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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
CERCAS DA REFORMA AGRÁRIA
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕESSONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
ASSENTAMENTO RIO DAS PEDRAS / UBERLÂNDIA - MG
Elisângela Magela Oliveira
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EM HISTÓRIA
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1
INSTITUTO DE HISTÓRIA
CERCAS DA REFORMA AGRÁRIA
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕESSONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
SONHOS, CONFLITOS E CONTRADIÇÕES
ASSENTAMENTO RIO DAS PEDRAS / UBERLÂNDIA - MG
Dissertação apresentada ao Instituto de
História, Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade Federal
de Uberlândia, como exigência à obtenção
do Título de Mestre em História Social
Orientação: Prof. Dr. Antônio de Almeida.
UBERLÂNDIA – FEVEREIRO / 2007
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2
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
O48c
Oliveira, Elisângela Magela, 1979-
Cercas da reforma agrária: sonhos, conflitos e contradições Assenta-
mento Rio Das Pedras / Uberlândia - MG / Elisângela Magela Oliveira. -
2007.
147 f. : il.
Orientador: Almeida, Antônio.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia, Progra-
ma de Pós-Graduação em História.
Inclui bibliografia.
1. História social
- Teses. 2. Reforma Agrária - Teses. 3. Movimentos
sociais - Teses. I. Almeida, Antônio de. II. Universidade Federal de Uber-
lândia. Programa de Pós-
Graduação em História. III. Título.
CDU: 930.2:316
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
3
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Antônio de Almeida (Orientador) – UFU.
________________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Ramos de Almeida – UFU.
________________________________________
Prof. Dr. Paulo Roberto de Oliveira Santos – UNIUBE.
4
Agradeço a Antônio de Almeida, pelo
compromisso com a orientação, a Maria de
Fátima Ramos de Almeida e a Paulo Roberto
de Almeida, por contribuírem com a pesquisa,
a Paulo Roberto de Oliveira Santos, pela
compreensão em relação ao tempo de leitura
do trabalho, aos entrevistados, pela atenção.
De modo especial, a Glória, Geraldo,
José Geraldo, Ronaldo, Elismar, Romes e
Maria Calacira, pelo amor e apoio, ao Gegê,
pelos valorosos diálogos de sempre.
5
Nada que resulta do progresso humano tem unanimidade.
Retirado do filme A Conquista do Paraíso.
6
RESUMO
A presente pesquisa estuda a trajetória histórica do assentamento Rio das Pedras,
localizado no município de Uberlândia, Estado de Minas Gerais. O objetivo central do
trabalho consiste em estudar o sentido social e político da reforma agrária em Uberlândia,
buscando compreender os motivos pelos quais aquele assentamento, como muitos que
ocorrem no país, não representou avanços no caminho da manutenção dos trabalhadores
na terra conquistada. Composto de 87 famílias, o assentamento Rio das Pedras teve sua
oficialização formalizada em outubro de 1997, momento em que o Tribunal de Alçada,
em Belo Horizonte, suspendeu a Ação de Reintegração de Posse efetuada contra o
movimento, efetuada por Josias de Freitas, proprietário da fazenda, permitindo a
permanência das famílias no local. Passado o período de acampamento, os trabalhadores
continuaram numa situação de dificuldades. Com a escassez de recursos e o pouco
conhecimento sobre cultivo da terra, a maioria dos trabalhadores se vê na difícil condição
de camponeses inexperientes, fatos que conduziram ao questionamento do modo como a
reforma agrária está sendo conduzida no país. Para tanto, o estudo contou com uma
bibliografia específica e com diferentes fontes de pesquisa sobre a questão agrária no
Brasil. Foram utilizados textos provenientes do Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária-INCRA, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, da
Comissão Pastoral da Terra-CPT, da Prefeitura Municipal de Uberlândia e do
Movimento Terra, Trabalho e Liberdade-MTL, entidade que organizou a ocupação da
fazenda Rio das Pedras, junto aos trabalhadores sem terra; além de jornais e revistas. Os
pressupostos teórico-metodologicos partiram de referências diversas, não se concentrado
em teorias específicas.
Palavras-chave: Reforma agrária, trabalho, movimentos sociais.
7
ABSTRACT
The present research studies the historical trajectory of the nesting River of the
Rocks, located in the city of Uberlândia, Minas Gerais of State. The central objective of
the work consists of studying the social direction and politician of the agrarian reform in
Uberlândia, searching to understand the reasons for which that nesting, as many that
occur in the country, did not represent advances in the way of the maintenance of the
workers in the conquered land. Made up of 87 families, the nesting River of the Rocks
had its officialization legalized in October of 1997, moment where the Alçada Court, in
Belo Horizonte, suspended the Action of repossession effected against the movement,
effected by Josias de Freitas, proprietor of the farm, allowing the permanence of the
families in the place. Passed the period of encampment, the workers had continued in a
situation of difficulties. With the scarcity of resources and the little knowledge on
culture of the land, the majority of the workers if sees in the difficult condition of
inexperienced peasants, facts that had lead to the questioning in the way as the agrarian
reform is being lead in the country. For in such a way, the study it counted on a specific
bibliography and different sources of research on the agrarian question in Brazil. Texts
proceeding from the National Institute of Settling and the Reformation Agrarian-NISRA
had been used, of the Brazilian Institute of Geography and Statistics-BIGS, of the
Pastoral Commission of the Land-PCL, the Municipal City hall of Uberlândia and the
Land, Work and Freedom Movement -LWFM, entity that the occupation of the farm
organized River of the Rocks, together to the workers without land; beyond periodicals
and reviewed. Estimated the theoretician-methodology had left of diverse references, if
not concentrated in specific theories.
Key-words: Agrarian reformation, work, social movements.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 09
CAPÍTULO I AS OCUPAÇÕES DE TERRA E SUAS DIMENSÕES POLÍTICAS E
SOCIAIS
1.1 – Concentração fundiária e movimentos sociais por terra ..................................... 27
1.2 – Motivações históricas dos conflitos agrários no Brasil ....................................... 40
1.3 – Fundamentos políticos, jurídicos e culturais das ocupações de terra .................. 50
CAPÍTULO II AÇÕES COLETIVAS E EXPERIÊNCIAS NA OCUPAÇÃO DA
FAZENDA RIO DAS PEDRAS
2.1 – Construção do trabalho de base ........................................................................... 67
2.2 – Ocupação e conquista da terra ............................................................................. 75
2.3 – Desavenças e solidariedade no assentamento ...................................................... 84
CAPÍTULO III PERCALÇOS, AVANÇOS E REALIZAÇÕES NA TERRA
CONQUISTADA
3.1 – Organização interna do assentamento ................................................................. 97
3.2 – Trabalho e vivências no cotidiano dos assentados ............................................ 100
3.3 – A realidade dos moradores assentados frente às políticas públicas oficiais ...... 119
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 136
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 141
FONTES ...................................................................................................................... 146
9
INTRODUÇÃO
Atualmente, os conflitos sociais envolvendo a posse e o uso da terra, no Brasil,
têm revelado alguns dos principais posicionamentos consubstanciados, freqüentemente,
no cumprimento de uma promessa, na realização de um sonho e na resistência a uma
ação. O sonho de muitos, manifestado na aspiração por acesso à terra e à melhores
condições de vida, as constantes promessas do Estado de realizar uma reforma na
estrutura agrária do país e a resistência da maioria dos latifundiários às ações de
ocupação de terra
1
, geradoras desses embates. A presente pesquisa procura contribuir
com as reflexões sobre essa problemática, tendo como referência o assentamento Rio
das Pedras, localizado no município de Uberlândia, Estado de Minas Gerais.
Apesar da existência de um grande número de trabalhos acadêmicos sobre o
tema dos conflitos agrários
2
, outra pesquisa sobre o assunto possui sua relevância se se
considerar que as questões levantadas foram construídas com base em novos problemas,
em diferentes documentos históricos e pela interlocução com outros sujeitos sociais e
1
O termo ocupação, utilizado aqui, refere-se ao ato de estabelecer-se em uma propriedade privada de
terra. Entretanto o sentido do termo depende do ponto de vista de quem realiza ou recebe a ação.
Carregado de significações culturais e políticas, seu uso é empregado pelos trabalhadores sem terra como
forma de atestar a legitimidade dessa ação. De modo inverso, os sujeitos que recebem a ação utilizam o
termo invasão em detrimento de ocupação, caracterizando a ação no plano da ilegitimidade. Quando
ocorre uma ocupação de terra, aos olhos de quem a pratica, um direito está sendo representado; na ótica
de quem a recebe, está sendo desrespeitado. Caracterizando o confronto de interesses entre classes
distintas, o uso ou não uso do termo ocupação, quando relacionado aos conflitos agrários, revela a
opinião defendida por certa posição social e política. Na dimensão dos órgãos oficiais, ações de ocupação
de terra são caracterizadas como invasão, remetendo ao sentido de ilegalidade dessas atuações. Porém, ao
mesmo tempo em que o aparato de leis do Estado condena esse tipo de ação coletiva, prescreve normas
acerca da função social da propriedade privada da terra, cumprida quando a propriedade é efetivamente
utilizada, denotando um julgamento extremamente contraditório. Fruto da ambigüidade nas leis, a
contradição na posição do Estado possui um agravante quando a instituição procura conciliar Estado
Democrático de Direito e função social da propriedade privada da terra. Desse modo, na falta de
coerência dos textos jurídicos do que se considera legal ou ilegal nessas ações, o presente trabalho optou
pela utilização do termo ocupação para designá-las, remetendo-se ao sentido original de ocupar ou
preencher um espaço.
2
Entre vários trabalhos realizados sobre o tema, a pesquisa tomou contato com os seguintes: SANTOS,
Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal-Iturama e Campo
Florido/MG. 1989-1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997.;
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001.; MARKUS, Maria Elza. Trabalhadores Sem Terra: ‘Somo nóis
que é o Movimento’. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 2002.; GOMES, Renata
Mainenti. Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: A Resistência Camponesa e a Luta
pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado em Geografia. Uberlândia:
UFU, 2004.; KRÜGER, João. A Força e a Beleza Brotam da Terra. Tese/ Doutorado em História Social.
São Paulo: PUC/SP, 2004.; COSTA, Cléria Botêlho da. Vozes da Terra: Lutas e Esperanças dos Sem-
Terra. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: USP, 2005.; OLIVEIRA, Ricardo Magalhães de.
Cada um queria cercar mais que o outro”: Luta Pela Terra e os Modos de Viver de Trabalhadores Sem-
Terra em Carneirinho, MG. 1997-2000. Dissertação/Mestrado em História Social. Uberlândia: UFU, 2005.
10
com profissional que orienta o trabalho, permitindo uma abordagem da questão a partir
de novos ângulos. Por outro lado, cada pesquisador “constrói o seu objeto de estudo
delimitando não o seu período, o conjunto dos acontecimentos, mas também os
problemas colocados por esse período e por esses acontecimentos, e que terá que
resolver”
3
, o que contribui para que as pesquisas em história alcancem resultados
diferenciados, ainda que analisem a mesma temática.
O trabalho de história constrói-se a partir das indagações do pesquisador ao
objeto de estudo, devendo buscar compreendê-lo e não julgá-lo, problematizando-o
sempre por meio do contínuo questionamento e da reflexão crítica acerca da realidade
ou nuances que envolvam o universo em que se situa o objeto de estudo
4
. Desse modo,
fica evidente que “a boa ‘questão’, o ‘problema’ bem colocado são mais importantes
e são mais raros! do que a habilidade ou a paciência em trazer à luz do dia um fato
desconhecido”
5
. Durante o desenvolvimento do trabalho de pesquisa, constatou-se que
o questionamento do objeto de estudo constitui o ponto mais importante e mais difícil
no trabalho do pesquisador que, às vezes, deve despojar-se de seus pré-conceitos.
Por meio das interrogações acerca de seu foco de análise, o objetivo central da
pesquisa consistiu em buscar compreender o sentido social e político da reforma agrária
em Uberlândia, tendo como objeto de análise o assentamento Rio das Pedras
6
, situado
nesse município. A intenção era entender por que esse assentamento, como muitos no
país, não teve sucesso em manter os trabalhadores na terra recebida. Considerando que
“o acontecimento, tomado em si próprio, é ininteligível”, devendo sempre ser integrado
3
FURET, François. Da história-narrativa à história-problema. In: A Oficina da História. Lisboa: Gradiva,
1985. p. 82.
4
BLOCH, Marc. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Trad. André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2001. p. 151.
5
FURET, François. Op cit. p. 8.
6
Considere assentamento a desapropriação oficial de uma propriedade privada de terra ocupada, a seguir
dividida entre as pessoas nela acampadas para a instituição formal de uma associação de moradores. Para
instituir um assentamento, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, exige que se
faça um Projeto de Assentamento-PA. Conforme o INCRA, o PA “é uma unidade produtiva onde se
desenvolvem atividades agroeconômicas, como agricultura, pecuária, artesanato, turismo rural,
beneciamento de produtos, agroindústria e outros. Essas atividades devem ser desenvolvidas de forma
sustentável, preservando os recursos naturais e o meio ambiente, ou seja, é o lugar de moradia e de
trabalho, onde uma comunidade de homens, mulheres, crianças, jovens e idosos vai enfrentar o desao de
organizar uma vida nova, construir formas de cooperação, denir regras de convivência. A criação do
Projeto de Assentamento envolve procedimentos jurídicos e administrativos. O primeiro deles é o Ato de
Imissão de Posse, quando o imóvel passa a ser de propriedade do Incra, que por sua vez emite a Portaria
de Criação, autorizando as famílias selecionadas a se instalarem no assentamento e a receberem os
recursos do Programa Nacional de Reforma Agrária”. Além disso, na implantação de um PA, o INCRA
realiza antes o “Contrato de Assentamento”, e escolhe uma instituição competente para elaborar o “Plano
de Desenvolvimento do Assentamento-PDA”. BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária-INCRA. O que é Programa Nacional de Reforma Agrária? In: Manual dos Assentados e
Assentadas da Reforma Agrária. Disponível em: www.incra.gov.br. Acesso: 13/02/2007.
11
“numa rede de acontecimentos, em relação aos quais vai ganhar um sentido”
7
, o
trabalho procurou investigar como ocorreu a primeira ocupação de terra no município
de Uberlândia, analisando sua relação com o restante do país e tencionando perceber
seus significados para todos os envolvidos no conflito. Porém recebeu atenção especial
um grupo de 87 famílias de trabalhadores, hoje assentado na fazenda Rio das Pedras.
O período histórico estabelecido compreende o ano da ocupação da fazenda Rio
das Pedras, em 1997, quando 170 famílias sem terra se instalaram em suas imediações,
estendendo-se à atualidade, mas sem constituir uma delimitação estática, pois quando
houve necessidade, momentos anteriores foram analisados, visando a um melhor
proveito para a compreensão do objeto estudado. Na mesma perspectiva, evitou-se
compreender o recorte espacial com base na delimitação fixa, embora situado em
Uberlândia, a análise do objeto requereu localizá-lo no contexto geral da sociedade,
reconhecendo que
(...) a delimitação espacial, a exemplo dos marcos temporais e da própria
escolha do tema, deve ser entendida como medida aleatória, ainda que
necessária, não podendo, portanto, conduzir o pesquisador a perder a
dimensão do todo. E isso, não significa estar à procura de explicações
generalizantes, a partir do objeto enfocado e nem da formulação de teorias
definitivas, o que seria recorrer ao que Foucault denunciou como discursos
englobantes’ que, sedimentados numa ‘unidade abstrata da teoria’, atua,
centralizada e coercitivamente, a partir ‘de um discurso teórico, unitário,
formal e científico’. (...) Trata-se, portanto, de reconhecer que a realidade não
se encontra compartimentada em blocos isolados ou independentes e que, na
medida em que os acontecimentos se entrelaçam, espraiando-se por todo tecido
social, também o objeto deve ser explorado a partir das suas múltiplas
dimensões
8
.
Portanto, a pesquisa procurou colocar texto e contexto em diálogo, evitando o
equívoco de estudar a realidade do assentamento de forma compartimentada e isolada.
A escolha do assentamento Rio das Pedras como objeto de estudo considerou a
especificidade da ocupação de terra no município de Uberlândia. Buscou-se trazer à
tona experiências sociais de agentes históricos que constituíram a cena social e política
da fazenda Rio das Pedras, no período abordado. Indivíduos que por meio das
alternativas disponíveis, adotaram estratégias, manifestando atitudes e comportamentos
em torno do acesso à terra e aos meios para nela permanecer, construindo, assim, uma
identidade cultural e política sobre a qual puderam organizar seus interesses e objetivos.
7
FURET, François. Da história-narrativa à história-problema. In: A Oficina da História. Lisboa: Gradiva,
1985, p. 80.
8
ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos trabalhadores
no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 1996. p. 13.
12
O trabalho procurou também saber quem são, como vivem e qual a postura daqueles
trabalhadores sobre sua condição social, caracterizando-os como sujeitos do processo de
reivindicação de terra em Uberlândia e buscando compreender os sonhos, as aspirações
e os motivos de sua participação nos conflitos agrários.
O objeto de estudo deste trabalho caracteriza-se como evento aberto, dinâmico e
flexível, uma vez que o próprio desenrolar da história possui inúmeras direções. Assim,
esse mesmo objeto pode ser analisado e compreendido por óticas diferentes de outros
pesquisadores que, certamente, obterão resultados distintos, considerando sempre que o
conhecimento histórico é “pela sua natureza, provisório e incompleto (mas não, por
isso, inverídico), seletivo (mas não, por isso, inverídico), limitado e definido pelas
perguntas feitas à evidência e os conceitos que informam essas perguntas, e, portanto,
só verdadeiros dentro do campo assim definido”
9
. Desse modo, a delimitação das
questões ao objeto de estudo ficou aberta a todas as possibilidades que surgiram durante
o trabalho de pesquisa e que possibilitaram sua melhor compreensão.
Nessa perspectiva, o próprio projeto de pesquisa estruturou-se numa composição
dinâmica, passível a diferentes direções e questionamentos, pois considerou-se que o
desenvolvimento dos trabalhos recebe, necessariamente, influências diretas ou indiretas
de outros sujeitos presentes nas várias experiências da investigação histórica, ocorridas
na academia e fora dela, portanto,
a importância da pesquisa vai se revelando à medida da sua construção,
quando se tem oportunidade de discutir com outros agentes, nos grupos de
amigos, nas reuniões científicas, na sala de aula, porque as questões se
ampliam, modifica-se a problemática, o que inicialmente parecia questão
individual vai ganhando aos poucos contornos de preocupações coletivas
10
.
Em termos teóricos e metodológicos, a pesquisa utilizou referências variadas, e
os pressupostos buscaram extrair aprendizados diferenciados, não se concentrando em
uma teoria específica. Trabalhou-se com bibliografias sobre a reforma agrária no Brasil,
com depoimentos orais de moradores do assentamento Rio das Pedras, militantes e
lideranças; com documentos do Movimento Terra Trabalho e Liberdade-MTL, e de
outros órgãos e veículos Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística-IBGE, Instituto
9
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Trad. Waltencir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1981. p. 34.
10
.ALMEIDA, Paulo Roberto de. O Movimento Operário e a Construção da Central Única dos
Trabalhadores no Brasil: Disputas e Concepções 1977-1983. Tese/Doutorado em História Social. São
Paulo: PUC/SP, 1998. p. 6.
13
Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, Comissão Pastoral da Terra-CPT,
jornais, revistas e algumas leis, além do Plano de Consolidação do Assentamento Rio
das Pedras, elaborado pela Prefeitura Municipal, e do Relatório Final do Programa de
Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo,
projeto realizado nesse assentamento pela Universidade Federal de Uberlândia.
Na análise das fontes jornalísticas, verificou-se que as notícias veiculadas
freqüentemente referem-se ao número dos conflitos agrários ocorridos em determinado
tempo e lugar, ao modo como as autoridades reagiram, se houve violência entre os
envolvidos, sem mostrar preocupação alguma de questionar o motivo desses conflitos
no país. Às vezes, a melhor notícia, para alguns jornais, é a que consegue causar
impacto no leitor, procedimento observado em certas matérias televisivas, em que a
estruturação dos textos é construída para causar comoção no expectador, visando a seu
distanciamento da reflexão. Ainda considerando que no Brasil, os noticiários televisivos
optam entre certo jornalismo considerado neutro e outro de opinião, mesmo assim, tanto
a opinião quanto sua ausência refletem posicionamentos em favor de um ou outro
interesse específico.
Contudo, ao lidar com a questão da reforma agrária em Uberlândia e sua inter-
relação com o país, parte-se aqui da compreensão de Bloch, ao declarar que “tudo
quanto o homem diz ou escreve, tudo quanto fabrica, tudo em que toca, pode e deve
informar a seu respeito” e, devido à quantidade imensa de fontes documentais que,
muitas vezes, o pesquisador possui a seu dispor, “uma das tarefas mais difíceis do
historiador é reunir os documentos de que pensa ter necessidade”
11
, o que também
constitui um estímulo à pesquisa, pois as opções de escolha acerca das fontes são
amplas, permitindo análise sob vários ângulos.
Desse modo, o trabalho de pesquisa utilizou uma documentação diversificada
sobre o objeto de estudo, buscando evitar a leitura exclusivista, parcial, que prejudica os
resultados da investigação, mesmo porque, ao contrário disso, “o que normalmente
devemos fazer é reunir uma ampla variedade de informações em geral fragmentárias: e
para fazer isso precisamos (...) construir nós mesmos o quebra-cabeça, (...) formular
como tais informações deveriam se encaixar”
12
, procedimento que requer sobretudo um
plano de pesquisa maleável, passível de ser modificado com vistas à melhor
compreensão do objeto analisado. Conforme Hobsbawm, essa forma de trabalhar o
11
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4 ed. Lisboa: Europa-América, 1965. p. 61.
12
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 225.
14
objeto de estudo deixa de lado o que os pesquisadores da história social precisam evitar,
pois o historiador dos movimentos populares não pode ser um positivista
antiquando”
13
, devendo, portanto, impedir que sua pesquisa se paute em leituras
baseadas apenas nas ações dos políticos, das pessoas proeminentes da sociedade e em
torno dos considerados grandes acontecimentos sociais, como era prática comum da
história tradicional. Entretanto a opção do pesquisador de abordar documentos variados
implica estar aberto, flexível e apto, quando necessário, a rever pré-conceitos, não raro,
em certa medida consolidados em sua postura diante dos acontecimentos, mas que
podem prejudicar os resultados da pesquisa.
Muitas vezes, voltar atrás ou mudar de opinião sobre aspectos da realidade, não
significa abandonar convicções, mas aprender a reaprender e a crescer como indivíduo e
profissional. Na realidade, para o pesquisador da história, o mais difícil “é colocar-se
inicialmente diante das idéias preconcebidas. Olhá-las de frente. Recorrer aos textos. E
interrogá-los. (...), nunca perdendo de vista essa definição que Bloch amava - ‘a
história, ciência da mutação’”
14
. Compreender as nuanças que envolvem seu objeto de
pesquisa pressupõe, ainda, que o pesquisador aceite as especificidades do estudo da
história, com seu método característico, lembrando que as formas de explorar e analisar
o passado estão em constante transformação, tornando-se diferentes com o passar do
tempo. Assim como os múltiplos modos de interpretação do passado transformam-se e
reformulam-se a todo o momento, o historiador deve abrir-se para essas dinamicidades,
procurando informar-se acerca das novas e melhores tendências teóricas de explicação
acerca dos acontecimentos passados. Ainda sobre as formas de realizar a pesquisa, é
importante ressaltar “que a escolha refletida das perguntas seja extremamente
maleável, susceptível de enriquecer pelo caminho de uma quantidade de quesitos novos
e abertas a todas as surpresas”
15
, desse modo, o próprio plano de pesquisa deve pautar-
se em hipóteses flexíveis às mudanças que surgirem no curso da investigação.
Contudo agir de modo maleável durante o trabalho de pesquisa não significa
deixar a investigação seguir qualquer direção, mas aceitar alterações necessárias no
percurso da análise, ponderando que “a investigação histórica admite desde os
primeiros passos que o inquérito tenha já uma direção”
16
, devendo, portanto, ser
inicialmente constituída de hipóteses e questionamentos, necessitando estabelecer
13
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 225.
14
FEBVRE, Lucien. História. Coletânea. Carlos Guilherme Mota (Org.). São Paulo: Ática, 1978. p. 161.
15
BLOCH, Marc. Introdução à História. p. 4 ed. Lisboa, Europa-América, 1965. p. 61.
16
Idem. p. 60.
15
objetivos a serem alcançados. Ademais, selecionando suas fontes, o pesquisador
freqüentemente depara-se com uma série de questões ainda não respondidas, mesmo
após análise documental, sendo comum esses textos oferecerem indícios sobre onde ou
em quais fontes as respostas buscadas serão encontradas
17
.
Durante a elaboração e no decorrer da realização de um trabalho de pesquisa, via
de regra, a pessoa faz leituras muito amplas dentro de um ‘período’, antes ou durante
suas pesquisas, aceitando o contexto oferecido por historiadores anteriores, mesmo
que, à conclusão de seu trabalho, seja capaz de apresentar modificações a esse
respeito”
18
. Entretanto, apesar da importância de uma significativa documentação, o
pesquisador da história precisa questionar as idéias inseridas em cada fonte, ainda mais
porque “os textos, ou os documentos (...), mesmo os mais claros na aparência e
condescendentes, só falam quando se sabe interrogá-los”, o que implica diálogo crítico
com as fontes de estudo, mediante sua problematização constante, afinal, “o espetáculo
da investigação, com seus sucessos e os seus reveses, raramente enfastia”
19
. Além
disso, nunca é demais ressaltar que trabalhar com documento histórico significa manter
constante exercício de reformulação de pontos de vista em relação à realidade observada
e, muitas vezes, dos próprios conhecimentos, pois a essência do saber possui como
principal característica a eterna dinamicidade, seja ao se tornar mais clara, ser reavaliada
ou quando surgem novos e diferentes conhecimentos.
Constantemente investigando e aperfeiçoando os métodos de análise do passado,
muitos pesquisadores da história ressaltam a lógica e os métodos específicos desse saber
em relação a outros. Estudos historiográficos demonstraram que a “lógica histórica”
constitui-se de “um método lógico de investigação adequado a materiais históricos,
destinados, na medida do possível a testar hipóteses quanto à estrutura, causação, etc.,
e eliminar procedimentos autoconfirmadores (...)”
20
, visão que afasta o pesquisador da
história tradicional ou positivista, que considerava os fatos por si e simplesmente
narrava-os.
Por outro lado, na pesquisa em história, torna-se importante, se possível, uma
estreita relação entre o pesquisador e seu objeto de estudo, levando em conta sempre
que “a história se constitui de um processo contínuo de interação entre o pesquisador e
17
THOMPSON, E. P. Senhores e Caçadores. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 16.
18
Idem.
19
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4 ed. Lisboa, Europa-América, 1965. p. 60.
20
THOPMSON, E. P. A Miséria da teoria ou um planetário de erros. Trad. Waltencir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1981. p. 49.
16
seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado”
21
, o que implica
atenção e compromissos constantes com a realidade social em que o historiador se
encontra. O pesquisador deve estar atento ao passado e ao presente, tempo em que pode
interferir nos rumos da história, considerando sua integração na coletividade social.
