1997), referindo-se aos gêneros televisuais, afirma que uma lição que se pode tirar
das discussões acerca dos gêneros literários e que pode ser aplicada aos gêneros televisuais é que
não se deve pretender “ uma tipologia definitiva e universal dos programas como essências”.
Para Charaudeau (1997: s/p), das discussões sobre gêneros no campo literário podem ser obtidos
dois ensinamentos. O primeiro desses ensinamentos é que “os gêneros são necessários à
inteligibilidade dos objetos do mundo” (Charaudeau 1997: s/p), já que é por meio deles que
estabelecemos categorias a partir da “contraposição de um modelo ou de um contra-modelo de
produção-leitura do discurso.” O segundo ensinamento refere-se ao fato de que: “(...) os
critérios de determinação dos gêneros podem ser de diversas ordens e transversais, ou seja, que
um mesmo gênero se compõe de vários critérios e que um mesmo critério pode ser encontrado
em diferentes gêneros.” (Charaudeau 1997: s/p) (tradução nossa)
Para o autor, uma das dificuldades para se definirem os gêneros midiáticos encontra-se no
fato de estarmos:
(...) muito impregnados pela tradição literária (...) de uma época em que os modos de escritura se
diferenciavam mais claramente uns frente aos outros como os dominantes que correspondiam ao
mesmo tempo a uma forma de pensamento e a uma visão do mundo (...). Ora, a modernidade não
cessou de quebrar a homogeneidade desses tipos de narrativa. Por outro lado, os objetos
categorizados em gêneros (textos escritos no domínio literário) procedem de uma origem única, o
autor, e participam de uma materialidade semiológica única homogênea, o significante verbal
escrito. Ora, o objeto televisual procede de uma origem e de uma materialidade compostas.”
(CHARAUDEAU 1997: s/p) (tradução nossa)
Buscando uma forma de fazer frente à multiplicidade de gêneros televisuais que se
articulam de maneira transversal e por meio de diferentes ordens, Charaudeau (1997: s/p) propõe
a criação de uma tipologia dos gêneros televisuais de informação a partir do reconhecimento que
estes se inscrevem “(...) numa situação de comunicação, a qual é determinada entre outras coisas
73
Cf. Susan Petrilli, Bakhtinian categories of literature for a new approach to philosophy of language, p. 37/38, in:
Augusto Ponzio & Susan Petrilli. Philosophy of language art and answerability in Mikhail Bakhtin
74
A perspectiva de análise de Bakhtin, idem, ibidem, p. 42, “(...) concebe filosofia da linguagem como uma teoria
do conhecimento, práxis e ideologia desenvolvida à luz de uma teoria da linguagem ao mesmo tempo crítica e
dialógica.”
58
pelo ponto de vista de uma finalidade que determina o tipo de influência que a instância de
enunciação quer ter sobre a instância da recepção.”
Dessa forma, devem ser levados em consideração a situação de comunicação e o
propósito (que corresponde a uma prática social) dessa comunicação. Assim, o autor define, para
os textos de informação, por exemplo, baseado no objetivo da situação de comunicação: textos
informativos (para fazer saber) que se articulam com uma prática social que pode ser persuasiva
(tipo propagandístico) ou da prática comercial (tipo publicitário). Certamente, existem muitas
outras possibilidades, mas a característica essencial delas, segundo o autor, é “(...) que a situação
de comunicação deve ser reconhecida pelos dois parceiros da troca e que ao mesmo tempo
definem o objeto da troca como resultado da produção textual.” (CHARAUDEAU 1997)
A definição do “objeto da troca” que ocorre na situação de comunicação implica a idéia
de um contrato de comunicação que se estabelece entre emissor e receptor, uma vez que por
considerar a comunicação um ato de transação social Charaudeau (1998) afirma que a
comunicação prevê a troca entre parceiros:
(...) de antemão localizados em alguma parte. Não há transação social que não coloque você,
qualquer que seja o papel exercido pelo parceiro, em um determinado lugar. Portanto, isso quer
dizer que quando estudamos as características dessas transações sociais, quando nos interessamos
pelas estratégias particulares dessas transações sociais, não podemos fazê-lo sem levar em conta
esse aspecto sobredeterminante que define a transação enquanto tal. A isso eu chamo “contrato de
comunicação.” (CHARAUDEAU 1998: 4) (tradução nossa)
Charaudeau (1998) usa o termo “contrato” como uma espécie de metáfora para explicar a
idéia de que é preciso levar em consideração os “lugares” determinados de antemão aos parceiros
da comunicação. No caso da televisão, o autor considera que devemos levar em conta os
“lugares” predeterminados que a televisão nos propõe.
A transação social é regulada por restrições, porém essas restrições nunca são totalmente
sobredeterminantes. Há sempre uma margem de manobra, um espaço de liberdade do sujeito no
interior dessas restrições, porém não se pode atuar de qualquer jeito. Para um sujeito envolvido
num ato de transação social, criar estratégias é fazê-lo em função das restrições que lhe são
propostas. Portanto, ao mesmo tempo, restrições e liberdade. (CHARAUDEAU 1998: 4-5)
(tradução nossa)
O conceito de contrato (ou pacto) também é desenvolvido por Eco (1986, 1997) como
uma espécie de acordo (ficcional) assinado entre autor e leitor, segundo o qual este último se
dispõe a aceitar os “mundos possíveis” (as regras, as restrições, as fronteiras mas também a
59
liberdade, a amplidão, os espaços infinitos, os poderes mágicos). Assim, “(...) o leitor precisa a
aceitar tacitamente um acordo ficcional, que Coleridge chamou de “suspensão de descrença”. O
leitor tem de saber que o que está sendo narrado é uma história imaginária, mas nem por isso
deve pensar que o escritor está contando mentiras.” (grifos do autor)
A perspectiva de Eco é que o texto é co-construído pelo autor e pelo leitor. Isso por que
nos textos existem “buracos” que devem ser preenchidos pelo conhecimento enciclopédico do
leitor
75
, que, por sua vez, é pressuposto e “enquadrado” nos limites da ficção pelo autor quando
este escreve o texto. A esse leitor Eco dá o nome de leitor-modelo. O leitor-modelo é construído
pelo autor-empírico por meio de estratégias de construção textual e semântica, porém esse tipo de
leitor é uma abstração e não deve ser confundido com o leitor-empírico (“real”) cujo
conhecimento enciclopédico nem sempre corresponde àquele imaginado pelo autor-empírico.
Uma das dimensões da relação entre autor-empírico e leitor-modelo é estabelecida pela noção de
gênero que interfere como instância mediadora da compreensão da obra artística. Aqui, em
especial, está em jogo a noção de realidade e de ficcionalidade, ou, dito de outra forma, as
relações e interpenetrações entre mundo “real” e “mundos possíveis”.
Porém, há casos em que o leitor-empírico em nada corresponde ao leitor-modelo
presumido pelo autor e isso ocorre pelos motivos mais diversos, porém um dos fatores que
podem estar envolvidos nesse “mau entendimento” da obra artística é a não compreensão do
gênero a que pertence a obra. Em Pour quoi la ficction?, Schaeffer analisa como o romance
Marbot, de Wolfgang Hildesheimer, foi construído pelo autor alemão com vários índices de
ficcionalidade e foi compreendido pelos leitores como relato factual. Incluíam-se entre os leitores
que fizeram “confusão” (entre um gênero e outro) professores universitários e pesquisadores, ou
seja, em princípio, leitores altamente qualificados.
Jost (1997, 2004) discorda dos conceitos de contrato de comunicação ou de leitura
propostos por Charaudeau (1997) e Eco (1986, 1997). O estudioso francês argumenta que é
justamente devido à impossibilidade de se controlarem os elementos genéricos que dão suporte a
uma ou a outra interpretação que as teorias de Charaudeau e Eco encontram problemas de
sustentação. Jost (1997, 2004) apresenta uma perspectiva de análise dos gêneros televisuais que
75
A idéia de construção do texto pelo leitor também é discutida por Roland Barthes no livro S/Z. Barthes define dois
tipos de texto: o texto legível e o texto `scriptible’ (escrevível). O texto legível é o que pode ser lido, mas não
reescrito, é o texto clássico por excelência, o que convida o leitor a permanecer no interior do seu fechamento. Os
textos escrevíveis apresentam ao contrário um modelo produtor (e não representacional) que incita o leitor a
abandonar sua posição tranqüila de consumidor e a se aventurar como produtor de textos.
60
descarta a noção de contrato pré-existente entre o emissor e o receptor. O teórico argumenta que
entre produtor e telespectador não se estabelece um contrato (Charaudeau) ou pacto (Eco), uma
vez que para que exista contrato é necessário que o telespectador conheça minimamente o gênero
a que pertence o programa que irá assistir. Para Jost, a idéia de contrato funciona apenas para a
comunicação recíproca; o que não ocorre na televisão
76
. Seu argumento é que quando se fala com
milhões de telespectadores (como faz a televisão) é preciso levar em conta a idéia de que nem
todos os telespectadores conhecem os gêneros presentes na televisão.
Com relação aos gêneros ficcionais televisuais, Jost (2004: 15) afirma que o telespectador
“(...) pode não saber que há um pacto, o que permite concluir que o pacto não se dá no texto, não
se dá no peritexto
77
, mas em conhecimentos laterais.” Para o autor, a idéia de contrato faz com
que se pressuponha que “(...) todo mundo saiba o que é ficcional ou não” (Jost 2004:15).
Portanto, esses conhecimentos laterais são construídos não com base em um texto em especial,
mas a partir de um conjunto de textos que se inter-relacionam por meio de vários critérios entre
os quais os de semelhanças e diferenças que ocorrem tanto no plano semântico quanto no
estrutural.
Jost (2004: 16) propõe uma abordagem genérica especificamente televisual que não se
fundamente “(...) apenas na previsão de um leitor-ideal, mas que [abranja] todos os tipos de
leitores.” Com essa intenção, o autor cria o conceito “promessa de gêneros”. De acordo com esse
conceito, os gêneros devem ser vistos como promessas que, apesar de funcionarem como
promessas (ou seja, podem ou não se realizar) “(...) cria[m] no espectador expectativas, que ao
assistir o programa serão colocadas à prova (a diferença entre os dois explicaria às vezes a
diferença entre a audiência e seu índice de satisfação).” O autor considera esse conceito mais
adequado que o de contrato, pois este último tem como princípio a bilateralidade e a co-
asssinatura. Outro aspecto que, segundo Jost, dá mais flexibilidade à abordagem proposta por ele,
refere-se ao fato de que “(...) o modelo de promessa ocorre em dois tempos” (2004: 18). No
primeiro momento, o telespectador tem expectativas a respeito do que ocorrerá no programa a
partir de sua experiência como telespectador; no segundo momento, “(...) o telespectador tem o
76
Cf. François Jost, Seis lições sobre televisão, p. 16, “No caso da comunicação televisual (...) não há reciprocidade
no processo televisivo no sentido homossemiótico.”
77
François Jost faz aqui uma aproximação com o conceito de peritexto desenvolvido por Gerard Genette em relação
aos textos escritos. Segundo Patrick Charaudeau & Dominique Maingueneau, Dicionário de Análise do Discurso, p.
368, o conceito de peritexto, refere-se aos “gêneros discursivos que circundam o texto no espaço do mesmo volume:
o peritexto editorial (coleções, capas, materialidade do livro), o nome do autor, os títulos, o encarte dirigido aos
críticos, as dedicatórias, as epígrafes, os prefácios, os intertítulos e as notas.”
61
dever de verificar se a promessa foi efetivada. (...) Esse modelo exige do espectador uma
contribuição ativa, embora ela não se dê simultaneamente ao momento da própria promessa.”
(JOST 2004: 19).
O modelo de promessa se assenta sobre duas hipóteses:
- promessa ontológica do gênero: por exemplo, uma comédia deve fazer rir. Até mesmo uma
indicação na tela de que o programa é transmitido “ao vivo” (etiqueta que busca dar autenticidade
a seu conteúdo) pode induzir o telespectador a estar pronto para o inesperado, para o inusitado.
- promessa pragmática: “(...) consiste em atribuir uma etiqueta genérica a um programa com o
qual estão comprometidos a publicidade, os trailers. Para influenciar a crença dos
telespectadores, a emissoras atribuem antecipadamente uma determinada denominação de gênero
a uma emissão.” (JOST 2004: 18). Porém, nem sempre a promessa é verdadeira (segundo o autor,
há alguns programas que recebem o rótulo “ao vivo” quando não o são). Gostaríamos de lembrar
também que há casos em que depoimentos são apresentados como se fossem verdadeiros quando
não o são. A “inverdade”, quanto ao gênero prometido, principalmente do gênero jornalístico,
seja ela proveniente da produção do programa ou de seu apresentador, pode custar caro a ambos,
uma vez que abala a credibilidade não só do programa onde é veiculado o depoimento como
também a do apresentador que passa a ser considerado um mentiroso ou um aproveitador da
confiança que nele foi depositada pelos telespectadores.
78
A emissão e seu apresentador são
vistos como um engodo.
Por outro lado, há programas de televisão, principalmente aqueles destinados a discutir
problemas de relacionamento pessoal (entre namorados, vizinhos, pais, filhos), que
constantemente são “desmascarados” (por outros veículos de comunicação: jornais, revistas, ou
mesmo por outras emissoras de televisão) por apresentarem como “reais” relatos elaborados
ficcionalmente com a finalidade de “cair” no gosto do público pelo gênero. Apesar das denúncias
78
Nossa reflexão aqui se baseia no episódio ocorrido no Programa Domingo Legal, do Sistema Brasileiro de
Televisão, SBT, apresentado em 07.09.2003, em que foram entrevistados pelo apresentador Gugu Liberato atores
que representavam ser integrantes da facção criminosa PCC. A Secretaria de Segurança do estado fez uma coletiva
de imprensa e desmascarou a suposta entrevista verdadeira. O apresentador e seus produtores foram chamados a
depor para esclarecer os fatos. Essa entrevista foi veiculada numa época em que ocorriam grandes motins nas cadeias
públicas os quais eram organizados, segundo a Secretaria de Segurança do estado de São Paulo, por esse grupo.
Além disso, na mesma época, havia inserções “ao vivo” de reportagens jornalísticas das quais participava o
apresentador. Durante um longo período, após esse incidente, o programa apresentou índices de audiência inferiores
à sua média.
62
sobre o conteúdo inverídico, alguns desses programas continuam no ar agradando a uma parcela
do público que sabe da “mentira” (é justo também imaginar que uma parte do público acredite
que o se passa na tela é “realidade”), mas que acaba gostando de ver o espetáculo no qual
identifica seus problemas e desejos. Podemos acreditar que nessa situação prevalece o fascínio do
ficcional travestido de realidade com a benção de determinada fatia da audiência. Portanto, o que
está em jogo aqui são os recursos discursivos que se sobrepõem à necessidade de “realidade”. Ou
seja, em nossa opinião, pelo menos para uma parcela da audiência, a promessa aqui é a de que
haverá entretenimento, diversão e não apenas o “retrato da realidade”; embora, a realidade e o
cotidiano das pessoas mostradas sejam minimamente condizentes com a realidade de sua
audiência. Trata-se, portanto, de um jogo constante de promessas que inclui recompensas para o
telespectador que busca por meio da identidade genérica (do gênero televisual) sua identificação
como ser humano inserido num grupo social.
79
Desenvolvendo o conceito de promessa de gêneros, Jost afirma que os gêneros encerram
uma promessa de mundo, pois o audiovisual “(...) é produzido em função de um tipo de crença
visada pelo destinador; em contrapartida, ele só pode ser interpretado por aquele que possui uma
idéia prévia do tipo de ligação que o une à realidade” (JOST 2004: 33). De acordo com Jost,
traçamos uma fronteira entre as imagens que remetem ao mundo (realidade) e aquelas que
representam um mundo eventualmente parecido (ficcionalidade) com o nosso. Nesse sentido, o
gênero propõe um quadro de interpretação global que insere o programa televisivo em três
possíveis mundos: o real, o ficcional e o lúdico. Cada um desses mundos possui fronteiras que
não são intransponíveis, mas que, em geral, funcionam como uma espécie de horizonte de
expectativas.
A promessa que remete ao mundo ficcional é construída por meio de referências a um
mundo imaginário que mantém estreita relação com o mundo real. Dentro do mundo ficcional são
questões fundamentais a verossimilhança e a coerência interna da história
80
. Já o mundo lúdico é
79
Referimo-nos principalmente à “teoria integrada” de De Fleur e Ball Rokeach resumida por John Fiske e John
Hartley no livro Reading Television , p. 73-76, em que aparecem as seguintes necessidades para um
“consumidor”dos meios de comunicação de massa: 1) a necessidade de entender um mundo social; 2) a necessidade
de agir significativa e efetivamente nesse mundo; 3) a necessidade de escapar dos problemas diários e tensões. Para
um maior aprofundamento das questões referentes aos usos e gratificações proporcionados pela televisão (e meio de
comunicação de massa), consultar capítulo 5 – The functions of television – do mesmo livro.
80
François Jost, Seis lições sobre televisão, p. 37, afirma que “(...) os objetos, as ações, enfim, todos os signos da
ficção inicialmente fazem referência a um universo imaginário mental e que nós exigimos da ficção que ela respeite
uma regra: a da coerência do universo criado com os postulados e as propriedades que o fundam.”
63
referido como promessa quando se trata de programas em que o jogo faz parte da estratégia de
conquista do telespectador. Os gêneros televisuais funcionam como promessas de que os
programas terão um desenvolvimento esperado nas fronteiras de um determinado mundo (real,
ficcional, lúdico), porém isso não significa que essas fronteiras não sejam constantemente
“invadidas” ou modificadas de acordo com a especificidade do programa que pode fazer
referência a mais de um mundo. Como exemplo disso o autor cita os reality shows que se
apresentam como realidade, mas que em sua composição utilizam elementos de ficção e de jogos.
Um filme de ficção também pode ser analisado como verdadeiro quando especialistas são
convidados a debater os problemas nele apresentados como sendo documentos sobre a realidade.
Jost (2004: 18) lembra que “(...) quando se estuda um programa de televisão, não se deve
ficar restrito apenas à consideração do próprio programa, mas tem-se de estudar o que se fala a
seu respeito, como se fala dele e o que se diz.”. Assim, o autor propõe como método de analise
da comunicação televisual a investigação de todos os elementos implicados na comunicação:
revistas, entrevistas e todo tipo de material produzido por toda equipe envolvida (atores, autores,
técnicos), título da emissão, gênero atribuído a ela, horário na grade de programação, dotação
orçamentária, anúncios publicitários. Essa perspectiva abrangente de análise permitirá perceber
que “[O] conjunto dessas fontes contribui para formular a promessa feita ao telespectador,
promessa essa cujo cumprimento será necessário conferir no espaço representado pelo próprio
programa e com um público mais ou menos crédulo.” (JOST 2004: 30)
O conceito de promessa não deve, no entanto, ser confundido com a idéia de estratégia da
emissora, pois, para o autor, a “(...) promessa pode se identificar com a imagem explícita da
emissora”, porém “(...) ela não deve se confundir com suas estratégias: uma emissora, como todo
locutor, pode dizer qualquer coisa tendo em vista uma determinada finalidade.” (JOST 2004: 30).
Buscando justificar essa diferenciação, Jost (2004: 30) afirma que:
Ainda que a audiência seja um sintoma da reação dos telespectadores, ela não revela jamais os
segredos que se passam nos bastidores. Diante do sucesso de uma emissão, os produtores são
seguidamente incitados a tentar encontrar a receita empregada sem saber por que precisamente ela
deu certo. Os analistas não são, além do mais, muito avançados. Seguidamente, na falta de poder
responder ao porquê isso deu certo, eles se contentam em descrever, de sua parte os mecanismos de
compreensão do espectador.
Portanto, estratégias adotadas por uma emissora constituem apenas uma das partes
implicadas no processo complexo da comunicação televisual. O conceito de promessa se baseia,
como vimos acima, numa complexa inter-relação de elementos internos e externos ao produto e à
64
produção televisual. Para se constituir como promessa, o programa instaura e re-instaura de
maneira articulada, porém aleatória, discursos, imagens, reação do público, produção, audiência,
memória coletiva, memória individual. Enfim, trata-se de uma rede complexa de significados que
se constrói por meio de um processo semiótico que se retro-alimenta de maneira constante e
infinita. Essa concepção permite-nos compreender por que, muitas vezes, programas lançados
com estratégias caríssimas e mirabolantes pelas emissoras se tornam estrondosos fracassos de
audiência, ou nem mesmo conseguem a adesão do público esperado pela emissora. Afinal, não é
suficiente prometer, é necessário cumprir minimamente o prometido (e, pelo menos no que se
trata da audiência televisiva, o público já percebeu isso).
A relação de promessa entre a emissão e o telespectador se estabelece assim por meio de
fatores internos e externos também por meio de elementos “controláveis e incontroláveis”
81
pelas
emissoras, mas sobretudo pela promessa de um mundo ao qual somos enviados por meio do
gênero. Isso ocorre porque:
Todo gênero (...) repousa na promessa de uma relação com o mundo cujo modo ou grau de
existência condiciona a adesão ou participação do receptor. Em outros termos, um documento, em
sentido amplo, seja escrito ou audiovisual, é produzido em função de um tipo de crença visada pelo
destinador; em contrapartida, ele só pode ser interpretado por aquele que possui uma idéia prévia
do tipo de ligação que o une à realidade. (JOST 2004: 33)
Portanto, a mediação do gênero é imprescindível para a compreensão das mensagens
veiculadas pelas emissoras de televisão e, de acordo com a abordagem proposta por Jost (2004), a
promessa do gênero é responsável - em decorrência de seu próprio estatuto genérico - pelo tipo
de relação que se instaura entre o documento televisual e o sujeito receptor. Essa relação é
determinada pela promessa de mundo referida pelo gênero televisual. De acordo com o autor,
“(...) a primeira questão que se põe ao telespectador é saber se as imagens que ele vê remetem a
objetos existentes ou quimeras, entidades fictícias” (JOST 2004: 33), ou seja, a primeira atitude
do telespectador é a de traçar as fronteiras entre a ficcionalidade e a realidade nas emissões de
televisão. Assim, a primeira operação do telespectador é tentar identificar nas emissões gêneros
que remetem à realidade. Trata-se da busca de classificações genéricas que facilitem não só a
compreensão do texto como também adesão ou não-adesão do telespectador à mensagem
veiculada pelo programa.
81
Referimo-nos a elementos como desempenho e aceitação de atores, autores, diretores, custos, publicidade. Enfim,
fatores que jogam com elementos cuja variabilidade é constante e se determina no momento mesmo em que a
produção e o produto televisuais ganham forma.
65
Paradoxalmente, o mundo real referido nas emissões de televisão é constantemente
contraposto e invadido pelo mundo ficcional. Principalmente se considerarmos que, cada vez
mais, mesmo os programas ao vivo (incluindo entrevistas, reportagens, telejornais) estão sujeitos
a uma edição (incluindo roteirização, cenas de arquivo, “simulações”, “reconstituições”) e a uma
mise en scène que, muitas vezes, não permitem identificar o “eu-origo real”
82
, ou seja, o narrador
que se coloca no ponto zero, aquele que identificamos como sujeito da enunciação. Isso ocorre
mesmo em relatos jornalísticos em que há um jornalista que se apresenta como autor do
enunciado por meio de sua voz e de sua presença física. Assim, as referências ao mundo real
acabam por se manifestar mais pelos elementos perifilmicos (nomes dos programas, indicações
“ao vivo” na tela, pela presença de repórteres ou jornalistas em vez de apresentadores), porém
mesmo esses elementos podem não remeter seguramente ao mundo real.
83
Apesar disso, Jost
(2004: 36) considera que as emissões ao vivo ainda são aquelas que possuem um caráter
autentificante, porém faz uma ressalva: “(...) a promessa de falar do mundo [real] não é própria
apenas das emissões informativas; ela é comum em todos os programas que prometem um
discurso da verdade os quais nós interpretamos sob o eixo da verdade-falsidade.”
Para Jost (2004: 36/37), há três possibilidades de se “levar a sério” um documento
audiovisual que faz referência ao mundo real:
1) como signo do mundo, ele tem propósitos verificatórios, sobre nosso mundo (atualidades
[notícias], jornal televisivo, reportagens);
2) como signo do autor, ele exprime uma verdade profunda dos seres humanos ou dos indivíduos
(...), como nos testemunhos ou nas transmissões diretas em geral ou nas marcas de indivíduos cuja
autoridade não é contestada.
3) como documento, ele traz em si uma verdade incontestável (é o papel do arquivo).
A promessa que remete ao mundo ficcional é construída por meio de referências a um
mundo imaginário que mantém estreita relação com o mundo real. Dentro do mundo ficcional são
82
Käte Hamburger, Lógica da criação literária, p. 47, define o “eu-origo real” como: “o sujeito-de-enunciação é
reconhecido como existente no tempo, i.e., real, o que por sua vez não significa outra coisa senão que as
considerações feitas sobre presente, passado e futuro têm significado somente quando se relaciona a um sujeito-de-
enunciação autêntico. (...) Esta noção [eu-origo] significa o ponto zero a origo – ocupado pelo eu (o eu da
experiência ou da enunciação) – do sistema coordenado espaço temporal, que coincide ou é idêntico – com o agora e
aqui.”
83
A título de exemplo, lembramos as produções televisuais que “imitam” ou incluem telejornais (inclusive com
jornalistas-apresentadores de renome). Arlindo Machado, A televisão levada a sério, p. 53, comenta “A
retrospectiva do ano de 1988”, elaborada por Marcelo Tas, que focalizava os fatos de 1958 como se fossem de 1988
instaurando uma comparação entre fatos e personagens que após 30 anos ainda povoavam vida política e econômica
do país.
66
questões fundamentais a verossimilhança e a coerência interna da história
84
. O mundo ficcional
não remete à mentira (categoria pertinente ao mundo real), mas a um “faz de conta” que
condiciona nossa recepção. Essa característica da ficção modifica o estatuto da própria emissão e
altera as relações que estabelecemos entre a imagem ou o som e seu referente (mundo, autor,
documento).
Já o mundo lúdico é referido como promessa quando se trata de programas em que o jogo
faz parte da estratégia de conquista do telespectador. O autor adverte ainda que quem decide em
última instância o estatuto genérico de um filme é o publico que confirma ou infirma a
classificação adotada pelos produtores/exibidores.
85
Além disso, “os critérios de inserção dos
programas diferem, segundo o mundo ao qual se faz referência, mas a comunicação televisual é
um processo dinâmico e incerto: nenhuma emissão pode ser classificada como pertencendo
seguramente a esse ou àquele mundo.”(JOST 2004: 42).
Embora o conceito de promessa de gênero não deva ser confundido com estratégia da
emissora, nas análises de programas televisuais devem ser levadas em consideração as estratégias
empreendidas pelas emissoras para que os programas sejam vistos de acordo com a etiqueta de
gênero sugerido por elas. Trata-se de um processo em que, após a definição do gênero a que
pertence o programa, a emissora de televisão empreende esforços para que os mesmos sejam
vistos de acordo com a intencionalidade de seus criadores/produtores. As emissoras de televisão
empregam todas as formas de publicidade possíveis, que vão desde a colocação de anúncios em
jornais revistas, de out-doors até a inserção de matérias que tratam diretamente dos assuntos dos
programas ou entrevistas com criadores ou com participantes desses programas em outras
atrações da emissora (tais como programas de entrevistas, telejornais, jornais impressos,
programas de rádio). Enfim, lança-se mão de uma verdadeira parafernália publicitária para
conquistar o telespectador.
Jost (2004) classifica as estratégias das emissoras seguindo a mesma nomenclatura criada
para os gêneros. Assim, as ações de lançamento e de manutenção de um programa televisual se
84
François Jost, Seis lições sobre televisão, p. 37, afirma que “(...) os objetos, as ações, enfim, todos os signos da
ficção inicialmente fazem referência a um universo imaginário mental e que nós exigimos da ficção que ela respeite
uma regra: a da coerência do universo criado com os postulados e as propriedades que o fundam.”
85
François Jost, Seis lições sobre televisão, p. 41, cita como exemplo o filme As bruxas de Blair apresentado como
um documento real feito pessoas que sobreviveram a um massacre. Pensamos ainda no filme Tiros em Columbine
(Bowling for Columbine, E.U.A., 2002), dirigido e protagonizado por Michael Moore que teve divulgação que o
classificava como documentário e ganhou o Grande Prêmio do Júri do Festival de Cannes, prêmio normalmente
dedicado a filmes de ficção.
67
fundam sobre três estratégias: autentificante, ficcional
86
, e lúdica. Interpretamos as explicações
relacionadas à programação da televisão francesa à luz do que ocorre na televisão brasileira.
As estratégias autentificantes chamam a atenção do telespectador para a “realidade”
mostrada no programa. Buscam-se elementos que remetam à realidade, como, por exemplo, o
modo de difusão do programa, a emissão “ao vivo” ou ainda uso de pessoas nativas de uma
região para fazer figuração em lugar de artistas. A objetivo principal dessa estratégia é “disfarçar”
o caráter ficcional da produção televisual e apresentá-la como uma faceta da realidade cotidiana
de uma determinada sociedade. Além disso, a aparição de atores e atrizes em programas de
entrevistas e telejornais sempre dá margem à apresentação de flashes (do programa que está
sendo promovido) que serão comentados por um sujeito da enunciação real. Um outro
expediente que pode ser usado com a finalidade de conceder autenticidade a um programa
ficcional é o aparecimento de uma autoridade no assunto, ou de uma testemunha dos fatos que
(rea)afirma a “autenticidade” do relato (ficcional) cujas características ficcionais vão se
esmaecendo gradativamente à medida em que as estratégias autentificantes vão ganhando terreno.
As estratégias ficcionais consistem em criar situações de narrativas cujos discursos são
organizados de maneira a tratar assuntos do mundo “real” de forma ficcionalizada. Geralmente,
são estratégias que procuram mobilizar principalmente os sentimentos do telespectador em
relação a uma realidade que é adversa ao sujeito retratado. São fundamentais, nesse tipo de
estratégia, o close final no rosto da pessoa, depois de uma vista panorâmica do mundo que lhe é
hostil (ou acolhedor depois de ter passado por locais ou situações hostis) e um discurso verbal
carregado de sentimentalismo. Deve-se assinalar que essas estratégias são empregadas tanto com
a intenção de provocar riso quanto choro; o importante é mobilizar os sentimentos da audiência.
As estratégias lúdicas têm sua principal aplicação em programas do tipo reality shows e
mesmo em programas de auditório que apresentam competições e são usadas para amenizar
situações que poderiam ser embaraçosas para a emissora. Assim, sob o manto do jogo, da
brincadeira, os participantes são levados a situações de estresse nervoso, sem que isso seja levado
“a mal” pelos telespectadores. Afinal, nos jogos o que importa é vencer dentro das regras (nos
reality shows e nos programas de auditório, regras impostas unilateralmente pelos produtores).
86
No livro Seis lições sobre televisão a tradutora emprega o termo “fictícia” mas adotamos o termo ficcional por
concordarmos com a análise de Käte Hamburger, Lógica da criação literária, p. 39-41, de que ambos se equivalem.
68
Jost (1997, 1995) explora os programas televisivos a partir da categoria “feintise
(fingido)” desenvolvida por Hamburger a propósito da obra literária. Hamburger (1975) discute
as noções de “fingido” e “fictício” na obra de arte. Partindo dessas noções a autora afirma que a
obra literária não se assenta sobre a idéia do “faz-de-conta” como muitos autores procuram
definir o mundo mostrado nas obras ficcionais. A idéia do “faz-de-conta” contém a estrutura do
“como se”. Isso quer dizer que a personagem de uma obra (literária ou dramática) agiria “como
se fosse” uma pessoa “de verdade”. Ora, nessas obras, as personagens agem dentro da estrutura
do “como”, ou seja, elas “são” as personagens enquanto representação de pessoas (elas encarnam
as personagens). Tomemos um exemplo: quando um ator interpreta uma personagem como um
médico, ele não age “como se fosse um médico”, no momento da atuação “ele é um médico”. Ou
seja, ele atua “como” médico e não “como se” fosse médico
87
.
Desenvolvendo análise da estrutura “como”, a autora encontra elementos dessa estrutura
presentes no uso das formas verbais, dêiticos, na definição do sujeito da enunciação (eu-origem
88
real ou fictício). Seguindo o raciocínio de Hamburger, Jost (1997) afirma que:
(...) a diferença entre ficção e realidade está menos no objeto do enunciado que no sujeito da
enunciação, distinguem-se [então] três tipos de enunciados: o enunciado de realidade fundado em
um eu-origem real, o enunciado de ficção fundado em um eu-origem fictício e o enunciado fingido,
enunciado em primeira pessoa, que torna incerta a distinção entre invenção e testemunho. (...)
Contrariamente à ficção, inscrita na lógica platônica da imitação da realidade (mimesis), o
fingimento é uma imitação do enunciado de realidade.”
89
(Jost 1997 – tradução nossa) (grifos do
autor)
Jost (1995, 1997, 2004) desenvolve os conceitos de fingimentos fílmicos, narrativos e
enunciativos empregados nos programas audiovisuais para designar os procedimentos que
87
Acreditamos que essa característica se deva ao principal princípio que rege a obra ficcional: a verossimilhança.
Käte Hamburger, A lógica da criação literária, p. 41-41, afirma: “A realidade do “como”, porém, é aparência, ilusão
da realidade que significa não-realidade ou ficção. A noção de ficção no sentido da “estrutura como” é, entretanto,
preenchida apenas pela ficção dramática e épica (narração na terceira pessoa) como também pela cinematográfica. Se
perguntarmos, porém, por que é aqui e somente aqui que se produz a ilusão, a “estrutura como” da realidade, a
resposta é: porque aqui se cria a ilusão da vida. E a ilusão da vida é criada na Arte somente por um “eu” vivo, que
pensa, sente, fala. As figuras de um romance ou drama são personagens fictícios porque são constituídos como “eus”
fictícios ou sujeitos. Entre todos os materiais das artes, porém, é somente a linguagem que pode produzir a ilusão da
vida, isto é, criar personagens vivos sensíveis, pensativos, que falam e também se calam.” (Hamburger 1975: 41-42)
88
A tradução brasileira do livro de Käte Hamburger, A lógica da criação literária, utiliza a expressão “eu-origo”
enquanto os tradutores e comentaristas franceses usam a expressão “eu-origem”. Adotamos em nosso trabalho
preferencialmente a expressão “eu-origem” para sermos coerentes com Jost, Genette e Antonio Cândido.
Empregamos a expressão “eu-origo” quando usamos citações da edição brasileira.
89
No artigo Le feint du monde, 1995, François Jost afirma: “(...) se a ficção é da ordem do como, da mimesis da
realidade, o fingimento é uma mimesis do enunciado de realidade: ela parece [finge] se fundar em um eu-origem
real.” (grifos do autor)
69
aplicados ao enunciado ficcional para lhe conferir um estatuto de um enunciado de realidade, o
que não significa dizer que sejam imitação de realidade. Para exemplificar sua idéia, Jost afirma
que, quando vemos a imagem de uma cidade “real” com habitantes “reais” e “acontecimentos
reais” num programa de ficção, a única coisa que nos permite perceber se se trata de relato
ficcional ou factual é o fato de distinguirmos o sujeito da enunciação, ou seja, de percebermos de
“onde” nos “fala” o narrador ou as imagens.
90
Falam-nos como eu-origem real ou fictício? Jost
(2004: 131) responde: “A diferença entre a narrativa de realidade e a narrativa de ficção é que,
nas narrativas de realidade, o autor é igual ao narrador, enquanto na ficção, ele é diferente do
narrador.”
Os fingimentos fílmicos (ou cênicos) correspondem a procedimentos adotados pelos
criadores/produtores para reconstituir a “realidade” tal qual ela é (ou pelo menos como eles
pensam que ela é). Esses procedimentos pretendem “mostrar” a realidade
91
e são decorrentes de
uma mise en scéne Embora, muitas vezes, apresentem uma “realidade criada”, esses filmes nos
apresentam uma “realidade provável” que o telespectador experiente aceita como tal. Pode-se
supor que o telespectador inexperiente encontrará nessas imagens a “realidade real”. Já os
fingimentos narrativos são construídos pelo relato verbal e pela enunciação narrativa. À medida
que o relato verbal vai se desenvolvendo em primeira ou terceira pessoa ocorre uma série de
implicações que decorre da natureza do narrador e de seu ponto de vista hetero ou
homodiegético.
É por meio dos fingimentos enunciativos que o autor/diretor procura demonstrar a
veracidade daquilo que ele mostra. Portanto, situa-se no campo da retórica audiovisual. Jost
(1997) define o fingimento enunciativo como:
O fingimento enunciativo consiste em tomar a enunciação audiovisual por um discurso de verdade,
emitido por um suposto realizador responsável pela virtude informativa dessas imagens quanto ao
factual. O campo desse fingimento enunciativo é tão grande quanto a própria enunciação
audiovisual: imitação da retórica, do gênero, do estilo de um programa. Trabalhá-la levaria a
reabrir o dossiê daquilo que Genette chamou, em literatura, de hipertextualidade. (tradução nossa)
90
François Jost, La promesse des genres, 1997, afirma que: “(...) a distinção entre realidade e ficção não vem da
imagem, mas do conhecimento do sujeito da enunciação.”
91
Como exemplo, François Jost, Le feint du monde, discorre a respeito dos repetidos ensaios feitos pelo diretor no
filme Saída das fábricas Lumière (um dos primeiros filmes gravados pelo cinema) que, apesar de mostrar uma
realidade “montada”, pode ser visto como um documento da época, uma vez que procura retratar uma cena repetida
cotidianamente e conhecida por todos.
70
Dentro dessa perspectiva, torna-se bastante interessante analisarmos o prólogo da
minissérie Grande Sertão: Veredas não apenas como um elemento explicativo das intenções da
minissérie, mas ele próprio como construtor de uma certa visão temática, ideológica e estética do
diretor da minissérie e da rede de televisão.
De uma maneira geral, podemos dizer que os gêneros, sejam eles literários ou televisuais,
ocupam lugar de destaque não apenas por suas características prescritivas ou coercitivas que
agem sobre os sujeitos da comunicação. Esse tipo de visão sobre os gêneros reduz sua real
importância nas relações mediadas pela linguagem, ou seja, em todas as relações entre seres
humanos e nas relações destes com o mundo. Afinal, é por meio do mergulho do indivíduo “na
corrente da comunicação verbal” que a consciência “desperta e começa a operar” (Bakhtin 2002:
108). O despertar se dá por meio de palavras carregadas de intencionalidade, de ideologia que
ganham vida nos enunciados concretos, os quais, por sua vez, só fazem sentido quando inseridos
no quadro dos gêneros do discurso. Gêneros esses mutantes e provisórios, mas, paradoxalmente,
sempre ligados ao passado do ser humano, uma vez que os gêneros do discurso “para o indivíduo
falante (...) têm significado normativo, não foram criados por ele mas dados a ele.” (Bakhtin
2003: 285). Foram dados pela cultura na qual o sujeito está inexoravelmente imerso e a qual
compreende e se faz compreender por meio da interpretação semiótica do mundo e das relações
dos indivíduos no mundo. Essa interpretação de gêneros do discurso e dos gêneros literários
remete-nos a uma compreensão orgânica de sua constituição e de sua pertinência cultural. Não é
possível desvincular uma parte da outra, há uma total impregnação entre os gêneros e a própria
existência “cultural” do ser humano.
Martín-Barbero (2001) compreende os gêneros como matrizes culturais as quais se
relacionam constitutivamente com as diversas esferas da sociedade; inter-relacionam-se por meio
das lógicas de produção, formatos industriais, competências de recepção (consumo). Vistos,
dessa forma, os gêneros medeiam nossa concepção de mundo ao mesmo tempo em que
organizam nossa vida, uma vez que estão impregnados de/em nossa cultura. Aliás, com base
nessa interpretação, poderíamos dizer até que os gêneros são a própria cultura.
Os gêneros televisuais, entendidos com base nessa perspectiva cultural, não devem ser
analisados como simples manifestações de estratégias mercadológicas, ao contrário devem ser
analisados, tanto quanto os gêneros literários, dentro de um quadro teórico amplo que leve em
consideração o caráter dialógico das relações de comunicação.
71
Capítulo 4 – Temas, discurso e enunciação
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com
um determinado coeficiente estético: a posição do autor e seu
desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo em
relação a todos esses valores.
(Bakhtin 2003: 176)
A escolha temática e o acabamento temático denotam não apenas a “vontade” individual
de um artista, nem decorrem de sua apreciação (individual) artística do mundo; ao contrário,
refletem e refratam as diversas mediações implicadas na composição de uma obra artística.
Talvez, a principal mediação seja aquela operada pelo gênero, pois a compreensão do tema
depende de formas relativamente estáveis para se concretizar; e essas formas estáveis estão nos
gêneros do discurso. Enfim, tema e gênero estão imbricados de maneira constitutiva e orgânica.
4.1. Temas
Para a abordagem dos temas da minissérie Grande Sertão: Veredas, adotamos
embasamento teórico fornecido tanto pelos trabalhos de Bakthin (1993, 2002, 2003 e 2005)
acerca de tema, conteúdo, forma e material quanto pelos estudos sobre tema desenvolvidos por
Tomachevski (1976), um dos principais representantes do grupo de estudiosos da linguagem
literária conhecido no ocidente como Formalistas Russos.
Como se sabe a teoria de Bakhtin opõe-se em diversos aspectos aos preceitos defendidos
pelo grupo da Universidade de Moscou. A principal discordância entre eles estaria relacionada ao
fato de que para os Formalistas o que importa é “(...) a literariedade, isto é, aquilo que torna
determinada obra uma obra literária. ” (Jakobson apud Schnaidermann 1976: X). Essa
conceituação promove uma espécie de cisão entre discurso literário e discurso “da vida”, com a
prevalência do primeiro sobre o segundo. Havia nesse movimento uma “herança mecanicista”
(Jakobson apud Schnaidermann 1976: XIII) com a qual Bakhtin não concordava, porém a noção
de tema de Tomacheski prevê uma certa interlocução entre autor e leitor, característica que
estudaremos mais detalhadamente a seguir. Tal noção também é o ponto de partida da análise que
72
se estrutura basicamente nos usos que Bakhtin (2005) faz desse conceito quando analisou a obra
de Dostoiévski
92
.
Porém, é preciso que nos detenhamos um pouco sobre a discordância existente entre
Bakhtin e os Formalistas para situarmos mais claramente nossa opção teórica. Segundo Todorov
(1981: 60),
O relacionamento de Bakhtin com o formalismo (russo) não é simples, é feito de participação e de
oposição. É preciso observar que, nos estudos críticos que ele lhe consagra, durante os anos vinte,
Bakhtin sempre precede suas críticas de uma apreciação global bastante positiva.
Porém, a avaliação positiva de Bakhtin com relação aos estudos empreendidos pelos
formalistas não se restringe apenas às suas opiniões datadas da década de 1920. Ao contrário, ao
que parece, esse conceito positivo parece tê-lo acompanhado até o final da vida conforme
comprova a resposta que deu quando questionado sobre o “estado atual dos estudos literários”:
“Nós temos grandes tradições científicas, elaboradas tanto no passado (....) quanto na época
soviética (Tynianov, Tomachevski, Eikenbaum, Goukovski e outros).” (Todorov 1986: 61)
Frente a essa resposta, Todorov (1986: 61) argumenta que a lembrança dos nomes desses
formalistas pode evidenciar que talvez Bakhtin tenha achado momento oportuno “(...) de registrar
aquilo que os aproxima e o que os afasta.” Mas é o próprio Todorov quem adverte: “Entretanto,
não há nenhuma razão para pensar que ele tenha mudado seu julgamento de base [sobre os
formalistas].” A principal crítica de Bakhtin endereçada aos formalistas refere-se ao fato de que
estes “(...) estão errados em isolar o estudo da literatura do estudo da arte em geral, portanto, da
estética, e, em fim de contas, da filosofia (...)” (Todorov 1981: 61). Segundo Todorov (1981: 62),
Bakhtin identificava nos Formalistas uma “estética do material” que levaria a um trabalho com
“formas vazias e mortas” em que se isolava “a forma do conteúdo”
93
. Todorov chama atenção
92
Além disso, gostaríamos de lembrar juntamente com os tradutores de Questões de literatura e estética ..., nota de
rodapé, p. 10: “É importante não esquecer, porém apesar dessa “recusa polêmica” M. M. Bakhtin formou-se na
mesma ambiência da escola que critica, produziu suas obras no mesmo clima e seguiu caminhos paralelos. Basta ler
por exemplo, um de seus trabalhos mais importantes, Problemas da Poética de Dostoievski, para verificar que foi
estruturado segundo uma orientação bastante próxima da formalista: primeiro, a análise imanente das obras do autor
e depois a sua inserção na série histórico-social.”
Aliás, a respeito dessa obra o prof. Boris Schanaiderman afirma, na introdução do livro Teoria da Literatura:
formalistas russos, p. XX: “Outros trabalhos do formalismo russo estão igualmente exercendo estímulo em nossos
dias, no sentido de uma revisão metodológica fecunda nos estudos literários. É o caso do livro de Mikhail Bakhtin
sobre Dostoievski, aparecido recentemente em tradução italiana.”
93
Irene Machado, O romance e a voz, p. 87-90, apresenta alguns estudos dos Formalistas que teriam servido de
embasamento para a conceituação de determinados aspectos da prosaica dialógica desenvolvida por Bakhtin
73
para o fato de que a crítica de Bakhtin refere-se aos princípios da doutrina formalista, mas não à
atividade real do grupo:
Existe uma diferença notável entre as declarações de princípio dos formalistas, que servem
habitualmente como material de análise a Bakhtin, e as idéias, às vezes implícitas, que se pode
retirar de seu trabalho concreto: enquanto as declarações são apenas uma variante que teria sofrido
influência da lingüística, da estética romântica (notadamente através da noção de “linguagem
poética”), as idéias sugeridas conduzem a uma descoberta de inúmeros aspectos da obra literária
até então ignorados pela crítica, e levam finalmente a renunciar a uma definição lingüística da
literatura. Até mesmo os objetos aos quais o trabalho de Bakhtin será consagrado nos anos
vindouros terão sido aqueles delimitados e submetidos pela primeira vez à análise dos teóricos pelo
trabalho dos formalistas: é o caso da voz narrativa, discutida por Eikhenbaum, ou do diálogo de
textos, discutido por Tyniavov.” (TODOROV 1981: 62) (tradução nossa)
Bakhtin (2003: 177-178) considera impossível dissociar o conteúdo, a forma, o material,
pois, para ele:
A forma não pode ser compreendida independentemente do conteúdo, mas não pode ser
independente da natureza do material e dos procedimentos por ele condicionados. Ela é
condicionada a um dado conteúdo, por um lado, e à peculiaridade do material aos meios de sua
elaboração por outro.
94
Na obra artística, esses três elementos devem ser superados enquanto unidades separadas
e deve ganhar corpo uma nova unidade em que tais elementos deixam de concorrer entre si e
passam a formar um todo artístico novo e único resultante das relações do artista, enquanto
indivíduo e ser social, com o mundo. Portanto, a obra artística é fruto das tensões e das interações
entre esses três elementos que refletem e refratam as relações do artista com o mundo e seus
valores éticos, morais, religiosos, sociais. É importante notar e termos em mente que, para
Bakhtin, o artista nunca é produto do mundo e sim produtor, na medida em que o mundo criado
pelo artista não corresponde ao mundo real. Esse conceito do pensador russo pode ser encontrado
quando ele trata das relações do autor com o mundo nos relatos autobiográficos:
Se eu conto (oralmente ou por escrito) um acontecimento que acabo de viver, no momento em que
conto esse acontecimento, eu já me encontro fora do espaço-tempo em que o acontecimento teve
lugar. Identificar-se absolutamente a si mesmo, identificar seu “eu” com o “eu” que conta (fala) é
94
Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e estética, p. 37, também se refere veementemente à impossibilidade de se
proceder a uma separação entre forma e conteúdo: “(...) poder-se-ia dizer que o conteúdo é um elemento puramente
formal? Já sem falar no absurdo patente, lógico e terminológico de se colocar o termo “forma” em completa negação
com o conteúdo , pois a forma é um conceito correlativo ao conteúdo, que precisamente não é a forma, corre-se é
claro, um perigo metódico, mais grave com semelhante afirmação: nele o conteúdo é compreendido como
substituível do ponto de vista da forma, que não tem nada a ver com a significação ético-cognitiva do conteúdo,
significação esta completamente fortuita no objeto artístico; a forma relativiza totalmente o conteúdo, esse é o
sentido da afirmação que faz do conteúdo um elemento da forma.”
74
tão impossível quanto se levantar a si mesmo puxando os cabelos. Por mais realista e verídico que
seja, o universo representado não pode jamais ser cronotopicamente idêntico ao universo real onde
ocorre a representação, e onde se encontra o autor criador dessa representação” (Bakhtin apud
Todorov 1981: 83) (tradução nossa)
Portanto, o artista ocupa uma posição privilegiada na medida em que se situa fora do
acontecimento que narra/retrata para exprimir-se esteticamente:
Esta exterioridade (mas não indiferentismo) permite que a atividade artística una, formule e
conclua o acontecimento a partir do lado de fora. No interior do próprio conhecimento e do próprio
ato esta unificação e este acabamento são radicalmente impossíveis: nem a realidade do
conhecimento pode permanecer fiel a si mesma e se unir ao dever, nem o dever pode manter a sua
singularidade e se unir à realidade ; é preciso uma posição axiológica substancial fora do
conhecimento cognoscível, imperativo e agente, sobre o qual se poderia efetuar esta unificação e
este acabamento (...).” (BAKHTIN 1993: 36)
Trata-se, portanto, da assunção de uma posição externa que se caracteriza não pela
indiferença, mas antes de tudo pela necessidade de se proceder a um acabamento estético que una
singularidade e realidade. Uma das dimensões desse acabamento estético é fornecida pelo
acabamento temático do discurso. De acordo com Souza (2002: 110):
Em “Discours dans la vie et dans la poésie (1926) pode ser estabelecida uma relação dialógica
entre tema – aquilo de que se fala na vida – e herói aquele de que se fala na obra literária: “toda
palavra realmente pronunciada [...] é a expressão e o produto da interação social entre três
participantes: o locutor (ou autor), o ouvinte (ou o leitor) e aquilo (ou isso) de que falamos (ou
herói).” Esses três participantes – o locutor, o ouvinte, o tema – interagem organicamente. Sendo
assim, os dois últimos – o ouvinte e o tema (herói), aos quais o locutor orienta seu enunciado
concreto, “participam constantemente no acontecimento da criação, o qual não cessa de ser, um
instante sequer, o acontecimento de uma comunicação viva entre eles”.
A questão do acabamento temático volta a ser tratada por Bakhtin no capítulo 7 de
Marxismo e Filosofia da Linguagem, Nesse capitulo, o autor dedica-se à discussão do problema
do tema e da significação. A noção de tema é extremamente importante para a compreensão da
dimensão comunicacional que assume o enunciado na perspectiva dos estudiosos do chamado
círculo de Bakhtin.
Para Bakhtin (2002), é o tema que dá o acabamento específico a um enunciado concreto
considerado como unidade da comunicação verbal; o tema é o responsável pela compreensão que
fazemos de um enunciado como um todo. Para desenvolver esse conceito, o autor apresenta a
distinção entre significação e tema. A significação de um enunciado está ligada ao sentido que se
constrói a partir da compreensão dos elementos da língua, das palavras. Porém, essa significação
75
é provisória, parcial, inacabada, uma vez que é reiterável e idêntica a uma infinidade de
enunciados. Já o tema, é “individual e não reiterável” (Bakhtin 2002: 128) uma vez que “(...) se
apresenta como a expressão de uma situação histórica concreta que deu origem à enunciação.”
(BAKHTIN 2002: 128). Portanto, o acabamento temático de um enunciado está intrinsecamente
ligado à situação histórica concreta em que o mesmo ocorre. Dessa maneira, a compreensão
“completa” de um enunciado se faz por meio do tema que se constrói nas interações humanas.
Conclui-se que o tema da enunciação é determinado não só pelas formas lingüísticas que entram na
composição (as palavras, as formas morfológicas ou sintáticas, os sons, as entoações), mas
igualmente pelos elementos não verbais da situação. Se perdermos de vista os elementos da
situação, estaremos tão pouco aptos a compreender a enunciação como se perdêssemos suas
palavras mais importantes. O tema da enunciação é concreto, tão concreto como o instante
histórico ao qual ela pertence. Somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta,
como fenômeno histórico, possui um tema. (BAKHTIN 2002: 128-129)
Porém, a especificidade e a individualidade do tema não impedem que este se constitua a
partir de “(...) uma certa estabilidade da significação; caso contrário, ele perderia seu elo com o
que precede e o que segue, ou seja, ele perderia, em suma, o seu sentido” (BAKHTIN 2002: 129).
Bakhtin (2002: 129) define tema como “(...) um sistema de signos dinâmico e complexo, que
procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é
uma reação da consciência em devir ao ser em devir.”(grifos do autor)
Visto dessa forma, o tema é o responsável pela compreensão que fazemos de um
determinado enunciado, não são as palavras em si que significam, é o acabamento temático que
torna a comunicação possível. Porém, como vimos, na concepção bakhtiniana, embora único e
irreproduzível, o acabamento temático necessita de certas formas estáveis para se fazer
compreender. Estas formas estáveis são dadas pelos gêneros do discurso:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados
refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional. Todos esses três
elementos – o conteúdo temático, o estilo a construção composicional – estão indissoluvelmente
ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas
cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os
quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN 2003: 261-262) (grifos do autor)
76
Como os gêneros do discurso foram objeto de estudo mais detalhado em capitulo deste
trabalho, gostaríamos de enfatizar que o tema constitui-se em relação direta com os gêneros do
discurso e que ambos devem ser encarados como manifestação da cultura, uma vez que se situam
dentro de um quadro definido pelas relações de comunicação.
Bakhtin, em Problemas da poética de Dostoiévski, emprega a expressão tema numa
acepção mais próxima ao sentido que normalmente se dá a essa categoria nos estudos literários
95
.
Para nos aproximarmos do sentido que Bakhtin imprime a esse termo em suas análises, buscamos
subsídios teóricos nas idéias de seus contemporâneos. Embora, como já dissemos, saibamos que
há diferenças teóricas entre Bakhtin o grupo de estudiosos da literatura conhecido no ocidente
como Formalistas Russos, encontramos nas formulações de Tomachevski (1976) elementos que
nos ajudam a empreender análise dos temas na minissérie Grande Sertão: Veredas.
Tomachevski (1976: 169) considera que “(...) o processo literário organiza-se em torno
de dois momentos importantes: a escolha do tema e sua elaboração.” Porém, a escolha do tema
não é algo que depende exclusivamente do autor. Ao escolher o tema com o qual irá trabalhar, o
autor deve levar em conta o leitor e é este, em última análise, quem determinará (mesmo sem
saber disso) a escolha temática: “a escolha do tema depende estreitamente da aceitação que
encontra junto ao leitor. A palavra “leitor” designa em geral um círculo bastante mal definido de
pessoas, do qual muitas vezes, o próprio escritor não tem um conhecimento preciso”
(Tomachevski 1976: 169-170); porém, “a figura do leitor está sempre presente na consciência do
escritor, embora abstrata, exigindo o esforço deste para ser o leitor de sua obra.” (Tomachevski
1976: 170).
Por intermédio da relação que se estabelece entre escritor e leitor - mesmo que
considerado uma abstração, uma espécie de leitor-modelo na definição de Eco (1986, 1997) -,
pode-se perceber que essa definição de tema admite e espera, como diria Bakhtin, uma atitude
responsiva do leitor. Atitude essa imaginada, prevista e desejada pelo escritor. Segundo
Tomachevski (1976: 170), “essa preocupação com um leitor abstrato traduz-se na noção de
“interesse”. A obra deve ser interessante. A noção de interesse guia o autor já na escolha do
tema.” Porém, a questão de conquistar o interesse do leitor é uma tarefa bastante difícil, já que o
95
Referimo-nos aos trechos em que o teórico russo faz análise de algumas características carnavalescas presentes na
obra de Dostoievski. Sobre o conto O sonho de um homem ridículo, afirma: “Inicia-se o conto com o tema mais
típico da menipéia, isto é, o tema do homem que é o único a conhecer a verdade e por isso todos os demais zombam
dele como de um louco.” (itálico do autor, negrito nosso).
77
leitor, enquanto abstração, não pode ser apreendido como totalidade, uma vez que é composto
pela heterogeneidade cultural característica de nossos tempos. Portanto, a tarefa do autor torna-se
bastante complexa, pois ele, como escritor, partilha com pessoas próximas e colegas de ofício
certos interesses e ambições
96
que se traduzem no respeito e ou na ruptura pelos padrões estéticos
desta ou daquela corrente literária, enquanto o “leitor neutro” pode ter os mais diferentes
interesses em conhecer a obra artística, pode exigir do texto literário apenas qualidades
recreativas, de passatempo ou de interesse mais geral. Assim, para Tomachevski (1976: 171), “o
tema atual, isto é, aquele que trata dos problemas culturais do momento, satisfaz o leitor.”
Nessa perspectiva, não só a escolha do tema, mas também o trabalho que se desenvolverá
a partir dele nascem da tensão autor-campo literário
97
, autor-leitor-modelo, autor-leitor empírico
(Eco 1997). Portanto, a escolha do tema com o qual vai trabalhar não depende unicamente do
autor, ao contrário, está inserida numa intrincada trama de interesses que envolve os diversos
atores de uma complexa relação que se estabelece entre eles. No caso da indústria cultural, e da
televisão em particular, a escolha temática assume proporções gigantescas, pois o autor ou diretor
deverá optar por temas que interessem ao grande público, mas que também satisfaçam
minimamente a crítica especializada da qual, em certa medida, depende parte do interesse que o
público devotará ao programa televisual. Além disso, é preciso, mais do que em qualquer outro
meio, buscar um tema “atual” que possa interessar a um número cada vez maior de
telespectadores, porém como o próprio Tomachevski (1976: 171) adverte:
A forma elementar da atualidade nos é dada pela conjuntura quotidiana. Mas as obras da atualidade
(...) não sobrevivem a este interesse temporário que as suscitaram. A importância desses temas é
reduzida porque não são adaptáveis à variedade dos interesses quotidianos do público.
Inversamente, quanto mais o tema for importante e de um interesse durável, mais a vitalidade da
obra será assegurada. Repelindo assim, os limites de atualidade, podemos chegar aos interesses
universais (os problemas de amor, da morte), que no fundo, permanecem os mesmos ao longo da
história humana. Entretanto, estes temas universais devem ser nutridos por uma matéria concreta, e
96
Cf. B. Tomachevski, Temática, p. 170: “As preocupações de ofício são familiares ao escritor, aos leitores mais
próximos, e pertencem aos móveis mais fortes do desenvolvimento literário. A aspiração a uma novidade
profissional, a uma obra-prima, foi sempre o traço distintivo das maneiras e escolas literárias mais progressistas. A
experiência literária, a tradição à qual se refere o escritor, revelam-se-lhe como uma tarefa legada por seus
antecessores, tarefa cuja realização exige toda a sua atenção.”
97
Usamos essa expressão no sentido proposto por Pierre Bourdieu, em Questões de sociologia. Rio de Janeiro,
Marco Zero, 1983, p. 89 [...] espaços estruturados de posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das
posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes [...]. Há
leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião
possuem leis de funcionamento invariantes” (grifos do autor).
78
se esta matéria não está ligada à atualidade, colocar estes problemas é destituído de interesse.
(TOMACHEVSKI 1976: 171)
Assim, a aceitação de um tema está intimamente ligada à sua atualidade, porém não basta
um tema ser atual para que ele seja fonte de interesse para o público, é necessário que esteja
“nutrido de matéria concreta”, ou seja, que não seja apenas pretexto, mas sim objeto da obra
enquanto expressão artística. Atualidade aqui não está ligada à noção de contemporaneidade, mas
sim à noção de interesse despertado entre os leitores/espectadores. Dessa forma, “(...) temas
históricos podem suscitar talvez maior interesse do que poderia fazê-lo a representação da vida
contemporânea.” (TOMACHEVSKI 1976: 171). Portanto, a atualidade do tema não está ligada
necessariamente a uma história cuja trama se desenvolva na atualidade. Nesse sentido, a
atualidade do tema está presente na maneira como a história lida com os temas e os inter-
relaciona com as experiências e expectativas do público.
A televisão, devido a suas características peculiares, usa e abusa do caráter fragmentado e
provisório contido na atualidade do cotidiano, acompanha-a na sua fragmentação e oferece-a para
degustação de seus telespectadores em doses diárias e em horário certo por meio de formatos
seriados. É o tratamento temático que articula os programas de televisão à realidade cotidiana e à
realidade histórica que envolve os telespectadores. Porém, Tomachevski (1976: 172) adverte
que em literatura (e em televisão, diríamos nós):
Não é suficiente escolher um tema interessante. É preciso sustentar o interesse, estimular a atenção
do leitor. O interesse atrai, a atenção retém. O elemento emocional contribui muito para cativar a
atenção. Não é sem razão que, segundo sua característica, classificam-se em comédias e tragédias
as peças destinadas a agir diretamente sobre um grande público.
Assim, além de um tema interessante é necessário que a trama
98
sustente a atenção do
leitor, essa sustentação se organizará em torno das emoções suscitadas pelas situações vividas
pelas personagens cujas atitudes, sonhos, desejos serão objeto de simpatia ou de antipatia por
parte dos leitores. Tomachevski (1976: 172) lembra que “(...) o elemento emocional encontra-se
na obra, que não é introduzido pelo leitor.” Dessa forma, o tema desenvolvido de maneira a
provocar a emoção do leitor será responsável pela atenção e interesse que o mesmo dedica à obra
literária, ou, em nosso caso, à minissérie. Mesmo esse elemento emocional não escapa ao
98
B. Tomachevski, Temática, Teoria da literatura ..., p. 173, define em nota de rodapé o que é trama opondo esse
conceito ao de fábula: “Na realidade, a fábula é o que se passou; a trama é como o leitor toma conhecimento dele.”
79
contexto da situação sócio-histórica de quem lê um livro ou assiste a um programa de televisão.
Histórias e imagens que poderiam ser chocantes ou desagradáveis para nossos antepassados não o
são mais para nós (e vice-versa talvez). Para compreendermos essa situação, é preciso que
retomemos a noção de tema desenvolvida por Bakhtin (2002: 129) em relação ao enunciado,
segundo a qual “tema é um sistema de signos dinâmico e complexo” e que este sistema é
eminentemente construtor e construto da complexidade com que se tecem as relações de
linguagem dentro das sociedades.
4.2. Discurso e enunciação
A compreensão da linguagem dentro de um paradigma de superação da clássica oposição
saussureana langue/parole fez com que se deixasse de considerar a língua como sistema
ideologicamente neutro e proporcionou uma nova perspectiva para os estudos da linguagem: o
estudo do discurso.
A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como
instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é
interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente (na medida que está engajada
numa intencionalidade) e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia.”
(BRANDÃO 2002: 12)
Dessa forma, o estudo do discurso permite entender a linguagem numa perspectiva de
interação que considera a comunicação não apenas como uma relação entre um emissor e um
receptor, mas “como elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como
forma de engajá-lo na própria realidade” (
BRANDÃO 2002: 12). Nesse sentido, a linguagem,
enquanto discurso, é entendida como espaço de conflito, onde se opera o confronto ideológico,
próprio dos processos histórico-sociais.
Adotamos em nossa análise os conceitos de discurso, enunciação e ideologia de acordo
com as considerações de Bakhtin (1993, 2002, 2003). Bakhtin (1993) aborda a questão do
discurso sob o principio do dialogismo que se apresenta, tanto no texto literário quanto nas
relações mais comuns de interação verbal, perpassado pelos discursos de outrem:
(...) entre o discurso e o objeto, entre ele e a personalidade do falante interpõe-se um meio flexível,
freqüentemente difícil de ser penetrado, de discursos de outrem, de discursos “alheios” sobre o
80
mesmo objeto, sobre o mesmo tema. E é particularmente no processo de mútua-interação existente
com este meio específico que o discurso pode individualizar-se e elaborar-se estilisticamente. ou
no texto das relações. (grifos do autor) (BAKHTIN 1993: 86)
Dentro dessa perspectiva, todo objeto ao qual se refere o discurso está impregnado por
discursos alheios, pois está envolto por:
(...) sua névoa escura ou, pelo contrário, iluminado pelos discursos de outrem que já falaram sobre
ele. O objeto está amarrado e penetrado por idéias gerais, por pontos de vista, por apreciações de
outros por entonações. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente
perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com
eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se outros, cruzando com terceiros; e
tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos,
tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico.” (BAKH
TIN 1993:
86)
O discurso, portanto, não pode ser entendido em toda sua complexidade sem que se leve
em consideração o caráter dialógico das relações de linguagem e de interação social. O discurso
enquanto objeto isolado de seu contexto social e histórico e dos infinitos discursos que o
compõem não existe, é apenas uma idealização que não faz sentido dentro do quadro da teoria
dialógica de Bakhtin, uma vez que:
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e
histórico, não pode deixar de tocar os milhares fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência
ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do
diálogo social. Ele também surge desse seu diálogo como seu prolongamento, como sua réplica, e
não sabe de que lado se aproxima desse objeto. (BAKHTIN 1993: 86)
De maneira coerente, a aproximação que fazemos frente a um determinado objeto é
também tributária das relações dialógicas que se teceram em torno e internamente a esse objeto:
A concepção do seu objeto, por parte do discurso, é um ato complexo: todo e qualquer objeto
“desacreditado” e “contestado” é aclarado por um lado e, por outro, é obscurecido pelas opiniões
sociais muldiscursivas e pelo discurso de outrem dirigido sobre ele. É neste jogo complexo de
claro-escuro que penetra o discurso, impregnando-se dele, limitando suas próprias facetas
semânticas e estilísticas. A concepção do objeto pelo discurso é complicada pela “interação
dialógica”do objeto com os diversos momentos de sua conscientização e de seu e de seu
desacreditamento sócio verbal. A representação literária, a “imagem” do objeto, pode penetrar
neste jogo dialógico de intenções verbais que se encontram e se encadeiam nela; ela pode não
abafá-las, mas, ao contrário, ativá-las e organizá-las. (grifos do autor) (BAKHTIN 1993: 86-87)
Visto dessa forma, todo discurso é produto e produtor de discursos e, por essa razão,
pode-se dizer que é incompleto, incompletude destinada a se repetir ad aeternum, pois é
decorrência do caráter dinâmico e orgânico das relações sociais mediadas pelas diversas formas
81
de linguagem presentes na sociedade, mas, sobretudo, pelas relações mediadas pela plasticidade
da palavra, pois, segundo Bakhtin (1993: 45):
dotando a palavra de tudo o que é próprio da cultura, isto é, de todas as significações culturais
(cognitivas, éticas e estéticas) chega-se bem facilmente à conclusão de que não existe
absolutamente nada na cultura além da palavra, que toda a cultura não é nada mais que um
fenômeno da língua, que o sábio e o poeta, em que medida se relacionam somente com a palavra.
A palavra e o discurso ganham vida por meio do enunciado
99
concreto e não como uma
abstração:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos,
proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados
refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo
(temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e
gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção composicional – estão
indissoluvelmente ligados no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade
de um determinado campo da comunicação. (Bakhtin 2003: 261-262)
Trata-se, portanto, da compreensão do enunciado como um todo que se constrói por meio
das inter-relações que se estabelecem entre o falante as condições sócio-históricas em que o
enunciado tem lugar. Todorov (1981: 65) compreende assim essas inter-relações:
Entre a generalidade do sentido das palavras – tais como as encontramos no dicionário -, das regras
de gramática, e a singularidade do acontecimento acústico que se produz no momento do
pronunciamento do enunciado, organiza-se um processo que permite justamente a ligação dos dois,
e que se denomina enunciação. Esse processo não supõe a simples existência de dois corpos
físicos, o do emissor e o do receptor, mas a presença de duas (ou várias) entidades sociais, que
traduzem a voz do emissor e o horizonte do receptor. O tempo, o espaço onde se produz uma tal
enunciação não são também categorias puramente físicas, mas um tempo histórico e um espaço
social. A intersubjetividade humana se realiza através de cada enunciado em particular. (tradução
nossa - grifos do autor)
Sem entrarmos na discussão acerca das diferenças entre os termos enunciação e enunciado
(já que, de acordo com Paulo Bezerra, o próprio Bakhtin não faz essa distinção), verificamos que
para Bakhtin o enunciado se constrói direcionado e condicionado por duas forças que agem sobre
o indivíduo, a individual e a social. Porém, essa força individual que age sobre o sujeito é ela
própria constituída social e historicamente por meio das relações semióticas que produzem o
99
Segundo o tradutor Paulo Bezerra, Bakhtin não faz diferença entre enunciação e enunciado. Cf. Estética da
Criação Verbal, p. 261, nota de rodapé.
82
surgimento da consciência individual que se constitui durante os processos de interação verbal.
Para Bakhtin (2002: 35-36):
A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um grupo organizado no curso de
suas relações sociais. Os signos são o alimento da consciência individual, a matéria de seu
desenvolvimento, e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica da
comunicação ideológica da interação semiótica de um grupo social. Se privarmos a ciência de seu
conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante, etc.
constituem seu único abrigo. Fora desse material, há apenas o simples ato fisiológico não esclarecido
pela consciência, desprovido do sentido que os signos lhe conferem.
A mediação se dá, portanto, tanto no plano exterior quanto no plano interior:
E preciso insistir sobre o fato de que não somente a atividade mental é expressa exteriormente com
a ajuda do signo (assim como nos expressamos para os outros por palavras, mímica ou qualquer
outro meio) mas, ainda, que para o próprio indivíduo, ela só existe sob a forma de signos. Fora
deste material semiótico, a atividade interior enquanto tal não existe. (BAKHTIN 2002: 51)
Trata-se, portanto, de conceber a mediação semiótica como princípio que rege toda a
constituição do homem como ser social. Daí a centralidade da questão do signo ideológico como
ponto de partida de toda reflexão do teórico russo a respeito da linguagem e do enunciado
concreto.
Cada enunciação que participa de uma “língua única”(das forças centrípetas e das tendências)
pertence também, ao mesmo tempo, ao plurilingüismo social e histórico (às forças centrífugas e
estratificadoras).
Trata-se da língua do dia, da época, de um grupo social, de um gênero, de uma tendência, etc. É
possível dar uma análise concreta e detalhada de qualquer enunciação entendendo-a como unidade
contraditória e tensa de duas tendências opostas da vida verbal.
O verdadeiro meio da enunciação, onde ela vive e se forma, é um plurilingüismo dialogizado,
anônimo e social como linguagem, mas concreto, saturado de conteúdo e acentuado como
enunciação individual” (BAKHTIN 1993: 82)
Dessa maneira, a enunciação individual não pode ser dissociada do todo social e histórico
no qual ela se insere e com o qual dialoga de forma constitutiva e interpretativa. Assim, como
resume Souza (2002: 93), para Bakhtin, o enunciado: se “é concreto, é histórico; se ele é
histórico, é humano; se ele é humano, é social; se ele é social, é ético; se ele é ético, é consciente,
tudo isso em interação orgânica.”
Na realidade, o ato da fala, ou, mais exatamente, seu produto, a enunciação, não pode de forma
alguma ser considerado como individual no sentido estrito do termo; não pode ser explicado a
partir das condições psicofisiológicas do sujeito falante. A enunciação é de natureza social.”
(BAKHTIN 2002: 109) (grifos do autor)
83
Dentro dessa perspectiva, o conceito de ideologia com o qual trabalhamos provém das
discussões de Bakhtin (2002, 2005) acerca da palavra como “(...) fenômeno ideológico por
excelência” (Bakhtin 2002: 37) e do signo como único material possível para a constituição da
consciência. Para Bakhtin (2002: 33) a emergência da consciência só se torna possível por meio
da compreensão semiótica uma vez que:
(...) o signo se opõe ao signo, que a própria consciência só pode surgir e se afirmar como
realidade mediante a encarnação material em signos. Afinal, compreender um signo consiste em
aproximar o signo apreendido de outros signos já conhecidos; em outros termos, a compreensão é
uma resposta a um signo por meio de signos. (grifos do autor)
Forma-se, dessa maneira uma cadeia ideológica por meio da qual cada consciência
individual se comunica com outra consciência individual. Aliás, a própria existência da
consciência é decorrente da compreensão semiótica e, por conseguinte, da função ideológica dos
signos.
No entanto, o ideológico enquanto tal não pode ser explicado em termos de raízes supra ou infra-
humanas. Seu verdadeiro lugar é o material social particular de signos criados pelo homem. Sua
especificidade reside, precisamente, no fato de que ele se situa entre indivíduos organizados, sendo
o meio de sua comunicação.” (BAKHTIN 2002: 35)
Assim, sob essa perspectiva, “fora de sua objetivação, de sua realização num material
determinado (o gesto, a palavra, o grito), a consciência é uma ficção.” (BAKHTIN 2002: 118 –
grifos do autor). Portanto, a intenção francamente ideológica manifestada pelo diretor e adaptador
de Grande Sertão: Veredas encontra repercussão não apenas nos discursos, mas também na
materialidade da minissérie
100
. Materialidade que se traduz por meio da narrativa audiovisual
levada ao ar como produto da indústria cultural. Assim, a análise dos elementos constitutivos da
minissérie: personagens, ambiente, trilha sonora, cenário, diálogos contribuirão para a
compreensão da função social e ideológica da minissérie no quadro mais amplo da cultura
brasileira e mais especificamente da televisão brasileira no ano de 1985.
Porém antes de darmos início a essa análise, gostaríamos ainda de enfatizar que nosso
estudo com relação ao discurso, de forma coerente ao anteriormente exposto, considera-o dentro
de uma perspectiva interdiscursiva, ou seja, como discurso “(...) só adquire significado no interior
100
Segundo Valdemir Miotello, Ideologia in: Bakhtin: conceitos-chave, p. 171, “(...) para Bakhtin o sujeito não se
consitui apenas pela ação discursiva, mas todas as atividades humanas, mesmo as mediadas pelo discurso, oferecem
espaço de encontros de constituição da subjetividade, pela constituição de sentidos.”
84
de um universo de outros discursos, lugar no qual ele deve traçar seu caminho. Para interpretar
qualquer enunciado, é necessário relacioná-lo a muitos outros – outros enunciados que são
comentados, parodiados, citados etc.” (MAINGUENEAU 2002: 55). Afinal, para Bakhtin (2003:
299):
Cada enunciado isolado é um elo na cadeia da comunicação discursiva. Ele tem limites precisos,
determinados pela alternância dos sujeitos do discurso (dos falantes), mas no âmbito desses o
enunciado, como a mônada de Leibniz, reflete o processo do discurso, os enunciados do outro, e
antes de tudo os elos precedentes da cadeia (às vezes os mais imediatos, e vez por outra até os
muito distantes – os campos da comunicação cultural).
Com base nesse quadro teórico, acreditamos que é possível procedermos à analise dos
discursos que envolveram a minissérie Grande Sertão: Veredas tanto em seus aspectos internos
quanto externos. Entendemos, como aspectos internos, o discurso ficcional construído por meio
de um roteiro televisivo que prevê e articula uma sintaxe imagens, diálogos, sonorização,
fragmentação em cenas e episódios; como aspectos externos, entendemos os discursos que tratam
da minissérie sejam eles do diretor, do adaptador ou aqueles presentes nas reportagens sobre a
minissérie.
4.2.1. A identidade na tela de televisão: discurso e enunciação
É a emergência do caráter cronotópico das temporalidades presentes na minissérie Grande
Sertão: Veredas que vinculam inexoravelmente espaços e memórias - individuais e coletivas - às
condições sociais e políticas presentes na minissérie que faz com que ela surja como uma
metáfora da nação que se busca, que procura sua imagem, que procura um conceito para se
entender. Uma nação cujo povo se (re)conhece muito mais pelas imagens e discursos
fragmentados da linguagem televisual do que pelas palavras impressas nas páginas de livros,
confirmando uma tradição de compreensão, já detectada na literatura, muito mais ligada à
oralidade que à escrita, à emoção que à razão. Antonio Cândido (1965: 96) afirma que mesmo a
literatura brasileira, devido à ausência de um público alfabetizado ou “pouco afeito à leitura”
101
(Antonio Cândido 1965: 96):
101
Antonio Cândido, Literatura e Subdesenvolvimento, in: América Latina e sua literatura, p. 346, desvincula a
questão do gosto pela leitura dos índices de analfabetismo. Para ele, não se trata de uma relação direta e simétrica,
mas de algo que deve ser analisado levando-se em conta fatores econômicos e sociais mais amplos. Comentando o
surto editorial verificado nos anos de 1940 no México, Argentina e Brasil o autor afirma: “Talvez possamos concluir
85
(...) formou-se, dispensando o intermédio da página impressa (...) requerendo no escritor certas
características de facilidade e ênfase, certo ritmo oratório, que passou a timbre da boa literatura e
prejudicou entre nós a formação dum estilo realmente escrito para ser lido. A grande maioria dos
nossos escritores, em prosa e verso, fala de pena em punho e prefigura um leitor que ouve o som
da sua voz brotar a cada passo por entre as linhas. (grifos do autor)
Para Antônio Cândido (1965: 96), a literatura brasileira calcada mais na oralidade que na
escrita adotou mecanismos que exploravam essa condição tanto do ponto de vista de estruturação
quanto de temática (nacionalismo). Apropriando-se de um estilo que apelava para a emoção.
