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CONSELHOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS
PÚBLICAS: DE ESPAÇOS DE CONSTITUIÇÃO
DE ESFERA PÚBLICA NÃO ESTATAL À
FORMAÇÃO DE UM SISTEMA NACIONAL DE
REPRESENTÃO
JOAQUIM BAPTISTA TAVARES
2006
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JOAQUIM BAPTISTA TAVARES
CONSELHOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: DE ESPAÇOS
DE CONSTITUIÇÃO DE ESFERA PÚBLICA NÃO ESTATAL À
FORMAÇÃO DE UM SISTEMA NACIONAL DE REPRESENTAÇÃO
Dissertação apresentada à Universidade Federal de
Lavras como parte das exigências do Programa de
Pós-Graduação em Administração, área de
concentração em Gestão Social, Ambiente e
Desenvolvimento, para obtenção do título de
“Mestre”.
Orientador:
Prof. Dr. Robson Amâncio
LAVRAS
MINAS GERAIS – BRASIL
2006
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Ficha Catalográfica Preparada pela Divisão de Processos Técnicos da
Biblioteca Central da UFLA
Tavares, Joaquim Baptista. Conselhos de gestão de políticas públicas: de
espaços de constituição de esfera pública não estatal à formação de um
sistema nacional de representação / Joaquim Baptista Tavares. -- Lavras :
UFLA, 2006.
203 p. : il.
Orientador: Robson Amâncio.
Dissertação (Mestrado) – UFLA.
Bibliografia.
1. Conselho gestor. 2. Democracia liberal. 3. Democracia participativa. 4.
Participação cívica. 5. Esfera Pública. I. Universidade Federal de Lavras. II.
Título.
CDD-323.5
JOAQUIM BAPTISTA TAVARES
CONSELHOS DE GESTÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS: DE ESPAÇOS
DE CONSTITUIÇÃO DE ESFERA PÚBLICA NÃO ESTATAL À
FORMAÇÃO DE UM SISTEMA NACIONAL DE REPRESENTAÇÃO
Dissertação apresentada à Universidade Federal
de Lavras como parte das exigências do Programa
de Pós-Graduação em Administração, área de
concentração em Gestão Social, Ambiente e
Desenvolvimento, para obtenção do título de
“Mestre”.
APROVADA em 30 de maio de 2006
Prof. Dr. Arnaldo Pereira Vieira UFLA
Prof. Dr. Luís Carlos Ferreira de Sousa Oliveira UFLA
Prof. Dr. Robson Amâncio
UFLA
(Orientador)
LAVRAS
MINAS GERAIS - BRASIL
Aos meus filhos Jaime Ubaldo e Emily que nunca entenderam mas aceitaram,
resignados, a longa ausência do pai que decidiu fazer uma caminhada de vida
que eles mesmos, um dia, repetirão DEDICO este trabalho.
Agradecimentos
A experiência deste trabalho ensinou-me que uma obra acabada, por mais
inexpressiva que fosse, nunca seria uma realização apenas do seu autor. Muitas
pessoas concorrem para a sua concretização. Com este trabalho também não foi
diferente. Dele participaram, em diferentes momentos, várias pessoas que,
voluntariamente e com espírito de bem servir, deram o seu valioso contributo,
sem o qual este “projeto científico” não teria a qualidade que tem. Lembrá-las
aqui é um ato de justiça.
Primeiramente, ergo os meus olhos ao Céu com temor e agradeço a Divina
Providência que tem sido misericordiosa para comigo, renovando
incessantemente as minhas forças para que elas nunca me faltassem nos
momentos mais críticos em que o desânimo parece nos dominar tão
completamente que, impotentes, vemos fugir-nos, apressadamente, o sonhado
sucesso.
Ao Governo de Cabo Verde sou grato pela prontidão com que proferiu o
“despacho” que me colocou “em comissão eventual de serviço” para prosseguir
os estudos em nível de Mestrado, no Brasil.
Olhando de modo prazeroso o caminho percorrido que me conduziu a um
novo patamar da minha vida, que hoje, orgulhosamente, celebro, venho
significar o meu comovido reconhecimento aos principais construtores dele: o
atual coordenador do Programa de Pós-Graduação em Administração do
Departamento de Administração e Economia da Universidade Federal de Lavras
Prof. Dr. Mozar José de Brito
e meu prestimoso orientador
Prof. Dr. Robson Amâncio
O primeiro, ao aceitar-me no curso como aluno regular, tornou possível a
realização de um sonho acalentado mais de uma década. O segundo,
sabiamente me conduziu pela “estrada agreste” da pesquisa científica, apontando
com precisão “o norte” todas as vezes e foram tantas que desviava do rumo
traçado. Sem o seu generoso e solícito apoio não viria a lume este modesto
trabalho.
Não somenos homenagem ao sapientíssimo professor da disciplina Metodologia
de Pesquisa em Administração I
Prof. Dr. Edgard Alencar
A figura deste distinto senhor ficará idelevelmente registrada na minha memória,
por toda a vida. A minha inserção “sem traumas” na vida acadêmica do
Departamento de Administração e Economia se deve, em parte, a ele.
Conduzindo-me pela mão, quase que paternalmente, introduziu-me
antecipadamente no convívio da sociedade acadêmica de que iria brevemente
fazer parte, apresentando-me, de sala em sala, aos professores, funcionários e
futuros condiscípulos. De modo que, momentos depois da minha chegada à
Universidade, já conhecia todos aqueles que iam ser “a minha família” nos
próximos dois anos de duração do curso e era de todos conhecido. A primeira de
muitas e proveitosas lições que dele recebi foi a de humildade. Jamais
esquecerei a minha primeira lição, Mestre!
Por último, meu agradecimento aos meus diletos irmãos
Tony e Dany
cujo entusiasmo e algum apoio financeiro pontual tornaram possível fazer face a
“inevitáveis” percalços que vezes sem conta cruzaram o meu caminho de
estudante.
A todos, meu “muito obrigado”!
SUMÁRIO
Página
LISTA DE QUADROS.........................................................................................i
LISTA DE TABELAS.................................................................................ii e iii
RESUMO.......................................................................................................iv e v
ABSTRACT................................................................................................vi e vii
1. INTRODUÇÃO...............................................................................................1
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: A TEORIA DA DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA............................................................................................7
2.1. A participação sob o olhar das Ciências......................................................15
2.2. Conselhos Gestores como estratégia participativa no exercício da cidadania
num quadro descentralizado de poder.........................................................18
2.3. Limitações teóricas e práticas ao papel dos Conselhos de Gestão Pública.21
2.4. Problematização...........................................................................................22
3. METODOLOGIA......................................................................................25
3.1. Coleta e interpretação de dados...................................................................26
4. PERCURSO ACIDENTADO DA DEMOCRACIA DESDE OS
PRIMÓRDIOS ATÉ A CONSAGRAÇÃO DA CONCEPÇÃO
HEGEMÔNICA DO SÉC. XX.................................................................30
4.1. Democracia foi inventada e desenvolveu-se em contextos favoráveis.........30
4.2. Trajetória histórica da democracia primária é marcada por uma sucessão de
invenções.......................................................................................................33
4.3. Expansão democrática ao Norte do Mediterrâneo “inventa” a democracia
representativa ...............................................................................................36
4.4. No século XX busca-se fixar o debate democrático em torno da questão da
“forma”..........................................................................................................41
4.5. A universalização e a consolidação da democracia liberal são o ponto final
da evolução ideológica do Homem? ............................................................57
4.6. A verdadeira missão da democracia liberal, qual era: bloquear ou despertar
uma consciência cívico-participativa? Missão cumprida?............................63
Página
5. REAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA À DEMOCRACIA:
POLÍTICAS DE DESREGULAMENTAÇÃO SOCIAL DESPERTAM
O POTENCIAL CONTRA-HEGEMÔNICO À DEMOCRACIA
LIBERAL.....................................................................................................69
5.1. Por que a democracia liberal combate a participação ampliada?.................71
5.2. Ampliação da esfera pública para o adequado exercício da cidadania.........75
5.3. Princípios para o desenvolvimento da legitimidade democrática.................83
6. NEGOCIAÇÃO SOCIAL CONSTITUI A BASE PRIVILEGIADA DE
RELAÇÃO ENTRE A SOCIEDADE CIVIL E O ESTADO NA
GESTÃO DA COISA PÚBLICA, SOB O IMPÉRIO DA
DEMOCRACIA LIBERAL – REPRESENTATIVA..............................84
6.1. Conceito de Governança Local é o locus onde se pode melhor entender os
Conselhos e seu desenvolvimento.................................................................86
6.2. Resgate das formas históricas dos Conselhos. Conselhos no Brasil do século
XX.................................................................................................................89
7. CONSELHOS GESTORES SETORIAIS MUNICIPAIS: NOVAS
FORMAS DE PARTICIPAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA NA GESTÃO
PÚBLICA...................................................................................................109
7.1. Os Conselhos Gestores devem ser organismos apenas consultivos ou
também deliberativos?................................................................................117
7.2. Como, então, proceder para fortalecer os Conselhos Gestores e melhorar seu
posicionamento no cenário onde se desenvolvem?.....................................120
7.3. A questão da representatividade e da paridade dos Conselhos Gestores
carece de uma melhor definição..................................................................122
7.4. Lacunas de vária ordem perturbam o bom funcionamento dos Conselhos
Gestores que perspectivas de solução?....................................................124
8. CONSELHOS GESTORES MUNICIPAIS: FUNDAMENTO DE UMA
DEMOCRACIA LOCAL AUTÊNTICA................................................136
8.1. O espaço local dispõe as bases de uma nova formatação das estratégias
geopolíticas e geoeconômicas no período pós-hegemônico.......................136
8.2. Conselhos municipais são a célula básica da constituição de um sistema
nacional de participação. A dinâmica dos conselhos na construção e
democratização das esferas locais
...............................................................141
Página
9. ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS LIGADAS ÀS PRÁTICAS DOS
CONSELHOS MUNICIPAIS: OS LIMITES E AS
POTENCIALIDADES INSTITUCIONAIS E FUNCIONAIS E
OUTROS ASPECTOS..............................................................................147
9.1. Perfil dos conselheiros................................................................................148
Do perfil sociodemográfico...............................................................................149
Da cultura cívica e associativa dos conselheiros municipais............................159
Da representatividade social dos conselheiros..................................................169
9.2. Condições e impactos de funcionamento dos conselhos municipais..........178
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................185
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..........................................................194
LISTA DE QUADROS
Página
QUADRO 1. Conselhos nacionais de políticas setoriais –Brasil, 1998..113 e 114
LISTA DE TABELAS
Página
TABELA 1A – Escolaridade dos conselheiros.................................................149
TABELA 1B Nível de escolaridade dos conselheiros, por segmentos de
representação e regiões metropolitanas ( dados globais ) Brasil,
1999/2001......................................................................................................... 150
TABELA 1C – Conselhos da sociedade organizada por escolaridade, segundo as
regiões metropolitanas Brasil, 1999/ 2001.....................................................152
TABELA 2 A – Rendimentos dos Conselheiros (dados gerais), em 2002........154
TABELA 2 B Estrutura de rendimentos dos conselheiros por gênero e região
metropolitana, em 2002.....................................................................................155
TABELA 3 – Situação ocupacional dos conselheiros por Região Metropolitana e
segmentos de representação, em 2002....................................................157
TABELA 4 – Engajamento sócio-político e capacitação técnico-política dos
conselheiros Brasil, 1999/2001......................................................................160
TABELA 5 – Opinião dos conselheiros da sociedade sobre o fornecimento
regular de informações pelas secretarias municipais, segundo as regiões
metropolitanas Brasil, 1999/2001..................................................................161
TABELA 6 Sindicalização ou associação de conselheiros a órgão de classe,
na RMSP, no período 2000/2001......................................................................162
TABELA 7 Grau de participação freqüência com que o conselheiro
participou de reuniões do sindicato ou órgão de classe, na RMSP, no período
2000/2001..........................................................................................................164
TABELA 8 Fontes de informação utilizadas pelo conselheiro para se informar
sobre os acontecimentos políticos em geral, na RMSP, no período de
2000/2001..........................................................................................................165
TABELA 9 Escolha da entidade e representante da entidade/ instituição para
participar do conselho na RMBH, no período de 2000/2001............................172
LISTA DE TABELAS
Página
TABELA 10 – Opinião sobre a representatividade das instituições que compõem
o conselho na RMBH, no período 2000/2001...................................................174
TABELA 11 Indicadores de vínculos institucionais entre os conselheiros da
sociedade e as organizações sociais – RMRJ, 1998.......................................175
TABELA 12 Opinião dos conselheiros sobre o impacto do funcionamento dos
conselhos municipais Brasil, 2001.................................................................179
TABELA 13 – Opinião sobre o impacto do funcionamento dos conselhos,
segundo as regiões MetropolitanasBrasil, 1999/2001.....................................181
RESUMO
TAVARES, Joaquim Baptista. Conselhos de gestão de políticas públicas: de
espaços de constituição de esfera pública não estatal à formação de um
sistema nacional de representação. 2006. 203p. Dissertação (Mestrado em
Administração) Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG.
1
Os conselhos de gestão de políticas públicas surgem na arena pública
brasileira como o eixo sócio-político fundamental na busca do equilíbrio
necessário entre os ideais liberais da democracia representativa e aqueles
defendidos, em oposição, pela democracia participativa dos excluídos. O fim da
Guerra Fria, que separava o mundo, ideologicamente, em dois blocos, confere
hegemonia à democracia liberal-representativa que, nessa condição, opera
profundas mudanças nos desenhos das políticas sociais, no âmbito mundial. No
Brasil, as reações a tais políticas, que restringiam a responsabilidade social do
Estado, não se fizeram esperar, determinando o ressurgimento de velhas práticas
da democracia participativa, sob o amparo constitucional e das leis
complementares, na organização de um novo espaço público não estatal
destinado à articulação entre a sociedade civil e o poder público sobre a questão
social ligada à gestão pública dos recursos. Nesse sentido, criam-se conselhos
municipais de gestão de políticas públicas como espaço de participação
sócio-política para dar corpo à aspiração popular de participar, em conjunto com
o poder público, de forma democrática, nos debates sociais sobre as políticas
públicas brasileiras e seu respectivo modelo de gestão. Objetiva-se, portanto,
neste trabalho, compreender os limites e as potencialidades de ação desses
conselhos no contexto de coabitação democrática, forçada, entre a democracia
liberal hegemônica e a democracia participativa brasileira que põe, frente a
frente, em debates sociais na arena pública, a sociedade civil e o poder público.
Procura-se atingir tal objetivo efetuando-se o resgate das análises aos estudos
empíricos sobre os conselhos municipais, no âmbito nacional, às quais, por meio
de métodos quantitativos de investigação e de interpretação de dados, se amplia
o campo de significados pela reinterpretação dos fatos comentados. Para situar a
compreensão do objeto da pesquisa dentro de um referencial preciso, descreve-
se o ambiente democrático mundial anterior à fundação da hegemonia da
democracia liberal e dá-se, outrossim, relevo ao sentido pós-hegemônico das
reações ao princípio político universal. Põem-se, assim, em evidência, os limites
e as potencialidades dos conselhos municipais dentro do novo quadro político,
social, econômico e cultural criado, procurando interpretá-los à luz do sentido
1
Orientador: Prof. Dr. Robson Amâncio UFLA.
que se atribui à participação cidadã na esfera pública local. Reconhecem-se
limitações institucionais aos conselhos municipais, mas vê-se, por outro lado,
com otimismo, o sentido da sua evolução futura como instrumento importante
na redemocratização do Estado Brasileiro, em virtude da sua real capacidade em
promover a realização das condições necessárias à criação de um verdadeiro
sistema nacional de participação dos cidadãos na esfera pública, o que
determina, necessariamente, a base democrática da governança local.
ABSTRACT
TAVARES, Joaquim Baptista. Management counseling of public politics:
from constitution spaces of public sphere non-nationalized to the formation
of a national representation system. 2006. 203p. Dissertation (Master Program
in Administration) Federal University of Lavras, Lavras, MG.
2
The management counseling of public politics appear in the Brazilian
public area like the fundamental socio-political axis in search of necessary
balance between the liberal ideals of representative democracy and those
defended, against, for the participative democracy of the excluded people. The
end of the Cold War, which separated the world, ideologically, into two parts,
confirms the hegemony to the representative liberal democracy, which in this
condition, makes big changes in the plans of social politics, known worldwide.
In Brazil, the reactions to such politics, which restricted the social responsibility
of the State, did not wait, determining the revival of old practices of the
participative democracy, under the constitutional support and the
complementary laws in the organization of a new non-nationalized public space
intended for articulation between the civil society and the public power about the
social issue linked to the public management of resources. This way, municipal
management counseling of public politics are constituted as space of socio-
political participation in order to give support to the popular aspiration of
participating, along with the public power, in a democratic way in the social
debates about Brazilian public politics and their respective management pattern.
So the aim of this work is to understand the limits and potentialities of actions of
these counseling in the context of democratic living, forced, between the liberal
hegemony democracy and the Brazilian participative one, which puts face to
face, in social debates in the public area, the civil society and the public power.
It’s tried to achieve such aim by getting back from the analyses to the empiric
studies about municipal counseling, worldwide, which through quantitative
methods of investigation and data interpretation, the field of meanings is spread
out by reinterpretation of the commented facts. In order to place the
understanding of the researched object in an accurate referential, it’s described
the previous democratic worldwide environment to the hegemony foundation of
the liberal democracy and it’s highlighted the post-hegemony reactions to the
political worldwide principle. This way, it’s evident the limits and the
potentialities of the municipal counseling in a new political, social, economical
and cultural scene, trying to understand them in a clear way attributed to the
2
Adviser: Prof. Dr. Robson Amâncio UFLA.
citizen’s participation in the local public sphere. Institutional limitations to the
municipal counseling are recognized, but on the other hand, they’re seen with
optimism, the way of the future evolution as important instrument for the new
democratization of the Brazilian State, due to its real capacity to promote the
necessary conditions for the development of a true national system of citizen’s
participation in the public sphere, which determines, necessarily, the democratic
base of the local control.
1. INTRODUÇÃO
A década de 1980 representa, sem dúvida, um período feliz na história
político-democrática do Estado brasileiro. Nela está fixada a primeira etapa de
vitórias sócio-políticas alcançadas no culminar de um longo período de lutas
por mudanças protagonizadas pela sociedade civil.
O advento da Constituição Federal de 1988 transformou-se no ponto de
partida para uma longa série de conquistas políticas e sociais posteriores ao
desenvolvimento de um novo cenário político e institucional que se impôs à
Nação, ao estabelecer aquela Lei Magna certos princípios constitucionais, tais
como garantia dos direitos de cidadania, descentralização
político-administrativa, conceito de práticas locais, entre outros.
O país acabava, assim, de ser dotado de uma verdadeira "Constituição
cidadã", como bem lembrou de a chamar, na época, o então deputado Ulisses de
Guimarães
3
. Dentre as inovações nela introduzidas, destaca-se a exigência pela
descentralização político-administrativa que transfere a responsabilidade de
políticas públicas para a esfera municipal, traçando, assim, um modelo de
gestão voltado para a participação da sociedade civil. O dever jurídico de fazer
cumprir esse dispositivo constitucional, no sentido de transformar em ações
práticas o processo de descentralização, levou à criação de um espaço de
experiências democráticas partilhado e assumido por políticos dos mais
diversos quadrantes ideológicos e pela sociedade civil. Nesse cenário, o
Governo se assume, perante a lei, como promotor da abertura de espaços de
participação da sociedade civil e esta se esforça em garantir o direito de
3
Deputado federal, tragicamente morto num acidente de aviação que envolveu a queda
de um helicóptero, em que viajava na companhia de outras pessoas, no litoral do Rio de
Janeiro. Numa entrevista concedida à Rede Globo de Televisão, em 1988, querendo dar
à sociedade civil a mais completa e realística caracterização da Constituição Federal
acabada de ser aprovada, fê-lo de forma magistral com as seguintes expressões: Esta é
verdadeiramente uma Constituição cidadã”, querendo, com isto, realçar o seu foco
central na questão, a então inusitada, da participação democrática no ordenamento
jurídico do Estado.
participar deles.
O tratamento político, quase instantâneo, desta questão por diversos
setores da sociedade brasileira, faz derivar a discussão para o papel dos
Conselhos Gestores das políticas públicas como um dos instrumentos
sócio-políticos responsáveis pelo estabelecimento de uma nova relação entre a
sociedade civil e o Estado. Transformam-se, por conseguinte, os Conselhos
Gestores em espaços democráticos privilegiados de participação direta da
população no processo de construção das políticas públicas municipais.
Contudo, sua importância maior reside no papel que lhe cabe de fortalecer a
participação democrática da população na formulação das políticas públicas
sociais, visando estabelecer uma sociedade na qual o exercício da cidadania seja
uma realidade incontestada.
O princípio da cidadania e a realização conjugada de interesses e
direitos públicos e privados se tornaram os pilares da democracia, sem os quais,
porém, todo e qualquer sistema participativo seria apenas uma estrutura
reprodutora de interesses e valores tradicionais, com novos atores e novas
institucionalidades.
O dever constitucional obriga o Estado a repassar recursos públicos, no
âmbito de programas sociais, apenas aos municípios que criarem Conselhos
Gestores, ao mesmo tempo em que leis federais definem as áreas básicas de
atuação dos Conselhos Gestores nos setores de saúde, assistência social,
educação, habitação, criança e adolescente e emprego.
Aos Conselhos de Gestão foram então conferidos o poder deliberativo,
ampliando o seu raio de ação para fora da sua costumeira função que era
revestida de caráter meramente consultivo e de aconselhamento. Como espaço
sócio-político que arvora um papel fundamental de representação, através da
participação da sociedade civil, devem tais conselhos ser entendidos, no
contexto desta participação, como possíveis reconstrutores da esfera pública,
pois, a participação efetivada no processo de descentralização e a ampliação da
esfera pública, no país, podem funcionar como um dos indicadores das
possibilidades de mudança social efetiva na sociedade brasileira
contemporânea. Entretanto, infelizmente, verifica-se, empiricamente, uma
distância real entre o papel de representação dos Conselhos Gestores e a sua
articulação no interior dos governos, como é o caso de certos municípios onde o
poder local é representado por oligarquias tradicionais e conservadoras.
Tal situação, contudo, não desvirtua o papel dos Conselhos Gestores,
que, de forma geral, são uma forma de participação sócio-política que propicia
uma articulação eficaz entre a população e o poder público, visando à gestão de
bens públicos. Em função disso, acabam por erigir um novo padrão de relação
entre o Estado e a Sociedade, por meio da qual a população acessa os espaços
onde se tomam as decisões políticas, e participa delas.
A presença na gestão pública, ou em coletivos organizados da sociedade
civil, dos Conselhos, é tão antiga como a própria democracia participativa. Em
Portugal, por exemplo, entre os séculos XII e XV, foram criados Concelhos
( grafados com C) Municipais como forma de a Metrópole gerir suas colónias
ultramarinas. Por herança, o Brasil também organizou as suas maras
municipais e prefeituras segundo o mesmo sistema de gestão (Gohn, 2001;
Vieira,1992).
Mas, em nível mundial, as histórias européia e americana registram a
presença da Comuna de Paris, os conselhos dos sovietes russos, os conselhos
operários de Turim, os conselhos alemães dos anos 1920, os conselhos da
antiga Iugoslávia, nos anos 1950 e os atuais conselhos na democracia
americana.Isso nos lembrando da importância histórica que esses organismos
assumiram na formação do perfil organizativo, administrativo, social, político e
cultural de determinados Estados, no final do século XIX e início do século
XX.
O Brasil, por seu lado, conta já com a seguinte experiência, em relação
a conselhos, vivida, sobretudo, nas últimas décadas do século passado: os
conselhos comunitários, criados para atuarem junto às administrações
municipais, no final dos anos 1970; conselhos populares, criados no final dos
anos 1970 e início dos anos 1980, como mbolo de resistência da esquerda ao
regime militar, e os conselhos gestores, institucionalizados nos anos 1990 e
criados nos três níveis do governo, conforme previsto na Constituição Federal
de 1988. Os teóricos e acadêmicos, de forma geral, depositam grande esperança
no futuro dos Conselhos, como um excelente instrumento de participação,
agentes de inovação e espaço de negociação de conflitos.
A presença dos Conselhos nas estruturas político-administrativas
brasileiras e sua vigorosa expansão favorecem a consolidação da democracia
nacional. Contudo, o sucesso dos conselhos poderá ser comprometido se não
forem rigorosamente disponibilizados, a seus membros, as informações e os
conhecimentos necessários sobre o funcionamento das estruturas estatais, que
os possam capacitar para uma melhor intervenção na vida social e pleno
exercício de uma cidadania real e ativa.
A descentralização politico-administrativa do Estado, ocorrida na
década de 1980, garantiu, aos municípios brasileiros, maior liberdade e
autonomia de ação. A descentralização é um processo de alavancagem da forma
de governar, tornando-a mais participativa, democrática e comprometida, do
ponto de vista do poder público e da sociedade.
Desponta, assim, na estrutura da organização político-social brasileira,
um novo modelo de democracia, a democracia participativa, alicerçada na
legitimação de um poder público que incorpora a visão da mais ampla camada
da sociedade. E é nessa perspectiva de instrumento de participação que os
Conselhos Municipais surgem e se inscrevem no processo de descentralização
do país.
Este trabalho objetiva realizar o resgate do “material analítico”
produzido por estudos isolados que procuram compreender a “difícil” posição
de equilíbrio que os conselhos de gestão das políticas públicas são obrigados a
manter no ambiente político brasileiro, sob a influência da democracia
liberal-representativa, de modo a assumirem os novos desafios que lhes são
impostos pelos estrangulamentos sociais provocados pela eliminação das
políticas de Welfare Statee pela nova interpretação dada pela Constituição
Federal de 1988 às questões sociais. Aliás, o objetivo é não resgatar as
análises, que conferem aos conselhos uma determinada identidade, como
também reinterpretá-las, reagrupá-las e, por fim, reapresentá-las sob a ótica de
uma nova leitura dos fatos, numa versão mais abrangente e rica de significados.
O nosso propósito vai ser concretizado ao longo de dez capítulos em
que se estrutura esta dissertação, sendo o primeiro dedicado à introdução.
O capítulo 2 apresenta os fundamentos que delimitam, teoricamente, o
campo de investigação e norteiam o sentido dos trabalhos da pesquisa sob a
visão crítica dos princípios sociológicos e políticos da democracia participativa
brasileira.
No terceiro, descrevem-se os procedimentos metodológicos da análise
qualitativa utilizados na pesquisa documental e na análise às leituras analíticas e
teóricas do material coletado nos documentos consultados.
No capítulo 4 narra-se e discute-se todo o percurso hesitante da
democracia desde as suas remotas origens até se transformar, finalmente, no
século XX, sob o chapéu da democracia liberal e do seu procedimentalismo
democrático, no princípio universal de legitimidade política.
No quinto capítulo discutem-se os limites da democracia
liberal-representantiva nos seus aspectos fundamentais e analisam-se, de forma
crítica, os efeitos da crise de representatividade provocada pelo
procedimentalismo democrático, bem como o sentido das reações ao impacto
desses mesmos efeitos junto à sociedade civil. Destaca-se, ainda, a importância
do exercício de uma cidadania ativa e a urgência na criação e ampliação de uma
esfera pública local como espaço de participação cívica.
O capítulo 6 introduz uma discussão à volta do conceito de governança
local para melhor entender uma das formas mais significativas da participação
democrática por meio dos conselhos de gestão, de cuja presença histórica no
mundo se faz, ainda, um circunstanciado relato analítico e cronológico.
No capítulo 7 discutem-se, analiticamente, a natureza dos conselhos de
gestão das políticas públicas brasileiros e as suas complexidades, deficiências,
limites e potencialidades, como espaços de participação sócio-política na gestão
pública.
O capítulo 8 apresenta a visão objetiva do conselho municipal brasileiro
do futuro, capaz de despertar e mobilizar a consciência participativa local e
transformá-la em forças sociais que estão na base da consolidação, em âmbito
nacional, de um sistema de participação com epicentro local.
O capítulo 9 resgata e reúne, em um conjunto crítico, as análises
produzidas nomeadamente a partir de estudos isolados que procuram
compreender as complexidades dos conselhos de gestão brasileiros
pós-Constituição Federal 1988, num momento singular de afirmação da
democracia participativa brasileira. Situa, outrossim, essas mesmas análises
num patamar mais elevado do conhecimento empírico, pela ampliação do
campo de significados das análises originais, que são contestadas, comentadas
ou ampliadas.
Por último, no capítulo 10, fazem-se algumas considerações de ordem
geral que completam o quadro analítico e a visão crítica do trabalho
empreendido.
2. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA: A TEORIA DA DEMOCRACIA
PARTICIPATIVA
O termo participação popular” ganhou, desde cedo, entre os povos,
estatutos de referencial na busca de acesso dos setores populares ao
desenvolvimento da sociedade civil e ao fortalecimento dos mecanismos
democráticos, bem como na busca de garantias para uma execução eficiente dos
programas sociais. A importância desse conceito se eleva, como reconhece
Alencar (2001, p. 50), à categoria de “processo de aquisição de poder”
Inspirada, talvez, nas vivas memórias históricas de palpitantes
manifestações participativas vividas na sociedade brasileira, a Constituição
Federal de 1988 consagra os princípios constitucionais da cidadania, lançando,
assim, os fundamentos para a participação democrática da sociedade na gestão
das políticas públicas voltadas para a consolidação de uma sociedade do bem-
estar” em detrimento dum Estado de bem-estar”. Segundo Villasante (2002),
a primeira é “mais eficaz” que o segundo “na gestão de serviços”.
Wolfe & Stiffel (1994) definem “participação” como espaços
organizados para incrementar o controle sobre os recursos e as instituições
reguladoras, em determinadas situações sociais, por parte de grupos e
movimentos até então excluídos de tal controle (apud Jacobi, 2002, p. 24).
Este autor nos esclarece, entretanto, que tal definição pressupõe três requisitos
básicos, a saber:
“(i) a existência de grupos sociais antagônicos uns detêm o controle
dos recursos e das instituições, enquanto outros se veêm dele excluídos , o
que dá margem a alternativas; (ii) a efetiva vontade política de viabilizar a sua
prática; e (iii) a participação ser vista não como uma dinâmica polarizada,
mas como dois pólos em processo” (Jacobi, 2002, p. 25).
Borja (1988, apud Jacobi, 2002, p.27), na dificuldade universal de
conceituar bem o termo “participação”, alerta para a mesma dificuldade em
separar, conceitualmente, as expressões “participação citadina”, participação
social”, “participação comunitária” e “participação popular”, que o usadas
indistintamente pelos pesquisadores. Entretanto, menciona, no plano conceitual,
o objetivo principal da participação, que é, segundo seu critério, facilitar,
tornar mais direto e mais cotidiano o contato entre os cidadãos e as diversas
instituições do Estado, e possibilitar que estas levem mais em conta os
interesses e opiniões daqueles antes de tomar decisões ou de executá-las”.
Nesta ordem de idéias, ele aproxima a participação de um método de governo
que satisfaz um conjunto de requisitos vinculados às regras do jogo
democrático e à crescente consolidação de práticas descentralizadoras da
organização político-administrativa, o que se concretiza mediante uma
completa revisão da repartição de competências, funções e recursos”( apud
Jacobi, 2002, p.28).
A participação, segundo Gohn, (2001), pelas características e função, é
“sinônimo” de descentralização.
Ora, a descentralização, segundo Carvalho et al. (1999), constitui o
processo de alavancagem de uma forma de governar mais participativa,
democrática e comprometida, do ponto de vista do Estado e da Sociedade.
Nota-se ali uma perfeita fusão de práticas e de identidade com o papel e a
identidade dos próprios Conselhos de Gestão, que se tornam, particularmente,
numa nova forma de gestão fundamentada na participação cidadã. Esta passa a
ser vista, por muitos autores, como um novo paradigma, uma outra forma de
conceber a relação Estado-sociedade Civil, na qual aqueles setores
tradicionalmente excluídos dos processos decisórios passam a ser participantes
da gestão.
Segundo Gohn (2001), sendo, pois, participação uma lente que
possibilita um olhar ampliado para a História, ela deve, para ser entendida em
toda a extensão do termo, ser analisada, objetivamente, em três níveis básicos, a
saber:
(i) conceptual: a análise realizada a esse nível apresenta alto grau de
ambigüidade e varia segundo o paradigma teórico em que se fundamenta.
Alencar (2001, p. 20) já nos alertava, no entanto, que
é importante observar que participação é um processo
multidimensional e varia de situação para situação em respostas a
circunstâncias particulares”. E, nesta base, conclui, afinal, que não existe um
único modo de compreender esse processo e a sua interpretação está mais em
função da perspectiva de análise empregada;
(ii) político: a análise, a esse nível, está, usualmente, associada a
processos de democratização ou à integração social dos indivíduos, de que
resultam as políticas sociais de controle social;
(iii) da prática social: este é o nível no qual as análises se debruçam
sobre o processo social propriamente dito. Nessa acepção, participação é, pois,
entendida como o meio viabilizador fundamental de ações concretas de lutas,
movimentos e organizações no processo de realização de algum intento.
Acrescenta Gohn (2001), todavia, que é necessário entender a
participação também sob o prisma das suas manifestas formas liberal,
autoritária, revolucionária e democrática, em cujos princípios doutrinários se
funda.
Do ponto de vista da concepção liberal, a participação objetiva o
fortalecimento da sociedade civil” evitando, assim, que o Estado “tiranize,
controle e interfira na vida dos indivíduos”. Nesse sentido, a interpretação
liberal objetiva “reformar a estrutura da democracia representativa e melhorar
a qualidade da democracia nos marcos das relações capitalistas” (Gohn, 2001,
p.15).
As principais ações do paradigma liberal resumem-se, invariavelmente,
em evitar que se anteponham obstáculos burocráticos à participação,
desestimular a interferência governamental nos negócios blicos e, por fim,
fornecer aos cidadãos os canais de informação necessários para que eles
manifestem suas próprias preferências decisórias.
Ideologicamente, a participação liberal está, pois, lastreada em
princípios democráticos que consideram iguais todos os membros da sociedade
e que, por outro lado, apregoam que a participação é o único meio de busca, ao
seu alcance, da satisfação coletiva de necessidades.
Como decorrências doutrinárias da concepção liberal, têm-se a
participação comunitária e a participação corporativa”. Alimentam-se
ambas, obviamente, da mesma vertente paradigmática: a concepção liberal, e
ambas também entendem a participação como um movimento espontâneo do
indivíduono qual não se colocam as questões das diferenças de classe, raça e
etnia.
Do ponto de vista da participação comunitária, entende-se que a
sociedade civil deve ser necessariamente fortalecida pela integração necessária
e institucionalizada dos órgãos representativos da sociedade com os órgãos
deliberativos e administrativos do Estado. Tal integração deve, entretanto,
passar pela fusão do público com o privado, de sorte que, por meio da
participação, seja a sociedade, representada pelos grupos civis organizados,
também incorporada ao aparelho decisório do poder público. Os conselhos de
gestão de políticas públicas brasileiros estruturam-se segundo os pressupostos
do paradigma liberal comunitário e corporativo.
A participação corporativa caracteriza-se pela adesão das vontades
gerais e não de interesses particulares dos indivíduos, embora estes ajam
espontaneamente no plano das idéias que conformam o quadro geral das
vontades. Não há, entretanto, o perigo de dispersão das vontades, uma vez que,
na sociedade, existe a comunhão de idéias e de princípios que sustentam e
garantem certa ordem social que cria o bem comum.
À semelhança da participação comunitária, a participação corporativa
busca uma articulação com as organizações da sociedade, na suposta base de
que tais organizações existem apenas quando as pessoas concretizam a sua
participação.
De acordo com a síntese de Gohn (2001, p.16), a participação
corporativa preocupa-se, fundamentalmente, em encontrar uma resposta
adequada à questão: “por que as pessoas participam e quais são as suas
motivações?”.
A participação autoritária, por seu lado, orienta-se para o controle
social e a integração da sociedade e da política, praticados tanto por regimes
autoritários da direita e da esquerda, como por regimes democráticos
representativos. O critério básico de ação que a caracteriza é a cooptação, por
meio da qual a participação da sociedade é incorporada às estratégias de
formulação das políticas públicas orientadas segundo a visão “de cima para
baixo” para diluir os conflitos sociais.
A participação é democrática quando regulada pela soberania popular e
está presente tanto na sociedade civil quanto nas instituições políticas. Ela
opõe-se vivamente ao corporativismo e faz uma nítida distinção entre a
sociedade civil e o sistema político. Aliás, toda participação é regulada pelo
critério político dos votos livres que sustentam a representatividade
institucional dos indivíduos que, diretamente, sufragam os seus representantes
num processo eleitoral democrático.
Por basear-se, fundamentalmente, no princípio de delegação de poder de
representação, a participação democrática corre o risco da descaracterização
institucional ao favorecer a constituição de redes clientelísticas movidas pelo
poderio econômico ou prestígio político (Gohn, 2001).
Do paradigma democrático decorrem, ainda, as concepções
democrático-revolucionária e democrático-radical.
Nas suas formas revolucionárias, a participação é representada por um
coletivo organizado e engajado na luta “contra a dominação” e “pela divisão do
poder político”. Tais “lutas” ocorrem em diferentes arenas do sistema político
(parlamento) e dos aparelhos burocráticos do Estado.
O elemento básico que distingue esta concepção é o interesse centrado
no sistema partidário que atua como escola de formação de quadros que se
qualificam para participar de espaços democráticos.
Por outro lado, já na concepção democrático-racional, a importância
atribuída aos partidos políticos não é tão grande; a primazia, neste caso, cabe
aos movimentos sociais que revelam possuir melhor capacidade sica de
promover uma participação plural, integrando as experiências associativas de
origens diversificadas na busca de uma nova realidade social, sem injustiças,
exclusões, desigualdades ou discriminações.
A característica predominante desta concepção é a construção da
cidadania que favorece o desenvolvimento, entre os povos, de uma cultura que
estabelece a divisão das responsabilidades na construção coletiva do processo
social, em que a comunidade, como parceira, participa ativamente de todos os
programas dentro de tal processo.
Muito embora a participação seja um termo de análise incipiente na
literatura científica, sobre o qual se detém pouco entendimento por se tratar
ainda de um enigma a decifrar’”, ela é, todavia, fonte de importantes
conquistas de cidadania, como instrumento de constituição de um campo
democrático no seio da sociedade civil” viabilizador de “canais de participação
da população em assuntos que dizem respeito à coisa pública”. Ela se impõe,
fundamentalmente, como meio de luta por melhores condições de vida e pelos
benefícios da civilizaçãoe liga-se às políticas públicas como uma ponte de
entendimentodo processo de democratização às lutas da sociedade por acesso
aos direitos e à cidadania (Gohn, 2001).
Paradoxalmente, verifica-se, entretanto, que a participação não é
assumida com a mesma intensidade nas diferentes situações em que ocorre.
Pateman (1992, apud Gohn, 2001, p.20), enumera três tipos de situação em que
pode ocorrer a participação, como segue: (i) pseudo-participação: que se
caracteriza quando somente consulta a um assunto por parte das autoridades;
(ii) participação parcial: que define uma situação em que muitos tomam parte
no processo, mas uma parte, de fato, decide e (iii) participação total, em
que cada grupo de indivíduo tem igual influência na decisão final.
O grau diferenciado de uso que se faz do termo participação e o nível de
envolvimento na sua concretização daí decorrente refletem a dificuldade em
atribuir-lhe significados concordantes no mundo acadêmico. Oakley & Marsden
(1985, apud Alencar, 2001, p.21) identificaram um conjunto de significados
que melhor exprime o perfil semântico atual do termo participação, como
segue:
“1. envolvimento voluntário dos indivíduos nos programas, sem,
contudo, participarem da sua elaboração;
2. sensibilização dos indivíduos, aumentando-lhes a responsabilidade
para responderem às propostas de programas de desenvolvimento e
encorajando iniciativas locais;
3. envolvimento dos indivíduos no processo de tomada de decisão, na
implementação dos programas, na divisão dos benefícios e na
avaliação das decisões tomadas;
4. associação do conceito de participação com o direito e o dever dos
indivíduos participarem na solução dos seus problemas, terem
responsabilidade de assegurar a satisfação de suas necessidades
básicas, mobilizarem recursos locais e sugerirem novas soluções, bem
como de criarem e manterem as organizações locais;
5. associação do conceito de participação com a iniciativa de pessoas e
grupos, visando à solução de seus problemas e a busca de autonomia;
6. organização de esforços de pessoas excluídas para que elas
aumentem o controle sobre recursos necessários ao desenvolvimento e
sobre as instituições que regulam a distribuição desses recursos”.
Por outro lado, Alencar (2001, p.22) refere-se aos seguintes
significados:
“1. Colaboração envolvimento das pessoas nas atividades grupais,
onde o agente externo é o principal protagonista. Essa forma de
participação equivale a ‘informação’, uma vez que as decisões básicas,
relacionadas aos programas de desenvolvimento, já foram tomadas.
‘Participação’ não está dissociada do controle e responsabilidade do
agente externo.
2. Desenvolvimento da comunidade participação é entendida como
um processo de promoção social, onde é delegada aos membros da
comunidade a responsabilidade de criarem conselhos de
desenvolvimento, os quais são considerados veículos de participação.
3. Organização – 3.1 Participação relaciona-se com o processo onde os
indivíduos se organizam e, por meio dessa organização, tornam-se
capazes de ter voz nos projetos de desenvolvimento. 3.2 Organização
como resultado da busca pelos indivíduos de formas mais adequadas de
ação, as quais emergem da análise que eles fazem da realidade que os
envolve. O agente externo teria, nesse caso, uma menor influência.
4. Empowering a interpretação mais comum relaciona-se com
aquisição de poder: poder em termos de acesso e controle de recursos
necessários ao desenvolvimento (Oakley & Marsden, 1985)”.
2.1. A participação sob o olhar das Ciências
Segundo Gohn (2001), os primeiros estudos científicos sobre o tema
participação datam do século XVIII, com as formulações de J.J. Rousseau.
Posteriormente, revelaram-se os teóricos do liberalismo, como John Stuart Mill,
G.D.H. Cole e A. de Tocqueville. No século XIX, seguiram a eles os socialistas
utópicos Owen e Fourrier e os libertários Proudhon e Kroptkin.
Entretanto, Marx e Engels criaram um paradigma de teorização sobre a
participação de massas que, no culo XX, foi seguido por Trotsky, Lênin e
Rosa de Luxemburgo, bem como por Gramsci, Mao Tsé-Tung, Gorz, Mandel e
Poulantzas. Mais tarde, porém, Verba, Pizzorno, Hirchman e Darendorf se
afastaram do paradigma de Marx e Engels, seguindo eixos paradigmáticos
muito diferentes.
Rousseau é considerado o teórico por excelência da participação. Ele
entende que o indivíduo se torna bom cidadão quando deseja o bem geral e não
o particular e participa no processo das decisões comunitárias com o elevado
sentido moral de proteger os interesses privados e assegurar um bom governo.
Acredita que, quando participam do processo decisório na sociedade, os
indivíduos se tornam psicologicamente mais “abertos”. Tal crença exterioriza o
seu posicionamento relativamente à educação das pessoas que ele, afinal,
considera o pilar básico da participação por assegurar que esta se firme em
bases sólidas do conhecimento que aumenta “o valor da liberdade para o
indivíduo” e o capacita para “ser (e permanecer) seu próprio senhor” (Pateman,
1992, p.40).