Estudar o passado exige interrogá-lo a partir dos conceitos e documentos
existentes, observando, nas evidências presentes, as configurações da realidade que
permitam identificar os desdobramentos dos acontecimentos sociais, mesmo porque “o
discurso histórico disciplinado da prova consiste num diálogo entre conceito e
evidência, um diálogo conduzido por hipóteses sucessivas, de um lado, e a pesquisa
empírica do outro”
22
, medida que pressupõe a transposição para o real do que a fonte
revela, no confronto entre realidade e teoria. Por outro lado, torna-se necessário levar
em conta que nem os métodos nem a teoria são o objetivo final do nosso trabalho, são
apenas ferramentas para tratar de entender melhor o mundo em que vivemos”
23
, sendo
esta a função principal da história.
Diferentemente de certas leituras históricas que caracterizam a infra-estrutura
econômica como determinante em relação às demais dimensões do social, caminhando
em outra direção, embora reconhecendo a importância das relações econômicas, esse
trabalho valorizou também a política, as leis, e a cultura e seus desdobramentos, o que
implicou reconhecer como significativa a própria experiência daqueles trabalhadores
que vivenciaram o conflito por terra no município de Uberlândia. Os sujeitos históricos,
com seus múltiplos interesses, tanto exercem influências nas diversas esferas sociais,
como recebem seus efeitos, e desconsiderar essa condição significa negar a ação do
sujeito processada nas demais dimensões do social e não somente no plano das relações
econômicas ou provisões materiais necessárias à sobrevivência.
Nesse sentido, a pesquisa procurou valorizar os vários tipos de experiências dos
sujeitos envolvidos no conflito por terra, estabelecendo, na trajetória dos trabalhadores
da fazenda Rio das Pedras, uma leitura política de caráter mais amplo. Em função disso,
ao buscar compor uma relação entre a ação desses trabalhadores e a concentração de
terras existente no município de Uberlândia e no restante do país, a análise parte do
entendimento de que a segunda, ainda que indiretamente, é fator desencadeador da
21
CARR, E. H. Que é História? 6 ed. Trad. Lúcia M. Alverga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 29.
22
.THOPMSON, E. P. A Miséria da teoria ou um planetário de erros. Trad. Waltencir Dutra. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1981. p. 49.
23
FONTANA, Josep. História depois do fim da história. Bauru-SP: EDUSC, 1998. p. 277.
17
primeira. Na mesma perspectiva, o foco da observação também esteve direcionado para
o relacionamento conflituoso entre os trabalhadores que integram o movimento, com
suas ousadas ações, e os setores conservadores de Uberlândia, particularmente, os
grandes proprietários rurais.
A partir dessas nuances do objeto de pesquisa, o trabalho procurou questionar
quais são os elementos culturais que justificam a defesa intransigente da propriedade
privada da terra, geralmente adotados pelos latifundiários, os quais, desprezando as
necessidades do outro, identifica-o apenas como o inimigo ameaçador contra o qual toda
a força deve ser aplicada, se necessário, levando-o à morte. Em sentido inverso, de onde
vêm os elementos que possibilitam aos trabalhadores sem terra encontrarem legitimidade
nos seus atos, ainda que estejam teoricamente circunscritos ao terreno da ilegalidade?
Essas indagações conduziram a pesquisa para a realidade cotidiana dos trabalhadores
assentados na fazenda Rio das Pedras
24
. Nesse aspecto, seguindo as orientações de Le
Goff, o estudo procurou evitar qualquer fragmentação espacial ou temporal
25
, e buscou
saber, com base no universo cotidiano desses assentados, como são construídos seus
modos de vida, quais são seus sonhos e objetivos, suas perspectivas e posições políticas,
na interação permanente com o meio social que os envolve.
Ao contrário do que se possa pensar, estudar o cotidiano não significa estar
diante de uma realidade estática, mas em movimento, que se transforma com a dinâmica
das relações sociais. Além de constituir um espaço em que os próprios hábitos e
costumes se modificam com o tempo, o cotidiano configura também uma dimensão de
conflitos sociais
26
, compondo sempre práticas econômicas, políticas e culturais, que, ao
serem vivenciadas conjuntamente, instituem identidades entre interesses próximos.
Conforme Hobsbawm, o historiador dos movimentos sociais “passa grande
parte de seu tempo descobrindo como as sociedades funcionam e quando não
funcionam, e também como mudam. Não pode deixar de fazer isso, uma vez que seu
objeto, as pessoas comuns, constitui a maioria de qualquer sociedade”
27
, sendo que é
no espaço do cotidiano que as relações sociais, geradoras das transformações ocorridas,
24
Por ser pouco precisa, é importante esclarecer que a noção de cotidiano está sendo utilizada neste
trabalho no sentido comum, isto é, o próprio dia-a-dia dos trabalhadores observados, a sua dinâmica e os
acontecimentos aí percebidos.
25
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano. In: DUBY, Georges. et al. História e Nova História,
Lisboa: Teorema, 1986. p. 82.
26
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
27
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 231.
18
podem ser percebidas tanto no plano material das ações dos sujeitos como em suas
representações simbólicas.
Portanto, ao incorporar a dimensão cultural ao estudo histórico dos movimentos
sociais de sujeitos em conflito por terra, a análise do objeto considera que as relações
econômicas e sociais não são anteriores às culturais nem as determinam; elas próprias
são campos de prática cultural e produção cultural”
28
. Assim, parte-se aqui do
pressuposto de que as diversas “representações culturais que permeiam as ações dos
trabalhadores não podem ser encaradas como segundo plano das relações econômicas
e sociais, nem entendidas como um terceiro nível da experiência histórica que mereça
um estudo particularizado”
29
. Pelo contrário,
o enriquecedor, em termos de postura teórica e metodológica, é compreender
que todas as manifestações humanas, resultantes de experiências concretas ou
vivenciadas no plano da cultura, enquanto representações simbólicas ou
imagens, são formas diferenciadas de manifestação do real, cujo processo de
permanente construção e reconstrução está sempre permeado por muitas lutas,
conflitos e antagonismos, mas também por identificações, solidariedade e
companheirismo
30
.
Ao abordar os conflitos sociais pela ótica dos agentes envolvidos, as “formas
surdas” de resistência são manifestadas não apenas por meio das vivências e dos pontos
de vista específicos desses sujeitos, mas também pelas configurações simbólicas e
representações sociais construídas na realidade. Para isso, torna-se importante perceber
os diferenciados modos de “lutas reais, não aquelas que se expressam sob formas
organizadas como também as formas surdas de resistência, estratégias ocultas de
subordinação e controle; com isso, incorpora grandes áreas da resistência humana
essenciais para compreensão do social
31
, o que requer associar o plano material e
simbólico na análise do objeto de pesquisa. Por meio dessa abordagem, o estudo das
representações simbólicas revela que “o imaginário social se expressa por símbolos,
ritos, crenças, discursos e representações figurativas”
32
, mas somente tem efeito
quando se concretiza nos eventos sociais.
28
HUNT, Lynn. Apresentação: História, cultura e texto. In: A Nova História Cultural. São Paulo: Martins
Fontes, 1992. p. 09.
29
.ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos trabalhadores
no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP. 1996. p. 41.
30
Idem.
31
VIEIRA, Maria do Pilar A., PEIXOTO, Maria do Rosário C., KHOURY, Yara Maria Aun. A Pesquisa
em História. São Paulo: Ática, 1989. p. 10.
32
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano. In: DUBY, Georges. História e Nova História, Lisboa,
Teorema, 1986, p. 24.
19
Procurando observar essa dimensão no cotidiano dos trabalhadores, verificou-se
a importância das fontes orais ao revelar conflitos silenciosos, situações vividas ou em
construção, em certos casos, ausentes na documentação escrita, mas muito ricas em
informações e esclarecimentos sobre o objeto. Porém, conforme Raphael Samuel,
a evidência oral é importante não apenas como uma fonte de informação, mas
também pelo que faz para o historiador, que entra no campo como um fiscal
invisível. Pode ajudar a expor os silêncios e as deficiências da documentação
escrita e revelar ao historiador (...) o tecido celular ressecado que, quase
sempre, é tudo o que tem em mãos
33
.
No cotidiano dos trabalhadores assentados na fazenda Rio das Pedras, as fontes
orais tomaram forma e expuseram um espaço de embates constantes. Por isso mesmo, o
estudo partiu do entendimento de que o quotidiano, se o perscrutarmos atentamente,
revela-se como um dos lugares privilegiados das lutas sociais”
34
. Inserir o cotidiano no
estudo das vivências dos diversos sujeito envolvidos nos processos de luta pela terra,
com sonhos, aspirações e objetivos distintos, “não é estar à procura do superficial, do
anedótico, do ilustrativo, nem essa postura pode ser confundida com a produção de
certos escritos históricos suaves, facilmente aceitos no mercado consumidor para serem
degustados nos intervalos dos programas de televisão”
35
. Ao contrário, abordar o
cotidiano nesses estudos significa percebê-lo como espaço de embates efetivados nos
planos material e simbólico, mas que “só tem valor histórico e científico no seio de uma
análise dos sistemas históricos, que contribuem para explicar o seu funcionamento”
36
,
portanto, quando remetido para o plano geral das relações e do contexto social em que
se encontra. Ao estabelecer o cotidiano como meio de análise das relações entre os
sujeitos, “o desafio do historiador social é mostrar como ele de fato faz parte da
história, relacionar a vida cotidiana aos grandes acontecimentos”
37
, o que requer
compreendê-lo em interação constante com os eventos históricos gerais.
Considerando a contínua dinamicidade nas maneiras de estudar o passado, uma
das formas encontradas para obter informações acerca do cotidiano dos trabalhadores da
33
SAMUEL, Raphael. História Local e História Oral. Revista Brasileira de História. São Paulo: Marco
Zero/NAPUH, n. 19. 1990, p. 237.
34
LE GOFF, Jacques. A História do Quotidiano. In: DUBY, Georges et. al. História e Nova História.
Lisboa: Teorema, 1986. pp. 80-1.
35
.ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos
trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP.
1996, p. 27.
36
LE GOFF, Jacques. Op cit. p. 79.
37
BURKE, Peter. Abertura: A Nova História, seu passado e seu futuro. In: A Escrita da História: Novas
Perspectivas. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 10.
20
fazenda Rio das Pedras, foi a utilização das fontes orais, método que contribuiu, em
grande medida, para entender melhor os resultados obtidos na pesquisa. Para isso, foram
entrevistados vinte trabalhadores que, por terem participado de toda a trajetória histórica
daquele assentamento, desde o momento inicial, de ocupação e acampamento, foram
convidados e selecionados para o estudo. Além dos trabalhadores, também foram
entrevistados o presidente da associação do assentamento Rio das Pedras, algumas
lideranças políticas e certos coordenadores regionais do Movimento Terra Trabalho e
Liberdade-MTL, o qual organizou a ocupação da fazenda Rio das Pedras junto aos
trabalhadores.
As perguntas aos entrevistados foram elaboradas buscando compreender melhor
todo o processo de preparação, ocupação da fazenda e constituição do assentamento.
Aplicando esse método de pesquisa e construção de fontes orais, verificou-se que a
formulação das questões determinou certa resposta pelo entrevistado que, por outro
lado, retirou da lembrança os acontecimentos passados, em sua ótica considerados mais
relevantes, selecionando e reelaborando os eventos que ressaltou. Constatou-se que
preparar e trabalhar com fontes orais constitui uma via de mão dupla, pois, se o
depoente seleciona sua fala, o pesquisador retira daí o que julga importante e interpreta.
Entretanto, como sugere Portelli, torna-se necessário lembrar que a narração do
entrevistado é sempre aberta, parcial e provisória, o que demanda do pesquisador uma
postura maleável diante da realidade e do momento do narrador, pois as versões das
pessoas sobre seus passados mudam quando elas próprias mudam”
38
, o que pressupõe
a abertura do pesquisador à dinamicidade dessas narrativas. Assim, seguindo os
ensinamentos de Portelli, considerou-se que “a história oral não tem sujeito unificado;
é contada de uma multiplicidade de pontos de vista, e a imparcialidade
tradicionalmente reclamada pelos historiadores é substituída pela parcialidade do
narrador”
39
, de tal modo que, a exemplo do texto escrito, o oral também não se isenta
de posições. Apesar disso,
este papel de intérprete do pesquisador, desfazendo a idéia de neutralidade do
mesmo, durante muito tempo foi visto com desconfiança e de forma crítica
pelos historiadores. Por esta razão, o discurso da história quando
fundamentado na memória, no discurso oral, recebeu muita crítica. Dava-se
38
PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na história oral. In: FENELON,
Déa R. et al. In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004. p. 298.
39
______. O que faz a história oral diferente. Trad. M. T. J. Ribeiro. Projeto História, São Paulo: Educ,
n. 14, fev., p. 39.
21
mais credibilidade e importância à história escrita com base nas fontes de
documentos históricos
40
.
Porém esse procedimento constitui herança do período em que a historiografia
esteve fortemente subjugada à prática da simples narrativa das fontes escritas, mediante
documentos considerados detentores da ‘verdade’ dos fatos, método que, para alívio da
história, atualmente, existe apenas nos registros, não sendo mais exercício do ofício dos
historiadores. Conforme constatou Le Goff, um documento não significa apenas
resultados das comunicações de idéias, mas monumentos lingüísticos carregados de
valores morais, uma vez que caracterizam relações de poder. Dessa forma, “o documento
não é qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade que o
fabricou segundo as relações de forças que detinham o poder”, de modo que “o
documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades históricas para impor ao
futuro - voluntária ou involuntariamente - determinada imagem de si próprias
41
. Assim:
No limite, não existe um documento-verdade. Todo o documento é mentira.
Cabe ao historiador não fazer o papel de ingênuo. Os medievalistas, que tanto
trabalharam para construir uma crítica – sempre útil, decerto – do falso, devem
superar esta problemática porque qualquer documento é, ao mesmo tempo,
verdadeiro – incluindo, e talvez sobretudo, os falsos – e falso, porque um
monumento é em primeiro lugar uma roupagem, uma aparência enganadora,
uma montagem. É preciso começar por desmontar, demolir esta montagem,
desestruturar esta construção e analisar as condições de produção dos
documentos-monumentos
42
.
Entretanto prática comum do século XIX, a intenção de transformar em fatos
históricos os considerados grandes acontecimentos, que por sua abrangência deveriam
estar contidos nos textos históricos, transformou os documentos escritos em fontes
essenciais no trabalho do historiador, registros da verdade absoluta, o que caracterizou
enorme paradoxo, uma vez que o “historiador é necessariamente um selecionador. A
convicção num núcleo sólido de fatos históricos que existem objetiva e
independentemente da interpretação do historiador é uma falácia absurda”,
principalmente porque os fatos falam apenas quando o historiador os aborda: é ele
quem decide quais os fatos que vêm à cena e em que ordem ou contexto”
43
. Apesar de
tudo,
40
KRÜGER, João. A Força e a Beleza Brotam da Terra. Tese/ Doutorado em História Social. São Paulo:
PUC/SP, 2004. p.143.
41
LE GOFF, Jacques. Documento-Monumento. Enciclopédia Einaude. vol. 1. Porto: Editora Einaude-
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984. pp. 102-104.
42
Idem. pp. 102-104.
43
CARR, E. H. Que é História? 6 ed. Trad. Lúcia M. Alverga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 18.
22
o fetichismo dos fatos do século XIX era completado e justificado por um
fetichismo de documentos. Os documentos eram sacrário do templo dos fatos. O
historiador respeitoso aproximava-se deles de cabeça inclinada e deles falava
em tom reverente. Se está no documento é porque é verdade. Mas o que nos
dizem esses documentos (...). Nenhum documento pode nos dizer mais do que
aquilo que o autor pensava o que ele pensava que havia acontecido, o que
devia acontecer ou o que aconteceria, ou talvez apenas o que ele queria que os
outros pensassem que ele pensava, ou mesmo apenas o que ele próprio pensava
pensar. Nada disso significa alguma coisa, até que o historiador trabalhe sobre
esse material e decifre-o
44
.
Dessa forma, principal agente na construção de fatos e documentos históricos, o
historiador não apenas reinterpreta a síntese das inúmeras circunstâncias na busca por
explicações para a realidade, conforme objetivos e valores específicos, como também
transforma, constantemente, suas teorias metodológicas. Fruto da dinâmica nas teorias
históricas, o trabalho de pesquisa realizado com auxílio das fontes orais requer
considerar, conforme Alessandro Portelli, alguns detalhes importantes, a começar pela
própria pergunta do entrevistador, pois o modo como elabora uma questão influencia
muito a forma da resposta, a simples presença do entrevistador denota certa postura,
opinião ou reação por parte do entrevistado, e até mesmo o tempo do depoente é
diferente em relação ao do entrevistador.
Além disso, “às vezes, os historiadores podem estar interessados em falar com
uma certa pessoa sobre um determinado evento, período ou tema específico; mas os
narradores freqüentemente, e forçosamente, reintroduzem o tempo e os eventos que lhes
interessam”
45
. Pressupondo as análises de Portelli, percebe-se que a construção do
sentido e, especialmente, a importância atribuída ao evento/período/objeto narrado,
torna-se inerente à perspectiva do depoente, sendo, às vezes, alterada na interpretação
do próprio pesquisador, que possui valores e interesses específicos. Nessa perspectiva,
um fonema ou um evento histórico não são meramente realidades ‘objetivas’,
mas são construídos como tal por uma rede de relações em que estão inseridos.
A atribuição de relevância e sentido é um ato cultural e depende de uma
interação complexa de padrões individuais e coletivos
46
.
Entretanto, caso não se sinta satisfeito com o conteúdo da narração do depoente,
por não responder aos seus questionamentos, o sentimento do pesquisador que deve
prevalecer em relação ao conteúdo da narrativa é o respeito e a responsabilidade na sua
44
CARR, E. H. Que é História? 6 ed. Trad. Lúcia M. Alverga. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 14.
45
PORTELLI, Alessandro. O momento da minha vida: funções do tempo na história oral. In: FENELON,
Déa R. et al. In: Muitas Memórias, Outras Histórias. São Paulo: Olho d’Água, 2004. p. 300.
46
Idem. pp. 298 e 307.
23
utilização
47
, mesmo porque, “à semelhança de todos os pesquisadores, os historiadores
orais têm a responsabilidade não de obedecer às normas confiáveis, quando coligem
informações, como também de respeitá-las, quando chegam a conclusões e fazem
interpretações”
48
. Portanto, ao pesquisador, cabe considerar as especificidades inerentes
à realização da pesquisa oral, e a ética nessa relação constitui uma das principais regras.
Neste trabalho, parte-se das proposições de Porteli para produzir as fontes orais,
seguindo alguns dos seus passos no que se refere à relação do entrevistador com o
depoente, e dialoga-se com Maurice Halbwachs, quando ressalta o caráter social da
memória dos grupos, embora, de modo diferente do autor, se acredita ser a memória um
lugar em que se processam não apenas imagens objetivas em inter-relação com o mundo
social, mas também sonhos, fantasias, utopias. Mediante a relação dos sujeitos com seus
grupos sociais, muitas lembranças do passado podem ser compartilhadas, tornando a
memória uma função humana essencialmente social. Assim,
fora das gravuras e dos livros, na sociedade de hoje, o passado deixou muitos
traços, visíveis algumas vezes, e que se percebe também na expressão dos
rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e de sentir,
inconscientemente conservados e reproduzidos por tais pessoas e dentro de tais
ambientes, nem nos apercebemos disto, geralmente. Mas basta que se volte
para esse lado para que nos apercebamos que os costumes modernos se
repousam sobre antigas camadas que afloram em mais de um lugar
49
.
Procurando perceber como certas lembranças são carregadas de emoções, de
sentimentos
50
, da mesma forma como existem outras que possuem uma carga muito
grande de objetividade, foi ainda necessário lembrar-se de que a memória não é apenas
razão, é também ‘afeto’, pode ser objetiva e subjetiva. Dependendo do momento, do
‘instante’
51
, pode ser voluntária ou involuntária, pois não se pode desconsiderar que a
memória é antes de tudo um percurso sempre cheio de imprevistos. Reconhecer isso
implica também apagar uma suposta igualdade existente entre memória e história, para
pensar os mecanismos da memória e da história. Nesse sentido, o presente trabalho
partiu dos ensinamentos de Pierre Nora, quando o autor expõe as especificidades de que
são constituídas a memória e a história. Diferentemente da história, a memória não
47
PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História
Oral. Revista Projeto História. n. 15. São Paulo: Educ. 1997, pp. 19-25.
48
Idem. p. 13.
49
HALBWACHS, Maurice. A Memória coletiva. (1950). São Paulo: Ed. Centauro, 2004. p. 68.
50
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Quarenta anos depois de Auschwitz. o Paulo: Paz e
Terra, 1989.
51
BERGSON, Henri. Matéria e memória (1896), São Paulo: Martins Fontes, 1999.
24
possui um método específico e apesar de partilhar com a história o caráter de auto-
reflexão no momento em que se propõe a isso, em sua essência, a memória está, muitas
vezes, aberta a reflexos involuntários de lampejos de imagens passadas. Desse modo,
a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos
os usos e manipulações, suceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. A história é a construção sempre problemática e incompleta do
que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no
eterno presente, a história uma representação do passado. Porque é afetiva e
mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a confortam, ela se alimenta
de lembranças vagas (...). A história, porque operação intelectual e laicizante,
demanda análise e discurso crítico
52
.(Grifo no original).
Ao se utilizar do intelecto, da interpretação voluntária e intencional dos textos
orais, do mesmo modo que das fontes escritas, com vistas a alcançar explicações para as
contradições e dinâmicas das várias relações sociais, o historiador-pesquisador, às vezes
involuntariamente, altera os significados e os próprios interesses presentes nas falas de
quem concedeu a entrevista. Ademais, no próprio trabalho de transcrição, percebe-se o
quanto se perde da ‘atmosfera’ da entrevista, sobretudo, as emoções e expressões do
entrevistado
53
. Contudo, ainda reconhecendo as dificuldades de trabalhar com fontes
orais, levando em questão o alerta sobre os riscos de deturpação dos acontecimentos
passados por parte da memória
54
, os historiadores não se privam de utilizá-las, pois é
por meio da experiência de seu emprego que muitas falhas e contribuições para os
estudos históricos surgiram.
Em que pesem as múltiplas possibilidades de uso das fontes históricas, se, por
algum motivo, for impossível obter resultados satisfatórios acerca do estudo do objeto, a
antiga lição de Bloch ainda deve ser considerada. Em suas palavras,
é sempre desagradável dizer ‘não sei’, ‘não posso saber’. Cumpre dizê-lo
depois de termos energicamente, desesperadamente, procurado. Mas
momentos em que o mais imperioso dever do sábio é, depois de ter tentado
tudo, resignar-se à ignorância e confessá-lo honestamente
55
.
A postura de aceitação dos próprios limites da pesquisa e também do historiador,
na condição de pesquisador, certamente, torna-se algo difícil, mas necessário de ser
52
NORA, Pierre. Entre memória e história (1984), prefácio do v. I de Lês Lieux de Mémore, Paris,
Gallmard, 1984. Tradução de Yara Aun Khoury, Proj. História, São Paulo (10), dez 1993. p 9.
53
PORTELI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. CEDIC-PUC/SP. Mimeo. 1995. pp. 2-4.
54
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 227.
55
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4 ed. Lisboa: Europa-América, 1965. p. 56.
25
assumido diante da falta de respostas coerentes e aceitáveis ao que se busca estudar e
conhecer por meio da pesquisa. Refletindo sobre isso, Marc Bloch alertou quanto ao
risco do pesquisador desconsiderar as barreiras impostas à pesquisa pelo objeto
estudado e, ao desprezar a prudência necessária para admitir não possuir resultados
coerentes com o desenvolvimento da pesquisa, prefira criar soluções que não coincidam
com as obtidas no processo de investigação.
Seja como for, o trabalho do historiador está longe de ser tarefa simples, mas a
modéstia não é uma virtude desprezível”
56
, e como ressaltou Hobsbawm, “é importante
nos lembrarmos de vez em quando que não sabemos todas as respostas sobre a
sociedade e que o processo de descobri-las não é simples”
57
. Além disso, qualquer
método utilizado na realização da pesquisa histórica implica superação de dificuldades
enfrentadas pelo pesquisador ao problematizar o objeto de investigação. Apesar de tudo,
na nossa inevitável subordinação ao passado, há uma coisa, pelo menos, de que
nos libertamos: condenados como sempre estamos a conhecê-lo exclusivamente
pelos seus vestígios conseguimos, todavia, saber muito mais a seu respeito do
que aquilo que esse passado achou por bem dar-nos a conhecer
58
.
Por outro lado, levando em conta que os sujeitos sociais possuem conhecimentos
diferenciados acerca das coisas da vida, possibilitar o intercâmbio de visões de mundo
constitui considerável importância para o crescimento humano. Afinal, o mundo não é
feito para o nosso benefício pessoal, e tampouco estamos no mundo para o nosso
benefício pessoal. Um mundo que afirme ser esse seu propósito não é bom e não deve
ser duradouro”
59
, embora seja esse o mundo que tem prevalecido. Assim, ao concentrar
esforços para compreender o conflito por terra ocorrido na fazenda Rio das Pedras, esta
pesquisa procurou levar em conta as posições e opiniões dos vários sujeitos envolvidos.
Buscando perceber as contradições inerentes à própria cultura dos sujeitos
presentes no processo de investigação, observada nos valores representados e embates
ocorridos, pode ser constatado que,
ao permitir-se dialogar com o material de pesquisa, torna-se possível ao
historiador perceber a riqueza presente na cultura dos personagens da trama
histórica. O documento revela a construção material dos modos de vida dos
sujeitos na medida em que é manuseado de forma a permitir que dele saltem
todas as contradições próprias das relações sociais. (...). Empreender uma
56
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 231.
57
Idem.
58
BLOCH, Marc. Introdução à História. 4 ed. Lisboa: Europa-América, 1965. p. 60.
59
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. Trad. Cid K. Moreira. São Paulo: Cia. das Letras, 1998. p. 21.
26
pesquisa histórica, em certo sentido, é um grande desafio, pois requer
desmesurada atenção às diversas nuanças do objeto pesquisado e imensa
capacidade de despir-se de modelos estanques de análise. Nestes termos fica
evidente a necessidade da utilização de métodos de abordagem do objeto sobre
o qual se debruça ligados a pressupostos dialéticos de análise
60
.
Dessa forma, buscando compreender os vários sentidos dos conflitos ocorridos
na fazenda Rio das Pedras, os quais envolveram diferentes sujeitos sociais, o presente
trabalho estruturou-se em três capítulos. O primeiro analisa os principais motivos que
levaram aos episódios dos conflitos na fazenda Rio das Pedras, abordando os sonhos, as
adversidades, utopias e a coragem dos trabalhadores para enfrentar a ocupação de terra,
discute a formação do Movimento Terra Trabalho e Liberdade-MTL, em Uberlândia,
destacando a concentração fundiária e a exclusão social como fatores motivadores das
ocupações de terra. O segundo capítulo trata do trabalho de base, que constituiu a fase
de arregimentação dos trabalhadores, realizada pelo movimento, e analisa o próprio
processo de ocupação da fazenda e de instituição formal do assentamento das famílias.
