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Universidade
Estadual de Londrina
SERAFINA FERREIRA MACHADO
A LITERATURA COMO
MOVIMENTO HUMANIZADOR
:
O projeto poético de Solano Trindade
Londrina – PR
2006
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SERAFINA FERREIRA MACHADO
A LITERATURA COMO MOVIMENTO
HUMANIZADOR:
O projeto poético de Solano Trindade
Dissertação de
Mestrado apresentada ao Curso de pós-
Graduação em Letras, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Profa.
Dra. Gizêlda Melo do Nascimento
LONDRINA
2006
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SERAFINA FERREIRA MACHADO
A LITERATURA COMO MOVIMENTO HUMANIZADOR:
O projeto poético de Solano Trindade
Dissertação de
Mestrado apresentada ao Curso de pós-
graduação em Letras, da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito
parcial para obtenção do título de
Mestre.
Orientadora: Profa.
Dra. Gizêlda Melo do Nascimento
COMISSÃO EXAMINADORA
_____________________________________________
Profa. Dra. Gizêlda Melo do Nascimento
Universidade Estadual de Londrina
_____________________________________________
Profa. Dra. Maria Nazareth Soares da Fonseca
Universidade Federal de Minas Gerais
______________________________________
Prof. Dr. Sérgio Paulo Adolfo
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, 24 de março de 2006.
14
Eu,
todo, com tudo
vira-te e mergulha
no suor dos meus
Vingo,
marco, te ensopo
com minha existência
escrava, ex-crava
E cravo, finco fundo
O eu que escapou,
se somou e deu nós.
José Alberto
15
AGRADECIMENTOS
Esta dissertação é, sem dúvidas, um ato de fala impresso. O que aqui se encontra
escrito é, de certa maneira, parte integrante de várias discussões. Por isso, não posso assumir
sozinha a escrita deste trabalho. Contei com muitas pessoas, colaboradores essenciais para
dar vida a cada uma das palavras inseridas nas páginas que seguem.
Meu primeiro agradecimento é a Deus, fortaleza em minha vida.
A minha mãe, pela garra de lutar sozinha para ver os filhos ‘serem alguém’.
Gostaria de agradecer aos professores de literatura da graduação por me orientarem
em minhas primeiras leituras no universo literário.
Uma pessoa de muita importância para esta dissertação foi minha orientadora, a
professora Gizêlda: uma leitora perspicaz, assídua, exigente e com uma enorme capacidade
e competência para ouvir e para me fazer entender o universo dos afro-descendentes na
literatura. Uma verdadeira segunda mãe...
ainda que se lembrar do professor Simon, que foi um grande incentivador em
minha vida acadêmica.
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De maneira especial, gostaria de agradecer aos professores Frederico Augusto
Fernandes e Sérgio Paulo Adolfo pelas leituras do texto de qualificação e pelas sugestões
valiosas.
Aos meus irmãos: Marluz, José e João, meus grandes amigos.
Muito obrigado para Vilmar, meu namorado, que me compreendeu, suportou meu
mau-humor, minha falta de atenção e, acima de tudo, me apoiou.
Aos amigos, que colaboraram como presenças queridas e importantes em todas as
etapas deste trabalho.
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MACHADO, Serafina Ferreira. A literatura como movimento humanizador: O
projeto poético de Solano Trindade. Dissertação (Mestrado em Letras). 2006.
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
RESUMO
Esta dissertação se propõe a revisar o processo da formação da identidade do negro:
da subalternidade à luta pelo reconhecimento, na esfera histórica e literária. Esta discussão
se faz relevante para avaliarmos a transformação nos papéis sociais destinados aos negros
em diversos escritores, especialmente, Solano Trindade. Na obra deste, o poeta cede sua voz
ao oprimido (o homem negro ou branco) para denunciar as injustiças sociais. O discurso de
Trindade convida o leitor a uma revisão da condição do negro e, ao ressaltar o caráter
humano em sua poética, questiona as imagens fixas, revestidas por estereótipos que
estigmatizam. A obra deste poeta se propõe, pois, a uma (re) leitura das imagens impingidas
ao negro na diáspora, confrontando-se com valores morais, políticos e sociais da elite, no
intuito de reconhecer o caráter humano do negro.
Palavras chaves: Solano Trindade; negro; humanização.
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MACHADO, Serafina Ferreira. A literatura como movimento humanizador: O
projeto poético de Solano Trindade. Dissertação (Mestrado em Letras). 2006.
Universidade Estadual de Londrina, Londrina.
ABSTRACT
This thesis has the purpose revise the process of formation about Negro identity: of
subordinated condition for the recognition, in historic and literary aspects. The discussion
about the social trajectory of Negro made relevant to think about the transformation in social
papers designated to Negro en several writers, especially Solano Trindade. In his
production, the poet give his voice to the oppressed man (Negro or White men), to denounce
social injustice. The Solano Trindade speech invites the reader to a revision of negro
condition and, when he project the human mark in his poetical production, he question the
fixed image that was covered by stereotypes that brand. The poet production has the
purpose, so, of a (re) reading to the images that were impinged in Negro man in the
Diaspora, confronting with moral standards, in the intention of each person knows the
human Negro character.
Key-words: Solano Trindade; Negro; humanization.
19
DEDICATÓRIA
À minha mãe, mulher, negra.
Meu exemplo de vida.
20
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 11
1. IMAGENS E INVISIBIBLIDADES:
CONSIDERAÇÕES SOBRE A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO........................... 19
1.1. Os discursos da escravidão: O ocidente reinventa a África ................................... 19
1.1.1. O olhar exótico ...............................................................................22
1.1.2. A selvageria e a falta de fé ............................................................23
1.2. O Cânone literário e o negro.................................................................................... 26
1.2.1. A historiografia de Euclides da Cunha: o negro irritante .............29
1.3. A personagem negra na literatura brasileira.......................................... 36
1.3.1. Branco ou preto? A cor da aceitação ..................................................... 37
1.3.2. O início do século XX: a simpatia camaleônica ...................................... 53
2. A POÉTICA NEGRA DE SOLANO TRINDADE .............................................. 59
2.1. Cantos que se cruzam: Solano no contexto de escritura negra ................................ 70
2.1.1. “Bodarrada” e “Quem tá gemendo?” .............................................................. 72
2.1.2. “O Emparedado” e “Canto de Palmares” ........................................................79
2.1.3. “Recordações do escrivão Isaias Caminha” e “Conversa com Luci” ............. 84
2.1.4. “Negro preto cor da noite” e “Meu canto de Guerra” ..................................... 92
2.2. O canto de Solano Trindade: características da poética negra .......................................99
21
2.2.1. O eu enunciador negro .................................................................................... 99
2.2.2. Uso de temas da vida e temas da população negra........................................ 102
2.2.3. Linguagem como expressão popular e reprodução dos ritmos negros......... 108
2.2.4. Reabilitação semântica da linguagem ........................................................... 118
2.3. A mulher negra ............................................................................................................ 121
2.3.1. As várias faces da mulher negra na sociedade .............................................. 122
2.3.2. Mulher negra: beleza e sensualidade ..............................................................128
2.3.3. Mulher negra e sua influência na poesia de Trindade .................................. 135
3. SOLANO TRINDADE: DESCOBRINDO E RE-CONSTRUINDO O HOMEM/
NEGRO .............................................................................................................................146
3.1. A poesia como arma ....................................................................................................147
3.2. A resistência negra .......................................................................................................159
3.3. A humanização do negro ..............................................................................................173
3.4. O assumir-se: Sou negro ..............................................................................................182
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................... 198
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................203
22
INTRODUÇÃO
Ontem, hoje, sempre
Senti mais viva ainda
A certeza que é preciso
Falar de negros com negros
Acordar, insistir nessa
Força gostosa tanto disfarçada
Em resignação.
Semog
É indiscutível que parte do que é hoje a cultura brasileira e, mais especificamente, do
que é Brasil, foi construído por negros e mestiços. Em vista disso, seria limitador pensarmos
a nossa história e nos desdobramentos futuros da sociedade sem uma reflexão sobre o
significado desta contribuição.
No entanto, na produção literária brasileira, apesar da referência ao negro, é comum
encontrar sua imagem marcada por preconceitos e estereótipos construídos numa tentativa de
apagar sua representatividade cultural. E hoje, em pleno século XXI, as discussões em torno
de medidas compensatórias para sanar as conseqüências comprovam o resultado desastroso
desta lógica. Ou seja, embora o Brasil traga marcas de várias etnias, nota-se que o cânone
literário fez sua opção pelo modelo europeu durante um longo tempo. Nesta opção,
reconhece-se a tentativa de dominar o caráter humano do negro, retratando-o pelo crivo da
inferioridade, a partir da gica maniqueísta que ora o apresenta como dócil, ora como
selvagem e quase sempre zoomorfizado.
23
Ou seja, foram muitas as formas de violências as quais o negro foi submetido. A sua
verdadeira humanidade foi, aos poucos, sendo substituída por imagens que, com o passar do
tempo, alicerçaram-se na cultura nacional. Bastide faz um levantamento dessas imagens em
autores brasileiros e, tomando José de Alencar como um todo, assim sintetiza:
Encontraremos neste autor os estereótipos com que travamos
conhecimento antes: o da feiúra simiesca, ou apenas animal do negro o
da vaidade pretensiosa e ridícula do mulato o da sexualidade congênita
do africano e da mulata, esta por que tem sangue africano nas veias o do
servilismo do negro, que o predispõe de certa maneira, hereditariamente, à
escravidão distinção entre os dois tipos de negros, o negro bom,
dedicado, afetuoso, e o negro malandro o estereotipo que liga o negro à
feitiçaria. (BASTIDE, 1983, p.1).
Através destas características apontadas por Bastide, nota-se que Alencar, Castro
Alves, Nabuco e outros escritores de boa consciência, na busca de retratar uma literatura
nacional, colocam-se contra a instituição da escravidão, mas não conseguem resgatar a
humanidade do negro, ao contrário, continuam a retratá-los segundo o modelo cultivado pela
classe branca e senhorial.
Percebe-se, assim, que alguns escritores, apesar de comprometidos com a causa
negra, não conseguem livrar-se da mentalidade preconceituosa, pois,
O preconceito, como vírus da gripe epidêmica, tem infinitas capacidades
de mutação. Talvez as formas inspiradas por interesses conhecidos que
vem ao furo no calor das polêmicas não sejam as mais perigosas. Outras
há, insidiosas, veladas, de que são portadores mesmo os homens de boa
vontade e que da penumbra do inconsciente exercem mais eficazmente sua
tirania sobre o espírito.
(QUEIROZ JUNIOR, 1975, p.11).
24
De acordo com as anotações de Queiroz Junior, não há como defender a idéia de
igualdade das relações nas letras quando se percebe o contrário no repositório da literatura.
Alguns modernistas, por exemplo, apesar de trazerem a proposta de uma literatura marcada
pelo social, que integrasse as classes até então oprimidas, ao representar o conjunto de seu
povo, sob aspecto étnico cultural, não conseguiram desvencilhar-se totalmente de uma
mentalidade elitista. Se antes a imagem do negro, considerada deformada, chegava a ser
“irritante” - como é denominada em Os Sertões de Euclides da Cunha -, com o Modernismo,
a tradição de subestimar a presença do africano no Brasil passa por um processo de
mascaramento: a simpatia com que o negro é apresentado não esconde, porém, a demarcação
de seu espaço social. E o negro continuou a ser mostrado como inferior e acomodado a essa
situação. Exemplos disso podem ser verificados em obras tais como Martim Cererê de
Cassiano Ricardo, em que a exploração do trabalho e a violência contra o africano e sua
descendência são vistas como algo inteiramente harmonioso e promissor para o país.
Também Raul Bopp, em Urucungo arrasta a imagem do negro que sofre calado e se aliena e
se degrada, mas sorri e faz ri, e dança e esquece. Esses exemplos refletem a imagem que
persiste, desde a época colonial. E a busca da nacionalidade, uma tônica da Literatura
Brasileira, acaba revelando equívocos e falseamentos resultantes da idealização de uma
identidade.
Visto o que fora exposto até agora, faz-se necessário pesquisar a literatura negra, que
na definição de Zilá Bernd (1988, p. 25) “não se atrela nem à cor da pele do autor nem à
temática por ele utilizada, mas emerge da própria evidencia textual cuja consciência é dada
pelo surgimento de um enunciador que se quer negro”. A literatura negra assim definida
25
diferencia-se pela procura e/ou afirmação de uma identidade negra, numa busca de
preenchimento dos espaços vazios criados pela perda gradativa da identidade.
É inegável, porém, que a cor, o sofrimento e a discriminação vão imprimir
diferenciações entre os discursos do escritor negro e do escritor branco:
O negro que traz gravado na alma o passado doloroso da escravidão e a
marca das derrotas e humilhações sofridas na sua batalha pela
sobrevivência e pela obtenção de um lugar na sociedade, vai apresentar
uma visão de mundo muito diversa daquela do branco, que desconhece, na
prática este sofrimento e se apresenta ainda beneficiado pelo convívio nas
classes sociais mais altas e por uma instrução sistemática.
(DAMASCENO, 1988, p.64).
A título de exemplificação, Cruz e Souza, o maior expoente do Simbolismo brasileiro,
por ser negro e experimentar na pele a violência da segregação racial, conseguiu perceber os
“muros” colocados em sua trajetória e ao longo de seu trabalho deixou para a história
literária do país o mais profundo mergulho na vivência interior do negro brasileiro. “O
Emparedado”, poema em prosa de Evocações, apesar de colocar o negro numa situação
fatalista, permite a compreensão da contenção em que viviam seus iguais, diante da história
refletida na sensibilidade: África virgem, inviolada no Sentimento, avalanche humana
amassada com argilas funestas e secretas para fundir a Epopéia suprema da Dor o Futuro,
para fecundar talvez os grandes tercetos tremendos de algum novo e majestoso Dante
Negro!” (Souza, 1961, p. 561). O Poeta, como se vê, tinha consciência de que o sentimento
do negro não tinha sido transferido para a literatura. A angústia que se pode localizar na obra
de Cruz e Souza está ligada ao “ser negro num mundo branco” fonte de conflitos. O seu
discurso de negro, no entanto, é por vezes deixado de lado e os estudos centram-se sobre as
26
formas alvas, brancas, formas claras da “Antífona”. Pesa, desta forma, aos que não
conhecem sua obra na totalidade, a acusação de negador da raça.
Também Lima Barreto denunciou o racismo em várias de sua obra, principalmente
nos romances Clara dos Anjos e Recordações do escrivão Isaías Caminha. A conseqüência,
no entanto, foram os “muros” colocados entre sua produção e a recepção da crítica literária.
A literatura feita por negros encontra, repetindo a história de “silêncio” enfrentada por
Lima Barreto, o obstáculo da crítica. Apesar dos problemas básicos, este veio por onde corre
um pouco da interioridade afro-brasileira tem se constituído numa forma de resistência ao
discurso dominante e às diversas formas de estereotipias. É necessário, pois, a recuperação
deste referencial negro, assim como, a integração destes na sociedade.
A literatura pode ser compreendida como veículo para a procura e/ ou afirmação de
uma identidade própria. Desta forma, verifica-se na obra do escritor negro uma visão e
percepção de mundo e valores oriundos de uma experiência histórica. Faz-se necessário,
então, colocar o pé na senzala, assumir os lanhos de seu corpo e de sua alma e olhar a história
deste homem de perto, e não do alto, como um condor do céu.
Buscando elementos que subsidiem uma revisão literária do afro-descendente e o
resgate da sua representação como individualidade e não mais como um ser marcado
negativamente pela cor preta da pele, este trabalho abordará a voz do poeta do povo: Solano
Trindade, que foi poeta da resistência negra por excelência, dedicando sua vida e sua arte à
causa da liberdade, no combate às injustiças sociais e na valorização de expressões culturais
afro-brasileiras. Considerado não apenas como poeta negro, mas também ‘poeta do povo’,
Trindade tinha consciência de seu papel como poeta na defesa das tradições culturais e da
necessidade de luta por um mundo melhor. Sua poética, desta forma, pode representar um
27
enfrentamento diante da situação de exclusão do afro-descendente. Assim, em sua obra é
possível notar um movimento humanizador da palavra que assume um caráter militante.
Desta forma, no primeiro capítulo, Imagens e invisibilidade: considerações sobre o
indivíduo negro, será lançado um olhar para a própria história, tentando-se reconhecer os
motivos responsáveis pela visão inferiorizada e/ ou estereotipada do homem negro. O que se
pretende é fazer um levantamento do percurso dessas várias imagens que povoam a cultura
ocidental, verificando o peso destas imagens em uma ideologia segregadora. Mais ainda,
procura-se pensar em como a relação com o preto (cor) está intimamente ligada à pessoa
negra, de modo que a pigmentação defina inteiramente a concepção de individualidade.
Pode-se pensar que o percurso de construção deste imaginário confunde-se com a elaboração
de uma estética e de filosofias que definam o negro e a África como estranhos, demoníacos,
selvagens, assustadores. Estas visões, sem dúvidas, colaboram, justificam e naturalizam o
lugar do negro como servil e inferior, portanto, invisível e silenciado. Assim sendo, faz-se
necessário olhar atentamente para o cânone literário mantido ao longo da história, assim
como para os heróis louvados pela produção nacional, observando o que eles reproduzem da
maneira ocidentalizada de ver o negro e a África. Por fim, será feito o reconhecimento e a
análise do discurso sobre o negro dentro da literatura brasileira, enfocando a sua participação
na cultura nacional.
O segundo capítulo, A poética negra de Solano Trindade, lançando mão de estudos
como o de Zilá Bernd (Introdução à Literatura Negra), de Frantz Fanon (Pele Negra,
Máscaras brancas), de Benedita Damasceno (Poesia Negra no Modernismo Brasileiro), se
constituirá como uma apresentação do objeto deste trabalho: o poeta Solano Trindade. No
início do capítulo, serão investigados alguns aspectos da vida do poeta significativos para o
28
seu fazer literário, tais como a influência do folclore e da cultura popular, a origem humilde,
o amor às mulheres e o desejo de re-ver a história oficial. Ainda neste panorama da poética
de Solano, será investigada a sua importância dentro da genealogia da literatura brasileira
afro-descendente, através de leituras paralelas da obra deste poeta pernambucano com a de
outros escritores “guias” para o surgimento e a consolidação de uma escritura negra, tais
como Luis Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto e Lino Guedes. Por fim, serão analisados os
temas e os recursos lingüísticos que compõem a obra de Trindade, tais como a enunciação do
negro, a religiosidade, a linguagem popular, os ritmos afro-brasileiros, a sociedade e o amor.
O terceiro capítulo, Solano Trindade: descobrindo e reconstruindo o homem/negro,
constitui-se de uma análise da obra de Solano, buscando verificar o projeto humanizador do
poeta que, apesar de usar a poesia como arma contra as imagens estereotipadas, criadas ao
longo da história e da historiografia literária, não esboça qualquer intenção revanchista, mas
fraternal, abrigando todas as categorias oprimidas. Partindo deste intuito, na primeira parte
serão apontadas algumas formas de violências sociais contra os negros e como a palavra, a
voz deste oprimido, pode simbolizar uma arma; uma forma de alcançar um espaço na
literatura e na sociedade. A palavra, assim sendo, adquire um sentindo reivindicatório.
Num segundo momento, será abordada a resistência negra que se faz presente na
poesia de Solano Trindade. Neste sub-tópico serão levantadas questões que mostram como os
projetos, as atitudes e a religião negras apresentam-se como uma forma de negação da visão
subjugada lançada ao afro-descendente. Assim sendo, há uma cobrança por um re-olhar
histórico e acima de tudo delineia a identificação do poeta com o oprimido.
Dando seguimento a este capítulo, pretende-se, ainda, verificar como a cultura
ocidental tentou amarrar o afro-descendente a estereótipos de primitivismo e degeneração,
29
violando, desta forma, a essência humana. No entanto, através da poesia de Solano Trindade,
é possível enxergar novas realidades. O poeta valoriza a voz negra, identificando-a, contudo,
com a voz dos oprimidos (independente deste oprimido ser branco ou negro). Através da
poesia ecumênica de Solano Trindade, o negro é apresentado como igual, enfatizando-se uma
integração na comunidade humana.
Na quarta parte deste capítulo poderá ser verificado seu projeto humanizador que
integra todas as raças, mas não deixa de reconhecer as particularidades do “eu” que se
assume como “Negro”. O afro-descendente mergulha na própria origem, no passado anterior
a condição de escravizado e resgata o orgulho de si mesmo, identificando-se com a cultura,
com a etnia e com o continente de que faz parte. Acima de tudo, através da poesia, Solano
Trindade propõe uma nova forma de ver o negro, sem a visão maniqueísta presente nos
estereótipos.
A discussão do projeto humanizador de Solano Trindade pretende ser uma
colaboração para o próprio entendimento do homem enquanto ser social e para explicar como
o brasileiro emerso do processo de colonização, em que a mesclagem cultural é
imponderável, quando se trata de reconhecimento de valores na totalidade, ainda guarda
ranços discriminadores.
30
CAPÍTULO 1 IMAGENS E INVISIBILIDADES: CONSIDERAÇÕES
SOBRE O NEGRO
Quem sou eu? que importa quem?
Sou um trovador proscrito
Que trago na fronte escrito
Esta palavra – Ninguém !
Luís Gama
Imagem e invisibilidade parecem, em princípio, serem termos excludentes: se algo
possui uma aparência, uma imagem, não pode ser invisível. Quando, no entanto, pensa-se na
individualidade do homem negro, logo a estranheza se dissipa. Vítima de um olhar
ocidentalizado, este homem teve várias imagens anexada a sua figura. Conseqüentemente,
com o passar do tempo, o negro possuía uma imagem física, porém, repugnada; o que lhe
emprestava a condição de nulidade, enfim, de socialmente invisível.
Assim, propõe-se um percurso que permita investigar o surgimento do imaginário
europeu e de seu pensamento ideológico sobre o negro e sobre a África. O objetivo é tentar
reconhecer as raízes da imagem forjada que o europeu tem sobre ambos, assim como o peso
deste imaginário ocidental sobre uma ideologia excluidora alicerçada na sobreposição de
valores estéticos.
31
1.1. Os discursos da escravidão: o Ocidente reinventa a África
A fim de entender a escravidão antiga, é preciso compreender que esta, como
instituição, foi introduzida em virtude da lei do mais forte e não encontrava justificativa se
não pela violência. As palavras de Aristóteles (1997) solidificam esta afirmação: “Com
efeito, é somente em virtude da lei (nomos) que alguém é escravo e o outro é livre; mas por
natureza (phýsei) não há nenhuma diferença: por isto, esta dominação o é justa (dikaion),
porque ela é violência”.
A lei, na época de Aristóteles, era uma convenção pela qual quem foi vencido em
guerra pertencia ao vencedor. Ou seja, um homem que pudesse exercitar a violência e que
fosse superior em força poderia fazer da vítima de sua violência o seu escravo.
Durante a Idade Média, um discurso ideológico calcado no cristianismo passa a ser a
justificativa para a escravidão. uma procura do homem à imagem e semelhança de Deus
(e este era branco). Diante disto, a África passa a ser descrita como um lugar assustador e
com uma raça anormal. Imaginando uma terra que gerava medo, é fácil entender a associação
deste espaço como habitado pelo demônio.
Imagens como estas, que migraram para outros continentes, colaboraram para que os
habitantes da África fossem vistos como seres repugnantes. A cor preta passa a ser símbolo
do mal e da depravação humana. A marca de um povo amaldiçoado. E lendas foram criadas
para entender essa cor tão estranha.
Algumas apresentavam a suposição de que todas as raças haviam nascido
negras, mas que uma tinha sido recompensada com brancura e beleza por
causa de sua inteligência superior, enquanto a outra permaneceu negra e feia
por causa de sua estupidez. Em outras, a raça branca aparece como criação
original de Deus, feito à sua perfeição, enquanto que a negra era a tentativa
frustrada de imitação feita pelo demônio.
(BROOKSHAW, 1983, p. 15).
32
No entanto, estes mitos se fundiram com a realidade no imaginário popular. E a figura
do negro passa a ser usada como algo assustador. A cor preta torna-se, então, mbolo de
inferioridade, pois estava distante da perfeição e da divindade. Vejamos como Gislene A. dos
Santos resume esta relação de cores:
O branco é símbolo da divindade ou de Deus. O negro é símbolo do
espírito do mal e do demônio.
O branco é símbolo da luz... O negro é símbolo das trevas, e as trevas
exprimem simbolicamente o mal.
O branco é o emblema da harmonia. O negro é o emblema do caos.
O branco significa a beleza suprema. O negro a feiúra.
O branco significa a perfeição. O negro significa o vício.
O branco é mbolo da inocência. O negro da culpabilidade, do pecado ou
da degradação moral.
O branco, cor sublime, indica a felicidade. O negro, cor nefasta, indica a
tristeza.
O combate do bem contra o mal é indicado simbolicamente pela oposição
do negro colocado perto do branco.
(SANTOS, 2002, p.3).
A partir desta relação apresentada por Santos, observa-se que o Ocidente inventa a
África a partir da distância, sem conhecê-la e, desta forma, abstrai de forma pejorativa a
imagem do espaço físico e do povo que ali vivia.
No exemplo acima, é possível perceber como a cor branca é associada ao belo, ao
desejável e o negro, ao que é feio, ao vício, ao pecado, à imoralidade, à tristeza, à distância
de Deus. O negro, abstraído, passa a ser símbolo da inferioridade e da animalidade, devido ao
instinto selvagem a ele atribuído.
Mito ou realidade? A imagem negativa ao homem negro, na verdade, deve-se à
maneira desqualificada utilizada pelos europeus para simbolizar, para decifrar o estranho. O
33
Ocidente toma a si mesmo como padrão, considera a sua raça como superior e se os africanos
são inferiores é porque são diferentes.
Gislene Santos complementa que o Ocidente estava diante de um campo de
estranheza, campo que assusta e ameaça. Reiterando, o professor José Carlos Rodrigues
afirma que,
Tudo o que representa o insólito, o estranho, o anormal, o que está à
margem das normas, tudo o que é desestruturado, pré-estruturado e
antiestruturado, tudo o que está a meio caminho entre o que é próximo e
predizível e fora de nossas preocupações, tudo o que está simultaneamente
em nossa proximidade e fora de nosso controle, é germe de insegurança,
inquietação e terror: converte-se imediatamente em fonte de perigo.
(RODRIGUES, 1979, p. 15-16).
Desta forma, era necessário simbolizar este estranho, a fim de adquirir segurança,
fazer com que esse algo fizesse parte de seu mundo, mas que, ao mesmo tempo, fosse-lhe
externo. O negro passa a ser, então, o “outro” diferente e abominável.
Nota-se que, diante deste outro, a sociedade ocidental procurou mecanismos de
qualificação que foram encontrados no exotismo, na brutalidade e na falta de cristã, ou
seja, identificou os africanos com o mal e com a negatividade.
1.1.1. O olhar exótico
Não dúvidas de que o primeiro olhar em direção ao negro é o do exotismo, da
diferença, daquilo que o observador não consegue explicar. As simbolizações dadas foram
tentativas de aproximação deste estranho, uma maneira de nomear. Os mitos e as lendas
utilizadas para explicar a cor negra cumprem esse intuito de simbolização.
34
No entanto, o mito precede a lógica, ou seja, é apenas uma forma de o homem
explicar e conseguir conviver com o que parece estranho, uma forma também de controlar
seus medos diante daquilo que não parece racional. O que agrava, porém, é que, no caso da
raça negra, os mitos foram interiorizados não como crenças, suposições, mas como verdade.
O resultado foi a substituição da real forma negra pelas crenças narradas. E a imagem do
homem negro acabou sendo congelada, numa tentativa de apagar a individualidade deste
segmento. Às marcas do povo africano foram colocadas características que se adaptavam à
visão de quem os percebia. O negro, assim estereotipado, passa a ser a corporificação de um
mito baseado na visão de mundo de um observador distante daquela sociedade e cultura. A
raça negra, distinta dos valores sócio-culturais aceitáveis pela sociedade européia, passa a ser
repudiada, considerada como inferior.
Os mitos, desta forma, tornaram-se suporte de ideologias. A constante representação
da África como um continente de gente preta e a cor preta, carregada de valores negativos,
deu vazão à crença na superioridade da raça branca, afirmando um “eu” e negando o “outro”.
1.1.2. A selvageria e a falta de fé
Na Idade Média a crença era de que a humanidade deveria ser majoritariamente
cristã. Randles descreveu os canarinos, que não expressavam crença em um Deus
antropomórfico da seguinte maneira:
Homens indomados quase selvagens que não estavam vinculados a
nenhuma religião, não se curvam a nenhuma lei, pouco se inquietam em
relação aos seus concidadãos, vivem nos campos como bestas. Entre eles
não se conhece o comércio pelo mar, o uso das letras ou o uso de qualquer
metal ou moeda
(apud SANTOS, op. cit. p. 7).
35
De acordo com o pensamento deste teórico, os canarinos eram selvagens, não tinham
fé, não tinham lei para governá-los e não conheciam nenhuma outra forma de justiça. Eram,
portanto, inferiores, selvagens.
Ainda na Idade Média e parte da Renascença predominou o pensamento neoplatônico
que estabelecia uma hierarquia entre os seres do mundo lunar (anjos e arcanjos) e os seres do
mundo sublunar (os homens e as criaturas que habitavam a terra). Os seres eram ordenados
de acordo com o seu maior ou menor grau de perfeição. Os anjos e arcanjos eram os mais
perfeitos e, portanto, mais próximos da divindade. No mundo sublunar encontravam os seres
menos perfeitos e os inferiores. Na terra, os seres eram ordenados da seguinte forma:
primeiro os homens (a alma e depois o corpo), em seguida os animais, os vegetais e, por fim,
os minerais. De acordo com este pensamento, ter a cor da terra, a cor preta, era equivaler-se
aos minerais, ocupando o nível mais baixo de perfeição, ou seja, o nível da inferioridade,
portanto, distantes da divindade.
Equivalentes ao mineral, os negros eram considerados como seres nulos em perfeição,
como matéria carente de inteligência, mas que, plenos em potência, teriam a finalidade de
servir os seres superiores.
A escravidão, calcada em valores cristãos, reinstala a distinção neoplatônica de corpo
e alma. O cativeiro passa a ser totalmente justificado, considerado até como uma boa ação
para com os escravos, que estes não tiveram a oportunidade de conhecer o Evangelho,
merecendo uma pena que os redimisse e proporcionasse a salvação de suas almas. Em seus
discursos, o Padre Antonio Vieira, na Bahia de 1863, assim pregava aos escravos:
Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos senhores, não
aos bons e modestos, senão também aos maus e injustos. Porque neste
36
estado em que Deus vos pôs, é vossa vocação semelhante a de seu filho, o
qual padeceu por nós, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar. (apud
NASCIMETO, 1978, p. 52).
Estas palavras do Padre Antonio Vieira são de fundamental importância para entender
como a raiz ideológica do olhar que a Europa lançou e ainda lança sobre as culturas africanas
se fortificou e se espalhou para as outras partes do mundo. Acentuar o lado bárbaro dos
negros e seu paganismo
1
era a desculpa necessária para justificar o tráfico e a escravidão dos
africanos.
Percebe-se também, através do discurso de Vieira, que o Brasil assumiu um caráter de
colônia purgatório em que a igreja aprovou e abençoou o cativeiro como forma de redenção.
Perdurou, pois, para os padres jesuítas, a imagem de uma África demoníaca, ligada ao
inferno e ao mal.
O tráfico negreiro foi uma boa ão, pois na África os negros seriam escravos de
corpo e de alma, ao passo que no Brasil eles poderiam ter a alma liberta pelo batismo,
alcançando a liberdade total do espírito após a morte.
A vida do escravo, desta forma, se assemelhava à Paixão de Cristo e o cativeiro, por
sua vez, oferecia o branqueamento e a purificação de sua alma. As reflexões de Bosi apontam
a noção de sacrifício compensador, perceptíveis nos discursos de Padre Vieira:
os corpos trazidos de Angola sujeitam-se às penas do cativeiro; as
almas, não. Essas purgam-se pacientemente nos engenhos de açúcar
conquistando a salvação para uma outra vida, que o pregador pinta com
galas e cores de festas: “Mas é particular providencia de Deus que vivais
1
Ao adotar esta maneira de pensar, teriam se esquecido que a maior civilização ocidental, a Grega, também era
pagã?
37
de presente escravos e cativos para que por meio do cativeiro temporal
consigais a liberdade, ou a alforria eterna. (apud BOSI, 1992, p.146).
Nesta lógica violenta da igreja cristã, quanto mais servil e obedientes, mais
próximos os escravos estariam da salvação eterna.
A construção da África e do africano pela Europa poderia ter sido revista, mas isto
não aconteceu porque este olhar ocidental, com seus mitos e lendas, sedimentaram a
escravidão e a dominação através de práticas discriminadoras.
No Brasil, a historiografia é uma grande prova da manutenção do pensamento
ocidental, reservando ao negro o mesmo espaço de inferioridade, de invisibilidade.
1.2. O Cânone literário e o negro
Muniz Sodré, em artigo para a Folha de São Paulo, relembra o mito do Drácula e a
incapacidade deste em aparecer no espelho. O mito do vampiro torna-se atual a fim de
mostrar a armação da cultura para a construção de uma identidade. Ele, assim, destaca: “Na
sociedade da imagem (anagrama de magia) ou dos dispositivos de visão, o sujeito aparece
no ‘espelho’(...), se tem condições socioculturais de ter imagem publicamente reconhecível”
(SODRÉ, 1995, p.6).
O espelho, como metáfora para o cânone, foi iluminado pelas tonalidades branco-
européias. Isto leva à reflexão de qual seria a aceitação do homem de cor preta e, em certa
medida, justifica o porq de o negro possuir um corpo, uma imagem, mas permanece
invisível diante da sociedade.
38
Eduardo Portella (1976), ao tratar do cânone, relata que ele é “a representação da
verdade em sua forma imperial (...) alarido do modelo, que abrange e abarca”. O negro, de
forma geral, não representava a ‘verdade’ do povo brasileiro. Vale a pena lembrar as palavras
de Nina Rodrigues, num período pós-republicano em que a escravidão havia sido abolida.
Em relação à influência do negro, disse:
A raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis
serviços à nossa civilização, por mais justificadas que sejam as simpatias
de que a cercou o revoltante abuso da escravidão, por maiores que se
revelem os generosos exageros dos seus turiferários, de constituir
sempre um dos fatores da nossa inferioridade como povo. (RODRIGUES,
1933, p. 28).
Contrapondo discursos como os do padre Vieira e do médico Nina Rodrigues
verifica-se que o discurso deixa de ser religioso e passa a ser científico. Num e noutro, a
desqualificação do negro aparece como fator relevante para a formação da sociedade e
manutenção de valores de uma elite.
Fica claro, portanto, que o negro não cabia no modelo de identidade nacional baseado
nos ideais europeus, não representava o Brasil, sendo, portanto, praticamente excluído das
historiografias brasileiras. As verdades da nação, o modelo que se desejava abranger e
abarcar era o modelo ocidental, símbolo máximo de cultura e civilização.
Segundo José Luis Jobim (1992) “cada época tem seu quadro de referência para
identificar a literatura, tem suas normas estéticas, a partir dos quais se efetua julgamento”.
Quando se trata de definição de uma identidade, preocupação constante da literatura
brasileira, o quadro de referências manteve-se intocável ao longo dos tempos: a cópia.
A América transforma-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais
semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na
39
cópia do modelo original, mas na sua origem, apagada completamente
pelos conquistadores. Pelo extermínio constante de traços originais, mas na
sua origem, o fenômeno de duplicação
se estabelece como única regra
válida
de civilização (SANTIAGO, 1978, p. 16).
O poder e a ideologia ocidentais, como se pode verificar, vão se perpetuando pela
consagração de um cânone que desenha uma identidade e uma diferença coletiva. O
Romantismo, por exemplo, colocou em primeiro plano a discussão em torno do que seria o
nacional. Apesar de um novo contexto, o espelho continuou a ser símbolo da cópia e o
Indianismo é a prova. Em Iracema, por exemplo, de José de Alencar, a linguagem e o espaço
se querem nacionais, mas os valores que ordenam a narrativa - tais como forma, conteúdo,
idealização de espaço e personagem - continuam sendo de influência européia.
É essencial que se pense que o termo Cânon” do grego Kanontem o sentido de
norma, lei, implicando um princípio de exclusão e seleção, portanto, vinculado à questão de
poder. Reis (1992, p.70) afirma que “os monumentais clássicos contêm verdades
incontestáveis, atemporais e universais, transcendem o seu momento histórico e fornecem o
modelo a ser seguido”, ou melhor, o cânone fornece o espelho que produz uma retórica que
conduz à marginalização dos que não correspondem ao ideal de legitimação de uma
identidade. Estes deslegitimados, marginalizados, acabam ficando de fora da história, porque
no Brasil, como na maioria dos países que passaram pelo processo de colonização, a imagem
idealizada, o espelho, tornou opaca a transparência que permitiria aos brasileiros verem e
serem vistos. A representação cultural brasileira, assim sendo, tornou-se inautêntica, postiça.
A busca da independência da identidade cultural demonstra que o Brasil tem sido
sempre o “outro”, pura diferença, imposta pela perpétua remissão a núcleos paradigmáticos
estabelecidos por quem de poder, desvelando o ideal europeu ou anglo-americano da
humanidade. A maior gravidade resulta na crença de que esta identidade forjada é natural, a
40
nossa verdadeira representação como povo. O resultado, como não poderia ser outro, reverte-
se no apagamento de diversas tramas históricas, abrindo caminhos para estigmatizações e
preconceitos.
O negro, dentro de uma sociedade construída através de modelos externos, apresenta-
se como o diferente ou, simplificando, uma pele preta. Logo, torna-se discriminável, o
“outro”.
De acordo com Sodré (1995, p.6)
Abrigar o outro (o migrante, o estrangeiro, o diferente) sem mediação de
uma estética do acolhimento parece ameaçar a consciência vinculada no
individualismo moderno. O ‘outro’ representa a ameaça fantasmática de
dividir o espaço a partir do qual falamos e pensamos. É essa a ameaça
(arcaica, primitiva) que espreita a consciência dominante: o medo de
perder o espaço próprio. Medo primitivo, análogo ao terror noturno das
crianças. O outro acaba virando o Drácula, sem imagem literária.
A questão apontada neste comentário de Sodré não é o medo do outro, mas medo de o
outro se tornar igual. Compreenda-se o igual não como aquele que remete aos próprios
horrores como também, na versão política, social e mesmo literária, aquele que tem acesso
aos mesmos direitos, que partilha o mesmo poder. O medo de dividir o espaço leva a
desenvolver os mecanismos de controle e discriminação que tornam o negro invisível diante
da sociedade e sem espaço na historiografia brasileira.
1.2.1. A historiografia de Euclides da Cunha: o negro irritante
Dentre as várias obras da historiografia brasileira, a escolha para este estudo foi Os
Sertões de Euclides da Cunha. A escolha se justifica pela repercussão que a obra alcançou na
época em que foi publicada, sendo proclamada como um clássico. O que mais interessa a este
41
estudo, porém, é a grande influência que a obra exerceu no pensamento social brasileiro,
influência que ainda pode ser notada na sociedade atual.
O livro divide-se em apenas três partes: “A Terra”, “O Homem” e “A luta”. Na
primeira parte o autor estuda fatores geológicos e geográficos da área do sertão. nesta
parte um vocabulário técnico de etnografia, geologia e climatologia e descrições minuciosas
da fauna e da flora do sertão. Esta longa parte foi dedicada à análise da interação do homem
ao espaço no sertão.
Na segunda parte, um outro longo capítulo, foi observado o homem neste sertão,
focando-se o problema das diferentes raças de acordo com o ponto de vista da ciência da
época em que a obra foi escrita
2
. Por fim, na última parte é descrita a campanha de Canudos
empreendida para submeter os rebeldes de Antonio Conselheiro.