Emoção que ecoava na busca de uma autonomia e de uma independência como nação. O público:
(...) sempre tendeu a exigir [a vocação patriótico-sentimental] como critério de aceitação e
reconhecimento do escritor. Ainda hoje, a cor local, a exibição efetiva, o pitoresco descritivo e a
eloqüência são requisitos mais ou menos prementes, mostrando que o homem de letras foi aceito
como cidadão, disposto a falar aos grupos; e como amante da terra, pronto para celebrá-la com
arroubo, para edificação de quantos, mesmo sem o ler, estavam dispostos a ouvi-lo. Condições todas
como se vê, favorecendo o desenvolvimento e penetração coletiva de uma literatura sem leitores,
como foi e é em parte a nossa.. (Antonio Cândido 1965: 96-97)
As palavras de Antonio Cândido, no tocante às características das produções literárias e
do público a que se destinavam, poderiam ser integralmente aplicadas ao discurso de Avancini,
de Durst ou dos produtores da minissérie com relação à importância de se levar a um público de
iletrados uma obra que, de alguma forma, representa a nacionalidade brasileira. A televisão, e, em
certa medida, também a literatura, legitima-se em sua nacionalidade por meio do uso de um tom
patriótico-sentimental que se manifesta nas diversas formas de enunciação presentes ao longo da
programação diária de uma emissora e nas relações que esta mantém com a sociedade.
102
Assim,
desde as conhecidas vinhetas da Rede Globo de Televisão (“Brasil a gente vê por aqui”),
passando pelo tom ufanista característico da transmissão de eventos esportivos em todas as
emissoras (mas sobretudo na Globo) e pelas imagens das aberturas de programas na maioria das
emissoras de televisão.
103
que os maus hábitos editoriais e a falta de comunicação acentuassem além dos limites a inércia dos públicos; e que
havia uma capacidade não satisfeita de absorção.”
102
François Jost discute longamente a questão da enunciação televisual no artigo: “Quand y-a -t’il énnociation
televisuelle” em que considera que há duas vozes que podem ser distinguidas na enunciação televisual: a primeira
delas é constituída pela emissora de televisão, pela grade de programação e pelo discurso da marca.
103
Ocorre isso na quase totalidade das telenovelas e minisséries da Rede Globo de Televisão e de algumas
experiências bem sucedidas em outras emissoras A título de exemplo citamos apenas algumas produções de outras
emissoras que ganharam relevância nacionalmente como Pantanal (1990), na extinta Rede Manchete, Éramos Seis
(1994), no SBT e mais recentemente Prova de Amor (2005-2006) e Cidadão Brasileiro (2006), na Rede Record). Na
86
Jost (1997: 4-5) afirma que há três formas de manifestações enunciativas das redes de
televisão: a da rede, a da grade de programação e a dos programas. Jost (1997: 4) trata a rede
como “intencionalidade e como personalidade do mundo”. Dentro da qual podem ser observados
três tipos de discurso:
(...) o discurso da empresa (sócio-econômico, balanço, etc.); o discurso da instituição (quais são os
objetivos, as missões, o que se quer fazer? etc.); o discurso da marca, que é para nós o mais
importante, uma vez que se define não somente pelo ato ilocutório – dizer alguma coisa -, mas
também por seu objetivo de agir sobre alguém, o que é outra lógica. A rede como marca quer não
somente falar , mas prescrever comportamentos e, portanto, semantizar os objetos do mundo. A
dificuldade, para uma rede, é colocar essas três vozes em uníssono do ponto de vista da entidade
sócio- econômica.
Jost (1997: 5) faz uma ressalva dizendo que admitir que a rede tem um discurso não
significa admitir que ela possui um locutor, mas um enunciador por meio do qual é possível
perceber sua intencionalidade. Dentro do critério da intencionalidade, a construção da imagem de
marca se faz por meio de duas vozes: a primeira delas diz respeito à rede como responsável pela
programação. O pesquisador pode perceber essa intencionalidade por meio da organização e do
ritmo dos programas da grade (seguir o ritmo do telespectador, provocar momentos de
relaxamento, etc.). Essa intencionalidade é construída pelo analista. A segunda voz em que é
possível perceber a intencionalidade da rede é aquela “(...) da rede como pessoa, como ser do
mundo, como instância, como personalidade mais ou menos estável que se manifesta por meio da
logomarca, através da voz das apresentadoras, ou das vozes em off (...).” (JOST 1997: 6)
A voz da rede se aproximaria do ethos aristotélico, ou seja, da vontade de o orador causar
uma boa impressão de si mesmo. “Em termos perfomativos, pode-se dizer que a programação
tenta seduzir o público pela imagem que ela constrói da rede.” (JOST 1997: 6) Nesse sentido,
falar de si mesmo, inclui a fala em off que faz a autopromoção e mesmo a publicidade fora da
televisão. “É tudo que contribui a forjar o que chamamos sua alma.” (JOST 1997: 7 - grifo do
autor)
Portanto, a imagem de marca de uma emissora ou de uma rede de televisão é construída
ao longo do tempo e é determinada pelo entrecruzamento de discursos presentes na sociedade,
sejam da própria rede de televisão, sejam de outros veículos de comunicação (incluem-se aí
gêneros publicitários ou de veículos ligados ao entretenimento e cultura: revistas, livros,
pesquisas); ou seja, todo esse quadro é construído a partir da enunciação característica de cada
rede.
Rede Globo de Televisão a “cor local” está presente em praticamente todas as suas produções por meio da inserção
de cenas externas que primam pelos grandes planos que mostram as “belezas naturais”ou a “grandeza das cidades”.
87
4.2.2. Discurso e enunciação da Rede Globo: o papel articulador do gênero
teledramatúrgico
No Brasil, já se tornou lugar comum falar a respeito do “padrão Globo de qualidade”
como uma marca da emissora líder de audiência. Deve-se compreender que essa expressão não
corresponde apenas a um slogan, mas a uma reestruturação total da grade de programação, da
produção de programas e organização da empresa empreendida pela emissora na década de
1970.
104
Essa expressão pode ser vista como a parte mais marcante de uma espécie de discurso
fundador (Orlandi 2003: 13) na medida em que ele “cria uma nova tradição”, novos sentidos são
incorporados e os antigos sentidos são desautorizados. O enunciado se expande e ganha corpo no
cenário audiovisual brasileiro como discurso fundador de uma nova organização empresarial e
artística, que abandona o amadorismo e o improviso e investe pesadamente - e faz publicidade
disso - no planejamento e na qualidade de seus produtos. Assim, uma emissora que pautava sua
programação por programas de auditório que apelavam para o popularesco transforma sua
imagem operando uma mudança radical tanto em sua programação quanto no discurso por meio
do qual se faz ouvir.
Essa reorientação da Rede Globo atua em todos os segmentos da programação da
emissora: jornalismo, programas infantis, programas humorísticos, telenovelas. Este último, já
considerado o carro-chefe em termos de audiência, recebe especial atenção uma vez que poderia
incrementar a audiência dos programas que o precediam ou o seguiam, sem contar com o reforço
à audiência do Jornal Nacional devidamente colocado entre duas telenovelas.
A teledramaturgia surge como opção mercadológica com a finalidade de obter maiores
índices de audiência, porém é importante estarmos atentos para o fato de que essa opção não se
104
Cf. Renato Ortiz, Sílvia Helena Simões Borelli e José Mario Ortiz Ramos, Telenovela: história e produção.
Eugênio Bucci, in "O mau gosto e o desgosto", copyright Folha de S. Paulo, 5/5/02, acrescenta ainda que o “padrão
Globo de Qualidade” continha preferencialmente a face ideológica de uma emissora totalmente submissa ao governo
militar e que “o padrão Globo de qualidade não era simplesmente uma escolha intencional dos gerentes, mas um
padrão ideológico tornado possível pelo regime autoritário. Não é bem que a liderança da Globo se devesse ao seu
autodenominado padrão de qualidade; era antes o contrário: o tal padrão é que só foi possível porque dispunha de
condições prévias, o monopólio entre elas. (...) O que definiu o o padrão Globo de qualidade foi a necessidade
imperativa de mostrar ao Brasil qual era a cara do Brasil. Era um Brasil de notícias governistas, de regionalismos de
cartão-postal, de ufanismos futebolísticos e, por favor, sem negros nas novelas, sem evangélicos no horário nobre,
sem excluídos desdentados no auditório.”
Disponível em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp080520029.htm
, capturado em 28.04.06.
88
explica apenas em termos estritamente econômicos. Ao contrário, o uso do gênero ficcional com
bases folhetinescas no cinema e na televisão corresponde a toda uma mudança operada no
imaginário do público pelos meios de comunicação de massa. Segundo Morin (2005: 93), essa
mudança ocorre principalmente a partir da década de 1930 quando se dá, no cinema, a introdução
em massa do happy end que opera “uma revolução no reino do imaginário. A idéia de felicidade
se torna o núcleo afetivo do novo imaginário.” Trata-se, portanto, de uma transformação que se
opera na matriz genérica que envolve a indústria cultural: o final trágico passa a ser
sistematicamente substituído pelo final feliz, este sim mais agradável às grandes massas.
O elo sentimental e pessoal que se estabelece entre espectador e herói é tal, no novo clima de
simpatia, de realismo e de psicologismo, que o espectador não suporta mais que seu alter ego seja
imolado. Pelo contrário, ele espera o sucesso, o êxito, a prova de que a felicidade é possível.
Assim, paradoxalmente, é na medida em que o filme se aproxima da vida real que ele acaba na
visão mais irreal, mais mítica: a satisfação dos desejos, a felicidade eternizada,” (MORIN 2005:
93-94) .
Porém, a felicidade não é alcançada de imediato, como o próprio nome diz, trata-se de um
final feliz; final esse que deve ser precedido por toda sorte de problemas para o protagonista. A
tentativa de suplantar esses problemas deve levar o telespectador a se identificar cada vez mais
com as personagens cujos conflitos passam a ser vivenciados emocionalmente pelo telespectador
que, dia após dia, convive com as alegrias e tristezas de um mundo ficcional calcado, geralmente,
sobre a verossimilhança (o que permite uma identificação mais forte entre telespectador e
telenovela) que se manifesta por meio não apenas de temas e de estruturas baseadas na oralidade
do diálogo, mas também pelo detalhamento de situações do cotidiano que criam entre
telespectador e trama uma certa identidade marcada pelos pequenos gestos, pelos anseios
comuns. Segundo Borelli (2001):
A telenovela emerge como um objeto de padrão massivo, constituído em constante diálogo com matrizes
populares (...). Originária de tradições, ao mesmo tempo populares e massivas, das narrativas orais, do
romance-folhetim ou das novelas semanais, das radionovelas, do cinema de lágrimas, e da soap-opera
norte-americana, a telenovela brasileira distingue-se, na atualidade, por ser um produto cultural
diferenciado, fruto de especificidades das histórias da televisão e da cultura popular no Brasil.
Assim, com a adoção da matriz genérica telenovela como elemento definidor de toda sua
grade programação, a Rede Globo consegue se aproximar do público. Dessa forma, o gênero atua
não apenas como mapa ou como modelo prescritivo, mas também como modelo interpretativo de
um mundo construído à semelhança da realidade. O gênero torna-se chave de entendimento do
89
mundo. Nesse sentido, Martin-Barbero (001: 211), referindo-se mais especificamente aos gêneros
cinematográficos, mas, com certeza, podemos ampliar sua afirmação para os gêneros televisuais,
enfatiza que: “(...) o gênero não é somente qualidade da narrativa, e sim o mecanismo a partir do
qual se obtém o reconhecimento – enquanto chave de leitura, de decifração do sentido, e
enquanto reencontro com um “mundo”(...).”
A matriz genérica conduz e, de certa maneira, condiciona nossa compreensão de mundo,
uma vez que delimita os espaços imaginários, direciona interpretações, mas faz isso de uma
maneira tão agradável que somos levados a concordar com Eco (1997: 124): “já que a ficção
parece mais confortável que a vida, tentamos ler a vida como se fosse uma obra de ficção.” e com
sua personagem Jacopo Belbo, de O pêndulo de Foucault, segundo a qual “a Grande Arte [...] nos
mostra [...] o mundo como os artistas gostariam que fosse. Já o folhetim finge brincar e no
entanto nos mostra o mundo como realmente é – ou pelo menos como será.” (apud Eco 1997:
124).
É possível dimensionar o grande valor que a Rede Globo dá à teledramaturgia quando
observamos sua grade de programação. O sucesso do gênero é tamanho que “a emissora criou
uma grade de programação rígida com ênfase absoluta na ficção” (Balogh 2002: 159): Malhação,
novela das seis, novela das sete, novela das oito (e meia) antecedida pelo Jornal Nacional; nas
principais capitais do país a novela das sete é precedida pelo jornal regional. Deve-se acrescentar
ainda que na época em que exibe minisséries, o horário das dez e meia também é ocupado pela
teledramaturgia. Poderíamos ainda mencionar a cota de ficcionalidade ofertada pelos programas
seriados semanais (A diarista, A grande família, Carga pesada) e pelas telenovelas
reapresentadas diariamente no período da tarde no programa Vale a pena ver de novo.
A adoção da teledramaturgia como espinha dorsal de toda a programação produziu efeitos
bastante positivos em termos de rentabilidade para emissora. A equação favorável à Rede Globo
constitui-se por meio da diluição dos altos custos de produção ao longo dos vários meses em que
a telenovela fica no ar que garantem a venda do espaço publicitário a preços que variam de
acordo com a audiência de um determinado segmento de horário/público. Além disso, devem ser
acrescentados os lucros advindos da venda de espaços publicitários dentro da telenovela, o
merchandising, de produtos licenciados e das trilhas sonoras comercializadas pela gravadora
90
Som Livre, braço fonográfico da Rede Globo.
105
Soma-se a tudo isso a grande aceitação que o
gênero tem tido nos mercados internacionais. Mercados esses dominados por algumas poucas
produtoras: Televisa (do México), Rede Globo de Televisão (Brasil), Radio Cadena Nacional de
Colômbia, Venévision Internacional (Venezuela).
106
Entretanto, as cifras milionárias que
dominam o mercado internacional não são superiores aos lucros provenientes da exibição de
telenovelas no país de origem; esse fator faz com que as tramas desenvolvidas pelas telenovelas
continuem a ter a “cor local” e temas que interessem mais de perto aos telespectadores
nacionais.
107
O êxito no país de origem é também componente determinante do valor de venda:
quanto mais sucesso tiver obtido a telenovela em seu país de origem, maior será seu valor de
venda no mercado televisual.
108
Além disso, as telenovelas são responsáveis também por um
outro aspecto bastante importante no que diz respeito à audiência: a fidelidade do telespectador.
A matriz genérica transforma-se em enredo, ganha vida por meio de uma fabulação composta de
conflitos e paixões que geram uma forte identificação com o público que assiste às telenovelas
quase religiosamente todos os dias.
Aliada à força da matriz genérica, temos, na década de 1970, a eclosão de um eixo
temático que se caracteriza pela:
105
Segundo Sílvia H. Borelli, Padrão de produção e matrizes populares, in: V. C. Brittos e C. R. S. Bolaño (orgs.).
Rede Globo: 40 anos de poder e hegemonia, p. 189: “O processo de produção de uma telenovela pode ser
compreendido pela equação baixo custo de produção e alto grau de rentabilidade quando se articulam os valores
gastos na produção (que, paradoxalmente, são altíssimos) ao retorno obtido com verbas publicitárias e de
merchandising. Essa relação transformou a telenovela, e também o Jornal Nacional, nos produtos mais rentáveis da
história da televisão brasileira.”
106
Nora Mazzioti, A força da emoção. A telenovela: negócios, audiências, histórias, p. 387-388, in: Telenovela:
internacionalização e interculturalidade, afirma: “A revista eletrônica TVMAS Magazine calcula que a telenovela
gera um negócio de “130 milhões de dólares ao ano, dos quais 55% a 60% vão para os baús da Televisa.” E citando
dados fornecidos por Daniel Mato, Telenovelas: transnacionalización de la industria y transformaciones del gênero.
In: Canclini, G. , Moneta, Néstor e Carlos (coords.) Las industrias culturales en la integración latinoamericana.
Buenos Aires, Eudeba/Seba, 1999. p. 229-257), Nora Mazzioti continua: “Mato expõe cifras maiores: “Segundo
estimativas confiáveis, em 1997 o total de exportações da Protele (a distribuidora internacional da Televisa do
México) e da TV Globo do Brasil representou aproximadamente uns 100 milhões de dólares para cada uma delas; a
da Radio Cadena Nacional de Colombia, Venevisión Internacional (distribuidora da Venevisión da Venezuela) e
Artear e Telefé da Argentina representou aproximadamente uns 15 milhões para cada uma delas.”
107
Nora Mazzioti, A força da emoção. A telenovela: negócios, audiências, histórias, p. 387-388, in: Telenovela:
internacionalização e interculturalidade, afirma: “Apesar de a venda internacional de telenovelas ser o principal nas
exportações das empresas latino-americanas – por volta de 70% a 80% de suas vendas internacionais -, os
rendimentos mais altos provêm do mercado local, devido ao investimento publicitário. Como nas novelas é
prioritário o êxito local, continua-se produzindo telenovelas orientadas pela repercussão no país de origem.”
108
Nora Mazzioti,, A força da emoção. A telenovela: negócios, audiências, histórias, p. 388-389, in: Telenovela:
internacionalização e interculturalidade, afirma que: “o valor de venda por capítulo não é uniforme, mas entram em
jogo vários elementos. Eles são: o êxito que a novela obteve em seu país de origem; a região geográfica com a qual
está ligada e o alcance regional do canal comprador; a quantidade de títulos que adquire; o valor da fatia publicitária
nesse país; a quantidade média de televisores por habitante.”
91
(...) veiculação de imagens da realidade brasileira; incorpora-se à trama um tom de debate crítico
sobre as condições históricas e sociais vividas pelos personagens; articulam-se, no contexto
narrativo, os tradicionais dramas familiares e universais da condição humana, os fatos políticos,
culturais e sociais significativos da conjuntura no período; esta nova forma inscreve-se na história
das telenovelas como uma característica particular da produção brasileira; e estas narrativas passam
a ser denominadas “novelas verdade”, que veiculam um cotidiano que se propõe crítico, por estar
mais próximo da vida “real” e por pretender desvendar o que estaria ideologicamente camuflado na
percepção dos receptores.” (BORELLI 2001) (grifos da autora)
De uma forma indireta, transfere-se para a ficção a responsabilidade de mostrar a verdade
ou a realidade da vida dos brasileiros, ao mesmo tempo em que a Rede Globo capta para si os
benefícios simbólicos dessa inovação temática. As mudanças implementadas ao longo das
últimas décadas têm tornado a telenovela brasileira um produto altamente lucrativo tanto no
mercado interno quanto no externo, haja vista a grande aceitação que as novelas brasileiras têm
tido no mercado internacional.
109
Porém, engana-se quem acredita que se trata somente de um
programa de televisão qualquer, trata-se do aperfeiçoamento de um gênero visto em sua
amplitude modeladora e interpretativa.
Entretanto, como se trata de um produto cuja matéria prima é marcada pela polissemia do
signo (e talvez, principalmente, o signo lingüístico) torna-se praticamente impossível tentar
controlar todas as possibilidades de significação e interpretação, uma vez que as relações entre
signo e sociedade ocorrem entre os interlocutores concretos que se estabelecem durante a
enunciação. Note-se que falamos em interlocutores e não em emissor e receptor. De acordo com
Bakhtin (2002), os interlocutores são sujeitos plenamente constituídos nas relações de
comunicação, porém não se trata de compreendermos essa relação como uma relação de
alternância, ora a palavra estaria com um locutor, ora com outro; para o estudioso russo, o
processo de comunicação é muito mais complexo, uma vez que seus pilares não estariam
localizados no indivíduo mas sim na situação social, no contexto em que se desenvolve a
enunciação, contexto esse que se integra no todo enunciativo, produzindo-o e moldando-o
esteticamente.
109
A fórmula latino-americana de telenovelas tem sido tão bem sucedida em termos financeiros que até as redes
norte-americanas, mais acostumadas a produzir novelas de poucos capítulos (uma espécie conhecida como
minissérie ou microssérie aqui no Brasil) estão interessadas em testar novelas de duração maior. É o que se veicula
na matéria Globo negocia a produção de novela nos EUA, de Daniel Castro, Folha de São Paulo, Ilustrada, de
28.05.2006, p. E10. As primeiras dessas redes seriam a NBC e a Fox que buscam dessa forma, segundo a
reportagem, conseguir uma maior fidelização do público.
92
É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na
verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto
é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na
palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o
efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um
determinado complexo sonoro.” (BAKHTIN, 2002:132) (grifos do autor)
A estrutura da enunciação e da atividade mental a exprimir são de natureza social. A elaboração
estilística da enunciação é de natureza sociológica e a própria cadeia verbal, à qual se reduz em
última análise a realidade da língua, é social. Cada elo dessa cadeia é social, assim como toda a
dinâmica da sua evolução.” (BAKHTIN 2002:122) (grifos do autor)
Dessa forma, a significação não pertence ao falante ou ao interlocutor, mas sim ao texto
criado entre ambos. O sujeito é socialmente construído num processo de contínua interação com
o outro. Processo que envolve idas e vindas, avanços e retrocessos, reticências, silêncios, o verbal
e o não-verbal e permeia a construção de significação que tornará possível a emergência da
consciência por meio da interação verbal. Porém, essa consciência jamais se encontrará no
indivíduo como ser único, mas sim no individuo que se constitui como tal por meio das relações
sociais constituídas pelo signo lingüístico. Essa definição faz com que compreendamos por que
Bakhtin (2002: 3) considera que o signo ideológico “(...) não é apenas um reflexo, uma sombra
da realidade, mas também um fragmento material dessa realidade.”
Com base nesse referencial teórico, é possível compreendermos como uma emissora tão
fielmente comprometida com o ideário político social dos regimes militares inclui em sua
programação produções
110
que foram incorporando as demandas sociais e simbólicas de seu
público. Produções que demonstravam a percepção artística de autores e produtores que se
consideravam responsáveis pelo “despertar” da consciência da imensa população brasileira que
só tem acesso a bens culturais por meio da televisão. Para uma empresa campo de comunicação,
não é possível manter-se totalmente ao largo das discussões e dos temas que agitam a sociedade.
Assim, as minisséries e telenovelas cujas imagens e tramas valorizam “a cor local”, “o
pitoresco”
111
comportam, muitas vezes, boa dose de crítica social e, portanto, são orientadas
ideologicamente por seus autores/produtores no sentido de permitir ao Brasil se conhecer como
110
Há inúmeras telenovelas e minisséries que poderiam ser incluídas nesta lista, mas vamos nos limitar a citar apenas
O bem amado (1973) que, mais tarde se tornaria seriado, Roque Santeiro (1985), Anos Rebeldes (1992), Bandidos
da Falange (1983).
111
Referimo-nos aqui a telenovelas, minisséries e seriados como Roque Santeiro (1985), O bem amado (1973, 1980-
1984 - telenovela e seriado); Anos Rebeldes (1992); Anos Dourados (1986); Porto dos Milagres (2001) entre muitas
outras.
93
nação. Esse (re)conhecimento permitiria conscientizar o público a lutar contra mazelas como
corrupção, desigualdade social que, na opinião de muitos autores e diretores, impedem que a
nação e o povo se desenvolvam. Respondendo a uma questão de Silva Jr. (2001: 324) sobre quais
eram os objetivos do abrasileiramento das telenovelas: a aproximação com a realidade do público
ou “algo político”, Avancini afirma:
Tinha um pouco de política, claro, como aconteceu em praticamente todas as manifestações
culturais da época
112
. Sofri toda influência de nomes como Walter George Durst, Oduvaldo
Vianna, Túlio de Lemos, que eram membros do Partido Comunista Brasileiro. Evidentemente
recebi toda uma influência ideológica, digamos assim, da qual me orgulho muito porque, a partir
disso, passei a ter maior preocupação social e de identidade brasileira. A idéia era trazer a
teledramaturgia o mais próximo da alma brasileira, não só geograficamente, mas também da nossa
própria identidade de nação
.
Dessa forma, o abrasileiramento da telenovela, de certa forma, também defendido pelos
militares (quando estes orientavam a produção de novelas “históricas” inspiradas em obras
clássicas de nossa literatura) obedece a uma intenção ideológica bastante clara por parte dos
autores e produtores. Essa intenção vai num sentido praticamente oposto àquele previsto pelos
militares - tão amigos da Rede Globo; enquanto, para os militares, a telenovela deveria mostrar
com ufanismo os bons valores da cultura nacional; para os autores, a telenovela deveria servir
como uma forma de o Brasil se conhecer e se discutir como nação (tratamos mais detalhadamente
desse aspecto no capítulo 8).
Percebe-se, portanto, que a partir de um objetivo aparentemente semelhante (“o Brasil se
conhecer” por meio da televisão) constroem-se interpretações diferentes que se concretizarão
pelo estabelecimento de um gênero televisual orientado no sentido de proporcionar mais que
emoção, proporcionar talvez uma outra perspectiva de enxergar a sociedade e as instituições
brasileiras.
Afinal, desde a Retórica de Aristóteles
113
, sabe-se que, para convencer sua platéia, um
bom orador deve fazer uso das paixões
114
, dos sentimentos
115
. Assim, os autores de telenovelas e
112
O diretor se refere ao decênio de 1960.
113
Lembramos aqui as observações de Michel Meyer, A retórica das paixões, p. XLI, a respeito do fato de que as
paixões descritas na Retórica são vistas numa perspectiva de resposta a outra pessoa ou à representação que ela faz
de nós: “ Na Retórica (...) as paixões passam por resposta a outra pessoa, e mais precisamente à representação que
ela faz de nós em seu espírito. As paixões refletem, no fundo, as representações que fazemos dos outros,
considerando-se o que eles são para nós, realmente ou no domínio de nossa imaginação.”
114
Michel Meyer, A retórica das paixões, p. XXXIX-L: “A paixão é decerto uma confusão, mas é antes de tudo um
estado de alma móvel reversível sempre suscetível de ser contrariado, invertido; uma representação sensível do
outro, uma reação à imagem que ele cria de nós uma espécie de consciência social inata, que reflete nossa identidade
94
minisséries (e de outros gêneros artísticos) buscam atingir o público por meio das emoções, das
paixões (no sentido aristotélico) estejam elas relacionadas aos pequenos gestos do cotidiano ou
aos grandes momentos históricos. Busca-se, sobretudo, uma maneira de dialogar com o público
por meio daquilo que lhe é mais sensível: o amor, o ódio, a inveja, a vergonha.
A teledramaturgia consegue estabelecer, dentro do quadro que distingue a grade de
programação e o conteúdo das emissões como instâncias enunciativas (Jost 1997), uma imagem
em até certo ponto “progressista” da Rede Globo uma vez que promove a discussão de temas
considerados tabu dentro da sociedade brasileira como homossexualismo, alcoolismo.
Aproximando-a do ethos aristotélico a que se referiu Jost (1997: 6).
Assim, a partir de objetivos semelhantes traçados por governos militares e pelas redes de
televisão (notadamente a Globo) o gênero teledramatúrgico percorreu caminhos diferentes
daqueles previstos pelos militares e, talvez, pela própria direção geral das Organizações Globo.
Os caminhos trilhados refletem e refratam o cotidiano
116
de uma nação que busca, por meio da
ficção, mesmo sem se dar conta disso, o estabelecimento do diálogo entre as diversas camadas
sociais que compõem a heterogênea sociedade brasileira. Articulavam-se, assim, por meio de
uma matriz genérica, o melodrama
117
, uma filosofia até certo ponto idealista dos criadores de
telenovelas e minisséries e uma perspicaz visão mercadológica no sentido de se empreender a
conquista e a fidelização (de audiência) de um público composto por todas as classes sociais.
tal como esta se exprime na relação incessante com outrem. Reequilíbrio que assegura a constância na variação
multiforme que o Outro assume em sociedade, a paixão é resposta, julgamento, reflexão sobre o que somos porque o
Outro é, pelo exame do que o Outro é para nós. Lugar em que se aventuram a identidade e a diferença, a paixão se
presta a negociar uma pela outra; ela é momento retórico por excelência. Resposta ao Outro a paixão é, por
definição, a própria variação, o que no mais profundo do nosso ser exprime o problemático.”
115
Fato esse também explorado por B. Tomachevski, Temática, p. 172, quando da discussão da problemática do
tema na literatura: “Não é suficiente escolher um tema interessante. É preciso sustentar o interesse, estimular a
atenção do leitor. O interesse atrai, a atenção retém. (...) Suscitar uma emoção é o melhor meio para cativar a
atenção.”
116
Maria Lourdes Motter, Reflexo e refração na arte do cotidiano, s/p., discutindo as relações entre ficção e
cotidiano destaca: “(...) questões desenvolvidas, discutidas ao longo dos seis meses de vida personagem (em tempo
real) implicam uma incorporação do problema, pela ficcional, ao cotidiano real do telespectador por igual período, o
que, se não opera mudanças, pelo menos o induz a refletir sobre elas. Não se trata pois de apenas apontar e denunciar
problemas, mas de demonstrar como eles estão presentes e afetam a vida das pessoas.”
117
Empregamos o termo em seu sentido lato partindo das discussões efetuadas por Martín-Barbero, Dos meios às
mediações.
95
Capítulo 5 – Livros e teledramaturgia: inter-relações
Para que referir tudo no narrar, por menos e menor?
Aquele encontro nosso se deu sem o razoável comum,
sobrefalseado, como do que só em jornal e livro é que se lê.
(GSV: 154)
Historicamente o uso de obras literárias como fonte de inspiração para a elaboração de
telenovelas tem sido uma constante na televisão brasileira. Pesquisadores como Ortiz, Borelli e
Ramos (1988), Guimarães (1995, 1996-97) e Reimão (2004) afirmam que a relação de
dependência da televisão, ou, mais precisamente da telenovela frente à literatura, revelou-se
como uma de suas características mais marcantes já na fase de implantação da televisão no
Brasil.
A relação de dependência a que se referem os autores decorre de questões diversas que
nem sempre possuem sua origem em problemas eminentemente intertextuais no sentido estrito do
termo, ou seja, como transposição ou tradução de um sistema semiótico para outro, usamos aqui a
clássica definição de Jakobson
118
. Boa parte das relações entre literatura e televisão ocorre dentro
da imensa intertextualidade sobre a qual se fundam as sociedades contemporâneas. Nos itens a
seguir, procuramos compreender um pouco das inter-relações que se estabeleceram entre
televisão e literatura na televisão brasileira.
5.1. Do livro para a televisão
No período de 1951-1963
119
, as telenovelas não-diárias tiveram como fontes preferenciais
obras de autores consagrados da literatura nacional e internacional. É preciso lembrar que nesse
118
Para Roman Jakobson, Aspectos lingüísticos da tradução, in: Lingüística e comunicação, p. 64-64, há três tipos
de tradução: “(1) A tradução intralingual ou reformulação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de
outros signos de uma mesma língua. (2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. (3) A tradução inter-semiótica ou transmutação
consiste na interpretação dos signos verbais por meiode sistemas de signos não-verbais.”(grifos do auor)
119
Sandra Reimão, Livros e televisão, p. 18, afirma: “Entre 1951 e 1963, enfocando as telenovelas não-diárias
veiculadas em São Paulo, têm-se 164 produções, sendo que cerca de 95 delas eram adaptações literárias e, destas,
dezesseis eram adaptações de romances de autores brasileiros.”
96
período as telenovelas eram consideradas programas de menor valor cultural e que ocupavam
posição desprestigiada, provisória e inconstante dentro da grade de programação.
Ao contrário das telenovelas, o teatro e o teleteatro eram programas de prestígio e
ocupavam lugar de destaque na programação das emissoras do Rio de Janeiro e São Paulo. Ortiz
(1988: 42) afirma que nessa época havia “(...) dois pólos de legitimidade cultural. Junto à tradição
herdada do rádio, que se traduzia pelos programas humorísticos shows de calouros e novelas,
existia um lado “cultural” marcado pelo teatro e pelo teleteatro.” A situação de prestígio destes
últimos se traduzia em tempo maior na grade de programação, cerca de duas horas, e freqüência
semanal; enquanto as telenovelas ocupavam em torno de vinte minutos e possuíam freqüência
(geralmente duas vezes por semana) e horário irregulares.
Tanto o teatro quanto o teleteatro introduzem na televisão uma lógica que contrasta com o intuito
puro e simples de divertimento ou de maximização da audiência. Eles trazem junto às emissoras
uma preocupação cultural e um prestígio que se fundamenta na consagração das obras clássicas, o
que confere ao próprio meio televisivo uma aura artística que os programas humorísticos ou as
novelas não possuíam. (Ortiz 1988: 43-44)
Dentro desse quadro, é natural que os envolvidos na produção de telenovelas buscassem
dar às suas produções mais prestígio e legitimidade cultural por meio da adaptação
120
de obras
literárias consagradas. O uso sistemático de obras literárias como fonte de inspiração atendia a
três anseios: fornecer uma estrutura narrativa com grandes possibilidades de adaptação para o
novo meio; favorecer a valorização da produção, uma vez que a telenovela se impregnava do
valor e prestígio cultural do autor e da obra literária; favorecer o reconhecimento, por parte do
público, de um produto sem precisar fazer grandes investimentos em propaganda (por exemplo:
para um público culto, ou, pelo menos, escolarizado – que era o dos primeiros tempos da
televisão no Brasil, não é necessário “vender” a qualidade da história de Helena, de Machado de
Assis, ou de Senhora, de José de Alencar). Referindo-se a esse período Reimão (2004: 20)
argumenta:
120
Consideramos, como propõe Anna Maria Balogh, Conjunções, disjunções, transmutações, p. 48, o termo
transmutação, seguindo a definição (que já consta em nota de rodapé deste trabalho) de Roman Jakobson Lingüística
e comunicação, p. 64-65, para os textos traduzidos de um sistema semiótico para outro. Porém, em razão de uma
prática já consolidada nos meios literários e de comunicação, empregaremos indiferentemente também os termos
adaptação ou transposição. No corpus analisado, Avancini fala em transposição e Durst fala em adaptação quando se
referem ao processo de transmutação do livro Grande Sertão: Veredas para o texto de chegada, a minissérie Grande
Sertão: Veredas.
97
Nesse âmbito os romances literários são importantes fontes de enredos telenovelísticos, com
destaque, no que tange a autores nacionais, para autores consagrados: Machado de Assis e José de
Alencar. É sintomático que a primeira telenovela adaptada de um texto literário tenha sido
Senhora, de José de Alencar, como se o novo formato televisivo, a telenovela, desprestigiado até
mesmo no conjunto da programação do próprio veículo, buscasse extrair um pouco de legitimidade
através do “peso cultural” dos autores consagrados. (grifos da autora)
Entretanto, as relações entre literatura e televisão vão se mostrar irregulares nas décadas
seguintes, sobretudo no que diz respeito à literatura nacional. Sob esse aspecto, é interessante
destacar que as obras literárias preferidas para serem objeto de adaptação para a televisão eram as
da literatura estrangeira. “Entre 1953-59 a totalidade das estórias apresentadas são adaptações de
romances ou de filmes estrangeiros.” (Ortiz, 1988: 45). No ano de 1963, a TV Excelsior lança
com autor, diretor e cenógrafo argentinos a primeira telenovela diária: 2-5499 ocupado. É
também no período entre 1963-69 que o número de adaptações de textos literários nacionais cai
ainda mais: das 167 telenovelas diárias produzidas em São Paulo, apenas seis são adaptadas de
textos literários nacionais (Reimão 2004: 21). Esse período caracteriza-se pela tradução de textos
de melodramas de autores latino-americanos e pela adaptação de novelas de sucesso no rádio.
Sobre esse período Guimarães (1995:33) chama atenção para o fato de que os teleteatros e
algumas telenovelas eram fruto de adaptações feitas a partir de uma outra adaptação:
A literatura, portanto, chega à TV principalmente através de adaptações anteriormente realizadas
para o cinema. Às vezes, a partir de adaptações de scripts radiofônicos que, por sua vez, já eram
adaptações de um filme. Ou seja, estamos diante de um processo de adaptação em segundo ou
terceiro grau.
É também interessante notar que, durante as décadas de 1950-1960, as adaptações de
textos estrangeiros também significava do ponto de vista financeiro uma boa alternativa para a
televisão brasileira, visto que os direitos autorais não eram pagos. Para elucidar esse aspecto,
apresentamos a resposta de Walter George Durst dada a Guimarães (1995: XVI) sobre questão
dos direitos autorais nessas décadas:
Era o faroeste. Quem tirasse o revólver primeiro e atirasse, estava tudo bem. Tinha pró-forma a
SBAT. Mas todo mundo sabia que a SBAT recebia o dinheiro, cobrava o dinheiro do direito
autoral e não ia para o autor, ficava para ela mesmo.Tinha uma certa esculhambação. Então a gente
dava um jeito. De vez em quando passava um apuro: “Tal coisa lá, o advogado do fulano de tal
ficou sabendo e vai fazer uma cobrança.” Mas nunca aconteceu. Eu e o Álvaro Moya descobrimos
que nos EUA um produtor tinha resolvido chamar bons autores e fazer um bom número de casos
especiais. Então nós traduzimos e levamos a maioria. (...) Romance russo, por exemplo, nós
usávamos muito e nunca pagávamos direito autoral, porque tinha uma coisa na Rússia que eles não
pagavam direito autoral de ninguém, então podia-se usar romances russos de montes.
98
Segundo Durst, o procedimento de não pagar os direitos autorais também era usado com
autores brasileiros que autorizavam o uso de suas histórias graciosamente tendo em vista somente
os lucros que poderiam advir da publicidade “gratuita” de suas obras na televisão. (Guimarães
1995: XVII). Costume esse que começou a se alterar no final dos anos 1960, quando, segundo
Manoel Carlos
121
, a Rede Globo começou a pagar regularmente os direitos autorais. Nessa época,
outra característica das telenovelas e teleteatros adaptados de obras literárias, principalmente
estrangeiras, é que, em sua grande maioria, eram obras que já haviam sido adaptadas com sucesso
para o cinema conforme pesquisa realizada por Guimarães (1995: 47):
Tanto nas obras infanto-juvenis quanto nos romances voltados ao público adulto observamos a
convivência de autores consagrados da literatura como Alexandre Dumas, pai, Charles Dickens,
Charlotte e Emily Bronte, Victor Hugo e Balzac, com as de autores que se tornaram conhecidos
através do cinema, como Daphne du Maurier e o escritor norte-americano Theodore Dreiser. Essa
convivência sugere não ser propriamente o valor literário do texto que influía na sua escolha para a
adaptação. O prestígio e o sucesso que esses textos adquiriam através do cinema parecem ter sido
o critério mais abrangente. A hipótese se confirma quando verificamos que todos os títulos
estrangeiros adaptados para a TV, tanto os destinados ao público infanto-juvenil quanto aqueles
voltados para o público adulto tinham sido anteriormente adaptados para o cinema. A única curiosa
exceção é a obra de Boris Pasternak, Doutor Jivago, que recebeu versão para telenovela em 1959,
seis anos antes da produção do filme, de 1965.
Porém, mesmo com essa preocupação em atender ao gosto do público, é somente a partir
de meados da década de 1960 que a telenovela surge como a “nova mania nacional” (Ortiz 1988:
62) e ganha cada vez mais espaço na grade de programação e na vida da população que começa a
pautar suas atividades diárias de acordo com o horário das telenovelas
122
. A novela começa a
fazer parte do cotidiano do telespectador. O próximo passo do gênero e, talvez, a razão do seu
sucesso ainda maior junto ao público será colocar o cotidiano dentro da telenovela. Essa será a
marca da telenovela brasileira a partir de 1968 – ano da veiculação de Beto Rockfeller, de Bráulio
Pedroso, na Rede Tupi.
As adaptações de obras literárias para televisão voltam com força a partir de 1975, quando
o Ministro da Educação, Ney Braga, sob o governo do General Geisel, publica o Plano Nacional
de Cultura que propõe a valorização da cultura nacional por intermédio dos meios de
comunicação de massa e em especial da televisão. Assim, não coincidentemente,
121
Cf. Hélio de Seixas Guimarães, Literatura em TV, p. 52.
122
Cf. José M.O. Ramos e Sílvia H.S. Borelli, A telenovela diária.
99
(...) as adaptações literárias atingem seu auge a partir de 1975, quando ganham caráter sistemático.
Até então distribuídas pelas diversas emissoras em programas veiculados em diferentes horários, em
maio daquele ano cria-se um horário dedicado exclusivamente à exibição de telenovelas adaptadas de
obras da literatura brasileira. A iniciativa coincide com o início da exibição das telenovelas em rede
nacional.” (GUIMARÃES 1996-97: 193-194)
Dessa forma, a utilização de literatura nacional como fonte para a produção televisual, que
antes poderia ser explicada em termos de necessidades estéticas e até mesmo comerciais, passa a
ter um caráter nitidamente político objetivando a constituição da identidade nacional de acordo
com os preceitos do regime autoritário instalado no país. Adaptam-se mais obras de autores
brasileiros, “para ilustrar o fato, de 1976 a 1994 foram realizadas 78 adaptações pelas emissoras
de TV. Dessas 78, apenas 4 eram adaptações de obras estrangeiras.” (Guimarães 1996-97: 196).
A Rede Globo de Televisão cria, no ano de 1975, um horário especial para veicular novelas
adaptadas da literatura nacional e denomina esse horário de Faixa Nobre. Guimarães (1996-97:
198) chama atenção para o fato de que:
O projeto de adaptações de textos brasileiros é implementado num período em que as telenovelas
originais estão completamente orientadas para a tematização de questões contemporâneas, como a
vida nas grandes cidades, a violência, a poluição, a especulação imobiliária e também o arcaísmo
do mundo rural, onde ainda prevalecem as relações de submissão aos coronéis locais.
Ao longo das décadas, no Brasil, a adaptação de textos literários para a televisão tem
sofrido alterações determinadas pelo gênero como instância cultural e não apenas como um
modelo prescritivo. Essas mudanças podem ser notadas tanto com relação ao acabamento
temático quanto em termos de estrutura do texto. Temas que estavam presentes de maneira
latente em textos-fonte muitas vezes são expandidos e ganham papel de destaque nos textos
televisuais. Por outro lado, temas cuja abordagem não encontra ressonância na
contemporaneidade da produção televisual são descartados. De certa maneira, essas alterações
refletem e refratam as complexas relações da televisão com a sociedade, relações essas
permeadas pelos gêneros.
100
5.2. Da televisão para o livro
A criação de textos para a televisão fez com que surgisse um novo tipo de literatura:
livros em que se contam as histórias narradas na televisão. Os leitores-telespectadores, sobretudo
na Europa, Estados Unidos e Ásia gostam de ler a história após tê-la visto na televisão. Porém,
mesmo no Brasil há edições em livro de telenovelas de sucesso. O primeiro livro escrito a partir
de uma telenovela de sucesso foi A deusa vencida, de Ivani Ribeiro, e foi escrito por Savério Jr..
A telenovela “romanceada” em livro foi “publicada (...) provavelmente em 1965 ou 1966”
(Reimão 2004: 45), praticamente em simultaneidade com a telenovela (já gravada em videoteipe)
exibida em diversas capitais brasileiras. Segundo Reimão (2004), essa edição, além de atingir um
público mais amplo consumidor desse tipo de literatura que possivelmente não tinha acesso à
televisão, até então praticamente restrita às principais capitais brasileiras, demonstra o surgimento
de um novo tipo de relação do telespectador com a telenovela: uma relação que se baseia não
apenas no conteúdo do texto, mas também na lembrança dos momentos de fruição vividos
durante o período em que assistiu à telenovela:
Trata-se de um material que seria uma recordação para o telespectador dos momentos em que ele
assistiu à telenovela. É um souvenir para ser guardado – memória e certificado de telespectador. É
um livro que não só recorda ao telespectador a novela enquanto tal, mas também é recordação e
atestado de suas sensações enquanto tal, mas também é recordação e atestado de suas sensações
enquanto parte da audiência.” (REIMÃO 2004: 51)
Assim, agrega-se à história transmitida pela telenovela a lembrança da vida do
telespectador naquela época, seus sonhos, seus amores. Ao livro souvenir poderia ser acrescido o
disco contendo a trilha sonora da novela; completando-se dessa forma o itinerário audiovisual
que compõe o espaço simbólico e a memória .
Outras publicações desse gênero só foram ocorrer vinte anos depois, em 1985, quando a
Rio Gráfica Editora, braço editorial da Rede Globo de Televisão, publica a coleção As grandes
telenovelas com doze volumes, cada um contendo uma novela de sucesso da década de 1970.
Essa coleção foi distribuída, num primeiro momento, como brinde na compra de uma marca de
sabão em pó da empresa Gessy Lever e “(...) houve um aumento de 15% na venda do produto. Só
depois dessa promoção é que a Rio Gráfica fez o lançamento comercial para venda em bancas de
jornal.” (Reimão 2004: 61)
101
Em 1987-88, a Editora Globo, substituta da Rio Gráfica Editora, lança a coleção
Campeões de Audiência, com dez volumes, contendo dez telenovelas de sucesso (cinco já
apresentadas na coleção As grandes telenovelas) das décadas de 1970 e 1980. O que se pode
notar por meio do levantamento efetuado por Reimão (2004: 55-57) é que em boa parte das
novelas romanceadas não é citado sequer o nome do adaptador da telenovela para livro. O que
revela, em certa medida, o desprestígio do suporte livro em relação ao suporte eletrônico. Houve
ainda, no final da década de 1980, a edição romanceada da novela ValeTudo, de Gilberto Braga,
Aguinaldo Silva e Leonor Bassères.
Na década de 1990, desaparecem as coleções e surgem edições de duas minisséries de
grande sucesso exibidas pela Rede Globo de Televisão: Anos Rebeldes (Gilberto Braga e Sérgio
Marques, 1992) e Decadência (de Dias Gomes, 1995), a versão romanceada desta última foi
escrita pelo próprio Dias Gomes.
A partir de 2000, tem havido uma grande diversificação no tipo de publicações que se
referem agora não mais às telenovelas, mas sim às minisséries levadas ao ar pela Rede Globo de
Televisão. Segundo Reimão (2004: 72) o material produzido desde então possui características
bem diferentes daquelas que se faziam presentes nas publicações das décadas de 1960 a 1990;
nos livros mais recentes, o principal foco de atenção não é o produto televisual em si, mas,
principalmente, a temática abordada na minissérie:
Pelos títulos (que apresentam inicialmente o tema a ser explicado e só em segundo lugar o produto
televisivo que dá ocasião a esse enfoque), pela seriedade equilibrada da capa e por sua articulação
interna, estes livros/álbuns privilegiam informação. Não mais álbum de recordação de
telespectadores (...), não mais romances que enfatizam personagens e enredos de narrativas
televisivas que talvez o leitor não tenha tido oportunidade de ver (...) Com o acesso ao aparelho de
TV praticamente atingindo o total da população nacional, estes novos álbuns/livros da Editora
Globo investem em outro tipo de filão: a necessidade de informação histórico-cultural de seus
telespectadores.
Enfim, tal como as telenovelas e minisséries, as publicações referentes a elas
transformam-se de acordo com as necessidade e valores da sociedade que as acolhe. Sob essa
perspectiva, é interessante notar o fato mencionado por Lobo (2000: 108-109) de que foram
enviados:
cerca de quarenta compactos de minisséries para a Feira do Livro de Frankfurt, que em 1995 teve o
Brasil como tema. Na sua justificativa o então diretor da Fundação Biblioteca Nacional, Affonso
Romano de Sant’Anna, lembrou que “as produções são de excelente qualidade e serviam de
chamariz para os livros que estavam sendo expostos: imagens de televisão têm grande poder
102
publicitário, atraem mais rapidamente que cartazes e fotos, além de serem relevantes manifestações
da cultura brasileira
.
Um exemplo recente de transformação de publicações nascidas de um programa televisual
pode ser encontrado no lançamento do roteiro (literário) das duas edições da minissérie Hoje é
dia de Maria. Lançado pela Editora Globo em dezembro de 2005, pouco mais de um mês após a
exibição da segunda jornada, o livro apresenta, em 591 páginas, o roteiro completo das duas
jornadas escritas por Luis Alberto de Abreu e Luiz Fernando Carvalho que se basearam na obra
de Carlos Alberto Soffredini. Segundo o site da Rede Globo
123
:
A apresentação da narrativa escrita em formato dramatúrgico pela Editora Globo oferece ao leitor a
oportunidade de entrar em contato com o processo de produção literária da série, e de reviver as
duas jornadas carregadas de simbolismo da pequena Maria. Para aqueles que não acompanharam
os capítulos televisivos, o livro apresenta um vibrante e comovente texto da moderna literatura
brasileira baseado nas raízes mais profundas do imaginário popular. (...) A leitura de uma obra de
dramaturgia é um exercício intelectual e de imaginação que ao longo da história criou personagens
inesquecíveis, referenciais no arcabouço de significados de cada cultura. Esse destino está
certamente reservado à doce Maria, ao sonhador Dom Chico Chicote, à sensual e destemida cigana
Rosicler, e a tantos outros personagens que reconstroem e revitalizam o inesgotável manancial
criativo das lendas e narrativas brasileiras.
É possível percebermos que no discurso da emissora há a valorização do “exercício
intelectual” da leitura de uma obra dramatúrgica que, além desse valor intrínseco, contém as
“raízes mais profundas do imaginário popular” brasileiro. Aliam-se, portanto, na obra literária
duas vantagens para o leitor: o “ganho” cognitivo que o exercício da leitura proporciona e o
conhecimento das “raízes mais profundas” do Brasil. Ambas as competências propostas pelos
editores remetem ao que Bourdieu (2005)
124
denomina valor simbólico das produções culturais
que acabam por legitimar-se com a emergência, na Modernidade, de campos artísticos autônomos
que se retroalimentam num processo praticamente inesgotável. Em outras palavras, o produto
televisual (vendido em DVD) alimenta e instaura uma nova necessidade estética que abarca tanto
o literário quanto o audiovisual. Aparentemente, caem as barreiras entre os campos literário e
televisual, porém simbolicamente cada campo procura captar o prestígio e, paradoxalmente, a
popularidade do outro.
123
Informações disponíveis em http://redeglobo.globo.com/Blog/0,,4875,00.html, capturado em 20.06.2006.
124
Pierre Bourdieu, As regras da arte, p. 153, discutindo “as trocas entre pintores e escritores” ocorridas como
forma de legitimação de seus respectivos campos afirma: “A construção social de campos de produção autônomos
vai de par com a construção de princípios específicos de percepção e de apreciação do mundo natural e social (e das
representações literárias e artísticas desse mundo) (....). (...) Assim, puderam ver-se acumuladas descobertas que,
tornadas possíveis pela lógica específica de um ou outro dos dois campos, aparecem retrospectivamente como perfis
complementares de um único e mesmo processo histórico.”
103
O valor simbólico de se possuir algo assim, no caso do livro, ou, de alguma forma, tomar
conhecimento, no caso, fazendo uso da internet, é, portanto, para o leitor-telespectador, algo
inestimável. Mas mesmo a internet que pode ser aparentemente mais acessível em termos
financeiros também se mostra como mais um incentivo para o leitor comprar o livro, pois quem
vê o livro no site da Rede Globo Internet o observa apenas parcialmente e tem o conhecimento de
que de uma hora para outra que o que viu poderá não mais estar lá; afinal, tudo na internet é
fluido e provisório enquanto o livro impresso continua sendo um suporte relativamente mais
duradouro que as imagens fugidias da rede.
Quando comparamos esse último lançamento literário à primeira investida em livro feita
pelas nossas telenovelas (A deusa vencida) constatamos que a mudança é enorme. O primeiro
título nem mesmo era assinado, enquanto Hoje é dia de Maria não somente é assinado pelos
autores da minissérie como também é lançado com certa “pompa e circunstância”
125
tendo ainda
como argumento para a compra o fato de a minissérie ter sido elogiada por um grande número de
críticos nacionais e estrangeiros (visto que a minissérie foi indicada em quatro categorias do
Prêmio Emmy, “o “Oscar” da televisão”, conforme informa o site da emissora). Além disso, é
preciso que se passe a considerar também a internet como um veículo capaz de produzir no
telespectador uma certa identificação com a minissérie. A Rede Globo mantém em seu site cópias
de páginas do livro, detalhes e fotos dos artistas e bonecos usados na produção. Há também a
reprodução de páginas de um caderno contendo desenhos dos bonecos e anotações feitos de
próprio punho por Luiz Fernando Carvalho; ao lado dos desenhos aparece uma explicação ou,
pelo menos, a motivação para o uso de determinada personagem ou determinado objeto numa
cena específica como vemos abaixo.
125
Encontramos em sites de livrarias e de televisão diversas “chamadas” para o lançamento do livro com a presença
dos autores; no site da livraria Siciliano é possível encontrar até vendas em pré-lançamento. Conforme consta em:
www.siciliano.com.br/livro.asp?tema=2& tipo=2&clsprd=L&id=676738&orn=BPV, acessado em 20.06.06.
104
Figura 6.1 – Página do caderno de anotações de Luiz Fernando Carvalho – Minissérie
“Hoje é dia de Maria”
126
Como se pode observar, não se trata de uma “simples” explicação técnica, trata-se, sim,
do fornecimento de um “mapa” para interpretar determinada cena de acordo com as orientações
de Luiz Fernando Carvalho. Assim, mapeiam-se, os caminhos de compreensão e interpretação
das cenas e, por conseguinte, da minissérie como um todo.
Se, por um lado esse tipo de informação faz com que os telespectadores-leitores penetrem
nas entranhas do processo de criação do artista que idealizou a obra, fazendo com que o leitor de
segundo nível (Eco 1997) estabeleça relações, não se limite apenas a compreender o texto, mas
sim também a relacioná-lo com as intenções do autor, a indagar-se sobre o significado não
imediato das palavras, das cenas, enfim da obra literária ou artística; por outro lado, acreditamos
que esse tipo de informação também atue como um direcionamento de interpretação. Parece-nos
que essas informações restringem os caminhos de interpretação, uma vez que oferece, em certa
126
Disponível no site htto://redeglobo.globo.com/Cdaseriado2/upload/livro.html, acesso em 25.05.2006
105
medida, uma única possibilidade de interpretar determinada opção estética. Perde-se uma das
principais atribuições do leitor: a de inferir
127
. São controlados os seus caminhos para o passeio
inferencial
128
(Eco 1986). O leitor é então submetido aos ditames de um texto produzido com a
finalidade de explicitar a ideologia latente na manifestação artística. Embora, sempre haja
brechas para o leitor-telespectador dialogar com o que lê ou vê, acreditamos que de certa forma
esse tipo de tratamento “dirigido” a uma determinada leitura torna o texto mais “legível” que
“escrevível”, como diria Barthes
129
. Seguindo o raciocínio de Bakhtin (2003), poderíamos dizer
que estamos diante de um processo de monologização do discurso.
Um outro fator a ser levado em consideração no que diz respeito às relações entre
televisão e livro é o que se refere a um redimensionamento da palavra escrita em relação à
imagem produzida artisticamente – no que se refere a desenhos, esboços, fotos, modelos de
bonecos de produtos audiovisuais. Parece-nos que, nas sociedades modernas, a imagem, sobre a
qual já se disse que “valeria por mil palavras”, torna-se refém da palavra escrita que a explica,
que a dimensiona, que a localiza no universo das produções culturais
130
. Há tantas referências,
tantas leituras possíveis que se buscam caminhos para circunscrever o leitor-telespectador no
universo de interpretação desejado.
5.3. Minissérie: gênero e formato
Segundo Balogh (2004), as minisséries brasileiras são la crème de la crème, pois, um
pouco mais protegidas do ritmo acelerado determinado pela produção industrial das telenovelas,
127
Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, p. 98, afirma: “É preciso inferir dos textos coisas que eles
não dizem explicitamente – e a colaboração do leitor se baseia nesse princípio -, mas não se pode fazê-los dizer o
contrário do que disseram.”
128
Umberto Eco, Lector in fabula, p. 99, define passeio inferencial como uma metáfora para “(...) o gesto livre e
franco com que o leitor se subtrai à tirania do texto - e ao seu fascínio – para ir à procura de êxitos possíveis no
repertório do que já foi dito.”
129
Roland Barthes, no livro S/Z, Barthes define dois tipos de texto: o “texto legível” e o “texto `scriptible’”
(escrevível). O texto legível é o que pode ser lido, mas não escrito, não reescrito, é o texto clássico por excelência, o
que convida o leitor a permanecer no interior do seu fechamento. Os textos escrevíveis apresentam ao contrário um
modelo produtor (e não representacional) que incita o leitor a abandonar sua posição tranqüila de consumidor e a se
aventurar como produtor de textos.
130
Estamos no domínio da compreensão mediada por signos; afinal, como afirma Mikhail Bakhtin, Marxismo e
filosofia da linguagem, p. 61: “A atividade mental não é visível nem pode ser percebida diretamente, mas, em
compensação, é compreensível. O que significa que, durante o processo de auto-obervação, a atividade mental é
recolocada no contexto de outros signos compreensíveis. O signo deve ser esclarecido por outros signos.”
106
possibilitam a seus idealizadores realizar uma longa pesquisa prévia. “A reconstituição das
diferentes temporalidades dos micro-universos narrativos representados encarece este tipo de
produto e exige profissionais altamente especializados nas mais diversas funções (...)”
(BALOGH 2005: 195). Esse cuidado na produção se traduz em minisséries com tratamento
estético muito acima da média das telenovelas.
Em termos estruturais, as minisséries brasileiras descendem da telenovela (Pallottini
1998) e possuem como característica principal terem como ponto de partida um “texto fechado”.
Essa característica faz com que sejam definidas como telenovelas fechadas, em oposição às
telenovelas abertas. Ambos os tipos definem-se por oposições, ou seja, à medida que
caracterizamos estruturalmente um, caracterizamos o outro por oposição.
As minisséries possuem como característica primeira o fato de terem o desenvolvimento
da trama e o seu desenlace previstos desde o princípio das gravações. Segundo Martinez (1989:
250), essa clausura do texto faz com que as “funções das personagens est[ejam] rigidamente
estabelecidas e não s[ejam] permutáveis entre elas.” Essa particularidade confere “às personagens
um perfil característico que permite identificações intersubjetivas.” Portanto, ao contrário das
telenovelas abertas, as tramas e as personagens das minisséries possuem uma linha de
desenvolvimento bem delineada desde o começo, o que permite ao diretor e ao elenco de atores
uma exploração mais profunda das situações dramáticas.
Em termos de tratamento dos elementos narrativos, o fechamento do texto também
permite ao diretor um tratamento estético e um acabamento temático mais refinado, uma vez que
não está tratando com um texto em construção. Nota-se, portanto, a indissolúvel relação, que
existe em toda obra de arte, entre forma e conteúdo.
131
Segundo Pallottini (1998: 53), “minissérie
é (...) uma história curta mostrada em episódios, em seqüência, cujo conhecimento total é
necessário à apreensão do conjunto de tal forma que, muitas vezes (...) os capítulos são
precedidos de resumos dos acontecimentos anteriores.”
Intimamente ligado à questão da estrutura dos gêneros surge o conceito de formato em
produtos da indústria cultural, principalmente os televisuais. Entretanto, é preciso buscar
explicações para o sucesso de um ou de outro formato ampliando as discussões para além da
questão empresarial da lógica do mercado. Martín-Barbero (2001: 202) considera que os
procedimentos técnicos adotados em relação às produções televisuais não remetem unicamente “a
131
Cf. Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 178.
107
certos formatos industriais e a certas estratégias comerciais, mas também a um outro modo de
narrar. Não se trata de ignorar a pressão dos formatos ou a habilidade dos comerciantes, mas sim
de recusar-se a atribuir-lhes uma eficácia simbólica que de maneira nenhuma podem explicar.
Portanto, o formato está intimamente ligado ao gênero narrativo como instância de mediação
entre o ser humano e mundo e não apenas a um modo de produção. Gênero e formato
caracterizam-se constitutivamente por uma relação constante e orgânica. Com base nessa
concepção, os formatos estão impregnados por características genéricas; ao mesmo tempo em que
os gêneros também sofrem influência dos chamados formatos industriais. Essa constante
interpregnação transforma características genéricas em formatos por meio dos quais
estabelecemos nossa mediação com o mundo televisual.
5.4. Construindo um gênero e sua linguagem: a minissérie adaptada
É interessante efetuarmos um detalhamento um pouco maior em relação às chamadas
telenovelas adaptadas de textos literários, nosso enfoque recai sobre alguns aspectos referentes à
criação de um texto audiovisual a partir de um texto literário, uma vez que a linguagem literária
se transforma e precisa aclimatar-se ou mesmo desaparecer totalmente para que o gênero
telenovela surja. Para isso, analisamos algumas alterações ocorridas nas novelas apresentadas na
Faixa Nobre da Rede Globo de Televisão. A escolha em trabalhar com essas telenovelas prende-
se a dois fatores: o primeiro deles justifica-se porque foi a partir desse período e horário que as
produções voltaram a ter como texto-fonte os textos da literatura nacional – mesmo que isso não
tenha significado uma opção estética, ao contrário, atendeu mais uma imposição do governo
autoritário que se instalara no Brasil em 1964; o segundo fator deve-se a um maior acesso às
fontes documentais, uma vez que a Rede Globo, como emissora que vem produzindo
teledramaturgia de maneira ininterrupta há mais quarenta anos, tem sido objeto de diversos
trabalhos acadêmicos bem como de uma literatura já bastante extensa produzida pelos estudiosos
da televisão em geral. Além disso, é a Rede Globo que produz a minissérie Grande Sertão:
Veredas e a apresenta como um marco do gênero minissérie dentro de sua grade de programação.
Um dos argumentos mais utilizados pela equipe de produção da minissérie Grande
Sertão: Veredas refere-se ao minucioso trabalho de roteirização que procurou, acima de tudo, a
fidelidade com o texto-fonte; porém, essa preocupação não foi um caso isolado como veremos. A
108
questão da busca da fidelidade em relação às obras literárias transformadas em produtos
audiovisuais é uma constante nas entrevistas de produtores, diretores e adaptadores,
principalmente em relação às primeiras produções de telenovelas
132
do horário das 18 horas na
Rede Globo de Televisão como foi constatado por Guimarães (1995: 82):
Nas primeiras telenovelas do horário das seis, nota-se uma preocupação em reproduzir
textualmente trechos dos romances adaptados. Em Helena, por exemplo, romance de poucos
diálogos, trechos inteiros do narrador são conservados e “distribuídos” entre os personagens da
telenovela. Esse preciosismo, que às vezes produz falas quase cômicas, vai sendo gradativamente
abandonado nas adaptações seguintes. (grifos do autor)
133
É possível observar uma certa mudança nesse discurso já a partir da novela O noviço cuja
trama havia sido baseada não apenas na peça homônima de Martins Pena, mas também em outras
peças do mesmo autor, pois:
para transformar uma peça de pouco mais de uma hora em uma novela de 20 capítulos
várias situações novas tiveram de ser criadas. Para manter o mesmo clima, estas cenas
foram adaptadas de situações encontradas em outras comédias de Martins Pena, todas
escritas no princípio do século XIX, aproveitando assim a autenticidade de costumes e
temperamentos.” (Boletim de Programação da Rede Globo, 24.05.75, apud GUMARAES
1995: 82).
Constata-se nesse trecho que, mesmo tendo sido “obrigada” a fazer concessões devido à
insuficiência de “situações” do texto original, a busca pela fidelidade ganha nova perspectiva que
se manifesta na procura por uma espécie de ambientação da trama no espaço-tempo da obra
original, substitui-se a fidelidade ipsis litteris (e até ipsis verbis) ao texto por uma espécie de
busca pelo air du temps. Portanto, desloca-se a questão da fidelidade ao texto original, que antes
se atinha à questão do uso dos mesmos “diálogos”, e passa-se a usar um novo referencial que não
mais se encontra nas palavras, mas na presença de elementos que remetem a uma “autenticidade
de costumes e temperamentos” do início do século XIX.
132
As duas telenovelas a que nos referimos são, respectivamente: Helena, de Gilberto Braga, baseada na obra
homônima de Machado de Assis. Direção: Herval Rossano. Estréia em 05.05.1975, 20 capítulos. O noviço, de Mário
Lago, baseada na obra de Martins Pena. Direção: Herval Rossano. Estréia: 02.06.1975, 20 capítulos. Senhora, de
Gilberto Braga, baseada na obra homônima de José de Alencar. Direção: Herval Rossano. Estréia 30.06.1975, 79
capítulos.
133
Hélio Guimarães, Literatura em televisão ..., p. 82, analisando os boletins emitidos pela Rede Globo de Televisão
quando do lançamento das telenovelas da Faixa Nobre (18h15min) , constata que o discurso enfatizando a
fidelidade da adaptação em relação ao livro ocorre principalmente em relação a Helena e a Senhora: “Os boletins de
programação apresentam Helena
como uma telenovela que procura ser “fiel ao universo machadiano”e em relação a
Senhora
afirmam que “a maior parte dos diálogos da novela mantém a linguagem de José de Alencar, inclusive com
a repetição das falas encontradas no livro.”
109
As três primeiras telenovelas da Faixa Nobre (Helena, O noviço e Senhora) serviram
como uma espécie de laboratório para que se encontrasse a fórmula ideal de se trabalhar com
textos literários nas telenovelas. Em A moreninha
134
opera-se uma modificação inclusive na
época em que a história se desenrolaria para que se conseguissem (mais) elementos dramáticos
necessários a uma trama novelística cuja duração deveria ser de mais de quatro meses, além do
recurso de se utilizarem outras obras do autor original e de outro autor a ele contemporâneo:
Com o aumento do número de capítulos, cria-se um distanciamento cada vez maior da obra
original. Em A Moreninha (1975) (...), Marcos Rey conta que “embora planejada para ser uma
novela curta, setenta ou oitenta capítulos, o material parecia exíguo demais”. A solução encontrada
por Rey foi retirar material de um outro romance de Joaquim Manuel de Macedo, Memórias da
Rua do Ouvidor , e das Memórias do Rio de Janeiro, de Vivaldo Coaracy. O resultado foi que a
telenovela se passava em 1867-1868, mais de vinte anos depois do tempo ficcional do romance
original. (GUIMARÃES 1995: 82) (grifos do autor)
Essa mudança de localização temporal da história narrada, propiciaria a Marcos Rey a
inclusão de referências sociais e estético-literárias que pudessem ser mais bem absorvidas pelos
telespectadores do século XX:
No plano poético-literário, a transferência da ação da história para vinte e quatro anos após também
oferecia vantagens. Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu já eram saudade, enquanto os
poemas panfletários de Castro Alves já começavam a circular. Assim se poderia criar uma linha
divisória mais nítida entre o ontem e o hoje. Os primeiros e os últimos românticos. Uma mostra
inclusive do choque de gerações, evidenciando que esse é um problema de todas as épocas. Abria-
se ao mesmo tempo um espaço mais largo para citações de poetas e escritores, capitalizando-se o
interesse do telespectador não apenas para Macedo como também para outros autores.
135
Percebe-se, por meio das palavras de Marcos Rey, que sua preocupação não se restringe
apenas a incrementar a história original com conflitos supostamente mais atraentes, mas também
a criar o interesse no telespectador pelos autores originais dos textos citados na telenovela.
Porém, o próprio Marcos Rey, em artigo ensejado pela análise do sucesso da minissérie Grande
Sertão: Veredas, escrito, portanto, mais de dez anos depois da exibição de A moreninha, revela
que nem sempre a relação entre literatura e um meio audiovisual pode servir para capitalizar para
este último audiência e prestígio. Transcrevemos aqui um trecho em que Marcos Rey relata fatos
que ocorreram em 1949 quando trabalhava na Rádio Excelsior (de São Paulo) na época
134
Novela de Marcos Rey baseada em obra homônima de Joaquim Manuel de Macedo. Direção de Herval Rossano.
De 20.10.1975 a 06.02.1976 (79 capítulos). (DG 58)
135
Depoimento de Marcos Rey concedido a Samira Y. Campedelli, Telenovela e Folhetim (dissertação de
mestrado). São Paulo, FFLCH-USP, 1983, apud Hélio de S. Guimarães, Literatura em televisão ...., p. 82-83.
110
recentemente adquirida pelo jornal Folha de S. Paulo. Esse trecho parece-nos representativo de
parte das dificuldades enfrentadas pelos roteiristas nos primeiros tempos da novela radiofônica e
das soluções encontradas para saná-las e, que, em parte, também serviram para delimitar os
discursos que marcariam de forma característica as emissões de novelas radiofônicas e
televisivas.
O diretor artístico da Excelsior, Mário Donato, que até então chefiara os Serviços Unificados da
Folha, viu logo que não poderíamos competir com demais emissoras, principalmente com a Rádio
São Paulo, no setor da novela. Faltava-nos elenco numeroso, autores especializados e o já referido
sotaque, ponto de contato com o grande público. Decidiu-se pela produção de pequenas novelas,
de preferência adaptações de contos e romances nacionais e estrangeiros, na ilusão de que a
qualidade é vizinha do êxito.
136
São necessárias mais que boas idéias ou mesmo que boas histórias, é preciso conversar
com o público, dizer-lhe mais que palavras bonitas; é preciso que essas palavras se tornem signos
prenhes de significação e, para que isso ocorra, atuam fortemente o hábito de escuta, o
reconhecimento, por meio da expressão verbal, dos sentimentos que animam as personagens da
radionovela; é preciso que o público emocione-se e acompanhe as aventuras e desventuras dessas
personagens como se fossem questões capitais para suas próprias vidas. Para que isso ocorra é
necessário que se construa uma linguagem comum baseada em signos e não em códigos. Afinal,
o signo é construído e ganha vida como ato enunciativo articulado dentro de uma composição
genérica que lhe atribui significação, uma vez que “toda situação inscrita duravelmente nos
costumes possui um auditório organizado de uma certa maneira e conseqüentemente um certo
repertório de pequenas fórmulas correntes”(BAKHTIN 2002: 126). Essas “pequenas fórmulas
correntes” advêm de formas estáveis de discurso construídas socialmente por meio das interações
pessoais consideradas num amplo espectro, tanto social quanto histórico.
Segundo Bakhtin (2003), os gêneros do discurso são decorrentes de condições sócio-
históricas e, por isso, não se originam de características individuais de um falante ou de um
escritor, dependem de todo um contexto sócio-cultural para se concretizarem como manifestação
de uma comunidade de falantes ou de escritores. A matriz dos gêneros do discurso é a vida das
interações verbais, da interlocução entre as pessoas, enfim, da língua viva. Portanto, os gêneros
do discurso, regidos por todas as esferas das relações humanas (econômica, social, cultural e
histórica da vida) apresentam variações e classificações que se caracterizam por sua inserção em
136
Marcos Rey, em artigo de sua autoria publicado com o titulo: Tudo é melhor em pequenas doses, Folha de S.
Paulo – Ilustrada, 30.12.85, p. 21.
111
determinada esfera. Pode-se dizer que os gêneros do discurso perpassam todas as áreas do
conhecimento humano e adquirem, em cada uma delas, uma certa tipificação decorrente da
atividade social da área
137
. Assim, a cada atividade humana correspondem alguns gêneros que
lhe são “típicos”.
De certa maneira, é isso que Marcos Rey constata quando diz que como escritor, naquela
época, obteve mais sucesso com outros gêneros do que com a radionovela:
O fracasso é sempre maior quando solapa as boas idéias. A experiência foi muito menor que o
nosso entusiasmo. Verificando que o público radiofônico não se interessava pelos grandes nomes
da literatura, apesar do apoio jornalístico que a Folha nos dava, passamos a criar histórias mais
próximas do gosto popular, menos complexas e um pouco mais apelativas. Da primeira vez,
quando adaptamos ficção consagrada, chamaram-nos de elitistas. Do que nos chamariam agora? A
experiência número dois também deu com os burros n’água, as vozes redondas, os suspiros, os
“ohs!” e os “ahs!” dos folhetins radiofônicos, os imprevistos, as coincidências e os bifes (as longas
falas que serviam para evidenciar as qualidades interpretativas dos atores) e os solos, convulsivos,
de soluções? Disseram, então, os que eram do ramo, antigos radialistas, contratados como
ensaiadores, que linguagem coloquial, seca, direta, monossilábica, de uso cotidiano, não
funcionava nas radionovelas, pois bloqueava os caminhos para o coração. Chamados, desta vez, de
pseudo-intelectuais, abandonamos o gênero, dedicando-nos com mais sucesso ao humorístico, ao
musical, às mesas redondas.
138
É necessário que se trabalhe mais com o gênero que com as palavras, ou, no caso da
televisão, é preciso que as palavras sejam adequadas às imagens, ou que as palavras se
comuniquem visual e auditivamente:
O fato é que a telenovela repudiou de cara a linguagem folhetinesca da radionovela; a grande
maioria dos autores das radiolágrimas tentaram o novo veículo desastrosamente. Poucos
adaptaram-se e ainda estão aí. Seria que a técnica também faz a sua censura? Determina a sua
linguagem? Ainda há pouco Sílvio Santos procurou dar o grande salto para trás, apostando na
mexicanização do gênero, como opção ibopiana. Caiu no vazio. O frio vídeo transforma em caretas
e caricaturas os arroubos sentimentais. A câmera tritura adjetivos e desativa emoções que não
caibam na cara dos atores. E além da linguagem determina o ritmo e o tempo de um lance ou
ação.”
139
137
A teoria da linguagem proposta por Bakhtin não abrange somente a literatura ou os estudos lingüísticos, ao
contrário, abordagem envolve toda a teoria do conhecimento. Susan Petrilli, Bakhtinian categories of literature, in:
Ponzio, A. & Petrilli, S. Philosophy of language: art and answerability in Mikhail Bakhtin, p. 44, afirma: “Para
compreendermos a abordagem de Bakhtin sobre os estudos da linguagem verbal, precisamos lembrar sua insistência
na inexorável conexão entre linguagem, literatura e vida, que é direta e dialética.” E conclui (p. 42): “(...) ao
contrário de outras correntes que reduziam a filosofia da linguagem aos problemas da língua e os separava do
contexto vivo da comunicação social, entendida em termos de compreensão (que é sempre em certa extensão
“compreensão dialógica”, e responsividade ao outro) Bakhtin concebeu a filosofia da linguagem como teoria do
conhecimento, práxis e ideologia desenvolvida à luz da teoria de uma linguagem ao mesmo crítica e dialógica.”
138
Marcos Rey, em artigo de sua autoria publicado com o titulo: Tudo é melhor em pequenas doses, Folha de S.
Paulo – Ilustrada, 30.12.85, p. 21.
139
Marcos Rey, em artigo de sua autoria publicado com o titulo: Tudo é melhor em pequenas doses, Folha de S.
Paulo – Ilustrada, 30.12.85, p. 21.
112
Durst
140
parece ainda mais radical ao ser indagado se ele acreditava que a “telenovela
adaptada de um texto literário conseguia de alguma forma passar alguma coisa de literatura”
141
para o público: “a primeira coisa que tem jogar fora é a literatura, ou seja, o escrever bonito e
bem. Isso não existe. É o cotidiano mesmo. A linguagem da televisão é ação; e o diálogo é seu
instrumento principal. E outra coisa. Os veículos são muito diferentes, não adianta.” No mesmo
depoimento, ao ser questionado se via a literatura apenas como uma fonte de histórias, Durst foi
taxativo: “Só, exatamente. O que o Bressane fez lá no Memórias Póstumas? Ele pegou só o que
ele achou que era cinematográfico, cinemático, só.” (grifo do autor)
Marcos Rey explica ainda que a questão da fidelidade ao original não deve ser uma
premissa a ser observada na transformação, pois estão implicados outros elementos que não
estavam presentes no texto literário:
Não se trata de passar um livro para o braile mas para o mundo das imagens, sons e cores.
romances que se prestam mais que outros à versão eletrônica, porém são os desafios e as
dificuldades que empurram para frente as grandes tarefas. É verdade que nem todas as adaptações
serão tão bem sucedidas como “Morte em Veneza”o foi no cinema, pois envolvem mil problemas
que não são resolvidos simplesmente no papel. Por outro lado, paradoxalmente, não é a adaptação
fidelíssima a melhor. Muitas vezes fidelidade quer dizer falta de criatividade e talento. O que está
no papel na medida justa, no vídeo perde o brilho, expressão, ficando raso, quebradiço, enxuto
demais.
142
Durst
143
, assim como Marcos Rey, considera que há dificuldade de se encontrar um texto
literário que se transforme bem em audiovisual:
É uma coisa rara. Você de fato tem que procurar e, em geral, não encontra pronta, você tem que
completar. Eu vim a saber que depois que compraram Gabriela
, acharam que o livro era um
elefante branco. (...) Mas na verdade Gabriela
tinha um tema formidável: o poder nas suas várias
formas. O coronelismo é um problema brasileiro até hoje. E é uma luta pelo poder que está em
todos os pontos do livro, até mesmo no relacionamento entre Nassif e Gabriela.
Observa-se por intermédio do depoimento de dois talentosos escritores de novelas e
minisséries, Marcos Rey e Durst, que para o sucesso na televisão, além da forma de tratamento
diferenciado que deve receber o texto televisual em relação ao texto literário, é preciso buscar
temas interessantes, desenvolver narrativas, criar intrigas, captar e manter a atenção e o interesse
140
Em depoimento registrado por Hélio de S. Guimarães, A literatura em televisão ...., Anexo p. XXI.
141
Apesar da redundância, reproduzimos parcialmente a pergunta formulada pelo entrevistador.
142
Marcos Rey, Tudo é melhor em pequenas doses, artigo publicado em 30.12.85, Folha de S. Paulo – Ilustrada, p.