Todavia, a educação, em Rousseau, se reveste de maior importância ao
garantir que, sob a influência da participação esclarecida do indivíduo, ões
políticas programadas e realizadas com elevado performance moral e sentido
cívico constituam fundamentos sólidos que atribuem à feitura das leis que
governam os indivíduos esses mesmos atributos. Isso porque, conforme
Lesbaupin (2000, p.81, apud Gohn, 2001, p.22), referindo-se à opinião de
Rousseau, a lei emerge do processo participativo e é essa mesma lei, não os
homens, que governa as ações individuais”.
Na questão da educação participativa, J. S. Mill se aproxima de
Rousseau e defende a importância do localismo na formação participativa do
indivíduo, em que este aprende sobre a democracia e a autogovernar-se.
Distancia-se, porém, de Rousseau no que tange à idéia deste sobre a “necessária
igualdade política” dos indivíduos. Dominado por um comportamento elitista
que os fundamentos à sua teoria de participação integrativa, Mill reconhece
que o papel dos representantes eleitos deve ser o de “debater” e não o de
“legislador” propriamente dito. A função de fazer leis, defende Mill, deve ser
dada a uma comissão especial (Gohn, 2001).
Cole apresenta uma teoria em tudo semelhante a Rousseau: afirma que a
vontade e não a força é a base da organização social e política. O indivíduo de
Cole também, à semelhança daquele apresentado por Mill, aprende a
democracia apenas pela participação em vel local e em associações locais
(Cole, 1920, apud Pateman, 1992, p.55, apud Gohn, 2001, p.23). Ele realça a
importância das associações na busca da satisfação das necessidades dos
indivíduos e propõe que a sociedade crie cooperativas de consumidores,
conselho de utilidades, guildas cívicas para cuidar da educação, saúde etc.,
como instrumento estratégico na participação local. Propõe, ainda, a criação de
estrutura política participativa em âmbito local, regional e nacional e defende
vigorosamente o direito à associação dos indivíduos.
Alexis de Tocqueville (1998, p.72) é um estudioso da democracia que
muito se aproxima das idéias americanas nesse campo. Inspira-se na
democracia americana para propor um sistema de participação representativo,
constituído de comuna, em que “o povo é a força dos poderes sociais”, poder
central e condado. Considera a democracia “uma maneira de ser da sociedade”
e “poder do império da lei”. Acredita que o “estado social democrático é
inevitável” e a soberania do povo como forma de governo. Propõe, como
critérios necessários ao combate à centralização, ao despotismo e ao
individualismo, a existência de cidadãos livres e a formação de homens
independentes e capazes de se autogovernarem para “educar” a democracia
(Gohn, 2001).
Os marxistas ligam o conceito de participação à idéia de lutas e
movimentos sociais. Os autores que atualmente mais se destacam na corrente
contemporânea de estudos sobre a participação em movimentos sociais são
Manuel Castells, Jean Lojkine, Claus Offe, Laclau e a corrente dos
historiadores liderada por Hobsbawn, E. P. Thompson, G. Rudé e outros. A
preocupação predominante no grupo é com a cultura política que resulta das
inovações democráticas relacionadas com as experiências vividas nos
movimentos sociais. Do ponto de vista marxista, os processos de lutas sociais
estão voltados para a transformação das condições existentes na realidade social
de ordem econômica ou de opressão sócio-política e cultural (Gohn, 2001).
O conceito de participação é tratado nos mais diversos campos
científicos da Sociologia, Ciência Política, Ciências Sociais e Ciências da
Educação.
Na Sociologia, a participação é tratada como uma medida de cidadania
e se associa à idéia de exclusão social, como fator de integração. Nesse último
caso, a participação toma o significado de luta contra a exclusão (Stassen, 1999,
apud Gohn, 2001). Stassen divide o conceito de participação em “participação”
e “não participação” e, na qualidade de fator de integração, nos termos
“integração/exclusão”.
Para Stassen, afinal, só existe participação de fato “quando há um
sentimento de que os indivíduos têm valor e são necessários para alguém,
quando percebem sua própria contribuição, e que têm um lugar na sociedade,
que são úteis, que são valorizados por alguém(Gohn, 2001, p.28).
Na Ciência Política, o conceito relaciona-se à noção de participação
política tratada nos estudos de Pizzorno.
Para Pizzorno (1971, apud Gohn, 2001, p.27-28), a participação
política é uma ação em solidariedade para com o outro, no âmbito de um
estado ou de uma classe, em vista a conservar ou modificar a estrutura do
sistema de interesses dominantes”.
A participação política ganha maior dimensão na medida em que os
indivíduos intensifiquem o seu envolvimento nas tomadas de decisões políticas
fundamentais. A este respeito, refere Dalmo Dallari (1984, apud Gohn, 2001, p.
27) que “entre as mais eficientes formas de participação política estão os
trabalhos de conscientização e de organização”.
Nas Ciências Sociais, utiliza-se o termo participação com o sentido da
participação da sociedade civil. Nesta acepção, a participação se torna um
conceito ambíguo, podendo ter um significado “forte” ou “fraco”.
Por último, no campo da Educação, o conceito de participação está
ligado ao processo de transformação da realidade. A participação torna-se,
entretanto, a estratégia fundamental de desenvolvimento, que impulsiona a
criação de novos conhecimentos, na determinação das necessidades essenciais
da comunidade e a busca de soluções apropriadas (Gohn, 2001).
2.2. Conselhos Gestores como estratégia participativa no exercício da
cidadania num quadro descentralizado de poder
A Constituição Federal de 1988 institui a figura de Conselhos de Gestão
de Políticas Públicas para concretizar o projeto social de participação popular
na gestão pública dos recursos do Estado.
Assim, foram criados, por lei, nos três níveis da administração pública
brasileira, os Conselhos Gestores, cuja finalidade é propiciar articulação entre a
população e o poder público, visando: à gestão de bens públicos (Gohn, 2001);
à ampliação das possibilidades de estímulo ao acúmulo de capital social, por
meio da transformação política e mobilização social, de modo que, a uma
mudança institucional sigam mudanças sociais mais profundas (Bonfim &
Silva, 2003), e contribuir para a construção de um ethos voltado para o
fortalecimento da res pública, tendo como fulcro questões de interesse
universal e coletivo (Lyra, 1996). Os Conselhos Gestores tornaram-se, então,
em função dos seus objetivos fundamentais, uma forma de participação
sócio-política e agentes de inovação e espaço de negociação de conflitos (Gohn,
2001), ou passaram a constituir em alternativas voltadas para o rompimento
com o corporativismo pontual das demandas locais e para a instauração de
perspectivas para toda a coletividade, por meio de políticas regulatórias
(Doimo, 1995).
A melhor compreensão dos Conselhos Gestores pode ser obtida por
meio de uma análise cuidada dos conceitos de governo local, poder local, esfera
pública e governança local.
As teorias sobre o governo local estão sistematizadas em duas
categorias: as normativas e as empíricas. Nas primeiras, desenvolvidas na
Grã-Bretanha, são estimuladas oposições ao governo centralizado por se
acreditar que as instituições locais distribuem com mais eficiência os recursos
públicos; são defendidas autonomias para os governos locais como uma
expansão de um Estado de Bem-Estar Social, e discutidas a eficiência do
governo local no uso dos recursos e a sua capacidade para responder às
demandas locais. A preocupação maior é, portanto, com o aumento dos veis
de participação democrática dos cidadãos e, ao mesmo tempo, com o aumento
da eficiência da máquina burocrática estatal (Gohn, 2001). Nas categorias
empíricas, o tema participação não é discutido, deslocando-se toda a atenção
para o poder político e as elites dirigentes, cuja capacidade de atingir os
objetivos globais é destacada. A preocupação central é, portanto, criar
condições para que os serviços coletivos locais se viabilizassem no mercado,
num plano de competição (Gohn, 2001).
O conceito de poder local é mais abrangente que o do governo local. Ele
penetra no interior do governo local e interfere nas políticas blicas locais, no
poder econômico, político e social das famílias, e no poder carismático de
líderes locais e regionais.
O poder local pode ser entendido como sede político-administrativa do
governo municipal (cidades), mas, a sua máxima expressão é como forma de
participação e organização popular dinamizadoras de mudanças sociais. Ele é,
enfim, sinônimo de força social organizada” por meio da qual a participação
da população se transforma em empowerment da comunidade, utilizado para a
capacitação e geração de processos de desenvolvimento auto-sustentável, com a
mediação de agentes externos (Gohn, 2001).
Outro conceito ligado à teoria democrática é o da esfera pública, na qual
interagem grupos organizados da sociedade, organizações, associações,
movimentos sociais, etc., para debater problemas coletivos da sociedade, como
o tema da mulher, da vida doméstica, etc.
O conceito que se reveste da maior importância para a nossa pesquisa é
o da governança local, por ser nele que os Conselhos Gestores podem ser mais
bem entendidos. Trata-se de um conceito em formação e é bastante híbrido.
Busca, contudo, articular elementos do governo local com os do poder local,
caracterizando-se, desta feita, como um “sistema de governo” em que é
fundamental a inclusão de novos atores sociais, por meio do envolvimento de
um conjunto de organizações públicas e privadas (ONGs, movimentos sociais,
entidades privadas e órgãos públicos estatais).
A governança local se caracteriza, portanto, como o universo das
parcerias, da gestão compartilhada entre diferentes atores e agentes, tanto da
sociedade civil, como da sociedade política (Gohn, 2001). É a caracterização
perfeita do locus onde os Conselhos de gestão das políticas públicas irão
desenvolver a sua atividade, a partir de articulações que envolvem
participações, diálogos, confrontações e decisões, num ambiente (preferível) de
uma genuína “democracia participativa” e de um perfeito sentido de
“solidariedade ou colaboração solidária”.
A colaboração solidária, absolutamente necessária em regimes
democráticos, segundo Mance (2001, p.19), é uma atitude ética que orienta a
nossa vida e uma posição política frente à sociedade em que estamos
inseridos”. Eticamente falando, o mesmo autor afirma tratar-se de uma fonte de
promoção do bem-viver de cada um em particular e de todos em conjuntoe
politicamente “de transformações na sociedade”, com esse mesmo fim.
A par com a solidariedade, a participação é essencial à democracia à
qual está associada e, também, à representação, à organização, à
conscientização, à cidadania e à exclusão.
2.3. Limitações teóricas e práticas ao papel dos Conselhos de Gestão
Pública
Os Conselhos Gestores são, em última análise, instrumentos de
mobilização popular criados com o objetivo de viabilizar propostas e projetos
mais abrangentes que apontassem para uma nova sociedade, segundo uns e,
segundo outros, de transformar a administração pública a partir de uma nova
filosofia administrativa moderna, adaptada aos tempos em que o conflito social
tem que encontrar arenas próprias de luta (Gohn, 2001).
Por outro lado, os Conselhos são um “espaço público não-estatal de
descentralização político-administrativa” que incide na gestão pública “de
forma indireta”. Esta característica os impede de evitar a dispersão da
coerência, sobretudo entre os elementos da gestão participativa, como a
cidadania, a descentralização e outros, muito embora sofram também as
conseqüências, que diminuem a eficácia do seu papel. Em relação à
descentralização, tem-se verificado que, em certas condições e determinadas
regiões, o impacto da descentralização tem fomentado, muitas vezes, a
ampliação das possibilidades de malversação dos recursos públicos (Bonfim &
Silva, 2003). Do mesmo modo, também se acredita que um aumento da
participação pode abalar a estabilidade do sistema democrático (Gohn, 2001).
De modo geral, os limites impostos ao êxito dos Conselhos Gestores são
a resistência (de forças da sociedade e dos políticos que estão no governo); a
pouca disposição dos poderes constituídos de enfrentar confrontos entre
pensamentos múltiplos e práticas plurais que necessariamente se evidenciam
nos processos mais abertos, havendo a preferência por definições em uma
esfera mais restrita; a cultura centralizada e autoritária das organizações e a
manipulação pela oposição (Lyra, 1996).
2.4. Problematização
A redemocratização do Estado brasileiro impôs um novo figurino
político e administrativo à sociedade, cujos contornos foram traçados pela
Constituição Federal de 1988. Dentre outros, a Constituição consagrou os
princípios de “participação”, de “descentralização do poder” e de “democracia
participativa”, que se tornaram basilares na constituição de um espaço de
participação sócio-político da sociedade e do poder público, em que a
democracia é aperfeiçoada e fortalecida, e a descentralização, consolidada. Tal
espaço está configurado nos Conselhos de gestão de políticas públicas criados,
por lei, nos três níveis da administração pública brasileira.
Os Conselhos tornam-se, assim, canais privilegiados de participação da
sociedade civil na gestão das políticas públicas, agentes de inovação e espaço
de negociação dos conflitos. No entanto, para que os Conselhos Gestores sejam
instrumentos efetivos de mobilização popular, e mecanismos operativos a favor
da democracia e do exercício da cidadania, em todo e qualquer contexto
sócio-político, de modo que se transformem em aliados potenciais e
estratégicos na democratização da gestão das políticas sociais, os seus membros
devem ser capacitados com informações e conhecimentos e as suas funções
alargadas com mais atribuições, como, por exemplo, o poder deliberativo. Um
caráter eminentemente de assessoria, de aconselhamento, portanto, transformá-
los-ia em instrumento manipulável e de manifesta impotência como propulsor
da expansão e consolidação da descentralização do poder, entre outros. Este
projeto de transferência de poder até foi posto em causa, ao que parece, por
razões que se prendem à inoperância dos Conselhos, ou com a simples falta
deles. Argumenta-se, de resto, que é notório, sob certas condições e em
determinados espaços, ser a descentralização um processo de malversação de
recursos.
Será, então, a descentralização do poder um processo político viciado,
fadado ao insucesso e incapaz de se assumir como um verdadeiro processo de
aprofundamento da democracia? E os Conselhos Gestores atuais estão
adequadamente estruturados para se tornarem centros de excelência de
participação da sociedade civil nos negócios públicos do Estado e do exercício
da cidadania, conforme o pensamento que norteou a sua criação? Sendo espaço
de conflitos, a ausência eventual de consensos se torna a razão da sua
inoperância? De seu descrédito? De eventual dominação das idéias das elites do
poder público sobre a vontade democrática da sociedade civil, com a
conseqüente perda de confiança e de redução do acúmulo do “capital social” em
geral? Pois, como nos lembram Bonfim & Silva (2003, p.120), a tentativa da
expansão da democracia participativa tem sido marcada por implicações
contrárias ao caráter positivo que se atribui à participação cívica”, e a
participação sofrido resistência, “sobretudo em países ou regiões onde a
credibilidade do Estado encontra-se abalada devido aos governos
descomprometidos com o bem-estar social e, portanto, com atuação
caracterizada pela intolerância e falta de confiança da sociedade.
Este projeto de pesquisa pretende obter alguma “compreensão” sobre o
percurso dos Conselhos Gestores, realizado sob o signo da democracia
participativa brasileira, por meio de uma reinterpretação das análises das
características assumidas no contexto do seu desenvolvimento como espaço
criado para exercer uma função compensatória na gestão das políticas públicas,
no sentido de viabilizar o processo de descentralização do poder que transfere a
autonomia política, administrativa e financeira do Estado para os municípios.
3. METODOLOGIA DE PESQUISA
O nosso objeto de estudo é complexo. Compreendê-lo nos seus aspectos
mais relevantes é, antes de tudo, compreender os fenômenos políticos e sociais,
como a democracia e a participação do cidadão na vida política do Estado, que
o envolvem.
Sabe-se que tanto a democracia quanto a participação popular têm uma
origem remota e duvidosa que deu azo a muitas especulações. A tradição
histórica atribui à democracia origem helênica, nos longínquos anos de 500
a.C., e fixa a Revolução Francesa como marco do surgimento da participação.
Estando, pois, os conselhos e seu desenvolvimento institucional
umbilicalmente ligados a tais fenômenos, a sua compreensão, nos termos dos
objetivos deste trabalho, baseia-se nas fontes de pesquisa documental e
bibliográfica dentro da perspectiva de Marconi & Lakatos (1990, p.66) de que
“(...) a pesquisa bibliográfica não é mera repetição do que foi dito ou escrito
sobre certo assunto, mas propicia o exame de um tema sob novo enfoque ou
abordagem, chegando a conclusões inovadoras” e na utilização de técnicas
ecléticas de pesquisa.
Para melhor manipular os elementos cronológicos dos eventos
pesquisados e a diversidade ideológica dos juízos emitidos nas mensagens, ou
suas características ausentes, os dados reunidos por meio da pesquisa
documental e bibliográfica são submetidos à análise qualitativa com emprego
das técnicas de análise documental e bibliográfica, do método histórico e da
análise temática, atribuindo, em toda a tarefa analítica, grande importância à
experiência do pesquisador na fixação do novo sentido dado ao texto
reproduzido.
O método histórico é largamente utilizado nos primeiros capítulos para
resgatar e compreender, com certa lógica, os principais aspectos ligados à
origem, ao desenvolvimento e à transversalidade dos atos da democracia,
participação e conselhos municipais.
As análises documental e bibliográfica, bem como a análise temática,
são utilizadas, em conjunto, em todas as partes do trabalho, para captar e fixar
“as impressões” do emissor, os juízos emitidos, as convergências e as
divergências de opiniões, entre outros sentidos que permitem conhecer, com
clareza, o objetivo da mensagem analisada. Como nem sempre toda a
“intenção” da mensagem é explicitada no texto, tenta-se captar “os intentos
ocultos da mensagem” recorrendo-se, complementarmente, ao background do
autor desta dissertação em alguns domínios de saber que constituem o
arcabouço da sua cultura intelectual para amplificar os significados da
mensagem e o escopo lingüístico da análise interpretativa.
3.1. Coleta e interpretação de dados
Os dados da análise, como foi dito, são extraídos de fontes
documentais e bibliográficas, sendo estas últimas as mais consultadas. O
processo empregado corresponde a um procedimento analítico efetuado em três
fases, como segue:
a) pré-análise: nesta fase é feito o levantamento documental e
bibliográfico do material a ser analisado. O material é selecionado de modo a
permitir várias levas de leituras com seqüências que assegurem um movimento
evolutivo na coleta de dados e na produção subseqüente de informações, em
termos de qualidade e quantidade. Dois ou três textos (geralmente capítulos)
constituem cada leva de leituras;
b) análise do material reunido: esta fase envolve os seguintes passos:
(i) uma leitura superficial do material com o objetivo de pura e simplesmente
obter as primeiras impressões em relação à mensagem dos documentos, com
destaque para o conhecimento preliminar dos conceitos utilizados e contato
com a concepção que o autor ou os autores têm dos fenômenos estudados e (ii)
uma leitura mais cuidada de modo a retirar dela idéias pertinentes ao trabalho.
Procura-se, com esta atividade, fazer aparecer “essas idéias pertinentes” e
compreendê-las em profundidade, após o quê são articuladas entre si de forma
coerente.
Para retirar dessa leitura o máximo proveito, adota-se um método de
leitura muito rigoroso e preciso. Esse método é composto de duas etapas
indissociáveis: o emprego de uma “grelha de leitura”, para ler em profundidade
e com ordem, e a redação de um resumo para destacar as idéias principais que
merecem ser retidas.
A “grelha de leitura” é um instrumento de apoio à leitura que permite ao
leitor ir fazendo as suas anotações, enquanto lê, numa folha dividida em duas
colunas. Na coluna da esquerda, sempre maior, ele escreve a idéia principal do
texto original, fazendo-o sempre parágrafo por parágrafo. Na da direita, depois
de ler e reler várias vezes as idéias constantes da coluna esquerda, e de
apreender as suas articulações e discernir a estrutura global do pensamento do
autor (as suas idéias-mestras, as etapas do raciocínio e a complementaridade
entre as partes), o leitor escreve as articulações verificadas em frente das idéias
reunidas na coluna da esquerda.
Guiando-se pela grelha assim organizada, o resumo é feito a cada leva
de leituras. Fazer o resumo de um texto, segundo Quivy & Campenhoudt (1992,
p. 62), consiste em destacar as suas principais idéias e as suas articulações,
de modo a fazer aparecer a unidade do pensamento do autor”. O resumo passa
a ser o material básico de todo o trabalho analítico e fonte de dados para a
produção do novo texto;
(c) interpretação: esta fase emprega as técnicas qualitativas de análise
acima referidas para comparar as mensagens de diversas fontes e medir as
informações que elas contêm. Começa pela comparação atenta dos resumos
dos textos escolhidos para deles retirar os elementos de reflexão e as pistas de
trabalho mais interessantes. Este trabalho é realizado em duas fases, a saber:
comparação dos textos resumidos e levantamento de novas pistas de trabalho.
Relativamente à primeira fase, empregam-se dois critérios: (i) os pontos de
vista adotados pelos autores (o estudo dos conselhos e da participação é
abordado numa perspectiva histórica, sociológica e política); para os efeitos de
uma confrontação de pontos de vista feita com ordem e clareza, destacam-se as
convergências e as divergências entre eles, e as suas complementaridades. O
novo texto reflete o nível de organização geral das idéias alcançada e (ii) os
conteúdos das mensagens. Os autores, quer adotem ou não pontos de vista
comparáveis, podem defender teses conciliáveis ou inconciliáveis e, por vezes,
criticam-se abertamente entre si. Para confrontar os conteúdos com ordem e
clareza, sublinham-se as concordâncias manifestas entre eles, os desacordos e
as complementaridades. A sistematização dos juízos produzidos é incorporada
ao novo texto.
Na segunda fase, procuram-se novas pistas que ampliem o escopo das
análises originais. As características ausentes das mensagens originais são
analisadas, propiciando o aumento do nível semântico e lingüístico das
mensagens, bem como do campo das significâncias das análises. Nesta fase, o
papel e a capacidade crítica e analítica do autor deste trabalho se revestem de
grande importância. Baseia-se, sobretudo, no seu background adquirido à custa
de observação assistemática, no sentido em que esta expressão foi empregada
por Rudio (1979, apud Marconi&Lakatos (1990, p.81): é o fato de o
conhecimento ser obtido através de uma experiência casual, sem que se tenha
determinado de antemão quais os aspectos relevantes a serem observados e
que meios utilizar para observá-los”.Em conjunto com outras técnicas,
reinterpreta as análises originais, de modo que o texto final, além de refletir a
visão argumentativa dos autores consultados, incorpora também as “teses” do
autor deste trabalho sobre o objeto da pesquisa.
4. PERCURSO ACIDENTADO DA DEMOCRACIA DESDE OS
PRIMÓRDIOS ATÉ A CONSAGRAÇÃO DA CONCEPÇÃO
HEGEMÔNICA DO SÉCULO XX
A democracia é uma criação humana em constante mutação. Sua
importância assumida em determinado período histórico assinala o grau de
aprofundamento alcançado nesse momento.
Ao ritmo das mudanças políticas e sociais, a história tem revelado uma
democracia com avanços marcados por sucessivos recuos, a qual, inventada na
Grécia antiga, no século XX, sob a denominação de democracia
liberal-representativa, encarna o espírito político de princípio universal.
A democracia foi, sem dúvida, o acontecimento mais importante desse
século.
4.1. Democracia foi inventada e desenvolveu-se em contextos favoráveis
A democracia podia ser inventada em qualquer época, ou ponto do
mundo, em que estivessem reunidas as condições favoráveis à vida em
sociedade, com frágeis vínculos de hierarquização de poder e pouco nítidas
formas de dominação, porém, com alta percepção entre os cidadãos de que
qualquer um tem capacidade para participar do governo do seu povo (Dahl,
1998, p.20).
A suposição de que a democracia podia surgir em qualquer sociedade
soberana, que oferecesse as respectivas circunstâncias favoráveis, levou certos
povos, que julgavam reunir as condições necessárias, a reivindicarem para si a
autoria histórica da invenção da democracia ou a, simplesmente, procurar aclarar
uma suposta origem ainda envolta em nebulosas, obviamente em proveito
próprio, forçando para tal o aparecimento de certas teses fantásticas, defensáveis
apenas com recurso a argumentos baseados em raciocínios capciosos.
A tradição fixa a origem da democracia por volta do ano 500 a.C., na
Grécia. Os norte-americanos, orgulhosos do seu sistema democrático que
criaram a partir da lógica de funcionamento do Parlamento Constitucional
inglês, acreditam, todavia, que a verdadeira democracia foi inventada por eles
cerca de 200 anos.
Porém, nas antigas cidades-estado da Itália, que chegaram a ser muito
prósperas econômica, social, artística e culturalmente, na Idade Média, surgiram
regimes de governos populares de pendor democrático, denominados, então, de
repúblicas, quando a democracia florescia e se aperfeiçoava como regime de
governo nas cidades-estado helênicas.
Um olhar perscrutador através da história, lançado sobre as remotas
sociedades tribais pouco heterogêneas que até então conservassem preservada a
sua soberania, nos faria, decerto, perceber, quase instantaneamente, que as
práticas sociais ali desenvolvidas eram altamente favoráveis ao surgimento de
uma consciência e prática democráticas entre o grupo. Efetivamente, defende-se
a idéia de que a democracia primitiva teria surgido e se consolidado em tais
sociedades (Dahl, 1998).
As sociedades primitivas, conforme as circunstâncias climatológicas
ditassem, e a evolução sócio-organizativa permitisse, teriam experimentado, ao
longo da sua rústica existência, freqüentes mudanças nos hábitos e costumes,
que favoreceram, por conseguinte, o surgimento diferenciado de práticas sociais,
políticas, laborais e culturais muito dinâmicas, que as distinguiam umas das
outras.
Quando as tribos se dedicavam primariamente à caça e à pesca, ou
simplesmente eram sociedades coletoras, percebia-se claramente, entre seus
membros, a existência de uma gica da igualdade(Dahl, 1998). Essa idéia
levava cada cidadão tribal, indiscriminadamente, a supor-se apto a governar seu
povo, e esclarecido bastante para emitir seus juízos sobre qualquer assunto do
clã, em pauta.
Nessa fase que caracterizava o período de simples e rudimentares
atividades extrativas, e marcava de modo indelével a vida nômade das tribos, o
povo selvagem não conhecia a mais simples forma de hierarquização social, e
nem era “natural” qualquer outra forma visível de dominação na sociedade
primitiva. Uma análise atenta ao contexto em que se desenrolava a vida singela
da primitiva civilização humana permitia concluir, com relativa segurança, que
alguma forma primitiva de democracia pode muito bem ter sido o sistema
político mais ‘natural’, entre tribos remotas” (Dahl, 1998, p.20).
As famílias tribais reunidas em clã eram pouco dadas ao contato com
povos vizinhos diferentes e viviam, portanto, longe do perigo de serem por eles
corrompidas e de verem suas práticas sociais adulteradas por um processo de
aculturação político-social. Essa forma solitária de viver favorecia, entretanto, a
construção de uma verdadeira identidade do grupo, no qual se difundia e se
acentuava o sentimento generalizado de uma “igualdade intrínseca”
4
entre os
indivíduos.
Quando, enfim, a barreira que dificultava a aproximação dos povos
primitivos foi quebrada, em função de adoção de práticas que os levaram a
fixarem seu domicílio em lugares onde pudessem plantar e esperar para colher o
seu alimento e, provavelmente, trocar o excedente da produção, o regime
democrático desaparece entre eles. Em seu lugar surgem, então, monarquias,
4
Tocqueville (1961), tendo naturalmente observado, na Europa e nos Estados Unidos, a
igualdade de condições dentro das respectivas sociedades, julgou-a um fato
providencial, dotado de todas as características de um decreto divino: é universal, é
permanente, escapa sempre a qualquer interferência humana; todos os acontecimentos
e todos os homens contribuem para o seu progresso”. Esta constatação fê-lo admitir que,
pelo princípio de “igualdade intrínsica”, a qualquer pessoa devem ser reconhecidos
direitos iguais à vida, à liberdade, à felicidade e a outros bens e interesses
fundamentais” ( apud Dahl, 1998, p.77-78).
despotismo, aristocracias ou oligarquias, pondo em prática alguma forma de
hierarquia e dominação até então desconhecida.
4.2. Trajetória histórica da democracia primária é marcada por uma
sucessão de invenções
Conquanto parecesse lógico e razoável e por que não defensável?! o
argumento da presença democrática no seio dos povos tribais nos primórdios da
civilização humana, que não foi, no entanto, registrada pela história universal,
esta apenas confirma a origem helênica da democracia. Teria sido inventada,
segundo os registros históricos que chegaram até os nossos dias, 2.500 anos,
na Grécia. Rapidamente se espalhou pelas cidades-estado gregas que, em fase
anterior, adquiriram todas um crescente senso de identidade e
solidariedade” (Avritzer, 2005, p.1).
A experiência democrática mais interessante vivida por essas cidades-
estado foi a de Atenas, que se tornara o centro de democracia mais importante
do mundo de então, onde se praticava, com sucesso, o modelo de política
democrática formulado por Sólon, por volta de 600 a.C. (Avritzer, 2005). Este
modelo constituía a base de um sistema de governo popular adotado na cidade
por volta de 507 a.C., que representava uma verdadeira democracia
participantee pelo qual todos os cidadãos estavam autorizados a participar na
Assembléia para “eleger funcionários essenciais”, pelo método de “sorteio
(Dahl, 1998, p.21-22). O governo popular ateniense sobreviveu por dois séculos
desde a sua instauração, tendo soçobrado com a conquista de Atenas, primeiro
pela Macedônia e, posteriormente, por Roma.
Subjugada a maior e a mais importante democracia da antiguidade
européia mediterrânica, o governo popular de Roma, conhecido agora, não como
“democracia”, mas, sim, como “república”
5
, pode transpor, com
facilidade, as limitadas fronteiras das cidades-estado romanas e instalar-se entre
as tribos estrangeiras anexadas nas restantes cidades-estado da Itália e além
fronteiras.
A república romana, entretanto, debatia-se com sérios problemas para
manter a presença de seu sistema de governo popular nos seus vastos domínios
que cresciam desmesuradamente com sucessivas guerras vitoriosas travadas
contra povos vizinhos e outros remotos da Europa. A expansão do território
ultramarino administrado por Roma dificultava, sobremaneira, um
acompanhamento político eficaz dos seus vastos domínios, representados por
urbes que evoluíam de modo extraordinário de todos os pontos de vista
contemplados. De resto, os romanos, apesar de serem um povo criativo, não
conseguiram inventar e oferecer aos seus concidadãos, como convinha, um
sistema de governo representativo, fundamentado em representantes eleitos
democraticamente” (Dahl, 1998, p.24).
A república romana era inicialmente seletiva. Das suas instituições
políticas participavam apenas os “patrícios”, como eram conhecidos os
aristocratas. Porém, mais tarde, o povo também passou a ser admitido nas hostes
do governo popular.
Uma ditadura instaurada por Júlio César veio, finalmente, pôr fim à
moribunda república romana, dando, assim, origem à consolidação do império
romano, por volta de 44 a.C. Iria, assim, ter início um longo ostracismo de
governos populares, que literalmente desapareceram do sul da Europa e da face
5
Madison distingue assim a democracia de uma república: uma democracia pura, que é
uma sociedade consistindo num pequeno número de cidadãos, que se reúnem e
administram o governo pessoalmentee uma república, que é um governo em que
um sistema de representação”( Madison, 1937, p. 59 apud Dahl, 1998). Ao que parece,
esta distinção feita por Madison não tem uma base histórica, pois desta falha o criticam
severamente seus adversários.
da Terra, por um período de cerca de mil anos. Ao final desse longo interregno
sem a presença de governos populares, estes ressurgiram ao norte da Itália, por
volta do ano 1100 d.C. O mundo da época voltava, então, a viver à sombra de
governos populares, agora influenciados e mantidos sob a égide da república
italiana.
A república ressuscitada não trazia, no entanto, nenhuma novidade em
relação aos seus antepassados, a democracia grega e a república romana. Aquela
não conseguiu idealizar nem reproduzir um sistema de governo popular
representativo, e nem estas foram capazes também de inventá-lo. Uma atenção
especial era dada à política local, na qual os nobres e grandes proprietários
tinham o maior protagonismo. Mais tarde, porém, o “popolo”
6
, ao final de uma
vitoriosa luta pelo direito de participar”, veio a tomar parte na arena política
local (Dahl, 1998, p.25) e a reforçar a democracia no interior do governo local.
A preocupação demasiadamente localista ofuscara, no entanto, a visão
de uma democracia nacional, com base na representação dos eleitos pelas
Assembléias locais que, em vez de se aperfeiçoar e expandir, a esse nível, com a
unificação das cidades-estado em torno de um projeto de estado nacional
italiano, ou país, acabou por perder o seu foco, precipitando a democracia na
queda protagonizada pelos governos republicanos das cidades-estado sufocados
pelo estado nacional emergente.
Se se pode apontar essa falha, no campo democrático-institucional, das
repúblicas italianas, é também de inteira justiça reconhecer-lhes o mérito de
soçobrarem ao fim de uma expansão gloriosa no campo material que fizera da
6
“popolo” representava as classes emergentes constituídas por novos ricos, pequenos
mercadores, banqueiros, pequenos artesãos organizados em guildas, soldados das
infantarias comandadas por cavaleiros, etc. O “popolo” era mais numeroso que as
classes da elite dominante e melhor capacitado que esta para se organizar, reivindicar e
impor seus interesses. Corresponde à nossa classe média de hoje.
Idade Média uma era de extraordinária prosperidade material e artística para a
humanidade.
4.3. Expansão democrática ao Norte do Mediterrâneo “inventa” a
democracia representativa
O desmoronamento das repúblicas italianas, precipitado pela emergência
de um estado nacional, assim como o enfraquecimento da adjacente democracia
que se lhe seguiu, empurrou este regime político para o norte da Europa, onde
cresceu e se consolidou em diversos pontos da Escandinávia, Inglaterra, Países
Baixos e Suíça.
O sistema de governo popular que floresceu nestas latitudes, nessa
época, introduzira no regime democrático o princípio da representatividade
democrática, fato inédito que fizera, no plano institucional, a democracia do
norte europeu distanciar-se grandemente da sua antecessora mediterrânea.
Ficava assim estabelecido o quadro institucional no qual, democraticamente,
todos os homens livres e os nobres podiam aspirar a uma participação direta nas
assembléias locais, regionais ou nacionais, onde eram eleitos como
representantes. Dessa fase singular da democracia representativa, a história
deixou impressa, em traços largos, uma imagem de extraordinária vivacidade
democrática da época protagonizada por debates concorridos, sobretudo, nas
inúmeras assembléias escandinavas dos vikings. A Suíça ostenta,
orgulhosamente, até hoje, a sua famosa assembléia comunal.
Na Escandinávia, dava-se o nome de “Ting” às assembléias locais e de
“Althing” às nacionais, as quais prefiguravam o parlamento dos nossos dias.
Entretanto, o exemplo mais perfeito de parlamento representativo, na época, era
o da Inglaterra medieval, cujo modelo, posteriormente, foi transplantado para
várias repúblicas do mundo, enquanto evoluía para um sistema Constitucional
7
.
O Parlamento medieval inglês emergira das assembléias convocadas
esporadicamente sob pressão de necessidades por recursos para custear as
guerras, durante o reinado de Eduardo I, de 1272 a 1307 ”(Dahl, 1998, p.31).
O raiar do século XVIII encontra configurado um contexto
democrático formidável, no qual a presença de certos elementos permitia aos
cidadãos daquele século ter uma grande convicção nas instituições democráticas.
Funcionavam as assembléias locais onde os cidadãos debatiam os assuntos que
os inquietavam, ou opinavam sobre aqueles nos quais eram consultados pelos
governantes. A necessidade freqüente que os governantes tinham de fazer
consultas sobre assunto da república ao povo fizera germinar no meio deste a
idéia da necessidade de se estabelecer algum tipo de relação entre governantes e
governados, por meio da qual aqueles podiam procurar o consenso destes nas
matérias que eventualmente os divergissem. Entendia o povo que a necessidade
de consenso seria a rampa que o lançaria através da representação no corpo
legislativo que aumentava os impostos e fazia as leis, isto é, que tratava, até
então, de forma unilateral, os assuntos de seu próprio interesse. Este aparato
democrático ficou, no entanto, completo, quando teve a presidir sobre ele um
7
O emergente Parlamento medieval inglês evoluíra para um sistema constitucional no
século XVIII, no qual as autoridades do rei e do Parlamento eram mutuamente limitadas.
Tratava-se, na verdade, de um sistema de pesos e contrapesos entre as grandes forças
sociais da Inglaterra: no Parlamento, o poder da aristocracia hereditária na Casa dos
Lordes era contrabalançado pelo poder do povo na Casa dos Comuns; as leis que eram
promulgadas pelo rei, ou pelo Parlamento, eram interpretadas por juízes independentes
do poder real e parlamentar. Numa demonstração inequívoca de simpatia por esse
sistema, os cidadãos norte-americanos, encarregados de elaborar a primeira Constituição
do seu país, decidiram criar para a América um sistema político-institucional semelhante
ao inglês, na virtude, porém, expurgado dos vícios da monarquia inglesa. O resultado da
engenharia política que se seguiu a esta idéia foi o estabelecimento de um modelo de
república que, pelo seu avançado e perfeito esquema conceptual, foi exportado para
várias outras repúblicas do mundo.
parlamento representativo eleito em diversos veis local, nacional,
provinciano e regional.
Seguramente, eram estes elementos a condição básica para a
caracterização de um ambiente democrático, porém, insuficientes para definir
uma verdadeira democracia. A democracia do século XVIII, conquanto
exteriorizasse uma engenharia institucional merecedora de confiança dos setores
sociais e políticos de então, enfermava, todavia, de certos padecimentos que a
impediam de ser uma “verdadeira” democracia, para os padrões da modernidade
e visão da época.
Ninguém podia se gabar, naquele tempo, de usufruir de direitos iguais
aos dos seus semelhantes, embora os autores da Declaração da Independência
dos Estados Unidos, no ímpeto de um fulgurante lampejo de intuição, tivessem
feito consagrar-se, naquele Manifesto, o princípio supostamente cristão que
presumia a igualdade entre os homens (e mulheres) desde o nascimento
8
.
Naquela época, parecia ridícula tal presunção (e hoje não seria diferente), que
pretendia igualar levianamente os homens a partir duma suposta igualdade
produzida no ato do nascimento. Isso porque, após este ato natural, o que mais
se via eram homens seguindo cada qual o seu rumo incerto e diferenciado dos
restantes, numa clara manifestação de que, após o nascimento, os seres humanos
usufruem de modo diferenciado das oportunidades existentes em determinado
momento, o que os tornava diferentes entre si. Esta imagem da vida era tão
nítida e constante que a humanidade chegou a pensar que o mais “natural” seria
a desigualdade entre os homens e não a igualdade, o que levou, prontamente, à
8
Os autores da Declaração da Independência dos Estados Unidos escreveram, em 1776,
naquele documento político: “Consideramos evidentes as verdades de que todos os
homens foram criados iguais e que todos são dotados pelo Criador com certos direitos
inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca pela felicidade”. Os críticos de
tal Declaração fizeram logo saber do ridículo das afirmações sobre a igualdade nela
contidas, que achavam “simples retórica vazia”. Disseram mais: Uma afirmação desse
tipo, que supostamente expressa um fato sobre os seres humanos, é obviamente falsa”.
Completam o argumento afirmando que ao libelo de “falsidade” se juntava o de
“hipocrisia” dos autores da Declaração que deixavam de lado o inconveniente fato de
que uma preponderante maioria de pessoas estava excluída dos direitos inalienáveis
(supostamente concedidos pelo próprio Criador) nos novos estados que agora se
declaravam independentes: (...) mulheres, escravos, negros libertos e povos nativos
estavam privados não apenas dos direitos políticos, mas de inúmeros outros direitos
inalienáveis’ essenciais à vida, à liberdade e à busca da felicidade”. O próprio Thomas
Jefferson, principal autor da Declaração, “conhecia bastante as questões humanas e
percebia que, obviamente, em muitos aspectos importantes, as capacidades, as
vantagens e as oportunidades dos seres humanos não eram distribuídas com igualdade
no nascimento e menos ainda depois que a educação, as circunstâncias e a sorte se
somavam às diferenças iniciais(Dahl,1998, p.75-77). Alexis de Tocqueville igualava
em importância “a virtude” e “os direitos” e não achava que a idéia dos direitos o
utra
coisa não era senão a idéia da virtude introduzida no mundo político. Afirma este
autor que não existem grandes homens sem virtude; sem respeito aos direitos, não
existem grandes povos; quase poderia dizer-se que não sociedade (Tocqueville,
1987, p.184). No entanto, Dahl adverte que olhando em volta de nós mesmos veríamos
desigualdades por toda partee perceberíamos instantaneamente que aparentemente,
a desigualdade não a igualdade é uma condição natural da humanidade (Dahl,
1998, p.76-77).
aceitação da “superioridade intrínseca” de certas elites “como princípio
político fundamental” (Dahl, 1998, p.80).
Ora, ao ser negada aos homens a igualdade intrínseca em seus bens e
seus interesses”, negou-se-lhes também a capacidade “para se governar”. Não
dispondo, portanto, os homens de direitos iguais, muitos não puderam, de fato,
se servir desse valioso instrumento de cunho político para aproveitar as
oportunidades criadas e materializar o princípio de inclusão.
Considerado indouto, o homem comum devia ser, então, governado por
quem maiores competências tivesse para exercer um governo tutelar
9
baseado na
habilidade e no conhecimento especialistas.
Dahl rejeita, categoricamente, a idéia de uma “tutela”, por tratar-se de
uma verdadeira prática de exclusão da maioria que não tem voz, mas que, depois
de receber uma educação vica”, se tornaria apta para governar. Isso porque
nós mesmos governamos”, pela mesma razão que
todos os adultos sujeitos às leis do estado devem ser considerados
suficientemente bem preparados para participar do processo
democrático de governo do estado
e de que
entre os adultos, não ninguém tão inequivocamente mais bem
preparado do que outros para governar, a quem se possa confiar a
autoridade completa e decisiva no governo do estado” (Dahl, 1998,
p.84, 89, 91, 93-96).
9
Platão defende que, uma vez que nem todos os homens são capazes de assumir um
governo, este devia ser entregue a um tutor.
No plano da relação social, notava-se no culo XVIII, entre os homens,
uma nítida diferenciação de status e de poder de influência que impunha certos
deveres repugnantes a determinadas classes de pessoas, tais como escravos,
propriedade dos donos e mulheres, propriedade dos maridos. Como propriedades
que eram, suas vontades eram manipuladas pelos respectivos proprietários.
Estas aberrações se passavam sob o olhar complacente de todos, pois, as
elevadas idéias democráticas defendidas ainda eram mal compreendidas e a
liberdade de expressão, restrita. Tais circunstâncias favoreceram o surgimento
de um ambiente político marcado pela incredulidade das massas. A confiança
nas instituições democráticas, que tão bons auspícios depuseram nos ânimos
mais esperançosos no início do século, não atingira, afinal, o grau desejado e era
freqüentemente abalada pela frustração de uma representação parcial e restrita
10
no parlamento.
4.4. No século XX busca-se fixar o debate democrático em torno da questão
da “forma”
A democracia representativa estava em construção no final do culo
XVIII. Todo o legado político-institucional que havia sido gerado e consolidado
anteriormente, nas democracias e repúblicas antigas, foi transportado para o
século seguinte. A partir de uma base institucional antiga, nos séculos XIX e XX
pôde-se, afinal, construir um sistema político inteiramente novo.