O livro foi publicado quatorze anos após a extinção do sistema escravo no Brasil e,
através da visão euclideana, é possível perceber o quanto a ideologia pautada na hierarquia
das raças estava fortificada, principalmente naquele momento em que a “biologização” da
história procurava explicar o atraso social, político e cultural brasileiro através de sua
composição racial. Desta forma, o problema das raças inferiores e superiores e sua inserção
na composição demográfica do Brasil passa a ser fator determinante para explicar o atraso e
o progresso do país. No caso dos negros, estes receberam novas características negativas,
além das mencionadas em início deste capítulo (selvagens, exóticos, demoníacos,
zoomorfizados etc.) e foram considerados como parte dos remanescentes sociais condenados
2
Na época em que Os Sertões foi escrito havia três correntes de pensamentos científicos: a escola etnológica-
biológica, que via a inferioridade das raças não brancas como resultado de uma criação como espécie distinta;
a escola histórica, que buscava as evidências históricas a fim de provar a superioridade ariana e o darwinismo
social, que defendia a idéia de um processo evolutivo que começava com uma única espécie. Skidmore,
Thomas. Op. Cit. p.65-70.
42
a ficar para trás na marcha para o progresso. Esta era a justificativa para considerar os
descendentes de africano como inferiores diante do branco que se auto-afirmava como agente
civilizador, superior.
O sangue negro (mancha que era preciso que fosse eliminada) passou a ser a
explicação para o atraso social, para o subdesenvolvimento brasileiro. Theodore Roosevelt,
comparando Brasil e Estados Unidos, assim expressa:
A
grande maioria dos homens e das mulheres que encontrei, expoentes do
mundo, das atividades políticas e industriais e das realizações cientificas,
mostravam um pouco mais de sangue negro do que mostraria pessoas de
grupos semelhantes numa capital européia. Não há, em algumas classes,
considerável infiltração de sangue negro –como a tendência paralela para a
desaparição do tipo negro puro mas esse processo é aplaudido
calorosamente pelos mais autorizados estadistas do país. A opinião que
esposam, tão diversa da nossa, pode ser melhor traduzida pelo que um
deles – de sangue branco puro – me disse:
Naturalmente, a presença do negro é um verdadeiro problema, e problema
muito sério, tanto no seu país quanto no meu. A escravidão é um método
intolerável de resolvê-lo, e tem de ser abolida. Mas como o problema
permanece... permanece a necessidade de encontrar uma outra solução.
Vocês nos Estados Unidos conservam os negros como um elemento
inteiramente separado, e tratam-nos de maneira a infundir neles o respeito
de si mesmos. Permanecerão como ameaça à sua civilização, ameaça
permanente e talvez, depois de mais algum tempo, crescente. Entre nós
tende a desaparecer porque os próprios negros tendem a desaparecer e ser
absorvidos...
O negro puro diminui de número constantemente. Poderá desaparecer em
duas ou três gerações, no que se refere aos traços físicos, morais e mentais.
Quando tiver desaparecido, estará seu sangue como elemento apreciável,
mas de nenhum modo dominante, em cerca de um terço do nosso povo; os
dois terços restantes serão brancos puros. Admitindo que a presença do
elemento racial represente um leve enfraquecimento de um terço da
população, os outros dois terços terão, ao contrário, força integral. E o
problema do negro terá desaparecido. No seu país foi toda a população
branca que guardou a força racial de origem, mas o negro ficou, e aumenta
de número, com ressentimento cada vez mais amargo e mais vivo de seu
isolamento, de modo que a ameaça que representa será mais grave no
futuro. Não tenho por perfeita a nossa solução, mas julgo-a melhor que a
sua. Fazemos face, vocês e nós, a alternativas diferentes, cada qual com
suas desvantagens. Penso que a nossa, a longo prazo e do ponto de vista
nacional é menos prejudicial e perigosa que a outra, que vocês, nos Estados
Unidos, escolheram
(
apud SKIDMORE, 1973, p. 92).
43
A citação acima, embora longa, é necessária para compreender a teoria do
“branqueamento”, aceita pela maior parte da elite brasileira nos anos que vão de 1889 a
1914. Esta teoria pregava uma ideologia que tentava evitar as divisões raciais observadas nos
Estados Unidos e, ao mesmo tempo, buscava eliminar o elemento racial considerado como
inferior através da mestiçagem.
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante
as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o
influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior.
A mestiçagem extremada é um retrocesso. (CUNHA, 1933, p.93).
Cunha, assim, posicionava-se contrário a esta teoria. Para ele a mestiçagem era um
fator negativo e dela nasceria o mestiço neurastênico do litoral”, os mulatos causadores de
instabilidades na sociedade brasileira, pelas suas mazelas congênitas.
As afirmações do autor denotam seu posicionamento em relação à raça negra:
A raça dominada, porém, teve aqui, dirimidas pela situação social, as
faculdades de desenvolvimento. Organização potente afeita à humanidade
extrema, sem as rebeldias do índio, o negro teve, sobre os ombros toda a
pressão da vida colonial. Esta besta de carga adstrita a trabalhos sem
folgas. As velhas ordenações, estatuindo o ‘como se enjeitar os escravos
por os achares doentes ou mancos’ denunciam a brutalidade da época
(
idem, p. 80).
A comparação entre negros e índios evidencia o olhar euclideano em relação ao afro-
descendente: seres submissos, sem espírito rebelde. Estas características que o escritor
atribuiu aos negros servem para validar a condição em que se estes homens se encontravam:
serviçais , ‘bestas de cargas’ para um trabalho desumano.
Desta forma, a explicação de Cunha
Cai no círculo vicioso de ver o fator racial como determinante do jogo das
forças que impulsionavam o nosso processo histórico e social. Quando não
44
apresenta o fator racial como determinante, apela para a influência do meio
físico. Para ele a nossa história traduz notavelmente estas modalidades
mesológicas. Achava que o meio físico é uma camisa de força que
determina, juntamente com o fator racial, o desenvolvimento das
sociedades, retarda-o ou o impulsiona.
(MOURA, 1990, p.187).
Observando o negro como perturbador da ordem, como um parêntesis irritante,
Euclides não considera a escravidão na formação da sociedade brasileira. Enxergou no negro
um lado submisso e esqueceu-se do movimento abolicionista
3
, no qual o negro mostrou o seu
lado de revolta, de não-submissão. Euclides destacou na raça apenas a condição de
inferioridade atribuída por uma ideologia segregadora.
O escravo não entra no quadro de referências que Euclides da Cunha
configurou das forças impulsionadoras da sociedade brasileira, não apenas
em Os Sertões, mas em toda a sua obra. Via do trabalho escravo o seu lado
negativo, passivo. O lado que seria depois apresentado por sociólogos
acadêmicos como diagnosticador de um masoquismo biológico do negro.
Por outro lado, exatamente o lado dinâmico da escravidão, que consistia no
solapamento das relações de trabalho escravista, realizado pelo próprio
elemento servil, não tinha a simpatia de Euclides da Cunha. (idem. p. 190).
Não soam estranhos, pois, os vocabulários utilizados por Euclides da Cunha,
carregados de uma linguagem pejorativa: “bestas de carga”, “filho da paisagem adustas e
bárbaras”, “são vencidos e infelizes”, o escravo é “humilde (mesmo) feito quilombola”,
3
O movimento abolicionista, no Brasil,
teve alguns intelectuais negros e homens negros de elite, como
André Rebouças, José do Patrocínio e Paula Britto, mas que viviam no mundo dos brancos. Os
abolicionistas brasileiros não tinham contato cultural e intelectual com a massa da população negra que era
escrava ou pobre e servia essa elite. Vale lembrar que o principal líder abolicionista brasileiro, Joaquim
Nabuco, passou a infância em um engenho próximo a Recife, experimentando uma relação muito próxima
com os escravos da fazenda na qualidade de “jovem senhor”. Como conseqüência de diferenças como essas,
enquanto os abolicionistas norte-americanos enfatizavam o duplo propósito de abolir a escravidão e o racismo,
os brasileiros se preocupavam mais em garantir uma transição suave da escravidão ao trabalho livre de modo a
evitar prejuízos aos fazendeiros. Há ainda que mencionar a participação de Luiz Gama, que viveu a escravidão
e demonstra que o negro forçou o ingresso na força política, tentando conquistar o seu próprio espaço e
manifestando-se diante da opinião pública como sujeito de um discurso antiescravista especifico e explícito, no
planejamento do futuro em liberdade.
45
“temeroso”, “agriolhado à terra”, “foragido”, raça “humilhada e sucumbida”, o escravo foi
“abatido pelo traficante”. Por fim, o negro era um desequilibrado e não terapêutica para
este embate de tendências antagônicas”.(idem, ibidem)
A sua visão de Palmares, maior símbolo de rebeldia negra, recebeu um tratamento
prenhe de desdém, considerada como uma “odisséia grosseira”:
Quando as correrias do bárbaro ameaçava a Bahia, ou Pernambuco, ou a
Paraíba, e os quilombos se escalonavam pelas matas, nos últimos refúgios
do africano revoltoso o sulista, di-lo a grosseira odisséia de Palmares,
surgia como o debelador clássico desses perigos, o empreiteiro predileto
das grandes catombes. (CUNHA, op cit, p. 76).
Também a população constituída em Palmares foi desprestigiada, considerada como
besta de carga para o trabalho forçado. O escritor achava que o negro não possuía o espírito
rebelde do índio e, por isso, aceitavam o status em que se encontravam. Assim sendo, a
opinião de Euclides era de que estas inferioridades “natas” obrigavam o negro a se conformar
em ser dominado como se pode verificar no exemplo abaixo:
E o mestiço mulato, mameluco ou cafuz -, menos que um intermediário,
é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a
atitude intelectual dos ancestrais superiores. Contrastando com a
fecundidade que acaso possua, ele revela casos de embriaguez moral
extraordinários: espírito fulgurantes, às vezes, mas frágeis, irrequietos,
inconstantes, deslumbrando um momento e extinguindo-se prestes, feridos
pela fatalidade das leis biológicas, chumbados ao plano inferior da raça
menos favorecida. Impotente para formar qualquer solidariedade entre ass
gerações opostas, de que resulta, reflete-lhes os vários aspectos
predominantes num jogo permanente de antíteses. E quando avulta não
são raros os casos capaz das grandes generalizações ou de associar as
mais complexas relações abstratas, todo esse vigor mental repousa
(salvante os casos excepcionais cujo destaque justifica o conceito) sobre
uma moralidade rudimentar, em que se represente o automatismo
impulsivo das raças inferiores
(
idem, p. 94).
46
Por isso, a sua visão era contrária à mestiçagem, pois “... se todo elemento étnico
forte ‘tende a subordinar ao seu destino o elemento mais fraco ante o qual se acha’, encontra-
se na mestiçagem um caso perturbador.” (idem p.95).
A visão de Euclides da Cunha, porém, não foi uma visão isolada na historiografia
brasileira. Em vários registros literários repete-se a imagem do negro inferior, invisível e
silenciado. Conquistar um espaço de destaque no cânone literário não é uma missão fácil e os
diversos literatos negros contemporâneos enfrentam (como Lima Barreto enfrentou em sua
época), um espaço hostil que os ignora e muitas vezes lhes reserva o silêncio em virtude da
ousadia de usarem suas vozes. As palavras de Francisco de Assis Barbosa, a respeito de
Lima Barreto, servem para os escritores negros de hoje:
os senhores da literatura, os que vestem casaca e freqüentam a Livraria
Garnier, jamais lhe perdoarão a ousadia da violenta arremetida, as
diatribes ferinas que dirigia a certos príncipes do jornalismo e das letras,
as caricaturas cruéis que ainda hoje cobrem de ridículo medalhões cheios
de empáfia, os mais importantes medalhões da época.
Num movimento de autodefesa, mais do que natural, os mandarins
enfurecidos se congregaram para repelir a audácia do mestiço. À porta da
Cidade das Letras, como na da Escola Politécnica ou na da Secretaria da
Guerra, haveria de encontrar sempre quem o advertisse: é proibida a
entrada aos homens de cor, especialmente aos mal comportados. Era o seu
pecado original. E por ele pagava. (BARBOSA, 1998, p. 153-154).
Não como deixar de reconhecer que nas diversas historiografias literárias o corpo
canônico permanece intocável. Como comenta Carpeax,
As grandes sínteses não se podem basear em pesquisas originais, são
feitas de segunda mão, aproveitando documentação utilizada. Na
História Literária a rotina prejudica particularmente o lado critico dos
trabalhos. Ninguém pode ter lido tudo; e até com respeito às obras muito
conhecidas os autores de histórias literárias preferem, as mais das vezes ,
repetir opiniões consagradas (...) [e] os professores de História Literárias
repetem, sem cansaço os mesmos clichês (CARPEAX, 1959. p. 29).
47
E a cor da pele, “pecado original” do afro-descendente, mesmo quando dissolvida
pelo mito da harmonia racial, é sempre lembrada num sistema de relações em que ser negro
continua a ser significado por formas de despersonalização construída pelo ideário
escravocrata, justificando a exclusão social do negro e as portas fechadas “na cidade das
letras”, ou no cânone literário.
Assim, o somente n’Os Sertões, mas na história literária brasileira, abunda
estereótipos que condenam a população brasileira ao subdesenvolvimento devido à influência
dos africanos.
Desta forma, a história da literatura, como reflexo da sociedade, consagra a literatura
que aprisiona os negros em estereótipos construídos segundo os modos como a sociedade
lidava com os escravos e/ou lida com seus descendentes.
Através de personagens negras retiradas de livros canonizados é possível perceber os
grilhões de um Brasil ainda não marcado pela igualdade social e racial.
1.3. A personagem negra na literatura brasileira
No início deste capítulo foi mostrada a visão ocidental em relação ao negro. Este
olhar europeu induzia ao repudio, ao exotismo e, ao mesmo tempo, à destruição do afro-
descendente. Estes aspectos foram amplamente aproveitados e reinterpretados na literatura
brasileira.
48
A literatura, em sua ltipla função de refletir e discutir a condição humana,
colaborou para a criação de imagens de negros que visavam à invisibilidade como ser
humano e social. Ou como afirma Sodré, o humanismo universal cria o inumano
universal”, e a literatura legitima, fazendo com que o passado de apagamento e exclusões
sobrevivam.
A fim de visualizar a presença da ideologia ocidental na literatura brasileira serão
utilizadas as classes de estereotipia primaria (étnica, antropológica e sociológica) e a
estereotipia secundária (malandragem) apontada por Alberto Baeta Mussa.
4
O objetivo, aqui, não é uma cobertura geral e minuciosa do negro na literatura
brasileira, mas sim, uma observação, através de personagens negras, de como a sociedade,
através de estereótipos, aniquila ou leva o negro a aniquilar sua subjetividade, buscando um
outro “eu”, uma imagem visível diante do espelho social.
1.3.1. Branco ou preto? A cor da aceitação
Através de uma visão distanciada, o negro passou a ser assunto, tema, ou seja
“objeto”, o “outro”, o “diferente”, configurando-se como o dominado, fazendo transparecer
a ideologia dominante: a brancura como única e verdadeira norma estética.
A presença do personagem negro aparece na literatura brasileira desde os escritos
coloniais, mas terá uma participação mais significativa apenas a partir do século XIX. No
entanto, apesar da freqüência em se tratar sobre o negro, a tipificação será sempre a grande
4
Conferir MUSSA, Beto. Estereótipos de negro na literatura brasileira.
49
marca desse “outro”. Desta forma, serão destacados alguns estereótipos que se repetem e se
evidenciam na visão do negro pelo branco.
Destaca-se, na literatura brasileira, a noção de feiúra da raça negra, ou seja, percebe-
se com freqüência a presença da estereotipia étnica. Segundo esta estereotipia “o negro é
feio (visão), fedorento (olfato) e sua voz, seu canto, enfim, sua forma de expressão oral é
grosseira e escandalosa (audição). Não surgem aqui estereótipos do paladar e do tato (...)
porque pressupõem um contato físico absolutamente inadmissível” (MUSSA, 1989, p. 73).
Assim, Bertoleza, personagem de O mulato, de Aluízio de Azevedo, é vista através
do estereótipo étnico, sendo descrita sob um dos prismas desta estereotipia: a feiúra.
Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma criola suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo, nem dia santo: essa em nada
absolutamente participava das novas regalias do amigo: pelo contrário, à
medida que galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais escrava e
rasteira. João Romão subia e ela ficava embaixo, abandonada como
uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a viagem.
(AZEVEDO, 1979, p. 104).
É interessante notar, nesta passagem, que a escravidão, mesmo extinta, continuou a
marcar o povo negro como escravo. E em decorrência desse processo, a estigmatização da
população afro-descendente consolidou-se por uma gama de preconceitos nascidos do fato
de o negro permanecer umbilicalmente associado a um passado de inferioridade (ser negro =
escravo). Assim, o presente de Bertoleza fica definido pela cor de sua pele. Os adjetivos
usados para caracterizar a personagem demonstram ainda uma mulher esteticamente sem
beleza: “cepa torta”, “desgraçada”, “escrava”, “rasteira”; e sua condição, ainda, de besta de
50
carga, “cavalgadura”, trabalhando sem descanso para a ascensão do “outro”, do homem
branco.
A cor traz ainda uma outra conotação: a sujeira. Bertoleza é a crioula suja”, devido
a sua condição animalizada pela pobreza, mas é também suja pelo seu próprio nascimento,
manchado pela cor negra.
A cor preta como sujeira, como um estigma do mal, explicita a repugnância que
gerava a cor preta da pele, a sub-humanidade de uma pessoa negra e o desejo de muito afro-
descendente de se identificar com o branco, numa tentativa de fugir a sua individualidade,
de aniquilar esse seu ser” (FANON, 1983, p. 51).
O jovem Isaías Caminha percebe que para a aceitação social era preciso
embranquecer. Esta constatação, feita pelo personagem de Lima Barreto, também foi
mencionada por Fanon, em relação ao negro que, desejando se inserir na sociedade, se
depara com uma única alternativa:
só existe uma porta de saída e esta dá para o mundo branco, o que justifica
essa preocupação permanente em atrair a atenção do branco, este desejo
de ser poderoso como o Branco, esta vontade determinada em adquirir as
propriedades de proteção, isto é, a parte do ser e do ter que entra na
constituição do ego”(idem, p 44).
No entanto, o que se nota é que esse ego que vai se construindo é um ego
embranquecido através da aniquilação do interior da pessoa que se deseja branca. O negro
abandonando o seu próprio “eu”, tenta atingir o santuário do branco. Numa situação de
imposição cultural, o personagem Isaías Caminha demonstra que o negro interioriza o
estereótipo que o branco fabricou, assume-se como inferior e, por isso, busca
dolorosamente, a todo custo, mesmo a preço do desequilíbrio emocional que roça o
51
patológico, o reconhecimento do branco. Observa-se, portanto, a idéia de cópia, espelho e
simulacro de que falou Silviano Santiago (1978). Isaías se pauta num espelho social que
reconhece apenas o branco. Assim, justifica-se o desejo de se tornar socialmente aceito,
através da dissimulação de sua cor: “Ah! Seria doutor! Resgataria o pecado original do meu
nascimento humilde, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor...
(BARRETO, 1998, p. 26).
Ao escolher um mulato para herói de sua obra, Lima Barreto propõe a incorporação
de uma raça oprimida ao longo da história. No entanto, o herói neste romance não é
idealizado e, por isso, Isaías se mostrará fragmentado, imperfeito, um ser ainda em formação
de uma identidade.
Lima denuncia, através da obra, a situação real do negro: perdidos, confusos, em
busca de uma verdadeira identidade. A conseqüência é que acabam por vezes se mutilando
em nome de um branqueamento interior. É a fuga de uma identidade fixa, criada pelo
branco, marcando-os como inferiores.
Stuart Hall, porém, lembra que,
A identidade é (...) algo formado, ao longo dos tempos, através de
processos inconscientes, e não inatos, existentes na consciência no
momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado
sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre em
processo, sempre sendo formada. (...) Assim, em vez de falar da
identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e
vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto na
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de
uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.
Psicanaliticamente, nós continuamos buscando a ‘identidade’ e
construindo biografias que tecem as diferentes partes de nossos eus
divididos numa unidade porque procuramos recapturar esse prazer
fantasiado da plenitude
(
HALL, 2003, p 38-39).
52
Ao longo do percurso de Isaías reconhece-se a ideologia de uma sociedade que prega
uma identidade fixa, de vencidos para a raça negra, relegados ao limbo da não referência. O
resultado grave foi que o negro sufocou seu passado, a memória coletiva de seu povo, na
busca de construir uma identidade que lhe proporcionasse uma representatividade, ao menos
simbólica. Hall, no entanto, coloca em discussão a construção de sujeito como algo que não
é inato, mas incompleta, com espaços a serem preenchidos com a individualidade de cada
ser.
Isaías Caminha, em seu percurso, vai se transformando, decaindo de si e de seus
projetos grandiosos. Por fim, metamorfoseia em homem branco, urbano, capitalista e
individualista. Passa a aceitar para si a linguagem característica da elite dominante:
5
Com o andar do tempo aprendi os processos, fiz-me exímio e quase tão
fecundo como o Deodoro Ramalho. Aprendi com o Losque a servir-me dos
outros jornais, a receber inspiração neles, a calcar os meus artigos no que
estampavam. Como Losque, norteei-me para as revistas obscuras, essas
que ninguém nem os jornais dão notícias. Havia nelas uma pequena
idéia, desenvolvi-as, enxertava umas considerações quaisquer.
(BARRETO, 1998, p. 160).
Na confissão de Isaías percebe-se que através da construção lingüística o narrador
vai aderindo ao universo dos que tinham um status social superior. Assumir a linguagem é
necessário para que ele finalmente seja aceito na sociedade. Como solidifica Fanon, assumir
uma língua é assumir a cultura que ela representa.
5
Fanon, em Pele negra, mascáras brancas, observa que através da linguagem assumimos a cultura e a
civilização do outro, ou seja, tudo o que essa linguagem abrange e que através dela se exprime. Ele conclui que
todo segmento colonizado (acrescenta-se o caso do escravizado também), todo povo no seio do qual originou o
complexo de inferioridade, devido ao extermínio da sua originalidade como nação, de sua cultura, tem como
parâmetro a linguagem daqueles que os colonizaram ou os escravizaram, ou seja, a linguagem daquele que se
considera como vencedor.
53
No entanto, até mesmo a imagem da mãe, representante da raça negra, é degradada.
Ingresso num outro mundo, o mundo dos homens livres e brancos, Isaías se envergonha de
sua herança negra:
Aquele começo de mês foi para mim de grande sossego e de grande
egoísmo. Embora minha mãe tivesse afinal morrido havia alguns meses,
eu não tinha sentido senão uma leve e ligeira dor. Depois de empregado
no jornal, pouco lhe escrevi. Sabia-a muito doente, arrastando a vida com
esforço. Não me preocupava... Os ditos de Floc, as pilhérias de Losque, as
sentenças do sábio Oliveira, tinham feito chegar a mim uma espécie de
vergonha pelo meu nascimento, e esse vexame me veio diminuir em muito
a amizade e a ternura com que sempre envolvia a sua lembrança. Sentia-
me separado dela (...) eu, seu filho, julgava-me a meus próprios olhos
muito diverso dela, saído de outra estirpe, de outro sangue, de outra carne.
(idem, p.142).
Todo esse processo de transformação do narrador demonstra a situação de imposição
cultural a que o negro se encontra submetido, dominando-o efetivamente, penetrando até
mesmo seu inconsciente. Um inconsciente em boa parte embranquecido.
Percebe-se, pois, que vários defeitos personificados pela cor preta tem a mesma
representação no inconsciente do negro inferiorizado. Daí a necessidade de se negar.
Outro exemplo de estereótipo é o antropológico, que julga o sistema cultural do
homem negro. Segundo Mussa, o estereótipo antropológico serviu ao sistema escravista
como uma forma de justificar a escravidão dentro de uma sociedade cristã.
Desde o início da atividade negreira, foi sentenciado a inferioridade do
negro em relação ao europeu. Por não ser cristão, por não ter uma
civilização que ao menos se aproximasse do modelo da Europa (caso dos
árabes, por exemplo), o negro era considerado um selvagem, praticamente
um animal. Essa concepção etnocêntrica percorre a história brasileira até
chegar ao século XIX, época da configuração literária dos estereótipos,
com uma força tremenda, arragaida que estava na cultura ocidental como
forma única de manter a coerência étnica do escravismo cristão.
(
MUSSA, 1989, p. 73).
54
Este percurso do estereótipo antropológico, que tem seu ápice no século XIX,
permite que se volte ao passado a fim de observar a descrição negativa de uma negra
feiticeira em A HUMA NEGRA QUE TINHA FAMA DE FEYTICEIRA CHAMADA LUIZA
DA PRIMA”, de Gregório de Matos:
Dizem, Luiza da Prima,
que sois puta feiticeira,
no de puta derradeira,
no de feiticeira prima:
grandemente me lastima,
que troqueis as primazias
a lundus, e as putarias,
sendo-vos melhor ficar
puta em primeiro lugar
em ultimo as bruxarias.
Mas é certo e sem disputa,
que isso faz a idéia vossa,
pois para bruxa sois moça,
e sois velha para puta:
(...)
Isto suposto, Luizica
vos digo medroso,
que deve ser valeroso
o homem, que vos fornica;
porque se vos comunica
toda noite com sojornos
o demo dos caldos mornos
com seu priapo à faísca
à fé que muito se arrisca,
que põe ao Diabo cornos. (MATOS, 1999, p. 866-867
).
Os cultos praticados pelos negros tiveram a função simbólica de rejeição aos
aspectos da cultura européia dominante e, em alguns casos, indicava o grau pelo quais certos
escravos sabiam e podiam opor-se ao monolítico poder dos seus senhores.
55
Havia um certo temor dos senhores em relação às práticas de cultos dos seus
escravos. Ainda que em tom de sátira, o eu lírico revela esse medo: vos digo medroso”,
revelando a crença da sociedade neste poder. Sem o controle das ‘práticas dos feitiços’ e, em
muitos casos, utilizando-se deles na tentativa de resolver os seus próprios problemas, os
senhores de escravos apresentavam o comportamento dúbio de tolerância e depois de
completa negação:
Que de quilombos que tenho
Com mestres superlativos
Nos quais se ensinam de noite
Os calundus, e feitiços.
Com devoção os freqüentam
Mil sujeitos femininos
E também muitos barbados (...).
Não há mulher desprezada
Galã desfavorecido,
Que deixe de ir ao quilombo (...)
E gastam pelas patacas com os mestres de cachimbo (....)
(idem, p. 44).
Nestes versos de Gregório de Matos observamos uma situação em que os brancos
recorrem à ‘feitiçaria’ para resolver seus próprios problemas pessoais. A crença é muito
grande e os quilombos muito freqüentados. Os clientes, segundo a sátira de Gregório,
gastavam muito para ver sua questão resolvida.
Um dado comum na visão da religiosidade dos negros e que é ressaltado pelo poeta
“boca do inferno” através de Luiza, é a necessidade de afirmar para a sociedade que o negro
possui uma comunicação direta com o diabo.
Luiza, qualificada como feiticeira, tinha ainda a fama de ser “puta”, mas o poeta não
deixa de ser satírico ao afirmar que deve ser muito valente o homem que se deitar com ela,
56
tornando o diabo um “corno”. Ressalta-se, desta forma, o caráter demoníaco desta mulher e
a sua condição de perdida e de perdição. O eu lírico, ao longo do poema, declara: vós pelos
vossos pecados/ sois vasos de perdição”, o que evidencia que ela é humana por ter uma
alma que cometeu pecado, mas é considerada coisa no seu relacionamento com os homens e
mulheres da sociedade branca. A evidência maior neste poema é a tentativa visível no
sistema escravista em tentar vincular negros e negras ao diabo e não aos aspectos humanos.
Deve-se ressaltar ainda o fato de o poeta aproximar a bruxaria à prostituição. Através
de Luiza projeta-se um sentimento de aversão por este segmento marginalizado em seus
aspectos sócio-culturais (bruxa) e socioeconômicos (prostituta). Ou seja, a mulher negra é,
ao mesmo tempo, rechaçada à condição de perigosa para os valores cristãos (sois vasos de
perdição) e para os valores morais. Roberto Sicuteri (1985), em Lilith: A lua negra, reflete
sobre o entrelaçamento de bruxa, sexo e heresia a fim de justificar a Inquisição. Os dados
deste pesquisador, apesar de tratar de uma outra realidade, permite compreender a
necessidade de atribuir aos afro-descendentes as qualidades negadas pela sociedade com o
objetivo de condenar e reprimir.
Ao se pensar em construção de uma identidade, o processo histórico-racial torna-se
crucial. Uma história foi imposta ao negro: uma história de inferioridade e incapacidade,
carregada pelo seu corpo, ou melhor, pela sua melanina. E o negro se torna o animalizado, o
amaldiçoado, o negado, invisibilizado e aceito apenas através das máscaras brancas.
Nos dois estereótipos acima mencionados, é possível perceber a violência, mas é no
estereótipo sociológico que se percebe com eficácia a coerção do negro e a educação da
sociedade em seus fundamentos segregadores. De acordo com o estereotipo sociológico, os
57
negros eram “bons” ou “maus”. O negro era bom quando assumia as qualidades que o
senhor aceitava e lhe impunha: submissão, fidelidade, gratidão, trabalhador incansável,
resignado ao seu cruel sofrimento. O grande estereótipo nesse caso é o pai-joão. o negro
“mau”, ou o selvagem, era aquele que não aceitava a vida de escravo, sendo descrito como
pérfido, bárbaro, sanguinário, criminoso, fujão, feiticeiro, vagabundo, de uma sexualidade
animalesca. Em resumo, o negro selvagem configurava-se como um perigo para a
sociedade. Esquecendo-se de que o ser humano é contraditório, o estereótipo sociológico era
excludente: ou o negro era resignado ou selvagem, não podendo ser os dois tipos ao mesmo
tempo. (MUSSA, 1989, p.75).
O negro selvagem pode ser identificado nestes versos de Castro Alves:
Somos nós, meu senhor, mas não tremas,
Nós quebramos as nossas algemas
Pra pedir-te as esposas ou mães.
Este é o filho do ancião que mataste
Este – irmão da mulher que manchaste...
Oh! não tremas, senhor, são teus cães.
Cai orvalho de sangue escravo,
Cai orvalho, na face algoz
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz
(Alves, 1944, p. 199).
O escravo, aqui, ante tantas humilhações, transforma-se num vingador. Sua
vingança, porém, recairá sobre a mulher, sobre a mãe, partes frágeis no sistema patriarcal.
As vozes são de seres obrigados a percorrer em silêncio a “seara vermelha”, construída pelo
sangue dos escravos ofendidos e assassinados pelos seus senhores.
Apesar de no exemplo acima se encontrar uma idéia de escravo vingativo, que se
notar que há uma denúncia social associada a esta imagem de negro. Pode-se verificar, neste
poema, como o sistema escravocrata desestrutura o sentido de família do escravo,
58
impossibilitando-lhe o mínimo de organização social e psicológica. Nos escravos que
clamam por vingança, encontram-se seres que tiveram membros de suas famílias mortos,
mulheres violentadas. Assim, Castro Alves sugere, com a quebra das algemas, o fim de um
sistema violento. Os escravos, que vêm pedir as esposas e as mães de seus donos, deixam
implícito em seu discurso o pedido de tudo o que lhes pertenciam e que foi retirado.
Também Trajano Galvão, que iniciou no século XIX com os ventos do Romantismo,
olhou ao redor de si, descobriu o negro na senzala e começou a escrever poemas na grande
linguagem da época. Segundo Oswald de Camargo,
Foi uma iniciativa válida, pois não havia grandes interesses em escrever
sobre escravos. Escravos o mereciam literatura. Ninguém se deteria a
analisar psicologicamente um escravo, que era apenas uma coisa, um
vazio, no mesmo patamar dos animais. Então Trajano Galvão passa a se
interessar e ergue o negro a condição de objeto de literatura. Foi uma
valorização
.
(In: NICOLAU, 2000).
Em “Solau”, Trajano faz a narração da história trágica envolvendo Jovino, um
senhor de escravos, Cesarina, uma jovem negra que é castigada até a morte por se recusar a
ser objeto sexual de seu senhor e Antonio, o pai vingador que mata o senhor branco.
JOVINO
Antonio – o negro fugido...
Tu, infame calhambola!!
Nem mais um passo ou desfecho
Sobre ti esta pistola!!
Busquei-te por toda parte
Ora sim hei de amarrar-te.
ANTONIO
Se um brado só levantardes
Morto vos deitarei já!
Vós estais a descoberto
E eu atrás do jatobá...
Mas homens somos nós dois! (...)
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Dão-se tiros no terreiro
Tangido ronca o tambor
Vinte negros batem mato
Em procura do Senhor:
A caçar ele saiu,
Nunca mais ninguém o viu.
E aos negros que vem do mato
Perguntaram: que é do Senhor?
Respondem tristes, limpando
Da testa o suor:
A caça ele saiu
Nunca mais ninguém o viu! (...). (In: LEAL, 1874, pp. 392-4).
Neste poema, Antonio se configura como um escravo vingativo, traiçoeiro, mas,
acima de tudo, como aquele que recusando a vida de cativeiro, prefere viver como um
foragido. Porém, o se deve deixar de falar sobre a denúncia social que se expressa neste
poema. Ressalta-se, pois, a impossibilidade de uma vida familiar entre os escravos. Como
seus corpos o lhes pertenciam, as escravas tinham que se submeter à violência sexual de
seus senhores. O corpo da escrava é, desta forma, espaço para o prazer erótico e lugar onde
se comprova o poder do homem branco.
Mas há algo a ser dito sobre essa relação violenta na obra deste poeta romântico. Ler
a tragédia familiar destes escravos, no poema, é constatar a tragédia racial e social. Cezarina
não é a mulata brejeira e cordial, como a Crioula”, personagem de um outro poema, que
assim diz: nada que pague o gostinho/ De poder-se ao feitor no caminho/ Faceirando,
dizer não vou - ?Ao contrário, a mulher negra em Solau” é vítima. É a mulher que
opta pela morte cruel a ser violada. Assim, não se pode localizar no poema elogios ao ato de
seduzir, mas uma evidente denúncia ao canibalismo erótico.
O estupro configura-se como um aniquilamento total da humanidade da mulher. Ao
tentar violar o corpo de Cezarina, o senhor violar-lhe a alma, seus sentimentos. Para ela, flor
preste a ser arrancada, só resta um destino digno: a morte.
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Cezarina foge tal qual um animal que, apesar de caçado, resiste em ser devorado. O
poema revela, pois, que o sexo serve como definidor da exploração da escrava: no eito e no
leito, a mulher tem seu corpo violado. Ela produz trabalho, reproduz a mão-de-obra escrava
e produz prazer para o seu dono, o dono de seu corpo, de sua vida.
A relação sexual, no sistema escravocrata, deixa de lado a representação do amor, da
liberação, da saúde natural, do encontro de almas, de confraternização da vida para
transmitir a morte.
Como se pode apreender no poema “Solau”, a vida familiar do escravo não se livrava
da violência senhorial. Contudo, a vida amorosa era igualmente depreciada. O amor entre os
negros é colocado na condição de algo animalizado:
Sabem todos o que é o amor entre os escravos: a condição desnaturada
desses exilados da sociedade, desses homens reduzidos a coisas (...)
materializa neles sempre o amor. Sem socorro da poesia dos sentimentos
que alimenta o coração e o transporta às regiões dos sonhos que se
banham nas esperanças de santos e suaves laços, os escravos só se deixam
arrebatar pelo instinto animal, que por isso mesmo, os impele mais
violentamente
. (
MACEDO, 1937, pp. 65-66).
O que se pretende é destacar o caráter zoomorfizado dos escravos que não se portam
de maneira submissa. Apesar de verificar-se no escravo fiel essa zoomorfização, nos
escravos rebeldes um desprestígio em todos os sentidos, destacando-se neles um lado
demoníaco, a ausência de sentimentos, a capacidade de crueldades vis contra o branco.
na obra Flores Silvestres de Franscisco Bittencourt Sampaio, encontra-se uma
crioula satisfeita com a sua vida de mucama:
Eu gosto bem dessa vida
Porque não hei de gostar
A minha branca querida
61
Não hei nunca de deixar
Eu gosto bem dessa vida
Por que não hei de gostar
As violências da escravidão são encobertas pelos discursos de satisfação,
estrategicamente colocados na boca da mulher negra. Ao mesmo tempo, serve ao propósito
de educar os negros na submissão e transmitir para o exterior a imagem de uma escravidão
amena. Ainda sobre este discurso de sedução da mulher negra, Affonso Romano de
Sant’Anna acredita que a confortável situação do homem branco, proprietário do corpo e da
reprodução do escravo, levava-o a justificar-se perante si mesmo, convencendo-se de que a
escravidão, afinal, não era tão má. A violência sexual, desta forma, era a justificativa que o
senhor de escravos tinha para si, imaginando que uma escrava tinha como desejo apenas a
satisfação física que o homem branco supunha que lhe dava (SANT’ANNA, 1993, p.35).
Segundo conta, ela tem roupas finas, passeia ao cair da tarde, desperta a atenção de
velhos e moços e mantém um amor noturno com seu Senhor.
É sinhô-moço! Que agrado!
É sinhô como não há!
Diz-me sempre: “Tem cuidado”
Não contes nada à sinhá!
Mais à frente, ela afirma:
Já nem tenho saudade
Da minha terra gentil!
Sou escrava da amizade,
Quero morrer no Brasil. (SAMPAIO, 1974, pp. 141-148).
Na felicidade desta mucama, é possível novamente reconhecer o aniquilamento desta
negra como ser humano - em nome das regalias da casa grande - a fim de penetrar o mundo
62
do branco. Seu discurso transmite a idéia de sedução onde o sexo figura como um elo de
cordialidade das relações eróticas e sociais.
um aspecto levantado por Mussa que merece ser mencionado: a justificativa/
conseqüência na relação harmoniosa (sexual) entre os brancos e os pretos, no Brasil.
Segundo o pesquisador esta postura vai:
...solucionar uma contradição entre os estereótipos étnicos -antropológicos
e do pai-joão. Com efeito, uma vez caracterizado o negro como
repugnante e inferior, ficava difícil aceitá-lo no seio da família, seria
impossível crer um negro ‘bom caráter’. Por outro lado o estereótipo do
pai-joão era o mais desejado entre todos. Criou-se então, o conceito de
que o negro evolui quando em contato com o branco, mesmo sem o
alcançar. (...)
Em contrapartida, para que o caráter nocivo da raça não fosse esquecido,
desenvolveu-se o conceito de que o negro degenera-se quando exposto à
ação degradante do meio negro.(MUSSA, 1989, p.75-76).
A degeneração de um branco que se relaciona com uma mulher negra pode ser
visualizada em O Cortiço:
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o
espírito da economia e da ordem; perdeu as esperanças de enriquecer, e
deu-se de todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser
possuído só por ela, e mais ninguém. (AZEVEDO, 1979, p. 296).
O início do trecho dá conta de uma crença: a de que o sexo é um poderoso
componente na definição de uma especificidade brasileira e a figura da negra e da mulata,
em particular, é o símbolo da sensualidade e da malícia de uma população que vive num
território onde inexiste o pecado. No entanto, junto com essa especificidade brasileira,
atribuída aos negros (e que traz uma carga pejorativa: a da sexualidade desenfreada) vem
63
também a despreocupação com o crescimento pessoal. Através desta visão estratégica,
coloca-se no negro a culpa pelo seu fracasso e o fracasso de quem com ele convive.
A estereotipia do negro visava a controlar a participação do negro na sociedade e
Brookshaw (1983) encontra nos estereótipos duas faces: uma relativa ao comportamento que
se deseja no ser estereotipado, a outra é a que pune a transgressão do mesmo.
Os mulatos, geralmente homens livres, buscavam uma ascensão social e, por isso,
por não se contentarem com a posição de inferioridade na hierarquia social (comportamento
desejado), eram moralmente punidos, sendo considerados como ousados, pretensiosos,
atrevidos, ambiciosos, ridículos e vaidosos.