21
143
Em depoimento registrado por Hélio de S. Guimarães, A literatura em televisão ...., Anexo p. XXI.
113
do telespectador. Além disso, a questão da fidelidade ao texto original parece algo bastante
discutível e, de certa maneira, totalmente fora de cogitação para os dois escritores.
Porém, o uso de histórias adaptadas de textos literários pode ser visto como uma forma de
aceitação do status quo, como uma espécie de escapismo, como uma forma de fugir da realidade.
Guimarães (1996-97: 198) ressalta que “se às telenovelas originais cabe representar o Brasil
contemporâneo, às adaptações cabe apresentar ao telespectador o Brasil histórico.” Entretanto,
parece-nos importante assinalar que a chave de interpretação de uma obra estética (literária ou
televisual) não se encontra restrita ao espaço-tempo retratado na história, mas se localiza no
espaço da interdiscursividade que instaura, a partir dos significados criados na obra revista por
um adaptador contemporâneo ao telespectador, novas leituras imprimindo novas significações
aos temas tratados, alterando o texto-fonte para que ele se torne legível e agradável para seu
público. Assim, por exemplo, as diversas adaptações de obras literárias como Sinhá Moça (Maria
Dezonne Pacheco Fernandes, escrita na década de 1940) e Escrava Isaura (Bernardo Guimarães,
1875) contêm visões diferentes da escravidão retratada nas obras originais. As adaptações de
Sinhá Moça ou Escrava Isaura contêm também a luta contra o poder dos escravocratas e a luta
pela liberdade dos escravos empreendida pelos abolicionistas, a luta contra a violência em relação
à pessoa humana que, em virtude de um regime econômico e político, é privada de ser dona da
própria vida. Essas preocupações não se faziam presentes, por exemplo, na obra original de
Bernardo Guimarães, que, segundo Bosi (1994: 142),
(...) estava mais ocupado em contar as perseguições que a cobiça de um senhor vilão movia à bela
Isaura que em reconstruir as misérias do regime servil. E, apesar de algumas palavras sinceras
contra as distinções de cor (...) toda a beleza da escrava é posta no seu não parecer negra, mas
nívea donzela (...).
As modificações chegam a ser tão grandes que alguns leitores-telespectadores mais
desavisados quanto aos procedimentos de criação dos roteiristas chegam a ficar frustrados
quando não reconhecem ou não encontram na obra literária os conflitos existentes na telenovela.
Benedito Ruy Barbosa, autor da transposição de Sinhá Moça (1986), afirma: “dei ênfase à
abolição da escravatura. No livro, era pano de fundo.” e constata que houve decepção dos leitores
114
que leram o livro que fora relançado na época de exibição da novela: “teve gente que reclamou,
porque queria ler a história da televisão.”
144
Assim, a título de exemplo, podemos dizer que os cronotopos senzala ou casa-grande
presentes nas duas telenovelas possuem matizes diferentes daqueles constantes nos textos
originais, uma vez que como cronotopos “adaptados” não correspondem às relações construídas
entre espaço-tempo da época da obra literária, uma vez que o cronotopo não é fixo nem rígido;
ele se constrói dinâmica e organicamente no tecido social regido pelos discursos impregnados
pela dimensão dialógica das relações de linguagem. “A arte e a literatura estão impregnadas por
valores cronotópicos de diversos graus e dimensões. Cada momento, cada elemento destacado de
uma obra de arte são estes valores.”(Bakhtin 1993: 349)
145
.
Sobre esse processo de elaboração do texto televisual, Motter (2004b: 89), analisando a
transposição do romance A casa das sete mulheres
146
, afirma:
O roteirista introduz ajustes às necessidades do veículo e do gênero; acrescenta, retira e rearticula
elementos, além de fazer incidir seu ponto de vista sobre a narrativa. Com os recursos de produção,
a minissérie chega para o telespectador com todos os mecanismos de sedução produtores de efeito
de verdade para capturá-lo. Potencializado o lado humano da narrativa amplia-se o grau de
interesse, humaniza-se a história.
Opera-se, portanto, uma profunda transformação na linguagem do texto original que sofre
alterações estruturais com o objetivo de adaptá-lo à linguagem televisual, buscam-se novos
signos, novas formas de relacionar o simbólico e o icônico. Nessa busca, emerge o caráter
cronotópico das relações entre o ser humano (o autor) e o mundo e entre as personagens e o
mundo, relações que o situam dentro de um contexto histórico cultural. “Em arte e em literatura,
todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de
valor emocional.” (BAKHTIN 1993: 349).
144
Em reportagem assinada por Fernanda Dannemann, veiculada em Folha de S. Paulo, de 09.02.03, sob o título
Livros na TV – Metamorfoses, capturada em 30.03.06, do site
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/asp12022003992.htm
145
É interessante observar como Mário Vargas Llosa, em entrevista a Ubiratan Brasil, sob o título de A invenção do
real, O Estado de S. Paulo, Caderno 2, p.D1, 21.11.2004, relaciona a mudança no tratamento do tempo operada nos
romances modernos e a cultura da imagem: “A grande diferença entre a literatura clássica e a moderna é que nesta
última o tempo transcorre veloz e deixa inúteis os intervalos. Aí é que está fundamentalmente a influência da cultura
da imagem. O cinema nos ensinou um tratamento de tempo que antes era inconcebível. Vivemos mais rápido e
construímos romances em que o tempo se sintetiza e a história é narrada por meio de retrocessos e avanços
temporais.”
146
Minissérie adaptada da obra homônima de Letícia Wierzchowski por Maria Adelaide Amaral e Walter Negrão,
veiculada pela Rede Globo de Televisão, no período de 07.01 a 08.04.2003.(DG 377)
115
Portanto, é preciso cautela ao analisar a transposição de obras literárias escritas no
passado (“clássicas”) para a televisão para que não se caia na simples constatação de que se trata
de uma ingênua repetição do já-visto e do já-conhecido. Afinal, “texto literário e programas
televisivos são produções culturais em suportes físicos diferentes que engendram e solicitam
diferentes formas de fruição, apreensão e decodificação.” (REIMÃO 2004: 40)
A partir da década de 1980, surge um novo terreno para a transformação de textos
literários em textos televisuais: as minisséries. Segundo Reimão (2004: 29):
Nas minisséries, o recurso a tramas e personagens advindos de romance de escritores brasileiros
parece ter duas funções básicas: a primeira delas seria fornecer personagens e enredos mais sólidos
que os da média das telenovelas, muitos deles com traços de “época” ou regionalismos que se
destacam em uma produção que se propõe ser mais cinematográfica que televisiva. Uma segunda
função que as minisséries parecem ter, especialmente as oriundas de adaptações literárias, é a de
atuarem como forma de legitimação do veículo TV no conjunto das produções culturais nacionais,
no sistema cultural brasileiro como um todo, um sistema que, cada vez mais, gravita em torno
desse meio.
Para Marcos Rey, o gênero minissérie poderia significar uma possibilidade de abertura de
diálogo entre os chamados intelectuais
147
e os homens que escreviam nas emissoras de televisão:
A minissérie talvez opere o – afinal!- congraçamento entre o intelectual de escritório e o homem de
TV. Os intelectuais do passado atiraram todas as pedras disponíveis nos homens do rádio, mesmo
nos Oswaldo Moles e Walter George Durst. Nem os intelectuais de esquerda perdoavam-lhes essa
feia tendência de escrever para o grande público. A televisão aproximou mais os puros e os
impuros. (...) A minissérie será uma grande divulgadora da literatura nacional, levará muita gente
às livrarias. Vejam o best-seller em que se transformou ‘Grande Sertão: Veredas’.
148
Hoje, passados vinte e um anos da publicação desse artigo, o gênero minissérie tem
conseguido se distinguir dentro do panorama televisual brasileiro como uma opção de ficção
147
Uma ilustração do verdadeiro abismo que se abria entre os intelectuais “puros” e os “impuros” que escreviam para
televisão pode ser encontrada no trecho a seguir em que João Freire Filho, A “Esfinge do Século”..., p. 14, comenta
a opinião de Walter Alves, publicada no Jornal de Letras, de junho de 1962 em que o colunista trata do trabalho de
Dias Gomes na televisão: “Os literatos que malbaratavam seu talento, nos meios de comunicação de massa,
submetendo-se a um trabalho feito às pressas e às demandas e aos veredictos dos patrocinadores, eram
rotineiramente alvo de condenação ou de compaixão: “Dias Gomes, como tantos outros, tem de sentar-se à máquina
pondo a alma de lado, para produzir, obrigado, coisa pior do que o que pode escrever, satisfazendo exigências e
‘forças ocultas’ não reveladas mas ao alcance de quem queira ver” (Walter Alves, Jornal de Letras, “As lições do
‘Pagador’” , junho de 1962, 6)”
148
Marcos Rey, Tudo é melhor em pequenas doses, artigo publicado em 30.12.85, Folha de S. Paulo – Ilustrada, p.
21.
116
fortemente diferenciada das produções habituais que compõem a grade de programação das
emissoras abertas
149
.
149
Vale lembrar que mesmo canais por assinatura de origem estrangeira estão investindo na produção de minisséries
e seriados brasileiros, desenvolvendo um trabalho que começa a ganhar espaço na mídia. É o caso das minisséries
Mandrake (baseada em personagens de Rubem Fonseca) que estreou em 30.10.2005, com oito episódios de 50
minutos, cada um dos episódios foi dirigido por um diretor diferente; e Filhos do Carnaval, roteiro original de Cao
Hamburguer, com seis episódios, foi exibida em março de 2006 e obteve boa avaliação da crítica. Ambas as
minisséries foram produzidas pelo canal HBO. A boa recepção da crítica a esses produtos pode ser atestada pelo
artigo de Etienne Jacintho, Há qualidade fora do padrão Globo, O Estado de S. Paulo, Caderno TV&Lazer p. 4-5, de
05.03.2006.
117
Capítulo 6 – A minissérie Grande Sertão: Veredas
Ah, não é por falar: mas, desde o começo,
me achavam sofismado de ladino.
(GSV: 30)
Dentro do quadro teórico adotado neste trabalho, o estudo da minissérie como gênero
teledramatúrgico deve levar em consideração não apenas o produto audiovisual veiculado pela
Rede Globo de Televisão, mas também o quadro social e político de nosso país em meados da
década de 1980. Período marcado por grandes transformações políticas e agitações sociais,
principalmente em razão da transição de um regime autoritário para um regime democrático.
Transição essa que não se realizou de acordo com as expectativas de grande parte da população
que foi às ruas durante a campanha Diretas-Já. Em 1985, um ano depois desse movimento que
mobilizou o país, a Rede Globo de Televisão comemorou seu vigésimo aniversário e, para isso,
preparou três grandes produções: as minisséries O tempo e o Vento, Tenda dos Milagres e
Grande Sertão: Veredas. É dentro de um quadro fortemente marcado pela discussão dos
problemas nacionais que analisamos a seguir alguns aspectos que envolveram a produção e
veiculação da minissérie Grande Sertão: Veredas.
6.1. Contexto e pretexto
O ano de 1985, na Rede Globo de Televisão, é marcado por produções que tratam de
questões referentes à formação do Brasil e do povo brasileiro. As minisséries levadas ao ar
nesse ano são adaptações de grandes obras da literatura brasileira que versam sobre a formação
do povo e da nação. As minisséries O tempo e o Vento (22.04 a 31.05.1985), Tenda dos
Milagres
150
(29.07 a 06.09.195) e Grande Sertão: Veredas (18.11 a 20.12.1985) mostram a luta
150
Para Narciso Lobo, Mapa da mina ficcional: cenários e emoções nas minisséries, p. 6, a minissérie Tenda dos
Milagres recebeu críticas de muitos setores ligados à defesa dos direitos dos negros no Brasil, pois “a minissérie faz
a defesa do mestiço e do sincretismo, trabalhando com a magia e com a herança africana.” “(...). Ou seja, faz a defesa
da idéia de integração do negro à sociedade brasileira, o que corresponde, em parte à idéia, de que o negro deve
branquear-se para ser aceito. Essa abordagem da problemática racial difere totalmente daquela empregada por Jorge
118
pela terra, a luta pela cidadania e a luta política por intermédio da emoção, da ficção; enfim, da
teledramartugia. A produção e exibição de forma contínua (mais ou menos com dois meses de
diferença entre o término de uma e início da outra) de três minisséries com fortes características
históricas que abordavam os temas acima referidos formaram uma espécie de painel da história e
da cultura brasileira.
As minisséries levadas ao ar até então pela Rede Globo de Televisão compõem um painel
de tramas urbanas e regionais que têm como ponto comum a busca de “fotografar” a
heterogeneidade da alma brasileira. Nessa fotografia, há lugar para o cangaço e o amor entre
Lampião e Maria Bonita (1982); para a luta pelo poder nas grandes corporações, em Avenida
Paulista (1982); para a dificuldade de se manterem relacionamentos amorosos numa sociedade
cada vez mais competitiva entre homens e mulheres em Quem ama não mata (1982); ou para os
sonhos sendo aniquilados pela dureza da realidade em Moinhos de Vento (1983); em Parabéns
pra você (1983), novamente os relacionamentos e as atribulações da vida na cidade grande são
postos em destaque; o regionalismo se faz de novo presente na minissérie Padre Cícero (1984)
que trata do misto de figura mítica e política representado pelo famoso padre de Juazeiro do
Norte; Anarquistas, graças a Deus (1984) mostra o cotidiano e a luta de militantes anarquistas no
primeiro quartel do século XX em São Paulo; já em Meu destino é pecar (1984) o triângulo
amoroso familiar e a temática do adultério ganham destaque nessa adaptação da obra de Nelson
Rodrigues; A máfia no Brasil (1984) mostra uma história de amor com final trágico ambientada
no submundo do crime organizado, a última série de 1984, Rabo de Saia, mostra as aventuras
amorosas e as peripécias de um caixeiro viajante que possuía uma família (composta de mulher e
filhos) em três cidades diferentes.
Por outro lado, é interessante notar que, ainda em 1985, a busca pela representação da
identidade brasileira não era preocupação restrita às minisséries (produções de custo mais
elevado exibidas em horário mais tardio, para um público, supostamente, mais exigente). Mesmo
as telenovelas, que normalmente possuíam histórias mais palatáveis para o grande público,
discutiam a “realidade” brasileira. Característica que tem início, mais fortemente na década de
1970, com o fim do enredo importado e com a valorização do autor brasileiro. Opera-se, então,
Amado no livro original.” Para muitos críticos, a minissérie acabou adotando o ponto de vista de branqueamento dos
negros como forma de integrá-los à sociedade branca hegemônica.
119
segundo Borelli (2001: s/p.), um deslocamento do eixo temático das telenovelas cujos enredos
passam a ter:
(...) imagens da realidade brasileira; incorpora-se à trama um tom de debate crítico sobre as
condições históricas e sociais vividas pelos personagens; articulam-se no contexto narrativo, os
tradicionais dramas familiares e universais da condição humana, os fatos políticos, culturais e
sociais, significativos da conjuntura no período; esta nova forma inscreve-se na história das
telenovelas como uma característica particular da produção brasileira; e estas narrativas passam a
ser denominadas “novelas verdade” que veiculam o cotidiano que se propõe crítico, por estar mais
próximo da vida “real” e por pretender desvendar o que estaria ideologicamente camuflado na
percepção dos receptores. (grifos da autora)
Assim, naquele período, a sonhada integração nacional por meio dos meios de
comunicação de massa trilha caminhos não previstos por seus idealizadores principais: os
militares. A criação artística encontra subterfúgios que escapam à vigilância ideológica, cria
representações da alma brasileira de forma inusitada e até mesmo indesejada pelos militares.
Alma que não se constrói apenas com os heróis de histórias edificantes como se pretendia. Afinal,
o signo “(...) reflete e refrata a realidade em transformação.” (Bakhtin 2002: 41) e é “(...) não
apenas um reflexo, uma sombra da realidade, mas também um fragmento material dessa
realidade.” (Bakhtin 2002: 33) ; assim torna-se difícil acorrentar as formas de arte
151
aos ditames
de regimes ditatoriais; a expressão artística pode hibernar e até mesmo sucumbir por algum
tempo, mas retorna revigoradas e, às vezes, transformada; fugindo ao discurso monológico que se
tentou impor-lhe. Diversas telenovelas veicularam histórias de heróis sem caráter (destacamos,
entre muitas outras, Beto Rockfeller, de Bráulio Pedroso, 1968, Escalada, de Lauro César Muniz,
1975, e Gabriela, de Walter George Durst, 1975; novelas que mostravam, em suas lidas diárias, a
vida de personagens que convivem com as mazelas de um país desigual cujo povo não tinha
(tem) voz.
A minissérie Grande Sertão: Veredas surge no momento em que o país se discutia como
nação e buscava se reorganizar sobre os pilares da democracia representativa e ao mesmo tempo
em que a telenovela Roque Santeiro (1985), de Dias Gomes, colocava na ordem do dia assuntos
como corrupção, coronelismo, mistificação da realidade conforme atestam diversas reportagens
151
Mikhail Bakhtin, Questões de literatura e estética, p. 35, afirma: “O conteúdo representa o momento constitutivo
indispensável do objeto estético, ao qual é correlativa a forma estética que, fora dessa relação, em geral, não tem
nenhum significado. Fora da relação com o conteúdo, ou seja, com o mundo e os seus momentos, mundo como
objeto do conhecimento e do ato ético, a forma não pode ser esteticamente significante, não pode realizar suas
funções fundamentais.” (itálico do autor).
120
da época
152
A telenovela era uma espécie de revanche do autor que, em 1975
153
, tivera a
totalidade da novela Fabulosa Estória de Roque Santeiro e sua Viúva, a que Era Sem Nunca Ter
Sido proibida no dia de sua estréia. Trinta e seis capítulos gravados e já liberados (com muitos
cortes) pela Censura foram proibidos de ir ao ar. A telenovela tinha sido considerada pelos
censores uma “ofensa à moral, à ordem pública e um achincalhe à Igreja"
154
.
Assim, a telenovela Roque Santeiro na versão levada ao ar em 1985 (que também sofrera
cortes por parte da censura ainda vigente) funcionava para o autor como uma espécie de peça de
resistência à repressão dos “anos de chumbo”.
155
A novela estreou em junho de 1985 e acabou em
22 de fevereiro de 1986 (por ironia do destino, uma semana depois, o governo José Sarney lança
o Plano Cruzado, uma espécie de conto do vigário contado ao crédulo povo brasileiro, que se
identifica, nessa perspectiva, aos romeiros enganados pelo conluio da igreja, da viúva e do
coronel da cidade de Asa Branca). A mudança na perspectiva da abordagem temática das
telenovelas e minisséries pode ser percebida no seguinte comentário de Dias Gomes (apud Lobo
2000: 96) em que ele compara os temas presentes na década de 1970 e aqueles em voga em 1985:
“A discussão de probleminhas existenciais (...) não mexia nos pilares do autoritarismo” (apud
Lobo 2000: 96)
Na mesma entrevista, concedida ao jornal Folha de S. Paulo, em 16.08.85, Dias Gomes
justificava o sucesso da temática rural em algumas minisséries afirmando que: “A grande cidade
é cosmopolita, ela não reflete bem a autenticidade que se vê no campo, por isso o rural é a fonte
mais autêntica de representação de brasilidade.” (apud Lobo 2000: 96) Pode-se dizer que esse
discurso se assemelha muito àquele proferido por Avancini no prólogo da minissérie Grande
Sertão: Veredas quando o diretor afirma que “um pouco da obra de Guimarães Rosa nos
aproxima a todos do coletivo brasileiro”.
152
Sobre essas reportagens Narciso Lobo, Ficção e Política: o Brasil nas minisséries, faz um estudo detalhado.
153
Apesar de ter assumido o governo com um discurso pregando a abertura política e “(...) promover a volta dos
militares aos quartéis,” (Boris Fausto, História Concisa do Brasil, p. 271), Geisel toma medidas bastante fortes de
repressão a partidos e militantes de esquerda. É no ano de 1975 que é morto nas dependências do DOI-CODI, em
São Paulo, o jornalista Vladimir Herzog.
154
Essas palavras fazem parte do texto lido por Cid Moreira, no Jornal Nacional, em 27.08.75, data de estréia da
telenovela. A Rede Globo de Televisão foi pega de surpresa, pois já havia feito todos os cortes e alterações
solicitados pelos censores. In:http://historia.abril.com.br/edicoes/32/terrabrasilis/conteudo_125598.shtml#top,
capturado em 03.04.2006.
155
Expressão com que a imprensa passou a se referir ao período mais violento de repressão imposta pelos governos
militares, a publicação da Lei de Segurança Nacional em 1969 representa o marco inicial dessa época. Para um
detalhamento maior das medidas de exceção adotadas nesse período remetemos a Boris Fausto, História concisa do
Brasil, p. 269-282.
121
É o Brasil que busca suas raízes culturais e se discute como nação por meio da televisão.
A televisão é, ao mesmo tempo, o sujeito e o objeto dessas discussões. Afinal, em nosso país, a
televisão é, paradoxalmente, a salvação e a perdição de nossa identidade.
Porém, para compreendermos melhor o clima político e a imagem da Rede Globo que
predominavam em 1985, é preciso que façamos um retorno ao ano de 1984, ano de eclosão da
campanha das Diretas-já que mobilizou, nas principais capitais brasileiras, verdadeiras
multidões de manifestantes a favor da aprovação da emenda constitucional proposta pelo
deputado Dante de Oliveira, a partir das discussões realizadas pelo Partido do Movimento
Democrático Brasileiro. Essa emenda estabelecia eleições diretas para presidente da República.
As manifestações de caráter suprapartidário reuniram milhões de pessoas em todo o Brasil,
principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. O clima nessas manifestações era fortemente
carregado pela emoção conforme relato do jornal Folha de S. Paulo:
Mais de um milhão de pessoas em silêncio, mãos entrelaçadas, braços para cima. Ao sinal do
maestro Benito Juarez, da Orquestra Sinfônica de Campinas, a multidão cantou o Hino Nacional.
Do céu caía papel picado, papel amarelo, a cor das diretas, brilhando à luz dos holofotes. No Vale
do Anhangabaú, muita gente chorou.
156
Porém, a Rede Globo, alinhada com o governo militar, apresentava superficialmente as
manifestações apenas em seus jornais locais, o que gerou insatisfação por parte dos participantes
do movimento. A situação de insatisfação atingiu seu auge quando, em 25.01.1985, aniversário
de fundação da cidade de São Paulo, a emissora dedicou no Jornal Nacional apenas alguns
segundos para falar do comício como se se tratasse de uma manifestação pequena (de um total de
uma matéria de pouco mais de dois minutos em que falou sobre as festividades comemorativas
ocorridas na capital). Fausto (2001: 282) informa que havia mais de 200 mil pessoas nesse
comício. Houve reclamações de todos os partidos políticos participantes e de alguns órgãos de
imprensa sobre a não-cobertura dos fatos pela Rede Globo. Esse episódio ocasionou um grande
questionamento sobre a relação entre a Rede Globo e o governo militar. Foi somente a partir de
então que a emissora passou a dedicar mais tempo em seu noticiário nacional para tratar do
movimento que continuou a crescer de maneira vertiginosa por todo país.
Daí para diante [após o comício no aniversário de São Paulo], o movimento pelas diretas foi além
das organizações partidárias, convertendo-se em uma quase unanimidade nacional. Milhões de
156
Notícia veiculada com o título São Paulo faz o maior comício no jornal Folha de S. Paulo, de 17.04.1984,
disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_17abr1984.htm
, capturado em 10.05.2006.
122
pessoas encheram as ruas de São Paulo e do Rio de Janeiro, com um entusiasmo raramente visto no
país.(FAUSTO 2001: 282)
Em muitos outros comícios que se seguiram a Rede Globo passou a ser hostilizada pelos
manifestantes, como afirma o jornal Folha de S. Paulo:
A multidão em marcha lotou a Sé, a Benjamim Constant, o Viaduto do Chá, a praça Ramos, a
Conselheiro Crispiniano, a São João, o Anhangabaú; muitos bares do caminho ficaram abertos e
não tiveram problemas - apenas lucros. Além dos adversários naturais - o Colégio, os candidatos
indiretos, o governo - só se hostilizou um alvo: a Rede Globo de Televisão, que preparou um
esquema-monstro de cobertura. "O povo não é bobo/fora Rede Globo" foi o slogan mais
utilizado.
157
Assim, a imagem da Rede Globo ficou arranhada para boa parte da população que, de
certa forma, passou a vê-la como um braço do regime militar. Obviamente, tentando reverter esse
quadro de imediato, como já dissemos, a Rede Globo começou a fazer ampla cobertura do
movimento pelas diretas, mas pode-se dizer que sua imagem como defensora da nacionalidade
brasileira e dos valores nacionais que vinha sendo consolidada desde sua fundação sofreu um
forte revés.
Vinte anos depois, em entrevista ao jornalista Roberto D’Ávila
158
, José Bonifácio de
Oliveira Sobrinho (Boni), afirmou:
A campanha das Diretas foi uma censura dupla: primeiro a censura da censura, depois a censura do
doutor Roberto. Como a televisão é uma concessão do serviço público, eles (os militares) sempre
mantinham uma pressão muito grande dentro da televisão. No momento das Diretas-Já eles
ameaçaram claramente a Globo de perder a concessão ou de interferir mais duramente no
entretenimento. Então, o doutor Roberto não queria que se falasse em Diretas-Já. Eu fui o
emissário final do pessoal do jornalismo na conversa com doutor Roberto e ele permitiu que a
gente transmitisse aquilo ali dizendo que havia um show pró-Diretas-Já, mas sem a participação de
nenhum dos discursantes, quer dizer, a palavra e o que se dizia estava censurado.
Observa-se, por meio desse relato, a preocupação que Roberto Marinho tinha em relação a
uma intervenção mais dura da censura sobre sua linha de programas de entretenimento. Fato que
demonstra a força do regime autoritário que ainda se mantinha no poder. Em outro trecho da
entrevista, Boni explica que houve um entendimento entre Roberto Marinho e Roberto Irineu
(filho de Roberto Marinho e diretor da emissora):
157
Notícia veiculada com o título São Paulo faz o maior comício no jornal Folha de S. Paulo, de 17.04.1984,
disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/brasil_17abr1984.htm
, capturado em 10.05.2006.
158
A entrevista foi ao ar no programa Conexão Roberto D’Ávila, TV Cultura-SP, em 28.12.2005, aqui apresentamos
o que foi publicado sobre as declarações de Boni no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, D5, em matéria
assinada por Cristina Padiglione, com o título: Caso Diretas-Já foi “censura dupla, diz Boni, de 30.12.2005,
123
O Roberto Irineu combinou com o doutor Roberto que deixasse transmitir os comícios das Diretas-
Já e que ele (Roberto Irineu) ficaria na sala dele, com o controle na mão, para impedir qualquer
coisa que fosse mais grave. Era um artifício para convencer o doutor Roberto que aquilo podia ir,
tanto que ele foi pra sala dele e jamais cortou alguma coisa. Mas a Globo entrou atrasada na
campanha das Diretas-Já por conta da pressão em cima da principal emissora e por conta do doutor
Roberto Marinho ter algum temor de perder a concessão.
Embora Boni afirme que Roberto Irineu “jamais cortou alguma coisa”, pode-se imaginar
que, talvez, não tenha havido necessidade de cortes porque as notícias passavam antes por uma
“censura prévia” interna na redação dos telejornais.
Assim, é de se supor que o ano de 1985, ano em que a Rede Globo comemoraria seu
vigésimo aniversário, devesse ser marcado pelas cores nacionais, principalmente na
teledramaturgia, o segmento de maior audiência da emissora e, historicamente, o responsável pela
conquista da hegemonia no mercado televisual brasileiro. Aliás, como têm lembrado boa parte
dos comentaristas e pesquisadores dedicados à televisão: o Jornal Nacional tem mais ficção que
as telenovelas. A esse respeito, citamos Renato Janine Ribeiro:
Nos primeiros anos do regime civil, no final da década de 80, era engraçado. Ás oito da noite, o
Jornal Nacional mostrava políticos, em geral nordestinos, que depois de servir a todos os ditadores
se haviam reciclado com a volta da democracia. Apareciam como grandes homens da República.
Meia hora depois, a principal novela da mesma rede Globo – por exemplo, Roque Santeiro
expunha clones deles (um destaque, Sinhozinho Malta) como emblemas do que há de pior em
nossa sociedade. Esse padrão – o noticiário que fazia a pior ficção , mentindo, em contraponto à
novela, que era ficção no varejo mas dizia a verdade no atacado – deve ter-nos enlouquecido um
pouco. Como pode a reportagem mentir, a ficção ser veraz? Como podemos assim trocar os sinais
da verdade e da invenção? o lugar do jornalismo e o do entretenimento?
159
As novelas continuam mostrando mais claramente a realidade brasileira que os programas
em que pretensamente essa realidade deveria ser mostrada e analisada. Entretanto, é importante
lembrarmos que essa aparente inversão de papéis não é um fenômeno brasileiro; ao contrário, ela
já vem ocorrendo e vem sendo debatida há algum tempo. No início da década de 1960, Morin
(2005) analisava as relações entre realidade e imaginário presentes na indústria cultural a partir
das inter-relações de comunicação entre o campo literário e o jornalístico e concluía:
A partir da década dos 30, o novo curso da cultura de massa introduz no meio do setor informativo,
com insistência cada vez maior, determinados esquemas e temas que ele faz triunfar no imaginário.
Em outras palavras, a cultura de massa extravasa o imaginário e ganha a informação. (Morin 2005:
98)
159
Artigo datado de maio de 2002, disponível em http://www.renatojanine.pro.br/Etica/etica.html, capturado em
30.04.2006.
124
São as relações intercomunicantes estabelecidas entre literatura e informação que tornarão
possível o surgimento da notícia espetáculo e do entretenimento realidade. A notícia espetáculo
se vale dos procedimentos folhetinescos e cinematográficos para conseguir sensibilizar a
audiência; enquanto aos programas de entretenimento cabe mostrar a uma proximidade maior
com o público. Morin (2005: 101) traduz assim essa mudança:
Assim, ao mesmo tempo em que a matéria imaginária privilegiada pelo novo curso da cultura de
massa é aquela que apresenta as aparências da vida vivida; a matéria informativa privilegiada é
aquela que apresenta as estruturas afetivas do imaginário. Ao mesmo tempo em que o imaginário
se compromete com o realismo (e eu dou a esse termo não o sentido restrito que ele tomou na
literatura e no cinema, mas um sentido global que o opõe à magia e ao fantástico), a informação
tende a estruturar o acontecimento de modo romanesco ou teatral (cinematográfico, em suma), e
desenvolve uma tendência mitologizante.
Por meio do equilíbrio determinado pelas correlações entre realidade e imaginário,
procura-se estabelecer o vínculo com o grande público; vínculo esse marcado pelo diálogo
proposto pela cultura de massa que “(...) é o produto de um diálogo entre uma produção e um
consumo. Esse diálogo é desigual. A priori, é um diálogo entre um prolixo e um mudo.” (Morin
2005: 46) Porém, como alerta Morin, esse diálogo não se desenvolve de maneira restrita a um
curto período de tempo, ao contrário, o tempo desse diálogo é longo e se efetua constantemente
dialética e complexamente. “A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética
produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade.
(Morin 2005: 47)
Com base nas discussões acima, podemos afirmar que o contexto sócio-político que
marcou toda a primeira metade da década de 1980 - abertura política, crise econômica,
fortalecimento de partidos políticos, eleições diretas para governadores, movimentos organizados
pela volta ao estado de direito, movimentos envolvendo a maioria dos partidos polítcos “de
oposição”, discussão sobre “alinhamento” da Rede Globo com os regimes militares, e a própria
consolidação da Rede Globo como líder absoluta de audiência – forneceu pretexto para a
realização das minisséries com fortes cores nacionais que comemoraram os vinte anos da
emissora.
125
6.2. “No ar mais um campeão de audiência”
Durante a década de 1970 e início dos anos 1980, era com essa expressão que o locutor da
Rede Globo de Televisão anunciava o início dos programas da emissora. Geralmente, essa
locução precedia a apresentação obrigatória do Certificado de Censura expedido pelo Ministério
da Justiça. A expressão se tornou naquela época uma espécie de marca registrada da emissora e
correspondeu, historicamente, ao período em que a rede se firmava como líder de audiência em
vários segmentos de horários, principalmente naqueles em que predominavam as telenovelas.
A busca de audiência, contudo, não se define, no caso da Rede Globo de Televisão, pela
acomodação em termos estéticos, dramáticos ou com relação a recursos tecnológicos. Ao
contrário, a emissora tem demonstrado, ao longo de sua existência, total compreensão do fato de
que em televisão inovação é fundamental, mesmo que seja uma repetição travestida de inovação.
A produção de minisséries de elevada qualidade tanto no tratamento estético quanto na escolha
temática possui papel importante na construção e na afirmação da imagem de uma emissora
competente que, na época de lançamento das minisséries, começava a se firmar como produtora
internacional de programas de televisão, sobretudo de ficção.
A minissérie Grande Sertão: Veredas foi mais um programa campeão de audiência da
emissora obtendo altos índices nas pesquisas realizadas pelo Ibope. Conforme dados publicados
no jornal Folha de S. Paulo,
160
, das treze minisséries da Rede Globo de Televisão exibidas no
período de 1985 a 1994, a minissérie Grande Sertão: Veredas ocupa o sétimo lugar com 28
pontos de audiência. Em termos de análise de audiência torna-se difícil fazer qualquer tipo de
comparação entre as minisséries da década de 80 e as atuais, pois a metodologia para aferição de
audiência sofreu grandes alterações nas últimas décadas. Por isso, os dados referentes à audiência
em nosso trabalho são considerados numa perspectiva de boa aceitação do produto televisual no
momento de sua exibição.
No ano de 1985, a Rede Globo de Televisão produziu três minisséries O Tempo e o Vento,
Tenda dos Milagres e Grande Sertão: Veredas. Porém, as minisséries O Tempo e o Vento e
Grande Sertão: Veredas foram classificadas como superproduções que haviam sido produzidas
para comemorar o vigésimo aniversário da rede. Além disso, essas produções foram saudadas
como exemplos de inovação da estética de televisão.
160
Os dados foram publicados em de 02.06.1996, apud Narciso Lobo, Ficção e política: o Brasil nas minisséries, p.
103.
126
A minissérie O tempo e o vento apresentou em grandes planos a saga da família de Ana
Terra tendo como pano de fundo as batalhas pela posse de terras no sul do país. Já Grande
Sertão: Veredas mostrou o amor proibido entre Riobaldo e Diadorim enfatizando a vida
provisória dos jagunços. Ambas as minisséries são consideradas superproduções e até figuram
com destaque na história da emissora. O tempo e o vento recebeu o prêmio Coral Negro de
Melhor Vídeo no Festival de Cinema e Vídeo de Havana, em 1986, e foi reapresentada três vezes
no Brasil (1986, 1991 - em versão compacta de dez capítulos- e 1995). Em 2005, a Rede Globo
lançou um DVD contendo a saga gaúcha e um CD foi editado com as músicas de Antonio Carlos
Jobim especialmente compostas para a minissérie.
Segundo Lobo (2000: 104), cada um dos episódios de O tempo e o vento custou 48 mil
dólares, enquanto para cada capítulo de Grande Sertão: Veredas o custo foi estimado em 18 mil
dólares, o que situa essa produção entre as minisséries de menor custo por capítulo. Ainda, de
acordo com Lobo (2000: 104), o custo mais alto por capítulo foi o da minissérie A.E.I.O. ... Urca:
192 mil dólares por capítulo. Já a minissérie Desejo foi a de menor custo por capítulo na Rede
Globo: 16 mil dólares. Os dados recolhidos pelo autor vão de 1985 a 1995. No entanto, em nossa
pesquisa, encontramos uma notícia de jornal que apresentava a minissérie Grande Sertão:
Veredas como “A maior produção em vídeo em todo o mundo”
161
em que se fala de um
orçamento bilionário. Registramos a divergência, porém tendemos a acreditar que houve, na
época de sua produção, um superdimensionamento dos custos da minissérie como parte de uma
estratégia de marketing
162
para explicitar a grandiosidade do projeto fato que, com certeza, era
verdadeiro. Por isso, de acordo com nossa pesquisa, não é possível estabelecer o custo da
minissérie, principalmente se levarmos em conta que em 1985 já vivíamos um processo incomum
de inflação monetária.
Boa parte dos altos custos da minissérie deveu-se à opção feita pelo diretor e pela equipe
de produção de filmar toda a minissérie em locações em Minas Gerais. A busca pelo local ideal
para a base de trabalho começou em dezembro de 1984 (quase um ano antes da exibição da
minissérie) quando Luiz Carlos Laborda, produtor executivo do projeto, viajou (depois de já
161
Jornal da Tarde, p. 15, de 04.06.85, matéria assinada por Pedro Costa.
162
Na reportagem a que aludimos (A maior produção em vídeo do mundo), fala-se num orçamento de Cr$ 4,7
bilhões para a minissérie. Em outra matéria, dessa vez veiculada no Jornal do Brasil de 18.11.85, caderno B, p. 6,
Miriam Lage, fala em um custo de Cr$ 6 bilhões.
127
definidos elenco, concepção cenográfica e de figurinos, locações) para o sertão de Minas.
Laborda resume assim sua procura:
Não podíamos realizar GRANDE SERTÃO: VEREDAS fora do mato (...) Tinha que ser
realmente no sertão. Mas, para isso, precisávamos encontrar um lugar com infra-estrutura para
instalar a nossa base de trabalho, com uma estrutura para hospedar até mil pessoas. Claro que não
encontramos. E resolvemos criar Em dezembro, viajando pelo interior de Minas, me decidi por
Paredão. Eu queria conhecer Paredão, lá é o cenário da batalha final escrita por Guimarães Rosa. É
um lugar a 70 quilômetros de Pirapora, mas de difícil acesso, em função de uma estrada
precaríssima, por onde só veículos pesados conseguem passar. Pois aluguei um caminhão, saí às 5
da manhã de Pirapora e consegui chegar a Paredão no dia seguinte, às 9 da manhã, depois de atolar
e dormir na estrada! Mas era o lugar ideal. E o Avancini, já em janeiro, ratificou plenamente essa
decisão. (Press release: 25).
.
A construção da infra-estrutura necessária à realização da minissérie levou a equipe de
produção a alugar as 75 casas do lugar (seus moradores abrigaram-se em casas da roça ou na casa
de parentes) e Paredão foi “ocupada” pela equipe de engenheiros, técnicos e pedreiros da
emissora. A execução de obras de melhoria nas construções da cidade chegou a ocupar 100
pessoas (incluindo mão-de-obra local). Foram reformadas as casas, construíram-se banheiros,
montou-se uma rede de água e esgoto, a rede elétrica foi criada e houve instalação de telefones.
Foram construídos cinco galpões – “(...) entre eles uma oficina cenográfica, e um restaurante,
com ampla cozinha e um enorme corredor de pias – fizeram melhorias na estrada e instalaram um
posto de gasolina, etc.” (Press release: 25)
Como não havia energia elétrica na região a emissora levou “(...) o primeiro gerador, com
12 toneladas, e paredão de Minas conheceu a luz.” (Press release: 25) e distribuiu os 300
funcionários pelas casas reformadas “(...) na base de cinco pessoas por casa, sem distinções
hierárquicas, de idade, sexo ou função.” (Press release: 25)
Percebe-se por meio desse relato que o impacto da produção foi grande tanto para a
emissora quanto para os moradores do local que, de um momento para o outro, tiveram suas
casas minimamente equipadas com água potável e luz elétrica (segundo a Rede Globo o gerador
foi deixado no lugar ao término das gravações), muito embora tenham sido desalojados de seus
lares por um longo período. Um desses aspectos também é comentado no Press release (p. 26)
fornecido pela emissora: “Com o início do projeto, Paredão ganhou também uma nova feição, passando
a conviver com uma parafernália técnica absolutamente estranha ao local, e que atraía mais atenção do que
os próprios atores, desconhecidos naquele lugarejo sem palcos, telas ou antenas.”
128
Além disso, segundo a produção, foi preciso um cuidado permanente com toda equipe
envolvida no projeto, sobretudo com os atores e profissionais que atuavam no set de filmagens,
uma vez que:
Gravando a média de oito horas por dia, em pleno mato, a maior parte do tempo sob sol forte, e
com um elenco carregando roupas que chegava a pesar 20 quilos, eram imprescindíveis cuidados
que atenuassem as adversidades. E, entre eles, constava um permanente serviço de hidratação, a
partir de frutas e água, na média de quatro copos de água e quatro frutas, por hora de trabalho.
(Press release: 26)
A gravação durou noventa dias e, para se ter uma idéia de sua dimensão, a emissora
informou que houve cenas em que atuaram 2.000 figurantes, e foram mobilizados 2.000 cavalos.
Essa super-produção se justificaria, pois “(...) para ocupar a amplidão do sertão, impossível não
ser superlativo.” (Press release: 26)
163
As reformas e melhorias efetuadas pela Rede Globo de Televisão são fartamente
exploradas pela imprensa escrita conforme pudemos constatar em nossa pesquisa. Reportagens e
artigos chamam atenção para esse fato como se a Rede Globo estivesse melhorando a vida das
pessoas e, por conseguinte, o país. Nesse sentido, podem ser interpretadas as reportagens Luz no
sertão – Globo melhora vila mineira para gravar mini-série e À conquista dos sertões.
164
Entretanto, é preciso que se registre que boa parte dos melhoramentos feitos pela emissora no
povoado de Paredão passou a ser contestada pelos próprios moradores, muitos dos quais
lamentavam a precariedade das instalações sanitárias (que estavam desmoronando) e caixas de
água ofertadas pela Rede Globo como forma de pagamento pelo uso das casas. Durante as
filmagens, alguns moradores e suas crianças tiveram de dormir no chão sob cobertura
improvisada para ceder suas moradias para a equipe da minissérie. Além disso, muitos moradores
deixaram de trabalhar em suas roças para trabalhar com a equipe de produção, e, em
conseqüência disso estavam pagando altos preços pelo feijão que estavam comprando nos
armazéns
165
.
163
Na reportagem intitulada “A maior produção em vídeo do mundo”, Jornal da Tarde-SP, p. 15, 04.06.1985, os
dados superlativos da produção são tratados, como o próprio título da reportagem sugere, de maneira superlativa.
164
Apresentamos respectivamente os dados referentes às duas reportagens. Revista Veja, no. 872, p. 119, sem autor,
de 22.05.1985; assinada por Sonia Goldfeder e publicada na revista Istoé, no. 465, p. 3, 20.11.1985.
165
É destacado na reportagem o abando o abandono das roças pelos simples moradores locais em troca de um sonho
de riqueza (como afirma Da. Edvaldina, uma moradora da região que cedeu sua casa para as gravações): “Foi duro
(...), mas a gente achava que ia sair da miséria. Acabou que ficamos com prejuízo. O banheiro está caindo. E o piso,
arrebentando porque puseram um camada rala de cimento. O dinheiro que a gente ganhou foi embora.” ). Esse relato
fez-nos lembrar da passagem em que Riobaldo, já Urutu-Branco, recruta entre o povo miserável de Sucruiú homens
129
Essas informações constam da reportagem de Cambará
166
na qual a repórter apresenta
depoimentos dos moradores do povoado de Paredão. As reclamações dos moradores são
sintetizadas no seguinte parágrafo em que, segundo a repórter, os moradores reclamam da
qualidade das “melhorias” feitas pela emissora e intermediadas na comunidade por um vereador
local:
Mas, a revolta maior é pelo fato de o vereador não ter avisado quanto à qualidade das “melhorias”
instaladas nas casas. Quem cedeu a casa em troca da reforma deu-se mal. Os banheiros – principal
atração – ameaçam cair. Isso porque sua construção foi improvisada. Não se fizeram alicerces, os
tijolos foram assentados diretamente na terra. Com a umidade, os tijolos que servem de base, vão
afundando e os moradores recorreram aos cascalhos para tentar firmá-los. Inutilmente. O terreno
continua cedendo. Mas o desespero dos moradores não tem nada a ver com uma provável queda
dos banheiros. Como diz Edvaldina Salles, 37 anos, sete filhos:
- Dona, se o cômodo cai, perco a caixa d’água que eles botaram no teto. Esse foi meu único lucro.
A gente vive sem banheiro, mas a caixa d’água faz falta. E vale dinheiro.
Além disso, a repórter constatou que parte do lixo (copinhos plásticos) gerado pela
produção da minissérie foi abandonada ao ar livre no povoado provocando uma razoável poluição
às margens do rio do Sono. Obviamente, essas reclamações não tiveram a mesma publicidade
dada às alegadas melhorias feitas pela emissora na cidade de Paredão. Ao que parece, houve a
construção de uma cidade cenográfica sobre as casas da cidade “real” de Paredão, e como todos
sabem (com exceção talvez dos moradores de Paredão), cidade cenográfica só possui fachada ...
Embora os fatos mencionados sobre o abandono da população de Paredão sejam
deploráveis e, em certa medida, “manchem” a produção da minissérie, constatamos que foi por
meio de uma imensa estrutura de produção que envolveu a gestão competente das diversas etapas
de produção incluindo planejamento, logística e pessoal técnico qualificado bem como diretor,
adaptador e artistas de primeiro nível que se tornou possível a realização de uma minissérie da
magnitude e importância de Grande Sertão: Veredas para a televisão.
que são obrigados abandonar suas roças para acompanhá-los nas andanças jagunças pelo sertão. Quando esses
homens o questionam sobre quem cuidará de suas roças e das famílias, Riobaldo responde que suas famílias fariam
isso e ainda acrescentou: “Vamos sair pelo mundo, tomando dinheiro dos que têm, e objetos e as vantagens, de toda
valia... E só vamos sossegar quando cada um já estiver farto, e já tiver recebido umas duas ou três mulheres, moças
sacudidas, p’ra o renovame de sua cama ou rede!...” Ah, ô gente, oh e eles: que todos, quase todos, geral, reluzindo
aprovação. Mesmo os meus homens. Fiz gesto, com meu contentamento.” (GSV 462, na minissérie a fala de
Riobaldo é exatamente igual.)
166
Reportagem Volta à solidão, assinada por Isa Cambará, publicada no Jornal da Tarde, em 16.11.85.
130
6.3. Repercussões na imprensa
A minissérie Grande Sertão: Veredas obteve índices bastante favoráveis de Ibope que
refletiam uma grande aceitação por parte do público. A aceitação não se restringiu ao público em
geral; críticos de televisão e de literatura, com algumas exceções, exaltaram em entrevistas para
jornais e televisão as grandes qualidades da minissérie.
Castello, em artigo na revista Istoé
167
com o título “Vereda de Sucesso – ‘Grande Sertão:
Veredas’ ganha audiência e aproxima a televisão da linguagem cinematográfica”, saudou a
minissérie como “a mais bem sucedida minissérie da Globo.” Fato também exaltado com outras
palavras, naturalmente, por diversas publicações
168
Segundo o jornalista, os índices de audiência
da minissérie foram bastante altos e superaram os de “obras mais acessíveis”
169
como Tenda dos
Milagres e O Tempo e o Vento, respectivamente com 31,1 pontos e 41 pontos segundo o IBOPE.
Os dados constantes na revista informam que na sua penúltima semana de apresentação a
minissérie atingiu, no Rio de Janeiro, 46,3 pontos no IBOPE (correspondendo a uma audiência de
2 milhões e 205 mil espectadores o que representaria 80% dos aparelhos ligados). Em São Paulo,
onde, segundo a revista, os índices eram geralmente menores, “dados recentes” indicavam 31,1
pontos de audiência, ou seja, perto de 2 milhões e 822 mil espectadores, correspondendo a 50%
dos aparelhos ligados.
Esses dados são bastante representativos da aceitação da minissérie por um grande
número de espectadores e podem ser reforçados pelas informações referentes às vendas do
romance, pois se sabe que o sucesso de uma minissérie adaptada de obra literária pode ocasionar
o aumento da tiragem de exemplares dos livros originais
170
. Segundo esse artigo, à época da
exibição da minissérie, foram esgotados os 18 mil exemplares referentes à décima oitava edição
167
José Castelo, Istoé, de 18.12.1985, p. 40-48. O número de páginas dedicadas ao assunto também é indicativo da
importância da minissérie no panorama cultural ou, pelo menos, no panorama televisivo.
168
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 40. Citamos algumas matérias com teor favorável à minissérie: O Jornal do
Brasil, de 11.12.85, publicou matéria com o título “A arte de recriar a arte. O Pasquim, 28.11.85, publicou matéria
intitulada “Grande Sertão: Veredas : um exercício de estilo”. O Jornal da Tarde, de 29.11.1985, publicou matéria
com o título Grande sertão: acerto total. , publicada no Jornal da Tarde, de 29.11.1985. A Folha de S. Paulo
publicou a matéria de José Lino Grunewald, denominada Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro, no
caderno Folhetim de 1º.12.1985, p. 3.
169
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 40.
170
Sobre esse fato é interessante assinalar que na Feira do Livro de Frankfurt de 1995, que teve o Brasil como tema,
foram exibidos trechos de minisséries da Rede Globo, como forma de chamar a atenção para os livros originais. As
minisséries enviadas foram O Tempo e o Vento (1985), Agosto (1993), O sorriso do lagarto, O Pagador de
Promessas (1988), Tereza Batista (1992) e Grande Sertão: Veredas (1985). Cf. Narciso Lobo, Ficção e Política, o
Brasil nas minisséries, p. 109.
131
lançada em 1985. Até 1985, ainda conforme a revista, haviam sido feitas dezessete edições que
totalizavam 150 mil exemplares. Considerando esses dados, nota-se, portanto, que, durante a
exibição da minissérie, houve uma venda muito superior àquela verificada durante os trinta anos
precedentes. Certamente, ao aumento na venda de livros não corresponde aumento no número de
leitores, pois como lembra Rocco (1991: 118):
O sucesso de uma adaptação literária para a televisão prende o telespectador, que passa a ver ou na
trama ou em alguma personagem o seu principal objeto de desejo. E tal objeto de desejo desloca
em seguida sua direção para o livro que passa então, juntamente com o primeiro, a se configurar
como um outro objeto desse desejo. A relação que daí decorre, que se constrói entre a obra
escrita e sua adaptação para uma linguagem, basicamente visual, produz um tipo diferente e
especial de intertextualidade e que não tece propriamente trama intertextos, mas, sim, entre
desejos. (grifos da autora)
Dessa forma, o livro, como objeto de desejo, precisa ser adquirido, possuído e até ser
motivo de reverência, mas isso não significa que seja lido.
Atualmente, Grande Sertão: Veredas encontra-se em sua vigésima edição. Durante quase
trinta anos, representados por quinze edições, os direitos de comercialização ficaram com a
Editora José Olímpio, que, em 1984, os vendeu para a Editora Nova Fronteira. Na nova casa, o
livro de Guimarães Rosa teve mais três edições. Segundo a editora Maria Amália Mello (na Nova
Fronteira desde 1985), de 1984 a maio de 2005 haviam sido vendidos 400 mil exemplares de
livros.
171
A editora presume que até hoje um milhão de pessoas tenham lido o romance. Portanto,
quase vinte anos depois, o número estimado de leitores do romance não chega à quinta parte do
número estimado de espectadores da minissérie levando-se em consideração apenas as duas
maiores capitais do país: Rio de Janeiro e São Paulo. Talvez aí esteja a comprovação de que o
sonho de Durst e Avancini de levar a literatura de Guimarães Rosa ao grande público tenha sido
atingido
172
.
171
Os dados referentes às tiragens das edições na Nova Fronteira foram obtidos na reportagem “Assim falou
Riobaldo - Grande sertão: veredas caminha para os 50 anos de publicação, celebrando o vigor e a atualidade de obra
universal”, publicada no Jornal do Brasil, de 02.10.2005, assinada por Cleusa Maria.
172
Em artigo publicado em 1998, Especialização da TV/Espacialização do sentido, p. 122-123, Walter George Durst,
abordando a relação entre televisão e educação e, de certa forma, o papel social da televisão, afirma: “A TV chega a
gente simples, é compreendida por iletrados e vista por analfabetos. Adaptei romances de nossa literatura, como
Grande sertão: Veredas e Gabriela. Quando o conteúdo desses livros chegaria ao povão se não fosse a TV. Temo
que nunca, neste nosso país fantástico de ditaduras que persistem até hoje. Não é uma forma de suprimir a liberdade,
impedir de pensar?”
132
O sucesso da minissérie também pode ser comprovado pelo prestígio que seu diretor
atingiu dentro da própria emissora
173
e fora dela. Segundo José Castello, a cúpula da emissora
organizou uma festa-surpresa, em que Avancini foi recebido “sob uma chuva de pétalas de rosa”,
para “homenagear a ousadia deste diretor, uma espécie de Stanley Kubrick da TV brasileira”
174
.
Ainda na mesma reportagem, Vereda de sucesso
175
, a filha de Guimarães Rosa, Wilma
Guimarães Rosa, deixa-se fotografar assistindo à minissérie e expressa opinião favorável a ela:
“Ninguém pode exigir que a TV seja o mesmo que um livro.(...) Mas mesmo sem deixar de ser
fiel à TV, Avancini soube captar a essência do livro de papai.”
176
Na mesma matéria, Avancini justifica ainda que: “(...) sabia o tempo todo que não podia
ser realista. Estávamos viajando em busca de um sertão que está mais no coração de Rosa que no
mapa do Brasil.”
177
A genialidade de Avancini também é exaltada quando se fala do tratamento
dado às seqüências gravadas e o respeito à linguagem rosiana:
A narrativa da série – silenciosa, mas frenética – se apóia menos nas palavras e mais na colagem de
imagens, no apuro formal, na força da visão. (...) Nos passos de Rosa, Avancini põe suas
personagens falando uma linguagem densa, às vezes um pouco incompreensível, mas que passa
com exatidão a consistência espessa que as palavras tomam no sertão. O espectador desatento, ou
desacostumado, certamente vai perder uma palavra aqui e ali. Mas acaba ganhando outra maneira,
mais sonora, mais intuitiva de ouvir a língua.
178
A tônica desse texto recai sobre o tratamento estético dado por Avancini às cenas em que
“a sucessão às vezes quase frenética de imagens, o império do visual sobre a palavra, faz lembrar
em muitos momentos a linguagem do cinema”
179
. Castello compara ainda as imagens da
minissérie com as de outra campeã de audiência, a novela Roque Santeiro, que estava no ar na
mesma época:
Enquanto numa novela clássica do tipo Roque Santeiro uma única imagem é capaz de segurar, às
vezes, por um ou dois minutos, uma sucessão de acontecimentos, em Grande Sertão acontece o
oposto: é a seqüência acelerada das imagens, e não o arrastão das palavras que cria sentido. Chega
173
Fato esse referido em diversas outras reportagens publicadas nos jornais e revistas de grande circulação no Brasil.
Destacamos as seguintes reportagens: Walter Avancini, o mestre das minisséries, Folha de S. Paulo, 30.12.85; Walter
Avancini - Sucesso com ideologia, Jornal do Brasil, 30.12.85
174
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 41.
175
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 41
176
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 41. Avancini também é elogiado em diversas reportagens veiculadas em jornais
de grande circulação, como exemplo, citamos duas consagradas exclusivamente a ele: Walter Avancini, o mestre
das minisséries, Folha de S. Paulo, p. 21, 30.12.85, e Sucesso com ideologia, Jornal do Brasil, 30.12.85.
177
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 41.
178
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 44.
179
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 44.
133
a ser surpreendente a maneira como Avancini descreve pequenos sentimentos interiores, diáfanas
sutilezas, num veículo tão dominado pela superfície e pelos interiores.
180
O clima de expectativa em torno da minissérie podia ser sentido quase 10 meses antes de
sua estréia numa reportagem intitulada Globo quer Guimarães só para ela, publicada na Folha
da Tarde, em que o jornalista Âmbar de Barros, afirma que se Durst e Avancini “forem felizes
[ao transpor para a televisão o romance], será, pela primeira vez, o retrato sem retoques do Brasil
na TV.”
181
Apesar da boa acolhida registrada na grande maioria das matérias jornalísticas do corpus,
gostaríamos de registrar que em algumas reportagens encontramos talvez não uma crítica
contundente à minissérie, mas um certo temor de alguns críticos principalmente em relação ao
fato de duvidarem que a equipe conseguiria suplantar o desafio de levar para a televisão uma obra
do porte de Grande Sertão: Veredas. Há também críticos que minimizam alguns elogios feitos
pela imprensa ao diretor da minissérie.
A primeira matéria que gostaríamos de comentar é de Araújo e tem por título: Uma difícil
adaptação para TV
182
, de 31.05.1985, (portanto, seis meses antes da estréia da minissérie).
Destacamos o primeiro parágrafo desse texto:
Enquanto “O Tempo e o Vento”chega ao fim de sua confusa existência sem conseguir ao menos
nos introduzir a essa verdadeira nação à parte que é o Rio Grande do Sul ou aos conflitos que o
formaram, já há quem torça as mãos, esperando “O Grande Sertão: Veredas” para melhor ver
provado que televisão e vida inteligente são duas coisas contraditórias em si. De fato, a
“boa”televisão parece ainda ser vista como uma ameaça. Adaptar “O Grande Sertão: Veredas”
seria uma imperdoável heresia à obra do romancista. (grifos do autor)
Em outro trecho, Araújo comenta as dificuldades que o diretor deveria enfrentar: “Desafio
dos mais ingratos, mas também dos mais interessantes, com ele Walter Avancini se coloca em
uma posição privilegiada: desenvolve ao extremo as possibilidades da televisão, ao menos até o
momento.”
183
Trata-se, portanto, não apenas de transpor para a televisão a monumental obra de
Guimarães Rosa, é preciso suplantar o já-visto no meio televisual. Na reportagem de Castello
184
,
à qual já nos referimos, publicada enquanto a minissérie estava no ar, Muniz Sodré, afirma:
180
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 44-45
181
Âmbar de Barros, Globo quer Guimarães só para ela, Folha da Tarde de 21.01.85.
182
Inácio Araújo, Uma difícil adaptação, Folha de S. Paulo, p. 41, de 31.05.1985,
183
Inácio Araújo, Uma difícil adaptação, Folha de S. Paulo, p. 41, de 31.05.1985.
184
Vereda de sucesso, publicada na revista Istoé, p. 40-48, de 18.12.1985.
134
“Uma coisa temos que admitir: a Globo chegou com o Grande Sertão a uma expressão televisiva
que é propriamente brasileira
185
”, e adverte: “O Avancini produziu uma aceleração dos planos
muito interessante. Mas não me venham falar em revolução na TV. Há apenas mais apuro, mais
bom gosto – mais nada.”
186
Percebe-se que para o pesquisador de comunicação, a minissérie era
um produto de alta qualidade, mas não suficientemente revolucionária.
Autran Dourado
187
demonstrou insatisfação com o que viu na minissérie: “É muito
bonito, mas não sobrou nada de Guimarães Rosa nesse seriado. As personagens falam caipira
paulista ao invés da língua de Rosa, as roupas são de cangaceiro nordestino e não de capanga do
sertão.” Também Afrânio Coutinho
188
teceu críticas à minissérie: “Às vezes é meio caricato,
outras quase ininteligível”, porém contemporizou: “Mesmo assim, é o ponto alto da TV
brasileira.”
Parece que Avancini
189
, ao menos na reportagem de Castello, demonstra uma certa
modéstia em relação aos horizontes abertos pela minissérie: “Esse seriado não abre caminho
nenhum. Ficarão apenas ruídos, que serão assimilados muito devagar, mas valerá a pena.”
No mesmo ano de 1985, outra faceta arcaica da sociedade brasileira, principalmente a do
nordeste, marcava presença no vídeo por meio da história de Roque Santeiro. Os mandos e
desmandos de Sinhozinho Malta e seus comparsas se traduziam em altíssimos índices de
audiência e mobilizavam discussões acerca de temas como corrupção, coronelismo, machismo.
A exibição concomitante dessas duas produções audiovisuais fez com que surgissem na imprensa
diversas comparações entre elas. A comparação entre a minissérie Grande Sertão: Veredas e a
telenovela Roque Santeiro foi também explorada pelo poeta e crítico literário Grunewald, em
artigo cujo título já prenunciava a opinião de seu autor acerca da minissérie (e talvez também em
relação à protagonista): Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro. Grunewald, após
explanar sobre o processo criativo de Guimarães Rosa, afirma que Avancini “inventou um
desafio, desdobrou-o e hoje está na berlinda. Tem medida de grandeza, pois, fácil, seria repetir
185
Id. ibid., p. 48
186
Id. ibid., p. 48
187
Id. ibid., p. 48
188
Vereda de sucesso, publicada na revista Istoé, p. 48, de 18.12.1985.
189
Vereda de sucesso, publicada na revista Istoé, p. 48, de 18.12.1985.
135
qualquer Roque Santeiro da vida. Viva Roque. Mas, viva a invenção. Afinal, o paciente grande
público está aprendendo um pouco de Rosa na TV.”
190
Grunewald também elogia a qualidade das imagens e da montagem de Avancini e afirma
que o diretor tentou responder ao desafio de transpor “a Rosa da prosa” para a televisão e, no seu
entender, Avancini é “nosso maior diretor de TV”
191
. Para o crítico, a escolha de “Bruna
Lombardi com os olhos lindamente claros a irradiar o mistério de Diadorim representou um
achado.”
192
O jornalista Leão Serva,
193
na matéria Intelectuais julgam “Sertão”, apresenta uma série
de opiniões de estudiosos da literatura sobre a minissérie que acabara de estrear. João Alexandre
Barbosa afirma ter gostado do primeiro capitulo e diz temer pela continuidade da história, pois o
público já sabe de antemão que Diadorim (Bruna Lombardi) é mulher. Já o escritor e crítico
literário Franklin de Oliveira, amigo de Guimarães Rosa que acompanhou a “gestação de ‘Grande
Sertão’”, acreditava que Avancini alcançaria seu objetivo de “fazer compreensível pelo menos
quinze por cento da obra de Guimarães Rosa” e ainda acrescenta que “acha que seu amigo
gostaria de ver o romance na versão televisiva.”
No mesmo artigo, o crítico e professor Paulo Rónai afirma que havia começado a ver
televisão havia dois meses, pois “achava que ela [a televisão] tomava muito tempo” e demonstra
sua satisfação com a minissérie dizendo-se “feliz por poder ver ‘Grande Sertão’ na televisão”.
Rónai acrescenta ainda que gostou da supressão do narrador e que isso deu mais valor à trama:
“Isso atualizou a história; de outra forma ela ficaria imobilizada”. Para o ensaísta, “Durst e
Avancini foram muito corajosos.”
Deve-se notar, entretanto, que grande parte dos artigos e reportagens do corpus apresenta
como tônica principal a questão referente à necessidade de a minissérie ser fiel ao livro. A
reportagem Grande Sertão: acerto total
194
, também apresenta crítica favorável à minissérie
afirmando que ao largo das discussões sobre a validade da transposição de uma obra literária para
a televisa deve-se atentar para o:
190
José Lino Grunewald, Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro, caderno Folhetim, de 01.12, 1985, Folha
de S. Paulo.
191
Idem, ibidem. p. 3
192
Idem, ibidem p. 3.
193
Leão Serva, Intelectuais julgam “Sertão”, Folha de S. Paulo, de 20.11.1985, s/p., sob o título Intelectuais julgam
“Sertão”.
194
Sem autor publicada no Jornal da Tarde-SP, de 29.11.85.
136
(...) que é muito mais importante: que em um país onde a população não lê sequer jornais, uma das
formas mais eficientes de se levar um pouco de literatura ao grande público é, certamente a
televisão.” E continua: “A atmosfera, carregada de tons marrons, encharcada de sol, às vezes
áspera e difícil, foi fielmente captada por Avancini. Mas ele foi ainda mais longe: ao invés de
buscar apenas a forma, Avancini aprofundou na essência, no conflito das relações transportando
com imagens a estética Roseana. E o resultado está aí para quem quiser ver: um espetáculo bonito,
sincero e cheio de emoção. (...) E assim Grande Sertão: Veredas chega, fiel e honestamente ao
grande público, pela tevê. Será que isso é pouco?
Outra questão importante que verificamos com relação a comentários e críticas à
minissérie refere-se ao fato de que a maioria das matérias publicadas na imprensa contém opinião
e análise efetuadas por escritores, críticos literários ou por professores de literatura. Entre todo o
material pesquisado, encontramos apenas uma matéria que tratava a minissérie como um produto
televisual, ou melhor, como uma nova obra artística, estabelecendo uma relação direta e crítica
com outros programas televisivos numa perspectiva constitutiva. Trata-se do artigo “Grande
Sertão: Veredas – o momento mais elevado da teledramaturgia”, de Arthur da Távola
195
, no qual
o estudioso de televisão elabora sua crítica a partir da comparação entre a telenovela e a
minissérie. Arthur da Távola analisa a minissérie contrapondo-lhe as características folhetinescas
das telenovelas em geral e conclui que “Grande Sertão: Veredas liberto está (...) da estrutura
narrativa televisual e conteudística da telenovela, que tem como base o folhetim romântico-
realista.”
É preciso, contudo, que levemos em consideração também, no que se refere à nossa
análise da crítica em relação à minissérie considerando-a um produto televisual, as palavras de
Muniz Sodré mencionadas anteriormente. Porém, são excertos de sua fala constantes em uma
reportagem mais ampla e não devem ser consideradas como uma análise profunda da linguagem
da minissérie tal como fez Arthur da Távola. Por isso, consideramos que, com exceção da análise
crítica efetuada por Arthur da Távola, todas as outras encontradas no corpus analisado, têm como
traço comum a busca de uma comparação entre a obra literária e a minissérie, partindo de uma
suposta necessidade de que esta última precisaria corresponder inteiramente à primeira. Busca-se
a “fidelidade” e esquece-se de que o texto literário e o texto televisual operam com significantes
diferentes que jamais encontrarão correspondência plena. Mesmo por que isso é impossível como
lembra Jorge Furtado
196
,
195
Arthur da Távola, “Grande Sertão: Veredas – o momento mais elevado da teledramaturgia”, O Globo, de
22.12.1985.
196
Palestra proferida na 10ª. Jornada Nacional de Literatura, Passo Fundo, RS, em 29.08.2003, com o título “A
adaptação literária para cinema e televisão”, disponível em www.casacinepoa.com.br/port/con
137
(...) na linguagem audiovisual toda informação deve ser visível ou audível Isto parece uma
obviedade ululante mas quem já tentou fazer um roteiro sabe como é difícil evitar a tentação de
escrever: João acorda e lembra de Maria. Isso é muito fácil escrever e muito difícil de filmar.
Palavras como pensa, lembra, esquece, sente, quer ou percebe, presentes em qualquer romance, são
proibidas para o roteirista, que só pode escrever o que é visível. A literatura, que a todo momento
nos remete ao fluxo de consciência dos personagens, pode utilizar todas essas palavras. Mas não
necessariamente precisa utilizar todas essas palavras, o que faz com que alguns textos sejam muito
mais facilmente adaptáveis do que outros.
Nesse sentido, evocamos ainda as palavras de Martin (1990: 27), ditas em relação à
linguagem cinematográfica, aplicando-as à linguagem televisual, “(...) a imagem, por si só,
mostra e não demonstra.” Por isso, segundo esse teórico, “é preciso aprender a ler um filme, a
decifrar o sentido das imagens como se decifra o das palavras e o dos conceitos, a compreender
as sutilezas da linguagem cinematográfica. Quanto ao mais, o sentido das imagens pode ser
controvertido, assim como o das palavras, e poderíamos dizer que há tantas interpretações de
cada filme quantos forem os espectadores.” (MARTIN 1990: 27). Portanto, é preciso, antes de
tudo, dedicarmo-nos a fazer uma leitura mais qualificada das imagens que nos circundam e não
apenas as da televisão, dizemos isso, sobretudo, levando em consideração as novas tecnologias de
comunicação que têm incorporado de maneira sistemática e cada vez mais abrangente as imagens
em equipamentos eletrônicos diminutos e com maior capacidade de definição de imagens em
movimento. As imagens (sintetizadas por computador, televisuais ou cinematográficas)
“invadem” praticamente todos os tipos de comunicação (do telefone celular, aos chats de bate-
papo na internet, passando pelas máquinas fotográficas digitais).
É interessante notar, entretanto, que a boa acolhida dos intelectuais em relação à
minissérie contrasta com uma posição adotada, principalmente nas décadas de 1960-70, de
recepção negativa das produções televisuais conforme constatou Freire Filho (2001, 2003) em
estudo sobre a relação entre os literatos e a televisão ao longo de três décadas 1950-1980
197
. Com
base nos dados constantes nesse estudo, observamos que as relações entre os intelectuais e a
televisão percorreram caminhos que foram da lua de mel (da primeira década, 1950-1960)
198
à
197
João Freire Filho pesquisou artigos publicados por “intelectuais” e “literatos” no Jornal de Letras (mensário
criado em 1949, no Rio de Janeiro, por João Elysio e José Conde. Integraram seu corpo de redatores e seu conselho
fiscal expoentes da arte e da crítica literária: Brito Broca, Álvaro Lins, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do
Rego, Manuel Bandeira, entre outros), revista Cruzeiro, Realidade, Veja, jornal O Globo, entre outros.
198
Durante esse período as críticas são geralmente favoráveis à televisão tanto no sentido de louvar o meio quanto
ao conteúdo veiculado. Principalmente porque os críticos acreditavam que a televisão propiciaria uma maior
divulgação das obras literárias se adaptassem textos da “boa literatura” para o novo veículo de comunicação de
massas: “A primeira coisa que um telespectador quer fazer, depois de assistir à adaptação videoteatral de um
romance, é ler esse romance, caso já não o tenha feito” (Hugo Covendish, “A televisão não matou o hábito da
leitura”, Jornal das Letras, agosto de 1961, p. 9) (apud João Freire Filho, A “esfinge do século: ...., p. 4.
138
separação litigiosa, porém com algumas (raras) recaídas amorosas (décadas 1960-1980). Pode-se
dizer que à medida que a televisão se popularizou e começou a adquirir uma linguagem própria o
afastamento entre os intelectuais e esse veículo de comunicação foi se tornando mais evidente e
quase inevitável para alguns a ponto de condicionar a vida inteligente à não-audiência de
programas televisivos. É o que se depreende da fala de Alceu de Amoroso Lima, publicada na
revista Realidade, de outubro de 1970, em que o escritor compara a televisão ao vício do álcool:
A TV é como álcool. Em pequenas doses estimula. Em dose maciça escraviza. E se converte num
vício, como a droga. É preciso, pois, lidar com ela com muito cuidado. Como se lida com
explosivos. Ou com veneno, que depende da dose. É transparente como água, mas também como
nitrato de prata. É essencialmente ambivalente. Ou polivalente. E é algo que deve ser tomado em
pequenas doses. (apud Freire 2001: 7)
199
Porém, ao mesmo tempo em que inebria e “escraviza”, o aparecimento ou citação de um
escritor em programas de televisão, ou mesmo, o aproveitamento de suas obras literárias por
emissões televisivas, podem produzir um aumento significativo de vendas e, conseqüentemente,
de ganhos para o escritor. Esse fato é bastante mencionado nas publicações pesquisadas por
Freire (2001) retiramos, ao acaso, dois exemplos dessa relação de amor e ódio entre os
intelectuais e a televisão. Relação essa nem sempre permeada pelos instintos mais nobres do
desapego às coisas materiais (e nem acreditamos que isso seria possível).
O Jornal [das Letras] divulgava, com entusiasmo, as iniciativas para dar “maior aproveitamento
literário às possibilidades da televisão”. Um exemplo egrégio: A história da semana, que pretendia
levar – ao “pequeno ‘écran’” – contos, crônicas e novelas que, pela sua natureza, se prestassem à
adaptação através da imagem. Entre os escritores cujas obras seriam veiculadas no programa (com
30 a 50 minutos de duração), figuravam Carlos Drummond de Andrade, Marques Rebelo,
Guimarães Rosa, Aníbal Machado e Orígenes Lessa. O empreendimento da TV-Rio era
duplamente bem-vindo: ofereceria à televisão “maiores perspectivas críticas” e abriria novas
oportunidades a nossos escritores (“pois é preciso notar que os programas serão pagos”)
(“Televisão e literatura”, outubro de 1956, 2).” (FREIRE 2001: 3)
No segundo exemplo, Freire apresenta alguns hábitos e gostos dos escritores Rubem
Braga, Raquel de Queiroz e Nelson Rodrigues, este último comentando sua sua participação no
Programa do Chacrinha:
199
Também pode ser visto como uma espécie de receio o fato de Paulo Rónai ter comprado televisão apenas dois
meses antes da exibição da minissérie Grande Sertão: Veredas, conforme afirma entrevista concedida a Leão Serva
em 20.11.85, Intelectuais julgam ‘Sertão’”, Folha de S. Paulo: “(...) [Paulo Rónai] começou a ver televisão há dois
meses (“Eu achava que ela [a TV] tomava muito tempo.”). Agora, está feliz “por poder ver ‘Grande Sertão’ na
televisão.”
139
Telemaníaco confesso (Castello, 1996, 152-154), Rubem Braga abominava, porém, comparecer
aos estúdios para debates e entrevistas. A razão era a mesma alegada por Raquel de Queiroz:
timidez. Mais acostumado aos holofotes, Nelson Rodrigues visitou, certa feita, o seu admirado
Chacrinha, na TV Globo. Aceitou o prêmio de maior cronista esportivo de jornal, com o ar de
quem recebe um Nobel. Ficou pasmo com a multidão no estúdio: duas mil pessoas num espaço que
daria para quinhentas. E como Chacrinha era amado, ferozmente amado! “Nunca ninguém me deu,
na vida real, tamanha sensação de onipotência. Se mandasse o auditório atear fogo às vestes como
uma namorada suburbana (ou um monge budista), seria um fogaréu unânime.” (Rodrigues,
[22/01/1968] 1993, 105). (FREIRE 2001: 16-17)
Freire (2003: 106) resume, de certa maneira, as labirínticas e atormentadas relações entre
televisão, intelectuais e escritores:
Não foram poucos os escritores e críticos que indiciaram a “máquina de fazer doidos”
(“retardados”; imbecis”; os diagnósticos variam) como causa e sintoma, ao mesmo tempo, do
nosso declínio social e cultural; rechaçando o fatalismo dessas análises, previsões mais otimistas
imaginaram lugares seguros, no amplo espectro da programação, para a expressão de pontos de
vistas políticos suprimidos e para a emergência de uma alta cultura do vídeo (enraizada nos
paradigmas historicamente legitimados da grande arte ou fomentada por uma pesquisa laboriosa
sobre a linguagem específica do novo meio). Promessa bem-vinda de renovação artística,
instrumento de conscientização das massas ou vírus de efeitos políticos e intelectuais altamente
degenerativos, a televisão foi adquirindo, entre nós, um lugar central no debate a respeito da
natureza do público e do papel das artes e das letras na vida (pós-)moderna.
Talvez Amoroso Lima tivesse um pouco de razão, a televisão inebria ...
No corpus, também observamos uma dimensão de descoberta local dos moradores de
Cordisburgo em relação a seu mais ilustre filho. A minissérie é apresentada em reportagem de
Chico Brant
200
como a responsável pela descoberta pelo povo de Cordisburgo de que na cidade
“(...) um dia teve existência um conterrâneo chamado João Rosa, o Guimarães Rosa – ali nascido
em 27 de junho de 1908.” Segundo o repórter, foi somente com a veiculação que a cidade
descobriu que Guimarães Rosa tinha nascido lá, fato conhecido apenas por alguns moradores
mais ilustres e mais antigos. É o Brasil que se busca e se identifica como povo e nação por meio
da narrativa ficcional mostrada na telinha de televisão.
Encontramos nessa formidável acolhida à minissérie por parte da imprensa escrita e de
um bom número de intelectuais quase todos os elementos que Bourdieu (2005: 196) discute como
definidores do valor simbólico da obra de arte: críticos, editores, produtores, artistas, na medida
em que “o trabalho artístico em sua nova definição torna os artistas mais do que nunca tributários
200
Na reportagem O sertão vê o sertão: graças à TV, Cordisburgo redescobre Guimarães Rosa, revista Afinal,
24.12.85.
140
de todo o acompanhamento de comentários e de comentadores que contribuem diretamente para a
produção da obra (...).” Essa relação de dependência evidencia-se claramente em todas as
produções da indústria cultural. No caso da minissérie Grande Sertão: Veredas, encontramos
reportagens na imprensa com até dez meses
201
de antecedência em relação à data de estréia da
minissérie. Ou ainda, a presença de jornalistas e fotógrafos
202
enviados especialmente para o set
de gravações com o intuito de testemunhar/verificar in loco os desafios encontrados pela equipe
de produção bem como seu profissionalismo ao enfrentá-los. Além disso, são inúmeras as
reportagens que se limitaram a reproduzir quase ipsis litteris as palavras contidas no Press
release fornecido pela emissora de televisão
203
. Entretanto, é preciso que se ressalte que o valor
simbólico atribuído à minissérie não decorre unicamente da boa acolhida da crítica e da imprensa,
mas, sobretudo, da qualidade estética e da história contada nesse produto audiovisual que marcou
definitivamente a história da televisão brasileira.
Como exemplo de que nem sempre a boa acolhida prévia da crítica, o prestígio de uma
obra literária clássica, a divulgação e o enaltecimento do cuidado na busca da fidelidade com a
obra literária e os altos custos de produção se revertem em publicidade favorável e conseqüente
sucesso de uma minissérie, lembramos o caso da minissérie Os Maias
204
. A imprensa chegou a
dizer que Os maias tinha “uma missão especial: oferecer biscoito fino para as massas”.