Além disso, este capítulo também mostra a dinâmica de atuação dos movimentos,
entidades e instituições presentes nesse processo e investiga a reação dos proprietários
da fazenda, dos organismos e das autoridades oficiais à ocupação da propriedade,
analisando a relação entre os trabalhadores e deles com o movimento que atuou junto
aos trabalhadores, abordando os principais problemas surgidos. E o terceiro capítulo
apresenta a estruturação e a organização do assentamento, discute os avanços e recuos
na produção e analisa a atuação dos órgãos públicos na implantação de projetos de
construção da infra-estrutura e da produção, bem como a relação do processo de
construção desse assentamento com as políticas públicas nacionais para a reforma
agrária.
60
SANTOS, Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal - Iturama e
Campo Florido/MG 1989 a 1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997. p. 10.
27
CAPÍTULO I
AS OCUPAÇÕES DE TERRA E SUAS
DIMENSÕES POLÍTICAS E SOCIAIS
Concentração fundiária e movimentos sociais por terra
Na madrugada do dia 14 de abril de 1997, ocorreu a primeira ocupação de terra
no município de Uberlândia, Estado de Minas Gerais, quando um grupo de cerca de 170
famílias adentrou os limites físicos da fazenda Rio das Pedras, propriedade de Josias de
Freitas
61
. Apesar de tratar-se de uma novidade naquele município, esse acontecimento
era apenas mais uma das muitas ações verificadas nas últimas décadas, no país, em que
o campo brasileiro constitui objeto de disputa. Caracterizando a busca por meios de
sobrevivência, o evento simboliza principalmente a insatisfação de grupos sociais do
país em relação ao modo como encontra-se estruturado o território nacional. Gerando
inúmeros debates nos meios acadêmicos e sociais em geral, as discussões acerca dos
conflitos agrários no país revelam diferentes posições. Certamente inúmeros sujeitos
estão direta ou indiretamente envolvidos nesses embates, mas o Estado, os grandes
proprietários rurais e os movimentos sociais, junto aos trabalhadores sem terra, compõem
os principais agentes.
Existem infinidades de aspectos que cercam a realidade dos conflitos agrários,
entretanto a transposição das demarcações físicas de uma propriedade privada de terra
constitui sua dimensão mais importante, o princípio desencadeador de todos os embates.
O plano concreto desses eventos evidencia-se claramente quando ocorre uma ocupação
de terra, contudo, nesse momento, não acontece apenas uma ação, institui-se, no plano
simbólico, um estado de coisas que suscita interrogações acerca de um fenômeno da
realidade, que atrai atenção e leva a diferentes posições de implicações políticas,
econômicas e sociais. Relacionadas, sobretudo, ao questionamento acerca da concepção
da propriedade privada da terra e à intensidade de sua utilização, em analogia com a
manutenção das providências necessárias à vida, as opiniões sobre as ocupações de terra
revelam grandes contradições. Refletindo e desnudando as diferenciadas formas de
desigualdades sociais existentes no país, as ocupações e conflitos por terra permanecem
constantes no cenário nacional das últimas décadas, gerando e transformando conceitos
e significados na relação de forças conflitantes entre sujeitos sociais com sonhos,
61
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
28
objetivos, interesses e convicções distintas, constitutivas do painel variado da realidade
brasileira.
Situada no extremo oeste do Estado de Minas Gerais, entre São Paulo, Goiás e
Mato Grosso do Sul, a Região do Triângulo Mineiro tornou-se palco de recorrentes
embates sociais envolvendo a terra, e junto com o Alto Paranaíba, a oeste do estado,
engloba sessenta e quatro municípios espalhados entre as microrregiões de Araxá,
Frutal, Ituiutaba, Patos de Minas, Patrocínio, Uberaba e Uberlândia
62
. Concentra a
maioria dos estabelecimentos industriais em Ituiutaba, Uberaba e Uberlândia, atraindo
mão-de-obra do restante da região, os demais municípios, na sua quase totalidade, têm
na agro-pecuária a sua principal atividade econômica, com predominância maciça dos
latifúndios”
63
, uma das principais causas dos conflitos agrários ocorridos no estado.
Do mesmo modo, pesquisas recentes demonstram que a estrutura fundiária do
município de Uberlândia caracteriza o elevado número de latifúndios:
No município de Uberlândia, uma concentração da propriedade da terra,
como, aliás, ocorre no geral do Brasil; sempre mais de 70% da área do
município está ocupada com os estabelecimentos rurais e as categorias 100-
1000 e 1000-10.000 hectares, classificadas, respectivamente, como
estabelecimentos médios e grandes, foram as que apresentaram sempre as
maiores áreas
64
.
Ao longo de sua formação, o Triângulo Mineiro fundamentou-se sobre extensos
latifúndios, e com a modernização da agricultura brasileira, durante os anos de 1970, a
concentração de terras dessa e de ouras regiões acentuou, com uma série de mudanças
internas e externas à economia brasileira” dando “impulso à produção agrícola a
partir dos anos 70, com marcante repercussão no Triângulo e Alto Paranaíba
65
.
Políticas internas de crédito rural, pesquisa, extensão, garantia de preços mínimos e de
seguro, com altos subsídios públicos, deram suporte à modernização da agricultura,
elemento que, “a exemplo do que ocorreu em ouras regiões, facilitou o processo da
concentração da terra, levando à predominância das grandes propriedades”, sendo que
62
.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Divisões Regionais.
Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso: 22/05/2005.
63
SANTOS, Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal - Iturama
e Campo Florido/MG 1989 a 1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997.
p. 27.
64
PESSÔA, Vera Lúcia Salazar. Características da Modernização da Agricultura e do Desenvolvimento
Rural em Uberlândia. Dissertação/Mestrado em Geografia. Rio Claro: UNESP, 1982. pp. 61-61.
65
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. pp. 101 e 104.
29
“a agricultura familiar no Triângulo detém 53% do número de estabelecimentos totais
e ocupa 20% da área total. (...) identifica-se um índice gini de concentração da terra
66
de 0,778 em 1985, que sofre uma redução para 0,632, em 1995/96”
67
, evidenciando o
caráter centralizador nas terras da região.
Devido às desigualdades sociais do país como um todo, que impossibilitam a
sobrevivência digna de parcelas significativas da população brasileira e, sobretudo, à
concentração fundiária no campo, na Região do Triângulo Mineiro, as ocupações de
terras marcaram forte presença nas últimas décadas, o que causou, simultaneamente, o
surgimento de diversos movimentos sociais reivindicando acesso à terra e à condições
de vida no campo. Conforme ressaltou o superintendente regional do Instituto Nacional
de Colonização e Reforma Agrária-INCRA, do Estado de Minas Gerais, “só no
Triângulo Mineiro temos doze movimentos sociais, em Minas Gerais nós
contabilizamos quatorze movimentos, parece que ainda têm dois que ainda não estão
atuando aqui”
68
. Dessa forma, considerada área tradicional de conflitos agrários, o
Triângulo Mineiro constitui alvo de constantes ocupações de terra, notadamente, por
compor uma região de latifúndios
69
.
Assim como tem ocorrido no restante do Estado de Minas Gerais e do Brasil, os
conflitos que envolvem a terra representam, sobretudo, o embate entre interesses de
classes divergentes e o questionamento da concentração fundiária no país
70
. Apesar de
configurar a primeira ocupação de terra no município de Uberlândia, o conflito agrário
ocorrido na fazenda Rio das Pedras foi precedido por outros na Região do Triângulo
Mineiro, cabendo ao embate pela fazenda Barreiro a primeira maior referência de
organização e conquista de terra na região:
66
Ressalte-se que o índice de Gini é utilizado para indicar a intensidade que determinada área de terra
está concentrada. Estudos recentes, realizados pelos organismos das Nações Unidas, apontam o Brasil
como o segundo país onde a concentração de terra encontra-se mais acentuada. Ver: GOMES, Renata
Mainenti. Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: A Resistência Camponesa e a Luta
pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado em Geografia. Uberlândia:
UFU, 2004. p. 48.
67
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. pp. 101 e 104.
68
Marcos Helênio Leoni Pena. Palestra pronunciada no dia 10 de abril de 2006 no Simpósio Nacional de
Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas, realizado nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006, na
Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia-Minas Gerais.
69
SANTOS, Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal - Iturama
e Campo Florido/MG 1989 a 1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997.
70
Em 2004, ocorreram 34 conflitos por terra no Estado de Minas Gerais e 496 na somatória de todos os
estados brasileiros, e, em 2005, foram 26 conflitos ocorridos em Minas Gerais e 437 em todo o país.
‘Ocupações de Terra’. Comissão Pastoral da Terra-CPT. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso:
18/01/2007.
30
Foi nos idos de 1983/84 que ocorreu o primeiro conflito de maior repercussão
pela posse da terra, na fazenda Barreiro, no então Distrito de Limeira D’ Oeste
(Iturama), hoje município emancipado. Em de maio de 1986 as famílias
acampadas na cidade se mudaram para a fazenda Barreiro, constituindo o
primeiro assentamento do Triângulo Mineiro (131 famílias), que servirá de
referência para a mobilização de centenas de famílias sem terra. Foi um rico
processo de aprendizagem dos trabalhadores sem terra
71
.
Entretanto os conflitos agrários no Brasil não são recentes, lutas pela terra
ocorreram ainda no final do século XIX, com os movimentos messiânicos, e durante a
primeira metade do XX, sobretudo entre 1950 e início de 1960, com Ligas Camponesas
e sindicatos sendo perseguidos desde o início do período militar até fins da década de
1970, quando ocorre no país uma relativa abertura política. Porém, os primeiros
assentamentos constituídos coletivamente pelos trabalhadores no Triângulo Mineiro
ocorreram no início da década de 1980, com a conquista das fazendas Barreiro
(1983/84), em Iturama, e Santo Inácio-Ranchinho (1989), em Campo Florido,
considerada a primeira grande vitória pelos trabalhadores
72
.
Em Minas Gerais, ao mesmo tempo em que entidades e trabalhadores rurais
perseguidos pelo regime militar começaram a se restabelecer na década de 1980, os
primeiros movimentos sociais organizados surgiram. O Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra-MST iniciou seus trabalhos no estado nos vales do Murici e do
Jequitinhonha em 1984, pela sua inserção nas reuniões da Comissão Pastoral da Terra-
CPT
73
, e, em fins de 1989, no Triângulo Mineiro, participando de embates pela terra em
Iturama, criando a Regional-MST do Triângulo em 1997
74
. Em nível nacional:
O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, também conhecido como
Movimento dos Sem Terra ou MST, é fruto de uma questão agrária que é
estrutural e histórica no Brasil. Nasceu da articulação das lutas pela terra, que
foram retomadas a partir do final da década de 70, especialmente na região
Centro-Sul do país e, aos poucos, expandiu-se pelo Brasil inteiro. O MST teve
71
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. pp. 107 e 109.
72
GOMES, Renata Mainenti. Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: A Resistência
Camponesa e a Luta pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado em
Geografia. Uberlândia: UFU, 2004.
73
“A Comissão Pastoral da Terra (CPT) nasceu em junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da
Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e realizado em Goiânia
(GO). Inicialmente, a CPT desenvolveu junto aos trabalhadores e trabalhadoras da terra um serviço
pastoral. Na definição de Ivo Poletto, que foi o primeiro secretário da entidade, ‘os verdadeiros pais e
mães da CPT são os peões, os posseiros, os índios, os migrantes, as mulheres e homens que lutam pela
sua liberdade e dignidade numa terra livre da dominação da propriedade capitalista’”. ‘O Nascimento’.
Comissão Pastoral da Terra-CPT. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso: 23/05/05.
74
FERNANDES, Bernardo Mançano. A Formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2000.
31
sua gestação no período de 1979 a 1984, e foi criado formalmente no Primeiro
Encontro Nacional dos Trabalhadores Sem Terra, que se realizou de 21 a 24 de
janeiro de 1984, em Cascavel, no Estado do Paraná. Hoje, o MST está
organizado em 22 estados, e segue com os mesmos objetivos definidos nesse
Encontro de 84 e retificados no I Congresso Nacional realizado em Curitiba,
em 1985, também no Paraná: lutar pela terra, pela Reforma Agrária e pela
construção de uma sociedade mais justa, sem explorados nem exploradores
75
.
Somando-se ao MST, outras entidades começaram a apoiar os trabalhadores
rurais na região, sobretudo no final da década de 1980 e início de 1990, em especial, a
Comissão Pastoral da Terra-CPT, o Partido dos Trabalhadores-PT e a Central Única dos
Trabalhadores-CUT
76
. A partir da década de 1990, na medida em que a formação dos
movimentos sociais em Minas Gerais expande-se, os trabalhadores rurais intensificam
suas reivindicações por terra e justiça no campo.
Nesse contexto de resistência de trabalhadores coletivamente organizados em
ações de ocupação de terra e questionamento das condições sociais no meio urbano e da
concentração fundiária no campo do Triângulo Mineiro, nasceu o Movimento Terra,
Trabalho e Liberdade-MTL, que preparou, com os trabalhadores, a ocupação da fazenda
Rio das Pedras, em 1997. Contudo o movimento surgiu com outra denominação,
sucessivas mudanças ocorreram ao longo dos processos de luta em que seus criadores
estiveram presentes. A organização do movimento teve início com trabalhadores,
lideranças e militantes que participaram dos embates pela terra em Campo Florido e
Santa Vitória. Juntamente com técnicos e agentes pastorais da Animação Pastoral e
Social do Meio Rural-APR, esses militantes articularam a criação de um movimento no
ano de 1994, instituído em 1995, numa reunião realizada na fazenda da Universidade
Federal de Uberlândia, inicialmente, denominado Movimento Democrático dos Sem
Terra-MDST, objetivando organizar as ocupações que ocorriam ou estavam sendo
preparadas na região
77
.
Procurando absorver as ações dos trabalhadores em busca de terra,
a organização se reivindica de massas, autônoma, independente, democrática e
socialista. Propõe a articulação de um novo movimento nacional de luta pela
75
CALDART, Roseli Salete. O MST e a Formação dos Sem Terra: O Movimento Social como Princípio
Educativo. Estudos Avançados. vol. 15, n. 43. São Paulo, 2001. Disponível em: www.scielo.br. Acesso:
18/12/2006.
76
GOMES, Renata Mainenti. Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: A Resistência
Camponesa e a Luta pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado em
Geografia. Uberlândia: UFU, 2004.
77
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. p. 113.
32
reforma agrária no país, de caráter político, intimamente articulado com os
setores urbanos. Com um programa “anti-latifundiário, anti-imperialista e
anti-monopolista”, invoca a transformação social do país
78
.
Desenvolvida na perspectiva do socialismo, almejando unificar os trabalhadores
na luta pela terra na região, a criação do MDST, além de contar com a participação da
Igreja Católica, por intermédio da Animação Pastoral e Social do Meio Rural-APR;
recebeu ainda o apoio ativo dos trabalhadores que se tornaram lideranças militantes da
região e de profissionais da área de economia e direito
79
. Conforme Lourival Soares da
Silva, uma das principais lideranças políticas, no início das lutas pela terra na região, os
embates se davam por meio da Comissão Pastoral da Terra, posteriormente, devido a
problemas com essa entidade, formou-se a APR, passando a fornecer apoio aos
trabalhadores.
Na opinião de Lourival, a necessidade de existir um ponto concreto de apoio aos
trabalhadores, mediante entidade canalizadora dos objetivos e das formas de luta dos
trabalhadores, por meio das ocupações de terra, que atuasse como direção política no
enfretamento e embate pela reforma agrária, caracterizou um dos principais motivos da
criação do movimento. A respeito, a liderança declarou:
A proposta inicial do movimento era organizar os trabalhadores que, no
momento, precisava de uma instituição que desse uma força de enfrentamento,
porque as pastorais e os sindicatos eram apoio, mas vai apoiar quando
acontece o enfrentamento dos trabalhadores e pra fazer o enfrentamento
precisa que tenha uma frente. Depois, a gente via a necessidade de uma
organização maior na questão da produção, na questão político-ideológica
mesmo, a gente sentia que os trabalhadores, em geral, acostumado, vinha de
uma tradição direita, uma tradição de vamos esperar que vai acontecer, esse
78
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. p. 113.
79
Entre as principais lideranças da região que participaram da fundação do MTL, estavam Luiz Carlos
Galante (Barroso), assentado em Campo Florido; Lourival Soares da Silva, com trajetória de vida ligada
às Comunidades Eclesiais de Base-CEBs, e à Comissão Pastoral da Terra-CPT, foi uma importante
liderança dos ocupantes de terra em Iturama, que durante alguns anos ficou assentado na fazenda Nova
Santo Inácio-Ranchinho, em Campo Florido e, atualmente, mora na fazenda Rio das Pedras, em
Uberlândia; José Ferreira dos Santos (Zé Missias), Capitão de Folia de Reis, participa de ocupações de
terra desde 1989, em Limeira D’Oeste e está assentado na fazenda Nova Santo Inácio-Ranchinho, em
Campo Florido; João Batista da Fonseca, formado em economia pela Universidade Federal de
Uberlândia, atualmente é dirigente nacional do MTL; e ainda, participando não como militante, mas
advogada do movimento, esteve Marilda Terezinha da Silva Ribeiro Fonseca, formada em direito pela
Universidade Federal de Uberlândia, trabalhou como assessora da Animação Pastoral e Social do Meio
Rural-APR e acompanhou o processo jurídico do assentamento da fazenda Nova Santo Inácio-Ranchinho,
em Campo Florido, atualmente, é advogada contratada do MTL. Informações retiradas do trabalho:
SANTOS, Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal-Iturama e
Campo Florido/MG 1989 a 1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997.
pp. 174-175.; e de entrevista com o Sr. Lourival Soares da Silva, realizada em 11/01/2007.
33
governo não deu, mas no outro dá, Deus ta aí e pode ajudar, mas tem que fazer
alguma coisa, então, surgiu com esse objetivo
80
.
Posteriormente, o MDST passou a fazer contatos com militantes de outras
regiões e estados, e em julho de 1996 ocorreu um encontro nacional no assentamento
Nova Santo Inácio-Ranchinho, com a participação de lideranças de São Paulo, Goiás,
Pernambuco, Rio Grande do Norte e Minas Gerais, visando preparar um novo
movimento. Nesse encontro, redefiniu-se a denominação do MDST, que passou a
chamar-se, provisoriamente, Movimento de Luta pela Terra-MLT, promoveu ocupações
em Santa Vitória, Perdizes, Campina Verde e Uberlândia e dirigiu a ocupação da
fazenda Rio das Pedras, no ano de 1997.
Em um encontro ocorrido em Brasília, em agosto desse mesmo ano, o MLT
participou, com a maior delegação (40%), do lançamento do Movimento de Libertação
dos Sem Terra-MLST, ensejando ocupações em “Uberlândia-fazendas Rio das Pedras
II, Cooalba, Campanha, Palma da Babilônia, Nova Palma da Babilônia; em Nova
Ponte-fazenda Itambé; em Campina Verde-São José da Boa Vista; em Ituiutaba-
Engenho de Serra e Capão Rico”
81
. Além do MLST, o Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra-MST intensificou sua atuação na região, realizando as ocupações das
fazendas Jubran, Nossa Senhora das Graças e Santo Antônio - Santa Vitória, Colorado,
Douradinho - Uberlândia, Cedro - Coromandel, Olhos D’Água - Sacramento e Chico
Mendes - Ituiutaba
82
.
Após realizar diversas ocupações na Região do Triângulo Mineiro, o MLST
rompeu com a direção nacional do movimento em 2000. A partir daí, passou a
denominar-se Movimento de Libertação dos Sem Terra de Luta-MLST de Luta
83
, com
isso, poucos foram os militantes da região que permaneceram vinculados ao MLST
nacional
84
. A respeito dos motivos que levaram a essa cisão, nenhum registro foi
80
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
81
FONSECA, João Batista da. Reforma Agrária e Sustentabilidade: Luta pela Terra, Realidade e
Perspectivas dos Assentamentos Rurais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado
em Economia. Uberlândia: UFU, 2001. pp. 113-114.
82
Idem. p. 114.
83
GOMES, Renata Mainenti. Ofensiva do Capital e Transformações no Mundo Rural: A Resistência
Camponesa e a Luta pela Terra no Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba. Dissertação/Mestrado em
Geografia. Uberlândia: UFU, 2004. p. 129.
84
Lembrando que o Movimento de Libertação dos Sem Terra-MLST nacional possui Bruno Maranhão
como um de seus dirigentes nacionais. Mantendo ações de ocupação de terra na luta contra o latifúndio, o
MLST difere-se de outros movimentos devido à maneira violenta de chamar a atenção da opinião pública
e dos órgãos governamentais para a questão agrária. Ação desse tipo ocorreu em junho de 2006, quando
cerca de 530 militantes do movimento entraram no Congresso Nacional, agredindo pessoas e depredando
34
encontrado durante a realização desta pesquisa, mas, conforme apontou Lourival, o
desacordo teria ocorrido devido a problemas de divergências político-ideológicas e de
questões financeiras. Questionado sobre o rompimento, relatou:
Movimento, queira sim ou não, não adianta, dizem que movimento não tem
vínculo político, não tem ideologia político-partidária e tal!... Mas acaba
tendo! Correntes! Enquanto pequeno, é uma coisa, cresceu, vai vindo pessoas
que você não tem conhecimento e tal, que não sabe de onde vêm, mas vêm, acha
bonita a proposta e aparece. Então ele cresceu muito, e a base política do
movimento era de Minas Gerais, principalmente do Triângulo. E aparece
pessoas querendo tirar proveito e num determinado momento as idéias não
conferem. Mas é por questões ideológicas, e tem um negócio também que
atrapalha um pouco: a política financeira. Me lembro que na época do racha
do MLST, nós tinha criado uma instituição pra trabalhar com o MLST, que era
a ANARA, a assistência técnica, que através dessa instituição viria os
projetos... Hoje, falo sem muita modéstia, mesmo como uma boa liderança que
sou, mas nunca liderei por cima, que quem lá em cima sempre tem outra
visão, outros interesses. Quando a liderança deixa de ser base é porque ta
visando outros interesses
85
.
Ao ressaltar as diferenças de interesse entre a base - trabalhadores assentados, e
as lideranças
86
no assentamento Rio das Pedras, Lourival forneceu uma explicação para
a cisão ocorrida entre militantes do MLST e, ao mesmo tempo, alertou sobre um dos
principais problemas para o desenvolvimento econômico dos trabalhadores assentados.
Tempos depois, com um encontro ocorrido em Goiânia, em agosto de 2002, entre
lideranças e trabalhadores militantes de diferentes movimentos de luta pela terra de todo
o país, o Movimento de Libertação dos Sem Terra de Luta-MLST de Luta, unificou-se
com o Movimento de Luta Socialista-MLS
87
e com o Movimento dos Trabalhadores-
MT
88
, formando o Movimento Terra Trabalho e Liberdade-MTL
89
.
o prédio público. Vários jornais deram sua versão dos fatos no dia 07/06/2006: Folha de São Paulo, O
Estado de S. Paulo, O Globo, etc.
85
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
86
Trabalhadores assentados eleitos para representar o assentamento, decidem sobre implementação de
políticas públicas junto ao Movimento, aos órgãos oficiais e a outras instâncias que forem necessárias,
auxiliando nas decisões relacionadas à organização do assentamento e da produção, entre outras tarefas.
Atualmente, o regime administrativo adotado no assentamento Rio das Pedras é o presidencialista, mas
houve uma experiência com o regime colegiado. Ambos diferenciam-se pouco, no colegiado, em torno de
cinco pessoas (moradores) são designadas para responder pelo assentamento, com um diretor-presidente e
um secretário-presidente como principais membros; no presidencialista, existe o secretário, o tesoureiro e
o presidente do assentamento. A diferença principal é que no primeiro, todos os membros do colegiado
respondem pelo assentamento, no segundo, apesar das decisões também serem tomadas coletivamente, o
presidente é o representante responsável pela associação, sobretudo ao negociar com outros órgãos ou
assinar documentos relativos aos interesses da mesma. Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
87
O Movimento de Luta Socialista surgiu no ano 2000 como uma nova agrupação socialista e
internacionalista, oriundo de um grupo de ex-militantes do PSTU. Durante seus dois anos de existência
35
Com propostas voltadas à organização e emancipação política e econômica dos
trabalhadores, o MTL objetiva atuar no campo e na cidade, através de ações de apoio à
reforma agrária, aos sindicatos, aos trabalhadores do transporte alternativo e à busca por
moradia digna e educação gratuita. De perspectiva socialista, sua meta mais ousada visa
destruir o sistema capitalista, tarefa que atribui aos movimentos e partidos políticos.
Procurando sintetizar as discussões transcorridas no encontro de Goiânia, sua cartilha
apresenta os principais postulados do movimento - socialismo, liberdade e democracia:
O Movimento de Luta Socialista (MLS), o Movimento de Libertação dos Sem
Terra de Luta (MLST DE LUTA) e o Movimento dos Trabalhadores (MT), ao se
unificarem num único movimento, autônomo e independente, de massas,
socialista, democrático e plural, inserido no campo e na cidade, o Movimento
Terra Trabalho e Liberdade (MTL), apresenta à sociedade brasileira, em
especial aos movimentos e organizações que lutam pela emancipação política e
econômica dos trabalhadores, os pressupostos básicos que possibilitaram o
surgimento de mais este instrumento de luta do povo brasileiro. O Movimento
Terra Trabalho e Liberdade, mais que a junção de idéias e boas intenções,
significa a unificação concreta de experiências rurais e urbanas (...).
Acumulamos nas últimas décadas importantes vitórias na luta pela reforma
agrária, pela moradia, pela educação pública e gratuita, pelo sindicalismo
independente e socialista, pelo transporte alternativo, pela organização
coletiva dos trabalhadores, pela organização da juventude. (...). Lutamos por
um novo socialismo, com liberdade e democracia. (...). Sustentamos que outros
movimentos, como o MTL, devem carregar nas suas lutas a estratégia da
destruição do sistema do capital, tarefa não exclusiva dos partidos políticos
90
.
procurou sempre defender um novo projeto socialista, com democracia e liberdade. O MLS esteve
presente na luta dos excluídos da cidade, como por exemplo, a luta dos perueiros de Goiânia e
redondezas, que após uma luta sangrenta contra o Estado e as empresas de ônibus, consolidou o
transporte alternativo na região. Em São Paulo o MLS teve participações em ocupações urbanas e nas
lutas da juventude, como nas greves e manifestações na USP, saltando o muro da universidade e ligando a
luta dos jovens com a luta da população trabalhadora. No movimento sindical seus militantes estiveram à
frente das greves do funcionalismo federal e estadual no Rio de Janeiro e em outros estados, lutando
também contra a burocratização dos sindicatos e da CUT, defendendo uma mudança profunda nesse
terreno. A influência sindical fez com que o MLS tivesse papel de destaque entre os gráficos de Minas
Gerais, os previdenciários, os mata-mosquitos e profissionais da educação do Rio de Janeiro”. Histórico
do Movimento dos Trabalhadores. Disponível em: www.mtl.org.br/portal. Acesso: 20/12/2006.