Entretanto, até o século XX reinou sempre, na opinião pública mundial,
uma constante suspeição em relação à democracia e à qualidade de governos que
10
A participação popular nas Tings vikings, na Noruega, por exemplo, era mais ampla
que na Inglaterra, em cujo Parlamento os representantes eleitos pelo “povo” apenas
exerciam a sua atividade com uma influência parcial na legislação e não
representavam todo o povo”, do qual a metade dos homens adultos (...) estavam
excluídosda vida política. Analisando a participação política na Inglaterra, Dahl afirma
que somente em 1832 o direito de voto foi estendido a apenas 5% da população acima
dos vinte anos de idade”, e que naquele ano foi preciso uma tempestuosa luta para
expandir o sufrágio a pouco mais de 7%” (Dahl, 1998, p.33-34).
produz. A humanidade pouco esclarecida não conseguia compreender, em toda
a sua extensão, as reais oportunidades que uma democracia podia oferecer para a
civilização e exaltava, então, a superioridade dos sistemas não democráticos. A
razão principal para uma tomada de posição antidemocrática tão radical residia
na idéia muito difundida de que as pessoas simplesmente não têm competência
para participar do governo de um estado” (Dahl, 1998, p.57-58).
De matéria banal no século XIX, a democracia despertou e mobilizou a
atenção geral do culo seguinte, no campo político, de tal modo que não se
compreendia como esse assunto tão desprovido de conteúdo (Walberstein,
2001, p.1 apud Santos & Avritzer, 2002, p.39) pudesse assumir “um lugar
central no campo político como o acontecimento mais importante do século
(Sen, 1999, p.3 apud Santos &Avritzer, 2002, p.39).
Desde logo foram postas à discussão, na arena política, duas questões
que vinham de longe intrigando a consciência coletiva: a humanidade queria
saber se era desejável que os países se tornassem democráticos, e em que nível
de conflito ocorreria uma provável tensão estruturante da democracia e desta
com os interesses capitalistas.
O desejo de democracia é uma questão insofismável. Hoje, está
dissipada toda e qualquer dúvida que pairava sobre a real importância da
democracia para a sociedade contemporânea. Uma ligeira comparação entre
aquilo que foi, num passado recente, a vida dos povos que viveram em países
que, tradicionalmente, estiveram no campo democrático, e a daqueles que, na
mesma época, estavam sujeitos aos regimes totalitários, pode bem nos revelar
que os ganhos da democracia são incomparavelmente maiores que os dos
regimes de opção não democrática. Alexis de Tocqueville, apaixonado estudioso
da democracia americana, tendo nela observado a inexistência de “interesses
semelhantes” (embora não contrários) entre governantes e “todos” os
governados, escreve:
Até agora não se descobriu forma política alguma que favoreça
igualmente o desenvolvimento e a prosperidade de todas as classes de
que se compõe a sociedade. (...) A vantagem real da democracia não é
(...) favorecer a prosperidade de todos, mas apenas servir ao bem estar
do maior número” (Tocqueville, 1987, p.180).
Sem, contudo, querer ocultar, ou negar, as falhas da democracia, que,
aliás, deu sobejas provas de um elevado grau de vulnerabilidade e de
ambigüidades, sobretudo no que tange à questão da participação cívica (Paoli,
2002; Santos & Avritzer, 2002), devemos, no entanto, reconhecer as amplas
conquistas do poder democrático nos diversos campos e da mais diversificada
ordem de valores. São eles:
i) a democracia reduz a presença de governos autocráticos no mundo
O século XX foi palco de inúmeras atrocidades praticadas por governos
despóticos que agiam sob o impulso de líderes tirânicos influenciados por
interesse particular, ideologia, nacionalismo, dogmas religiosos, convicções de
superioridade inata, pura emoção ou simples impulso megalomaníaco. A história
registra os feitos trágicos de alguns desses líderes, como Adolf Hitler, na
Alemanha nazista (1933-1945), Joseph Stalin, na antiga União Soviética (1929-
1953) e Pot Pol, no Camboja (1975-1979). Sob a influência deles, por razões
políticas, ou porque eram simplesmente delatadas por intrigas de adversários,
milhões de pessoas que se opunham abertamente ao regime foram executadas.
Não se pode, no entanto, negar que há falhas nos governos democráticos,
sobretudo no campo da política externa, e que, nas democracias mais recentes, e,
por conseguinte, mais frágeis, se observam também casos de “tirania de
maioria”. Nessas democracias, por se verificar excessiva partidarização do
aparelho do Estado, as minorias derrotadas na eleição sofrem as mais absurdas
perseguições políticas e não menos humilhante cerceamento de direitos políticos
fundamentais.
O simples fato de as democracias não cometerem crimes tão
monstruosos quanto os praticados na ditadura o justifica que, sob a sua égide,
se cometam “pequenas” injustiças, em nome de uma suposta salvaguarda da
conquista democrática, desatento ao princípio basilar de que o poder da
maioria não faz o direito da maioria
11
(Dahl, 1998, p.61).
ii) a democracia é fonte de garantia de direitos fundamentais dos cidadãos
O processo de constituição de governos democráticos fundamenta-se no
respeito aos direitos individuais, por a democracia ser, ela própria,
inerentemente, um sistema de direitos. Uma verdadeira democracia deve zelar,
por meio das suas instituições, para que os direitos fundamentais dos cidadãos
sejam efetivamente exercidos, e normalmente o tem conseguido. As
democracias têm-se esforçado, de forma persistente e meritória, por manter, ao
longo do tempo e de modo inalterado, sempre disponíveis os direitos de
participar, de votar, de expressar as idéias sobre questões políticas, entre outros
eventualmente consagrados na constituição política do estado.
Robert A. Dahl (1998, p.63), refletindo sobre os perigos da democracia,
nos alerta para a terrível tragédia democrática que seria se se confirmasse uma
relação condicional do tipo
se e quando os cidadãos deixam de entender que a democracia exige
certos direitos fundamentais ou não apóiam as instituições políticas,
jurídicas e administrativas que protegem esses direitos, sua democracia
corre algum risco”.
As jovens democracias, ainda em processo de aperfeiçoamento,
surpreendem, muitas vezes, com um quadro político em que se assinala
preocupante apatia política da sociedade civil, com pouco acesso à informação
11
Robert A. Dahl (1998, p. 61) recomenda, na sua obra Sobre a Democracia, àqueles
que desejam estudar o assunto com maior profundidade, a fazerem uma consulta à obra
de Fishkin (1979).
independente, num ambiente político em que a comunicação social do Estado é
manipulada pelos interesses da maioria no poder, fato que reforça ainda mais o
desinteresse da massa pela política. Silveira, um antigo opositor ao fascismo
português de nacionalidade cabo-verdiana, no terceiro quartel do século XX,
lamenta que,
infelizmente, a monocracia não deixou de existir nos nossos dias,
subsistindo, a título de arranjo técnico, na realização das tarefas
governamentais com a proeminência adquirida por um dos órgãos do
Estado e a redução dos outros a um papel subordinado, sob a aparência
de uma máquina variada” (Silveira, 2005).
Será o caso de, nesses países, existir “uma falsa democracia”, com os
aparatos democráticos apenas servindo de fachada a um governo pervertido que
se quer perpetuar no poder?
Pode ser. Em alguns países, quando o poder é bipolarizado entre dois
grandes partidos políticos, dos quais um tem tradição de poder despótico, como
acontece nas democracias africanas de antiga colonização portuguesa (e não
só!), a alternância no poder é francamente indesejada e combatida por violentos
meios propagandísticos ou fraudulentos, pelo partido no poder. Isso, sobretudo,
se esse é o partido que se arroga “o direito” de ser o salvador da pátria por, no
primeiro pleito democrático realizado, ter ganho as eleições sob o signo da
democracia e da liberdade, das quais se julga o único e vitalício guardião.
Este jogo do poder tem sido disputado acirradamente na arena política sob a
complacência inclusive de legítimos governos democráticos, ou por sua própria
iniciativa, pois, como volta a escrever Silveira (2005), em democracia
representativa, entre as corriqueiras patologias,
outro espectro que, por vezes e em certas ocasiões, se levanta é a
psicose da crise. É uma técnica de exagero propagandístico, com a
divulgação da convicção de que uma certa força política pode
suplantar a crise. Procura-se, por esta via, plebiscitar um partido,
através da movimentação das massas populares, o que, apesar de se
conformar à forma e ao processo de votação democrática, tem como
objetivo último legitimar uma base social ampla para o exercício do
poder, em condições que são, na prática, a da ditadura autocrática”.
Nesse contexto, os pequenos partidos, que até são em número
razoavelmente grande, não crescem e são sucessivamente demoralizados nas
urnas, deixando nos seus eleitores um rastro de desânimo que redunda em mais
forte atitude apática em relação à política.
iii) a democracia defende e garante a liberdade individual
Numa democracia, o indivíduo deseja e alcança a sua autonomia moral
para decidir o curso a dar à sua vida e, assim, ajudar a criar uma cultura que
sustentação aos ideais de liberdade pessoal e apóie em defesa ao acesso de
outros direitos e outras liberdades. É atual, por ser verdadeira, a sentença
proferida em 431 a.C., por Péricles, estadista grego, sobre a democracia
ateniense, de que a liberdade de que gozamos em nosso governo também se
estende à vida comum”( Tucídides, 1951, p.105, apud Dahl,1998, p.64).
iv) a democracia ajuda na defesa de interesses fundamentais das pessoas
As pessoas têm certas necessidades de índole fisiológica, social, de
estima e de auto-realização que precisam satisfazer, muitas vezes em
circunstância de competição. Nada mais frustrante se a democracia não
protegesse a liberdade do seu livre exercício e a oportunidade de escolha de cada
um moldar a sua vida de acordo com os objetivos, preferências, gostos, valores,
compromissos e convicções traçados para cada momento.
v) o governo democrático procura o consenso dos cidadãos na produção
das leis que os regem
A vida de um ser humano decorre naturalmente em associação com
outras pessoas, em que se depara com uma diversidade de regras que deve
acatar, sob a pena de o não fazendo, sofrer alguma forma de coerção da parte do
Estado e segregação, por parte da sociedade.
Para evitar que a maioria, numa sociedade, freqüentemente se oponha às
leis do Estado, este deve procurar diligentemente, sobre a matéria passível de
dividir as opiniões, reunir um amplo consenso da sociedade civil à volta da
questão.
Os governos democráticos recorrem sistematicamente ao plebiscito
popular e a outros meios de consulta à sociedade, antes de fazer promulgar as
leis importantes que devem reger a Sociedade e o Estado. Assim agindo,
implementam um processo por meio do qual todos os cidadãos terão a
oportunidade de apresentar seus pontos de vista, discutindo, negociando,
deliberando e procurando soluções conciliatórias que, nas melhores
circunstâncias, poderiam levar à promulgação de uma lei por todos considerada
satisfatória.
vi) a democracia promove o desenvolvimento humano mais plenamente do
que qualquer outra opção viável
Presume-se que são inatos no homem certos valores, como o senso de
responsabilidade, a honestidade, a justiça, a coragem, o amor aos outros, etc.,
que, dependendo de certas circunstâncias exteriores ao próprio homem, se
tornam ou não evidentes. Uma destas circunstâncias se liga ao regime político
sob o qual a pessoa vive.
A percepção generalizada, porém questionável, é a de que apenas
regimes democráticos proporcionam as condições sob as quais a carga genética
ou cultural que representa o sistema de valores esposados por um indivíduo,
possa desenvolver-se plenamente. Assim, se tornou fácil aceitar-se, como uma
das mais belas virtudes da democracia, transformar o homem e torná-lo um ser
racionalmente responsável, que pondera as melhores alternativas para agir e
mede as conseqüências dos seus atos, para não ferir os direitos particulares e dos
outros, nem obscurecer as obrigações que devem ser cumpridas.
vii) somente um governo democrático pode promover um grau
relativamente elevado de igualdade política
Não parece, contudo, ser razoável que alguém contrariasse o pensamento
de Tocqueville, a ponto de negar o sentimento humano generalizado de que a
“igualdade intrínseca” fosse universal, um dom do Criador, dado ao Homem ao
nascer, nem tampouco espera-se que tal pensamento subsista incólume à
constatação de que, na prática, o que se é uma vergonhosa “desigualdade
intrínseca” entre os Homens “nascidos iguais”. A igualdade é, sem dúvida, uma
condição do modelo de sociedade que é erigido em determinado momento
político:
a política não deve ser pensada em termos de regimes’, mas antes em
termos de modelos de sociedade’: a democracia não consagra a
igualdade absoluta dos indvíduos, mas sim a igualdade política dos
cidadãos; assim como a liberdade política não é a liberdade natural, a
igualdade política não é, pela mesma ordem de razão, a igualdade
natural” ( Silveira, 2005, p.8).
A democracia é, inquestionavelmente, o “modelo de sociedade” em que
se aspira mais a igualdade do que a liberdade e no qual todo o cidadão tem o
direito de participar na criação da ordem jurídica, independentemente do fato de
pertencer ao partido da maioria ou aos partidos da minoria.
viii) entre as democracias representativas não existem hostilidades bélicas
Uma fantástica descoberta dá conta de que os países democráticos não se
têm mutuamente declarado hostilidades, pelo menos, desde o século XIX.
Nenhuma das 34 guerras internacionais travadas entre 1945 e 1989, por
exemplo, envolveu, diretamente, como adversários, dois países democráticos
beligerantes
12
. Nem tampouco, nesse período, houve registro sequer de países
democráticos que se preparassem mutuamente para a guerra, ou tivessem
perspectiva de travá-la em algum momento.
É curioso que os países democráticos não tenham brigado entre si, mas o
tivessem feito contra os países não democráticos, como, por exemplo, nas duas
guerras mundiais e, mais recentemente, nas guerras contra o Iraque e o
Afeganistão; enfim, contra ditaduras, para enfraquecê-las, ou, então,
simplesmente, para apoiá-las. Foi o que aconteceu, absurdamente, com os
Estados Unidos em relação às ditaduras militares na América Latina, cujo
exemplo mais surpreendente foi o apoio incondicional daquele país para a
concretização do golpe militar que, em 1954, derrubou o governo eleito da
Guatemala.
ix) a economia de países democráticos é mais forte que a de países não
democráticos
Uma das características mais notáveis da democracia representativa é a
desregulamentação da economia. O liberalismo econômico, no sentido em que
não sujeita o mercado a um excessivo controle estatal, possibilita o trânsito livre
de trabalhadores entre um e outro trabalho e a competição entre as firmas
privadas, em que os consumidores podem escolher e decidir racionalmente entre
12
Dahl (1998) informa que esta surpreendente descoberta está bastante fundamentada na
obra de Bruce Russet (1990), capítulo 5, p.119-145. O mesmo autor, esclarecendo que o
mesmo fenômeno tinha sido também observado nas antigas democracias e repúblicas,
propõe uma consulta complementar a Spencer Weart (1998).
bens e serviços de fornecedores rivais, o que potencializa e maximiza a riqueza
da sociedade.
O mercado parece que cumpre tão sabiamente seu papel que até o mais
fraco governo democrático não o impede de produzir os seus frutos.
Tocqueville, que nunca perdera o encanto pela maior democracia do mundo,
surpreendido, apercebe-se que
é fácil ver que a democracia americana engana-se muitas vezes na
escolha dos homens aos quais confia o poder; mas não é tão fácil dizer
por que o Estado prospera nas suas mãos ”(Tocqueville, 1987, p.180).
A democracia, porém, tinha um viés. O curso que, efetivamente, ela
tinha tomado no pós-Grande Guerra, voltou a causar receios e apreensões quanto
ao seu desenvolvimento futuro e ao foco para o qual este se direcionava. Ao
mesmo tempo, gerava perplexidades e agitava a imaginação sobre o teor do seu
próximo envolvimento com as propostas da sociedade, por a opção democrática
que se tornara, então, hegemônica, restringir absurdamente as formas de
participação e soberania ampliadas em favor de um consenso em torno de um
procedimento eleitoral para a formação de governos” ( Schumpeter, 1942, apud
Santos & Avritzer, 2002, p.39-40). A este respeito, Silveira (2005, p. 153) é
afirmativo:
as eleições (...) serão sempre injustas enquanto não forem abolidas as
mais flagrantes desigualdades sociais e econômicas entre os cidadãos,
o que torna, igualmente, precário e desajustado o exercício do poder
democrático”.
Prossegue, entretanto, o mencionado autor, no mesmo tom, algo
peremptório:
Do mesmo modo, se não estiverem garantidos os direitos e liberdades
indispensáveis ao Homem para alcançar a sua realização enquanto
pessoa (...), o universo democrático está incompleto”.
E, ponderando razões graves, remata:
E a manifesta desigualdade de oportunidades, bem como o manifesto
desrespeito pelas regras do jogo político estabelecido para todos,
mormente na Constituição, ou a utilização abusiva dos meios do Estado
e dos órgãos da Comunicação Social públicos constituem outros tantos
fatores para questionar a perfeição ou o estádio do regime
democrático”.
Era evidente que a centralização da atenção na democracia como método
de constituição de governos levaria a uma concentração excessiva de esforços na
preocupação com as regras das eleições, pondo de lado qualquer hipótese de se
pensar seriamente que, afinal, a base para o desenvolvimento da democracia é,
ou devia ser, erigida a partir de um conjunto de fatores que permitissem à
sociedade humana tomar decisões democráticas livres e soberanas, e realizar, de
igual modo, os seus direitos e liberdades fundamentais.
Tais fatores seriam globalmente considerados: educação, saúde,
emprego, habitação, livre fluxo de informação veiculado por uma comunicação
independente e garantia de igualdade de oportunidades entre todos, que a
democracia devia proporcionar à sociedade e equacionar para garantir a sua
própria sobrevivência e reprodução efetiva. Trata-se, portanto, de uma mera
questão de a democracia “empoderar” a sociedade para melhor servi-la.
Esta dimensão de vertente democrática é, no entanto, liminarmente
rejeitada pela proposta hegemônica da democracia liberal que, fundando-se nos
interesses elitistas, não está interessada em que estes sejam controlados pela
sociedade que escolhe o governo. Não é, digamos, esse o seu papel central.
Sob este prisma neoliberal, Mance (2002, p.233) tão bem e
caracteriza a sociedade contemporânea em geral como o locus da
(...) negação cada vez mais acentuada das liberdades pública e privada
das maiorias, em nome da expansão da liberdade privada dos que
dispõem do grande capital”.
Ele explica o processo:
“Os países que adotam o modelo neoliberal passam a implementar
políticas que cerceiam o exercício ético da liberdade pelas maiorias. [E]
esse totalitarismo global, esse Regime Globalitário, esvazia
progressivamente as instâncias políticas da autonomia pública,
transformando o Estado em refém do capital financeiro e dos
megaconglomerados”.
Tudo tinha sido posto, afinal, nas mãos do livre mercado, a quem
competia dirigir as relações econômicas e sociais inter e intrasociedades, e
receber toda a atenção da democracia liberal que tinha sido, aliás,
institucionalizada para servi-lo. E, nessa ordem de idéia, não valia a pena a
democracia preocupar-se nem com o arsenal, nem com o processo participativo
na tomada das decisões. Como se frisou, o mercado se encarregaria desse
aspecto processual. Jacobi escreve:
“a participação popular se transforma no referencial não só para
ampliar as possibilidades de acesso dos setores populares segundo uma
perspectiva de desenvolvimento da sociedade civil
13
e de fortalecimento
dos mecanismos democráticos, mas também para garantir a execução
eficiente de programas de compensação social no contexto das políticas
de ajuste estrutural e de liberalização da economia e de privatização do
património do Estado. Entretanto, o que se observa é que, em geral, as
propostas participativas ainda permanecem mais no plano da retórica
do que na prática. A participação minimalista (Tanaka,1995) aponta
para o fato de que existe um déficit de participação e de constituição
de atores relevantes, o que pode redundar em fator de crise de
governabilidade
14
e de legitimidade. A insatisfação causada pela
deterioração ou não-melhoria dos níveis de qualidade de vida, sem que
haja canais efetivos para que isso seja explicitado, pode conduzir à
erosão da titularidade dos atores relevantes, expressa em fenômenos
como a volatilidade eleitoral e o desvirtuamento de propostas de gestão
pautadas no aprofundamento das práticas democráticas”(Jacobi, 2002,
p.11-12).
Seja como for, no plano econômico e das liberdades fundamentais, a
democracia parece ter convencido plenamente os povos da sua superioridade em
relação aos demais regimes políticos com os quais tem disputado o espaço
político mundial durante séculos e, de modo mais acirrado, durante o século
13
Para Hegel, a sociedade civil representa o primeiro momento de formação do
Estado, o Estado jurídico administrativo, cuja tarefa é regular relações externas,
enquanto o Estado propriamente dito representa o momento ético-político, cuja tarefa é
realizar a adesão íntima do cidadão à totalidade de que faz parte, tanto que poderia ser
chamado de Estado interno ou interior”( Bobbio, 1987, p.42, apud Jacobi, 2002, p.11)
14
O autor empregou o termo de acordo com o conceito sistematizado por Mello (1995,
p.30), que qualifica o modo de uso da autoridade política: formato institucional dos
processos decisórios, definição do mix público/privado nas políticas, questões de
participação e descentralização, mecanismos de financiamento das políticas e do
escopo global dos programas (focalizados versus universalistas)” (Jacobi, 2002, p.11).
passado. Sem a pretensão de polemizar o assunto, lembramos, todavia, o recente
despertar econômico da China comunista.
Não dúvida, porém, de que o maior triunfo da democracia está
simbolizado no impressionante movimento pela democratização dos países,
desencadeado na década de 1990, que atraiu à democracia a maioria dos países,
sobretudo da Europa de Leste e da África que, durante décadas, viveram sob
regimes totalitários. É uma expressão clara e inconfundível de que os homens
criados iguais e dotados pelo Criador com certos direitos inalienáveis, entre os
quais a vida, a liberdade e a busca pela felicidade”(Dahl, 1998, p.75), anseiam
pela democracia, não importando, porém, com que pretexto a procuram.
A segunda questão que se punha no século XX à democracia, e era
debatida na segunda metade desse século, prendia-se com um discurso de
organicidade que punha em voga, no pós-II Guerra Mundial, um debate em
torno das condições estruturais da democracia” e, por extensão, a discussão
sobre uma eventual compatibilidade ou incompatibilidade entre a democracia
e o capitalismo” (Wood, 1996, apud Santos & Avritzer, 2002, p.40).
O debate à sua volta iniciara-o Barrington Moore na década de 1960.
Este autor acredita e defende que a simples existência, em certo momento, de
um determinado conjunto de características estruturais concorreria com
elementos seguros para a definição clara de um contexto no qual se podia, com
relativa confiança, antever e caracterizar os “países com propensão democrática
e os países sem propensão democrática”.
Raciocinando erroneamente, ao que parece, na base de que a democracia
é obra supostamente criada pela natureza estática e não fruto de uma cultura e de
certos padrões de valores que, em determinado momento, se institucionalizam e
permitem reinventar constantemente a democracia, consoante a sua própria
variação no tempo, Moore criou uma tipologia mecânica em que se indicam os
elementos característicos que faziam de um país uma sociedade democrática, ou
não, conforme estivesse num ou noutro campo de polaridades. Bastava, pensava
ele, induzir mudanças necessárias nas condições prevalecentes num determinado
país, tendentes à sua modernização, geradora de uma nova relação entre os
setores agrários e urbanos, ditada pela ruptura com o campesinato, para que esse
mesmo país viesse a tornar-se democrático (Moore,1966 apud Santos &Avritzer,
2002, p.40).
O abrangente movimento mundial pela democracia no final do século
XX, que arrastou para a democracia, sob a batuta do modelo hegemônico liberal,
países com enormes variações no papel do campesinato e nos seus respectivos
processos de urbanização”, tornou desatualizadas as análises de Moore.
Amartya Sen, que tem da democracia do século XX um elevado conceito,
expressando sua crítica a Moore, afirma que acreditava não serem “as condições
estruturais” o elemento importante para a democracia, pois que, na questão
democrática, o que era importante saber-se o é se um dado país está
preparado para a democracia, mas antes partir da idéia de que qualquer país se
prepara através da democracia( Sen,1999, p.4 apud Santos &Avritzer, 2002,
p.41).
No mesmo instante em que o mundo político debatia sobre “os requisitos
estruturais” da democracia, Przeworski lançou a idéia utópica de que a
democratização levaria os países a “usufruir de certa propensão distributiva”,
potenciada pela chegada ao poder da Social Democracia, a favor dos setores
sociais desfavorecidos. Os marxistas, porém, oferecem uma forte oposição à
idéia Przeworskiana, afirmando ser impossível, numa sociedade capitalista,
democratizar-se a relação fundamental sobre a qual se assenta a produção
material, isto é, “a relação entre o capital e o trabalho”( Przeworski,1985 apud
Santos &Avritzer, 2002, p.40-41).
A premonição marxista, no entanto, confirma-se. A democracia segue
outro destino que a afastava completamente do foco social e punha-a a serviço
exclusivo da acumulação do capital, sob a égide do liberalismo econômico,
dentro de uma lógica restrita de que, como escreve Silveira,
a existência de uma classe média é a condição sine qua non de uma
democracia de recorte político e institucional ocidental” (Silveira, 2005,
p.81).
Era, então, chegada a hora do Estado mínimo, cuja ação central incide na
transferência à sociedade civil de toda a responsabilidade social, sem, contudo,
procurar institucionalizar qualquer tipo de relações mútuas que efetivassem a
nova competência da sociedade, na solução dos seus próprios males. A
sociedade estava, portanto, abandonada à sua sorte, num momento crítico da sua
história, em que as economias nacionais procuravam inserir-se na dinâmica da
economia mundial, à custa de acentuadas desigualdades sociais internas. Pois,
como afirmam Machado et al. (2004, p.224-225), a decisão pela
(...) inserção no diálogo global não prevê políticas compensatórias aos
excluídos”.
Do mesmo modo que se passou com a análise de Moore, assim também
foi com a idéia Przeworskiana, que foi deitada abaixo pela emergência da
globalização e conseqüente desmonte do Estado do Bem-Estar Social, e cortes às
políticas sociais a partir da década de 1980.
O fracasso das análises precedentes de Moore e de Przeworski, que
deitara por terra teorias que procuravam explorar o lado humanista, e normativo,
pouco significativo da democracia, fez reabrir nova discussão democrática, desta
feita sobre o problema da forma da democracia e da sua variação
(Santos & Alvritzer, 2002, p.41).
O debate culminou com a fundação da concepção hegemônica da
democracia liberal, cujo modelo se estendeu ao sul da Europa nos anos 1970 e,
posteriormente, à Europa de Leste e à América Latina, onde, desde logo,
suscitou a idéia (e a necessidade) de se contrapor ao modelo hegemônico formas
alternativas, ligadas à expressão da democracia participativa e da democracia
popular, ou desenvolvimentista, conforme o caso.
4.5. A universalização e a consolidação da democracia liberal são o ponto
final da evolução ideológica do Homem?
O fim da Guerra Fria, marcado pelo ruir do império Soviético e a
emergência da globalização econômica mudaram a face da política mundial, ao
mesmo tempo em que anunciaram, simultaneamente, a predominância de um
único princípio de legitimidade política a democracia liberal e o domínio de
uma única superpotência – os Estados Unidos.
Estes acontecimentos, ao conferirem uma condição estática ao conceito
de ideologia, consolidam o terreno propício ao crescimento e aperfeiçoamento, à
escala mundial, de uma democracia liberal sem peias ideológicas ou geopolíticas
assinaláveis ou, melhor, catapultam a humanidade a um lugar de idílio, como
escreve Silveira (2005), parodiando Fukuyama
15
, o cientista norte-americano
mais visível na busca de um sentido futuro da democracia, onde
vivemos no melhor dos mundos, sob a égide de uma ideologia sem
oposição, que é, ao mesmo tempo, a encarnação dos maiores valores
15
Fukuyama afirma que o fim da Guerra Fria marca simultâneamente a vitória da
democracia liberal e o “Fim da História”. Esta tese do “Fim da História” traduz uma
situação em que se eliminou, a priori, o aparecimento de qualquer forma de oposição
anti-democrática”. O citado cientista, porém, lamenta que “a única nota negativa” neste
mundo do Fim da História seja a incapacidade do mundo árabe de integrar valores da
democracia liberal [por] incompatibilidades estruturais entre o Islã e o Capitalismo”. A
tese do Fim da História é criticada por Ken Jowitt, da Universidade da Califórnia, em
Berkley, para quem a hegemonia da democracia liberal ocidental não gera o Fim da
História, mas realça os efeitos temporários da liquidação do Leninismo, como modelo
organizado de contestação da filosofia política ocidental, fundada no capitalismo
( Silveira, 2005, p.78-80).
políticos, éticos e morais da História da Humanidade”, celebrando a Era
do “Fim da História”.
A hegemonia da democracia liberal ocidental é incontestável. A posição
foi conquistada por um vazio ideológico deixado pela queda do comunismo, sem
que se tivesse registrado o tão esperado “grande conflito mundial” entre o
comunismo e o capitalismo, isto é, sem que a Guerra Fria se transformasse em
catástrofe de dimensão planetária.
O mundo socialista e o capitalista estavam por demasiado ocupados em
sustentar uma coexistência pacífica por meio da utilização da “política do
terror”, para criarem elementos de resistência que pudessem dar outro rumo
diferente àquele que levou a “revolução pacífica” que deu a hegemonia à
democracia liberal ocidental, fazendo a bipolarização ceder lugar à globalização,
e a geopolítica à geoeconomia. O ponto fulcral de onde partiu o impulso final
para a consagração da vitória da democracia liberal parece residir no poder da
tecnologia e das finanças que o capitalismo permitiu acumular, ao longo do
tempo, sobre um socialismo com avanços tecnológicos pouco significativos.
Precipita-se, destarte, o declínio do espaço público nas sociedades
contemporâneas, cujo cenário é descrito por Tótora & Chaia (2004, p. 196-197)
nestes termos:
A política degrada-se em uma mera administração. Os especialistas
substituem os políticos. Mesmo na esfera restrita dos representantes do
povo, assiste-se à supremacia da autoridade administrativa sobre o agir
político. Os assuntos públicos não diferem da gestão dos negócios
privados. Quando se atribui ao conhecimento técnico o privilégio nas
decisões, subtrai-se o poder político dos cidadãos”.
O poder tecnológico tornar-se-á central na determinação do poder de um
país e na sua projeção no concerto das nações, e não o seu regime, de modo que,
neste presente século XXI, em que o futuro da democracia liberal é incerto, ou
hesitante, o maior desafio que se impõe ao regime hegemônico é dar o devido
enquadramento ao poder tecnológico nos sistemas de governo (Silveira, 2005).
As novas tecnologias imprimirão certamente a sua marca nas atividades do
Estado de tal modo que, ao gerar-se uma estrita dependência destas àquelas, os
princípios que enformam a democracia, e o seu próprio funcionamento, podem
ser postos em risco.
Esta conjectura parte de uma observação da realidade cotidiana, e ela
pressagia que a manutenção do nível de vida das populações, razoavelmente
alto nos países de tecnologia avançada, tende a depender cada vez mais da
inovação tecnológica de que do poder político e do regime que lhe confere
legitimidade. Urge, por conseguinte, refletir sobre como articular o poder
político com o poder tecnológico, os quais são, por natureza, orgânica, estrutural
e funcionalmente diferenciados.
A urgência em se proceder a essa articulação é tanto maior quanto é
certo que não reside, naturalmente, nas mãos do poder político nenhum
dispositivo que lhe confere a autoridade para exercer qualquer controle sobre os
grandes sistemas tecnológicos sob domínio privado. Esta limitação do poder
político impõe, muito simplesmente, uma solução gestionária, pois, o caminho
que é necessário percorrer não pode ser, de modo algum, encetado por via
legislativa.
A gestão do poder tecnológico, isto é, a tecnopolítica, embora não ponha
em causa o poder político em si, pode, no entanto, afetá-lo no seu modo de
exercício, no sentido em que ela representa uma visão nova dos processos que
presidem aos modos de funcionamento das sociedades, neste presente século.
A tecnopolítica permitirá formular novos modelos de análise das
estruturas políticas do Estado, por meio dos quais serão explicitados novos
conceitos de democracia mais adaptáveis às realidades deste milênio, e
estabelecerem-se relações futuras muito sólidas entre as estruturas políticas e o
poder tecnológico, para um definitivo assentamento do pensamento político em
novos paradigmas.
A surpreendente evolução tecnológica registrada no século XX não foi,
entretanto, acompanhada de uma correspondente evolução do pensamento
político. O mundo político, em todo aquele século, esteve permanentemente
envolvido em confrontos ideológicos, que uma necessária inovação política
deixou de fazer-se.
Neste século, porém, em que um enorme e preocupante vazio ideológico
caracteriza o ambiente político, dominado pela hegemonia da democracia liberal
ocidental, que decretou o “Fim da História” pela supressão de possibilidades de
convivência entre ideologias plurais, torna-se urgente empenhar-se numa tarefa
de renovação da filosofia e do pensamento políticos, de modo que o poder
político possa ajustar-se às funções e responsabilidades cada vez mais
dependentes do poder tecnológico.
A necessária renovação política deverá conduzir a Humanidade na busca
de novas formas de democracia, como sugere Silveira (2005, p.86),
“ (...) à partir de princípios que tenham em devida consideração a
emergência de uma nova ética, mais antropologicamente abrangente,
isto é, com uma visão mais global do homem e do seu destino. Uma ética
do Cosmo e não uma ética de uma determinada entidade geográfica;
uma ética do homem e não de uma raça”.
A evolução do pensamento político e a tecnológica devem acontecer
dentro dos respectivos domínios; esta no domínio da racionalidade, aquela no
domínio moral e ético, sem a temida preponderância do poder tecnológico sobre
o poder político, para que o homem, em nenhuma circunstância, venha a ser
subjugado pela tecnologia.
Obviamente esta é a nossa percepção , a institucionalização do poder
tecnológico não deixará jamais de provocar tensões capazes de causar profundas
rupturas no tecido social. Daí decorre a razão fundamental para se empreender,
sem mais delongas, a renovação do pensamento político na base de novos
paradigmas que, à luz do vazio ideológico registrado, possam permitir a
instauração de novas formas de democracia, voltadas para a defesa da liberdade
dos cidadãos ameaçados pelo poder do Estado, como também pelo poder da
tecnologia.
Porém, qualquer processo de reformas de pensamento político que se
tente iniciar deve equacionar, em primeiro lugar, certas questões ligadas à
soberania, com reflexo no desenvolvimento de um quadro geral no qual se
define com clareza o sentido da ação necessária dos cidadãos no controle do
processo de decisão política e econômica do Estado. Desde o momento que o
cidadão fez a opção pela sociedade de consumo e pelo Estado de Bem-Estar
Social, o espaço de controle sobre as atividades políticas e econômicas vem
sendo crescentemente ocupado pela organização burocrática, em detrimento dos
cidadãos.
A burocracia, entretanto, tornara-se, ao mesmo tempo, elemento
indispensável à caracterização e à compreensão da concepção da democracia
liberal, e centro de problemas para essa mesma democracia,
“na medida em que criava tensão entre soberania crescente, no caso o
controle dos governos pelos governados, e soberania decrescente, no
caso o controle dos governados pela burocracia”( Santos & Avritzer,
2002, p.47).
Ora, é precisamente o foco de tensão criada pela burocracia no contexto
democrático que precisa ser eliminado, para se ter melhor controle na condução
do processo de inovação do pensamento político e de clarificação da natureza de
soberania que deve prevalecer no futuro, que se almeja, dominado por um
cenário caracterizado pela coexistência de formas ampliadas de democracia e de
complementaridade entre elas. Todavia, a pressão da burocracia se tornou
inevitável nas arenas geridas pelo Estado Moderno, onde foi necessário impor-se
a forte presença de burocracias especializadas para atender à nova complexidade
da administração estatal.
Consolidada a sua posição com o crescimento das funções do Estado
com a instituição do Welfare State nos países europeus (Santos & Avritzer,
2002; Esping-Anderson, 1990; Shonfield & Shonfield, 1984), a burocracia
continua, na atualidade, firmemente marcando a sua presença no controle das
atividades políticas e econômicas. Existe, todavia, forte descrença quanto à real
capacidade de a burocracia lidar eficientemente com a atividade que deve
realizar e absorver o conjunto das informações envolvidas na gestão pública
(Santos & Avritzer, 2002; Domingues, 1997; Fung, 2002). A percepção,
portanto, é a de que a burocracia não tem essa capacidade, o que a limita na
realização da sua tarefa, pela impossibilidade de se apropriar de valiosos
conhecimentos detidos pelos atores sociais, e dificulta a utilização de um
conjunto de informações necessárias para a execução de políticas complexas nas
áreas social, ambiental ou cultural (Sabel et al.,1999).
O problema posto, desta magnitude, que impõe séria restrição à
capacidade de solução de complexas questões colocadas no campo da
democracia hegemônica em relação à política e à economia, e que se mostra, a
todos os títulos, incapaz de se resolver através de uma importante e intensa
reação interna, que resultasse na fragmentação do núcleo hegemônico em vários
pólos segmentados de confronto, torna imperiosa a inserção de arranjos
participativos no debate democrático no presente século.
4.6. A verdadeira missão da democracia liberal, qual era: bloquear ou
despertar uma consciência cívico-participativa? Missão cumprida?
O triunfo da democracia liberal ocidental, logo depois do fim da Guerra
Fria, não podia ser melhor festejado que até nos países onde a sua destruição,
pela força das armas, era, a um tempo, objetivo político e credo de libertação, se
lhe não poupam elogios. Para um regime político que se classificava de
“desprovido de conteúdo”, como então o definia Immanuel Walberstein (Santos
&Avritzer, 2002), a façanha é simplesmente fenomenal. Setores reacionários,
bem definidos, na arena política internacional, negam, todavia, a importância
dos feitos históricos que consagraram a democracia como o principal construtor
do cenário geopolítico e geoeconômico mundial, no século XX.
Terá possivelmente surpreendido a Humanidade o inesperado desenlace
da confrontação ideológica mundial do século XX, em prol da fundação da
democracia liberal como princípio político universal, que decretou o “Fim da
História”, quando, então, se aguardava temerosamente por um grande conflito
mundial entre o socialismo e o capitalismo”(Silveira, 2005, p.83) no fim da
Guerra Fria; e tanto mais ainda pelas circunstâncias em que se iniciou a sua
rápida expansão mundial a partir do sul da Europa, e mais tarde em direção à
America Latina e África, quando ela padecia de “dupla patologia” nos países
centrais onde se tinha consolidado.
Estas patologias eram a expressão de uma crise que se instalara na
democracia por via da representação e da participação, ambos os elementos
democráticos que, num contexto liberal, iam perdendo a sua vitalidade e, quiçá,
sua legitimidade.
A questão da representação democrática sempre foi colocada num
sentido em que se deixava claro, em determinadas linhas e a representação
cívica era uma dessas –, que a expansão da democracia liberal representativa,
paradoxalmente, envolvia uma enorme degradação das práticas democráticas. Os
cidadãos com plenos direitos políticos perderam completamente a confiança nos
seus representantes eleitos e, em conseqüência de um sentimento generalizado
entre os eleitores de que, de fato, eles são cada vez menos representados,
disparava a taxa de abstencionismo, crescente a cada ato eleitoral.
Mesmo assim, visivelmente desfalcada, a democracia que se tornou
hegemônica impôs uma afrontosa “soberania” política à arena internacional,
ignorando completamente as experiências e discussões oriundas dos países do
Sul no debate sobre a democracia. Nesta latitude, haviam florescido
importantes focos de democracia participativa com os mais diversificados
matizes e formas de combate, representados por associações, comissões e
conselhos populares, e outros tipos de movimentos sociais que, depressa,
soçobraram ante o império da democracia liberal representativa.
O campo democrático, inspirado na concepção liberal, tinha sido
dominado, ao longo de todo o século XX, por um debate em que se vinha de
longe traçando uma hegemonia, na qual, se supunha válida, e judiciosa, a idéia
de rejeição da importância do papel da mobilização social e da ação coletiva na
construção democrática (Santos & Avritzer, 2002; Huntington, 1968), e se
julgava desnecessário que a solução hegemônica elitista, com supervalorização
do papel dos mecanismos de representação, passasse pela combinação destes
mecanismos com os da participação societária (Manin, 1997; Santos & Avritzer,
2002).
Como se depreende do pensamento elitista então em voga (o mesmo que,
entretanto, se transportou para o século XXI), a hegemonia democrática se
assentava sobre um edifício representativo fragilizado, sem o amparo de uma
ampla participação cívica envolvente.
A estrutura social, marcada por acentuados desvios sociais e cívicos, e
reprodutora permanente de “submundos sociais” com baixa articulação e
porosidade entre si, não consegue reverter o quadro participativo então
dominado pelas “elites” com níveis elevados de escolaridade e de renda em
relação à população em geral. Prevalece, portanto, a idéia subjacente de que os
diferentes setores da sociedade devem ser sempre controlados ou representados
por elites. Como escreve Santos Jr. et al. (2004, p. 28), com pessimismo:
em uma situação desse tipo parece-nos racional ou escolher como
representantes pessoas capazes de ‘falar a língua das elites’ como forma
de buscar maximizar os interesses populares ou ‘deixar para lá’ os
apelos à participação ou simplesmente permanecer no deserto cívico
por estar impedido de reconhecer as oportunidades ofertadas”.
O elevado grau de combatividade da sociedade civil organizada é,
porém, uma arma de arremesso contra o discurso derrotista, de cunho elitista,
que nega a capacidade democrática das populações de participarem nos negócios
públicos e procura servir de fundamento à reprodução do domínio das elites
ilustradas sobre a arena pública. A sociedade civil está na vanguarda da luta
social que procura institucionalizar o diálogo democrático com os demais atores
sociais e políticos, e, por conseguinte, viabilizar a base de entendimento com o
poder público em torno da possibilidade de constituição de canais plurais de
participação os conselhos de políticas públicas setoriais são, disso, um
exemplo promissor, enquanto órgãos de constituição paritária geradores de nova
institucionalidade pública.
Ora, a constatação geral é de que toda a ossatura da democracia
representativa está completamente revestida de um tecido teórico e
prático mórbido, cujos elementos constituintes são absolutamente
inqualificáveis para se produzir uma democracia de qualidade, como então se
esperava (ou era desejado) que a concepção hegemônica fosse.
Tais elementos, redutores da capacidade de a democracia representativa
liberal estimular reações em presença de outras experiências democráticas, e de
pô-las em evidência, num cenário de idéias compartilhadas, de acordo com uma
listagem de Santos & Avritzer (2002, p. 41-42),
seriam a tão apontada contradição entre mobilização e
institucionalização(Huntington, 1968; Germani, 1971); a valorização
positiva da apatia política ( Downs, 1956), uma idéia muito salientada
por Schumpeter, para quem o cidadão comum não tinha capacidade ou
interesse político senão para escolher os líderes aos quais caberia tomar
as decisões (1942, p. 269); a concentração do debate democrático na
questão dos desenhos eleitorais das democracias (Lijphart, 1984); o
tratamento do pluralismo como forma de incorporação partidária e
disputa entre as elites (Dahl,1956; 1971) e a solução minimalista para o
problema da participação pela via da discussão das escalas e da
complexidade (Bobbio, 1986; Dahl, 1991)”.
A estrutura da democracia liberal é construída, como se pode notar da
paradoxal montagem dos seus elementos constituintes, sobre um pedestal cuja
base se funda num quadro de relações e de interesses que, pela sua natureza
contraditória, dificilmente representariam o poder do Estado, sem suscitar uma
contraposição do poder da Sociedade. Na verdade, a Sociedade e o Estado são
dois momentos necessários, contíguos e interdependentes, de modo que,
segundo a conclusão de Jacobi (2002), o Estado social permeou a Sociedade e
que o mesmo está permeado da Sociedade”.