Numa conversa entre Oliveira e Floc, personagens de Recordações do escrivão
Isaías Caminha, é possível perceber a punição moral à pretensão dos mulatos:
- ... um moleque! Zurrou Oliveira.
_ De quem falas, Oliveira
_ Um mulato aí, um tal de Andrade...
_ Incomoda-te o que ele escreve
_ Com certeza, pois se chama o doutor Ricardo de pirata, de Barba Roxa...
_ Ora! tu! Essa gente esta condenada a desaparecer; a ciência já lhes
lavrou a sentença.
Ele de ciência sabia o nome e ignorava a conta de dividir. Calou um
instante e acrescentou:
_É preciso fulminar os nulos!
(
BARRETO, 1998, p. 95).
Isaías Caminha, representando os negros e os mulatos numa sociedade racista, sabia:
estava proibido de viver e fosse qual fosse o fim de minha vida, os esforços haviam de ser
titânicos” (idem. p. 68).
64
Lutar contra a inferioridade, assumirem-se como vitoriosos sem abandonarem-se
como negros não foi uma empreitada de sucesso para a maioria dos personagens
representados pela literatura do século XIX e início do século XX. Ou estes se aceitavam
como inferiores, invisíveis, ou enfrentavam uma luta na qual, embraquecido, o negro
rejeitava-se, invisibilizava-se e inviabilizava-se a si mesmo.
1.3.2 A simpatia camaleônica
O início do século XX coincide com uma fase de transição, em que se notavam
resquícios da literatura padronizada e conservadora. O Parnasianismo e o Simbolismo são
suas expressões mais contundentes. Foram necessárias mudanças, que eclodiram com o
Modernismo e a Semana de 1922. É inegável, porém, que outras tendências menores
preparavam o clima para estas mudanças estético-culturais que estavam por vir.
No Modernismo o negro ganha um espaço maior, visto que o período voltou-se
mais para as especificidades de cada região, procurando no que antes causava vergonha, a
representação da nacionalidade, abrindo-se para os setores marginais. Segundo Damasceno,
O Modernismo trouxe uma maior liberdade para o autor de basear-se em
seus próprios sentimentos e experiências como fontes de inspiração em
vez de usar moldes e temas estabelecidos a priori. Isto leva a uma nova
visão do mundo por parte do artista, a uma liberdade de linguagem na
maioria das vezes pouco preocupada com o significado lógico do poema.
E acrescentavam novas chances à introdução da temática negra, cuja
lógica, porque de outra cultura, pode não estar de acordo com os padrões
habituais.
(DAMASCENO, 1988, p.55).
65
Mas é na década de 30 que o estudo sobre o negro começa a se intensificar,
influenciado por Gilberto Freyre, Artur Ramos, Roger Bastide, Florestan Fernandes, entre
outros. No entanto, a influência européia se mantém e a antropofagia é a grande prova.
Poderá se notar a manutenção de preconceitos em várias obras deste período. Agora, porém,
o preconceito aparece diluído em uma simpatia que pretendia endossar um mito: o mito de
uma nação sem diferenças, sem linha de cor. Apesar disso, os estereótipos se mantêm, ou
como coloca Mussa, são “conotados”, adquirem um valor positivo.
Se durante o sistema colonial não houve a sistematização dos estereótipos de negros,
pois estes estavam numa posição inferior, a partir do século XIX inicia-se a construção de
tipos, momento que marca uma crise no sistema escravista. A tipificação do negro, desta
forma, cumpre o papel de manter firme a hierarquia social, regular as relações raciais. O
capitalismo se firma na economia e o negro continua em sua posição de inferior, mas,
crendo no paraíso racial, cultivava a esperança de ascensão. A estratégia era chamar o negro
ao convívio social, fazê-lo crer na possibilidade de igualdade nas relações, sem, no entanto,
dar-lhe espaço ou mesmo condições para o seu avanço. Fica claro, desta forma, que o
discurso da democracia tinha como finalidade evitar a revolta dos negros e, ao mesmo
tempo, responsabilizá-los pelos próprios fracassos. Através das palavras de Fernandes,
pode-se notar a dificuldade de o negro encontrar uma porta aberta para a ascensão social.
Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via
eficaz para a integração gradativa da população de cor, fecharam-se todas
as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área de beneficio
diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais.
(FERNANDES, 1995, p.23).
66
Percebe-se, pois, que não por culpa do negro, mas do próprio sistema social, a cor da
pobreza ainda prevaleceu como preta
.
Na produção de alguns pré-modernistas e modernistas, por exemplo, é possível
encontrar resquícios de uma introjeção do preconceito bem sutil, encoberto por uma áurea
de simpatia. No entanto, a maneira tipificada de representar prevaleceu, na qual o negro
continuava a ser representado em condições subalternas. É o caso de Tia Nastácia,
personagem de Monteiro Lobato.
Em Histórias de Tia Nastácia encontra-se uma visão ainda tipificada do negro. Tia
Nastácia é uma negra que cuidou de Lúcia quando esta era pequena. Embora conviva em
clima de afetividade com a família matriarcal branca para qual trabalha, ainda fica confinada
na cozinha, espaço representativo de sua desqualificação. A obra acima foi publicada em
1937 e é uma antologia de contos populares, em que Tia Nastácia narra histórias para os
demais moradores do sítio que, na posição de ouvintes, comentavam o que ouviam. Mas a
platéia mostrava-se muito insatisfeita com as histórias narradas, não poupando críticas:
Pois cá comigo disse Emília aturo estas histórias como estudos da
ignorância e burrice do povo. Prazer não sinto nenhum. Não são
engraçadas, não têm humorismo. Parecem-me muito grosseira e até
bárbaras coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto,
não gosto, e não gosto! (LOBATO, 1957, p.30).
Tia Nastácia representa a presença da cultura e saberes populares, frutos do
conhecimento da vida pelo seu exercício real. No entanto, no comentário de Emilia, é
possível perceber a idéia de superioridade racial. Por conseguinte, os saberes da velha negra
são desqualificados, identificando, assim, o estereótipo antropológico que julga os valores
de um povo (“ignorância e burrice do povo”, “grosseira e bárbaras”, são expressões que
67
exemplificam a afirmação). É possível, igualmente, perceber a estereotipia étnica, pois, há
um julgamento da aparência física do negro, enfatizando de forma pejorativa a boca de Tia
Nastácia: “negra beiçuda”, como se verifica no exemplo a seguir:
Bem se que é preta e beiçuda! Não tem a menor filosofia, esta diaba.
Sina é o seu nariz, sabe? Todos os vivente têm o mesmo direito à vida, e
para mim, matar um carneirinho é crime ainda maior que matar um
homem. Facínora!
– Emília, Emília! – ralhou Dona Benta.
A boneca botou-lhe a língua. (idem, p.132).
Estas expressões provam a existência de uma simpatia estereotipada na obra de
Lobato, pois o carinho que cercam figuras como Tia Nastácia e Tio Barnabé não lhes
permite ocupar o mesmo espaço cultural dos outros personagens.
O tratamento dispensado à Tia Nastácia nos permite regressar um pouco no tempo
com a finalidade de estabelecer um paralelo com um outro personagem negro: Raimundo,
do romance Iaiá Garcia de Machado de Assis. A obra foi escrita por volta de 1860 e nesta
podemos perceber o mesmo aspecto da “sem cerimônia” no tratamento ao homem negro, a
fim de ainda manter a hierarquia nas relações.
Sobre este personagem, Gizelda Melo do Nascimento assim se expressa:
Sob esta perspectiva o captamos Raimundo, entrevemo-lo apenas nas
infinitas vezes em que a porta se entreabre, à espera de um recado a
enviar. Companheiros sempre, da porta prá fora; e o que se percebe em
Raimundo é um moleque de recado. Apesar da idade avançada, um
moleque: a eterna criança a quem se pode dar ordens sem se vexar.
(NASCIMENTO, 2002, pp. 55-56).
As criações de Machado de Assis e Monteiro Lobato, apesar de se distanciarem em
quase 100 anos, demonstram que a manipulação da imagem do negro em nada avançou. Ou
68
seja, mesmo sendo Tia Nastácia e Raimundo pessoas de idade, devido à cor da pele,
poderiam ser abordados de forma inferior.
Raimundo não ocupa o mesmo espaço de seus senhores na narrativa. Nascimento
(2002) percebe a hierarquia presente no romance e as transformações zoomórficas do
personagem negro e, assim sendo, aborda a existência de vazios em relação à história deste
homem, sem espaço para manifestar-se, sem voz narrativa:
Raimundo, por mais considerado que fosse, jamais transporia para dentro.
Estava fora da ordem do Senhor. Raimundo é construído de ausências.
Qual a história desse homem? Onde dorme, onde come? Com que sonha?
Provavelmente com sua terra (...) Sonhar com África seria sua história.
Sonhar com o que já foi; projetar-se no passado. No Brasil, não. Em terras
brasileiras não possibilidade de projeto mesmo em posse de uma carta
de alforria. Nessas terras, não há espaço para o sonho porque nela o negro
não tem história e não tem história porque não tem discurso. Também
porque o sonho sendo próprio ao homem, como alimentá-lo destituído que
estava de sua humanidade? Cadeias de ausências a decompor e anular sua
representação. Seu destino é vagar pelo jardim; seu espaço, esperar à
porta por um recado. Eterno moleque Raimundo! (NASCIMENTO, 2002,
p. 56).
Em relação ao papel de Tia Nastácia como contadora de história, como agente do
discurso, há que se destacar que as críticas devem-se à sua posição social (ela é doméstica) e
a cor de sua pele (ela é negra). Conseqüentemente, relata histórias que vem da tradição oral,
não desempenhando função mediadora da cultura escrita e, por conseguinte, ficando sua
posição subalterna à de seus ouvintes, consumidores exigentes da cultura escrita. Desta
forma, os ouvintes reclamam da verossimilhança e da precariedade das estruturas narrativas:
_
Esta história – ainda está mais boba que a outra. Tudo sem nem
cabeça. Sabe o que me parece? Parece uma história que era de um jeito e
foi se alterando de um contador para o outro, cada vez mais atrapalhada,
isto é, foi perdendo pelo caminho o e a cabeça. (LOBATO, 1957, p.
21).
69
Tia Nastácia, como se pode verificar, é silenciada. Seu discurso, a tradição oral de
seu povo, a cultura africana expressa em seus contos são desqualificados. Ou seja, sempre
que a personagem tenta transmitir a história e cultura de seu povo com a finalidade de
assegura-se a continuidade da identidade social do negro e reconhecer seu espaço cultural no
mundo as demais personagens, através das críticas, mantêm intocável a hierarquia nas
relações.
70
CAPITULO 2 - A POÉTICA NEGRA DE SOLANO TRINDADE
Não construirei
um poema
que me imortalize
Nem passarei para a história
como um grande artista
ficarei com o povo
na sua canção
e assim cumprirei
a minha missão de poeta.
Solano Trindade
Solano Trindade nasceu em Recife, no ano de 1908, no bairro São José. Seu
nascimento remete a um período em que, apesar da Lei Áurea, as marcas da escravidão
persistiam na identidade cultural do país. As cicatrizes deste período resistiram por décadas,
gangrenando a sociedade, criando barreiras nas relações sociais e políticas. Segundo Sérgio
Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, a escravidão “fundou a civilização brasileira. E
ao fazê-lo, viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites era manter a
diferença com relação ao restante da população(HOLANDA, 1994, p. 27).
A compreensão da atitude humilde, fundamento do estilo que Solano Trindade adota,
é um aspecto que deve ser investigado em sua obra. A produção, assim sendo, é marcada
71
pelo desejo de simplicidade tanto nos temas quanto na linguagem. Esta questão pode ser
encarada como uma disposição para agir e significar que acaba implicando em um modo
especifico de conceber o poético e fazer concretamente o poema. O poeta busca a
simplicidade, escorando na humildade como pano de fundo. Mas é preciso reconhecer que a
relação que o poeta teve com a pobreza foi, também, essencial Assim, o poeta imprime a
condição de seu nascimento humilde em “Poema Autobiográfico”:
Quando eu nasci
meu pai batia sola
minha mana pisava milho no pilão
para o angu das manhãs. (TRINDADE, 1961, p.177).
Seu pai, o sapateiro Manuel Abílio legou ao poeta amor às danças Pastoris e ao
Bumba-meu-boi. Esta lembrança é responsável por uma tomada de atitude: a busca da fonte
popular para compor a sua poesia.
O meu pai
era um bom sapateiro
e foi o menino de ouro
do Pastoril
de Ponta de Pedra (idem, p.181).
Mas é em “Bumba meu boi” que se pode notar uma influência mais profunda.
BUMBA meu boi
Da minha infância
<< Seu capitão>>
Minha fantasia
<<Mateu Bastião>>
Primeiro poema
Que o povo me deu. (idem, p. 131).
72
Nestes versos podemos perceber que o universo oral começa a se desenhar,
mostrando que Trindade valorizava a cultura popular. O poeta trabalha com o elemento
vivo desta cultura: o povo. Percebeu, pois, que a expressão deste povo era bastante rica para
alimentar uma literatura. Por isso, em sua obra, evocou a sociedade brasileira, com todo o
vigor de sua força criadora. Auscultou o bater juvenil do coração popular, aproveitando os
seus contos, as suas lendas, as suas músicas como fonte de inspiração, a fim de criar e
produzir obras que nada ficariam a dever às consagradas.
Outra grande preocupação na poética de Solano foi o amor expresso em defesa dos
marginalizados. Alguns versos de sua obra podem oferecer uma dimensão desta influência.
Sou amante da revolução
(...)
Amo o oprimido
Odeio o opressor (idem, p. 183).
Pode-se deduzir, desta forma, que a luta deste poeta confunde-se com a história de
um período crítico. A década de 30, quando Solano começa a se dedicar ao trabalho
artístico, foi marcada por uma nova maneira de encarar a arte literária. Há neste período uma
maior valorização do aspecto social. No âmbito antropológico, Casa Grande & Senzala, de
Gilberto Freyre, teve um papel essencial, fazendo com que alguns intelectuais olhassem de
forma mais “simpática” a contribuição cultural dos descendentes de africanos. Mas, a obra
de Gilberto Freyre, apesar de marco na literatura que incluía o negro, legitimou um ponto de
vista que olhava, representava e invisibilizava o negro. A grande prova disso foi considerar a
cobiça da mulher africana como prova de humanismo nas relações senhores e escravos, da
73
benevolência dos senhores
6
, fazendo com que o Brasil aceitasse um mito domesticador: o
mito da democracia racial. Pode-se notar, pois, a sua colaboração para manutenção dos
estereótipos nas representações do homem negro e para a sua inferioridade social de
relegado às favelas, aos mocambos, às periferias distantes, ao subemprego.
É contra esta realidade que Solano Trindade vai lutar. no final da cada de 20
começa a escrever poemas negros, dos quais jamais se afastará. É a tomada de consciência
da sua condição de homem.
Trindade inicia neste período, de igual forma, uma luta ativa. Em 1931, por exemplo,
é criada a Frente Negra Brasileira
7
, mas que será fechada pelo Estado Novo – regime
6
Alguns trechos do livro dão conta desta cobiça da escrava, muitas vezes utilizada para provar que tanto não
havia preconceito como era comum a relação entre brancos e negros:
- O que a negra da senzala fez foi facilitar a depravação com a sua docilidade de escrava; abrindo as pernas ao
primeiro desejo do sinhô-moço. Desejo, não: ordem. (p. 425).
- Botina e mulher só pretas (p. 338);
- Só queria saber de mulecas (p.344);
- São é geral pretalhonas de elevada estatura - essas negras que é costume chamar de baianas. (p. 370);
- Indiferentes aos refinamentos do amor. (p. 372);
- Não há escravidão sem depravação sexual. (p. 372);
- Negras tantas vezes entregues virgens, ainda mulecas de doze e treze anos, a rapazes brancos podres de
sífilis das cidades.(p. 373);
7
A Frente Negra Brasileira constituiu-se em um movimento de caráter nacional, com repercussão
internacional. Surgiu da obstinação de negros abnegados, como Francisco Lucrécio, Raul Joviano do Amaral,
José Correia Leite (que, depois, dela se afastará por motivos ideológicos) e mais alguns.
Fundada em 16 de setembro de 1931, sua sede social central localizava-se na rua Liberdade, na capital paulista.
Sua estrutura organizacional era bastante complexa, muito mais do que a quase inexistente dos jornais. Era
dirigida por um Grande Conselho, constituído de 20 membros, selecionando-se, dentre eles, o Chefe e o
Secretário. Havia, ainda, um Conselho Auxiliar, formado pelos Cabos Distritais da Capital. O objetivo da
Frente era um programa de luta para conquistar posições para o negro em todos os setores da vida brasileira.
Em face dos êxitos alcançados, a Frente Negra resolveu transformar-se em partido político. Tinha todas as
condições exigidas pela Justiça Eleitoral da época, e entrou com pedido nesse sentido em 1936. Sobre o
assunto houve discussão entre os membros do Tribunal, que chegaram a alegar uma tendência racista na
Frente. Finalmente o seu registro foi concedido. Durou pouco, porém. Logo em seguida, 1937, o golpe de
Estado deflagrado por Getúlio Vargas implantando o Estado Novo dissolverá todos os partidos, entre eles a
Frente Negra Brasileira.
Houve um trauma muito grande na comunidade que a acompanhava ou militava nos seus quadros. Milhares de
negros sentiram-se desarvorados politicamente. Um dos seus fundadores, Raul Joviano do Amaral, tenta
74
autoritário, vinculado aos ideais fascistas que pregava um Estado Forte, regulador das
tensões sociais. Em 1934 ele participa do Congresso Afro-brasileiro, no Recife e o em
Salvador. Em 1936 funda, com o escritor José Vicente e o pintor Barros, a Frente Negra
Pernambucana e o Centro de Cultura Afro-brasileira, para a divulgação de artistas negros.
Em 1930 publica Poemas Negros e em 1940 funda em Pelotas, um grupo de arte popular,
que seria o embrião do Teatro Popular Folclórico. Em 1945, junto com Abdias do
Nascimento, criou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro. Com Haroldo Costa fundou o
Teatro Folclórico. Segundo Márcio Barbosa, um dos organizadores dos Cadernos Negros,
“Na cidade maravilhosa, Solano era freqüentador do Café Vermelhinho, onde se reuniam
intelectuais, políticos, jornalistas, escritores e artistas de teatro. Ali era amigo de pessoas
como o Barão de Itararé e Santa Rosa. Filiou-se ao Partido Comunista, as reuniões da célula
Tiradentes ocorriam na sua casa”. O comunismo marca um espírito militante e se imprime
em sua obra através de seu chamado “Contra o fascismo/ marchemos camaradase através
da cor vermelha que se faz presente em diversos poemas:
Icei uma bandeira vermelha no meu peito
transformei-me em sinaleiro de caminho
coloquei uma canção rubra em minha boca
eu sou agora anunciador de boas novas... (TRINDADE, 1961, p. 75).
Num período repressor (como foi o governo entre os anos de 1946 a 1950) a voz de
Solano precisava ser calada. Assim, durante a perseguição aos comunistas, empreendida
pelo governo Dutra, Barbosa informa que “entram na casa de Solano. Seu filho, Liberto, está
conservar a entidade, mudando-lhe o nome para União Negra Brasileira. Mas a situação geral do país não era
favorável à vida associativa no Brasil e a repressão via atos subversivos em qualquer organização. O jornal A
Voz da Raça deixa de circular. A censura é imposta a todos os órgãos de imprensa e, a União, que procurou
substituir a Frente, morre melancolicamente, em 1938, exatamente quando se comemoravam 50 anos da
Abolição. Moura, Clovis. História do Negro Brasileiro. São Paulo: Editora Ática S.A., 1992
75
deitado, doente. A polícia vira o colchão, à procura de armas, Exemplares de seus livros são
apreendidos. A filha Raquel lembra: Papai jamais esconderia armas. Sua luta era feita com
idéias’".
O resultado desta perseguição pode ser observado nos versos: Fui prisioneiro/ Fui
liberto/ Sou amante da revolução”, (TRINDADE, 1961, p. 162).
Preso, ele não se abala. Raquel e a mãe, Margarida, percorrem as cadeias até
encontrá-lo. Quando sai, Solano parece fortalecido: “Hoje estou exuberante/ estou poroso de
poesia/ como o liberto/ recém saído da cadeia/ (...)” (idem, p.164).
Continuou a escrever e a fazer teatro. De acordo com Barbosa “O interesse de
Solano pela cultura popular ia além da teoria: não se cansou de fundar grupos teatrais.
Preocupava-se com o que chamava de folclore, com as danças populares. Dizia sempre que
era necessário pesquisar nas fontes de origem e devolver ao povo em forma de arte”. Assim,
nasce em 1950, com o apoio de Edilson Carneiro e Margarida Trindade, o Teatro Popular
Brasileiro que fazia uma leitura séria de danças como maracatu e bumba-meu-boi.
O espírito aguerrido de Solano marcou sua poética. Ele próprio assume em
introdução a Cantares ao meu povo: “Agradam-me profundamente os títulos ‘poeta negro’,
‘poeta do povo’, ‘poeta popular’, às vezes dito de modo depreciativo – mas que me dão uma
consciência exata do meu papel de poeta na defesa das tradições culturais do meu povo, na
luta por um mundo melhor” (TRINDADE, 1961, p.25). Foi comparado a importantes
escritores como o cubano Nicolas Guilhén - de quem foi amigo - e o americano Langston
Hughes
8
. Na poesia afirma com orgulho a sua descendência: Sou filho de escravo”.
8
Sobre comparação de Solano com Lansgton Hughes há uma dissertação de mestrado de 1998, do professor
Hatner.
76
Sensível às injustiças não se furta a denunciar as condições de vida às quais o povo é
submetido.
A MINHALMA nasceu africana
Aprendi a amar com as águas do rio
Compus meus poemas com o povo na rua
Com o povo na rua cantei e dancei... (idem, p.62).
Neste pequeno trecho podemos localizar a presença do dialogismo
.
De acordo com
Bakhtin (1978) dialogismo é o princípio constitutivo da linguagem, o que quer dizer que
toda a vida da linguagem, em qualquer campo, está impregnada de relações dialógicas. A
concepção dialógica contém a idéia de relatividade da autoria individual e,
conseqüentemente, destaca o caráter coletivo e social da produção de idéias e textos. O
próprio humano é um intertexto, não existe isolado, sua experiência de vida se tece,
entrecruza-se e interpenetra-se com o outro. Pensar em relação dialógica é remeter a um
outro princípio a não autonomia do discurso. As palavras de um falante estão sempre e,
inevitavelmente, atravessadas pelas palavras do outro. O discurso elaborado pelo falante se
constitui também do discurso do outro que o atravessa, condicionando o discurso do eu. Em
linguagem bakhtiniana, a noção do eu nunca é individual, mas social.
Em “Viva a rapaziada da canela suja”, assim como em outros poemas, Solano
Trindade revela este processo dialógico, em que reconhece a influência do povo, da
sociedade que o cerca para compor suas poesias. Assim, o eu lírico, no poema, declara:
Compus meus poemas com o povo na rua”.
Os fatores sociais determinam o conteúdo da consciência, ou seja, do conjunto dos
discursos que o poeta observa ao longo de sua vida forma a sua consciência. O mundo que
77
ele revela em suas obras se pelos discursos que ele assimila, formando seu repertório de
vida.
Mas, é preciso ter em mente que o fato de a consciência ser determinada socialmente
não permite inferir que o ser humano seja meramente reprodutivo, o que se ressalta é,
portanto, a criatividade do sujeito humano. O poeta social Solano Trindade nasce, portanto,
com o exercício de sua linguagem.
Solano conseguiu, igualmente, unir em sua poética sua sensibilidade às injustiças
sociais e a consciência de necessidade da defesa da causa negra. Através do trecho do poema
“Viva a rapaziada da canela suja” nota-se claramente que o eu lírico apela para a
ancestralidade africana que lhe impregna a alma desde o nascimento.
A poesia de Trindade, como se pode verificar, demonstra um caráter ecumênico,
pois, apesar de produzir em favor do negro, mantém um posicionamento aberto. Ele coloca-
se no meio do povo, solidário com todos: Com o povo na rua cantei e dancei”. Sua poesia
pode ser considerada como política-social na qual se percebe a denúncia das injustiças e
opressão e comovem o leitor por sua essência e seu grau de sensibilidade em defesa da
igualdade dos direitos e da dignidade humana. Sua produção expressa inconformismo, com
simplicidade em que brilha oculto o sublime.
Solano viveu na cidade de Duque de Caxias, bastante distante do centro da capital
do Rio de Janeiro. Todos os dias ele utilizava um trem. Nestas indas e vindas não fechou os
olhos para a pobreza, a miséria da sociedade. No poema “Tem gente com fome”, que imita o
ritmo do trem correndo, reconhece-se solidariedade humana na voz do poeta:
78
TREM sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome.
Piiiiii
estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás da Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
79
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
psiuuuuuuuuuu
(idem, pp. 65 e 66)
O ritmo é o de um trem em movimento. A repetição do verbo “correndo” a
intensidade e a velocidade deste meio de transporte. A ausência de pontuação aumenta o
ritmo contínuo do trem e, ao mesmo tempo, enfatiza a questão da miséria como um
problema que ainda não encontrou uma parada. O ritmo apresenta-se como o elemento mais
significativo do poema, pois vida a um lirismo angustiado. A repetição dos versos “tem
gente com fome” reforça uma mensagem no subconsciente do leitor: no grito do trem em
movimento, está o grito do pobre brasileiro, social e economicamente oprimido. A cada
nova estação, o grito por socorro, personificado no ritmo do trem, se repete.
As estações ferroviárias citadas ao longo do poema são reais: Caxias,Vigário Geral,
Lucas, Cordovil, Brás da Pina, Estação da Penha, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Carlos
Chagas, Mauá. A inclusão destas dão maior veracidade à realidade apresentada e reforçam a
idéia de pobreza, pois as estações pertencem às áreas de concentração populacional onde se
localiza uma forte desigualdade socioeconômica.
A voz do coletivo é traduzida no ritmo do trem. Contudo, o rosto deste coletivo
ganha contornos, ainda que abstrato: a tristeza e a esperança de chegar ao destino, em algum
lugar. Fica evidente, nesta estrofe, uma ambigüidade. Pode-se pensar no sentido de chegar
80
ao destino que leva o indivíduo a utilizar o trem, mas é possível inferir a idéia de chegar a
uma realidade mais digna, mais humana.
A penúltima estrofe vai ganhando um ritmo mais lento. O poeta consegue este efeito
acrescentando uma conjunção alternativa “se” no início da frase “tem gente com fome”. No
verso seguinte, há o apelo para a solução da miséria até então exposta: “dá de comer”. A
repetição destes versos cumpre a finalidade de reforçar o pedido, a fim de persuadir através
da leitura.
Na última estrofe fica representado o autoritarismo do freio de ar que manda o trem
calar “Psiuuuuuuuu”. Fica evidente, nestes versos, a crítica social e a representação de um
momento político de ações governamentais repressoras.
Por ter sido um artista que sempre se preocupou em representar o povo brasileiro em
seus versos, a morte do poeta no Rio, em 1974, foi apenas uma morte física. No entanto,
permaneceu na memória de muitas pessoas e em 1976, voltou aos braços do povo, na
avenida. Foi tema da escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, com enredo elaborado por sua
filha Raquel. Os versos do samba de Geraldo Filme ainda ecoam: Canta meu povo, vamos
cantar em homenagem ao poeta popular. Vai-Vai é povo, está na rua saudoso poeta, a noite
é sua”.
Solano deixou 5 livros publicados, o último foi Cantares ao meu povo. Deixou,
acima de tudo, exemplos de sabedoria e lições para que o povo negro se orgulhasse das suas
origens étnicas e de suas tradições culturais. Possuía a felicidade dos homens que se
dedicam a uma grande obra e se confundem com ela. Quase no fim da vida, afirmou que
tinha de haver maior solidariedade entre os negros de todo o mundo, os quais deveriam se
reunir aos brancos que são contra o racismo. Solano de barba e cabelos brancos: a imagem
81
pode ser a de um operário, de um lutador, de um sábio. Esquecido por alguns, lembrado por
muitos, ele vive na obra que deixou. Palavras escritas num poema à filha Raquel se tornam
proféticas: Estou conservado no ritmo do meu povo/ Me tornei cantiga determinadamente e
nunca terei tempo para morrer. (TRINDADE, 1981, p.42).
2.1. Cantos que se cruzam: Solano no contexto de escritura negra
No primeiro capítulo, breves comentários sobre a imagem do negro na literatura
brasileira servem para consolidar a afirmação de que na poesia de Solano uma imagem
diferente do afro-descendente, mesclada de simpatia, solidariedade, mas numa voz que
procura resgatar a identidade que foi se perdendo ao longo da história de colonização.
que se colocar, no entanto, que o canto de Solano não foi um canto isolado. Sua
poética forma um coro com outras vozes que marcam, segundo o poeta Oswald de Camargo
o surgimento da literatura feita por afro-descendentes. Este, quando questionado sobre o
surgimento dessa literatura e se era possível identificar suas fases até os dias atuais,
responde:
Ela começa a existir a partir do momento que o negro olha para si mesmo
e passa a contar como negro suas experiências particulares, suas
memórias, sua vida, suas diferenças, sua identidade, mesmo que esta
escrita tenha como base um português camoneano. A grosso modo
podemos iniciar este movimento com Luís Gama ao escrever o poema
"Bodarrada", que traz o problema da identidade negra. Um texto como
"Bodarrada" poderia ter saído de um negro. O branco não pode
idealizar isto, pois o autor está trazendo sua experiência particular de
negro. (…) Depois vem Cruz e Souza com "Consciência Tranqüila",
"Escravocratas" e sobretudo "Emparedado". Essas obras são
particularíssimas, jorram de dentro de um "Eu" negro. Continuando,
82
podemos lembrar Lima Barreto e dizer que uma nova fase da literatura
negra se inicia em 1926, quando aparece a figura de um poeta pobre e
pequeno, Lino Guedes, que escreve com os olhos voltados para a
comunidade negra. A diferença é que Luiz Gama e Cruz e Souza
escreveram sobre o negro, mas não para um público negro. Já Lino
Guedes escreve como negro, sobre o negro, para o negro, num momento
de ebulição cultural e social. Não podemos considerar a obra de Lino
Guedes como grande literatura, mas vale como marco do começo da
negritude no Brasil. Depois vem Solano Trindade com sua poesia política,
contestatória e marxista, que um rumo de grandeza à literatura negra
cantando e exaltando Zumbi dos Palmares. Um contraponto ao trabalho de
Lino Guedes, que era católico e moralista. Podemos dizer que a literatura
negra atual segue essas duas tendências, somadas às influências africanas
e sobretudo norte-americanas. Portanto, podemos ordenar desta forma:
Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino
Guedes e Solano Trindade.
(In: Nicolau, 2000).
Apesar de longa, a citação permite verificar como o próprio escritor classifica a
escritura negra. Assim sendo, Camargo busca no subjetivismo, no “eu” que se assume como
um enunciador, as características da literatura negra. Discorda, portanto, de Zilá Bernd
(1988, p.25) quando esta afirma que a literatura negra não se atrela à cor da pele do autor.
Sua definição vai ao encontro das crenças de Benedita Damasceno quando esta expõe que
as marcas da escravidão, das derrotas e humilhações sofridas pelos negros vão imprimir
uma diferença entre o discurso deste e o do branco que desconhece na prática este
sofrimento (1988, p.64). Camargo considera, pois, fundamental a experiência particular de
ser negro.
Dentre os vários escritores negros e os que escreveram sobre o negro, Camargo
distingue como essenciais para se perceber a passagem do negro personagem (sem voz) para
ator e escritor: Domingos Caldas Barbosa, Luís Gama, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino
Guedes e, por fim, Solano Trindade. Estes são nomes guias, pois para que possamos medir a
importância de um escritor e de sua obra, assim como vislumbrar até que ponto ela
83
influenciou a produção literária de seus sucessores, é preciso esperar 30, 50 anos, de acordo
com Oswald.
Neste trabalho, no entanto, haverá um enfoque nas figuras de Luís Gama, Cruz e
Souza, Lima Barreto e Lino Guedes, procurando verificar possíveis contatos entre a
produção destes literatos e a poesia de Solano, uma vez que todos eles tematizaram a
opressão humana, numa solidariedade especial com o negro. A escolha destes autores
propõe também ir ao encontro de uma das principais características da poética negra que diz
respeito à presença de um eu enunciador negro.
2.1.1. “Bodarrada” e “Quem tá gemendo?”
A produção literária de Luís Gama limita-se a um único livro, Primeiras Trovas
Burlescas de Getulino, além de poemas esparsos e artigos publicados nos jornais.
A ousadia permeia esta obra, a começar pela própria situação de negro-autor, numa época
que timidamente o negro ocupava a posição de personagem secundário na literatura
brasileira. A produção de Gama antecede os versos de Cruz e Souza, o nosso Cisne Negro, e
a prosa engajada e suburbana do mulato Lima Barreto. Sua obra faz contraponto também
com os poemas de Castro Alves. Enquanto este cantava a abolição como condor
apaixonado, Luiz Gama açoitava de maneira irônica as formas de preconceito racial, assim
como o sistema escravista. Assim, seu livro se caracteriza principalmente pelas sátiras à
sociedade da época em que viveu e escreveu. Em seus versos, retratava a política e os
costumes brasileiros com um humor ferino e inteligente. Na pele de Getulino, satiriza a
84
pretensa fidalguia branca das nossas elites, o preconceito racial, a política conservadora e
monárquica do país não poupando nem mesmo a figura de D. Pedro II.
Ao mesmo tempo, demonstrava o orgulho de ser negro. Também foi o primeiro a
cantar a beleza da Musa de Guiné, da cor do azeviche, em pleno contraste à musa branca
européia que dominava a literatura da época. Essa consciência étnica é fruto da própria
trajetória de vida de Luiz Gama. Filho de uma negra male, foi o único intelectual negro e
autodidata brasileiro a sofrer as agruras da escravidão. Ao escrever, pois, fala do lugar de
quem sentiu as violências da escravidão na própria pele.
De seus poemas, o mais lembrado é “Quem sou eu”, mais conhecido como “A
Bodarrada”. Obra-prima da sátira nacional, o poema desnuda com maestria a hipocrisia da
sociedade, ao listar quantos “bodes” escondidos em trajes de alva ovelha existia (e existe)
nas elites brasileiras, além de reafirmar sua simpatia pelas classes marginalizadas
procurando desvelar a identidade de cada um. Observe:
Se negro sou, ou sou bode
Pouco importa. O que isto pode?
Bodes há de toda casta
Pois que a espécie é muito vasta...
Há cinzentos, há rajados,
Baios, pampas e malhados,
Bodes negros, bodes brancos,
E, sejamos todos francos,
Uns plebeus e outros nobres.
Bodes ricos, bodes pobres,
Bodes sábios importantes,
E também alguns tratantes...
(GA
MA, 2000, pp. 113-118).
A leitura deste trecho do poema torna possível aproximar Luís Gama e Solano
Trindade, pois ambos explicitam em suas obras a condição social do homem. Ou seja,
buscam demonstrar através dos versos que o lugar que interlocutor e poeta-negro ocupam
85
são semelhantes. Desta forma, não uma visão fatalista diante da tentativa de
inferiorização do negro, mas uma aceitação do olhar preconceituoso (Se sou negro ou sou
bode/ pouco importa) para, em seguida, tornar àquele que observa vítima do próprio
preconceito, pois nesta terra “tudo é bodarrada”. Outros poemas de Gama em que os
homens são igualados são “Do Sortimento de Gorras para a Gente do Grande Tom, e “Não
Pôde Negar Ser Meu Parente.
No poema “Bodarrada”, o poeta joga com o termo depreciativo dado aos negros e
mulatos: Bode. Através deste substantivo a imagem do afro-descendente é associada ao
bode, símbolo da luxúria, do demônio. Animal impuro, completamente absorvido por sua
necessidade de procriar, o bode representa um signo de maldição, cuja força atingirá seu
auge na Idade Média; o diabo passa a ser apresentado, nessa época, sob a forma de um bode.
Nota-se, pois, a tentativa de desqualificar o negro através da zoomorfização. O eu lírico, no
entanto, mostra que muitos outros “bodes” na sociedade, uma vez que em todas as
camadas sociais se percebe a impureza e a corrupção. Assim, a voz no poema confirma:
E, sejamos todos francos,/ Uns plebeus, e outros nobres,/ Bodes ricos, bodes pobre,/ Bodes
sábios, importantes,/ E também alguns tratantes.../ Aqui n’esta boa terra, Marram todos,
tudo berra;”.
O eu lírico não ataca apenas os cidadãos, mas também suas crenças e valores. Assim,
ao se referir ao cristianismo, por exemplo, rejeita a hierarquia entre divindades e humanos,
pois “Onde habita a Divindade/ Bodes há santificado/ Que por nós são adorados./ Entre o
coro dos Anjinhos/ Também muitos bodinhos”. O que se constata é que o eu lírico não
aceita em nenhum nível a visão hierarquizada que visa a inferiorizar. Ou melhor, ele aceita-
86
a, mas, ao mesmo tempo, demonstra que todos pertencem a uma mesma linhagem: Em
todos há meus parentes”.
Assim sendo, verifica-se uma crítica à tentativa de despersonalizar o negro através
da comparação destes com os animais. O poeta rejeita a condição de outro”, exigindo um
tratamento igualitário. Demonstrando, então, que se ele é homem ou bode, pouco importa,
pois sendo uma coisa ou outra, assume-se como igual.
Também Solano Trindade une um símbolo inumano à figura do negro. Em “Quem tá
gemendo?”, humano e não- humano desempenham a mesma função. Ou seja, os sons do
negro e do carro de boi se igualam e confundem-se:
Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi?
Carro de Boi geme quando quer
Negro não
Negro geme porque apanha
Apanha pra não gemer
Gemido de negro é cantiga
Gemido de negro é poema
Geme na minhalma
A alma de congo
Do Níger da Guiné
De toda a África enfim
A alma da América
A alma universal
Quem tá gemendo
Negro ou carro de Boi? (TRINDADE, 1961, p.36).
Neste poema, nota-se que Trindade aspira à integração, mas sem perder a dignidade
cultural do grupo. Assim, “Quem tá gemendo?” transmite uma síntese da mensagem de
87
irmandade universal de forma afirmativa sem, entretanto, deixar de lado as qualidades
tradicionais de humor e phatos que fazem parte da poesia brasileira. De acordo com
Brookshaw (1983, p.161):
Uma das formas pelas quais um afro-brasileiro poderia alcançar a fama do
mundo dos brancos era salientar sua cor, apelando assim para a
compaixão do homem branco e adaptando-se ao fato de o homem branco
vê-lo como uma figura folclórica, um artista natural, um palhaço –e,
conseqüentemente, uma figura de humor e phatos
.
É possível identificar o humor e o phatos quando o poeta se refere à inumanidade do
gemido do negro. Ou seja, há a combinação de uma maneira clássica de representar o negro
- quando o poeta produz uma imagem que os brancos queriam ver (o negro nivelado a
condição de coisa) - e a arte popular, através da figura do boi .
Assim sendo, na primeira estrofe é possível identificar o humor e phatos no
questionamento do eu lírico: “Quem gemendo/ negro ou carro de boi?”. Como foi
mencionado, o gemido do negro se mistura ao som impessoal do carro de boi e, por isso,
talvez nunca tenha sido escutado, ou recebido uma devida importância.
Na primeira estrofe a mensagem do discurso oficial. Ou seja, através do
questionamento é possível perceber que a sociedade elitista não viu o negro como ser
humano, mas como máquina para o trabalho. Há, pois, uma denúncia ao processo de
exploração do trabalho humano que retira a humanidade da pessoa para transformá-la em
meio de produção de riqueza para o outro.
Negro e carro de boi se igualam em princípio. Rústico, modesto, vagaroso, o carro de
boi foi, sem dúvida alguma, um dos fatores que muito concorreram para o ‘progresso’ rural
88
do Brasil. Como primeiro veículo de transporte, o carro de boi, "afundando o chão" virgem
do Brasil-Colônia e Império, nele escreveu, com os sulcos paralelos de suas rodas pesadas e
maciças, os primeiros capítulos da história do povoamento e agricultura nacionais.