205
Essa
minissérie foi, segundo a imprensa noticiou na época de sua estréia, a minissérie mais cara que a
Rede Globo realizara até então, e contou com cenários e figurinos primorosos com a intenção de
conseguir uma “perfeita” reconstituição de época. Além disso, “(...)o elenco e a equipe técnica
estiveram em várias cidades de Portugal. Tudo para evitar ao máximo o clima artificial de
estúdio”
206
. Maria Adelaide Amaral e João Emanuel Carneiro, autores da minissérie, vinham de
201
Reportagem de Âmbar de Barros: Globo quer Guimarães só para ela, publicado na Folha da Tarde de 21.01.85.
202
Reportagem de Âmbar de Barros: Em Minas Gerais, a Globo revive o Grande Sertão e outra de Inácio Araújo:
Uma difícil adaptação para TV, publicadas no jornal Folha de S. Paulo, 31.05.05. Luz no sertão – Globo melhora vila
mineira para grava mini-série, Veja, p. 119, no. 872, 22.05.1985
203
Entre as reportagens com esse conteúdo destacamos: “Grande Sertão: Veredas” a partir de 2ª, na Globo, O Estado
de S. Paulo, p. 22, 16.11.85; No universo mágico de Guimarães Rosa, o bem, o mal e o sonho se defrontam, O
Globo, 17.11.85; Grande Sertão, simplicidade e emoção, Gazeta do Ipiranga, 14.11.85; “Grande Sertão”: a TV
desbrava as veredas da obra encantada de Rosa, O Globo, 18.11.81; Mil minutos de um “Grande Sertão”, Jornal do
Brasil, 10.11.85,
204
Minissérie com 44 capítulos, exibida de 09.01 a 24.03.2001, adaptada por Maria Adelaide Amaral e João
Emanuel Carneiro do romance homônimo de Eça de Queiros. (DG 371)
205
Cristian Klein, "‘Os Maias’ quer dar a Eça ares de cinema", copyright Folha de S. Paulo, 9/01//2001, disponível
em http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/qtv150120014.htm
, capturado em 16.05.2006.
206
Cristian Klein, "‘Os Maias’ quer dar a Eça ares de cinema", copyright Folha de S. Paulo, 9/01//01, disponível em
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/qtv150120014.htm
, capturado em 16.05.2006.
141
um sucesso de crítica e de público conquistado pela minissérie A muralha
207
e o diretor Luiz
Fernando Carvalho contava com o prestígio adquirido pela direção de trabalhos elogiados em
televisão (Renascer , em 1993, e O Rei do Gado, em 1996/1997) e cinema (Lavoura Arcaica,
2001). Foram escalados atores do primeiro time da emissora (Ana Paula Arósio, Fábio Assunção,
Stênio Garcia, Osmar Prado, Eva Wilma) e outros tantos foram convidados para participações
especiais (Walmor Chagas entre eles). Porém, nem todo esse “valor simbólico” foi suficiente para
impulsionar a audiência da minissérie que apresentou declínio
208
frente às produções que a
antecederam e estacionou em patamares sofríveis em termos de Rede Globo de Televisão.
Também quase não tiveram valor para o grande público as imagens em “linguagem
cinematográfica”
209
Além disso, as reportagens e artigos referentes à minissérie começaram a
apresentar críticas à lentidão das cenas e ao som
210
. Enfim, a minissérie, apesar da boa qualidade
apresentada não conseguiu se converter em sucesso de crítica e de público, tal como acontecera
com Grande Sertão: Veredas.
Obviamente as razões que levaram Os Maias a não atingir os níveis de audiência
esperados pela emissora são várias e não são objeto de análise neste trabalho, porém nossa
intenção é enfatizar que nem sempre apenas a portentosa engrenagem da indústria cultural ou
207
Adaptada por Maria Adelaide Amaral e João Emanuel Carneiro do romance homônimo de Dinah Silveira de
Queiros, exibida de 04.01 a 28.03.2000, 49 capítulos. (DG 367).
208
A perda de audiência chegou a gerar boatos de que Luiz Fernando Carvalho seria afastado da direção da
minissérie: “Quando entrou no ar, às 22h17 de quarta, a minissérie registrou uma fuga de cerca de 1,7 milhão de
espectadores na Grande São Paulo. A audiência da emissora caiu, em um minuto, de 52 pontos (com ‘Laços de
Família’) para 39. O capítulo de estréia foi acidentado porque o diretor da minissérie, Luiz Fernando Carvalho, não
conseguiu finalizá-lo a tempo. O episódio foi ao ar com 20 minutos a menos e com problemas de sonorização -quase
não se ouviam o narrador e os sons dos ambientes. O programa foi (e continua sendo) gerado diretamente dos
estúdios, no Rio. Está sendo finalizado no dia em que vai ao ar.
Ontem, circularam rumores de que Carvalho teria sido afastado da direção, o que a Globo nega.” Daniel Castro
"Globo abafa crise na minissérie ‘Os Maias’", copyright Folha de S. Paulo, 12/01/01, disponível em
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/qtv150120014.htm
, capturado em 17.05.2006.
209
Sobre esse aspecto, Cristian Klein, "‘Os Maias’ quer dar a Eça ares de cinema", copyright Folha de S. Paulo,
9/01//01, http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/qtv150120014.htm
, capturado em 17.05.2006,
afirma que “Para Maria Adelaide Amaral, a linguagem da minissérie terá mais a ver com o cinema do que com a
televisão. ‘O próprio Walmor (Chagas) disse que ‘Os maias’ é Visconti vezes 44 (capítulos)’, contou, fazendo alusão
ao cineasta italiano (1906-76).”
210
Citamos dois artigos em que os autores apresentam críticas à minissérie: o primeiro deles de Daniel Castro,
"Globo abafa crise na minissérie ‘Os Maias’", copyright Folha de S. Paulo, 12/01/01, "O acidentado capítulo de
estréia da minissérie ‘Os maias’, a mais cara já produzida pela Globo, acabou afugentando o público. O segundo
episódio, anteontem, teve média de 25 pontos no Ibope na Grande São Paulo, contra 22 do SBT. Os números
frustraram a expectativa da emissora, de audiências superiores a 30 pontos. O segundo exemplo é um artigo de
Esther Hamburguer "Minissérie ‘Os Maias’ tem início com capítulo um pouco irregular", copyright Valor
Econômico, 11/01/01, "Uma primeira seqüência ousada, longa e contemplativa, um miolo de capítulo difícil e, ao
final, a introdução de ação que promete. Assim, um pouco irregular, foi a estréia de ‘Os Maias’ anteontem.”,
ambos disponíveis no site http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/atualiza/artigos/qtv150120014.htm
, capturado
em 16.05.06.
142
mesmo um padrão aprimorado no tratamento colhe bons resultados em termos de público. É
preciso que haja mais, é preciso que o telespectador seja tocado pela emoção que emana da
história, que seja instigado pelo enredo. Enfim, é preciso que se estabeleça a comunicação entre o
telespectador e o produto televisual.
143
Capítulo 7 – Minissérie Grande Sertão: Veredas: a criação no contexto da Indústria
Cultural
“É, e não é. O senhor ache e não ache.
Tudo é e não é ...”
GSV 27
Para compreendermos a minissérie Grande Sertão: Veredas no contexto da indústria
cultural, consideramos como ponto de partida de nossa análise as reflexões de Morin (2005)
acerca desse tema. Nosso recorte se deve fundamentalmente à orientação teórica adotada em
nosso trabalho a qual possui como característica principal analisar a minissérie narrativa
televisual a partir das inter-relações entre as instâncias literárias, televisuais e mercadológicas
determinada, em última análise, não pela sua somatória desses elementos, mas por sua integração
numa complexa tessitura envolvendo gêneros literários, gêneros televisuais e temas.
O teórico francês efetua a análise da indústria cultural com base em uma abordagem
dialética das relações de criação, produção e consumo. Consideramos que essa linha de análise
possibilita-nos empregar o instrumental teórico fornecido pela teoria de Bakhtin (2002, 2003)
sobre as questões de linguagem implicadas na constituição do ser humano e de suas relações de
comunicação. Acreditamos que o pensamento de Morin (2005) acerca da indústria cultural
permitirá compreender a minissérie dentro de um paradigma regulado mais pelas inter-relações
constituintes dos processos culturais que pelas relações de um sistema de produção regido por
mecanismos típicos da produtividade industrial. Além disso, o pensamento de Morin também foi
essencial para a constituição da Teoria das Mediações defendida por Martín-Barbero, sobretudo
no que se refere à discussão do folhetim como matriz cultural (fato esse de grande valor para
nossas discussões).
Para Martín-Barbero (2001: 92), a análise de Morin permitiu a emergência de um novo
modo de discutir a indústria cultural superando a perspectiva otimista dos americanos e a
pessimista dos frankfurtianos:
Na primeira etapa de sua análise da cultura de massa, a concepção com que trabalha Morin deve
não pouco de inspiração aos frankfurtianos, mas não se limita a desenvolver seus temas: entre
dialética e ecletismo procura de certo modo combinar o pessimismo daqueles com o otimismo dos
144
teóricos norte-americanos. À diferença destes últimos não crê na onipotência desmistificadora dos
meios massivos, mas em contraposição aos “apocalípticos” sente uma certa sedução pela mutação
cultural que aí se produz.
Segundo Martin-Barbero (2001: 94), essa mudança de análise da cultura de massa operada
por Morin se define em duas direções:
(...) a estrutura semântica – campo de operação de significação e significações arquetípicas – e os
modos de inscrição no cotidiano. O avanço primordial no primeiro aspecto na descrição da
operação de sentido que constitui o dispositivo básico de funcionamento da indústria cultural: a
fusão dos dois espaços que a ideologia diz manter separados, isto é, o da informação e o do
imaginário ficcional. Isso implicará, por um lado, uma análise histórica das matrizes culturais e das
transformações sofridas pelo campo da imprensa e da literatura, que possibilitaram a comunicação
entre esses dois espaços.
A perspectiva de fusão desses dois espaços abre caminho para a compreensão da indústria
cultural não apenas como um fenômeno que se define pelas relações econômicas em seu sentido
estrito, mas sim pelas complexas relações culturais mediadas pela infindável teia de significados
constituídos por meio da palavra e do signo. Dessa forma, há uma relação de retroalimentação
entre realidade e imaginário permeada pelo signo (lingüístico ou não). Segundo Bakhtin (2002:
41), o estudo dessa relação permitiria descobrir “(...) como a realidade (a infra-estrutura)
determina o signo, como o signo reflete e refrata a realidade em transformação.” (grifos do autor).
Portanto, em nossa perspectiva de análise, é impossível conceber que haja uma relação
mecanicista de produção-consumo dos produtos televisuais, uma vez que estes, tanto quanto
qualquer outro produto da indústria cultural, estão sujeitos a relações muito mais complexas que
as ditadas no plano financeiro, embora estas sejam importantíssimas.
A minissérie Grande Sertão: Veredas como produto televisual da comunicação de massa
insere-se em um quadro da indústria cultural (Morin 2005) e está sujeita às injunções típicas das
produções dessa esfera econômica que prevê de um lado produtividade por parte de seus
trabalhadores e alta lucratividade como resultado final e, de outro, criatividade constante para que
esses objetivos se concretizem. Por isso, Morin (2005: 25-26) adverte que a industria cultural
opera “(...) entre dois pares antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade.” Nas
próximas páginas, discutimos como as injunções determinadas em grande parte por essa relação
antitética aparecem nas diversas etapas do processo de realização da minissérie Grande Sertão:
Veredas.
145
7.1. A minissérie: ponto de tensão entre a criação individual e a indústria cultural
O trabalho conjunto de dois especialistas da televisão brasileira, Durst e Avancini
211
, e da
mais poderosa emissora e produtora brasileira de ficção televisual tornou possível a concretização
de um projeto de grande envergadura como a realização da minissérie Grande Sertão: Veredas. A
grandeza do projeto e a realização da minissérie marcaram para sempre a vida desses dois
pioneiros da teledramaturgia brasileira. Avancini sempre considerou a minissérie Grande Sertão:
Veredas como seu melhor momento na televisão. Momento esse caracterizado como
representativo de um ato de coragem:
Na verdade, acho que Grande Sertão: Veredas (1985) foi o meu momento mais corajoso e
também o mais perfeito. Isso por que para se ler Guimarães Rosa é preciso ter paixão, para fazer a
transposição de Guimarães Rosa para um audiovisual, além de paixão, é preciso ter loucura.
(Mattos 2004: 169
)
Avancini
212
também relata na mesma entrevista
213
que, em 1982, já havia proposto a
minissérie a José Bonifácio Oliveira Sobrinho
214
e que este havia se mostrado relutante, porém
Avancini se dizia resoluto chegando até a iniciar os figurinos. Entretanto, sua aparente certeza
desapareceu na última hora e ele resolveu adiar o projeto
215
. Segundo ele, isso ocorreu porque na
viagem que fez naquela época não tinha conseguido enxergar “os sertões de Guimarães Rosa”.
211
Houve participação do roteirista José Antonio de Souza na elaboração do roteiro final. Segundo o roteirista,
Avancini o convocou para dar um “segundo tratamento aos capítulos já escritos por Durst”. Cf. press-release p. 14.
212
Durante nossa pesquisa, não foi possível saber com precisão de quem partiu a idéia de fazer a transposição do
romance para a televisão, porém Durst, respondendo a uma pergunta de Hélio Guimarães (1995) sobre se ele tinha
interesse antigo no livro, respondeu: “Eu conhecia o livro há tempos e tinha um amigo chamado Túlio de Lemos,
que era um grande leitor. Ele volta e meia me dizia: “Escuta, por que você não faz uma adaptação do Grande Sertão:
Veredas? Você tem que fazer isso um dia.” Mas foi passando, passando, passando. Eu pensei comigo: o Brasil vai
cair em cima de mim. Mas depois teve um daqueles momentos em que eu pensei: “Bom, tantos anos de televisão, o
que é que eu fiz realmente de notável? Nada. Então eu vou fazer o seguinte: Grande Sertão: Veredas
, eu fazer
alguma coisa nascer na televisão de certa forma.”(...) Evidentemente levei quatro anos propondo, estudando e
fazendo, mas consegui.”
213
Em entrevista concedida a Gonçalo Silva Jr., Pais da TV ..., p. 333, quando indagado se tinha sido difícil fazer “a
minissérie Grande Sertão: Veredas, por causa da singularidade da narrativa de Guimarães Rosa”, Avancini
respondeu: “foi uma delícia fazer Guimarães rosa. A palavra “difícil”pode ser usada quando não se acha gostoso o
que está se fazendo. E tive essa felicidade e ousadia de não fazê-la já em 1982.”
214
José Bonifácio Oliveira Sobrinho, o Boni, ingressou na Rede Globo de Televisão onde “(...) deu contribuição
histórica à TV. Ao lado de Walter Clark, morto em 1997, ele definiu a identidade da principal emissora do país,
estabelecendo o ‘padrão Globo de qualidade’.” (entrevista publicada nas “páginas amarelas” da revista Veja, em
18.06.2003). Deixa a Rede Globo no início de 2003.
215
Oliveira (1999), A televisão como “tradutora” ..., vê além dos problemas citados por Avancini, problemas de
ordem financeira e mercadológica, pois a Rede Globo estaria preocupada com a entrada no ar do SBT e por isso
precisava reestruturar sua programação para fazer frente à nova rede concorrente.
146
Dentro do nosso quadro de análise, é interessante observarmos que, aparentemente, o fato
de ter desistido, em 1982, de fazer a minissérie apenas uma semana antes de começarem as
gravações não causou fortes abalos no prestígio que o diretor possuía junto à direção artística da
Rede Globo, pois ele continuou a dirigir minisséries e chefiar um núcleo de criação e
produção
216
. Em meados 1985, foi-lhe confiada a direção de Grande Sertão: Veredas, “a maior
produção em vídeo em todo o mundo.”
217
Esse fato, aparentemente contraditório dentro de uma
empresa capitalista pode ser explicado se levarmos em consideração as discussões de Morin
(2005) quanto ao papel essencial que possuem os criadores dentro da indústria cultural, eles
fornecem uma espécie de oxigênio ao ar cansado e estereotipado das produções de massa, por
isso as empresas desse segmento dão tanto valor aos profissionais que desafiam o lugar-
comum.
218
A realização da minissérie foi amplamente divulgada na imprensa por meio de
reportagens publicadas desde o início das gravações e pelas entrevistas concedidas por atores,
adaptadores e diretor. Nessas entrevistas, procurava-se dimensionar para o publico em geral a
grandiosidade dos esforços da Rede Globo bem como a coragem e a capacidade técnica e artística
de seus diretores, atores e profissionais que tinham aceitado o desafio de adaptar a obra-prima de
Guimarães Rosa para a telinha de televisão. Dessa forma, estrategicamente
219
, a emissora busca
captar para si e para sua produção o prestígio nacional e internacional da obra literária.
O momento escolhido para lançamento de Grande Sertão: Veredas é também
significativo e evidencia a ênfase dada pela empresa cujos programas primavam pela busca de
um padrão de televisão de elevada qualidade técnica e artística.
220
Porém, esse momento de
216
De acordo com o DG, p. 307-316, entre 1982 e 1985, Walter Avancini dirigiu as seguintes minisséries: Avenida
Paulista (de 10 a 28 de maio de 1982, 15 cap.); Moinhos de Vento (3-7 de janeiro de 1983, 5 cap.); Anarquistas,
graças a Deus (7-17 de maio de 1984, 9 cap.); Rabo de Saia (de 8 de outubro a 2 de novembro de 2004, 20 cap.) e
supervisionou a minissérie Fernando da Gata (14-15 de fevereiro de 1983, 2 cap.)
217
Esse é o título da reportagem de Pedro Costa, publicada no Jornal da Tarde, São Paulo, de 04.06.85, p. 15.
218
Edgar Morin, Cultura de massas no século XX: Neurose, p. 29, afirma: “(...) a indústria cultural precisa de um
elétrodo negativo para funcionar positivamente. Esse elétrodo negativo vem a ser uma certa liberdade no seiode
estruturas rígidas.”
219
Helio de S. Guimarães, Literatura em televisão ..., p. 52 e passim, afirma, baseado em exaustiva pesquisa em
revistas dedicadas à programação de TV nas décadas de 1950 a 1990, que é comum às emissoras adotar esse tipo de
procedimento para captar o prestígio de filmes ou de livros que eram adaptados (fato que não se restringia somente
às emissoras de televisão, as emissoras de rádio também faziam uso desse expediente).
220
Anna Maria Balogh, in: Conjunções – Disjunções – transmutações da literatura ao cinema e à TV, p. 150, afirma: “Por essa
razão, escolheu-se um marco histórico: as festividades dos vinte anos da Globo, momento em que a emissora estava no seu
apogeu, com picos de audiência inimagináveis, como os de Roque Santeiro. Assim, Grande Sertão: Veredas faz parte de um
período histórico privilegiado em que a Globo comemora, de fato, o seu êxito, e as minisséries, feitas com grande esmero visual e
uma produção grandiosa e caprichadíssima tornam-se um marco na produção televisiva em geral. Grande Sertão: Veredas
147
criatividade e qualidade técnica deve ser visto dentro de um quadro processual mais amplo que
foi se firmando ao longo da década de 1970 com o amadurecimento das produções ficcionais da
Rede Globo de Televisão conforme atestam as palavras de Avancini em entrevista concedida em
30.07.1999 a Gonçalo Silva Jr. (2001: 331):
No final dos anos 70 e começo dos anos 80 aconteceu o grande período de realização de nossas
novelas, quando surgiram experiências importantes – talvez pelo já monopólio total de audiência
da Globo, mas muito pela sensibilidade do Boni também, quando se criaram alternativas como os
seriados Carga Pesada, Plantão de Polícia e Malu Mulher (todos de 1979), e as minisséries, como
Lampião e Maria Bonita (1982), Avenida Paulista (1982), Quem Ama não Mata (1982) e O tempo
e o Vento (1985). Daí em diante lá fui eu fazer minhas minisséries, como Anarquistas, Graças a
Deus (1984), Rabo de Saia (1984) e Grande Sertão: Veredas (1985).
Também nessas palavras podemos encontrar o paradoxo que se instaura na indústria
cultural na medida em que esta impõe um sistema de produção industrial à criação, emergindo
nessa situação a criação industrializada. Conforme Morin (2005: 25):
A concentração técnico-burocrática pesa universalmente sobre a produção cultural de massa.
Donde a tendência à despersonalização da criação, à predominância da organização racional de
produção (técnica, comercial, política) sobre a invenção, à desintegração do poder cultural.
Podemos encontrar no discurso de Avancini, de forma latente, a contradição que se
apresenta para o artista que trabalha na indústria cultural, na medida em que o diretor afirma que
o estágio de desenvolvimento e de qualidade das minisséries faz parte de um todo maior, pode-se
dizer até de uma criação coletiva, porém, logo em seguida, praticamente se contradiz ao se referir
às minisséries dirigidas por ele, Avancini diz “eu fui fazer as minhas minisséries”. Uma produção
da indústria cultural é o resultado de um trabalho parcelado e complementar organizado,
hierarquizado que segue uma padronização racional (obviamente necessária a todo processo
industrial); entretanto, em certa medida, Avancini o vê como algo pessoal, de criação única,
irreproduzível. De acordo com Morin (2005), é justamente nessa contradição entre o padronizado
e o fora de padrão que há um sopro de inovação, em que a criatividade se sobrepõe ao já-visto e
ao já-imaginado e faz surgir um produto único:
“No entanto, essa tendência [concentração técnico-burocrática], exigida pelo sistema industrial, se
choca com uma exigência radicalmente contrária, nascida da natureza mesma do consumo cultural,
representa o ápice desse processo, o desafio maior, pelas dificuldades que a obra de Guimarães Rosa apresenta para a sua
transposição.”
148
que sempre reclama um produto individualizado, e sempre novo.” (grifos do autor) (Morin 2005:
25)
Dessa forma, é possível compreendermos as palavras de Avancini que paradoxalmente
coloca seus trabalhos dentro de um quadro (processual) de produção industrializada (na medida
em que ele só é possível devido a um conjunto de outros trabalhos da indústria cultural) ao
mesmo tempo em que os considera, em alguma medida, como produtos de sua criação
individual
221
. Tentando compreender esse paradoxo, consideramos que os trabalhos de criação na
indústria cultural envolvem o trabalho coletivo numa perspectiva um pouco diferente daquela
geralmente entendida como industrial. O trabalho, de certa maneira, coletivo numa obra artística,
mesmo na industria cultural, não pode basear-se na homogeneização; ao contrário, sua marca
identitária reside na diferenciação, uma vez que se sustenta sobre os pilares da criatividade dos
diversos profissionais (figurinistas, cenógrafos, músicos, iluminadores, maquiadores) envolvidos
nas várias etapas de produção. Trata-se de um trabalho que se caracteriza pela aglutinação, pela
interação de diversos artistas envolvidos na produção de um trabalho artístico regido, como já se
disse, pelas implacáveis leis da indústria cultural. Leis que punem deslizes de diretores, atores e
atrizes com o esquecimento rápido e que fazem sucumbir, às vezes, também por pequenos
deslizes, mesmo aqueles que tenham sido alçados à categoria de ídolos
222
.
7.2. O autor, o produto e a produtora
Consideramos que num trabalho marcado pela organização e pelas pressões da indústria
cultural, o diretor da minissérie, Walter Avancini, converte-se numa espécie de regente de
orquestra, que trabalha tanto com virtuoses quanto com o pessoal menos especializado, sob sua
batuta atuam desde figurantes desconhecidos a estrelas renomadas por seu talento ou por seu
apelo comercial, atuam assistentes de direção e de produção. Enfim, há um séquito enorme de
profissionais que obedecem às suas instruções com a finalidade única de dar acabamento estético
221
Edgar Morin, Cultura de massas no século XX ...., p. 25, afirma ainda que: “A indústria cultural deve, pois,
superar constantemente uma contradição fundamental entre suas estruturas burocratizadas-padronizadas e a
originalidade (individualidade e novidade) do produto que ela deve fornecer. Seu próprio funcionamento se opera a
partir desses dois pares antitéticos: burocracia-invenção, padrão-individualidade.” (grifos do autor)
222
Afinal, como afirma Edgar Morin, As estrelas ..., p. 69: “A divindade da estrela é passageira. O tempo a corrói.
Ela só pode escapar ao tempo através das recordações...”
149
a um produto audiovisual completo que, em princípio, só existe na cabeça do realizador. Por isso,
sempre que aludirmos ao autor da minissérie, estaremos nos referindo a Walter Avancini o que
não significa que não tenhamos noção de que há um trabalho autoral de grande valor executado
com brilhantismo por parte dos excelentes artistas que trabalharam com ele: a titulo de exemplo,
citamos o trabalho criativo e artístico feito por Walter George Durst, com relação à
transformação do texto literário em roteiro televisivo, e o trabalho do maestro Júlio Medaglia que
se dedicou com afinco à pesquisa musical para conseguir se aproximar da musicalidade do sertão
e do sertanejo, fator tão importante para o próprio Guimarães Rosa
223
.
Para Morin (2005: 32), “a indústria cultural utiliza e engana” o autor “ao mesmo tempo
em sua tríplice qualidade de artista, de intelectual e de criador.” O primeiro movimento desse
processo se daria pelo pagamento de altos salários a escritores e jornalistas de talento, “ela,
porém, não faz frutificar senão a parte desse talento conciliável com os padrões.” (Morin 2005:
32). E isso poderia levar o autor a não se identificar com sua obra, vista então não como produto
de sua criatividade, mas como algo imposto pelo “sistema”. Encontramos em alguns trechos do
Press release passagens em que Durst e Avancini quase pedem desculpas por terem sido
obrigados a fazer concessões em função das características do meio televisual. Principalmente,
quando os dois profissionais de televisão procuram identificar (mesmo que isso não seja feito
claramente) seu trabalho criativo com o de Guimarães Rosa. São exemplos dessa tensão (e até
frustração) a fala de Durst:
O Guimarães Rosa tem como ponto de partida uma coisa que já o destaca do grosso da
literatura brasileira e lhe dá um a posição singular: ele odiava o lugar-comum. (...)
Pessoalmente, e sem qualquer paralelo, também odeio o lugar comum. Meu dedo parece
morrer na máquina quando escrevo uma cena que sei que já foi feita. (...) Eu, por
exemplo, que sinto também nojo pelo lugar-comum, percebo no entanto, que, para falar
com o público, devo dar a ele pelo menos alguma coisa parecida com o lugar-comum.
(Press release: 9)
Ou o seguinte trecho de Avancini:
(...) eu afirmo que, se conseguir 15% da obra de Guimarães Rosa, acho que já é um percentual
excelente, dentro desse processo industrial. Com mais tempo talvez eu chegasse a uns 30%. Com
tempo ideal, quiçá 40% do que essa obra pede, o que seria uma margem maravilhosa para quem
223
Cecília de Lara, em palestra intitulada “O ourives da palavra”, proferida em Veredas: Seminário internacional
João Guimarães Rosa, promovido pelo IEB-USP, de 15 a 19.05.06, afirma que em correspondência com um de seus
tradutores Guimarães Rosa afirmava: “Acho também que as palavras devem fornecer mais do significam: música,
som ...”
150
conhece o gabarito de Guimarães Rosa. Mas são muito poucos os que o conhecem e não foi para
estes que fiz o programa. Assim, não importa que se frustrem. Eu também me frustro. O que me
importa é que a grande maioria do público, que jamais teve qualquer contato com Guimarães Rosa,
sinta um pouco de prazer em conhecê-lo. (Press release: 8)
Dessa forma, procura-se justificar uma provável queda na qualidade artística do produto
televisual em razão das concessões que precisaram ser feitas para que esse mesmo produto se
constituísse sob a égide da indústria cultural. Porém, a relação invenção-padronização é
característica da indústria cultural que por meio dela se revitaliza
224
. Para Morin (2005: 28), “a
contradição invenção-padronização é a contradição dinâmica da cultura de massa. É seu
mecanismo de adaptação ao público e de adaptação do público a ela. É sua vitalidade.”
Entretanto, é importante que se frise que apesar dessas injunções, ambos, adaptador-roteirista e
diretor, sentem-se felizes por terem conseguido transpor para televisão a obra-prima de
Guimarães Rosa. Segundo Durst:
Guimarães se mantém no mistério, com uma visão rigorosamente moderna (...). É uma visão
poética, segundo a qual só existe o que soubermos fazer, que seja permitido pelo mistério. É uma
coisa linda, sensacional. E é esse o tamanho do que, loucamente, eu e o Avancini tentamos colocar
na televisão. Enorme! (Press release: 13)
E é justamente sobre essa contradição inerente à indústria cultural que a Rede Globo de
Televisão costuma trabalhar suas “chamadas” de telenovelas, ou de minisséries. Suas chamadas
estão calcadas sobre a estrutura de um padrão (Globo) de qualidade - cujo nome (padrão
225
)
remete bem ao que disse Morin (2005) - e sobre a criatividade de seus principais autores de
telenovelas que, às vezes, recebem tratamento (e pagamento) superior ao dado a astros e estrelas
da mesma emissora. Segundo essa mesma lógica, os diretores de telenovelas e minisséries de
sucesso são festejados e recebem tratamento diferenciado nas “chamadas” da programação e na
hierarquia da organização burocrática. Fariam parte de uma espécie de star system (Morin 1989)
brasileiro cujo glamour se revelaria por meio da liturgia da qual fariam parte as reportagens
especiais ou participações do autor em programas com o elenco da telenovela ou minissérie em
que o autor é chamado a explicar suas personagens e, ao mesmo tempo, é festejado por sua
224
A esse respeito é interessante acrescentar a seguinte observação de Umberto Eco, Apocalípticos e integrados, p.
80, “(...) a situação antropológica da cultura de massa delineia-se como uma contínua dialética entre propostas
inovadoras, as primeiras continuamente traídas pelas últimas: com a maioria do público que frui das últimas julgando
adir a fruição das primeiras.”
225
A expressão “padrão de qualidade Globo” foi amplamente trabalhada e difundida pela Rede globo de Televisão,
sobretudo a partir dos anos 1970, com o objetivo de diferenciar seus programas daqueles produzidos pelas outras
emissoras de televisão.
151
genialidade
226
. Dessa forma, individua-se a produção cultural, apela-se para a criatividade como
manifestação de uma individualidade que, paradoxalmente, só faz sentido porque está inserida
num quadro de produção coletiva, hierarquicamente organizada e industrialmente incluída no
espaço da comunicação de massa. É ainda dentro dessa lógica que Avancini (press release p. 2)
afirma:
Tem uma fala do Riobaldo que diz o seguinte: “Assim eu acho, assim é que eu conto.” Acho que
meu trabalho final é assim. Só pode ser assim. Essa é a minha versão de Guimarães. Assim é que
eu conto. Mas sempre a partir do que Guimarães escreveu, numa tentativa muito sincera de tudo
ser a partir de sua obra.
O estudo mais detalhado dos artigos e reportagens publicados na imprensa revela que um
dos aspectos mais discutidos refere-se à marca autoral que Avancini imprimiu à obra de
Guimarães Rosa. Um exemplo disso encontramos na legenda de uma foto de meia página da
revista Istoé, de 18.12.85, na qual aparece o bando de jagunços tendo à frente Riobaldo (Tony
Ramos) e Diadorim (Bruna Lombardi): “O sertão de Avancini: recuperando em 25 capítulos a
mágica de Guimarães Rosa.”
Nessa perspectiva, estrutura-se o Press release distribuído pela emissora na época do
lançamento da minissérie Grande Sertão: Veredas. Nesse documento, busca-se relacionar a
criatividade e a sensibilidade estética do diretor e de sua equipe ao trabalho minucioso para a
reconstrução do “sertão de Guimarães Rosa”. Opera-se então um segundo nível de identificação:
o primeiro nível consistiu na identificação de Avancini à obra de Guimarães Rosa (e, em certa
medida, identifica-se a genialidade do segundo como definidora da genialidade do primeiro);
agora, num segundo nível, opera-se a identificação entre a genialidade de Avancini (que, de
alguma forma, remete, como vimos, à genialidade de Guimarães Rosa) e as condições únicas de
sua realização por meio dos recursos humanos, artísticos e técnicos oferecidos pela Rede Globo
de Televisão (às vezes vista como a única possibilidade de realização de tamanho intento
artístico). Boa parte desse efeito é conseguida por meio das matérias veiculadas na imprensa e
pelo próprio conteúdo do press release. Como em um efeito cascata, o prestígio de Guimarães
226
Referimo-nos principalmente a autores de telenovelas que participam de programas como Vídeo Show e
Domingão do Faustão em que, via de regra, ao se iniciar a exibição de uma telenovela ou minissérie os artistas e
autores são convidados a participar do programa. Essas aparições podem se tornar mais freqüentes tanto devido ao
sucesso quanto ao insucesso do produto televisual. No primeiro caso, para manter e celebrar o sucesso; no segundo,
para aumentar a audiência de uma telenovela que claudica nos índices de audiência. De qualquer forma, seja qual for
o objetivo, enriquece-se o que Morin (1989) denomina “a liturgia das estrelas”.
152
Rosa impregna o trabalho de Avancini; trabalho este que só pode se realizar dentro da estrutura
artística e técnica do “padrão de qualidade Globo”. Aliás, pode-se analisar a manchete e o
conteúdo da reportagem assinada por Costa
227
(que, quase seis meses antes da estréia da
minissérie, dedicou uma página inteira ao assunto): A maior produção em vídeo em todo o
mundo, ilustrando a reportagem, que ocupava meia página, aparece a foto de Riobaldo (Tony
Ramos) a cavalo em meio à mata da qual sobressai parte da cabina de um caminhão-guindaste em
cuja extremidade está instalado um camera man filmando. Enfatizam-se os custos altíssimos
demandados por uma produção maiúscula, ao mesmo tempo em que se ressaltam as qualidades
das equipes técnica e artística:
Há algo de novo no sertão. Ali, seguindo a trilha descrita por João Guimarães Rosa, a maior rede
de televisão brasileira está realizando a maior produção feita até hoje em todo o mundo em
videoteipe. Para Walter Avancini (que já capitaneou quase três mil pessoas em um só dia desde
que as gravações começaram há cerca de 40 dias), a Globo, com toda a sua grandiosidade, não
daria conta de promover outro evento desta envergadura, tendo de abrir mão para as produtoras
independentes.
O orçamento de Cr$ 4,7 bilhões, 52 ônibus, as sete mil refeições e as 500 caixas de água mineral
consumidas num só dia não impressionam quem visita o desenrolar dessa epopéia. O que salta aos
olhos é como uma equipe de produção chefiada por Paulo Laborda com a ajuda de três
coordenadores e seis assistentes, consegue fazer funcionar uma cidade ambulante, integrada por
quase três mil pessoas, 800 cavalos e até um minizoológico mambembe emprestado pelo IBDF em
que jaguatiricas, onças, lobos, tamanduás e capivaras aguardam uma ordem para entrar em ação.
(grifo do autor)
Em outra matéria assinada por Lage
228
, a tônica da reportagem recai sobre os aspectos da
capacidade criativa e técnica do pessoal envolvido cujo trabalho só é possível devido à estrutura e
ao gigantismo dos investimentos feitos pela Rede Globo de Televisão:
Caro e grandioso esse espetáculo. A avaliação é de que a Globo tenha desembolsado cerca de Cr$
6 bilhões para realizar 30 capítulos, reduzidos para 25 na mesa de edição. Foram quase 90 dias
pelo interior do Brasil, rodando o norte de Minas e boa parte do oeste de Goiás. Em Paredão, a 70
quilômetros de Pirapora, Curvelo e São Domingos, foram montadas bases de trabalho de onde se
deslocavam equipes que variavam de 250 até 2 mil pessoas. Consumiam-se, por semana, oito
dúzias de base para maquiagem, 50 litros de sangue cenográfico, 13 mil copos d’água por jornada
de gravação e um boi a cada refeição. São números – e faturas – que mostram, evidentemente, o
empenho da emissora em realizar o espetáculo.
Uma das vertentes do processo de identificação do trabalho autoral com o trabalho
parcelado e coletivo da indústria cultural efetua-se pela valorização da escolha das locações cuja
227
Pedro Costa
, A maior produção em vídeo em todo o mundo, Jornal da Tarde-SP, de 04.06.1985, p. 15.
228
Míriam Lage, Grande Sertão: Veredas, Jornal do Brasil, de 18.11.1985, caderno B, p. 6.
153
qualidade a remetia à categoria (“superior”) das produções cinematográficas e ao jamais-visto na
televisão brasileira:
Optando por uma linha francamente identificada com a das produções cinematográficas, Walter
Avancini fez do sertão não só personagem, mas inspiração absoluta deste trabalho. E pela primeira
vez a televisão brasileira deixou seu habitat natural e transformou uma locação em sujeito e objeto.
(Press release: 24)
Também em relação à escolha dos atores que trabalhariam praticamente isolados no sertão
de Minas, Avancini foi cauteloso:
Sabia que não seria fácil e escolhi pessoas com um tipo de comportamento e sensibilidade
adequados para essa aventura. No primeiro mês de trabalho, liberei os que não conseguiram se
integrar ao ambiente, sem qualquer punição. Assim, entre os que ficaram criou-se um clima da
maior harmonia. Curtíamos até as dificuldades! Sem dizer que, nesse processo, tive, nos três
protagonistas, Bruna, Tony e Tarcísio, cúmplices muito fortes. Cito apenas estes, porque sobre eles
estava a maior carga de trabalho. Formamos um quarteto que conseguiu projetar calma e
tranqüilidade e acho que saíamos de lá seres humanos melhores, com alguma coisa diferente de
diferente, de novo, para melhor. (Press release: 6)
É interessante observar que esse clima de cooperação também foi notado pelos repórteres
que estiveram no set de gravações. Destaco comentário feito por Costa
229
segundo o qual
Avancini creditava o bom ambiente de trabalho à “magia” que o sertão exercia sobre as pessoas,
como se o ambiente místico do livro se irradiasse para a minissérie:
O que vem realimentando a equipe, para Avancini, é a magia do sertão. Esta magia pode ser
comprovada. Qualquer pessoa que presenciar as gravações que começam invariavelmente às 6
horas e terminam no final da tarde, quando não se adentram pela noite, verá que Tony Ramos está
literalmente tomado pelo sempre introspectivo e questionante jagunço Riobaldo (...) o mesmo
acontece com Bruna Lombardi, no papel de Diadorim, que por recomendação de Avancini se
despojou dos trejeitos de mulher urbana – e bela –, superando a fragilidade feminina.
Em consonância com essa perspectiva, a emissora ressalta, no Press release e em
entrevistas concedidas pela equipe de produção na imprensa em geral, ainda as grandes
229
Em matéria intitulada No vídeo, a saga de Riobaldo e Diadorim, publicada no Jornal da Tarde, de 04.06.1985.
Além dessa reportagem, citamos outra, Em Minas Gerais, a Globo revive o “Grande Sertão”, assinada por Âmbar de
Barros (que também esteve no set de gravações), publicada no jornal Folha de S. Paulo, p. 41, de 31.05.1985: “Do
desconforto, as grandes estrelas, Bruna e Tony e o próprio Avancini não reclamam, e invocam o desafio de trazer
para a TV a obra de Guimarães Rosa como bálsamo para as vicissitudes da vida campestre. Já os “reles mortais”,
depois de dois meses longe de casa começam a dar sinais de desânimo diante da dura realidade: jornadas de até doze
horas de trabalho sob sol escaldante, entre carrapatos, mosquitos, cobras (...) e onde banheiro é miragem.”
154
dificuldades enfrentadas
230
pela equipe de produção e as soluções encontradas para superá-las no
sentido de produzir uma minissérie jamais vista nas telinhas brasileiras:
Esse procedimento determinou um comportamento absolutamente original, em termos de uma
produção de TV brasileira, afora resultar numa série feita 100% em locação, tanto exteriores
quanto interiores. Porque foi necessário montar toda uma infra-estrutura que permitisse a
instalação do que se apelidou Rede Globo-Paredão
231
, uma óbvia brincadeira que comentava a
incrível aliança entre o avanço tecnológico e a precariedade de uma base de trabalho que nem
consta no mapa do país. A montagem dessa linha de produção.
Porém, é importante dentro quadro teórico com que trabalhamos que nem todos os
principais atores ficaram satisfeitos com a estrutura montada e a forma de trabalho adotada.
Dentro do material jornalístico do corpus, encontramos apenas uma voz discordante entre os
principais artistas da minissérie em relação às facilidades e planejamento da Rede Globo. Trata-
se de José Dumont que, em reportagem de Costa
232
, afirma que está “decepcionado com o
trabalho e com a Rede Globo. Apesar de respeitar o diretor Walter Avancini – “ele é um
profissional completo” -, José Dumont afirmou que a Globo utiliza métodos da década 70,
reduzindo as pessoas à década de 60 para fazer um seriado para a década de 80.” É o próprio José
Dumont quem explica:
A Globo reduz o pessoal que trabalha para ela a uma condição terceiro-mundista. Ela exige
constantes superações das pessoas. Quanto mais nos esforçamos, mais ela nos suga, reduzindo-nos
a lixo. Não questiono seu poder, que poderia ser melhor utilizado se fossem respeitadas as pessoas,
longe desse hitlerismo que domina as relações da empresa com seus empregados principalmente os
pequenos e médios que em última análise fazem o sucesso da Globo.
Observa-se por meio desse depoimento que a rotina de trabalho a que foram submetidos
os atores e a equipe de produção foi bastante desgastante. Fato que fica evidente em outro trecho
da mesma reportagem, Costa relata que:
230
Há algumas matérias jornalísticas em que se ressaltam as dificuldades encontradas pelos atores e pela equipe
principalmente no que diz respeito ao enfrentamento das dificuldades encontradas no set de gravação. Citamos, como
exemplo, reportagem de Âmbar de Barros, Em Minas Gerais, a Globo revive o “Grande Sertão”, publicada na Folha
de S. Paulo, p. 41, de 31.05.1985: “Do desconforto,as grandes estrelas, Bruna, Tony e o próprio Avancini não
reclamam, e invocam o desafio de trazer para a TV a obra de Guimarães Rosa como o bálsamo para as vicissitudes
da vida campestre. Já os “reles mortais”, depois de dois meses longe de casa, começam a dar sinais de desânimo
diante da dura realidade: jornadas de até doze horas de trabalho sob sol escaldante, entre carrapatos, mosquitos,
cobras (há muitas na região) e onde banheiro é miragem.” Outros exemplos seriam: A maior produção em vídeo do
mundo, publicada no Jornal da Tarde, p. 15, de 04.06.1985; Luz no sertão, publicada na revista Veja, p. 119, de
22.05.1985.
231
Impossível não perceber um certo trocadilho entre Rede Globo-Paredão e “Padrão Globo”, termo a que aludimos
anteriormente.
232
Pedro Costa, A maior produção em vídeo em todo o mundo, publicada no Jornal da Tarde, p. 15, de 04.06.1985.
155
De vez em quando acontecem brigas feias. Duas maquiadoras, por exemplo, se dizem extenuadas
por terem de maquiar cerca de 400 pessoas todos os dias em apenas duas horas, e a todo instante
ameaçam se demitir. Entra em cena, às vezes, o diretor Walter Avancini, provido de um espírito
conciliador que daria inveja a um experiente político mineiro. O ator Walter Santos já usou o
chicote numa briga com Luiz Fernando [de Carvalho], mas os dois foram apaziguados.
Num relato menos contundente em relação à Rede Globo, mas não menos forte em relação ao
desgaste emocional de se
de trabalhar “no limiar do precipício”, Bruna Lombardi
233
(apud Lobo
2000: 203) escreveu:
Às vezes me sinto num acampamento de guerra, com todas as neuras e nóias. Pedro, doctor AAS,
médico da equipe, parece ter saído do filme Mash. Quem pode, segura o tranco com humor. Os
centros nervosos vivem abaladíssimos. Aqui tudo é superlativo, extremado, todos vivem no limiar
do precipício. Tem sempre alguém aos prantos, passando mal, em estado catatônico, hipertenso,
altas crises, dor no rim, princípio de enfarte, etc.
Considerando os relatos acima, principalmente o de José Dumont, pode-se dizer que o
“padrão Globo de qualidade” ficou um pouco aquém do que se esperava em uma produção de
tamanha magnitude. São as regras da produção industrial que acabam suplantando as
necessidades da criação. Porém, o artista usa de sua criatividade e de sua vontade para superar os
obstáculos que se interpõem entre ele o objeto artístico.
Assim, por meio dos discursos da emissora e de alguns órgãos de imprensa, somos
levados a crer que, em termos de produção ficcional a minissérie representa um marco não
apenas por seu conteúdo “inovador”, ou pelo tratamento estético das imagens, mas também pela
grandiosidade dos custos e do empenho técnico de uma equipe de produção e de um diretor que
não se contentavam com o lugar comum, com a mesmice do já-visto. Evidencia-se a tessitura de
uma complexa rede de significados que se constrói por meio dos discursos a respeito da
minissérie na imprensa em geral e no próprio boletim de divulgação (Press release), não
queremos com isso afirmar que o esforço da emissora se reduziu aos discursos; ao contrário,
porém é por meio desses discursos que a emissora se qualifica como principal produtora de
ficção televisiva brasileira e busca se legitimar como principal voz da nacionalidade brasileira
234
.
233
Bruna Lombardi escreveu Diário do Grande Sertão durante o período em que esteve gravando no sertão. Seu
livro foi publicado em 1987 pela Editora Globo.
234
Cf. Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, principalmente p. 39-45.
156
7.3. O trabalho coletivo, parcelado e complementar na minissérie Grande Sertão: Veredas
A minissérie é um produto da indústria cultural e, portanto, fruto de um trabalho
parcelado e complementar de várias pessoas organizadas sob a égide da produção industrial. Seu
acabamento estético e sua colocação dentro de um sintagma narrativo televisual couberam ao
diretor e roteirista final, Walter Avancini. Neste momento de nosso trabalho, abordamos algumas
questões referentes às relações que se estabelecem num regime de trabalho determinado pela
tensão entre criação-padronização (Morin 2005) e que podem determinar, em grande parcela, o
sucesso ou o fracasso de uma produção da indústria cultural.
Durst, o principal arquiteto do texto do roteiro televisivo, destaca que precisou, contra sua
vontade, fazer uso do lugar-comum para atingir o grande público, mesmo sabendo que isso ia de
encontro ao que pretendia Guimarães Rosa. O adaptador se vê obrigado a usar lugares-comuns
para agradar ao grande público, pois precisa “jogar com signos conhecidos deste público, para
levá-lo a se desprender do seu mundo e entrar no meu.”
(Press release:. 9) De certa forma, define-se
a linguagem que deverá ser buscada: original que, paradoxalmente, porém, se assenta sobre
signos conhecidos. Algo semelhante ao “reciclar” de Avancini. Trata-se de dosar o conhecido e o
desconhecido Durst completa:
(...) Assim, em Guimarães Rosa, há o sofrimento, colocado como tese, e tendo como antítese a sua
própria contradição. A síntese disso é sempre o mistério, com uma visão rigorosamente moderna,
de uma humanidade que acreditou saber tudo sobre a Ciência, que tinha dominado tudo, e, de
repente, foi obrigada a descrer. É uma visão poética, segundo a qual só existe o que soubermos
fazer, que seja permitido pelo mistério. É uma coisa linda, sensacional. E é esse o tamanho do que,
loucamente, eu e o Avancini tentamos colocar na televisão. Enorme! Mas, seja qual for o resultado,
meu grande prêmio foi me debruçar sobre Guimarães Rosa, sobre o GRANDE SERTÃO. Meu
grande prêmio foi mergulhar nessa obra maravilhosa, tão complexa, tão sem fundo, tão mágica. O
outro seria que GRANDE SERTÃO: VEREDAS saísse da décima-sétima edição. É o mínimo que
Guimarães merece. (Press Release: 13)
O roteirista colaborador, José Antônio de Souza, mineiro da “beira do Rio São Francisco”
(Press release: 14) homem de teatro
235
(ator, autor, diretor), que foi convidado por Avancini para
235
Sua carreira teatral teve início no curso de atores do Teatro Universitário da UFMG, participando das montagens de Eles não
usam Black-tie, O Pagador de Promessas, Vestido de Noiva e Sonho de uma Noite de Verão. É fundador do Grupo Geração.
Mudou para São Paulo em 1973, teve encenados seus textos Mal Secreto, Oh Carol!, Pássaro da Noite e Crimes Delicados, entre
outros. Escreveu o romance Paixões Alegres, indicado para o Prêmio Nestlé de 1997.
157
dar um tratamento final ao roteiro escrito por Durst
236
reconhece:
Dei o máximo de mim nesse trabalho, mas sempre fica a sensação de que poderia ter voado mais
alto. Transformar a narrativa do Guimarães em diálogos é tarefa que somente ele mesmo poderia
assumir ... Fica, então, a proposta de aproximar, de trazer o sentimento dele, o clima da região, a
procura interior de Riobaldo, seu amor. (Press release: 15)
Trata-se, portanto, de um roteiro elaborado a seis mãos e que ainda sofreu alterações no
set de gravação. Além disso, a minissérie exibida aos telespectadores, como toda obra televisual
ou cinematográfica, passou pelo processo de edição feito por Avancini, o que implica, em última
análise, uma nova construção narrativa. Nessa etapa, as gravações ganham uma sintaxe que
permite aos telespectadores compreender a história que se conta; trata-se de evidenciar não
apenas o quê se conta, mas, sobretudo, como se conta a história. Imagens, sons, diálogos formam
um sintagma narrativo
237
que se constitui como acabamento estético definido pelo diretor.
Obviamente, esse acabamento estético pressupõe uma intencionalidade e, portanto, possui um
caráter ideológico no sentido bakhtiniano, na medida em que a ênfase em determinada imagem,
palavra ou som permite determinadas leituras e pode até mesmo proibir outras. Pode-se
privilegiar algum tema
238
, alguma trama paralela pelo simples acréscimo de uma música
incidental, pelo uso de imagens e cenas em flash back, ou pelo uso do recurso da câmera lenta
239
,
imprimindo uma significação diferente ou abrindo um leque de significações possíveis ao signo
esteticamente trabalhado. Sobre a realização dessa etapa da minissérie Grande Sertão: Veredas,
Avancini declara:
236
Anteriormente, já havia trabalhado com Avancini e Durst na minissérie Rabo de Saia (1984 – inspirada na obra
Pensão Riso da Noite, de José Condé. A trilha sonora da minissérie também foi assinada pelo maestro Júlio
Medaglia). Em 1986/87 assina sua primeira telenovela Tudo ou nada exibida pela TV Manchete.
237
Falando sobre a edição de telenovelas Maria Lourdes Motter, Telenovela: do analfabetismo visual à
alfabetização pela palavra, afirma:Sem entrar nos detalhes de produção da telenovela, que além de cansativos
desviariam nosso foco de atenção, vamos lembrar apenas que a história coerente que se desdobra no capítulo diário
que o telespectador assiste é feita de fragmentos, ou seja, de cenas, conforme já mencionamos, que são gravadas em
série, independentemente da posição que ocuparão na seqüência temporal da história. Esta será objeto de outra etapa:
a edição, momento em que se processa a seleção das melhores cenas e sua colocação no sintagma narrativo. Segue-se
a etapa de sonorização e a finalização.”
238
Empregamos o termo tema no sentido proposto por M. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 129: “O
tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado
momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir.” (itálicos do autor)
239
A relação entre tema e acabamento estético do signo é enfatizada por Mikhail Bakhtin, Marxismo e Filosofia da
Linguagem, p. 45-46, quando este afirma: “O tema e a forma do signo ideológico estão indissoluvelmente ligados, e
não podem, por certo, diferenciar-se a não ser abstratamente. Tanto é verdade que, em última análise, são as mesmas
forças e as mesmas condições que dão vida a ambos. (...) Assim, os temas e as formas da criação ideológica crescem
juntos e constituem no fundo as duas facetas de uma só e mesma coisa. Este processo de integração da realidade na
ideologia, o nascimento dos temas e das formas, se tornam mais facilmente observáveis no plano da palavra.”
158
Comecei a editar no início de outubro e devo continuar neste processo com o programa já no ar,
pois cada capítulo está sendo feito cuidadosamente, procurando seu tempo, sua linguagem, a
passagem das cenas, enfim, a limpeza e o clima de cada cena, de cada episódio, para todo o
espetáculo. (Press release: 8)
Observa-se a efetiva preocupação do diretor em conseguir transmitir, por meio do
sintagma narrativo por ele articulado, uma significação que aproximasse a minissérie da leitura
que o diretor fazia da obra literária, trabalhando esteticamente para isso a linguagem, o ritmo de
mudança das cenas, a “limpeza e o clima de cada cena”. Falando sobre a função do diretor e sua
aproximação com a realidade, Avancini afirma:
Existem, sei lá, mais de mil tipos de diretores. Mas vamos falar de dois. Há o que recebe um
roteiro e dá vida ao texto literalmente como foi escrito. Ele toma contato com o roteiro, segue o
que está determinado e pronto. Há outro tipo, que chamaria de diretor-autor, que temos muitos
exemplos no cinema. Hollywood tinha um pouco o primeiro tipo de diretor no começo. O diretor
recebia tudo pronto, filmava e nem sequer fazia a edição do filme. Como aconteceu com o cineasta
John Ford nos primeiros anos. O resto era finalizado pelos produtores. Depois surgiu, o outro tipo,
que a Europa consagrou, não é? Na televisão esforcei-me para que o produto tivesse minha marca,
mesmo dentro de um esquema comercial como é a televisão. (Silva Jr. 2001: 325).
É o olhar do diretor, conhecedor de todas as etapas de produção, que se inclina sobre as
cenas gravadas, sobre os fragmentos de um texto coletivamente produzido e lhe dá forma final.
Porém, não se deve imaginar que esse trabalho seja solitário, ao contrário, no caso da minissérie
Grande Sertão: Veredas houve uma intensa troca de experiências entre os principais artífices:
Durst, Souza e Avancini. Eram profissionais que trabalhavam juntos e que, apesar das
discordâncias, respeitavam-se como artistas. Pelo menos é o que se depreende dos depoimentos
constantes no Press release da minissérie e em outros livros ou jornais. Avancini, por exemplo,
considera, em entrevista concedida a Silva Jr. (2001: 324), o contato com Durst e outros grandes
nomes da televisão e do teatro nas décadas de 1950 e 1960 como decisivo para a sua formação
profissional, política e pessoal:
Sofri toda influência de nomes como Walter George Durst, Oduvaldo Vianna, Túlio de Lemos, que
eram membros do Partido Comunista Brasileiro. Evidentemente recebi toda uma influência
ideológica, digamos assim, da qual me orgulho muito porque, a partir disso, passei a ter maior
preocupação social e de identidade brasileira. A idéia era trazer a teledramaturgia o mais próximo
da alma brasileira, não só geograficamente, mas também da nossa própria identidade de nação.
159
Além disso, afirma, na mesma entrevista, que sempre procurou trabalhar em conjunto
com os autores das novelas, como “parceiro”, e que num momento posterior, na década de 1980,
na Rede Globo de Televisão, tornou-se “(...) responsável pelos projetos, de poder escolher os
escolher roteiristas, a equipe etc.”. (Silva Jr. 2001:326)
A parceria entre Durst e Avancini foi longa e extremamente produtiva tanto em termos de
criação quanto em termos de sucesso de público e de crítica: Gabriela (1975), Nina (1977-78),
Terras do sem fim (1981-82), Anarquistas Graças a Deus (1984), Rabo de Saia (1984) Grande
Sertão: Veredas (1985); Memórias de um gigolô (1986), na Rede Globo de Televisão, e
continuou até Tocaia Grande (1995-1996), na Rede Manchete
240
.
Sobre Avancini, Durst afirmava a Ivan Ângelo
241
:
Não são muitos os realizadores da televisão brasileira preocupados com estética. Quer eles se
preocupem ou não, a estética da tevê existe, e pode ser definida simplificadamente assim: é o modo
como ela se expressa. O excelente roteirista que foi Walter George Durst me disse certa vez, no
início dos anos 80: “O Avancini é o único diretor de televisão que se preocupa com a linguagem.”
O mais novo componente da equipe de criação de Grande Sertão: Veredas, José Antonio
de Souza, que se referia a Avancini como “um mestre carinhoso, que exige muito, mas não poupa
o aprendiz de informações” (Press release p. 14), afirmou sobre seu trabalho na minissérie:
(...) a proposta em GRANDE SERTÃO era diferente. Avancini queria que eu desse um segundo
tratamento aos capítulos já escritos pelo Durst. Inicialmente, tive muitos escrúpulos, não me sentia
bem mexendo no trabalho de um colega. Até que resolvi pôr a mão na massa. Desliguei-me de
tudo e fui escrevendo, num ritmo alucinado, mas levando em conta que Avancini saberia optar, em
todo o roteiro, pelas idéias que satisfizessem a sua proposta. E sei que ele fez o melhor, porque não
tenho dúvidas de que é um dos melhores contadores de histórias que existem no Brasil. (Press
release: 14)
É dentro desse quadro que se evidencia o trabalho parcelado, coletivo e complementar
que, mesmo fazendo parte da estrutura burocratizada e padronizada da indústria cultural (Morin
2005), tem a originalidade como meta. Afinal, como enfatiza Morin (2005: 29) há momentos em
que somente a padronização não é suficiente. “Em determinado momento precisa-se mais,
240
Cf. Maria Rosaria Fabris, O pioneiro constante, p. 67.
241
Em artigo publicado por Ivan Ângelo no Jornal da Tarde, São Paulo, com o título "Walter Avancini: o primeiro
diretor a se preocupar com a linguagem da televisão", 26/09/01, disponível no em
http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/mem031020012.htm
, capturado em 25.03.2006.
160
precisa-se da invenção. É aqui que a produção não chega a abafar a criação que a burocracia é
obrigada a procurar a invenção, que o padrão se detém para ser aperfeiçoado pela originalidade.”
A questão do trabalho parcelado e complementar na elaboração de uma minissérie é
enfatizada pelo cineasta Roberto Farias, diretor de Memorial de Maria Moura (1994), em que foi
supervisionado por Carlos Manga:
Uma obra tem dois estágios, o literário e o televisivo ou cinematográfico, e a adaptação para a TV,
cada vez me convenço mais, só é possível através de um trabalho coletivo. É a soma das etapas que
resulta num espetáculo, mas para que essa soma tenha um resultado positivo, é preciso que alguém
centralize o trabalho que determine um conceito para o programa, enfim, que tenha a palavra final.
(apud Lobo 2000: 114)
Na minissérie, Avancini demonstra sua preocupação em encontrar o “coletivo brasileiro”
por meio da tematização da obra estética, forma e conteúdo se constroem num processo em que
se busca superar o material enquanto tal para torná-lo expressão artística
242
.
242
Segundo Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 178: “No que diz respeito ao material, ao desígnio do artista,
condicionada à tarefa artística fundamental, pode ser expressa como superação do material. No entanto, essa
superação é de natureza positiva e não visa absolutamente à ilusão. Supera-se no material uma possível determinação
extra-estética dele: o mármore deve deixar de persistir como mármore, ou seja, como um determinado fenômeno
físico; ele deve exprimir plasticamente as formas de um corpo, mas sem nunca criar a ilusão de corpo; tudo o que é
físico no material se supera precisamente como físico.”
161
Capítulo 8 - A função social da minissérie Grande Sertão: Veredas
O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.
Diverjo de todo o mundo...
(GSV: 31)
O estudo dos discursos presentes no material jornalístico contido no corpus, revelou uma
certa tendência da imprensa em considerar que a minissérie, além de seu valor estético, possuía
um valor social na medida em que fazia chegar ao grande público uma obra-prima da literatura
nacional e mundial. Consideramos essa dimensão atribuída à minissérie pelos órgãos de imprensa
e pelos próprios artífices da minissérie como decorrência de uma função social. A análise dessa
função permite-nos dimensionar o valor simbólico (Bourdieu 2005) da minissérie Grande Sertão:
Veredas dentro do contexto da produção televisual brasileira, principalmente no que diz respeito
à década de 1980, e do gênero minissérie em geral.
Para Antonio Cândido (1965: 55), “a função social comporta o papel que a obra
desempenha no estabelecimento de relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e
materiais, na manutenção ou mudança de uma certa ordem na sociedade.” Discutindo a função
social dos episódios da Odisséia que eram cantados nas festas gregas, Antonio Cândido (1965:
55) afirma que estes tinham a função de reforçar:
(...) a consciência dos valores sociais, sublinhavam a unidade fundamental do mundo helênico e a sua
oposição ao universo de outras culturas, marcavam as prerrogativas, a etiqueta, os deveres das classes,
estabeleciam entre os ouvintes uma comunhão de sentimentos que fortalecia a sua solidariedade,
preservavam e transmitiam crenças e fatos que compunham a tradição da cultura. Na literatura dos grupos
iletrados, talvez esta função prepondere, pesando mais do na que literatura erudita dos nossos dias, feita
para leitura individual e voltada antes para a singularidade diferenciadora dos indivíduos, do que para o
patrimônio comum dos grupos
.
Acreditamos que não seria inconveniente estendermos essas palavras, sobretudo por que o
autor se refere à recitação e conseqüente audição dos episódios, aos programas de televisão cuja
162
oralidade é sua marca constitutiva
243
e concluirmos que a dimensão social dos programas
televisuais é bastante ampliada numa sociedade pouco “afeita à leitura” como a nossa. É preciso,
entretanto, que lembremos com Antonio Cândido (1965: 55) que:
Considerada em si, a função social independe da vontade ou da consciência dos autores e
consumidores de literatura. Decorre da própria natureza da obra, da sua expressão no universo de
valores culturais e do seu caráter de expressão, coroada pela comunicação. Mas quase sempre,
tanto os artistas quanto o público estabelecem certos desígnios conscientes, que passam a formar
uma das camadas de significado da obra. O artista quer atingir determinado fim; o auditor ou leitor
deseja que ele lhe mostre determinado aspecto da realidade. Todo este lado voluntário da criação e
da recepção da obra concorre para uma função específica, menos importante que as outras duas e
que freqüentemente englobada nelas, e que se poderia chamar de função ideológica, tomado o
termo no sentido amplo de um desígnio consciente, que pode ser formulado como idéia, mas que
muitas vezes é uma ilusão do autor, desmentida pela estrutura objetiva do que escreveu.
Assim, a correlação entre o pretendido e o alcançado, perpassada pela dimensão
ideológica, não se realiza pela criação e atuação do autor ou do público envolvido, mas é o
resultado de uma série de injunções presentes na sociedade. Embora, a função ideológica não
possa ser “controlada” nem pelos autores, produtores e telespectadores é importante que ela é
“(...) importante para o destino da obra e para usa apreciação crítica, mas de modo algum é o
âmago do seu significado, como costuma parecer à observação desprevenida.” (Antonio Cândido
1965: 56) Assim, os discursos que antecederam, perpassaram e comentaram a minissérie Grande
Sertão: Veredas são extremamente importantes para compreendermos sua função social e sua
função ideológica dentro do complexo quadro da sociedade brasileira e mais especificamente
dentro da indústria cultural brasileira.
8.1. O prólogo: apresentação, leitura e interpretação do Brasil
Quando se trata de analisar a minissérie Grande Sertão: Veredas torna-se imprescindível
nos determos no discurso de Walter Avancini que antecede o início da minissérie. Analisamos o
prólogo de acordo com duas perspectivas; a primeira delas consiste em estudar alguns
procedimentos e estratégias adotadas pelo diretor do ponto de vista do tratamento narrativo e
estético. Nesta etapa, abordamos alguns aspectos referentes a enquadramentos, planos e
243
Arlindo Machado, Televisão levada a sério, p. 71, afirma: “(...) a televisão (...) é um meio bem pouco “visual”e o
uso que ela faz das imagens é, salvo as exceções de honra, pouco sofisticado. Herdeira direta do rádio, ela se funda
primordialmente no discurso oral e faz da palavra sua matéria-prima principal .”
163
movimentos de câmera
244
. No segundo momento, estudamos o prólogo como discurso verbal. É
preciso que se diga que a divisão que propomos acima tem fundamento exclusivamente
metodológico e corresponde a uma forma de aproximação em relação a nosso objeto de estudo.
Aliás, procuramos durante nossa análise procuramos inter-relacionar todos esses elementos
constituintes da linguagem audiovisual.
O prólogo foi gravado no interior da Biblioteca Nacional. A primeira imagem que surge,
numa tomada de baixo para cima com a câmera baixa, é a dos vitrais da abóbada da nave central
da biblioteca cuja luminosidade contrasta com a relativa escuridão do interior iluminado por
lâmpadas. Lentamente a câmera vai deslizando para baixo até encontrar o diretor, de pé na sacada
do saguão, apoiando-se na grade do primeiro andar. A câmera está disposta no lado oposto de
modo que, antes de centralizar a imagem do diretor, percebe-se o vão que separa os andares em
que está o acervo. Depois de centralizada a imagem do diretor, vêem-se atrás dele, durante todo o
prólogo, as lombadas escuras de livros encadernados (da Figura 8.1 à Figura 8.5)
245
.
Se, como vimos no capítulo 7, os discursos dos principais artífices da minissérie,
Avancini e Durst, surgem como reveladores da tensão criação-produto, é, porém, no prólogo da
minissérie que podemos encontrar elementos que denotam mais claramente essa tensão. A
própria existência de um prólogo apresentado pelo roteirista final e diretor funciona como índice
de marca autoral. É por meio desse prólogo que Avancini se justifica como diretor que buscou “a
fidelidade” com relação a uma obra literária da maior qualidade para transpô-la para um veículo
de comunicação de massa; isso fica evidente pela locução que o próprio Avancini faz,
reproduzindo os elogios de grandes nomes da nossa literatura à obra de Guimarães Rosa.
Enquanto Avancini faz a locução, sua imagem desaparece, num procedimento de fade out-fade
in, e surgem fotos de seus autores: Jorge Amado, Paulo Mendes Campos, Carlos Drummond de
Andrade
246
. Quando a locução das opiniões dos grandes escritores está acabando, surge
novamente a foto de Guimarães Rosa que começa a esmaecer, fade out-fade in, e surge em seu
244
As definições de enquadramento, plano e movimento de câmera que guiaram nossa análise são as constantes no
livro de Marcel Martin, A linguagem cinematográfica.
245
Devido aos objetivos deste trabalho, reproduzimos abaixo somente algumas partes representativas das cenas.
246
Reproduzimos os comentários sobre o livro Grande Sertão: Veredas, que, segundo Avancini, foram feitos por
Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado e Paulo Mendes Campos. Carlos Drummond de Andrade: “Ele deu
outra Minas dentro da Minas que meus olhos sabiam.” Jorge Amado: “O livro prova, pelo menos tanto quanto as
fábricas de São Paulo, a maturidade atingida pelo Brasil e por seu povo.” Paulo Mendes Campos: “Louvo com
modéstia e espanto. Porque o pouco que sabemos o livro ordena e nos ensina. Porque o Brasil existe. Porque os
brasileiros existem. Porque seguimos todos através do grande sertão e, aos poucos, nos distinguimos do lusco-fusco
do mato. Porque um livro como esse é guardado para sempre.”
164
lugar a imagem do rosto de Avancini (da Figura 8.5 à 8.16) que continua sua explicação sobre
os objetivos da minissérie (Figura 8.17).
De certa forma, Avancini transfere parte do prestígio da obra literária e de seu autor para a
minissérie e para si mesmo. O mecanismo de transferência opera em três níveis: o primeiro deles
formal determinado pela própria estrutura paratextual
247
do prólogo; o segundo, pela recepção
interpretativa do conteúdo do prólogo por parte do telespectador e o terceiro pelo tratamento
estético dado ao prólogo pelo diretor, incluindo a substituição da imagem do diretor pela imagem
de Guimarães que é novamente substituída pela imagem de Avancini enquanto este narra as falas
de outros escritores.
Para análise do primeiro mecanismo de transferência, consideramos o prólogo como um
elemento estrutural com características e funções específicas dentro da dramaturgia. Segundo
Rosenfeld (2004), no contexto dramático, estruturalmente, o prólogo, o coro, e o epílogo são
elementos épicos e partes integrantes de um sistema fechado: o drama. Esses elementos, no
teatro, possuem características épicas, pois é por seu intermédio que se manifesta o autor e “(...)
faz pressupor igualmente o narrador que monta as cenas a serem apresentadas, como se ilustrasse
um evento maior com cenas selecionadas” (ROSENFELD 2004: 33). Assim, na minissérie, o
prólogo tem função autoral, pois, por meio do discurso narrativo (verbal e imagético), procura
uma identificação entre autor do romance e autor da minissérie. A segunda função do prólogo é
cognitiva na medida em que oferece dados sobre o autor e a obra literária que será objeto da
adaptação. Avancini faz uso de imagens e opiniões de escritores consagrados da nossa literatura,
além de fornecer não apenas dados sobre a vida e obra de Guimarães Rosa como também fotos
“reais” do escritor e dos escritores que falam sobre o autor de Grande Sertão: Veredas. As
opiniões dos escritores passam a ter o peso de um depoimento ou mesmo de um testemunho.
Esses elementos podem ser analisados como autentificadores da produção ficcional que será
exibida, na medida em que situam o texto-fonte no universo literário dentro de um espaço
ocupado apenas pelos “grandes” escritores (entre eles Carlos Drummond de Andrade e Jorge
Amado).
Ainda no prólogo, há um terceiro procedimento adotado pelo diretor que pode denotar sua
busca em se identificar com Guimarães Rosa e em identificar seu produto com a obra literária.
247
Compreendemos o termo paratexto, desenvolvido por Gerard Genette em Seuil (1979), como o conjunto dos
discursos contendo comentários, apresentações ou acompanhamento sobre uma obra, seja ele feito por seu autor ou
por críticos especializados ou mesmo na imprensa em geral.
165
Trata-se de uma passagem em que o acabamento estético traduz de maneira clara esse interesse:
Avancini está relatando o que os outros escritores falaram sobre Grande Sertão: Veredas e sua
imagem vai sendo substituída pela imagem da foto de Guimarães Rosa portando um chapéu (foto
tirada em uma de suas viagens pelo sertão mineiro), seguida de outras que o mostram em família,
escrevendo e tomando posse na Academia Brasileira de Letras, em seguida, volta sua foto com
chapéu que vai se esmaecendo e vai sendo substituída pela imagem de Avancini (da Figura 8.6 à
8.17). É como se Guimarães Rosa e Avancini se integrassem e formassem uma mesma pessoa.
Assim, no prólogo definem-se autor e obra e diretor e minissérie numa perspectiva de integração.
Demonstra-se claramente a postura autoral que assume Avancini em relação à minissérie. Trata-
se de um produto seu, com sua marca, pode-se dizer até com sua personalidade.
Considerando esse ponto de vista, o prólogo é um elemento paratextual bastante
privilegiado na medida em que praticamente integra a própria minissérie
248
, pois, apesar de
apresentado antes (naturalmente) da minissérie não há cortes entre ele a abertura da minissérie
(com os créditos) acompanhada da belíssima trilha sonora; após a qual, sem cortes, surge a
primeira cena (grande plano geral) da narrativa seriada no meio da qual há a palavra – Nonada.
Em meio ao cerrado, no horizonte mal se vê um homem que vai se aproximando. Trata-se de um
velho que, apoiando-se em um cajado, caminha com dificuldade no meio do campo em direção à
câmera. Depois, ele é mostrado de vários ângulos até se aproximar de Riobaldo que esta
recolhendo lenha. Esse velho é o jagunço Firmiano, personagem vivida pelo vaqueiro Manuelzão,
sertanejo que acompanhou Guimarães Rosa em suas andanças pelos sertões de Minas e que se
tornou personagem em A festa
de Manuelzão, no livro Corpo de baile. A seguir, apresentamos
parcialmente a seqüência de imagens do prólogo e da primeira cena.
248
Antes do prólogo é exibido o Certificado de Censura. Embora produzida no ano de 1985 e levada ao ar no final
desse ano, a minissérie Grande Sertão: Veredas também foi submetida aos órgãos de censura e antes de sua exibição
era apresentado o certificado de autorização expedido pelo departamento de censura. Conforme lembra Narciso
Lobo, Ficção e política, os órgãos de censura somente foram extintos em 1988 com a promulgação da nova
Constituição, embora desde de 1985 o governo alardeasse o final da censura.
166
Figura 8.1 Figura 8.2. Figura 8.3
Figura 8.4 Figura 8.5 Figura 8.6
Figura 8.7 Figura 8.8 Figura 8.9
Figura 8.10 Figura 8.11 Figura 8.12
Figura 8.13 Figura 8.14 Figura 8.15
167
Figura 8.16 Figura 8.17 Figura 8.18
Figura 8.19 Figura 8.20 Figura 8.21
Figura 8.22 Figura 8.23 Figura 8.24
Figura 8.25 Figura 8.26 Figura 8.27
168
Figura 8.28 Figura 8.29 Figura 8.30
Embora não faça parte do prólogo, julgamos interessante analisar a primeira cena junto
com o prólogo, pois é ela que introduz o telespectador “no sertão de Guimarães Rosa”. A
introdução de Manuelzão na minissérie estabelece para os conhecedores da obra de Guimarães
Rosa uma relação direta entre o autor mineiro e a minissérie. Obviamente, para o grande público
essa relação não existe, pois para compreendê-la é necessário que o leitor-telespectador seja um
leitor-telespectador qualificado e possua as características de um leitor-telespectador de segundo
nível como definiu Eco (1997). Portanto, a minissérie abre-se com a intenção de atingir não
apenas o público em geral, mas também um seleto grupo de iniciados na obra de Guimarães
Rosa; talvez, seja uma maneira de Avancini, ao mesmo tempo, homenagear o célebre vaqueiro
tornando-o conhecido de milhões de brasileiros e mostrar-se como diretor que se preocupava com
o texto-fonte e, em última instância, com o “mundo real” a que pertence Manuelzão e, dessa
forma, conseguir articular sua idéia inicial de mostrar o Brasil verdadeiro nas telas de televisão.
Por outro lado, também podemos analisar a introdução da figura de Manuelzão como o
emprego de uma estratégia autentificadora aplicada ao gênero ficcional representado pela
minissérie. Jost (1997, 2004) afirma que a classificação genérica funciona como uma espécie de
promessa ao telespectador sobre o tipo de programa ou até de imagens que lhe serão mostrados.
Para o teórico francês, os programas apresentados na televisão fazem referência, na forma de
fluxos inter-relacionados, ao mundo real, ao mundo ficcional ou ao mundo lúdico
249
. Essa
referência ganha vida e revela-se por meio de estratégias empregadas pelos diretores/produtores
conforme o interesse que querem (ou supõem) despertar no telespectador, já que é por meio dessa
promessa e da compreensão dela que os produtores/diretores conseguirão a adesão e participação
do telespectador.
249
Cf. François Jost, Seis lições sobre televisão, p. 42: “Os critérios de inserção dos programas diferem, segundo o
mundo ao qual se faz referência, mas a comunicação televisual é um processo dinâmico e incerto: nunhuma emissão
pode ser classificada como pertencendo seguramente a esse ou àquele mundo.”
169
Dessa forma, para que determinadas estratégias, sejam elas autentificadoras ou não,
tenham lugar é necessário que o telespectador tenha a percepção de que esse mecanismo foi
usado pelo produtor/diretor. Nesse caso, a participação de Manuelzão, como já mencionamos, só
pode ser compreendida como uma referência ao mundo “real” (do sertanejo “real” que guia o
autor do livro) ou ao mundo “ficcional” (do livro) na medida em que os telespectadores têm
conhecimento da ligação dessa figura com Guimarães Rosa e com o sertão narrado pelo escritor
mineiro. Portanto, voltamos à idéia de que Avancini trabalhava com a intenção de atingir dois
tipos de público: o “iniciado” no mundo de Guimarães Rosa e o público em geral. Para o
primeiro tipo de público, Manuelzão autentifica o produto televisual uma vez que o relaciona de
maneira indelével ao romance, ao mundo rosiano e, sobretudo, ao “restrito” mundo dos
conhecedores de Grande Sertão: Veredas. Para o público em geral, a figura de Manuelzão possui
a função de dramática de inserir o telespectador no ambiente sertanejo. E, nesse sentido, sua
figura é autentificadora na medida em que Manuelzão é, ele próprio, um sertanejo da região
retratada na minissérie
250
. Portanto, de acordo com a perspectiva de Jost, também a estratégia
autenficadora possui níveis que se definem pelo conhecimento do mundo (enciclopédia para
Eco, 1986, 1994) e pelo conhecimento do meio audiovisual mais especificamente.
Essas estratégias autentificadoras encontram ressonância no discurso verbal de Avancini
que transcrevemos abaixo com algumas marcações referentes à sonorização e ao tratamento da
imagem que serão comentadas em nossa análise. Porém gostaríamos de enfatizar que o discurso
de Avancini no prólogo é retomado e analisado em diversas partes de nosso trabalho. Neste
momento, nosso foco de análise recai sobre o papel simbólico do discurso, levando em
consideração alguns procedimentos discusivos e fílmicos dessa apresentação da minissérie
Grande Sertão: Veredas.
(voz de Avancini, primeiramente em off, depois on) “... tão adequado quanto o Sertão, esta
Biblioteca Nacional, para lembrar um pouco de João Guimarães Rosa. Guimarães nasceu em 27
de junho de 1908, em Cordisburgo, Minas Gerais. Formou-se em medicina. Em 1934 iniciava sua
carreira diplomática, chegando a ministro. Em 16 de novembro de 1967 tomava posse na
Academia Brasileira de Letras. Três dias depois, 19 de novembro desse mesmo ano de 1967,
morreu no Rio de Janeiro. Dentre as muitas obras de João Guimarães Rosa, uma em especial
causou grande impacto quando do seu lançamento em 1956: Grande Sertão: Veredas.