88
O Movimento dos Trabalhadores-MT, fundado em 1995, no Estado de Pernambuco, lutou pela
transformação social defendendo a reforma agrária, urbana e política, ancorado no lema ‘Geração de
Trabalho e Riqueza’. Pela necessidade de constituir ações diferenciadas no campo da organização dos
trabalhadores buscou constituir empreendimentos autônomos e circuitos econômicos alternativos, com o
objetivo de superar o trabalho na forma exclusiva de emprego, através da Rede MT de Organizações
Contra a Exclusão Social. O MT teve como missão construir a organização política, econômica e social
da sociedade civil, ou seja, o poder real dos trabalhadores, estruturando o mundo do trabalho, com a
finalidade de gerar riquezas, a partir da nucleação de famílias, que garante um processo participativo e
autônomo, contribuindo para a formação de um bloco histórico do campo popular, para possibilitar a
implantação de uma nova sociedade. O MT, organização civil, atuou e esteve presente em vários estados
do Nordeste, como Pernambuco, Alagoas, Ceará, Paraíba e Rio Grande de Norte”. Histórico do Movimento
dos Trabalhadores. Disponível em: www.mtl.org.br/portal. Acesso: 20/12/2006.
89
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE-MTL. MANIFESTO 2002 Cartilha do MTL.
Uberlândia: MTL, 2002. p. 3.
90
Idem. p. 1.
36
Mantendo atuações de luta referenciadas no MST, pelo meio das ocupações de
propriedades de terra improdutivas, o MTL difere do maior movimento social do país,
ao propor ações reivindicatórias no campo e na cidade. Apesar de considerar o MST
parceiro na mobilização e organização social em busca da defesa dos direitos dos
trabalhadores, o MTL deixa clara sua atual reprovação ao modo suave como o MST
concebe o primeiro governo de Luis Inácio Lula da Silva e à relação do movimento com
o Estado, que, aos olhos do MTL, tende a comprometer sua tradicional independência.
Ao reafirmar que mantinha fortes esperanças no Partido dos Trabalhadores-PT,
o MTL ressalta, hoje, seu descrédito no governo petista, que considera subordinado ao
capital internacional e ausente em estratégias efetivas no caminho da reforma agrária.
Empenhando esforços na construção de alianças com todos os partidos e movimentos
considerados socialistas, o MTL estabelece o Partido Socialismo e Liberdade-PSOL,
como uma das principais relações a consolidar, desde que assegurada sua autonomia e
independência como movimento. Ao evidenciar sua posição em relação ao PSOL, MST,
PT e governo Lula, garante:
O MTL preserva sua autonomia e independência, mas se dispõe a construir
uma aliança estratégica com o PSOL. O MTL tem suas instâncias políticas,
assim como o PSOL. Queremos o PSOL, como outras forças socialistas,
participando das nossas lutas. (...). Estamos dispostos a consolidar ações e
processos unificados com o MST, mas achamos que o movimento está
equivocado na sua caracterização do que é o governo Lula. Achamos que isso
compromete o histórico de independência que o MST tem em relação aos
governos. (...). E o PT acabou como alternativa, porque deixou de ser um
partido dos trabalhadores para se tornar um instrumento a serviço da
manutenção dos interesses da burguesia. (...). Em relação à reforma agrária,
Lula é pior que FHC. Porque Lula não quer promover nenhuma mudança, que
distribua renda e poder, como preparar um plano que inicie a reestruturação
fundiária do país. Trata a reforma agrária como um instrumento de política
compensatória oferecendo migalhas para o povo, atuando para a manutenção
da agroindústria capitalista e do latifúndio
91
.
Entretanto, mesmo quando enfatiza seu caráter socialista, no combate ao
capitalismo, à situação de dependência econômica do país em relação ao mercado
internacional, articulando ações em defesa dos excluídos do campo e da cidade, ao
procurar garantir suas propostas, as experiências do MTL produziram poucos
resultados. Até os dias atuais, pode-se dizer que as novas realidades que ajudou a
construir no campo, sobretudo no Triângulo Mineiro, mediante as ocupações de terra,
91
FONSECA, João Batista da. A experiência do MTL. Revista Movimento. Brasil: Movimento. n. 2.
jan.fev./2005.pp. 11-12.
37
foram incapazes de assegurar melhores condições de vida aos trabalhadores. Um dos
principais motivos desse fracasso, assinalado pelas lideranças do movimento, teria sido
a opção da maioria dos assentamentos então instituídos pela produção organizada
individualmente, trabalho familiar, em detrimento do trabalho coletivo, que congregasse
todas as famílias.
Contudo, ainda que reconheça a opção pelo trabalho individual como um dos
fatores prejudiciais para o desenvolvimento econômico das famílias assentadas na
fazenda Rio das Pedras, torna-se importante lembrar que os valores do sistema
capitalista, notadamente aqueles no interior dos quais a individualidade impera, como os
da concorrência no estabelecimento de objetivos e trabalhos individuais em prol da
realização material e da defesa da posse dos bens adquiridos, produziram e arraigaram
anseios próprios de sua cultura. Dessa forma:
(...) tanto a indisposição para o trabalho e ações coletivas, por parte de
expressivo número dos assentados da reforma agrária, assim como o
individualismo e a competitividade fazem parte de uma cultura mercadológica,
hegemonicamente instalada na sociedade brasileira, e quiçá mundial, em que
os esforços dos movimentos organizados e das suas lideranças em combatê-la
têm esbarrado em muitas dificuldades. Trata-se de uma disputa no plano
simbólico, cuja eficácia do sistema, em termos de fixar valores, tem, em muitos
momentos, se sobreposto ao trabalho direto e ao envolvimento pessoal
dispensado pelas lideranças do movimento organizado
92
.
Nesse sentido, a consciência das lideranças de que a escolha por lotes e
produção individuais, da parte dos assentados da fazenda Rio das Pedras prejudica os
objetivos do grupo todo, acabou por não contribuir muito para resolver esse tipo de
problema no desenvolvimento da associação de moradores. Antes, tem caracterizado
entraves na relação entre lideranças do movimento e do assentamento com moradores.
Todas as vezes em que se mencionou a importância dos trabalhos coletivos, surgiram
enormes atritos nessa relação. Aos olhos das lideranças, está claro que a opção em
trabalhar coletivamente deve partir de uma vontade interna aos trabalhadores, que
devem querer participar dessa forma de produção pelo livre consentimento
93
.
Entretanto, a partir de representações coletivamente vivenciadas pelos sujeitos, nas
92
ALMEIDA, Antônio de. Movimentos Sociais e Políticas Públicas de Reforma Agrária no Brasil:
Conquistas e Percalços dos Trabalhadores na Luta pela Terra. Anais do VII Congresso Latino Americano
de Sociología Rural. Equador. Nov./2006. CD ROOM. p. 12.
93
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
38
quais se cria a ilusão de que, no sistema capitalista, o progresso individual institui-se
como sinônimo de desenvolvimento social e de resolução dos problemas gerados, a
saída buscada torna-se, necessariamente, a que leva ao individualismo e à concorrência.
E são exatamente esses ideários que foram verificados nos moradores do assentamento
Rio das Pedras.
Sendo assim, apontando o trabalho individual como enorme problema no avanço
econômico dos vários assentamentos estabelecidos, e tentando encontrar novas direções
para superar esses obstáculos, atualmente, o MTL propõe construir Empresas Rurais
Comunitárias nas fazendas conquistadas pelos trabalhadores, mediante políticas de
organização da produção em que os meios e a força de trabalho sejam coletivamente
empregados
94
. Dessa forma, na tentativa de eliminar a produção individual dos
assentamentos, a maior parte de cada lote seria destinada ao trabalho em grupo,
enquanto que uma pequena porção seria reservada à utilização individual. Acerca desses
objetivos, Deodato Divino Machado, Coordenador Estadual do MTL, esclareceu:
Nós estamos hoje com um desafio muito grande pela frente, porque nós
estamos tentando criar um novo modelo de reforma agrária. Nós conquistamos
uma área, uma das melhores em qualidade de terra, que é a fazenda São
Domingos, onde nós estamos assentando 177 famílias. E lá, com uma
concepção totalmente diferente da reforma agrária que existe. Então, nós
estamos fazendo a discussão, que começa dentro do trabalho de base, tentando
convencer as famílias de que é um projeto diferenciado, e que elas virão se
quiserem. Mas é onde vai oferecer condição da pessoa ta trabalhando dentro
de um processo coletivo, onde nós vamos estar tirando um alqueire de terra pra
explorarão individual, de cada família, e dentro dessa fazenda ele passa a ser
um dos donos de toda essa área, o diferencial ta aí, ele passa a ser dono de
tudo que é produzido, de todo o lucro, e deixa de ter uma gleba de terra, ele
passa a ser dono de toda a fazenda também. Passa a ser um sócio, porque ele
fica em cooperativa
95
.
Ao apostar em estabelecer formas diferenciadas de organização da produção nos
assentamentos, o MTL segue nas ocupações de terra no estado, procurando articular
forças trabalhadoras do campo e da cidade rumo à realização da reforma agrária
fundamentada no cooperativismo. Porém a obtenção de terra ainda caracteriza seu limite
de atuação em favor da melhoria nas condições de vida dos trabalhadores. De modo
geral, diversos movimentos sociais existentes atualmente na Região do Triângulo
94
FONSECA, João Batista da. A experiência do MTL. Revista Movimento. Brasil: Movimento. n. 2.
jan.fev./2005.pp. 11-12.
95
Deodato Divino Machado-Coordenador Estadual do MTL. Entrevista concedida em dezembro de 2006.
Secretaria Estadual do MTL. Uberlândia/MG.
39
Mineiro
96
conseguem avançar no sentido da reforma agrária somente no acesso à terras,
mantendo certos entraves na realização de medidas efetivas para o desenvolvimento da
produção nos assentamentos. Contudo essas estratégias e atuações de ocupação de terra
caracterizam pressões dos movimentos sociais para que as instâncias estatais tornem
concretas as políticas públicas de distribuição de terras no campo brasileiro,
constituindo as principais bandeiras de luta e auto-afirmação dos tradicionais, e talvez
únicos, movimentos organizados coletivamente rumo a mudanças no espaço rural do
país.
Assinalando a diversidade de sujeitos sociais, própria sobretudo da realidade
brasileira, os movimentos sociais pela terra congregam diferentes posições, objetivos e
interesses, articulam embates políticos e ideológicos no seu próprio interior. Apesar das
dificuldades em contornar problemas de ordem financeira, ideológica e política no
âmbito dos assentamentos, principalmente na relação com trabalhadores e lideranças
eleitas, os movimentos mantêm firme o propósito de questionamento e contestação à
concentração fundiária no Brasil, configurando nas ocupações de terras improdutivas
sua principal forma de luta.
Entretanto, essa marcante concentração fundiária verificada em toda a Região do
Triângulo Mineiro pouco se difere da realidade do país inteiro, que historicamente tem
registrado enorme disparidade na divisão do campo, onde, em muitos casos, a aquisição
de propriedades rurais ocorreu por meio de grilagem de terras
97
, ainda que a maioria dos
proprietários desse tipo de imóvel negue sua real origem
98
. Dados técnicos sobre o
96
Atualmente, os movimentos sociais e entidades envolvidas nas reivindicações de terra na Região do
Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba são os seguintes: Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra-
MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais-MTR, Movimento Pela Reforma Agrária-MPRA, Caminho
de Libertação dos Sem-Terra-CLST, Movimento de Libertação dos Sem-Terra-MLST, Movimento
Sindical dos Trabalhadores Rurais-MSTR, Movimento Terra Trabalho e Liberdade-MTL, Liga Operária e
Camponesa-LOC, Animação Pastoral e Social no Meio Rural-APR, União Nacional da Luta Camponesa-
UNLC e Federação dos Trabalhadores Rurais do Estado de Minas Gerais-FETAEMG. “Conflitos pela
Terra”. Comissão Pastoral da Terra-CPT. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso: 15/01/2007.
97
Grilagem significa falsificação de títulos de propriedades por meio da posse ilegal de extensas áreas de
terras públicas e/ou alheias. Conforme Eduardo Scolese, “grilagem é o processo de apropriação de terras
públicas e alheias por meio da falsificação dos títulos de propriedade. A origem do termo é a seguinte:
primeiro o fazendeiro falsificava a escritura de uma determinada área. Em seguida, para dar uma
aparência antiga aos documentos, colocava a papelada em uma gaveta cheia de grilos. Corroída e
amarelada por substâncias liberadas pelos insetos após cinco semanas, as escrituras pareciam autênticas”.
In: SCOLESE, Eduardo. A Reforma Agrária. São Paulo: Publifolha, 2005. p. 10.
98
Um surpreendente exemplo de concentração fundiária no Brasil foi assunto da Revista Caros Amigos
de setembro de 2005. Numa entrevista com Cecílio do Rego Almeida, empreiteiro paranaense que
enriqueceu construindo obras públicas no Brasil e no exterior, dono da CR Almeida Engenharia e
Construções, quarto maior grupo econômico privado do país e principal construtora, com patrimônio de
3,274 bilhões de dólares, a revista aponta o empreiteiro como “o maior grileiro do mundo”, referência à
grilagem de duas fazendas no Pará, realizada por Cecílio na década de 1990, uma de 1,2 milhão de
40
território brasileiro constatam que o país, com uma área total de 8,5 milhões de
quilômetros quadrados de superfície, que correspondem a 850 milhões de hectares,
possui 371 milhões de hectares de solos classificados em potencialidade agrícola,
totalizando 43,7% do território nacional. Desse número, apenas 52 milhões de hectares
de terra são cultivados, somando-se lavoura temporária e permanente, sendo que “dos
376 milhões de hectares cobertos pelos 5,8 milhões de estabelecimentos agrícolas do
país, 3,1 milhões de pequenos agricultores têm acesso a apenas 10 milhões de hectares,
2,67% do total”
99
, e os 50 mil latifúndios que cobrem mais de 1000 ha. detêm 165
milhões de hectares, o que significa que 1% dos estabelecimentos rurais controla 44%
do total
100
. Ademais, quanto maior a propriedade fundiária, maior proporção dessa terra
fica parada, o que confirma a disparidade nessa repartição como um dos elementos que,
adicionados às difíceis condições de vida na cidade e a certa identidade de alguns com
os modos de vida rural, determinam, grandemente, a ocorrência das manifestações e da
organização de trabalhadores sem terra em movimentos sociais no país.
Motivações históricas dos conflitos agrários no Brasil
A profunda e constante desigualdade na repartição do território nacional
demonstra o descompasso entre trabalhadores sem terra e grandes latifundiários, numa
situação geradora da necessidade de uns e da reserva econômica de outros. Realmente,
grande parte das terras agricultáveis do país “é utilizada como reserva de valor, por
grandes proprietários que preferem imobilizar grandes áreas e esperar que se
hectares e outra de 4,77 milhões de hectares, que juntas dão uma área maior que a do Estado da Paraíba.
Com patrimônio pessoal classificado em torno de 5 bilhões de dólares, o empreiteiro, que figurou na lista
da revista Forbes entre os cem homens mais ricos do mundo se diz dono de duas áreas amazônicas que
totalizam quase 6 milhões de hectares. Conforme a Caros Amigos, “o interesse de dom Ciccillo (como é
chamado pelos íntimos), pela floresta surgiu em dezembro de 1994, quando ele deparou com um anúncio
publicado no jornal O Estado de S. Paulo que oferecia, por 40 milhões de reais, ‘a maior fazenda do
mundo’. Meses depois, três assessores de Cecílio foram à sede do Iterpa e manifestaram, diante de
diretores da entidade, o desejo do patriarca de implantar na área um projeto de preservação ambiental
‘auto-sustentável’ batizado de Floresta para Sempre. Na ocasião, os assessores teriam sido alertados de
que o Estado do Pará jamais fizera concessão de terras com aquelas dimensões a particulares. Mais: foram
informados de que se tratava de patrimônio público, uma vez que não havia nos arquivos do órgão
nenhum registro de título definitivo expedido pelo Estado para aquela localidade Cecílio nega ter sido
avisado e atribui a versão a ‘-débeis mentais do Iterpa’. O certo é que no dia 13 de junho de 1995 Cecílio
fechou o negócio”. Em meio a problemas com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-
INCRA, a Fundação Nacional do Índio-Funai, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis-Ibama e com o Instituto de Terras do Estado do Pará-Iterpa, pelo latifúndio que diz
possuir, Cecílio alega que jamais teria coragem de fazer grilagem. BARROS, João de. O Maior Grileiro
do Mundo. Revista Caros Amigos. Ano IX, n. 102, set./2005. São Paulo: Casa Amarela, 2005. pp. 26-27.
99
DOWBOR, Ladislau. Reforma agrária. SEM TERRA: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS
Ano XIV, n. 144. mar./1995. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso: 05/04/2004.
100
Idem.
41
valorizem por efeito de investimentos públicos e privados de terceiros, do que
desenvolver atividades produtivas”
101
. Contudo, pelo que se sabe, a característica de
concentração das terras no país possui razões histórias e, por isso mesmo, a idéia de
reforma na estrutura fundiária do Brasil, defendida pelos movimentos sociais, interfere
diretamente em interesses econômicos, políticos e sociais. Sendo assim,
por força da grande concentração da propriedade fundiária que caracteriza a
economia agrária brasileira, bem como das demais circunstâncias econômicas,
sociais e políticas que direta ou indiretamente, derivam de tal concentração, a
utilização da terra se faz predominantemente e de maneira acentuada, em
benefício de uma reduzida minoria
102
.
No entanto, como os estudos históricos registraram, a presença do latifúndio no
Brasil não é recente, remonta às capitanias hereditárias do século XVI
103
, quando a
propriedade privada da terra ainda não estava oficialmente assegurada, porém, foi no
ano de 1850, decorrente de pressões inglesas sobre a Coroa portuguesa para a libertação
dos escravos e da substituição dessa mão-de-obra pelo trabalho assalariado, e para
assegurar o monopólio das terras sob o poder de Portugal, que se promulgou a Lei n.
601, primeira lei agrária do país, conhecida como de Lei de Terras. A lei caracterizava a
implantação oficial da propriedade privada da terra no território brasileiro, pois se
constituiu sobre um fundamento jurídico que transformava a terra caracterizada somente
como um bem natural em mercadoria a ser comprada e vendida, e deixou de representar
apenas objeto de uso, como estava estipulado então pela Coroa portuguesa
104
.
101
DOWBOR, Ladislau. Reforma agrária. SEM TERRA: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS
Ano XIV, n. 144. mar./1995. Disponível em: http://www.cptnac.com.br. Acesso: 05/04/2004.
102
PRADO JÚNIOR. Caio. A questão agrária no Brasil. 3 ed. São Paulo: Brasiliense, 1981. p. 15.
103
Com o intuito de levar adiante o plano de colonização do território brasileiro, nas primeiras décadas
do século XVI, a Coroa portuguesa começou a distribuir enormes glebas de terras, por meio de cartas de
doação a particulares, pessoas, em sua maioria, pertencentes à nobreza de Portugal ou prestadores de
serviços à metrópole, que se propusessem a povoá-las e explorá-las com recursos próprios em nome da
Coroa. Denominadas de capitanias hereditárias, essas delimitações geográficas realizadas no território
brasileiro constituíam quinze faixas de terra, com dimensões variando de 150 a 600 quilômetros de
largura. As capitanias, por sua vez, eram divididas em sesmarias, (dimensões de terra que formaram os
latifúndios) e doadas pelos capitães-donatários às pessoas de sua confiança para explorar e povoar. Além
disso, a Lei de Terras evitava a apropriação da terra pelos trabalhadores, quer fossem os escravos recém
libertados em decorrência das pressões inglesas, quer fossem os imigrantes que começavam a chegar da
Europa. In: MORISSAWA, M. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular,
2001. Assim, ainda no século XVI, “a exploração econômica das sesmarias, face às circunstâncias do
mercado mundial, e à subordinação da colônia à Portugal (...) impõe o cultivo de um produto (no caso
a monocultura da cana-de-açúcar) que vai desenvolver com base na mão-de-obra escrava importada da
África. Fecha-se assim o quadro que vai dominar a economia brasileira durante alguns séculos: a grande
propriedade, monocultora (...), voltada para o exterior”. In: PINTO, Luis Carlos Guedes. Reflexões sobre a
política agrária brasileira no período 1964-1984. Reforma Agrária. Jan./abr. Campinas: ABRA, 1995. p. 65.
104
STEDILE, João Pedro. (org.). A Questão Agrária no Brasil: O Debate Tradicional-1500-1960. São
Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 23.
42
Criada no auge das lutas pela libertação dos escravos, com suas repetidas fugas
que vinham ocorrendo sobretudo a partir do século XVII, e pelos conflitos gerados entre
senhores de terra e grupos cada vez maiores de escravos organizados, a Lei de Terras
apregoava que a posse da terra se daria através da compra ou herança legalizadas em
cartório, devendo os sesmeiros validar seu direito adquirido. Sumariamente:
(...) A Lei 601, conhecida como Lei de Terras, determinava que a terra
poderia ser adquirida pela compra, o que acabava com o sistema de posse.
Uma das suas características era elevar o preço das terras, obrigando o
pagamento a vista. Desta forma, a venda das terras era dirigida para uma elite
social e o dinheiro arrecadado seria aplicado na vinda de colonos europeus. A
Lei de Terras visava não consolidar a posse da terra nas mãos de uma elite,
como também preparar um novo tipo de mão-de-obra para a lavoura, pois
sabia-se que o escravismo teria que terminar
105
.
A posse das terras no Brasil, que desde o século XVI estava concentrada sob a
forma de capitanias hereditárias e sesmarias, em poder de grupos minoritários, a maioria
proveniente da elite portuguesa, continuou assegurada nessas normalizações, dessa vez,
como mercadoria com domínio oficial, consolidado pela instituição da propriedade
privada da terra pela Lei de Terras. Além disso, os acontecimentos se encaminhavam
nesse sentido ainda no século XVII, quando a obrigatoriedade de produção na terra
como critério para a concessão de uso foi enfraquecendo e, com isso, “o sesmeiro foi
aos poucos tornando-se fazendeiro, senhor de engenho, cada vez mais privilegiado”
106
.
Portanto, a Lei de Terras representou a oficialização dos interesses particulares
de grupos minoritários da sociedade brasileira, cujo objetivo era definir, então, o que
estava no domínio ou na posse de particulares, para, excluindo-o, aferir-se o que era
do domínio público”
107
, que representava a totalidade do restante das terras do país que
permaneceria no poder da Coroa portuguesa e que, posteriormente, em 1822, com a
‘independência’ do Brasil, continuaria concentrada nas mãos de grupos específicos. “A
Lei 601, de 1850, foi então o batistério do latifúndio no Brasil. Ela regulamentou e
105
CHIAVENATO, Júlio José. Violência no campo: O Latifúndio e a Reforma Agrária. 6 ed. São Paulo:
Moderna, 1998. p. 30.
106
Ao findar do século XVIII, devido à quantidade de sesmarias concedidas, os latifúndios se alastravam,
ocupando as regiões mais importantes do país. Conseqüência disso, em 1822 havia latifúndios com até
132 quilômetros de extensão, cujos donos permitiam lavradores em suas terras, mas apenas como
dependentes, o que fez com que muitos se tornassem posseiros de pequenos lotes entre uma e outra
propriedade, dando início ao sistema de posse, que esteve presente no cenário nacional ao ano de 1850,
momento de expansão cafeeira no Brasil, com as terras valorizadas e os proprietários começando em vão
a eliminar os posseiros. In: MORISSAWA, M. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo:
Expressão Popular, 2001. p. 70.
107
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 49.
43
consolidou o modelo da grande propriedade rural, que é a base legal, até os dias
atuais, para a estrutura injusta da propriedade de terras no Brasil”
108
, e um dos fortes
fatores que contribuíram para o surgimento dos posteriores movimentos e conflitos por
terra ocorridos no país. Deste modo, ao mesmo tempo em que a Lei incluiu a entrada na
terra dos grupos que detinham recursos para realizar sua compra, impediu pacificamente
a entrada da ampla maioria de pessoas pertencentes às classes populares, notadamente
os índios e os negros, pois, ao final das contas:
Com que dinheiro o negro vai comprar a terra? E de quem o negro vai herdar
a terra? A partir daí, o que aconteceu? Aconteceu a posse da terra. Aconteceu
a posse mansa e pacífica da terra. Os negros iam longe, país grande, e por
grupos, por etnias, por proximidades de parentesco, eles iam se estabelecendo,
com liberdade também. Isso foi tão forte no país que se criou o estatuto da
posse da terra. A maneira negra, posse mansa e pacífica tornou-se lei, e quem
ocupa uma terra por um ano e um dia é considerado com direito a essa terra
109
.
Não um direito pleno, mas um direito que não pode ser posto fora. Foi assim
que começou a posse, e é essa posse que hoje em dia é a força dos movimentos
populares, das organizações de trabalhadores e trabalhadoras
110
.
Por isso mesmo, os movimentos sociais pela terra possuem sua importância, ao
denunciar as formas de injustiça historicamente praticadas contra os sujeitos sociais
desprovidos de terra, promovendo, a partir das ocupações, o enfrentamento político em
defesa dos direitos dos trabalhadores. Apesar de os conflitos agrários, em Uberlândia,
terem-se iniciado apenas na década de 1990, com a experiência da ocupação da fazenda
Rio das Pedras, os embates pela terra no país são de longa data. Quando se analisa os
últimos 60 anos da história do Brasil, constata-se que a indústria, aos poucos, dominou
as cidades e invadiu o campo, o que reduziu, constantemente, a quantidade de pessoas
que permaneceram morando e trabalhando no meio rural. A fazenda tradicional, quase
auto-suficiente em trabalho, moradia, alimentação, lazer, escola e igreja, aos poucos,
perdeu seus moradores para as cidades, e com isso, foi desaparecendo
111
.
Por interesse de grande parte dos proprietários rurais e por iniciativa de muitos
trabalhadores, nesse caso, por falta de política governamental e de recursos de trabalho
108
STEDILE, João Pedro. (org.). A Questão Agrária no Brasil: O Debate Tradicional-1500-1960. São
Paulo: Expressão Popular, 2005. p. 23
109
Referência ao artigo 97, I, do Estatuto da Terra. Lei n. 4.504, de 30 de novembro de 1964. In: Estatuto
da Terra. 14 ed. (atual. e ampl). São Paulo: Saraiva, 1999.
110
Dom Tomás Balduíno. Palestra proferida em 10 de abril de 2006 durante o I Simpósio Nacional de
Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas. Evento realizado nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006,
na Universidade Federal de Uberlândia, promovido pelo “Programa de Apoio Científico e Tecnológico
aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-MG/TM”, implementado pela Universidade Federal de
Uberlândia por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.
111
MARTINEZ, Paulo. Reforma Agrária: Questão de Terra ou de Gente? São Paulo: Moderna, 1987.
44
destinados ao campo, houve um despovoamento das terras, e os trabalhadores que nelas
permaneceram ficaram somente pelo interesse na pequena remuneração que lhes pudesse
assegurar a sobrevivência.
Porém as transformações ocorridas no campo brasileiro, na segunda metade do
século XX, possuem razões relativas às novas formas de organizar a produção e as
relações de trabalho, uma vez que “(...) o sistema agrícola brasileiro já não satisfaz aos
objetivos de lucro da maioria dos proprietários, não corresponde às expectativas do
país e do conjunto da população e não atende às necessidades mais elementares da
massa trabalhadora do campo”
112
, situação verificada na ausência de perspectivas do
trabalho no campo e na conseqüente migração de trabalhadores rurais para as cidades à
procura de alternativas por melhores condições de vida.