O negro, considerado como “peça”, também é fundamental no desenvolvimento e
progresso rural do Brasil. Mas, foi com os braços, com a força física que o negro-escravo
serviu como instrumento de trabalho para os fazendeiros senhores da terra.
É importante analisar os gemidos presentes no poema. No carro de boi, entre o calço
e o eixo é colocado um indispensável suplemento - a "cantadeira" - untada com uma pasta
de sebo e de carvão, para fazer o carro gemer, quando atritada durante a marcha. O seu
gemido característico, ligeiramente modulado, constitui motivo de orgulho para o carreiro
que não o dispensa nunca.
Partindo do fato de que o gemido do carro de boi faz parte do desejo do carreiro, o eu
lírico nega, pois, a semelhança deste com o negro: “Carro de boi geme quando quer/ Negro
não”. O gemido do negro apresenta-se como denúncia da violência a que foi submetido:
“Negro geme porque apanha”. Há, no poema, denúncias de duas violências: a física,
explícita no verbo “apanha” e a ideológica: o negro não pode se expressar livremente e, por
isso, seu choro é reprimido (Apanha pra não gemer). Verifica-se, pois, a tentativa de
silenciar-lhe, de reduzir seu gemido ao inumano carro de boi.
Entretanto, o barulho do carro de boi é estridente. Da mesma forma, o lamento do
negro tem uma força que não pode ser contida. Assim, o poeta afirma: “Gemido de negro é
cantiga/ Gemido de negro é poema”. Ou seja, o gemido tem a força da obra de arte,
89
imortalizada na alma do poeta: Geme na minh’alma”. Nesta alma que não pode ser calada,
o ideal de universalização, através da busca de uma identidade ancestral, de um retorno
espiritual à África: A alma do Congo/ Do Níger da Guiné/ De toda a África enfim”. Há,
igualmente, o reconhecimento do caráter amestiçado da América, numa identificação com
este continente: A alma da Américae, por fim, a alma que geme pelo ecumenismo: “A
alma universal”.
Desta forma, ao ser reiterado novamente o questionamento do eu rico: “Quem
gemendo/ negro ou carro de boi?”, na última estrofe, fica não o humor, mas a cobrança de
uma atenção a esta voz humanizada que lembra os sofrimentos da escravidão e, ao mesmo
tempo, denuncia o desprezo social contemporâneo a que ainda é submetido. Negro não
geme quando quer, o “negro geme porque apanha”.
O que se pode concluir do estudo destes dois poetas - Trindade e Luiz Gama - é que
ambos partem da visão inferiorizada imposta ao negro para questionar estas ideologias e
buscar uma identidade ecumênica. A partir dos poemas onde o negro é “zoomorfizado” e
“silenciado” fica a recusa dos poetas aos estereótipos que representam o negro como ser
sem voz, sem vontade, sem humanidade.
Mas uma diferença entre os dois poetas. Gama utiliza a ironia para subverter o
discurso oficial, enquanto que Solano Trindade nega o discurso oficial, nega o homem
nivelado à condição de máquina.
No entanto, através da poesia de ambos, transparece o ser humano negro que se
afirma e se redefine como “igual”, buscando entrelaçar uma afirmação individual, como
negro, a uma afirmação universal, ressignificando a história oficial. E o negro se coloca
90
como parte da história: uma história em que não vencedores ou vencidos, superior ou
inferior, o “eu” e o “outro”, pois nas palavras de Gama: “tudo é bodarrada”.
2.1.2. “O Emparedado” e “Canto de Palmares”
O poeta simbolista Cruz e Souza, acusado de negar sua raça, deixou um desabafo
profundo no poema Emparedado”, uma reflexão sobre ousar ser artista num país marcado
pelo sistema escravocrata:
Artista?! Loucura! Loucura! Pode isso ser se tu vens dessa longínqua
região desolada, lá no fundo exótico dessa África (...)
Não! Não! Não! Não transporás os pórticos milionários da vasta
edificação do Mundo, porque atrás de ti e adiante de ti não sei quantas
gerações foram acumulando, acumulando pedra sobre pedra, pedra sobre
pedra, que para aí estás agora o verdadeiro emparedado de uma raça.
Se caminhares para a direita baterás e esbarrarás ansioso, aflito, numa
parede horrendamente incomensurável de Egoísmo e Preconceitos! Se
caminhares para a esquerda, outra parede, de Ciência e Críticas, mais alta
do que a primeira, te mergulhará profundamente no espanto! Se
caminhares para a frente, ainda nova parede, feita de Despeitos e
Impotências, tremenda, de granito, broncamente se elevará ao alto! Se
caminhares, enfim, para trás, ah! Ainda, uma derradeira parede, fechado
tudo, fechando tudo horrível parede de Imbecilidade e Ignorância, te
deixarás num frio espasmo de terror absoluto... (SOUZA, 1995, pp. 672-
673).
Filho de negros escravos alforriados, Cruz e Souza foi criado por família de militares
e, ainda na infância, demonstrou apreciável intelincia. Muricy assim define o poeta: “A
grande precocidade de João da Cruz (ele assinava somente assim, na sua adolescência) não o
foi no sentido de qualidade artística. Menino, depois adolescente, improvisava ou escrevia
com descontrolada facilidade, inebriado de um verbo estafado e de imagens convencionais,
tudo neo-romântico e enfático”. (In: COUTINHO, 1979, pp. 65-66).
Apesar de toda a
91
capacidade criativa, o poeta demonstra, ao longo de sua obra, que o preconceito de cor o
atingiu durante a sua vida e mesmo depois de sua morte. Uma prova irrefutável é que este
ilustre catarinense não foi convidado a integrar o grupo fundador da Academia Brasileira de
Letras. Bastide assim concluiu: “Cruz e Souza é repelido pela sua raça e condenado,
felizmente, a ser mais do que um grande poeta simbolista, o mais admirável cantor de seu
povo” (apud ANDRADE, 1979, p.74). A humanidade dolorosa deste poeta pode ser
reconhecida em seus versos e, sobretudo, no poema “Emparedado” em que se observa a
grande ambição de Cruz e Souza: a arte literária.
Cruz e Souza, como se pode verificar, é o próprio “emparedado” emparedado
dentro de um sonho difícil de se concretizar; cercado por muros de um preconceito que o
impedia de seguir o caminho de aceitação de seu próprio “eu”. Assim sendo, no trecho
acima, a enumeração das diversas pedras criadas pela história, muros construídos para
sufocar o negro, para lhe sonegar a liberdade, a mobilidade dentro da sociedade de homens
livres: a ignorância, o preconceito, a ciência, o despeito, egoísmo, impotência e a
imbecilidade.
Foi com e através da arte, no entanto, que Cruz e Souza pôde romper as barreiras
colocadas em seu caminho, derrubar as paredes de preconceito histórico e social: “da
condição de emparedado, da dor do emparedado, nasce a substância trágica com que ele
reagirá” (idem, p.305). E, assim, Cruz e Souza exprime a sua alma negra em estado de
revolta. Através de seus símbolos, de sua musicalidade, de seu lirismo, o poeta catarinense
entra para a história como o maior poeta do Simbolismo brasileiro:
O emparedado empunha a sua arte como revide. E o faz de modo trágico.
Convence-se de que o simbolismo poderá ser inclusive o instrumento de
sua resposta ao repto social. Era o simbolismo a possibilidade de
92
ascensão. O caminho da Originalidade e da Iluminação. E realmente o foi.
Por intermédio dele, de um instante poético dos mais altos de toda a nossa
história literária, Cruz e Souza se fez conquistador do Absoluto
(
idem. p.
306).
no poema “Canto dos Palmares”, de Solano Trindade, podem ser localizadas
evidências da tentativa de descrição de uma sociedade econômica, política e socialmente
estável, uma nação em formação. Nesta sociedade a maior marca era a cooperação e a
solidariedade entre os indivíduos. Assim, o poeta diz: eu trabalho,/ eu planto,/ eu
construo,/ meus irmãos vêm ter comigo...”. Pode-se, desta forma, deduzir que Palmares teve
plenas condições de se transformar em uma nação. Clóvis Moura conclui que isto teria
acontecido e Palmares teria sido
possivelmente independente, ou componente do país que se formava, se
esses chamados civilizados (os colonizadores) não tivessem mobilizado
contra ela todo um arsenal repressor e deixassem a República palmarina
desenvolver suas instituições internas, as suas forças produtivas e
aprimorar a dinâmica econômica e social pacificamente. (MOURA, 1988,
p.182).
Mas Palmares devia ser destruída, não para salvar a civilização, como diz o opressor
em “Canto dos Palmares”, mas por ter sido uma ameaça à sociedade escravista que a
rodeava, pelo seu exemplo de eficiência organizacional, o seu exemplo de economia
alternativa, com um ritmo de produtividade maior que o da Colônia, desafiando, pois, a
economia escravista ao fazê-la confrontar-se com uma economia comunitária e uma
harmonia social.
Assim, verifica-se que Solano Trindade, em sua obra, também registrou as constantes
barreiras impostas ao homem negro. A atuação do opressor é constante e nesta batalha
93
descrita em forma de poesia, os oprimidos buscam suas armas na palavra, na obra de arte:
meu poema/ levanta os meus irmãos”.
No poema, a opressão se configura como as pedras acumuladas ao longo da história.
Há, pois, a descrição das tentativas de manter o afro-brasileiro emparedado em sua
condição de vencido: O opressor convoca novas forças/ vem de novo/ ao meu
acampamento”. Apresentam-se, assim, em um período diferente, as paredes construídas
para impedir a passagem do homem negro. De um lado, a defesa de uma História cujos
valores eram oriundos de uma elite branca e patriarcal, que se considerava a si mesma como
único modelo de civilização: Nova luta./ As palmeiras/ ficam cheias de flechas,/ os rios
cheios de sangue,/ matam meus irmãos,/ matam as minhas amadas,/ devastam os meus
campos,/ tudo isto,/ para salvar/ a civilização/ e a fé”.
Por outro lado, reconhece-se na epopéia de Trindade o desejo de dominação, de
exploração da força alheia, através da manutenção do sistema escravista: Nosso sono é
tranqüilo/ mas o opressor não dorme,/ seu sadismo se multiplica,/ o escravagismo é o seu
sonho”.
Há também uma outra parede, mais alta, mais difícil de transpor: a riqueza. O
dinheiro, assim, é utilizado como fator e mecanismo de exclusão social: O opressor
prepara outra investida,/ confabula com ricos e senhores,/ e marcha mais forte,/ para meu
acampamento!”
Verifica-se ainda uma última parede impedindo o homem negro: as mentiras que
podem ser reconhecidas nas estereotipias, nas diversas formas de inferiorizar o afro-
94
descendente: O opressor quer o corpo liberto,/ mente ao mundo,/ e parte para/ prender-me
novamente...”.
No primeiro capítulo foi discutido como o Ocidente reinventa a África pelo crivo da
inferioridade, com o intuito de justificar a escravidão. Na poética de Cruz e Souza e de
Solano Trindade, no entanto, a obra de arte se impõe como forma de resistência: “O
opressor/ não pode fechar minha boca”, canta o poeta pernambucano. Antes, porém, Cruz
e Souza já havia refletido sobre a importância da obra literária:
Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, eu antes
terei, por certo eu o sinto, eu o vejo! te arremessado profundamente,
abismamente pelos cabelos de minha obra e obrigado a tua atenção
comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio,
com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como um ferro em
brasa sobre o organismo da Idéia, cada vocabulário que eu tenha sentido
com todas as fibras, que tenha vivido com meus carinhos, dormido com
meus desejos, sonhado com meus sonhos, representativos, integrais,
únicos, completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração supremas.
(
SOUZA, op. cit, p. 670).
Desta forma, a poesia negra, na obras destes dois poetas, é uma forma de se impor
frente à opressão, de resistir. E, ainda que haja vontade da crítica literária, há o
conhecimento da nova realidade impressa, da identidade negra, que se constrói e re-constrói
a cada verso. Assim sendo, o negro e sua resistência permanecem através da palavra. As
reflexões do eu lírico, no trecho acima, esclarecem as conclusões do poeta de “Canto dos
Palmares”:
O opressor
não pode fechar minha boca,
nem maltratar meu corpo,
meu poema
é cantado através dos séculos, (TRINDADE, 1969, p.35).
95
A resistência do homem negro, como se pode concluir, pode ser visualizada na arte
que imortaliza a subjetividade destes seres e expressam seus projetos de uma sociedade mais
igualitária.
2.1.3. “Recordações do escrivão Isaías Caminha” e “Conversa com Luci”
Lima Barreto conviveu numa sociedade onde o regime era novo (Primeira
República), mas as práticas continuaram as mesmas. Assim, pode-se verificar neste período
um grande apego às referências exteriores, tais como a aparência física, o vestuário, o luxo
etc. Conseqüentemente, eram cobradas qualificações que Lima certamente não possuía, pois,
além de mulato, era de uma família pobre. Possuía, portanto, o pecado “de origem”, uma
origem humilde que marcou a sua vida de infortúnios: “Tudo tentara e em tudo mais ou
menos falhara. Tentara formar-se, foi reprovado, tentara o funcionalismo, foi sempre
preterido por colegas inferiores em tudo a ele, mesmo no burocracismo; fizera literatura e se,
de todo, não falhou, foi devido à audácia de que se revestiu, a audácia de quem ‘queimou os
seus navios” (BARRETO, 1997, p.22). Lima enfrentou toda espécie de discriminação social
e racial: a cor da pele e a origem humilde seriam pedras difíceis de serem removidas. Era
preciso muita audácia para enfrentar a rejeição dos colegas de jornal e das instituições
acadêmicas. No entanto, o escritor não se rendeu às formas de descriminações, ao contrário
“(...) o estigma da marginalização fecundou o caráter e o que parecia resignado converteu-se
em demônio: a negação do ‘literato’ inspirou o ‘escritor”. (PRADO, 1976, p.29). Munindo-
96
se da sua arte, Lima defenderia, através da literatura, um mundo melhor, onde a fraternidade
fosse o expoente máximo, conduzindo os homens à aproximação com os seus semelhantes:
“A grande força da humanidade é a solidariedade (...) cheio dessa concepção venho para as
letras disposto a reforçar esse sentimento com as minhas pobres e modestas obras”
(BARRETO, 1988, p.73).
O preço que pagaria por suas obras reivindicatórias seria, no entanto, o silêncio, o
isolamento, preço de que Lima Barreto tinha consciência; como fica expresso na carta a
Gonzaga Duque, sobre seu livro de estréia:
Mandei as Recordações do Escrivão Isaías Caminha, um livro desigual,
propositalmente mal feito, brutal por vezes, mas sincero sempre. Espero
muito nele para escandalizar e desagradar (...). Espero que esse primeiro
movimento, muito natural, seja seguido de um outro de reflexão em que
vocês considerem bem que não foi escândalo, o egotismo e a charge
que pus ali. (apud BARBOSA. op cit. p.139).
Muito desagradaria a obra de Lima. Seu livro de estréia era áspero e amargo, agredia
sem reservas a sociedade, os preconceitos, a política. Sendo anticonvencional e rebelde não
despertou a simpatia da crítica e dos que detinham o poder financeiro.
Como artista militante, aspirando a influenciar a mentalidade de seus leitores, é
natural que Lima Barreto desejasse êxito literário:
Sua ambição, a sua grande ambição, era (...) afirmar-se como escritor. Se
tinha alguma ilusão, a respeito do Isaías Caminha, o que parece certo, era
a do êxito literário. Desejaria a imediata consagração da crítica, da
imprensa, do país inteiro. Até os que, por este ou aquele motivo,
recebessem o livro com reservas o que era compreensível, em se
tratando de uma sátira à imprensa – haveriam de, pelo menos, reconhecer-
lhe o valor como escritor. Seria, pois, discutido, mas não continuaria
esquecido, como até agora, como se fosse um pária da literatura ( idem. p.
147).
97
A recepção, porém, quer da crítica, quer da imprensa, contrariou-lhe os objetivos. O
silêncio temido, marcaria mais um fracasso em sua vida de infortúnios. A ferida causada
pelo silêncio não se cicatrizaria completamente. A mágoa e a decepção se justificavam, pois
se a marca do artista que goza do beneplácito do campo intelectual é o
êxito social, a necessidade imanente ao projeto do artista militante é a de
uma recepção social positiva, facilmente compreensível se se atentar para
o fato de que uma recusa social de sua obra significa para ele um sintoma
de fracasso na tarefa que atribui a si mesmo (FANTINATI, 1978, p.7).
Era preciso mais audácia para não se deixar vencer pela boemia e pela loucura. Ele
precisava insistir em seu projeto de usar a literatura como um canal de comunicação entre os
homens, ainda que, para isso, produzisse obras que divergissem do cânone. Lima não queria
agradar. Queria, com uma literatura reivindicatória, intervir nos debates visando a uma
transformação do modelo social vigente. Segundo Prado (1976, p. 25),
No projeto de Lima Barreto a necessidade de uma literatura posta em
situação conduz à estratégia de recuperar uma espécie de autonomia da
verdade literária, o que torna de certo modo implícita a obsessão em
perseguir em cada texto um fundo revolucionário latente que o amoldasse
às contradições presentes nos temas que o inspiraram. É inegável que essa
busca da verdade através de uma concepção rebelde da obra literária
imporá ao itinerário do jovem escritor um radicalismo decisivo na
superação dos velhos modelos.
Sendo personagem real dentro de um espaço turbulento, marcado por transformações
de natureza econômica, política, social e cultural, Lima não poderia ser apenas um
espectador passivo, assistindo de maneira indiferente, ‘bestializado’, às injustiças do
advento do novo regime.
98
Ele precisava denunciar e, mais que isso, através da literatura, lutar por uma ação
política mais justa. Lima desejava o debate social. Abordando temas políticos, econômicos,
sociais, desejava conscientizar a sociedade e, com isso, promover a atuação e engajamento
de seres conscientes quanto à necessidade de reformulação social. Diante do clima de
instabilidade e incerteza da República, que se aliava à abolição da escravatura (abolição que
não libertou os negros das humilhações e injustiças sociais), Lima produziu obras que
questionavam os problemas sociais do país e que, ao mesmo tempo, propunham um
programa capaz de resolvê-los. Esta tarefa do romancista carioca será posteriormente
retomada, transformando-se em temática recorrente nas produções dos anos 30, período em
que ocorre o amadurecimento das propostas modernistas e um grande enfoque no aspecto
ideológico, ou seja, um direcionamento para a função social da literatura e do papel político
do escritor. Redescobre-se o papel transformador do artista e de sua obra.
Recordações do escrivão Isaías Caminha fornece uma rica fonte de dados para a
história social e cultural do Rio de Janeiro no começo do século XX. Mas, o caráter que
mais interessa para este estudo é o retrato da condição do mestiço humilde, interiorano,
depois suburbano, e os seus percalços para integrar-se na vida da capital, símbolo de status.
Ou, para usar os conceitos de círculos abordados por Roberto Reis
9
, ocupar o centro ou
núcleo do círculo social, espaço reservado para o patriarca e para a classe senhorial,
sustentada pela escravidão.
9
REIS, Roberto. A permanência do círculo. Hierarquia no romance brasileiro. 1987, p. 32 seq. O autor
aborda a permanência de hierarquias através de romances dos séculos XIX e XX. Ele observará que a
sociedade é hierárquica, sendo que esta hierarquia se manifesta através do patriarcalismo/ paternalismo e em
sua organização eminentemente masculina. Assim, ele empresta de Caio Prado Jr. o conceito de círculo (ou
centro), que é o espaço ocupado pelo senhor, pelo macho, pelo branco, pelo patriarca ou outras figuras
simbólicas para a hierarquia. Em contraposição, há o espaço reservado ao dominado: a nebulosa ou periferia,
direcionada ao escravo, à mulher, ao índio, ao sertanejo, etc. A relação entre núcleo e nebulosa é,
fundamentalmente, calcada na dominação.
99
Claro está que o romance representa um período pós-abolicionista. Contudo, o
percurso do jovem Isaías demonstra que, mesmo após a abolição do sistema escravocrata,
mantém-se um rculo que comporta em seu centro apenas o homem e/ou branco, deixando
na periferia categorias étnicas como a dos negros e sociais como o interiorano. Ou seja,
ainda é possível perceber, ao longo do romance, a relação de poder, dominação e subjugação
do “outro”.
É exatamente neste ponto que se buscará estabelecer um diálogo entre a obra citada e
um poema de Solano Trindade: “Conversa com Luci”. A personagem de Trindade, de igual
forma, situa-se na periferia do círculo, por ser negra, mulher e pobre. Aliás, a riqueza parece
ser o bem maior a ser alcançado pela sociedade, segundo Lúcia Miguel Pereira (1936,
p.947), sobre a sociedade do Segundo Reinado. No entanto, os desencantos sofridos por
ambos personagens demonstram que as mentalidades não mudaram muito. No confronto de
Isaías com uma parte do Rio de Janeiro, por exemplo, há a imagem dos valores que
permeiam a mentalidade do círculo social, ou melhor do centro deste círculo:
Parava diante de uma e de outra (vitrine), fascinado por aquelas coisas
frágeis e caras. As botinas, os chapéus petulantes, o linho das roupas
brancas, as gravatas ligeiras, pareciam dizer-me: Veste-me, ó idiota! nós
somos a civilização, a honestidade, a consideração, a beleza e o saber.
Sem nós não nada disso; nós somos, além de tudo, a majestade e o
domínio! (BARRETO, 1998, p. 43. grifo nosso).
Já no poema de Trindade, o eu lírico, tentando consolar sua personagem, revela:
Nós também
temos dificuldade de entrar em universidades,
não pela cor, querida,
mas pelo dinheiro.
Aqui não há “color line”, menina,
mas vivemos na linha do dólar,
amor.(TRINDADE, 1961, p.84).
100
Se por um lado o narrador ameniza a exclusão social no Brasil, em relação a uma
exclusão meramente racial, por outro lado, reforça a idéia da opressão fortalecida pelo
dinheiro. A exclusão, desta forma, não é apenas do negro, mas do pobre, seja ele de cor ou
não. Vale, pois, relembrar as palavras de Skidmore (1973, p.55) : “O dinheiro branqueia”.
Por isso, Isaías sonha ir para o Rio: Resgataria o pecado original do meu nascimento
humilde, amaciaria o suplicio premente, cruciante e onímodo de minha cor...” (BARRETO,
1998, p.26).
O romance de Lima Barreto se passa praticamente no espaço citadino, onde se
reconhece no personagem o esforço de alcançar o centro, a almejada ascensão social. Luci
também retrata este esforço, através do desejo de entrar para a Universidade do Alabama.
No entanto, a hierarquia social é muito rígida e impregnada pela violência e pela
necessidade de dominar o “outro”. Observe os medos de Isaías diante do desejo de ir para o
Rio de Janeiro:
Que faria lá, só, a contar com minhas forças? Nada... Haveria de ser como
uma palha no rodamoinho da vida – levado d’aqui, tocado para ali, animal
engolido no sorvedouro... ladrão... bêbado... tísico e quem sabe mais?
(idem, p.22).
Nestas dúvidas de Isaías, há a enumeração do destino de muitos negros abandonados
à própria sorte após a abolição da escravatura. Desenham-se os contornos da periferia deste
círculo social: a marginalidade, a criminalidade, o alcoolismo, a tuberculose e,
principalmente, a falta de perspectiva em relação ao futuro: “e quem sabe mais?
A poesia de Solano Trindade não apresenta o percurso de Luci na tentativa de
aproximar-se do centro do círculo ou de adentrá-lo. No entanto, é possível inferir as
101
barreiras impostas, as humilhações que esta jovem sofreu. Por isso, o narrador, no poema, a
conforta: Luci você não pode entrar/ para a Universidade de Alabama./ Outros negros,/
em outros países do mundo,/não podem entrar em universidades,/ querida”. O eu lírico faz
com que ela tome conhecimento que a sua exclusão não é isolada, mas faz parte de um
processo maior de marginalização. A solidariedade do narrador em relação ao destino de
Luci fica implícita no aposto: “querida”. Durante o poema, explicitam-se as faces de uma
sociedade repressora e autoritária, hierárquica. Luci, portanto, ao tentar aproximar-se do
núcleo (simbolizado pela Universidade), é excluída. Ela fica proibida de circular o centro do
círculo porque traz uma marca que a inferioriza socialmente: a cor da pele. A exclusão de
Luci da educação formal reflete a realidade de todo um mundo já dominado pela ideologia
ocidental, onde as Universidades serão mbolos de status, um status para os brancos. Luci,
portanto, pobre e negra, não tem o direito de penetrar neste mundo de conhecimento que não
lhe estava reservado.
Assim sendo, quanto mais próximo estes personagens ficam do centro, maiores
serão as repressões. Observe o discurso angustiado de Isaías sobre os seus primeiros dias no
Rio de Janeiro:
Fora de imensa angústia esses meus primeiros dias no Rio de Janeiro. Eu
era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apóie e
donde tire vida; era como um molusco que perdeu a concha protetora e
que se vê esmagado pela menor pressão. (idem, p.45).
O narrador utiliza, com a finalidade de metaforizar os sentimentos de Isaías,
exemplos de seres vivos que sofreram a violência de terem-lhes arrancado a proteção
natural. A semântica que se pode abstrair é a de ameaça de extinção do sujeito por falta de
102
sustentação, pelo abandono social, ou mais especificamente, pela pressão de uma sociedade
que deseja manter a dominação.
A participação de Isaías e de Luci na sociedade pode ser o de vencidos, sendo a
repressão a forma de violência necessária para manter intocável os alicerces da formação
social brasileira. Na reflexão de Isaías é possível constatar as dificuldades impostas aos
negros:
O que me fazia combalido, o que me desanimava eram as malhas de
desdém, de escárnio, de condenação em que me sentia preso. (...) Na
viagem vira-as manifestar-se; no Laje da Silva, na delegacia, na atitude do
delegado, numa frase meio dita, num olhar, eu sentia que a gente que me
cercava me tinha numa conta inferior. Como que percebia que estava
proibido de viver e fosse qual fosse o fim da minha vida os esforços
haviam de ser titânicos. (idem, p.68).
Ozéias, outro personagem do mesmo poema de Trindade, não aceita a hierarquia
social tal como ela se impõe. Em seu desejo - universidades para todos fica clara a
tentativa de fraturar o rculo, abrir uma brecha para os que estão na periferia, ao largo do
centro. o desejo de igualdade de oportunidades. Basta pensar que no próprio vocábulo
“universidade” fica embutida a idéia de algo que abrange a totalidade. No entanto, a
repressão é clara: Mataram Ozéias/ um sujeito bom”. Mataram-no porque ele ousou sonhar
mais alto; tentou ingressar em uma outra ordem social à qual estava vedada ao homem que
trazia na pele a marca dos que deveriam ficar do lado de fora das ordens das representações.
Mais grave ainda, este personagem de Solano demonstra perigo e ameaça o status quo na
medida em que expressava um sonho que não era individual, mas um sonho coletivo e,
sendo coletivo, constituía-se em um projeto. E projetos não são próprios a quem é
considerado sub-humano. Ozéias perturbava a ordem que se queria branca e serena. A morte
de Ozéias expressa uma tentativa de matar o projeto de uma sociedade igualitária.
103
O que se pode concluir a respeito destas duas obras é que elas denunciam a exclusão
social e a violência em nome do poder e da dominação. Isaías consegue penetrar o centro do
círculo, no entanto se mostrará fragmentado, imperfeito, um ser ainda em formação. Inicia a
narrativa cheio de ideais , mas se transforma, como ele mesmo assume:
depois não sei de quantos pontapés destes e outros mais brutais, sou outro,
insensível e cínico, mais forte talvez, aos meus olhos, porém, muito
diminuído de mim próprio, do meu primitivo ideal, caído dos meus
sonhos, sujo, imperfeito, deformado, mutilado e lodoso. Não sei a que me
compare, não sei mesmo se poderia ter sido inteiriço até o fim da vida.
(idem, p.60).
Ao longo de seu percurso, como se vê, Isaías vai se transformando, decaindo de si e
de seus projetos grandiosos. Ele assume a ideologia do meio urbano, se transforma em um
homem capitalista e individualista. Aceita para si e para a sua vida o que sempre desprezou:
“comecei a admirar as sentenças literárias de Floc, as pilhérias do Losque, a decorar a
gramática homeopática do Lobo e a não suportar leitura mais difícil, mais densa de idéias,
mais logicamente arquitetada, mesmo quando venha em jornal. Era pesado e...” (idem,
p.100).
Acomodado aos prazeres do meio urbano, Isaías volta-se para um objetivo particular
e subjetivo e rompe com os conteúdos de consciência provinciana. O sucesso, pois, nesse
meio cosmopolita, só poderia ser alcançado à custa da deformação do jovem Isaías.
Porém, o projeto que defende o eu lírico de Solano Trindade, que ainda permanece
na periferia, é o universalismo, a confraternização de todos, a extinção dos círculos, das
divisões entre negros e brancos, pobres e ricos: “todos desejando universidade/ para você
Luci,/ para meus filhos,/ para os filhos dos outros/ querida...”. No Até amanhã Luci”, fica
a esperança deste projeto ecumênico se concretizar.
104
2.1.4. “Negro preto cor da noite” e “Meu canto de guerra”
Em Socorro (SP), no dia 24 de junho de 1897, nascia Lino de Pinto Guedes, mais
comumente chamado Lino Guedes ou, com o pseudônimo literário, Laly. Os pais de Lino
foram os ex-escravos José Pinto Guedes e Benedita Eugênia Guedes. Seu primeiro livro, O
canto do cisne preto, é de 1927. Em 1932 publica Negro Preto cor da Noite. Em ambas
obras retrata a condição social do afro-descendente e, mais especificamente, o esforço deste
a fim de alcançar a ascensão social. Mas, apesar de revelar em seus trabalhos a busca de
uma identidade negra, nem sempre foi apreciado na coletividade negra paulistana, que o
acusou, às vezes, de certo escapismo no que dizia respeito à luta social do elemento afro-
brasileiro. Observe a visão de Guedes nestes versos:
Negro preto cor da noite
nunca te esqueças do açoite
que cruciou tua raça.
Em nome dela somente
faze com que a nossa gente
um dia gente se faça
Negro preto, negro preto,
sê tu um homem direito
como um cordel posto a prumo!
é só do teu proceder
que, por certo há de nascer
a estrela do novo rumo (GUEDES, 1932, s/n).
O eu lírico, como se pode notar nos versos acima, assume o discurso poético.
Verifica-se, pois, a recusa em ser objeto do discurso, o outrode quem se fala. O objetivo
do poeta é ser um colaborador de sua raça, defendê-la através da palavra poética. O seu
grande propósito é ver os negros redimidos.
105
No entanto, este desejo de “redenção da raça” equivale, segundo sua maneira de
pensar, a uma libertação através da cultura branca, aceitando os valores nela presentes. Em
seu desejo de querer-se branco, pode-se encontrar a fantasia da superioridade e os
privilégios que dela advém. Assim, o desejo de se identificar com o “branco”,
considerado, pela histórica opressão racial, como o modelo ideal.
Na interpretação de Damasceno (1988) não se deve criticar o posicionamento do
poeta em pregar uma revolução dentro da própria etnia ao invés de se posicionar contra os
valores dominantes.
Se Lino Guedes entendia que era o negro que devia mudar para se integrar
na sociedade dominante, isso se deve ao fato de que o negro da época
pertencia a uma camada considerada socialmente inferior e,
paradoxalmente acreditava nos estereótipos a eles atribuídos. Na verdade,
a identidade mestiça que se formava no país, através das aberturas do
Modernismo, se assentava em raízes populares em reação aos movimentos
literários anteriores, principalmente ao Parnasianismo. Por isso, pouco
tinha a ver com os próprios afro-brasileiros, embora tenha sido uma
contribuição positiva. Também por essa época, as aspirações dos afro-
brasileiros tendiam mais para uma assimilação dos valores brancos do que
para a negação deles. Desse modo, exigir um posicionamento diverso da
parte de Lino Guedes seria não atentar para a consciência possível de seu
grupo social. (DAMASCENO, 1988, p.71).
As reflexões de Damasceno são relevantes para entender a postura de Guedes, no
entanto, que se discordar de sua afirmação a respeito da pouca importância da cultura
popular para os afro-brasileiros. Nas formas que ambos os poetas escolheram a fim de
abordar a literatura pode-se perceber que Lino Guedes se pauta acima de tudo em aspectos
sociais, enquanto Trindade procura também dados culturais relevantes para a afirmação de
uma identidade negra. Solano Trindade, assim, assumiu as raízes populares e conseguiu se
106
posicionar de maneira crítica diante da situação do homem oprimido, no geral e, do negro
em particular.
O que se percebe é que Lino Guedes estava impregnado pela mentalidade
dominante. Seus versos reproduzem os estereótipos construídos pelos valores da sociedade
dominante: o negro marcado pelo passado da escravidão (nunca te esqueças do oite/ que
cruciou tua raça); o negro depravado ou amoral do teu proceder/ que, por certo de
nascer/ a estrela do novo rumo) e o negro zoomorfizado (faze com que a nossa gente/ um
dia gente se faça). Assim, o eu lírico sugere ao interlocutor uma moral “puritana”: Se tu
um homem direito”. Ou seja, ele interpela o interlocutor a fim de que este se alinhe aos
modelos impostos ao invés de confrontar estes modelos. Pode-se, pois, observar o uso da
segunda pessoa do singular a fim de convencer seus iguais, tal como se percebe em versos
como “nunca te esqueças” e “sê tu um homem direito”.
Guedes revela em sua obra que, mesmo após a abolição, persevera a condição do
negro como inferior, acomodado, passivo diante de uma sociedade branca que este
considerava superior e procurava imitar.
É interessante pensar em uma relação entre a produção de Lino Guedes e Lima
Barreto, pois em ambas as produções podem-se notar o branqueamento compulsório.
Isaías Caminha mostra, através das Recordações, que o meio social impede as
pessoas negras de se realizarem, mesmo que elas sejam honestas e bem dotadas. Serve-se
das próprias lembranças, analisando a infância, juventude e começo da maturidade com a
finalidade de provar o quanto se esforçou para sobreviver e o quanto a sociedade o
desfigurou em troca das possibilidades de sobrevivência.
107
Isaías denuncia os males da sociedade, levantando provas de que de que esta faz
calar os homens de consciência desperta, como ele o foi em sua fase inicial na cidade. No
entanto, após denunciar, acomoda-se. Será rico, viverá gostosamente, “figurando nas
noticias elegantes dos jornais”, coisa que tanto o repugnara antes. Ou seja, se embranquece
a fim de ser socialmente aceito.
Na produção de Lino Guedes ressalta esta necessidade de embranquecer, se
acomodar aos valores e ideologias sociais a fim de conseguir um espaço.
A diferença entre Lima Barreto e Lino Guedes é que o primeiro utiliza o
branqueamento do personagem com uma estratégia sábia a fim de denunciar a desigualdade
de condição. Assim, o personagem de Barreto se autodefine como uma pessoa instruída,
apesar de sua origem pobre. Teria, pois, condições de ascender socialmente, sem a
necessidade de rejeitar sua subjetividade, se não fosse a cor de sua pele. Guedes introjeta
os clichês que ligavam a cor preta ao mal, ao pecado, ao mundo das trevas e acredita no
branqueamento como forma de redenção. Assim, cobra de seus iguais o empenho, a
dedicação, a instrução, o despojamento das “crendices” de seus antepassados a fim de sair
da condição subalterna em que se encontravam. Coloca, pois, no próprio negro a culpa pelo
fracasso social, apontando como solução a libertação através da aceitação da cultura branca.
Há que se destacar ainda uma visão fatalista na obra do poeta paulistano:
Banzo! Banzo! és o destino
Da minha raça infeliz!
És o roteiro inditoso
De um povo que Deus não quis!
Banzo! Banzo! Deixa a terra
Do eito da ingratidão!
Volta ao domínio da raça
Que ainda não teve o perdão!
Mas, Banzo, Banzo, tu ficas
Vivendo em meu coração
.
(GUEDES, 1938).
108
A forma como Guedes finaliza o poema dramático “Vigília de Pae João”, verificada
nos versos acima, assinala o seu comportamento perante a escravidão: uma visão fatalista,
alimentada pelo desencanto religioso. Expressões como “um povo que Deus não quis”, da
raça que ainda não teve perdão” reforçam um dos mitos que serviu de justificativa e
sustentou o sistema escravista: o mito de um povo amaldiçoado.
Destaca-se, pois, a opinião de Cuti (1985):
A visão fatalista da história além de ser um ensinamento propalado pelo
branco durante muito tempo, situa o criador fora da zona crítica,
reveladora das reais causas da espoliação. A constatação do flagelo, por si
só, pouco avança o processo de conscientização e, acaba por estar
conforme com o paternalismo das elites.
Solano Trindade, ao contrário de Guedes, trouxe uma obra em que se percebe
claramente a denúncia das injustiças sociais e o orgulho de sua cor e descendência. Foi um
homem profundamente misturado à vida e ao cotidiano. Por isso, assumiu-se como poeta do
povo, defendendo e identificando-se com o oprimido. Consciente dos problemas de sua
época, declarou-se amante da revolução e convocou o interlocutor a unir-se a ele. Em “Meu
canto de guerra” ele assim se expressa:
EU canto na guerra
como cantei na paz
pois o meu poema
é universal
É o homem que sofre
o homem que geme
é o lamento
do povo oprimido
da gente sem pão
É o gemido
de todas as raças
109
de todos os homens
é o poema
da multidão (TRINDADE, 1961, p. 92).
O primeiro aspecto presente nestes versos de Solano, assim como em toda a sua
obra, é o desejo de igualdade entre brancos e negros. Assim, seu poema é universal e, acima
de tudo, seu poema retrata o “homem”, independente da cor de sua pele. Trindade reivindica
não apenas pela raça negra, mas contra as injustiças do sistema capitalista. Assume, pois,
uma missão social através de sua poesia.
No manifesto de fundação do Centro de Cultura Afro-brasileira, em 1937, escreveu:
“Não faremos lutas de raças, porém ensinaremos aos nossos irmãos negros que não raça
superior nem inferior e o que faz distinguir uns dos outros é o desenvolvimento cultural”.
(apud DAMASCENO, 1988, p.81).
Assim, diferencia-se de Lino Guedes que buscava a identidade negra através do
“branqueamento”. A busca de identidade em Trindade termina na reafirmação da cor e dos
valores negros, não buscando lutas de raças, mas a integração pelo desenvolvimento
cultural.
Em “Canto da América” seu desejo fica claro:
(...)
Canta América
Não o canto da mentira e falsidade
que a ilusão ariana
cantou para o mundo
na conquista do ouro.
nem o conto da supremacia dos derramadores de sangue
das utópicas novas ordens
das napoleônicas conquistas
mas o canto da liberdade dos povos
e do direito do trabalhador... (TRINDADE, 1961, p. 101).
110
O canto de Solano Trindade é um canto pela liberdade e pela igualdade. Coloca-se
não contra a sociedade branca, mas, contra a mentira, a falsidade e a violência. Assim, não
exalta a brancura como padrão estético e como forma de ser inserido socialmente e nem
contra-ataca a sociedade “ariana”, na tentativa de impor os valores negros. Seu desejo é o de
liberdade dos povos”: liberdade da mentalidade preconceituosa e liberdade no sentido de
exercer seus direitos como cidadão. Por isso, declarará em diversos poemas que deseja a
integração de todos como numa única família, afinal, seu poema “é o poema da multidão”.
2.2. O canto de Solano Trindade: características da poética negra
2.2.1. O eu enunciador negro
O período colonial deixou marcas visíveis na vida social brasileira. A conseqüência
mais grave, no entanto, foi a tentativa de apagar a representatividade cultural do negro, o
que fez com que sua identidade saísse de um caos para um outro, o de o saber mais quem
é e que papel desempenha na sociedade. As diferenças raciais que foram forjadas no período
da escravidão, a fim de introjetar uma inferioridade como forma de anulá-lo como pessoa,
perdurara após a extinção da escravatura, através da representação do negro como
insignificante e outros estereótipos, alguns dos quais mencionados no primeiro capítulo.