250
Dentro do quadro teórico proposto por François Jost, Le feint du monde, pode-se dizer que a participação de
Manuelzão é um procedimento de fingimento fílmico, ou seja, um procedimento adotado pelo diretor para que se
tenha a impressão de que o que se está mostrando é a realidade tal qual ela é.
170
(início da música tema da minissérie, mantida no fundo. Voz de Avancini em off, fusão da imagem
de Avancini e de Guimarães Rosa)Ele deu a outra Minas dentro da Minas que meus olhos
sabiam”, confessou Carlos Drummond de Andrade. Para Jorge Amado, o livro provava pelo menos
tanto quanto as fábrica de São Paulo a maturidade atingida pelo Brasil e por seu povo. E Paulo
Mendes Campos o louvou com modéstia e espanto: “Porque o pouco que sabemos, esse livro
ordena e nos ensina. Porque o Brasil existe. Porque os brasileiros existem. Porque seguimos todos
através do Grande Sertão, e aos poucos nos distinguimos do lusco-fusco do mato. Porque um livro
(fusão da imagem de Guimarães com a de Avancini) como esse é guardado para sempre”. (final da
música de fundo (tema da minissérie ).
(voz de Avancini on, imagem de Avancini em plano médio frontal) A transposição do romance, o
Grande Sertão: Veredas, para a televisão, tem pelo menos dois significados. Primeiro, para os que
sabem ler, uma aproximação com o belo mundo de Guimarães Rosa. Segundo, levar para a grande
maioria do público brasileiro, ainda infelizmente sem acesso ao mundo das letras, pelo menos um
esboço desse magnífico universo. Trabalhamos muito, muito mesmo, em busca da fidelidade que a
obra merece. Porque um pouco de Guimarães Rosa nos aproximará a todos do coletivo brasileiro.”
(corte, entra a vinheta da minissérie com créditos).
Considerando a definição de prólogo com que trabalhamos, o teor das citações de Carlos
Drummond de Andrade, Jorge Amado e Paulo Mendes Campos sobre o livro, o acabamento
estético e a introdução da figura de Manuelzão como uma estratégia autentificadora
(principalmente para os iniciados na obra rosiana), somos levados a crer que a minissérie
representa um momento único, a oportunidade única de os brasileiros não só tomarem
conhecimento de uma grande obra literária como também de se conhecerem como povo, de
conhecerem “a realidade” brasileira. Ou seja, é como conseqüência do trabalho (tanto no aspecto
físico quanto criativo) da equipe e do seu diretor que a minissérie surge como obra autoral que se
define pela marca da individualidade, da não-repetição, do jamais-visto. Assim, a minissérie,
apesar de ser um produto da indústria cultural, diferencia-se dos demais tanto pelo seu conteúdo
quanto por sua fonte de inspiração (uma obra definidora da própria identidade brasileira).
Torna-se também necessário compreendermos o prólogo não apenas como a voz
(individual) do diretor da minissérie. O discurso do prólogo deve ser compreendido como uma
instância enunciativa da Rede Globo de Televisão, uma vez que ele ocupa um espaço dentro do
programa produzido e veiculado pela emissora. Assim, de certa maneira, na voz de Avancini
podemos encontrar ecos da voz da emissora como empresa. Representa a voz da rede que se
manifesta por meio da “voz das apresentadoras, ou das vozes em off (...).” (JOST 1997: 6),
obviamente a voz de Walter Avancini é mais qualificada em termos simbólicos que a voz de um
apresentador, uma vez que quem nos fala é o diretor premiado, o homem de televisão que tinha
171
visto a TV nascer. Por isso mesmo, sua voz tem um peso maior, que serve de qualificativo para
a rede de televisão.
Parte do papel social da minissérie decorre de fatores muito distintos que envolvem tanto
aspectos referentes à manutenção da hegemonia da emissora dentro do quadro de produção e
exibição de programas de televisão quanto ao sentimento (explicitado pelo diretor, adaptador e
artistas envolvidos na minissérie) de uma espécie de missão de civilizar a população brasileira.
População essa privada de uma política cultural (e também educacional) de “maior qualidade”
que lhe propiciasse o acesso não só aos “grandes escritores” mas também ao mundo das letras
251
e, por conseguinte, aos grandes temas sociais que afligem nosso país. Trata-se, portanto, de
encarar a produção televisual como forma de a população adquirir a nacionalidade brasileira.
Nacionalidade supostamente presente na literatura, principalmente na “grande literatura”
brasileira. Nacionalidade (e literatura) somente acessível por meio dos programas de televisão já
que as outras instituições não conseguem, ou não querem, fazer com que a população ascenda à
“cultura de qualidade” representada pela literatura dos grandes escritores brasileiros.
Obviamente, a grandeza dos fatores determinantes dessa situação não permite que os estudemos
com profundidade dentro das dimensões de nossa pesquisa, porém acreditamos que a análise de
alguns discursos envolvidos na construção desse quadro permitirá que avancemos na discussão
do gênero minissérie.
8.2. Em busca da Educação e da Nação
Em diversas entrevistas (contemporâneas à minissérie e mesmo nos depoimentos
posteriores a ela) encontramos palavras de Walter Avancini, de Walter George Durst e mesmo de
produtores ou diretores de núcleo de teledramaturgia da Rede Globo de Televisão que revelam
uma preocupação pedagógica com relação à exibição da minissérie, subjacente a esse discurso
surge uma concepção a respeito do papel da televisão na sociedade brasileira.
Diversos estudiosos têm chamado atenção para o fato de a televisão no Brasil e na
América Latina
252
possuir um caráter bastante diverso daquele encontrado na Europa ou nos
251
Essa expressão, no caso do Brasil, pode se referir tanto à simples introdução ao alfabeto quanto ao acesso ao
mundo dos livros editados no país.
252
É interessante, para o desenvolvimento desse raciocínio, levar em conta as discussões efetuadas a respeito do sentimento de
nacionalismo e de integração nacional (sobretudo na América do Sul) efetuadas por Martín-Barbero (in: Dos meios às
172
Estados Unidos da América. A televisão no Brasil, apesar de ter nascido sob a égide da iniciativa
privada, sempre esteve intimamente ligada às estruturas governamentais quer no sentido político
do termo, quer no sentido de apropriação de um ideário “pedagógico” dos meios de comunicação
de massa elevados a uma categoria um tanto quanto discutível de “educadores” do Brasil. No
primeiro sentido, estamos nos referindo, principalmente, ao formidável aparato tecnológico
fornecido pelo Estado para que as imagens de televisão ganhassem os lares de todos os
brasileiros. O melhor exemplo disso é a criação pelos sucessivos governos da Ditadura Militar de
uma ampla rede de telecomunicações com a finalidade de integrar o país por meio da televisão.
Desde de sua fundação, a Rede Globo de Televisão incorporou às suas atribuições o papel de
mantenedora do laço social que une a nação brasileira. Segundo Wolton (1996: 155-156), a
televisão:
(...) amorteceu os efeitos da ditadura militar. Se não corresponde à verdade afirmar que a televisão
foi o substituto das liberdades políticas, podemos, sem dúvida, notar que a vontade estrita dos
militares de preservar e valorizar a cultura brasileira contribuiu para reduzir os efeitos desse regime
autoritário.
E conclui:
Enfim, ela foi um fator de modernização para as quatro classes sociais. Modernização sem dúvida
aceita, porque a maior parte das classes sociais alimentava-se da televisão. Vemos aqui a tripla
função da televisão geralista = laço social + modernização + identidade nacional. A existência de
um mercado interior não basta para explicar essa tripla função, que deve antes ser buscada numa
teoria das relações entre comunicação e sociedade, e no papel estrutural que desempenham as
mídias de massa na sociedade contemporânea. ( WOLTON 1996: 156)
Wolton (1996: 156) afirma ainda que a tripla função ocorre somente em países que já
possuem “(...) forte identidade cultural, e onde existe um mercado interior, [no qual se] percebem
os riscos de dominação pelo estrangeiro e a ela opõem uma identidade e um voluntarismo
nacionais.”
Ao lado dessa visão do papel da televisão, existe outra “mais clássica” que afirma que a
televisão, posta a serviço de grupos econômicos poderosos, que pregam a modernização a
qualquer custo, destrói as tradições. Wolton (1996) contra-argumenta que, apesar disso, as
mediações: comunicação cultura e hegemonia) principalmente na terceira parte do livro. Também devem ser considerados os
textos pioneiros acerca das telenovelas brasileiras e suas inter-relações com o sentimento de nacionalidade apresentados no livro
de Renato Ortiz, Sílvia H. S. Borelli e José M. O. Ramos, Telenovela: história e produção, 1988. Além de livros como: O
carnaval das imagens, de Michele & Armand Mattelart, Elogio do grande público, de Dominique Wolton, . São Paulo. Ática.
1996 e Os exercícios do ver, de Jesus Martin-Barbero e German Rey e Ficção e Política: o Brasil nas minisséries, de Narciso
Lobo.
173
relações entre tradição-modernidade e televisão-sociedade são muito mais complexas e exigem
uma abordagem mais abrangente que não pode ser reduzida a uma questão econômica.
Segundo o pesquisador francês, a televisão no Brasil serviu como “(...) fio condutor para
uma sociedade confrontada com o problema da modernização.” (Wolton 1996: 156) fortaleceu o
laço social na medida em que atingiu todas as classes sociais que, de alguma forma, viram-se
representadas numa televisão de caráter geralista. Porém, o autor não se furta a considerar que
realmente “o rolo compressor da modernidade” (Wolton 1996: 156) atua sobre a televisão, mas
lembra que as relações entre tradição e modernidade são a chave do sucesso de diversos
programas.
Dessa forma, os dois sentidos com que a televisão foi vista no Brasil e aos quais nos
referimos acima, quais sejam, televisão privada fortemente ligada às estruturas governamentais e
à apropriação de um ideário “pedagógico”, relacionam-se de maneira dialética na construção de
uma identidade nacional (construída pelos meios de comunicação de massa, principalmente, pela
televisão) forjada pelo desenvolvimento de um raciocínio estratégico de que é preciso integrar
para não entregar ou de que é necessário que você ame o Brasil ou então deixe-o. Esses são
dois lemas caros aos governos militares pós-1964, mas que têm suas raízes em outros
movimentos de cunho nacionalista como o republicanismo, populismo, ou o conservantismo de
maneira geral.
Os conceitos de nação e de povo não se constroem no vazio. É necessário que haja um
laço social que permita às populações de um determinado país sentir-se como povo e como
nação. Boa parte desse laço social é conseguido por meio “[d]as narrativas com as quais se
reconhecem, tecem, enaltecem ou esquecem os mais diferentes aspectos da formação e da
transformação da sociedade nacional (...)”
253
O Brasil (como todos os países) passou (e passa) por
diversos momentos em que se procurou criar/consolidar a idéia de nação a partir de narrativas
literárias que buscavam criar no imaginário da população que habitava nosso país o conceito de
nação
254
. Normalmente, esses movimentos surgem em momentos de forte agitação cultural e
social, que culminam com rupturas e acomodações - no Brasil é difícil falar-se em mudanças-
estruturais e políticas: criação do Estado brasileiro (ou Proclamação da Independência -
separação institucional do Brasil e Portugal), Abolição da Escravatura, Proclamação da
253
Octávio Ianni, Nação e narração, in Flávio Aguiar (org), Antonio Candido: Pensamento e militância, p. 71.
254
Sobre esse aspecto consultar Antonio Cândido, Literatura e sociedade e Formação da literatura no Brasil, vol. I
e II, Afrânio Coutinho, A tradição afortunada, e Alfredo Bosi, A dialética da colonização.
174
República, Canudos, Revolução de 1930, Revolução Constitucionalista, Contestado, Golpe
Militar de 1964, entre outras. Ou ainda, discute-se a nação por meio de movimentos culturais
como a Semana de Arte Moderna. Movimentos esses, obviamente, fortemente imbricados com a
situação social e política do país.
Em todos esses momentos e talvez para todos esses movimentos houve uma narrativa que
corresponderia à busca de um sentimento de nacionalidade que expressasse o caráter único das
várias populações que viviam dentro das fronteiras brasileiras. É praticamente consenso entre os
estudiosos da literatura que isso ocorreu especialmente a partir do Romantismo
255
brasileiro, que
(...) foi inicialmente (e continuou sendo até o fim) sobretudo nacionalismo. E nacionalismo foi
antes de mais nada escrever sobre coisas locais. Daí a importância da narrativa ficcional em prosa,
maneira mais acessível e atual de apresentar a realidade, oferecendo ao leitor maior dose de
verossimilhança e, com isso, aproximando o texto da sua experiência pessoal. (ANTONIO
CANDIDO 2002: 39-40)
Chamamos atenção para o fato de encontrarmos nas palavras de Antonio Cândido, além
da questão do nacionalismo (que no momento nos interessa sobremaneira), duas outras
dimensões das obras literárias em voga no século XIX que decorrem mais precisamente da
questão dos gêneros literários: a prosa (que correspondia ao gênero romance) que se dedica à
apresentação e discussão da experiência pessoal refletindo os costumes constituindo aquilo que se
denominou, mais tarde, o subgênero romance de costumes:
O que mais atraiu o leitor daquele tempo em matéria de romance parece ter sido o de
costumes, no qual ele encontrava a vida de todo o dia, sem prejuízo dos lances
romanescos que eram então indispensáveis. O brasileiro parecia gostar de ver descritos os
lugares, os hábitos, o tipo de gente cuja realidade podia aferir, e que por isso lhe davam a
sensação alentadora de que o seu país podia ser promovido à esfera atraente da arte
literária. (ANTONIO CANDIDO 2002: 41)
A constituição da arte literária brasileira é, para Afrânio Coutinho (1968: 173), a
responsável pelo sentimento de nacionalidade e não o inverso:
É uma falsa ligação a que se estabeleceu entre romantismo e nacionalidade. Não menos falsa é a
identificação entre nacionalidade literária e nacionalidade política. Decorre ela da filosofia política
do século XIX, para a qual as idéias de nação e nacionalidade passaram a ter conteúdo
255
Embora Afrânio Coutinho, A tradição afortunada p. 172, afirme: “A conclusão a que se chega é, pois, em reforço
da tese de que a literatura brasileira começou mesmo no primeiro século, e que a produção literária da era colonial já
constitui um capítulo dessa literatura, enquadrada no estilo barroco.”
175
exclusivamente político e estatal, sendo a nacionalização resultante da integração de massas de
povo sob uma forma centralizada de governo, num território unificado, a que correspondem
manifestações literárias, folclóricas, lingüísticas. Todavia a nacionalidade literária independe da
política, ambas se realizando a partir da consolidação da consciência do povo como povo. A
nacionalidade concretiza-se igualmente através da língua, da música, da literatura, da política, das
produções folclóricas e demais formas de vida.
Para o estudioso, é a nacionalidade literária que gera a nacionalidade política e conclui:
“Foi o fato de o Brasil já possuir havia muito uma literatura, expressão de um sentimento
nacional, que o levou a ser uma nação.” (Coutinho 1968:173). Assim, a constituição da nação
(letrada) passa necessariamente pelas narrativas literárias produzidas pelas populações que
conseguem por esse meio ter referenciais comuns o que as levaria a ter sentimentos comuns,
valores comuns
256
e as elevaria à condição de povo. Esse processo, porém, não se resume apenas
aos textos escritos ditos literários; compreende toda sorte de textos escritos, orais, pictóricos,
audiovisuais, etc. Todos esses textos entram na composição daquilo que Halbwachs (1990: 53)
denominou memória coletiva. Para ele, as lembranças possuem duas maneiras
(...) de se organizar ou de se agrupar, ora em torno de uma pessoa definida, que as considere de seu
ponto de vista, ora distribuir-se no interior de uma sociedade grande ou pequena, de que elas são
outras tantas imagens parciais. Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias
coletivas. Em outros termos o indivíduo participaria de duas espécies de memórias.
Essas duas memórias se interpenetram com freqüência e permitem que o indivíduo
eventualmente utilize a memória coletiva para apoiar alguma lembrança individual que assimila e
incorpora o “(...) aporte exterior a sua substância.” (Halbwachs 1990: 53) Porém, o inverso não
ocorre com a memória coletiva, pois:
a memória coletiva envolve (...) as memórias individuais, mas não se confunde com elas. Ela
evolui segundo suas leis, e se algumas vezes lembranças individuais penetram algumas vezes nela,
mudam de figura assim que sejam recolocadas num conjunto que não é mais uma consciência
pessoal.
256
Para Octávio Ianni, A idéia de Brasil Moderno, p. 150, além dessas características deveriam ser acrescentados
direitos e deveres de cidadãos como condição para que as coletividades se constituíssem como nação: “As
diversidades raciais, religiosas, regionais, bem como a condição de alfabetizado ou analfabeto, trabalhador braçal ou
especializado, rural ou urbano, homem ou mulher, são várias as determinações constituídas pela cultura que obstam
ou dificultam a formação do povo, encarado como uma coletividade de cidadãos – indivíduos com direitos e deveres
iguais independentemente de classe, raça, sexo, religião, idéia, condição urbana ou rural, civil ou militar.”
176
Para Motter (2001: 43), “a memória coletiva é o lugar privilegiado para a imposição de
controles através dos mitos e ficções que são reforçados ou introduzidos.” É na constituição da
memória coletiva que os meios de comunicação atuam mais fortemente, porém sua atuação se faz
por meio da criação e alimentação de memórias ligadas ao grupo uma vez que, devido à
necessidade de suas produções atingirem um público bastante grande, trabalham-se traços
comuns a uma coletividade (às vezes de maneira estereotipada, outras vezes de maneira criativa).
A memória construída pelas mídias se incorpora à memória coletiva compondo um quadro em
que a própria identidade individual se constrói por meio das vivências mediadas pelos meios de
comunicação de massa. Na medida em que as memórias trazidas pelos meios de comunicação
constroem um passado comum e sedimentam uma identidade que pode ser etária, grupal,
nacional.
257
No Brasil, segundo Ianni (2004: 130), há três momentos importantes em que a questão
nacional é colocada em discussão: em 1822, Declaração de Independência, em 1888, Abolição da
Escravatura e em 1930 com a Revolução. Para o autor (2004: 130), “essas datas marcam apenas o
momento inicial de uma nova época de lutas sociais, debates, conquistas e derrotas que
compreendem diferentes etapas da questão nacional.”
Como conseqüência do debate em torno da questão nacional ocorrido em décadas
anteriores, sobretudo desde a época da Abolição da Escravatura e da Proclamação da República e
de Canudos, boa parte da transformação do país em nação e da população em povo, ocorre,
segundo Ianni (2004: 130) a partir da Revolução de 1930. Um movimento que tenta transformar
as relações políticas, principalmente imprimindo uma dimensão maior ao poder central em
detrimento de uma política de cunho regional marcada por relações familiares e tradicionais. É
por isso que, segundo Ortiz (2005: 99), nas décadas de 1930 e 1940, o discurso do Estado é
vincado pela contraposição “(...) ao tradicional, pois ele [o Estado] é o promotor do processo de
modernização do país.” Procura-se imprimir um olhar prospectivo em vez do retrospectivo. A
transformação então operada seria de tal ordem que Ianni fala em “metamorfose”, principalmente
porque, nessa época, é colocado em pauta o problema racial brasileiro
258
. Esta questão permite
257
Cf. François Jost, El culto de la televisión como vector de identidade,
wwww.periodismo.uchile.cl/cursos/psicologia/arquivos/02 culto pdf. – capturado em 03.01.06
258
Octávio Ianni, A idéia de Brasil moderno, p. 180, afirma que: “Pouco a pouco, nos anos e décadas posteriores,
delineiam-se as interpretações mais importantes, com as quais se defrontam posteriormente todos os que vivem e
estudam o problema racial brasileiro. Primeiro, formula-se a
tese da democracia racial. Segundo, retoma-se, em
linguagem diversa, em geral mais discreta, o racismo embutido na tese arianista. Terceiro, desenvolve-se o
177
vislumbrar “(...) um debate mais amplo, em que se acham engajados movimentos sociais e
partidos políticos, grupos raciais e classes sociais, políticos e intelectuais, igrejas, militares e
setores do poder estatal. O que está em causa, fundamentalmente, é a metamorfose da população
em povo, entendendo-se a população como uma pluralidade de raças e mesclas, e povo como
uma coletividade de cidadãos.” (Ianni 2004: 130). Viceja e ganha corpo, a partir do início do
século XX , a teoria das três raças formadoras da nação brasileira; ou, como afirma Ortiz (2005:
38), surge o “mito das três raças” portador da “ideologia do Brasil-cadinho [que] relata a epopéia
das três raças que se fundem nos laboratórios das selvas tropicais.” Para Ortiz (2005), a criação
desse mito fundador da nação brasileira é possível somente em razão das profundas
transformações por que passava o país (de economia escravista a outro tipo de economia
capitalista, da organização monárquica à republicana)
Essa transformação, sem dúvida, é liderada pelo Estado que busca “ (...) adequar as
mentalidades às novas exigências de um Brasil moderno”. (Ortiz 2005: 43 – grifo do autor). Para
isso, é preciso transformar o conceito de homem brasileiro. “Qualidades como “preguiça”,
“indolência”, consideradas inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia do
trabalho” (Ortiz 2005: 42 – aspas do autor). O brasileiro preguiçoso e indolente deve ser
substituído pelo conceito de brasileiro trabalhador e ordeiro que, pertencente a uma das três raças
fundadoras ou produto de uma miscigenação, é ao mesmo tempo, numa relação metonímica,
parte e todo da nação
259
; seguindo esse raciocínio, os grupos perdem seus elementos de
diferenciação e ganham uma dimensão ligada à nacionalidade. Os meios de comunicação de
massa ocupam papel de destaque na constituição dessa consciência de nacionalidade. Sobre o
papel das mídias na construção das identidades nacionais de países latino-americanos
comandados por governos populistas como aqueles instalados no Brasil (Getúlio Vargas),
México (Cárdenas) e Argentina (Perón) no período de 1930 a 1950, Martín-Barbero & Rey
(2001: 42) afirmam:
Naquele primeiro processo de modernização, as mídias de massa foram decisivas para a formação
e difusão da identidade e do sentimento nacionais. A idéia de modernidade que sustenta o projeto
indigenismo, compreendendo sertanistas, antropólogos e, principalmente, os próprios índios. Quarto, coloca-se o
problema no âmbito da reflexão sobre a sociedade de classes.”. Trata-se, portanto, de um amplo movimento que
busca repensar o Brasil como nação.
259
Segundo Renato Ortiz, Cultura brasileira e identidade nacional, p. 43, “o mito das três raças, ao se difundir na
sociedade, permite aos indivíduos, das diferentes classes sociais e dos diversos grupos de cor, interpretar, dentro do
padrão proposto, as relações raciais que eles próprios vivenciam.”
178
de construção de nações modernas nesses anos articula um movimento econômico – entrada das
economias nacionais na participação do mercado internacional – a um projeto político: constituí-las
em nações mediante a criação de uma cultura e de uma identidade nacional.
O anseio de forjar, com a ajuda dos meios de comunicação de massa, a identidade
brasileira como nação e como povo é fortemente evidenciado também pelos discursos e pelas
ações dos governos militares pós-1964 que, desde o governo de Castelo Branco, preocuparam-se
“(...) com os assuntos de cultura, procurando realizar diretrizes que [favorecessem] o
desenvolvimento de uma “cultura brasileira”, de uma identidade nacional” compatível com suas
premissas coercitivas.” (Ramos & Borelli 1988: 84). O projeto de uma política cultural voltada
para os ideais de formação de uma nação começa a se delinear e ganha corpo nos sucessivos
governos militares e leva, de acordo com Ramos & Borelli (1988: 85) ao surgimento de duas
proposições que combinam a preocupação “nacionalista autoritária” com a preocupação quanto
ao “nível cultural” das programações (Ramos & Borelli 1988: 85) que se cristalizam na:
(...) Política Nacional de Cultura, publicada em 1975. Neste documento emerge com clareza a
preocupação com o “homem brasileiro, cuja “espontaneidade””estaria ameaçada pelos meios de
comunicação de massa e pela racionalização da sociedade industrial”. Por isso, em um de seus
pontos básicos, se exprimia a necessidade de “difundir a cultura através dos meios de comunicação
de massa” ao mesmo tempo em que se assegurasse o “uso dos meios técnicos de comunicação
como canais de produção cultural qualificada. (RAMOS & BORELLI 1988: 85) (grifos dos
autores)
Segundo Ramos & Borelli (1988), a busca de melhorias que se manifestariam no nível do
conteúdo dos programas fez com que a Rede Globo de Televisão introduzisse, na grade
programação, a partir de meados da década de 1970, nos horários das 18 e 22 horas “(...) as
telenovelas solicitadas pela esfera estatal: um certo enfoque nacionalista, melhoria de “nível” e
temas educativos.” Ao horário das 18 horas foram destinadas as novelas de cunho pedagógico no
sentido de proporcionar por meio de casos exemplares a criação de “bons hábitos” morais e de
saúde. Nas tramas, por exemplo, mostravam-se hábitos de higiene que poderiam prevenir
doenças; ao horário das 22 horas, foram destinadas as produções mais sofisticadas com autores
como Jorge de Andrade, Dias Gomes, Walter George Durst (Ramos & Borelli 1988: 87).
No horário das 18 horas, passam a figurar as telenovelas adaptadas de clássicos da
literatura brasileira, dando continuidade a um procedimento comum desde o nascimento da
televisão brasileira, criando “(...) um horário para exibição de telenovelas baseadas em textos
179
literários, dessa vez exclusivamente brasileiros. A partir dos anos 1980, as adaptações de obras
brasileiras deslocaram-se para as minisséries.” (GUIMARÃES 1996-97: 192).
Por sua vez, entretanto, Avancini vê nesse movimento de transposição de obras literárias
para a televisão uma motivação social e política, na medida em que ele o relaciona a um
momento histórico pelo qual o país passava. Momento marcado, segundo o diretor, pela busca de
uma identidade nacional, num processo de auto-reconhecimento:
Hoje, a busca da identidade nacional se vulgarizou e é isto que está influenciando a televisão. Ela
anda a reboque da coletividade. Se o Brasil continuar neste processo de auto-conhecimento, a TV o
acompanhará. O momento da vida nacional é que fez o sucesso de “Grande Sertão”. Há cinco anos,
seria inútil adaptar essa obra para o vídeo.
260
Entretanto, mesmo nos dias atuais, definição do Brasil como nação ainda parece algo um
tanto quanto incerto para Ianni (2004: 180):
Sob o aspecto social, racial, regional e cultural, entre outros, continua em aberto a questão
nacional. Em perspectiva ampla, a história do Brasil pode ser vista como a de uma nação em
processo, à procura da sua fisionomia. É como se estivesse espalhada no espaço, dispersa no
tempo, buscando conformar-se ao nome, encontrar-se com a própria imagem, transformar-se em
conceito.
Mas como a nação pode se encontrar com a própria imagem, como se transformar em
conceito, como definir sua fisionomia? Avancini, no prólogo da minissérie, oferece uma pista:
“porque um pouco de Guimarães Rosa nos aproximará a todos do coletivo brasileiro.” A
identidade brasileira ganha corpo e se firma não apenas por meio da literatura – cuja penetração,
num país com população pouco “afeita à leitura” e no qual há um grande número de analfabetos,
é pequena - , mas também, e talvez principalmente, pelas imagens vistas por milhões de
brasileiros nas telas de televisão
8.3. Entre o pedagógico e o didático: a didacidade
Intimamente relacionada à questão da busca da nacionalidade por meio das “cores locais”
das produções televisuais, encontra-se a preocupação que denominamos pedagógica que se refere
ao fato, recorrente no discurso dos principais artífices da minissérie, de considerar seu trabalho
como uma forma de proporcionar aos brasileiros incultos a possibilidade de conhecer um dos
260
Em matéria assinada por Paulo Vasconcellos, publicada na Folha de S. Paulo, Ilustrada, p. 21, de 30.12.1985,
com o título: Walter Avancini, o mestre das minisséries.
180
maiores romances brasileiros de todos os tempos
261
. Esclarecemos o uso que aqui fazemos dos
dois termos correntemente empregados para se discutir a questão da televisão no âmbito da
educação. Normalmente, usam-se como sinônimas as expressões discurso pedagógico e discurso
didático, porém em nosso entendimento as duas expressões conotam situações bastante diversas.
Neste trabalho, consideramos o discurso pedagógico como o conjunto dos discursos
encontrados no corpus que defendem a veiculação da minissérie Grande Sertão: Veredas. devido
ao caráter intrinsecamente pedagógico que ela possui. Subjacente a esse discurso, encontra-se a
idéia, bastante difundida na sociedade brasileira, de ação formadora dos meios de comunicação
de massa num país de analfabetos. Em geral, essa avaliação funcional dos objetivos dos meios de
comunicação não se restringe somente a eles, mas se dirige, em geral, sobre a produção artística
como um todo. Sob essa perspectiva, a criação/produção artística é vista do ponto de vista
funcional, ou seja, em razão de sua utilidade pedagógica. Nesse sentido, a dimensão pedagógica
de uma obra é passível de ser analisada em todos os seus aspectos: conteúdo, forma, linguagem
ou em sua totalidade. Nessa linha de análise, contemplam-se questões que decorrem do conteúdo
dos programas de tevê, sua intencionalidade, seus objetivos dentro do quadro dos meios de
comunicação de massa e de seu papel social.
Com relação ao termo discurso didático, a linha francesa de Análise do Discurso
considera impróprio o uso corrente que se dá a essa expressão, uma vez que, dentro do domínio
da Didática, há uma série de discursos que se constituem de acordo com a sua intencionalidade:
discursos de pesquisa que seriam os “discursos primeiros ou discursos fontes” e os “discursos
segundos (discursos de vulgarização, discursos midiáticos, discursos didáticos)”
(CHARAUDEAU & MAINGUENEAU 2004: 167)
262
. Portanto, o uso da expressão discurso
261
Michel Peroni, De l’ecrit a l’ecran, p. 20-21, também encontra esse tipo de preocupação pedagógica no quadro da
televisão estatal francesa da década de 1950 e cita P. Chambat e Ehrenberg quando estes lembram que essa década
foi marcada por “(...) uma retórica de tipo pedagógico intrinsecamente ligada às preocupações do serviço público ...
A imagem estava destinada a tocar o espírito das pessoas que dominavam mal a escrita ... A televisão (mídia nova
percebida como mais eficaz que a escrita graças à imagem e a seu poder de penetração bem superior a escola) era o
meio de acesso à cultura para aqueles que dela foram excluídos.”
262
As referências que fazemos ao discurso didático dizem respeito mais precisamente ao caráter de didacidade
presente na minissérie. Segundo o Dicionário de Análise do Discurso, Charaudeau e Maingueneau, p. 165:
“didacidade é construída no cruzamento de três tipos de dados, que permitem distinguir diferentes formas de
didacidade: (1) dados de ordem situacional, em situações assimétricas (...), nas quais um dos interlocutores possui
um saber ou um saber-fazer que o outro não tem, saber real ou suposto, que ele está em posição de fazer partilhar
com o outro; (2) dados de ordem funcional, forçosamente inscritos nesses tipos de interação verbal (quer se trate de
um texto dialogal ou monologal) uma intenção (real, simulada ou fingida) de fazer saber, de fazer dividir seus
saberes, de tornar o outro mais competente, ou de fazer com que o outro aprenda ...; (3) dados de ordem formal
sobre os quais pode-se apoiar a análise lingüística: traços de reformulação intradiscursiva ou extradiscursiva,
181
didático pecaria pela imprecisão. Por isso, preferimos o conceito didacidade
263
desenvolvido pela
linha francesa de Análise do Discurso.
Neste trabalho, compreendemos a didacidade como uma série de mecanismos empregados
pelo produtor/escritor do texto no sentido de tornar sua mensagem mais acessível ao grande
público, mais coerente e mais coesa do ponto de vista estrutural e temático e, por conseguinte, de
mais fácil entendimento. Dessa forma, a produção de uma minissérie cuja legibilidade seja
possível a milhões de brasileiros que têm pouca afinidade com a leitura, deve apresentar uma
dimensão didática que se evidencie pelo tratamento estético e temático dado ao produto
televisual.
No prólogo, Avancini enfatiza que a minissérie representa uma oportunidade de o Brasil
conhecer uma grande obra de sua literatura. Porém, perguntamos, como tornar legível na
televisão um romance considerado de “difícil” leitura em livro? Como se constrói a legibilidade
de uma obra destinada ao grande público – no caso brasileiro, pouco “afeito à leitura”?
A legibilidade de uma obra de arte não lhe é algo intrínseco, depende da comunicação que
ela estabelece com o público a que se destina. Lotman (1978) considera a arte como um sistema
de comunicação cuja existência depende do estabelecimento de uma linguagem comum entre
obra e público
264
. Isso poderia levar alguém a pensar que para compreender a obra artística é
necessário apenas descobrir a chave de decifração de uma espécie de código, porém a descoberta
do código não é suficiente; é necessário descobrir a linguagem em que “(...) o texto foi
codificado.” (Lotman 1978: 60) O código e a chave para sua decifração estão inseridos no amplo
campo semiótico da linguagem. A linguagem, ao mesmo tempo, compõe e dá significado à obra
procedimentos de definição, de explicação, de exemplificação, traços semióticos diversos tomados de vários códigos
linguageiros: prosódicos, icônicos, cinésicos e proxêmicos.” (Charaudeau & Maingueneau 2004: 165)
263
Segundo o Dicionário de Análise do Discurso, Charaudeau e Maingueneau, p. 165: “didacidade é construída no
cruzamento de três tipos de dados, que permitem distinguir diferentes formas de didacidade: (1) dados de ordem
situacional, em situações assimétricas (...), nas quais um dos interlocutores possui um saber ou um saber-fazer que o
outro não tem, saber real ou suposto, que ele está em posição de fazer partilhar com o outro; (2) dados de ordem
funcional, forçosamente inscritos nesses tipos de interação verbal (quer se trate de um texto dialogal ou monologal)
uma intenção (real, simulada ou fingida) de fazer saber, de fazer dividir seus saberes, de tornar o outro mais
competente, ou de fazer com que o outro aprenda ...; (3) dados de ordem formal sobre os quais pode-se apoiar a
análise lingüística: traços de reformulação intradiscursiva ou extradiscursiva, procedimentos de definição, de
explicação, de exemplificação, traços semióticos diversos tomados de vários códigos linguageiros: prosódicos,
icônicos, cinésicos e proxêmicos.”
264
Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, p. 43, afirma enfaticamente: “a primeira conseqüência da proposição
geral segundo a qual a arte representa um dos meios de comunicação de massa é a afirmação: para receber uma
afirmação transmitida por meios da arte, é preciso conhecer a linguagem.”
182
artística, o pertencimento a um certo tipo de linguagem é por si só prenhe de significação.
265
Portanto, a arte, vista como sistema de comunicação, só faz sentido se compreendida como parte
integrante de um todo significativo. Afinal, “um texto artístico é um sentido construído com
complexidade. Todos os seus elementos são elementos de sentido.”(Lotman 1978: 41).
A questão da legibilidade das obras literárias no período romântico foi brilhantemente
estudada por Antonio Cândido (1965) que atribuiu essa característica a um certo papel didático
dos escritores românticos preocupados em preservar um patriotismo então nascente
266
. Essa
escolha estética que decorreu, de acordo com seu ponto de vista, de uma escolha política persiste
em nossa literatura por longo tempo:
Tornar-se legível pelo conformismo aos padrões correntes, exprimir os anseios de todos; dar
testemunho sobre o país; exprimir ou reproduzir a sua realidade – é tendência que verificamos em
Magalhães, Alencar, Domingos Olímpio, Bilac, Mário de Andrade, Jorge Amado. (...) Como
aconteceu na Rússia e na América Espanhola (isto é, países visando à ocidentalização rápida) ele
[o escritor] sempre reivindicou tarefas mais largas do que as atribuídas à sua função específica.
(ANTONIO CÂNDIDO 1965: 102)
Portanto, a questão da legibilidade por parte do grande público, dos temas da minissérie
Grande Sertão: Veredas passa pela condição primordial de descobrir nesse produto elementos
que se organizam narrativamente de modo a encontrar eco nos modelos de produtos audiovisuais
presentes no espírito do espectador; assim entram em jogo não só os pressupostos genéricos
referentes ao meio televisual, mas também todo um saber construído por intermédio de um
conjunto de saberes muito mais amplos que incluem os saberes adquiridos em sua vivência
pessoal e social (incluindo família, educação formal e informal, outros meios de comunicação de
massa ou de relações pessoais). A didacidade opera, portanto, interna e externamente ao texto.
Internamente, por meio dos elementos textuais e externamente por meio de correspondências
intertextuais.
Por outro lado, por meio de um outro movimento de análise em que consideramos o
discurso de Avancini no prólogo da minissérie como revelador de uma intencionalidade, é
possível reconhecermos nas palavras do diretor uma certa continuidade com o tipo de
265
Iuri Lotman, A estrutura do texto artístico, p. 50: “A linguagem de um texto artístico, por definição, é um modelo
artístico determinado do mundo e neste sentido pertence, por toda sua estrutura ao “conteúdo”e traz uma informação
em relação à carga de informação que traz o conteúdo.”
266
Antonio Cândido, Literatura e Sociedade, p. 102, “Mas, ainda aqui, devemos voltar ao chavão inicial que nos
vem guiando, e lembrar que a constituição do patriotismo como pretexto, e a conseqüente adoção pelo escritor do
papel didático de quem contribui para a coletividade, deve ter favorecido a legibilidade das obras.” (grifo do autor)
183
pensamento reinante no campo literário nacional, uma vez que ele assume para si e,
conseqüentemente para a televisão, o papel de garantir para a maioria da população o acesso a
uma das mais importantes obras da literatura brasileira cuja fruição se torna possível graças à
linguagem televisual.
A construção da minissérie como objeto de valor cultural intrínseco opera-se de diversas
formas: por meio das entrevistas da equipe técnica e artística
267
na imprensa em geral, no Press
release, das críticas em jornais e revistas. Porém, já encontramos essa busca nos elementos
discursivos presentes no prólogo. A própria escolha do local em que foi gravado o prólogo, a
Biblioteca Nacional, demonstra que o livro, transposto para a televisão como minissérie, merece
um tratamento diferenciado, pois, segundo Avancini, aquele é “o melhor lugar para se falar de
um livro tão importante para nossa literatura”. Assim, por meio do contexto situacional
envolvendo livro (literatura de qualidade) – biblioteca (lugar de erudição) – minissérie,
transporta-se para a minissérie toda a aura de obra de arte que se referia ao romance de
Guimarães Rosa.
Ficam claras as intenções pedagógicas do diretor quanto este afirma que a transposição do
livro para a televisão tem dois significados:
1) estimular para os que sabem ler uma aproximação com o belo mundo de Guimarães Rosa;
2) levar para a grande maioria do publico brasileiro ainda, infelizmente, sem acesso ao mundo
das letras pelo menos um esboço desse magnífico universo.
Ainda para ilustrar a perspectiva bastante difundida de que a televisão deve ter um papel
pedagógico, gostaríamos de lembrar as palavras do Ministro da Educação Cristovam Buarque
que, em janeiro de 2003, desabafou: “Nenhum galã de novela consegue arrumar namorada
267
Julgamos interessante apresentar aqui, a título de exemplo, dois depoimentos de Durst efetuados em momentos
diferentes acerca da adaptação da minissérie. O primeiro deles foi feito em entrevista concedida a Dib Carneiro
Neto, Gazeta de Pinheiros, em 14.11.1985, p.7, “Receita pra entender Diadorim”, em que Durst
se interroga e se espanta com o fato de os brasileiros não conhecerem Grande Sertões: Veredas. Coerente com essa
perspectiva, anos mais tarde, no artigo A televisão não é eletrodoméstico, Durst comenta sua intenção de levar ao
grande público uma obra consagrada pela crítica internacional e desconhecida da maioria dos brasileiros: Com
Grande Sertão: Veredas foi diferente. Eu pensei em adaptar a obra de Guimarães Rosa, um livro que o Brasil não
conhece, mas que no exterior é muito respeitado. Levei para o Boni autorizar, mas ele disse que naquele momento
não daria, pois estava surgindo o Silvio Santos e teríamos que acompanhar o nível da programação dele, caso
contrário perderíamos audiência. Então esperei. Quando chegou o outro aniversário da Globo, eu disse que era hora.
Então fizemos a minissérie.” Além disso, nesse trecho, percebem-se em suas palavras os fatores comerciais que
estão implicados na realização de projetos no meio televisivo: programação de outros canais, concorrência, formatos
de programas, etc. Na conversa acima relatada por Durst, por exemplo, o diretor da rede Globo (Boni) faz referência
à entrada no ar do SBT.
184
porque é estudioso. Só consegue namorada o cara sarado’’
268
Em seguida, o ministro sugeria aos
autores de teledramaturgia uma atitude “mais didática” das personagens: “As personagens ricas
deveriam ensinar suas empregadas domésticas a ler e a escrever.’’ Na mesma reportagem,
Motter, contra-argumentava: “A forma como a televisão brasileira faz novela está certa. A
questão é aperfeiçoar o modelo existente. A televisão não tem que ficar dando liçõezinhas, sendo
didática. O papel dela é entretenimento.”
Motter (2002b: 13) discute o caráter educativo da telenovela, mas de uma perspectiva
diferente daquela geralmente defendida por muitos:
Esse caráter educativo da telenovela tem apoio não só na possibilidade de tratar figurativamente os
conceitos na sua abstração e complexidade, como também no modo de construção gradual e
reiterada que se processa ao longo de seus aproximados seis meses de duração.
Nesse sentido, muito mais importante que o discurso monológico e moralizador em defesa
dos bons valores surge o tratamento artístico de problemas cotidianos identificados com a
realidade do telespectador que, se nem sempre ocorre numa perspectiva de transformação, pelos
menos coloca em pauta algumas facetas das mais perversas relações de poder presentes em nossa
sociedade (corrupção, pedofilia, violência doméstica). Dessa forma, o discurso autoritário e
monológico é substituído pela alteridade e pela dialogia. Motter (2002b: 15), discutindo o
conteúdo ideológico das telenovelas, argumenta:
Trata-se, em última instância, do uso ideológico do gênero, historicamente a serviço da
permanência, num movimento que busca questionar os valores tradicionais e romper a imobilidade
social. E, ninguém melhor para fazê-lo do que a telenovela, considerada a maior tribuna do país.
Podemos observar na fala do Ministro da Educação anseios comuns a muitas pessoas que
acreditam que se “(...) a TV transpusesse para a pequena tela os grandes clássicos da literatura,
(...) estaria talvez substituindo a leitura e, ao mesmo tempo, estimulando, teoricamente, a vontade
de ler.” (Rocco 1991: 117). Porém, tal raciocínio revela-se equivocado, pois como lembra Rocco
(1991: 118):
O fato de assistirmos, por exemplo, à adaptação para a TV de uma obra literária de bom nível,
considerada artística e que, surge sob forma de novela ou minissérie – segmentos ficcionais dos
mais valorizados pelo público – tal fato, em hipótese alguma, garante primeiro, que o que será
produzido via TV mantenha o nível estético do livro e, em segundo lugar, que tal produto, mesmo
que artística e televisualmente bem trabalhado, possa substituir a leitura da obra original.
268
Cf. reportagem com título Televisão bem educada, assinada por Lílian Tahan, publicada no Correio Braziliense
de 02.02.2003.
185
Afinal, a transposição de uma obra literária para a linguagem televisual implica uma série
de transformações decorrentes de necessidades criadas pela nova linguagem cujas características
de enunciação diferem daquelas da obra literária. Discutiremos parte dessa transformação mais
adiante.
É, portanto, dentro desse universo multifacetado em que a alteridade e a dialogia devem
estar presentes para que se consiga não apenas entreter, mas também fazer pensar e fazer
conhecer que se insere a didacidade da minissérie. A minissérie Grande Sertão: Veredas
evidencia as relações de poder dentro do bando de jagunços; entre os fazendeiros e os chefes de
bando e jagunços, entre homem e mulher, entre os mais miseráveis. É por meio de operações que
visam a esclarecer essas relações de poder que vislumbramos a didacidade dessa obra.
Afinal, o que, geralmente, surge no livro como um juízo de valor de Riobaldo efetuado a
posteriori de um relato qualquer deve ser mostrado, na minissérie, no momento mesmo da ação.
Por isso, roteirista e diretor precisam estar atentos no sentido de oferecer signos que permitam
uma identificação imediata das relações de poder que pretendem tratar.
Um exemplo desse tipo de tratamento ocorre na minissérie quando seô Habão,
“proprietário na zona misteriosa do Sucruiú” (Antonio Cândido 2004b: 113), meio a contragosto
(Zé Bebelo já o esperava havia dias), chega à Fazenda Coruja para conversar com Zé Bebelo. Seô
Habão desce do cavalo e faz um sinal com a mão e estende as rédeas para Riobaldo e lhe diz para
cuidar do cavalo. Riobaldo percebe sua condição subalterna, serviçal, quase escrava, pelo modo
superior com que o coronel o olha e pela forma com que este lhe entrega os arreios. Fica evidente
quem deve mandar e quem deve obedecer. A imagem de seô Habão, bem vestido (usando uma
espécie de casaca azul marinho e um cachecol branco), bem alimentado, cabelos e olhos claros,
barba bem cuidada, marca pela oposição em relação aos rostos sujos e marcados por cicatrizes,
barbas mal cuidadas, roupas pobres e surradas de Riobaldo e de seus colegas de bando.
Em seguida, seô Habão entra na casa da fazenda onde vai conversar com Zé Bebelo e
deixa claro que não dará o dinheiro solicitado pelo chefe. Riobaldo entra na casa onde é
apresentado pelo chefe ao fazendeiro. Riobaldo então lhe entrega o diploma de capitão que ele
havia salvado na fazenda do Valado. Seô Habão dá pouca atenção ao fato e continua
conversando com Zé Bebelo, quando este começa a tentar conseguir algum dinheiro do seô
Habão, Riobaldo sai. Na cena seguinte, estão Riobaldo, Reinaldo e Fafafa passando a mão na
bela cabeça do cavalo de seô Habão quando Riobaldo comenta com os companheiros que o sonho
186
do fazendeiro é fazer todos os jagunços seus escravos. Seô Habão se aproxima para pegar o
cavalo e Riobaldo lhe conta que é filho de Selorico Mendes. Seô Habão tira o chapéu e se abre
em sorrisos
269
e lamenta não ter conversado mais com Riobaldo, pois ele gosta muito de Selorico.
Nesta cena, expõem-se muito bem o caráter interesseiro de seô Habão e a esperteza de Riobaldo
que utiliza a única arma capaz de fazer seô Habão notá-lo não como um possível escravo, mas
como um igual devido às fazendas de seu pai.
Para Bolle (2004: 177-178), é nessa fazenda que, conserva intactas as instalações da
senzala e da casa grande, Riobaldo resolve optar pela casa grande como objetivo a ser alcançado.
Também na minissérie, esse episódio funciona como um demarcador de mudança de objetivos de
Riobaldo. Riobaldo faz o pacto com o demônio pouco tempo depois de conhecer seô Habão e ter
descoberto “que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser
homem muito provisório.”
(GSV: 429)
Dias depois, seô Habão volta e lhe dá o belo cavalo que tinha
sido elogiado por Tatarana. Além disso, seô Habão demonstra urbanidade e respeito, tirando o
chapéu para cumprimentar Riobaldo.
Avancini (Press release: 4) reconhece as limitações da transposição feita, mas demonstra
estar bastante atento para a necessidade de que a cena se auto-explique:
Há perda nessa transposição (...). Porque Guimarães Rosa, muitas vezes, além de colocar a
situação, também a avalia. Num espetáculo de TV, isso é impossível. Então tentamos reproduzir
essa perspectiva, através de reações de comportamentos de personagens de todas as dimensões
estéticas. E não sei até que ponto isso foi alcançado. Para mim, que conheço bastante a obra de
Guimarães, isso é distante, fica mais é um esboço para que se mergulhe nele através da literatura.
Enfim, a televisão pode servir como ponto de partida para se conhecer a obra de
Guimarães Rosa, o que, em si, é louvável; mas essa idéia não deixa de conter a intenção de
educar a sociedade por meio de uma obra que pretensamente não foi concebida para isso, mas
que pode ser útil a essa finalidade. Nesse discurso de Avancini e nos outros a que nos referimos
anteriormente, tanto dele quanto de Durst, percebe-se que ambos partilham de uma certa “(...)
ideologia ilustrada, segundo a qual a instrução traz automaticamente todos os benefícios que
permitem a humanização do homem e o progresso da sociedade.” (ANTONIO CÂNDIDO 1979:
269
Reproduzo aqui parte do diálogo entre Riobaldo e seô Habão. Seô Habão: - Ah, se seu soubesse a gente tinha
conversado muito mais. Eu gosto muito dele. E por aproximação naturalmente já estou gostando do sôr também.
Sinceramente quando encontrar com ele dou notícia. Com sua licença.
Seô Habão pega as rédeas do cavalo e monta. Já em cima do cavalo, num gesto amistoso, levanta o chapéu e repete:
- Dou notícia.
187
349). Infelizmente, sabemos hoje que não é somente a educação que forja uma nação de
cidadãos. No entanto, consideramos que a educação é elemento essencial para a tranformação
social.
8.4. A imagem da nação na minissérie
No Brasil, de acordo com Ianni (2004: 180), a questão nacional continua em aberto, pois
somos um país que procura sua fisionomia, sua “própria imagem”; uma nação que ainda não se
definiu, que está em processo. A busca pela definição dessa fisionomia, pela identidade brasileira
parece ter sido um dos objetivos que nortearam as vidas artísticas de Avancini e de Durst.
Avancini afirmou ainda no ano de realização da minissérie de:
A busca de uma identidade nacional sempre orientou meus trabalhos. (...) Só fiz coisas nacionais e
procurei jamais perder de vista o meu parceiro, que, para mim, não é o “espectador, mas o povo. O
termo “espectador” dá uma idéia de manipulação que me desagrada. Prefiro dizer que tento
inquietar o povo com minhas inquietações.
270
A mesma preocupação com a identidade nacional surge quando, o diretor, ao ser
indagado, em 1999, quase vinte e quatro anos depois da produção da minissérie, sobre qual teria
sido a sua “principal contribuição” para a televisão brasileira, reafirmou que foi sua: “(...) sincera
preocupação com a identidade brasileira o tempo todo. Talvez tenha sido o diretor que mais
realizou televisão em cima da realidade brasileira.” (SILVA JR. 2001: 340-341).
A preocupação de mostrar o Brasil ao Brasil também era manifestada por Durst em
matéria publicada no jornal Gazeta de Pinheiros, em 14.11.1985: “`Como pode o brasileiro não
conhecer o melhor livro do seu País?’ Foi outra pergunta que Durst se fez, já perfeitamente
convencido de que era dívida da TV mostrar “Grande Sertão: Veredas” para quem quisesse
ver.”
271
Ou ainda em outra afirmação de Avancini em debate promovido pelo jornal Folha de S.
Paulo com o título de “A telenovela e a sociedade brasileira”, do qual participaram Walter
Avancini, José Celso Martinez, Benedito Rui Barbosa, Tadeu Jungle:
270
Essa afirmação consta da reportagem de Luciana Villas-Boas, Sucesso com ideologia, Jornal do Brasil,
30.12.1985.
271
Em matéria de Dib Carneiro Neto, “Receita para entender Diadorim”, publicada na Gazeta de Pinheiros, de
14.11.1985, p. 7.
188
Mas Brasil é Brasil. Temos que fazer uma televisão diferenciada também, atendendo os dois.
Porque aquela mulher que pariu dez filhos, dos quais dois sobreviveram, não tem nenhuma
excitação com estes ti-ti-tis ... [referindo-se à discussão política sobre o uso da televisão] Este
Brasil significa praticamente 60%. Me preocupo com ela. Quero que esta gente me entenda, e
quero colocar ruídos neles, contra uma formação judaica ou cristã, quero sim. Eu quero mexer com
os mitos. Acho que deve ter um grupo como você, como o Zé Celso que estão num outro processo.
Este grupo tinha que ter um espaço na televisão, de exercício para as transformações nos centros
urbanos. Para fazer a cabeça daqueles que já têm um certo tipo de jogo de cintura, digamos assim,
que deve ser estimulado. Porém há este grande Brasil ainda que me preocupa muito. Não quero
criar rejeição.
272
Aliás, gostaríamos de chamar atenção para o fato de que nesse debate foram discutidas as
relações entre o gênero telenovela e a sociedade brasileira
273
. Nota-se, até mesmo pela criação de
um espaço para discussão, que as relações entre gênero, sociedade, identidade social e nacional
são muito mais fortes do que muitos supõem. O gênero telenovela converte-se em uma “matriz
cultural” conforme o já clássico estudo de Martín-Barbero (2001) a respeito do impacto desse
gênero sobretudo nos países da América Latina.
Engana-se, porém, quem acredita que na atualidade, com os efeitos mais fortes da
globalização sobre a criação televisual, essa busca de Brasil tenha terminado. Ao contrário, é
interessante notar que mesmo atualmente alguns diretores mantêm-se preocupados com a idéia de
demonstrar, de forjar ou mesmo, como alguns dizem, de resgatar os valores identitários da nação
brasileira. É o que se depreende, por exemplo, das palavras de Luiz Fernando Carvalho
(assistente de direção de Avancini em Grande Sertão: Veredas) constantes em entrevista
concedida, no início de 2005, a Leila Reis a propósito da minissérie Hoje é dia de Maria; o
próprio título da matéria não deixa dúvidas: A brasilidade é o único tema de Luiz Fernando
Carvalho
274
. Ao responder à pergunta sobre que Brasil queria representar na TV, o diretor
respondeu: “Um Brasil que, apesar dos problemas, das injustiças ainda sonha. Não é um sonho
puro e simples, mas um sonho que nos ajuda a despertar. A função da arte é despertar as pessoas.
Aí eu não separo por categorias, é função da TV, do cinema, do teatro.” E, na resposta sobre o
que pretendia com produções como Hoje é dia de Maria, ele retoma a idéia mais explicitamente:
272
Folha de São Paulo, Ilustrada, p. 54, 05.04.1986.
273
No texto introdutório ao debate o jornal afirma: “Em debate promovido pela Folha no último dia 7, no auditório
do jornal, profissionais ligados à TV e à dramaturgia discutiram o papel das telenovelas no Brasil, com ênfase na
função social do gênero. (...) A partir de um ponto pacíficode que o brasileiro se transtornaria se as novelas fossem
subitamente retiradas do ar -, a banca debatedora e a platéia analisaram de que maneira o folhetim televisivo mantém
essa influência hipnótica sobre o público. Não houve declarações de apoio incondicional à telenovela, mas, no
máximo impressões de que o gênero evolui.” In: A telenovela e a sociedade brasileira, Folha de S. Paulo, Ilustrada,
p. 54, de 05.04.1986.
274
Entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 14.01.2005, Caderno 2, p. D10.
189
“Atravessar fronteiras da cultura nordestina, em termos de quilômetros é fazer uma viagem maior
que o continente. Quero retratar uma brasilidade sem regionalismos porque eles inevitavelmente
acabam caindo nos clichês.”
Assim, dentro desse quadro histórico-social de um país que se conhece e reconhece mais
pela televisão que pelos livros, observa-se que a adaptação de textos literários, nascida como uma
tendência em conseqüência de uma provável inexperiência dos autores e produtores no início da
televisão brasileira, torna-se uma forma de atender aos anseios do regime político vigente numa
perspectiva de subsidiar a criação de um espaço simbólico comum na população brasileira: a
nação brasileira
275
. Porém, como vimos, a produção artística encontrou brechas e criou um
espaço que, se não se caracterizou pelo total distanciamento em relação aos desejos do Estado
autoritário, conseguiu incluir no imaginário da sociedade brasileira algumas questões e perguntas
que marcariam o final do período militar no Brasil. Esses questionamentos ganham um espaço
simbólico importante na medida em que atuam por meio da emoção e do sentimento visto à flor
da pele nas personagens “fictícias” que parodiam personagens “reais” como coronéis (corruptos
como Sinhozinho Malta), delegados (que agiam sob o comando dos coronéis e à revelia das leis),
falsos heróis (que desmistificam a santidade criada por meio da mentira como Roque Santeiro) e
políticos (populistas, autoritários e corruptos como Odorico Paraguaçu)
276
que, além de nos terem
feito rir, fizeram-nos pensar na dura realidade que, infelizmente, ao contrário da ficção televisual
não esboça minimamente um final feliz.
8.5. A nação na minissérie – A minissérie na nação: o moderno e o arcaico
Bhabha (2003: 199) propõe o entendimento do conceito de nacionalidade “(...) como uma forma
de afiliação social e textual (...)” que se opõe ao conceito de nacionalismo como certeza
histórica e natureza estável. Tendo como base essa idéia, Bhabha (2003: 199) postula que o
importante para compreendermos a nacionalidade e o nacionalismo é termos a noção de
275
A esse respeito Ramos & Borelli, Telenovela e modernização: os anos 70-80, p. 97, afirmam: “As novelas
literárias trazem a idéia de uma recuperação do passado, das raízes e tradição, enfim, o resgate de uma brasilidade
que seria repassada para o telespectador através de obras que enfocam diferentes momentos históricos.”
276
Referimo-nos aqui somente a personagens de Roque Santeiro (telenovela de 1985) e O bem amado (1973, 1980-
1984 - telenovela e seriado). Porém, poderíamos citar muitos outros exemplos.
190
localidade da cultura
277
, uma localidade que não encontra referência apenas no mundo “real”,
mas principalmente num conjunto de sentimentos que emerge nas relações humanas,
principalmente naquelas em que a narrativa da nação surge como força aglutinadora, como
metáfora da própria nação
278
.
De acordo com esse pensador, as grandes obras literárias seriam metáforas da nação, ou
seja – a interpretação dessas obras literárias seguindo um processo de transposição semântica
ensejado pela comparação subjetiva presente na metáfora
279
-, seriam a própria nação e não
apenas uma representação dela. Na medida em que interpretam as diversas temporalidades das
“(...) formações culturais e processos sociais sem uma lógica causal centrada.” (Bhabha 2003:
201). Assim, podemos compreender o livro Grande Sertão: Veredas e a minissérie a ele dedicada
como metáforas do Brasil, na medida em que articulam as diversas temporalidades presentes na
cultura brasileira e as reorganizam, atualizando-as num complexo processo de interpretação e
reinterpretação dos sentimentos e desejos de uma parcela da população brasileira (os jagunços, as
populações dos sertões, a “elite” dos fazendeiros), que, metonimicamente, se projetam como
parte integrante de um todo dialeticamente constituído. Ianni (2004: 63) também chama atenção
para as diversas temporalidades e espaços que estão envolvidos na constituição do Brasil
moderno:
O Brasil Moderno, ao mesmo tempo em que se desenvolve e diversifica, preserva e recria traços e
marcas do passado recente e remoto, nesta e naquela região. O país parece um mapa
simultaneamente geográfico e histórico, contemporâneo e escravista, republicano, monárquico e
277
Homi Bhabha, O local da cultura, p. 199, afirma a centralidade do local da cultura: “Essa localidade está mais em
torno da temporalidade que sobre a historicidade: uma forma de vida que é mais complexa que “comunidade”, mais
simbólica que “sociedade”, mais conotativa que “país”, menos patriota que patrie, mais retórica que a razão de
Estado, mais mitológica que a ideologia, menos homogênea que a hegemonia, menos centrada que o cidadão, mais
coletiva que o “sujeito”, mais psíquica do que a civilidade, mais híbrida na articulação de diferenças e identificações
culturais do que pode ser representado em qualquer estruturação hierárquica ou binária do antagonismo social.”
(grifos do autor)
278
É interessante notar que para Homi Bhabha, O local da cultura, p. 200, as narrativas marcantes de uma nação
funcionam como metáforas dessa nação, como formas de compreender os sentimentos e as temporalidades que
fazem com que uma determinada coletividade se compreenda como nação. Nesse sentido, é significativo esse trecho
de seu livro: “Os nomes dados à nação são sua metáfora: Amor Patria; Fatherland [Terra Natal]; Pig Earth [Terra
Madrasta]; Mothertongue [Língua Maternal]; Matigari, Middlemarch; Midnight’s Children [Os Filhos da Meia-
Noite]; Cem Anos de Solidão; Guerra e Paz; I Promessi Sposi [Os Noivos]; Kanthapura; Moby Dick; A Montanha
Mágica; Things Fall Apart [O mundo se despedaça].” (Bhabha 2003: 200)
279
Cf. ensaio de Antonio Cândido intitulado A natureza da metáfora, in O estudo analítico do poema, p. 99, do qual
destacamos a seguinte passagem: “(...) a metáfora, tanto a comum quanto a literária, pressupõe os seguintes
elementos”: (1) – semelhança (2) – comparação subjetiva (3) – abstração (4) – transposição (5) formação de uma
nova realidade semântica de caráter simbólico.”
191
colonial, moderno e arqueológico. Toda a sua história está contida no seu presente, como se fosse
um país que não abandona nem esquece o pretérito; memorioso.
Na minissérie, que transpôs para a televisão o romance maior de Guimarães Rosa e que
buscou, segundo seu diretor e roteirista final, o máximo de fidelidade ao texto original
evidenciam-se essas diversas camadas sociais e temporais aludidas por Ianni. Temporalidades
que se condensam por meio dos discursos progressistas de Zé Bebelo
280
, em nome de uma nova
organização político-social contrapostos a suas ações baseadas na lógica do coronelismo e do
jaguncismo; poderíamos ainda citar os discursos e atos de Joca Ramiro (“imperador em três
alturas”
GSV: 195
) ou as várias cenas em que ficam claros atos de violência de Riobaldo
(principalmente na fase Urutu Branco) em que subjuga mulheres, em particular, e pobres, em
geral (deficientes físicos e mentais, homens e crianças), para confirmar seu poder de chefe de
jagunços; tal qual um cruel senhor de guerra medieval.
As diversas temporalidades estão presentes não apenas no tratamento do todo discursivo,
mas também na fala das personagens, como aludimos anteriormente, uma fala marcada pelo
passado cujo imbricamento com o presente é, ao mesmo tempo, impossível e inevitável.
Lembramos aqui, para elucidar nosso raciocínio, o episódio em que o grupo liderado por Zé
Bebelo encontra os catrumanos cuja fala, costumes, armas e dinheiro remontam a um pretérito
demarcado apenas por uma linha fluida; um pretérito distante demais, arqueológico (visto que os
catrumanos usam armas antigas e rudimentares e oferecem uma moeda antiga “do tempo do
Império” na tentativa de se livrar dos jagunços) mesmo para os jagunços, eles próprios colocados
à parte das relações temporais com o resto do Brasil. Os catrumanos situam-se não apenas fora do
tempo, mas também fora do espaço. É essa nossa interpretação para a resposta que Zé Bebelo dá
para aqueles pobres diabos quando estes lhe perguntam de onde ele vem. Zé Bebelo é categórico:
vem “do Brasil”. A idéia de pretérito arqueológico é ainda reforçada pelo próprio significado da
palavra catrumano. Segundo Martins (2001: 108), essa palavra, que designa, de maneira
280
Nas palavras de Ze Bebelo está presente o discurso fundador da República que reverbera os princípios positivistas
“ordem e progresso”. O discurso fundador, segundo Eni P. Orlandi, Discurso fundador, p. 13, que instaura um novo
sentido; “(...) o sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra “tradição” de sentidos que produz os outros sentidos
nesse lugar [de memória]. Instala-se uma nova “filiação”. Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo
que pelo seu próprio surgir produz sua “memória”. Se procurarmos compreender a trajetória de Zé Bebelo de acordo
com a produção de sentido de suas palavras e de suas ações entre os habitantes dos sertões , perceberemos que seu
discurso não adquire características de fundador, pois não consegue mudar novos sentidos na organização político-
social; ao contrário, seu desejo de progresso para a região é substituído pelo desejo de estudar na Capital para se
tornar bacharel. Ou seja, ele deseja fazer parte do que se convencionou chamar “República dos Bacharéis.”
192
depreciativa, caipira, matuto, sertanejo, e etimologicamente está ligada a quadrúpede; numa
alusão, talvez, ao passado remoto da espécie humana.
A esses brasis mostrados na minissérie soma-se e articula-se ainda o conceito de Brasil de
1985, no qual o telespectador vive. Um país que deveria ter presenciado, após mais de 20 anos
de ditadura militar, a posse de um presidente civil que, mesmo tendo sido eleito de forma
indireta, contava com o apoio das oposições
281
e prometia a volta do país a um regime
democrático.
282
Um presidente eleito que jamais tomou posse devido a um sério problema de
saúde que o levou à morte em 21 de abril. Data da morte do mais popular mártir do Brasil,
portanto, fortemente simbólica para a identidade da nação . Em seu lugar, assume o vice, José
Sarney, político subserviente aos militares e que somente à última hora sai do Partido
Democrático Social (PDS), partido sucessor da Arena, de apoio irrestrito aos militares, e, em
razão de manobras e acertos políticos, junta-se a Tancredo Neves para derrotar o candidato do
PDS, Paulo Maluf. José Sarney torna-se, de maneira inesperada e preocupante, presidente do
Brasil. O Brasil comovido pela agonia e morte de Tancredo Neves se pergunta o que acontecerá
ao país? As promessas de Tancredo de redemocratização serão cumpridas? O passado de Sarney
ligado às poderosas oligarquias nordestinas e aos militares poderá ensejar as mudanças sociais e
políticas que o país reclama?
Lembramos aqui as palavras de Avancini sobre o momento histórico e a incidência de
fatores sociais sobre a produção televisual da época e sobre a televisão em geral:
Hoje, a busca da identidade nacional se vulgarizou e é isto que está influenciando a televisão. Ela
anda a reboque da coletividade. Se o Brasil continuar neste processo de auto-reconhecimento, a TV
o acompanhará. O momento da vida nacional é que fez o sucesso de “Grande Sertão”. Há cinco
anos, seria inútil adaptar essa obra para o vídeo.
283
A minissérie Grande Sertão: Veredas vai ao ar em novembro/dezembro de 1985 quando
parte dos sonhos já tinha se despedaçado: no plano econômico, o Brasil mergulhara numa forte
crise financeira; no plano político, o presidente tomava medidas que não satisfaziam totalmente
281
Cf. Boris Fausto, História Concisa do Brasil, p. 285, “Tancredo possuía algumas qualidades raras no mundo
político: honestidade, equilíbrio, coerência de posições. Essas virtudes se sobrepunham às preferências ideológicas
de direita ou de esquerda.”
282
Cf. Boris Fausto, História Concisa do Brasil, p. 286, “Em maio de 1985 a legislação restabeleceu as eleições
diretas para a Presidência da República e aprovou o direito de voto dos analfabetos, assim como a legalização de
todos os partidos políticos. (...) As eleições para a Assembléia Nacional Constituinte foram marcadas para novembro
de 1986.”
283
Em reportagem assinada por Paulo Vasconcellos publicada, em 30.12.1985, no jornal Folha de S. Paulo,
Ilustrada, p. 21, com o título: Walter Avancini, o mestre das minisséries.
193
as esperanças da volta imediata ao estado de direito: a censura ainda existia; “(...) o SNI [Serviço
Nacional de Informações] foi mantido e continuou a receber recursos substanciais.” (Fausto
2001: 286). Nesse entrecruzamento de temporalidades (jaguncismo, coronelismo, federação
republicana, Nova República), temos a eclosão de um país multiforme e até em certos momentos
multidialetal (ou seria multilingual?) que se conhece por meio da literatura, da novela e da
minissérie de televisão, enfim por meio da ficção.
194
Capítulo 9 – Minissérie Grande Sertão: Veredas – Do livro ao roteiro
“O senhor é bondoso de me ouvir.
Tem horas antigas que ficaram muito mais perto
da gente do que as outras, de recente data.
O senhor mesmo sabe.”
(GSV: 115)
A fascinante linguagem empregada por Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas
parece entreabrir ao leitor atento algumas passagens entre a prosa e a poesia, entre o escrito e o
oral entre o verbal e o visual. Essas passagens entre gêneros e linguagens não se apresentam de
maneira estanque, ao contrário, articulam-se conferindo ao romance um equilíbrio tamanho que
muitas vezes nos percebemos escutando e vendo pessoas (tornadas personagens) que fazem parte
da nossa memória, da nossa história. Aproximamo-nos da “matéria vertente”
(GSV 116)
de
Riobaldo, tentamos nos apropriar dela, tentamos torná-la algo palpável, mensurável, controlável,
armazenável, mas ela se nega a ser controlada e continua vertendo, continua nos interpelando,
continua nos deixando menos certos sobre o que vemos, sentimos, ouvimos, falamos, cheiramos
ou saboreamos. Nossos pobres cinco sentidos só conseguem apreender um pouco dessa
linguagem quando estão articulados. Acreditamos, por isso, que qualquer tentativa de isolar um
ou outro aspecto de Grande Sertão: Veredas - o oral, o verbal, o visual, o sensório – ajude
somente a compreender superficialmente o magnífico trabalho de elaboração linguageira
efetuado por Guimarães Rosa. É, por essa razão, que nos sentimos pouco à vontade ao apresentar,
mesmo que parcialmente, um ou outro aspecto da obra rosiana; no entanto, acreditamos que esse
exercício será necessário para compreendermos a morfologia e sintaxe da minissérie.
9.1. Grande Sertão: Veredas – da visualidade no literário à literariedade no (tele)visual
Comecemos nossa rápida exploração por meio de algumas pinceladas a respeito do caráter
oral da prosa rosiana, aspecto bastante lembrado, especialmente, quando se fala em Grande
195
Sertão: Veredas. Teresinha Souto Ward
284
(1984: 127) afirma que o autor se esforçou em “(...)
eliminar fronteiras exatas entre os modos expressivos poesia/prosa, escrito/oral, urbano/rural,
assim como entre temas considerados rústicos/populares e outros tidos como literários/cultos.”
Assim, por meio do discurso oral que se organiza por anáforas, catáforas, digressões,
elipses, Riobaldo nos faz penetrar em um mundo em que tudo é e não é, em que de nada se tem
certeza, em que a palavra ganha vida por meio de entonações, musicalidade e silêncios. As
elipses, as reticências, os dêiticos mesclam o visual e o oral; as passagens se tornam visíveis não
apenas por obra de nossa imaginação, mas pela exigência de um narrador cujo discurso remete
sempre ao icônico, ao representado. Porém, o icônico e o representado não estão à nossa
disposição enquanto objetos, eles são sujeitos. O pássaro manuelzinho-da-croa não é um pássaro
apenas, é a própria alma feminina de Diadorim e é também um sopro de sensibilidade na vida
bruta a que Riobaldo sempre esteve submetido. Obviamente, essa passagem permite diversas
interpretações, mas o narrador não nos deixa passar incólumes por ela; Riobaldo se transforma e
passa a enxergar o mundo pelos olhos de Reinaldo:
O Reinaldo mesmo chamou minha atenção. O comum: essas garças, enfileirantes, de toda
brancura; o jaburu; o pato-verde, o pato-preto, topetudo; marrequinhos dançantes; martim-
pescador; mergulhão; e até uns urubus, com aquele triste preto que mancha. Mas, melhor de todos
– conforme o Reinaldo disse-o que é o passarim mais bonito e engraçadinho de rio-abaixo e rio-
acima: o que se chama o manuelzinhoda-croa. Até aquela ocasião, eu nunca tinha ouvido dizer de
se parar apreciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles pássaros, em seu começar e
descomeçar dos vôos e pousação. Aquilo era para se pegar a espingarda e caçar. Mas o Reinaldo
gostava: – “É formoso próprio...” – ele me ensinou. Do outro lado, tinha vargem e lagoas. P’ra e
p’ra, os bandos de patos se cruzavam. – “Vigia como são esses...” Eu olhava e me sossegava mais.
O sol dava dentro do rio, as ilhas estando claras. – “É aquele lá: lindo!” Era o manuelzinho-da-
croa, sempre em casal, indo por cima da areia lisa, eles altas perninhas vermelhas, esteiadas muito
atrás traseiras, desempinadinhos, peitudos, escrupulosos catando suas coisinhas para comer
alimentação. Machozinho e fêmea – às vezes davam beijos de biquinquim – a galinholagem deles.
– “É preciso olhar para esses com um todo carinho...” – o Reinaldo disse. Era. Mas o dito, assim,
botava surpresa. E a macieza da voz, o bem-querer sem propósito, o caprichado ser – e tudo num
homem-d’armas, brabo bem jagunço – eu não entendia! Dum outro, que eu ouvisse, eu pensava:
frouxo, está aqui um que empulha e não culha. Mas, do Reinaldo, não. O que houve, foi um
contente meu maior, de escutar aquelas palavras. Achando que eu podia gostar mais dele. Sempre
me lembro. De todos, o pássaro mais bonito gentil que existe é mesmo o Manuelzinho-da-croa.
(GSV: 159)
284
Teresinha Souto Ward, O discurso oral em Grande Sertão: Veredas, efetuou um minucioso estudo sobre a
oralidade no romance. Seu estudo incluía uma pesquisa de campo com a finalidade de comparar o falar do romance
com o falar do sertanejo da região retratada em Grande Sertão: Veredas.
196
Em outra passagem, o narrador convida seu interlocutor a traçar um mapa, conforme
observa Mendes (1998: 61), na tentativa de tornar mais visual o campo da batalha final de
Tamanduá-tão:
A bem, como é que vou dar, letral, os lados do lugar, definir para o senhor? Só se a uso de papel,
com grande debuxo. O senhor forme uma cruz, traceje. Que tenha os quatro braços, e a ponta de
cada braço: cada uma é uma... Pois, na de cima, era donde a gente vinha, e a cava. A da banda da
mão-direita nossa, isto é, do poente, era a Mata-Grande do Tamanduá-tão. Rumo a rumo, a da
banda da mão-esquerda, a Mata-Pequena do Tamanduá-tão. A de baixo, o fim do varjaz – que era,
em bruto, de repente, a parede da Serra do Tamanduá-tão, feia, com barrancos escalavrados. Os
barrancos cinzentos, divulgando uns rebolos e relombos, barrancos muito esquisitos – como as
costas de fila de muitos animais... Mas, agora, o senhor assinale, aqui por entremeio, de onde é a
Serra do Tamanduá-tão e a Mata-Grande do Tamanduá-tão, mais ou menos, os troços ve-lhos da
casa-de-fazenda, que tanto se desmantelou toda; e, rumo-a-rumo, no caminho da Serra para a
Mata-Pequena, essas rocinhas de pobres sitiantes. Aí o senhor tem, temos. A Vereda recruza,
reparte .o plaino, de esguelha, da cabeceira-do-mato da Mata-Pequena para a casa-de-fazenda, e é
alegrante verde, mas em curtas curvas, como no sucinto caminhar qualquer cobra faz.” (GSV: 563)
Morais, após efetuar estudo detalhado dos mecanismos empregados por Walter George
Durst para a transformação do texto literário em roteiro televisual, considera que foram os
elementos característicos da linguagem oral da prosa rosiana que facilitaram a transformação do
texto literário em roteiro televisual:
(...) constatou-se que as características específicas da linguagem oral presentes no romance
contribuíram para a transvocalização – usando a terminologia de Genette – e foi o grosso do
trabalho na transformação do grande monólogo de Riobaldo em diálogos do roteiro. (MORAIS
2000: 23)
Outro aspecto relacionado à visualidade de Grande Sertão: Veredas para o qual Mendes
(1998: 53) chama atenção refere-se aos inúmeros sinais gráficos que permeiam as páginas, desde
sinais de pontuação até as ilustrações das orelhas e da folha de rosto do livro:
Texto escrito sob o signo da dor, da morte, da falta, Grande Sertão: Veredas traz marcas visuais
tão expressivas e portadoras de significados quanto as palavras escritas; se colocam aos olhos do
leitor, convidando-o a considerar o livro com um precioso objeto, que, além de lido, deverá ser
contemplado. Produzido segundo leis próprias, proporá um outro caminho de percepção e de
leitura, pela bordadura das marcas autorais dos ornamentos, da imposição de uma determinada
respiração, ao se executar o ato físico de ler.
Trata-se de um livro em que as linguagens se mesclam e, mais que isso, se entretecem de
tal maneira que não mais é possível distingui-las. Elas estão todas lá, formando um todo
eloqüente em que a “matéria vertente”
(GSV 116)
flui complexa, indissolúvel, impossível e até
indizível apenas por palavras.
197
A complexidade visual se incorpora harmoniosamente ao trabalho com a linguagem
escrita que teima em desafiar as designações tradicionais da teoria de gêneros e de estilística. Os
livros escritos por Guimarães Rosa são compostos por textos que ficam entre o verso e a prosa,
afrontando as fronteiras didáticas das divisões esquemáticas. Gonçalves (1997/1998: 8) afirma
que:
(...) a “frase” de Guimarães Rosa esconde em si o verso e a prosa, não sendo assim nenhum dos
dois mas a ferrugem da retórica metamorfoseada pela temperatura máxima de um procedimento
alquímico aplicado sobre metais de várias naturezas. Por isso, falar de seu estilo ou de sua “frase
fundamental” é falar do elemento mínimo da poesia, isto é, do signo, no seu sentido mais estrito
feito imagem, que resvala em alguma coisa que antecede os princípios fundamentais da língua e,
ao mesmo tempo, os sucede, devolvendo-nos, algumas vezes, apenas com seus rumores, ao ponto
do qual saímos e vivemos à procura de retornar.