Com a modernização conservadora da agricultura brasileira da década de 1970,
esse quadro impulsionou-se pelas mudanças ocorridas com a passagem do complexo
rural ao agroindustrial decorrente do início da produção de bens industriais e da
instituição do mercado interno de bens de capital
113
. A modernização da agricultura
dinamizou as forças produtivas do campo, aumentou a produtividade, mas gerou maior
concentração fundiária e estimulou o grande êxodo rural ocorrido na década de 1970.
Além disso, o crescimento econômico, conhecido como “milagre brasileiro” do período
de 1967 a 1973, centralizou as riquezas produzidas e chegou ao auge em 1974, quando
os índices de crescimento da economia brasileira começaram a decair, provocando uma
situação de crise estabelecida entre 1975 e 1977
114
.
Posteriormente, com outras transformações na produção, principalmente a partir
de 1980, pelos processos de automação do trabalho nos países desenvolvidos, com
fortes desdobramentos no Brasil, o país passou por mudanças em sua base produtiva,
marcadas pela racionalização e flexibilização no modo de produção e organização do
trabalho
115
. Essas mudanças, ocorridas especialmente nas regiões metropolitanas,
acarretaram a diminuição do potencial de trabalho disponível no mercado, dando lugar à
informalidade e conseqüente perda de direitos trabalhistas. Aos trabalhadores que
chegavam do campo restava um caminho difícil, pois sua inserção nesse novo tipo de
112
MARTINEZ, Paulo. Reforma Agrária: Questão de Terra ou de Gente? São Paulo: Moderna, 1987. p. 5.
113
SILVA, José Graziano da. Mas qual reforma agrária? Reforma Agrária. Campinas: ABRA. 17/11,
abr./jul., 1987.
114
______. O que é questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 11.
115
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaios sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo
do trabalho. 5 ed. São Paulo: Universidade Estadual de Campinas, 1998. p. 15.
45
mão-de-obra pressupunha saber e qualificações que não possuíam, e a realização de
seus objetivos esbarrava, inicialmente, na dificuldade de permanecerem empregados.
Na Região do Triângulo Mineiro, as migrações de trabalhadores do campo para
as cidades fizeram com que muitas ficassem inchadas em razão do volume de pessoas
advindas do meio rural. No município de Uberlândia, apenas cinco por cento da
população ainda vive no campo, entre outros fatores, a “transformação econômica e
tecnológica, que chegou rapidamente ao campo, aliada ao agribusiness, foi, e hoje
ainda é, desencadeadora dessa migração”
116
. Contudo, em Uberlândia e na maioria das
cidades do país, o aumento da população urbana se deve ainda a outros motivos.
Estudos relatam que no Brasil, diversos fatores causaram a expulsão dos trabalhadores
do campo, mas o monopólio da terra e sua exploração econômica por meio da
monocultura tiveram, necessariamente, um peso maior sobre o êxodo rural. Como
conseqüência desse fluxo de migrantes para as cidades, a população urbana saltou de
12,8 milhões no ano de 1940, para 80,5 milhões no ano de 1980
117
.
Nesse período, a população rural passou de 68,7% para 32,4%, num processo de
intensa redução, o que gerou “a miserabilização da população urbana e uma pressão
enorme na competição por empregos”, de modo que
esse crescimento explosivo entra em crise em 1982, anunciando a
impossibilidade de seguir crescendo economicamente sob o peso das contrições
sociais que deformavam o desenvolvimento nacional. Primeiro, a estrutura
agrária dominada pelo latifúndio que, incapaz de elevar a produção agrícola
ao nível do crescimento da população, de ocupar e pagar as massas rurais, as
expulsa em enormes contingentes do campo para as cidades, condenando a
imensa maioria da população à marginalidade. Segundo, a espoliação
estrangeira, que amparada pela política governamental fortalecera seu
domínio, fazendo-se sócia da expansão industrial, jugulando a economia do
país pela sucção de todas as riquezas produtivas
118
.
Em decorrência das mudanças ocorridas nas relações sociais rurais e no processo
de trabalho, ao chegar aos centros urbanos o trabalhador rural não encontra outra opção
senão a de inserir-se no mercado informal de trabalho, em que, na maioria das vezes
encontra sérias dificuldades de sobrevivência. No município de Uberlândia, a situação
de dificuldades do homem do campo ao procurar empregos para se instalar no espaço
116
MICHELOTO, Antônio Ricardo. Apud POPÓ, Pedro. Êxodo Rural mantém esperança e saudade:
Campo está vazio, cidades, cada vez mais, se enchem de sonhos e desilusões. Correio de Uberlândia.
mar./2006. Disponível em: www.correiodeuberlandia.com.br. Acesso: 22/09/2006.
117
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Leras, 1995. pp. 198 e 200.
118
Idem.
46
urbano, tem sido marcada, notadamente, pela não qualificação desses trabalhadores para
exercer funções do mercado de trabalho:
"Eles deixam o campo, vêm para a zona urbana e, por saberem fazer aquilo
que aprenderam na roça, vão trabalhar naquilo que dão conta de fazer”,
salienta o diretor do PSIU, Antônio Marinho, uma unidade estadual que reúne
num mesmo prédio em Uberlândia seções de ofertas de empregos, de emissão
de carteiras profissional e de identidade (...). "O trabalhador rural, quando
chega aqui, por não estar qualificado, se sujeita a trabalhar como serviços
gerais, servente de pedreiro, auxiliar de pintor e outras funções mais simples”,
dita Rita de Cássia, funcionária do escritório do Sistema Nacional de Emprego
(SINE)
119
.
Entretanto, como se sabe, a situação de exclusão social em Uberlândia e no país
inteiro existe porque o sistema capitalista brasileiro é caracterizado por grande
concentração em poder de poucos, tanto da propriedade fundiária, como também dos
capitais industriais, financeiros, da renda em geral e do poder político
120
. Diante dessa
difícil circunstância, o trabalhador rural se vê forçado a abandonar seu objetivo de
cultivar a terra, quando vai para as cidades, perdendo as condições de prover a
subsistência à sua própria família no ambiente com que se identificava, fato recorrente
no Brasil ao longo de toda a década de 1970. Ao procurar superar a situação de
dificuldades enfrentadas no meio urbano, muitas famílias de grupos populares se
inserem nos movimentos sociais por terra, objetivando conquistar melhores condições
de vida.
Fruto desse contexto, a ocupação da fazenda Rio das Pedras constituiu o marco
inicial dos conflitos por terra no município de Uberlândia, pois representou a primeira
posse de terra ocorrida como produto da luta dos trabalhadores. E antes da participação
na ocupação dessa fazenda, a maioria das famílias residia na periferia de Uberlândia,
mas também participaram da ocupação famílias de Campo Florido, Capinópolis, e
Limeira D’Oeste”
121
, com pessoas nascidas em diversas regiões do estado e do país
122
.
119
Apud POPÓ, Pedro. Êxodo Rural mantém esperança e saudade: Campo está vazio, cidades, cada vez
mais, se enchem de sonhos e desilusões. Correio de Uberlândia. mar./2006. Disponível em:
www.correiodeuberlandia.com.br. Acesso: 22/09/2006.
120
MARTINEZ, Paulo. Reforma Agrária: Questão de Terra ou de Gente? São Paulo: Moderna, 1987.
121
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
122
Entre as principais regiões de Minas Gerais e de outros estados brasileiros, destacam-se: Tupaciguara
(MG); Campina Verde (MG); Prata (MG); Luz (MG); Brasilândia (MG); Mata Grande (AL); Anápolis
(GO); Campo Florido (MG); Iturama (MG); Miguelópolis (SP); Uberaba (MG); Miraporanga (MG);
Ituiutaba (MG); Limeira do Oeste (MG); Dumont (SP); Capinópolis (MG); Peçanha (MG); Natal (RN);
Uberlândia (MG); Canápolis (MG); Ilhéus (BA); Dores do Indaiá (MG); e conceição Araguaia (PA). In:
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
47
Contudo, além das condições sociais difíceis nas cidades, que motivaram a busca por
novos caminhos, outro aspecto importante a ser considerado na opção pela ocupação diz
respeito a uma leitura política de caráter mais amplo e estabelece uma relação entre a
ação desse grupo de sem terra e a concentração fundiária em Uberlândia, pois a
segunda, indiretamente, contribuiu para desencadear a primeira.
Apesar disso, conforme moradores do assentamento Rio das Pedras relataram, o
motivo principal da participação dos trabalhadores na ocupação foi, essencialmente, as
difíceis condições de vida em que se encontravam nas cidades. A respeito desse ponto,
ao ser questionado sobre sua trajetória de vida e opção pela luta organizada, o senhor
Iraci Pedro dos Santos, morador do assentamento Rio das Pedras, ao comentar sobre as
experiências no meio urbano, declarou:
Eu fui nascido em Oliveira, Minas Gerais, aí eu fui acabar de criar em Campos
Altos, formando lavoura pros outros desde menino, desde menino..., a gente
mudou pra Uberlândia em 1970, minha família foi criada todinha aqui dentro
de Uberlândia. aprendi a profissão de pedreiro, trabalhei uns dez anos, não
aqui, Estado de São Paulo, Rio de Janeiro, na usina e Itaipu, sofrendo pra
trazer alimento pra família né. Aí, vi que não dava, e vamos mexer com
reflorestamento, reflorestamento na região toda aqui, eu derrubando eucalipto,
tinha um cerrado e tal..., pra levar o alimento pra família né, mas, fui vendo
que na cidade não dava, não dava, e não dava de jeito nenhum, então, fui pros
sem terra, fui pegar minha terra, foi por isso que eu vim pros sem terra
123
.
Durante as entrevistas, a maioria dos trabalhadores assentados na fazenda Rio
das Pedras pôs em evidência as difíceis condições de vida em que se encontrava no
município de Uberlândia e outras cidades, ocasionadas pela falta de oportunidades de
trabalho que possibilitasse o acesso à habitação, à assistência à saúde e à escola para os
filhos, alegando serem esses os principais fatores da luta pela terra. Depoimentos que
contrastam com certo ideário de progresso sobre Uberlândia, fortemente difundido nos
imaginários sociais do município, sobretudo, pelos setores sociais mais abastados
124
.
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
123
Iraci Pedro dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
124
Sobre o município de Uberlândia, existe uma farta bibliografia, ver, entre outros: RODRIGUES, Jane
de Fátima. Trabalho, ordem e progresso: uma discussão sobre a trajetória da classe trabalhadora
uberlandense o setor de serviços 1924-1964. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo:
FFLCH/USP, 1989.; MACHADO, Maria Clara Tomaz. A disciplinarização da pobreza no espaço
urbano burguês: assistência social institucionalizada. Uberlândia 1965-1980. Dissertação/Mestrado em
História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 1990.;. ALMEIDA, Maria de Fátima Ramos de. “Uberlândia
Operária?” Uma abordagem sobre as relações sociais em Uberlândia 1950-1964. Dissertação/Mestrado
em História Social. Campinas: UNICAMP, 1992.; NUNES. Leandro José. Cidade e Imagens: progresso,
trabalho e quebra-quebra. Uberlândia 1950-1960. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo:
48
Nessa perspectiva, indicadores sócio-econômicos de Uberlândia, que descrevem
taxas significativas de crescimento do município, o qual conta ainda com uma estrutura
moderna e arrojada, não considera a outra face da comunidade, esquecida ou relegada
ao segundo plano, sobretudo pela prefeitura municipal, freqüentemente, ausentando-se
no fornececimento de atenção igualitária aos diversos segmentos sociais, deixado às
margens dos serviços públicos as necessidades dos grupos sociais economicamente
mais desprovidos da cidade. Dessa forma, o discurso do progresso apontado sobre a
realidade local cumpre apenas o papel de desviar as atenções para a grandiloqüência do
município, numa tentativa de difundir a idéia de universalidade daquilo que é usufruído
por poucos. Porém essa ideologia não conseguiu acobertar a realidade socialmente
constituída pelos pobres e excluídos.
Mas, sob a ótica progressista, Uberlândia constitui símbolo de desenvolvimento,
cidade onde as desigualdades e a precariedade social praticamente inexistem. Buscando
forjar a realidade social perfeita, essas representações revelam o intuito desses setores
em encobrir os processos de exclusão social que relegam parcelas significativas da
comunidade a difíceis condições de sobrevivência. Com população atual de 585.260
habitantes
125
, o município de Uberlândia gerou expressiva quantidade de riquezas em
sua história, o que atraiu investimentos, mão-de-obra e estabeleceu altos índices de
crescimento populacional na região
126
. Contudo ainda deixa a desejar quando se trata do
suprimento das necessidades essenciais, sobretudo educação, saúde e instalações de
moradias
127
, provando, mais uma vez, a diferença entre progresso e desenvolvimento.
PUC, 1993.; SOARES, Beatriz Ribeiro. Uberlândia: Da cidade jardim ao Pontal do Cerrado imagens
e representações no Triângulo Mineiro. Tese/Doutorado em Geografia. São Paulo: USP, 1995.;
MORAIS, Sérgio Paulo. Trabalho e Cidade: Trajetórias e vivências de carroceiros na cidade de
Uberlândia. 1970-2000. Dissertação/Mestrado em História Social. Uberlândia: UFU, 2000; SILVA,
Idalice Ribeiro. “Flores do mal” na cidade jardim: comunismo e anticomunismo em Uberlândia 1945-
1954. Dissertação/Mestrado em História Social. Campinas: UNICAMP, 2000.; DANTAS, Sandra Mara.
Veredas do progresso em tons altissonantes: Uberlândia 1900-1950. Dissertação/Mestrado em História
Social. Uberlândia: UFU, 2001.; LOPES, Valéria M. Q. C. Caminhos e Trilhas: Transformações e
Apropriações da Cidade de Uberlândia 1950-1980. Dissertação/Mestrado em História Social.
Uberlândia: UFU, 2002. FREITAS, Sheille Soares de. Buscando a cidade e construindo viveres: relações
entre campo e cidade. Dissertação/Mestrado em História Social. Uberlândia: UFU, 2003.
125
.INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Censo Demográfico:
Uberlândia/2005. Disponível em: www.ibge.gov.br. Acesso: 14/12/2005.
126
ANDRADE, Thompson Almeida.; SERRA, Rodrigo Valente. O Recente Desempenho das Cidades
Médias no Crescimento Populacional Urbano Brasileiro. Núcleo de Estudos e Modelos Espaciais
Sistêmicos-Nemesis/Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA. Rio de Janeiro: IPEA, 1998. p. 16.
127
Somando-se a esses problemas, existe ainda o aumento da violência em Uberlândia, a falta de vagas no
ensino público e o aumento na demanda por habitação. O ano de 2004 expressa muito bem esse aspecto
da educação na cidade quando foi registrada a inscrição de 17.617 mil pessoas no ensino infantil e
fundamental da rede municipal, mas somente foram disponibilizadas cerca de 13 mil vagas. Por outro
lado, “cerca de 6,5 mil famílias aguardam em Uberlândia por uma casa ou terreno dos programas
49
Partindo da realidade social principalmente desse, mas também de outros
municípios, as famílias atualmente assentadas na fazenda Rio das Pedras sentiram a
necessidade de encontrar diferentes alternativas de sobrevivência que lhes fornecessem
existência mais digna. No entanto, produto da concentração de renda e poder no Brasil,
a precariedade existente nas condições de vida das classes populares ou subalternas é
constatada em todo o país. Alguns trabalhadores do assentamento Rio das Pedras, ao
descreverem as suas trajetórias, disseram ter buscado melhorias para suas condições de
vida em outras cidades, antes de irem para Uberlândia, mas, em todas essas tentativas,
defrontaram-se com a falta de oportunidades e com as várias dificuldades enfrentadas
para a permanência no meio urbano. A esse respeito, Davi Agenor dos Santos relatou:
A gente morava em Unaí, em Unaí era melhor porque a gente tinha terra lá,
nós vendemos, nós vendemos, mas foi uma cabeçada que nós deu, meu irmão
que fez o negócio, eu ainda era de menor, assim, não era de menor né,
acompanhava a cabeça dele né. Nós fomos pra Unaí depois, de pro nosso
Goiás, nós voltamos pra Unaí, eu filiei no sindicato né, no sindicato do
trabalhador rural, lá em Unaí, inclusive até paguei um pouco, que ainda tenho
até o carnê aqui que eu pagava, depois a gente viu que não estava
desenvolvendo né. Depois, em Uberlândia, a gente sempre falava que queria
ir pra roça, que estava com vontade de ir pra roça, que queria um pedacinho de
chão pra criar as criação, é a raiz né. Em Uberlândia, eu trabalhava de
servente de pedreiro, trabalhei na prefeitura, mas quando passei a ficar
desempregado ficou difícil demais morar lá, dificuldade de vida, tudo era caro,
não tinha condição, aí vimos pra
128
.
Portanto, por meio das ações de resistência concretizadas nas ocupações de terra,
os trabalhadores, hoje assentados na fazenda Rio das Pedras, tentaram estabelecer novos
meios de vida, questionando também a ordem e a ideologia do progresso estabelecida
no município de Uberlândia. Dessa forma, no processo de construção e reconstrução das
relações sociais que foram sendo tecidas no cenário econômico e político de Uberlândia,
estabeleceu-se um sistema de coexistência, permeado por aproximações de relações
econômicas e culturais entre sujeitos com interesses particulares diferenciados. Nessas
habitacionais da Prefeitura e do governo federal. O reflexo do crescimento desenfreado da população e a
relação com o déficit da habitação é ainda maior, se for levado em consideração que as pessoas que
comprometem mais de 30% dos seus salários com aluguel também entram nesta conta”. Além disso, “em
população, o Município é o terceiro maior do Estado, mas também ocupa a mesma posição no ranking de
criminalidade, ficando atrás somente de Belo Horizonte e Contagem. uma verdadeira escalada na
quantidade de crimes violentos (homicídios tentados e consumados, estupros, seqüestros e roubos). Em
2000, foram 9,5 casos para cada grupo de mil habitantes; em 2003, o total subiu para 12,69”. In:
FERNANDES, Arthur. Crescimento é motivo de preocupação: População aumenta de forma acelerada,
problemas sociais e urbanos também. Correio de Uberlândia. 28/11/2004. Disponível em:
www.correiodeuberlandia.com.br. Acesso: 20/08/2006.
128
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
50
relações, sobressaíram as atuações em torno dos ideais dos segmentos político e
economicamente mais influentes, mas possibilitando margens, ao mesmo tempo, às
interações entre indivíduos com posições sociais e práticas culturais diferenciadas, em
que as insatisfações das camadas populares com a ordem econômica e social da cidade
impulsionaram ações conjuntas na busca por mudanças.
Fundamentos políticos, jurídicos e culturais das ocupações de terra
Partindo-se da compreensão de que as idéias que permeiam os espaços sociais,
longe de serem simples imposições dos setores dominantes, na realidade, “circulam”
129
entre as pessoas, é possível constatar também que as representações simbólicas dos
grupos de maior poder econômico e político penetraram nos setores populares,
adquirindo diferentes significados
130
, e caracterizando relações de influências mútuas,
que se dão ora por ações de adesão a essas idéias-práticas, ora de repulsa às mesmas.
Nesse sentido, torna-se inegável a assertiva de que todas as experiências vivenciadas
social e historicamente pelos homens, são sempre permeadas por relações de
exploração e resistência e se expressam nos conflitos, nas lutas, mas também nas
acomodações”
131
, compondo dimensões próprias das relações sociais.
Dessa maneira, diferenciados tipos de relações de troca de práticas culturais
acontecem no cerne das diversas ações dos sujeitos sociais, porque, em última instância,
não existe apropriação cultural que não seja, ao mesmo tempo, uma reelaboração de
transações recíprocas provenientes de uma interação cultural. Assim, o desafio torna-se
“estudar a história cultural como um processo de interação entre diferentes
subculturas”
132
. Processo em que interagem diferentes formas de ser, agir e pensar
conjuntamente vivenciadas e decodificadas conforme visões de mundo. Para tanto,
é necessário evitar duas supersimplificações opostas: a visão de cultura
homogênea, cega às diferenças e conflitos, e a visão de cultura essencialmente
fragmentada, o que deixa de levar em conta os meios pelos quais todos criamos
nossas misturas, sincretismos e sínteses individuais ou de grupo
133
.
129
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. Trad. Maria Betania Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
130
CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Trad. Maria Manuela
Galhardo, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, Lisboa: Difel, 1990.
131
.ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos trabalhadores
no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 1996. p. 31.
132
BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000. p. 259.
133
Idem. p. 267.
51
Os sentidos que os sujeitos atribuem às suas ações não se relacionam apenas às
condições materiais, mas também às várias maneiras como vivenciam o mundo e as
relações sociais tecidas, percebidas e simbolicamente representadas em seus imaginários
sociais. Do mesmo modo que as experiências sociais são representadas nas convicções,
perspectivas, interesses, valores, sentimentos e sentidos os mais variados possíveis,
revelando atuações tão diversificadas como inesperadas, assim também,“as referências
simbólicas não apenas identificam os indivíduos ou segmentos sociais que, de uma ou
de outra forma, neles se referenciam, mas também definem os elementos norteadores
dos princípios de inteligibilidade presentes nesses mesmos agentes”
134
. As referências
simbólicas, por meio das quais os indivíduos sentem e articulam as relações que
possuem com seus grupos, processam-se nas práticas culturais, nos modos de ser, agir e
pensar o mundo à sua volta. Contudo nenhuma interação cultural ocorre de maneira
linear, partindo em definitivo, de uma forma ideológica sobre outra, que, imediatamente
a congrega. Diferentemente,
o processo cultural não deve ser considerado como simplesmente adaptativo,
extensivo e incorporativo. Rompimentos autênticos, dentro e além dele, em
condições sociais específicas, que podem variar de um isolamento extremo a
colapsos pré-revolucionários e atitude revolucionária real, ocorrem com
freqüência
135
.
Nesse sentido, são como sintomas de rompimentos e não aceitação da cultura
política estabelecida no município de Uberlândia que as ações dos sujeitos moradores
do assentamento Rio das Pedras estão sendo aqui consideradas, designadamente a
atuação de todos os que vêem, nos movimentos sociais diversos, uma forma de procurar
novos caminhos para suas vidas, demonstrando ações de resistência à ordem social
instituída. Assim, os movimentos de trabalhadores urbanos em reivindicação de terra no
município constituem ações baseadas em substratos culturais e políticos inerentes às
próprias experiências dos agentes sociais em confronto por terra. Além de
caracterizarem desejos e interesses contraditórios aos defendidos pelos segmentos mais
influentes, esses eventos estabelecem, politicamente, uma articulação entre o social e
suas representações”
136
, constituindo matrizes construtoras do próprio mundo social
137
.
Ao mesmo tempo em que congregam coletividades, as diversificadas representações
134
. ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos trabalhadores
no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP, 1996. p. 193.
135
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979. p. 117.
136
ROSANVALLON, Pierre. Por uma História Conceitual do Político. Revista Brasileira de História.
São Paulo. v. 15. n. 30. 1995.
137
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Estudos Avançados. n. 11, v. 5, USP, 1991.
52
sociais comportam ainda particularidades, singularidades e formas específicas de ser e
pensar a vida. Os indivíduos percebem determinado texto ou contexto social das mais
diversas formas, a partir de diferenciados códigos de interpretação constituídos tanto por
fatores objetivos como subjetivos.
Desse modo, percebe-se que a construção do sentido atribuído a um discurso,
texto escrito ou contexto social, não é auto-explicativa, depende de fatores como a
decodificação, os propósitos e as expectativas em relação ao mesmo. Sendo assim, um
discurso, símbolo ou uma mensagem no interior de uma sociedade não constituem
realidades meramente objetivas, são apropriados e decodificados de muitos modos
138
.
Dessa forma, caracterizada como símbolo de poder e injustiça social pelos trabalhadores
sem terra, a concentração fundiária em Uberlândia representou valores embutidos no
sentimento da maioria dos assentados da fazenda Rio das Pedras, configurando a
imagem da terra enquanto elemento meramente natural, portanto, direito de todos
139
.
Essas representações em torno do direito de possuir a terra entram em
contradição com a cultura política estabelecida pelas leis brasileiras, em que a posse da
terra é fundamentada, notadamente, por aqueles que a possuem, como um direito
inalienável, ainda que desconsidere as necessidades emanadas pelos grupos sociais. O
sentido do direito à terra, acima de quaisquer necessidades sociais, nasce especialmente
da ilusão de que as leis, como tais, possuem o poder de estabelecer e materializar a
essência da justiça.
Por outro lado, ainda que teoricamente prescrita, a função social da propriedade
privada da terra no Brasil não consegue ser efetivada justamente devido à suposta
imparcialidade e objetividade das leis num meio social desordenado. Pretendendo-se
imparcial, não consegue sê-lo exatamente porque suas decisões são tomadas em meios
desiguais, sob a atuação de forças contraditórias às próprias normas e decisões jurídicas.
No caminho da realização dos significados pretensamente justos da legislação brasileira,
está presente a incapacidade de conciliar as objetividades apregoadas pelos textos
jurídicos e os meios sociais nos quais a concretização da justiça depende de decisões
diferenciadas. Ao propor decisões jurídicas objetivas e neutras, as leis agrárias não
conseguem ser justas, sobretudo por não considerar as formas desiguais do meio em que
atua. Produto de relações entre forças antagônicas, as representações sociais tecidas
138
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação. Estudos Avançados. n. 11, v. 5, USP, 1991.
139
Iraci Pedro dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
53
acerca do sentido do direito à terra, revelam conflitos concretos e simbólicos, nos quais
valores de ordem econômica, política e cultural interagem constantemente
140
.
Provando mais uma vez que não existem determinantes entre as esferas política,
econômica e cultural de uma sociedade, os conflitos que envolvem a terra no Brasil,
frutos da fusão dessas três dimensões, carregam a síntese de valores, interesses e
diferentes posições sociais advindas dessas conexões. Internamente às relações sociais,
esses elementos tomam dimensões concretas, no constante conflito ocorrido entre ação e
pensamento. Exemplos materiais e simbólicos dessas confluências ocorrem em diversos
embates sociais. Na fazenda Rio das Pedras, os sentidos e valores acerca da posse da
terra, assinalaram a cultura política dos trabalhadores, em que a necessidade atribuída à
terra antecede as leis que, portanto, representam-se em seus imaginários como forças a
serem infringidas, visando atender às provisões necessárias à vida
141
.