Neste intrincado quadro de relações, necessárias, tecidas entre o Estado e
a Sociedade, numa simbiose difícil de evitar, não se podia, portanto, operar
mudanças num setor, sem que o outro também se ressentisse. Quando a
democracia liberal, então, adotou o procedimentalismo democrático como regra
de ouro que iria subverter o espaço participativo, eliminando-o do contexto
democrático, instalou-se prontamente um estado de tensão e de rupturas entre a
Sociedade e o Estado, que culmina em importantes crises que parece ameaçarem
inviabilizar o itinerário já traçado para a democracia hegemônica, desviando-a e
precipitando-a, quase que cegamente, para o centro de um novo e eclético
figurino de convivência democrática.
A sociedade civil a nosso ver encontra, no contexto das crises
geradas pelas aberrações da democracia liberal representativa, os pretextos para,
então, iniciar um movimento de ressurgimento das práticas e experiências da
democracia participativa.
Ora, o desmonte do Estado do Bem-Estar Social, representativo da crise
do regime fordista e das instituições sociais e políticas em que este se traduzia,
com repercussões profundas de natureza econômico-política e de dimensão
político-cultural
16
; a emergência da globalização econômica; e a crise de
representatividade, desacreditada pela prestação dos eleitos, se transformam,
globalmente considerados, em soberanas razões que não podem deixar de incitar
o aparecimento de novas, ou renovadas, formas de práticas democráticas que
incluíssem e destacassem a participação social como um importante
instrumento de fortalecimento da sociedade civil, notadamente dos setores
excluídos dentro de um quadro baseado no processo de redefinição dos
16
Jacobi (2002, p.26), parafraseando Santos (1996, p.254-255) esclarece que o
retrocesso nas políticas sociais tem assumido várias formas: cortes nos programas
sociais, esquemas de co-participação nos custos dos serviços prestados por parte dos
usuários; privatização capitalista de certos setores da previdência estatal no domínio da
saúde, da habitação, da educação, dos transportes e das pensões”.
setores público e privado, visando a redistribuir o poder em favor dos sujeitos
sociais que geralmente a ele não têm acesso” (Jacobi, 2002, p.27).
5. REAÇÃO CONTRA-HEGEMÔNICA À DEMOCRACIA:
POLÍTICAS DE DESREGULAMENTAÇÃO SOCIAL DESPERTAM
O POTENCIAL CONTRA-HEGEMÔNICO À DEMOCRACIA
LIBERAL
A crise de representatividade protagonizada pela democracia liberal, que
reflete a sua limitação (da representação) como modelo criado no contexto da
democracia em grande escala para dar suporte à participação popular e à questão
de autorização para legitimar as ações do governo, e o emergente estado da
globalização econômica, que afastou o Estado da sua anterior responsabilidade
de traçar e pôr em execução as devidas políticas sociais compensatórias fazem
despertar na sociedade civil uma atitude contrária à visão e práticas
momentaneamente seguidas pela concepção hegemônica da democracia liberal.
Na opinião de Santos (2002a, p.457), a sociedade mundial foi
confrontada com uma situação precária e inusitada onde
os processos hegemônicos de globalização têm provocado, em todo o
mundo, a intensificação de exclusão social e da marginalização de
grandes parcelas da população”.
Processos, aliás, que o mesmo autor afirma estarem
(...) sendo enfrentados por resistências, iniciativas de base, inovações
comunitárias e movimentos populares que procuram reagir à exclusão
social, abrindo espaços para a participação democrática, para a
edificação da comunidade, para alternativas às formas dominantes de
desenvolvimento e de conhecimento, em suma, para a inclusão social”.
Começa, pois, a desenharem-se, no seio da sociedade civil, os contornos
da estratégia que “não fala a linguagem da globalização hegemônica”, mas deve
ser posta em prática na construção de um novo cenário político-democrático,
onde figurarão, num plano central, as formas recuperadas de uma anterior e
vasta experiência democrática intensificada, agora consubstanciada numa
democracia participativa baseada no princípio de que,
o mesmo direito ao autodesenvolvimento pode ser alcançado numa
sociedade participativa que promova a idéia de eficácia política, tenha
preocupação com problemas de caráter social e contribua para a
formação de uma cidadania qualificada, capaz de manter-se
permanentemente interessada no processo do governo” (Held, 1987,
apud Jacobi, 2002, p.23).
À democracia participativa está, indubitavelmente, reservada um papel
crucial, sobretudo num cenário da democracia local. A sua ação será, pois,
relevante em espaços visivelmente marcados pela dificuldade em se reconhecer
direitos fundamentais, notadamente de grupos caracterizados por uma grande
diversidade étnica e, sobretudo, naqueles onde, tenazmente, se confrontam a
diversidade de interesses” e o particularismo de elites econômicas” (Benhabib,
1996, apud Santos & Avritzer, 2002, p.50; Bóron, 1994; Young, 2000).
Novos arranjos políticos e estratégicos devem, entretanto, introduzir o
tema “participação” no centro das discussões democráticas, não como promotor
de “direitos políticos e sociais”, mas, como fonte de elementos que fornecem a
base moral necessária à construção de um novo tipo de sociedade civil, com
amplos poderes para controlar o Estado e a economia (pela expansão de um
conjunto de instituições capazes de exercer a mediação entre um e outro), de
acordo com a importância que se atribui ao “mundo da vida modernizado”.
Trata-se, portanto, de fixar, em amplo panorama, a visão da democracia
como uma gramática de organização da sociedade e da relação entre ela e o
Estado. Rigorosamente falando, trata-se de uma necessária regulagem às lentes
democráticas para se reconhecer, em todo o seu alcance, a pluralidade humana, o
que se dá, a partir de dois critérios distintos: a ênfase na criação de uma nova
gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com a
inovação institucional, isto é, com a procura de uma nova institucionalidade da
democracia.
5.1. Por que a democracia liberal combate a participação ampliada
17
?
A democracia liberal representativa, ao tornar-se opção hegemônica,
dominando sobre um vasto conjunto político, no qual cessaram os intensos
confrontos ideológicos do passado, legitimou a preocupação única e exclusiva
com o procedimentalismo eleitoral para constituir governos, como o modo
preferencial de toda a ação democrática. Dedicou-se, laboriosamente, ao
aperfeiçoamento de métodos que passavam pelo parlamento, assim como por
formas mais diretas de expressão (Kelsen, 1929, p.142, apud Santos &
Avritzer, 2002, p.44-45), mais tarde consubstanciados em uma forma de elitismo
democrático baseado em regras para a formação de governo representativo das
maiorias: peso igual dos votos, ausência de distinções econômicas, sociais,
religiosas e étnicas na constituição do eleitorado, etc. (Bobbio, 1979).
O equacionamento da questão eleitoral nos moldes elitistas deixou a
democracia em situação de não poder esclarecer se as eleições “esgotavam” os
procedimentos de autorização por parte dos cidadãos; e os procedimentos de
representação, a questão da representação da diferença. O esvasiamento destas
17
Entende-se por “participação ampliada” (ou neocorporativa) aquela desenvolvida em
órgãos colegiados formados por representantes do poder público e da sociedade
organizada, como conselhos, fóruns e conferências públicas, voltados para elaboração de
macropolíticas (políticas regulatórias). Em contrapartida, a “participação restrita” (ou
instrumental) vincula-se ao envolvimento da população alvo, por meio de diferentes
mecanismos (definição de prioridades, sugestões sobre o formato, co-gestão de projetos
etc.), em programas governamentais específicos (políticas distributivas) (Abranches &
Azevedo, 2004).
Para um conhecimento mais aprofundado deste assunto, consultar Azevedo & Prates
(1991).
questões, com o ostracismo imposto às formas ampliadas da democracia,
frustrou de vez uma possível solução conduzida pela ação proveniente de
impulsos gerados por esquemas participativos.
A democracia liberal, no entanto, ofusca muitos outros esquemas, cuja
revelação e tratamento democráticos, necessários e plausíveis, exigiriam a
confrontação com os pressupostos de uma cidadania ativa que, no entanto, não
convém ser acionados.
Sob uma cultura política moldada pela pressão de práticas tradicionais,
como populismo, autoritarismo, clientelismo, mandonismo, patrimonialismo e
privatização da política nas suas diversas acepções, germinaram e cresceram
fortalecidas as sementes de desconfiança da elite dominante nas reais
potencialidades da participação popular na efetivação da democratização da
gestão dos assuntos públicos. A democracia liberal, então se arma de certos
argumentos fantasiosos para refutar a participação cívica em todos os seus
aspectos.
A alegada inconsistência das propostas participativas no campo social,
esvasiado por políticas de ajuste estrutural e de liberalização da economia e de
privatização do patrimônio do Estado, sinaliza a fragilidade dos planos de ão
engendrados para conduzir programas de compensação social sob inspiração de
atores irrelevantes. A irrelevância dos atos participativos, reconhecida e
atribuída pela participação minimalista ao déficit de participação e de
constituição de atores relevantes, pode redundar em fator de crise de
governabilidade e de legitimidade, o que minimizaria a importância estratégica
da dimensão participativa na arena político-democrática, e a tornaria
potencialmente inqualificada como veículo da sociedade civil no processo da
articulação com o Estado (Tanaka 1995; Jacobi, 2002).
Pressente-se que uma das razões mais salientes para se evitar uma
composição democrática com incorporação de fortes esquemas participativos
reside no temor da coexistência de duplo poder: o poder do Estado e o poder da
sociedade. Isso porque, uma vez em confronto, poderiam fazer despontar no
contexto de democratização o desejo por direitos (direitos políticos, de um lado,
e direitos sociais, por outro) suscetíveis de levar ao ambiente democrático um
clima de tensões e de rupturas, pela sua natureza contraditória. evidências
claras da existência de uma correlação negativa entre esses dois tipos de direitos:
quando os direitos políticos são restabelecidos, os direitos sociais entram em
crise, gerando um ambiente de disputa pelo restabelecimento do equilíbrio
necessário à fixação de um novo contexto democrático. Escreve Jacobi,
parafraseando Bobbio (1992), que, nesse contexto,
o que se observa é que tanto a cidadania quanto os direitos estão em
processo de construção e mudança. O desafio que se apresenta é
desfrutar o direito efetivamente, e não apenas proclamá-lo; (...) a
linguagem dos direitos tem indubitavelmente uma grande função
prática, que é emprestar uma força particular às reivindicações dos
movimentos que demandam para si e para os outros a satisfação de
novos carecimentos morais e materiais, mas ela se torna enganadora se
obscurecer ou ocultar a diferença entre o direito reivindicado e o direito
reconhecido”.
Conclui o autor:
Trata-se portanto de garantir-lhes uma proteção efetiva, uma vez que
(...) os direitos sociais, como se sabe, são mais difíceis de proteger do
que os direitos de liberdade” (Jacobi, 2002, p.21).
As formas ampliadas da democracia necessariamente absorveriam a
maioria das tendências em disputa, ressuscitando e colocando em campo o
ideologismo multifacetado, sob cuja égide se estruturarão e serão articuladas as
mais complexas ações reivindicatórias. Por razões bem simples, é de se esperar
que os projetos da sociedade civil, sob tal circunstância, provavelmente
influenciados na sua arquitetura por concepções político-ideológicas diferentes
da concepção dominante e, possivelmente, das demais com que se orientam
horizontalmente, sofressem uma severa resistência tecnoburocrática, todas as
vezes que, por razões político-ideológicas, reagindo à lógica da razão
instrumental dominante, tentassem impor modificações ao encaminhamento
estritamente técnico dos projetos avalizados pelos governos.
A concepção hegemônica da democracia não tolera, entretanto, o mais
leve sinal de tensão que ameace o equilíbrio desejável entre a democracia e o
capitalismo. Procura, a todos os títulos, manter estabilizada a “tensão
controlada” entre eles. Para tal, recorre a meios manifestamente lesivos ou
contrários a práticas que induzem à intensificação dos processos democráticos.
Assim, procura o Estado pôr em execução um plano que confira, por um lado,
alta prioridade à acumulação de capital em relação à redistribuição social e que,
por outro lado objetivando evitar “a sobrecarga”
18
do regime democrático com
demandas sociais que possam pôr em perigo a prioridade da acumulação sobre a
redistribuição , contenha certas medidas impositivas de severas limitações à
participação, seja individual, seja coletiva (Santos & Avritzer, 2002, p.59).
A “sobrecarga democrática” se instala precisamente pela inclusão
política de grupos sociais anteriormente excluídos e pelas demandas
“excessivas” que fazem à democracia. Nenhuma das formas de participação
sócio-política que se preze pode, no entanto, eximir-se da função aglutinadora
das demandas provenientes dos setores excluídos, pois, de acordo com a visão
de Machado et al. (2004, p.244),
18
A expressão “sobrecarga democrática” traduz um conceito formulado em 1975, num
relatório da Comissão Trilateral preparado por Crozier, Huntington e Watanaki
( Machado et al., 2004).
Se a idéia de ‘sobrecarga democrática’ prevalecer no interior dos
conselhos
19
, esses podem vir a se constituir em espaços de consolidação
das políticas propostas unicamente pelas administrações municipais.
Aliada à idéia de que o conflito e o antagonismo são extremamente
perigosos para as instituições democráticas os conselhos se tornarão
uma arena política de ‘iguais’, com um projeto único de sociedade que
rechaça as vozes que propõem outras alternativas”.
A concepção hegemônica da democracia, no entanto, sempre questionou
as demandas que procurassem dar corpo a uma nova gramática de inclusão,
taxando-a de “excesso de demanda” e, dando-lhe combate feroz, desfere golpes
em todas as direções onde surjam os mais tênues sinais de intensificação
democrática.
Ora, os processos de intensificação democrática o fortemente
contestados pelas elites excludentes
20
por abertamente combaterem os interesses
e concepções hegemônicos. Os métodos empregados nesse combate são os mais
variados possíveis, destacando-se, entre eles, quando o avanço dos processos
não pôde ser completamente evitado por outros meios menos ardilosos, a
tentativa da sua descaracterização pela via da cooptação ou da integração. Disso
decorre que a participação é um processo vulnerável e com muitas
ambigüidades, o que põe a descoberto a sua fragilidade institucionalizante e
explica, em parte, o receio contemporâneo de que um aumento da participação
poderia abalar a estabilidade do sistema democrático” (Gohn, 2001, p.21).
5.2. Ampliação da esfera pública para o adequado exercício da cidadania
A tradição participativa no Brasil é tão antiga que na época colonial
endossava as lutas contra a potência colonizadora e, internamente, tornava
19
Uma forma paritária de participação sócio-política na gestão de políticas públicas.
20
Também se designam por “elites metropolitanas”, conforme a expressão cunhada por
Sheth.
possível o engajamento da sociedade na luta contra a escravidão e pelo
sindicalismo anarquista do século XX.
A hegemonia da democracia liberal não desmantelou completamente o
arcabouço da democracia participativa que tinha sido desenvolvido, e
aperfeiçoado, no solo pátrio, sob duras lutas sociais travadas pela conquista de
espaços onde a voz da sociedade civil podia ser ouvida, e nos quais, mais tarde,
viria a desenrolar novas formas de luta pela redemocratização do Estado.
Assim, não obstante algumas tibiezas verificadas na conduta do
processo pós-hegemônico, o percurso da democracia participativa baseada na
experiência brasileira não foi interrompido e continuou a fazer-se, aliás, sob
novos esquemas, com desenvolvimentos cada vez mais conspícuos.
Na cada de 1990, ganhou grande visibilidade a participação cidadã,
que, pondo a ênfase nas políticas públicas e na sociedade civil, se fundamentava
na universalização dos direitos sociais, na ampliação do conceito da cidadania e
em uma nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado.
As anteriores formas de participação tão em voga na década de 1980, a
participação popular e a comunitária, expressivas na luta pela inclusão das
diferenças, deram lugar ao surgimento de um contexto ocupado por uma
sociedade “empoderada”, com novos sistemas de valores baseados no espírito de
solidariedade e de trabalho voluntário, motivação de vontades, sentimento de
identidade, confiança e de colaboração, sob a influência de uma cultura cívica
em franco desenvolvimento e de um razoável capital social já acumulado. Nesse
contexto, a mobilização social já tinha perdido todo o seu tradicional conteúdo
político e se ocupava, essencialmente, na prossecução de resultados “desejados
por todos” (Gohn, 2001, p.59).
Com efeito, o ambiente sob a influência da democracia hegemônica
excedia de demandas próprias das circunstâncias monolíticas e punha em
evidência uma grande diversidade de interesses surgidos no campo político,
social e econômico, os quais eram proclamados por grupos organizados da
sociedade, originários das mais diversas entidades, organizações, associações e
movimentos sociais. Urgia debater temas que até então tinham merecido pouca
atenção do poder público e econômico, e outros problemas que se iam impondo
nas esferas privadas, “no mundo da vida”
21
(Jacobi, 2002, p.14), tais como a
pobreza, o desemprego, a defesa ambiental, a inserção social das mulheres, dos
negros, o cotidiano doméstico, a participação popular e a aquisição de direitos
civis e sociais, entre outros.
Problemas tão díspares não podiam deixar de mobilizar uma forte
componente de ões voltadas para o seu equacionamento dentro de uma lógica
participativa e integradora dos interesses antagônicos, em disputa. Efetivamente,
a pressão exercida fez emergir na sociedade um conjunto organizado de
movimentos sociais e grupos de pressão interessados na inventariação e
tratamento dos complexos problemas e tensões com que a sociedade moderna se
debatia, sobretudo nas esferas privadas, “no mundo da vida” e que exprimiam as
suas demandas mais importantes.
O ambiente se tornara de fato fértil de reivindicações transformadas em
“problemas coletivos da sociedade” não apenas os problemas inscritos na
preocupação que deu azo à participação de grupos excluídos por disfunção do
sistema (comunidades) ou de grupos excluídos pela lógica do sistema (povo
marginalizado), mas, sobretudo, aqueles expressos por um conjunto de
21
Jacobi refere do seguinte modo ao mundo da vida: O conceito habermasiano de
mundo da vida tem três componentes estruturais distintos: a cultura, a sociedade e a
personalidade. Na medida em que esses atores se entendem mutuamente e concordam
quanto à sua condição, eles partilham uma tradição cultural, de modo que, por meio
das regras e normas estabelecidas pelos atores, internalizam-se orientações valorativas,
adquirem-se novas competências para o agir cotidiano e desenvolvem-se identidades
individuais e sociais. A reprodução de ambas as dimensões do mundo da vida envolve
processos comunicativos de transmissão da cultura, de integração social e de
socialização. A diferenciação estrutural do mundo da vida se pelo surgimento de
instituições especializadas na reprodução de tradições, solidariedades e identidades
(Jacobi, 2002, p.14, rodapé, apud Arato & Cohen, 1994, p.153).
indivíduos e grupos sociais, cuja diversidade de interesses e projetos integra a
cidadania e disputa com igual legitimidade espaço e atendimento pelo aparelho
estatal” (Carvalho, 1995, p.25, apud Gohn, 2001, p.56-57).
Ora, as sociedades modernas, parafraseando Habermas, para fins de
disputas sócio-político-econômicas, se estruturam, por um lado, segundo a
lógica estratégica do sistema, dentro da qual se organizam o Estado e o mercado,
e por outro lado, de acordo com a lógica da racionalidade comunicativa, por
meio da qual se processa a organização da solidariedade e da identidade no
interior no mundo da vida. Nos pontos de encontro entre sistema e mundo da
vida se situa o espaço social onde ocorre a disputa política fundamental das
sociedades contemporâneas, alimentada por conflitos “entre sistema e mundo de
vida”, mas aberta a uma aproximação solidária.
Precisamente nesses pontos é que se situam e se desenvolvem aqueles
“problemas coletivos” de ordem privada que a sociedade civil se encarregará,
por seu turno, de “absorver”, “condensar” e “conduzir” para a esfera pública.
A esfera pública é (...)[ o] ponto de encontro e local de disputa entre os
princípios divergentes de organização da sociabilidade, e os
movimentos sociais, como atores que reagem à reificação e
burocratização dos domínios de ação estruturados comunicativamente,
defendendo a restauração das formas de solidariedade ameaçadas pela
racionalização sistêmica” (Avritzer, 1993, apud Jacobi, 2002, p. 14);
ou, como observa Gohn (2001, p.36 e 41), trata-se de
(...) uma esfera que comporta a interação entre os grupos organizados
da sociedade, originários das mais diversas entidades, organizações,
associações, movimentos sociais (...) para o debate, face a face, dos
problemas coletivos da sociedade, diferenciado do debate no espaço
estatal propriamente dito, (...) construíndo identidades em público,
estabelecendo novas formas de solidariedade e possibilitando a
superação de uma condição privada de dominação...”.
O desenvolvimento do processo interativo das ações no interior da esfera
pública, ao reforçar a capacidade de novos atores atores modernos e
democráticos, com nova identidade, interlocutores cuja ação comunicativa o
sistema, aliás, legitima viabiliza o exercício da influência da sociedade nas
decisões públicas, fato que redunda no fortalecimento do tecido associativo
potencializador do desenvolvimento democrático em todas as esferas da vida
social. Dá, outrossim, as coordenadas para que importantes instituições
democráticas, fundamentais à participação cidadã e à pressão sobre a arena
política surjam, sejam aperfeiçoadas e consagrem o desenvolvimento de um
novo tipo de sociedade, com novos direitos, possuidora de novos conhecimentos
e de uma cultura política e social ressignificada (Jacobi, 2002).
De resto, crê-se que é assim que se consagram os meios necessários à
mudança de institucionalidade que converte o campo democrático em espaço
para a generalização da ação social, para o reconhecimento das diferenças e
para a ampliação da forma do político" sob a influência de organizações da
sociedade civil
22
transformadas em novos espaços de poder como estruturas
instituintes não-formais, no lugar de um instituído ausente, o Estado(Gohn,
2001, p.36 e 41).
Reconhecem-se, em tais atos, os fundamentos para a mobilização dos
fatores e princípios ético-políticos da democracia que se canalizam na orientação
das práticas sociais solidárias, no sentido da construção da cidadania e na sua
22
Basicamente, o terceiro setor e os movimentos sociais. Os setores organizados da
sociedade civil, tendo construído novas identidades para si, colaboram fortemente na
ampliação da esfera pública e contribuem com elementos importantes para a construção
do conceito de governança.
concretização como espaço onde se cultiva a responsabilidade pessoal, a
obrigação mútua e a colaboração voluntária.
Enquanto a ampliação da esfera pública se efetiva, a sociedade é
pressionada para obter maior influência sobre o Estado, limitando-o, para que
seja alcançada a autonomia social pela superação das assimetrias na
representação social ou por modificação das relações sociais em favor de maior
auto-organização social ( Putnam, 1994; Cunill Grau, 1998; Jacobi, 2002). Em
todo o caso, recorde-se que, apesar de o Estado e a sociedade civil operarem
diferencialmente, o alcance do objetivo de uma disputa democrática entre eles
deverá ocorrer sempre na base daquilo que Bejarano (1994) chama de soma
positivadas suas ações respectivas. Uma espécie de “acordo” necessário para
que a ampliação da esfera pública, efetivamente, redunde na democratização da
sociedade, onde o exercício da democracia, em nome da cidadania de todos,
deve ser um processo construído por etapas de aproximações sucessivas, em
que o erro é (ou deveria ser) tão pedagógico quanto o acerto”, e não
transformado em “engenharia de regras” (Gohn, 2001, p.63).
A caracterização de uma esfera societária brasileira autônoma ocorreu na
década de 1970, a partir de mudanças de políticas na redefinição das relações
entre Estado e sociedade. Daí surgiu o impulso inicial na construção de uma
“cidadania regulada”
23
, ligada a novos espaços e formas de participação e de
relacionamento com o poder público, construídos por movimentos populares,
que acabaram por lançar na esfera pública “novos personagens” (Eder Sader,
1988, apud Jacobi, 2002, p.18), os quais, nas décadas seguintes, protagonizariam
23
Avritzer & Azevedo (1994, apud Jacobi, 2002, p.17) esclarecem quanto à
característica do conceito, afirmando que ele constitui seletivamente os atores
beneficiados pelo processo de modernização econômica, atores que, de acordo com os
planejadores estatais, seriam capazes de trocar a cidadania social e civil pelo papel de
membros de uma sociedade de consumo despolitizada”. Para um aprofundamento da
noção de cidadania, ver Maria V. Benevides (1994). A autora aponta o caminho da
democracia semidireta como meio de recuperar a soberania popular: a associação da
democracia representativa com mecanismos de democracia direta.
o surgimento de novos padrões de valores que permitiram acumular novos
conhecimentos acerca das reivindicações feitas aos órgãos públicos (Jacobi,
1990; Jacobi, 2002).
O caráter reivindicativo das ações empreendidas nesse quadro de
mudanças nos padrões de relacionamento entre o Estado “ausente” e a sociedade
civil, com elevados níveis de moral e de cultura cívico-política, estava lastreado
na noção de “direitos” que tornavam possíveis o reconhecimento das carências
públicas. Carências tais, que a sociedade brasileira exprimia magistralmente sob
a fórmula de “direito a ter direitos
24
”, a “ter gente lá” onde decisões possam ser
tomadas, ou simplesmente influenciadas (Gohn, 2001).
Acontece, porém, que certas tensões se instalaram no seio desses
movimentos, interlocutores dos órgãos públicos e refrearam, posteriormente, a
dinâmica do seu crescimento e impacto, fragilizando-os grandemente. O estado
de tensão gerada punha em evidência uma absoluta ausência de critérios
reguladoresda participação das diferenças, o que, por sua vez, fazia crescer
ainda mais a desconfiança geral em relação à participação política
24
Brasil viveu, de forma intermitente, por longos períodos, sob regimes de ditadura
militar que se mostravam impotentes para eliminar da sociedade a consciência
participativa que a caracterizava desde os primórdios da colonização e, em virtude disso,
tornou-se possível a construção de uma sociedade civil altamente politizada, capaz de
distinguir entre reivindicações supérfluas e importantes, como aquelas que poderiam
decorrer do “direito a ter gente lá”, onde as decisões são tomadas, e as políticas sociais,
arquitetadas. Ao contrário do que se passava sob outros governos totalitários da época, o
anseio pela participação política, sob as mais variadas formas, tinha resistido ao
totalitarismo e atravessou incólume todas as adversidades, inclusive as provocadas
recentemente pela democracia hegemônica. Hoje, a sociedade brasileira é o reservatório
mais auspicioso de experiências em democracia participativa para serem compartilhadas
com outras sociedades em âmbito mundial. Por exemplo, Portugal, também com uma
longa tradição totalitarista, que quase cobriu todo o século XX, diferentemente,
“produziu” uma sociedade amorfa, manietada, que, à data da libertação de Portugal do
jugo fascista-salazarista, em 25 de abril de 1974, por meio da Revolução dos Cravos,
politicamente imatura, apenas exigia, como necessidade maior, o “direito ao lugar”
(Nunes & Serra, 2002), isto é, um direito específico, “natural”, sintetizado no acesso a
moradias condignas. Certamente, uma necessidade que a sociedade brasileira também
tinha.
institucionalexercida na esfera de um associativismo ingênuo, intransigente e
corporativista” ( Doimo, 1995, apud Jacobi,2002, p.19).
Avritzer(1993) nos alertava, entretanto, para os possíveis limites da
esfera pública que importava ter em devida conta. Sintetizando suas idéias,
Jacobi (2002, p. 15) explica o fato em razão de três premissas:
a) a natureza efêmera dos novos movimentos sociais e suas
ambigüidades, e a dúvida quanto à sua capacidade para defender algo
tão complexo como o mundo da vida;
b) a limitação da esfera pública à função de defesa do mundo da vida
põe em dúvida sua capacidade de redefinir a relação entre o público e
as esferas de exercício de autoridade, capacidade que é constitutiva da
própria noção de público;
e c) a constatação do eurocentrismo implícito nessa forma de
argumentação”.
De forma geral, a expansão do associativismo brasileiro estava
condicionada a certa perplexidade causada pela institucionalização, mas,
sobretudo, limitava-a uma situação de fragilidade imposta pela aceleração da
crise econômica e pelas dificuldades processuais em reger a militância,
mobilização, participação em atividades organizadas”, o que exprimia, com
clareza, o grau de descrédito e a perda de confiança nas políticas públicas, aliás,
deslegitimadas pela população.
Todavia, a Constituição Brasileira de 1988 resgata o exercício de
cidadania ao dar novo impulso à participação que abriu o caminho para o
estabelecimento de uma nova mentalidade sobre a gestão da coisa pública,
tornada possível pela emergência de uma nova cultura política desenvolvida pela
dinâmica participativa ocorrida no interior dos conselhos e colegiados
recém-criados, em cumprimento dos princípios estatuídos naquela Carta
Constitucional (Melucci, 1994).
5.3. Princípios para o desenvolvimento da legitimidade democrática
A relação entre o Estado e a sociedade está hoje visivelmente marcada
por vínculos de extrema fragilidade institucional. Este fato levou a participação
cidadã a entrar em crise, reduzindo, assim, a capacidade de controle social do
espaço público, com reflexo nefasto na prevalência de uma dinâmica marcada
pela apropriação privada do público e a erosão da qualidade da cidadania
(Jacobi, 2002, p.34).
Urge, no entanto, injetar nova dinâmica à tradição participativa do
cidadão, associada a um projeto de ampliação da esfera pública, por meio da
capacitação da sociedade no sentido da busca de uma maior ampliação da
institucionalidade pública e fortalecimento da comunidade cívica.
A efetiva participação cidadã pode, no entanto, ocorrer sob
determinadas condições. Cunill Grau (1998) as apresenta sob o rótulo de
princípios para o desenvolvimento da legitimidade democrática”, os quais
Jacobi (2002, p.34) sintetiza nos seguintes elementos: a igualdade política, o
pluralismo político, a deliberação e a solidariedade”.
6. NEGOCIAÇÃO SOCIAL CONSTITUI A BASE PRIVILEGIADA DE
RELAÇÃO ENTRE A SOCIEDADE CIVIL E O ESTADO NA
GESTÃO DA COISA PÚBLICA, SOB O IMPÉRIO DA
DEMOCRACIA LIBERAL – REPRESENTATIVA
A sociedade brasileira tem uma prática antiga de participação político-
social nos assuntos de interesse nacional. Desde a longínqua luta travada para a
conquista da soberania do Estado Brasileiro, no século XIX, até a tentativa da
sua democratização na década de 1980, e, por que não, até os nossos dias, a
participação popular tem sido o elemento decisivo e proeminente dos processos
sociais desencadeados.
Ao longo desse tempo, que marcou de modo indelével a história
político-social brasileira, acompanhando a mudança provocada pelos
acontecimentos, a participação experimentou várias mutações institucionais,
assumindo caráter e objetivos compatíveis com os cenários do momento.
Assim, no início do século XX, surgiu a participação comunitária, cuja
organização segue os princípios ideológicos e práticos do movimento dos
centros comunitários de saúde anteriormente criados nos Estados Unidos.
Possuía, tal forma de participação, um caráter eminentemente instrumental.
Ligada à atividade missionária das igrejas, da qual era como que uma espécie de
apêndice, envolve-se com as ações por estas elaboradas no âmbito dos
programas assistenciais dirigidos às comunidades. Na década de 1980, porém, a
participação assumiu novas características que a transformam em esforços
organizados para aumentar o controle sobre os recursos e as instituições que
controlavam a vida em sociedade”; assume, assim, o caráter de participação
popular. A ênfase é, então, colocada na participação dos indivíduos
(pertencentes à sociedade civil organizada, cujas organizações representam) em
processos de elaboração de estratégia e de tomada de decisão, no seguimento de
uma luta destinada à conquista do acesso e reconhecimento de direitos sociais,
políticos e econômicos dos setores populares. No fundo, trata-se de mudar as
regras do controle social e de alterar a forma de fazer política no país”, pela
transformação da cultura política nacional e seus valores, vergonhosamente
assentados sobre os pilares do clientelismo, do paternalismo, da resolução de
negócios públicos por meio de procedimentos diretos, privilegiando interesses
particulares, do descaso das leis, valorização das estruturas corporativas, etc.,
isto é, de construir as bases seguras para a futura democratização do Estado
(Gohn, 2001, p.50).
Precisava-se, enfim, organizar o campo democrático, onde novos canais
de participação em assuntos da coisa pública surgiriam para elevar a capacidade
dos atores sociais na arte de negociação com os governos.
São exemplos mais eminentes desses canais de participação, os
conselhos gestores por sinal, matéria central deste estudo. Com efeito, entram
em cena política, por essa data, conselhos que expressavam as mais diferentes
formas de participação: segundo os princípios da participação direta, os
conselhos populares e na base da participação indireta, os conselhos
comunitários.
Uma oportuna melhoria nos modelos de participação, com ampliação do
conceito da cidadania, veio, enfim, pôr em relevo novos conceitos de
participação, na década de 1990. A participação social e a participação cidadã
ocupam, então, o centro da discussão política. A participação cidadã, por
exemplo, numa expressão clara de um gigantesco salto evolutivo dado no campo
político, põe invulgarmente toda a ênfase nas políticas públicas, de modo que
estas e a sociedade civil se tornam, nesse período, as principais dinamizadoras
dos canais de participação. Assim, ela o impulso necessário à consolidação
dos conselhos gestores, em cujo seio iriam, futuramente, desenrolar salutares
confrontos democráticos entre diferentes posições político-ideológicas e
projetos.
6.1. Conceito de Governança Local é o locus onde se pode melhor entender
os Conselhos e seu desenvolvimento
A globalização emergente no final do século passado transforma
radicalmente o campo político e econômico, em âmbito nacional e internacional,
ao suscitar um novo conjunto de políticas neoliberais que impuseram novos
processos às formas de cooperação entre o Estado, os agentes econômicos
privados, as organizações internacionais e as organizações não governamentais.
A ão de tais políticas gerou a inevitável ingovernabilidade e, ato contínuo,
provocou o aparecimento de um novo conceito para lidar com os processos
impostos por essas políticas recentes a governança.
O conceito de governança, além de permitir estabelecer novas formas de
cooperação global entre os atores acima mencionados, constitui a moldura
necessária dentro da qual os direitos humanos e de povos “podem ser defendidos
e preservados” (Altvater, 1999, p.114-115, apud Gohn, 2001, p.37).
A noção de governança não destaca apenas a centralidade dos órgãos e
aparatos estatais, exigida de conformidade com os marcos referenciais de um
novo paradigma da ação pública estatal, entretanto, surgido no novo contexto de
relação governo-sociedade. Mas, esta relação em si também deve ser uma
componente incorporada pela governança, pois, este conceito alterou o padrão
da gestão de bens blicos com a introdução em cena de novos atores da esfera
pública não-estatal, forçando a construção de uma coalizão com os tradicionais
atores da esfera pública estatal:
a noção de governança sugere que a capacidade de governar não está
unicamente ligada ao aparato institucional formal, mas supõe a
construção de coalizões entre atores sociais, construídas em função de
diversos fatores, tais como a interação entre as diversas categorias de
atores, as orientações ideológicas e os recursos disponíveis” ( Hamel,
1999, apud Santos Júnior, 2001, p. 61, apud Gohn, 2001, p.38).
Um dos espaços onde se constroem as tais “coalizões entre atores
sociais” são os Conselhos Gestores. Trata-se de um espaço social e político
destinado à gestão de políticas públicas. O caráter de sua constituição eclética,
efetivada a partir da incorporação do espaço público não estatal, o predispõe a
sérios confrontos e tensões no seu seio. As razões, Gohn (2001, p.39) aponta,
nestes termos:
(...) a incorporação dos novos atores tem ocorrido em cenários de
tensão e conflito. Por um lado, os espaços construídos pelo público
não-estatal são conquistas de setores organizados; por outro, são
também parte de estratégias de recomposição de poder de grupos
políticos e econômicos em luta pela hegemonia de poder. Enquanto os
primeiros buscam democratizar os espaços conquistados, por meio de
lutas pelo acesso às informções e por igualdade nas condições de
participação, priorizando sempre na cidadania a questão dos direitos,
os últimos lutam por atribuir aos novos atores um perfil de
cidadãos/consumidores, destacando apenas suas obrigações,
ressignificando a cidadania pelo lado dos deveres. Essa tensão é mais
perceptível em âmbito local, onde os atores sociais se relacionam mais
diretamente e onde reconfigurar as formas e culturas políticas
tradicionais, carregadas de estruturas clientelísticas e patrimonialistas,
é uma tarefa bem mais difícil”.
De forma geral, está fortemente ligada ao conceito de governança a
noção de eficiência e de eficácia da administração dos impactos das políticas de
ajuste estrutural para minorar os seus efeitos em relação ao aumento da
pobreza, por exemplo. Nesse caso, o desafio maior é o da procura de uma maior
articulação possível do nível de participação com os critérios da eficácia e da
busca de resultados imediatos no plano local.
No contexto pós-globalização, a governança torna-se, portanto, um
conceito de aplicação imprescindível. A boa governança passa a ser a exigência
principal do “teste da democracia” exigido aos países que procuram recursos
internacionais para financiar o seu desenvolvimento econômico, social, político
e cultural. Entre outros, os países tomadores de recursos devem fornecer prova
bastante de ter atingido índices razoáveis de respeito aos direitos humanos,
padrões ecológicos mínimos e transparência democrática elementos de
expressão de uma boa governança.
Desviando, porém, a atenção para a questão estritamente ligada ao
governo local, o conceito de governança local é o que se reveste da maior
importância. Ele permite melhor entender os Conselhos Gestores. Trata-se de
um conceito em formação e é bastante híbrido. Busca, sobretudo, articular
elementos do governo local com os do poder local, caracterizando-se, desta
feita, como um “sistema de governo” em que é fundamental a inclusão de
novos atores sociais, por meio do envolvimento de um conjunto de
organizações públicas e privadas (ONGs, movimentos sociais, entidades
privadas e órgãos públicos estatais).
A governança local se caracteriza, portanto, como o universo das
parcerias, da gestão compartilhada entre diferentes atores e agentes, tanto da
sociedade civil, como da sociedade política (Gohn, 2001). É a caracterização
perfeita do locus onde os Conselhos Gestores irão desenvolver sua atividade, a
partir de articulações que envolvem participações, diálogos, confrontações e
decisões, num ambiente (preferível) de uma genuína “democracia participativa”
e de um perfeito sentido de “solidariedade ou colaboração solidária”.
A colaboração solidária, dentro do contexto de mudanças radicais
provocadas na sociedade pela “revolução social” da democracia liberal, se
transforma, em absoluto, no apanágio “natural” da democracia, sobretudo em
âmbito local. Mance (2001, p.19) se refere a este princípio como uma atitude
ética que orienta a nossa vida e uma posição política frente à sociedade em que
estamos inseridos”. Ele destaca duas componentes de presença imprescindível
na rede de relações obrigada a constituírem-se na sociedade pós-globalização
como escudo contra os efeitos sociais perversos do liberalismo econômico:
ética, por tratar-se aquele conceito de uma fonte de promoção do “bem-viver de
cada um em particular e de todos em conjunto e posicionamento político,
como elemento impulsionador de transformações na sociedade
imprescindíveis para a concretização do fim legitimado pelo crivo ético.
6.2. Resgate das formas históricas dos Conselhos. Conselhos no Brasil do
século XX
25
O termo “conselho”, com sentido de espaços destinados à gestão pública,
ou à organização coletiva da sociedade civil, foi inventado há séculos. Atribui-se
a honra da sua paternidade histórica aos Visigodos, os quais viviam em clã e
constituíam um povo guerreiro que se tinha lançado com denodo e certo êxito
em campanhas de conquistas pela Europa. Essas campanhas lhes garantiram,
posteriormente, uma duradoura e marcante presença na Península Ibérica, onde,
nomeadamente em Portugal, entre outros vestígios, deixaram a marca da sua
passagem impressa no modo de organização político-territorial e administrativo
em Concelhos, aplicado tanto na Metrópole, quanto nas ilhas adjacentes dos
Açores e Madeira, e nas antigas Províncias Ultramarinas dispersas pela África,
25
Seção baseada em Gohn (2001).
Ásia e Oceania
26
. Portugal Continental e as ilhas adjacentes estas, atualmente
Regiões Autônomas bem como a República de Cabo Verde, antiga província
portuguesa de África, ainda conservam um modelo de organização
político-administrativa do Estado baseado nesse sistema tradicional de gestão.
A herança da cultura visigótica é tão forte na organização do Estado
Português, que, após a libertação do regime fascista-salazarista ocorrida em
1974, Portugal ainda se inspira, uma vez mais, nos Concelhos tradicionais para
transformar as “comissões de moradores” de bairros em “conselhos urbanos”
(Gohn, 2001). Estes conselhos tiveram um papel preponderante num Portugal
democrático pós – Salazarista na condução da sociedade civil na luta pela
26
As antigas Províncias Ultramarinas que Portugal conservou sob seu domínio, são:
na Ásia : o Estado Português da Índia (composto por uma reduzida expressão territorial
no Malabar: Goa, Damão, Diu, Nagar-Aveli e Dadrá); até o ano de 1954 Portugal
administrou os enclaves de Nagar-Aveli e Dadrá; até 19 de dezembro de 1961 manteve-
se na administração das restantes parcelas do Estado, quando estas foram invadidas pelas
tropas de Nehru, sem resistência, iniciando-se, desde então, uma ocupação de Goa,
Damão e Diu pela União Indiana que Portugal viria a reconhecer oficialmente, mais
tarde, em 1975; Macau, até 20 de dezembro do ano de 1999, quando a administração da
ilha foi transferida para o domínio chinês; na África: Guiné-Bissau, até o ano de 1974,
quando lhe foi reconhecida, finalmente, a independência, unilateralmente proclamada
um ano antes (75 Estados já haviam reconhecido o Estado da Guiné-Bissau em 1973) ao
final de uma guerra colonial vitoriosa; Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Angola e
Moçambique até o ano de 1975, data em que as respectivas independências políticas
foram reconhecidas pelo colonizador; na Oceania: Timor Leste (cuja denominação
oficial atual é Timor Lorosae), até o ano de 1975, muito embora a ONU o tivesse
considerado território português até a data em que, finalmente, lhe foi reconhecida a
independência total; abandonado pela potência colonizadora em 1975, foi nessa data
anexado pela Indonésia. A independência, que tinha sido proclamada unilateralmente em
1975, foi, finalmente, reconhecida pela Indonésia em 2002; Açores, Madeira e Porto
Santo ainda se conservam parte integrante do Estado Português, porém, com estatuto de
Regiões Autônomas Madeira e Porto Santo são Região Autônoma desde 1978;
Açores, desde 1979.
concretização do “direito ao lugar”
27
. O elevado déficit habitacional que, então,
caracterizava a vida da sociedade portuguesa nos centros urbanos, em cujo vel
de qualidade contribuiu grandemente para a queda nessa época, justificava
plenamente a massiva, e quase exclusiva, concentração dos esforços consentidos
da sociedade e dos sucessivos governos democráticos na busca de uma solução
conjugada para os problemas específicos decorrentes do ato impositivo
subseqüente ao acesso concreto dos cidadãos ao “direito ao lugar”, e a profunda
dedicação devotada na luta pela conquista plena deste direito fundamental.
A disseminação desse modelo de organização política e administrativa
por diversos outros pontos da Europa, e posteriormente nos Estados Unidos e na
América do Sul, oferece a dimensão exata do interesse que a invenção visigótica
suscitou entre os povos contemporâneos e da modernidade e da magnitude da
influência exercida pela presença dos visigodos na construção de uma
civilização global.