A prosa de Guimarães Rosa coloca-se como um desafio para todos que a lêem, não em
virtude de uma propalada dificuldade de compreensão de seu estilo, mas, sobretudo, pelas
diversas camadas de significação contidas em frases ou em palavras aparentemente simples que
desvelam um mundo impregnado de sentidos, imagens, gostos, desejos, paixões. Essa linguagem
vigorosa e desafiadora exige um leitor atento a todas as nuanças da comunicação verbal que se
instalam entre narrador e receptor. Um leitor experiente que se delicie com a sonoridade, com o
ritmo de uma linguagem oral marcada pela polissemia de significados. Bosi (1994: 430)
considera que após a leitura de Grande Sertão: Veredas:
(...) começou-se a entender de novo uma antiga verdade: que os conteúdos sociais e psicológicos
só entram a fazer parte da obra quando veiculados por um código de arte que lhes potencia a carga
musical e semântica. E, em consonância com todo o pensamento de hoje, que é um pensar a
natureza e as funções da linguagem, começou-se a ver que a grande novidade do romance vinha de
uma alteração profunda no modo de enfrentar a palavra. Para Guimarães Rosa, como para os
mestres da prosa moderna (um Joyce, um Borges, um Gadda), a palavra é sempre um feixe de
significações: mas ela o é em um grau eminente de intensidade se comparada aos códigos
convencionais de prosa. Além de referente semântico, o signo estético é portador de sons e formas
que desvendam, fenomenicamente, as relações íntimas entre o significante e o significado. (grifos
do autor)
Mais uma vez encontra-se a ênfase sobre o signo lingüístico
285
prenhe de significações
que se manifestam no momento de sua enunciação. O signo lingüístico é trabalhado nas mais
diversas perspectivas, desnuda-se sua arquitetura, desdobram-se seus significados, reelaboram-se
novos significantes, explora-se sua musicalidade. A leitura desse texto exige uma constante
285
Compreendemos o signo lingüístico de acordo com a perspectiva proposta por Mikhail Bakhtin, Marxismo e
filosofia da linguagem
.
198
atenção às astúcias do narrador (e do escritor) que nos leva por meio de sua prosa a empreender
uma travessia cujas referências geográficas e temporais não se encontram disponíveis a uma
leitura desatenta. Por intermédio do narrador, somos convidados a explorar a amplidão dos
grandes espaços inimagináveis.
286
Em que as dimensões temporais e espaciais
287
perdem-se como
referenciais do mundo real e ganham status que as caracteriza como pertencentes a um mundo
imaginário em que essas noções (quantificáveis, portanto, parcialmente “controláveis”) como as
conhecemos desaparecem.
Um exemplo que ilustra bem a concepção diferenciada de espaço com que trabalha
Guimarães Rosa pode ser encontrado já na orelha do livro em que o mapa traçado por Poty, sob
orientação do escritor mineiro, possui as linhas de latitude e de longitude desenhadas na diagonal.
Como se os lugares, mesmo os “realmente” existentes no sertão, devessem ser vistos de maneira
oblíqua, enviesada.
288
O mesmo caráter nebuloso está presente quando buscamos localizar temporalmente as
aventuras de Riobaldo. As referências temporais são ambíguas e propositadamente imprecisas.
Bolle (2004: 106-107) esclarece que esse apagamento não é total e permite ao leitor estabelecer
uma certa noção a respeito do momento histórico (real) em que se desenvolve a travessia de
Riobaldo. Por meio dessa estratégia, o escritor convida o leitor a localizar temporalmente a ficção
confrontando dados e informações “reais” e “ficcionais”.
9.2. Da promessa do roteiro à minissérie
A transposição de obras literárias para a linguagem cinematográfica ou televisual
configura-se como um dos principais recursos de roteiristas e produtores da indústria cultural.
Desde seu início, o cinema e depois a televisão sempre conviveram bem com a literatura, porém a
transposição de uma linguagem para outra impõe desafios que decorrem de diversos fatores que
286
Ao escrevermos essas palavras, vêm-nos à mente diversos trechos, porém devido ao caráter desse trabalho, escolhemos apenas
uma passagem que julgamos representativa desse tipo de descrição: “O que lembro, tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A
Fazenda Santa Catarina era perto do céu – um céu azul no repintado, com as nuvens que não se removem. A gente estava em
maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores do campo, os finos ventos maiozinhos. A frente da fazenda,
num tombado, respeitava para o espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma restinga de
cerrado, de onde descem borboletas brancas, que passam entre as réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das horas.” In:
Rosa, João Guimarães. Grande Sertão:Veredas, p. 204-205.
287
Sobre o aspecto da representação cartográfica de Grande Sertão: Veredas, consulte-se o livro de Willi Bolle, Grandesertão.br,
em que o autor faz um estudo exaustivo das referências cartográficas (reais e imaginárias) presentes na obra.
288
Cf. .Willi Bolle, Grandesertão.br, principalmente p. 105-116.
199
incluem, muitas vezes, a transformação dos dispositivos de enunciação
289
na perspectiva de
construção de uma nova arquitetura textual - que permita aos espectadores compreender a
fabulação. Se desafios existem, existem também recompensas. As obras literárias transformadas
em telenovelas e minisséries para a televisão constituem um terreno fértil e seguro para o grande
investimento financeiro que esses produtos têm demandado. Isso porque boa parte das obras
adaptadas provém dos chamados clássicos da literatura, alguns dos quais conheceram durante
décadas e até séculos grande sucesso de vendas, público e crítica. Em outros casos, são obras que
obtiveram menos sucesso de público, mas uma boa acolhida da crítica. Talvez seja esse o caso de
Grande Sertão: Veredas, romance considerado de difícil leitura
290
, mas louvado pela crítica
nacional e internacional.
O processo de transformação do romance Grande Sertão: Veredas em minissérie foi
ampla e minuciosamente analisado por Morais (2000, 1997) e Balogh (2005) em trabalhos em
que ambos os pesquisadores examinaram os procedimentos adotados por Walter George Durst e
estabeleceram correlações entre o roteiro televisual e o texto de Guimarães Rosa. Em razão dos
limites impostos pelos objetivos de nossa pesquisa, a abordagem que fazemos do processo de
roteirização tem como foco principal a discussão do uso de determinadas estratégias narrativas
enquanto constitutivas do gênero televisual minissérie.
A definição do conceito de roteiro audiovisual não é tarefa simples. Comparato (1995)
argumenta que há diversas tentativas nesse sentido, porém não há nenhuma definitiva. As
definições vão desde as mais simples: “a forma escrita de qualquer projeto audiovisual”
(Comparato 1995: 19) até as mais complexas. Porém, o que precisa ficar claro, segundo
Comparato (1995: 20), é que o roteiro não é um texto literário, “(...) o roteirista está muito mais
perto do diretor, da imagem, do que do escritor. O roteiro é o princípio de um processo visual, e
não o final de um processo literário.” Nesse sentido, Jean-Claude Carrière, afirma que:
289
Empregamos o conceito enunciação a partir da definição mais corrente em Análise de Discurso, segundo a qual a
enunciação é “(...) um acontecimento em um tipo de contexto e apreendido na multiplicidade de suas dimensões
sociais e psicológicas (...) CHARAUDEAU & MAINGUENEAU – Dicionário de Análise de Discurso, p. 193.
290
Circulam diversas listas contendo nomes de intelectuais que nunca leram Grande Sertão: Veredas, alguns alegam
que sentiram dificuldade com a arquitetura do texto, outros o consideram de “linguagem difícil.” Como exemplo de
personalidade que “confessa” não ter lido o romance, encontramos o filósofo Renato Janine Ribeiro que em
entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 03.07.05, Caderno 2, seção Antologia Pessoal, afirma:
“Todas as vezes que comecei, algo me fez parar depois de 100 ou 150 páginas, e quando voltei a ter tempo achei que
precisava principiar do começo. Nunca terminei de lê-lo, mas será um prazer, quando conseguir.”
200
Escrever um roteiro é muito mais do que escrever. Em todo caso, é escrever de outra maneira:
com olhares e silêncios, com movimentos e imobilidades, com conjuntos incrivelmente complexos
de imagens e de sons que podem possuir mil relações entre si, que podem ser nítidos ou ambíguos,
violentos para uns e suave para outros, que podem impressionar a inteligência ou alcançar o
inconsciente, que se entrelaçam, que se misturam entre si que por vezes até se repudiam, que fazem
surgir coisas invisíveis ... (apud Comparato 1995: 20)
Assim, ao roteirista cabe não apenas imaginar uma história baseada, entre outras coisas,
no princípio da verossimilhança buscando criar personagens cujos conflitos toquem nossa
sensibilidade ou despertem nossa atenção, mas também é preciso construir um todo ficcional
coerente em que todos os elementos confluam para a concretização harmoniosa da história por
meio de imagens e sons
291
. É preciso, enfim, transformar pensamentos, desejos, paixões em ação.
A matéria prima com a qual trabalha o autor de um texto audiovisual não está nas palavras, nas
imagens, nas personagens, nos sons, no ambiente; sua matéria prima está na inter-relação de
todos esses elementos.
Por isso, o roteiro em si funciona como promessa, como possibilidade de um vir a ser;
nesse sentido, é um texto provisório que somente se realiza concretamente em um processo
marcado por dois momentos aos quais correspondem dois espaços com especificidades bem
determinadas: o set de gravação e o estúdio onde se realiza a edição final. Nesse sentido,
argumenta Comparato (1995: 19):
A especificidade do roteiro no que respeita a outros tipos de escrita é a referência diferenciada a
códigos distintos que, no produto final, comunicarão a mensagem de maneira simultânea ou
alternada. Nesse aspecto tem pontos comuns com a escrita dramática – que também combina
códigos -, uma vez que não alcança sua plena funcionalidade até ter sido representado.
Entretanto, apesar de sua incompletude, o roteiro é peça fundamental para a constituição
de um produto audiovisual. É por meio dele que os elementos narrativos se organizam e ganham
vida: personagens, tempo, espaço, narrador, no caso do roteiro literário e enquadramentos,
planos, no caso do roteiro técnico em que o olho da câmera surge como elemento vital para o
desenvolvimento da história narrada
292
.
291
Dentro dessa intrincada composição, o que mais caracteriza um roteiro ficcional é a existência de conflitos que
animam as personagens e colorem suas vidas. James N. Frey, The philosophy of plot, p. 4, afirma a esse respeito:
“Falar de roteiro em abstrato, separado da personagem, é como falar da beleza sem se referir à donzela.” (Frey 2002:
4)
292
Julgamos interessante distinguir dois tipos de roteiro que poderão nos ajudar em nossa análise das relações entre
gênero e temas da minissérie Grande Sertão: Veredas. Referimo-nos às definições de roteiro literário e roteiro
técnico que adotamos neste trabalho, estes são assim definidos por Comparato (1995: 284): “Existem várias classes
de formatos de roteiros finais (...). Por outro lado, existe ainda uma diferença entre roteiro literário e roteiro
técnico. O primeiro contém todos os detalhes necessários à descrição da cena: suas atmosfera e densidade, a
201
Lembramos que o roteiro ao qual tivemos acesso e ao qual nos referimos neste trabalho
aproxima-se mais do chamado roteiro técnico no qual constam as marcações de espaço (local,
interno, externo) e tempo (iluminação). Trata-se de uma versão bem próxima daquela que foi
veiculada; entretanto, é preciso que se frise que há diversas cenas previstas no roteiro que não
foram ao ar; em outros casos, há cenas em que as falas previstas para uma personagem foram
“passadas” para outra personagem; outras vezes, há mudança na localização dos ganchos
tensionais
293
. Alguns cortes ocorreram em razão da diminuição do número de episódios
previstos para a minissérie; o roteiro previa cenas para um total de trinta episódios, porém na
edição final levada ao ar havia apenas vinte e cinco
294
.
Segundo Balogh (2005: 156), o próprio Durst afirmava, de maneira sucinta, quando “(...)
perguntado sobre como se constrói um roteiro, remeteu a Ionesco da dramaturgia e disse: o
roteiro é uma arquitetura de antagonismos.” (grifos da autora) Ora como se constroem os
antagonismos na tela de televisão (ou mesmo nos palcos)? Por meio da ação das personagens, por
meio de ações que antagonizam protagonistas, por meio dos conflitos.
Mas como se penetra em um mundo poético tão bem constituído como o de Grande
Sertão: Veredas? Para escrever o roteiro, Durst fez diversas aproximações com a obra
literária
295
até conseguir penetrar na densidade da literatura rosiana. Seu depoimento no press
release e as entrevistas
296
que concedeu aos órgãos de imprensa à época da exibição da
intensidade de sua ação dramática e a força do seu diálogo, sem incidir excessivamente sobre questões de
planificação técnica, como movimentos de câmera, iluminação, detalhes de som etc., atividades estas que devem ser
deixadas à equipe de realização.” (grifos do autor)
293
Renata Pallottini, Dramaturgia de televisão, p. 120, afirma: “A finalidade do gancho (...) é sempre criar
expectativa. Trata-se de inventar um meio, mais ou menos nobre, de fazer com que o espectador volte a procurar o
capítulo do dia seguinte (...).” É preciso lembrar entretanto que no texto televisual há ganchos intermediários entre
blocos de cenas, para dar lugar aos intervalos comerciais. Essa fragmentação, característica do meio televisual
demanda a utilização de uma série de mecanismos visando a uma determinada produção de sentido. Segundo Anna
Maria Balogh, Conjunções, disjunções, transmutações ..., p. 144, para a produção de sentido, a linguagem
televisual, “(...) gera mecanismos alternos de suspensão, manutenção e reatamento do sentido.” (grifos da autora)
Anna Maria Balogh, Conjunções, disjunções, transmutações ..., p. 162-163 analisa de maneira pormenorizada essas
mudanças, principalmente aquelas relativas a alterações na organização dos ganchos tensionais referentes às duas
principais temáticas por ela estudadas: a do amor e a da guerra e conclui que os ganchos apresentados na versão que
foi ar cumprem as funções esperadas pela utilização desse mecanismo.
294
Paulo Oliveira, A Rede Globo como “tradutora” ..., p. 260-275, faz um estudo em que comenta alguns dos
principais cortes efetuados para que o número de capítulos fosse reduzido de 30 para 25.
295
Durst afirma que leu pelo menos oito vezes o livro completo para conseguir escrever a minissérie conforme
matéria de Dib Carneiro Neto: “Receita para entender Diadorim”, Gazeta de Pinheiros, p. 7, 14.11.1985.
296
Citamos as seguintes matérias em cujo conteúdo há uma referência clara à dificuldade de transformar a obra
literária em produto televisual: “Receita para entender Diadorim”, assinada por Dib Carneiro Neto, Gazeta de
Pinheiros, 14.11.1985, p. 7; Intelectuais julgam sertão”, de Leão Serva, Folha de S. Paulo, 20.11.1985; “A conquista
dos sertões”, revista Ist, de 20.11.1985.
202
minissérie, ou mesmo posteriormente, evidenciam que Durst precisou superar um primeiro
momento marcado pela perplexidade diante da magnitude do projeto de transformar a linguagem
literária de Guimarães Rosa em linguagem televisual. Essa perplexidade pode ser percebida na
seguinte frase: “Passei dois meses só me perguntando se a adaptação seria possível, se eu não iria
trair demais o livro.”
297
Ou ainda:
Levar Guimarães Rosa para a televisão é uma verdadeira loucura (...) e eu fiquei tão
irremediavelmente apaixonado pelo trabalho que passei a sonhar com essa idéia de, pela primeira
vez, eu acho, a TV mostrar para o grande público uma coisa realmente nova e da importância de
GRANDE SERTÃO. (Press release:. 8)
A primeira forma de aproximação de Durst com o livro com a intenção de transformá-lo
em roteiro televisual já revela uma tentativa de discernir, dentro do universo da obra literária, a
ocorrência de alguns temas, estes, talvez, provenientes tanto da sensibilidade de Durst como de
seu mergulho nos estudos efetuados por pesquisadores da obra rosiana e de Grande Sertão:
Veredas
298
. O movimento seguinte foi buscar uma organização cronológica (e causal) entre os
eventos narrados:
(...) me atirei ao trabalho, para o qual criei processos que nunca tinha usado. Precisava me situar
naquele imenso monólogo, separar as histórias. Peguei, então, uma caixa de lápis de cor e,
infantilmente, fui determinando cores para as diversas situações. O roxo, que para mim é místico,
ficou para o diabo; o romance com Otacília, que me parecia uma esperança frustrada, colori de
verde, e assim por diante. O livro ficou lindo, todo colorido, mas, mesmo assim, ainda encontrava
coisas misteriosas. Em seguida, botei os fatos em ordem cronológica (...). (Press Release: 10)
Esse processo criativo gerou um roteiro contendo tópicos que seriam desenvolvidos
linearmente.
299
A seguir, tecemos algumas considerações sobre dois procedimentos adotados por
Durst para a transposição da obra literária para texto audiovisual. Optamos por comentar esses
procedimentos a fim de estabelecermos uma correlação entre os mesmos e o gênero de ficção
297
Depoimento concedido a Dib Carneiro Neto e reproduzido na matéria “Receita para entender Diadorim”, Gazeta
de Pinheiros, p. 7, 14.11.1985.
298
Walter George Durst, press release, p. 10, afirma que cotejou com a edição brasileira a edição italiana elaborada
por Eduardo Bizarri, outro livro mencionado explicitamente no press release, p. 12, é o de Leonardo Arroyo: O
popular em Guimarães Rosa. Além disso, Durst, press release, p. 10, afirma: “Passei a ler tudo que foi escrito sobre
ele, todos os livros de Guimarães, em especial os que foram escritos após GRANDE SERTÃO, principalmente
TUTAMÉIA, outra grande obra.”
299
Segundo Osvando J. Morais, Grande Sertão: Veredas: o romance transformado, 2000, p. 48, As divisões
efetuadas por Durst são as seguintes: 1) O menino do destino; 2) A opção; 3) A atração degradante; 4) O julgamento;
5) A sucessão; 6) A vila do Diabo; 7) O pacto; 8) O diabo põe sela; 9) O que bem quer e mal faz; 10) A neblina se
desfaz.
203
seriada a que dedicamos nossa pesquisa. Os dois primeiros procedimentos referem-se à
reorganização temporal e enunciativa da narrativa (fato que gerou, conforme vimos tópico 6.2.
Repercussões na imprensa, diversas manifestações na imprensa); o terceiro, relaciona-se com
algumas expansões de episódios narrativos contidos no livro.
9.2.1. A reorganização temporal e enunciativa da narrativa
Levando-se em consideração as características da linguagem rosiana e seu relacionamento
com as dimensões de tempo e espaço, é compreensível o uso freqüente de palavras como
“desafio” e “coragem” nas entrevistas concedidas pelos principais artífices da minissérie Walter
Avancini (diretor e roteirista final) e Walter George Durst (adaptador e roteirista) . Para vencer
uma das dificuldades impostas pela transposição da obra literária para o meio audiovisual, Durst
e Avancini optaram pela linearização
300
dos acontecimentos narrados em uma ordem temporal
cronológica que partia da infância/adolescência de Riobaldo até sua maturidade na minissérie. Na
minissérie, emprega-se também um narrador-observador que, em off, com voz suave e marcada
pelo sotaque regional (supostamente do sertão mineiro), começa a contar a vida atribulada de
Riobaldo. Esse narrador será apresentado ao telespectador ao final da minissérie: trata-se do
compadre Quelemém (interpretado pelo ator Mário Lago), que, atendendo a um pedido de Zé
Bebelo, acolhe em sua casa Riobaldo. Já na condição de ex-jagunço, Riobaldo busca explicações
para os fatos que acabara de viver. Segundo esclareceu Durst, em entrevista concedida a Balogh
(2005: 167-169), a introdução desse narrador ocorreu por vontade de Avancini:
Quelemem é apenas um dos pólos referenciais do Riobaldo, pólo mais místico, confessional; tal
como o Zé Bebelo, o político progressista. Avancini ficou com medo de desaparecer o interlocutor,
foi o último medo do Avancini, deu para o José Antonio de Souza que acrescentou a voz em “off”.
É uma coisa na qual eu não acredito, não atrapalhou, mas não acrescentou em nada, o Quelemém
também não me pareceu tão importante para botar ali. O que não botei na minha adaptação é
porque não me parece importante, Avancini pensou de outro modo, talvez ele tenha razão, não sei.
(apud Balogh 2005: 168)
300
Na obra literária, a questão da(s) temporalidade(s) do discurso autobiográfico de Riobaldo constitui-se elemento
importantíssimo para a compreensão da dimensão ontológica de Riobaldo. Esse fato não é totalmente esquecido na minissérie,
uma vez que são inseridos de tempos em tempos flash backs do passado de Riobaldo. A inserção desse recurso, porém, não
corresponde à trajetória de idas e vindas da narrativa de Riobaldo presente no livro.
204
Em outro trecho da entrevista, sobre o mesmo assunto Durst afirma: “Agora, a voz em
“off” é muito chata, o som em TV não é bom como deveria ser, às vezes, nem a voz do
personagem falando se ouve; a voz em “off” é fria.” (apud Balogh 2005: 168). Observa-se,
portanto, que as restrições que Durst fazia com relação à introdução do narrador em off não
possuem apenas fundamentação nas alterações quanto à enunciação do texto, mas também se
baseia na questão da construção de sentido em relação à obra como um todo - uma vez que ele
arrola também, como motivo da não-aceitação desse novo elemento, a suposta pouca importância
que a personagem do compadre Quelemém desfruta na obra original - e na precariedade estética
do uso desse recurso em televisão. É por essa razão que somos tentados a concordar com a
suposição de Oliveira (1999) no sentido de que talvez uma prova material da desaprovação de
Durst em relação à inserção do narrador possa ser encontrada no fato de que as fitas da minissérie
que analisamos e que foram por ele gravadas não contêm a voz do narrador, o que pode nos levar
a pensar que foram propositadamente cortadas por Durst. Também foram cortadas, nessas fitas,
as cenas de episódios anteriores que acompanhavam a locução e que serviriam de ganchos para o
episódio a ser apresentado no dia.
Como se sabe, no livro, as aventuras e desventuras de Riobaldo são narradas a um
interlocutor cuja voz nunca aparece. Sabemos de sua existência por algumas menções que
Riobaldo faz a sua pessoa e pela forma verbal empregada característica do diálogo
301
. A fala de
Riobaldo segue o fluxo de suas recordações, é “matéria vertente”
(GSV 116)
que não se organiza
pela causalidade, mas pela necessidade de conhecer e decifrar o mundo e os outros e de se auto-
conhecer e de se auto-decifrar :
Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou contando não é uma vida de sertanejo,
seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da coragem, e da gã que
empurra a gente para fazer tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações
estranhas é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe!
(GSV: 116)
Essa narrativa é marcada por flashbacks, flashforwards e digressões que inter-relacionam
as dimensões de tempo cronológico e tempo psicológico ao mesmo tempo em que demandam que
o leitor faça uma articulação constante entre tempo da narrativa e tempo do discurso. Como
301
Apenas a título de exemplo, selecionamos, ao acaso, algumas passagens em que se percebe a existência de um
interlocutor, cuja voz, ela própria, é abarcada pela enunciação de Riobaldo: “Nonada. Tiros que o senhor ouviu
foram de briga de homem não, Deus esteja.” (p. 23); “O senhor ri certas risadas ... Olhe (...). O senhor tolere, isto é o
sertão.”; “O senhor não acha? Me declare, franco, peço. Ah, lhe agradeço. Se vê que o senhor sabe muito, em idéia
firme, além de ter carta de doutor.” (p. 41) ; “Mas, digo ao senhor, eu não olhei para o céu.” (p. 223)
205
forma de organizar o fluxo contínuo de lembranças, Durst alinhou temporalmente as andanças de
Riobaldo pelo sertão a partir dos espaços percorridos conforme informa Morais (2000: 107):
Walter George Durst, para repensar GSV como um todo, resolveu fazê-lo a partir das viagens de
Riobaldo. Assim, além de organizar linearmente os acontecimentos, colocou também em ordem
paralela às histórias o itinerário de Riobaldo, traçando com precisão todos os lugares por onde
passou.
A opção pela linearização temporal do enredo permitiu superar as dificuldades que
impõem, principalmente no meio audiovisual, o uso recorrente de flashbacks e flashforwards.
Balogh (2005: 139) comenta que o uso de tais recursos não é feito com freqüência nas produções
televisuais, embora tenham sido empregados com sucesso na minissérie Chapadão do Bugre
(Rede Bandeirantes – 1988). Nessa minissérie, dirigida por Walter Avancini e adaptada do
romance homônimo de Mário Palmério, houve o uso de flashbacks e flashforwards como uma
criação da versão televisual, uma vez que essas “idas e vindas” não estavam presentes no texto
original.
Sobre a linearização, Durst afirma a Balogh (2005: 140):
O linear na televisão é também quase que uma lei imutável. Veja bem: o flash-back no cinema: o
tempo do filme não faz você esquecer que aquilo é flash-back, (...) agora, numa novela, numa
minissérie, você faz flash-back no primeiro capítulo, uma porção de pessoas não vão assistir, então,
desapareceu o flash-back: em TV é frio. Na TV se está interessado fundamentalmente naquilo que
vai acontecer em seguida; só usamos flash-back para revelar um mistério e aí não perde sua força,
senão é um elemento artificial, vai construir um ruído na cabeça do público.
Dessa forma, a linearização surge como uma necessidade imposta pelas características do
meio televisivo e como uma forma de articular de maneira mais objetiva os conflitos a partir do
eixo tempo-espaço, uma vez que Durst optou por contar a história tendo como ponto de partida os
caminhos trilhados por Riobaldo desde sua adolescência. Essa opção permite ao telespectador
buscar na causação lógica e no tratamento temático o suporte para a compreensão da trama
televisual.
9.2.2. Expansões narrativas
As expansões narrativas figuram entre as principais técnicas de adaptação de um texto
literário para o meio audiovisual. Trata-se de criar, a partir de histórias condensadas ou mesmo de
tramas paralelas ao plot principal, desdobramentos ou mesmo expandir desdobramentos já
206
existentes de modo a articulá-los com o plot principal. Na minissérie, Durst empregou esse
procedimento em relação a algumas pequenas histórias que, no livro, são contadas por Riobaldo
logo no início de seu longo relato ao doutor da cidade. Na minissérie essas histórias sofrem um
processo de expansão narrativa e de reordenação temporal e até mesmo espacial em relação ao
texto original. Referimo-nos principalmente às histórias que Riobaldo conta como prova da
crendice do povo “prascóvio”
GSV 23
habitante dos gerais “sem tamanho”.
GSV 24
São histórias que
Riobaldo ouvira de outras pessoas e que, na minissérie são vivenciadas por ele em diversos
momentos cruciais de suas andanças. Assim, Jisé Simpilício que, no livro, mantinha preso “um
miúdo satanazim”
GSV 24
para enriquecer, é transformado, na minissérie, no endemoniado que é
exorcizado no início do primeiro episódio. Entre outras, citamos as histórias de Valtêi - o menino
que é castigado pelos pais em razão de, supostamente, ter o diabo no corpo -, de Aleixo que, “por
graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou”
GSV 28
e que recebeu como castigo de
Deus a cegueira dos quatro filhos, ou ainda de Aristides que ouvia a “vozinha”
GSV 24
do diabo.
O aproveitamento e a expansão dessas estruturas narrativas permite a Durst a
concretização de conceitos de difícil transposição do literário para o sincrético
302
. Para Balogh
(2005: 163), o livro “Grande Sertão: Veredas é talvez um dos desafios mais contundentes de toda
a literatura brasileira, nesse sentido.”
Apenas como exemplo, citamos duas outras expansões narrativas realizadas na
minissérie. Aristides que, no romance, de acordo com Riobaldo ouve a “vozinha”
GSV 24
do
“capiroto”
GSV 24
, ganha vida na minissérie como um jagunço cujo “dom” assusta a todos. Seus
poderes de ouvir e repetir a voz do diabo que lhe indicaria quem está do lado do mal são somados
a uma visão profética
303
. Já o menino Valtêi (episódio 16), é libertado por Zé Bebelo depois que
302
Segundo Anna Maria Balogh, Conjunções, disjunções, transmutações ..., p. 163: “(...) um dos maiores desafios
apontados pelos críticos para a passagem do literário ao sincrético é precisamente o da abstração, o do universo do
conceitual, no qual a literatura parece estar perfeitamente à vontade e o cinema, a TV e o vídeo, aparentemente, bem
menos.”
303
Na minissérie, a fala da personagem Aristide na minissérie assume a função profética quando, no episódio 4, por
exemplo, o jagunço prevê o encontro entre Hermógenes e Riobaldo dizendo a este último: “O diabo vem te visitar.”
Logo em seguida, chega Antenor, lugar-tenente de Hermógenes e avisa a Riobaldo que Hermógenes quer conhecê-lo
melhor por isso pede que ele vá até a tenda de Hermógenes. Já na tenda, Hermógenes e Riobaldo falam da pontaria
certeira de Riobaldo que a considera “dom de Deus”, Hermógenes retruca: “Dom de Deus ... ou do diabo!” A
conversa entre ambos é interrompida por Antenor que avisa que prenderam um soldado zebelense. Hermógenes
interrompe a conversa para “sangrar” o adversário. Riobaldo não suporta ver a crueldade de Hermógenes e vai para o
rio onde Aristide o encontra e adverte Riobaldo: “Se ocê num tá do lado do demo, o demo tá te arrastando pro lado
dele.” Em seguida, Riobaldo é chamado para continuar a conversa com Hermógenes que lhe oferece um revólver e
com voz macia afirma: “Ara, sua amizade só enriquece meu estatuto. Tatarana ....” A descrição e transcrição dos
207
este se torna chefe do bando de jagunços. Essa situação ajuda a contrapor as idéias progressistas
do novo chefe com os costumes atrasados dos habitantes dos sertões e a afirmar, com certa
veemência, a diferença flagrante entre os hábitos de Zé Bebelo e os de Hermógenes que gosta de
torturar seus inimigos até que morram. Riobaldo contara para Reinaldo, no episódio 7, que os
prisioneiros de Zé Bebelo não eram torturados, Reinaldo parece não acreditar e dá a entender que
o vencedor tem direitos sobre o vencido, inclusive o de torturá-lo. Contrapõe-se, desse modo, a
crueza da vida de jagunço com a qual Reinaldo está acostumado à vida e aos hábitos de Riobaldo,
menino criado pela mãe e depois acolhido pelo pai fazendeiro e que mais tarde se tornou
professor, chefe jagunço e próspero fazendeiro.
Embora não se possa considerar o caso de Maria Mutema
304
uma expansão narrativa como
as que comentamos acima, é preciso, sem dúvida comentarmos brevemente esse episódio,
principalmente por que ele ocupa mais de quarenta minutos do tempo total da minissérie. Em
termos estruturais, essa narrativa, ao contrário do que ocorre com as outras histórias que, de
alguma forma, são inseridas na trama e são vivenciadas ou testemunhadas pelos protagonistas
(Riobaldo e Diadorim), surge como uma narrativa paralela contada ao pé da fogueira por Lacráu
a Riobaldo quando este lhe conta que tivera um sonho estranho e ruim. A história surge como
uma espécie de narrativa exemplar de que não é preciso motivo para se fazer o mal. O mal
diálogos que fazemos acima não é completa, destacamos apenas os pontos que consideramos essenciais para
demonstrar a função profética que a personagem Aristide assume na minissérie.
304
Relatamos aqui de maneira sucinta o caso de Maria Mutema e do Padre Ponte, contado na minissérie por Lacráu
e, no romance, por Jõe Bixiguento (GSV 238-243): “E o Jõe contava casos. Contou. Caso que se passou no sertão
jequitinhão, no arraial de São João Leão, perto da terra dele, Jõe. Caso de Maria Mutema e do Padre Ponte.” O
marido de Maria Mutema apesar de boa saúde, certo dia amanheceu morto. Problema no coração teria causado a
morte do homem. A partir de então, Maria Mutema começa a freqüentar a igreja, de três em três dias, para se
confessar com o Padre Ponte, que “(...) era um sacerdote bom-homem” (p. 238) cuja única “pecha” era relaxar: tivera
três filhos com uma mulher do lugar com quem vivia na companhia dos filhos. Desde a primeira confissão de Maria
Mutema, Padre Ponte fica abalado e começa a demonstrar sofrimento. Na minissérie, ouve-se já na primeira
confissão o Padre esbravejar com Maria Mutema para que ela não diga nem pense aquilo. Mas ela insiste e, não
fazendo caso das súplicas do Padre para que ela não repita a confissão, continua a fazê-lo. O Padre vai definhando e
acaba morrendo tempos depois sem que se saiba o motivo. Depois da morte do Padre, Maria Mutema só retorna à
igreja após muitos anos quando padres missionários estrangeiros estão na vila. Às vésperas da partida dos
missionários, Maria Mutema entra na igreja durante a reza das mulheres. O padre então a expulsa e diz a única coisa
que poderá fazer por ela é tomar-lhe a confissão à porta do cemitério onde havia “dois defuntos enterrados”. Maria
Mutema diante da fúria do Padre, faz “confissão edital”. Conta, aos prantos e gritos, para todos os presentes que, “ela
onça monstra”, tinha matado o marido colocando noite após noite chumbo derretido em seu ouvido. E depois, em
confissão, dissera ao Padre Ponte que havia feito isso “por que dele gostava em fogo de amores, e queria ser
concubina, amásia”. Maria Mutema conta que, na verdade, não gostava do padre. Tinha feito aquilo somente para
“edificar o mal”. Em seguida, Maria Mutema é presa “provisória na casa-de-escola” onde não come e “sempre de
joelhos (...) pedia seu perdão e castigo, e que todos viessem para cuspir em sua cara e dar bordoadas. Que ela –
exclamava – tudo isso merecia.”
GSV 242
. Depois da partida dos padres, Maria Mutema fica presa ainda alguns dias em
São João Leão e os moradores do povoado começam a dizer “Maria Mutema estava ficando santa.”
GSV 243
. Depois,
ela é enviada para “culpa e júri, na cadeia de Arassuaí.”
GSV 243
208
independe de motivação para agir; o mal em estado “puro” pode ser encontrado em toda parte.
Durst, em entrevista concedida a Oliveira (1999: 268-269) afirma que ele e Avancini “(...) teriam
feito “de tudo” para integrar a história de Maria Mutema ao relato televisivo. Segundo o
roteirista, essa seria uma história tão rica que “daria um filme”.” Para Oliveira (1999: 260),
Ao salientar a importância desse relato dentro da história para a construção global do romance, a
televisão faz coro à literatura especializada, posto que, embora não possam ser consideradas
numerosas face à imensa bibliografia de pesquisa existente sobre o GS:V, as análises específicas
tendem a considerar esse trecho do livro uma espécie de síntese dos seus grandes temas.
Galvão (1986: 13), com efeito, considera a história de Maria Mutema não apenas uma
retomada da temática do mal, mas também, do ponto de vista estrutural, uma espécie de modelo
narrativo que se repetiria ao longo do romance:
Se o princípio organizador é a ambigüidade, a estrutura do romance é também definida por um
padrão dual recorrente. A coisa dentro da outra, como o batizei, é um padrão que comporta dois
elementos de natureza diversa, sendo um o continente e o outro o conteúdo. A chave para a
descoberta desse padrão é um conto que se encontra no meio do romance como peça solta, mas na
verdade como matriz estrutural. Esse conto, que relata o crime de Maria Mutema, estabelece o
padrão que se repete em todos os níveis de composição, no enredo, nas personagens, nas imagens,
na concepção metafísica, nos comentários marginais.
Também, na minissérie, o relato do caso de Maria Mutema recebe um tratamento
diferenciado. É a única história “paralela” do livro que não é transformada na minissérie em
experiência vivida pelos protagonistas; além disso, dentro do desenvolvimento cronológico do
enredo, essa história é contada a Riobaldo antes que ele tome a decisão de fazer o pacto com o
diabo. É o caso exemplar que ajuda Riobaldo a tomar a decisão que mudará sua vida. A
densidade dramática da história ganha contornos de narrativa iniciática também pelas
características enunciativas presentes no relato feito por um narrador, mais velho, sentado à beira
da fogueira numa noite sem lua e que conta a história a pretexto de um sonho ruim que Riobaldo
tivera (no qual ele, entre outras coisas, “rinchava feito um cavalo” em meio a um vento muito
forte). Ao final da narrativa, ocorre o seguinte diálogo:
Lacrau: - Ocê entenda como quiser.
Riobaldo: Eu já entendi.
Lacrau: Agora já pode dormir?
Riobaldo: Agora tenho que fazer.” [e parte em direção às veredas mortas].
209
O destaque dado ao caso de Maria Mutema, tanto no tratamento estético quanto no
encadeamento temático dentro do texto televisual, pode revelar a preocupação de retratar com
fidelidade os fatos narrados na obra literária, principalmente aquele que, de certa maneira,
segundo a análise de Galvão (1986: 13), seria a “matriz estrutural” de todo o romance.
Novamente, podemos encontrar nessa preocupação, a intenção de Durst e Avacini de falar com o
leitor (telespectador) de segundo nível (Eco), mais qualificado no sentido de que somente este e a
crítica especializada poderiam fazer comparações entre a minissérie e o livro e, possivelmente,
com o trabalho de Galvão (1986).
210
Capítulo 10 – Minissérie Grande Sertão: Veredas: do roteiro à minissérie
O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim,
forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo.
Diverjo de todo o mundo...
(GSV: 31)
Além da questão da temporalidade, foi necessário trabalhar com a mudança da
representação do sertanejo e do jagunço nos meios de comunicação de massa. Além disso, é
nessa produção que o sertão aparece pela primeira vez (e talvez única vez) na televisão como
personagem e não como pano de fundo sobre o qual se desenrolam as ações. Essa nova condição
do sertão é marcada por um tratamento estético harmonioso das imagens, dos sons da natureza,
do guarda-roupa e das palavras que fazem com que os protagonistas não se rivalizem ou se
sobressaiam em relação à natureza, ao contrário, eles só existem em razão dessa natureza e das
relações sociais determinadas pelo sistema jagunço
305
.
10.1. Personagens e Ambiente
Na minissérie, Riobaldo é um jovem dos sertões de Minas que se integra a um bando de
jagunços para ficar próximo de um jovem (um “menino” “dessemelhante”
(GSV: 120)
), que o atrai e
fascina desde a adolescência. Esse processo de caracterização do jagunço como “homem
humano”
(GSV: 624)
converte-se num dos elementos principais para a realização da minissérie. O
jagunço que aparece no romance de Guimarães Rosa é ambíguo, contraditório e “provisório”.
Quais as representações anteriores que os jagunços tiveram na televisão? Que elementos
discursivos foram empregados na minissérie para (se tentar) construir esses seres na dimensão
psicológica e social que Guimarães Rosa lhes confere?
305
Willi Bolle, grandesertão.com, no capítulo O sistema jagunço, discute o sistema jagunço como um sistema
sócio-político em que vigoram “(...) acordos entre o poder central e os potentados locais, por meio dos quais o que
seria crime é reconhecido como lei.”, p. 97.
211
Basicamente ligado a essa operação de “construção” do jagunço rosiano
306
era necessário
também desconstruir o conceito de regionalismo presente até então não só nos meios televisuais
como também na literatura e no cinema, já que o regionalismo é um tema constante na literatura
brasileira desde os escritores românticos e em diversos filmes realizados principalmente nas
décadas de 1950-1960. Portanto, presente no imaginário dos brasileiros que leram, viram ou
ouviram falar de obras cujos enredos se estruturavam sobre esse tema.
Geralmente, divide-se o regionalismo literário em três momentos
307
. No primeiro deles
localiza-se a produção dos autores românticos que se interessaram em descrever o país e suas
regiões para os próprios brasileiros, numa espécie de afirmação de sua identidade nacional
centrada na busca das raízes identitárias da nação brasileira.
308
Entre os autores desse período
figuram José de Alencar, Gonçalves Dias, Bernardo Guimarães que escreveram obras de cunho
regionalista. Eram obras que primavam pela descrição do ambiente exótico; “(...) o interesse
central estava no pitoresco, na cor local, nos tipos humanos das diferentes regiões e províncias.”
(Galvão 2000: 16).
O segundo regionalismo nasce no bojo das correntes do Naturalismo que reagiam ao
Romantismo. Segundo, Galvão (2000: 16), a produção regionalista desse período caracteriza-se
pela “busca de descrição desapaixonada dos fatos, preocupação com os determinismos e com a
ciência, frio diagnóstico, pessimismo e fatalismo.”. Os autores que se destacam nesse período são
Inglês de Sousa, Oliveira Paiva, Afonso Arinos. Também podem ser incluídos alguns pré-
modernistas como Monteiro Lobato que focalizavam em suas obras a cultura caipira. É desse
período Os sertões, de Euclides Cunha, obra que causou por longo tempo grande impacto na
sociedade e na cultura brasileira em geral. O terceiro regionalismo, também denominado
regionalismo de 30, sofreu influências da ficção européia e norte-americana do período entre-
guerras.
O afã ao mesmo tempo cosmopolita e nacionalista do modernismo (...) fora incapaz de impedir um
novo surto regionalista. Ao contrário do modernismo, que privilegiava a poesia, a voga em
ascensão investe tudo no romance, gênero certamente mais popular, mais impermeável a
306
Dando continuidade a uma tradição iniciada por Antonio Cândido, quando este analisou Grande Sertão: Veredas seguindo as
divisões propostas (a terra, o homem, a luta) em Os Sertões, de E. da Cunha, Willi Bolle (in: Grandesertão.br, p. 29) analisa
Grande Sertão: Veredas como uma reescrita de Os Sertões, no qual tinha ocorrido uma forte caracterização negativa dos
jagunços. Para o estudioso da obra rosiana, Grande Sertão: Veredas seria uma espécie de resgate da humanidade dos jagunços.
307
Resumimos aqui as principais características dessa corrente literária apresentada no livro Guimarães Rosa de Walnice
Nogueira Galvão.
308
Vejam-se sobre esse assunto “A tradição afortunada: o espírito da nacionalidade na crítica brasileira” de Afrânio Coutinho e
Literatura e Sociedade, de Antônio Cândido.
212
vanguardismos e menos requintado. Com instrumentos mais aguçados que os regionalismos
anteriores, tinha todo o ar, devido a sua simultaneidade, impressionante volume e ineditismo, de
ser uma escola, e vinda dos estados do nordeste. (Galvão 2000: 21)
São representantes dessa literatura: Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Graciliano
Ramos e Jorge Amado. A literatura escrita por eles constitui um cânone ainda vigente. Porém,
apesar da influência européia, é interessante, atentarmos para o fato de que Antonio Cândido
(1979: 358-359) situa nesse período o momento em que o regionalismo adquire uma nova faceta
que o distingue dos regionalismos anteriores, classificando-o como um gênero que passa da etapa
da pres-ciência à etapa da consciência da crise:
Na fase de consciência de país novo, correspondente à situação de atraso, dá lugar sobretudo ao
pitoresco decorativo e funciona como descoberta, reconhecimento da realidade do país e sua
incorporação ao temário da literatura. Na fase de consciência do subdesenvolvimento, funciona
como pres-ciência e depois consciência da crise motivando o documentário e, com o sentimento de
urgência o empenho político
.
A mudança de tratamento temático denota também uma mudança em relação a como o
país e seus escritores se enxergam como nação:
O que os caracteriza é, todavia, a superação do otimismo patriótico e a adoção de um tipo de
pessimismo diferente do que ocorria na ficção naturalista. Enquanto este focalizava o homem
pobre como elemento refratário ao progresso, eles desvendam a situação em sua complexidade,
voltando contra as classes dominantes e vendo na degradação do homem uma conseqüência da
espoliação econômica, não do seu destino individual. (ANTONIO CÂNDIDO 1979: 360) (grifo do
autor)
Trata-se, portanto, de um momento de mudança bastante expressiva em termos
ideológicos. Essa mudança terá reflexos no cinema e na televisão na medida em que muitos
escritores representativos desse período terão suas obras transpostas para esses meios de
comunicação (citamos apenas alguns: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado).
Talvez como conseqüência dessa complexificação do temário e da compreensão das injunções
sociais que incidem sobre o indivíduo, surge, no mesmo no período em que as obras
regionalistas faziam sucesso, a literatura vigorosa e intimista de Clarice Lispector, que lida com
as incertezas da condição humana numa perspectiva cosmopolita, longe de regionalismos e
recortes locais. Para essa literatura, o importante é o ser humano, suas paixões, incertezas,
mesquinhez; enfim, o contraditório ser humano.
Obviamente é impossível dividir as obras entre regionalistas ou intimistas, seguramente
há romances de Graciliano Ramos e José Lins do Rego que poderiam ser chamados de intimistas
213
sem deixarem de ser regionalistas. Esses recortes têm apenas o intuito de clarear os caminhos que
temos a percorrer. Para Galvão (2000: 26), obra-prima de Guimarães Rosa, Grande Sertão:
Veredas, surge na confluência dessas duas vertentes: “(...) algo assim como um regionalismo com
introspecção, um espiritualismo em roupagens sertanejas.”
10.1.1. O sertão no cinema
Nossas observações sobre as representações do sertão no cinema buscam apenas mapear
algumas características de filmes que se consolidaram como representativos do cinema nacional
principalmente a partir da década de 1950 a meados dos anos 1970. São observações pontuais
que não têm a pretensão de esgotar o assunto, uma vez que visam apenas a colher alguns dados
que nos serão úteis para compreender a representação do sertão na minissérie em estudo.
A inserção do telespectador (ou mesmo do leitor) no sertão rosiano não é tarefa fácil, pois
o sertão de Grande Sertão: Veredas não é o sertão nordestino, objeto e cenário de diversos
filmes
309
. Galvão (2004: s/p.), elaborando um panorama dos filmes cujas tramas se desenvolvem
no sertão e traçando um paralelo entre o western norte-americano e o regionalismo nordestino do
cinema brasileiro, afirma:
Em nosso caso, dentre todas as latentes ou possíveis, a presença mais impressionante do sertão no
cinema veio a ser cangaceiro. A tal ponto que os filmes em que figurou ganhariam o epíteto meio
caçoísta meio carinhoso de northens, ou northeasterns. Além de seu alcance simbólico de
contestação e rebeldia, no que diz respeito ao significado - razão pela qual foi recuperado à época -
, o cangaceiro adequava-se especialmente a um veículo visual graças à parafernália. Viria assim a
constituir um ícone, deflagrado pela instantaneidade da percepção, no impacto escorado pelo olho,
de uma panóplia de signos: o encourado com seu chapéu cravejado de metais e testeira ornada de
moedas, cartucheiras atravessadas no peito, anéis cobrindo os dedos, garrucha e punhal longo de
sangrar à cinta, facão de abrir caminho, embornais ou capangas bordadas dispostas sob os braços, e
o indispensável apito. Lembre-se aqui a banalização em todo o país, devida às apresentações
pessoais de Luís Gonzaga, de uma fantasia de cangaceiro incrementada, descendente dos
paramentos de Lampião, tal como foram divulgados pelos jornais e pelas xilogravuras de capa dos
folhetos de cordel.
309
Há um grande número de filmes produzidos principalmente nas décadas de 1960-1970 cuja ambientação ocorre
no sertão nordestino e que acabaram sendo classificados como regionalistas (o que nem sempre corresponde à
verdade, uma vez que a temática de muitos deles está mais ligada a valores universais que regionais). Destacamos
alguns filmes “regionalistas”: Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; A hora e a vez de Augusto
Matraga, de Roberto Santos; O menino do engenho (1965) de Walter Lima Júnior; Sagarana, o duelo (1973), de
Paulo Thiago. Esses filmes são objeto de estudos efetuados e citados por Anna Maria Balogh, Conjunções,
disjunções, transmutações ....
214
A esse cinema também incumbia uma missão em relação à formação identitária da nação
brasileira no sentido de fazer com que o Brasil litorâneo conhecesse o Brasil “autêntico”
310
, num
impulso semelhante ao que ocorrera, como vimos, na literatura.
Foi com os filmes dos anos de 1960 que nosso cinema extravasou da literatura, indo além do que
esta pretendera. O romance da década de 1930 trouxera uma novidade com relação ao primeiro e
ao segundo Regionalismos: a denúncia social. Tudo se passava como se o romance considerasse os
que o precederam uma ilusão, fosse romântica, fosse naturalista, e agora se investisse da missão de
contar a verdade que se escondia por trás das aparências. O neonaturalismo não lhe era exclusivo,
mas vinha igualmente dos Estados Unidos e do lado hispânico da América Latina, por onde a onda
se espraiou, decorrente da radicalização dos anos de 1930. (GALVÃO 2004 s/p.)
Galvão (2004) também acrescenta a seu estudo sobre a visualidade sertaneja nas artes e
nos meios de comunicação algumas das principais contribuições de pintores de destaque nos
meios artísticos brasileiros:
Contribuindo para a dinâmica da visualidade, as artes plásticas desde os anos de 1940 forneciam
pinturas depois famosíssimas de Portinari, afinadas com o expressionismo social - como Retirantes
e Enterro, mas também arie Cangaceiros (1944) - , dentro de uma concepção de arte
participante. Esses quadros inspirariam tempos afora uma multidão de epígonos. Paralelamente, a
difusão das cerâmicas de Mestre Vitalino de Caruaru atingia todos os quadrantes, disseminando os
trabalhos e os dias do Agreste, como a Banda de pífanos, o Cavador de açude, o Bumba-meu-boi,
a Casa de farinha, a Vaquejada, o Carro de boi, o Terno de zabumba, a Noiva na garupa do
cavalo do noivo. É claro que não podiam faltar Lampião e Maria Bonita. Dentre todas, uma das
mais queridas e copiadas veio a ser justamente o cortejo miudamente verista intitulado Retirantes.
Alguns de seus títulos coincidem com os de Portinari: além deste último, o Enterro e os
Cangaceiros.
Galvão (2004), entretanto, vê mais influências norte-americanas no tratamento narrativo e no
acabamento estético do O Cangaceiro
311
:
Já o filme O cangaceiro (1953) deriva, no que concerne ao visual, do faroeste norte-americano e
do cinema mexicano, onde aparecem a paisagem desértica, a vegetação de caatinga na qual reponta
o cacto, o gado à gandaia, os ginetes e os sombreros. Embora Que viva México!, de Eisenstein,
filmado em 1931, tenha tido uma carreira atribulada, ficando inconcluso até décadas depois e
mesmo assim com parca exibição, Hollywood dele retiraria Tempestade sobre o México, que o
próprio diretor renegou como "emasculada e malfadada versão". Mas dá para notar sua influência
sobre Viva Zapata! (1952), que, contando com o prestígio do diretor Elia Kazan e do astro Marlon
Brando, teve êxito garantido por estas bandas. E deste, é fácil perceber as marcas, logo no ano
seguinte, em O cangaceiro, primeiro filme brasileiro a ser premiado no festival de Cannes.
310
A título de exemplo, reproduzimos um trecho da matéria que trata do relançamento do livro de Glauber Rocha O
século do cinema publicada no Jornal da USP, de 15 a 21.05.2006, p. 13. Nessa matéria, o professor Ismail Xavier
fala sobre a filmografia e o acabamento estético desse combativo diretor: “Ainda de acordo com Xavier, o cinema
de Glauber é ambicioso, quer refletir sobre o Brasil em grande escala e indagar sobre os problemas e desafios que a
sociedade brasileira enfrenta. Quer falar de religião, de política, desigualdade. “Ele nunca se preocupou em fazer um
cinema do cotidiano. Buscou uma dramaturgia que colocasse grandes forças da sociedade em conflito e não os
problemas da vida pessoal de cada um.””
311
O cangaceiro (1953), dir. Lima Barreto, com Milton Gonçalves, Alberto Ruschel, Marisa Prado.
215
Ali se encontram a luz ofuscante, dada pelo contraste entre o branco e o preto, ponto alto do diretor
de fotografia mexicano de Viva Zapata!, Gabriel Figueroa (que trabalhou com Luis Buñuel), bem
como o chapelão de vasta aba frontal, que viria para ficar, tendo mais do sombrero que do
encourado, este bem menor; a meio caminho entre ambos, o de Luís Gonzaga. As filas de
cavaleiros deslocam-se recortadas contra o crepúsculo, flagradas pela lente de Chuck Fowle, o
grande diretor de fotografia da Vera Cruz. O aparato profissional dessa companhia, responsável
por uma das fases de fastígio de nosso cinema, garantiu os resultados. E havia ainda uma trilha
sonora sedutora, abeberando-se em lindas canções - que foram repetidas, gravadas, cantadas e
divulgadas pelo rádio - de Zé do Norte ou do folclore, algumas das quais permaneceriam, como
Mulher rendeira, Sodade meu bem sodade e Lua bonita.”
Outro grande filme surgiria em 1962, O pagador de promessas
312
, e arrebataria a Medalha
de Outro no Festival de Cannes, além de muitos outros prêmios internacionais. Porém, a temática
guerreira, característica dos filmes sertanejos até então, é abandonada em favor do acento na
inocente religiosidade do sertanejo. Num curto espaço de tempo, entre 1963 e 1965, surgem os
marcantes Deus e o diabo na terra do Sol (1964)
313
, de Glauber Rocha e Vidas Secas (1963)
314
,
de Nelson Pereira dos Santos e A hora e a vez de Augusto Matraga (1965)
315
, de Roberto Santos.
É também dessa época O menino do engenho (1965), de Walter Lima Júnior. O genial Glauber
Rocha daria ainda voz e imagem ao sertanejo em O dragão da maldade contra o santo guerreiro
(1969)
316
. Nesses filmes, gradativamente, a temática sertaneja se complexifica e os
questionamentos passam a ser mais profundos em termos sociais, psicológicos e mitológicos.
Um pouco mais tarde, em 1972, Leon Hirszman filma São Bernardo
317
.
Com certeza, nossa rápida incursão pela filmografia que mostra o sertão brasileiro não
reflete a grandeza temática nem a qualidade estética dessas produções que marcaram época no
cinema brasileiro e inscreveram para sempre os nomes de seus diretores no concorrido panorama
cinematográfico mundial. Entretanto, é possível perceber por essa breve amostra, a importância
que a figura e a estética do sertanejo ganhou no imaginário nacional, sobretudo em termos de
indústria cultural, uma vez que estão inter-relacionados os campos editorial e cinematográfico.
312
O pagador de promessas (1962), dir. Anselmo Duarte, com Leonardo Vilar, Glória Menezes, Dionísio Azevedo.
313
Com Geraldo Del Rey, Yoná Magalhães, Maurício do Valle, Othon Bastos. O filme contou com a participação
dos moradores de Monte Santo, Bahia.
314
Com Átila Iório, Maria Ribeiro, Jofre Soares, Orlando Macedo, Gilvan Lima.
315
Com Leonardo Villar, Jofre Soares, Maria Ribeiro, Maurício do Valle, Flávio Migliaccio, Geraldo Vandré.
316
Com: Maurício do Valle; Odete Lara; Othon Bastos; Hugo Carvana; Jofre Soares; Lorival Pariz; Rosa Maria
Penna; Emanuel Cavalcant; Mário Gusmão; Vinícius Salvatori; Sante Scaldaferri .
317
Com Othon Bastos, Jofre Soares, Isabel Ribeiro, Vanda Lacerda, Nildo Parente.
216
10.1.2. Sertão, Cangaceiros, Jagunços e Coronéis
No que se refere às telenovelas e seriados na Rede Globo de Televisão a presença do
sertão se faz sentir mais forte e freqüentemente, sobretudo a partir da década de 1970. Em 1973,
surge a telenovela O bem amado e já na década de 1980, duas minisséries, Lampião e Maria
Bonita (1982) e Padre Cícero (1984); houve também unitários, os chamados casos especiais,
Morte e vida severina (1981), São Bernardo (1983) e seriados O bem amado (1980-84). Até
mesmo Gabriela (1975) que, apesar de se passar na cidade de Ilhéus, possuía coronéis e
jagunços.
Porém, é na minissérie Grande Sertão: Veredas que, pela primeira vez na televisão, o
sertão deixa de ser pano de fundo para se constituir como personagem que atua e circunscreve o
homem nas dimensões físicas (a vida regida pelas estações, pelas condições climáticas), místicas,
religiosas e sociais. Afinal, “o senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias.
Deus mesmo, quando vier, que venha armado!”
(GSV 35)
.
A referência ao “sertão de Guimarães Rosa” (Press release p. 2) como um lugar
praticamente inatingível, embora fincado em terras do interior brasileiro, é bastante comum a
toda equipe técnica e ao elenco que participou da minissérie conforme pudemos verificar em
diversas reportagens veiculadas na época e no Press release fornecido pela emissora. Em 1982,
Avancini chegou a desistir de fazer a minissérie porque não tinha encontrado o “sertão de
Guimarães Rosa”. Não tinha tido o “olhar mágico”
318
. Realmente, é difícil encontrá-lo. Em que
mapa ele se encontra? Qual sua latitude? E longitude?
Acreditamos que o “sertão de Guimarães Rosa” ocupa, na prosa, um lugar imaginário
semelhante àquele ocupado na poesia por Pasárgada
319
, de Manuel Bandeira. Com a diferença de
que, por meio da prosa e da vida de Guimarães Rosa, é possível localizarmos espacialmente entre
Minas, Bahia e Goiás as andanças de Riobaldo, enquanto Pasárgada continua inacessível.
Talvez seja esse o desejo que move centenas de pessoas que todos os anos tentam conhecer tanto
os lugares onde viveu e andou Guimarães Rosa quanto as terras e as pessoas por ele apresentadas
318
Walter Avancini define assim o olhar é preciso ter para encontrar o sertão de Guimarães em entrevista concedida
a Gonçalo Silva Jr, Os pais da TV..., p. 334.
319
Manuel Bandeira, Vou-me embora pra Pasárgada, in Estrela da vida inteira, p. 117.
217
nos livros. Recentemente, essa busca levou inclusive as prefeituras da região a se organizar para
receber com mais conforto os visitantes segundo informa Piza
320
:
treze cidades da região começaram a montar um Circuito Guimarães Rosa, para auxiliar os cada vez mais
numerosos visitantes que querem seguir a trilha de sua viagem. Por enquanto, há apenas folhetos e placas,
mas a intenção é prestar serviço mais completo. Guias locais são necessários a cada etapa, pois as fazendas
e as veredas não são sinalizadas e, no sertão, parece que todos os caminhos se bifurcam.
Em outro trecho, o jornalista alerta que quem quiser conhecer o “sertão de Guimarães
Rosa” precisa se apressar, pois as plantações de eucaliptos, que alimentam os fornos de carvão,
estão secando as veredas
321
. Bolle (2004: 71-72) ao preparar, in loco, parte do minucioso trabalho
topográfico que executou com o intuito de comparar a geografia real com a construção ficcional,
constatou:
O confronto da geografia ficcional com a geografia real também desperta a percepção para certas
transformações ecológicas ocorridas do tempo da publicação do romance para cá. Nas últimas
quatro décadas, o sertão tem se tornado uma paisagem tecnicizada e industrial. Haja vista a
substituição da vegetação primitiva, por extensas plantações de soja, como na Chapada Gaúcha, ou
as dezenas de quilômetros de floresta mecanizada, com milhões de eucaliptos plantados
maquinalmente, como chapadão entre o Jequitinhonha e o Arassuaí, ou ainda a criação do Parque
Nacional “Grande Sertão: Veredas”, visando preservar um pedaço de autêntico cerrado com
veredas e buritis.
Bolle (2004: 72) ainda adverte:
O desconhecimento do sertão real por boa parte dos leitores de Grande Sertão: Veredas é propício
para uma romantização mitificadora, que neutraliza o teor crítico desse retrato do país, quando o
desafio consiste, ao contrário, em revelar qual é função histórica da mitologização posta ali em
obra.
Assim, para o estudioso da obra rosiana, é preciso inverter a busca para que se consiga
chegar ao verdadeiro sertão; deve-se partir do sertão real para se compreender o sertão lendário.
Mas como dissociá-los? Como encontrar o sertão real sem passar pela ambiência ficcional?
320
Daniel Piza, em reportagem com o titulo Vestígios de um escritor caladão, de 12.03.2006, O Estado de S. Paulo,
p. A13
.
321
Conforme Daniel Piza relata no jornal O Estado de S. Paulo 12.03.2006, p. A12: “O sertão de Guimarães Rosa
(1908-1967), o sertão caracterizado por vaqueiros e veredas, está desaparecendo. (...)Grande área do cerrado local foi
tomada por eucaliptos, que roubam água das veredas, e a população de vaqueiros é muito menor e já não toca
boiadas a cavalo de uma fazenda para outra.”
218
Aparentemente certo de que essa dúvida angustiante surgiria, o próprio Riobaldo convida: “O
senhor vá lá, verá. Os lugares estão aí em si, para confirmar.”
GSV 43
Qual foi o sertão procurado por Avancini? Qual foi o sertão encontrado? É ele mesmo
quem descreve, quase vinte anos depois, essa busca em entrevista :
Já ia começar a gravar em uma semana a primeira fase da história, sobre a infância das
personagens, quando ainda não tinha definido bem a estrutura de Riobaldo. E havia feito toda a
viagem de Guimarães Rosa à geografia do romance. Viajei meses com essa intenção, e nessa
viagem, conversando muito com Manuelzão, que na época foi guia de Guimarães, percebi que não
havia encontrado o “Grande Sertão” descrito no livro. Andamos, andamos e só víamos eucaliptos
em todo lugar. Quer dizer constatamos somente a Sudene (Superintendência de Desenvolvimento
do Nordeste) dando dinheiro para nossos amigos da região, para que eles fingissem que plantavam
... E plantavam eucaliptos em tudo quanto era lugar. Em alguns casos eles plantavam só o quadrado
externo e dentro não plantavam nada, só para ficar com o dinheiro. Então, disse: “Não existe mais
o Sertão, como é que eu vou fazer?”Enquanto isso. Estava correndo a produção. Uma semana
antes, achei que não devia mais fazê-la. (SILVA JR. 2001: 333)
Em 1982, ele procurou o sertão “real”, no qual, tomamos a liberdade de supor, não era
possível existir nem Riobaldo, nem Diadorim, nem a cantiga de Siruiz... Numa segunda viagem,
já em 1984, o diretor enxergou mais que uma paisagem localizada em um espaço geográfico:
E nessa segunda viagem, tive o olhar mágico e pude, então, descobrir toda a magia do grande
sertão no fragmento de uma luz filtrada através das folhas das árvores, no ruído cantante de um
riacho, no vôo de um pássaro sobre os campos, enfim, numa série de fragmentos que refletem todo
encanto do Grande Sertões: Veredas. (MATTOS 2004: 170)
Foi-lhe possível enxergar mais do que os olhos viam, foi-lhe possível encantar-se, ter um
“olhar mágico”. E aqui não podemos deixar de lembrar a célebre frase dita por Guimarães Rosa
em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: “O mundo é mágico. As pessoas não
morrem, ficam encantadas”
322
.Talvez, com a licença do autor, pudéssemos dizer, pelo menos em
termos de literatura, a mesma coisa do sertão: o sertão não morre, fica encantado; passa de uma
dimensão para outra (da realidade para o imaginário) cujo acesso só é possível por meio do
poético. Afinal, “o sertão é dentro da gente”.
(GSV: 365)
O sertão na minissérie está em toda parte, nas roupas, na pele, nos cabelos, na fala, mas
sobretudo num modo de se relacionar com a natureza. Um modo que Diadorim ensina Riobaldo a
vivenciar observando pássaros, percorrendo as veredas. É praticamente impossível dissociar o
322
É possível ouvir a frase falada pelo próprio Guimarães Rosa no site
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/literatura/guimaraesrosa/guimaraesrosa2.htm
, acesso em 15.06.2006
219
sertão das personagens da minissérie ou do tratamento estético dado à minissérie como um todo,
é por isso acreditamos que à medida que formos analisando as personagens e suas relações com o
ambiente, conseguiremos encontrar não o “sertão de Guimarães Rosa”, mas o sertão de
Guimarães Rosa e Avancini.
Para entrarmos nesse sertão, é preciso que adentremos outros sertões ficcionais com suas
personagens marcantes. Devido à longevidade da telenovela e do seriado O bem amado, julgamos
interessante fazer uma pequena análise de duas personagens: Odorico Paraguaçu e Zeca Diabo.
Esse pequeno desvio faz-se necessário principalmente em razão de um fenômeno presente na
televisão e na literatura denominado palimpsesto. Lorenzo Vilches define palimpsesto como uma
espécie de não apagamento do texto anterior: “a televisão não apaga nunca o texto primitivo e as
novas produções não conseguem ocultar as marcas do texto subjacente que pervive além das
mudanças políticas e gerencias” (apud Balogh 2005: 143). Assim, à semelhança dos antigos
pergaminhos que eram raspados para que de novo servissem à escrita, num texto televisivo
superpõem-se camadas antigas e novas que, de alguma maneira, formam um texto à parte. De
certo modo, a idéia remete à intertextualidade presente nos programas de televisão que se não se
inter-relacionam de maneira direta por meio da citação acabam se inter-relacionando por meio de
gêneros, formatos, temas, autores, diretores.
No caso do regionalismo anterior à minissérie Grande Sertão: Veredas, teríamos a
ocorrência dos dois tipos de palimpsesto o rígido, determinado pela própria estrutura horizontal
da grade de programação:
como o utilizado pela Globo, o espectador sabe que irá assistir a uma novela leve e de época no
horário das seis, o SPTV, uma novela mais experimental e com visível participação das mais
diferentes formas de humor ou comicidade no horário das sete, e depois das atrocidades nacionais e
estrangeiras de praxe, do Jornal Nacional, estará preparado para seguir uma novela de temáticas
mais fortes e de densidade dramática maior após as oito.”(BALOGH 2002a)
Seguindo esse raciocínio, no horário das 22 horas, incidiriam expectativas no sentido de
se encontrar uma teledramaturgia diferenciada mais bem acabada estética e narrativamente: “A
minissérie é um formato que se reserva em geral para o horário das 22:00 horas e pressupõe um
público mais exigente, não cativo da TV, com outras opções de lazer.” (BALOGH 2005: 145),
uma vez que para se cativar um público desse nível econômico-social seria necessário um maior
aprimoramento estético.
220
O Bem Amado foi a primeira telenovela colorida das 22 horas e se consagrou como um
grande sucesso de público e de crítica. Boa parte desse sucesso deveu-se ao caráter paródico do
protagonista, o prefeito e coronel Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), que, metonimicamente,
remetia tanto a uma razoável parcela de políticos interioranos (e até a alguns não tão
provincianos, mais preocupados em manter ou transformar suas cidades e eleitores numa espécie
de curral eleitoral) quanto aos militares. Tanto que a censura, então em plena vigência, proibiu
que se usasse a expressão coronel para designar o prefeito, ou que Zeca Diabo fosse chamado de
capitão como havia previsto Dias Gomes. Os discursos do prefeito, sempre proferidos do alto de
um palanque e acompanhados por uma banda, eram pomposos e empolados, recheados de
palavras de uso pouco corrente, acabaram se popularizando, devido à empatia entre personagem e
público, durante as décadas 1970-1980. Entre suas expressões prediletas, havia os advérbios e
conjunções flexionados no plural como: finalmentes, entretantos, e outros neologismos como
democradura, numa referência clara ao governo autoritário que teimava em se travestir de
democracia.
Odorico Paraguaçu, prefeito de Sucupira, cidade no litoral baiano, tinha como principal
meta administrativa inaugurar o cemitério que construíra (claro que com orçamento
superfaturado). Porém, para sua tristeza, não morria ninguém na cidade e sua principal obra
parecia, usando uma terminologia típica da época, mais um “elefante branco” da faraônica
arquitetura funerária. Assim, quando o matador de aluguel e ex-cangaceiro Zeca Diabo (Lima
Duarte) chega à cidade, as esperanças de Odorico de ver o cemitério inaugurado se renovam. A
personagem Zeca Diabo, cuja aparição estava prevista para apenas alguns capítulos, acaba sendo
incorporada à trama mais longa da telenovela. Dessa forma, Odorico Paraguaçu, o prefeito
corrupto e falastrão e Zeca Diabo, o cangaceiro arrependido, contrapunham-se e
complementavam-se numa cidade em que os desmandos autoritários (perseguição à imprensa,
ocultamento de provas, perseguição política) do prefeito remetiam (parodicamente) aos
desmandos de nossos governantes militares, dos prefeitos e governadores “indicados” e dos
senadores biônicos (infelizmente, já existentes à época do seriado). O desenho paródico das
personagens iniciado na telenovela ganha corpo no seriado semanal (1980-1983) e,
posteriormente (1983-1984), mensal
323
apresentado então no horário nobre (após a telenovela
das oito), próximo ao horário das 22 horas reservado às minisséries.
323
Ambas as versões totalizaram 220 episódios.
221
Interessa-nos, sobretudo, nessa telenovela e seriado a figura de Zeca Diabo, interpretada
com enorme talento por Lima Duarte. Zeca Diabo é um cangaceiro arrependido que se
penitencia isolando-se do convívio das pessoas em busca da remissão de seus pecados (crimes e
assassinatos encomendados). Entretanto, como se trata de um seriado cujo eixo se fixa sobre a
paródia, esse cangaceiro é apresentado como um contraponto ao estereótipo do cangaceiro. Zeca
Diabo é religioso e se aconselha com certa freqüência com o pároco da cidade, aparenta
humildade andando sempre de cabeça baixa; e beija uma medalhinha de santinho sempre que tem
pensamentos ruins ou quando é lembrado por alguém das maldades que cometera no passado.
Enfim, é uma figura tragi-cômica, com prevalência do patético, do risível.
Já os cangaceiros mostrados na microssérie Lampião e Maria Bonita (Aguinaldo Silva e
Doc Comparato, 1982, 8 capítulos), embora demonstrem sentimentos, não são cômicos, ao
contrário, são homens determinados a mostrar quem manda no sertão nordestino. Em outra
minissérie, Padre Cícero (Aguinaldo Silva e Doc Comparato, 1984, 20 capítulos), surgem
jagunços e cangaceiros que se apresentam como seguidores e defensores do famoso padre
nordestino. Assim, procedendo a uma primeira análise, percebemos que as referências aos grupos
de homens que andavam armados pelos sertões à revelia da lei remetem, pelo menos na
intertextualidade da televisão (e da Rede Globo), aos cangaceiros nordestinos. Willi Bolle (2004:
120) argumenta que as definições de jagunços e cangaceiros não são sinônimas, fazendo uso da
definição de Vasconcellos afirma: “Os jagunços ou capangas são “homens assalariados a serviço
de um fazendeiro que formava assim seu exército privado”, ao passo que cangaceiros são
“homens independentes que se organizavam em bandos sob a direção de um chefe
prestigioso”.”(grifos do autor)
324
Distinção essa também defendida por Durst:
(...) não confunda jagunço com cangaceiro. Esses últimos eram lutadores marginais e injustiçados,
que batalhavam por conta própria, roubando matando em benefício próprio. Já os jagunços que
aparecem na minissérie (e no romance) são capangas mesmo. Eles vão guerrear pelos fazendeiros
contra o governo federal.
325
Assim, os jagunços de Guimarães Rosa se inserem num quadro social diferente e possuem
papéis diferentes daqueles desempenhados pelos cangaceiros nordestinos. Cabe à minissérie,
324
Willi Bolle, grandesertão.com, remete ao texto de Sandra Vasconcellos denominado Homens provisórios:
coronelismo e jagunçagem e Grande Sertão:Veredas. Scripta (Belo Horizonte), vol. 5, no. 10, pp. 321-333.
325
Em matéria assinada por Dib Carneiro Neto com o título de “Receita para entender Diadorim”, publicada no
jornal Gazeta de Pinheiros, São Paulo, de 14.11.9185, p. 7.
222
portanto, mostrar um outro tipo de bando de homens que também anda pelo sertão à revelia da lei
(constitucional) e que cria seu próprio código de conduta baseado mais no valor da palavra
empenhada que no das palavras escritas.
Ao contrário, do que acontece no livro em que temos um narrador idoso que conta suas
aventuras, na minissérie temos a efevervecência das forças vitais que carregam Riobaldo para o
meio do “redemunho”
(GSV: 610)
. À minissérie coube mostrar o homem jovem que luta batalhas de
guerra e de amor e que perde o grande amor de sua vida durante uma luta sangrenta da qual não
teve forças para efetivamente participar. Riobaldo vai se construindo a cada episódio da
minissérie por meio de seus medos (medo de andar de barco, medo de enfrentar o pai, medo de
cair em tentação frente ao pecado da carne com Reinaldo, medo de perder Diadorim, medo de ter
vendido a alma ao diabo, medo de não saber chefiar o bando, medo de enfrentar o “judas”
Hermógenes, medo de perder a vida segura ao lado de Otacília). Alguns desses medos são
superados, outros ficam como fantasmas rondando sua existência a lembrar-lhe que é um homem
fraco, apesar das aparências.
Porém, o Riobaldo da minissérie não se constrói apenas por meio de seus medos. Ele
também encarna o jovem conquistador com Rosa’uarda e o homem que trata bem as mulheres
damas
326
e se apaixona por uma delas, Nhorinhá; é também o companheiro solidário e leal
principalmente quando tenta alertar Diadorim sobre as intenções de Hermógenes contra Joca
Ramiro. É também o chefe inclemente que não hesita em matar um jagunço que se rebela ao
atravessar o Liso do Sussuarão. Enfim, é uma personagem que vive intensamente suas paixões e
sofre por isso. É uma personagem não se mostra por inteiro, mas sim por fragmentos, por olhares
que expressam amor e ódio, por gestos extremos, por ações covardes e corajosas. Enfim, é uma
personagem que demonstra a contradição do ser humano e fica distante daquela figura
estereotipada do jagunço matador e sem sentimento.
Segundo Antonio Cândido (2004b: 112), os jagunços do Grande Sertão: Veredas
possuem, tal qual o mundo sertanejo a que pertencem, reversibilidade, “o mesmo homem pode
ser hoje soldado e amanhã jagunço, ou o contrário”. Desenvolvendo esse princípio, nada mais
326
No livro, Riobaldo diz que respeita as mulheres da vida; mas seus atos nem sempre correspondem ao que diz : p.
252: “Eu queria, com as faces do corpo, mas também com entender um carinho e melhorrespeito – sempre a essas do
mel eu dei louvor de meu agradecimento. Renego não, o que me é de doces usos: graças a Deus toda a vida tive
estima a toda meretriz, mulheres que são as mais nossas irmãs, a gente precisa melhor delas, dessas belas bondades.”
Na minissérie, ao contrário, ele não diz que respeita as mulheres damas, demonstra isso por meio de seu
relacionamento gentil com as moças.
223
natural que um homem ser mulher ou uma mulher ser homem, tanto faz a ordem o que importa é
a reversibilidade e a certeza de que ao ser uma coisa não se deixa de ser outra.
Se Riobaldo se caracteriza pela dúvida, pelo medo, pelo fantasma da culpa que vive a
atormentá-lo; Diadorim se caracteriza pela certeza, pela coragem, pela clareza de seus objetivos.
Diadorim encarna a donzela-guerreira tão presente na literatura universal. Galvão (1998: 12)
referindo-se às heroínas femininas como Santa Joana D’Arc, Iansã, Palas Atena, afirma:
Essa personagem freqüenta a literatura, as civilizações, as culturas, a história, a mitologia. Filha
de pai sem concurso de mãe. Seu destino é assexuado, não pode ter amante nem filho. Interrompe
a cadeia das gerações, como se fosse um desvio do tronco central e a natureza a abandonasse por
inviabilidade. Sua potência vital é voltada para trás, para o pai; enquanto ela for do pai, não
tomará outro homem.
Diadorim está fadada ao infortúnio como mulher e à glória como guerreira. Mata o
inimigo, “aquele Hermógenes”
(GSV: 203)
mas também morre, é como se sua missão tivesse
chegado ao fim. O pai foi vingado; a justiça foi feita, não há mais razão de existir. Diadorim é a
neblina de Riobaldo, mas a vida dela não tem neblina, porque ela não tem outro caminho: sua
única opção é a vida jagunça. Nessa perspectiva, Diadorim não se assemelha, por exemplo, a
Maria Bonita, heroína sertaneja e guerreira de outra minissérie. Maria Bonita lutava ao lado do
marido e tinha função de mando no bando; Diadorim, ao contrário, luta só e só situação de mando
em relação a si mesma no sentido de se tornar “dessemelhante”
(GSV: 120)
a todo e qualquer jagunço
e a toda e qualquer mulher. Diarorim é e não é. Analisamos mais detalhadamente a questão da
sexualidade camuflada de Diadorim no capítulo referente estudo dos temas da minissérie Grande
Sertão: Veredas.
Porém, a desconstrução não pára por aí. Além dos jagunços propriamente ditos, deve-se
desconstruir a figura do coronel nordestino (geralmente um próspero fazendeiro), imortalizado na
pele de Odorico Paraguaçu ou Sinhozinho Malta (Roque Santeiro, 1985), ambos com um forte
viés cômico, que se compraziam com gostos citadinos e certo refinamento (de gosto duvidoso) no
vestir. Outro coronel famoso em telenovelas da época foi Ramiro Bastos (Gabriela, 1975),
homem poderoso e também de hábitos citadinos que representa a opulência do período áureo do
Ciclo do Cacau em uma cidade como Ilhéus movimentada por muito dinheiro e conchavos
políticos.