Na literatura, algumas das representações em terceira pessoa de personagens negras
não deram conta de suas verdadeiras identidades, por isso, o sujeito dominado pede a
palavra, a fim de reescrever sua história. De acordo com Toumsom assumir a “enunciação
111
tem como objetivo arrancá-lo do nada em que a opressão o manteve por tão longo tempo,
testemunhar sua presença no mundo e sua verdadeira experiência da história” (apud
BERND, 1988 p. 29). A poética negra, desta forma, reflete uma maior conscientização a
partir da exposição da subjetividade.
O eu lírico negro deseja não apenas ser visto, ou meramente reconhecido. uma
cobrança de um espaço próprio, onde este enunciador negro pode recuperar o seu espaço
existencial, a sua identidade. Bernd explica sobre o resultado da enunciação em primeira
pessoa dentro da literatura feita pelos afro-descendentes:
a enunciação em primeira pessoa revela a determinação do poeta de
desvencilhar-se do anonimato e da ‘invisibilidadea que o relegou sua
condição de descendentes de escravos ou de ex-escravos e, mesmo após a
Abolição, sua situação de estranhamento em uma sociedade que não o
convocou a participar em igualdade de condições. (idem, p.77).
Como poeta comprometido com a causa negra, Solano faz aflorar em sua poética o
“eu-que-se-quer-negro”, para usar o termo de Bernd. Esta opção reflete-se, no plano da
obra, como um projeto de busca e afirmação da identidade. Através deste processo, no qual
se percebe uma transformação da consciência negra, uma libertação da imagem quase
sempre estereotipada com que o negro vinha sendo representado. Desta forma, rejeitando a
representação como objeto, ou aquele de quem se fala, observa-se que o eu rico assume as
rédeas de sua destinação histórica, podendo assim dizer:
Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs (TRINDADE, 1961, p.42).
112
O poema “Sou negro” é um dos poemas de Trindade em que se pode perceber a
reivindicação de voz. O eu lírico compartilha no seu relato a história de sua origem étnica,
assumindo sempre sua herança africana. É, pois, um empenho em delinear uma identidade,
que não é apenas do eu lírico, mas uma identidade coletiva. É a constituição de uma
identidade que leva ao questionamento e a rejeição das diversas formas de estereotipia:
___ Eita negro!
Quem foi que disse
Que a gente não é gente?
Quem foi esse demente,
Se tem olhos não vê... (idem, p.40).
O poema revela que a história que trata o negro como objeto tentou tornar invisível a
sua condição de “gente”. O eu lírico questiona essa representação e isso justifica a
enunciação em primeira pessoa. Revela-se, pois, uma preocupação em ancorar a construção
de uma identidade no sentimento de pertencer a um grupo o qual almejava valorizar, através
da palavra poética.
Contudo, é importante salientar que na valorização do “eu” está embutida a
valorização de um “nós”. Ou seja, a força deste eu que assume a voz na poesia reflete o
objetivo de usar a poesia como arma diante da opressão, remetendo a uma convocação para
lutar contra todas as formas de discriminação e preconceito. Portanto, esta voz tem a função
de reivindicar uma identidade comunitária, assim como seu espaço na literatura e na
sociedade. O projeto é coletivo e, por isso, o eu lírico convoca:
A liberdade nos chama
pro dia de amanhã
(...)
Vamos libertar
o trabalhador
113
das terras que ficaram
escravizadas (idem, p.96-97).
Segundo Zilá Bernd (1988, pp.79-80), a tarefa que os autores assumem de se
tornarem porta-vozes privilegiados do seu grupo e que lhes reserva uma missão profética de
anunciar nossos tempos e conclamar a união de todos, insere-os na melhor tradição da
literatura negra antilhana e latina americana, que desde 1920 tem produzido, em sua quase
totalidade, uma poesia comprometida com a reversão da situação na qual a cor negra ainda
é percebida como um estigma. O que se verificou até o momento a respeito da produção de
Solano Trindade nos permite acreditar que ele esteja inserido nesta tradição da literatura
negra, pois em sua poesia a tentativa de um resgate e uma releitura da história do negro,
manifestando, pois, a sua negritude. Outra característica desta tradição, reconhecida em
Trindade, é o desejo de igualdade entre todos, ou seja, ele busca objetivos que estão além da
discriminação racial, representado pelo anseio de uma unidade universal.
2.2.2. Uso de temas da vida e temas da população negra
Analisando a obra de Solano Trindade, sobretudo Cantares ao meu povo, percebe-se
que ali se evidencia a trajetória do poeta. Solano sentiu na pele e na alma a dor do
preconceito e isso fica claro em sua produção. Como cidadão, vivenciou a realidade de um
povo oprimido e, através de sua arte, colocou-se lado a lado com este povo. Assim sendo,
temas da vida e temas da população negra podem ser localizados em sua obra.
114
Benedita Damasceno destaca na obra Cantares ao meu Povo a tentativa de divisão
do volume em cinco cadernos: “o negro, a vida popular, poemas descritivos ou geográficos,
as mulheres e o amor e, por último, poemas relacionados com a vida familiar do autor.”
(DAMASCENO, op. cit., p.74).
em todos a presença do projeto trindadiano: reconhecer
as diversas categorias, principalmente a oprimida, para que haja uma integração entre todas.
Segundo o próprio Solano Trindade (1961, p.25), para alcançar seu projeto
“continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral
as reivindicações sociais, e, nas mulheres, em particular, o Amor”. Contudo, que se
colocar que os temas se relacionam. Quando se encontra um poema de reivindicação social,
o negro está presente, pois, este constitui a maioria nas camadas mais humilde da população.
De igual forma cruzam-se as lembranças dos sofrimentos da escravidão negra, a denúncia do
desprezo social contemporâneo e a herança africana na formação cultural brasileira. Em
“Canto” há a presença de um não conformismo irônico em relação à cor.
Canto de negro dói
Canto de negro mata
Canto de negro
faz bem e faz mal.
Negro é como couro de tambor
Quanto mais quente mais toca
quanto mais velho
mais zuada faz. (idem, p.39).
Aqui, o canto do negro é exemplo de atitude diante da sociedade. Este canto expressa
a dor de um passado marcado pela violência (canto de negro dói). Ao mesmo tempo,
apresenta o não –conformismo, pois, o canto de negro mata’, age. O negro surge, assim,
com toda a humanidade, capaz de atitudes boas e más: Canto de negro/ faz bem e faz mal”.
115
A comparação com o tambor resgata novamente a origem africana e, ao mesmo tempo,
enfatiza a luta. Se a opressão for demais (mais quente), ele terá uma atitude mais
participante (mais toca). E quanto mais velho for, mais história terá para contar ( mais zuada
faz).
Afirmando, ao longo de sua obra, a sua posição de negro, vários são os poemas onde
se pode localizar a exaltação das heranças culturais africanas. Esta herança perpassa a
história de vida do eu rico. Nos versos: minha’alma recebeu o batismo dos tambores/
atabaques, gongês, agogôs” e minha’alma nasceu africana”, nota-se que esta história não
se perde porque sobreviveu na consciência de seus avós que transmitem ao eu rico o
orgulho de sua origem e, desta forma, transmite a África para a alma do negro brasileiro.
Outra forma de inserção do negro na poética de Solano Trindade vem pelo
reconhecimento da colaboração deste para a história: Plantei os canaviais do nordeste”,
“_Eu plantei algodão/ nos campos do sul/ pros homens de sangue azul/ que pagavam o meu
trabalho,/ com surra de cipópaue Corre em mim/ o sangue do negro/ que ajudou na tua
construção/ que te deu uma música/ intensa como a liberdade”. O poeta, através destes
versos, promove uma reflexão sobre a participação do negro na construção da América e,
mais especificamente, do Brasil. Para tanto, nota-se que há um processo de reconhecimento
e afirmação da própria identidade do sujeito da enunciação poética, promovendo, pois, uma
revisão histórica a partir daqueles que foram marginalizados.
Ainda em relação ao tema negro, dentro da poética de Trindade, verifica-se que o
poeta prega a preservação da cultura negra, principalmente no campo onde ela mais exerceu
influência: a religião.
116
Ao falar sobre construção e presença de estereotipias, no primeiro capítulo, foi
exposto sobre a estereotipia antropológica, que faz julgamento de valor da cultura do negro,
tal como afirmar que a expressão religiosa dos descendentes de africanos era marcada pelo
mal e ligada ao demônio. Ainda assim, o sentimento religioso constituiu-se numa forma de
vazão incontrolável para o colonizador. Laura de Mello e Souza (1986, p.48), relata que a
religião africana vivida pelos escravos negros no Brasil tornou-se diferente da de seus
antepassados, mesmo porque não vinham todos os escravos de um mesmo local, não
pertencendo a uma única cultura. Descendentes de tribo Gegês, Nagôs, Iorubas, Malês e
outras, trouxeram cada um sua contribuição, refundindo-se à luz de necessidades e
realidades novas. A pesquisadora explica que traços católicos, negros, indígenas e judaicos
misturavam-se na colônia, formando uma religião sincrética e especificamente colonial.
Observa-se que apesar da intolerância, os afro-descendentes mantiveram acesos os
valores, costumes e a chama de religiosidade de seus ancestrais que a força física não pode
arrancar ou apagar.
A mistura de traços que teceu uma religião sincrética, em que os deuses africanos
confundem-se com santos católicos, foi refletida no poema “Deformação”:
Procurei no terreiro
os santos da D’África
e não encontrei
só vi os santos brancos
me admirei...
Que fizeste dos teus santos
dos teus santos pretinhos?
a um negro perguntei
Ele me respondeu:
meus pretinhos se acabaram
117
agora
Oxum Yemanjá Ogum
é São Jorge
e Nossa Senhora da Conceição.
_Basta Negro!
basta de deformação.(TRINDADE, 1961, p.46).
Pode-se constatar que Solano se posiciona com horror ao perceber as deformidades
do culto afro-brasileiro por imposição da intolerância, da estereotipia antropológica que
desvalorizava a religião de origem africana, obrigando os seus seguidores a disfarçar seus
santos e seus deuses, assim como, mascarar seus cultos. Mas, muito além de rejeitar a
religião afro-brasileira, houve uma sistemática perseguição policial no intuito de destruir
essa marca de identidade. Damasceno relembra:
O negro sempre foi obrigado a renegar sua religião por imposição dos
senhores ou, como até muito recentemente, pela sistemática perseguição
policial aos terreiros. Ele a disfarça, então, sob a forma de cultos
socialmente aceitáveis, mantendo uma certa resistência cultural que
permite a sobrevivência de seu patrimônio.
(DAMASCENO, op cit, p.
77).
Sugestivo em relação a esta temática, o poema “Batucada” evidencia o lamento
diante desta violência espiritual: Branco adora o Deus que quer/ Mas negro não pode não/
tem que adorar Deus de branco/ ou senão vai pra prisão”. Por isso, o eu rico se coloca de
uma forma radical contra esta situação. O último verso, pois, isolado no poema, parece um
grito de revolta: “basta de deformação”. Ou seja, o eu lírico instiga a aceitação na
sociedade dos valores culturais dos afro-descendentes.
118
Outra temática que se torna constante na obra de Solano e que se alia ao protesto
contra as injustiças baseadas na cor da pele são as reivindicações de classe. A crítica ao
sistema capitalista se faz presente no protesto solidário a uma estudante negra, Luci,
anteriormente mencionada, que fora impedida de entrar para a universidade de Alabama:
Nós aqui também/ temos dificuldades de entrar em universidades,/ não pela cor, querida,/
mas pelo dinheiro,/ Aqui não ‘color line’, menina/ mas vivemos na linha do dólar,/
Amor”.
Neste poema pode se descobrir marcas de um ciclo de desvantagens dos negros. Ou
seja, não apenas a herança do passado escravista se torna um empecilho, mas, a cada estágio
da competição social, na educação e no mercado de trabalho, somam-se novas
discriminações. Nota-se, portanto, que as poucas oportunidades oferecidas ao negro,
decorrentes do passado, são reiteradas no tempo presente.
O eu lírico chama a atenção do leitor para o fator racial, demonstrando que este não
é, no Brasil, o motivo de discriminação explícito ou diretamente detectável, mas deixa clara
a denúncia de que a pobreza e a marginalização econômica envolveram o negro num círculo
do qual ele encontra dificuldades para escapar.
Outro tema que sobressai na obra de Solano é a mulher. Este tema, no entanto, será
analisado posteriormente, ainda neste capítulo.
2.2.3. Linguagem como expressão popular e reprodução dos ritmos negros
Solano Trindade, desde o começo de sua carreira literária, procurou traduzir a
espontaneidade e a simplicidade da fala do povo. Por isso, dizia: o disciplinarei/ as
119
minhas emoções estéticas/ deixá-las-ei à vontade/ como o meu desejo de viver”. O segredo
de sua poética reside exatamente no substantivo povo, que ao unir-se a poética de Solano se
transforma em adjetivo: “poeta do povo”.
O poeta era povo quando começou a fazer seus poemas. Depois
estudou. Passou por um seminário. Lavou pincel para mestre Lula
Cardoso AYRES e aprendeu a pintar. Fundou um Centro de Cultura Afro-
brasileira. Viajou. Meteu-se no teatro. Estudou arte dramática e danças.
Criou o Teatro Popular Brasileiro. Em 1955, participou do Festival de
Varsóvia e foi laureado na Checoslováquia e na Polônia. Tudo isso sem
perder as perspectivas de homem do povo. (FREITAS, 1961, p. 19).
É necessário, pois, identificar o conceito de povo que se verifica na obra de
Trindade.
Para iniciar, é preciso compreender que as práticas políticas que grupos e classes
desenvolveram contra a dominação fizeram aflorar diferentes conceitos de "povo", na
tentativa de forjar uma identidade diferenciada de massa, sinônimo de despersonalização e
homogeneidade passiva, ou do conceito de classe, este de fronteiras reduzidas e muitas
vezes inaplicáveis às práticas sociais reais.
O conceito povo, no entanto, permaneceu ambíguo de um ponto de vista estritamente
sociológico. E esta ambigüidade terminou por franqueá-lo ao uso pouquíssimo parcimonioso
pela linguagem política, mas também pedagógica.
Luiz Eduardo Wanderley (1984) reconhece a imprecisão do termo "povo" e também
do uso do adjetivo "popular" nas Ciências Sociais. No entanto utiliza estes conceitos
lançando mão de critérios (e de uma estratégia dualista) que lembra os isebianos: "povo" e
"não-povo", "povo" e "antipovo", "povo" e "elite", "povo" e "indivíduo". O "não-povo" é
constituído de empresários, profissionais liberais, técnicos, intelectuais especializados; o
120
"povo" compondo-se de camponeses, operários, populações marginais, "não civilizados" e
até "inferiores" (como professado pelas ideologias deterministas e elitistas). O "povo",
assim, aparece na sua vaguidão conceitual: os que não têm títulos, recursos ou posses, mas
presentes continuamente na retórica político-ideológico, embora ausente como sujeito
participante das decisões e dos planejamentos.
Nas suas observações sobre a relação "elite-massa", Wanderley sustenta a existência,
na história, de minorias compostas pelos aristocratas, plutocratas e membros de
organizações partidárias que constituem a elite governante, ou a "classe" política, em
contraste com a "massa", passiva e desorganizada, sob domínio desta elite. Povo, neste
caso, é sinônimo de pessoas que devem ser governadas pelas elites e às quais elas podem ter
acesso em situações especiais de luta pelo poder, em geral, manobrada pelas próprias elites,
e sempre em número escasso.
Na dicotomia povo-indivíduo, sobretudo nas "sociedades afluentes" ("afluent
society"), a cultura de massas e a indústria cultural vão se conduzindo a uma inevitável
homogeneização de todos os indivíduos, que devem integrar-se em convivência na "aldeia
global". "Povo" passa a ser o conjunto de indivíduos, cidadãos iguais de uma dada sociedade
e que têm interesses comuns, apenas divergindo por pequenas diferenças de status pessoal
e, no limite, socializados por uma cultura única que impõe a despersonalização.
nas experiências nacionais-populares (períodos históricos de descolonização)
"povo" se confunde com todos aqueles que lutam contra o colonizador na construção da
nacionalidade, segundo Wanderley. As elites e os grupos nativos se aliam com o exterior e
se constituem no braço estendido do colonizador; no âmbito interno não se amalgamam com
o povo e são combatidos por ele, transformando-se no "não-povo".
121
Para precisar o conceito de povo trabalhado em sua obra, Wanderley formula sua
análise a partir de sua experiência no Movimento de Educação de Base (MEB), mostrando,
em sua tese de doutorado, as dificuldades mas sobretudo os avanços de um trabalho de
educação popular que, segundo ele, não massifica, nem manipula, ilustrando sua tese com os
aspectos positivos do povo rural que avançou pela conscientização e politização. Sua ênfase
vem, declaradamente, da interpretação de Comblin e de autores ligados à Teologia da
Libertação:
Nesses movimentos de luta pela libertação nasce e surge o povo dos
pobres. O povo distingue-se assim das instituições sociais. O povo não é a
nação (...) o povo é feito de todos os que são marginalizados do processo
dominante. O povo nasce quando todos esses homens e mulheres
começam a reunir-se com projeto de existir socialmente e criar uma
alternativa à situação existente. O que faz o povo é a vontade comum de
suscitar uma nova realidade feita de comunhão e participação. São
membros do povo todos os que vão caminhando para uma sociedade
diferente por isso mesmo as classes dominantes negam a existência do
povo: pois ele não cabe nos desígnios deles. Este povo está surgindo agora
na América Latina, e seu surgimento constitui um fato teológico de
primeira grandeza. Nele se torna presente o povo de Deus (...) o povo
manifesta-se por meio de movimentos históricos: sindicatos, partidos,
associações locais, movimentos de libertação. (apud WANDERLEY,
1984).
Retirando a conotação cristã, este conceito de povo se adequa ao conceito encontrado
na produção de Solano Trindade.
Apontando para uma exigência de integração que agrega necessariamente o "amor
aos pobres", estes (pobres) começam a ser entendido como sinônimo de "povo".
Esta é a visão de povo que pode ser verificada na obra de Solano Trindade pois seu
projeto se define pela identificação com os explorados e oprimidos pelo sistema social, ou
seja, os grupos e classes populares. Em seus poemas é possível perceber o pobre como
122
coletivo, ou seja, este pertence a grupos e classes sociais, à raça, à cultura, que acaba por
extrapolar a consciência individual da pobreza para uma solidariedade de raça, de classe, de
cultura.
Há, ao longo da obra de Solano Trindade, a construção de uma imagem do povo que
pode ser entendida do ponto de vista da exclusão: da política, da legalidade jurídica, da
identidade nacional. Ou seja, uma afirmação pela negação. Ao ser negada a cidadania,
identifica-se a necessidade de constituir-se em classe na busca da igualdade. Nesta
perspectiva, o conceito “povo” implica não o indivíduo, mas a consciência coletiva, cujo
desempenho se pela autoconsciência que se politiza no interior dos movimentos sociais.
A matriz desses movimentos é o grupo, uma associação, uma comunidade, e seu exercício
vinculam-se às contradições geradas pelo capitalismo e pela sociedade urbana,
impulsionando formas de reivindicação e resistência à pobreza.
Identificando-se com os oprimidos, reivindicando a igualdade, Solano aceitou, pois,
o adjetivo poeta do povo. Na poética de Trindade, que trilha os caminho da simplicidade da
vida cotidiana, é possível encontrar muitas das características da poesia moderna em sua
fase heróica. Desta forma, Solano se torna um poeta popular, utilizando-se de frases e
expressões retiradas da linguagem coloquial. Como Manuel Bandeira, ‘farto do lirismo
comedido e bem comportado’ de seu tempo, o poeta também propõe a criação de uma
poesia livre. Assim, ele canta:
Não disciplinarei
as minhas emoções estéticas
deixá-las-ei à vontade
como o meu desejo de viver
É grande o espaço
embora se criem limites...
123
Basta somente
que eu sofra a disciplina da vida
mas a estética
deve ser sempre liberta
(TRINDADE, 1988, p.23
).
Amando a liberdade, Solano transforma em poesia os fatos de seu cotidiano, seu
amor à vida. Essa paixão se imprime em sua obra através de ditados populares, cantigas
infantis e reprodução fiel da fala popular.
De maneira mais completa, no terceiro caderno de “Cantares ao meu povo” é
possível retornar ao passado com o eu lírico. Neste passado mais remoto, o leitor se depara
com cenas da vida do poeta. Uma meninice marcada por festas populares. E um pouco de
Recife, de Natal, do Rio Grande do Sul, cidades da infância e juventude do poeta se
delineiam através dos versos trindadianos:
<<
vem o cavalo
e o boi bumbá
<<Caboclo do mar.
que vem cá buscar
menina bonita
pra vadiar...>>
<<Ei bum ei bumbá
menina bonita
Para vadiar>>
(...)
O meu boi morreu
Que será de mim
Manda buscar outro ó maninha
Lá no Piauí”...
Ó que saudade que eu tenho
do meu bonito boi bumbá.
(TRINDADE, 1961, pp. 124-125).
124
A saudade confessa da festa popular evidencia-se no poema, mas, ao mesmo tempo,
conta do propósito de Solano Trindade em defender as tradições culturais, de pesquisar
na fonte e devolver ao povo em forma de arte.
Solano, ao falar da sua maneira de escrever, sempre deixou claro que a simplicidade
e a clareza eram suas opções, pois, através destas poderia ser compreendido por todos.
Assim, é recorrente em sua obra a reprodução da fala popular, como pode ser verificada na
cantiga intertextualizada no poema:
O meu boi morreu
Que será de mim
Manda buscar outro ó maninha
Lá no Piauí”...
Outros exemplos de reprodução da fala popular podem ser recolhidos no poema
“Pregões do Recife antigo”:
E quando o sol
vem iluminar a cidade
as ruas se enchiam de balseiros
enchendo de ritmo
a beleza da terra...
(...)
<<Ei cocadinha de coco>>
<<verdureiro ... verdura...>>
<<Miúdo... iúdoiú... do>>
<<Mé nô d’engenho>>
<<Pamonha de milho verde
mio cosido
ei pamonha...>>
<<Ó marcela pra trabiceiro
Lã de barriguda
Ei marcela>>
O <<home>> da <<bassora>>
Vai <<sim bora>>
125
(...)
(idem, p.123).
Este veio popular remete, no entanto, a uma escolha. É no meio do povo que ele
compõe, é do meio do povo que ele retira os recursos para a sua composição. Assim,
transforma as palavras consideradas “erradas” em arte.
Nesse sentido, o poema revela um espaço onde é possível escutar as vozes diferentes,
não aceitas oficialmente. Para Bakhtin (1993), que retrata a Idade Média e o Renascimento,
a praça pública constitui-se como “o ponto de convergência de tudo que não era oficial, de
certa forma gozava de um direito de ‘exterritorialidade’ no mundo da ordem e da ideologia
oficiais, e o povo tinha a última palavra”. De acordo com a visão deste teórico, o espaço
da praça pública, em dias de feira, possibilita a instauração da ‘carnavalização’, na qual o
sujeito pode se lançar num outro mundo.
Apesar de Bakhtin reportar-se a um outro período e contexto social, pode-se localizar
no poema de Trindade os mesmos discursos especiais que segundo o teórico ressoavam na
praça pública: a linguagem familiar, que se diferencia da língua falada pelas classes
dominantes. Desta forma, uma organização especial do vocabulário, um vocabulário
consagrado à feira livre. Assim, a poesia se compraz num efeito sonoro: enchendo de
ritmo/ a beleza da terra”. Por conseguinte, a pertinência sonora faz com que Trindade opte
por transcrever as falas não de acordo com a norma culta, com a finalidade de manter a
sonoridade de algumas palavras, como por exemplo, mé, mio, home, bassora etc.
126
O uso constante de pregões”, que aliás compõe o título do poema, fornece um rico
“tesouro verbal vivo”, para usar o termo de Bakhtin. Na leitura do poema podemos
encontrar diversos apelos. Cada mercadoria possui o seu próprio vocabulário, melodia, sua
entonação, isto é, sua figura verbal e musical. O poema, pois, é tipicamente oral,
manifestando o caráter coletivo e criando um ambiente de liberdade, franqueza e
familiaridade.
Conseqüentemente, ao dirigir-se à senhora gramática, o eu lírico se desculpa por seus
pecados gramaticais:
SENHORA gramática
perdoai os meus pecados gramaticais.
Se não perdoardes
senhora
eu errarei mais. (idem, p.189).
Nota-se que Solano utiliza o termo “pecado” para demonstrar a transgressão às
regras gramaticais. Isto reflete uma transgressão consciente e, por isso, o poema surge em
forma de confissão e pedido de perdão. No entanto, não arrependimento. Ao contrário, o
eu lírico demonstra que seu desejo de ir contra as regras institucionais permanece como
proposta no seu fazer literário. Assim sendo, adverte: Se não perdoardes/ senhora/ eu
errarei mais”.
Outro recurso que pode ser encontrado na obra de Solano Trindade e que faz parte
também da renovação na linguagem, pregada pelos modernistas, é o processo de
enumeração de fatos que, de acordo com Benedita Damasceno, dão a idéia de relações de
fatos fixados fotograficamente.
127
Recife
Presépio de avenca
Cheiro de canela
Pastorinhas leves
Menino Deus de pernas pra cima
Puríssimas canções (idem, p. 111).
O eu lírico parece inventariar os fatos para inscrevê-los permanentemente na
memória.
De maneira numerosa, também várias palavras de origem africana, o que remete a
uma recuperação da identidade via linguagem. As palavras de Fanon (1983, p.33)
consolidam esta afirmação: “Falar uma língua é assumir um mundo, uma cultura”. Ao usar
palavras de origem africana, Solano assume o mundo e a cultura de seus antepassados,
expressa parte da civilização e da identidade desses povos. É o que se pode encontrar por
exemplo nos poemas “Olorum Ekê”, “Olorum Shanú”, “Macumba” e outros poemas.
Observe alguns versos de “Macumba”:
Noite de Yemanjá
negro come acaçá
noite de Yemanja
filha de Nanan
negro come acaçá
veste seu branco abebé
Toca o aguê
o caxixi
o agogô
o engona
o gã
o ilu
o lê
o ronco
o rum
o rumpi (TRINDADE, 1961, p.134).
Além dessas palavras de origem africana, há na poesia de Solano Trindade uma outra
marca da poética negra: a introdução dos ritmos negros. De acordo com Damasceno (1988,
128
p.67), “a poesia negra no Brasil se distingue também pela acolhida dos ritmos negros: ritmos
do batuque, de samba, de música de candomblé que tiveram entrada na poesia brasileira pela
aceitação de todos os ritmos, como pregavam os modernistas”. No trecho do poema
Macumba pode-se notar que cada verso reproduz uma batida. Há, pois, a valorização do
aspecto formal, no intuito de se reproduzir o ritmo das músicas presentes no ritual. O
resultado é que o poema fica rico em ritmo negro e isto permite perceber claramente a
reprodução fiel do culto afro brasileiro.
Apreende-se na poética de Solano Trindade um lirismo que deixa transparecer, com
evidência, o ritmo e a cadência dos cantares africanos, do toque dos tambores e atabaques.
Em “Balada molenga a uma negra dengosa”, o poeta canta:
Sou molengo
molengo
Cheio de dengo.
(...)
Gosto de cafuné
Gosto bem do lero lero
Que venha da tua boca. (TRINDADE, 1961, p.60).
O conteúdo e a forma do poema se revestem dos ritmos da macumba, da capoeira,
dos falares da gente do povo. Através destes aspectos da linguagem observados, verifica-se
um contato maior com a sua cultura originária. No entanto, o poeta não se afasta da cultura
européia. Ele se utilizará desta para realizar uma reabilitação semântica da linguagem. E o
que era desqualificado pela cultura do colonizador passa a ter um novo sentido. Este aspecto
poderá ser demonstrado melhor ao longo do próximo sub-tópico.
129
2.2.4. Reabilitação semântica da linguagem
Tomando por base a negritude francesa, iniciada por volta de 1930, pode-se
desvendar uma das características importantes da escritura negra e que também se faz notar
na obra de Solano Trindade: a revisão de valores. Ou seja, aquilo que era considerado
negativo em relação ao negro é visto por um outro ângulo. Mais especificamente, as
verdades estereotipadas que visavam a anular a representatividade do negro são revistas a
fim de afirmar e exaltar sua condição humana. Esta revisão de valores históricos realiza-se
muitas vezes no nível da representação simbólica. Bernd (1988, p.89) corrobora esta
colocação quando afirma:
o poema se torna espaço da destruição de uma simbologia estereotipada
onde por exemplo a noite, o preto, o escuro, é associado ao mundo das
trevas, do mal ou do pecado. Embora alguns ainda revelem ter introjetado
esses clichês, um certo número consegue reverter seu sentido, fazendo
com que o mesmo referente se transforme em símbolo positivo.
Solano Trindade consegue realizar essa transmutação de sentidos no poema
“Moleque”, ao ver a negrura da pele como algo bom, símbolo de amor e não mais como o
feio, o assustador:
MULEQUE, muleque
quem te deu este beiço
assim tão grandão?
Teus cabelos
de pimenta do reino?
Teu nariz
essa coisa achatada?
Muleque, muleque
quem te fez assim?
Eu penso, muleque
que foi o amor... (TRINDADE, 1961, p.52).
130
Os questionamentos feitos ao longo do poema, em princípio, parecem seguir o
mesmo caminho depreciativo na descrição do homem negro. A delicadeza do vocábulo
“lábios” é substituída pela palavra “beiço”, que traz uma carga semântica de algo mais
selvagem. O aumentativo “grandão”, acrescido a este substantivo, por si só revelador,
reforçam a idéia de algo desproporcional, estranho. Os cabelos passam pelo mesmo
processo, adquirindo um sentido exótico. E o nariz, antes de ser parte do corpo, é coisa”.
No entanto, esses sentidos são ressignificados na última estrofe, quando o eu lírico procura
responder as questões: Eu penso muleque, que foi o amor...”. Ao ser descrito finalmente,
como resultado do amor, as adjetivações recebem um sentido positivo a fim de expressar a
imagem do menino, que não é o estranho, mas mbolo de um sentimento grandioso e,
portanto, belo aos olhos do poeta.
Outra reabilitação lingüística que ocorre na obra de Trindade se refere ao ritmo das
músicas negras, vistas como demoníacas (de acordo com a estereotipia antropológica).
Instrumentos musicais de origem africana surgiram como forma de convocação para uma
sociedade livre de preconceitos. Segundo Bernd (1988, pp. 90-91), trazer à tona para fixar
na memória coletiva os instrumentos usados pelos escravos tem também a função de prover
o povo negro de referentes que o vinculem a uma ancestralidade da qual possam se
orgulhar.” Assim, o eu lírico no poema “Macumba”, solicita a presença de instrumentos tais
como o aguê, o caxixi, o agogô, o engona, o gã, o ilu, o lê, o ronco, o rum e o rumpi.
Ao longo da obra de Trindade, os objetos ligados à senzala também receberão um
novo sentido, como se pode notar em “Orgulho”:
131
Sou filho de escravo
Tronco
Senzala
Chicote
Gritos
Gemido
Sou filho de escravo. (p. 43).
Como pode se perceber, os instrumentos de tortura emergem no tecido poético com
um sentido positivo. Observa-se, portanto, que o passado para o poeta não deve ser
esquecido, ao contrário, deve ser evocado como testemunho de experiências vivenciadas a
fim de fortalecer o negro, e fazê-lo perceber que seus antepassados resistiram ao flagelo da
escravidão e que é esta fatura positiva que deverá servir de exemplo para seus descendentes.
O passado apresenta-se, então, como fonte de um impulso para a luta em nome da liberdade.
Essa dinâmica da cultura que diante de um confronto com um novo modelo, muitas
vezes imposto, vai buscar no passado informações para a resistência e que, ao final, acaba
produzindo uma nova resposta, mesclada de elementos do passado e dos apelos do
momento, foi bem descrita em Marxismo e Literatura, de Raymond Williams (1986, pp.
112-116), que denominou essa situação cultural como hegemônica (a que pressiona pela
mudança), residual (a que busca dados no passado, na tradição) e emergente (a que resulta
da tensão), que funcionam como um motor contínuo nas estruturas sociais.
Esta noção apontada por Willians pode ser verificada em “Orgulho”, pois, a forma
circular do poema (inicia e termina com “Sou Filho de escravo”) permite verificar este
retorno a um tempo anterior como forma de agir na situação atual. O orgulho da origem (não
apenas a origem ancestral africana, mas a origem circunstancial de sua condição de escravo
na América e, mais especificamente, no Brasil) é o fator que propõe a mudança na maneira
132
do negro se ver e ser visto pelos outros. Desta forma, nos resíduos de sua origem, encontra-
se o estímulo para assumir-se, através do verbo “Sou”.
2.3. A mulher negra
Verificar a presença da mulher negra na obra de Solano Trindade é fundamental,
pois, a análise da obra indica que o poeta tem a mulher como uma das figuras mais
recorrentes. O próprio poeta demonstra seu interesse nos versos: A vida me deu uma negra
para fazer poema nesta manhã com cheiro de infância”. É necessário, pois, observar as
mulheres que povoam a imaginação artística do poeta, investigando as influências destas
em seu fazer literário.
Na escrita de Solano Trindade, a figura feminina torna-se extremamente significativa
e seu sentimento é confesso: Amo as mulheres/ De qualquer tipo/ De qualquer raça/ De
qualquer cor”. Nota-se que o eu lírico demonstra uma capacidade de amar sem diferenciar e
com esta atitude revela um dos ângulos de seu projeto ecumênico, de acolhimento a todos. O
resultado em sua obra é a presença de inumeráveis figuras, diferentes em suas atuações
sociais, mas protagonistas na construção ou revisão da História ou historiografia literária.
Assim sendo, faz-se necessário observar a presença das diferentes mulheres que revelam as
várias faces de uma identidade em construção: a identidade negra.
133
2.3.1. As várias faces da mulher negra na sociedade
É numerosa a quantidade de mulheres que circulam a obra de Solano Trindade:
diversas Marias, Ana, Margarida, Dona Micaela, entre outras. Mulheres retiradas de diversas
camadas sociais e cuja presença faz-se evidente na memória do poeta.
Ainda que não seja o foco principal, a imagem da “mulher mãe” surge em sua obra.
A figura materna vem a ser uma das representações cantadas em seus versos. A lembrança
desta figura é essencial para a composição de seu projeto poético, pois, ao desejar incluir as
diversas categorias, não poderia deixar de se referir à figura materna. Por conseguinte, a
participação desta em atividades populares fica impressa nos versos: A minha mãe foi
cigarreira e filha de Maria da igreja da Penha. A saudade impulsiona a vida do poeta Amo
a saudade/ Da Merença/ Minha mãe” .
Através desta menção a Merença, pode-se perceber que a biografia de Trindade e
sua poesia se misturam. Há, pois, ao longo de sua produção, uma biografia poética.
Em “Poema de mamãe” destaca-se a mistura de dor e alegria no nascimento do filho:
INTERPRETO o gemido
de minha mãe com dores de parto
Com seus cabelos negros
sobre o branco travesseiro
nos olhos
expressão de dor
e esperança
curiosidade
pelo que vai nascer
Fortes abstrações
anjos divindades
céu inferno
sorte destino
134
abandono do certo
ignorância biológica
o nada o ilusório
oração sangue dor
Mamãe
Volvo-me ao dia do meu nascimento
Tudo talvez
Luar parado
lampiões mortos
guarda noturno apitando
declamações de amor
beijos
Bach Chopin Bethoven
interiores mal iluminados
ruas tristes
cenas de alcovas
Crianças brincando de roda
gente discutindo a revolução
tudo isto talvez
nasci numa noite
de um dia como outros
talvez pudessem
encontrar alguns valores plásticos
talvez numa sombra
produzindo uma lua diferente
talvez numa colocação
inspirando uma nova linha
um contraste de traços
um contraste de cores... (TRINDADE, 1961, p.179).
Neste poema, em que o eu lírico inventaria os objetos a fim de compor o cenário, o
nascimento não se impõe como o principal acontecimento. Nada de extraordinário faz com
que o fato seja lembrado, mas a reação de sua mãe é de um grande valor plástico. A dor
desta mulher no momento em que o filho vai nascer marca o poeta pelo fato de ser um
instante em que antíteses se percebem. A dor e a felicidade se misturam ao gemido da mãe:
os negros cabelos no branco travesseiro, a dor e a esperança. A incerteza, no segundo
parágrafo, é o resumo de outros pares contrastantes: céu e inferno, o nada e o ilusório, sorte
e destino. É interessante apontar nesta estrofe o oitavo verso, onde oração e dor medeiam o
135
sangue. O que se nota é que a oração, indicando esperança, vai contrastar com dor, tendo
como elo o sangue que se faz notar.
Por fim, o nascimento. Momento comum e que faz parte de um cotidiano que não foi
afetado. As pessoas continuam seus trabalhos, outros se declaram, o que era mal iluminado
continuou como era, o que era triste permaneceu assim. Nada de diferente marca a vida de
um novo ser ao mundo.
A mensagem importante que fica, no entanto, é de um nascimento que não é
diferente: nem melhor, nem pior. É o nascimento de um ser humano que se iguala em tudo.
Além das figuras maternas, outras mulheres circulam o universo social recriado por
Solano Trindade. Destaca-se, sobretudo, nestas mulheres, valores religiosos e morais da
sociedade vigente.
Assim, dentro deste universo, há que se pensar como se apresenta a liberdade destas
mulheres. Os valores que ficam explícitos em seu comportamento e a moral religiosa que
permeia suas ações.
A visão cristã de uma mulher “casta” são características de uma negra bonita que
leva o eu lírico a Deus:
A NEGRA bonita
toda de branco
entrou na igreja
Ali estava o Deus
que eu procurava
Tantas vozes
cantavam
___ Só a dela eu ouvia
Do rei Salomão
os cantores eu lia
136
porque nos cantores
só a negra eu via
Cheguei a Diácono
presbiteriano
Foi uma negra
que me levou a Deus. (idem, p.57).
A primeira marca que evidencia o cristianismo dentro do poema é, na primeira
estrofe, a escolha da vestimenta da negra. Ela se veste de branco, cor da pureza de acordo
com esta crença religiosa.
Na segunda estrofe, a referência cristã é o entusiasmo do eu lírico, que se compara ao
rei Salomão.
Apesar da quase nulidade de arquivos ou estudos bíblicos acerca da figura do negro
como participante na História Sagrada, algumas linhas de estudo apontam para uma
revelação no mínimo curiosa: Sulamita, a predileta do coração de Salomão e inspiradora dos
poemas de amor do livro de Cantares, provavelmente foi uma bela negra. De acordo com
alguns estudiosos dos textos sagrados, as filhas de Jerusalém protestaram quando
descobriram que o maior poema de amor de todos os tempos havia sido dedicado a uma
negra. O eu lírico, durante o poema bíblico, empresta a voz a esta mulher, que responde à
atitude preconceituosa através do orgulho de sua origem: “Eu sou morena e formosa, ó
filhas de Jerusalém, como tendas de Quedar, como as cortinas de Salomão” (Cantares 1:5).
O eu lírico, no poema de Solano, se prende à leitura dos cantos de Salomão, para
destacar a escolha do rei, pois, este prefere uma negra para ser sua noiva. Ao mesmo tempo
em que realizava a leitura dos cantos de Salomão, o eu lírico mantém seu pensamento na
bela negra que o fizera ir à igreja.
137
O resultado é que esta influência da linda negra faz com que o eu lírico siga uma
vida religiosa, tornando-se diácono presbiteriano. Assim, a linda negra se faz um elo entre o
eu lírico e Deus.
O oposto desta pureza ocorre no poema que segue:
OUTRA linda negra
me levou à macumba
No xangô da Baiana
da Praia da Pina
Era noite de lua
a preta era bela
Dançava no corpo
Que lindo o andar!