Ao mesmo tempo em que interagem questões de ordem política e cultural, as
ações de luta pela terra, tanto quanto as reações a elas, constituem partes das dimensões
materiais construídas em interconexão com valores atribuídos à terra. Nesse sentido, “o
evento é a relação entre um acontecimento e a estrutura (ou estruturas): o fechamento
do fenômeno em si mesmo enquanto valor significativo, ao qual se segue uma eficácia
140
Recentemente, ao ser entrevistado pela Revista Fórum, Dalmo Dallari, jurista da Ordem dos
Advogados do Brasil-OAB, falou da morosidade nos processos judiciais do massacre de Eldorado dos
Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996, quando dezenove trabalhadores sem terra foram assassinados
por forças policiais e muitos outros ficaram feridos. Entre os fatores envolvidos na demora para a punição
dos acusados, o jurista ressaltou “a intimidação dos juízes com ameaças de morte (...), porque muitas
dessas terras são públicas, são grilagens (...). muitas vezes fazendeiros, na verdade, são grileiros de luxo,
da elite”. Assim, imergidas numa sociedade em que as desigualdades econômicas imperam, muitas
decisões nos conflitos por terra no Brasil manifestam a defesa de interesses particulares, denotando a
dificuldade das leis no esforço de realizar a justiça. Ainda nesta entrevista, Dalmo Dallari apontou:
“Grande parte da população depende do favor político para ter acesso ao serviço público. Tenho viajado
muito pelo Brasil e a gente que são vários Brasis. Fui ao Amapá, por exemplo, e, conversando com o
pessoal, me disseram que boa parte da população de um determinado local tinha sido transportada pra
pelo [José] Sarney. Pega uma, várias famílias, põe no caminhão e diz ‘olha, tem uma terrinha aqui pra
vocês’. O pessoal fica agradecido, tem eleição e vota nele. É a sobrevivência das antigas oligarquias, do
coronelismo (...). É uma coação afetiva usando o serviço público. E muitos acham que o serviço púbico
realmente é um favor dado pelo governante”. Nesse trecho da entrevista, como se percebe, evidencia-se o
quanto as questões sociais no país ainda são tratadas em termos de interesses particulares, utilizando-se
do poder político, econômico e das concepções da política como favor e não direito legitimado. DALLARI,
Dalmo. Precisamos rediscutir os termos do federalismo. Revista Fórum. Ano 4, n. 38. maio/2006. p. 5.
141
Posicionamento assumido por vários moradores do assentamento Rio das Pedras, inclusive por Dona
Célia Umbelini, ao dizer que “terra é pra produzir, terra é vida, é sobrevivência no planeta, é direito de
todo mundo, se existiu um dono da terra, esse foi Deus, se nós quiser ser dono m que viver dela, ela é
nossa porque a gente precisa, é de todo mundo, menos de quem é dono e não produz”; e Juaris de Souza,
ao declarar: “se nós sabemos que uma fazenda aí ela é improdutiva, se nós for atrás da justiça pelos meios
normais, nós não conseguimos desapropriar ela nunca”. Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio
das Pedras, participante da ocupação da fazenda.; Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das
Pedras. Entrevistas concedidas em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
54
histórica”
142
. Dessa forma, na “síntese situacional” entre a “estrutura” e o “evento”,
ocorre uma “estrutura da conjuntura”, caracterizada como “a realização prática das
categorias culturais em um contexto específico, assim como se expressa nas ações
motivadas dos agentes históricos (...)
143
. De tal modo que, para promover a ão de
ocupação da fazenda Rio das Pedras, os moradores daquele assentamento foram
material e culturalmente motivados.
Assim, partindo das representações que realizam sobre o social, nas possíveis
leituras do real, realizadas mediante os diversos símbolos criados, os trabalhadores
articularam ações coletivas com sentidos que criam e recriam daquelas representações,
no processo constante de construção da cultura política. Tomando como base a noção
de político no sentido conceitual não limitado à esfera do estudo do político em sentido
restrito
144
, este trabalho entende que a análise das formas políticas deve também partir
para o plano cultural da sociedade, pela dimensão simbólica e representativa que se
concretiza nas práticas coletivas.
Com base na concepção de história política, notadamente voltada para os
aspectos culturais em constante correlação com realidades socialmente vivenciadas, o
presente trabalho concebe as ações dos trabalhadores pela terra, hoje assentados na
fazenda Rio das Pedras, como fundamentalmente políticas e de implicações econômico-
culturais. Ao questionar, por meio de ações de ocupação, a forma como se encontra
estruturado o espaço urbano em Uberlândia, em que se verifica elevado nível de
concentração de terras, muitas na forma de latifúndios, a maioria daquelas pessoas
presentes na referida ocupação apresentou sobretudo suas necessidades econômicas e
sociais, na busca de meios para assegurar sua subsistência, mas também o desejo de
retornar a um modo de vida anteriormente experimentado e no interior do qual acreditou
conseguir viver melhor.
No caso da fazenda Rio das Pedras,
a trajetória de vida dos assentados demonstra que todas as famílias são de
origem rural, cujos pais, sempre viveram no campo e a mudança para um
grande centro se deu, a exemplo de todo o país, em virtude do êxodo rural, na
perspectiva de conquista de melhores condições de vida. Houve um certo
deslocamento da prática de gerenciamento de atividades rurais, pois a maioria
142
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 15. (Grifo no original).
143
Idem. p. 15.
144
ROSANVALLON, Pierre. Por uma História Conceitual do Político. Revista Brasileira de História.
São Paulo. v. 15. n. 30. 1995.
55
trabalhava como bóia-frias em alguns meses por ano, em lavouras de café,
laranja, algodão e cana
145
.
Por outro lado, a ocupação dessa fazenda está sendo aqui também analisada
tomando por base as principais normas constantes nas leis agrárias
146
, preceitos pelos
quais o mencionado grupo de famílias justificou suas ações na realização da ocupação
da fazenda. Desse modo, decorrente e fundamentada nos princípios referentes ao direito
de propriedade privada da terra, assegurado pela legislação nacional vigente, a função
social da propriedade tem sido hoje o argumento central daqueles que se inserem nos
movimentos sociais de luta por terra. Para os movimentos sociais, o enfretamento
político entre seus militantes e os proprietários de terras latifundiárias, no Brasil, visa
garantir a efetivação da função social da propriedade privada da terra, mediante ações
de ocupação de estabelecimentos improdutivos.
Durante a ocupação da fazenda Rio das Pedras, o processo de unificação das
famílias rumo a um objetivo comum partiu da identificação de interesses e códigos
culturais entre os trabalhadores, que construíram estratégias de ação antes e durante o
conflito. Nesse sentido, é importante procurar compreender quais foram os principais
fatores motivadores que levaram aquele conjunto de famílias a se lançar na perigosa
empreitada de adentrar os limites de uma propriedade privada de terra, numa atuação,
oficialmente, situada nos contornos da ilegalidade. Numa forma de governo republicana,
fundada nos princípios formuladores do Estado Democrático de Direito
147
, em que a
defesa e a manutenção da propriedade privada
148
constituem um dos pilares centrais,
145
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
146
As leis agrárias básicas que estão sendo utilizadas aqui são a Lei de Terras (1850), o Estatuto da Terra
(1964), e a Constituição Federal de 1988 - artigos referentes à propriedade privada da terra - Capítulo III:
Da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária.
147
A concepção inicial que deu origem à noção de Estado Democrático de Direito surgiu ainda no século
XVII, e foi desenvolvida pelo pensador John Locke, crítico profundo do Estado Absolutista e um
defensor da liberdade plena, no interior da qual os indivíduos poderiam encontrar a proteção da sua vida e
da propriedade privada das suas posses. Nessa concepção, o poder político do Estado deveria partir de um
consentimento pessoal dos indivíduos, que abriria mão da liberdade do mundo natural, sem leis, para a
liberdade dentro de uma sociedade organizada pelo Estado, que, neste pensamento, possui o crucial dever
de conservar e proteger os direitos dos homens que o instituíram, entendidos como o direito à vida, à
segurança e à propriedade privada de suas posses. Ver: BOBBIO, Norberto. A teoria das formas de
governo. 3 ed. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1980. Na constituição brasileira vigente, o Estado
Democrático de Direito está disposto e assegurado sobretudo nos artigos e . Constituição da
República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995.
148
A garantia do direito de propriedade está estabelecida no artigo 5º, XXII, da Constituição Federal de
1988. Constituição da República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo:
Saraiva, 1995.
56
questiona-se, nesse ponto, de onde partiram os elementos culturais e políticos que
possibilitaram aos sem-terra encontrarem legitimidade
149
nos seus atos.
Conforme entrevistas realizadas com moradores da fazenda Rio das Pedras, uma
justificativa para a efetivação da ocupação da fazenda pautou-se na argumentação de
que a terra não deve permanecer improdutiva, caso contrário, não apenas pode, como
precisa ser ocupada por aqueles que dela dependem para assegurar sua sobrevivência.
Nas palavras de Célia Umbelini, moradora do assentamento, o não uso da terra deveria
efetivar sua desapropriação legal:
Você vê, tem tanta terra aí, terra devoluta em nosso país adoidado, e o povo
se matam por causa de terra. Se tivesse uma lei que realmente funcionasse,
isso não existia, porque a lei falava, não, essa terra não está produzindo, então
eles vão produzir e acabou, não é verdade? Essa terra é pra produzir, mas a lei
não funciona, quando é pra ajudar o pobre do trabalhador não existe lei, não
existe justiça, só funciona pro lado deles, pro lado dos latifundiários
150
.
De forma geral, a relação entre propriedade privada e utilidade da terra, marca
inteiramente a argumentação dos agentes acerca das ocupações de terra realizadas nos
diversos movimentos sociais em reivindicação por reforma agrária. Contudo essa
maneira de caracterizar o direito relativo à posse e à manutenção da propriedade privada
da terra não se restringe aos pressupostos considerados apenas pelos militantes dos
movimentos organizados. A própria Constituição Federal, de 1988, preceitua esse
denominador, quando atesta o direito de propriedade privada da terra. Ao mesmo tempo
em que as leis agrárias brasileiras estabelecem a defesa da propriedade privada da terra,
conceituam normas para que esse direito possa ser assegurado. Para que seja então
considerada em pleno estado de cumprimento às determinações jurídicas da legislação
agrária, a propriedade da terra deve atender à sua função social
151
:
A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando,
simultaneamente: a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos
trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias; b) mantém níveis
satisfatórios de produtividade; c) assegura a conservação dos recursos
149
Conforme Paulo Torminn Borges, “legítimo é aquilo que está fundado em título jurídico”. In:
BORGES, Paulo Torminn. Institutos básicos do direito agrário. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 140.
150
Célia Ubelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
151
Importante ressaltar que o que determinou o preceito legal da função social da propriedade privada da
terra foram as pressões e ações reivindicatórias dos trabalhadores sem terra no século XX, através do
acúmulo das experiências políticas dos diversos conflitos por terra que atravessaram a formação dos
movimentos messiânicos, desde o final do século XIX, e se prolongaram por toda a primeira metade do
século XX, transformando-se, após 1970, nos movimentos sociais de luta pela terra. Ver: MORISSAWA,
M. A História da Luta pela Terra e o MST. São Paulo: Expressão Popular, 2001.
57
naturais; d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de
trabalho entre os que a possuem e a cultivam
152
.
Mas, antes do Estatuto da Terra, a função social já estava entre os postulados das
leis agrárias. Assim, a emenda constitucional 10, de 9 de novembro de 1964, foi um
marco no estudo do Direito Agrário, ao reconhecer oficialmente a autonomia da
disciplina. “Desde então, o novel ramo do direito, incluído na alínea a, inciso XV, do
art. do texto constitucional, disciplinou as relações emergentes da atividade rural,
com base na função social da terra”
153
. Na seqüência, o Estatuto da Terra foi editado e
zelou pela função social da propriedade da terra. Analisando o estado atual da questão,
tem sido papel de discussão a inserção do artigo 185 na Constituição Federal de 1988,
que prevê que a propriedade produtiva não seria expropriada. Posteriormente, a Lei
8.629, de 25 de fevereiro de 1993, “tende a proteger a propriedade improdutiva”
154
.
No entanto, teoricamente, o não uso da terra gera imposto territorial progressivo e nos
casos em que ocorre desapropriação para fins de reforma agrária, em se tratando de
latifúndios, o pagamento da terra nua seria mediante Títulos da Dívida Agrária-TDAs, e
em dinheiro somente as benfeitorias
155
. Por outro lado, apesar de a legislação agrária
legitimar a posse da terra, o faz nesse sentido, referindo-se apenas às terras devolutas
156
.
Assim, a legitimação da posse não incide sobre as terras em geral. Mas, para efeitos de
regra, são legitimadas, exclusivamente, as posses ou ocupações realizadas numa área de,
no máximo 100 hectares. Para tanto, não basta que o ocupante diga ser posseiro, torna-
se necessária também a comprovação de ocupação da terra por meio da sua produção.
Nessa direção, o Estatuto da Terra determina:
152
Art. 2º, §1º. Estatuto da Terra. 14 ed. (atual. e ampl). o Paulo: Saraiva, 1999. A função social da
propriedade rural também está teoricamente assegurada na CF/1988 Art. 186. Constituição da
República Federativa do Brasil: Promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo: Saraiva, 1995.
153
COSTA, Hélio Roberto Nóvoa da. Abordagem Constitucional da Reforma Agrária. Revista de Direito
Agrário. Ano 16, n. 14. 2º semestre. Ministério do Direito Agrário. Brasília, 2000. p. 30.
154
COSTA, Hélio Roberto Nóvoa da. Op. Cit. p. 32.
155
Estatuto da Terra. Op cit.
156
Terras devolutas “são terras do governo que já foram entregues a um fazendeiro e depois devolvidas”.
Glossário da Reforma Agrária. Veja on line. Disponível em: www.veja.abril.com.br/idade/exclusivo. E de
acordo com o Estatuto da Terra, “as terras desapropriadas para os fins da Reforma Agrária que, a
qualquer título, vierem a ser incorporadas ao patrimônio do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária,
respeitada a ocupação de terras devolutas federais manifestada em cultura efetiva e moradia habitual,
poderão ser distribuídas: I - sob a forma de propriedade familiar, nos termos das normas aprovadas pelo
Instituto Brasileiro de Reforma Agrária; II - a agricultores cujos imóveis rurais sejam comprovadamente
insuficientes para o sustento próprio e o de sua família; III - para a formação de glebas destinadas à
exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agro-industrial, por associações de agricultores organizadas
sob regime cooperativo; IV - para fins de realização, a cargo do Poder Público, de atividades de
demonstração educativa, de pesquisa, experimentação, assistência técnica e de organização de colônias-
escolas; V - para fins de reflorestamento ou de conservação de reservas florestais a cargo da União, dos
Estados ou dos Municípios”. Capítulo II: Da Distribuição de Terras. Art. 24. Estatuto da Terra. 14 ed.
(atual. e ampl). São Paulo: Saraiva, 1999.
58
Todo aquele que, não sendo proprietário rural nem urbano, ocupar por dez
anos ininterruptos, sem oposição nem reconhecimento de domínio alheio,
tornando-o produtivo por seu trabalho, e tendo nele sua morada, trecho de
terra com área caracterizada como suficiente para, por seu cultivo direto pelo
lavrador e sua família, garantir-lhes a subsistência, o progresso social e
econômico, nas dimensões fixadas por esta Lei, para o módulo de propriedade,
adquirir-lhe-á o domínio, mediante sentença declaratória devidamente
transcrita
157
.
Portanto, a legislação agrária não fornece aberturas à legitimação da ocupação
de propriedades privadas da terra, ainda que sejam latifundiárias, causando, desse modo,
um contra-senso dentro do que a própria lei determina. Ao mesmo tempo em que a lei,
teoricamente, condena a existência do latifúndio improdutivo, na prática da ocupação
dessas áreas, realizadas no sentido de questionar e averiguar a ocorrência dos latifúndios
nas terras brasileiras, para que cumpram sua função social, classifica como ilegítimas as
ações efetuadas na própria direção do que a legislação avalia como função social da
propriedade, assegurada na condição de que se mantenha produtiva.
Considerando que “para que a propriedade cumpra sua função social ela
precisa respeitar os direitos trabalhistas, ela precisa respeitar o meio ambiente e
precisa também valorizar a produção”
158
, a não realização, por parte do Estado, da
desapropriação direta das propriedades rurais mantidas em condições de latifúndios por
improdutividade, constitui um estado de negação ou incoerência com os determinantes
apregoados pela própria lei agrária. Porém, ainda assim, as desapropriações de terras
por interesse social, ocorridas essencialmente devido às pressões das ocupações de terra
sobre o Estado, referem-se a propriedades improdutivas, terras cujo total da produção
não alcança 80% de aproveitamento
159
.
Por outro lado, torna-se necessário ressaltar que não apenas quando se trata das
ações legais realizadas especificamente no cerne das resoluções dos diversos conflitos
agrários, como nas decisões judiciais de forma geral, nas normas jurídicas, não existem
regras absolutas ou preceitos terminantemente objetivos. Essa característica inerente ao
Poder Judiciário pode ser constatada pela assertiva de que “as leis, ainda que
157
Dos Ocupantes de Terras Públicas Federais. Art. 98. Estatuto da Terra. 14 ed. (atual. e ampl). São
Paulo: Saraiva, 1999.
158
Dom Tomás Balduíno. Palestra proferida em 10 de abril de 2006 durante o Simpósio Nacional de
Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas. Evento realizado nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006,
na Universidade Federal de Uberlândia, promovido pelo Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos
Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-MG/TM: Universidade Federal de Uberlândia/MG.
159
Para saber se uma propriedade territorial é ou não produtiva, o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária-INCRA, avalia o Grau de Utilização da Terra-GUT. “O GUT determina que 80% da
propriedade esteja em plena produção para que não seja considerada improdutiva”. Uberlândia assiste à
primeira ocupação de terras. Correio de Uberlândia. Ano 54, n. 17458, p. 9, de 15/04/1997.
59
formuladas para responder às necessidades que emanam do social, trazem no seu bojo
muito de abstrato e geral, não conseguindo prever todas as possibilidades que os
contextos histórico-sociais oferecem”
160
. Dessa forma,
ao tomar contato com a legislação, o historiador se depara, freqüentemente,
com a tentativa, por parte de seus agentes produtores, de torná-la um
componente de análise completamente destituído de qualquer contradição
interna. (...). Como regra, parece ser um escrito elaborado a partir de
concepções irrefutáveis da melhor cnica jurídica. (...). Dessa mesma forma, o
processo jurídico procura por todos os meios escamotear a existência de
conflitos sociais nos quais estão inseridos os seus agentes
161
.
Porém, quando se trata das diversas sentenças ocorridas na esfera do direito,
muito frequentemente, as palavras, que são utilizadas no jogo argumentativo, criam
realidades distintas entre a acusação e a defesa. Tais palavras criam significados
diferentes, abrem condições para se pensarem as artimanhas utilizadas no jogo de
aplicação da lei (...)”
162
. Assim, torna-se necessário observar que dentro dessa realidade
jurídica, as deliberações pautadas nos textos normativos, em última instância, passam
pelo crivo da interpretação das normas e da noção que o próprio legislador mantém do
sentido do que considera justo e direito. Entretanto, diante de tantos enfoques e
abordagens diferenciadas de análise que poderiam compor uma pesquisa sobre conflitos
agrários, e na busca do entendimento sobre outros aspectos relevantes que envolveram e
estimularam as ações daquele grupo trabalhadores, hoje assentado na fazenda Rio das
Pedras, este trabalho procurou levar em conta ainda suas representações culturais.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que concentraram aspectos políticos e
econômicos, as atuações dos moradores do assentamento Rio das Pedras manifestaram
representações simbólicas, nas experiências situadas no plano das imagens e percepções
desses sujeitos no relacionamento entre seus grupos. Para alguns, o deslocamento para a
cidade não significou o esquecimento dos valores interiorizados ao longo de suas
experiências de vida no campo, muitos desses códigos culturais permaneceram em seus
imaginários sociais.
Assim, ao ser inserida a dimensão cultural neste estudo, está sendo levando em
conta que as representações simbólicas, construídas pelos sujeitos em luta pela terra,
160
SILVA, Jeanne. Sob o Ju(o)go da Lei: Confronto Histórico entre Direito e Justiça no Município de
Uberlândia /MG. Dissertação/Mestrado em História Social. Uberlândia: UFU, 2005. p. 12.
161
SANTOS, Paulo Roberto de Oliveira. Para Além da Lei: Ocupações de um Território Legal-Iturama e
Campo Florido/MG. 1989 a 1993. Dissertação/Mestrado em História Social. São Paulo: PUC/SP, 1997. p. 17.
162
SILVA, Jeanne. Sob o Ju(o)go da Lei: Confronto Histórico entre Direito e Justiça no Município de
Uberlândia /MG. Dissertação/Mestrado em História Social. Uberlândia: UFU, 2005. p. 130.
60
caracterizam as expressões efetivadas sempre em constante estado de relação de
interdependência com as ações realizadas, num processo constituinte da própria
realidade. Entendimento que parte da constatação de que um determinado contexto
social pode e deve ser apreendido de infinitas e diferenciadas maneiras, mediante vários
códigos e sentidos, comportando fatores objetivos e subjetivos. Do mesmo modo, “um
evento transforma-se naquilo que lhe é dado como interpretação”, porém “somente
quando é apropriado por, e através do esquema cultural, é que adquire uma
significância histórica
163
. Portanto, essa distinção objetivada entre conceitos culturais
e atividades práticas é falsa na prática e absurda na teoria”, naturalmente porque, em
qualquer caso, “toda práxis é teórica”
164
, sendo em todo caso impossível, na análise do
social, a compartimentação entre prática e teoria, ação e pensamento, categorias sociais
intrinsecamente interligadas.
Tanto as idéias, como as práticas dos sujeitos históricos instituídas em ação, não
caracterizam dimensões opostas, mas integradas. Assim, quando o imaginário social é
abordado num processo de investigação da realidade, está tratando de um sistema de
idéias e imagens de representação coletiva”
165
, que, comportando aspectos simbólicos,
configuram eventos, ao mesmo tempo, “construídos a partir das experiências dos
agentes sociais, mas também a partir dos seus desejos, aspirações e motivações”
166
.
Desse modo, os anseios e objetivos manifestados nas atuações dos trabalhadores da
fazenda Rio das Pedras, que motivaram suas ações no processo de luta pela terra,
situam-se no plano cultural, mas em constante correlação com aspectos materiais, num
contínuo processo de construção e reconstrução, incorporarando diferenciadas formas
de ser, de agir e de pensar, presentes entre aquele grupo.
Por isso mesmo, uma das necessidades ao se trabalhar com as representações
sociais é a de evitar o risco de se lidar com a sociedade como algo homogêneo. As
representações simbólicas inseridas nos imaginários sociais devem ser compreendidas
como lugar onde também se processam conflitos sociais, efetivados nos espaços
concretos, mas, sobretudo, no plano dos valores e símbolos culturais. Partindo-se dessa
compreensão, ao ser aqui abordado o conceito de cultura, de modo algum seu sentido se
163
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 15.
164
Idem. p. 192. (Grifo no original).
165
PESAVENTO, Sandra Jatayh. Em Busca de Uma Outra História: Imaginando o Imaginário. Revista
Brasileira de História. p. 9.
166
BACZKO, Bronislaw. Imaginação Social. In: Anthropos-Homem, Enciclopédia Einaudi, vol. 5, Porto,
Editora Einaudi-Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985. p. 311.
61
refere a determinadas visões de cultura que a tomam como sinônimo de belas artes,
espetáculos de entretenimento ou a limitam a formas específicas de produção
intelectual
167
. Pelo contrário, o estudo parte da assertiva de que a cultura de uma
comunidade será portanto a totalidade das linguagens e das ações simbólicas”
168
que
são socialmente processadas nesse meio, produzidas no cerne de todas as relações entre
sujeitos sociais.
Nesse sentido, a cultura dos agentes está muito além das manifestações
puramente artísticas ou intelectuais realizadas em suas experiências de vida, pois, na
realidade, essa dimensão conforma diversificadas configurações, compreendendo
tudo aquilo que expressa o seu próprio modo de ser e de viver, contribuindo
para a constituição de uma dada ordem social e, ao mesmo tempo, em seu
processo de elaboração e reelaboração, apresentando-se, também, como
resultado de práticas concretamente vivenciadas
169
.
Processo fundador e transformador de hábitos, crenças, costumes e valores,
constituidor de modos de vida, é na cultura que se criam os sistemas de identidades
170
,
delineados por sucessivas formas de interações em que ocorrem inúmeras e diferenciadas
elaborações e reelaborações de códigos, sentidos e valores culturais. Assim, o presente
trabalho concebe a relação entre história e cultura, de maneira que “a história é ordenada
culturalmente de diferentes modos nas diversas sociedades, de acordo com os esquemas
de significação das coisas”, da mesma forma, “o contrário também é verdadeiro:
esquemas culturais também são ordenados historicamente porque, em maior ou menor
grau, os significados também são reavaliados quando realizados na prática”
171
, o que
ocorre em todas as dimensões sociais. Dessa forma:
Toda história, qualquer que ela seja, econômica ou social, demográfica ou
política, é cultural, isto na medida em que todos os ritos, todos os
comportamentos, todos os fenômenos objetivamente mensuráveis, são sempre o
167
.ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos
trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP,
1996. p. 36. (Grifos no original).
168
Roger Chartier. História Cultural. Palestra pronunciada no dia 21 de outubro de 2006. Instituto de
História/Universidade Federal de Uberlândia-UFU. Uberlândia/Minas Gerais, 2006.
169
.ALMEIDA, Antônio de. Lutas, Organização Coletiva e Cotidiano: cultura e política dos
trabalhadores no ABC Paulista 1930-1980. Tese/Doutorado em História Social. São Paulo: FFLCH/USP,
1996. p. 36.
170
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. pp. 17-26.
171
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7.
62
resultado dos significados que os indivíduos atribuem às forças, às falas, às
ações
172
.
Quando agem, sempre conforme um determinado esquema cultural estabelecido
na realidade, as pessoas organizam seus objetivos, dando sentido às suas ações, mas,
muitas vezes, ocorre também desses sujeitos repensarem os esquemas culturais que lhes
são apresentados no exato momento em que praticam suas ações. Portanto, a cultura
tanto pode ser “historicamente reproduzida na ação”, quanto alterada historicamente
na ação”
173
, numa constante relação de interação entre prática e pensamento.
Na experiência analisada, as investigações daquele grupo de trabalhadores
demonstraram que, diante de situações de exclusão social a que estavam submetidos,
consolidada na falta de acesso à sobrevivência mais digna na cidade, constatou-se que a
vontade consciente de mudar suas condições de vida, mesmo correndo os riscos
advindos de uma ocupação de terra, e a esperança de realizar as necessidades materiais,
foram fatores que motivaram a maioria daquelas pessoas em suas ações, em uma
atuação de coragem que integrou valores e necessidades. Entre os fatores subjetivos, em
constante interação com realidades objetivamente apresentadas socialmente, o maior
impulso rumo a mudanças, verificado nas palavras dos moradores do assentamento Rio
das Pedras, os diversos sonhos perseguidos e incorporados, muitas vezes, em seus
objetivos de vida, com o intuito de efetivar seu sentido, simbolizaram suas formas mais
efetivas, oferecendo significado às suas ações. Afinal:
Um evento não é somente um acontecimento no mundo; é a relação entre um
acontecimento e um dado sistema simbólico. E apesar de um evento enquanto
acontecimento ter propriedades “objetivas” próprias e razões procedentes de
outros mundos (sistemas), não são essas propriedades, enquanto tais, que lhe
dão efeito, mas a sua significância, da forma que é projetada a partir de algum
esquema cultural. O evento é a interpretação do acontecimento, e
interpretações variam
174
.(grifos e marcos no original).