Em seguida, são descritas outras experiências históricas importantes que
envolveram a participação em conselhos populares como sistema de organização
política e administrativa do Estado, ou de organização coletiva da sociedade
civil, utilizado por povos soberanos ao longo do tempo como forma subsidiária
ou, muitas vezes, única, de gestão pública:
a) a experiência parisiense
A presença parisiense de conselhos populares está expressa na ação da
Comuna de Paris, que se tornou a primeira experiência histórica de governo de
autogestão operária, surgida no século XIX. Eric Hobsbawm enaltece esta forma
de governo insurrecional de operários que, para ele, foi importante não apenas
por aquilo que realizou, como por aquilo que anunciou; era mais formidável
27
Leia-se o que a respeito comentou-se na nota de rodapé n°22, a páginas 81 deste
trabalho. “Direito ao lugar” representava o expoente máximo das reivindicações da
sociedade portuguesa democrática no último lustro da década de setenta, do século
passado.
como um símbolo do que como um fato(Hobsbawm, 1982, p.184 apud Gohn,
2001, p.66). Inspirava o anseio coletivo pela mudança e propunha, nesse sentido,
substituir a velha organização de trabalho capitalista, subjugando-a pela força
proveniente do exercício pleno de uma democracia popular.
Os comitês de bairros e as próprias oficinas da Comuna se tornaram a
expressão prática de uma democracia almejada para realizar um projeto
emancipatório que, de certa forma, destacou a presença e a importância popular
na autogestão da coisa pública, na gestão da cidade e na gestão pública estatal
articulada com a gestão da produção privada, tomando decisões importantes
sobre o ensino, a política laboral e salarial, e a nomeação de chefias, entre
outras.
A contribuição dada pela Comuna de Paris ao aperfeiçoamento da
democracia participativa e na mudança de visão sobre as formas de organização
econômica e social dominantes na sociedade da época não deve ser minimizada,
nem esquecida. Ela deu os fundamentos necessários ao surgimento de conselhos
operários, cuja ação foi decisiva e importante na busca de uma nova ordem que
substituísse a lógica capitalista pela instauração de um poder autônomo e
descentralizado, dentro da qual se tornou possível desenrolar, com êxito relativo,
a luta de setores oprimidos por sua emancipação econômica, política, social e
cultural.
b) a experiência russa
A dinâmica da participação popular na antiga Rússia foi impulsionada
pelos famosos Sovietes, criados no ano de 1905, na cidade de São Petesburgo e
reeditados, em todos os pontos da ex-União Soviética, pela Revolução Socialista
de outubro, a partir de 1917. Compunham-se de elementos da classe operária, do
exército e dos setores revolucionários dos segmentos intelectuais da sociedade e
absorviam, ainda, os setores políticos, sindicais e toda a sorte de associações
voluntárias. Detinham importantes papéis que antes eram prerrogativas do
Estado no setor da educação, da segurança pública e na direção dos processos de
produção.
A sua influência foi muito forte na Ucránia do Sul e em Cronstadt, onde
sobreviveram por longo tempo após o seu declínio ao fim de um período de
intensa e profícua atividade entre os anos de 1917 e 1918.
c) a experiência alemã
O movimento revolucionário de maio de 1918 gerou uma tremenda crise
no seio da sociedade e das instituições alemãs, da qual resultou uma destruição
geral das estruturas institucionais. Para suprir a crise institucional, surgiram os
conselhos operários, cuja principal dinamizadora foi a acadêmica Rosa de
Luxemburgo, que defendia a idéia de que os conselhos deviam se instalar nas
fábricas e exercer outras funções em âmbito municipal e na educação.
Efetivamente, os conselhos operários alemães, que eram eleitos entre e
por operários, dentro do ambiente fabril
28
, desempenhavam importantes papéis
ligados às políticas laborais (fixação de salários, rotatividades das tarefas, etc.),
ao combate à especulação econômica e financeira e ao controle de preços dos
gêneros de primeira necessidade, entre outros.
Os conselhos alemães sobreviveram até o ano de 1923, data em que
ainda se verificava a sua presença nas fábricas.
d) a experiência italiana
Na Itália, surgiram os conselhos operários e os conselhos de fábricas, em
reação às instituições partidárias e sindicais, cujo funcionamento era
freqüentemente alvo de reparos e de críticas por parte de setores intelectuais da
sociedade italiana. Gramsci, por exemplo, tinha ligado seu nome aos conselhos
italianos como o estudioso que os idealizava como órgãos com papel alternativo
28
As empresas alemãs eram, na época, consideradas verdadeiras células sociais, um
espaço de socialização de indivíduos.
às tradicionais formas de participação, ou como formas modernas de
organização industrial etc.( Gramsci & Bordiga, 1981).
e) a experiência espanhola
Os conselhos operários espanhóis tiveram um aparecimento tardio, entre
1934 e 1937, quando, no restante da Europa, se desencadeavam implacáveis
perseguições ao movimento operário. Tinham uma base anarco-sindicalista e,
sobretudo em Barcelona, autogeriam bricas e organizavam milícias. A
Federação Anarquista Ibérica (FAI), por seu turno, criou as colunas, que
integravam voluntários devotados à causa de disseminação das suas idéias e que
também se dedicavam a combater o fascismo nascente.
f) as experiências húngara, polaca e iugoslava
As experiências destes países se tornaram as mais notáveis. A
experiência da Hungria data de 1950, quando ocorreu a rebelião em Budapeste
contra os russos. Os conselhos se tornaram uma estratégia de defesa e, em
virtude dessa função, a sua presença se tornou uma constante nas fábricas, nos
distritos, nas municipalidades e nas províncias.
A Polônia, porém, teve uma experiência mais tardia, por volta dos anos
1969-1970. Os conselhos poloneses constituíam um poder paralelo ao poder
instituído, desferindo críticas odiosas, sobretudo contra a burocracia e servindo
de porta-voz de estudantes e operários.
Dentre todas, sem dúvida, a experiência iugoslava
29
é a mais marcante
no mundo socialista do pós-guerra. Ali, os conselhos surgiram a partir dos
comitês de libertação que se transformaram em instituições de governo
29
Ao leitor interessado em aprofundar seu conhecimento sobre a experiência iugoslava
respeitante aos conselhos populares, recomenda-se uma consulta à obra de Valadares
(1983).
alternativo após a II Guerra Mundial. O aspecto que melhor os distinguia era,
entretanto, o seu caráter de autogestão.
g) a experiência norte-americana
A sociedade americana, desde sempre, teve tradição participativa. A
ajuda mútua entre as comunidades a distinguia. Sobre a base desta tradição se
estabeleceram e se consolidaram os conselhos de cidadãos sob as mais
diversificadas formas de constituição e de interesses: a Bed-Study Corporation,
constituída pela comunidade negra de Harlem; a Bronx Sul, em Nova Iorque; o
programa de ação direta da Frontier, em Nova Iorque e os grupos Task force
criados para impulsionar o desenvolvimento comunitário eram os mais
importantes. De forma geral, os conselhos de cidadãos norte-americanos se
constituíam em grupos de pressão da sociedade civil na defesa de seus
interesses, como lobbies de pressão, ou estruturas auxiliares da administração
pública, pois,
a meta (...) é trazer para as bases o processo de tomada de decisão e
forçar os governos federal, estadual e municipal a se dedicarem aos
assuntos que os grupos locais levantam” (Valadares, 1983, p.58 apud
Gohn, 2001, p. 70).
O foco de interesse dos conselhos norte-americanos centrava-se,
contrariamente à preocupação dos conselhos anteriormente estudados, nas
esferas do consumo dos bens, serviços, equipamentos coletivos públicos e
moradia familiar.
h) a experiência brasileira
O cenário político-administrativo brasileiro do século XX apresenta três
tipos de conselhos: conselhos criados pelo poder público executivo, os conselhos
populares criados pelos movimentos populares e pelos setores organizados da
sociedade civil e os conselhos institucionalizados por força de lei. São exemplos
dos primeiros, os conselhos comunitários criados no final dos anos 1970 para
atuar junto à administração municipal; dos segundos, os conselhos populares que
vieram à luz nos finais do ano de 1970 e nos primeiros anos da década de 1980
e, finalmente, os conselhos de representantes previstos na Lei Orgânica do
município de o Paulo e os conselhos gestores institucionalizados setoriais são
exemplos do terceiro tipo acima caracterizado.
Os conselhos comunitários
A idéia de criação de conselhos comunitários sempre esteve presente no
pensamento de administradores e governantes brasileiros e ocupava o centro da
preocupação dos setores organizados da sociedade civil, sobretudo na cidade de
São Paulo, onde se deram à estampa os mais belos exemplos da criação de
conselhos comunitários, desde a década de 1960.
Em 1960, sob a influência do governo do então governador Adhemar de
Barros, surgiram os conselhos de cariz eminentemente populista. Porém, desde
então, e até o ano de 1979, os conselhos demonstraram pouca desenvoltura ou se
ocuparam demasiadamente em mobilizar e canalizar as forças sociais
espontaneamente liberadas pela sociedade organizada. Em abono da verdade,
reconheça-se, portanto, que, sob as condições políticas da época, aliadas ao
signo populista sob o qual apareceram os primeiros conselhos, eram exigidos,
dos idealizadores dos conselhos, certa prudência nas suas ações e comedimento
nos objetivos, sob o risco de que qualquer posição mais extremada poderia
suscitar reação adversa do setor governamental, traduzida em manobras
tendentes à descaracterização desses conselhos pela manipulação e cooptação
dos seus elementos, etc. Assim, entre 1969 e 1973, período politicamente
conturbado, os conselhos conservaram-se quase que inoperantes, com escassas
atividades voltadas para a fiscalização das atividades da prefeitura. Todavia, foi,
efetivamente, nesse período que a Prefeitura de o Paulo iniciou
concretamente no ano de 1967 , rigorosamente falando, uma verdadeira
operação voltada para a ão social, conduzida pela então Secretaria do
Bem-Estar Social, recentemente criada. A partir do ano de 1973 se dispuseram,
no entanto, os conselhos a servir de instrumentos de mobilização popular,
função que lhes era peculiar até o ano de 1979, quando, então, se tornou
necessário dar-lhes um caráter mais interventor na sociedade. Nesse sentido,
pelo Decreto Municipal n
o
16.100, de 12/9/1979, foi criado, nesse ano, na cidade
de São Paulo, um conselho bastante alargado e único para toda a cidade. Tal
conselho que representava, parcialmente, a concretização de um plano que
envolvia iniciativas populares manifestadas inicialmente em 1975 com a
finalidade de impor a criação de um “quarto poder” com autoridade para
interferir na política municipal.
Era, de fato, esse conselho, criado pelo então prefeito de São Paulo,
Reynaldo de Barros, uma verdadeira associação corporativa. Por lei, incorporava
os seguintes elementos:
1. duas associações de classses;
2. dois clubes de serviços;
3. duas entidades sociais;
4. seis movimentos sociais religiosos;
5. e três Sociedades Amigos de Bairro (Gohn, 2001, p.72; Tótora & Chaia,
2004, p.198).
Por outro lado, as suas atribuições estavam definidas na Portaria n
o
75/79
e constavam de ações e atos ligados à discussão do orçamento municipal e à
participação na elaboração de programas e projetos sociais municipais. Porém, a
necessidade de dar respostas cabais às instantes e crescentes demandas
populares, e de efetuar consultas sobre as questões que dizem respeito ao
funcionamento dos serviços públicos, precipitou o surgimento de conselhos com
esse fim. Assim, foram criados em São Paulo, no ano de 1980, cerca de onze
conselhos, cuja preocupação maior era, sem dúvida, canalizar os pedidos de
atendimento de carências, mas que, complementarmente, tinham uma expressiva
atuação no sentido de buscar melhorias constantes e necessárias na prestação de
certos serviços fundamentais, ou de propor a sua criação, exigindo realização de
atividades como as propostas referentes à merenda escolar, à criação de
bibliotecas, à construção de quadras e praças, ao alargamento de ruas, à procura
de mais verbas para os programas públicos e de uma maior participação dos
conselhos no processo de gestão das prefeituras.
Em toda a década de 1980, o ambiente político e social se caracterizava
de uma intensa manifestação espontânea de forças sociais que foram, contudo,
mobilizadas e, de forma não institucionalizada, canalizadas para o interior de
novos conselhos de Bem-Estar Social os conselhos da Fabes , entretanto,
criados em 1984. Conselhos, cujo objetivo era:
desencadear um processo de ação articulada e integrada do órgão com
as forças sociais, políticas e econômicas ao nível geral da cidade e ao
nível regional, implementando mecanismos e canais que possibilitem a
participação popular na atuação de Fabes, no que se refere às questões
sociais do município”, assim como “garantir a presença real e efetiva
das forças sociais da cidade no processo de planejamento, avaliação,
controle e reorientação da ação da Fabes” (São Paulo, 1985, apud
Gohn, 2001, p.73).
Quanto a atribuições, a estes conselhos da Fabes apenas se atribuíam
responsabilidades consultivas e opinativas, mas nenhuma de ordem deliberativa.
Entretanto, do ponto de vista organizacional, eles se classificavam em
dois níveis: conselhos regionais e conselhos ao nível do gabinete da Secretaria.
Os conselhos de nível regional eram essencialmente técnicos e heterogêneos,
com as características dominantes de acordo com a temática de atuação, e os do
nível da Secretaria constituíam um só conselho, centralizado, cujas áreas de
atuação se subdividiam em: Menor, Habitação, Trabalho, Assistência Pública e
Educação de Adultos, etc. Para cada projeto desenvolvido pela Secretaria, nestas
áreas, o conselho deveria emprestar o seu concurso, proporcionando os subsídios
necessários à formulação das políticas, diretrizes e alternativas, e, ainda,
sugerir prioridades, promover a integração entre a Fabes e demais órgãos
públicos e entidades privadas atuantes na área do bem-estar social, avaliar a
eficácia da ação do órgão, auxiliar a Secretaria na fiscalização dos serviços e
na busca dos recursos” (Gohn, 2001, p.74).
Os Conselhos Populares (CPs)
Nos anos de 1980, nova polêmica envolve a temática dos conselhos. A
questão tinha sido posta em torno de duas propostas: uma como estratégia de
governo integrada dentro das políticas da democracia participativa e a outra
como estratégia de organização de um poder popular autônomo, estruturado a
partir de movimentos sociais da sociedade civil.
O surgimento dos conselhos populares teve como impulso as propostas
oriundas dos setores da esquerda, ou de oposição ao regime militar de então.
Eram criações “revolucionárias”, cuja atenção central se fixava na questão da
participação popular e às quais se atribuíam papéis diversificados de:
organismos do movimento popular atuando com parcelas de poder
junto ao executivo ( tendo a possibilidade de decidir sobre determinadas
questões de governo); organismos superiores de luta e de organização
popular, gerando situações de duplo poder; organismos de
administração municipal criados pelo governo para incorporar o
movimento popular ao governo, no sentido de assumirem tarefas de
aconselhamento, deliberação e/ou execução” (Gohn, 2001).
O elemento fundamental na constituição desses conselhos populares da
década de oitenta do século passado era representado por movimentos sociais de
caráter sindical e político-partidário, cujo protagonismo no cenário político
vinha sendo ensaiado por eles desde o momento em que haviam iniciado a sua
luta contra o regime militar que caracterizava a época.
Segundo Tótora & Chaia (2004, p.199), esses movimentos sociais
imprimiram à participação um sentido político estratégico de construção de
um poder popular, a partir de espaços políticos autônomose, outrossim, se
organizavam na luta por direitos sociais, moradia, saúde, educação e
transporte”, cuja conquista decorre de uma intensa pressão política sobre o
poder constituído.
A presença nos conselhos populares havia, efetivamente, garantido aos
movimentos sociais uma posição de destaque na arena política, o que lhes
conferia poder e grande visibilidade dentro da sociedade. Depois, a participação
nos conselhos ainda facultava aos movimentos sociais os meios necessários para
se auto-organizarem, unificando e intensificando cada vez mais as lutas políticas
antes dispersas e bastante fragmentadas.
O fortalecimento desses movimentos e as conquistas de uma luta
vitoriosa em prol do desenvolvimento de uma forma ampliada de participação
democrática na gestão pública, sobretudo em âmbito municipal, traduziram-se
em criação de conselhos populares com elevada importância estratégica e social
no cenário urbano, dos quais se destacam os conselhos populares de Campinas,
no início de 1980 e o Conselho de Saúde da Zona Leste de São Paulo, criado em
1976. São, ainda, dignos de referência os conselhos de base popular que
compunham o quadro de experiências participativas vivenciado pelas
administrações municipais, tais como o Conselho de Pais de Lages, em Santa
Catarina; o Conselho de Desenvolvimento Municipal, de Boa Esperança,
Espírito Santo e, ainda, aqueles que faziam parte das experiências da
administração de Piracicaba, São Paulo, entre 1976 e 1982. Muitas destas
experiências participativas tinham sido influenciadas por fontes externas, das
quais se destacam pelo seu poder sugestivo, e fascínio, a experiência
democrática vivenciada pela prefeitura de Bolonha, na Itália, e pela prefeitura de
Barcelona, na Espanha.
Todavia, o maior impulso para a afirmação e consolidação de conselhos
populares partiu da ação interna conduzida por administrações da esquerda
brasileira, sobretudo aquelas feitas sob a égide do Partido dos Trabalhadores
(PT), entre 1989 e 1992. As eleições municipais de novembro de 1989, que
deram vitória ao PT em algumas das mais importantes cidades do país, como
São Paulo, Campinas, Santos e Santo André, entre outras, tornaram possíveis às
novas administrações petistas a concretização de velhas propostas de
movimentos populares de participar na gestão das cidades. Entre 1989 e 1992,
na gestão da então prefeita de São Paulo, Luíza Erundina, foram criados os mais
importantes conselhos consultivos, como, na área dos transportes, o Conselho
Tarifário; na área de saúde, o Conselho Municipal de Saúde, que tinha o encargo
de definir as políticas de saúde para a cidade e outros conselhos na área de
educação e dos idosos.
Estes conselhos, como os demais criados sob a influência petista,
surgiram sob um clima de maiores pressões de interesses antagônicos, cuja
colocação gerava muita polêmica à volta de várias questões pouco esclarecidas
pelas propostas então introduzidas. A polêmica mais forte envolvia a definição
dos objetivos, a forma de organização mais adequada, o modo de constituição,
bem como o papel e as características que deviam ser o corolário desses
conselhos. Quanto à caracterização,
para alguns, os conselhos populares seriam instrumento para
viabilizar propostas e projetos mais abrangentes que apontassem para
uma nova sociedade; para outros, os conselhos populares seriam formas
de transformar a administração blica, a partir de uma nova filosofia
administrativa moderna, adaptada aos tempos em que o conflito social
tem que encontrar arenas próprias de luta”(Gohn,2001, p.78).
Havia, contudo, consenso em torno das atribuições e competência:
fiscalizar e auxiliar a administração pública no processo de gestão
para melhoria do serviço público; ser restauradores da influência
direta do cidadão comum nos negócios da cidade; participar das
decisões do que fazer com as verbas; colaborar na elaboração de
políticas, leis e programas de interesse público; desenvolver atividade
permanente e paralela na elaboração de diretrizes, ações e decisões
dotadas de legitimidade própria etc.” (PT, 1989; Gohn, 1990, apud
Gohn,2001, p.78);
Havia um consenso relativo quanto à posição que deve ser ocupada no
contexto da relação povo-governo, em que:
eles devem ser autônomos e independentes, não devem fazer parte do
complexo institucional da prefeitura; devem ter peso e voz como
elemento político externo à administração municipal”(Gohn,2001,
p.78).
Entretanto, várias outras questões são colocadas sobre os conselhos
populares, muitas das quais ainda sem uma resposta definitiva. Nas questões que
dividem as opiniões, a preocupação dominante se exprime nas seguintes
indagações:
1. Quem deve criar os conselhos populares?
A questão divide as opiniões. Pensam uns que essa prerrogativa deve ser
do Partido, pela sua capacidade e facilidade em mobilizar as bases nesse sentido.
Outros defendem a idéia de que as prefeituras devem estimular a sua criação de
acordo com as necessidades de cada bairro em determinado momento.
O debate que, entretanto, se instalara à volta desta questão era algo
confuso: a igreja católica, representada pela ala progressista, introduz outro
elemento de discussão, defendendo a primazia da sociedade civil no processo,
sem, contudo, adiantar que organismos dela deveriam exercer o papel criador.
A idéia da presença partidária no processo é, no entanto, muito
combatida, principalmente pelas alas do clero católico que militam junto aos
movimentos sociais.
Conquanto existissem posições que defendem que os conselhos
populares jamais deveriam substituir os movimentos sociais, mas antes atuar no
sentido de fortalecê-los, algumas propostas dos movimentos expressam idéia
contrária, contida na afirmação sustentada por eles que os conselhos populares
devem ser expressões do movimento popular(Gohn, 2001, p.79). Não se pode,
porém, afirmar com segurança que, na prática, tenham os movimentos
efetivamente criado algum conselho popular, embora tenha sido forte o
argumento expendido na base da convicção subjacente de que os conselhos
seriam um ótimo meio para canalizar as energias das organizações populares
para dentro das estruturas burocratizadas.
2. Quem deve participar dos Conselhos Populares, e qual deve ser a sua
composição interna?
Esta é outra questão que também não reúne consenso. Enquanto uns não
admitem, sob qualquer pretexto, a presença das organizações patronais, outros
defendem acirradamente a participação de pequenos empresários, previamente
eleitos nos seus respectivos bairros.
Ora, uma outra ordem de questão vem, enfim, colocar novos problemas à
situação de per se já bastante difícil de gerir, mas que convém resolver logo.
Trata-se de uma incompatibilidade estatutária que, possivelmente, prejudicaria a
construção de qualquer consenso quando isso fosse necessário, e dificilmente
não deixaria de impedir a construção de uma verdadeira identidade, claramente
definida, condição, aliás, exigida dos conselhos populares de natureza unitária.
Definem os estatutos que os conselhos populares devem ser
rigorosamente unitários, posição, contudo, difícil de manter-se por conflituar-se
naturalmente com a natureza dos conselhos claramente marcada por recortes
partidários. Uma constituição pluralista, evidentemente, o agradaria, a nosso
ver, por constituir-se foco de permanente tensão e, possivelmente, fonte de
desmotivação que leva fatalmente à desmobilização.
Outro dilema, entretanto, se coloca: deve constituir-se o conselho
popular de elementos oriundos de organizações (formais e informais) e de
movimentos sociais organizados, ou do seio da população, de um bairro, região
ou da cidade como um todo?
Uma forma de constituição a partir de pilares organizacionais,
hipoteticamente, teria a sua base em movimentos sociais, cujos elementos,
teoricamente, estão mais bem preparados para participar em órgãos colegiados.
A advertência, neste caso, vem de Tótora & Chaia (2004, p. 199), ao escrever
sobre o movimento popular:
(...) movia-se sob o signo da ambigüidade, pois a despeito de seu devir
minoritário, contraposição ao regime estabelecido, insistia em ser
majoritário, ou seja, ter seus direitos reconhecidos”.
Explicam, pois:
Direito não se reivindica, cria-se no próprio processo de luta, contra
os poderes instituídos. Ser minoria é justamente distinguir-se, afirmar
sua diferença, não criar para si modelos”.
Neste caso, os conselhos populares perderiam a sua autenticidade de
órgão autônomo previsto no estatuto que os criou. Por outro lado, uma estrutura
baseada em elementos eleitos entre a população pode concorrer para que a
representação se transformasse num meio fértil ao desenvolvimento de poderes
paralelos à Câmara Municipal, caso os representantes, além de cidadãos (em
cuja condição foram eleitos), sejam também vereadores dessa Câmara, e se
sintam inclinados a duplicar a sua função.
3. Qual, então, o poder efetivo dos conselhos populares?
Estatutariamente, os conselhos populares são investidos de poderes
deliberativos. Todavia, a sua natureza de órgão independente, ocupando posição
fora do corpo das instituições governamentais e não sendo nenhum órgão
paralelo aos poderes constituídos, e nem estando acima deles, faz deles órgãos
esvaziados de poder, apesar de ostentarem, inutilmente, o rótulo de órgão
deliberativo.
Não havendo, porém, uma redefinição clara da esfera governamental, do
seu papel e suas atribuições como gestora da coisa pública, os conselhos
populares, por mais bem estruturados que fossem, seriam sempre órgãos inúteis.
Os Conselhos de Representantes (CRs)
Os Conselhos de Representantes foram criados em 1990 pela Lei
Orgânica do Município de São Paulo
30
para exercerem a seguinte competência:
“(...) participar do planejamento municipal, em especial das propostas
de diretrizes orçamentárias e do orçamento municipal, bem como do
Plano Diretor da cidade; (...) participar, em nível local, da fiscalização
da execução do orçamento e demais atos da administração municipal,
assim como encaminhar ao Executivo e à Câmara Municipal questões
relacionadas ao interesse da população local” (art. 78, § II, cap. II, da
30
Consultar Título III, Capítulo I do Poder Legislativo, Seção VII e Capítulo II do Poder
Executivo, Seção IV.
Lei Orgânica do Município de São Paulo, de 1990, apud Gohn, 2001,
p.80-81).
Constituem-se, por ato da sua criação, em espaços públicos não-estatais
no âmbito de subprefeituras, e uma forma de descentralização
político-administrativa do governo da cidade de São Paulo. No entanto, até o ano
2000, não tinham entrado em funcionamento, aguardando regulamentação. A
partir desse ano, o tema do conselho de representantes voltou ao debate
paulistano. Surgiram, então, novas propostas feitas por elementos afetos ao
Partido dos Trabalhadores para a melhor caracterização dos conselhos de
representantes. Resumem-se tais propostas em seguintes pontos:
1. os conselhos de representantes devem constituir-se instâncias locais de
representação coletiva da sociedade civil;
2. devem ser reconhecidos pelo poder público, mas não devem subordinar-se ao
Estado, à prefeitura municipal, nem a quaisquer outros órgãos, sejam eles
públicos ou privados;
3. os membros devem ser eleitos regionalmente a partir dos 16 anos;
4. a eleição deve ser pelo voto direto na representação de 1 para 20.000
eleitores;
5. as regiões mais densas devem ter mais conselheiros;
6. os conselhos de representantes não devem ter um presidente, devendo
funcionar com coordenadores temáticos;
7. não devem substituir os demais conselhos de direitos existentes, nem os
delegados do Orçamento Participativo; e
8. os conselhos de representantes devem ser organizados por câmaras temáticas
e constituir-se em fórum competente de elabaoração do Orçamento
Participativo
31
.
31
A par dos Conselhos Gestores, é uma forma de exercício da democracia participativa.
O Orçamento Participativo constitui uma das mais belas criações da democracia
participativa brasileira. As experiências mais importantes são as do município de Porto
Alegre e Belo Horizonte. É de Santos (2002a, p.466) um dos acadêmicos que melhor
estudou o caso de Porto Alegre a seguinte definição do Orçamento Participativo: é
uma forma de administração pública que procura romper com a tradição autoritária e
patrimonialista das políticas públicas, recorrendo à participação direta da população
em diferentes fases da preparação e da implementação orçamentária, com uma
preocupação especial pela definição de prioridades para a distribuição dos recursos de
investimento”. Para os interessados em aprofundar o conhecimento sobre o processo do
Orçamento Participativo conduzido no Brasil, o mesmo autor recomenda uma consulta
ao capítulo de Avritzer (2002) inserido no volume por ele organizado, intitulado
Democratizar a Democracia: os caminhos da democracia participativa”, em que este
autor analisa em pormenor o processo de aprofundamento democrático da gestão local,
comparando o orçamento participativo de Porto Alegre e de Belo Horizonte.
Complementarmente, sugere a leitura de Carvalho & Felgueiras (2000). Para uma
comparação da aplicação do orçamento participativo em Barcelona, recomenda-se uma
consulta ao trabalho de Moura (1997) e entre Porto Alegre e Córdoba ( Argentina), ao de
Echevarría (1999). Quem, por outro lado, pretender conhecer a aplicação dos princípios
da democracia participativa nos continentes americano e europeu, deverá ler a obra
organizada por Becker ( 2000).
Relativamente ao Orçamento Participativo de Porto Alegre, Santos (2002a, p. 460) dá as
seguintes informações, e refere os encómios dirigidos àquela forma de “administração
pública”, nestes termos: (...) em 1993, o Banco Mundial, mais preocupado com a
eficácia do que com a democracia, chamava a atenção para o ‘sucesso inicial’ de
Porto Alegre, à luz dos três critérios estabelecidos pelo Programa de Gestão Urbana
que o Banco promove: a mobilização dos recursos para financiar os serviços urbanos; o
aperfeiçoamento da gestão financeira desses recursos; a organização das instituições
municipais com o objetivo de promover maior eficácia e capacidade de resposta por
parte dos serviços urbanos (Davey, 1993). [Desde então], o Banco Mundial, em diversas
ocasiões, tem divulgado e promovido o modelo de gestão urbana de Porto Alegre e
recompensado o município com concessões de empréstimos. O município de Porto
Alegre é freqüentemente visitado por dirigentes governamentais e líderes de movimentos
de base, que vêm de outras cidades brasileiras para analisar in loco o funcionamento do
orçamento participativo. Após as eleições de 1996, as cidades onde os candidatos da
‘administração popular’ ganharam as eleições pediram conselhos e consultoria a Porto
Alegre. Em alguns casos, o município nomeou quadros seus para auxiliar a
implementação do orçamento participativo em cidades vizinhas”.
Os conselhos gestores setoriais e temáticos, por constituírem matéria
central deste trabalho, ser-lhes-á dedicado, a seguir, um capítulo próprio.
Ocorre, no entanto, frisar que os conselhos, sobre os quais acabamos de
tecer esses breves comentários, surgiram e se consolidaram em contextos
particulares. Como em qualquer época, porém, o surgimento de conselhos na
modernidade decorre de um estado de crises políticas e institucionais que marca
um determinado momento da vida de uma sociedade particular, ou global.
7. CONSELHOS GESTORES SETORIAIS MUNICIPAIS: NOVAS
FORMAS DE PARTICIPAÇÃO SÓCIO-POLÍTICA NA GESTÃO
PÚBLICA
Persistentes lutas e demandas populares que se desenvolviam sob um
clima de intensas pressões da sociedade civil pela redemocratização do Estado
brasileiro viram, enfim, o seu objetivo parcialmente atingido na cada de 1980.
Com efeito, em 1988, a Constituição Federal, democrática, foi aprovada.
Distingue-se pelo seu foco centrado no princípio da cidadania, cujo exercício é
garantido por meio de mecanismos democráticos constitucionalmente
salvaguardados e facilmente acionáveis dentro de um processo de
descentralização do poder do Estado, em curso.
Pela via constitucional, a sociedade brasileira então resgata a democracia
participativa que a havia de investir dos meios necessários para melhor
prosseguir, de forma participada, em outros níveis, a sua luta por novos direitos,
políticos e sociais. Surgem, assim, como corolário das mudanças induzidas na
sociedade pelas inovações políticas introduzidas na Constituição Federal de
1988, novas formas de participação na gestão pública, baseadas numa complexa
e inusitada relação Estado/Sociedade. Elas, aliás, se tornaram evidentes e viáveis
por meio dos Conselhos Gestores.
Os Conselhos Gestores são criados, por lei, em diversos níveis das
administrações (federal, estadual e municipal) para atingir os mais amplos
objetivos sociais, cuja expressão represente o consenso alcançado em torno dos
significativos anseios do Estado e da Sociedade Civil sobre o desenho da
política pública que a ambos mais interesse. Sob a inspiração constitucional, e a
coberto das leis ordinárias que deram os necessários contornos, foram, então,
criados, no âmbito nacional, os Conselhos setoriais de políticas públicas (no
Quadro 1 encontra-se o exemplo dos primeiros que foram criados) e, em âmbito
municipal, uma profusão de conselhos temáticos, muito empolados,
possivelmente, pela atração dos efeitos de as reformas operadas no Estado
brasileiro, [que] na última década [do século XX] articulou a existência de
conselhos ao repasse de recursos financeiros do nível federal ao estadual e ao
municipal” (Gohn, 2001, p.84).
Tem-se, amiúde, percebido que a possibilidade de mobilização
instantânea de recursos públicos sempre acelerou os processos de tomada de
decisões políticas em nível local. Os políticos e as autoridades civis locais atuam
na base do imediatismo, forçados pela brevidade dos mandatos, que limita o
tempo de cumprimento das promessas eleitorais. Interesses diversos animam,
entretanto, a sociedade civil para quem o tempo político não está
rigorosamente limitado que percebe os conselhos municipais como “(...)
instrumentos de democratização da gestão pública local e de aumento da
eficiência e da efetividade das políticas sociais setoriais(Santos Junior et al.,
2004, p.11).
A sociedade civil, contrariamente ao poder público, demonstra em
nossa opinião uma atitude mais positiva em relação à descentralização das
políticas públicas, na qual uma oportunidade ímpar de aumentar sua
participação na gestão municipal, de modo efetivo e com eficácia. O ponto de
mira é, nesse caso, a construção de um novo e ativo espaço público não estatal
que servisse perfeitamente de cadinho à transformação das crispações
naturalmente emergentes da participação pluralista num ambiente de debate
salutar, e democrático, entre idéias representativas de diferentes perspectivas
ideológicas, onde, enfim, a cidadania ativa pode ser aprofundada e exercida com
proficiência.
Os atores envolvidos na gestão das políticas públicas podem ter (e têm)
critérios diversos quanto à maneira de utilizar os instrumentos na efetivação das
suas políticas, ou na forma de operacionalizá-las; porém, o sentimento de
urgência na mobilização desses meios que serão postos à disposição dos seus
próprios interesses como atores sociais os domina globalmente. Por exemplo, a
persistência da sociedade civil na luta por direitos sociais sempre foi renovada
na esperança de que o fim almejado está cada vez mais próximo. Assim, quando
as oportunidades surgiram, logo se tornou patente, na sociedade brasileira, um
conjunto diversificado de conselhos voltados, uns, para ações e serviços
públicos, nas áreas de saúde, trabalho e emprego, assistência social, educação e
cultura; outros, para interesses gerais da comunidade, designadamente aqueles
estritamente ligados ao meio ambiente, desenvolvimento rural, planejamento e
gestão urbana, defesa do consumidor, patrimônio histórico-cultural, etc.; outros,
ainda, direcionados para os interesses de grupos e camadas sociais específicas,
ligados aos setores juvenis, da criança, dos idosos, mulheres, negros, portadores
de deficiências, entorpecentes, etc. (Gohn, 2001; Gohn, 2004; Côrtes, 2004).
Os Conselhos Gestores constituem, evidentemente, uma criação
sócio-política inovadora que se distingue claramente dos seus antecessores
conselhos comunitários populares, cujo objetivo se restringia à mobilização
popular à volta da questão do acesso da sociedade civil a certos direitos,
políticos e sociais, reiteradamente recusados pela classe dominante aos setores
excluídos. Por isso, são olhados como o meio de excelência que tornará possível
a reordenação das políticas públicas brasileiras sob as formas de governança
democráticas.
O seu papel é o de instrumento mediador na relação sociedade/Estado.
Na realização plena desse papel, os conselhos gestores se tornam, enfim, o
instrumento de expressão, representação e participação da população, e, por
conseguinte, um dos principais impulsionadores do exercício da cidadania ativa
por meio da democracia participativa. Essa vocação, aliás, é reforçada pelo
caráter paritário
32
assumido pelos Conselhos Gestores na sua composição, no
sentido de articular uma perfeita e salutar fusão democrática entre as esferas
públicas estatais e não estatais, o que põe em relevo, na esfera pública ampliada,
um novo debate democrático entre representantes do poder executivo e das
instituições da sociedade civil, sobre as políticas públicas.
Os Conselhos Gestores, na medida em que expressam o resultado de
uma intensa luta popular e de fortes pressões da sociedade civil pela
redemocratização do Estado, tornam-se uma das mais importantes conquistas
políticas do povo brasileiro no campo da gestão pública. A sua quase
proliferação
33
pós-Constituição Federal de 1988, em âmbito nacional e
municipal, atesta o elevado grau de interesse que suscitaram entre a classe
política e a importância de que se revestiram no processo da descentralização
político-administrativa do Estado. Fala-se, até, com muita ênfase, na criação de
um Conselho Municipal do Carnaval, em Salvador, Bahia, que tem
desempenhado um papel crucial na vida sócio-cultural da cidade (Herber, 2000,
apud Gohn, 2001).
A evidenciação de um clima de geral simpatia que se instalou em torno
dos Conselhos Gestores, provavelmente devido à sua condição de instrumento
potenciador de transformação da arena pública, não tem, todavia, ocultado a
perplexidade de certos setores políticos e sociais quanto à necessária isenção
política desses órgãos colegiados, sobretudo no tocante à representação.
32
Excecionalmente, são tripartites os Conselhos de Saúde e os de Emprego. No primeiro
caso, participam os segmentos dos usuários (com direito de ocupar metade das cadeiras
do Conselho), dos trabalhadores do setor e dos prestadores de serviços públicos e
privados. No segundo caso, a representação se distribui entre governo e representantes
dos trabalhadores e dos empresários.
33
Pesquisas realizadas no Brasil mostram o seguinte quadro de criação de Conselhos,
de acordo com a informação prestada por Santos M. (2002, p.41-42) e recolhida por
Santos Junior (2004, p.22, rodapé): em 1993 existiam cerca de 3.000 conselhos de
saúde; em 1994, 2.362, na área da criança e do adolescente; em 1997, 2.908 no setor da
assistência social.
QUADRO 1. Conselhos nacionais de políticas setoriais – Brasil, 1998
ÁREA CONSELHOS SIGLA Inserção Institucional
Trabalho Conselho Nacional do Trabalho
Conselho Deliberativo do FGTS
Conselho Curador do FGTS
Conselho Nacional de Imigração
CNT
Codefat
CCFGTS
CIMG
Ministério do Trabalho
Ministério do Trabalho
Ministério do Trabalho
Ministério do Trabalho
Educação Conselho Nacional de Educação
Conselho de Reitores das
Universidades Brasileiras
Conselho Nacional dos Secretários de
Educação
União Nacional dos Dirigentes de
Educação
CNE
CRUB
Consed
Undime
Independente
Independente
Independente
Independente
Assist.
Social
Conselho Nacional de Assistência
Social
Fórum Nacional de Secretários
Estaduais de Assistência Social
Fórum Nacional de Secretários
Municipais de Assistência Social
Conselho do Programa Comunidade
Solidária
CNAS
Fonseas
Fongemas
CS
MPAS
Independente
Independente
Casa Civil/Pres.
Rep.MPAS
Previd.
Social
Conselho Nacional de Previdência
Social
Conselho Nacional de Seguridade
Social
Conselho de Gestão de Previdência
Complementar
Conselhos de Recursos de
Previdência Complementar
CNPS
CNSS
CGPC
CRPC
MPAS
MPAS
MPAS
MPAS
“...continua...”
“Quadro 1, Cont”
Fonte: Draibe (1998). Extraído de Gohn (2001)
Questionam-nos, nestes aspectos, sobretudo os analistas e militantes dos
movimentos sociais. Partem da sua condição de estruturas que tiveram origem
num contexto de importantes e profundas reformas do Estado, de caráter
Conselhos
de
Direitos
Conselho de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana
Conselho Nacional dos Direitos da
Mulher
Conselho Nacional dos Direitos da
Criança e do Adolescente
Conselho Federal Gestor do Fundo de
Defesa dos Direitos Difusos
Conselho da Coordenadoria Nacional
para Integração das Pessoas
Portadoras de Deficiência
CDDPH
CNDM
Conada
CFGDDD
Corde
Ministério da Justiça
Ministério da Justiça
Ministério da Justiça
Ministério da Justiça
Ministério da Justiça
Cultura Conselho Nacional de Política
Cultural
CNPC
Ministério da Cultura
Saúde Conselho Nacional de Saúde
Conselho Nacional dos Secretários de
Saúde
Conselho Nacional dos Secretários
Estaduais de Saúde
CNS
Conasem
Conass
Ministério da Saúde
Independente
Independente
Ciência e
Tecnolg.ª
Conselho Nacional de Ciência e
Tecnologia
CNTC
Ministério de Ciência &
Tecnologia
Meio
Ambiente
Conselho Nacional do Meio
Ambiente
Conama
Ministério do Meio
Ambiente
neoliberal, para, pura e simplesmente, os desacreditar enquanto possibilidade
de participação real, ativa (Gohn, 2001, p.84).
O ambiente natural da sua gênese não pode, no entanto, a nosso ver,
servir de oráculo para predizer, contrariar, ou justificar, com antecedência, o
fracasso dos Conselhos Gestores como instrumento de gestão pública. Em
primeiro lugar, deve-se ter, na devida conta, que eles surgiram para viabilizar a
articulação do setor não público com o setor público. Este setor, por natureza,
ainda que estivesse sob a influência de ideologias dinâmicas e plurais, não
ofereceria à participação da sociedade nos negócios públicos menos resistências
do que seria natural acontecer se, na ausência de qualquer oposição ideológica,
contrariamente, ocupasse o centro de interesse neoliberal, sabidamente simpático
à racionalidade capitalista. Uma e outra posição estariam igualmente permeadas
de conflitos que caracterizam naturalmente qualquer espaço de disputa, seja ele
democrático, ou não. Em qualquer destes espaços, a participação seria, portanto,
passível de correr os riscos já mencionados no Capítulo 5, seção 5.1, desta
dissertação, e outros de caráter mais específico.
Depois, a necessária articulação produziria uma tão esperada “esfera
pública não estatal”, a priori supostamente neutra, composta por representantes
do poder público e da sociedade civil organizada. A mera presença, neste novo
espaço criado, de representantes da sociedade civil engajados na causa da sua
comunidade, com preparo técnico e político suficiente, é já uma garantia de peso
de que os compromissos destes com os representados serão cumpridos, de que
os Conselhos Gestores, finalmente, podem gerar uma nova institucionalidade
pública, o que afasta, imediatamente, qualquer dúvida de que
Se o Estado e as políticas neoliberais ‘desconstroem’ o sentido do
público, retirando sua universalidade e remetendo para o campo do
assistencialismo e da lógica do consumidor usuário de serviços, os conselhos
têm a possibilidade de reaglutinarem esses direitos fragmentados,
reconstituíndo os caminhos de construção da cidadania que está sendo
esfacelada”(Gohn, 2001, p.88).
Não se pode, contudo, afirmar com isso que os Conselhos Gestores não
apresentam defeitos e certas limitações. Eles têm-nos, de fato, e vários,
sobretudo aqueles que decorrem naturalmente do teor da sua condição de órgãos
ainda mal definidos estruturalmente. Nesse sentido, as lacunas apontadas são
muitas. Convém, aliás, evitar-se, com vigor, o endeusamento de tais órgãos e
não perder de vista o foco do judicioso aconselhamento de Santos, M. (2004,
p.141) que nos recomenda a
ter em conta [que] os limites e as potencialidades dos conselhos é
fundamental a fim de não superestimar suas possibilidades para
incorporar as demandas populares e para não subestimar as
possibilidades de constrangimentos sobre governos que se oponham ao
modelo de participação”.
Vastos segmentos dos setores populares ainda conservam fortes
suspeições a respeito da suposta neutralidade dos conselhos. Conotam-nos
freqüentemente com os interesses dominantes, afirmando serem eles espaços
legitimadores de decisões governamentais contrárias aos interesses dos
trabalhadores. A este respeito, desdramatizando, procura o autor mencionado
reduzir a inquietude dos setores mais incrédulos quando refere o contrário:
“(...) [de fato] a participação [nos conselhos] é limitada, mas que é
[o conselho] um espaço importante para a politização, organização,
democratização, na medida em que se influencie de alguma forma a
máquina do Estado” (Raichelis, 1998, p.231-232, apud Santos, M. 2004,
p.141).