A negra era filha
da Deusa Oiá
tinha um cheiro no corpo
que me levou ao pecado
Faltei com respeito
Ao seu Orixá
Lá no terreiro
dançou para mim
seus seios bonitos
pulavam no ritmo
do atabaque
e do agogô
Fui pra casa da negra
Fomos os dois para o céu
Recebi o santo
do corpo da negra
e fiquei o maior
de todos os Ogans
e passei a cavalo
de Obatalá... (TRINDADE, 1961, pp. 57 e 58)
Aqui neste poema a negra conduz o homem para um terreiro de macumba. O
vocábulo “macumba” em definições enumeradas por Nei Lopes (2003, p.131), traz o
sentido de audácia e também ousadia. Estes sentidos são relevantes para entender o clima
138
sensual verificado no poema. Na segunda estrofe, por exemplo, a dança e o cheiro
envolventes da negra chama a atenção do eu lírico e o leva a desejos pecaminosos: tinha
um cheiro no corpo/ que me levou ao pecado/ Faltei com o respeito/ Ao seu Orixá”. A
dança da negra se fixa na memória do poeta, por isso, na terceira estrofe novamente
menciona-se o bailado impregnado da sensualidade desta mulher e que traz os ritmos
africanos, embalados pelos sons do atabaque e agogô. Nota-se que a fonte musical não é
mais tomada da Bíblia Sagrada, mas sim dos cultos negros.
Na metade da terceira estrofe uma mudança no espaço. O eu lírico vai para a casa
da negra e esta o “leva para o céu”. A metáfora que o poeta utiliza remete ao ato sexual.
A continuidade da vida religiosa transparece em sua função como “Ogan”, cujo
objetivo é receber Obatalá, "pai" dos Orixás, mais importante e elevado deus iorubá, o
primeiro criado por Olodumaré (O Deus supremo).
Percebe-se, pois, que neste poema, não apenas a linguagem, mas aspectos da cultura
africana são evocados. No entanto, em ambos os poemas é possível verificar a presença de
elementos de diferentes religiões. Esse dado é significativo para que se ressalte que embora
Solano valorize aspectos culturais de origem africana, sua produção tem um caráter de
universalidade. Ou seja, um foco no negro oprimido, mas, manteve-se uma poesia aberta,
solidária e uma visão ecumênica com relação às diferentes etnias e religiões. Através dos
versos de “Toque de reunir”, Vinde irmãos macumbeiros/ espíritas, católicos, ateus/ Vinde
todos os brasileiros/ Para a grande reunião/ Para combater a fome/ Que mata a nossa
nação” (TRINDADE, 1980, p. 73), pode-se reconhecer este ecumenismo, o desejo de uma
sociedade igualitária porque solidária.
139
2.3.2. Mulher negra: beleza e sensualidade
Musa do amor, a mulher negra é exaustivamente cantada nos versos de Solano
Trindade. Nestes, a figura da mulher é retratada por uma voz sensível que canta, mas, ao
mesmo tempo, se solidariza com a condição desta mulher dentro da sociedade, como pode
ser visto nos versos: Negra bonita/ de azul e branco/ sentada num banco/ de segunda
classe / do trem de Caxias / Negra bonita/ O que é que você tem/ que está tão triste, não
sorri pra ninguém?”
Novamente aqui uma menção a cidade de Duque de Caxias a fim de critica a
situação social em que há uma clara equivalência entre preto e pobre, ou seja, através da
negra bonita, porém triste, há a denúncia da desigualdade social. Verifica-se, pois, a
representação de uma hierarquia na qual o negro e, mais especificamente, a mulher negra,
ocupa a “segunda classe”, uma posição subalterna.
Com um grande respeito por sua origem, o poeta canta a beleza da mulher negra e a
exaltação dos traços desta mulher pode ser localizada em poemas como “Poema à mulher
negra”:
Ela é negra – que graça esplêndida
no seu colorido.
Seus olhos – magnéticos no seu puro sentido!
Sua voz – é um lundu tocado à madrugada!
Seu corpo - ó grande escultura
Seios estéticos em formas provocantes!
Sua alma – ó céus! - como expressar-me?
É grande como o Nilo
é quente como o sol
é boa como o amor!...
Quando ela passa – ó artes –
140
eu me inspiro
pois seu hálito é bom e prazenteiro...
Seu andar – caramba! – é um bailado.
Seus pés e suas mãos
combinam com a cabeça
como as estrofes
que formam este poema... (TRINDADE, 1961, p.55).
O primeiro aspecto que chama a atenção no poema é a forma como foi composto.
Duas estrofes longas e no meio uma estrofe curta lembram a curva do corpo de uma mulher.
Isto se torna significativo se o leitor atentar para o fato de que o conteúdo do poema vai
construindo, através da linguagem, o corpo da mulher negra (ad) mirada. O eu lírico parece
estar retratando, desenhando a amada. O primeiro aspecto destacado é o colorido da pele que
dá a esta mulher uma graça esplêndida. Segue-se a enumeração de seus olhos, de seu andar e
de seu corpo como escultura. Pincela-se ainda, nesta primeira estrofe, um sutil erotismo em
louvor à beleza: Seus seios estéticos em formas provocantes”. Mas, durante o poema, a
mulher é exaltada em sua completude e não apenas como corpo, assim, falta adjetivo para
expressar a alma deste ser. Ao destacar a alma, por conseguinte, o eu rico se posiciona
contrário à idéia de que o negro não possua alma, enfatizando através da exclamação o
caráter humano desta mulher. Sentir a Alma tem o objetivo de identificar, na cultura e nas
artes no Brasil, a expressão de um sentimento negro: um sentimento de profunda
identificação com as raízes africanas ou com a grande contribuição negra na formação da
sociedade. Aqui, são explorados os momentos em que, burlando o controle, rompido o cerco
físico e mental que encerra o negro nos estigmas do corpo, a herança africana procura abrir
um caminho de expressão na cultura.
141
Mas é sobretudo pela marca característica de telas que a obra ganha beleza e
transparece vida: a exuberância do colorido quente e intenso que imprime a cor desta
mulher, sem meias tintas e esbatimentos, revela um tom forte que ao quadro-poesia um
aspecto de rudeza que, longe de constituir um defeito, prova de modo inegável a
individualidade de um estilo que o artista abraça como uma conquista pessoal.
Na segunda estrofe, encontra-se nesta mulher negra uma importante referência ao
passado africano: ela é grande como o Nilo. Deve-se enfatizar que o adjetivo que liga esta
mulher negra às raízes africanas é repleto de sentidos: extenso, nobre, extraordinário,
heróico, abundante. Todos os sentidos possíveis, porém, guardam imagens de algo que é
sublime e, ao mesmo tempo, diferenciado.
Visto por este prisma, o poema vai contra a idéia que tanto prevaleceu na
mentalidade brasileira de que um corpo belo equivale a uma alma bela e de que uma alma
bela equivale a um corpo branco idéia que alimenta o estereótipo étnico, transmitindo a
mensagem de um negro feio, desproporcional. A negra descrita por Solano é perfeita em
seu corpo, como as estrofes que formam este poema. Através deste verso uma ligação
entre a negra e uma criação poética que se inspira na raiz afro-brasileira, encontrando nesta
mulher elementos para a criação de uma arte. Assim, ele busca no bailado do corpo
feminino o ritmo de sua poética e, na harmonia de seu corpo, a coerência dos versos que
formam as estrofes do poema.
que se destacar ainda, que o poema em si não se encontra dentro do padrão
estético da arte que imortaliza as formas alvas, brancas, formas claras, averiguadas em
“Antífona”. O eu lírico, ao contrário, descreve os encantos da mulher negra: graça
esplêndida que inspira o poeta.
142
A apreciação da mulher negra, a busca desta como obra de arte pode ser verificada
também em “Deixa”, em que o eu lírico pede para eternizar a graça desta mulher, seja numa
escultura, num canto, ou na troca amorosa:
Deixa ó negra
admirar teu corpo
como se fosse Picasso
a modelar-te em pedra
Deixa ó negra
que eu te cante um salmo
com a ousadia de um Salomão
Deixa ó negra
eu ser tudo em ti
como se fosses iaô
E eu uma grande orixá. (p.56).
A negra aqui também aparece como a mulher a ser descrita, pincelada com a sutileza
de quem admira a distância. O eu lírico, desta forma, pede licença para, mirando, olhar e
eternizar a beleza desta mulher. O padrão de beleza do poeta, a preferência pela mulher
negra se evidencia. A busca de inspiração para a arte é a mulher preta e não a mulher branca.
Na primeira estrofe é retomada a importância de Pablo Picasso, não apenas como
pintor, mas como escultor. Por isso, o poeta pede licença para modelar a mulher em pedra
que indica algo sólido. Revela-se, ainda, uma fase de Picasso que foi conhecida pelo
público após 1927 e na qual se verifica o interesse do artista pela Escultura Negra Primitiva.
A obra chave desse período é As senhoritas de Avignon (1907), em que rompe a
profundidade espacial e a forma de representação ideal do nu feminino, reestruturando-o por
meio de linhas e planos cortantes e angulosos. No poema de Trindade também uma
reestruturação na forma de ver a mulher ideal. Assim, na admiração da mulher negra a
busca de um ângulo diferente, rompendo com o padrão de beleza clássica.
143
A admiração por esta mulher permanece na segunda estrofe e o eu lírico pede para
exaltá-la como se este fosse o rei Salomão, que entre tantas mulheres, escolheu uma negra
para cantar seu amor.
Na terceira estrofe há a expressão do sentimento do eu lírico que enfatiza o desejo de
concretizar seu amor através de uma união sexual: Deixa ó negra/ eu ser tudo em ti”. Ao
trazer a imagem do orixá, reforça a idéia de troca amorosa, através de uma imagem que
proporciona ao leitor a idéia de incorporação existente nos rituais afro-brasileiros. Há que se
lembrar ainda, que os orixás não são dessexualizados, como acontece no cristianismo.
Portanto, ao usar a imagem religiosa do orixá, o poeta aparentemente atua no sentido de
liberar os impulsos amorosos. Há, no poema, mesclas de culturas e religiões para traduzir o
amor por esta mulher. Novamente o caráter inclusivo de sua poética: uma religião
monoteísta e outra politeísta. Na imagem da mulher negra, a confluência das culturas e
expressões de seu ecumenismo poético.
Outra negra formosa que pode ser identificada na obra de Trindade é uma baianinha
que participa de um jogo sensual, mítico e erótico:
BAIANINHA
vatapá permanente
doce de coco
cafuné dendê
você veio na hora
quentinha
pra minha vida
trazendo o dengo
do que eu precisava.
Candomblé da minha madrugada
batendo em mim
que sou tambor creoulo
com patuá
envolvendo meu pescoço
botando no meu corpo
144
o Orixá do amor
botando em minha boca
feitiço de Iansã.
Você veio agora
como a revolução de Cuba
me animar a vida
Você veio agora
como a libertação do Congo
me tocando pra frente
e fazendo esquecer
o tempo
e a velhice.
Você veio agora
fazer mutirão comigo... (idem, p.167).
O eu lírico, neste poema, traça não a mulher a ser descrita, apenas observada à
distância, mas a mulher a ser comida, usando o termo de Affonso Romano de Santana
(1993, p.25). Essa conotação de alimento atribuída à mulher fica clara quando se nota que a
baianinha é descrita em meio aos quitutes sedutores que prepara. Assim, um sentido canibal
começa a ser desvendado e a mulher adquire um caráter de “mulher-fruto”. Se no poema
anterior uma certa sutileza na descrição da beleza negra, aqui este sentido é substituído
por algo mais palpável. O tato, assim sendo, passa a ser um dos sentidos destacados, através
dos gestos de fazer um cafuné, um dengo, ambos contatos mais íntimos e mais carinhosos.
Chama a atenção o fato de o poeta misturar tato e paladar para dar a intensidade deste
carinho, que se mostra extremamente sedutor. O cafuné não é apenas um gesto para fazer
dormir, pois, adjetivado pelo vocábulo dendê, mostra um tempero especial neste carinho,
tornando-o mais apreciável e aumentando a aproximação da mulher com o sentido de fruto.
Por isso, o poema revela sintomaticamente outro dado relevante. Ele torna explícita a
passagem do bi-sentido (visão e olfato) como forma de manter-se distante do negro,
percebida no estereótipo étnico, para os outros sentidos (tato e paladar). Há, portanto, uma
145
abertura para a absorção da mensagem vital: a baianinha, com seus quitutes, mostra o seu
lado “sexuado”, “sensualizado”, de mulher que deseja se entregar (vatapá permanente). Há,
pois, uma notável liberação dos desejos e uma busca do prazer. Um prazer que se na
troca amorosa. A expressão “você veio..” repetida nas três estrofes do poema, enfatiza que a
mulher negra na obra de Solano Trindade partilha com seu amado o mesmo espaço social, o
mesmo espaço de desejo e de entrega. Não é, portanto, a mulher que segundo Sant”Anna (
1993, p.25) fica nos fundos da casa, ligada à alimentação erótica e gastronômica, servindo
de expressão de poder para o seu dono, indicando uma relação sádica de dominação erótica
e econômica.
Na segunda estrofe não predomina o sentido de “mulher-fruto”, pois as metáforas
buscam as raízes negras nos rituais religiosos. Assim, a baianinha é comparada ao
“candomblé”. O ritmo do ritual é conseguido na relação amorosa quando o eu lírico se
metamorfoseia em tambor creoulo/ com patuá”. A sensualidade da mulher negra se destaca
através da confissão do o eu lírico que se diz enfeitiçado; e a presença de Iansã reforça a
idéia que o poeta deseja transmitir.
Nas cerimônias da Umbanda e do Candomblé, Iansã surge quando incorporada a
seus filhos, como autêntica guerreira, brandindo sua espada, ameaçando, prometendo a
guerra, sempre guerreira e, ao mesmo tempo, feliz. Ela sabe amar e gosta de mostrar seu
amor e sua alegria contagiantes da mesma forma desmedida com que exterioriza sua cólera.
A figura de Iansã sempre guarda boa distância das outros orixás femininos centrais
do panteão mitológico africano, aproximando-se mais dos terrenos consagrados
146
tradicionalmente ao homem, pois está presente tanto nos campos de batalha, onde se
resolvem as grandes lutas, como nos caminhos cheios de risco e de aventura.
Extremamente sensual, apaixona-se com freqüência e a multiplicidade de parceiros é
constante. Iansã costuma ser íntegra em suas paixões; assim nada nela é medíocre, regular
ou discreto; suas zangas são terríveis, seus arrependimentos dramáticos, seus triunfos são
decisivos em qualquer tema, e não quer saber de mais nada, não sendo dada a picuinhas,
pequenas traições. É o Orixá do arrebatamento, da paixão. É o orixá que se aproxima da
intensidade amorosa que é transmitida pela “Baianinha” descrita na obra de Solano
Trindade.
Na terceira estrofe, a mulher negra se mescla com o sentido de liberdade e revolução.
Contudo, o sentido de relação de troca se fortalece novamente nos últimos versos: “você
veio agora/ fazer mutirão comigo”. Ou seja, a mulher que atrai o eu lírico é determinada,
ativa e participante, características da guerreira Iansã, o que permite que seja companheira
do homem em todos os
momentos.
2.3.3. Mulher negra e sua influência na poesia de Trindade
Trindade em suas poesias faz uso do mito, das fábulas, de citações poéticas e das
crenças populares. Desta forma, a fim de compor seus poemas, ele deixa evidente que
procura uma fonte inspiradora. Há, pois, uma evocação das musas como fonte de inspiração.
O poeta escuta o canto destas musas e, partindo da palavra cantada, guarda a visão de
mundo e a consciência histórica de seu grupo social, reconstruindo a realidade. Esta
147
influência das musas em sua poética, pode ser verificada no poema “Poeticamente
polígamo”:
Eu sou poeticamente polígamo
Amo inumeráveis musas
e elas não são iguais...
Cada uma oferece
um amor diferente
e eu sou sensível
à mutabilidade amorosa...
Plasticamente
há grande variação
entre as amadas
e nos seus olhares
encontro inspirações diversas
e nos seus corpos
diferentes perfumes
As mulheres
são como as flores e os frutos. (TRINDADE, 1961, p.156).
As Musas são, no plano da realidade divina, a encarnação perfeita de uma fonte
inspiradora.
O poeta é possuído por um deus. Seu papel é de receber passivamente o que lhe foi
ditado. Ele não é mais senhor de seu espírito, mas, à maneira de uma fonte, deixa livremente
fluir o que lhe for inspirado. Cada uma oferece/ um amor diferente/ e eu sou sensível / á
mutabilidade amorosa
...”
O poeta é, portanto, simplesmente o porta-voz de palavra de inspiração divina, ou
seja, das musas do amor.
Nos primeiros versos do poema, o eu lírico esclarece que não recebe inspiração
unicamente de uma musa, ele se declara “poéticamente polígamo” e, ao declarar-se como
tal, deixa claro uma relação de inspiração amorosa que não se prende aos padrões de musas
148
ocidentalmente reconhecidas, mas, a uma quantidade inumerável de musas, mulheres
comuns divinizadas pelo olhar do “poeta do povo”.
Ainda sobre estas musas inspiradoras, há que se declarar uma valorização da
diferença em cada uma. Nestas diferenças, sem jogos de comparações, o eu lírico valoriza o
que cada uma pode oferecer: cada uma oferece/ um amor diferente”. Nota-se que o
conceito de fazer poéticoque envolve as musas gregas permanece no poema como a arte
amorosa e os “cantos” destas são substituídos pelos olhares e pelos perfumes do corpo.
Por fim, na última estrofe, o eu lírico compara estas mulheres divinizadas com as
flores e os frutos, que estas carregam em si o poder de encantar pela beleza, podendo ser
admirada como flor e, ao mesmo tempo, pode seduzir como fruto que incita o uso do
paladar.
Um outro sentido, no entanto, pode ser encontrado em relação ao corpo feminino na
obra de Solano Trindade: a mulher que carrega dentro de si a vida, a mais nobre das artes.
Ao falar sobre “A mensagem do poeta”, em Poemas de uma vida simples, Solano assim
define:
A mensagem do poeta
Fala do corpo da mulher
Dos seus seios
Da sua boca
Das suas mãos
Porque na mulher
Está a vida do poeta
Porque a mensagem do poeta
Vem do ventre da mulher (TRINDADE, 1944, p.107)
149
Nestes versos compreende-se que a mulher se torna musa inspiradora do poeta por
ser portadora do dom da vida. E como é próprio ao poeta cantar o homem em sua condição,
não poderia se furtar em cantar também toda mulher que gesta.
Entende-se, desta forma, porque tantas mulheres na obra de Solano Trindade.
Como poeta, a mensagem que deseja transmitir é a mensagem da vida, o que é indissociável
do feminino. Desta forma, sua arte se inspira na mulher, ou, às vezes, sua poesia assume
uma forma feminina, como se a poesia fosse a mulher amada: “Quando ela passa – ó artes –
/ eu me inspiro/ pois seu hálito é bom e prazenteiro.../Seu andar caramba! – é um
bailado./Seus pés e suas mãos/ combinam com a cabeça/ como as estrofes/ que formam este
poema...”
Logo, se percebe a obra como extensão do sentimento do poeta, sentimento de luta e
de amor ao próximo. Em diversos poemas encontra-se a comparação da criação poética com
o ato de viver e mesmo amar:
A vida é um grande e monumental poema
minha luta são estrofes, são versos
neste grande e monumental poema
Haverá na minha alma sempre haverá
uma canção nova uma nova canção
e eu extravasarei o que vai dentro dalma
como o rio extravasa a sua água
como o sol extravasa o seu calor
pois eu sou como o rio
e sou como o sol
Eu sou poeta
e ser poeta é ter vida
e a vida é como a água do rio
é como o calor do sol
Minhalma é feita de amor
e assim é minha carne
é todo o meu ser
porque eu sou poeta
150
e ser poeta
é algo mais que ser humano
o poeta nunca cansa de amar
o Amor é como a água do rio
é como o calor do sol
O meu poema
banha o corpo amado
como a água do rio
o meu poema
aquece o corpo amado
como o calor do sol
porque a água do rio
e o calor do sol
são como o amor do poeta. (idem, p.159).
A primeira estrofe é a essência da idéia de poesia como ato de viver: “A vida é um
grande e monumental poema”, canta o poeta. E justifica uma poesia que se quer povo,
retirada do meio da gente que cerca o artista. As lutas, as batalhas fazem parte da vida, mas,
não é o todo, são partes, versos, estrofes que compõem o poema, que compõem a vida de
quem se propôs a escrever e deseja que sua escrita desperte a consciência do leitor.
Na segunda estrofe destaca-se o movimento que adquire o poema quando o poeta
repete a idéia: Haverá na minha alma sempre haverá/ uma canção nova uma nova canção.
Ao fazer isto, transmite a sensação de algo que se renova. O advérbio de tempo “sempre”
que liga o primeiro par de repetições, marca o propósito do poeta de manter em sua vida
uma canção aberta aos propósitos de solidariedade. Mas, através do segundo par de
repetições (novo/ nova), pode-se pensar, também, na própria renovação da vida que obriga a
arte a acompanhar o seu ritmo. É esta emoção que o poeta pretende transmitir, de maneira
contínua e, ao mesmo tempo, eficaz como as águas do rio e como o calor do sol.
Na terceira estrofe há uma ênfase na idéia de movimento e dinamismo da vida. Aqui
o poeta compara a vida com “a água do rio” e “o calor do sol”, porque através destas
simbologias pode representar o ato de amar como algo incessante e quente.
151
Destaca-se de maneira enfática a importância do amor para Solano Trindade:
Minhalma é feita de amor/ e assim é minha carne/ é todo o meu ser”.
O próprio poeta em prefácio para Cantares ao meu povo confirma que um de seus
objetivos é o Amor, que ele buscará nas mulheres. Neste poema, rico em imagens e de
ritmos diferenciados - lembrando o balanço de rede e barulho de água, com remansos,
tropos, juncos dobrados pelo vento - há a impressão de que o sol se reflete na água,
lembrando o ato de amar, o ato de banhar o corpo amado.
As mulheres, com uma sensualidade que convida ao amor, exercem uma certa magia
na vida do poeta. Pode-se dizer que o poeta diante de suas presenças fica enfeitiçado, como
se confirma no poema “Mandinga”:
ISTO é mandinga
Isto é mandinga
Teus olhos de mãe d’ água
pregando lirismo
teus seios escondidos
em Vila Isabel
Teus lábios mestiços
falando em beleza
no ritmo do samba
dos pingos da chuva
que molham o meu rosto
lirismo + lirismo
= a lirismo
(vamos somar na poesia)
é preciso aumentar a poesia
é preciso crescer e multiplicar
poeticamente. (idem, p.59).
A primeira estrofe, composta de apenas dois versos, traz em si um conteúdo amplo.
O primeiro aspecto a ser destacado é a linguagem. Desta forma, ao dizer-se enfeitiçado,
152
seduzido, o poeta utiliza um vocábulo de origem africana: “mandinga” que traz como um de
seus sentidos língua, linguagem, remetendo ao poder que os negros africanos atribuem à
palavra.
Mas a mandinga a que se relaciona o poema é a sedução da mulher. Este caráter pode
ser reforçado com os dois versos que compõem a segunda estrofe, onde há, na metáfora dos
olhos desta mulher, uma referência ao mito indígena da mãe d’água. A mãe d’água ou Iara é
a rainha das águas e nesse caso a voz é unânime em dizer que existe uma. A mãe d’água,
na figura de mulher muito atraente, atrai os homens, e os leva para as profundezas do rio.
Através deste mito indígena, acolhido pelas religiões de matriz africana, o poeta
destaca o caráter envolvente da mulher, portadora de um feitiço difícil de se resistir e, ao
mesmo tempo, ressalta novamente o poder da palavra, pois, a Iara atrai pelo canto
envolvente. É este canto que o eu lírico apreende do olhar da mulher que admira e que
descreve: “teus olhos de mãe d’água/ pregando lirismo”.
Na terceira estrofe, no entanto, o corpo desta mulher atraente vai se definindo como
o corpo de uma mulher negra. A primeira referência que surge é a menção à Vila Isabel,
bairro do Rio de Janeiro, de onde o poeta retira a maior marca de sensualidade desta mulher:
os seios. O bairro é historicamente conhecido por seus aspectos culturais, como o samba,
sendo um espaço da resistência negra pelo viés da cultura.
Na quarta estrofe, as descrições são mais nítidas: os lábios não são de uma mulher
alva, mas sim, um lábio mestiço, que fala de beleza e lembra o samba.
153
O resultado é a transformação desta imagem em arte, em imagem poética. Na quinta
estrofe, uma procura por sintetizar a imagem através da exatidão matemática. Utiliza-se,
pois, a “adição”, que em certo sentido traz a imagem da concretização desta relação amorosa
através do ato sexual. O convite é claro: Vamos somar na poesia”. Desta forma, destaca-se
a troca amorosa e a reprodução que este ato proporciona: “é preciso aumentar a poesia/ é
preciso crescer e multiplicar/ poeticamente”. Com a consolidação do amor, o eu lírico
procura transmitir a idéia de consciência, como pode ser verificada nestes versos de “Canto
de Palmares”: “Minhas musas esclarecem as consciências”.
A ligação entre mulher negra, amor e criação poética é, como se pode notar, um tema
recorrente na obra de Solano Trindade. Nesse movimento uma representação do ato de
escrever como algo capaz de romper com as barreiras impostas. Assim, o poeta mantém uma
atitude de apaixonada escuta diante do mundo, executando uma espécie de dança amorosa:
verdadeira liberdade para criar, em que o momento de revelação rica se confunde com o
relance erótico, capaz de revelar a nudez sublime da amada e a própria relação amorosa.
O ato de amor, livre de preconceitos, fornece ao eu lírico inspiração para escrever.
Por isso, seu desejo é que se criem cada vez mais musas:
É preciso criar muitas musas
para que a poesia não pare...
As musas não são estáveis
e a poesia é permanente...
A função do poeta é construir
a musa é material de construção
que o poeta transforma em monumento... (idem, p.158).
154
Na primeira estrofe, aparentemente, é resgatada uma das funções das musas gregas
que é inspirar os artistas. Neste poema o poeta saúda suas musas e expressa seu desejo de
que estas fontes inspiradoras não se esgotem para que a poesia não desapareça.
O que o eu lírico parecer propor é que a poesia deve sempre buscar temáticas que lhe
permitam movimentar, atualizar-se e permanecer no tempo. Assim sendo, ele expressa: As
musas não o estáveis, ou seja, os motivos que levam um poeta a escrever, a época, o
estilo não são os mesmos. A poesia, porém, permanece, evoluindo com o tempo e
adquirindo seu aspecto de obra de arte.
A reflexão sobre o fazer literário prossegue na terceira estrofe, na qual Trindade
define o poeta como um operário que deve trabalhar, mas não a palavra em si, e sim a fonte
inspiradora, que se mostra variada (as musas não são estáveis”) e, ao mesmo tempo, deixa
claro que todo material trabalhado de forma criativa pode se transformar em monumento.
A urgência em se criar musas, expressa pelo poeta, é atendida e a vida/poema lhe
oferta a mulher negra:
A vida me deu uma negra
para eu fazer poema
nesta manhã com cheiro de infância
No tempo em que ninguém sabia
como era a outra face da lua
ouvi um samba bonito que quase chorei.
A negra a lua o samba
é trindade amolecida
palavrão santificado
marcação de uma vida. (idem, p.54)
155
Este poema se configura como uma síntese do tema amor na obra de Solano
Trindade, revelando seu amor especial pela mulher negra. Aparentemente, o poema faz
menção não apenas à mulher- amante, mas à figura da mãe, pois o ato de recordar a infância
pode ser entendido sob dois aspectos: a recordação de um período pessoal e afetivo do eu
lírico e a infância histórica que traz a imagem da mãe África.
O termo "recordar" é aqui fundamental. No contexto mítico, recordar significa
resgatar um momento originário e torná-lo eterno em contraposição à nossa experiência
ordinária do tempo como algo que passa, que escoa e que se perde. A recordação como
resgate do tempo confere, desta forma, imortalidade àquilo que ordinariamente estaria
perdido de modo irrecuperável sem esta re-atualização. Traz de novo a presença e a
importância de sua raça, resgatando a figura da mulher que gera. Há, desta forma, um
efetivo reviver que leva em si todo ou parte deste passado. É o fazer aparecer novamente as
coisas depois que desaparecem. É graças à faculdade de recordar que, de algum modo,
escapamos da morte que aqui, mais que uma realidade física, deve ser entendida como a
realidade simbólica que cria o antagonismo-chave com relação ao nosso tema: o
esquecimento. O esquecimento é entendido aqui como a impermanência, a mortalidade.
Solano procura, no entanto, recordar não apenas a figura de sua mãe, mas a figura da mãe
África. Assim, neste recordar, Solano imortaliza a imagem de sua cultura.
O termo “a outra face da lua” remete a histórias afirmativas de um passado anterior
ao tempo da escravidão. Assim, na sua memória marca-se, igualmente, a imagem da lua,
rainha soberana na noite escura e o ritmo negro que se faz presente no samba. Cor e ritmo,
portanto, são recordações que impulsionam o fazer literário do poeta do povo.
156
Assim, na terceira estrofe, ele coloca lado a lado da mulher negra a lua e o samba:
sem separações por pontuação, pois são misturados na mentalidade que recorda e re-cria
como uma coisa (palavrão santificado). No segundo verso desta estrofe, o poeta deixa
evidente a sua presença ao fazer um jogo com o próprio nome: trindade amolecida”, a fim
de especificar aquilo que tem significado, que é importante e desperta sua emoção criadora.
Certamente o poeta precisa destes elementos que se fazem uno, para produzir e para viver:
marcação de uma vida”, ou seja, marcação do samba, do batuque e de suas raízes
africanas.
157
CAPÍTULO 3 - SOLANO TRINDADE: DESCOBRINDO E
RECONSTRUINDO O HOMEM/ NEGRO
Jamais atribui grande preço a
glória de meus poemas e pouco
me importa que se os louve ou os
censure. Entretanto, deveis colocar
uma espada no meu túmulo
porque tenho sido um bravo
soldado na guerra de libertação da
humanidade.
H. Heine. Heisebilder
....................
(...) eu me emociono, uma terrível
oposição me enfraquece, negam-
me a possibilidade de ser homem.
Não posso deixar de ser solidário
com o destino reservado a meu
irmão. Cada ato meu compromete
o homem. Cada uma de minhas
reticências, cada uma de minhas
covardias revela o homem.
Fanon
Muitas foram as manifestações pelo fim do preconceito racial e Solano teve uma
participação que deve ser recuperada.
Este poeta pernambucano, em períodos de grande repressão, de bocas tapadas pela
intolerância de regimes totalitários que acompanharam sua vida, deixou escapar o seu
gemido, um gemido intrigante: de negro ou de carro de boi? O som se confundia, mas não
escondia o gemido do homem, da gente faminta no trem sujo de Leopoldina, da gente
morrendo nos canaviais. Gemido contra o silêncio ideológico. Foi através de suas poesias,
de sua convivência com as camadas oprimidas da sociedade, do seu teatro, da sua
158
preocupação com a questão social e com a marginalização do afro-brasileiro que Trindade
pode erguer na literatura e nas artes em geral, alavancas vigorosas, poderosas, de protesto,
de afirmação e, acima de tudo, perceber que estas expressões tinham a força vigorosa de um
vulcão.
3.1. A poesia como arma
A literatura e a História oficial tiveram sempre um ponto em comum: retratar o
trabalhador negro (escravo) através do olhar do cidadão branco europeu. E no olhar do
branco, o negro sempre figurou como fiel, submisso, ou seu contrário, selvagem,
demoníaco, e quase sempre zoomorfizado imagens que se fixaram na literatura e na
história.
O que se constata, porém, é que apesar da tentativa de retratá-lo o como passivo,
desde a chegada dos primeiros escravos, a resistência das populações negras-escravas, junto
com os negros forros (libertos), foi permanente, culminando em diversas insurreições, fugas
e quilombos. Estas são marcas de lutas que, reconhecidas ou não, minam a história oficial,
na busca de uma história de afirmação deste segmento social. A estratégia de resistência
rumo à liberdade foi forjada na aparente condição de conveniência com os moldes
colonialistas, que impunham ao escravo o hábito de trabalhar, obedecer e ver sua
"satisfação" realizada através da fidelidade ao seu senhor.
No entanto, a estratégia de luta e de resistência foi aplicada nas diversas regiões onde
estavam concentradas as populações negras escravas, conforme podemos constatar em
vários registros, tais como os arquivos policiais da época, e até mesmo, recuando no passado
159
da história brasileira, nos sermões dos padres Jorge Benci e Vieira que verbalizam aquilo
que, atentos, registravam dos movimentos dos negros nas fazendas ou nos engenhos.
Os movimentos coletivos contra o colonialismo deflagraram atos de resistência,
promovidos pelas populações africana e afro-brasileira nos séculos XVIII e XIX; fatos esses
que podem ser localizados na Bahia, palco de uma luta em que, na noite de 24 para 25 de
janeiro de 1835, escravos e negros forros tomaram as ruas da capital e durante algumas
horas travaram um combate armado contra soldados e civis. Tais negros eram de origem
muçulmana e jamais aceitaram ser tratados na condição de escravos. Esse fato teve
repercussão nacional, tanto na imprensa escrita como no parlamento. Essa luta da resistência
negra na diáspora africana ficou conhecida como a "Revolta do Malês".
O historiador Alencastro (1997) registra que o Rio de Janeiro, sede do Império, em
1850 vai ter em torno de 206 mil habitantes, sendo que 79 mil eram de negros cativos, o que
corresponde a 38% do total da população. Desde então, o temor contra qualquer tipo de
concentração de negros passou a ser motivo para legitimar a vigilância da polícia. Outras
localidades do território brasileiro convivem com experiências do mesmo gênero. No
Maranhão acontece o movimento de independência dos escravos; no Rio de Janeiro, a
formação de diversos quilombos que, muitas vezes, realizam confrontos nas proximidades
da sede da Província (por exemplo: o movimento Catumbi); em Recife, encontramos
registros de grandes movimentos da resistência negra nesse período oitocentista, com
inspiração nos movimentos quilombolas que já haviam ocorrido na segunda metade do
século XVII (Quilombo dos Palmares 1630 a 1693); em Sergipe, houve uma sistemática
ação do exército e da polícia contra os quilombos, de 1867 até 1870, conforme relatos; nas
regiões que compreendem a área amazônica (Amazônia Legal), ocorreram perseguições e
160
muitas mortes de negros aquilombados, promotores de pequenos embriões de sociedades
alternativas ao modelo colonial escravista português.
Mas, as duas últimas décadas do culo XIX e as duas primeiras décadas do século
XX registraram a presença de uma ideologia perversa, visto que se baseava na ciência da
época para provar a inferioridade dos não representáveis ideologicamente
10
. Esta ideologia
atingiu diretamente a população afro-brasileira. Está colocada a questão: Quem é o
brasileiro? E quem é o civilizado capaz de integrar a família brasileira, de acordo com a
concepção européia de uma sociedade apta para novos progressos?
Os documentos fotográficos dão conta da identidade nacional presente nas formas
sociais no final do século XIX. Nestes, “o continente europeu aparece retratado a partir de
várias cidades, com cavaleiros bem vestidos, damas e senhores de braços dados, bem
comportados; na África o que mais se são animais de grande porte com alguns homens
(todos segurando tambores e batutas); e na América uma grande luta entre indígenas".
(SCHWARCZ, 1996, p. 54)
.
A ideologia imposta nessa virada de século procurava afirmar a compreensão do
"civilizado" com uma possível busca da identidade da população brasileira. A abolição da
escravatura (1888) e o começo de um Estado republicano (1889) são elementos
significativos de um determinismo que visa a definir a identidade racial do ser brasileiro. Ou
seja, responder a questão: "quem é o brasileiro?"
10
No final do século XVIII a diferença humana começou a ser estudada cientificamente. Nancy Leys Stepan,
em artigo “Raça e gênero: o papel da analogia na ciência”, aponta que estes estudos não foram feitos a partir da
realidade ‘como ela realmente era’, mas fundamentando-se em sistemas metafóricos que estruturou a
percepção da diferença, criando assim objetos diferenciados. O negro, a partir destes estudos, foi uma rica
fonte para a compreensão e representação de muitas “inferioridades”: vileza, culpa, demônio, feiúra... Dentre
estes estudos teve grande importância o estudo dos crânios. O formato e o tamanho deste eram provas de
menor intelegência e de comportamentos sociais degenerados. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org)
Tendências e impasses. Rio de Janeiro: Rocco, 1994, pp. 72-93
161
Esse período que marca o fim do Império e o icio da República foi uma época
caracterizada por grande movimentação de ideologias como o Positivismo, Darwinismo,
Evolucionismo que, de modo geral, traziam em comum uma visão determinista de cunho
cientificista, particularmente biológico. O resultado é uma notável formalização das
diferenças e a característica miscigenada da população passa a ser vista como um
espetáculo, como um “laboratório” ao mesmo tempo curioso e degradante da raça.
Intelectuais da época, portanto, falando de um lugar respeitado e privilegiado, pregavam a
idéia de questão nacional a partir da raça e do indivíduo, mascarando uma discussão mais
abrangente sobre cidadania, que se impunha no contexto de implantação da jovem
República.
Segundo as ideologias adotadas, era importante que esse "novo sujeito brasileiro"
tivesse uma "boa aparência", isto é, assimilação dos modelos da sociedade branca européia.
A partir daí, justifica-se a exclusão do negro, denunciada no poema “Civilização Branca”, de
Solano Trindade:
Lincharam um homem
entre os arranha-céus
(li num jornal)
procurei o crime do homem
o crime não estava no homem
estava na cor de sua epiderme... (TRINDADE, 1961, p.37).
A ideologia branca, ao longo da história, tentou enfraquecer a participação do negro
na vida social, por isso o poeta busca um verbo forte (lincharam) para definir a violência
contra este homem que figura em seu poema. A “boa aparência” cobrada pela época
representava o oposto da negrura da pele, dos cabelos pixains, do nariz achatado... Diante
desta questão de “aparência”, "coloca-se então uma questão crucial: se a cultura negra é hoje
visível, tolerada, 'respeitada' e integrada nos símbolos constitutivos da cultura nacional, onde
162
ficam então os homens e as mulheres negras, produtores dessa cultura?"
(
MUNANGA,
1996, p.8).
A questão colocada por Munanga é provocante e desafiadora, pois, o que se pode
constatar é que a "invisibilidade do negro" faz parte do cotidiano das estruturas e das
relações de poder que dão a legitimidade a uma minoria que controla o capital brasileiro.
Basta lembrar as operárias citadas pelo eu lírico no poema “Rio”: As operárias têxteis/
coitadas vestem tão mal/ O tecido que elas tecem/ não é delas, é do patrão” (TRINDADE,
1961, p.128).
Outro exemplo de linchamento social pode ser identificado em “Batucada”:
A noite é bonita
o batuque começou
parece negro chorando
porque negro está apanhando
não sei bem de que feitor
Sei que o negro está chorando
Porque negro sente dor
Porque negro inda se esconde
Pra adorar o seu senhor
Porque inda é pecado
negro adorar o seu Senhor
porque a policia prende
negro que adora o seu Senhor....
Branco adora o Deus que quer
Mas negro não pode não
tem que adorar Deus de branco
ou senão vai pra prisão (idem, p.47).
Neste poema pode-se notar a repreensão aos cultos afro-brasileiros. O batuque, desta
forma, em contraste com a bonita noite, é triste. Lembra o choro, o cativeiro, as violências
do tronco e a liberdade que não libertou o negro de sua condição de inferiorizado
socialmente. Para exercer sua individualidade, o negro precisa se esconder.
163
Ao jogar com o vocábulo “feitor” (na primeira estrofe) e “prisão”, na última estrofe,
o poeta transmite a idéia de violência contra a liberdade, que não se extingue com o fim do
regime escravocrata. Ou ainda, se se observar o fato de que o poema lembra uma cantilena
(que tem o sentido de melodia como coisa repetida), pode-se inferir a idéia da opressão que
retorna em um novo período. Conseqüentemente, pode-se destacar uma metáfora do clima
hostil que se encontrava o Brasil nas décadas de 30 e 40, período em que Solano inicia a sua
carreira literária. Época marcada pelo Estado Novo, regime extremamente autoritário.