Para melhor compreendermos os diversos tipos de coronel, é preciso então que se
distingam também temporalmente os vários tipos de coronel que ganharam espaço na tela de
224
televisão: Ramiro Bastos localiza-se na década de 1920 e comanda (ou pretende comandar) com
“mão de ferro” as vidas de seus familiares, agregados, jagunços e de seus inimigos; em termos
históricos e sociais seu poderio começa a se tornar anacrônico, pois um de seus pilares, as
relações de trabalho baseadas num sistema de semi-escravidão, está em franca erosão. Entretanto,
Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta são coronéis que anacronicamente resistem, no início do
último quartel do milênio, às mudanças que vinham ocorrendo havia meio século e que se
aceleraram a partir da década de 1970. Não nos esqueçamos do propalado milagre econômico
(1969-1973)
327
fundado em maciços investimentos na indústria (em detrimento, de certa forma,
da agricultura) e em uma forte política de comunicação que se baseava em mostrar o Brasil do
desenvolvimento e das grandes realizações e transformações positivas operadas pelos governos
militares. Dentro desse quadro, a Rede Globo ocupa papel preponderante na formação de um
imaginário ligado à grandeza do país e do povo conforme enfatiza Fausto (2001: 268):
Em 1960, apenas 9,5% das residências urbanas tinham televisão: em 1970, a porcentagem chegava
a 40%. Por essa época, beneficiada pelo apoio do governo, de quem se transformou em porta-voz,
a TV Globo expandiu-se até se tornar rede nacional e alcançar praticamente o controle do setor. A
propaganda governamental passou a ter um canal de expressão como nunca existira na história do
país. A promoção do “Brasil grande potência” produziu resultados no imaginário da população.
Foi a época em que muitos brasileiros idosos, de classe média, lamentavam não ter condições
biológicas para viver até o novo milênio, quando o Brasil se equipararia ao Japão.
De uma certa maneira, Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta representam resquícios de
um sistema econômico e político de um mundo arcaico que começa a ruir ainda na Primeira
República e cujas disputas Grande Sertão: Veredas revela tão bem. Seu mundo e seus valores
arcaicos não mais têm lugar nas décadas de 1970-80 e suas figuras se tornam risíveis quando
vistas pelos olhos dos telespectadores das grandes cidades já, então, mergulhados no sonho
desenvolvimentista que embalou as décadas de 1960-70. Daí, o caráter paródico dessas
personagens, estão deslocadas no tempo e no espaço, estão no presente, mas seu mundo não mais
deveria existir, seus costumes e anseios não combinam com a realidade que os cerca; por isso,
seus atos, apesar de contundentes e verossímeis, são revogados pelo curso inabalável da história.
327
Segundo Boris Fausto, História Concisa do Brasil, p. 268: “O período do chamado “milagre” estendeu-se de
1969-1973, combinando o extraordinário crescimento econômico com taxas relativamente baixas de inflação. O PIB
cresceu na média anual de 11,2% no período, tendo seu pico em 1973, com uma variação de 13%. A inflação média
anual não passou de 18%. (...) Um dos setores mais importantes do investimento do investimento estrangeiro foi o da
indústria automobilística, que liderou o crescimento industrial com taxas anuais acima de 30%. A ampliação do
crédito ao consumidor e a revisão das normas de produção, autorizando a fabricação de carros de tamanho médio,
atraíram fortes investimentos da GM, da Ford e da Chrysler.”.
225
E é justamente na paródia e no anacronismo presentes na constituição dessas personagens que
Dias Gomes encontrava as brechas necessárias para criticar as políticas sociais e
“desenvolvimentistas” (expressão usada à exaustão por Odorico Paraguaçu) conduzidas pelos
militares.
A nosso ver o “modelo” de coronelismo mais próximo temporal e historicamente falando
que remete ao coronelismo de Grande Sertão: Veredas é aquele representado por Ramiro Bastos.
Aliás, temos, assim, a emergência na ficção televisual de coronéis que representam o modelo
social, econômico e político presentes na Primeira República:
O coronelismo teve marcas distintas, de acordo com a realidade sociopolítica de cada região do
país. Um exemplo extremo de poder dos “coronéis” se encontra em áreas do interior do Nordeste,
em torno do rio São Francisco, onde surgiram verdadeiras “nações de coronéis”, com suas forças
militares próprias. Em contraste nos estados mais importantes os “coronéis” dependiam de
estruturas mais amplas, ou seja, a máquina do governo e o Partido Republicano. (FAUSTO 2004:
150)
Nas telas da televisão das décadas de 1970 e 1980 surgem os dois tipos mais poderosos de
coronéis que o Brasil conheceu: os baianos e os mineiros da margem do São Francisco. As
diferenças entre os dois tipos de coronéis apresentados pela ficção televisual anteriores a Grande
Sertão: Veredas e os coronéis da minissérie são flagrantes. Os chefes de bando geralmente são
fazendeiros (Joca Ramiro - o maior de todos-, Hermógenes, Ricardão) que dão proteção a outros
fazendeiros em troca de dinheiro e prestígio político. São homens que organizam as batalhas e
lutam ao lado de seus guerreiros. Dormem ao relento em arranchamentos, matam bois para
comer, portanto, são bem diferentes do “modelo” nordestino visto nas produções ficcionais da
rede Globo nas décadas de 1970-80.
Os coronéis nordestinos Ramiro Bastos, Odorico Paraguaçu e Sinhozinho Malta se
movimentam dentro de um universo em que os poderosos se distinguem dos mais pobres não só
por seus atos e por seus bens, mas também pela sua aparência (não nos esqueçamos dos ternos
imaculadamente brancos de Odorico ou das pulseiras e do relógio de ouro de Sinhozinho Malta
ou das noitadas dos coronéis no famoso Bataclan
328
de Ilhéus). Como imaginar um poderoso e
temido coronel vestindo e falando como a personagem Hermógenes na minissérie? De cabelos e
barba mal aparados, corpo e trajes sujos; com a fala quase ininteligível? Porém, a mudança em
328
Jorge Amado, Gabriela, cravo e canela, p. 165: “O Bataclan e o Trianon eram os principais cabarés de Ilhéus,
freqüentados pelos exportadores, fazendeiros, comerciantes, viajantes de grandes firmas. Mas nas ruas de canto havia
outros, onde se misturavam trabalhadores do porto [...]. O jogo era franco em todos eles, garantindo os lucros.”
226
relação ao já-visto e ao já-mostrado na televisão também ocorreu com outra figura célebre da
vida econômica das oligarquias nordestinas: os fazendeiros. Na minissérie, mesmo fazendeiros
ricos como Selorico Mendes ou “seo” Habão possuem casas cujo despojamento mobiliário
lembram um mosteiro
329
. A opulência dos coronéis das terras litorâneas é contraposta ao modus
vivendi dos coronéis retratado em Grande Sertão: Veredas. Assim, contrapõe-se a crueza de um
mundo “às brutas”
GSV 39
à escamoteada brutalidade (uma vez que era delegada a um ajudante ou
a um jagunço) dos coronéis mostrada na televisão até então. Para Riobaldo, na cidade não há
espaço para o jaguncismo
330
. Porém, segundo Fausto (2001: 149), o poder de ação dos coronéis
não se resumiu apenas ao campo, onde comandavam destacamentos armados, mas também
ocorreu, na forma de um vigoroso clientelismo, nas cidades onde controlavam a nomeação de
cargos públicos e a destinação de verbas para atender aos “clamores” populares.
Porém, entre os fazendeiros-coronéis retratados no Grande Sertão: Veredas e os das
telenovelas da Globo da década de 1980 há alguns traços comuns. São pessoas que não titubeiam
em se aproveitar dos mais fracos, em garantir seus lucros acima de tudo. Antonio Candido
(2004b: 113) afirma sobre os fazendeiros seô Habão e “do Zabudo”
(GSV: 551)
: “diante dessas
fortalezas do lucro e da ordem, sentimos vagamente que ser jagunço e mais reto, quando mais
não fosse por que o jagunço vive no perigo.”
A inter-relação dos elementos até agora discutidos não se opera internamente ao texto,
mas numa perspectiva de comunicação discursiva que envolve o interdiscurso, uma vez que
interage com a memória discursiva. Mergulha-se no interdiscurso que, a partir do diálogo
mantido entre personagens, gêneros, formatos cria uma memória que se funda nas relações entre
os diversos sujeitos da comunicação. Enfim, a serialidade e o palimpsesto envolvem o espectador
numa trama bem maior que aquela que ele vê diante de seus olhos.
Portanto, devido à intertextualidade televisual anterior à minissérie que fatalmente se
projetaria sobre ela, o tratamento estético e discursivo dado à narrativa televisual
331
precisaria ser
329
A única exceção, é a casa de “seo” Ornelas cujo proprietário é descrito no livro como “descendente, posseiro de
sesmaria” (GSV: 467) , um homem nobre e poderoso politicamente. Nessa casa, são postos à mesa copos, talheres,
travessas muito bem arrumados que contrastam com os trajes sujos e hábitos rudes de Riobaldo e dos jagunços do
seu grupo que comem com a mão. Novamente, fica clara a condição marginal do grupo de jagunços diante da
sociedade estabelecida.
330
As cidades podem representar o fim do jaguncismo conforme relata Riobaldo: “Ah, tempo de jagunço tinha
mesmo de acabar, cidade acaba com o sertão. Acaba?” (GSV: 183)
331
Partimos do pressuposto de que a narrativa televisual tanto quanto a narrativa cinematográfica “(...) é sempre
resultado da interação entre várias instâncias que se manifestam através de materiais distintos, heterogêneos,
227
diferente; caso contrário, teríamos cangaceiros em lugar de jagunços e coronéis do litoral
nordestino em lugar dos coronéis do sertão mineiro.
No aspecto geográfico, também há muita diferença entre os sertões mineiros (e de parte
de Goiás) e os sertões nordestinos. Os sertões mineiros são terras bem irrigadas por veredas que
serpenteiam pela paisagem verde, são ótima pastagem para o gado. Esse foi mais um desafio que
se colocou para os idealizadores da minissérie.
Conforme informe o Press release (p. 5), “para um público habituado a uma estética
urbana, esta minissérie introduz um Brasil interiorano, em sua geografia e na composição dos
próprios personagens”. Por essa razão, talvez, tenha sido dada tanta atenção aos figurinos e à
maquiagem dos atores. Avancini desenhou os figurinos e buscou “o mágico”, evitou couro em
excesso e tentou dar mais primitividade às roupas:
A partir de todos esses elementos, estudamos [ele e a figurinista Maria Luisa Areal] o que seria
adequado para cada um dos personagens, escolhendo cada tecido, as cores, os tons. Vestimos um
por um, corrigimos todos, preparamos suas cabeças, com tipo de cabelo, barba, bigode,
finalmente, quando chegamos às locações, os figurinos receberam um tratamento artesanal (todo
guarda-roupa foi banhado nas águas barrentas do rio e ficou durante um dia secando ao sol), para
atingir o tom de terra, que está presente em todo o espetáculo, na caracterização dos personagens,
na luz, em cada detalhe. (Press release: 7 )
Portanto, o tratamento estético e o acabamento temático dado às personagens da
minissérie fazem com que ela represente uma inovação em termos de produção televisual.Essa
inovação encontra-se também nos elementos estruturais. A minissérie apresentou, sem dúvida,
elementos que contrastavam com a estrutura tradicional da telenovela, uma espécie de matriz da
minissérie brasileira (Pallottini 1998: 28-30), não há família nuclear, não há um espaço
delimitado física ou temporalmente. Além disso, no plano narrativo, apesar da, às vezes, criticada
linearização não há facilidades para o telespectador (mesmo com a voz narradora do “compadre
meu Quelemém” inserida a posteriori, já na edição). É preciso que o telespectador fique atento
às batalhas, às rixas internas ao grupo, às rixas entre os chefes, aos nomes dos lugares; caso
contrário, não conseguirá compreender a história. Veremos mais adiante, em detalhe, como esses
elementos ganharam vida no todo discursivo da minissérie. Talvez seja essa minissérie a primeira
tentativa de se fazer um “cinema eletrônico”
332
. Outras produções também conseguiram se
simultâneos (...), (palavra, mise-en-scène, olhar da câmera, montagem música extra-diegética.” (Xavier 1997: 131
apud Oliveira 1999: 158).
332
Ana Maria Carmargo Figueiredo, Regionalismo na TV, p. 134, usa essa expressão posisitivamente, contranpondo-
a ao uso pejorativo que Muniz Sodré fizera dela na reportagem Vereda de sucesso, de José Castello, publicada na
228
destacar nesse caminho, citamos alguns exemplos: O auto da compadecida (1999), A Muralha
(2000), Os Maias (2001) e Hoje é dia de Maria (2004 e 2005); umas com maior, outras com
menor sucesso, mas, com certeza, todas contribuem para a imensa intertextualidade que aflora na
televisão e abre caminhos para a implementação de novas experiências estéticas em termos de
ficção televisual.
10.2. O som, a fala e a musicalidade do sertão da minissérie
Entre os elementos narrativos da minissérie um ganha destaque: a sonorização. A
narrativa da minissérie é marcada pela beleza de uma trilha sonora especialmente produzida para
ela com a criatividade do maestro Júlio Medaglia. Para executar esse trabalho, o maestro viajou
duas vezes à região dos “sertões de Guimarães Rosa”. Na primeira dessas viagens acompanhou as
gravações durante uma semana com a finalidade de conhecer a “impostação televisiva que o
Avancini imprimia” (Press release: 22) à narrativa. Segundo Medaglia:
Eu quis aprender um pouco dessa Minas Gerais meio sertaneja, mas também meio medieval, meio
perdida do tempo, onde o jagunço era um personagem quase épico. Isso era importante para que eu
desenvolvesse uma trilha que refletisse exatamente aquele clima humano, de um relacionamento
que às vezes não é nem verbal. É uma coisa muito especial, quase telepática. Do ponto de vista
especificamente musical, eu tinha a impressão de que a música adequada para a série não seria a da
Minas Gerais que conhecemos da Minas seresteira, da Minas melódica. A ida ao sertão confirmou
isso, me dando a certeza de que aquele era um outro universo. (Press release: 22)
Para encontrar esse outro universo, Medaglia contou com a colaboração de dois músicos
pesquisadores que já haviam trabalhado naquela região: Paulo Freire e João Bruçó. Já em
companhia deles, o maestro fez uma segunda viagem aos sertões em busca da “expressão musical
do sertão mineiro à época do romance”(Press release: 22). Nessa viagem, foram gravadas 16
fitas de áudio com um tipo de música que era feita 40-50 anos antes, com instrumentos de época,
ou rudimentos desses instrumentos. Medaglia afirma a esse respeito:
É um folclore em extinção, que nem os próprios filhos da região preservam. Mas, com a ajuda do
Paulo e do João, que dominam os instrumentos da época e a forma de executá-los, pude
documentar toda essa cultura que tende a acabar, registrando fraseados musicais e rítmicos,
revista Istoé, de 18.12.1985, à qual já nos referimos em outras oportunidades. A autora afirma que a televisão “pode,
sim, fazer arte, através de sua técnica e pela ação das personagens, que trazem uma história que tem um valor social;
que, além do entretenimento, ainda é possível desenvolver um trabalho que traz conhecimento, descobrimento e
reflexão.”
229
pronúncias musicais, impostações vocais e mesmo depoimentos. Esses dois pesquisadores me
orientaram em termos estilísticos. (Press release: 22)
Nessa viagem, Medaglia encontrou uma expressão musical que ele definiu como “sons
que as pessoas podem achar de uma extrema vanguarda, mas que na realidade são uma expressão
absolutamente medieval” (Press release : 23). Para reproduzir a musicalidade dos sertões, o
maestro resolveu fabricar alguns instrumentos da época em que teriam ocorrido as andanças de
Riobaldo. Outros instrumentos e sons foram agregados à trilha sonora entre eles os violões e
alguns efeitos eletrônicos. O resultado desse trabalho é um dos responsáveis pelo sucesso de
crítica e de público da minissérie.
Medaglia nega a existência de uma trilha sonora vista em sua acepção mais comum,
como fundo musical a uma recorrência temática ou de personagens; para ele, a música da
minissérie faz parte da ação dramática, ela não a acompanha, ela é parte integrante da ação
dramática:
A linguagem musical do sertão, na verdade, funcionou como um ponto de partida para que eu
chegasse a uma trilha que vai do realismo (...) ao terreno da pura imaginação, que nada tem a ver
com o som realista. Fiz a trilha em cima de uma concepção imaginária daquela realidade. A minha
função não era explicitar o som da região, mas explicitar uma dramaturgia, um conceito literário
que o Guimarães Rosa desenvolveu. Não é uma trilha musical, não faz parte do mundo melódico
ocidental. O mundo de GRANDE SERTÃO não é essencialmente melódico. Claro que temos três
ou quatro melodias, em momentos de lirismo, envolvimento romântico, humor, realismo. Mas a
tônica é a ação dramática da música. (Press release: 23)
Do ponto de vista da narrativa televisual, pode-se afirmar que as melodias compostas pelo
maestro e inseridas nas cenas possuem funções diegéticas e não-diegéticas
333
. Essas funções se
alternam e se constituem como elementos dramáticos responsáveis por uma forte de significação
dentro da narrativa..
Além dessa função dramática das melodias, as músicas também foram empregadas, como
normalmente se faz em telenovelas ou minisséries, como pontos demarcatórios de início e de
final de bloco narrativo e também como fundo musical para a abertura e finalização do episódio
(com os créditos). Como se sabe, a música e as imagens da abertura têm como principal
333
Adotamos a definição de Amália Martinez, Televisioon y narratividad, p. 279, segundo a qual “músicas digéticas:
são as que formam parte do argumento (assiste-se a um concerto, a ação desenvolve em restaurante com orquestra,
etc.); músicas não diegéticas: possuem uma justificação dramática, não argumentativa. Acompanham e comentam a
ação. Trata-se de fragmentos que geralmente não possuem um começo nem final bem definidos, o que permite sua
fácil conexão com outros blocos de som (ruídos ou diálogos)”.
230
característica inserir o telespectador no mundo imaginário construído pela ficção televisual.
Conforme afirma Martinez (1989: 276), a música ou a trilha sonora de uma produção seriada:
(...) possui um importante papel como forjadora da impressão de realidade da imagem. Impressão
obtida como conseqüência da implicação emotiva que provoca sobre o espectador; e isso funda um
dos paradoxos sobre os quais se constrói a ficção cinematográfica porque a música é, sem dúvida,
o elemento mais inverossímil do cinema. Nada mais artificial do que a irrupção do som de uma
orquestra em qualquer lugar e em todo momento (...). (tradução nossa)
Outra característica da série foi o uso freqüente de sons da natureza como elemento
narrativo para caracterizar o ambiente das veredas (canto de pássaros, o som do bater de asas de
aves, o barulho de água corrente, grilos, etc.) e remetem o telespectador ao universo regido pela
natureza. Natureza que, em boa parte, determina o ritmo de vida dos jagunços (períodos de guerra
e períodos de descanso, acampamentos próximos a rios, fartura de animais para a caça, a
escuridão da noite iluminada apenas pela tímida luz da lua ou a escuridão de uma noite sem luar).
Assim, o canto dos pássaros, o relinchar de cavalos, ou o rugir da onça podem significar bons ou
maus presságios e preparam tanto personagem quanto telespectador para a emoção da cena
seguinte. Porém, o canto dos pássaros também pode ter função diegética sendo objeto do diálogo
entre as personagens
334
Ainda com relação ao aspecto musical, há diversas cantigas entoadas pelos próprios
personagens (geralmente cantadas pelos próprios atores sem dublagem) são diegéticas na medida
em que funcionam como caracterizadoras dos jagunços (uma vez que falam de seus desejos,
amores, e temores) e do ambiente sertanejo em outras ocasiões as cantigas também podem
“arrematar” cenas e ensejar uma mudança de ambiente. Um exemplo do uso conjunto dessas
duas possibilidades de emprego das cantigas sertanejas ocorre
335
quando um dos jagunços
(Garanço) é convidado pelos colegas a cantar uma música de despedida para a prostituta (“a
gansa”) que visitou o acampamento e atendeu a todos os jagunços. Nessa cantiga, Garanço
resume o agradecimento de todo o bando. Dessa forma, a cantiga assume não apenas a função de
arrematar a cena, mas também remete a uma voz comum que expressa os sentimentos de uma
comunidade que se faz ouvir pela voz do principal entoador da cantiga e pelo acompanhamento
334
É o caso do canto do pássaro na cena em que Diadorim pergunta a Riobaldo qual seria o pássaro mais bonito. A
admiração de Reinaldo pela figura do passarinho (manuelzinho-da-croa, que vive sempre em casal) e por seu canto é
motivo para Riobaldo dizer, com certa dose de ironia, que acha estranho homem gostar tanto assim de passaro.
335
Oliveira (1999) não descreve exatamente essa cena em seu levantamento do conteúdo dos capítulos exibidos no
programa Faixa Comentada, porém pela descrição de uma cena anterior a essa, acreditamos que o episódio a que nos
referimos situa-se no 4º. Capítulo.
231
em coro de todo o bando. Esse uso do canto remete a uma idéia de unicidade de discursos, de
sentimentos, de congraçamento entre os jagunços.
As cantigas são histórias dentro de uma história maior e geralmente revelam ao
espectador alguma nova nuança sobre a vida dos jagunços (principalmente sobre Riobaldo e
Diadorim), em especial porque a cantoria dos jagunços está geralmente associada aos momentos
felizes e de descontração em que a camaradagem e a confiança no grupo se sobrepõem ao
individualismo e transforma-se em cumplicidade nas lides diárias.
336
Entre todas as cantigas entoadas pelos jagunços mostradas na minissérie, chama atenção
a cantiga de Siruiz (jagunço do bando de Joca Ramiro) que Riobaldo ouve quando vai levar uma
informação a um grupo de jagunços acampados na fazenda de Selorico Mendes. O momento é
bastante importante na vida de Riobaldo, pois ele havia conhecido na véspera chefes jagunços -
inclusive o lendário Joca Ramiro lhe dera ordens - , na casa em que vivia com seu padrinho. A
cantiga marca para sempre a vida de Riobaldo que em diversos momentos da minissérie pergunta
sobre Siruiz e sua cantiga
337
e pede para alguém reproduzi-la e, diante dessa impossibilidade,
passa a reinventá-la. Prova dessa sua admiração ocorre também quando ele dá o nome de Siruiz
ao belo cavalo que recebe de “sêo” Habão. A cantiga de Siruiz, no romance, é introduzida por
inteiro, quando Riobaldo guia Hermógenes e seus homens para o arranchado determinado por
Joca Ramiro:
(...) o Hermógenes contestou. Deu ainda um barulho de boca e goela, qual um rosno. Sem mais
delongas nenhumas, saí, caminhando ao lado do cavalo do Hermógenes, puxando todos para o
Cambaubal. Atrás de nós, eu ouvia os passos postos da grande cavalaria, o regular, esse empurro
continuado. Eu não queria virar e espiar, achassem que eu era abelhudo. Mas, agora, eles
conversavam, alguns riam, diziam graças. Presumi que estavam muito contentes de ganhar o
repouso de horas, pois tinham navegado na sela a noite toda. Um falou mais alto, aquilo era bonito
e sem tino: – “Siruiz, cadê a moça virgem?” Largamos a estrada, no capim molhado meus pés se
lavavam. Algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas, para mim a toada toda estranha:
Urubu é vila alta,
.
336
A ocasião que os jagunços demonstram mais tristeza ao entoar uma cantiga ocorre, no episódio 14, quando vão
enterrar Medeiro Vaz e cantam um cântico religioso. Carregando o corpo do chefe morto, cantam comovidos a
seguinte cantiga: “Louvado seja o meu Deus; Encontrei quem eu queria: Encontrei quem eu queria; Fiquei em vossa
companhia; Jesus Cristo resplendor; Jesus Cristo resplendor; E agora vou despedir; Este nobre imperador; Este nobre
imperador.”
337
Lauro Belchior Mendes, Imagens visuais em Grande Sertão: Veredas, p. 71, afirma que a cantiga de Siruiz é
profética: “O encontro de Riobaldo com a cantiga de Siruiz é como se fosse a fala de uma profecia que, quando lhe é
transmitida, ele não pode entender, uma vez que só depois dos acontecimentos trágicos é que aquelas palavras terão
um sentido exato. A fala profética se une à fala da cultura e vem finalmente se unir à fala poética, quando se
transforma em matriz geradora de novas cantigas refeitas por Riobaldo. Ao criar dois poemas que pretendem
atualizar o sentido da primeira e perpetuá-lo através de novas figurações, o texto nos envia ao fundamental da
criação literária, que pressupõe a cópia, a repetição, a retomada do já feito e já escrito.”
232
mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida –
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
buriti – água azulada,
carnaúba – sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha,
convido meu coração...
Vinham quebrando as barras. Dia de maio, com orvalho, eu disse. Lembrança da gente é assim.”
(GSV: 135-136)
Na minissérie, a “entreluz da aurora”
(GSV: 134)
é explorada em sua beleza e plasticidade
enquanto ao fundo ouve-se a cantiga de Siruiz que vai ganhando destaque entre o som da marcha
dos cavalos até o desaparecimento deste e o aparecimento, na contraluz dos primeiros raios
dourados do amanhecer, da figura do violeiro que canta a última estrofe da cantiga a plenos
pulmões. Pode-se dizer que Riobaldo vive um momento mágico, um verdadeiro alumbramento,
pois, enfim, encontra os seres míticos de que seu padrinho sempre falara e a cantiga o introduz
nesse mundo. Quanto ao telespectador, ele é introduzido no mundo das “guerras por justiça” por
meio dessa canção que é substituída pela batida ritmada e forte de instrumentos de percussão, que
sugerem o aumento da tensão narrativa. A imagem seguinte mostra Riobaldo, de costas, andando
no meio do descampado indo em direção à tropa. Em seguida, a câmera focaliza, em
primeiríssimo plano, Riobaldo cujo olhar busca nos leva a localizar, na próxima tomada, o grupo
de jagunços. Seu olhar guia os telespectadores em direção dos “soto-chefes”, que surgem, a
seguir, em plano de conjunto, soberanos e bem postos sobre seus cavalos, à frente da tropa de
jagunços; atrás dos “soto-chefes” estão os homens de confiança de cada um deles; em seguida, há
um corte e voltamos a ver Riobaldo, em primeiro plano, que olha os “soto-chefes” agora
mostrados também em close (Titão Bastos, João Goanhá, Sô Candelário; Alaripe é o primeiro a
ser mostrado e não recebe close, talvez por não ser soto-chefe), volta um close de Riobaldo que
leva o telespectador ver Hermógenes, a cavalo e de costas, passando à frente da tropa e dos soto-
chefes, volta a imagem de Riobaldo, em close, que vai se esmaecendo (cross fade) até surgir
uma tomada (travelling), em grande plano geral de conjunto (alto) de toda a tropa em marcha
criando um contraste de luz entre o escuro da tropa e a matinal luz amarelada que toma conta da
233
vegetação do cerrado. Homens, cavalos e árvores de pequeno porte típicas dessa região se
confundem. Há aparentemente uma certa harmonia entre os jagunços e a natureza. É interessante
observar que Hermógenes, Ricardão e Joca Ramiro não merecem close nesta cena. Talvez,
pudéssemos dizer, parodiando Riobaldo, que os chefes tal qual os jagunços são provisórios; os
chefes também fazem parte de um sistema econômico e político, são engrenagens repostas de
tempos em tempos.
Na seqüência de planos
338
acima descrita, chamamos atenção para o cuidado com que os
planos partindo do geral (objetivo) se aproximam (subjetivo) e se distanciam novamente de
Riobaldo, dimensionando, em certa medida, a pequenez deste em relação à grandeza do grupo de
jagunços e do sertão
339
. Os planos questionam a visão de mundo de Riobaldo, ao mesmo tempo
em que mostram com as luzes da aurora que os seres míticos das histórias de Selorico Mendes
existem. Além dos planos, a fotografia dessa seqüencia merece comentários. A figura (escura) do
violeiro (do qual é possível ver somente os contornos) numa tomada de câmera baixa com o céu
amarelado ao fundo, remete-nos às figuras das capas dos livretos de cordel em que as
xilogravuras de violeiros e de personagens populares apresentam uma história inesquecível. A
seguir, apresentamos parcialmente a seqüência:
Figura 10.1 Figura 10.2 Figura 10.3
338
Adotamos como definição de cena e seqüência, aquela apresentada por Marcel Martin, A linguagem
cinematográfica, p. 140: “A cena é determinada mais particularmente pela unidade de lugar e de tempo (...); já a
seqüência é uma noção especificamente cinematográfica: consiste numa sucessão de planos cuja característica
principal é a unidade de ação (...) e a unidade orgânica, isto é, a estrutura própria que lhe é dada pela montagem.”
(itálicos do autor)
339
Marcel Martin, A linguagem cinematográfica, p. 37-38, afirma: “A maior parte dos tipos de planos não tem outra
finalidade senão a comodidade da percepção e a clareza da narrativa. Apenas o close ou o primeiríssimo plano (e o
primeiro plano, que do ponto de vista psicológico praticamente se confunde com ele) e o plano geral têm na maioria
das vezes um significado psicológico preciso e não apenas um papel descritivo. Reduzindo o homem a uma silhueta
minúscula, o plano geral o reintegra no mundo, faz com que as coisas o devore, “objetiva-o”; daí uma tonalidade
psicológica bastante pessimista, uma ambiência moral um tanto negativa, mas às vezes também uma dominante
dramática de exaltação, lírica ou mesmo épica.” (itálicos do autor)
234
Figura 10.4 Figura 10.5 Figura 10.6
Figura 10.7 Figura 10.8 Figura 10.9
Figura 10.10 Figura 10.11 Figura 10.12
Figura 10.13 Figura 10.14 Figura 10.15
Figura 10.16 Figura 10.17 Figura 10.18
235
Figura 10.19 Figura 10.20 Figura 10.21
Figura 10.22 Figura 10.23 Figura 10.24
Do ponto de vista narrativo, pode-se dizer que é nesse encontro de Riobaldo com o grupo
de jagunços chefiados por Joca Ramiro que a história do Riobaldo-jagunço tem início. Para o
telespectador, fica claro: acabou o mundo da infância-adolescência de Riobaldo. Ficaram para
trás seus encontros amorosos furtivos com Rosa’uarda, o treinamento com arma de fogo, o
aconchego doméstico. Riobaldo entra na vida adulta. Trata-se de uma espécie de rito de
passagem em que Riobaldo, conduzido pelas mãos de seu pai, entra num novo mundo. As
imagens e a música deixam claro: são os jagunços que o introduzem nesse novo mundo. Desse
ponto de vista, a cantiga de Siruiz, também na minissérie, é premonitória e se constitui como
parte essencial do rito de passagem de Riobaldo à vida adulta.
Contrapondo-se à manifestação musical, na maioria das vezes, alegre e guerreira dos
jagunços, as cantigas das mulheres surgem em momentos de tensão e de dor que ocorrem
geralmente em velórios, igrejas e no interior das casas. A primeira cantiga entoada por uma
personagem feminina é bastante característica da subalternidade da condição da mulher mostrada
tanto na minissérie quanto no romance. A cena a que nos referimos ocorre no terceiro episódio: a
mulher (supostamente uma “mulher dama”) com quem Riobaldo vai se relacionar, está deitada
numa cama (coberta com um lençol branco até a cintura, da cintura para cima ela está nua e seus
cabelos são medianamente compridos e muito volumosos) quando ele se aproxima dela, ela
236
começa a entoar um canto religioso
340
que fala em demônio num ritmo típico de ladainha cujo
tom que vai crescendo até se tornar insuportável para Riobaldo que desiste de satisfazer seus
desejos e sai do quarto praguejando contra a mulher depois de lhe jogar dinheiro
341
.
As cantigas entoadas pelas personagens da minissérie constituem-se elementos narrativos
importantes tanto para a compreensão das relações de poder quanto para o andamento da ação
dramática. Além disso, transpõem para a tela de televisão parte da oralidade também
característica da literatura de cordel e matizam a musicalidade presente nas palavras do sertanejo
das Minas Gerais. Musicalidade que foi procurada até mesmo na prosódia característica do povo
sertanejo. A professora de literatura Íris Gomes da Costa foi contratada com a finalidade de
ensinar essa prosódia ao elenco e, para isso, leu mais de trinta vezes o romance. Segundo ela,
“não bastou fazer exercícios de língua. Foi preciso ensinar os atores a pensar como sertanejos.”
342
De acordo com Castello
343
, “desse esforço resultaram diálogos enxutos, pontuados pela
meditação e encharcados de silêncio, que acabaram tornando as imagens do sertão ainda mais
expressivas.”
Segundo Avancini
344
, “o linguajar é uma das coisas mais bonitas do livro. As pessoas
podem não entender direito o significado das palavras, mas elas compreenderão seu sentido.”
Assim, as cantigas, a prosódia
345
, os sons da natureza são elementos importantes para a
composição ou “re-constituição” de um cotidiano jagunço marcado pela extemporaneidade de
uma sociedade caracterizada por um sistema produtivo praticamente feudal que teima em resistir
ao “progresso” no início do século XX. A dimensão do cotidiano é reforçada pelas cenas em que
os jagunços são mostrados em tarefas diárias como banho, preparação das refeições, limpeza de
cavalos, ou na infantil distração de aprender a brincar com bilboquê; nessas tarefas, sobressai o
jagunço como homem comum que tem atividades corriqueiras em oposição ao jagunço que luta
340
O canto é: “(...) Louvado seja o santo nome de Antonio; quem é por Deus tenha valia; Deus nos livra do
demônio.”
341
Na verdade, essa cena corresponde a um abrandamento do que ocorre no livro. No livro, Grande Sertão: Veredas,
p. 189, Riobaldo toma à força a mulher e a estupra.
342
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 44.
343
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 44.
344
Revista Visão, p. 50, 20.11.1985.
345
A questão da prosódia será abordada mais detalhadamente no próximo item deste trabalho.
237
as mais sangrentas batalhas
346
dignas de constar em livros como sonha e diz Zé Bebelo e em
cantigas e jornais como afirma Riobaldo
347
.
10.3. A vez e a voz da palavra-imagem
Avancini admite em entrevista
348
ter sofrido muitas influências das histórias em
quadrinhos e afirma que se surpreendeu, no momento em que fazia a edição da minissérie, ao
perceber que as imagens pareciam mais fortes quando estavam paradas do que quando estavam
em ação. Na mesma reportagem, Moacy Cirne, professor da Universidade Federal Fluminense,
afirma:
De fato, as imagens do Grande Sertão têm uma composição tão equilibrada, tão harmoniosa que
chegam a lembrar a clareza e a limpeza dos quadrinhos. (...) Também nos quadrinhos as imagens
são mais importantes que a palavra, e a palavra termina sendo um elemento visual.
349
E é justamente sobre a questão da fala dos atores que, em diversas reportagens, surgem
algumas críticas à minissérie. O poeta e professor Décio Pignatari
350
afirma que gostou das
imagens, mas encontrou defeitos com relação ao som, à fala das personagens (“Alguns atores
estão falando como se estivessem em Asa Branca.”) Já Grunewald
351
tece sua crítica no sentido
de que é difícil entender a fala dos atores, mas ele vê isso como um problema advindo da própria
linguagem usada por Guimarães Rosa e chega a sugerir o uso de legendas para que os
telespectadores possam compreender o linguajar sertanejo:
346
Segundo Agnes Heller, O cotidiano e a história, principalmente p. 19-24, ao contrário do que muitos pensam, o
cotidiano é dinâmico e antagônico, pois se funda sobre a constante e simultânea oposição que se coloca para o ser
humano que se constitui pela contraposição entre o ser particular e o ser genérico.
347
Durante o julgamento de Zé Bebelo, Riobaldo afirma que a grande sabedoria de Joca Ramiro deveria ser
publicada em jornais e cantada em cantigas por muitos anos: “... Seja a fama de glória... Todo o mundo vai falar
nisso, por muitos anos, louvando a honra da gente, por muitas partes e lugares. Hão de botar verso em feira, assunto
de sair até divulgado em jornal de cidade...” (GSV 292)
348
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 45.
349
Revista Istoé, de 18.12.1985, p. 45.
350
Em entrevista concedida a Leão Serva, publicada na Folha de S. Paulo, de 20.11.85, sob o título Intelectuais
julgam “Sertão”.
351
José Lino Grunewald, Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro, caderno Folhetim, de 01.12, 1985, Folha
de S. Paulo, p. 3.
238
Mas o tartamudeio funcional dos diálogos deveria ter legenda. Todo mundo sabe que o matuto
tartamudeia – isto é válido – mas o telespectador quer saber o que está acontecendo. O Grande
Sertão está sendo uma grande experiência – mas exige um mínimo de trampolim verbal.
352
Brait também comenta a dificuldade de os telespectadores entenderem o que se fala na
minissérie:
Quando o espectador reclama que “o som está ruim e que, apesar da beleza visual e do interesse do
enredo, é difícil entender o que as personagens dizem:, na verdade ele está fazendo uma pequena
confusão. O som é perfeito, a dificuldade de se entender parte das falas só acontece porque o texto
está sendo passado sem as facilidades do pastiche regionalista convencionado como nordestino.
Por não se tratar de uma fala baiana ou sulista popularizada por novelas e outras adaptações, o
espectador tem de aguçar os ouvidos e, saindo do seu comodismo urbano, entender essa fala nova
que, sem ser de uma região mineira específica, procura transformar em “fala” toda a riqueza
vocabular do universo roseano pautado na pesquisa e na invenção e que está muito longe de
documentário realista. Então, isso que à primeira vista aparece como um problema, é de fato uma
conquista um grande avanço da equipe de adaptadores que, sem facilitar pela via do conhecido
arranca o espectador da passividade e o puxa um pouco mais para dentro do sertão não
estereotipado.
353
Porém, a professora não deixa de registrar alguns “escorregões” na prosódia:
É claro também que ouvir Diadorim dizendo “Riobardo”e Riobaldo puxando um “R” caipira soa
inverossímil para todos os leitores acostumados à escrita de Guimarães. Apesar de todos os
recursos expressivos, o escritor jamais apelou para uma transcrição fonética, para as marcas
sonoras (...). Mas como passar da linguagem escrita para a falada sem apelar para esse recurso? Só
o fato de os mineiros dizerem que não é a fala de nenhuma região em particular, isso já demonstra
que a concepção de sertão dos adaptadores e a realização da fala dos sertanejos está muito mais
próxima do mundo roseanamente concebido do que de um realismo mistificador. E isso também é
uma grande conquista, mesmo que nós leitores apaixonados torçamos o nariz.
354
A questão do uso equivocado do falar caipira-paulista também é criticada pela
pesquisadora Maria Célia de Moraes Leonel que vê nisso uma falha da minissérie:
Acho que houve um deslize de leitura, ao se colocar, no falar daqueles personagens, um sotaque
tipicamente caipira-paulista. Na minissérie, fala-se “Riobardo”, por exemplo, e não há indicação
disso no texto de Rosa, que era muito preciso nesse ponto. Acho também que o som fica um pouco
dúbio.
355
353
Em artigo publicado no jornal City News, São Paulo, p. 77, de 22.12.1985 sob o título Grande Sertão: Veredas –
um avanço nas adaptações para TV.
354
Em artigo publicado no jornal City News, São Paulo, p. 77, de 22.12.1985 sob o título Grande Sertão: Veredas –
um avanço nas adaptações para TV.
355
Em reportagem publicada no jornal O Globo, de 23.11.1985, sob o título O ponto em comum: a divulgação de
uma obra prima.
239
Em outra reportagem, o escritor Autran Dourado
356
também critica o sotaque caipira-
paulista adotado na minissérie. Porém, essa questão do uso do falar do caipira-paulista não parece
ser consenso entre os críticos nas matérias jornalísticas a que tivemos acesso. Aliás, em outras
reportagens, fala-se em sotaque sertanejo mineiro. É o caso da matéria de Lage
357
, em que se
recomenda aos leitores que se assista à minissérie com muita atenção, pois “(...) mantendo a
prosódia, o sotaque do sertanejo mineiro, a compreensão dos diálogos é difícil, às vezes. Nem o
ouvido mais atento é capaz de decifrar certas frases de Zé Bebelo (José Dumont).” Com o que
concorda parcialmente Michalski
358
para quem o “radicalismo” da opção de recriar a prosódia do
sertanejo:
(...) custou um preço até certo ponto alto. Para quem não está familiarizado com essa pronúncia
sertaneja que já está no limite entre sotaque e dialeto, o acompanhamento dos diálogos fica quase
sempre muito difícil, o que não pode deixar de prejudicar o fluxo da comunicação com o
telespectador. Mas, por outro lado, a sonoridade insólita desse diálogo acaba criando um novo
canal de comunicação, num plano não verbal mas quase musical, em que muito daquilo que o
ouvido deixa de captar palavra por palavra é de alguma forma assimilado através de sugestões
sonoras abstratas.
Parece ter sido esse mesmo o objetivo de Avancini: o de que o público interpretasse a
situação de comunicação, o seu contexto. Tarcísio Meira, que na minissérie interpretou o pactário
Hermógenes, afirma que a fala dos personagens foi fruto de um exaustivo trabalho de preparação
e que os atores sentiram dificuldades para falar como Avancini queria:
(...) falar como eles [os personagens de Grande Sertão: Veredas], para nós, era complicado porque
era muito difícil ser compreendido com aquele sotaque. Nós argumentávamos isso com o Walter e
ele respondia:
- Não é importante que as pessoas entendam ipsis litteris o que vocês estão falando, o importante é
que elas se inteirem da situação que os personagens estão vivendo, e isso vai passar. As palavras
são muito secundárias.
359
Também Daniel Filho (2001: 99), que, na época da minissérie, exercia a função de Diretor
da Central Globo de Produções, confirma sua preocupação com a dificuldade que Avancini teria
para executar a transformação do texto do roteiro em linguagem televisual, principalmente no que
diz respeito à prosódia das personagens :
356
Segundo Autran Dourado, em reportagem publicada na revista Istoé, p. 48, de 18.12.1985: “As personagens falam
caipira paulista ao invés da língua de Rosa (...).
357
Miriam Lage, Grande Sertão: Veredas – Para ver com atenção, Jornal do Brasil, caderno B, p. 6, 18.11.1985.
358
Yan Michalski, em artigo publicado pelo crítico teatral no Pasquim, de 28.11.85, sob o título “Grande Sertão
Veredas: um exercício de estilo”
359
Ângela Britto, O último artesão: Walter Avancini, p. 270, Rio de Janeiro: Gryphus, 2005.
240
Avancini trabalhou na adaptação de Grande Sertão. Ao receber o texto percebi como seria difícil
transformar aquilo em seriado, com os ganchos necessários. Enquanto ele filmava, eu ficava vendo
os copiões. Nós falávamos até por rádio, por que os lugares em que eles se metiam, chapadões,
eram de difícil acesso; mas eu fiscalizava inclusive a linguagem.
Havia momentos em que eu dizia assim:
Daniel Filho: - Avancini, não estou entendendo uma palavra do que estão falando ...
Avancini - Mas os atores já estão até se entendendo nesse dialeto dos personagens ... – ele
argumentou.
Daniel Filho - Mas eu não estou entendendo! ... Vou ter que botar legenda, porque não consigo
entender! – reclamei.”
Porém, a visão de Avancini sobre como deveriam ser ditas as palavras da minissérie
parecia bem clara conforme ele próprio explicou
360
:
O livro tem muitas leituras. Há uma primeira armação, mas há outras também. Que eu espero
sejam percebidas no processo do espetáculo, no qual você não tem a palavra, mas tem a sombra e a
luz, você não tem a prosódia dele por inteiro, mas uma identidade dessa prosódia, com a
preocupação de, através da ação, do movimento ou mesmo da formação da frase, torná-la acessível
ao público.” (Press release: 4)
A palavra passa ser secundária do ponto de vista de sua significação imediata, mas ganha
densidade significativa dentro de um complexo contexto de enunciação, compondo uma
mensagem fortemente marcada pela interpretação obtida por um feixe de significantes (som,
imagem, fala, gestualidade) que harmoniosamente se entrelaçam e buscam circunscrever o
espectador em um universo de interpretação marcado pela complexidade da interação verbal
compreendida no sentido bakhtiniano de dialogia. Nessa concepção, a comunicação se caracteriza
pela alternância de vozes (e não pela monofonia) e é por meio dela que se estabelece a
significação de uma palavra, num processo predominantemente interacional.
É por isso que não tem sentido dizer que a significação pertence a uma palavra enquanto tal. Na
verdade, a significação pertence a uma palavra enquanto traço de união entre os interlocutores, isto
é, ela só se realiza no processo de compreensão ativa e responsiva. A significação não está na
palavra nem na alma do falante, assim como também não está na alma do interlocutor. Ela é o
efeito da interação do locutor e do receptor produzido através do material de um
determinado complexo sonoro.” (BAKHTIN 2002:132)(grifos do autor)
Dessa forma, a significação não pertence ao falante ou ao interlocutor, mas sim ao texto
criado entre ambos. Num processo que envolve idas e vindas, avanços e retrocessos, reticências,
360
Em entrevista a Gonçalo Silva Jr., Pais da TV ..., p. 334, Walter Avancini fala a respeito da preparação dos atores
com relação à prosódia: “Foi a primeira vez na história da televisão que se teve de fato aula de prosódia no sentido
de pesquisa histórica. (...) A minha pesquisadora foi buscar os mais antigos remanescentes daquela área onde se
passa o romance e encontrou alguns deles, com 90, 95 anos, que falavam aquela linguagem do Guimarães.”
241
silêncios, o verbal e o não-verbal; que é constituído não apenas pelos gestos e movimentos do
falante, mas também pelas condições sociais em que se dá a comunicação. Condições essas
desveladoras do próprio universo jagunço. Um universo em que as palavras zebelenses, apesar de
“nativas”, soam estrangeiras, tão estrangeiras que os jagunços companheiros de Riobaldo não
compreendem quando este imita seu comandante. No livro Riobaldo relembra:
Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados, uma passagem de meu tempos, e depois
descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam desempenhar,
remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em
tantos discursos. Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé
Bebelo. E eles, os companheiros não me entendiam. Tanto, que, foi só entenderem, e logo pegaram
a rir. Aí riam, de miséria melhorada. (GSV: 441)
Na minissérie, essa passagem ocorre da seguinte maneira: Riobaldo está sentado com
outros jagunços em volta da fogueira e Diadorim pode ser visto sobre o galho de uma árvore,
somente sua figura é iluminada destacando-se na escuridão que circunda a fogueira e os homens
reunidos à sua volta. Riobaldo fica de pé de repente e começa a imitar os trejeitos e as falas
361
de
Zé Bebelo:
Riobaldo: - Ave. Pensando bem, minha gente, a função de jagunço não tem nem seu o que
nem para que!
Alaripe: - Eh, eh...Que história é essa, mano velho?
Riobaldo: - Absusta, mano velho. tem um aqui que pode com seus beneficio e
artifício consertar o sertão dos desleixo que se vê. Inducar as criança, dar proteção
aos velho. Ocês sabem de quem eu tô falando ? Sabe não? Sabe não. Os graúdo do
governo!
Capixum: - Peraí, Tatarana. Cê tá querendo brigar?
Alaripe: - Quar! Cês num viram que Tatarana tá remedando nosso chefe, sô?
Riobaldo: - Abissal! Os mestres, só os mestres é que tão certo sempre. Assino embaixo,
deputado.
Ou seja, a palavra estrangeira mesmo quando dita por um “nativo” não ecoa entre seus
pares. Ela sobrevive como paródia e, destituída de sua significação primeira, exige um esforço de
compreensão por parte dos ouvintes “nativos”. A palavra em seu sentido primeiro torna-se
monológica e só adquire dimensão dialógica quando seus ouvintes a reconhecem
362
como
361
Reproduzimos os diálogos que efetivamente foram ao ar.
362
M. Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 93, lembra ainda que é a natureza “variável e flexível” do
signo que garante ao locutor exprimir-se de acordo com um dado contexto e fazer com que seja entendido nesse
contexto por seu interlocutor. Para o teórico russo, a tarefa de compreensão não se limita à simples descodificação
lingüística, mas envolve a compreensão de sua significação numa enunciação particular, “num contexto concreto
preciso”.
242
paródia, enfim como gênero (humorístico). Afinal, como afirma Bakhtin (2003) é a pertinência
do discurso a um determinado gênero que nos permite compreender sua significação
363
.
Bakhtin (2002: 101) relaciona a palavra estrangeira ao poder e à força que conquistadores
e colonizadores utilizaram para impor sua cultura aos povos subjugados:
A palavra estrangeira foi, efetivamente, o veículo da civilização, da cultura, da religião, da
organização política (...). Esse grandioso papel organizador da palavra estrangeira – palavra que
transporta consigo forças e estruturas estrangeiras e que algumas vezes é encontrada por um jovem
povo conquistador no território invadido de uma cultura antiga e poderosa (...) fez com que, na
consciência histórica dos povos, a palavra estrangeira se fundisse com a idéia de poder, de força,
de santidade, de verdade (...) (grifos do autor)
Já a palavra nativa, para Bakhtin (2002: 100), “(...) é percebida como um irmão; como
uma roupa familiar, ou melhor, como a atmosfera na qual habitualmente se vive e se respira.” É-
nos então possível imaginar que, no caso da minissérie, ocorrem mecanismos diferentes de
compreensão da fala jagunça. Para os telespectadores a fala “nativa” dos jagunços soa estrangeira
e, para os jagunços, a fala zebelense (mais compreensível em termos de significado para os
telespectadores, pois é carregada ideologicamente de valores mais “republicanos”) soa
estrangeira para os jagunços. As falas dos jagunços e sua dificuldade de compreensão por parte
do telespectador permitem-nos perceber o entrechoque de mundos diferentes: o arcaico, marcado
pelo modo de produção e por um cotidiano feudal; e o republicano, caracterizado pelos ideais de
igualdade e liberdade expressos notadamente pelo discurso zebelense em favor da educação e do
respeito às instituições. Transpõe-se, assim, para a tela de televisão e para o telespectador a
problemática que divide, ainda hoje, o país: o atraso político-social e econômico dos grotões e o
“progresso” das capitais litorâneas do sul/sudeste do país em cujas casas é possível medir a
distância a audiência dos programas televisuais por meio de modernos equipamentos que chegam
a detectar se há ou não alguém na sala
364
. Gostaríamos de lembrar aqui a afirmação de João
Adolfo Hansen a respeito da fala das personagens rosianas, segundo o pesquisador, Rosa
apresenta em suas histórias a fala daqueles que geralmente não têm noz na sociedade: os pobres,
363
Segundo Mikhail Bakhtin, Estética da criação verbal, p. 283: “As formas da língua e as formas típicas dos
enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e
estreitamente vinculadas. (...) Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o
organizam as formas gramaticais (sintáticas).”
364
A título de exemplo, citamos a falta de infra-estrutura do povoado de Paredão em razão da qual não foi possível a
seus moradores, no ano de 1985, assistir à minissérie conforme reportagem: Volta à solidão – E a cidadezinha nem
sequer poderá ver o seriado na tevê, Jornal do Brasil, 16.11.85.
243
os loucos, os iletrados, os analfabetos
365
. Podemos concluir que talvez não estejamos prontos
para ouvir ou entender o que dizem essas pessoas destituídas da sua cidadania. Se até mesmo o
som da fala nos soa estranho, talvez não seja fácil ou agradável entendermos o que dizem.
365
Explicação dada durante debate ocorrido em Veredas: Seminário Internacional João Guimarães Rosa – Grande
serão: veredas e Corpo de Baile – 50 anos, realizado pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São
Paulo, de 15 a 19.05.2006, na FFLCH-USP.
244
Capítulo 11 – Gêneros e Temas na minissérie Grande Sertão: Veredas
Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também
– mas Diadorim é a minha neblina...
Agora, bem: não queria tocar nisso mais
– de o Tinhoso; chega.
(GSV 40)
Nos capítulos precedentes, fizemos a análise dos elementos narrativos da minissérie
levando em consideração suas relações com o gênero de ficção seriada representado pela
minissérie. Observamos que o tratamento temático dado a esses elementos concretiza-se por meio
de um acabamento estético em que diálogo, ação, música, cenário, figurino, confluem para um
todo harmonioso no qual é possível discernir o gênero enquanto articulador de um modelo de
interpretação e de visão do mundo. O gênero não se manifesta apenas pela forma de enunciação
ou pela organização narrativa dos acontecimentos, mas também pela composição articulada entre
esses elementos e o tratamento temático. Gênero e tema encontram-se imbricados em todo
enunciado (Bakhtin 2002). Assim, como exemplo, retomamos nossa análise sobre o tratamento
narrativo e estético dado aos jagunços da minissérie que recebem um acabamento temático
diferente daquele oferecido aos jagunços ou cangaceiros de outras produções da rede Globo.
Nesta etapa de nosso estudo, orientamos nossa atenção para os depoimentos de Durst e
Souza apresentados no Press Release distribuído pela Rede Globo de Televisão à época do
lançamento da minissérie. A opção de trabalhar com esses dois autores deve-se ao fato de que, no
decorrer dos capítulos anteriores, privilegiamos a análise das cenas dirigidas e editadas por
Avancini – situação que por si só demanda um tratamento temático -; nesta etapa de nosso
trabalho, julgamos importante estabelecer uma interlocução com os outros dois escritores do
roteiro. Com base nesse quadro, consideramos os comentários de Walter George Durst e José
Antonio de Souza como ponto de partida de nossa análise. Os temas mais destacados por Durst
são homossexualismo e destino (social). Já para Souza, o tema principal da obra é a religiosidade.
A propósito, esses temas também foram bastante destacados à época de exibição da minissérie
conforme comprovam os textos discutidos no tópico “Repercussões na imprensa”.
245
Neste momento de nossa análise, o estudo dos temas da minissérie tem como base duas
formas de aproximação: a primeira delas ocorre pela tentativa de discernir nosso objeto de estudo
a partir dos depoimentos dados no Press release por Durst e Souza. Num segundo momento,
estudamos como esses temas são desenvolvidos na minissérie e selecionamos algumas seqüências
ou cenas que nos pareceram mais significativas de um determinado tratamento temático para uma
análise mais aprofundada. Esse movimento de análise leva-nos, às vezes, a contrapor algumas
interpretações do livro com o tratamento temático apresentado na minissérie, isso ocorre
principalmente porque uma das grandes tarefas a que se propõem as equipes de criação e de
produção no trabalho de transposição da obra literária em minissérie teria sido a busca de
fidelidade em relação original
366
.
Partimos da idéia de que a minissérie como um todo possui um tema que se divide em
vários sub-temas
367
os quais denotam uma certa visão de mundo dentro do contexto estético
específico do meio televisual brasileiro do ano de 1985. Antes, porém, que nos dediquemos ao
estudo mais detalhado dos temas da minissérie, é preciso que levemos em consideração que
estamos diante da transposição para a televisão de um dos mais importantes romances da
literatura brasileira. Romance e autor têm merecido uma grande quantidade de pesquisas
acadêmicas que talvez os coloque entre aqueles que mais têm despertado interesse dos
estudiosos de literatura. Oliveira (1999: 108) afirma que, no início de 1998, havia
aproximadamente 2.500 trabalhos sobre a obra de Guimarães Rosa, dos quais 1.300 tratavam
especificamente de Grande Sertão: Veredas.
Lembramos esse fato principalmente por razões que decorrem da abordagem dialógica da
minissérie adotada neste trabalho que coloca autor(es), produto, gênero, temas, linguagem,
interdiscurso, num processo constante de interlocução, criando um intertexto praticamente
infinito. Nesse sentido, a descrição de Durst a respeito do seu processo criativo é eloqüente:
“Passei a ler tudo que foi escrito sobre ele, todos os livros de Guimarães, em especial os que
foram escritos após GRANDE SERTÃO, principalmente TUTAMÉIA, outra grande obra. Só
366
Característica essa bastante valorizada por Walter Avancini em diversas entrevistas e reportagens sobre a
minissérie conforme tratamos em “Repercussões na imprensa”. Reproduzimos aqui um trecho do depoimento de
Avancini no Press release, p. 2 : “Foi um trabalho tão minucioso que gravei várias seqüências com o livro nas mãos,
relendo, procurando atingi-lo. E, mesmo com acertos e erros, sei que o visual do espetáculo é fiel a Guimarães.”
Sobre o aspecto da fidelidade entre a obra literária e a minissérie Grande Sertão: Veredas, remetemos à tese de Paulo
S. X. de Oliveira, A televisão como “tradutora”: veredas do grande sertão na Rede Globo.
367
B. Tomachevski, Temática, Teoria da literatura ..., p. 173 : “A noção do tema é uma noção sumária que une a
matéria verbal da obra. A obra inteira pode ter seu tema, ao mesmo tempo que cada parte da obra.”
246
depois me atirei no trabalho (...).” (press release p. 10) Assim, é provável que algumas das
leituras de “tudo que foi escrito” sobre Guimarães Rosa tenham influenciado Durst
368
na escolha
dos temas tratados na minissérie. Fato esse dado como certo por Morais (1997: 51):
Rosa tinha especial carinho por dois heróis clássicos da literatura: Hamlet e Raskólnikov. O
primeiro carrega o peso da dúvida; o segundo a culpa dentro de uma ótica cristã, Rosa nega em
suas entrevistas qualquer parentesco, vaidoso, considera Riobaldo único. Embora confirme certas
referências com Shakespeare e Dostoievski.
Dusrt sabia disso e usa como paradigma na composição de Riobaldo fragmentos dos dois
personagens. Em algumas passagens do roteiro lê-se a observação “dúvidas hamletianas e culpas
raskolnikovianas.”
Morais também afirma que Durst utilizou a análise feita por Galvão (1986) sobre o caso
Maria Mutema “como fonte importante na confecção do roteiro” (Morais 2000: 165). É devido a
essa intertextualidade que se estabelece entre adaptador, diretor e estudiosos da obra do escritor
mineiro que acreditamos que o mapeamento das abordagens da obra de Guimarães Rosa possa
facilitar a compreensão de algumas das opiniões de Avancini, Durst e Souza sobre o livro e a
minissérie.
A obra de Guimarães Rosa tem sido estudada sob os mais diferentes enfoques
metodológicos e ideológicos
369
. Segundo Bolle (2004: 19-20), os estudos podem ser resumidos a
cinco principais abordagens. A primeira delas se refere aos estudos lingüísticos e estilísticos; a
segunda, às análises de estrutura, composição; a terceira refere-se aos estudos do texto do ponto
de vista genético; na quarta abordagem estariam as interpretações esotéricas, mitológicas e
metafísicas; a quinta abordagem compreenderia as interpretações sociológicas, históricas e
políticas. Esta última forma de abordagem de Grande Sertão: Veredas, iniciada, segundo Bolle
(2004: 20), em 1972, por Galvão
370
, manteve-se praticamente reduzida a esse estudo durante as
décadas de 1970-1980. O estudo precursor de Galvão permaneceu durante muito tempo como
uma produção atípica dentro dos estudos consagrados ao romance Grande Sertão: Veredas.
Estudos que primavam, naquelas décadas, por discutir a metafísica da obra rosiana. De acordo
368
O Press release, p. 12, também informa que: “Outra fonte inesgotável de auxílio, usada por Durst, O POPULAR
EM GUIMARÃES ROSA, Leonardo Arroyo, no qual o autor mostra, item por item, a base popular utilizada por
Guimarães Rosa em seu romance, penetrando, assim, nas crenças, nos mitos e nos valores dos jagunços.”
369
Aliás, Antonio Cândido, no ensaio O homem dos avessos, in: Tese e Antítese, p. 121, já afirmava: “Na
extraordinária obra-prima Grande Sertão: Veredas há de tudo para quem souber ler, e nela tudo é forte, belo,
impecavelmente realizado. Cada um poderá abordá-la a seu gosto, conforme o seu ofício; mas em cada aspecto
aparecerá o traço fundamental do autor: a absoluta confiança na liberdade de inventar.”
370
Walnice Galvão, As formas do falso, primeira publicação em 1972.
247
com Bolle (2004: 20), a última corrente de análise que defende uma abordagem histórica,
sociológica ou política do romance de Guimarães Rosa adquire força somente a partir da década
de 1990.
A localização temporal dessas linhas de pesquisa permite-nos supor que os autores da
minissérie estabeleceram algum tipo de diálogo com elas, principalmente quando levamos em
consideração o depoimento de Durst acima mencionado. Porém, antes de darmos continuidade à
análise gostaríamos de lembrar que, apesar dos possíveis textos consultados pelos autores, nosso
estudo se fixa na minissérie como um todo acabado por meio de um tratamento estético orientado
tematicamente. O acabamento temático de uma obra artística deve ser analisado, segundo
Bakhtin (2003: 5), não apenas em função daquilo que os autores dizem a respeito dela, mas,
sobretudo, pela própria obra de arte que dialogicamente incorpora os elementos sociais e
psicológicos e os trata esteticamente.
O autor nos conta essa história centrada em idéias apenas na obra de arte, não na confissão de autor
– se esta existe -, não em suas declarações acerca do processo de criação; tudo isso deve ser visto
com extrema cautela pelas seguintes considerações: a resposta total, que cria o todo do objeto,
realiza-se de forma ativa, mas não é vivida como algo determinado, sua determinidade reside
justamente no produto que ela cria, isto é, no objeto enformado; o autor reflete a posição volitivo-
emocional da personagem e não a sua própria posição em face da personagem (...)
Relembramos esse fato, pois, quando analisamos depoimentos de Avancini e Durst,
notamos que ambos fazem uma clara aproximação entre a vida do escritor e sua obra literária.
Avancini deixa entender que os dois são um só:
Conversamos muito, no sentido de buscar esse inconsciente [coletivo] do sertão. Não é difícil
descobrir o sertão do Guimarães Rosa em seus aspectos míticos, principalmente porque, na obra,
está a própria contradição do autor, um homem de alto nível intelectual e com uma formação
cultural maniqueísta, da qual não se livrou até sua morte. E esta é a trajetória de Riobaldo, um
personagem coerente dentro da sua divisão e que, à semelhança de seu criador, não resgata, embora
compreenda sua contradição. (Press release: 6)
Também no depoimento de Durst (Press release: 13) podemos encontrar essa
aproximação quando o adaptador comenta o tema do homossexualismo: “Na verdade, o
homossexualismo nele [no romance Grande Sertão: Veredas] é quase identificado com o diabo.
Essa já é uma noção cristã do problema e, possivelmente aí entra uma projeção do próprio autor”.
Assim, o romance Grande Sertão: Veredas possui, para Avancini, como elementos essenciais a
248
luta entre o bem e o mal que decorreriam de uma visão maniqueísta de Guimarães Rosa sobre o
mundo. Avancini faz, portanto, uma fusão entre autor e narrador e transforma, de maneira direta,
a voz deste na voz daquele. Desaparecem as fronteiras entre as duas categorias sempre tão bem
distintas nos estudos literários. Bakhtin (2003: 8) considera essa aproximação absurda:
São particularmente absurdas comparações factuais da visão de mundo da personagem e do autor e
as explicações de uma pela outra: compara-se o aspecto abstrato do conteúdo de um pensamento
isolado do autor com um pensamento correspondente da personagem. (...) Veremos que não se
pode falar de concórdia propriamente teórica entre o autor e a personagem; neste caso, ignora-se
em toda parte a diversidade essencial de planos do conjunto da personagem e do autor, a própria
forma da relação com o pensamento e até mesmo com o conjunto teórico da visão de mundo.
Começa-se até a discutir a torto e a direito com a personagem como quem discute com o autor,
como se fosse possível discutir ou concordar com a existência, ignora-se a refutação estética.
Autor-criador (ou empírico) e autor, no sentido bakhtiniano, não se confundem, pois o
primeiro deles tem existência no mundo “real”, enquanto o segundo encontra sua existência na
materialidade da obra artística. Podemos aproximar essas definições daquelas elaboradas por Eco
(1997) em que o estudioso italiano emprega os termos autor-empírico e autor-modelo para
distinguir o autor, o artista, da voz que fala no romance não apenas com a voz do narrador ou das
personagens, mas também por meio do uso de estratégias narrativas.
371
Assim, buscando
coerência com o quadro teórico adotado em nosso trabalho, a fusão entre autor-empírico e autor
feita por Avancini não será levada em consideração e nem será objeto de discussões mais
profundas, uma vez que mesmo Bakhtin não se coloca totalmente contra a uma certa
aproximação biográfica entre autor-empírico e autor, para ele, contudo, essa aproximação não
deve ser feita de maneira “puramente factual”:
Em seu conjunto, o que acabamos de dizer não visa, absolutamente, a negar a possibilidade de
comparar de modo cientificamente produtivo as biografias do autor e da personagem e suas visões
de mundo, comparação eficiente tanto para a história da literatura quanto para a análise estética.
Negamos apenas o enfoque sem nenhum princípio, puramente factual desse tema, que atualmente
domina sozinho e se funda na confusão do autor-criador, elemento da obra, com o autor-pessoa,
elemento do acontecimento ético e social da visa, e na incompreensão do princípio criador da
relação do autor com a personagem (...).( BAKHTIN 2003: 9)
371
Cf. Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção, p. 21, (...) o autor-modelo é uma voz que nos fala
afetuosamente (ou imperiosamente, ou dissimuladamente), que nos quer a seu lado. Essa voz se manifesta como uma
estratégia narrativa, um conjunto de instruções que nos são dadas passo a passo e que devemos seguir quando
decidimos agir como o leitor-modelo.”
249
Na minissérie, como em toda obra artística, encontramos fios que se entretecem dentro da
cultura em geral e, mais especificamente, da cultural televisual brasileira e que emergem por
meio do acabamento temático efetuado pelos autores. As relações entre autor e objeto artístico
são perpassadas por infinitas influências que acabam se mostrando de maneira mais velada ou
menos velada por meio da obra artística. Segundo Bakhtin (2003), a obra artística como um todo
reflete e refrata as relações do artista com o mundo e seus valores éticos morais, religiosos,
sociais. Assim, compreendemos que as opções efetuadas em relação ao tratamento de um ou de
outro tema podem desvelar intenções dos escritores e do diretor da minissérie. Afinal, o autor,
segundo Tomachevski (1976), deve escolher um tema que seja suficientemente interessante para
o leitor (telespectador) e abordá-lo de maneira que cative sua atenção por meio da emoção
372
.
11.1. Homossexualismo e Destino Social
No corpus, verificamos que a maioria das avaliações negativas feitas à minissérie pela
crítica especializada de literatura refere-se à escolha da atriz Bruna Lombardi para interpretar
Reinaldo/Diadorim. Boa parte dos críticos alegava que a simples presença da atriz, uma espécie
de símbolo da sensualidade feminina, levaria à descaracterização de um dos principais temas do
romance: a homossexualidade.
Durst também elege o homossexualismo como um dos temas principais do romance de
Guimarães Rosa, porém sua análise não pára por aí. Para ele, além da questão da sexualidade,
outro tema importante seria o destino; destino visto não pelas lentes dos desígnios divinos, mas
como produto das relações de poder que se manifestam no tecido social:
GRANDE SERTÃO: VEREDAS é como uma cebola, da qual pode-se ir tirando as casas, de fora
para dentro. Antes de tudo é uma história de aventuras, baseada nas histórias de cavalarias. É
também uma maravilhosa história de amor e fala, ainda de forma absolutamente moderna, do
homossexualismo, com todos seus prós e contras. Mas há também outras leituras, inclusive a
principal do livro, do destino. Não o destino no sentido fatalista, daquilo que estava escrito, mas o
destino feito pelo tecido social e suas circunstâncias. Temos um homem lutando para ser feliz, e
este homem entra em contato, inevitavelmente, com os outros, com aqueles a quem Sartre chamou
de inferno. (Press release: 10)
372
B. Tomachevski, Temática, in: Teoria da literatura, p. 172, lembra: “Suscitar uma emoção é o melhor meio para
cativar a atenção.”
250
Assim, para Durst, a principal discussão colocada pelo livro é a do amor e do
homossexualismo que se constrói por meio das relações humanas e sociais:
É nesse momento que Guimarães Rosa, na minha opinião é genial e único, colocando um conceito
raro de encontrar na literatura, até universal, segundo o qual, na formação do destino, existem
nossas próprias limitações. Ou seja, existe o tecido social e as circunstâncias, existe o inferno
oferecido pelos outros, com as oposições, os interesses, os outros amores, e existe o nosso próprio
inferno, as nossas próprias hesitações, preconceitos a nossa pequenez. É o caso do Riobaldo. É a
luta que ele trava consigo mesmo. A sua luta para ser feliz é o grande tema do livro. (Press
release:10)
Durst, também encontra no livro o conflito histórico que se coloca entre as províncias e o
federativismo e vê semelhanças entre jagunços e samurais, que, como nossos jagunços, partiam:
(...) para a batalha, abdicando da comodidade de suas casas, expondo suas vidas e tudo o mais. Eles
viviam dessa forma, no meio do mato, e com um código absolutamente especial, que incluía
valores de lealdade, de habilidade no uso de armas. Entre esses exércitos e o Governo e seus
representantes (...) existe apenas um povo absolutamente marginalizado, que não opina, não tem
força, como se vivesse na idade das cavernas. (Press release: 11)
No entender de Durst, Grande Sertão: Veredas possui diversas dimensões que não estão
apenas justapostas, ao contrário, entrelaçam-se, entrecruzam-se para dar vida à trama:
No romance, porém, não importa quem está com a razão, não há valorização deste momento
histórico [marcado pela luta entre as províncias e o governo federal]. Esta é apenas uma das
dimensões do GRANDE SERTÃO, tão importante quanto a dimensão do amor, do destino, do
diabo. (Press release: 12)
Segundo Durst, somente a dialética pode dar conta de explicar essa multiplicidade de
dimensões que se revela ao buscarmos “a plenitude do homem” (Press release: 13):
O grande instrumento de análise de todas as teorias, e da própria história, é a dialética. Antes dela
talvez se intuísse os problemas do mundo, mas racionalmente, só se passou a vê-los a partir daí. E
é na dialética de cada autor que está contida a sua visão de mundo. Assim, em Guimarães Rosa, há
o sofrimento colocado como tese, e tendo como antítese a sua própria contradição. A síntese disso
é sempre o mistério, a dúvida. “Pode ser. Mas pode não ser.” Guimarães se mantém no mistério,
com uma visão rigorosamente moderna, de uma humanidade que acreditou saber tudo sobre a
ciência, que tinha dominado tudo, e, de repente, foi obrigada a descrer. É uma visão poética,
segundo a qual só existe o que soubermos fazer, que seja permitido pelo mistério.” (Press release:
13)
251
Para Durst, o conflito principal do romance encontra-se no entrechoque do amor de
Riobaldo por Diadorim com as forças presentes no tecido social que se manifestam por meio de
circunstâncias que determinam o destino das pessoas e que as leva a optar pelo Bem ou pelo Mal.
Mas, isso nos leva a perguntar: para Durst, o amor de Riobaldo por Diadorim representa o Bem
ou o Mal? Isso ele não responde claramente nos depoimentos, mas seu posicionamento em
relação a se discutir com mais vigor a questão do homossexualismo que, a seu ver, ficou
relegada a um segundo plano a partir do momento em que o telespectador sabe que Diadorim é
uma mulher (pois é vivido por Bruna Lombardi), leva-nos a inferir que, para ele, talvez, não se
quisesse colocar como saída a opção entre o Bem e o Mal, mas sim uma relação dialética. Porém,
como nota Morais (2000: 80), a relação entre o Bem e o Mal, na minissérie, não caminha pela via
da dialética, mas sim pela via do maniqueísmo:
(...) o narrador do livro, ao mesmo tempo afirma e nega o homossexualismo como conflito pessoal,
que se projeta através do fluxo de memória. Já no texto televisivo há a necessidade do clímax, daí
o reordenamento das seqüências. Por meio de fragmentos colados impõe-se um enredo
maniqueísta. Desta maneira, as lacunas, convite a interpretações, não são possíveis diante das
facilidades buscadas visando o entendimento pelos receptores.
Morais refere-se aqui principalmente à escalação de uma atriz talentosa e famosa, mais
por sua beleza e feminilidade, para viver a personagem Reinaldo/Diadorim, fato que desagradou
sobremaneira Durst. O roteirista, em diversas entrevistas, salientou que preferia que a identidade
feminina de Diadorim fosse preservada até praticamente o final da trama. Porém, para Avancini,
a escolha de Bruna Lombardi para viver a ambigüidade de Diadorim/Reinaldo era fato
consumado “desde 1982, quando GRANDE SERTÃO ensaiou uma arrancada (...)”. Para muitos
críticos, o conhecimento prévio da condição feminina de Diadorim, mostrada claramente no
segundo episódio da minissérie quando Reinaldo toma banho nu em um rio de águas límpidas e
transparentes, fez com que o tema da homossexualidade perdesse intensidade e demonstrasse um
certo receio da emissora e do diretor em debater tema tão explosivo.
373
Sobre essa possibilidade
de “censura”, gostaríamos de esclarecer que durante toda a pesquisa por nós efetuada não
373
Essa é a hipótese levantada por Narciso Lobo, Ficção e política, p. 202: “No entanto, a opção deliberada de não
deixar dúvida quanto ao sexo da protagonista, abre uma hipótese de difícil comprovação, mas que vale ser levantada,
mesmo como um simples exercício: não deixar ambigüidade quanto à identidade sexual de Diadorim seria a forma
de evitar a eclosão de um debate explosivo sobre a homossexualidade? Durante um mês e meio, até que tudo se
esclarecesse, esse poderia ser o tema das discussões.”
252
encontramos jamais qualquer depoimento ou entrevista de Avancini em que ele revelasse que a
opção de escolher Bruna Lombardi tivesse sido determinada por esse fator.
É preciso assinalar, no entanto, que se para a maioria dos críticos a escolha de Bruna
Lombardi foi infeliz, para outros, revelou-se “um achado”
374
.
Entretanto, para Balogh (2005: 186-187),
(...) a opção de escolher Bruna Lombardi por parte de Walter Avancini, diversa da de Walter Durst,
acabou prevalecendo. Este fato determinou uma remodelação profunda do universo cognitivo da
obra televisual, onde o /não saber/ de Riobaldo em relação à condição feminina de Diadorim,
compartilhado de ator e o leitor durante a maior parte do romance, permanece isolado na
minissérie, a sutileza do segredo e das pistas sobre o ser de Diadorim, o impacto da descoberta
desaparecem no televisual.
Na minissérie, o saber do telespectador é privilegiado em relação à condição feminina de
Diadorim; a esse telespectador resta saber em que circunstâncias o segredo da personagem será
desvendado e como Riobaldo reagirá a esse desvelamento. Instaura-se uma relação de
cumplicidade entre o telespectador e minissérie conforme destaca Rocco (1991: 119):
E como adaptar não é copiar, mas reter e recriar, com outros olhos, um determinado texto, tivemos
uma inversão magistral da narrativa de TV, quando, já no primeiro capítulo, nos vemos em frente
de um Diadorim-Bruna Lombardi que por si só encarna o sintagma definidor da feminilidade
brasileira.
O público, de pronto, passa a deter, em cumplicidade com o narrador do texto por imagens, o
segredo central da trama – o rapaz Diadorim é mulher – segredo que permanece vivo entre as
demais personagens que estão do lado de dentro do vidro do vídeo, exceto para o narrador.
Tal inversão revelou-se extremamente adequada ao veículo TV e conseguiu manter acesas a
ansiedade e atenção do telespectador por toda a exibição da minissérie.” (grifos da autora)
A relação de cumplicidade somente é possível, pois, como telespectadores, adentramos o
mundo da ficcionalidade e compartilhamos parcialmente com o narrador o prazer de
saber/imaginar possíveis desdobramentos da história, que ocorre diante de nossos olhos;
prevemos conflitos, criamos cenários possíveis, imaginamos desfechos dramáticos. Passamos a
viver intensamente “a realidade” da história e a deter, além dos conhecimentos previamente
adquiridos como telespectadores de ficção, um segredo da personagem; segredo esse
374
José Lino Grünewald, Mais vale meio Diadorim que um Roque inteiro, afirma: “Bruna Lombardi com os olhos
lindamente claros a irradiar o mistério de Diadorim representou um achado.”; em outra reportagem, Intelectuais
julgam “Sertão”, de Leão Serva, João Alexandre Barbosa dizia-se preocupado com o fato de os telespectadores
saberem de antemão que Diadorim era mulher: “A fábula do amor entre dois homens, um dos quais é mulher vai ser
mantida. Mas resta saber como vai ser traduzida a trama que conduz essa fábula, já que de antemão sabemos
Diadorim (Bruna Lombardi) é mulher.”
253
desconhecido por todas as outras personagens. Desloca-se, portanto, como dissemos, o eixo de
nossa atenção: queremos saber como e por que se guarda um segredo, pois se o segredo em si
perde o valor, ganham densidade suas causas e seus desdobramentos. O que leva uma mulher a
negar a si própria a condição feminina? Como se esconde a feminilidade? Que sociedade é essa
que não permite que uma mulher encontre referenciais femininos? Tantas outras perguntas, talvez
ainda sem respostas na ficção ou na realidade.
Pode-se ver nesse procedimento do diretor, a construção de um leitor-modelo guiado
pelas estratégias discursivas do autor-modelo (o diretor) que compartilha com o telespectador um
segredo mantido dentro do espaço da ficção, mas que é escancarado por meio de recursos
paratextuais (entrevistas a jornais, revistas, emissoras de rádio) que compõem o todo discursivo
referente à obra. Dentro do quadro teórico da estética da recepção, é também por meio de
elementos extratextuais que a obra se firma como tal, Jauss (2005: 55) argumenta:
No momento mesmo em que ela aparece, uma obra literária não se apresenta como uma novidade
absoluta surgindo num deserto de informação; por todo um jogo de anúncios, de sinais –
manifestos ou latentes -, de referências implícitas, de características já familiares, seu público é
predisposto a um certo modo de recepção. (tradução nossa)
Ainda mais quando se trata de um produto da indústria cultural que é cercado por todas
as estratégias possíveis de divulgação e de marketing como é o caso da minissérie, apresentada
por seu diretor como uma possível leitura do romance de Guimarães Rosa. Estudando as relações
entre literatura e televisão principalmente nos programas dedicados à literatura (ou ao livro) nas
emissoras de televisão na França, Peroni (1991: 196) argumenta que o autor, nessa situação de
divulgação, funciona como um mediador que estabelece relações entre o leitor e o texto que se
situam no nível extratextual. Essas relações contam com “(...) dispositivos de gestão da entrada
do leitor no texto.” Mostram-se os caminhos para o telespectador, porém esses caminhos não são
diretos e planos, ao contrário, são os caminhos tortuosos e labirínticos da narrativa
375
.