A ocupação da fazenda Rio das Pedras teve vários significados para aqueles
trabalhadores e, entre os principais, três merecem ser destacados. O primeiro refere-se
fundamentalmente à vontade de mudar a situação de profundas dificuldades econômicas
nas quais se encontravam; o segundo relaciona-se diretamente a certo sentimento de
contestação da ordem social, marcado por críticas e questionamentos acerca da
172
Roger Chartier. História Cultural. Palestra pronunciada no dia 21 de outubro de 2006. Instituto de
História/Universidade Federal de Uberlândia-UFU. Uberlândia/Minas Gerais, 2006.
173
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7.
174
Idem. p. 191.
63
permanência da concentração fundiária no Brasil e, particularmente, em Uberlândia,
considerada sinônimo de injustiça social; e o terceiro, que está intrinsecamente ligado
ao primeiro, diz respeito ao peso que o plano cultural de suas experiências de vida,
definidamente representativo dos seus modos de vida, exerce sobre suas ações.
Nesse ponto, é visível a importância em se analisar as ações daqueles sujeitos
levando-se em consideração a identidade de interesses no interior do grupo, e que
naquele momento permeou as idéias e os sentimentos dos envolvidos na ocupação.
Quando os trabalhadores realizaram a ocupação, suas ações partiram de sua realidade
existencial, fruto das experiências acumuladas nas trajetórias de vida concretamente
verificadas e culturalmente sentidas.
Foram marcantes a sensação e a efetivação de uma identidade coletiva nesse
grupo de trabalhadores em ações conjuntamente realizadas, predominando o anseio pela
concretização de um mesmo objetivo e de interesses semelhantes, norteadores do efeito
de identidade coletiva. Para uma melhor compreensão desse aspecto, as apreciações de
Thompson oferecem contribuições, quando o autor aponta as experiências vivenciadas
conjuntamente entre um grupo de pessoas ou entre uma classe social como constitutivas
de identidades e de interesses partilhados, sobretudo, em momentos de extrema
opressão coletivamente vivenciada.
Nesse processo de experiência, constrói-se uma identificação de interesses
comuns no interior do grupo social, contrários ou antagônicos aos de outros grupos,
contra os quais o primeiro oferece ações de resistência coletiva
175
. A construção de
identidades entre os trabalhadores em luta pela terra, na fazenda Rio das Pedras, integrou
entre seus componentes essenciais, a experiência, a história, a cultura e a economia.
Produtos de um processo histórico semelhante, filhos de períodos históricos próximos,
submetidos a condições econômicas parecidas, os trabalhadores da fazenda Rio das
Pedras adotaram medidas em torno de um objetivo comum, identificando interesses
construídos com base em experiências de luta conjuntas.
Portanto, neste trabalho, partindo da análise presente em Thompson, buscou-se
compreender a identidade coletiva configurando-se no momento em que as famílias que
ocuparam a fazenda Rio das Pedras e que se encontravam numa situação social
semelhante, deram-se conta de que seus interesses identificavam-se entre si, e de que,
conjuntamente, poderiam formar uma força política mais intensa na realização de seus
175
THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa. vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
64
objetivos, podendo se considerar que a experiência vivenciada coletivamente pelo grupo
exerceu um papel fundamental. Nesse sentido, cabe reconhecer que tanto a concentração
de terras em Uberlândia, quanto as difíceis condições de vida pelas quais o grupo de
famílias passava em seus municípios ou em cidades vizinhas a Uberlândia foram fatores
motivadores de suas ações, que, somados a valores culturais relacionados aos modos de
vida do meio rural e à concepção de que talvez nesse espaço a vida seja melhor, foram
também forças subjetivas na luta pela terra.
Como a maioria dessas pessoas teve uma origem rural, muitas famílias, ao
chegarem à cidade de destino, não conseguiram emprego imediato, porque não tinham
conhecimentos prévios sobre os trabalhos oferecidos nessa nova realidade que lhes era
apresentada. Contudo não são apenas as dificuldades de vida na cidade que foram
enfatizadas como um dos fatores que levaram à participação, mas a identidade com os
modos de vida no campo e a inadaptabilidade no meio urbano. Quando foi questionada
sobre os motivos da participação na ocupação, isso pôde ser claramente percebido nas
palavras de Célia Umbelini, moradora assentada na fazenda Rio das Pedras:
A gente sempre foi criada na roça, passou um tempo na cidade, mas sempre
queria ir pra roça, a gente não adapta na cidade assim né, fiquei uns anos
enquanto meus filhos precisavam de mim pra ir pra escola né, aí tinha
passado a fase e o meu velho tinha o sonho de uma terra, houve essa chance
da gente adquirir a terra, a gente veio
176
.
Desse modo, com o passar do tempo e com a busca incessante por trabalhos que
lhes dessem condições de permanecer na cidade, muitos se empregaram como pedreiro,
jardineiro, carpinteiro, ou como funcionários domésticos em residências, sempre em
condições difíceis. Vivendo em casas alugadas e esforçando-se para manter os gastos
com água, energia e alimentação, eram levados a buscar meios de retorno ao campo
177
.
Nas entrevistas, muitos trabalhadores ressaltaram as difíceis condições em que viviam
nas cidades, e mesmo quando não deixavam de considerar certas comodidades que o
meio urbano oferecia em detrimento do campo, como a proximidade das escolas e da
assistência à saúde, também se referiam quase sempre ao campo como um lugar em que,
apesar de todas as dificuldades na fase de acampamento, talvez pudesse proporcionar
melhores condições de vida, como parecia ser outrora. Sobre isso, Célia ainda declarou:
176
Célia Ubelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
177
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
65
Eu acho assim, que era aquele sonho de adquirir a terra que a gente nunca teve
né, quer dizer, eu nunca tive uma casa que era minha, que eu morei na casa do
meu sogro esses anos tudo que eu vivi na cidade, a gente trabalhava,
trabalhava, imaginando comprar um terreno, mas nunca dava certo, sabe.
tinha aquele sonho contínuo, porque eu odeio mudar, sabe... Eu imaginava que
ia ser igual quando eu vivia na roça com meu pai, porque lá, quando a gente
vivia na roça com meu pai, mas era terra de cultura né e tal, então a gente não
comprava quase nada nessa vida, comprava açúcar, sal, bombril, soda pra
minha mãe fazer sabão e eu vou te contar que era só!
178
.
Para alguns, a vontade e o sonho de voltar a viver no campo após permanecer
tanto tempo na cidade não estava relacionada apenas com as dificuldades enfrentadas no
meio urbano e as insatisfações em relação às condições de vida, mas também ao sonho
acompanhado da lembrança de outros momentos em que a vida no meio rural foi sendo
fundamentada nos costumes e nas maneiras de se viver no campo. Neste sentido, ao
falar de sua relação com os modos de vida do campo e da ansiedade sentida em retornar
ao antigo estilo de vida, Lúcia Helena fala dos motivos da participação na ocupação:
O motivo principal é porque toda vida a gente trabalhava para patrões, e eu
resolvi ser patroa também, ser independente, vontade de ter a terra própria e
trabalhar nela, porque toda vida a gente trabalhou em fazenda, desde que eu
tinha sete anos de idade, meu pai morava na roça, então eu tinha
experiência. Eu creio que, se fosse pra mim morar na cidade, eu não queria
não, de jeito nenhum. Eu vou na cidade toda semana, eu fico doidinha pra
voltar pra trás, nossa, aquele barulho, é a conta de descer do ônibus, a minha
cabeça começa a doer, o clima é diferente, uma paz, ali na porta da minha
cozinha, você levanta, você um punhado de canarinho, coisinha mais
linda, eu jogo quirela pra eles, eles fica ali sabe, é bom demais!
179
.
Outro exemplo dessa forte ligação mantida com o campo e do anseio de retornar
a esse espaço de convivência de diferentes modos de vida foi percebido na fala de
Fausto Lopes Nascimento, assentado na fazenda Rio das Pedras, ao declarar:
A minha vida, pra mim, que gosta de roça, melhorou, eu nasci e criei em roça,
não adaptei na cidade, pra mim ta melhor aqui, eu estando mexendo com as
criação, com as plantas, é a minha vida. Eu dediquei a minha vida pra isso,
então eu amo a terra, amo as criação, amo as plantas, então pra mim foi ótimo.
E eu ainda tô aqui até hoje porque eu nasci e me criei na roça, eu sou lutador,
porque senão eu não estava aqui mais também não, já tinha entregado isso
aqui pra outra pessoa, mas eu fui criado na roça, criado com sacrifício, por
isso que a gente ainda ta aqui até hoje
180
.
178
Célia Ubelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
179
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
180
Fausto Lopes Nascimento-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
66
Entretanto, quando a sensação de satisfação dos primeiros dias, proporcionada
pela novidade da ocupação e pelo estabelecimento das famílias acampadas na terra, na
esperança de serem assentadas, aos poucos, foi passando, e as dificuldades se tornando
rotineiras e terrivelmente progressivas, os moradores começaram a sentir o peso das
conseqüências e das condições que se seguiriam à ocupação. Como era de se esperar, os
principais problemas surgiram em razão das divergências político-ideológicas entre as
lideranças do assentamento e do movimento, e da incompatibilidade no que se refere
aos interesses mantidos entre moradores, lideranças e movimento após a instituição
formal do assentamento Rio das Pedras, como se verá adiante.
Contudo não apenas essa experiência de luta por terra, como as manifestações
dos trabalhadores em geral no Brasil, ocorridas, notadamente, a partir na segunda
metade da cada de 1980, na forma dos vários movimentos sociais organizados, se por
um lado, representaram sintomas da insatisfação e do questionamento dos trabalhadores
acerca da concentração da propriedade privada da terra no Brasil e, sobretudo, das
dificuldades de vida na cidade, por outro, serviram como base para alterações, ainda que
pequenas, na divisão das terras do campo, onde se verificam novas composições sociais.
Assim, além das diferentes formas de produção do trabalho no campo brasileiro,
decorrentes de transformações ao longo das décadas de 1980 e 1990
181
, também se
observam algumas mudanças na configuração dessa população.
Essas alterações puderam ser visualizadas na marcante presença de inúmeros
grupos urbanos, a maioria de origem rural, que participaram dos processos de luta pela
terra, como também de famílias de trabalhadores rurais que retornaram aos seus lugares
de origem, de modo que todos esses sujeitos, fixados no campo por meio da participação
nos movimentos organizados de reivindicação por terra, constituem novas categorias
sociais nesse meio. Apesar de não expressarem significativo progresso em termos de
divisão e desconcentração das terras rurais, as mudanças na estrutura agrária do campo
marcam um incipiente avanço nesse sentido, proporcionando, ainda, novos contornos à
população rural. Como efeito desse processo, torna-se comum a existência de uma nova
mentalidade com caracterizações políticas e culturais construídas mediante as diversas
experiências vivenciadas nos movimentos organizados, elaborando códigos, sentidos e
valores diferenciados no campo.
181
SILVA, José Graziano da. O novo rural brasileiro. Campinas: São Paulo, 1999. pp. 93-102.
67
CAPÍTULO II
AÇÕES COLETIVAS E EXPERIÊNCIAS NA
OCUPAÇÃO DA FAZENDA RIO DAS PEDRAS
Construção do trabalho de base
Marcando presença como o primeiro conflito por terra ocorrido em Uberlândia,
a ocupação da fazenda Rio das Pedras não foi articulada e realizada rapidamente, houve
várias ocasiões anteriores em que trabalhadores de diversas partes do Triângulo Mineiro,
sobretudo de Campo Florido, Capinópolis, Limeira D’Oeste e Uberlândia
182
, e
lideranças do Movimento de Luta pela Terra-MLT, atual Movimento Terra Trabalho e
Liberdade-MTL, encontraram-se, discutiram e prepararam sua realização. Denominado
trabalho de base, esse período foi destinado à organização das famílias interessadas na
ocupação da fazenda Rio das Pedras. Primeiramente, os contatos das lideranças do
movimento com os trabalhadores iniciaram-se pela interlocução com militantes e
trabalhadores que haviam sido assentados em outras fazendas da região, de modo que,
no começo, as discussões sobre a ocupação se davam entre lideranças do movimento e
militantes de cidades da região
183
.
A partir dessas relações de trocas de experiências nos processos de luta por terra,
os contatos foram se ampliando e, à medida que mais famílias aderiam ao plano de ação
desse grupo, novas lideranças surgiam, possibilitando maior intercâmbio com outras
famílias de trabalhadores. Desse modo, “para a ocupação da área, na época o
Movimento de Luta pela Terra-MLT, fez um trabalho de organização das famílias que
durou cerca de oito meses, em várias cidades vizinhas a Uberlândia. A maioria das
famílias residia na periferia de Uberlândia”
184
. Durante a efetivação desse trabalho de
base, realizaram-se diversas reuniões e encontros informais nos bairros onde moravam
os primeiros representantes que ajudaram a compor o conjunto de trabalhadores junto
com o movimento. Por intermédio das articulações entre lideranças do movimento e
trabalhadores que tinham participado de outras ocupações, sobretudo, em Campo
Florido, formaram-se lideranças naqueles quatro principais municípios, as quais se
182
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
183
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
184
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7.
68
incumbiam de buscar mais trabalhadores nos bairros dessas e de outras cidades,
principalmente nas periferias, para divulgar e elucidar o plano da ocupação, abordando
suas implicações econômicas e políticas na luta pela terra
185
. Dessa forma, a atuação do
movimento passou a ocorrer em vários bairros daqueles municípios, por meio de
militantes que, cada vez mais, iam se tornando mensageiros e divulgadores da
ocupação.
No trabalho de base realizado para encontrar pessoas interessadas na ocupação,
executado nos bairros periféricos, os militantes visitavam as casas, levando propostas e
informações acerca da realização da ocupação da fazenda, além de fichas para cadastrar
as famílias que optassem por participar. Conversando com Lúcia Helena da Silva,
coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das Pedras, ela
comentou sobre como tomou contato com o movimento e como soube da preparação da
ocupação da propriedade:
Em 96, eu morava na fazenda do município de Campo Florido, e teve uma
ocupação na fazenda Santo Inácio-Ranchinho. eu fiquei amiga dos
acampados. Depois de um ano eu mudei pra cidadezinha, que conhecia
bastante pessoas do acampamento, e alguns deles eram militantes. eles me
convidaram pra tá ocupando uma fazenda a qual eu não sabia qual era. Era
fazenda produtiva, a que eu morava, e a que eles ocuparam era fazenda vizinha
de cerca, que improdutiva. Aí, depois que eu mudei pra cidadezinha, as
pessoas do assentamento, que nesse meio de tempo era assentamento, aí eles
convidaram várias outras pessoas da cidade pra fazendo reuniões, eram
militantes do movimento que também moravam no assentamento, foram
assentados nessa fazenda
186
.
Além desse tipo de relações que possibilitaram a aproximação entre as pessoas
que viriam compor aquele grupo de militantes, também ocorriam casos em que os
trabalhadores contatavam com parentes, amigos ou conhecidos de diferentes cidades
que tinham participado de outras ocupações, para, depois, conhecerem as lideranças do
movimento e dos assentamentos conquistados na região
187
. E com o desenvolvimento
185
Fausto Lopes Nascimento-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
186
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
187
Experiência como essa ocorreu com a maioria dos trabalhadores atualmente assentados na Rio das
Pedras. Sobre isso, Célia Umbelini contou como contatou as lideranças do movimento e soube do
trabalho de base para a realização da ocupação da fazenda Rio das Pedras: “Foi através da minha cunhada
que era assentada no Campo Florido, eles disse que fazia um trabalho de base pra fazer esse
assentamento aqui né, mas eu não sabia disso, a minha cunhada que chegou lá uns quinze dias antes de vir
pro assentamento, eu falei: Ó xente, por qnão né? E vazei o cabresto pra cá. Eu não tinha contato
com ninguém do Movimento. Ela tinha que era assentada em Campo Florido, chegou o dia 14 de
abril de 1997, chegaram pra me pegar, catei eu e esse menino meu e joguei num caminhão cheio de
69
das reuniões e das trocas de idéias a respeito da ocupação, os próprios trabalhadores iam
se tornando lideranças de bairros e começavam o trabalho de base nos locais próximos
de suas moradias. Sobre esses aspectos iniciais do trabalho de organização das famílias,
Lourival Silva informou:
O trabalho [de base], nós pegamos mais pessoas daqui de Uberlândia, teve
alguns de Capinópolis, de Ituiutaba, de Uberaba, aí, às vezes você tem um
contato na cidade né, igual em Campo Florido nós tinha a Branca, que
conhecia o Divinão em Capinópolis, que conhecia o Maria, que conhecia
mais alguém em Capinópolis, então a gente vai lá, vê... O Divinão que foi o
responsável pelo trabalho em Capinópolis. Em Campo Florido, nós se
responsabilizamos porque veio pessoas do próprio acampamento, veio pessoas
da cidade, do acampamento que tinha lá, o nosso foi em 93, do Santo
Inácio Ranchinho, e esse aqui em 97. Aí, entra em contanto com as pessoas,
começa a conversar e, de repente, vo tem um grupinho ali de cinco, seis
pessoa que se interessa e vai juntando, porque um é o compadre, o outro é o
amigo, o outro é o irmão, o outro é algum parente, e vai juntando. De repente,
daquele grupo ali você detecta uma pessoa que pode começar a liderar, e de
repente você nem precisa ir lá mais, a própria pessoa do próprio bairro já vai
arregimentando as pessoas
188
.
Assim, um grupo enorme foi se constituindo, transformado os ideais e os
objetivos perseguidos por poucos em uma meta que ganhou contornos cada vez mais
coletivos. Geralmente, as reuniões se davam em três ou quatro locais de cada cidade,
duas vezes por semana e sempre durante a noite. Procurando alertar os trabalhadores
sobre os possíveis problemas que poderiam seguir à ocupação, como represálias por
parte do proprietário da fazenda, ou mesmo violência policial, as lideranças do
movimento e os militantes experientes enfatizavam a “união” como a arma mais
poderosa que o grupo deveria carregar.
Porém, mais do que pregar a união, os trabalhadores realizavam-na ao longo de
todo o trabalho de base, sobretudo, por meio de atos de solidariedade, como ajudas de
uma família à outra para pagar os custos de locomoção até os bairros onde ocorriam as
reuniões e, principalmente, com apoio moral de uma família para outra. Ademais,
tornou-se necessário apregoar a ocupação como uma tentativa coletiva para alcançar o
objetivo da permanência na fazenda, mas que não significava certeza de realização,
bagulho e vêm nós pro Rio das Pedras, não sabia pra onde era também não que eles nunca fala né”.
Após ter morado seis anos em Limeira D’ Oeste e trinta em Uberlândia, Célia disse que sua participação
foi decidida de repente, mas que, atualmente, não se arrepende da opção que fez. Célia Umbelini-
Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em
outubro de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
188
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio
das Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
70
tendo em vista tantos fatos inesperados que poderiam ocorrer por parte da reação do
fazendeiro, como da atuação da justiça em todo o processo. Desse modo, estipulava-se
que nada mais que alguns mantimentos, lonas pretas utilizadas para montar barracos
durante o acampamento
189
e uma pequena contribuição financeira para arcar com os
custos do deslocamento das famílias até a fazenda Rio das Pedras, fosse levado no dia
da ocupação.
Conforme esclareceu Lúcia Helena, durante o trabalho de base, aconteceram
várias reuniões em sua própria casa, e as principais questões discutidas, nesse momento,
eram a respeito de como e quando se daria a ocupação da propriedade. Comentando
sobre as reuniões realizadas durante o trabalho de base, Lúcia ressaltou:
A gente fazia reuniões, onde explicava algumas coisas, porque nem sempre
falava tudo, é regra do movimento e de qualquer uma ocupação. A gente sabia
que tinha uma fazenda pra ser ocupada, mas a gente não podia falar qual era e
qual o local da fazenda, devido outros movimentos ou até mesmo a própria
polícia poderia tá impedindo, ou outro movimento poderia ocupar a fazenda
antes. A base tinha que ter união, em primeiro lugar, quando a gente vai se
ocupar uma fazenda, era pra cada um dar uma contribuição pra pagando o
transporte, então de início a gente traz uma feira [mantimentos], poucas
roupas, poucas panelas, e a lona preta, que é a casa provisória, até fazer o
barraco, e a união do povo, a união faz a força, isso daí era o ponto
principal
190
.
Contudo, articulando questões de ordem preparativa, econômica e informativa,
o trabalho de base era efetuado buscando estabelecer, ao mesmo tempo, significados
que pudessem explicitar a necessidade e a importância da ocupação. De cunho social e
político, as principais discussões nesse sentido visavam questionar e alertar sobre a
ordem da sociedade brasileira, partindo de caracterizações sociais verificadas, sobretudo,
nas próprias cidades do Triângulo Mineiro, marcadas por intensas desigualdades entre
classes, concentração de renda e exclusão social.
Na concepção das lideranças do movimento e principalmente dos trabalhadores
militantes que se tornaram lideranças na região, o significado maior da ocupação da
fazenda Rio das Pedras esteve presente no anseio por transformações sociais com vistas
à concretização do socialismo, por meio das pressões econômicas e políticas decorrentes
das ocupações de terra e das mudanças sociais, a partir do campo, que surtissem efeitos
189
A fase de acampamento foi o período seguinte à ocupação da fazenda Rio das Pedras, o momento em
que os trabalhadores aguardavam acampados na fazenda sua desapropriação e instituição do assentamento.
190
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
71
no meio urbano
191
. Ações que, para os trabalhadores em geral que optaram por
participar da ocupação da fazenda Rio das Pedras, tinham, na realidade, o sentido de
procura de novos caminhos por melhores condições de vida e não necessariamente a
busca por transformações econômicas e políticas de caráter revolucionário.
Essa tentativa dos trabalhadores de redirecionar suas vidas, aliás, pôde ser
apreendida na fala do senhor Davi Agenor dos Santos que, ao informar sobre sua opção
por participar da luta pela terra, ressaltou que sua maior vontade era poder dar uma vida
mais digna para sua família e possibilitar estudo para os filhos, para que pudessem ter as
oportunidades que os pais não tiveram na vida. Comentando sua inserção na luta pela
terra, por meio da ocupação da fazenda Rio das Pedras, afirmou que seu grande sonho
era ter mais tempo disponível para passar junto da família, uma vez que, na cidade,
sempre teve que trabalhar turnos dobrados, do contrário, não manteria a saúde, a
alimentação e a moradia da família. Ao ser questionado acerca de sua opinião sobre o
socialismo, Davi respondeu que o que precisa mudar não é o sistema, mas o sentimento
das pessoas, pois, em sua opinião, nada garante que os homens se tornem mais
solidários e menos egoístas apenas pela simples mudança de sistema econômico
192
.
Por outro lado, conforme declarou Lourival Silva, muitas das insatisfações dos
trabalhadores pobres das cidades, sobretudo das periferias desses centros urbanos,
envolvem razões ainda desconhecidas para a maioria deles, razões que, em ótica de
Lourival, o trabalho de base realizado por lideranças e militantes experientes do
movimento deveria elucidar e esclarecer aos trabalhadores. Acerca do que qualificou
como sendo o “trabalho de conscientização” dos trabalhadores, a liderança informou:
A gente começa o trabalho de conscientização das pessoas, esclarecendo as
pessoas, porque até hoje as pessoas não sabem por que que está na periferia,
as pessoas não sabem porque almoça hoje e não janta amanhã, o povo não
sabe por que que tem que subir em cima do caminhão de boiadeiro todos os
dias e no fim do mês não ter dinheiro pra pagar o aluguel! E a gente que já tem
uma visão, tem um conhecimento, uma consciência de que a coisa não é assim,
e de que a sociedade tem que mudar nem que seja um pouco, a gente começa a
conversar com as pessoas. Teve época que a gente fazia reunião no Tocantins,
às vezes a gente reunia com duzentos trabalhadores! As pessoas não estão
satisfeitas! A gente ia nas periferias, onde mesmo as massas sofridas. Vai
visitando as casas, na época a gente tinha assim uma fichinha pro camarada
que tava disposto, que tava querendo participar do trabalho de base e nós ficou
191
Deodato Divino Machado-Coordenador Estadual do MTL. Entrevista concedida em dezembro de
2006. Secretaria Estadual do MTL. Uberlândia/MG.
192
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
72
oito meses, oito meses anteriores à ocupação aqui, que se deu no dia 14 de
abril de 97.
193
Portanto, toda uma preparação para a ocupação da fazenda Rio das Pedras foi
realizada por meio de encontros e reuniões nos bairros, nas casas de diversos militantes,
no sentido de construir uma identidade cultural e política em torno do objetivo e do
direito do acesso à terra. A cada reunião, ficava estabelecido que todas as famílias
presentes convidassem, para a reunião seguinte, mais trabalhadores interessados em
participar da atuação, de modo a fortalecer o movimento e o ato da ocupação. Dessa
forma, cada vez mais aumentava o número de pessoas interessadas na ocupação, e assim
o trabalho de base fortalecia-se, ao mesmo tempo em que o próprio movimento, como
organização, que buscava sua formalização, ganhava novas dimensões em que a adesão
de diferentes personagens advindos do meio urbano, a maioria delas de origem rural,
caracterizou trocas entre valores culturais e políticos diferenciados.
Contudo, é importante esclarecer que esse tipo de procedimento da organização
de famílias, visando à ocupação coletiva de terra, não se constitui como característica
exclusiva dos trabalhos de base do MTL. Na realidade, tem sido muito utilizado pelo
MST em ocupações efetuadas em todo o país, desde que o movimento surgiu. Ao
realizar pesquisa sobre os movimentos dos trabalhadores por terra, com o objetivo de
compreender a organização e a trajetória do MST em Rondonópolis, no Estado de Mato
Grosso, Maria Elza Markus esclareceu que o artifício de juntar as famílias denomina-se
‘método multiplicador’, pelo qual os trabalhadores assumem o compromisso de trazer, a
cada nova reunião, sempre mais uma família para fortalecer o grupo
194
. De outra forma,
essa estratégia representou também uma precaução das lideranças quanto às ações
policiais, pois, com maior número de trabalhadores, as reações por parte do Estado à
ocupação ficariam possivelmente mais brandas.
Para os trabalhadores, esse trabalho de base significava também o momento de
tomar contato com lideranças e obter informações necessárias sobre a ocupação. Em
entrevista realizada com Davi Agenor dos Santos, que com suas simples palavras
apontou a importância desse trabalho na organização das famílias, verificou-se o
constante contato dos trabalhadores com lideranças do MTL no decorrer do trabalho de
193
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio
das Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
194
MARKUS, Maria Elza. Trabalhadores Sem Terra: ‘Somo nóis que é o Movimento. Tese/Doutorado
em História Social: PUC/SP, 2002. p. 30.
73
base, pois era o momento de organizar as famílias e tentar convencê-las da importância
da participação de todas. A respeito disso, Davi afirmou:
No começo, é difícil demais né, hoje em dia que os sem terra expandiu né, mas
no começo era muito perseguido, era muito difícil. O João Batista não é um
líder, o povo, às vezes, fala que é líder, mas não era líder não, aí ele quis mexer
com isso, ele tinha um cômodo alugado. Aí ele começou a trabalhar de base,
a gente ia em reunião, a gente tinha reunião, fazia reunião de bairro também,
fazia trabalho, eles fala trabalho de base né, chamando as família pra gente
ocupar uma terra né, que a gente sabia que tinha muita terra aqui né, essas
terra própria pra assentamento. eles visita as fazenda, descobriram essa
fazenda aqui. Eles não plantava quase nada, tinha um gado também aqui, mas
era pouco, nós viemo pra no dia 14 de abril de 97, nós chegamos aqui de
madrugada
195
.