Várias das questões que ora entram em debate sobre os Conselhos
Gestores também estiveram presentes nos debates sobre os conselhos populares.
Em resumo, destacam-se os principais elementos questionados e lacunas
detectadas nos debates sobre Conselhos Gestores:
7.1. Os Conselhos Gestores devem ser organismos apenas consultivos ou
também deliberativos?
A lei federal define o caráter deliberativo dos Conselhos Gestores, no
âmbito do processo de gestão descentralizada e participativa. Entretanto, tem-se
assinalado mais o seu caráter consultivo, fato que faz deles, impropriamente,
órgãos com ação centrada unicamente no campo da opinião, da consulta e do
aconselhamento, sem poder de decisão ou deliberação, portanto.
Os Conselhos Gestores estão, por lei, vinculados ao Poder Executivo dos
municípios, e, como tal, devem tornar-se órgãos auxiliares, privilegiados, da
gestão pública. Fato, aliás, que torna imperioso o dever moral de devolver-lhes o
caráter deliberativo, restabelecendo-o completamente como um dos pilares
essenciais sobre o qual se há-de construir a eficácia do seu funcionamento, pois,
no entendimento de Gohn (2001, p.88-89), com o qual partilhamos,
“(...) a opinião apenas não basta. Nos municípios sem tradição
organizativo-associativa, os conselhos têm sido apenas uma realidade
jurídico-formal, e muitas vezes um instrumento a mais nas mãos dos
prefeitos e das elites, falando em nome da comunidade, como seus
representantes oficiais, não atendendo minimamente aos objetivos de se
tornarem mecanismos de controle e fiscalização dos negócios públicos”.
A complexidade dos fenômenos, políticos e sociais, que caracteriza a
nova gestão pública partilhada, com a presença real das ações centradas na
bipolarização de interesses debatidos dentro de uma estrutura de constituição
paritária, passou a exigir cada vez mais dos Conselhos Gestores uma maior
assunção de posturas compatíveis com a versatilidade dos papéis, ubiqüidade
nas negociações e, sobretudo, muita agilidade na procura da solução mais
consentânea, atributos que os caracterizam. Gohn (2001, p.90 apud Caccia-Bava
& Borja, 2000) nos a dimensão exata do relevo com que se reveste, neste
caso, a importância do papel dos Conselhos que, segundo ela, se “ (...) incide na
discussão sobre as estratégias de gestão pública de uma forma geral e sobre o
caráter das próprias políticas públicas em particular”. Um papel bastante
fragmentado, portanto.
A conscientização do caráter universalizante dos papéis que se espera
desempenhem os Conselhos gestores, no contexto das políticas públicas
descentralizadas, tem alimentado, nos atores sociais, de forma geral, certas
expectativas quanto ao seu funcionamento e assunção do verdadeiro estatuto
dentro da rede de relações estabelecidas, questões, aliás, amiúde colocadas,
porém, sempre questionadas.
O debate estratégico sobre o papel dos Conselhos Gestores tem, de fato,
conduzido o assunto a dois tipos de apreciação, reflexos de duas posições
extremas já assumidas relativamente à problemática: os Conselhos Gestores
devem ser órgãos consultivos, defendem uns; devem ser fiscalizadores das
políticas públicas, defendem outros. Uma posição postula um papel “mínimo”,
“redutor”, enquanto a outra, um papel “amplificado”, “multifacetado”, capaz de
pôr em evidência todo o potencial democrático dos conselhos.
Os defensores da causa de que os Conselhos Gestores, sejam de âmbito
nacional ou municipal, devem ser meros órgãos consultivos, desejam, em última
instância, afastá-los da perspectiva central na influenciação do poder
Legislativo. Assim, esvaziam-nos de hipotéticos poderes plurais potenciados na
sua própria natureza carregada de ideologismos combativos, os quais, poderes,
poderiam supostamente, pela sua importância e força sugestiva, legitimar
posições mal compreendidas ou incômodas em outras esferas, nas quais podem
deixar indesejadas marcas irreversíveis. Cômoda posição é, sem dúvida, a nosso
ver, relegá-los, então, a simples auxiliares do Poder Legislativo, em que o teor
(ou a encenação) das consultas feitas pode ser minimizado sem grandes
conseqüências para a relevância das decisões tomadas ou a tomar.
Os defensores de um papel mais alargado são, entretanto, partidários de
que os Conselhos Gestores devem exercê-lo sob a forma de fiscalização do
Executivo, conforme uma perspectiva e modelo de gestão descentralizada
(Gohn, 2001, p.90). Portanto, deve ser posta em prática uma ação deliberativa
que confine os Conselhos ao “leito de procusto” das decisões tomadas em sua
área, porém, com repercussões, em cadeia, tanto dentro da própria área quanto
fora dela.
Por exemplo, o papel fiscalizador dos Conselhos Gestores, fundamento
do seu caráter deliberativo, implicaria, necessariamente, um novo estilo de
governo que tenha como eixos centrais a participação e a cidadania. Por
conseguinte, um governo comprometido social, moral e politicamente com todos
os governados, um governo que aceite, descomplexadamente, os conflitos e os
administre como parte necessária do jogo de interesses em uma democracia.
A transversalidade ou, melhor, a profundidade do caráter deliberativo
dos Conselhos Gestores está claramente realçada nas linhas precedentes e, por
conseguinte, profusamente demonstrada a robustez moral e estratégica da
posição que o defende como papel fundamental. Todavia, não garantias de
que as decisões conselhias de caráter deliberativo encontrem efetiva
implementação e sejam acolhidas ipsis verbis, pois não estruturas jurídicas
que dêem amparo legal e obriguem o executivo a acatar as decisões dos
conselhos (mormente nos casos em que essas decisões venham a contrariar
interesses dominantes) (Gohn, 2001, p.91). Esse fato, aliás, não deve coibir
ações recorrentes na busca de oportunidades de se fazer cada vez mais, dos
Conselhos Gestores, órgãos dotados de capacidade e poderes normativos de
decisão, e não implantá-los como mera instância consultiva e opinativa.
7.2. Como, então, proceder para fortalecer os Conselhos Gestores e
melhorar seu posicionamento no cenário onde se desenvolvem?
Os Conselhos Gestores são, efetivamente, o resultado de uma velha
aspiração da sociedade civil brasileira que, durante longo período, exerceu
freqüentes e exacerbadas pressões políticas nesse sentido. Todavia, o
estabelecimento formal desses Conselhos está geneticamente ligado a
dispositivos legais que, no seu ato criador, talvez inadvertidamente, terão neles
fixado certos caracteres que a filigrana da consciência popular não teria, por
certo, idealizado. Daí decorre, naturalmente, certos constrangimentos na
operacionalização dos Conselhos Gestores, hoje bastante destacados pelos
estudos empíricos realizados nesse campo.
O quadro descrito aponta para as dificuldades imensas, de vária ordem,
que levantam barreiras, sobretudo de caráter cultural e prático, à efetivação do
projeto democratizante dos Conselhos Gestores, no ritmo esperado.
A sociedade civil ainda não tem suficiente tradição participativa em
canais de gestão dos negócios públicos; falta-lhe prática suficiente no gênero das
atividades requeridas pelo novel campo da gestão pública. Tampouco a
população, na sua maioria, conhece a real capacidade que detém e que podia ser
canalizada com proveito para o interior das disputas democráticas emergentes,
transferindo, por omissão, tal papel às velhas elites que subvertem os espaços de
expressão dos setores organizados da sociedade em campo de reedição dos
velhos mecanismos da política pública elitista. Um conjunto de razões que, aliás,
justifica plenamente o surgimento oportunístico de concepções
“que não se baseiam em postulados democráticos e vêem os conselhos
apenas como instrumentos/ferramentas para operacionalizar objetivos
predefinidos [o que] tem feito dessa área um campo de disputa e
tensões”(Gohn, 2001, p.90).
A soberana razão para, enfim, continuarem os malabarismos políticos a
inquietarem o elevado espírito democrático da cidadania com o espectro
ameaçador do “perigo da democracia minimalista”, o qual, segundo Huntington
(1994, p.96, apud Évora, 2004, p.108), reside
“no fato de ela [a democracia minimalista] basear-se exclusivamente
nos aspectos formais e procedimentais”.
Continua:
“Ela garante que um governo seja eleito democraticamente, mas não
garante que outros princípios fundamentais da democracia por
exemplo o respeito à oposição política, a accountability, a igualdade
social e econômica sejam incorporados”.
Entretanto, evidências claras de que os conselhos gestores são
absolutamente capazes de produzir autonomamente os elementos básicos
necessários à constituição de um eficiente sistema de vigilância sobre a gestão
pública, colocado ao serviço da cobrança de contas do poder executivo,
principalmente no nível municipal” (Gohn, 2001, p.90-91). Todavia, para que tal
potencialidade se transforme em ações concretas, é necessário, segundo esta
autora, que se , no debate sobre a criação e implementação dos Conselhos
Gestores, uma grande atenção e relevância necessária a um conjunto de
questões, postas, em resumo, nesta base:
a representatividade qualitativa dos diferentes segmentos sociais,
territoriais e de forças políticas organizadas em sua composição; o
percentual quantitativo, em termos de paridade, entre membros do
governo e membros da sociedade civil organizada que o compõe; o
problema da capacitação dos conselhos mormente os advindos da
sociedade civil; o acesso às informações ( e à sua decodificação)
tornando públicas as ações dos conselhos; a fiscalização e controle
sobre os próprios atos dos conselheiros; o poder e os mecanismos de
aplicabilidade das decisões do conselho pelo Executivo e outros etc.”.
Volte-se a afirmar, contudo, que, uma vez resolvida a questão
participativa, criada as condições necessárias à fiscalização das ações do poder
público e à denúncia eficaz dos lobbies econômicos que pressionam e dominam
os aparelhos estatais, os Conselhos Gestores transformar-se-iam, finalmente,
num exímio arquiteto na composição articulada das traças básicas inspiradas
na democracia participativa orientadoras da construção de um verdadeiro e
sólido edifício de gestão pública democrática.
7.3. A questão da representatividade e da paridade dos Conselhos Gestores
carece de uma melhor definição
A lei federal estabelece o caráter paritário da representação dos
Conselhos Gestores. Todavia, estes institutos legais não se baseiam em critérios
tão equilibrados que tornem possível, de imediato, o funcionamento eficaz
desses Conselhos.
Pode afirmar-se, em decorrência deste fato, com a segurança dos dados
obtidos pelos estudos realizados, que, na base da desigualdade de condições de
trabalho existentes entre os participantes dos Conselhos Gestores, está, sem
dúvida, a falta de critérios definitórios. Faltam critérios que regulem a renovação
dos mandatos dos conselheiros, garantam a implementação efetiva das decisões
conselhias e que vinculem os conselheiros à comunidade que os escolheu. Muito
embora se note a observância da norma legal na constituição da paridade, ela é,
ainda, apenas numérica, quando devia de ser também de ordem a impor
condições de certa igualdade no acesso à informação, disponibilidade de
tempo, etc.” (Gohn, 2001, p.92).
Muitas contribuições foram, entretanto, sistematizadas. Alguns
analistas têm sugerido evitar-se a coincidência dos mandatos dos conselheiros
com os dos eleitos municipais, de modo que se não verifique a temível
promiscuidade entre os respectivos períodos eleitorais coincidentes e,
posteriormente, entre os interesses, por natureza, contrários. Defende-se a idéia
da criação de uma instância judicial com poderes para fazer cumprir as
deliberações dos Conselhos Gestores, sobretudo quando estas deliberações
afetam os interesses dominantes. Deve-se garantir que a representação se faça
sempre por meio daqueles que mantenham vínculos permanentes com a
comunidade eleitora; estender a paridade representativa às condições ideais de
exercício das funções dos representantes da sociedade civil, provendo-os de
recursos informacionais e infra-estruturais de apoio administrativo necessários,
remunerando-os pelo seu tempo dedicado às atividades conselhias e, por fim,
capacitando-os na elaboração e gestão das políticas públicas, e no domínio e no
uso razoáveis da nova linguagem tecnocrática, para melhor exercerem o seu
mandato em prol dos seus representados, e da eficácia das políticas públicas, em
geral.
Foram mencionadas as ações básicas que devem ser executadas em
primeiro plano. No entanto, defendemos que as atenções devem continuar
voltadas para outras ações, mais abrangentes e capazes de dotar os Conselhos
Gestores de uma ampla expressividade, e sua funcionalidade, de critérios
bastante equilibrados. As ações propostas são: a definição clara de parâmetros
que fortaleçam a interlocução dos representantes da sociedade civil com os
representantes do governo; buscar um domínio vasto do conhecimento sobre o
espaço político, de modo que as propostas sobre políticas sociais e sua
fiscalização possam ser feitas com clareza e sentido de equilíbrio, e capacitar os
conselheiros, dotando-os de uma visão geral sobre a política e administração, de
modo que a sua participação na gestão pública seja potencializadora de uma
ação integradora dos princípios e interesses particulares fragmentados.
7.4. Lacunas de vária ordem perturbam o bom funcionamento dos
Conselhos Gestores que perspectivas de solução?
A evidência de lacunas que ainda existem em diversas escalas na
operacionalização dos Conselhos Gestores está nitidamente plasmada no texto
acima. Todavia, vários estudos realizados, até então, sobre o tema, conseguiram
identificar e sistematizar, com clareza e abundância, um conjunto de
necessidades e lacunas que tem impedido os Conselhos Gestores de funcionar de
forma eficaz. Resgatemo-lo, pois.
Gohn (2001, p.95-96), por exemplo, aponta:
“1. falta uma definição mais precisa das competências e atribuições dos
conselhos gestores;
2. deve-se cuidar da elaboração de instrumentos jurídicos de apoio às
suas deliberações;
3. deve haver uma definição mais precisa do que seja participação de
um representante nos conselhos gestores. Nós a entendemos como o
processo mediante o qual as diferentes camadas sociais da população
tem acesso aos espaços de definir e avaliar as políticas públicas,
especialmente as de caráter social;
4. necessidade de capacitação dos conselheiros ( inclusivé com
cursos, seminários, trocas de experiências, fóruns, espaços culturais,
eventos etc.). A participação, para ser efetiva, precisa ser qualificada,
ou seja, não basta a presença numérica das pessoas porque o acesso
está aberto. É preciso dotá-las de informações e de conhecimentos sobre
o funcionamento das estruturas estatais. Não se trata, em absoluto, de
integrá-las, incorporá-las à teia burocrática. Elas têm o direito de
conhecer essa teia para poder intervir de forma a exercitar uma
cidadania ativa, não-regulada, outorgada, passiva;
5. os representantes da população têm que ter igualdade de condições
para participar, tais como as citadas em parágrafo anterior: acesso
às informaçôes( codificadas nos órgãos públicos) e algum tipo de
remuneração para sua atividade”.
Nota-se, claramente, que o problema sobre o conhecimento geral das
políticas municipais, específicas, não se põe, senão de forma muito residual. Os
conselheiros, de forma geral, estão bem abalizados nas questões que defendem,
demonstram habilidade na colocação dos problemas, e profundo conhecimento
da matéria tratada. Santos Jr. (2001, apud Gohn, 2001, p.96) verificou existir
alto índice de associativismo/ participação dos conselheiros, assim como o
grau de instrução de uma grande percentagem deles”.
Por outro lado, é deplorável a apatia da maioria da população em relação
às questões político-sociais tratadas dentro da sua comunidade: ela não participa
e nem se faz representar nos conselhos gestores, não estabelece vínculos
associativos, não contribui para o aumento do capital social e, por conseguinte,
atrasa o processo de inclusão social.
A permanência prolongada de parte significativa da sociedade à margem
dos assuntos políticos e outros impactantes da vida cotidiana transfere, ato
contínuo, uma ação inercial perniciosa a certas engrenagens sociais ou
institucionais que se tornam, por seu lado, inibidoras de mudanças de
mentalidades no seio dos conselhos, o que, de maneira categórica e evidente,
tem configurado um quadro frustrante e indicativo da não reprodução neste
espaço de inter-relação supostamente dinâmica entre o Estado e a sociedade de
valores, normas, diretrizes e propostas construídos no espaço social. Parece,
aliás, dar-se a oclusão dos vasos comunicantes que transfundem os elementos
necessários à consolidação de uma esfera de pactuação política e representação
social em que a perfeita visibilidade dos movimentos sociais possa ocorrer e
estes possam dialogar descomplexadamente entre si e com os demais
representantes do poder público estatal e municipal, no afã da construção de uma
cidadania real.
Tais são os aspectos que introduzem a polemização de um assunto de
maior transcendência no debate sobre as mais importantes limitações impostas
aos conselhos a sua autonomia
34
.
Serão, porventura, autônomos os conselhos de gestão de políticas
públicas? No plano jurídico-formal, a autonomia é absoluta. Na correlação de
forças entre os seus integrantes, a decisão tomada pelo colegiado se impõe,
indiscriminadamente, a todos e, presumivelmente, todos a respeitam. É uma
demonstração clara da autenticidade de um poder reforçado no
compartilhamento, que caracteriza a posição formal dos conselhos e os torna
capazes de construir uma nova forma de gestão pública baseada na co-gestão. A
este respeito, Santos, M. (2004, p.142) escreve:
“O processo é criado pelo Estado e desenvolve-se segundo uma
dimensão planejada em seu âmbito, mas observa-se uma partilha real de
poder porque a soberania popular passa a ser o critério norteador e
fundamento básico para a aplicação dos recursos e programas públicos
(apud Gohn, 1998, p.13-14),
34
Para uma melhor compreensão da questão da autonomia dos movimentos sociais
perante o poder do Estado, ver Cardoso (1988), Silva (1993) e Boschi (1987).
pois, segundo o mesmo autor, os conselhos são
órgãos públicos colegiados de natureza ambivalente, vinculados à
administração estatal, mas ao mesmo tempo constituídos de
representações da sociedade” (apud Teixeira, 1996, p.14).
Em contrapartida, na prática, esta pujança não é bem visível nos
conselhos de gestão de políticas públicas. Opina Santos, M. (2004, p.142):
Acreditamos que se faz necessário atualizar o debate sobre a
autonomia (...), a fim de responder às questões referentes à
possibilidade da constituição de esferas de participação na gestão que
não estejam subsumidas à lógica da administração pública, permitindo
a emergência [da cultura] e propostas construídas nos espaços da
sociedade”.
Pois, registra-se uma sensível quebra do potencial democrático dos
conselhos, o que tem reduzido a centralidade política destes órgãos como
promotores de espaços políticos autônomos de exercício direto do poder
político pela coletividade dos cidadãos” (Tótora & Chaia, 2004, p.198).
Estas autoras propõem, no entanto, o restabelecimento da autonomia
histórica dos conselhos por meio de uma necessária articulação entre os diversos
conselhos, envolvidos num pacto federativoque preserve o poder de decisão
e iniciativas aos conselhos locais e distritais”. Sobre a condução e a eficácia do
processo, pronunciam-se nestes termos:
As decisões da coletividade de cidadãos organizados nos conselhos
podem ser executadas por delegados eleitos com mandatos revogáveis.
Essa forma excluiria toda a hierarquia ou centralização administrativa,
preservando o máximo de poder aos cidadãos” (Tótora & Chaia, 2004,
p.198).
A condução de práticas reformistas de cariz neoliberal que atingem as
estruturas do Estado constitui como que um freio à autonomia dos Conselhos
Gestores. Em páginas anteriores, neste trabalho, registrou-se a preocupação com
a suspeição que impende sobre os Conselhos Gestores pelo simples fato de seu
surgimento estar ligado a reformas neoliberais do Estado. Não é de estranhar,
portanto, que, nesse contexto voltado para a coisificação do Homem, o Estado
procure, com determinada agenda política monolítica, alcançar certos objetivos
com imposição da sua vontade, em nome, por exemplo, da necessária
governabilidade das cidades; e que, sob a capa inocente da política de
estabilização do quadro macroeconômico e social, o poder público exercite a
locubração política na arte de reprodução infinita dos liames que atrelem as
demandas sociais, e toda a política pública, aos interesses do aparelho estatal.
Contar com a vontade política do Estado é, contudo, uma condição
necessária para que os Conselhos Gestores exerçam com eficácia o papel que
lhes é atribuído na gestão municipal, como espaço de representação e interação
entre a sociedade e o poder público. O poder público, neste caso, deve assumir
que reconhece sem equívoco a importância dos Conselhos nas arenas públicas,
dentro das quais deve ainda empenhar-se em dar-lhes a devida visibilidade e
merecido destaque, senão central, pelo menos uma atenção especial que
salvaguarde a necessária paridade nas condições de uma certa igualdade no
acesso à informação, disponibilidade de tempo, etc.” (Gohn, 2001, p.92),
requisitos, aliás, imprescindíveis ao seu eficiente funcionamento.
Uma outra ordem de fatores preponderantes na viabilização do papel dos
Conselhos Gestores, complementares à posição assumida pelo poder público
sobre o mesmo, reside no fato de se poder contar absolutamente com a
existência de organizações sociais capazes de representar interesses sociais e
expressarem valores construídos no cotidiano” (Santos, M. 2004, p.143). E
mais: de tais organizações espera-se que, rigorosamente, procurem alcançar o
“bem público” dentro de uma lógica que fundamente e expresse com fidelidade
os interesses dos setores da comunidade representados, os quais, por outro lado,
tenham sido legitimados e propostos sob a ação criativa do capital social
mobilizado pelos setores excluídos, e expresso por meio de práticas associativas
horizontais, bem como mediante a afirmação de uma cultura cívica que permeia
os diversos segmentos destes mesmos grupos excluídos (Putnam, 2000).
Impõe-se, a nosso ver, que, em última instância, uma associação efetiva
e democrática dos valores e interesses esposados por cada um dos segmentos
constitutivos do Conselho Gestor finalmente ocorra e dê os fundamentos e
impulsos necessários a uma forte pactuação política e de representação social.
Amplia-se, assim, a esfera pública por meio do fomento da cultura cívica, do
reconhecimento de diferenças e conflitos no interior da ordem social, da
vinculação da representatividade social às exigências da renovação democrática
pelo compromisso sério e efetivo firmado entre representantes e representados, e
valorização da dimensão política da participação no debate sobre as concepções
sociais, na perspectiva da valorização da comunidade de valores [e de]
processos que fortaleçam a politização das questões sociais (Ribeiro, 1998,
p.121).
Para o verdadeiro equilíbrio de forças, é necessária a oposição”
(Cowman, 1982, p. 94).
A efetivação de uma esfera pública não estatal, onde prevaleçam as
condições orgânicas necessárias à reprodução constante de valores e princípios
democráticos, é, a nosso ver, a essência de evidenciação autonômica dos
Conselhos Gestores. Na medida em que oferece as bases democráticas para o
entendimento político sobre as preocupações públicas, disponibiliza o substrato
ideal para a afirmação inequívoca da autonomia conselhia.
Há, evidentemente, necessidade de manter uma auscultação permanente
ao estado tensional das demandas de cada setor representante e de corrigir os
desvios das respectivas posições, direcionando-as sempre para o alcance de
objetivos consensuais. Villasante (2002, p. 28) sabiamente alerta para os
possíveis perigos de uma armadilha de influências que pode constituir-se a partir
da situação imprevisível em que
“por trás de cada mobilização concreta ou de cada rede de associações,
algo mais que o manifesto; não é a atividade ou a reivindicação
expressada, há estilos e culturas sociopolíticas em jogo”.
Crê-se, de fato, que a construção da autonomia dos conselhos não se
realiza senão por meio da harmonização de uma constelação de poderes
fragmentados que caracterizam o quadro natural de influências conselhio, os
quais, em determinadas condições e sob o pacto consensual, se contemporizam e
dialogam à volta de grandes questões públicas nacionais para atingir objetivos
comuns por intermédio de novas formas institucionalizadas de gestão de
políticas públicas.
Recuando aos primórdios da criação dos conselhos, pode-se, então,
verificar que, historicamente, segundo Tótora & Chaia (2004, p.201), eles se
constituíram como autogoverno dos cidadãos, autogestão do trabalho em
contraposição às formas hierárquicas e centralizadas de poder”.
Todavia, hoje, o que se pode observar, sob certa inquietação, é que a
natureza primitiva dos conselhos não foi preservada. Por imposição de razões
circunstanciais ligadas à sua origem, que os caracterizam como espaço político
de intervenção da sociedade civil, os conselhos podem, entretanto, exercer o
seu papel confinados, como observam Tótora & Chaia (2004, p.201 e 203),
dentro de um sistema estatal hierarquizado e verticalque os expõe ao perigo
eminente de serem transformados em “órgãos autônomos do poder instituído”.
A possibilidade de cooptação dos conselhos pelo poder público põe em
evidência outra fragilidade desses órgãos: a dependência.
Não é, porém, uma dependência política, direta, mas de recursos
públicos necessários ao seu efetivo funcionamento, cuja falta os põe em
desvantagem em relação aos demais poderes públicos ou privados, e os torna
passíveis de serem, a todo o tempo, despojados de liberdades ainda maiores, ou
de poderes já consolidados.
Obviamente, uma situação envolvente, na qual imperem (ou em que a
presença de tais fatores é facilmente induzida) a hierarquia administrativa e o
monopólio governamental dos recursos públicos, onde faltem informações
objetivas e os aparatos burocráticos sejam de extrema complexidade, impõe
severas restrições à atuação dos conselhos. Sob tais circunstâncias, eles jamais
poderiam, de forma autônoma, manter um diálogo isento com os demais
interlocutores que, seja de forma direta, seja de maneira implícita, estão ligados
à gestão pública. Configura-se, então, uma vergonhosa dependência conselhia ao
poder do governo que, entre outros efeitos, redunda em “eclipsamento” do poder
legal dos conselhos e no enfraquecimento do seu potencial de transformar-se
numa verdadeira fonte de legitimação política do poder popular (Tótora &
Chaia, 2004).
O asfixiamento dos conselhos, em tal situação, pode ser fatal se,
entretanto, a condição de subserviência, que lhes é imposta pelo império das
forças dominadoras de recursos exorbitantes, não for prontamente combatida e
eliminada, sobretudo, por intermédio de práticas decorrentes de um
despertamento vigoroso do potencial conselhio, postas em ação para desafiar
exitosamente os poderes instituídos.
Outra lacuna bastante evidente é representada pela manifesta fragilidade
na capacidade de os conselhos “incorporarem os segmentos populares” ao seu
projeto democratizante (Santos, M., 2004).
São deste autor, as seguintes palavras:
Não existe um projeto claro de fomento à participação popular pelos
conselhos, tanto na publicização de suas ações para o conjunto da
sociedade como na abertura de canais de interlocução com esses
segmentos” (Santos, M., 2004, p. 154-155).
Evidentemente, os conselhos não são os únicos meios disponíveis pelos
quais possa ocorrer, de modo efetivo, a interlocução da sociedade com o
governo”. Outros mecanismos há, como as mobilizações sociais, as campanhas e
outras formas possíveis de pressão social e política, que são outros tantos
legítimos instrumentos de que certos segmentos populares ainda se servem para,
de modo construtivo, impor a sua presença na arena pública.
Ressalte-se, todavia, que, sendo os conselhos um importante espaço para
a representação de interesses sociais, quer considerados do ponto de vista
institucional, quer no das práticas dos conselheiros, se lhes não tolhe, portanto, o
propósito maior de promover uma ampla articulação interna do controle social e
da participação na definição das diretrizes das políticas sociais com as demandas
populares concretas. Isso porque não outros meios democráticos que
favoreçam mais, em tese, a ampla participação social, direcionem melhor o
planejamento das políticas regulatórias ou que imponham mais fortes obstáculos
à cultura clientelista e assistencialista do que os conselhos de gestão de políticas
setoriais (Santos, M., 2004).
Mas, para que se constituam em efetivas esferas públicas, que favoreçam
a ampliação de práticas democráticas pelo estímulo à participação social, os
conselhos dependerão substancialmente do nível de capacitação efetivamente
atingido pelas organizações sociais em representar os interesses sociais mais
amplos. Um grau de associativismo e de organização das camadas populares,
mantido muito aquém do nível desejado, não permite, ainda, o planejamento
satisfatório das demandas populares. Isso tem, em certa medida, restringido a
ação conselhia às demandas pontuais e emergenciais, e, quase sempre, ao
estabelecimento de uma agenda de decisões subordinada à pauta da
administração pública.
Ora, a inexistência de um planejamento de ações conselhias ou a falta de
condições estruturais para tal, ainda que a pauta seja coletivamente definida,
tornam-se obstáculos às discussões em torno das diretrizes e do padrão das
políticas públicas. E o que é pior, tais limitações impostas farão,
irremediavelmente, os conselhos caírem sob o domínio das administrações
públicas, uma vez que a incapacidade de gerar planos autônomos pode reduzir o
grau de contundência política conselhia, favorecendo a montagem da pauta pelo
setor governamental e, por conseguinte, o triunfo do debate e priorização de
questões de cunho administrativo sobre os assuntos eminentemente de ordem
prática da política pública.
De tudo se conclui que, no jogo de correlação de forças entre o poder
executivo e os conselhos, estes, na arena pública, simplesmente possuem, como
observam Tótora & Chaia (2004, p.218), “(..) uma participação marginal nas
políticas públicas”. Além da proverbial escassez de recursos postos à disposição
das políticas públicas e a manipulação das informações e da implementação dos
projetos sociais pela burocracia pública, outro fator explica claramente o alto
poder de influência dos Executivos sobre as decisões dos conselheiros e o
círculo vicioso da sua propagação: a descontinuidade na mobilização popular
para as causas conselhias
35
.
A dificuldade de mobilização de amplos segmentos do setor popular tem
impedido os conselhos de se tornarem verdadeiros “(...) espaços abertos ao
fluxo dos movimentos sociais (Tótora & Chaia, 2004, p.218), fazendo-os,
assim, reféns de uma representatividade seletiva de entidades “reconhecidas”.
Desta limitação decorrem, pelo menos, duas situações, a saber: a representação
de interesses corporativistas e a reduzida visibilidade pública dos conselhos no
conjunto da sociedade.
Sendo, pois, os conselhos pouco representativos, os interesses restritos
de certas entidades passam, então, a dominar o centro das atenções nas arenas
públicas, em detrimento de um enfoque mais amplo nas questões sociais da
gestão pública, a qual passará a ser manipulada, sob a influência direta do
executivo municipal, e proteção dos conselhos, pelas entidades próximas da
ideologia política do poder instituído (Tótora & Chaia, 2004; Machado et al.,
2004).
Não interessando senão a círculos restritos os resultados das discussões e
o teor das deliberações tomadas no âmbito dos conselhos sob o jugo da minoria
seleta, as informações sobre a atuação conselhia são deficientemente divulgadas
no seio da sociedade como um todo. A deficiente divulgação, por seu lado, cria
barreiras a um verdadeiro conhecimento dos conselhos, do alcance social e
político das suas ações e, por conseguinte, supostamente, desaparecem as razões
materiais para a sociedade desejar participar deles e confiar-lhes a gestão das
suas demandas públicas.
Apesar das lacunas e fragilidades apontadas em relação aos conselhos,
são eles, sem dúvida, espaços privilegiados de participação social, de negociação
35
O dinamismo que caracterizava a mobilização popular brasileira na década de 1980
não persistiu, infelizmente, na década de 1990, não sendo o presente século também
diferente dos anos da última década. Este fato tem repercutido negativamente no
funcionamento dos conselhos gestores, e na sua organização, desde então.
de interesses e demandas, e de formulação de políticas públicas. Segundo
Santos, M. (2004, p.157): eles são capazes de aperfeiçoar o sistema
representativo através da combinação de mecanismos de participação direta e
indireta na gestão municipal”, e de “tornar públicas as relações entre governo e
interesses privados e particulares”.
8. CONSELHOS GESTORES MUNICIPAIS: FUNDAMENTO DE UMA
DEMOCRACIA LOCAL AUTÊNTICA
Tem-se levantado algum celeuma à volta da questão que opõe
determinadas perspectivas de explicação sobre a autenticidade ou não do espaço
público local.
No entanto, o interesse sempre crescente em estudar os fenômenos
locais, sobretudo depois da fundação da hegemonia da democracia
liberal-representativa, tem guindado o localismo ao plano de debates sobre os
fenômenos mais expressivos do presente século.
Reconhece-se que, sob certas condições, a partir de ações extremas
levadas a cabo em âmbito local, possam as manifestações sociais de grande
impacto ali geradas ser capazes de plasmar, em movimentos gradativos, toda a
sociedade mundial no futuro. O intento é “organizar” uma sociedade
democrática local forte que dê os fundamentos necessários à criação de uma
autêntica democracia nacional, a qual, embora preserve os princípios
fundamentais da democracia liberal hegemônica, realce mais as características
que lhe são peculiares. De modo que a democracia reinante nos países será
sempre de cariz particular, endógena, lastreada na cidadania, muito embora
possa também ocorrer um compartilhamento da globalização quanto ao
“procedimentalismo democrático”, segundo o espírito hegemônico.
Esta é, entretanto, uma aposta futura na qual os conselhos municipais
terão, obviamente, um papel crucial.
8.1. O espaço local dispõe as bases de formatação de novas estratégias
geopolíticas e geoeconômicas no período pós-hegemônico
Antes de tudo, é mister afirmar-se que quem defenda ou negue, em
absoluto, a autonomia política em nível local (Machado et al., 2004).
Para os defensores do neolocalismo, o impacto da globalização
transnacional e das correspondentes relações sociais criadas apesar de ser
notório o seu largo efeito na proposição de novas formas das políticas públicas
em ambientes caracterizados por novos arranjos territoriais e aparecimento de
novos atores não-territoriais, como capital e conglomerados financeiros é
quase imperceptível em âmbito local, onde as “boas práticas” realizadas sob
impulso “paroquial” se transformam em forças suficientes para neutralizar os
radicalismos das ações globais” engendradas dentro de uma pluralidade de
novas configurações espaciais” (Medici, 1999, apud Machado et al., 2004,
p.245). O localismo é, portanto, a nosso ver, dotado de certos particularismos
que o transformam em locus privilegiado de mudanças constantes em ordem ao
estabelecimento autônomo de novas configurações sociais e políticas, e ao
equilíbrio das diferenças, lançando, assim, os fundamentos à construção de uma
nova sociedade, com novos valores e dotada de novas institucionalidades.
Em contrapartida, os defensores da heteronomia política e
democrática em âmbito local, sob o império dos valores da democracia liberal
(Tótora & Chaia, 2004; Machado et al., 2004). Negam esses anti-neolocalistas a
“possibilidade” de se estabelecer novas práticas democráticas na esfera local.
Não reconhecem o dinamismo dos centros urbanos na transformação espacial
que gera a base moral para a construção de uma nova gramática social; não se
apercebem, tampouco, do fenômeno social que se agrava pela reprodução e
aprofundamento constantes das desigualdades da estrutura social, no cenário
urbano em mutação, exigindo uma tomada de posição coerente por parte dos
atores sociais.
O autor deste trabalho entende, entretanto, que o aceleramento na
transformação local, com efeito, precipita operosas “revoluções” na estrutura da
sociedade, destruindo, criando e reproduzindo relações complexas que, na
maioria das vezes, acentuam os desequilíbrios herdados, os quais acabam, num
círculo vicioso, por contagiar todo o tecido social. Outrossim, a dinâmica local
sinaliza o momento certo para a aplicação de medidas coerentes que combatam
as fragilidades locais, que, aliás, torna patentes, assegurando-nos da
autenticidade de uma esfera local . Vainer (2001, p. 148, apud Machado et al.,
2004, p. 245) reconhece que
há, pois, toda uma ampla luta contra as desigualdades que é
estritamente urbana e que deve ser travada na esfera local”.
É possível, sim (e desejável até), criar um verdadeira esfera local sob o
modelo da democracia liberal . Santos & Avritzer (2002, p. 73) alertam que
o modelo hegemônico de democracia tem sido hostil à participação
ativa dos cidadãos na vida política e, quando a tem aceitado, a tem
confinado em nível local”.
A nosso ver, pois, outro espaço mais profícuo não que o local onde
possa ser construída a “globalização contra hegemônica”, articulando,
complementarmente, a democracia participativa com a democracia
representativa. Ou melhor, onde se apliquem, em melhores condições, as
“estratégias transescalares” que, aproximando as democracias em escalas locais
e nacionais entre si, vêm reforçar o papel local da democracia participativa que
deve, a esse nível, aliás, criar excelentes focos de resistência à globalização
neoliberal, até que as inúmeras e diversificadas experiências locais de
democracia, em articulações transnacionais, enfim, propaguem seus efeitos no
seio da democracia global.
A sociedade mundial é nosso pressentimento caminha, efetivamente,
a passos largos, para a busca de uma solução global dos problemas que lhe são
postos pela democracia liberal. E procura-a, sobretudo, na aplicação de uma
estratégia global que combata simultaneamente todas as formas de poder
opressoras e, por essa via, conduza à verdadeira emancipação social os setores
excluídos. E tem-na encontrado, enfim, nas excelentes “estratégias
transescalares” já citadas, cujo escopo é global. Santos (2002b, p.27), a tal
respeito, é afirmativo:
uma estratégia demasiadamente centrada na luta contra uma forma de
poder, mas negligenciando todas as outras, pode, por mais nobres que
sejam as intenções dos ativistas, contribuir para aprofundar em vez de
atenuar o fardo global da opressão que os grupos sociais subalternos
carregam no seu quotidiano”.
É mister, porém, assumirem-se compromissos políticos claros com a
sociedade civil em âmbito local. Tais compromissos devem, rigorosamente e
sem equívocos, expressar a vontade política do Estado em promover ações no
sentido de potenciar o capital social construído e consolidado pela sociedade
civil local. A valorização política do aprendizado político e democrático da
sociedade local realça as experiências de movimentos sociais e das respectivas
organizações de assessoria, no campo democrático e confere-lhes importância
estratégica na luta desigual que se trava entre o poder público e a sociedade
civil, em que esta procura fazer algumas conquistas de ordem participativa nas
arenas públicas (Gohn, 2004).
É forçoso, pois, realizar o inventário político local, e concluir um pacto
democrático com os diversos atores da arena pública. Desse modo, o legado
sócio-político pode ser recuperado e ampliado em âmbito local e, em seguida,
reproduzido nas instâncias de um novo espaço público, de caráter não-estatal,
imprimindo-lhe o dinamismo de “agente de mudança, de decisão”, na conduta
de ação democrática de construir regras de institucionalidades bem claras”
para que os mecanismos da participação cidadã
36
possam, efetivamente, ser
postos em prática (Gohn, 2004, p.60).
Conselhos de gestão de políticas setoriais são um dos exemplos mais
significativos dessas novas institucionalidades
37
. Criados, inicialmente, para dar
corpo às arrojadas propostas da democracia participativa de produzir novas
formas de distribuição dos recursos nas quais as prioridades sejam as
necessidades sociais e não os cálculos econômicos advindos das necessidades
de lucro do mercado”, de” inserir o povo em práticas de gestão pública”,
assumem, no entanto, posteriormente, novas dimensões que fazem deles espaços
onde se pode também mudar a ótica do olhar, do pensar e do fazer; alterar os
36
Autores que preferem utilizar a expressão “participação social” com o mesmo
sentido. Nós, porém, preferimos a expressão grafada no texto por a considerarmos a
categoria mais sugestiva, mais abrangente de conteúdo, enfim, aquela que melhor
propriedade tem para exprimir o sentido que se quer dar ao assunto tratado. Sobre
ambas, Gohn (2004, p.58-59) tece as seguintes considerações:
A participação cida focaliza outros sujeitos sociais: não apenas as camadas
populares, advindas da comunidade organizada, genericamente denominada como
‘povo’ pelo senso comum, mas os cidadãos como um todo, a sociedade em geral,
independente da classe social. O conceito (...) está lastreado na universalização dos
direitos, na ampliação do conceito de cidadania para além da dimensão jurídica e numa
nova compreensão sobre o papel e o caráter do Estado, remetendo a definição das
prioridades nas políticas públicas a partir de um debate público. O princípio que
orienta a participação passa a ser ético, ligado à idéia dos direitos sócio-políticos dos
cidadãos. A participação passa a ser concebida como intervenção social, periódica e
planejada, ao longo de todo o circuito de formulação e implementação de uma política
pública. (...) O foco central da participação está na relação entre a sociedade civil e a
sociedade política. Por isso as políticas públicas ganham destaque”.
A participação social está lastreada no desenvolvimento de uma cultura cívica, (...)
preconiza o desenvolvimento de comunidades atuantes, compostas de organizações
autônomas da sociedade civil, imbuídas de espírito público, com relações sociais
igualitárias e estruturas fincadas na confiança e na colaboração, articuladas em redes
horizontais. Essas comunidades o vistas como mecanismos poderosos de integração e
habilitação dos cidadãos, excluídos (...) do acesso aos direitos sociais e políticos; (...)
são também vistas como fundamentais para a formação e o desenvolvimento do capital
social de uma dada região (...) importante (...) pelo fato de gerar inovações, contribuir
para minorar as desigualdades existentes e aprofundar o processo democrático”.
37
No Brasil podem-se notar ainda outras formas institucionalizadas de participação, tais
como: fóruns, programas de orçamento participativo, Renda Mínima, Bolsa-Escola, etc.
valores e os referenciais que balizam o planejamento e o exercício das práticas
democráticas” (Gohn, 2004, p.61).
Em suma, conforme opinam Santos Jr. et al. (2004, p. 47), os conselhos
são espaços institucionais com potencial de se transformarem em instrumentos
da constituição da governança democrática dos municípios”. Trata-se de um
potencial que é, portanto, necessário desenvolver para que os conselhos, enfim,
reduzam os limites que os impedem de usar todas as suas possibilidades de
“agentes de mudança” em prol do aprofundamento da democracia em âmbito
local, com repercussões transnacionais das experiências locais a partir de uma
aproximação democrática entre as escalas locais e nacionais, isto é, pela
consolidação da coexistência da democracia participativa com a democracia
representativa (Gohn, 2004; Machado et al., 2004).
8.2. Conselhos municipais são a lula básica da constituição de um sistema
nacional de participação. A dinâmica dos conselhos na construção e
democratização das esferas locais
O capítulo anterior condensa “as dificuldades” que impõem certos
limites à atuação dos conselhos, dando a entender que esses “espaços da ação e
participação” (Tótora & Chaia, 2004, p.196) ainda não se desvincularam
totalmente das amarras que os prendem à insuperável inércia das criações
incipientes. Todavia, é uma situação transitória que cessará tão logo os
conselhos consigam eliminar as “fragilidades” na “incorporação dos segmentos
populares” (Santos, M. 2004, p.154) ao seu projeto democratizante do espaço
público local.
Jacobi ( 2002, p. 11-12) escreve:
A participação popular se transforma no referencial não só para
ampliar as possibilidades de acesso dos setores populares segundo uma
perspectiva de desenvolvimento da sociedade civil e de fortalecimento
dos mecanismos democráticos, mas também para garantir a execução
eficiente de programas de compensação social no contexto das políticas
de ajuste estrutural e de liberalização da economia e de privatização do
patrimônio do Estado. Entretanto, o que se observa é que, em geral, as
propostas participativas ainda permanecem mais no plano da retórica
do que na prática”.
Mas, continuando, o mesmo autor reconhece que
(...) existe um déficit de participação e de constituição de atores
relevantes, o que pode redundar em fator de crise de governabilidade e
de legitimidade. A insatisfação causada (...) expressa (...) fenômenos
como a volatilidade eleitoral e o desvirtuamento de propostas de gestão
pautadas no aprofundamento das práticas democráticas”.