Dessa forma, usando a terminologia de Eco (1986, 1997), esboçam-se dois tipos de
leitores (ou telespectadores): o de primeiro nível e o de segundo nível. Partindo da definição de
leitor-modelo formulada por Eco e considerando Avancini o autor-modelo, cria-se o
telespectador-modelo não só por meio das estratégias discursivas intratextuais, mas também pelos
375
Impossível não lembrar do trecho do conto El jardin de senderos que se bifurcan, de Jorge Luiz Borges (1942),
em que a personagem Ts’ui Pên compara o livro a um labirinto quando diz: “Me retiro a escribir um libro. Me retiro
a construir um laberinto.”
254
discursos legitimadores/interpretativos que se constroem paratextualmente, os quais, de uma ou
de outra maneira, vão influenciar o telespectador.
No caso de Reinaldo/Diadorim-Bruna Lombardi desloca-se o foco de atenção da questão
homossexual para a questão do drama interior vivido pela personagem que encarna a violência de
que é vítima a mulher sertaneja. Bruna Lombardi, afirma que procurou na composição da
personagem “não um homem ou uma mulher” mas a “neutralidade” e que:
(...) o mais violento foi a própria violência do personagem, a violência contida que Diadorim
carrega. Isso foi o mais dolorido no processo de criação. Carregar a dor de Diadorim é arrebentar-
se por dentro, porque é um personagem mexe com a pessoa, com a essência do ator, que só se
consegue trabalhá-lo em profundidade. (Press release: 19)
É ainda Bruna Lombardi quem afirma:
Guimarães Rosa foi muito longe, muito profundo no que escreveu. Ele não discute apenas o
homossexualismo, a escala de valores do sertão, mas a própria questão da mulher. Qual é o destino dessa
mulher? Ser estuprada, raptada, prostituída, ou – e é o mais suave que lhe pode acontecer – ter uma vida
anônima, sem atuação. Diadorim não quis isso, foi forte e se impôs no mundo masculino. Agora, o peso
disso está na renúncia, na contenção, que foi sua vida. E toda contenção dói muito Tudo que você deixa de
viver ou fazer é muito dolorido. (Press release:19-20)
Portanto, segundo a atriz, o homossexualismo não é o principal tema do romance, ganha
destaque a condição feminina, o amor impossível de ser correspondido. Seguindo esse raciocínio,
o amor entre os dois protagonistas não se concretiza em razão da própria condição feminina de
Diadorim que, ao se entregar a Riobaldo, perderia sua condição igualitária (entre homem e
mulher) e deveria assumir a posição subalterna que a sociedade lhe impõe. A maior luta de
Didadorim continua sendo a luta pela liberdade, mas não a liberdade num sentido amplo, sua
liberdade se restringe a ser responsável e guardiã de sua própria vida.
Durst (Press release: 11) também se mostra preocupado com a condição feminina
retratada no romance:
As mulheres, então, não tinham qualquer direito, eram personalidades obscuras, as quais só restava
aguardar o momento do estupro ou da passagem pela vida absolutamente passiva. Nisso reside a
explicação do por que Diadorim teria optado pela vida masculina, no sertão, combatendo.
A violência contra Diadorim fica evidente em diversas passagens da minissérie em que ela
é confrontada não com as esperadas e “naturais” situações de luta ou de brutalidade física, mas,
sobretudo, com situações de forte densidade psicológica em que deve se conter como mulher e
255
aceitar o desejo de Riobaldo por outras mulheres ou mesmo conter o desejo dele com medo de
colocar a perder seu disfarce. Na minissérie, essas passagens não deixam dúvida: Diadorim
explode por dentro a cada “traição” de Riobaldo. Traição que pode ser o encontro com outra
mulher ou a desvalorização de pessoas que Diadorim preza, por exemplo, quando Riobaldo, por
ciúme, começa a colocar sob suspeita os feitos e o comando de Joca Ramiro. Essa transformação
ocorre também devido à mudança operada no foco narrativo (substituição personagem-narrador
do livro pelo narrador onisciente da minissérie).
Lembramos que a década de 1980 foi bastante marcante dentro do quadro dos
movimentos nacionais e internacionais pelos direitos da mulher. Movimentos esses que ganharam
força a partir da I Conferência Internacional da Mulher realizada pela ONU na Cidade do
México em 1975, ano que passou a ser denominado Ano Internacional da Mulher. Durante essa
conferência determina-se que 8 de março passe a ser considerado o Dia Internacional da Mulher.
Também durante essa conferência é iniciada a Década da Mulher (1975-1985). É de junho de
1977 a emenda constitucional que estabeleceu o divórcio no Brasil.
Além disso no Brasil, o final da década de 1970 é marcado por uma série de assassinatos
de mulheres por seus “companheiros” que alegavam perda temporária da razão para cometer ato
tão extremado; ou seja, tratava-se de crime passional. Não se tratava, evidentemente, de um fato
novo, já que boa parte das mulheres, ao longo da história, foi vítima de atos de violência
realizados por seus companheiros e homens em geral. Porém, o clima social na década de 1970
exigia novos posicionamentos por parte das mulheres. Como resposta a esses assassinatos, os
movimentos femininos da época criaram um lema para mobilizar a sociedade: “quem ama não
mata”. A grande movimentação dos setores ligados à defesa dos direitos da mulher reverteu, em
boa parte dos julgamentos de homens que assassinaram as companheiras, a situação em favor das
mulheres. Eram casos em que havia a tendência de se considerar inocente o homem que
“mata[va] por amor”
376
.
376
Eva A. Blay, Violência contra a mulher e políticas públicas, lembra: “Um forte movimento pela defesa da vida
das mulheres e pela punição dos assassinos voltou a ocorrer na década de 1970, tendo seu auge após 30 de dezembro
de 1976, quando Angela Diniz foi morta por Doca Street, de quem ela desejava se separar.
A morte de Angela e a libertação de seu assassino levantaram um forte clamor das mulheres que se organizaram em
torno do lema: "quem ama não mata". Pela segunda vez na história brasileira, repudiava-se publicamente que o amor
justificasse o crime.
Acostumado à subserviência conservadora, Lins e Silva, defensor de Doca, revelou seu espanto ante a extraordinária
pressão popular que acompanhou o julgamento. O caso teve enorme repercussão não só no Brasil, mas também no
exterior, havendo "publicidade nunca vista" sobre este caso, reclamou Lins e Silva (...). Grande controvérsia ocupou
a imprensa (...) acirrando-se a polêmica contra os direitos humanos das mulheres. Os jornalistas Paulo Francis e
256
O lançamento da minissérie Quem ama não mata
377
, em setembro de 1982, pela Rede
Globo de Televisão revela, em certa medida, a repercussão das discussões e movimentos gerados
como uma resposta à situação de violência contra as mulheres. Também entre 1979 e 1980 fazia
sucesso o seriado Malu Mulher
378
considerado um marco na apresentação de temas femininos e
feministas na televisão brasileira. No segmento jornalístico, em 1980, tinha início o programa TV
Mulher
379
, comandado pela jornalista Marília Gabriela. Esse programa foi considerado inovador,
pois possuía um enfoque centrado em informações com quadros que tratavam de sexualidade e de
direitos da mulher. Aliás, a própria presença de dois programas levados ao ar concomitantemente
com a palavra mulher (Malu Mulher e TV Mulher) dimensionam, em certa medida, a importância
desse tema na grade de programação, o que, segundo vimos, para Jost (1997) também se
configura como uma instância de enunciação por meio da qual se ouve a “voz” da rede de
televisão por meio da qual é possível discernir a intencionalidade da emissora enquanto
enunciadora.
380
A grande aceitação internacional do seriado Malu Mulher evidenciada pelos altos
índices de audiência e pelos prêmios internacionais que recebeu demonstram que, naquela época,
a temática em torno dos direitos da mulher estava em alta no mundo ocidental.
Tristão de Ataíde mostraram-se indignados contra as feministas e suas manifestações públicas que, segundo eles,
pré-condenaram o réu; Lins e Silva (...) irritou-se com a repercussão que transformou uma "briga entre amantes em
acontecimento nacional". Referiu-se ao "incidente" como se a vítima estivesse viva. Os prestigiados jornalistas e o
advogado consideraram ilegítima a pressão da opinião pública nestes crimes contra mulheres justificados pelo amor.”
377
A minissérie Quem ama não mata, escrita por Euclydes Marinho e dirigida por Daniel Filho, teve 20 capítulos e
foi ao ar de 12.07 a 06.08.1982. Segundo o Dicionário da Globo p. 309: “A minissérie inspirou-se em crimes
passionais que haviam mobilizado a opinião pública na época. O título veio de uma frase que as feministas pichavam
nos muros de Belo Horizonte, na época do julgamento de Doca Street, assassino de (...) Ângela Diniz: “Quem ama
não mata”.”
378
O seriado Malu Mulher, criação de Daniel Filho, Armando Costa, Lenita Plonczinska, Renata Pallottini e
Euclydes Marinho, direção geral de Daniel Filho, esteve no ar de 24.05.1979 a 22.12.1980 e conheceu grande
sucesso no Brasil e no exterior. Foi vendido para 52 canais de televisão de diversos países. O seriado apresentava a
luta de uma mulher recentemente divorciada para recomeçar sua vida. (DG 386-388)
379
TV Mulher, de 07.04.1980 a 27.06.86, de 2ª. a 6ª. Feira, das 9 às 12h. Direção geral: Nilton Travesso (até março
de 1986) e Régis Cardoso. (DG 598). O programa TV Mulher conseguiu grande repercussão entre as mulheres, pois
tratava de seus problemas de maneira inovadora: “A partir do surgimento do programa TV Mulher, da Rede Globo,
os programas femininos adquiriram diferentes formatos e foram muito veiculados em todas as emissoras, não se
restringindo mais aos problemas domésticos e incluindo discussões como os direitos da mulher, o posicionamento
feminino na sociedade e a mulher como profissional.” In: http://www.tvgazeta.com.br/historia/80.php
, capturado em
06.06.06
380
François Jost, Quand y a-t-il énonciation telévisuelle?, p. 5-8, discutindo a intencionalidade da grade de
programação afirma: “(...) eu acredito que a programação permite escutar duas vozes. A primeira é aquela da rede
como responsável pela programação. Essa intencionalidade que vou encontrar na programação, eu diria que ela é
mais largamente deixada à apreciação do pesquisador. O pesquisador será capaz de dizer: nessa programação, há
uma determinada intencionalidade (...). (...) A segunda é (...) através dos apresentadores, da voz em off (...)”
(tradução nossa)
257
Porém, é somente em meados da década de 1980 que políticas públicas começam a ser
implementadas para fazer frente à situação de violência que afligia as mulheres brasileiras.
381
Entre essas políticas, estão a criação de delegacias de polícia especializadas no atendimento a
mulheres vítimas de violência e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, instituído por lei
federal de agosto de 1985.
Levando-se em consideração o contexto social de meados da década de 1980, marcado
pelos fatos e movimentos acima referidos, não é de se estranhar que a questão da mulher
reprimida e violentada seja evocada por Bruna Lombardi ou por Durst para falar de Diadorim
382
.
De certa maneira, surge como discussão uma questão bastante presente no “tecido social e suas
circunstâncias” (Durst: Press Release: 10)
Sob essa perspectiva, realmente, a proposta de Durst de se trabalhar com mais ênfase a
questão da homossexualidade na televisão brasileira ficou em segundo plano, ganhou força o
drama existencial e amoroso de Diadorim. Na minissérie, a homossexualidade foi apresentada
como uma tentação a ser castigada e destruída pela penitência e pela fé. As inserções de imagens
e de sons de animais que simbolizam o pecado, o mal (cobra, relinchar de cavalos, olho de boi)
quando Riobaldo sente desejo por Diadorim e as cenas em que Riobaldo recorre a uma espécie de
auto-flagelamento reforçadas pelas rezas em que pede a Deus ou à Nossa Senhora da Abadia
que o livre daquele pecado fazem com que o homossexualismo seja associado sempre ao mal
383
.
Talvez seja interessante lembrarmos as palavras de Tomachevski a fim de
compreendermos o tratamento temático dedicado a Diadorim na minissérie. Segundo o estudioso
russo, “a escolha do tema depende estreitamente da aceitação que encontra junto ao leitor.”
(Tomachevski 1976: 169), uma vez que “a figura do leitor está sempre presente na consciência
381
Lia Zanotta Machado, Atender vítimas, criminalizar violências. Dilemas das delegacias da mulher, p. 2, informa:
“As delegacias especializadas em defesa dos direitos das mulheres foram resultado do movimento feminista
brasileiro, dos anos 80, e sua criação é uma inovação brasileira. No final dos anos oitenta e nos noventa, esta
inovação institucional tem efeito na América Latina. Tanto foram criadas delegacias especializadas das mulheres,
como foram criadas delegacias especializadas sobre a violência familiar e doméstica.”
382
Aliás, a própria presença de dois programas levados ao ar concomitantemente com a palavra mulher (Malu
Mulher e TV Mulher) dimensionam, em certa medida, a importância desse tema na grade de programação, que,
segundo vimos, para Jost (1997) a grade de programação de uma emissora também se configura como uma instância
de enunciação.
383
Embora não seja nosso objetivo comparar o romance à minissérie, gostaríamos de lembrar que no livro fica mais
caracterizado o caráter ambivalente de Diadorim, aliás ambivalência presente em todas as personagens e conflitos do
livro, inclusive no espaço como analisa Antonio Cândido, in: O homem dos avessos in Tese e Antítese, p. 125:
“Simbolicamente, eles vão e vêm de uma a outra margem, cruzando e tocando as duas metades qualitativas do
Sertão, do Mundo, pois Diadorim é uma experiência reversível que une fasto e nefasto, lícito e ilícito, sendo ele
próprio duplo em sua condição.”
258
do escritor, embora abstrata, exigindo o esforço deste para ser o leitor de sua obra.”
(Tomachevski 1976: 170). Acreditamos que, talvez, o tratamento mais aligeirado em relação ao
homossexualismo reflita não apenas uma tendência em se acreditar que esse tema não seria bem
recebido pelo grande público, enquanto a idéia de uma mulher, que precisa se disfarçar de
homem, para viver com certa dignidade, pudesse parecer mais apropriada para um público
majoritariamente feminino que assiste às minisséries e às telenovelas. Acreditamos também que o
tema da mulher aviltada como ser humano reflita e refrate as discussões que mobilizavam a
opinião pública em meados da década de 1980.
Entretanto, não acreditamos que a opção pela escolha de uma atriz conhecida para o papel
de Diadorim, tenha sido apenas uma simples conseqüência das estratégias comerciais ditadas pelo
star system (Morin 1989), conforme considera de maneira clara ou velada boa parte dos artigos
de jornais e revistas analisados em nossa pesquisa, ou vê-la ainda como sinal da teimosia do
diretor da minissérie
384
. Oliveira (1999: 68) contesta parcialmente essa visão e argumenta:
No Brasil, as estrelas da Globo se tornaram talvez a principal referência para o grande público, e
sua presença em grande parte das produções do finalmente revitalizado cinema nacional, assim
como as casas cheias nas peças de teatro das quais participam, principalmente em turnês fora dos
384
Restringimo-nos aqui a citar apenas algumas matérias publicadas na imprensa; de fato, praticamente a totalidade
do material produzido pela imprensa que constitui o corpu de pesquisas, faz alusão à escalação de Bruna Lombardi
para viver Diadorim. Além disso, a maioria das fotos ilustrativas dessas matérias mostra Bruna Lombardi, em cena
como Diadorim, em primeiro plano ao lado de Tony Ramos e de outros jagunços ou em fotos em que a atriz aparece
sozinha segurando armas. Podemos encontrar uma alusão ao star system da Rede Globo no seguinte comentário na
matéria assinada pela sigla I.F no jornal Gazeta do Ipiranga, 14.11.1985, intitulada: Grande Sertão, simplicidade e
emoção: “Mas a garantia maior está no trabalho dos atores – mérito quase exclusivo do diretor Avancini -. Ele não
vacila em tirar o melhor de Bruna Lombardi, sem se preocupar em travesti-la de homem, como pede o enredo. Com
isso, o caso de amor entre Diadorim e Riobaldo acaba com contornos mágicos ao lidar com paixões e dramas de
consciência. Tudo no melhor estilo global.” Em crítica não assinada publicada no Jornal do Brasil, de 11.12.1985,
com o título A arte de recriar a arte, elogia-se o desempenho de Bruna Lombardi: Um exemplo é o bom desempenho
de Bruna Lombardi que, na maioria de suas cenas consegue escapar à caricatura, superando o equívoco básico de se
escolher uma atriz conhecida para o papel.” Mario Sergio Conti em artigo publicado na revista Veja, 20.11.1985,
com o título Vereda Linear também manifesta um certo desagrado diante da escolha de Bruna Lombardi para viver
Diadorim: “O maior problema da minissérie é que ela exige cumplicidade do telespectador no sentido de acreditar,
junto com Riobaldo, que o Diadorim interpretado por Bruna Lombardi é um homem de verdade. Nem um cego
acreditaria nisso, pois a voz da atriz é acabadamente feminina em todos os tons e timbres.” Em reportagem intitulada
Em Minas Gerais a Globo revive o “Grande Sertão”, Folha de S. Paulo, 31.05.1985,p. 41, Âmbar de Barros afirma:
“Viver o fascinante Diadorim, para Bruna Lombardi, é uma oportunidade de ouro para calar (ou reforçar) as críticas
dos que vêem nela apenas uma cara bonita.”
Na reportagem Grande Sertão: Veredas, publicada no Jornal do Brasil, de 18.11.1985, Caderno B, p. 6, Miriam Lage
recolhe apresenta a seguinte afirmação de Walter Avancini sobre a escolha de Bruna Lombardi e seu desempenho
como atriz ao conseguir “transpirar a riqueza interior”do personagem de Guimarães Rosa: “Nisso, também, Bruna
Lombardi vinha a calhar. E, hoje, com o resultado nas mãos, vejo que não errei. Ela despojou-se de toada urbanidade
e se integrou magnificamente no papel e no clima das gravações. A tal ponto que a jagunçagem, usada na figuração,
tinha um comportamento masculino diante dela.”
259
grandes centros, indicam que a escolha de “grandes nomes” ou “caras conhecidas” não é um
estratégia exclusiva televisão.
É inegável que a televisão manipula, e que usa de seu poder na manutenção de seus próprios
interesses, e nesse sentido as críticas à escolha de Bruna Lombardi para interpretar Diadorim são
pertinentes do ponto de vista daqueles que querem preservar sua própria leitura ou “imagemdo
livro. Resta saber se é possível produzir sem de alguma forma manipular, no sentido estrito de
interferir, agir sobre. (grifos do autor)
Com certeza, há também influência do chamado star system na escalação dos atores que
trabalharam na minissérie Grande Sertão: Veredas e essa influência não se manifesta apenas na
escolha de Bruna Lombardi; todos os outros atores e atrizes da minissérie (Tony Ramos, Tarcísio
Meira, Yoná Magalhães, Rubens de Falco, Ney Latorraca, entre outros) são artistas famosos
385
com grande prestígio na emissora e junto ao público telespectador. Entretanto, gostaríamos de
ampliar a análise estendendo nossa reflexão ao conceito de ideologia do cotidiano desenvolvido
por Bakhtin (2002).
Bakhtin (2002: 118) compreende a ideologia do cotidiano como “(...) a totalidade da
atividade mental centrada sobre a vida cotidiana, assim como a expressão que a ela se liga (...)
para distingui-la dos sistemas ideológicos constituídos, tais como a arte, a moral, o direito, etc.”.
Entretanto, não se deve imaginar que a ideologia do cotidiano corresponda a um nível de
expressão da linguagem e conseqüentemente da ideologia que se restrinja às interações
familiares, intra-grupais; ao contrário, a dimensão dialógica da teoria bakhtiniana permite
conceber que:
Os sistemas ideológicos constituídos da moral social, da ciência, da arte e da religião cristalizam-se
a partir da ideologia do cotidiano, exercem por sua vez sobre esta, em retorno, uma forte influência
e dão assim normalmente o tom a essa ideologia. Mas, ao mesmo tempo, esses produtos
ideológicos constituídos conservam constantemente um elo orgânico vivo com a ideologia do
cotidiano; alimentam-se de sua seiva, pois, fora dela, morrem, assim como morrem, por exemplo, a
obra literária acabada ou a idéia cognitiva se não são submetidas a uma avaliação crítica viva.
(BAKHTIN 2002: 119)
Essa relação orgânica e ininterrupta entre a ideologia do cotidiano e os sistemas
ideológicos constituídos permite a estes últimos a renovação dada pelo sopro da criação e da
crítica advindo do tecido social e das relações de linguagem permeadas pelo caráter ideológico da
palavra, do signo. Por meio dessa inter-relação intensa e ininterrupta,
385
Julgamos que não há necessidade de apresentar dados detalhados a respeito dessa afirmação, uma vez que os
atores a que me refiro são nomes consagrados que até hoje participam das produções da Rede Globo onde gozam de
grande prestígio artístico. Além disso, esse detalhamento nada acrescentaria a nossa discussão principal.
260
a obra estabelece (...) vínculos com o conteúdo total da consciência dos indivíduos receptores e só
é apreendida no contexto dessa consciência que lhe é contemporânea. A obra é interpretada no
espírito desse conteúdo da consciência (dos indivíduos receptores) e recebe dela uma nova luz.
(BAKHTIN 2002: 119)
Explorando a relação entre ideologia do cotidiano e o sistema ideológico constituído pela
televisão e pela minissérie enquanto complexas instâncias de enunciação, podemos interpretar o
aligeiramento da discussão da questão da homossexualidade em favor de um enfoque mais
feminista da personagem Diadorim como uma espécie de manifestação dos níveis superiores
386
da ideologia do cotidiano em uma obra artística. Segundo Bakhtin (2002: 120), os níveis
superiores da ideologia do cotidiano “(...) são capazes de repercutir as mudanças da infra-
estrutura sócio-econômica mais rápida e distintamente. Aí justamente é que se acumulam as
energias criadoras com cujo auxílio se efetuam as revisões parciais ou totais dos sistemas
ideológicos.”
Seguindo esse raciocínio, consideramos os programas acima mencionados, a minissérie
Quem ama não mata e o seriado Malu Mulher, como expressão dos níveis superiores da
ideologia do cotidiano nesse pequeno recorte efetuado na programação da Rede Globo de
Televisão na década de 1980. Ideologia do cotidiano prenhe de manifestações e reivindicações
dos movimentos feministas em busca da igualdade de direitos. Assim, os programas que tratavam
da condição da mulher na sociedade brasileira
387
obtinham sucesso porque estabeleciam laços,
encontravam ressonância com os níveis superiores da ideologia do cotidiano, pois, de acordo com
Bakhtin (2002: 119):
É apenas na medida em que a obra é capaz de estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto
com a ideologia do cotidiano de uma determinada época, que ela é capaz de viver nessa época (é
claro nos limites de um grupo social determinado). Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois
deixa de ser apreendida como ideologicamente significante.
386
Mikhail Bakhtin, Marxismo e filosofia da linguagem, p. 120, distingue dois níveis de ideologia presentes na
ideologia do cotidiano: o nível inferior e o nível superior. No nível inferior, encontram-se “as atividades mentais e
pensamentos confusos e informes que se acendem e se apagam em nossa alma, assim como as palavras fortuitas ou
inúteis.” Já “os níveis superiores da ideologia do cotidiano que estão em contato direto com os sistemas ideológicos,
são substanciais e têm um caráter de responsabilidade e de criatividade.”
387
No caso do seriado Malu Mulher, podemos estender essa aceitação do público a um grande número de países,
uma vez que dezenas de redes de televisão estrangeiras compraram e exibiram com sucesso as lutas da socióloga
Malu.
261
Diadorim/Bruna Lombardi, dentro desse quadro de análise, ganha força em sua dimensão
mais feminina e menos homossexual. Esse enquadramento permite-nos compreender a escolha de
Bruna Lombardi para o papel e o conseqüente deslocamento das possíveis interpretações do
público em relação à problemática da sexualidade como expressão da relação orgânica entre os
níveis superiores da ideologia do cotidiano e a ideologia dos sistemas constituídos (a mídia
televisiva entre eles).
Dito de outra forma, a escalação de Bruna Lombardi, que pode ter ocorrido por diversos
fatores entre os quais a lógica subjacente ao star system (Morin 1986), reflete e refrata as relações
orgânicas e ininterruptas entre a ideologia do cotidiano e a ideologia dos sistemas constituídos,
incluindo nesses espaços simbólicos novos significados, novas formas de compreensão da
condição feminina na sociedade. É justamente por meio dessa inter-relação (obviamente não
apenas restrita à minissérie ou aos programas de televisão) entre a ideologia do cotidiano e a
ideologia dos sistemas constituídos que estes últimos se modificam: “logo que aparecem, as
novas forças sociais encontram sua primeira expressão e sua elaboração ideológica nesses níveis
superiores da ideologia do cotidiano, antes que consigam invadir a arena da ideologia oficial
constituída.” (Bakhtin 2002: 120). De acordo com esse pensamento, podemos entender como os
programas de televisão, ou as obras artísticas em geral, precedem as políticas públicas.
Por outro lado, a questão do destino da gente pobre refém dos poderosos fazendeiros e
políticos locais não sofre aligeiramento; ao contrário, é mostrada com clareza. Aos conflitos
políticos e às batalhas sangrentas entre os diversos fazendeiros chefes de jagunços e o governo
federal são acrescidas as disputas locais, os dramas humanos dos que lutam por um ideal de
lealdade e de “justiça” e daqueles que apenas pedem um prato de comida. A minissérie apresenta
claramente as diferenças entre ricos e pobres; entre fazendeiros e agregados; entre fazendeiros e
jagunços, entre jagunços e população em geral.
A primeira cena em que fica bem marcada a grande diferença entre a população das vilas
e os “poderosos” ocorre no episódio dois, quando Zé Bebelo, na condição de chefe dos homens
pagos pelo governo, chega a uma vila festejando com salvas de tiros sua vitória sobre Ricardão,
dizendo que está com fome e quer saber onde lhe será oferecido um “banquete político”.
A mesa, posta sob a proteção de um telhado e de uma espécie de cerca que separa os
convivas da população que se aglomera em torno deles, é farta. Há travessas e gamelas cheias de
comida (carne, farofa) e frutas. Riobaldo e os chefes locais (usando terno e gravata) estão
262
sentados à mesa; à cabeceira da qual se encontra Zé Bebelo. No início da refeição, Zé Bebelo faz
um discurso enaltecendo suas qualidades e as do governo.
Venho aqui prometer muita coisa republicana. E a primeira é essa: o fim do jaguncismo. Sim, sôr.
Essa é a promessa de Zé Rebelo Vaz Antunes, o chamado Zé Bebelo. Porque nós acaba de
começar e vocês vão ver. Zé Bebelo promete uma coisa ... assina embaixo. E valei-me o governo.
Viva o nacional. Viva! [todos à mesa dão viva]
À fartura da mesa contrapõem-se os rostos magros dos idosos sem dentes e das crianças
desejosas de um pouco de comida. Mostram-se alternadamente cenas em que aparecem os
homens comendo e cortando carnes enquanto a população faminta olha. Os famintos chegam a
mexer a boca como se estivessem comendo. Alimentam-se de ar e de palavras, enquanto os
poderosos se refestelam em seu “banquete político”. A seguir, apresentamos parcialmente cenas
desse banquete.
Figura 11.1 Figura 11.2 Figura 11.3
Figura 11.4 Figura 11.5 Figura 11.6
Figura 11.7 Figura 11.8 Figura 11.9
263
Figura 11.10 Figura 11.11 Figura 11.12
Figura 11.13 Figura 11.14 Figura 11.15
Figura 11.16 Figura 11.17 Figura 11.18
Figura 11.19 Figura 11.20 Figura 11.21
264
Na minissérie, há apenas dois momentos
388
em que a população de uma vila aparece
reunida; o primeiro momento ocorre no primeiro episódio da minissérie quando Jisé Simpilício é
exorcizado pelo padre diante dos moradores do arraial. Nesse segundo momento, durante o
banquete político, em vez de alimento, a população só tem acesso às palavras de um discurso sem
sentido. Um discurso cujas palavras não encontram ressonância nas pessoas que as ouvem. Não
há respostas, apenas indiferença, a impossibilidade de comunicação se apresenta, pois “a palavra
está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que
compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias
ideológicas ou concernentes à vida.” (BAKHTIN 2002: 95 – grifos do autor). E as palavras de Zé
Bebelo, embora ditas para uma platéia grande, comunicam-se somente com uma diminuta parcela
dela, porque para a outra grande parcela as palavras não possuem significado. Os temas do
discurso de Zé Bebelo: o fim do jaguncismo, não interessa aos ouvintes; parece que o tema não
interage com o gênero do discurso, não há “uma unidade orgânica” (BAKHTIN 2002: 43) Enfim,
o enunciado perde sua principal propriedade: a responsividade. Não há alternância de sujeitos do
discurso, não há interlocução. Enfim, não há comunicação.
Para dar continuidade à interpretação dessas cenas, evocamos as palavras de Bigrí a
Riobaldo, logo no primeiro episódio da minissérie, quando ela , diante da relutância de Riobaldo
em mandar rezar missa com a metade do dinheiro que arrecadara pedindo esmolas no porto do rio
de-Janeiro - a outra metade, a mando da mãe, fora colocada dentro de uma cabaça e jogada por
Riobaldo no rio para chegar até Bom Jesus na Bahia – ao mesmo tempo, que o aconselha e prevê
seu futuro:
“A missa meu filho ... Num fica no meio da promessa não. Deus dá com uma mão o diabo tira com
a outra. Fé, Riobaldo. Humildade diante de Deus, mo filho. Que é que cê pode ser: padre-sacerdote
se não jagunço.”
Não há outro futuro para a gente pobre que sobrevive de prestar pequenos serviços aos
fazendeiros e aos comerciantes em troca de comida e de alguns trapos para se vestir ou, em uma
388
Outra situação em que aparece uma vila com sua população ocorre quando, sob o comando de Zé Bebelo, os
jagunços atravessam a vila de Sucruiú. Mas, nesse caso, a população não aparece, vêem-se alguns vultos, pois as
pessoas estão escondidas pela fumaça proveniente da queima dos montes de estrume que, supostamente, serviria para
aplacar a bexiga preta. Em outras ocasiões em o bando entrou em vilas, como no Paredão, por exemplo, a população
havia fugido lugar.
265
condição ainda mais servil, como agregado
389
. Principalmente para Riobaldo, que nem o pai
conhecia e que vivia com a mãe doente (que era agregada). Salta aos olhos a falta de opções para
o futuro do menino e as injunções sociais que determinam o destino dessa criança. Destino esse
traçado não pela mão divina, mas pelo tecido social que torna o menino criado à barra da saia da
mãe um futuro jagunço pronto a dar seu único bem, a vida, em troca de um pouco de respeito e
de dinheiro ou um futuro sacerdote que, igualmente, doará sua vida. Assim, fica claro que o
“tecido social e as circunstâncias” (Durst: Press release: 10) , circunstâncias essas talvez
pensadas em termos do encontro iniciático de Riobaldo com Reinaldo-menino - que provocaria
uma tremenda atração pelo menino “dessemelhante”
(GSV 120)
- determinam o futuro de Riobaldo.
Dessa forma, o acabamento temático e estético dos elementos narrativos da minissérie
produz uma certa coerência no plano das questões sociais, tema importante na visão de Durst. Se
por um lado, o tema do homossexualismo perde força em termos de conflito existencial e social;
por outro, ganha força a questão não apenas da sexualidade mas do próprio ser humano em sua
dimensão ontológica; pois tanto homens quanto mulheres do sertão são seres humanos destituídos
de liberdade, são seres destinados a servir aos poderosos sem receber nada em troca. Apenas,
talvez, o direito de viver. Evidencia-se também que, mesmo dentro da hierarquia perversa
determinada pelos poderosos, há níveis de poder que se mostram mais “às brutas”
(GSV: 39)
e eles
são mais duros em relação às mulheres - os estupros freqüentes, o futuro quase inexorável de se
tornarem prostitutas -, às crianças, aos velhos e aos desvalidos em geral. Entre outros casos,
lembramos o rapto de Guirigó, a “convocação” do cego Borromeu e dos catrumanos, todos atos
feitos ou ordenados por Riobaldo/Urutu Branco. O quadro social da luta de classes está na
minissérie provavelmente em todas as suas dimensões, algumas pintadas com cores mais fortes,
outras com menos intensidade, mas com certeza com grande força dramática.
De acordo com essa análise, poderíamos classificar os temas referidos por Durst no quinto
grupo de obras que abordam Grande Sertão: Veredas, ou seja, entre aquelas que vêm a obra do
escritor mineiro dentro do paradigma das explicações sociológicas, históricas e políticas (Bolle
2004: 20).
389
Segundo R. Facó, apud Willi Bolle, Grandesertão.com, p. 153: Quando um coronel latifundista admitia um
morador em sua fazenda, não necessitava sequer contratar-lhe os sérvios, como parcela de seu seu exército privado
[...]. Isto já estava implícito no próprio fato de admiti-lo.”
266
11.2. Religiosidade
O roteirista colaborador, José Antonio de Souza, tem uma visão bastante diferente da de
Durst a respeito dos principais temas da obra de Guimarães Rosa. Poderíamos classificar sua
visão entre aquelas leituras que consideram Grande Sertão: Veredas sob o prisma das análises
metafísicas. Souza (press release p. 14) define Grande Sertão: Veredas “(...) como um épico
religioso, em cuja trajetória Riobaldo procura a santidade. À semelhança do povo brasileiro.”
Segundo ele, essa interpretação da obra de Guimarães Rosa só lhe foi possível no momento em
que trabalhava sobre o roteiro:
Sempre pensei que GRANDE SERTÃO fosse um épico marcial, guerreiro, mas descobri que é um
épico religioso, que Riobaldo, em sua travessia, procurava a paz interior, a tranqüilidade. Ele tinha
qualidades de guerreiro, era um excelente atirador, mas o que sobressaía nele era sua procura por
Deus. Num determinado momento, ele até se afasta de Deus, mas, no fundo, o que procura é a
santidade interior. Vejo isso também como uma travessia do povo brasileiro que, em sua síntese,
também procura Deus. Se pensarmos que o último ídolo nosso, Tancredo Neves, era um homem
profundamente religioso, e que morreu como um mártir, quase um santo, isso comprova a
necessidade religiosa do nosso povo. É uma procura mística, com deuses que assumem vários
nomes. Mas fundamentalmente é uma procura religiosa, de paz interior. (Press release: 14)
Souza interpreta Grande Sertão: Veredas como o relato da busca da paz interior de um
homem brasileiro. Paz interior que se alcança por meio da religiosidade. Riobaldo,
metonimicamente, representaria a própria busca da religiosidade do povo brasileiro.
Religiosidade presente nos dias de hoje, quando homens políticos são associados a santos (como
foi o caso de Tancredo Neves, citado por Souza). É interessante verificarmos que, para este
roteirista, a busca interior está ligada à idéia de religiosidade, ou seja, não se trata de um
sentimento vago, abstrato, mas sim de algo que pode ser representado por meio de rituais,
adereços e imagens. Riobaldo, no romance, explica:
Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas.
Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer,
desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma... Muita religião, seu
moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...Uma só, para mim
é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre
meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é
crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me
quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o
tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe!
Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu não
tresmalho!” (GSV: 32)
267
A religiosidade de Riobaldo no romance é de certa forma ecumênica, na verdade pode-se
dizer que Riobaldo professa todas as religiões porque, em última análise, não se sente seguro em
nenhuma delas com relação a seu maior medo: o demo. Sua preocupação diante das forças do mal
se revela tão forte que ele chega a propor uma assembléia de sábios para proclamar o fim do
diabo:
Olhe: o que devia de haver, era de se reunirem-se os sábios, políticos, constituições gradas,
fecharem o definitivo a noção – proclamar por uma vez, artes assembléias, que não tem diabo
nenhum, não existe, não pode. Valor de lei! Só assim, davam tranqüilidade boa à gente. Por que o
Governo não cuida?! (GSV: 31)
Por isso, encomenda rezas e aceita “serviços” em todas as religiões que conhece, para se
proteger do demo que aparece sob todas as formas e está “em tudo”
390
. “A imagem original que o
narrador tem dele próprio, desde o começo, depende, pois, em larga parte, de sua interpretação
pessoal do sagrado, que aflora continuamente no meio “inculto” a que ele pertence.” (UTÉZA
1994: 70)
em Grande Sertão: Veredas elementos que remetem à superstição e à religiosidade
de um narrador ambíguo que ao mesmo tempo busca racionalizar suas experiências
passadas dentro de um quadro em que procura ponderar seus atos e amores antigos sob a
perspectiva de um homem que se dizia (e se diz) diferente dos outros, pois, além de mais
escolaridade, possuía um caráter que não admitia ser mandado:
Bem, mas o senhor dirá, deve de: e no começo – para pecados e artes, as pessoas – como por que
foi que tanto emendado se começou? Ei, ei, aí todos esbarram. Compadre meu Quelemém,
também. Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado. Inveja
minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração. Não é que eu esteja
analfabeto. Soletrei, anos e meio, meante cartilha, memória e palmatória. Tive mestre, Mestre
Lucas, no Curralinho, decorei gramática, as operações, regra-de-três, até geografia e estudo pátrio.
Em folhas grandes de papel, com capricho tracei bonitos mapas. Ah, não é por falar: mas, desde o
começo, me achavam sofismado de ladino. E que eu merecia de ir para cursar latim, em Aula
Régia – que também diziam. Tempo saudoso! Inda hoje, apreceio um bom livro, despaçado. Na
fazenda O Limãozinho, de um meu amigo Vito Soziano, se assina desse almanaque grosso, de
logogrifos e charadas e outras divididas matérias, todo ano vem. Em tanto, ponho primazia é na
390
Riobaldo confia mais nas rezas que nos seus feitos como homem religioso: “Olhe: tem uma preta, Maria
Leôncia, longe daqui não mora, as rezas dela afamam muita virtude de poder. Pois a ela pago, todo mês – encomenda
de rezar por mim um terço, todo santo dia, e, nos domingos, um rosário. Vale, se vale. Minha mulher não vê mal
nisso. E estou, já mandei recado para uma outra, do Vau-Vau, uma Izina Calanga, para vir aqui, ouvi de que reza
também com grandes meremerências, vou efetuar com ela trato igual. Quero punhado dessas, me defendendo em
Deus, reunidas de mim em volta... Chagas de Cristo!” (Grande Sertão: Veredas p. 32)
268
leitura proveitosa, vida de santo, virtudes e exemplos – missionário esperto engambelando os
índios, ou São Francisco de Assis, Santo Antônio, São Geraldo... Eu gosto muito de moral.
Raciocinar, exortar os outros para o bom caminho, aconselhar a justo.” (GSV: 30-31)
O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu
mesmo. Divêrjo de todo mundo ... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa. O
senhor concedendo, eu digo: para pensar longe sou cão mestre – o senhor solte em minha frente
uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amém!” (GSV: 31)
Porém, é preciso atentar para o fato de que o Riobaldo, religioso e temeroso da ira divina,
que nos fala no livro é um “velho camponês do sertão” (Utéza 1994: 69) enquanto o Riobaldo da
minissérie é o jovem inconformado com sua realidade de filho ilegítimo de um fazendeiro (que se
gaba não por feitos seus, mas pelos feitos de seus “amigos” fazendeiros chefes de bando) que não
tem a coragem de assumir a paternidade. Riobaldo, no romance, é o homem que reza, que
encomenda rezas, mas que diz que “Deus é traiçoeiro”:
Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra, montão. E outra coisa: o diabo, é às
brutas; mas Deus é traiçoeiro – dá gosto! A força dele, quando quer – moço! – me dá medo pavor!
Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz e na lei do mansinho – assim é o milagre. E Deus ataca
bonito, se divertindo, se economiza. (GSV: 39)
É esse homem velho que tem noção de que sua vida (religiosa) presente é bem diferente
daquela que tinha em sua mocidade:
Somemos, não ache que religião afraca. Senhor ache o contrário. Visível que, aqueles outros
tempos, eu pintava – cré que o caroá levanta flor. Eh, bom meu pasto ... Mocidade. Mas mocidade
é tarefa para mais tarde se desmentir. Também, eu desse de pensar em vago em tanto, perdia minha
mão-de-homem para o manejo quente, no meio de todos. (GSV : 39)
Entretanto, o Riobaldo da minissérie não é o homem velho que conta suas histórias. É um
jovem cujas crenças vão ganhando corpo na conversa com os companheiros jagunços, em volta
da fogueira, ou no meio de uma vereda.
A religiosidade de Riobaldo é analisada detalhadamente por Utéza (1994) que chega à
conclusão de que a influência mais forte em termos de religião na vida do Riobaldo idoso é o
Espiritismo (à brasileira, acrescentamos) cujo principal representante na história é o compadre
269
Quelemém, porém a religiosidade de Riobaldo remonta às origens das crenças, à necessidade da
exemplificação, do in praesentia, do ver para crer
391
.
Na minissérie as histórias contadas por Riobaldo que trariam a mensagem espírita perdem
força, pois são vividas por ele ou por outros jagunços e Riobaldo não emite juízo de valor tal
como faz o narrador no livro. Tomamos como exemplo disso o caso do filho de Pedro Pindó,
Valtêi, que:
desde que algum entendimento alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo
queimador, gostoso de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. (...) O que esse
menino babeja vendo, é sangrarem galinha ou estaquear porco. “Eu gosto de matar ...”- uma
ocasião ele pequenino me disse.” (GSV: 29)
Pedro Pindó e a mulher, “(...) homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele,
sempre sido bons, de bem.”
(GSV 29)
, resolvem corrigir o filho impondo-lhe castigos físicos. O
menino é amarrado nu a uma árvore no terreiro onde passa dias sem comer. Os pais:
lavram o corpinho dele na peia e na taca. A gente sabe, espia fica gasturado. O menino já rebaixou
de magreza, os olhos entrando, carinha de ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse,
tossura da que puxa secos peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de
nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão – como
regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o exemplo bom. Acho
que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega para a quaresma que vem ... (GSV: 30)
A explicação que o “compadre meu Quelemém” fornece, no livro, é fundamentada na
crença kardecista de que os espíritos voltam a encarnar para “pagar” as dívidas deixadas de
outras vidas: “Aquele menino havia sido homem. Devia, em balanço, terríveis perversidades.
Alma dele estava no breu. Mostrava. E, agora, pagava. Ah, mas, acontece, quando está chorando
e penando, ele sofre igual que se fosse um menino bonzinho...
(GSV:30)
. Na minissérie, essa história
é reduzida a umas poucas cenas e ocorre, no episódio 16, quando Zé Bebelo, já chefe do bando e
prestes a ser apeado do posto por Riobaldo, é chamado por um jagunço para ver o diabo.
Riobaldo, Reinaldo, Zé Bebelo e o jagunço caminham um pouco e vêem a criança amarrada ao
391
Francis Utéza, Metafísica do Grande Sertão, p. 78: “Entretanto, desde a primeira linha, os múltiplos apelos do
narrador podem provocar uma reação de desconfiança acerca dos hábitos de pensamento e dos clichês culturais que
todo leitor projeta espontaneamente na obra que ele tem nas mãos. Somente depois de se libertar desses pontos de
vista lhe será possível encaminhar-se proveitosamente na direção que lhe acena o singular ecumenismo do narrador:
uma heterodoxia que repousa num substrato esotérico, que para além do cristianismo em sua versão católica
exotérica, remonta às origens do homo religiosus.”
270
tronco de uma árvore quase seca. O jagunço que os chamou relata
392
o caso de possessão. À
medida que ouve, Riobaldo faz perguntas e comentários: “a gente vê que eles [os pais] criaram
nisso um feio prazer, diversão.” Em seguida a esse comentário, Zé Bebelo manda que os pais
desamarrem o menino. O que fica para o telespectador é o relato da possessão demoníaca contada
pelo jagunço, a visão do castigo do menino como “perverso prazer” dos pais e o ato de bondade e
justiça de Zé Bebelo - afinal, ele, Reinaldo e Riobaldo ficaram perturbados demais com a
situação da criança amarrada nua, à mercê dos maus-tratos dos pais. O menino Valtêi tem o rosto
sofrido, os olhos tristes e fundos e não aparenta estar possuído. Sobressai-se não a religiosidade
ambígua de Riobaldo, mas a sensibilidade dos protagonistas e o senso de justiça de Zé Bebelo.
Na minissérie, o religioso e o sagrado manifestam-se sob diversas formas, mas predomina
o culto aos valores e aos costumes cristãos. As igrejas, as cruzes, as capelas, os padres, os rituais
de exorcismo, as beatas, as promessas remetem sempre à religião católica. O gesto do sinal da
cruz é feito com freqüência pelos jagunços frente a situações em que o demo parece estar
presente. Nossa Senhora da Abadia é evocada constantemente. Porém, é dentro desse catolicismo
predominante que temos cenas que denotam a dimensão do caráter familiar, íntimo com que nós
brasileiros tratamos a questão da religião
393
. Um exemplo bastante eloqüente dessa relação entre
o mundano e o sagrado pode ser encontrado no episódio 9 da minissérie: depois de descerem um
rio se banhando de mãos dadas, Riobaldo e Diadorim entram também de mãos dadas numa
capela de tropeiros (uma espécie de choupana) em que há um altar dedicado à Nossa Senhora da
Abadia. Diante do altar, trocam olhares desejosos um do outro. Diadorim molhada olha
insinuante para Riobaldo, que havia se ajoelhado diante do pequeno altar. Riobaldo volta-se para
Diadorim e, agarrando-lhe as pernas, pergunta-lhe se não quer tirar a roupa para secar; Diadorim
se desvencilha de Riobaldo repelindo-o com uma exclamação de desagrado e sai da capela.
Riobaldo ainda de joelhos volta-se para a imagem da santa e implora com voz embargada:
- Minha Nossa Senhora da Abadia, minha protetora, me desafasta de mim esse desejo sem
cabimento, é um fogo. Um fogo do demo sujegando meu coração. Sinto amor por aqueles olho,
amor de cavalo doido, amor de endemoniado (já quase em prantos). Minha Nossa Senhora da
Abadia, me desafaste essa tempestade, me livre e guarde.
392
O jagunço repete praticamente as mesmas palavras usadas por Riobaldo no livro.
393
Segundo Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, p. 413, o Catolicismo à brasileira, descendente direto do
Catolicismo português, é carregado de sobrevivências de rituais pagãos.
271
A capela, local de oração, é onde se desenrola uma das cenas mais explícitas do amor “de
endemoniado” entre Riobaldo e Diadorim. Ao contrário do que se espera que ocorra num local
“sagrado”. Não há regras ou convenções a serem respeitadas diante da santa, uma vez que ela lhe
é intima em todos os sentidos. É essa aproximação entre mundano e o sagrado que marca uma
das dimensões do catolicismo à brasileira
394
, em que a intimidade com os santos permite uma
relação baseada não nas regras ou nas convenções da religião, mas na proximidade, no toque. A
religiosidade se exprime de maneira íntima, beijos, abraços, segurar santos no colo, apertá-los ou
mantê-los sempre ao alcance da mão e da visão são características da religiosidade brasileira. A
proximidade entre o sagrado e o mundano no plano do imaginário, permite que no plano da
realidade sejam associadas a figura do político Tancredo Neves à de um santo como Souza
informa que ocorrera no ano de 1985.
395
Sobre a morte de Tancredo Neves e seu impacto sobre
as pessoas do sertão, Bruna Lombardi escreveu
Soubemos da morte de Tancredo com atraso. O sertão alheio a tudo. O tamanho dos Brasis. As
diferenças. Uma nação, sua história marcada pela tragédia. A extensão da dor desse país. Passo por
esses lugares no centro do coração do Brasil e vejo todos os dias pequenas tragédias anônimas.
Pequenas tragédias brasileiras, que importância podem ter? ... Ainda e sempre se espera um
Messias, um novo Conselheiro, um pai. (Bruna Lombardi apud Lobo 2000: 204)
Observa-se nas suas palavras a imensa comoção que tomou conta do país durante o
período esteve doente culminando com sua morte na simbólica data, 21 de abril . A busca pelo
Messias continuava viva (talvez ainda continue). Na minissérie, também há messias. A dimensão
de uma espécie de processo de santificação de personagens corresponde ao processo de
endemonização de outros. Joca Ramiro é o homem justo, nobre, pelo qual se deve dar a vida. O
“imperador em três alturas”
(GSV: 195)
“sabia o se ser, governava; nem o nome dele não podia atôa
se babujar.”
(GSV 195)
Ou seja, tal como prevê o segundo mandamento da Igreja Católica: não se
deve falar o santo nome de Deus vão. A divinização da figura de Joca Ramiro por seus homens é
evidente no episódio 7 da minissérie; quando, no momento de sua chegada ao arranchamento,
onde estão Riobaldo e Reinaldo, - a exemplo do que ocorre no livro - , todos os jagunços vão
394
Roberto DaMatta, no ensaio Os caminhos para Deus, O que faz do brasil, Brasil?, p. 116, lembra: “A Igreja
[Católica Romana], assim, é uma forma básica de religião, marcando talvez o lado impessoal de nossas relações com
Deus. Um lado, de fato, onde a intimidade eventualmente pode ceder lugar às regras fixas que conduzem a uma
impessoalidade, sobretudo nos cultos que legitimam de qualquer modo as crises da vida. Mas, ao lado dessas formas
impessoais e mais politizadas e socialmente aceitas de comportamento religioso, existem formas pessoais de ligação
com o outro mundo.”
395
O impacto da morte de Tancredo Neves é registrado
272
beijar a mão do chefe que, montado em um belo cavalo branco, porta majestosamente uma longa
capa (tal qual um santo guerreiro) . Riobaldo fica meio reticente, talvez achando um pouco
exagerada a cerimônia do beija-mão, mas acaba indo também beijar a mão de Joca Ramiro. Joca
Ramiro entronizado como “imperador” também passa a desempenhar, no imaginário de seus
comandados, o papel de santo justiceiro. Afinal, ele é o único capaz de impor justiça no sertão,
vencendo os soldados de Zé Bebelo.
O caso de Maria Mutema também é exemplar no sentido de apresentar como o
catolicismo à brasileira se mostra de maneira diferenciada em relação à doutrina católica romana.
Em razão de já termos apresentado detalhadamente o enredo desse episódio no item 9.2.2,
restringimo-nos aqui a analisar alguns aspectos dessa história que se referem ao atual tema em
estudo. O primeiro deles diz respeito ao fato de Padre Ponte ter família e filhos. No romance, a
história é contada da seguinte maneira:
O padre, Padre Ponte, era um sacerdote bom-homem, de meia-idade, meio gordo, muito
descansado nos modos e de todos bem estimado. Sem desrespeito, só por verdade no dizer, uma
pecha ele tinha: ele relaxava. Gerara três filhos, com uma mulher, simplória e sacudida, que
governava a casa e cozinhava para ele, e também acudia pelo nome de Maria, dita por aceita
alcunha a Maria do Padre. Mas não vá maldar o senhor maior escândalo nessa situação – com a
ignorância dos tempos, antigamente, essas coisas podiam, todo o mundo achava trivial. Os filhos,
bem-criados e bonitinhos, eram “os meninos da Maria do Padre”. E em tudo mais o Padre Ponte
era um vigário de mão-cheia, cumpridor e caridoso, pregando cora muita virtude seu sermão e
atendendo em qualquer hora do dia ou da noite, para levar aos roceiros o conforto da santa hóstia
do Senhor ou dos santos-óleos. (GSV 238-239)
Na minissérie, como não há o recurso do narrador que emite juízo de valor para ninguém
“vá maldar” “maior escândalo nessa situação”, aparece o Padre Ponte no convívio do lar com
seus três meninos e a mulher, Maria do Padre. As crianças são mostradas à mesa risonha
comendo enquanto a mãe procura agradar o Padre oferecendo-lhe comida. Tudo se passa como se
fosse uma família feliz e “normal” que é importunada por uma mulher que afirma ter matado o
marido em razão de seu amor pelo padre. Na minissérie, o diálogo entre eles no confessionário é
o seguinte:
Maria Mutema: - Matei meu marido por sua causa, Padre Ponte. É pelo sôr que tenho fogo de
amor. É do senhor que quero ser concubina, amásia.
Padre Ponte: - Maria Mutema, veja mulher. Tenha piedade de mim. Eu não tenho poder de me
defender. Eu estou morrendo, definhando meu desespero calado.
Maria Mutema: - Que posso é repetir o de sempre, agora do padre lamento. Por motivo de amor
matei meu marido. Amor pelo senhor por mais avesso que fosse. Na esperança
drum dia rolar senhor mais eu, trocando nossos quente molhado de amor.
273
Padre Ponte: - Satanás. Satanás possui você, o danador, o cão danado, danador. O perdido e o
perdedor.”
O poder de destruição do pecado de Maria Mutema sobre o Padre Ponte prende-se ao fato
de ela, ter matado o marido para ser amante do padre e não ao fato de querer ser sua amante. Fato
este nunca contestado por ele em outras passagens das confissões de Maria Mutema, o que
corresponde às regras mais ou menos implícitas sobre a vida conjugal de muitos padres no
passado:
O grande problema da colonização portuguesa do Brasil – o de gente – fez com que entre nós se
atenuassem escrúpulos contra as irregularidades de moral ou de conduta sexual. Talvez em nenhum
país católico tenham até hoje os filhos ilegítimos, particularmente os de padre recebido tratamento
tão doce; ou crescido em circunstâncias tão favoráveis.” (FREYRE 1943: 672)
O caso de Maria Mutema apresenta um desfecho bastante inusitado que, a nosso ver,
também se integra coerentemente dentro do quadro do catolicismo brasileiro. No romance, Jõe
Bixiguento conta que, depois da “confissão edital”:
Veio autoridade, delegado e praças levaram a Mutema para culpa e júri, na cadeia de Arassuaí.
que, nos dias em que ainda esteve, o povo perdoou, vinham dar a ela palavras de consolo, e juntos
rezarem. Trouxeram a Maria do Padre, e os meninos do Padre, para perdoarem também, tantos
surtos produziam bem-estar e edificação. Mesmo, pela arrependida humildade que ela principiou,
em tão pronunciado sofrer, alguns diziam que Maria Mutema estava ficando santa. (GSV : 243)
Na minissérie, não há esse período em que a população fica emocionada frente ao
sofrimento da “arrependida” Maria Mutema, passa-se direto de uma cena no cemitério em que os
investigadores retiram de dentro do crânio exumado do marido dela uma bola de chumbo
comprovando que Maria Mutema realmente o matara, para a cena em que ela, de pé sobre uma
carroça e com as mãos amarradas, é aclamada como santa pela população local, principalmente
pelas beatas, entre elas, destaca-se a Maria do Padre.
A população local ficou comovida diante do profundo arrependimento que Maria Mutema
demonstrou em sua “confissão edital”.
(GSV: 241)
O forte apelo emocional da cena em que o padre
missionário com sotaque arrastado de estrangeiro, provavelmente alemão, “com forte voz, com fé
braba”
GSV 240
fez com que Maria Mutema confessasse publicamente sua culpa pelo assassinato
do marido. O desfecho do episódio faz com que se confrontem, então, duas visões religiosas: a do
católico europeu e a do povo do interior do Brasil. A frieza das leis e a emoção dos sentimentos,
274
da dor do arrependimento. Fatores que tão bem distinguem o catolicismo brasileiro e o
europeu
396
, conforme afirma Holanda (1995: 150) no seu clássico ensaio O homem cordial:
No Brasil, ao contrário, foi justamente o nosso culto sem obrigações, sem rigor, intimista e
familiar, a que se poderia chamar, com alguma impropriedade, “democrático”, um culto que
dispensava no fiel todo esforço, toda diligência, toda tirania sobre si mesmo, o que corrompeu, pela
base, o nosso sentimento religioso
.
Para Holanda (1995: 148), a ética de nossas relações sociais se assenta sobre a emoção e
não sobre a razão:
O desconhecimento de qualquer forma de convívio que não seja ditada por uma ética de fundo
emotivo representa um aspecto da vida brasileira que raros estrangeiros chegam a penetrar com
facilidade. (...) Nosso velho catolicismo, tão característico, que permite tratar os santos com uma
intimidade quase desrespeitosa e que deve parecer estranho às almas verdadeiramente religiosas,
provém ainda dos mesmos motivos
.
Outro exemplo do sincretismo religioso que vigora no Brasil, pode ser encontrado no
episódio 14 da minissérie, quando se cria um motivo para que Zé Bebelo, Reinaldo e Riobaldo
presenciem o assassinato de seo Rudugério Freitas
397
executado pelos filhos: Zé Bebelo pede a
Reinaldo que o leve até um homem que faz “trabalhos” para que ele se torne “caborjudo[s],
sujeito[s] de corpo-fechado”
(GSV: 161)
. Trata-se de um episódio que permite diversas interpretações
396
Gilberto Freire, Casa Grande e Senzala, também sublinha as diferenças entre a forma de crer do europeu e do
brasileiro.
397
No romance não existe esse episódio em que Zé Bebelo vai procurar um feiticeiro para fazer um caborje. Porém
toda a história do assassinato de Rudugério pelos dois filhos é mantida praticamente na íntegra. No romance e na
minissérie, “(...) Rudugério Rudugério de Freitas, dos Freitas ruivos da Água-Alimpada, mandou obrigado um filho
dele ir matar outro, buscar para matarem, esse outro, que roubou sacrário de ouro da igreja da Abadia. Aí, então, em
vez de cumprir o estrito, o irmão combinou com o irmão, os dois vieram e mataram mesmo foi o velho pai deles,
distribuído de foiçadas. Mas primeiro enfeitaram as foices, urdindo com cordões de embira e várias flores. E
enqueriram o cadáver paterno em riba da casa – casinha boa, de telhas, a melhor naquele trecho. Daí, reuniram o
gado, que iam levando para distante vender. Mas foram logo pegos. A pegar, a gente ajudou. Assim, prisioneiros
nossos. Demos julgamento. Ao que, fosse Medeiro Vaz, enviava imediato os dois para tão razoável forca. Mas
porém, o chefe nosso, naquele tempo, já era – o senhor saiba Zé Bebelo!”
(GSV: 91)
O chefe-jagunço acaba absolvendo
os dois irmãos porque estes afirmam que enfeitaram as foices que usaram para matar o pai como uma “padroagem
(GSV: 92)
à Nossa Senhora da Abadia. Ao saber disso, Zé Bebelo
toma a decisão de absolver os dois irmãos: “Pois,
se ela perdoa ou não, eu não sei. Mas eu perdôo, em nome dela – a Puríssima, Nossa Mãe!” – Zé Bebelo decretou.
“O pai não queria matar? Pois então, morreu – dá na mesma. Absolvo! Tenho a honra de resumir circunstância desta
decisão, sem admitir apelo nem revogo, legal e lealdado, conformemente!...” Aí mais Zé Bebelo disse, como
apreciava: – “Perdoar é sempre o justo e certo...” – pirlimpim, pimpão. Mas, como os dois irmãos careciam de
algum castigo, ele requisitou para o nosso bando aquela gorda boiada, a qual pronto revendemos, embolsamos.”
(GSV : 91-92)
275
extremamente ricas em relação ao tratamento simbólico da morte do pai, em nossa análise
focaremos nossa atenção para compreendermos como a religiosidade é tratada.
Nesse episódio e no seguinte, temos no desenrolar dessas histórias – a tentativa de
“caborje” e a morte de “seo” Rudugério de Freitas e o seu desdobramento no julgamento dos
filhos – a presença de práticas religiosas completamente diferentes. Zé Bebelo precisa capturar
uma galinha para que o feiticeiro realize o trabalho. O que caracteriza um trabalho de fechamento
de corpo não-cristão. Logo em seguida, durante o julgamento dos filhos assassinos, Zé Bebelo, já
no episódio 15, evoca a proteção de Nossa Senhora da Abadia e em nome dela absolve os
assassinos:
FILHO: - Matei porque quis me matar. Meu pai mandou meu irmão com essa foice me
degolar e retalhar. A ordem foi cumprida – só que do contrário!
ZÉ BEBELO: - Por que foi que vocês enfeitaram a foice?
FILHO: - P’ra Nossa Senhora da Abadia já ir adiantando perdão do nosso dito e feito.
ZÉ BEBELO: - Santíssima Virgem! (Silêncio.) Pois se ela perdoa ou não, eu não sei. Mas eu
perdôo em nome dela! A Puríssima Nossa Mãe. O pai não queria matar? Pois
então, morreu – dá na mesma, sô! Absolvo
!
Novamente, a mistura de crenças é evidente nas práticas e nos atos dos protagonistas. O
chefe dos jagunços, que fora até a vila Água-Alimpada para fazer um feitiço de fechamento de
corpo, considera-se capaz de perdoar em nome da santa, mesmo que ela não perdoe, talvez, a
intimidade com a santa lhe permita essa liberdade.
A religiosidade, na minissérie, apresenta algumas faces da religiosidade brasileira, a
intimidade com os santos, simpatias, pacto, a busca de uma solução divina para os problemas
mundanos. Enfim, a religiosidade na minissérie Grande Sertão: Veredas expressa-se por meio de
uma linguagem eivada de símbolos católicos, mas que não deixa de lado o jeito brasileiro de crer
em Deus, de falar com Deus usando todos os meios de comunicação possíveis, tal qual o
“ecumênico” Riobaldo. Sobre a linguagem da religiosidade brasileira, DaMatta (1986: 117)
afirma:
Posso juntar, somar, relacionar coisas que tradicional e oficialmente as autoridades apresentam
como diferenciadas ao extremo. Tudo aqui se junta e se torna sincrético, revelando talvez que, no
sobrenatural, nada é impossível. Alinguagem religiosa do nosso país é, pois, uma linguagem da
relação e da ligação. Um idioma que busca o meio termo, o meio caminho, a possibilidade de
salvar todo o mundo e de em todos os locais encontrar alguma coisa boa e digna. Uma linguagem,
de fato, que permite a um povo destituído de tudo, que não consegue comunicar-se com seus
representantes legais, falar, ser ouvido e receber os deuses em seu próprio corpo.
276
Sob essa perspectiva, voltamos, talvez, às circunstâncias, ao tecido social a que se referia
Durst. Tecido social representado por um povo que não encontra ressonância de seus anseios no
mundo em que vive. Povo ao qual, talvez, só reste o consolo de imaginar um mundo após a vida,
ou mesmo viver por meio do mundo ficcional aquilo que lhe é tirado na vida “real”, resta-lhe a
esperança e a fé de que dias melhores virão e enquanto eles não chegam não custa nada rezar e
acender velas para todos os santos, crer em todas as religiões e “fechar o corpo” para sobreviver
neste mundo tão injusto.
277
Considerações Finais
Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
Isso que me alegra, montão.
(GSV: 39)
Nos capítulos anteriores procuramos estudar a minissérie Grande Sertão: Veredas com
base em um referencial teórico que possibilitasse compreender a articulação entre gêneros
literários, gêneros do discurso, gêneros televisuais e acabamento temático numa perspectiva de
construção histórica de um sentido socialmente determinado. Essa perspectiva abriu-nos caminho
para discutir questões referentes aos diversos enfoques teóricos sobre a problemática que envolve
os gêneros, sejam eles literários ou televisuais. Ao longo das discussões, procuramos superar a
concepção que considera o gênero como uma espécie de camisa de força que aprisiona o escritor
e o leitor.
Dentro do quadro teórico adotado, o conceito de gênero supera a idéia que o condiciona a
um conjunto de procedimentos prescritivos aos quais corresponde um conjunto de temas
característicos e adquire vida no espaço que se estabelece entre os sujeitos da comunicação.
Portanto, o gênero, tanto quanto a palavra, não possui significação por si só, sua significação se
realiza por meio de enunciados concretos; longe, portanto, da abstração de normas gerais não
implicadas na realidade concreta da comunicação. A significação do gênero não se dá em um ou
em outro sujeito da comunicação; mas no espaço criado pelo diálogo entre ambos. Se não houver
condições para se criar um terreno comum entre os sujeitos não haverá comunicação. Um dos
elementos que proporcionam condições para que se crie esse espaço em comum é o gênero
acabado tematicamente.
Gêneros e tema, como substâncias vivas da comunicação, articulam-se organicamente em
todas as relações de linguagem transformando-as e transformando-se dialeticamente. O caráter
indissolúvel dessa relação permite-nos compreender como os gêneros adquiriram importância nas
relações humanas e se tornaram matrizes culturais de sentido de grande complexidade onde se
articulam interesses e valores das diversas esferas da sociedade. Vistos dessa perspectiva, os
gêneros não correspondem apenas a uma forma de se compreender o mundo mas também a uma
forma de se situar ontologicamente no mundo. Portanto, discutir gêneros e temas (sejam eles
278
ficcionais ou não) não se apresenta como tarefa fácil; ao contrário, apresenta uma série de
desafios. Talvez, o principal deles seja a tentativa de deslindar os diversos fios entretecidos
organicamente. Fios que tramam um tecido colorido, multifacetado e com diversos relevos que
vão se constituindo de maneira constante e, por isso, criam um terreno inseguro e movente. Essas
características tornam-se ainda mais moventes quando discutimos os gêneros televisuais. Gêneros
marcados pela fragmentação, pela rapidez e pela necessidade quase constante de renovação. É
preciso mostrar atualidade para agradar ao público fugidio e inconstante das telas de televisão. É
preciso oferecer novidades o tempo todo para conquistar e fidelizar o público. Enfim, é preciso
estar atento aos menores desejos do telespectador; porém dentro da Indústria Cultural essas
preocupações ganham contornos mercadológicos importantes e, nesse contexto, gêneros e temas
funcionam, eles próprios, como articuladores da programação televisual, uma vez que
classificam programas, organizam a grade programação e ainda atuam como elemento de
identificação entre emissoras e público. Trata-se, portanto, de um assunto de especial importância
para as emissoras de televisão e para os estudiosos da área de comunicação.
Deslindar os fios que entreteceram a minissérie Grande Sertão: Veredas foi parte da
tarefa a que nos propusemos neste trabalho. Buscamos compreender a narrativa seriada como
gênero televisual que se constrói dentro da complexidade dos discursos que constituem e são
constituídos ideologicamente por palavras, gestos e imagens; enfim, pela vida. A minissérie
representa por si só uma tentativa de penetrar a imensa intertextualidade que caracteriza as
relações culturais. A linguagem poética e extremamente plurivocal do romance de Guimarães
Rosa transformada em minissérie foi apresentada como um dos maiores desafios já enfrentados
pelos experientes artífices da minissérie, Walter Avancini e Walter George Durst, mas não
bastava o desejo de vencer o desafio e transformar o, talvez, mais famoso e estudado romance
brasileiro, em minissérie. Era necessário ter um objetivo, mas também não bastava o objetivo de
se elaborar uma obra artística de qualidade; era preciso ter um objetivo social, um objetivo
formativo e educativo: levar aos brasileiros letrados e iletrados o mundo de Guimarães Rosa
como forma de se atingir o coletivo brasileiro. O princípio que regeu essa transposição foi o da
fidelidade ao texto fonte. Buscou-se fidelidade na composição dos diálogos, na prosódia, na
musicalidade sertaneja, na ambientação das cenas, na caracterização das personagens. Enfim,
fidelidade acima de tudo, porque, acreditou-se que só assim os brasileiros teriam acesso ao Brasil,
à literatura de qualidade, enfim à nacionalidade. Nacionalidade supostamente presente na
279
literatura brasileira e da qual estava afastada a maioria da população brasileira (constituída por
analfabetos). Trata-se, portanto, de o Brasil se conhecer, de se re-conhecer como nação e não
apenas como país cujas dimensões geográficas podem ser encontradas em mapas mas que ainda
carece de transformar sua população em povo.
É a esse objetivo grandioso que a minissérie se propõe. Objetivo claramente ideológico e
presente, como vimos no decorrer de nossas discussões, nos discursos de Walter Avancini e
Walter George Durst: o Brasil para os brasileiros; o melhor da literatura para os iletrados; o
melhor da televisão para os letrados e para os iletrados. São alguns dos objetivos que
distinguimos nos discursos desses dois excelentes artistas. Mas como conseguir objetivos tão
grandiosos? Um dos caminhos trilhados nas veredas às vezes um pouco desérticas da
programação televisiva foi o do gênero teledramatúrgico apresentado no formato diferenciado da
minissérie. Formato e gênero plasmam-se e inovam em termos de linguagem televisual. O sertão
ganha a amplidão do mundo, ou, dito de outra forma, o mundo se reduz ao sertão. O ser humano
se reduz dentro desse universo sem fim, entre as andanças de Riobaldo, não sabemos se estamos
indo ou se estamos voltando; se o inimigo está longe ou à espreita. Como saber? Alguém sabe
quando o bem está próximo ou quando o mal está distante? Com quem podemos contar frente ao
mal? Com Deus ou com o diabo? São perguntas que nos levam para o meio do redemunho
(GSV:
611)
...
O sertão sobrevive encantado por meio do tratamento estético em que se privilegiam
música, som e fotografia. A música que nos conta a história e que dramaticamente atua como
personagem, levando-nos para um tempo distante; o tempo das conversas em torno da fogueira
em que os “causos” terríveis vêm assombrar a existência dos mais crédulos. Os sons da natureza,
as luzes da manhã, a escuridão da noite. São elementos narrativos privilegiados que atuam com
grande significação para a compreensão dos conflitos não só dos protagonistas mas também da
gente pobre do sertão, do Brasil. Gente pobre que não tem direito a escolhas ou desejos. Sua
única opção é seguir os poderosos que só têm a oferecer discursos vazios desprovidos de
qualquer conteúdo. É essa a identidade do Brasil? Um país de miseráveis à espera de uma solução
quase divina para seus problemas?
No meio do redemoinho, os gêneros do discurso se entrecruzam, transformam-se, a
confissão-edital pode não só salvar como também santificar. As temporalidades convergem para
um só tempo: o tempo das grandes narrativas, o tempo da força da palavra e da arma. Deus é
280
traiçoeiro; o diabo é às brutas. É a brutalidade que emerge contra as crianças, mulheres, velhos e
pobres em geral que caracteriza as perversas relações de poder no sertão e metonimicamente no
Brasil.
Por meio do tratamento das imagens, personagens e ambiente, muitas vezes, confundem-
se, mesclam-se com tons de terra de suas roupas e peles, em meio aos arbustos, é como se as
personagens se integrassem ao ambiente. Ambiente hostil, que pode se transformar, após a
estação das chuvas, em ambiente acolhedor com pássaros como manuelzinhoda-croa.
Enfim, o acabamento temático e tratamento estético se articulam harmoniosamente e se
concretizam num produto artístico no qual é possível discernir o gênero enquanto articulador de
um modelo de interpretação e de visão do mundo. O gênero não se manifesta apenas pela forma
de enunciação ou pela organização narrativa dos acontecimentos, mas também pela composição
articulada entre esses elementos e o tratamento temático. Afinal, gênero e tema encontram-se
imbricados em todo enunciado concreto.
Em razão do exposto, consideramos que o acabamento temático e a apropriação do gênero
na minissérie Grande Sertão: Veredas não obedeceu a princípios estritamente mercadológicos
como alguns críticos fizeram crer, principalmente em relação à escolha da atriz Bruna Lombardi
para viver a personagem Diadorim. Acreditamos que deve ter havido algum tipo de pressão sobre
a equipe artística, como ocorre com todo produto da Indústria Cultural, mas mesmo depois de
passados quase vinte anos da exibição da minissérie não encontramos, durante a realização de
nossa pesquisa, nenhum documento escrito que abordasse ou comentasse esse tipo de pressão. De
acordo com os dados levantados e com as discussões feitas nos capítulos anteriores,
consideramos que a minissérie correspondeu, em grande medida, aos objetivos de mostrar o
Brasil ao Brasil. Objetivos francamente assumidos não só pelos dois principais artífices da
minissérie Walter Avancini e Walter George Durst, mas também pela própria emissora, uma vez
que o prólogo de Avancini deve ser analisado não apenas como um ato isolado, como a voz de
um artista imbuído das melhores intenções; seu discurso deve ser entendido como uma das vozes
pelas quais a rede de televisão se faz ouvir na sociedade. Avancini, ao apresentar a minissérie é o
autor que mostra sua obra artística, mas é também o diretor assalariado da Rede Globo que,
ocupando uma posição de prestígio dentro da emissora, fala em seu nome, mas principalmente
em nome da Rede Globo uma vez que é ela que lhe fornece condições técnicas para isso. Dessa
forma, o discurso de mostrar o Brasil ao Brasil, torna-se discurso da rede que se manifesta por
281
meio de um de seus mais competentes diretores, o que também concede um maior valor
simbólico ao discurso de Avancini. Portanto, não se trata de Avancini mostrar o Brasil, trata-se
de a Rede Globo mostrar o Brasil ao Brasil. Porém, à Rede Globo, mais do que conteúdo da
minissérie, que, como vimos, retrata algumas das mais perversas facetas da sociedade brasileira,
interessa o valor simbólico que a exibição da minissérie, cujo texto-fonte é o melhor romance
brasileiro de todos os tempos, pode lhe trazer. Afinal, a minissérie continua sendo lembrada como
um marco da teledramaturgia brasileira mesmo mais de vinte após a sua exibição e tem sido
apresentada em mostras internacionais de televisão e de literatura. O retorno simbólico desse
produto televisual continua e continuará ainda por algum tempo.
Por outro lado, acreditamos que há algumas frentes de pesquisa que poderiam ser
efetuadas com a finalidade de continuar a pesquisa sobre as inter-relações entre temas e gêneros
no sentido de analisar as outras duas minisséries realizadas no mesmo ano – Tenda dos Milagres
e O tempo e vento - para buscar compreender as vozes da Rede Globo no ano do início da Nova
República que, além do nome, não apresentou verdadeiramente grandes novidades em termos de
poder político. Outra possibilidade, seria estudar mais detalhadamente os gêneros do discurso na
perspectiva bakhtiniana. Na minissérie Grande Sertão: Veredas há gêneros únicos: como a
confissão edital de Maria Mutema e o discurso de Zé Bebelo, o discurso do poder instituído.
282
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2) City News
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14.11.85 REDAÇÃO (I.F) Grande Sertão, simplicidade e emoção.
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18/12/85 CASTELLO, José. Vereda de sucesso. n.469, p.40-48.
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polêmico Terra em Transe. p. 13.
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10/11/85 CAMARGO, Maria Silvia. Mil minutos de um 'Grande Sertão'. Rio de Janeiro.
18/11/85 LAGE, Miriam. Grande sertão: veredas. Hoje, a saga de Guimarães Rosa chega à TV.
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11/12/85 REDAÇÃO. A arte de recriar a arte.
30/12/85 VOLLAS-BÔAS, Luciana. Walter Avancini: Sucesso com ideologia. Caderno B.
10) Jornal da Tarde
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11) Leia
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12) O Globo
13/11/85 REDAÇÃO. “Grande sertão”: a TV desbrava as veredas da obra encantada de Rosa.
17/11/85 REDAÇÃO. No universo mágico de Guimarães Rosa, o bem, o mal e o sonho se
defrontam.
23/11/85 DADARIO, Heloisa, FERREIRA, Alcione Soares. “Grande sertão”, debate: ser ou não
ser fiel a Rosa. O ponto em comum: a divulgação de uma obra-prima. p.1/3.
22/12/85 TÁVOLA, Artur da. “Grande Sertão: Veredas”. O momento mais elevado da
teledramaturgia.
13) O Estado de São Paulo
16/11/85 REDAÇÃO. “Grande sertão: veredas” a partir de 2ª, na Globo. p.22.
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14/01/05. Reis, Leila. A brasilidade é o único tema de Luiz Fernando Carvalho. Caderno 2. p.
D10.
20/01/05. Entrevista: Fernanda Montenegro. “É comum menosprezar a inteligência do
espectador”, Caderno 2, p. D7.
03/05/05. Redação. Globo lança Grande Sertão em DVD. Caderno 2. p. D5.
03/07/05. Antologia pessoal. Renato Janine Ribeiro “Não temos tradição de resenhas sérias e
boas. Caderno 2, s/p.
30/12/05. Padiglione. Caso Diretas-Já foi “censura dupla”, diz Boni. Caderno2, p. D5.
01/01/06. Projeções 2006: o mais importante romance brasileiro do século 20 completa 50 anos.
Willi Bolle: “Sertão, é dentro da gente”. Caderno Aliás. p. J18.
12/0/06. Piza, Daniel. Vestígios de um escritor calado. Nacional, p. A13. e Piza, Daniel. O grande
sertão de Rosa está desaparecendo. Nacional, p. A14.
27/05/06. Caderno especial. Grande Sertão: Veredas 50 anos. p. H1-12.
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28/11/85 MICHALSKI, Yan. “Grande sertão: veredas”: um exercício de estilo.
15) Veja
22/05/85 REDAÇÃO. Luz no sertão. n.872, p.119.
20/11/85 CONTI, Mario Sergio. Vereda linear. (Arquivo Globo 14071.)
18/03/03 – Entrevista José Bonifácio Oliveira Sobrinho. A TV está ruim. Disponível em:
chvilela.hpg.com.br/boni.html. Acesso em 15.06.06
16) Visão
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