Segundo Nilma Gomes, a visão do regime aos cultos afro-brasileiros era:
(...) via os cultos afro-brasileiros e seus adeptos como passiveis de
constantes suspeitas e os lugares onde esses cultos eram realizados como
esconderijos de pessoas subversivas. É fato que muitas pessoas que
adotavam uma postura política de oposição ao Estado Novo eram
próximas do Candomblé e, muitas vezes, adeptas desse culto. Essa
situação servia de justificativa para a perseguição e pressão desencadeada
pelo governo e pela polícia a todos os que freqüentavam esse culto,
encobrindo a idéia e praticas racistas que incidiam sobre o povo negro.(In:
FONSECA, 2000, p.235).
O batuque lembra a tristeza porque a esperada liberdade não chega com a assinatura
da Lei Áurea: as chibatas, os grilhões foram substituídos por recursos tão repressores como
os da época escravocrata. Exemplar para esta constatação foram os rituais religiosos afro-
brasileiro que, além de oposição política, amedrontavam os senhores brancos. Desta forma,
os rituais praticados por estes passam a ser sinônimo de uma ameaça que deve ser
combatida. A manutenção da crença de origem africana é, desta forma, marcada por prisões
e perseguições.
Além disso, deve ser destacado o fato de que os rituais de matriz africana traziam
embutidos os saberes e pensamentos outros que, por não serem ocidentais, possuíam em
164
seu bojo uma cosmogonia, uma ordem lógica de sentidos próprios. O entendimento desta
ordem leva a uma constatação: outros mundos, outras verdades a serem consideradas. E,
de repente, percebe-se que a cultura ocidental não é a única cultura civilizatória. A propósito
do tom militante, Araújo (1986, p.66) ressalta esta verdade a ser descoberta, a verdade
oculta na violência do colonialismo:
(...) este gigante detentor de tão monumentais poderes possui pés de
barro... que, constituído a partir da expropriação, do saque, do estupro,
cimentado a sangue, fogo e arrogância, todo o incomensurável edifício
branco da cultura ocidental alicerça-se na violência , na angustia, no
medo, na mentira e no formalismo de suas matemáticas. E poderemos
concluir que tal atitude etnocida, ecocida e, afinal, suicida, incapaz de
enxergar além de seus próprios horizontes, muito pouco, ou nada, pode ter
a nos ensinar a nós negros, amarelos e mestiços considerados, no
mínimo, ‘nada sério’ por seus próceres, quando não primitivos, pessoas,
pessoas de ou doentes, ignorantes, atrasadas e “sem consciência”.
Pelo contrário, no reverso desta medalha em cujo anverso se estampa a
soberba de uma cultura que passa o tempo a admirar seu umbigo peludo
provavelmente encontram-se cunhados os verdadeiros valores
civilizatórios.
O que se nota nas palavras de Araújo é uma crítica ao narcisismo cultural
hegemônico, que significa uma forma de violência contra uma outra cultura. Ao enumerar
esta atitude egocêntrica como etnocida, ecocida e suicida, o autor revela a incapacidade de
uma cultura ser unitária em si mesma e cobra o reconhecimento positivo de outras culturas
que passaram por histórias de dominação e reconhecimento equivocados.
Através do ritual religioso, o negro encontra uma brecha para manter vivo o seu
próprio saber, que fora menosprezado por uma elite que se autodenomina branca, cristã e
ocidental, reconhecendo o africano e seus descendentes apenas como ignorante, alienado,
dócil e conformado. O negro, através da religiosidade, faz sobressair a sua própria
165
personalidade, sua crença, a sua ciência, a sua história. A religião se torna uma forma de
resistência, pois nestes rituais a incorporação de elementos coletivos e individuais do
sistema a que pertencem. De acordo com Araújo, através da religião, é possível que haja um
(re) conhecimento do afro-brasileiro e é este ponto que assusta o pensamento hegemônico.
Para além da aceitação do saber ritual e da compreensão de seus
mecanismos, encontra-se o seu reconhecimento. E somos tentados a crer
que a dificuldade maior para o rompimento das cadeias que aprisionam
este saber original ao domínio da religião reside na ameaça que uma
desmistificação de tal ordem representa para o “pensamento
estabelecido”; no temor que infunde à nossa intelligentsia a possibilidade
de ver ruir o tão bem arrumado conjunto de suas lógicas e sistemas de
verificação, temor talvez acentuado pela desconfiança – recalcada no mais
profundo do ser de que este não passa de um castelo de cartas, pronto a
desabar ao primeiro vento da saia de Iansan, aquela que reina sobre
nossos ancestrais, a quem chamam ‘Oiá, vento da morte’” (idem, p.75).
Desta forma, diante da civilização branca, Trindade reconhece que a passagem de ser
“o outro” apagado, para um “eu”, requeria o resgate da experiência histórica do ser negro.
Assim, utiliza a poesia como arma contra as opressões e marginalização social,
encandeadas nas vozes de poetas mais recentes, como o poeta Oubi Inaê Kibuko
11
, que
assim sugere em “Poema Armado”:
Que o poema venha cantando
Um canto quente de força
Coragem, afeto, união
Que o poema venha carregado
De amarguras, dores
Mágoas, medos,
Feridas, fomes...
Que o poema venha armado
11
Oubi Inaê Kibuko nasceu em São Paulo, na década de 50. É funcionário publico, escritor, ator e compositor
(letrista). Tem colaborações na revista popular independente “Aldeia” e no Jornal da União dos Funcionários
da Associação Comercial de São Paulo. Participou das peças: “O final”, da Comunidade Jovens Itaquerenses;
“Despacho poético”, do Quilombhoje e “As três mulheres de Xagô”, do grupo Ilê Omo Dada.
Em 1980 montou o monologo “Como se fosse Pecado” e, em 1981, “Axé Brasafro!”, além de participação em
Cadernos Negros, antologia publicada pelo grupo Quilombhoje de São Paulo.
166
E metralhe a sangue frio palavras flamejantes de revoltas
Palavras prenhes de serras e punhais...
Que o poema venha alicerçado
E traga em suas bases
Palavras tijolantes,
Pontos cimentante,
Portas, chaves, tetos, muros
E construa solidamente
Uma fortaleza de
Naqueles que engordam
O exército dos desesperados
Para que nenhuma fera
Não mais galgue escadas
À custa de necessidades iludidas...
E nem mais se sustente
Com carne, suor e sangue
Dum povo emparedado e sugado
Nos engenhos da exploração!
(In: RIBEIRO & BARBOSA, 1998. p. 12).
A produção de Oubi, embora separada por mais de 30 anos da produção de Solano
Trindade, mantém com este um diálogo atual. Ambas se inserem numa produção social que
busca incluir classes marginalizadas. Ambas tratam de guerras que fazem parte da história
localizada que diz respeito a um grupo: as guerras dos Palmares, a guerra do Malês, as
guerras das favelas, as guerras do dia-a-dia.
De forma consciente, Solano prognosticou num de seus poemas:
Talvez eu não alcance os dias sem guerra
Talvez eu não alcance os dias sem fome
Talvez eu não alcance os dias sem ódio
Talvez eu não alcance os dias sem inveja
Talvez eu não alcance os dias sem dor (...) (TRINDADE, 1944, p.32).
Solano morreu sem conhecer a constituição de 1988, onde racismo passou a ser um
crime inafiançável. No entanto, havia iniciado um combate com armas poderosas e de
diversos calibres: Respeito, Auto-estima, Consciência, Inteligência, Informação e, acima de
tudo, Palavra. Mais uma batalha iniciada: um espaço na literatura. E literatura e vida se
167
entrelaçam no resgate histórico, na voz que se faz escutar. Solano, com sua atitude
reivindicatória, lembra Lima Barreto (1997, p.22): “Fizera literatura e se, de todo não
falhou, foi devido à audácia que se revestiu, audácia de quem ‘queimou os seus navios’”.
O eu lírico no poema de Oubi pode ser visto como um soldado em alerta e atento às
palavras de Solano Trindade, apresentando suas munições e conquistas: o poema, a
dignidade de tentar fazer-se ouvir, de responder à altura.
No título se pode localizar a visão do poema como arma na guerra pelo fim da
opressão. Desta forma, do ao versos a idéia do poema como arma ideológica e o eu
lírico, assim sendo, utiliza o poema como um grito forte e impulsionador. Um canto a cobrar
afeto, coragem e, por fim, união.
A partir do verso o processo de armamento se inicia: que o poema seja revestido
com a história, ainda que esta venha carregada de dores, de amarguras, mágoas, medos,
feridas, fomes... Desgraças de um povo escravizado e que não devem ser esquecidas. E
armado, construído, pode-se enfim devolver aos opressores todos os males, em forma de
palavra poética. Sem medo, compaixão, as revoltas devem atingir o receptor com o mesmo
poder de serras e punhais, a abrirem espaços, a devolverem feridas.
Apesar de a luta unir poetas distanciados pelo tempo algumas diferenças que
devem ser mencionadas. Oubi demonstra claramente um tom combativo, empenhado num
ajuste de conta com o agressor que se identifica com o escravismo, com o colonialismo ou
com o racismo. Sua poesia se diferencia, assim, pela agressividade, pela sugestão de
combate, quando se anunciam de forma visceral a rebeldia e o ressentimento. em Solano,
nota-se um lirismo por seu tom menos agressivo, apesar de sua palavra poética também
representar um enfrentamento diante da situação de exclusão vivida pelos negros. O projeto
168
de Solano, no entanto, é um projeto de confraternização, de união entre os povos: Ozéias
desejava universidade para todos, /para brancos e pretos”. No desejo de Ozéias está a
essência do projeto de Trindade, a igualdade dos direitos humanos.
A partir do 11º verso, o poema possibilita uma segunda leitura do título “Poema
Armado”: o poema como modelo para a construção de uma afro-poética, livre do modelo
alvo-europeu, um verdadeiro meta-poema negro. O desejo é que o poema seja uma fortaleza
de fé, de confiança na vitória contra as desigualdades raciais e sociais. Assim o eu lírico
clama por um alicerce firme, tijolante, cimentante, capaz de suportar as ventanias de
ofensas, os temporais de preconceitos.
Vencer a luta por espaço na sociedade é uma batalha difícil, por isso no poema -
arma do escritor negro - deve-se verificar a completude estética e formal da construção
poética. Esta completude vem metaforizada em “portas, chaves, tetos, muros”, símbolos de
uma construção segura, uma fortaleza sólida. O grande objetivo a ser alcançado, nesta luta
estética e ideológica, é o fim da opressão, para que o povo não seja mais escada para o
enriquecimento de uma minoria, para que não seja mais sugada a humanidade de nenhum
ser humano.
Oubi, apesar de alguns contrastes, traz influências de Trindade, pois este
expressava em suas poesias,
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgilio, de Homero
e de Camões
porque o meu canto
é o grito de uma raça
em plena luta pela Liberdade (TRINDADE, 1961, p.29).
169
O desejo de liberdade que traz embutido a igualdade entre os diferentes povos fica
evidente. Para isso, Solano canta Palmares, símbolo da luta de um segmento social que não
aceitou o cativeiro e lutou em nome da liberdade.
Neste trecho de “Canto dos Palmares” o eu lírico rememora autores clássicos da
historiografia tradicional: Virgilio, Homero e Camões, que através da epopéia consagraram
feitos de civilizações como a romana, grega e portuguesa clássica. No entanto, o objetivo é
apresentar a sua antipoética, pois “os escravos vencidos de Palmares tornam-se os heróis da
ação épica, numa clara inversão da ordem épica tradicional onde o vencedor, ou o
dominador, é que se transforma em herói” (BERND, 1988, p. 81).
Mais adiante, no mesmo poema, ele expressa:
Meu poema é simples como a própria vida,
Meu poema
é para os meus irmãos mortos (...)
Mas não mataram
meu poema
Mais forte
que todas as forças
é a Liberdade...
O opressor não pode fechar a minha boca,
Nem maltratar o meu corpo
Meu poema
é cantado através dos séculos,
minha musa
esclarece as consciências,
Zumbi foi redimido (idem, pp. 29 a 35).
A palavra foi a arma de Solano Trindade contra a opressão de seu tempo. No poema
“Canto de Palmares” ele relata uma batalha onde muitos de seus irmãos foram mortos, mas
170
o poema, arma do eu lírico, permaneceu. E ao revelar meu poema é cantado através dos
séculos/ minha musa esclarece a consciênciapercebe-se ainda mais o poder da palavra que
pode agir na consciência, como agiu na consciência dos mais jovens como Cuti, Oubi,, Adão
Ventura etc, que continuaram o canto simples de Trindade.
Através do poema, Zumbi -representado historicamente como negro selvagem, mau,
rebelde - recebe uma nova significação. O poeta desvela a outra face de Zumbi e este se
torna exemplo de conscientização e de determinação sobretudo para o afro-descendente. O
desejo de liberdade perpassa todo o poema, pois neste desejo fica evidente o desejo de
“igualdade”, em que a cor da pele não será fator de exclusão.
3.2. A resistência negra
Através da poesia negra, em que a palavra poética configura-se como arma contra a
opressão, pode-se reconhecer a resistência do escritor afro descendente contra as formas de
descriminação racial. Na obra de Solano Trindade, por exemplo, há a cobrança por um
reconhecimento, na tentativa de visibilizar e re-apresentar esta categoria marginalizada. A
escrita negra faz exatamente isto: rasura a identidade mumificada pela negação e faz emergir
um “eu” que reivindica sua voz e seu lugar de agente de/no processo histórico.
Ter consciência de si mesmo é o processo necessário para que o negro efetivamente
construa sua identidade. Ou seja, através da conscientização o afro-descendente pode negar
os símbolos de estereotipias que foram anexadas a sua real imagem. Na poética é possível
verificar o comprometimento do “eu” negro com sua própria identidade como pessoa,
aceitando-se e assumindo a própria cor.
171
Em “Emparedado” de Cruz e Souza uma efetiva cobrança por uma re-visão da
história oficial. E o homem negro, apesar dos obstáculos, dos muros construídos para
impedir os movimentos e mobilização na esfera social, faz com que sua identidade seja
visualizada. O poeta se impõe através de sua obra:
O que tu podes, só, é agarrar com frenesi ou com ódio a minha Obra
dolorosa e solitária e lê-la e detestá-la e revirá-lhes as folhas, truncar-lhe
as paginas, enodoar-lhe a castidade branca dos períodos, profanar-lhe o
tabernáculo da linguagem, riscar, traçar, assinalar, cortar com dísticos
estigmatizadores, com labéus obscenos, com golpes fundos de blasfêmia
as violências da intensidade, dilacerar, enfim, toda a Obra, num ímpeto
covarde de impotência ou de angustia.
Mas, para chegares a esse movimento apaixonado, dolorido, eu antes
terei, por certo eu o sinto, eu o vejo! te arremessado profundamente,
abismamente pelos cabelos de minha obra e obrigado a tua atenção
comatosa a acordar, a acender, a olfatar, a cheirar com febre, com delírio,
com cio, cada adjetivo, cada verbo que eu faça chiar como um ferro em
brasa sobre o organismo da Idéia, cada vocabulário que eu tenha sentido
com todas as fibras, que tenha vivido com meus carinhos, dormido com
meus desejos, sonhado com meus sonhos, representativos, integrais,
únicos, completos, perfeitos, de uma convulsão e aspiração supremas.
(
SOUZA, 1961, p. 670).
Neste trecho percebe-se um desabafo profundo sobre ser poeta negro numa
sociedade que impõe barreiras. Porém, ao longo das palavras poéticas do “Cisne Negro”
destaca-se o caráter de resistência dos poetas que continuam a forçar os portais da tradição
literária brasileira a fim de conquistar espaços. E, se há um bloqueio na esfera literária do
mundo do branco em relação ao desenvolvimento de uma literatura afirmativa feita pelo
afro-descendente é porque, de certa forma, o negro se impõe em seu discurso e em cada
palavra, em cada verbo, ou vocabulário estarão os desejos, sonhos e aspirações do afro-
descendente. A conseqüência pode ser o desprezo, a tentativa de dilacerar a obra, mas, este
ato de negar precede uma obrigação de conhecer.
172
Também a obra de Solano Trindade faz menção à tentativa da literatura canônica de
“dilaceração” da produção do autor afro-brasileiro. A presença do opressor é, desta forma,
constante em Canto dos Palmares” e as armas o diversas: dinheiro, flechas, os ideais de
escravagismo, o sadismo... Mas, a arte poética mostra-se superior a estas formas coercitivas:
“...eu os faço correr”. O sangue foi derramado, amadas foram mortas, canta o eu lírico. No
entanto, ressalta-se por diversas vezes Ainda sou poetae meu poema/ levanta os meus
irmãos”. Reiterando, a resistência é marca constante na obra deste poeta pernambucano.
A poesia configura-se como uma oportunidade histórica para se aclamar a negritude,
uma negritude
12
que resistiu às diversas formas de coerção, e que agora, incendeia-se para o
mundo, consumindo as imagens de negro mau, primitivo, submisso, invisível... Fica no
leitor a visão de uma nova forma poética, uma oportunidade que dialoga com a reflexão de
Sartre, prefaciando a obra do poeta senegalense Senghor:
A fonte da poesia secará? Ou bem o grande rio negro colorirá, apesar de
tudo, o mar no qual se lança? o importa em cada época, sua poesia; em
cada época, as circunstâncias da história elegem uma nação, uma raça,
uma classe para recuperar a chama criando situações que podem se
exprimir ou se superar através da poesia; e ora o estímulo revolucionário
poético coincide com o estimulo revolucionário e ora divergem entre si.
Saudemos, hoje, a chance histórica que permite aos Negros dar com tal
dureza o grande grito negro que abalará as bases do mundo.
(apud
FANON, 1983, p. 111).
12
Uma reflexão sobre a palavra negritude revela uma multiplicidade de conotações e indica dimensões talvez
controvertidas. Às várias tentativas de ler o termo como um conceito, ideologia política e movimento literário,
responde um questionamento sobre racismo, doutrina reacionária, movimento de contestação e libertação,
sistema não coerente, parecendo que a palavra incorporou uma noção de divisão totalmente contrária ao que
pretendia Aimé Césaire. O termo pode significar "plus au moins confusément, à la fois, l'ensemble des
hommes noirs, les valeurs du monde noir et la participation de chaque homme et de chaque groupe noir à ce
monde et à ces valeurs". Para além da definição dicionarizada, preconceituosa, revelando um estereótipo
antropológico carregado de significados racistas e etnocêntricos que define negritude como conjunto de
características e modos de pensar e sentir próprios da raça negra, pertencente à raça negra, a Négritude de
Césaire se caracteriza como movimento literário de liberação dos povos negros, devido a uma tomada de
consciência manifestada entre 1930 e 1940 como reação contra a escravidão e a colonização. Como
movimento literário pode se definir por seus manifestos, sua praxis, sua temática e estética. Cf.
DAMASCENO, Benedita. Poesia Negra no Modernismo Brasileiro. São Paulo: Pontes, 1988.
173
Através deste trecho pode-se notar que uma brecha por onde o afro-descendente
pode atravessar e mostrar-se ao mundo, obrigar-se a ser visto e ouvido: a poesia. A poesia de
Trindade adquire este sentido e o eu lírico busca transformar o seu status social através do
discurso poético. Roger Toumson, em La littérature antillaise d’expression française,
define essa crise da consciência do sujeito dominado que exige a voz da seguinte forma:
Sua enunciação tem por objetivo arrancá-lo do nada em que a opressão o
manteve por tão longo tempo, testemunhar sua presença no mundo e sua
verdadeira experiência da história. Polêmico, o discurso afro-antilhano se
propõe a restabelecer uma verdade até então deliberadamente abafada.
(apud BERND, 1988, p.29).
O negro não quer mais ser apenas o “outro” olhado por sujeitos que se querem
superiores. Em virtude disso, a transformação inclui a negação dos modelos literários
oferecidos pelo discurso dominante. No poema “F. DA P.” de Trindade, percebe-se
facilmente esta negação:
Amor
um dia farei um poema
como tu queres
dicionário ao lado
um livro de vocabulário
um tratado de métrica
um tratado de rimas
terei todo o cuidado
com os meus versos
Não falarei de negros
De revolução
De nada
que fale do povo
Serei totalmente apolítico
no versejar...
Falarei contritamente de Deus
174
do presidente da República
como poderes absolutos do homem
Neste dia amor
Serei um grande F. da P. (TRINDADE, 1961, p.67).
Em tom de ironia, o poeta demonstra seu desejo de liberdade estilística nesta
advertência às avessas de que seu projeto poético não percorrerá o caminho traçado pela
ideologia dominante. É possível perceber uma deliberada simplicidade não apenas neste,
mas em outros poemas. O próprio poeta declara: Não disciplinarei/ as minhas emoções
estéticas/ deixá-las-ei à vontade/ como o meu desejo de viver”. Ao optar por uma linguagem
despojada, o poeta se volta para o mundo e para a vida. Opta pelo cotidiano, pelo popular
como principio formal do estilo. Assim, é na linguagem poética, no coração da lírica simples
que o social surge como uma dimensão decisiva: a relação com o povo passa a ser fator
interno da estruturação da obra. Assim, Trindade declara:
Apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado de teses e
debates nos congressos de poetas e críticos não me sinto disposto a
mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética. (idem,
p.25).
E no dia em o eu lírico instrumentalizar sua escritura com os valores sociológicos e
políticos da sociedade vigente, ele confessa: “Serei um grande F. da P.”
A obra de Solano Trindade pode ser denominada como contraliteratura”, usando o
feliz termo de Mouralis, resgatado por Bernd. A euforia ou o ufanismo que encobre a
realidade se afasta do fazer literário de Trindade. Segundo sua maneira de pensar, seria
desmoralizador, para um poeta negro”, compactuar com os aspectos deprimentes da
sociedade, como a miséria, guerra, racismo etc. Com uma consciência participante Trindade
abre a porta “enferrujada de silêncio” e mostra a realidade oculta, permitindo, ao mesmo
175
tempo, o resgate da imagem do homem e a emergência de um discurso de resistência à
opressão. Fica clara, portanto, a visão de Solano em relação à função da poesia e, ao mesmo
tempo, seu projeto: desalienar seus iguais através de uma linguagem simples para que
efetivamente desperte a consciência:
Apesar de tudo que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultado das teses e
debates nos congressos de poetas e críticos não me sinto disposto a
mudar de linha, de sair do caminho popular de minha poética.
Sem querer discutir o valor hermético <<concretistas>>, <<neo
concretistas>>, <<dadaístas>>, etc (eruditos donos da cultura ocidental),
prefiro levar ao meu povo uma mensagem em linguagem simples, em vez
de uma mensagem cifrada para um grupo de intelectuais. (idem, p. 25).
Solano se refere a algumas estéticas que ainda repercutiam como valor de um fazer
poético à época de sua produção. No entanto, ele recusa a aceitação de modelos como os do
Parnasianismo, que se querendo culto, colocavam o poeta numa “torre de marfim”, distantes
dos problemas sociais de seu tempo.
Como homem livre, Trindade demonstra no trecho acima que pode e tem condições
de fazer uma poesia baseada nos valores da ideologia dominante: com “dicionário ao lado”,
uma poesia que seja um “tratado de rimas” e de métrica, escondendo, em seu emaranhado de
palavras, a realidade das relações, das revoluções emergente, da insatisfação das populações
desprivilegiadas. Uma arte poética que, enfim, não incomodasse o sereníssimo aspecto que
se queria imprimir. E, no dia em que esse tipo de poesia for construída por ele, o poeta terá
abandonado o seu compromisso de ser “poeta do povo”.
Desta forma, a poesia de Trindade segue um outro caminho: a minha poesia
continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo, no povo em geral
as reivindicações sociais e políticas, e nas mulheres, em particular o Amor” (idem, p.25).
176
Seu olhar, assim, reconstrói a trajetória do homem, apreendendo um outro sentido
nas “mercadorias humanas” trazidas da África, como se pode verificar no poema abaixo:
Lá vem o navio negreiro
Lá vem sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...
Lá vem o navio negreiro
Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...
Lá vem o navio negreiro
Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...
Lá vem o navio negreiro
Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência... (idem, p. 44).
O poeta inicia uma luta pelo reconhecimento da história dos marginalizados, no
entanto, convoca o povo para que se junte a ele, para que redescubra as verdades sufocadas
pelo preconceito. Para isso, mergulha sem medo no passado histórico e encontra neste
mergulho não múmias marcadas pelas ferrugens de um cárcere, ou por pedras de muralhas,
mas o ser humano. E ao buscar o humano, ao invés de carga ou mercadoria a ser vendida, o
poeta denuncia uma situação política e social que ainda não fora extinta: o afro-descendente
continua psicológica e economicamente escravo, oprimido, sem chances reais de alcançar
melhores condições de existência humana. Desta forma, é necessário retornar ao passado,
visualizar o navio negreiro e perceber o que está contido neste símbolo que até então
marcara a dor, o desenraizamento, o apagamento. E a primeira descoberta de Solano é que
177
neste navio havia carga humana: Lá vem o navio negreiro/ Trazendo carga humana”. No
entanto, o adjetivo “carga” é utilizado com um sentindo deliberadamente pejorativo,
referindo-se à condição do transporte de escravo. Por isso, ele convoca todos para que
olhem o navio, que redescubram o conteúdo destas embarcações: o negro e sua possível
humanidade.
Logo à primeira leitura, o poema chama a atenção para o aspecto visual. A figura do
navio negreiro se impõe ao leitor desde o início, como um objeto que deve ser observado:
Vamos minha gente olhar...”. Ele é visualizado durante todo o poema, situado no espaço,
apresentado por sua função geral (trazer carga humana), o interior do meio de transporte
(cheio de melancolia/ cheio de poesia) e o interior de seus passageiros: a resistência e a
inteligência.
A primeira referência do poeta em relação ao navio é o seu aspecto externo. Através
deste ponto de vista destaca-se, no navio, a função de transporte de escravos; em seguida, é
captado seu interior e os seres nele transportados. Sobressai a integração dos diferentes
ângulos deste mesmo objeto, que se une numa idéia geral de resistência e inteligência. A
última palavra, que finaliza o poema harmoniza-se com o vocábulo resistência. A
inteligência é símbolo do homem que pensa, que resiste à condição de besta de carga. Por
isso, a ausência de ponto final no poema é significativa para demonstrar uma luta iniciada,
deixando uma idéia de continuidade.
O efeito geral do poema é de um quadro, mas um quadro que se movimenta de
acordo como o olhar do poeta conduzindo o do leitor. Desta forma, é compreensível a
insistência nos fonemas [m] e [n] devido o valor expressivo que possuem dentro do poema.
Ao reiterar estes fonemas, assim como a frase vem o navio negreiro”, realiza uma
178
operação ondeante que aproxima o movimento do poema ao movimento do mar. A
repetição insiste no retorno, no olhar novamente. Mas, além disso, insiste no prosseguir,
num novo passo, ou numa nova visão sobre o objeto que apresenta conteúdos que se
diferenciam a cada olhar: carga humana, melancolia, poesia, resistência e inteligência. Cada
novo verso equivale a um retorno, a uma retomada do olhar a partir de um ângulo novo
sobre o mesmo navio, justapondo-se as faces deste objeto como um recomeço sempre
nascente da percepção, até completar-se a imagem real do objeto: um navio que transporta
pessoas que sofrem, sentem, se indignam e agem com discernimento.
Nota-se, pois, uma atração do apelo musical que parece vir do mar, do marulho das
águas, do som sempre recomeçado das ondas, cujo movimento repetitivo vem representado
pela reiteração do verso vem o navio negreiro”. Além disso, não se pode deixar de
perceber a relação entre a sica e a poesia, assim como o seu vínculo com a natureza,
com a simplicidade.
O paralelismo traz de volta a frase de convocação, ao lado dos outros versos, todos
livres, sem qualquer pontuação a não ser o ponto final da quadra. Esta liberdade permite
classificar as quadras, do ponto de vista sintático, como uma construção paratática, ou seja, é
composta por orações coordenadas absolutas, livres, sem qualquer vínculo conjuntivo ou
mesmo sinal de pontuação.
O ritmo, apoiado pela construção paralelística, vincula os versos fazendo ondular, ao
mesmo tempo, as ondas do mar e a subjetividade do sujeito que olha, mas, retoma o olhar,
no desejo de partilhar a sua visão.
As construções verbais, feitas com palavras corriqueiras e repetitivas, em ritmo
encantatório, servem para mobilizar alguns elementos temáticos. São motivos tomados do
179
espaço natural (o mar, a água) ou da interioridade humana (melancolia, resistência,
inteligência).
A mobilidade fortifica o ritmo que, no poema, passa a idéia de retorno à origem (o
verso e a unidade rítmica é uma forma de voltar). Ao mesmo tempo, o navio avança (sempre
mais próximo do receptor, desnudando-se, mostrando-se internamente). Com um ritmo tão
marcado, tão repisado, o poema parece preparar o leitor para uma dissolução da consciência.
Isto faz com que o poema se assemelhe a certas formas de músicas primitivas, de rítmica
rebatida e incisiva, como é o caso, por exemplo, da sica dos cultos afro-brasileiros e/ou
da poesia lírica medieval. Verifica-se, no poema, a mesma força hipnótica da música
popular. No movimento incessante do navio negreiro, um novo ponto de vista vai se
revelando.
O navio negreiro que se movimenta por águas brasileiras traz sim o sofrimento, a
dor, a melancolia, mas, nesse passado de revolta, de exploração, de desaculturação, o poeta
encontra a fonte de uma poesia de denúncia: denúncia de um passado de violência, denúncia
de um presente de repressão camuflada.
Neste poema que imita o movimento do mar (retorno e avanço) o eu lírico retorna à
época de tráfico de escravos. É o retorno necessário para a fonte da poesia e para sugerir um
re-olhar. O navio negreiro não representa apenas a embarcação de transporte de carga para o
trabalho escravo, perpetuando uma história de humilhação. Se olhado novamente, pode-se
reconhecer no navio negreiro o expoente de resistência. O eu lírico, assim, convoca “sua
gente” a se auto-reciclar, a se autodescobrir. E deste descobrimento, percebe-se que o navio
negreiro trazia uma carga “cheinha de inteligência”, cheinha de história a ser contada, a ser
retomada. No entanto, a inteligência a que se refere o eu lírico não é a inteligência
180
racionalista e unilateral, mas, a inteligência ancorada em outros saberes e registros. A prova
é que a história é para ser contada e não para ser imposta por leis da grafia.
Já no poema “Olorum Shanu”, o poeta resgata a história e reordena valores apegados
pela ação do processo de colonização. Há, pois, um re-contar da origem do mundo através
da mitologia e filosofia africanas. Assim, o poeta apresenta Olorum, Deus supremo, que do
nada origina a vida, o céu, a lua, o sol, os montes. a descrição da criação dos elementos
que compõem Odudua, ou seja, a Terra. A origem do “pecado”, da guerra e da riqueza. E o
combate aos males de Oxum através da figura de Obalabou. Assim, expressivo pela riqueza
mitológica que imprime ao texto e pelo resgate de um patrimônio cultural africano através
de suas divindades, o eu lírico conta:
Antes de Olorum
Nada havia
Nem o mar
Nem o céu
Nem a lua
Nem o sol
Tudo era nada
Depois de Olorum
Veio Obatalá o céu
Odudua a terra
Yemanjá a água
Okê os montes
Orum o sol
Oxu a lua
(...)
De noite
É Oxu
Ao lado das estrelas
Embelezando
Obatalá
Olorum Shanu... (idem, pp. 49 e 50).
181
O projeto de Solano Trindade não se prende exclusivamente ao homem de cor,
abrindo para o outro, para a aceitação e para um diálogo com a diversidade. No poema
“Olorum Shanu” essa relação com o Outro se evidencia pela percepção de uma criolização
da linguagem, conceito que surge a partir da década de 80. Mussa (1990, p.58), partindo
dessa conceitualização, define a poesia da forma como se segue:
A poesia afro-brasileira é, pois, uma criação eminentemente crioula,
originada no momento de cisão lingüística entre escravos africanos e seus
descendentes. (...) A história desse gênero crioulo marca
fundamentalmente a descontinuidade das tradições poético-linguísticas
entre um mundo e outro. A história poética dos escravos africanos, que
ficaram à margem do processo, cantando para si e entre si, ainda
permanece calada no enigma de seus textos indecifrados, cujo sentido tem
de vir a tona até para que, talvez um dia, se possa medir a profundidade
desse silêncio.
Através das palavras de Mussa percebem-se alguns dos resultados do processo de
interação cultural e lingüística de diferentes povos. A poesia afro-brasileira é uma marca
desta relação, pois, nesta se percebe a tentativa de manter valores da origem africana, mas há
um eminente reflexo de outras culturas na composição que dela resulta. O que fica claro é
que nenhuma comunidade é capaz de manter uma linha continua em suas tradições, sem
receber ou influenciar a cultura de outros povos. No entanto, em relação à cultura do
escravo, muito se perdeu ao longo do processo de trocas culturais.
No poema “Olorum Shanu”, evidencia-se um caráter transcultural da sociedade,
retomando um traço comum às sociedades crioulizadas que é o caráter oral. No entanto, os
resultados da transculturação são inesperados. Segundo Moreiras (2001, p.20), embora seja
um processo produtivo, é um modelo que apaga e neutraliza tudo o que ele não pode
comportar e agenciar. Ou seja, nos processos transculturais inclusão, apropriação, mas há
182
também censura, exclusão, eliminação de um certo número de fatos culturais e eleição
privilegiada de outros. No caso específico do negro, este, ao ser transplantado para o Novo
Mundo, pertencia a diversas etnias que tinham em comum com os outros africanos apenas
a memória coletiva e vestígios da cultura a que pertenciam. Quando o poeta incorpora o
vocabulário e figuras da mitologia africana em seu poema, ele se mostra como um soldado
na luta contra o esquecimento. Desta forma, através das divindades e da linguagem, é re-
construída a história pelo crivo da filosofia africana.
A poética de Solano, como se pode perceber, torna-se uma convocação contra as
diversas formas de opressão sofridas pelo afro-descendente. Além disso, expressa um
convite para o ingresso a um outro universo de sentido, outra forma de apreender, significar
e organizar o espaço/ mundo. Mas, se em “Olorum Shanu” ele recupera vocabulários de
origem africana, além da mitologia, em “Convocação” ele convida de maneira mais enfática
a participação de todos. Deposita, pois, na palavra, o poder de persuadir e de despertar a
consciência.
No poema “Convocação”, um convite claro para a união de todos em torno de um
mesmo objetivo comum. Apesar do tom militante, beirando ao panfletário, deve-se
reconhecer no poema uma das bases do projeto ecumênico de Trindade. Observe o poema:
Contra o fascismo
Marchemos, camaradas
A liberdade nos chama
pro dia de amanhã
Deixemos as amadas
Partamos para a frente
partamos, camaradas!
Contra o fascismo
Marchemos, camaradas
Soframos nesta noite
183
pro grande amanhecer
É mais belo o sol
depois das enchurradas
Partamos para a frente
partamos, camaradas!
Contra o fascismo
Marchemos, camaradas
Vamos libertar
o trabalhador
das terras que ficaram
escravizadas
Partamos para a frente
partamos, camaradas!
Nazismo já saiu da moda
Era fenômeno de uma época.
Contra o fascismo
Marchemos, camaradas
Teremos a nossa parte
na salvação do mundo
Partamos para a frente
partamos, camaradas! (TRINDADE, 1961, pp. 96-97).
No poema acima, o eu lírico deixa clara a sua postura não-fascista, mais
especificamente, ele se assume como comunista, identificando-se com o oprimido,
motivando uma marcha contra a opressão. Assim, o eu rico coloca nos terceiro e quarto
versos da terceira estrofe: Vamos libertar/ o trabalhador. Ou seja, o poeta não mais quer o
povo estagnado em seus movimentos e por isso convoca: Partamos para a frente/
partamos, camaradas!”. É importante pontuar o uso da palavra “camarada”
13
que assume
um lugar no discurso que se resume em estar ao lado e em prol dos cidadãos o
favorecidos. Por isso, ao longo da convocação é possível entender a locução para a frente
como a frente de batalha, numa demonstração clara de luta pela liberdade. É possível,
13
Apesar de hoje em dia a palavra “camarada” ser tratada de maneira folclorizada e, em alguns casos, de
maneira negativa, á época de Solano era empregada pelos simpatizantes do movimento comunista. Indicava o
companheirismo, a união em torno de um ideal de igualdade social.
184
igualmente, entender essa frente como um passo para adiante, ocupando um lugar de
incluído na vida social, e não mais de deixados para traz, relegado aos porões da história, ou
para relembrar o termo de Cruz e Souza, socialmente emparedado”. Por isso, a imagem de
luta é constante, e pode ser reforçada quando o eu lírico expressa: Contra o fascismo/
Marchemos, camaradas/ Soframos nesta noite/ pro grande amanhecer/ É mais belo o sol/
depois das enxurradas (...). A certeza de sofrimento fica clara, no entanto, a confiança em
uma vitória certa é a motivação para que o desejo de luta persevere.
3.3. A humanização do negro
O que é o Homem? Esta é uma questão que deve ser feita quando se trata de
colonialismo e escravidão.
José Carlos Rodrigues (1979), professor e antropólogo,
abordando a teoria proposta
por Lévi-Strauss, utiliza o termo cultura como algo genuinamente humano, pois os
elementos culturais consistem na substituição do aleatório pelo organizado, assegurando a
existência do grupo humano como grupo social. É, pois, a cultura que distingue as
sociedades humanas, orientando os indivíduos a uma vida em sociedade. Desta forma, seu
conceito é de que não há comportamento humano fora da cultura.
Assim, o homem não é determinado pela natureza, mas é aquele que a sociedade
determina que ele seja, ou melhor, a concepção que o homem tem de si mesmo, é em função
da estrutura social, uma maneira de ver e de abstrair a realidade.
185
No entanto, a forma colonialista de enxergar o outro admite apenas a visão de mundo
da civilização ocidental, vista como o modelo único. Em conseqüência, a cultura de outros
povos, em suas diversidades, perde o poder de significar, de estabelecer discursos. A cultura
do “outro” sendo excluída, excluiu sua humanidade. No caso do negro, este se tornou apenas
um objeto dócil ou selvagem, corpos que representam a obscuridade, invisíveis e silenciados
como pessoas. Percebe-se o desconhecimento da diversidade cultural e de que conteúdos
e costumes anteriores a visão do observador. A cultura, pois, não é monolítica e a crença
nisto se configura como uma forma de despersonalizar.
Diante da desumanização imposta pela cultura ocidental, o negro mergulhou num
verdadeiro caos: sem valores aceitos pelo discurso vigente, perdendo a identidade e, ao
mesmo tempo, tentando fugir da opressão. A angústia de ser negro num país com vícios
segregadores foi expressa na obra de Fanon (1983, p.95):
Eu tinha de olhar o homem branco nos olhos. Um peso desconhecido me
oprimia. No mundo branco o homem de cor encontra dificuldades no
desenvolvimento de seu esquema corporal... Eu era atacado por tantãs,
canibalismo, deficiência intelectual, fetichismo, deficiências raciais...
Transportei-me para bem longe de minha própria presença. O que mais
me restava senão uma amputação que me manchava todo o corpo de
sangue negro?
Através das palavras de Fanon percebe-se que o homem negro encontrava-se
totalmente amarrado a estereótipos de primitivismo e de degeneração. Não possuía
condições de produzir uma história, de ocupar um espaço de representatividade social.
Utilizar a fixidez da estereotipia, portanto, fazia parte de uma tentativa colonial de fazer com
que o negro perdesse a identidade.
186
Solano Trindade, em sua obra, busca o re-conhecimento do negro e propõe um olhar
novamente. Para alcançar este re-conhecimento explicita a diferença entre cada pessoa.
Uma diferença expressa nas palavras de Fanon (1983, p.177):
Por que não a tentativa simples de tocar o outro, de sentir o outro, de
explicar o outro a mim mesmo?... Na conclusão deste estudo, quero que o
mundo reconheça, comigo, a porta aberta de cada consciência.