E, por fim, categoricamente, conclui:
Poucas o, de fato, as experiências de gestão municipal que assumem
uma radicalidade democrática na gestão da coisa pública ou que
ampliam concretamente o potencial participativo”.
Interessa, desde já, reter bem este fato: a peia participativa que a
concepção hegemônica da democracia tece sob a forma de “participação
minimalista” contrária à implantação de uma “democracia local de alta
intensidade”, contém, em si própria, em nosso entender, o “gérmen” de
transmutação do quadro democrático local, de rest
Senão, vejamos: as práticas liberais que induzem políticas sociais
restritivas sob o império da globalização econômica que sobrepõe os interesses
de racionalidades capitalistas às genuínas ambições da massa, cerceando as
liberdades políticas desta de fazer uso da sua potencialidade reivindicativa,
suscitam, neste setor excluído, um fervoroso desejo de mudança do estado das
coisas que acaba por contaminar todos os segmentos sociais, despertando neles
uma cadeia reativa de forças geradoras de uma forte “comoção” que, por fim,
desloca o hegemônico estado político e social nos seus fundamentos, em âmbito
local.
Novo xadrez político local então emerge do “caos” auto-induzido e se
configura a partir de uma adesão de forças organizadas da sociedade civil que
procuram reconstruir e ressignificar o sentido democrático de um novo espaço
local plural, onde, enfim, se torna possível a coexistência entre a democracia
representativa e a democracia direta por meio de novas formas
institucionalizadas de participação, das quais os conselhos municipais são
exemplos de referência.
Todavia, o rompimento definitivo com as amarras hegemônicas não se
senão após uma intensa “ebulição” interna que, por fim, ponha em evidência
a magnitude das discrepâncias sócio-políticas do regime “parcialista” e torne
possível à sociedade dos excluídos tomarem a consciência exata da realidade
vivida e da própria força de vontade para desejar e impor uma nova ordem
social, mais abrangente e mais justa.
Nada ocorrerá, portanto, se nas próprias “injustiças” do regime
globalizante se não detectarem os elementos de contradição capitalística que
possam constituir alvo de aproveitamento político por parte dos setores
excluídos da sociedade para gerar oportunidades de mudança social dentro de
um quadro democrático plural.
Assim, questiona-se vivamente a noção hegemônica de um estado
anêmico de forças locais que bloqueiam, em âmbito local, a ação interna de
conselhos municipais localizada, preferencialmente, no centro dos impulsos
gerados dentro de uma logicidade localista do confronto natural entre as
multiplicidades de sentidos que caracterizam uma democracia (Tótora & Chaia,
2004). Tal visão estática, que pretende fixar um quadro de inação democrática
fora do circuito liberal globalizado e, de certo modo, perpetualizá-lo, distorce a
imagem dos conselhos municipais. Assim eles são transformados em mera caixa
de ressonância de um espaço público local decadente eleito como simples feudo
de participação especializada e elitizada (Arendt, 1988; Tótora & Chaia, 2004;
Gohn, 2001, 2004; Machado et al., 2004), do qual herdam as mazelas, em vez de
lhes reconhecer a devida centralidade de espaços institucionais de participação
política, onde a participação se configura em uma nova modalidade de
legitimação política por meio da qual as minorias se tornam maiorias e se
integram ao espaço político, dando-lhe o formato pluralista (Tótora & Chaia,
2004). Daí decorre, fatalmente, o erro liberal de se considerar o espaço local
despojado de virtudes democráticas para constituir atores sociais relevantes
capazes de contrapor uma autêntica pauta reivindicativa às posições oficiais do
poder público, e locus de forte implantação de uma cultura assistencialista
inamovível que reforça automaticamente as posições dominantes no sentido de
se garantir a reprodução perpétua de um estado de relativa letargia política entre
as massas, onde pensa-se dificilmente se cria e se renova a ambição popular
por uma participação democrática ampliada. Puro engano: a vontade popular de
participar de esquemas de aprofundamento democrático é latente no seio das
massas que apenas aguardam o momento propício em que deve ocorrer o fatal
despertamento das suas potencialidades nesse campo. O distanciamento
cronológico que separa a deflagração dos acontecimentos para a mudança do
estado de completa letargia da sociedade se torna mais ou menos curto
consoante o tempo que se mostrar necessário para que essa mesma sociedade
amorfa, enfim, se “empodere” e, por esta via, se consciencialize para assumir
uma posição radical em relação à ordem social vigente.
Uma ação (ou atitude) de extrema radicalidade social e não outros
meios de reduzida sugestionabilidade política constitui, em nossa opinião, a
fonte de toda a transformação democrática necessária para dar visibilidade
política a extensos segmentos dos setores excluídos, com os quais se pode
compor um genuíno espaço público local de participação ampliada e fundamento
razoável para anunciarmos, em contexto de democracia liberal-representativa,
um novo ato criador de democracia a partir de um processo de conscientização
e radicalização das massas tendente à implantação da isonomia
político-democrática em âmbito local.
É neste ambiente de agitação sócio-política local que os conselhos
municipais, afinal, lançam a âncora de desenvolvimento de uma nova imagem
contrária àquela que lhes atribui os negativismos alardeados pela perspectiva da
democracia hegemônica e a qual os situa no centro da barbárie política que lhes
nega a congruência dos atos na “incorporação dos segmentos populares”
(Santos, M. 2004, p.154) e os fundamentos para se tornarem uma autêntica
“estratégia de poder popular” (Tótora & Chaia, 2004). De resto, é inserido numa
nova cultura cívico-democrática forte que o potencial democrático dos conselhos
municipais totalmente se mostra em todos os ângulos, e com maior acuidade.
Ou, nos termos postos por Tótora & Chaia (2004, p. 201), é sob sua influência
que se transformam em elemento basilar de construção de um projeto de
modernização política tradicional”, respaldado numa nova forma de
sociabilidade democrática, na qual as amarras políticas à hierarquia
administrativa e aos espaços políticos restritos a representantes eleitos
finalmente se soltam, em âmbito local.
À medida que os conselhos municipais conseguem mobilizar todas as
forças sociais locais para debater e realizar os programas e políticas sociais, sob
a transparência de uma coerente gestão pública participada, e por meio de uma
administração criteriosa dos recursos postos à disposição destas políticas,
ganham, em nossa opinião, a necessária dinâmica para se transformarem, em
definitivo, em elementos basilares de construção de um amplo sistema nacional
de participação. Dentro dele se aprofunda e se expande a cultura democrática, a
resguardo da contaminação política com os elementos perniciosos que,
tradicionalmente, sustentam a prática política brasileira e mancham, outrossim, a
democracia nacional, tais como o paternalismo, o clientelismo, a corrupção, o
nepotismo, a subjugação de interesses públicos à influenciação particular, entre
outros males.
9. ANÁLISE DAS CARACTERÍSTICAS LIGADAS ÀS
PRÁTICAS DOS CONSELHOS MUNICIPAIS: OS LIMITES
E AS POTENCIALIDADES INSTITUCIONAIS E
FUNCIONAIS E OUTROS ASPECTOS
A velocidade fantástica com que se propagou a difusão dos conselhos
municipais pelo país inteiro, sobretudo a partir dos anos 1990, tem despertado,
desde então, um curioso interesse científico pelo fenômeno, principalmente entre
os estudiosos e acadêmicos ligados tradicionalmente aos ramos de Ciência
Política, História Política, Sociologia e Administração.
A sofreguidão intelectual prejudicou, entretanto, em nossa opinião, a
sistematização dos estudos. Um levantamento cronológico dos trabalhos
produzidos põe em evidência uma sucessão de fartas produções empíricas
aliás, com pouca expressividade analítica e quase nenhum rigor
científico majoritariamente dedicadas à compreensão isolada dos conselhos
municipais, sem a preocupação de maior de situar o estudo compreensivo dentro
de um quadro analítico mais abrangente e sistematizado.
Em contrapartida, aguarda-se, com certa expectativa, uma recuperação
do material esparso, a qual torne possível, num processo de consubstanciação de
dados com origens e natureza diversas, cotejar e organizar os elementos
universais e basilares na constituição da organicidade dos conselhos, e
estabelecer uma associação de análises que permita, entre outros, fazer uma
releitura das “idiossincrasias analíticas” dos estudiosos do comportamento
conselhio isolado e reapresentá-las, num plano universalizante, sob uma nova
proposta de análises.
Em certo sentido, este trabalho inscreve-se dentro desta preocupação
com a sistematização. A proposta do presente capítulo é, muito embora com
base em escasso material existente, resgatar as análises publicadas em livro, ou
outros meios, que tiveram por base de estudo o comportamento institucional dos
conselhos municipais observados dentro do contexto político e social peculiar
das regiões metropolitanas brasileiras, condensá-las numa proposta criativa e,
por meio de uma releitura crítica dos fatos, apresentar uma nova versão analítica
dos casos estudados que amplie e melhore, consideravelmente, o nível de
conhecimento e de subjetividades já alcançado sobre o assunto.
Partindo de uma base de estudos empíricos autônomos realizados
simultaneamente nas regiões metropolitanas do Rio de Janeiro, Recife, Belo
Horizonte, São Paulo, Curitiba e de Porto Alegre, adiante designadas,
respectivamente, RMRJ, RMR, RMBH, RMSP, RMC e RMPA, pretende-se, a
seguir, apresentar uma panorâmica nacional do quadro organizativo e funcional
dos conselhos municipais e da caracterização do perfil dos respectivos
conselheiros.
9.1. Perfil dos conselheiros
Nesta seção, o perfil dos conselheiros é traçado e utilizado,
simultaneamente, como recurso analítico apropriado a uma perfeita
compreensão dos conselhos municipais, como espaços de negociação e de
interlocução da sociedade civil com o governo na disputa pelos projetos sociais,
a partir de um conjunto de aquisições cognitivas sobre as especificidades das
partes constituintes conselheiros representantes do poder público e
conselheiros representantes da sociedade civil. Entre outras sinalizações, permite
pôr em relevo as diferenças sociais, políticas, culturais, informacionais presentes
nesses dois segmentos passíveis de pôr em risco o princípio de inclusão, da
paridade e da representatividade. Aliás, o conhecimento perfeito da cultura
cívica dos conselheiros é mesmo necessário na determinação e na compreensão
dos atributos necessários à dinâmica de negociação, à afirmação de identidades e
à defesa de interesses na esfera pública.
Nesse sentido, a análise debruça-se, essencialmente, sobre as seguintes
componentes do perfil dos conselheiros: perfil sociodemográfico, cultura cívica
e associativa e representatividade social.
Do perfil sociodemográfico
A estrutura social dos conselhos municipais brasileiros torna patente a
natureza elitista da sua componente humana.
Os estudos realizados por Santos Júnior et al. (2004), com abrangência
nacional, concluem que, globalmente considerada, a escolarização dos
conselheiros municipais é boa. Segundo a análise feita pelos mencionados
autores, não analfabetos” entre os conselheiros e a mais baixa escolaridade
assinalada até grau completo é de “apenas 11%” (dados da Tabela 1B
confrontados com os das Tabelas 1A e 1C).
TABELA 1A –
Escolaridade dos conselheiros
Nível de escolaridade dos conselheiros por segmento e região
representados
Poder público Sociedade civil
Regiões
Metropolitanas
Alto Médio Baixo Alto Médio Baixo
RMR 79,3% 18,3% 2,4% 42,1% 33,2% 24,7%
RMBH 57,2%* 30,9%* 11,9%*
RMSP 89,4% 6,7% 3,9% 67,0% 23,9% 9,1%
RMC 63,5% 32,0% 4,5% 30,4% 43,6% 26,0%
Fonte: condensado de Lima & Bitoun (2004); Abranches & Azevedo (2004);
Tótora & Chaia (2004); Machado et al (2004)
Nota: Escolaridade: Baixa até 1° grau completo;
Média grau completo e incompleto; Alta grau
completo e incompleto.
*Os dados da RMBH são de ordem geral, não se referindo, portanto,
individualmente, nem ao poder público, nem à sociedade civil.
Cruzando-se os dados que compõem o perfil escolar e o dos rendimentos
econômicos dos conselheiros municipais e confrontando-os com os índices da
mesma natureza que caracterizam a população em geral, esses mesmos autores
concluem que os conselhos de gestão de políticas públicas são, por natureza,
órgãos de “elites” jungidos à supremacia do poder público.
Embora os níveis educacionais sejam, de fato, diferenciados entre os
conselheiros da sociedade civil e os do segmento governamental, o estudo
aponta que mais da metade dos conselheiros (62%) têm alta escolaridade, dos
quais 51% representam o nível dos conselheiros da sociedade civil, e 81%, o dos
do poder público (Tabela 1B) , o quadro geral é estável e reflete a tendência
para a elitização acadêmica dos conselhos, destaca a supremacia intelectual do
segmento governamental que legitima e reforça a sua posição de dominância, ao
mesmo tempo em que torna evidente que as diferenças expressivas entre a
escolaridade dos conselheiros apenas retrata as desigualdades regionais
existentes no país” (Santos Júnior et al., 2004, p.29-30).
TABELA 1B – Nível de escolaridade dos conselheiros,
por segmentos de representação e regiões
metropolitanas ( dados globais ) Brasil,
1999/2001
Representação
Nível
Poder
Público
Sociedade
Civil
Total
Alto 81% 51% 62%
Médio 17% 33% 27%
Baixo 2% 16% 11%
Fonte: adaptado de Santos Júnior et al ( 2004)
Nota: Escolaridade: Baixa até 1° grau completo;
Média grau completo e incompleto; Alta grau
completo e incompleto.
Os conselheiros das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São
Paulo são os que apresentam a mais alta escolaridade (61% e 66%,
respectivamente) em relação aos demais (Tabela 1A e Tabela 1C).
Na opinião dos mencionados estudiosos, a tendência verificada na
composição de um quadro conselhio elitista descreve, com clareza, a situação de
“extrema carência e desigualdade que marcam a nossa estrutura social” e explica
o fenômeno social de serem sempre os segmentos mais destacados na sociedade
os prestigiados com cargos públicos e outras distinções sociais.
Existe, aliás, uma forte propensão humana pela aceitação de
imutabilidade de certos fenômenos sociais que, à semelhança dos fatos naturais,
com os quais os confundimos, desejamos a sua reprodução perpétua, na base da
crença infundada de que nos “submundos sociais” é mais “(...) racional (...)
escolher como representantes pessoas capazes de ‘falar a língua das elites’
como forma de buscar maximizar os interesses populares...(Santos Júnior et
al., 2004, p.28).
Esta ilusão social parece ter induzido o erro analítico de Santos Júnior et
al.(2004) que aceitam uma formação conselhia baseada numa participação
“tutelar elitista” e que chegam, mesmo, a identificar nos conselhos municipais
como estratégia de fundo para se ocupar “o deserto cívico” criado pelo
desinteresse das massas na participação social por falta de capacidade para
reconhecerem as oportunidades ofertadas.
Discordamos, todavia, da opinião desses estudiosos quanto à presença
esmagadora de conselheiros com “alguns estudos” nos conselhos municipais,
com propensão para constituírem uma “elite” necessária. Criticamos-lhes, pois, a
posição defendida de que a elitização é o recurso necessário insinua-se que é
único para colmatar as insuficiências participativas dos segmentos excluídos,
cuja capacidade de argumentação e de intervenção social negam. Sobretudo
quando a colocam de modo muito superficial e com o sentido capcioso de dar
TABELA1C –
Conselhos da sociedade organizada por escolaridade,
segundo as regiões metropolitanas Brasil,
1999/ 2001
Escolaridade dos conselheiros Região
Metropolitana
Baixa
escolaridade
Média
escolaridade
Alta
escolaridade
Rio de Janeiro 12% 27% 61%
São Paulo 10% 24% 66%
Belo Horizonte 22% 35% 43%
Recife 25% 33% 42%
Belém 12% 57% 31%
Total 11% 27% 62%
Fonte: Santos Júnior et al (2004)
Nota: Escolaridade: Baixa até 1° grau completo;
Média grau completo e incompleto; Alta grau
completo e incompleto
.
sustentabilidade à suposição de que a própria sociedade civil não conhece ou não
consegue corretamente agendar os seus próprios males, senão com o auxílio
valioso dos seus elementos mais esclarecidos.
A nossa crítica à posição defendida por Santos Júnior et al. resume-se,
pois, a dois aspectos: primeiro: embora entendamos perfeitamente a pertinência
da presença de elementos muito escolarizados em estruturas plurais de debate
político e social, pelas dificuldades na formação de opinião que, normalmente,
apresentam, a nosso ver, a não ser com esse propósito de contribuir para o
alargamento das bases de idéias para a tomada de decisões consentâneas, a
presença esmagadora de uma “elite” razoavelmente escolarizada e com altos
rendimentos econômicos não significa, necessariamente, que a função desta
facção privilegiada da sociedade fosse substitutiva do papel que os segmentos de
excluídos naturalmente prejudicados pela iliteracia do meio deveriam exercer
dentro dos conselhos. Segundo, a superioridade intelectual não atribui ao seu
detentor todas as faculdades e habilidades necessárias à compreensão anímica.
Uma interpretação dos sentimentos coletivos, principalmente de certos
segmentos pouco dados à exteriorização das suas idiossincrasias, na base
exclusiva da lógica “aritmética” das ciências, pode incorrer no erro de
percepção, torcer as opiniões genuínas e truncar as agendas reivindicatórias dos
excluídos.
Desse modo, conclui-se que a qualidade das representações democráticas
nas arenas públicas não decorre necessariamente das qualificações acadêmicas e
de outros atributos que conferem distinções a certas classes sociais, nem a
dominação renovada dessas “elites” privilegiadas é necessária e tampouco útil
para assegurar uma sólida representatividade nos conselhos municipais.
Entende-se, portanto, que a renovação da presença elitista nos conselhos,
no sentido comentado, não se em virtude da sua superioridade de ação, senão
pela atração natural de elementos imbuídos de ambições políticas e de destaque
social, que hipotecam a sua consciência ao poder governamental, legitimada pela
necessidade de reprodução do sistema de dominação por meio do poder público.
os setores menos qualificados não se sentem atraídos a participar de um
sistema no qual, seguramente, seriam mantidos em posições subalternas, em
prejuízo de si próprios e do qual não reconhecem qualquer legitimidade
representativa, quando, numa situação de isonomia, poderiam contribuir com a
autenticidade dos seus atos e proposição das suas próprias agendas, para a
melhoria e aprofundamento da democraticidade das arenas públicas e dos
conselhos municipais de gestão de políticas públicas, em particular.
Estudos isolados também confirmam a tendência verificada nas análises
de Santos Júnior et al. de uma provável elitização acadêmica dos conselhos
municipais. Igualmente concluem que os conselheiros usufruem, em relação à
população em geral, de elevados rendimentos (Tabelas 2A e 2B).
Os proventos, para a maioria, se situam acima de valores
correspondentes a 5 ou 10 salários mínimos. Os estudos apontam que, em
TABELA 2 A – Rendimentos dos conselheiros (dados gerais), em 2002
Perfil de renda dos conselheiros
Conselheiros X Regiões Metropolitanas Segmentos sociais
representados
Sal.
Mín
Conselheiros
X População
São
Paulo
Rio de
Janeiro
B H Recife Belém Sociedade
civil
Poder
público
> 5 65% 86% 66% 58% 50% 39%
>10 38% 36,9%*
5 35% 21,6%* 46% 19%
Fonte: elaborado a partir de dados fornecidos por Santos Júnior et al., (2004)
* dados de análise de um estudo de pesquisa individual sobre a renda dos conselheiros
da RMSP realizado por Tótora & Chaia (2004). Os restantes dados da tabela são de
cômputo geral.
relação à população, 65% dos conselheiros auferem acima de 5 salários
mínimos, enquanto 38% se situam acima dos 10. Na faixa superior a 10 salários
mínimos sobressaem os conselheiros representantes do poder público,
confirmando a correlação alta escolaridade/elevados salários
38
e definindo a
natureza da dominação segmentária nos conselhos que, além de ter uma base
acadêmica, é também econômica ( Santos Júnior et al., 2004; Tótora & Chaia,
2004; Lima & Bitoun 2004 ; Machado et al., 2004) .
Segundo Lima & Bitoun (2004, p.113), a alta escolaridade predomina
entre os representantes governamentais em cumprimento de uma fatalidade
histórica que se legitima, muito naturalmente, nas práticas institucionais
tradicionais, da relação do Estado brasileiro com a população”, cuja
responsabilidade de sustentação esteve sempre delegada nos profissionais de
grau de instrução mais elevada”.
Os autores não informam, no entanto, se o estudo de pesquisa detectou
alguns sinais históricos de resistência ao fenômeno de reprodução do domínio
38
Vide as Tabelas 1B; 1C; 2A e 2B
TABELA 2 B –Estrutura de rendimentos dos conselheiros por gênero e região
metropolitana, em 2002
Estrutura de rendimentos
RMR RMSP RMC
Salário
mínimo
H % M % SC % PP % SC % PP % H % M % SC % PP%
Até 2 22,4 32,5 34,4 8,5 14,1 2,6 15 5
25 22,4 15,6 13,4 4 70,7 28,8 25
510 14,7 19,4 31,7 17,3 22 25 41,2
>10 40,6 32,5 24,2 58,5 38,8 76 67 24 28,8
Fonte: condensado de Tótora & Chaia, (2004); Lima & Bitoun, (2004) e Machado et al.,
(2004)
Legenda: H = homem
M = mulher
SC = sociedade civil
PP = poder público
relacional “profissionais com instrução mais elevada/segmentos populares”, cuja
legitimidade, aliás, aceitam sem contestação, por ser “prática tradicional” nas
instituições brasileiras.
Contestamos, porém, tal “legitimidade” pelo simples fato de que não há
que repetir-se, com o cortejo de seus malefícios, impávida e serena, a história
dos povos, seja de que domínio for.
A luta da sociedade civil brasileira teve sempre em mira o empowerment
dos setores sociais mais fragilizados. O processo contínuo da luta travada
fornece à sociedade de excluídos os elementos necessários a uma composição de
“forças” sociais que podem ser desencadeadas para reverter o quadro de
tendências históricas, que caracteriza a rede relacional nas instituições brasileiras
como um todo, e nas de gestão de políticas públicas, em particular. O teatro das
ações transformacionais deve, no entanto, ocorrer dentro de um espaço público
não estatal ampliado, em que os conselhos municipais desempenham um papel
relevante de equilíbrio democrático e de formação de cidadania.
Abranches & Azevedo (2004, p.183), por seu lado, não contestam nem
põem em causa a qualidade da “estrutura de escolaridade” elevada que
caracteriza os conselhos municipais que, segundo eles, mostra um perfil de
conselheiros potencialmente mais preparados para as suas atividadesporque
os longos anos de estudo “acima da média brasileira” os prepararam
inevitavelmente para uma atuação mais ‘madura’ dentro dos conselhos”, pelo
elevado nível e qualidade de “informações” que proporcionam. Não
conseguiram, porém, demonstrar a natureza e a qualidade desta “maturidade”
atribuída pela formação acadêmica.
Entendemos, todavia, o papel básico da educação formal na preparação
de homens para desempenhar certas funções técnicas, sobretudo em nível de
assessoria. Mas, naturalmente, não compreendemos a atribuição de
exclusividade desse meio de formação no preparo de personalidades capacitadas
para atuarem de modo mais “maduro” que outros segmentos com nível de
educação inferior “dentro dos conselhos”, quando estes órgãos paritários
exercem, além de um papel de assessoria, funções decisórias na gestão de
políticas públicas, para o desempenho das quais se exige mais a “maturidade”
reflexiva “provada” nas agruras da “escola da vida” que no remanso da
formação escolástica. Não se pode negar, portanto, que, em assuntos que lhes
dizem respeito, porque os conhecem bem, os setores excluídos da sociedade,
naturalmente com pouca ou nenhuma instrução literária, são capazes de
apresentar sempre as melhores soluções.
Em estudos desenvolvidos na RMSP, Tótora & Chaia (2004, p.208)
chegam também às mesmas conclusões das anteriores pesquisas comentadas.
Verificam que a maioria dos conselheiros entrevistados apresenta alta
escolaridade”, cerca de 74,7%, sendo a percentagem maior observada no
segmento de representantes do governo (89,4%) que no dos representantes da
TABELA 3 – Situação ocupacional dos conselheiros por Região
Metropolitana e segmentos de representação,
em 2002.
Regiões Metropolitanas Brasileiras
RMC RMSP RMR
Segmentos
representados
Segmentos
representados
Segmentos
representados
Situação
ocupacional
GLB. SC PP SC PP
Empregados 90% 72,5% 96% 77,4% 97,6%
Desempregados 2,1% 9,8% 1,2%
Aposentados 5,0% 16,0% 4,0% 9,4% 1,2%
NTMPT 2,9%
NTNPT 3,4%
Fonte: adaptado e condensado a partir dos trabalhos de Machado et al.,
(2004); Tótora & Chaia (2004) e Lima & Bitoun ( 2004).
Legenda: SC = sociedade civil
PP = poder público
GLB. = global ( soma da SC com o PP)
NTMPT = não trabalha, mas procura trabalho
NTNPT = não trabalha e não procura trabalho
sociedade civil, que é de cerca de 67,0%. Completam a informação dizendo,
ainda, que “os representantes do governo” se situam em cerca de 80% “na faixa
salarial de mais de dez salários mínimos” e que 96% dessa categoria
representativa estão empregados.
Resultados de pesquisas no mesmo sentido, levadas a cabo em Curitiba,
PR, por Machado et al.(2004, p.230-232), não se afastam dos encontrados por
Tótora & Chaia e restantes pesquisadores. Chamam a atenção, como os demais,
para a formação de um grupo representante de uma elite social dentro dos
conselhos municipais, com base no poderio acadêmico e econômico,
majoritariamente representado pelo segmento governamental “70% dos
conselheiros municipais representantes do poder público têm rendimentos
superiores a cinco salários mínimos” e “46,9% dos conselheiros têm alta
escolaridade”, dos quais “63,5% representam o poder público e 30,4%, a
sociedade civil” que pode:
comprometer o sentido de paridade, aspecto preponderante para a
instituição democrática dos conselhos gestores
e exigir uma profunda
reavaliação do entendimento dos conselhos como espaços de
redefinição da relação entre sociedade civil e Estado, à medida que
essse espaço é ocupado massivamente por membros vinculados ao poder
público”.
Nesse quadro adverso, obviamente, se uma intensificação rápida da
“vulnerabilidade” e da “fragilidade” da sociedade civil que, “não agindo de
modo organizado, será apenas coadjuvante no processo participativo”.
Entretanto, as pesquisadoras que perceberam uma forma de
descaracterização dos conselhos na ação dominante da “elite social” que, aliás,
se forma naturalmente dentro dos conselhos municipais, também apontam a
solução que o caso requer. Depositam no governo a responsabilidade de repensar
a sua própria postura “com relação aos conselhos” e de considerar fortemente a
possibilidade de “uma nova conformação do espaço público”.
A nosso ver, o poder público deve, sem rebuços, garantir a autonomia
dos conselhos em relação ao governo, de modo que aqueles órgãos se fortaleçam
na prática autônoma de tomada de decisões mais importantes sobre políticas
públicas que, no entanto, ainda, o, com conivência governamental, “tomadas
em instâncias” fora dos conselhos, desatrelando-se, definitivamente, da condição
de “apêndice [do governo e] de sua forma de governar” sob uma capa ilusória de
democracia.
Na seção 7.4, do Capítulo 7, comentou-se extensamente a questão da
autonomia dos conselhos municipais e, considerando descabido voltar a fazê-lo
aqui, sugere-se ao leitor a releitura desse trecho antes de prosseguir com a leitura
deste trabalho.
Da cultura cívica e associativa dos conselheiros municipais
Os conselheiros municipais, em tese, adquirem a sua cultura cívica e
associativa consoante o grau de aprofundamento do seu envolvimento pessoal
com as práticas sociais e político-partidárias e interesse demonstrado em superar
as possíveis deficiências formativas por meio de ações formais de educação ou
por intermédio de atos voluntários de instrução por meio de leituras, conversas,
debates, mídia, etc.
Da atividade partidária lhes advém o traquejo político necessário para
debater as questões em pauta e legitimidade para representar os interesses de
certas e determinadas sensibilidades políticas, e dos contatos freqüentes com as
organizações de massas e sociais, os conhecimentos sobre a realidade social que
levam ao debate nas arenas públicas. De resto, os conselheiros sempre procuram
estar sintonizados com as novidades da época ( ser homem do seu tempo), pelo
que dedicam várias horas ao dia nesse sentido ( Tabela 8).
Santos Júnior et al. (2004) verificam existir sempre, em todos os
representantes da sociedade”, presentes nos conselhos municipais, algum tipo
de vínculo associativo, de filiação ou de associação a uma organização social
e concluem, outrossim, que não apenas mantêm o vínculo” como têm
participação efetiva em atividades sociopolíticas(Tabelas 4 e 6). Todavia se
reconhece que o nível de engajamento sócio-político dos conselheiros não é
igualmente satisfatório em todas as regiões metropolitanas brasileiras.
TABELA 4 – Engajamento sócio-político e capacitação técnico-política dos
conselheiros Brasil, 1999/2001
Grau de engajamento
sociopolítico
Grau de participação em
atividades de capacitação
técnica e política
Região
Metropolitana
Conselheiros
da sociedade
civil
Conselheiros
governamentais
Conselheiros
da sociedade
civil
Conselheiros
governamentais
Filiação
partidária dos
conselheiros
Rio de Janeiro 56% 68% 73% 67% 44%
São Paulo 98% 90% 60% 59% 40%
Belo Horizonte 47% 52% 63% 61% 52%
Recife 42% 40% 75% 76% 46%
Belém 52% 67% 77% 92% 61%
Total 56% 64% 68% 71% 47%
Fonte: adaptado de Santos Júnior et al., (2004)
Pesquisas levadas a cabo por esses citados investigadores sociais na
maior parte das regiões metropolitanas brasileiras apontam para o fato de os
conselheiros municipais das regiões de São Paulo, Rio de Janeiro e Belém
apresentarem, proporcionalmente, maior engajamento sócio-político acima de
52% do que os conselheiros das regiões metropolitanas de Belo Horizonte e
Recife (Tabela 4). Os pesquisadores, no entanto, não apresentam nenhuma
explicação para tal discrepância que, na opinião do autor deste trabalho, pode
residir no deficiente preparo de cidadãos para assumirem devidamente a
consciência do dever cívico perante situação de constantes crises sociais que
jamais puderam ser superadas por vias de debates blicos alargados, senão por
ação diligente do Estado, ou no retraimento voluntário e precavido das massas
que se sentem, fora das manifestações cívicas de grande visibilidade, mais
protegidas contra as possíveis retaliações das administrações locais, que, aliás,
conseguem o mesmo efeito dissuasivo, distribuindo dinheiro público às
“associações”, sem lei prévia permissiva, na ânsia incontida de controlar os
“movimentos sociais” e manter a população dócil e agradecida.
TABELA 5 – Opinião dos conselheiros da sociedade
sobre o fornecimento regular de
informações pela secretarias municipais,
segundo as regiões metropolitanas
Brasil, 1999/2001
Região
Metropolitana
Há fornecimento regular
de informações
Rio de Janeiro 77%
São Paulo 75%
Belo Horizonte 79%
Recife 62%
Belém 87%
Total 69%
Fonte: Santos Júnior et al., (2004)
Aliás, Souza (2002, apud Machado et al. 2004, p.237) reconhece a força
alienadora na política que está na pobreza e falta de instrução dos segmentos
pobres e populares, que se servem da sua condição de penúria material para
impor certo sentido à sua participação social, quase sempre decidida na base de
interesses materiais. Há, portanto, muita verdade nas palavras que Machado et
al. (2004, p.237) escrevem:
“(...) os segmentos pobres e populares, que excluídos da educação
formal por diversos fatores se alienam politicamente por estarem
supostamente envolvidos pela necessidade imediata e inadiável de sua
própria sobrevivência, participando apenas quando há em foco questões
materiais que lhes possam beneficiar isoladamente”.
Segundo Lima & Bitoun (2004, p.123-124), os dados da sua pesquisa
feita na RMRreafirmam a existência de uma tradição associativa e uma
cultura de participação cívica nessa região, cuja realidade não assume
características amplamente difundidas, mas concentrada em reduzidos
segmentos sociais”.
Há, contudo, sem sombra de dúvidas, a nosso ver, administrações locais
que procuram, em virtude da natureza progressista da sua base de
sustentabilidade política, estimular manifestações cívicas entre as forças vivas da
sociedade que assim ganham uma consciência cívica e patriótica superior que
fazem do seu espaço territorial o baluarte histórico da participação cidadã e da
democracia, como parece ser o caso de grandes centros, como São Paulo, Rio de
Janeiro e Belém, destacados no estudo.
TABELA 6 – Sindicalização ou associação de conselheiros a órgão de
classe, na RMSP, no período 2000/2001
Governo Associações
civis
Sindicais ou
Associações
Profissionais
Entidades
Patronais
Total
N % N % N % N % N %
Sim 43 57,4 40 61,2 24 85,7 9 81,8 116 53
Não 32 42,6 63 38,8 4 14,3 2 18,2 101 47
Total 75 100 103 100 28 100 11 100 217 100
Fonte: Tótora & Chaia (2004)
Relativamente à participação partidária, a “performance” é satisfatória,
embora a filiação a partidos políticos abranja escassamente os 3% da população
adulta metropolitana (IBGE, 1997, apud Santos Júnior et al., 2004, p.35): 47%
dos conselheiros têm filiação partidária, estando praticamente equilibrada, em
termos percentuais, a presença da sociedade organizada e do setor
governamental, sendo 48% o índice de filiação entre os primeiros e 53% entre os
segundos (Tabela 4) (Santos Júnior et al., 2004, p.31).
A superioridade numérica dos representantes governamentais no seio dos
conselhos municipais com filiação a partidos políticos parece decorrer, no nosso
ponto de vista, de uma condição normal de ocupação de certos cargos de
confiança política na função pública que são confiados a elementos fiéis ao
partido, com militância exemplar em todos os níveis e altamente qualificados do
ponto de vista político, técnico e informacional. São os mesmos que, com base
na mesma confiança política, são recrutados para representar o governo em
órgãos de representação plural de interesse público.
A confiança política é ainda o móbil responsável por um fato curioso
também detectado pelos estudos: o desdobramento da participação de um único
conselheiro em mais de um conselho municipal ou estadual. Abranches &
Azevedo (2004, p.184) indicam que essa prática de duplicidade abrange 43,6%
dos conselheiros municipais ou estaduais.
Esses pesquisadores revelam, entretanto, certa preocupação com tal
prática que, de resto, é alimentada por interesses políticos inconfessáveis do
poder público e que, segundo os estudiosos citados, constitui um obstáculo à
participação de outras entidades ou de pessoas diferentes da mesma entidade,
que poderiam ampliar a presença de novos interesses e idéias sobre as políticas
públicas”.
Olhando o fenômeno sob um ângulo mais positivo, pode-se entender
tratar-se de uma suposta estratégia colocada em prática para “garantir uma
continuidade dos trabalhos dos conselhospela redução de “rotatividade” entre
os seus membros ou, pura e simplesmente, para melhorar a interlocução
interconselhos” pela possibilidade que tal estratégia abre de um conselheiro
poder participar das discussões em mais de um conselho (Abranches &
Azevedo, 2004, p.184).
Entretanto, outros estudos de pesquisa, se bem que com base territorial
de abrangência menor que o desenvolvido por Santos Júnior et al., de âmbito
nacional, confirmam a tendência geral de um elevado engajamento
sócio-político e de uma militância partidária ativa entre os conselheiros
municipais. Relativamente ao engajamento sócio-político dos conselheiros,
apontam que o índice, por exemplo, se situa no intervalo de 57,4% a 85,7%,
com uma média geral de 53%, para a RMSP, levando em conta todas as
possibilidades de combinação de participação social possível na sociedade
organizada (Tabela 6). Confrontando a mesma região com a RMR, o nível de
participação ativa, na mesma categoria, queda-se nos 32,7%, em média, para a
primeira e nos 43,2% para a segunda (Tabela 7) (Lima & Bitoun, 2004, p.119).
TABELA 7 – Grau de participação – freqüência com que o conselheiro
participou de reuniões do sindicato ou órgão de classe, na RMSP,
no período 2000/2001
Governo
Associações
civis
Sindicais ou
Associações
Profissionais
Entidades
Patronais
Total
N % N % N % N % N %
Não frequentou –
não participa
ativamente
21
48,8
17
42,5
2
8,4
3
33,3
43
37,1
Uma a três vezes –
participação pouco
ativa
13
30,2
17
42,5
4
16,6
1
11,1
35
30,2
Quatro vezes ou
mais – participação
ativa
9
21
6
15
18
75
5
55,6
38
32,7
Total 43 100 40 100 24 100 9 100 116 100
Fonte: Tótora & Chaia (2004)
Não , de fato, discrepâncias assinaláveis nos resultados encontrados
pelas pesquisas individuais, quando confrontados entre si. Os estudos são
concordes em assinalar os mesmos indicadores presentes na formação da cultura
cívica dos conselheiros, independentemente de estes serem representantes da
sociedade civil, ou do governo, isto é, do grau de instrução e do nível de
informação e capacidade técnica e política que, à partida, os possam diferenciar.
Concluem, pelo mesmo diapasão que, além do grau de envolvimento
sócio-político e partidário necessário, os conselheiros procuram elevar a sua
cultura cívica municiando-se de informações pertinentes que os capacitem a
melhor acompanhar os acontecimentos sociais e políticos (Tabela 8).
TABELA 8 – Fontes de informação utilizadas pelo conselheiro
para se informar sobre os acontecimentos políticos
em geral, na RMSP, no período de 2000/2001
Governo Associações
civis
Total
N % N % N %
Utilizam de jornal e de
qualquer outra fonte
71 51 119 45,3 215 53,5
Utilizam somente rádio,
TV ou conversa
68 49 144 54,7 187 46,5
Total
139 100 263 100 402 100
Fonte: Tótora & Chaia (2004)
Servem-se, neste caso, de meios, tais como jornais, televisão, rádio,
conversa entre amigos, reuniões políticas e sociais, educação formal e outras
formas de capacitação técnica e política (Santos, M. 2004; Tótora & Chaia,
2004; Santos Júnior et al., 2004; Lima & Bitoun, 2004; Abranches & Azevedo,
2004). Apenas um estudo destoa dos restantes, ao fazer o analista da pesquisa a
insinuação de que, entre os demais indicadores de desenvolvimento de uma
cultura cívica citados, o acúmulo de experiências cotidianasé de extrema
importância na formação da personalidade social e da visão de vida pública dos
conselheiros (Lima & Bitoun, 2004, p.118).
Percebe-se claramente que os pesquisadores em questão não puderam ou
não se interessaram muito em aprofundar o nível das análises da sua pesquisa
relativamente à questão da formação da cultura cívica dos conselheiros
municipais. Exploraram na nossa percepção, é claro superficialmente os
dados e, simplesmente, conduziram a análise (ou a coleta de dados?) no sentido
intencional de construir uma visão genérica, estática, “das práticas mecânicas”
utilizadas como fonte de criação da cultura. Contudo, não procuraram entender
as engrenagens sociais subjacentes a tais práticas criadoras, e criticamos-lhes
essa “falta” interpretativa, bem como a falta de profundidade investigativa na
procura de conhecimento sobre outros meios de formação da cultura cívica dos
conselheiros, mais interativos e com um enraizamento social e popular forte e
histórico.
Lima & Bitoun (2004) chegaram, como já se disse, até a situar no
“acúmulo de experiências cotidianas” a presença de elementos pertinentes que
podiam, supostamente, constituir uma base ideológica forte para o
aperfeiçoamento da cultura cívica do cidadão. Mas, infelizmente, não puderam
determinar quais eram essas experiências, como se formavam e se reproduziam
socialmente, o que seria, aliás, interessante demonstrar. Tivessem alargado o
escopo da interpretação nesse sentido, e cruzado diligentemente os dados
disponíveis, teriam, com certeza, se aproximado da descoberta de certos
fenômenos sociais que têm sustentado o comportamento cívico dos cidadãos
desde os tempos imemoriais.
Referimo-nos, no entanto, a um desses supostos fenômenos que
preferimos designar de “ajuda mútua”
39
cuja investigação sociológica mais
abalizada sugerimos desde já para tentar compreender, e situar, um dos
processos históricos mais antigos, ao que julgamos, da formação do
comportamento moral e cívico do cidadão, entretanto, hoje, esquecido das
pesquisas que se fazem nesse campo.
O fenômeno talvez tivesse passado à história como algo ligado à
superação econômica de crises sociais enquadradas num cenário de adversidades
naturais cíclicas que demandassem, para sustar os seus efeitos, pronta
mobilização da “colaboração solidária” ou, na sua vertente tradicional, como
simples instrumento popular de cunho solidário posto à disposição de atividades
braçais cujos encargos financeiros o interessado de direito não pode arcar e esse
sentido então se fixasse na consciência social das coletividades, e daí se tivesse
diluído todo o seu contorno social, moral e cívico, e até afetivo, menos visível.
39
Pensamos tratar-se de um fenômeno social presente em todas as culturas dos povos
com certo atraso econômico num passado muito recente. Julgamos até que pode estar
bem vivo entre alguns povos hodiernos. Em Cabo Verde, um arquipélago atlântico de
origem portuguesa hoje independente políticamente, de onde é originário o autor deste
trabalho, situado na costa ocidental da África, a 500km do continente, por exemplo, o
fenômeno é conhecido por juntar as mãos”. Caracterizado por um processo semelhante
ao descrito no texto, no qual, aliás, toda a argumentação apresentada se inspirou,
permitiu que a sociedade dos excluídos caboverdiana, até hoje, por meio da prática de
“juntar as mãos” resolvesse as suas “dificuldades” que podem situar-se na solução de
algum problema ligado à construção de moradias, trabalho agrícola, procura de sementes
para cultura, colheita da produção agrícola, amanho das terras para cultura,
aprovisionamento de materiais locais para construção, preparo de enxovais para o
matrimônio das filhas casadouras ou, simplesmente, a mobilização pecuniária para
custear as despesas com a emigração de um filho em busca de riquezas nos países
estrangeiros, sobretudo da Europa e nos Estados Unidos da América do Norte, etc.
Possibilitando, outrossim, que os problemas comuns sejam conhecidos por todos na
comunidade e por todos debatidos, essa prática, reiterada, permite que se desenvolva nos
cidadãos uma peculiar forma de estar na vida que os torna, em conseqüência, um bom
pater familiase um “homem bom” na sociedade merecedor da estima e respeito de
todos.
O interesse maior, todavia, está em conhecer esta parte submersa” que
envolve o fenômeno da “ajuda mútua”, a qual, segundo o autor deste trabalho,
contém em si um conjunto de símbolos e de rituais que precedem a realização
efetiva da ação visada e que, reiteradamente praticados, acabam por ser
transmitidos por várias gerações até se conformarem em definitivo numa
verdadeira cultura cívica nacional.
O fenômeno social designado de “ajuda mútua”, com o sentido definido
nesta discussão, ocorre em duas fases, a saber: (i) preliminares para a ação e (ii)
realização da ação visada. Concentremos, pois, a nossa atenção na primeira fase
“preliminares para a ação” por ser aquela que interessa mais para a nossa
discussão. Ela se resume na prática de certos atos que se aproximam de uma
verdadeira “assembléia” comunitária, em que a “necessidade” previamente
anunciada pelo interessado é totalmente “dissecada”, observada, entendida e
soluções são propostas pelo conjunto dos vizinhos que se dispuserem a consentir
o seu apoio “braçal” (quase sempre) ou material para a realização daquela
“necessidade”, ordinariamente representada por uma atividade agrícola, ou
construção de moradias populares.
Os ajudados” também se sentem na obrigação de ajudar àqueles que os
ajudaram, sem cobrar nada pelo serviço prestado, na concretização dos seus
trabalhos para os quais não tinham condições financeiras nenhuma para suportar.
A um novo anúncio público das dificuldades ou intenções de realização
de um trabalho particular na comunidade, a vizinhança prestativa volta-se a
reunir em “assembléia” comunitária e a atividade proposta é analisada, opiniões
consultadas e soluções apresentadas; depois a atividade é iniciada com toda a
segurança e certeza de sucesso. Esta operação repete-se vezes sem conta,
durante várias gerações, primeiro nas comunidades, depois em âmbito nacional,
tornando-se tal prática, ao final de várias gerações, uma forma “de ser e de estar
na vida de um povo.
Entendemos perfeitamente que esta prática social, talvez milenar azo
a que, entre os povos, se desenvolva e se transmita para a posteridade uma
cultura cívica e política secular, de raiz popular, bem presente hoje nas ações de
militância cívica por determinadas causas filantrópicas e nas manifestações
patrióticas dos cidadãos, sem estes, contudo, conhecerem, muitas vezes, a
origem dos impulsos que os levam a praticar tais ações.
Pensamos, portanto, ter descrito e compreendido um dos processos de
formação histórica da cultura cívica e política que terá, provavelmente,
inclinado, nos nossos dias, os conselheiros para atividades de cariz social,
unicamente motivados por militância cívica, sem estes, contudo, o saberem.
Outros processos haverá e é de grande interesse científico procurar conhecê-los
e, já agora, por que não aperfeiçoar o conhecimento do que se acaba de
descrever.
Da representatividade social dos conselheiros
Abordou-se aqui a cultura cívica e associativa dos conselheiros,
verdadeiro pilar social na construção de legitimidade e de capacidade de
representação social dos conselheiros municipais, cuja base aumenta no sentido
em que se amplia a participação das organizações sociais nos conselhos.
Os conselhos municipais são, na prática, espaços de diversidade e de
heterogeneidade e, por isso, se transformam num ambiente relacional voltado
para a convivência direta dos atores sociais onde se pratica uma verdadeira
democracia, ao mesmo tempo em que lançam as bases sólidas para, conforme
refere Santos, M. (2004, p.131), se constituírem numa importante esfera de
representação da sociedade”.
Os estudos realizados, no entanto, mostram que esta convivência,
geralmente, não é pacífica, em virtude, sobretudo, da diversidade de interesses
em jogo (ver a natureza diversificada dos conselhos nos dados das Tabelas 1A,
1B, 1C, 2B, 3 e 6). Mas, essa diversidade é salutar, na medida em que permite
aproximar em uma mesma arena política atores diversos, tornando imperiosa a
necessidade de uma rede de articulação, de interação germinando novas facetas
da cidadania” (Lima & Bitoun, 2004, p.113).
Este espaço se propõe a discutir a representação social nos conselhos
municipais, procurando, sobretudo, conhecer-lhe os elementos que a tipifiquem.
Nesta ordem de idéia, a análise se desenrola à volta do conhecimento da
representação social a partir de duas dimensões que a caracterizam, a saber: (i)
os constrangimentos e as possibilidades de participação na arena pública
decorrentes da nova institucionalidade dos conselhos; (ii) a capacidade e as
condições de os conselheiros representarem a sua base social.
Desde já, é preciso ter em conta que as próprias leis de criação dos
conselhos geram as influências que plasmam toda a prática da representação
social, favorecendo-a ou restringindo-a.
Por imposições legais, os conselhos se constituem como instâncias de
participação semidireta, o que faz deles espaços de participação, não da
população ou indivíduos, mas, necessariamente, das instituições sociais
interessadas, que, de resto, legitimam a própria instituição do conselheiro. De
composição paritária, o poder público, no entanto, não interfere na eleição das
instituições que é livremente realizada no fórum próprio do segmento social que
representam e a sociedade civil, autonomamente, também escolhe os seus
representantes, salvaguardando os princípios constitucionais da garantia da
representação social. A autonomia da sociedade na escolha das organizações que
farão parte dos conselhos é, outrossim, garantia sólida de transformação dos
conselhos numa verdadeira instância de participação colegiada.
Detendo-se, pois, à análise da participação social do ponto de vista da
primeira dimensão acima indicada, verifica-se que a escolha das organizações
que devem entrar na composição representativa dos conselhos se torna um
processo bastante delicado, uma vez que se depara com a possibilidade de
coabitação de organizações participantes com natureza participativa
diferenciada, muitas das quais, por exemplo, não tendo como essência a
representação de um segmento social, como é o caso dos sindicatos, movimentos
populares, ONGs e as entidades sem fins lucrativos, em geral (Santos, M. 2004).
Geralmente, essas entidades não têm caráter representativo, pois que a
sua natureza institucional atribui-lhes um conjunto bastante diversificado de
objetivos que conformam certas atividades sobre as quais os conselhos devem,
por inerência, exercer o controle social e pronunciar-se a respeito da sua fonte de
financiamento. De modo que, na decisão tomada não se incorra no risco de que
os interesses específicos dessas mesmas entidades, enfim, se sobreponham aos
interesses públicos na disputa pelos fundos públicos, dispersando-os no
financiamento de projetos sociais de âmbito particular e restrito.
Estes cuidados, no entanto, redobram de intensidade uma vez que, não
sendo os conselhos apenas espaços de representação de interesses estritamente
corporativos, devem, contudo, absorver uma diversidade de organizações sociais
que não detêm, nem pretendem deter, o monopólio da representação.
Todavia, é fundamental conseguir o equilíbrio representativo necessário,
de modo a garantir a visibilidade de organizações com pouca abrangência
representativa por meio de instituição de canais supra-institucionais de âmbito
municipal voltados para a representação de segmentos sociais específicos.
Santos, M. (2004) entende que este desiderato é possível, na medida em que, por
lei, a escolha das organizações sociais para integrar o conselho é feita por meio
de eleições em fórum próprio da sociedade civil, o que, em sua opinião,
representa uma prática que garante a representatividade delas (ver, nas Tabelas 9
e 10, como se constrói a representatividade das instituições representadas nos
conselhos e o grau dessa representatividade).
Sabe-se que o universo de escolha se restringe naturalmente pela
opacidade de certas entidades sociais que, apesar de serem interessantes do
TABELA 9 – Escolha da entidade e representante da
entidade/ instituição para participar do
conselho na RMBH, entre 2000/2001
Escolha da entidade e representante na RMBH
Freq.
%
Em conferência municipal 23 8,5
Em fórum específico do setor social 24 8,9
Em negociação entre a entidade e a
prefeitura
10 3,7
Não sabe 20 7,4
Outro 48 17,8
Pela lei de criação do conselho 87 32,3
Pelo prefeito ou secretário municipal 57 21,1
Total
269 100
Fonte: adaptado de Abranches & Azevedo, 2004
ponto de vista do objetivo traçado, são, entretanto, simplesmente ignoradas por
não terem um nome bem “sonante”, ou que, embora tenham todos os predicados
para serem notadas, o caráter demasiado combativo das suas atuações
recomenda a sua segregação.
Apesar de todos estes cuidados postos na construção seletiva da
representação conselhia, os estudos apontam que as entidades de onde são
oriundos os conselheiros são, segundo Santos, M. (2004, p.135-136),
razoavelmente representativas”, (56%); “muito representativas”, (39%); e “não
são representativas”, 5%. Estas são informações captadas da análise de dados
coletados na RMRJ. Sejam, pois, comparadas com as informações que podem
ser extraídas da leitura dos dados da Tabela 10, respeitante a um estudo do
mesmo gênero realizado na RMBH.
Essas leituras, extremamente positivas do grau de representatividade das
instituições dos conselhos, exprimem, segundo os pesquisadores, a opinião dos
conselheiros. Tal resultado deve, portanto, ser aceito, a nosso ver, sob protesto,
com cautela. Sendo, pois, certo que um determinado número de entidades sociais
fica fora da composição participativa, por mera imposição externa, proposital
ou acidentalmente, entende-se que são sempre questionáveis a qualidade e a
legitimidade da representatividade, conferidas por uma base social que não
contemple toda a sua plenitude.
Sabendo, por outro lado, que é real o desinteresse de certas entidades em
serem representadas nos conselhos, deve-se, a nosso ver, procurar conhecer o
grau de atratividade ou não-atratividade sobre os organismos sociais que os
levam a desejar ou não a ter uma participação efetiva nos conselhos; procurar,
nesse sentido, uma explicação na forma como habitualmente os conselhos
exercem as suas funções, sobretudo as de caráter deliberativo, e como se
estruturam o poder e o respectivo exercício repartidos entre os representantes
governamentais e os da sociedade civil. assim, conhecendo as deficiências
internas que caracterizam o funcionamento dos conselhos, e superando-as, pode-
se, enfim, torná-los atrativos do ponto de vista participativo e, então, pronunciar
com rigor sobre a representatividade ou não representatividade das entidades
neles representadas, pois, desse modo, terão sido criadas as condições favoráveis
e igualitárias à participação consciente e ativa de todo o universo representativo
de âmbito municipal.
Relativamente à segunda dimensão da participação social, deve-se
relembrar que a legitimidade e a capacidade de representação social dos
conselheiros dependem do grau da cultura cívica, política e associativa que tais
conselheiros, ao fim e ao cabo, conseguem capitalizar. Este componente cultural
já foi analisado na seção anterior.
A efetivação dos conselhos como espaços de representação de setores e
segmentos sociais e de participação semidireta não se dá senão na presença de
TABELA 10 – Opinião sobre a representatividade das instituições que compõem
o conselho na RMBH, no período 2000/2001
B H Contagem/
Betim
Outros
municípios
RMBH
Freq % Freq. %
Freq
% Freq. %
Não são
representativas
1
2,2
1
2,4
13
7,3
15
5,6
São
razoavelmente
representativas
27
58,7
21
50
85
47,8
133
50
São muito
representativas
18
39,1
20
47,6
74
41,6
112
42,1
Não sabe 0 0 0 0 5 2,8 5 1,8
Não respondeu 0 0 0 0 1 0,6 1 0,3
Total
46 100 42 100 178 100 266 100
Fonte: OPUR/RMBH PUC Minas 2000/2001. (Extraído de Abranches &
Azevedo, 2004).
vínculos institucionais que unem, em comunhão de idéias e fatos, conselheiros e
organizações que representam.
O vínculo necessário é naturalmente construído a partir da existência de
um amplo espaço de consulta às bases que sinalizam as posições que os
conselheiros devem tomar nos conselhos e concretizam as eleições dos
representantes que deles farão parte (ver a Tabela 11). Consoante o alargamento
dessa base de consulta, pode-se inferir da qualidade da democracia praticada nas
instituições da sociedade civil e da importância que se atribui aos conselhos e ao
papel dos conselheiros que neles participam.
Santos M. (2004, p.145) afirma que os dados da pesquisa por ele
realizada revelam a existência de vínculos institucionais entre conselheiros e
organizações sociais, seja na eleição dos representantes, seja no envolvimento
dos associados e/ ou dirigentes nas discussões referentes aos conselhos”. Não
TABELA 11 – Indicadores de vínculos institucionais entre
os conselheiros da sociedade e as organizações
sociais – RMRJ, 1998
Vínculos institucionais
RMRJ Rio e
Niterói
Baixada Demais
municípios
De forma
centralizada
16% 13% 14% 21% Processo de
escolha do
conselheiro por
sua instituição
De forma
coletiva
84% 87% 86% 79%
Utilização
canais
86% 90% 92% 78% Conselheiros que
utilizam canais de
discussão com
associados ou
segmentos sociais
Não utiliza
canais
14% 10% 8% 22%
Não
identifica
conflitos
46% 36% 46% 53% Grau de
conflitualidade na
opinião dos
conselheiros
Identifica
conflitos
54% 64% 54% 47%
Fonte: Observatório de Políticas Urbanas e Gestão Municipal/
FASE/IPPUR – UFRJ – 1998. (Extraído de Santos, 2004)
esclarece, contudo, quanto à qualidade do vínculo institucional estabelecido e à
natureza e ao ritmo das reações que imprimem a dinâmica de funcionamento de
cada organização social participante. Este conhecimento reputamo-lo de grande
interesse científico, e o não tê-lo procurado é falta de que “censuramos” o
pesquisador, tanto mais que a revelação de um elevado nível de vinculação
verificado, exige que se tenha um perfeito conhecimento da exata extensão dos
seus efeitos interorganizacionais e, melhor ainda, que se conheçam as
motivações, os sentidos e as práticas que estiveram na base da construção de tal
vinculação e entender-lhe, enfim, os contornos menos visíveis do processo
formativo.
Consultando os dados da Tabela 11, observa-se que faz sentido a posição
inconformista em relação à limitação do estudo focada, pois, a “exorbitância” do
resultado é confirmada pelos dados da pesquisa comentada, feita na RMRJ,
segundo os quais verificou-se que 84% dos conselheiros da sociedade civil
foram escolhidos de forma coletiva, seja em reunião da direção (30%), ou em
espaços ampliados e abertos a todos os associados, como ‘assembléia da
própria instituição’ (30%), ou de ‘fórum do setor social de que sua organização
participa’ (24%)” (Santos, M. 2004, p.146).
Apesar das reais dificuldades estruturais em se manter um eficiente
funcionamento dos conselhos municipais, como órgãos de consensualização de
posições naturalmente divergentes, que requerem constantes ões de equilíbrio,
os conselheiros, de forma geral, têm conseguido, em face de inevitáveis
malabarismos políticos e negociais complicados, capitalizar importantes ganhos
experienciais nos vários domínios da sua ação.
De tudo conclui-se que: eles, afinal, participam, efetivamente, de canais
de discussão para prestar contas da sua atuação e definir as posições a serem
encaminhadas para os conselhos somente 14% dos conselheiros não
participam desses canais, segundo os dados da pesquisa citada; garantem sempre
o caráter público da sua atuação como representantes institucionais de um
segmento social; adquirem, afinal, a consciência de que nem sempre os
conselhos são verdadeiros espaços de representação de interesses sociais;
reconhecem a dificuldade de diálogo entre conselheiros governamentais e os da
sociedade civil e, sobretudo, que o fato de expressarem um forte sentimento de
vínculo associativo a um conjunto de instituições não implica, necessariamente,
que reconheçam os diversos interesses sociais em disputa em torno das políticas
públicas (Santos, M. 2004).
A prática que está subjacente ao teor da constatação feita pelos
conselheiros, expressa no último reconhecimento mencionado, que reflete uma
posição paradoxal do conselheiro em relação aos interesses da sua base de
representação, enfim esclarece bastante sobre o porquê da crise de
representatividade que caracteriza fortemente a relação intersetorial no campo da
gestão democrática das políticas públicas e da democracia em geral. O próprio
processo de escolha de entidades para integrarem os conselhos está, a nosso ver,
inquinado desde o início por falta de critérios claros na sua condução, o que
justifica e, a certo ponto, determina a primazia do poder público em tal
processo (Tabelas 9 e 11). Abranches & Azevedo (2004, p.169), todavia,
reconhecem que isto significa que não existe um processo consolidado para a
constituição e organização dos conselhos, considerando que são poucos os
espaços criados para que o poder público e a sociedade possam escolher, em
conjunto, a composição dos conselhos municipais”. Pergunta-se, pois, se o que
não existe não seria, de fato, a vontade política para um entendimento cabal das
partes sobre a questão que, eventualmente, as divide quanto a essa matéria, ou a
capacidade negocial para reduzir as diferenças.
Há, efetivamente, nesse procedimento, configurados, em nossa
opinião, os indícios de um comportamento que viria a facultar os elementos
necessários à deflagração de uma crise, hoje crônica, de representatividade
democrática, já assinalada por diversas fontes e nas mais díspares situações
criadas pela democracia liberal-representativa. Além disso, na seqüência de
inúmeras discussões que se têm levantado à volta de uma presumível
fragilização da representatividade sócio-democrática, por diversas razões, ao
longo deste trabalho, tivemos que pronunciar-nos vigorosamente sobre ela, pelo
que nos abstemos de voltar a fazê-lo aqui.
Convidamos, isso sim, o leitor interessado, a regressar à seção 4.6 do
capítulo 4 e às seções 7.3 e 7.4 do capítulo 7 deste trabalho e voltar a ler o que
nelas escrevemos sobre representatividade e participação, operação mental que,
aliás, reputamos de todo necessária para se poder fazer o mais completo juízo
sobre a nossa opinião acerca da matéria enunciada em epígrafe nesta seção.
9.2. Condições e impactos de funcionamento dos conselhos municipais
Sinais de existência de certas tendências para disputa de posições dentro dos
conselhos municipais dão, logo à nascença destes órgãos paritários, a certeza de
que eles são, antes de tudo, espaços de gestão de conflitos e de interesses.
Um cenário diferente, aliás, seria bem difícil de construir-se a partir da
coabitação do poder público com a sociedade civil, geralmente associado a
interesses e visões ideológicas oponentes.
O jogo político que ambos desenvolvem dentro dos conselhos atrai a
manifestação das simpatias políticas que põem, de imediato, em evidência as
divergências político-partidárias e a identidade dos grupos de interesse,
determinando, assim, o formato da hierarquia e da estrutura do poder conselhio.
A atuação centrada na busca de convergência de interesses acaba,
entretanto, por definir as posições estratégicas que cada sensibilidade política
deve assumir. Disso resulta o posicionamento de um conjunto de ilhas de
interesse bem definido dentro dos conselhos municipais, onde a presença e a
autoridade do segmento influenciado pelo poder governamental mais se
sobressaem.
Uma fragmentação de interesses legitimada pela respectiva base
ideológica, e assumida pelos correspondentes grupos no interior dos conselhos,
determina, na mesma ordem sobretudo quando não se consegue uma
conciliação perfeita entre eles , uma pulverização das virtudes democráticas
dos conselhos e dos interesses comuns neles perseguidos. Tais negativismos
representam, a nosso ver, o resultado da montagem de estratégias independentes
pelos grupos de interesse em ação na tentativa de se estabelecer, para um
conjunto de interesses, a hegemonia de prevalência e de práticas para
concretizá-los. Esse ato, necessariamente, faz eclodir, no seio dos conselhos, um
clima de intolerância e de suspeições que põe em relevo a natureza problemática
dos conselhos e da ação dos respectivos conselheiros.
TABELA 12 – Opinião dos conselheiros sobre o
impacto do funcionamento dos
conselhos municipais Brasil, 2001
Representação
Nível
Poder
Público
Sociedade
Civil
Total
Média/Alta
capacidade de
deliberação
73%
71%
72%
Têm impacto na
gestão das
secretarias
85%
81%
82%
Médio/ Alto
compromisso do
governo com as
decisões
83%
64%
71%
Fonte: adaptado de Santos Júnior, 2004.
Uma pesquisa realizada por Abranches & Azevedo (2004) revela, com
efeito, que os conselheiros, expostos à ação de jogos de interesse dentro do
conselho, entendem que este espaço, caracterizado por coabitação de idéias e
interesses divergentes, é fonte reveladora de profundas insuficiências conselhias
e de certos “problemas”. Os autores referem-se a eles como “negativismos”
preocupantes dentro do conselho e que, pela profundidade de visão analítica que
revelam, serão transcritos aqui:
alguns representantes estão voltados para interesses próprios de sua
entidade’; ‘divisões político-partidárias e interesses próprios’;
‘divergências de idéias’; ‘os movimentos sociais e as associações têm
uma visão muito curta, não observam o todo’; ‘as mais diferentes
divergências, por partido político, por nível cultural e por situação
econômica’; ‘há uma contraposição entre governamentais e
não-governamentais’; ‘existem panelas da bancada do governo’;
‘existem panelas do interesse do prefeito e panelas ideológicas onde as
pessoas ficam defendendo as suas idéias’; ‘setor empresarial, setor
técnico, setor popular e setor público que se articulam em diversas
composições de acordo com o interesse em relação à matéria que está
sendo tratada’ ” (Abranches & Azevedo, 2004, p.173).
O clima de um aparente individualismo que, no interior dos conselhos,
neutraliza as forças unificadoras da ação cívica e filantrópica e desmobiliza as
energias coletivas na busca “do bem comum”, parece, todavia, não propagar os
seus tentáculos demolidores à base da democracia interna dos conselhos
municipais, cuja dinâmica continua a animar as ações práticas dos conselheiros.
Abranches & Azevedo (2004, p.173) reconhecem que, em cerca de
38,2% dos casos, qualquer membro participante pode propor a pauta de
reunião e o fazem de fato, enquanto” 30,8%” deles, na base da confiança,
delegam” a sua responsabilidade no presidente do conselho ou secretário
municipal da política pública”. Pergunta-se: em que base se assenta esta
confiança e por que denegam alguns conselheiros as responsabilidades que
recebem do conjunto de seus representados, que de boa-fé lhas confiou
convencido de que iriam desincumbir-se, responsavelmente, dos seus deveres?
Os pesquisadores não revelam a que segmentos pertencem tais
conselheiros. Acredita-se que sejam representantes do governo e daí conclui-se
que tais elementos relapsos são manobrados pelo Poder, a cujos pés depositam o
seu servilismo político enquanto para a democracia se tornam elementos inúteis.
Além de serem, assim, inutilizados para a ação prática, dentro do conselho, os
conselheiros governamentais a nosso ver são ainda, o que é pior, privados
da liberdade de pensamento.
Assim, sem oposição válida dos próprios pares, a influência do poder
público nos conselhos cresce, reproduz-se e se consolida, ao mesmo tempo em
que a autonomia conselhia é hipotecada e uma cultura política monolítica é
instalada no seu seio. Mas, bem que poderiam ser da sociedade civil; neste caso,
TABELA 13 – Opinião sobre o impacto do funcionamento dos
conselhos, segundo as regiões Metropolitanas Brasil,
1999/2001
Opinião dos conselheiros
Média/Alta capacidade
de deliberação
Tem impacto na
gestão das
secretarias
Médio/alto
compromisso do
governo
Região
metropolitana
Governo Sociedade Gov. Soc. Gov. Soc.
Rio deJaneiro 72% 64% 83% 76% 85% 57%
São Paulo 72% 76% 89% 81% 81% 63%
B. Horizonte 62% 68% 82% 83% 76% 72%
Recife 81% 73% 82% 81% 79% 59%
Belém 94% 81% 98% 88% 96% 80%
Total 73% 71% 85% 81% 83% 64%
Fonte: IPPUR/UFRJ, PUC/SP, PUC/MG, UFPA, UFPE, FASE,
1999-2001. (Extraído de Santos Júnior, 2004).
demonstram ausência de compromisso e de lealdade com a base que os elegeu, o
que pode estar ligado, ao que supomos, a certa fragilidade institucional em que
se não exige a prestação de conta por atos praticados, ou ela é feita
informalmente sem os rigorismos necessários.
Santos Júnior et al. (2004) reconhecem que, neste capítulo de prestação
de contas, a irresponsabilidade demonstrada pelo segmento governamental é
sempre maior que a dos representantes da sociedade civil. Quanto a estes, os
mesmos autores afirmam que, em 70% dos casos, utilizam os mecanismos
existentes de acompanhamento das decisões tomadas no âmbito dos conselhos
para viabilizarem o processo de prestação de contas dos atos praticados. Esses
mecanismos, regra geral, são as reuniões dos conselhos destinadas a monitorar a
ação do poder público, a publicação das decisões tomadas em diário oficial e,
não raro, o próprio secretário municipal é incumbido de prestar contas em nome
da coletividade.
Duvidamos, porém, da verdadeira intencionalidade desse ato praticado,
quase sempre a coberto, por meios de reduzida acessibilidade pública e fraca
credibilidade institucional, como é o caso das reuniões de controle do conselho
não abertas ao público e a tentativa sem probabilidade de sucesso de torná-las
públicas por meio de publicação oficial de restrita circulação e impossível
consulta por parte da classe iletrada, ou da duvidosa reputação moral da
autoridade (secretário municipal, nesse caso) que encarna o espírito coletivo,
mas, presta as contas com base em critérios particulares.
Julga-se, pois, que a intenção é, meramente, produzir um ato informal,
camuflado, sem os fundamentos sólidos para culpabilizar quem quer que fosse,
em caso de anomalias. Porém, espera-se, com força de lei suficiente para
legitimar a ação dos seus praticantes aos olhos da sociedade, onde, de resto,
segundo Tótora & Chaia (2004, p.218) dificilmente se tomam conhecimento dos
atos conselhios por nela haver, reconhecidamente, baixa repercussão das
discussões feitas nos conselhos”.
A reduzida visibilidade dos conselhos dentro da sociedade, verificada
por Tótora & Chaia (2004), pode, por seu lado, induzir os conselheiros, e neles
reforçar a tendência, a manterem uma postura “ausente” e a alhearem-se
completamente das suas responsabilidades, sobretudo quando acreditam que
qualquer esforço feito para manterem-se íntegros na sua função de servir os
outros não é devidamente compensado pelo reconhecimento da parte
beneficiada. Essa falta de correspondência alicerça-se na falta de confiança
mútua, nas expectativas goradas da sociedade quanto à centralidade dos
conselhos municipais e na fraca prestação dos próprios conselheiros que não
conseguem maximizar “as esperanças” dos setores excluídos.
Posto isto, não porque reconhecer a autenticidade da confiança que,
aparentemente, envolve o relacionamento entre as partes que constituem o
conselho, e esperar, outrossim, dos conselheiros, uma atuação irrepreensível
num meio onde predominam o jogo de interesse, a frustração, a falta de
liberdade criadora e, possivelmente, o medo, a chantagem política e a
intimidação.
Se, porém, pode-se imputar as faltas de uma ação inconseqüente por
parte dos conselheiros a ambos os segmentos que constituem os conselhos
municipais, por igual, somos, então, levados a aceitar que o existe articulação
política dentro dos conselhos e que falta de integração entre eles, o que,
possivelmente, pode se transformar em fator de estrangulamento da atuação dos
conselhos ou, nos termos postos por Abranches & Azevedo (2004, p.173),
contribuir para “um retrocesso na função e missão dos conselhos municipais”.
Estudos realizados apontam, entretanto, que os conselhos são, de forma
geral, órgãos que gozam de elevado prestígio institucional. Abranches &
Azevedo (2004, p.174) afirmam que as deliberações por eles tomadas têm tido
muita influência na gestão da Secretaria Municipal”, o que foi confirmado por
35,6% dos conselheiros contra 24,8% que afirmam que o conselho tem pouca
ou nenhuma influência (Tabela 12). Da mesma forma, confirmam que o
compromisso do poder público com as decisões tomadas pelo conselho é alto
(45,3%) confronte-se com os dados das Tabelas 12 e 13 demonstrando isso
que, afinal, as decisões dos conselhos têm sido aceitas e implementadas pela
prefeitura e pelo Legislativo municipal” (Abranches & Azevedo, 2004, p.174).
Uma simples leitura das Tabelas 12 e 13 leva à conclusão de que, ao fim
e ao cabo, o poder público (e a sociedade civil?) reconhece a importância dos
conselhos como espaços onde se expressam e se articulam opiniões sobre
políticas públicas e seu contributo para a verdadeira democratização da coisa
pública. Porém, se assim o pensamos, como tal não o aceitamos, todavia, pelo
simples fato de que não se pode fazer um juízo verdadeiro das opiniões dos
conselheiros (a avaliação dos conselhos é deles) emitidas, normalmente, em
circunstâncias altamente condicionadas.
Novamente põem-se, portanto, em dúvida a imparcialidade dos
conselheiros nas suas análises sobre o teor do relacionamento entre os conselhos
municipais e o poder público, quando eles mesmos, por conveniência,
independentemente do núcleo a que pertencem, em relação a este Poder, estão
ligados por laços de solidariedade política ou de outro tipo “negociado” que os
impede de ser realísticos nos seus pontos de vista sobre a ação governamental,
cuja “ilusão” de lisura é necessário conservar sempre viva na memória de todos,
a qualquer custo.
E, sob o impulso deste sentimento, conclui-se este trabalho com uma
pergunta que pode tocar as raias de ingenuidade das questões óbvias, mas que
encerra em si, a nosso ver, pistas importantes para se entender grandes questões
sociais do nosso tempo (pois, reflete a imagem social do quadro político dos
nossos dias) que se ofuscam no emaranhado das contradições da democracia
liberal-representativa.
Eis a pergunta: porventura, reúne o conselheiro “vendido” condições
morais suficientes para assumir posições de “herói” numa batalha em que
hipotecou suas armas ao adversário?
Na procura de uma resposta para esta inocente pergunta, pode-se, enfim,
chegar a entender perfeitamente como se tecem, dentro dos conselhos
municipais, os trabalhosos “liames” políticos e sociais que garantem, ao fim e ao
cabo, por meio de complexos jogos de interesse, o equilíbrio desses órgãos
aparentemente fragilizados na arena pública.
10. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente século pode vir a conhecer inusitados fenômenos no campo
social e político, em resposta aos efeitos colaterais dos processos globalizantes
da democracia liberal cujos perfis não haviam sido, por cálculo antecipado,
preventivamente incorporados ao pensamento político hegemônico.
O futuro da hegemonia democrática do século XXI é, ainda, incerto.
Seus alicerces, contudo, já comam a ser abalados por forças geradas na própria
contradição doutrinária. O colapso da democracia liberal-representativa pode
dar-se a qualquer momento, à semelhança do inesperado acontecimento histórico
que pôs fim à Guerra Fria e abriu-lhe as portas da hegemonia.
Ao princípio, a democracia liberal se estabelece sob o pensamento
político de mudança que exclui os ideologismos do passado e rejeita as práticas
plurais dos processos abertos. Verifica-se, todavia, que, reagindo aos efeitos
perversos de seus próprios princípios, a democracia liberal-representativa vê-se
obrigada a manter coabitação com a democracia participativa, a qual, entretanto,
tinha combatido no início da hegemonia.
Ao conferir às práticas sociais brasileiras novas dimensões, a
Constituição Federal de 1988 ressuscita a democracia participativa. O exercício
da cidadania é garantido e, para concretizá-lo, espaços públicos não estatais são
criados para maximizar as parcerias, a participação cidadã, a solidariedade social
e o bem comum.
A democracia participativa brasileira é, no entanto, reforçada com a
criação, por lei, dos Conselhos de gestão de políticas públicas que, na qualidade
de espaços de participação sociopolítica, se transformam em meios, por
excelência, de articulação entre o poder governamental e a sociedade civil.
Desde sua criação, na década de 1980, nos três níveis da administração
pública brasileira (federal, estadual e municipal), os Conselhos têm,
institucionalmente, demonstrado algumas insuficiências próprias dos órgãos
colegiados, mas, muito mais se tem evidenciado as suas reais qualidades de
espaço democrático capaz de configurar um verdadeiro sistema de rede nacional
de participação popular, com epicentro local, e seu potencial para se transformar
em verdadeiro instrumento da constituição da governança democrática dos
municípios.
Verifica-se, contudo, que os estudos empíricos que procuram
compreender a atuação dos conselhos municipais dentro de um contexto político
marcado pela coabitação forçada da democracia participativa com a democracia
liberal, em que o poder econômico e financeiro dita o sentido da ação
governamental que deve representar os interesses da elite nos conselhos, não
puderam ainda produzir interpretações analíticas realísticas e profundas da
realidade conselhia brasileira, em virtude da permanência de certa cultura
política e social negativa, de base tradicionalista, que continua, limitativamente,
a marcar todo o processo social brasileiro, desvirtuando o sentido e os
significados do comportamento social e distorcendo as análises .
Santos Júnior et al. (2004, p. 48) reconhecem, entretanto, que o contato
prolongado de atores sociais entre si e com os dirigentes e técnicos
governamentais necessariamente propicia a emergência de acordo cognitivo
sobre a realidade dos municípios e os problemas administrativos da prefeitura,
do estabelecimento de parcerias e alianças, pontuais e estratégicas”, e, nesta
base, um acúmulo de experiência por parte dos conselheiros que faz deles
verdadeiros praticantes da racionalidade comunicativa que gera os
entendimentos “necessários à formação democrática da vontade e à legitimação
do exercício do poder político”.
Pode-se, de fato, verificar a existência de “entendimentos” entre os
atores sociais que fazem parte dos conselhos. Tais entendimentos, porém, são, a
nosso ver, “negociados” com o fito de impedir que um verdadeiro entendimento,
livre, democrático, de origem espontânea, enfim se estabelecesse e perturbasse a
ordem dominante e a realização de seus interesses particulares.
O entendimento livremente estabelecido entre as partes e não imposto
parece ser a base fundamental para se alcançar a confiança e o respeito mútuos
sob cuja influência deve ser traçado o caminho comum na busca dos interesses
da gestão pública que são o “bem de todos”.
O total desprezo pelas diferenças que julgamos ter percebido no interior
dos conselhos municipais e os conselhos são espaços de articulação das
diferenças , referendado por um poder público contagiado pela influência
perniciosa de uma cultura política monolítica que, normalmente, o caracteriza,
denuncia a arrogância política do segmento de representantes conselhio que se
“elitiza” e sua estratégia para impor a própria visão dentro dos conselhos.
Julga-se, todavia, que nenhum entendimento político ou de outra
natureza qualquer jamais foi estabelecido entre as partes que constituem os
conselhos municipais para alcançar objetivos plurais, senão para favorecer os
interesses dominantes e garantir a reprodução do sistema.
Nesta ótica, os conselhos se tornam o apêndice das secretarias
municipais, mancomunados, talvez, com suas práticas ilícitas, num perfeito
acordo de “prefeituralização” dos conselhos municipais que, assim, hipotecam a
sua espontaneidade prática e se transformam em pesados organismos
burocráticos ou burocratizados.
O risco de se transformarem os conselhos municipais em estruturas
burocráticas formais, subordinadas às rotinas administrativas das secretarias
municipais, traz, a nosso ver, uma série de dificuldades aos Conselhos: primeiro,
dá-se a descaracterização do próprio órgão, primitivamente organizado para dar
respostas rápidas às demandas que lhe são feitas; depois, a lentidão burocrática
que passa a caracterizar todo o processo conselhio, desde a disponibilização da
informação, seu tratamento até a tomada da decisão final, gera, internamente,
um clima de frustração, sentimento de impotência nos conselheiros, certo mal-
estar no grupo e desmotivação generalizada e, externamente, uma imagem
negativa de entidade com deficiente organização interna, o descrédito público
dessa e de todas as entidades públicas e, o que é pior, de todo e qualquer
processo de descentralização e, por último, uma angustiante sensação de demora
nos processos, marcada por grande desfasamento entre o tempo real de
colocação das demandas e o da resposta efetiva.
Todos esses negativismos podem ter uma origem: a
“institucionalização” nos conselhos municipais da prática de incorporação de
“entendimentos” unilaterais aos processos conselhios, sob a batuta das
secretarias municipais.
Por esta e outras razões olhamos com imensa perplexidade o duvidoso
rumo que toma a prática do “entendimento” alcançado entre os conselheiros e
não com menos apreensão, os inconfessáveis interesses que tais práticas
realmente escondem sob a capa protetora com perfis de seriedade e de
respeitabilidade de uma hipotética estratégia encontrada para maximizar os
consensos na busca de objetivos de ordem geral, no processo de gestão das
políticas públicas.
Por outro lado, essa prática pode transformar-se, perigosamente, numa
“cultura de convivência” “normal” entre as diferenças, que se torna, então,
difícil desfazer-se a peia da cultura política monolítica que, naturalmente, a
sustenta.
Sem dúvida, em nossa opinião, esse modo particular de exercer o
domínio sobre um vasto conjunto discordante de idéias, opiniões e demandas
que, naturalmente, deveria ser o apanágio dos conselhos, sufocando-o, pode ser
responsabilizado, pelo menos em parte, pela dificuldade de os conselhos
municipais, efetivamente, se articularem entre si. Pois, nesse processo de
“dominação”, cada conselho é influenciado por uma “cultura de processos”
diferente que, ao fim e ao cabo, lhe imprime uma “personalidade” tamm
diferenciada da dos restantes conselhos que tiveram um processo de
influenciação, igualmente, particular. Evidentemente, conselhos com visões
diferenciadas dificilmente se entrosariam.
Posto isso, reiteramos nossa posição de defesa à autonomia dos
conselhos municipais, pois, julgamos ver na liberdade de ação os fundamentos
necessários para a criação de uma nova cultura política e projeto emancipador
dos conselheiros, e de toda a sociedade.
Falta, porém, tal autonomia. Por isso olhamos incompreensivelmente
para a facilidade e a prontidão com que os fenômemos de cooptação política dos
conselheiros acontecem, desvirtuando, sem oposição, os princípios da
democracia participativa que, por vocação, deve ser redistributiva. É com essa
visão que, todavia, a sociedade luta incessantemente os cidadãos de uma
comunidade devem entregar-se à luta pela garantia de existência do caráter
democrático dos conselhos, preferentemente, nos termos postos por Gohn (2004,
p. 88), “desde seus primórdios, logo no início de sua implantação.
Compreendemos perfeitamente as razões que estão na base das
limitações da democracia participativa e das fragilidades demonstradas no
processo de consubstanciação de um novo formato de fazer política sob a
hegemonia da democracia liberal-representativa (Lima & Bitoun, 2004).
Realçamos, porém, a importância de assunção de posições firmes e claras que
tornem possível admitir-se que é conveniente começar a pensar-se, desde logo,
em fazer a mudança completa de toda a “história” nacional de fazer política e de
conviver em democracia.
Em primeiro lugar, devem-se criar as condições necessárias à partilha e à
circulação das informações entre a sociedade civil e a esfera estatal, de sorte que
uma perfeita sintonia de oportunidades, conhecimentos e ação entre ambas se
estabeleça desde o início. Depois, torna-se necessário garantir o mesmo nível de
informação conseguido nos períodos subseqüentes à necessária renovação
política dos mandatos dos conselheiros, políticos e outras autoridades
administrativas envolvidas na gestão de políticas públicas. assim, os
conselhos atingem, a nosso ver, a necessária maturidade político-democrática
sem rupturas, na continuidade do processo.
Saliente-se, porém, um aspecto: os conselhos nasceram já sob o signo de
imperfeição e fadados à incompreensão pública. Com o passar do tempo, as
mazelas primitivas, no entanto, não se dissipam, o que, provavelmente, te
neles fixado, em nossa opinião, uma predisposição à rotinização de processos e à
“culturalização” do espírito de dependência.
Como bem se sabe, na base da criação dos conselhos está a lei. A mesma
lei que vincula a sua criação ao repasse de verbas do Estado para os municípios
e o “engodo” pecuniário atrai o cumprimento da lei.
A proliferação nacional dos conselhos atesta a adesão interesseira da
administração pública brasileira às políticas públicas nacionais, as quais,
presume-se, não se fazem, todavia, no estrito interesse público.
Num processo de investigação das origens dos conselhos municipais,
constata-se que a lei se sobrepôs à vontade da sociedade. A força da lei que
conta com a cumplicidade dos artifícios jurídicos das condicionalidades para
garantir a sua eficácia superou a pressão popular na tentativa de criar conselhos.
Este fato determinou, muito provavelmente, a inexpressiva visibilidade pública
dos conselhos municipais e a minimização dos seus feitos junto aos segmentos
populares que, aliás, ignoram, em grande escala, a existência dos conselhos
municipais e suas reais finalidades, em parte devido à veiculação restrita de
informações sobre eles no meio popular, ou a um manifesto desinteresse popular
em obtê-las.
Tótora & Chaia (2004) reconhecem a baixa implantação dos conselhos
na sociedade civil e atribuem-na aos partidos políticos e aos prefeitos, cuja ação
neutraliza a manifestação alargada da vontade da maioria e se concentra na
mobilização das forças representativas de entidades “reconhecidas”. De acordo
com as mencionadas autoras, os conselhos mero reflexo da sua origem
planejada apresentam uma grande falha estrutural que os torna inflexíveis à
abertura aos fluxos dos movimentos sociais livremente canalizados para o seu
interior e propensos à mobilização de um conjunto de representantes de
“entidades reconhecidas” que passa, seletivamente, a constituí-los. Essa
limitação deve, contudo, ser fortemente combatida e ultrapassada, pois, em
nossa opinião, os conselhos devem ser, necessariamente, um espaço
cosmopolita.
A composição seletiva dos conselhos, na qual entram, paritariamente, a
sociedade civil e o poder público, por meio dos respectivos representantes,
normalmente detentores de uma vasta cultura, põe em evidência, pelo seu caráter
paradoxal, uma situação muito delicada relativamente à capacitação dos
conselheiros.
Uma leitura atenta às análises tem-nos, pois, conduzido à descoberta de
algo inusitado: a formação dos conselheiros, necessária e recomendável, pode
transformar-se no elemento descaracterizador do papel dos conselhos como
espaço plural e democrático instituído para promover a articulação dos interesses
discordantes.
Senão, vejamos: foi demonstrado neste trabalho que os conselheiros
possuem, em geral, boa instrução. Esta característica tem-nos conferido uma
posição de destaque nos conselhos, sobretudo aos conselheiros representantes do
poder público que, mais escolarizados, ocupam, majoritariamente, o centro do
poder decisório. A conservação do poder ou sua ampliação exigem capacitação
contínua dos seus detentores.
Ora, “capacitar” confere, absolutamente, poderes aos “formados”, o que
poder levar à profissionalização dos elementos “capacitados”. Mas, a
constatação mais freqüente é a de que o processo de democratização do espaço
conselhio está altamente inquinado pela profissionalização de seus membros, e
reside o foco dos males que a formação excessiva dos conselheiros,
paradoxalmente, traz para os conselhos. Designamos tal fenômeno de paradoxo
participativo da formação, pois, Tótora & Chaia (2004) reconhecem que a
especialização e a profissionalização caminham em sentido oposto à
democratização, numa clara alusão a Bobbio (1986, apud Machado et al., 2004,
p.243) que, sobre o mesmo assunto, afirma:tecnocracia e democracia são
antitéticas: se o protagonista da sociedade industrial é o especialista, é
impossível que venha a ser o cidadão comum”.
Entende-se que fatores das mais variadas origens, com forte poder de
influenciação, limitam a ação dos conselhos, conferindo-lhes uma participação
marginal nas políticas públicas” (Tótora & Chaia, 2004, p.218). Salienta-se,
nesse caso, a presença da burocracia pública, que monopoliza as informações
pertinentes e os recursos destinados às políticas públicas, e o alto poder de
influência dos Executivos que retiram a autonomia aos conselhos.
Estudos que problematizam os limites e oportunidades da participação
nos conselhos são, entretanto, otimistas, relativamente à possibilidade de os
mesmos cumprirem cabalmente o seu papel primordial de constituição de uma
nova esfera pública no âmbito local” (Machado et al., 2004, p.242), apesar das
fortes tendências em contrário, em vez de se transformarem, ordinariamente, em
arena de representação dos interesses do grupo político dominante.
Em nossa opinião, não há, decerto, razão para pessimismo. Apenas para
cautela. O tempo vindouro encarregar-se-á de nos mostrar a exeqüibilidade ou
não da coabitação da democracia liberal com a democracia participativa e em
que medida se reveste a importância dos conselhos municipais no processo de
democratização do espaço público brasileiro em que devem responder a novas
exigências da gestão de políticas sociais sob as condições impostas por uma
convivência forçada entre duas concepções democráticas antagônicas.
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