Nas palavras acima se observa a despersonalização imposta pelo sistema colonial,
fechado em seu narcisismo, reconhecendo apenas a sua imagem e negando o diferente. É
preciso, no entanto, re-olhar o “outro” que se apresenta como o diferente, que mostra sua
subjetividade. Ao olhar novamente o “outro”, pode-se reconhecer “a porta aberta de cada
consciência”, a individualidade de cada agente social que detém um saber resultante de uma
experiência. Em “Conversa”, por exemplo, uma experiência histórica que conta pelo
avesso os ciclos de exploração que acompanha a História do Brasil:
___ Eita negro!
Quem foi que disse
Que a gente não é gente?
Quem foi esse demente,
Se tem olhos não vê...
___ Que foi que fizeste mano
pra tanto falar assim?
___ Plantei os canaviais do nordeste
___ E tu mano, o que fizeste?
___ Eu plantei algodão
nos campos do sul
pros homens de sangue azul
que pagavam o meu trabalho,
com surra de cipópau.
187
___ Basta mano,
pra eu não chorar,
e tu Ana,
conta-me tua vida,
na senzala, no terreiro
___ Eu...
Cantei embolada,
Pra sinhá dormir
Fiz trança nela,
Pra sinhá sair,
Tomando cachaça,
Servi de amor,
Dancei no terreiro,
Pra sinhozinho,
Apanhei surras grandes,
Sem mal eu fazer.
Eita! Quanta coisa,
Tu tens pra contar...
Não conta mais nada,
Pra eu não chorar___
E tu Manoel,
Que andaste a fazer?
___ Eu sempre fui malandro,
Ó tia Maria,
Gostava de terreiro
Como ninguém,
Subi para o morro,
Fiz sambas bonitos,
Conquistei as mulatas,
Bonitas de lá...
Eita negro!
Quem foi que disse que
a gente não é gente
Quem foi esse demente,
Se tem olhos não vê. (TRINDADE, 1961, p.40).
Nestes versos pode-se notar que o poeta cede a voz ao próprio oprimido, permitindo
que a história seja re-contada pelos vencidos. Desta forma, cada um dos personagens vai
188
contando a sua participação na construção deste país e sua contradição, a ingratidão dos
senhores que pagavam o trabalho com castigo, na tentativa de domesticá-los.
Mas, assumindo o papel de sujeitos do discurso, cada uma destas faces expõe a sua
cultura. Plantando nos canaviais do Nordeste, ou nos campos de algodão da região Sul, o
negro expõe sua condição de explorado, mas em busca do reconhecimento de sua
humanidade.
Ana vem a ser um dos exemplos. No poema desvela-se o real na relação entre esta
mucama negra e os seus senhores, quando esta conta sobre a sua intervenção de mulher
negra e escrava na aristocracia rural. E o seu dia-a-dia vai sendo resgatado, sua função de
escrava e objeto para o trabalho doméstico, servindo a mulher branca: “Cantei embolada/
pra sinhá dormir/ Fiz trança nela/ pra sinhá sair”. E a sua função de objeto sexual, para o
deleito do senhor. Este relacionamento amoroso, ou melhor, esta cobiça sexual da negra foi
uma das práticas irrefutáveis que contradiz o mito da “democracia racial”, pois este
procedimento serviu como prova de uma agressão de caráter patológico, uma agressão com
faces de normalidade. Nas palavras de Ana, podemos observar essa agressão: Tomando
cachaça,/ Servi de amor,/ Dancei no terreiro,/ Pra sinhozinho”. O primeiro aspecto que
chama a atenção é o fato de a negra ser embriagada antes da violência que sofreria: a sexual.
Ainda nas palavras de Ana, descarta-se qualquer crença em uma troca amorosa, quando usa
para descrever o ato sexual o verbo “servir”. Não existe, como se é de esperar, a presença
de sentimento. Ana, dentro deste sistema colonial, recebe um caráter inumano, não existindo
como pessoa. Sua cor a definiu como inferior. Sem voz, ela apenas cumprirá a sua penosa
obrigação de servir: servir a sinhá nos afazeres domésticos e pessoais; servir sexualmente o
homem branco.
189
Na realidade, o drama de Ana apenas fortalece o mito da mulher negra super
sexuada, construído ao longo da história que se originou da visão existente no período
escravista que a considerava coisa, numa sociedade patriarcal, em que sempre predominou o
poder do homem sobre a mulher, independente desta ser escrava ou senhora. Ambas tinham
a obrigação de servir ao senhor. No entanto, em função das limitações estabelecidas pela
igreja em relação ao sexo no casamento, que seria apenas para procriação, a escrava era
usada para satisfazer as necessidades sexuais dos senhores. Num contexto de valores morais
e religiosos rígidos, vai recair sobre a negra a responsabilidade do desejo do senhor, que
justifica seus atos como inevitáveis diante da suposta intensa sensualidade da escrava, que
fica à mercê dos senhores e de seus filhos, além de despertar o ciúme e a inveja da senhora;
o que gera os mais bárbaros crimes de tortura e todo o tipo de violência contra as escravas
no Brasil. É o que relata a personagem: Apanhei surras grandes/ sem mal eu fazer”. O
requinte da violência contra as escravas fica bem expresso através deste exemplo colhido
das reflexões de Giacomini (1988, p.79):
A ideologia corrente que associa a negra ao prazer sexual do branco,
identificando em seu corpo o agente do estupro institucionalizado, fez
recair também sobre a escrava, como se não bastasse a objetificação
sexual, inconfessáveis sentimentos de invejas das senhoras. As
mutilações, extirpações, deformações e outras atrocidades praticadas por
senhoras no corpo das negras, das quais abundam exemplos na literatura
da época, privilegiaram, não por acaso, as regiões corporais comumente
identificadas a seu poder de sedução: nádegas, dentes, orelhas, faces, etc.
Ana representa um período marcado pelo sistema colonial, no qual há uma efetiva
tentativa de dominação do senhor branco sobre a vida do escravo, justificando, pois, a
crueldade contra este.
190
Outro personagem é citado no poema, Manoel, representando o presente, época
possível de ser identificada através da pergunta do poeta: Que andaste a fazer? Mas, ainda
neste período pós-abolição, predomina a imagem do negro-não-gente e, por isso, o eu lírico
precisa questionar sobre o que o personagem faz. Este tempo mais próximo do leitor, se
evidencia, de igual forma, através da resposta do personagem, pois sua fala se fecha com
reticências, indicando a possibilidade de continuidade.
Manoel, neste tempo recente, liberto da escravidão, assume-se como “malandro”.
Aqui, no entanto, não o sentido pejorativo de negro oportunista”. A malandragem, no
poema, é um traço cultural associado ao samba (Fiz sambas bonitos) e que consiste numa
espécie de disponibilidade para a vida boêmia, da parte do sambista, que o coloca num lugar
entre o mundo do trabalho, do ócio e da pequena transgressão, sem que ele possa ser
identificado plenamente com nenhum desses lugares sociais. O "malandro" não tem
emprego regular, embora trabalhe ocasionalmente e orbite em torno do mundo do trabalho,
lançando mão, muitas vezes, de expedientes como forma de sobrevivência.
Além do samba que tem como grande marca a batucada, que rememora a essência
negra, a manutenção das raízes negras pode ser vislumbrada através da religiosidade
(“Gostava de terreiro/ como ninguém”). Para o amor, buscará a mulher negra: Conquistei
as mulatas,/ bonitas de lá”.
O poema, como o próprio título sugere, “Conversa”, aponta para a necessidade de
ouvir a história desse povo tantas vezes ignorado e que tem muito a contar. Por isso, em
outro poema, “Canto da América”, o poeta pede que a América cante a verdadeira história,
não a versão da supremacia de uns em detrimento dos outros, mas sim, o canto da liberdade.
191
Desta forma, reconhece-se, na obra de Solano Trindade, a resistência às formas de
marginalização, valorizando a voz negra e, ao mesmo tempo, identificando-se com os
oprimidos, sejam negros ou brancos. Este aspecto da poesia de Trindade pode ser
reconhecido no poema “Cantiga”:
Negro bom que sou
Que bom
Como noite sem lua sou
Negro bom!... que bom!
Alma de poeta.
Em mim se criou
Que bom!... que bom!
Poeta e negro sou
Que bom!... que bom!
Em mim serve qualquer cor
Que bom!... que bom!
Minh’alma canta de amor.
Que bom!... que bom!
Quando o mundo igual for.
Que bom! .... que bom!
Se unirá qualquer cor.
Que bom!... que bom! (TRINDADE, 1961, p.51).
No poema é possível verificar a necessidade de o negro identificar-se com a
Negritude a fim de dar valor a si mesmo e à sua produção cultural. Pois, a negritude - como
tomada de consciência da descriminação e a busca de uma identidade negra - permite que o
negro volte a ter orgulho do patrimônio africano que foi perdido no transporte para a
América. Desta forma, no poema, ele assume com orgulho: Negro bom que sou/ que bom/
Como noite sem lua sou/ Negro bom!/ ...que bom! O eu lírico sente-se feliz em ser negro e
encontra o lado positivo dessa negritude, assumindo-se plenamente, como uma noite sem
lua, totalmente escura, mas cuja presença ou ausência já não pode ser ignorada.
192
No desejo de transmitir as mensagens escondidas, ignoradas pela mentalidade
vigente, forma-se a alma de poeta social. Assim, é com orgulho que ele também assumirá:
Poeta e negro sou. Num processo de pleno acolhimento de si mesmo, o eu lírico reconhece-
se como poeta, mas como um poeta negro, que não tem vergonha de enunciar-se como tal.
Há, porém,uma procura de não se fechar em si mesmo e, por isso, a voz no poema declara
que qualquer cor serve para a sua obra poética, para o assumir-se como pessoa capaz de
amar o outro independente da cor da pele. Assim, de forma prognóstica o eu lírico conta que
num mundo de igualdade, a cor não terá importância, não diferenciará as pessoas e nele
servirá, portanto, qualquer cor. E quando este tempo chegar: Que bom!/ ... que bom!
no poema um efeito admirável, pois Trindade aproveita-se dos valores fônicos,
criando uma orquestração onomatopéica que traduz o som do batuque e simboliza também a
intensidade do desejo do eu lírico em ver os homens unidos.
A vogal [o], repetida várias vezes no poema, tem a possibilidade de imitar sons
profundos, cheios, ruídos surdos e, por isso, lembra o som do batuque. O largo e sugestivo
uso da ressonância nasal torna esta vogal apta a exprimir sons mais prolongados,
imprimindo a cadência de fundo africano. A consoante bilateral surda [b] com seu traço
explosivo, momentâneo, presta-se ainda a reproduzir as batidas próprias, necessárias para o
perfeito desenvolvimento da cantiga. A repetição da expressão “Que bom”, em versos
alternados, associa-se ao toque do tambor, criando o ritmo embalador da cantiga.
Utilizando-se da assonância e aliteração, o poeta consegue re-criar o ritmo da
cantiga, através da exploração da sonoridade, e essa musicalidade envolve e arrebata num
puro deleite estético.
193
A sonoridade tão marcada e expressiva sugere música, música que vem do batuque e
vaza na forma de simplicidade da cantiga, que o traço popular aviva. Somando-se a isto,
uma marca da subjetividade, de um sentimento íntimo, impregnando o todo com um tom de
esperança: união.
À primazia aparente da sonoridade em sua constituição, destacada no título, mas
evidente na repetição de versos inteiros, é índice de uma musicalidade implícita, cuja
verdadeira natureza e função é preciso distinguir e compreender.
Em “Cantiga”, Trindade realiza uma das tendências da poesia de aproximar-se das
artes vizinhas, num experimento da novidade formal.
Não apenas neste poema, mas ao longo da obra de Solano Trindade, pode-se
localizar a associação entre poesia e música. Seu último livro, publicado em 1961, traz o
título Cantares ao meu povo, reunindo vários poemas onde se percebe a proximidade do
poeta à música, vista como elo com a tradição popular.
Um exame rápido de “Cantiga” revela uma espécie de paralelismo. uma estrofe
mais longa, com repetições alternadas e duas estrofes regulares. Em relação a combinação
dos elementos, o poema se constrói mediante reiterações sucessivas, formando-se por
agrupamentos que ressurgem, constituídos por núcleos invariáveis apenas modulados por
ligeiras variações. Por isso, o sentido vai se tecendo, num jogo de equivalências e oposições
entre os componentes paralelos.
No plano semântico, a construção do poema mostra o retorno de um tema: o eu lírico
é um negro “bom” e, por isso, pode sonhar um projeto que seja universal.
194
3.4. O assumir-se: Sou negro
O que se pode notar até o momento sobre a obra de Trindade é que ela faz parte de
um fluxo vital de recuperação, recriação e reinterpretação de valores fundamentais para a
afirmação da individualidade e da coletividade do afro-descendente. Desenham-se contornos
mais coerentes com as verdadeiras raízes históricas e culturais do Brasil. O negro passa por
um processo em que ele descobre a própria história perdida e, nesta história, logrou
preservar, reelaborar e sustentar sua cultura e desdobrar a herança africana. Com isso,
Solano restabelece em suas poesias uma identidade humanizada.
É necessário, desta forma, reconhecer a particularidade de cada cultura, pois, ela faz
parte do processo de afirmação do ser humano como agente social no mundo. Desta forma,
Solano imprime ao longo de sua obra o desejo de um projeto integrador de todas as culturas,
sem perder de vista o reconhecimento da particularidade de assumir-se: Sou negro.
Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh’alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gonguês e agogôs
Contaram-me que meus avós vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pra senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu
Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
Humilde e manso
195
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
na guerra de Malés
ela se destacou
Na minh’alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação... (idem, p.42).
Neste poema, Solano refere-se à História, mas do ponto de vista de quem recupera
a escravidão como condição de vida e não através da visão do senhor de engenho. Desta
forma, se percebe o valor da oralidade na literatura trindadiana: Contaram-me que meus
avós vieram de loanda/ como mercadoria de baixo preço. É a herança africana que não se
perdeu totalmente. A propósito do que conclui Alberto Mussa, se ainda hoje existem
estereótipos, como forma de coerção ou para gerar a repugnância, é porque o negro, num
movimento de reação, ainda consegue manter um grau de identidade, de resistência em ser
zoomorfizado. Ou seja, o negro detém uma história, ainda que se queira apagá-la, esquecê-
la, fingir que nada aconteceu, como bem registra Sonia Fátima da Conceição em seu poema
“Passado Histórico”:
Do açoite
Da mulata erótica
Da negra boa de eito
E de cama
(Nenhum registro) (In: RIBEIRO & BARBOSA, 1998, p. 23).
Tomando o passado da mulher negra como um todo, fica expressa a destruição de
registros sobre a escravidão, sobre o passado vergonhoso que pudesse desmentir a crença de
uma escravidão amena e de escravos felizes por sua condição de bestas de carga. Fica claro,
196
portanto, que os movimentos de sustentação de identidades nacionais se podem construir
com o esquecimento de violências que viabiliza a ‘unidade’ almejada pela nação.
O poeta, entretanto, conta a história de seu povo, que também é sua: ele é negro, é
descendente de africanos e herdeiro do som dos tambores/ atabaques, gonguês e agogôs.
Todos estes instrumentos ligando o negro-escravo à sua terra origem, a África.
O ritmo do tambor, ritmo de vida, torna mais estrondosa a voz de Trindade
proporcionando um som forte, já que a obra do poeta deve alcançar outros ouvidos. O som
dos instrumentos que ficam na alma do poeta atravessa o espaço, leva a mensagem de união
entre os povos, o ritmo da fraternidade, como pode ser verificado em O canto da
liberdade”:
Ouço um novo canto
que sai da boca
de todas as raças
com infinidades de ritmos
Cantos que faz dançar
todos os corpos
de formas
e coloridos diferentes
Canto que faz vibrar
todas as almas
de crenças
e idealismos desiguais
É o canto da liberdade
Que está penetrando
Em todos os ouvidos... (TRINDADE, 1961, p.93).
O poema estabelece diálogo com o poema “Sou Negro”, podendo ser considerado
como uma ampliação de seus 5 versos finais, pois exemplifica a mensagem de vida que fica
na alma do poeta: o ritmo que faz dançar, gritar, lutar, vibrar... Voz e ação. Voz e gingado.
Um mesmo ritmo entre os povos, um mesmo desejo transmitido pela cantiga: o desejo de
197
igualdade e liberdade. Desta forma, o poema traz a mensagem contida no projeto de Solano
Trindade: uma poesia capaz de unir “idealismos desiguais”, num propósito ecumênico.
No canto que se faz forte, ao som dos instrumentos, a união entre os diversos
segmentos sociais e étnicos, em que o negro não seria presença exclusiva: canto que faz
dançar/ todos os corpos/ de formas/ e coloridos desiguais”. A cor da pele, assim, não se
torna motivo para a segregação entre os povos. Mas o canto registra também a vibração de
almas que professam diferentes crenças religiosas: “Canto que faz vibrar/ todas as almas/ de
crenças/ e idealismos desiguais”. O canto de Solano é um canto universal, que une os povos
num único ideal de igualdade.
Voltando ao poema “Sou Negro”, pode-se perceber que o eu lírico relata sobre a
exportação forçada de homens para serem escravos, vendidos como mercadoria. O trabalho
do negro para enriquecimento do senhor novo também não é esquecido: “plantaram cana
pra senhor de engenho novo”. Mas, apesar de toda exploração humana, apesar de distantes
do país de origem, os negros fundaram o primeiro Maracatu, uma dança dramática afro-
brasileira. O ritmo novo do povo negro resistiria em terra brasileira.
No avô, o eu poético destaca o reconhecimento da não alienação do homem negro,
refutando a idéia de escravos totalmente submissos e até felizes em servir. De certa forma, o
estereótipo do pai João foi construído na tentativa de encobrir esta luta negra pela liberdade.
Desta forma, o poeta não poderia deixar de mencionar Zumbi, referencial de
conscientização e resistência.
Sabe-se que a mulher negra e escrava, no período colonial, foi símbolo do mais baixo
nível de poder e vontade própria. No entanto, a avó retratada pelo eu lírico também
desmente esta visão de submissão. Para destacar a ousadia desta mulher, o eu poético
198
relembra a sua participação na Guerra do Malês. Esta referência é extremamente
significativa pelo fato de desmentir a representação histórica e literária da mulher afro-
descendente passiva em sua condição inferior. É significativo, pois, fazer uma digressão, a
fim de relembrar que em Salvador uma negra participou de várias revoltas escravas e
também da Guerra do Malês: a insurreta Luísa Mahim. A trajetória desta mulher, -
contradizendo a imagem da mulher negra racial marcada sempre pela passividade - foi
recuperada por Mirian Alves, em “Mahin Amanhã”:
Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“ – é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanhã”
A cidade toda se prepara
Malês
bantus
geges
nagôs
veste coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
“ – é aminhã, aminhã”
sussurram
Malês
geges
bantus
nagôs
199
“ – é aminhã, Luiza Mahin, falo”
(ALVES, 1986, p. 46).
No poema acima, a poetisa recupera a imagem de Luiza Mahin que pertencia à nação
nagô-jeje, da tribo Mahin, e dizia ter sido princesa na África. Nos 4 primeiros versos
podem-se localizar referências ao descontentamento dos escravos com sua condição social,
sendo olhado pela elite como inferior. Assim, a “lâmina das adagas” que escorre nos becos
(lugar comumente associado a grupos marginalizados) traz a idéia de disposição para lutar.
Por isso, o quinto verso traz isolada a palavra “revolta” a fim de conceder maior visibilidade
ao sentimento desse grupo. Essas imagens poéticas podem ser associadas à vida real de
Luiza Mahin, que fez de sua casa quartel de todos os levantes escravos que abalaram a
Bahia nas primeiras três décadas do século XIX. Na revolta de 1830, estava grávida de Luís
Gama (autor de “Bodarrada”), filho que teve de um português e que se tornou poeta e um
dos maiores abolicionistas do Brasil.
É significativo o verso seguinte: revoada de pássaros”, pois carrega a visão de
pássaros que puderam voar novamente, adquiriram a liberdade. Este foi o propósito de
Luíza, devolver a liberdade aos aprisionados escravos, dar-lhes o direito de voarem
novamente. Assim, esta mulher negra se envolveu nas articulações que levaram à Revolta do
Malês, como ficou conhecida uma das rebeliões de escravos entre as tantas ocorridas na
Bahia do século XIX. O levante se deu na noite de 24 para 25 de janeiro de 1835, liderado
por escravos africanos de religião muçulmana, conhecidos na Bahia como malês. Mas o
propósito da revolução resguardava o desejo de união entre todos os povos, representado, no
poema, pela enumeração de várias nações africanas e pela menção às vestes coloridas
(vários sonhos e não apenas um ideal monocolor). Por isso, mais adiante, esse ideal de
200
união entre todos se confirma: Arma-se a grande derrubada branca”, arma-se uma revolta
pelo fim do colonialismo branco.
A luta vem tramada em outra língua, afirma o eu lírico, a língua dos Orixás. É
preciso lembrar que se aproveitando de seu trabalho como quituteira, Luíza despachava
mensagens escritas em árabe para outros rebelados, valendo-se de meninos para levar estes
bilhetes.
Se os escravos tivessem sido vitoriosos, Luíza Mahin teria sido empossada Rainha da
Bahia Rebelde. Porém os planos dos revoltosos foram revelados às forças da repressão.
Os líderes do movimento foram perseguidos e castigados brutalmente, mas Luíza
conseguiu fugir para o Rio de Janeiro, onde continuou a luta pela liberdade. Nesta cidade foi
presa e, possivelmente, deportada para a África. Sua atuação neste lado obscurecido pela
oficialidade vigente é, pois, exemplar para se perceber o papel de mulher consciente,
guerreira, altiva, sofrida, e que nem todas as mulheres negras foram mucamas passivas:
características que se podem inferir à avó descrita pelo eu lírico no poema “Sou Negro”.
Com uma história de luta, de resistência, de exemplos a serem seguidos, na alma do
eu lírico fica não a marca do escravo, para sempre escravo, mas elementos simbólicos de sua
origem, de sua identidade como homem negro: o samba, o batuque e o desejo de libertação.
No poema Sou Negro é possível perceber como o eu lírico rejeita a idéia de um
negro servil, mas destaca e deposita na imagem dos avós o empenho em conquistar a
humanização, a identidade apagada pela história, o desejo de serem livres. Através do
conhecimento do passado o negro conhece a si mesmo e a sua cultura e, por isso, a cor da
pele deixa de ser motivo de desonra e ele pode assumir com “Orgulho”:
201
Sou filho de escravo
Tronco
senzala
chicote
gritos
choros
gemidos
Sou filho de escravo (TRINDADE, 1961, p.43).
Bernd (1988, p. 89) afirma que a marca registrada da poesia de Solano Trindade é a
“obsessão da reconstituição histórica”. Esta reconstituição do passado negro do ponto de
vista de quem sofreu os efeitos da História tornou-se uma importante ferramenta para a sua
produção, ao mesmo tempo que trazia o propósito de, ressignificando a História, valorizar
aqueles a quem foram impostas as mais duras experiências. Através da reconstituição do
passado, este homem passaria a ter um “espelho” no qual ele poderia reconhecer a sua
cultura, assumindo um orgulho pelo passado africano que se perdeu com a chegada na
América. A história de escravidão, desta forma, não o envergonha mais, ao contrario serve-
lhe como arsenal de experiências e ele aprende, afinal, a se olhar como sujeito e reconstrói-
se como homem.
Segundo Godoy,
Olhar a si é tomar conhecimento do seu processo de identificação e de que
a identidade é o produto de múltiplas origens (...) As origens o somente
o início de um longo processo de trocas entre outros, e este processo é
irreversível, é parte da história, é constituinte intrínseco do sujeito. Olhar a
si, então, olhar ao ser do outro e perceber este mesmo e particular
processo em cada um. Cada um é também o outro, cada outro, múltiplo, e
cada múltiplo, por sua vez, todos. Quando percebe isso, ocorre uma
abertura para o outro e, conseqüentemente, para si próprio. Neste
momento o híbrido foi alcançado.
(apud BERND, 2003, p. 156).
202
Nas palavras de Godoy pode-se perceber o sentido de cultura como modo de relação
de um grupamento humano com o real. Isto possibilita compreender o negro e o o negro
como seres que se relacionam dentro de um espaço social, assim como a importância de
cada um na construção de uma identidade nacional.
Assim, pode-se entender o reconhecimento: sou filho de escravo, fui violentado
humana e historicamente, mas a humanização resistiu em mim e querendo ou não, faço parte
desta sociedade. O eu poético primeiramente olha para si próprio e é este olhar que permite
a identificação com a cultura, com a etnia e, por fim, com o continente em que está inserido:
América
eu também sou teu amigo
há na minh’alma de poeta
um grande amor por ti
Corre em mim
o sangue do negro
que ajudou na tua construção
que te deu uma música
intensa como a liberdade
(...)
Eu te amo América
e lutarei por ti
como o amante luta pela amada
Dou a ti
Minha força de proletário
Minhalma de artista
Meu coração de guerreiro
Cantarei poemas de exaltação
A tua glória.
Construirei máquinas
Para tua vingança
Marcharei para defender-te. (TRINDADE, 1961, p.101).
Neste poema pode-se verificar a urgência da aceitação da participação histórica de
todas as culturas. Assim, nos versos acima após evidenciar o esforço da população negra na
203
“construção” da América, uma plena identificação com o continente, expressa no amor
confesso a este continente e que lutará com todas as forças para defendê-lo.
A luta de Solano Trindade é pelo fim do maniqueísmo branco/negro, para que as
exclusões desapareçam. Para que isto aconteça, recupera uma memória coletiva. Mas, para
reconhecerem-se como Homens e como Americanos, foi preciso romper com o modelo
ocidental.
Solano inicia um processo para a criação e para o reconhecimento do Ser Humano
que existe em cada ser. Teve, no entanto, que passar pelo olhar europeu sobre as culturas
africanas para redescobrir-se e, a partir daí, com voz poética, recusar ser um tipo, para ser
negro e homem.
O resultado deste processo de reconhecimento pode ser notado em seu poema
“Negros”:
Negros que escravizam
e vendem negro na África
não são meus irmãos
negros senhores na América
a serviço do capital
não são meus irmãos
negros opressores
em qualquer parte do mundo
não são meus irmãos
Só os negros oprimidos
escravizados
em luta pela liberdade
são meus irmãos
Para estes tenho um poema grande como o Nilo. (TRINDADE, 1981,
p.15).
204
A escolha do tema negro, além de encontrar-se em consonância com os ideais que o
poeta defendeu, é um dos exemplos mais explícitos do processo de desumanização que se
delineia ao longo da história oficial.
Na primeira estrofe do poema, com uma economia de recursos irretocável, o eu lírico
traz para a sua poesia o passado. Assim, os dois primeiros versos dão conta de três séculos
de escravidão na América. que se destacar que os dois verbos que indicam esse processo
de exploração da força sica do outro “escravizam” e “vendem” apontam como sujeitos
os próprios negros. Fica evidente já nesta primeira estrofe a lucidez e o olhar isento do poeta
quando identifica alguns negros com o senhor de escravos; negros servindo um sistema que,
ao escravizar, desumanizou e transformou o homem negro em mercadoria a ser vendida e
explorada.
Na segunda estrofe um passado mais recente. O colonialismo cede lugar a outro
tipo de exploração humana: o capitalismo. Os agentes são os mesmos: negros. Não se
enfoca, porém, o negro operário, mas sim negros senhores na América”. A crítica que se
pode abstrair é que os próprios negros serviram a mercantilização do homem, favorecendo a
exploração do trabalho humano a preços baixos. A desumanidade do sistema colonial é
substituída pela desumanidade do sistema capitalista.
Na estrofe que se segue, o poeta sai do particular para alcançar uma visão universal
da exploração e da opressão sócio-política do trabalhador. Através desta estrofe, uma
ligação de indivíduos oprimidos em qualquer parte do mundo. Os opressores novamente são
alguns negros.
Ao longo das três primeiras estrofes, o poeta desmistifica a visão do negro
vitimizado, identificando o negro ao senhor, ao capitalista e ao opressor. No entanto, ao final
205
destas estrofes, a voz do eu lírico negará esses negros: Não são meus irmãos”. É o gesto de
recusa que se repete diante dos negros que servem às diversas formas de exploração. Tem-
se, pois, ao final destas estrofes uma expressão direta e indignada.
O projeto de Solano Trindade consiste no amor incondicional pelo povo e pela vida,
e na confiança no progresso da humanidade. Assim sendo, no poeta uma íntima adesão
aos problemas próprios de sua época, criticando a desumanidade da vida capitalista.
Em “Negros” o poeta condena algumas atitudes individualistas que impedem o ser
humano de se identificar consigo mesmo e com os outros. O poema é ordenado de modo a
revelar a relação entre opressores e oprimidos, como conseqüência óbvia da superioridade
de força de uns sobre os outros. No entanto, faz-se necessário replicar com uma indignação
genuína: “Não são meus irmãos”.
O eu lírico propõe uma ruptura com todos os negros que operam no nível da
opressão humana, separando os negros (senhor, capitalista, explorador), dos negros
(escravo, operário, explorado).
A quarta estrofe é iniciada com o advérbio “só”, com a finalidade de delimitar a
relação com os homens negros do mundo, mas moldando esta relação de acordo com as as
convicções marxistas do eu lírico: os negros oprimidos/ escravizadosque, como ele
compartilham o mesmo ideal de liberdade, são seus irmãos. Esta identificação pode ser
notada no uso do artigo “o” com um valor afetivo, aproximando o eu rico destes negros
que representam seu projeto de irmandade. Este desejo de que todos os homens sejam livres
fica expresso no terceiro verso da quarta estrofe: “em luta pela liberdade”.
206
A liberdade que o poeta expressa vai além da condição de não ser mais escravo no
sistema colonial. A liberdade expressa no poema é o uso dos direitos de homem livre e,
principalmente, a condição de igualdade.
No último verso da quarta estrofe, porém, a idéia de recusa expressa no advérbio
“não” desaparece e o eu lírico reconhece os oprimidos e escravizados: São meus irmãos”.
Esta identificação com o oprimido constitui uma das bases temáticas de Trindade,
afastando-se momentaneamente do foco de afirmação do “ser negro”, a fim de buscar
matizes universais. A opressão, desta forma, é o denominador comum de luta para os
homens, brancos ou negros.
E para estes homens, ligados ao eu lírico por um laço de irmandade, um presente,
que é também uma arma, um poema grande como o Nilo, rio extremamente simbólico para
os africanos.
Ao longo do poema, desmistifica-se o estereótipo sociológico. Mussa (1989, p.24)
define o estereótipo sociológico como a observação do comportamento do negro em relação
ao branco: o negro bom e o negro ruim. A relação é excludente, ou o negro é fiel, submisso,
ou é selvagem, fujão, vingativo, perigoso para a sociedade. O estereótipo sociológico se
configura com uma grande violência, pois retira do negro a humanidade, marmorizando-o
em uma pedra de apenas uma dimensão, (ou bondade, ou maldade) esquecendo que o ser
humano é um ser contraditório, complexo, e que traz em si ambos sentimentos. É esta a
verdadeira dialética da realidade humana que o poeta apresenta no poema Negros.
A negação, (não são meus irmãos), encontrada ao longo do poema, torna-se
essencial para a compreensão do processo de humanização: o espírito negador transcende a
207
indiferença narcísica. Ao negar, o eu lírico, que se identifica com o excluído, impõe a
identidade destes marginalizados, desestruturando a forma fixa de ser visto.
Através da leitura do poema fica patente que o negro não foi apenas vítima e que
serviu ao opressor. Assim fazendo, o poeta descongela as estereotipias em que foi plasmada
a figura do negro. O “outro é uma matriz de dupla entrada”, como bem expressa Lacan
(apud BHABHA, 1998, p.87). Ou seja, o ser humano é ambíguo, antagônico em seus
desejos e, por isso, jamais homogeneizado, fixo.
A leitura do poema revela, pois, uma crítica à obsessiva reconstituição de uma
identidade supostamente estável, fixa, imobilizada como uma fotografia, quando a
dinamicidade complexa é que deveria constituir o jogo necessário para uma distinção entre
alteridade e diferença, uma vez que a cultura pós-colonial supõe extirpar as raízes únicas e
deixar aflorarem as estratégias alternativas de representação para articular as diferenças
históricas e os valores em construção. Através da explicitação da diferença entre os negros
(irmãos e não-irmãos) recupera-se uma ordem identitária de representações etho-
etnoculturais que expressam uma matriz contaminada pelo processo de assimilação
colonial, mas possibilitando a afirmação da alteridade na diferença, cujo paradigma foi
aberto por Frantz Fanon, Aimé Césaire e Léopold Senghor como resposta identitária étnica
ao excludente universalismo colonialista.
Através do poema Negros”, o poeta evidencia que é necessário visualizar a
diferença, a identidade heterogênica, a fim de perceber o entre-lugar da subjetividade pós-
colonial, em que se evidencia a permanência do outro, a falta, a perda, a não coincidência
dos sujeitos.
208
Ao apresentar o negro em sua diferença, o poeta explicita o fato de o próprio negro
optar por sua subjetividade, ou seja, ele escolhe servir ao opressor ou unir-se ao negro
oprimido. Essa opção é o caminho e o meio para que o Negro se manifeste como um ser
huumanizado, desvelando-se e opondo suas várias faces diante da imagem fixa,
estereotipada.
No poema o eu lírico rejeita o olhar maniqueístas presentes nas estereotipias na qual
o negro era a vítima, ou o negro bestial, o selvagem fadado à extinção. Desta maneira o
projeto poético de Solano se concretiza, ou seja ele concede a sua poesia um caráter
humanizador.
209
CONSIDERAÇÕES FINAIS
encontrei minhas origens
na cor da minha pele
nos lombos de minha alma
em mim
em minha gente escura
em meus heróis altivos
encontrei
encontrei-as enfim
me encontrei.
Oliveira Silveira
Lançando o olhar à literatura nacional, buscando reconhecer uma perspectiva
humanizadora, observou-se que a obra de Solano Trindade reflete a grande problemática de
aceitação da cultura das diferentes etnias que formam a nação brasileira, em detrimento da
visão colonialista, autoritária e alienante, servindo, pois, para a decomposição de alguns
ícones da sociedade cristã ocidental, segundo os quais vivíamos em um mundo cuja História
seguia na direção de uma trajetória única, linear e progressiva, marcada por etapas de
desenvolvimento e composta por personagens neutros ou a-históricos, superados por
homens de caráter extraordinário que compunham a História e investidos de poder para
dominar os “outros” para o bem da civilização humana.
Trindade utiliza vários elementos, muitos dos quais referentes à temática negra,
como o ritmo marcado pelos rituais afro-brasileiro, com a finalidade de demonstrar que estes
“outros” fizeram barulhos suficientes para ameaçar a ordem que os excluía a ponto de impor
210
questões que deveriam ser consideradas , rejeitando, pois, a manutenção do status de social
e culturalmente inferior.
A leitura da obra de Solano Trindade convoca o leitor a romper com os moldes da
ideologia européia judaico-cristã e, desta forma, responder questões específicas das
sociedades humanas que, por muito tempo, permaneceram submersas sob a idéia de uma
História Universal hegemônica e outras categorias generalizantes e reducionistas que
pretendiam resumir a aventura humana na Terra, e que se caracterizavam por eleger como
personagem principal o macho branco, europeu e burguês.
Confrontando problemas como as guerras, a descolonização, o crescimento
demográfico e as mudanças nos mercados de trabalho, a obra de Solano permite constatar a
ruptura de esquemas estáveis de análises e abordagens históricas, mas, sobretudo,
constataram a ruptura do modelo a partir do qual a História e a Historiografia Literária se
constituiram: o modelo eurocêntrico de sociedades civilizadas e colonialistas.
O projeto colonialista na História começou a ruir com as teorias marxistas, que
trouxeram à luz novos personagens, sob a condição de proletário, e ofuscaram a perspectiva
triunfalista de uma História positivista que se pretendia neutra, estabelecendo para sempre a
dialética dentro da historiografia.
Solano é influenciado por esses novos tempos, procurando entender a trajetória da
sociedade e os problemas delas emergentes. Em seus poemas observa-se, muitas vezes, a
própria experiência histórica do poeta, de testemunha, agente ou mesmo vítima de processos
violentos que o mundo vinha experimentando na primeira metade do século XX. As
preocupações impressas em seus versos traziam essas marcas e buscavam novos rumos,
211
assim como pretendiam recuperar personagens históricos até então invisíveis diante do
espelho canônico da historiografia literária.
A obra deste poeta pernambucano historicizou comportamentos e relações entre
raças, classes e sexos, no intuito de compreender melhor a sociedade multifacetada e seus
problemas inadiáveis.
Ao abordar em sua obra o racismo e a exaltação nacional através da exclusão, o
poeta promove uma desconstrução dos paradigmas raciais e nacionais, enveredando por um
novo caminho, ou um novo olhar: o caminho da re-apresentação. A partir desta apresentação
renovada, os personagens se mostram dialéticos e não mais seres monolíticos. Esta postura
do poeta leva a um esfacelamento da maneira fixa e estereotipada de representar o outro,
em que uma perspectiva de caleidoscópio, através do qual cada novo olhar inaugura uma
visão inteiramente nova sobre um mesmo objeto.
O esfacelamento constitui uma das principais marcas da obra de Trindade, pois
passou a atuar sobre minúcias - pequenas temporalidades, setores reduzidos de uma
sociedade ou fatos de pouca relevância no contexto nacional ou mundial - comprometendo a
apreensão do que se queria a verdadeira História, ou seja, a História de um país, do mundo,
enfim, dos grandes feitos.
Pode-se constatar, no primeiro capítulo como, nas formas literárias, os papéis
estabelecidos para homens e mulheres, negros ou não, encontram-se definidos como norma
ou como costume. Mas também se pode considerar a origem da construção desses papéis,
na maioria das vezes, relacionada à imagem criada e reforçada por diferentes estereótipos.
Criou-se, pois a relação entre iguais e diferentes, o “outro” sem voz e incorpóreo, mas,
profundamente presente na experiência humana.
212
Através da leitura da poética de Trindade, há possibilidade de se enfocar tais
personagens sob diferentes ângulos, escapando à polarização bom-mau, herói-vítima,
dominante-dominado.
O resgate de relações cotidianas traz para a obra do poeta o benefício da
humanização dos personagens e o enriquecimento da trama que envolve diferentes figuras
humanas em diferentes papéis. Abandonando o ranço de denúncias carregadas de um teor
revanchista, o poeta buscou a recomposição das experiências de homens e mulheres, tecendo
influências e desdobramentos sem se prender à linearidade. Ao focar experiências de
homens e mulheres, houve o desvendamento de temporalidades heterogêneas, ritmos
desconexos, tempos fragmentados e descontínuos, ao lado de circularidades e retornos.
Essas diferentes concepções de tempo não são aberrações nem mesmo para a Física, que
antes mesmo das Ciências Humanas havia apontado para a relatividade.
As personagens, desta forma, são ressignificadas, reapresentadas de forma
humanizada. As mulheres negras, por exemplo, longe das estereotipias alienantes com que
foram retratadas na literatura vigente, entram em cena como aliadas na resistência à
opressão, protagonistas na negociação e na sobrevivência.
Paralelamente, os homens negros tomam parte de novas cenas além da compra,
venda e transferência de mão-de-obra escrava: são operários, soldados, membros de
irmandades, pais e maridos, rebeldes e aliados. Ao mesmo tempo, não se pode esquecer dos
“Negros que vendem seus irmãos” e demonstra em suas ações a atuação nos dois lados da
história. Recupera-se assim a humanidade dessas pessoas, que mesmo após a abolição da
escravidão ainda eram vistas como peças.
213
Enfim, a leitura da obra de Solano permite que se descubra que o “espelho” das
representações sociais e culturais mostra, a cada um que olha, apenas um fragmento da
realidade. Assim sendo, a percepção do negro será sempre apenas um ponto de vista de seres
fragmentados. Por isso, é necessário vários olhares a fim de tentar compreender a totalidade
destes seres que a cada nova visão mostrarão um pedaço de sua humanidade.
214
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Vida privada e ordem privada no Império. In: _____
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