Para alguns, identificado como estratégia política própria de partidos, entidades
e movimentos progressistas, o método organizador do trabalho de base possui a
característica principal de estabelecer contatos diretos com os trabalhadores em geral,
onde quer que estejam. Alguns exemplos históricos, nesse sentido, constituíram,
sobretudo, as atuações das Comunidades Eclesiais de Base-CEBs, do PT e do MST
196
.
Na maioria das vezes, os trabalhos de base voltam-se à realização do objetivo de
mudanças sociais, por meio da implantação de um possível socialismo, daí ser
considerado um trabalho progressista. Propondo “organizar o conjunto da classe
trabalhadora, unindo os pobres e excluídos do campo e da cidade”
197
, o MTL adotou,
desde o início, o método referenciado no trabalho de base como forma de aproximar-se
dos trabalhadores, para os quais, por meio de diversas reuniões realizadas, tratou de
expor seus interesses sintonizados com a instituição do socialismo como meio para a
transformação social.
Ao ressaltar aos trabalhadores a necessidade de reformas agrárias, no campo e
na cidade, da preservação ambiental e do estabelecimento social da igualdade como
meio de instituir posicionamentos contra a discriminação de nero, étnica, religiosa e
de raça, O MTL enfatizou, nas reuniões do trabalho de base, principalmente a busca por
alternativas ao sistema capitalista, proposta que nasceu com o movimento
198
, sendo
195
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
196
BETO, Frei. “Eu não disse?”: Desafios à esquerda socialista. Revista Caros Amigos. Ano IX, n. 102,
set./2005. São Paulo: Casa Amarela, 2005. p. 10.
197
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE-MTL. MANIFESTO 2002 – Cartilha do MTL.
Uberlândia: MTL, 2002. p. 8.
198
4 Anos do MTL - Movimento de Empoderamento Social. Movimento Terra Trabalho e Liberdade-
MTL. Disponível em: www.mtl.org.br. Acesso: 20/12/2006.
74
perseguida desde suas primeiras ocupações de terra na Região do Triângulo Mineiro,
quando ainda era informalmente denominado MLT, e que o acompanha ainda hoje:
Para o MTL não haverá transformação social estrutural se as classes
populares, num movimento contra-cultural, não se preparem a assumir a
condição de novos agentes sociais, políticos e econômicos conscientes do seu
papel histórico, num sistema totalmente dominado pelo capital. Tendo em conta
que somente se estruturará alternativas ao sistema do capital se a classe
trabalhadora se transformar em força material na sociedade. O MTL trabalha
para organizar um amplo movimento de massas autônomo permeado por
valores alternativos que tenha influência em toda sociedade
199
.
Com o objetivo de organizar as famílias em prol de um movimento coletivo de
trabalhadores em luta pela terra, pela liberdade e pela união no sentido da transformação
social, as ações coletivas de ocupação de terras eram os argumentos e as propostas mais
contundentes e constantes em quase todas as reuniões realizadas durante o trabalho de
base
200
. Além da crítica ao capitalismo, o socialismo era a proposta de saída para uma
situação de desigualdade social geradora de todos os males e dificuldades que as classes
populares enfrentavam. Ainda que o sonho do socialismo não tenha se configurado
como característica do anseio da maioria dos trabalhadores que participaram da
ocupação da fazenda Rio das Pedras, mesmo assim, não constituiu impedimento para
que alguns trabalhadores partilhassem desses ideários, o que se deu pela própria
interação no trabalho de base
201
.
Entretanto, apesar das trocas de idéias ocorridas na preparação da ocupação da
fazenda Rio das Pedras, os trabalhadores, de modo geral, mostraram-se firmes nos
encontros e reuniões realizadas, mas não pela crença num possível socialismo e sim pela
esperança de transformações efetivas em suas condições de vida. Dessa forma, os
motivos que levaram aquele grupo de pessoas, pais e mães de família, junto com
dezenas de crianças, de posse apenas de alguns poucos pertences, a partir rumo a um
lugar desconhecido, longe dos perímetros urbanos, em pleno alvorecer e, num ambiente
199
4 Anos do MTL - Movimento de Empoderamento Social. Movimento Terra Trabalho e Liberdade-
MTL. Disponível em: www.mtl.org.br. Acesso: 20/12/2006.
200
Geraldina Ferreira da Silva-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
201
Francisco Conrado DAraújo-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
Esse aspecto do trabalho de base pôde ser claramente percebido nas palavras do senhor Francisco, quando
afirmou: “A gente fez trabalho de base, aprendeu que se quisesse viver melhor, nós não podia continuar
com esse capitalismo, nós tinha que dividir as riqueza, tinha que se unir os trabalhador de todos canto do
Brasil, pra fazê alguma coisa pra vida nossa mudar, do jeito que tava não podia ficar mais pior, mas é
difícil, muito difícil”.
75
campestre, montar barracas, foram na realidade outros. Ao estabelecerem-se nesse local,
podendo apenas imaginar os perigos e imprevistos que poderiam os aguardar a partir
daquele momento, os trabalhadores, diferentemente da crença no socialismo, percebida
naqueles que se tornaram lideranças, tinham, sobretudo, o sonho e a esperança de
transformar economicamente as suas vidas, algo que, para a maioria, teria um sentido
especial, caso essas mudanças pudessem se dar no meio rural.
Dessa forma, ao longo de oito meses de muitos encontros que produziram
diversas trocas de experiências de vida e de códigos culturais e políticos, efetivou-se a
construção de novas amizades e de diferentes formas de relações baseadas no esforço
coletivo visando a um objetivo comum, consolidando, ao mesmo tempo, a somatória das
várias ocasiões em que a solidariedade e o companheirismo começaram a estar presente.
Com as estratégias de luta estabelecidas, psicologicamente preparado, coletivamente
organizado e terminantemente decidido pela ocupação da fazenda, esse grupo de
trabalhadores, constituído principalmente de pedreiros, serventes, ajudantes de serviços
gerais, anteriormente empregados em empresas, comércios, que ocupavam cargos de
balconistas, vendedores, ou mesmo executando trabalhos domésticos nas cidades onde
moravam antes da ocupação, bem como diversos profissionais liberais e, sobretudo,
desempregados
202
; acompanhados de lideranças e militantes do MTL, partiu, viajando
em caminhões, com destino à fazenda Rio das Pedras.
Ocupação e conquista da terra
Após horas de viagem e ansiedade, os trabalhadores chegaram à fazenda Rio das
Pedras e ocuparam a propriedade no dia 14 de abril de 1997, às quatro horas da manhã.
A opção por ocupar a fazenda durante a madrugada foi feita no intuito de encontrar
desprevenido o dono da referida propriedade, para que o processo ocorresse de uma
forma mais ou menos controlada pelos sem terra, pelo menos até o momento em que
apenas as lideranças do movimento e os próprios trabalhadores envolvidos tivessem
conhecimento sobre o evento planejado. Apressando-se em noticiar o primeiro ato dessa
natureza ocorrido no município de Uberlândia, no dia seguinte, um dos jornais de maior
circulação na Região do Triângulo Mineiro assim divulgou a ocupação da fazenda Rio
das Pedras:
202
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
76
O Movimento de Luta Pela Terra (MLT) promoveu ontem a primeira ocupação
de terras em Uberlândia. Duzentas famílias estão acampadas na fazenda Rio
das Pedras, de propriedade de Josias Freitas, distante 20 quilômetros do
centro, desde às 4 horas da manhã de ontem. As famílias foram transportadas
em dez caminhões e três ônibus até o local. O acampamento fica próximo ao
Rio das Pedras, lugar onde os sem terra tomam banho e tiram água para beber
e fazer a comida. Cerca de 120 crianças estão no acampamento e até o fim da
semana será feito um levantamento para indicar o número exato de famílias
acampadas na fazenda
203
.
Com uma área total de 1908,63 ha., a fazenda Rio das Pedras se localiza a 23
quilômetros da sede municipal de Uberlândia, pela BR365, que interliga esta cidade a
Ituiutaba. Situa-se na microbacia hidrográfica do Rio Uberabinha, mais especificamente,
na sub-bacia do Rio das Pedras. Porém, a história desse assentamento, como descrito
anteriormente, teve início ainda nas primeiras horas do dia, quando 170 famílias de
trabalhadores sem terra se estabeleceram nos domínios da fazenda Rio das Pedras
204
,
formando, nesse momento, o acampamento das famílias, com o principal objetivo de
pressionar as autoridades municipais e estaduais para que tomassem as iniciativas para
averiguar as características desse imóvel.
Ao que se percebe claramente nas falas dos trabalhadores ocupantes dessa
propriedade, de todos os períodos em que passaram no interior da fazenda Rio das
Pedras, do início do acampamento até os dias atuais, esse foi, com certeza, o momento
de maior união e alegria para todos. Constatada como sendo a fase mais lembrada pelos
trabalhadores nas ocasiões em que foram entrevistados, a chegada à fazenda representou
o início de uma nova etapa de vida, a esperança próxima de ver o sonho de permanecer
na terra realizado e, como conseqüência, a possibilidade de estabelecer diferentes e
melhores condições de vida. Ao relembrar algumas passagens do cotidiano, durante a
fase de acampamento, comentando o dia da ocupação, Célia Umbelini reinterpretou sua
impressão da cena dos primeiros momentos na fazenda com as seguintes palavras:
A chegada foi um barato! Eu cheguei era umas seis horas da tarde. a minha
cunhada: olha nós vai arrumar um lugar pra você dormir, porque hoje não tem
de inventar de fazer barraco. eles tinha feito a armação de madeira, não
tinha plástico, ela arrumou um daqueles que é do Ciro (...). era aquela
gramona dessa altura assim (...). Cataram uns pedaços de cupim e fez um
fogão no chão. eu fui fazer essa janta e o menino do Dito chegou e deitou
tadinho, na grama, e puxou a paia. Aí fiz a janta, o povo jantou, acendi as velas
em cima do litro de óleo e ficava acordada vigiando o meu filho dormir, porque
203
Uberlândia assiste à primeira ocupação de terras. Jornal Correio – Ano 54. n. 17458, de 15/04/1997.
204
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG,.2002.
77
eu pensava, se a cobra vim né. Passei a noite inteira queimando vela sentada
no colchão, esperando o dia amanhecer pra mim fazer o meu barraco, mas
aqueles primeiros dias é tão bom, tudo é festa, muita festa, muito bom sabe?!
205
.
Apesar do medo e das necessidades que fizeram parte constante do cotidiano dos
trabalhadores, o dia da ocupação da fazenda Rio das Pedras caracterizou momentos de
muito entusiasmo entre o grupo, fortemente ansioso com a expectativa de conseguir
uma porção de terra daquela fazenda. O maior temor dos trabalhadores, nesse momento,
era com relação à reação dos proprietários da fazenda e das forças policiais, mas ainda
havia o medo de adoecerem estando tão longe da cidade, especialmente as crianças.
Mas, passado algum tempo, o clima ainda era de festa na fazenda, como se de fato os
trabalhadores tivessem conquistado a área ocupada, de modo que as comemorações
permaneceram fortes durante os primeiros meses de ocupação.
Quando questionado sobre as dificuldades e pressões sofridas nos momentos em
que se iniciou a fase de acampamento, o senhor Davi Agenor dos Santos contou ter
sido, na realidade, a melhor fase da vida na fazenda, e afirmou:
Quando em acampamento parece que é melhor, o povo tudo é reunido né?
Parece que tudo é festa! É reunião todo dia, fazia assembléia, aí nós, o
fazendeiro, acho que foi o sobrinho dele, um tal de Nenê que era o sobrinho
dele, e tava dominando aqui né, chamou a polícia e veio dois soldados aqui.
Eles veio, olhou lá, mas não fez nada, aí, passado uns dia veio a polícia, ficou
acampada lá uns dia né, mas teve a liminar de despejo, mas não
conseguiram né, despejar não. O Josias mandou fazer. Mas também tinha uma
advogada aí que era pinta brava. Aí nós conseguimos ganhar a liminar né
206
.
Configuram-se, dessa forma, os primeiros tempos da existência do acampamento
Rio das Pedras, marcado em todos os seus momentos iniciais pela forte união dos
trabalhadores na busca pela satisfação de necessidades materiais e consolidação de um
novo modo de vida, baseado no trabalho coletivo. Contudo esse episódio foi também
apenas o início dos desafios e das dificuldades que aquele grupo de trabalhadores sem
terra iria enfrentar pela frente. Durante a experiência do acampamento, essas pessoas
vivenciaram muitos maus momentos, dificuldades que tenderam a aumentar com o
passar do tempo. Morando sob precários barracos de lona, que mal podiam protegê-los
contra as intempéries da natureza, e dispondo de uma quantidade insignificante de
205
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG. A
ocupação da fazenda Rio das Pedras ocorreu durante a madrugada, Célia Umbelini foi uma das demais
pessoas que chegaram durante a tarde do dia seguinte à ocupação.
206
Davi Agenor dos Santos. Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
78
mantimentos, pois não tinham a certeza se iam permanecer naquela fazenda, as famílias
não tinham sequer água potável para preparar seus alimentos ou sanar a sede, porque o
único meio de conseguir água era buscá-la em um rio existente no interior da fazenda.
Denominado Rio das Pedras, esse era o local de onde, não apenas na fase de
acampamento, mas nos primeiros tempos do assentamento, as famílias retiravam água
para suas necessidades. Conforme o plano de consolidação do assentamento:
O rio das Pedras com seus afluentes (Córregos Santo Reis, Córrego das Pedras
e Córrego Vereda da Divisa), todos perenes, destaca-se como principal
manancial, percorrendo cerca de 4,6 km dentro do assentamento. Encontram-
se, ainda, pequenas represas que servem para o abastecimento das
propriedades rurais e bebedouro para os animais, além de nascentes. A
profundidade do lençol freático varia de 2 a 18 metros, permitindo a
perfuração de cisternas (poços caipiras), encontrados em vários lotes para o
abastecimento doméstico. O uso atual das águas [em 2002] é para
dessedentação dos animais e alguns assentados utilizam para a irrigação de
olerícolas (legumes). Não existem informações ou análises da qualidade da
água, porém alguns assentados citam que o Rio das Pedras ainda está sendo
contaminado pelo chorume de antigo lixão, sendo impróprio para o consumo
humano e mesmo para dessedentação de animais. Também foram observadas
mortalidades de peixes, possivelmente em função da contaminação da água em
propriedades vizinhas (agrotóxicos)
207
.
Além de não contarem com água potável para suprir suas necessidades, os
trabalhadores acampados conviviam ainda com a constante falta de mantimentos para se
manterem na fazenda, principalmente, quando a maioria das famílias não dispunha mais
dos recursos financeiros mantidos por meio de escassas economias guardadas. Dessa
forma, a solução encontrada era viajar ao município de Uberlândia para realizar
campanhas de arrecadação de alimento a ser dividido entre os assentados
208
. Somando-
se a essas ações conjuntas de ajuda mútua entre o grupo de trabalhadores, outra maneira
encontrada para resolver o problema relativo à alimentação das famílias foi apostar no
cultivo coletivo da terra. Durante o acampamento, os trabalhadores plantaram uma horta
comunitária, com o trabalho conjunto dos acampados. Para isso, receberam ajuda da
Animação Pastoral e Social do Meio Rural-APR, e de alguns sindicatos, que forneciam
recursos financeiros ou mesmo sementes para a plantação
209
. Conforme informou
207
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Uberlândia,
2002. p. 11.
208
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
209
Geraldina Ferreira da Silva-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
Outra ajuda concedida nos primeiros meses de acampamento das famílias partiu de alguns políticos, que
79
Lourival Silva, a produção da horta comunitária possibilitou a venda dos seus produtos
na cidade e a arrecadação de recursos para serem investidos em outras necessidades
alimentares dos acampados. Sobre esse período, ressaltou:
De imediato, assim que agente chegou aqui a gente começou a produzir horta,
uma grande horta comunitária. E essa horta, com quarenta dias, trinta,
quarenta dias, nós tava com uma perua nas periferias de Uberlândia,
levando verdura, levando o movimento e trazendo coisas pra cá, pra substituir
as verduras do acampamento. Então, vendeu-se muito quiabo, muita abóbora,
muita alface sabe? Foi uma horta muito grande! E isso com a ajuda de alguns
sindicatos, que fornecia semente, fornecia adubo, a APR contribuiu bastante,
assistência técnica, davam semente. Não era bem assistência técnica, era uma
contribuição financeira
210
.
Além da produção dessa horta comunitária, que contribuiu muito para sanar as
necessidades dos trabalhadores nos primeiros meses de acampamento, posteriormente
os trabalhadores também realizaram outras plantações coletivamente. Questionada sobre
a união dos trabalhadores para se manterem na fazenda e, acima de tudo, sobre como os
acampados faziam para sobreviver naquela situação de dificuldades, longe de suas
casas, que a maioria havia deixado o trabalho na cidade quando foi para a ocupação
da Rio das Pedras, Célia Umbelini contou como os trabalhadores organizavam-se para
suprir as falta de mantimentos e se manterem na fazenda. Sobre esses momentos de
organização do acampamento, ao responder se houve algum tipo de trabalho coletivo
nesse período, Célia afirmou:
Houve, houve mais na época do acampamento, na época do acampamento a
gente tinha, nós plantamos quatro alqueires de mandioca, depois plantamos
dezoito de milho. Era pra todo mundo, depois, com o primeiro ano que a gente
foi pros lote, teve um plantio de milho e de arroz né, coletivo
211
.
Por meio do esforço conjunto e da solidariedade nessa relação, os trabalhadores
passaram oito meses acampados na fazenda, enfrentando, então, muitas dificuldades de
sobrevivência. Contudo, diferente de algumas ocupações de terra ocorridas no Triângulo
Mineiro, a desapropriação da fazenda Rio das Pedras deu-se rapidamente. Para agilizar
concederam cestas básicas. Apesar de essas doações não demonstrarem o real interesse das classes
políticas, contribuíram, no entanto, para suprir um pouco das necessidades dos trabalhadores. Quem
também concedeu apoio nessa direção foi o padre Júlio, da Igreja Santa Edivirges de Uberlândia,
orientando os moradores, trazendo-lhes alimentos e realizando orações no acampamento. Os sindicatos
dos trabalhadores de Osasco e de Belo Horizonte também ajudaram concedendo materiais, principalmente
lonas para a montagem das barracas.
210
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio
das Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
211
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
80
esse processo, o movimento teve papel essencial, pois cuidou da parte jurídica, que
envolveu, sobretudo, o momento anterior à ocupação, tomando todas as devidas
iniciativas para saber se aquela propriedade era passível ou não de ser desapropriada
pelo INCRA. Conforme Juaris de Souza, presidente do assentamento, o Movimento
ajudou muito na discussão na parte política e de discussão em todas as áreas, até
mesmo em qualquer parte do INCRA ou em qualquer Ministério que você vai eles
exigem, exigem inclusive pra parte de meio ambiente e tudo”
212
. Na intermediação dos
trabalhadores com as autoridades regionais, também tiveram papel de destaque a
advogada do movimento e suas lideranças, ao ocuparem-se dos procedimentos técnicos
no INCRA, na verificação do grau de produtividade da fazenda.
Logo após a primeira avaliação do Grau de Utilização da Terra-GUT
213
, feita
em 1997 pelos próprios integrantes do movimento, a propriedade de 500 alqueires de
terra foi considerada improdutiva, pois apenas 20% dela produziam soja. Como, nesse
momento, a fazenda ainda não tinha sido vistoriada pelo INCRA, e em resposta à
posição do movimento acerca dos resultados do GUT, o advogado de Josias de Freitas,
proprietário da fazenda, contestou a informação, argumentando que a plantação ocupava
50% da área e o restante era utilizado para pastagens
214
. Porém, esta constatação não foi
confirmada pelo INCRA, que, meses depois, em seu Laudo de Vistoria
215
, identificou a
terra como improdutiva e os trabalhadores puderam ser assentados na fazenda Rio das
Pedras oito meses após sua ocupação.
Reagindo contra a ocupação de sua fazenda pelos trabalhadores sem terra, o
então proprietário, Josias de Freitas, um médico de 83 anos de idade, residente no Rio
de Janeiro, propôs a Ação de Reintegração de Posse
216
contra o Movimento responsável
pela ocupação. No entanto a liminar expedida pelo Juiz da Vara Cívil da Comarca de
Uberlândia, foi suspensa pelo Tribunal de Alçada, em Belo Horizonte, permitindo que
212
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
213
O Grau de Utilização da Terra-GUT, mede a intensidade da utilização da propriedade privada e é feito
para estabelecer quanto da área está sendo produzindo e atestar a produtividade ou improdutividade do
imóvel.
214
Uberlândia assiste à primeira ocupação de terras. Jornal Correio – Ano 54. n. 17458, de 15/04/1997.
215
O Laudo de Vistoria consiste na visita do INCRA à propriedade para a realização da análise do Grau
de Utilização da Terra-GUT. Constitui um dos primeiros procedimentos formais realizados pelo órgão do
Estado após uma ocupação de terra. INTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
AGRÁRIA-INCRA. Disponível em: www.incra.gov.br. Acesso: 20/05/2005.
216
A Ação de Reintegração de Posse define a primeira medida legal que um proprietário de terra realiza
logo que tem sua propriedade ocupada por manifestantes de trabalhadores sem terra, é o primeiro passo a
ser dado para tentar reaver a propriedade. INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
AGRÁRIA-INCRA. Disponível em: www.incra.gov.br. Acesso: 15/12/05.
81
as famílias permanecessem na fazenda
217
. O ato da ocupação e o posterior embate dos
trabalhadores com o proprietário, por intermédio de seu advogado, e com as forças
policiais, ocorreram num clima de bastante tranqüilidade, não havendo confronto direto
com o proprietário do imóvel, que sequer foi ao local. Ademais, a própria
desapropriação da fazenda, quando o INCRA chegou a realizar sua vistoria, se deu de
forma rápida e pacífica.
Quando questionada sobre o tempo que o INCRA levou para desapropriar a
fazenda para que os trabalhadores fossem definitivamente assentados, se houve ou não
algum tipo de violência ou mesmo pressão por parte do proprietário do imóvel ou das
autoridades locais, Célia Umbelini ressaltou:
O fazendeiro nós não vimos reação dele, porque ele nunca pôs o aqui, acho
que ele morava no Rio de Janeiro. Pelo menos nessa fazenda aqui rapidinho
eles vieram, vistoriaram, desapropriaram, foi um negócio de três meses, eles
vieram vistoriar né, ficou acampado um ano e meio, eles vêm e vistoria,
avalia e desapropria. Nós viemos dia 14 de abril de 1997 e mudou para os lotes
em outubro de 1998. Pressão, pressão, não fizeram não, eles [policiais] vieram
e ficaram sabe. A Marilda [advogada do Movimento] falava pra nós que se
eles provocassem não era pra reagir de jeito nenhum, era pra ficar quietinho,
foi que eles foram embora, nunca mexeram com ninguém do acampamento,
vigiou, de guarda lá, ficavam acampados de lá e nós de cá!
218
.
Contudo, ao local da ocupação foi enviado um número expressivo de policiais
militares como forma de exercer pressão sobre os trabalhadores acampados, mas, ainda
assim, não houve confronto. Ocorreram alguns conflitos com os arrendatários do imóvel
ocupado, que ainda realizaram ações de reintegração de posse contra o movimento, mas
também não foram adiante. Apesar de tudo, conforme relataram os trabalhadores, os
arrendatários pressionaram contra a desapropriação até mais que os próprios donos da
fazenda, mas, mesmo assim, a reação de todos foi bem tranqüila. Desse modo, conforme
consta do plano de consolidação do assentamento Rio das Pedras,
a ocupação ocorreu de maneira pacífica e muito organizada. Não houve
confronto direto com o proprietário que jamais apareceu na área. Com a
Polícia Militar, apesar das pressões sofridas pelo grande contingente enviado
ao local, também não houve confronto, pois negociou-se um prazo para a
interposição de recurso contra a liminar proferida. Posteriormente, ocorreram
breves conflitos com os arrendatários que também propuseram ações de
217
.Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
218
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
82
reintegração e obtiveram liminares que foram suspensas pelo Tribunal de
Alçada, os que os afastou, definitivamente, do imóvel.
A respeito desse período, Davi Agenor dos Santos relembra os acontecimentos
ocorridos e relata certas experiências da trajetória da fazenda com as seguintes palavras:
O fazendeiro, acho que foi o sobrinho dele, um tal de Nenê que era o sobrinho
dele, e estava dominando aqui né, chamou a polícia e veio dois soldados aqui.
Eles veio, olhou lá, mas não fez nada, aí, passado uns dias veio a polícia, ficou
acampada lá uns dias né, mas teve a liminar de despejo, mas não
conseguiram despejar não, nós conseguimos ganhar a liminar né, depois,
acho que teve mais outra, teve uns arrendatários que trabalhava aqui, um
daqui outro dali, esses deu trabalho, assim, um pouco né, porque eles pelejou
pra nós sair, e nós enfrentamos
219
.
Passado o período de seleção das famílias que seriam assentadas na fazenda, e
dos preparativos para aferição do caráter de produtividade ou não da propriedade, e
mesmo após o ato formal de instituição do assentamento, as lideranças locais do
movimento permaneceram em contato direto com os assentados, procurando estar por
dentro das suas principais necessidades e sobre os desdobramentos do processo de
aquisição dos lotes pelas famílias. Apesar de tudo, do total de 170 famílias acampadas
na fazenda Rio das Pedras, somente 87 receberam um lote e foram realmente
assentadas. Destas famílias, consta do plano do assentamento que foram analisadas 83,
totalizando 315 moradores distribuídos em 154 adultos, entre 22 e 60 anos, 15 idosos,
acima de 60 anos e 76 crianças na faixa etária de 0 a 12 anos, de ambos os sexos
220
.
Eram pessoas, em sua maioria, de origem rural, cujos pais viveram no campo e a
mudança para a cidade se deu por conta do êxodo rural motivado pelo objetivo de
encontrar melhores condições de vida no meio urbano.
Entretanto, com o passar do tempo, os trabalhadores iam percebendo que as
dificuldades na fase de acampamento aumentaram durante o assentamento. Assim,
logo que se intensificavam os problemas, o entusiasmo ia dando lugar a certa sensação
de descrença e desânimo dos trabalhadores diante dessa difícil realidade, mas sem que a
união entre o grupo fosse abalada. Ao contrário, em momentos de extrema dificuldade,
os trabalhadores tornavam-se mais solidários e unidos, ainda que, em matéria de
produção, a opção pelo trabalho individual tenha marcado a vontade de todos os
219
Davi Agenor dos Santos. Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
220
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
83
assentados, notadamente quando surgiram problemas na produção das primeiras
tentativas de trabalho coletivo, devido ao plantio realizado na época errada e à
conseqüente perda da plantação
221
. A respeito desses tempos mais difíceis, vividos
principalmente durante os primeiros meses em que os moradores estavam acampados, e
a seguir assentados, o senhor Iraci Alves dos Santos relatou:
A gente ficou acampado, um ano e oito mês acampado [oito meses], nem café
pra nós beber nós tinha. Cada vez que ia pedir esmola na cidade, nomearam
logo eu que nunca tinha pedido nada a ninguém. Eu saí daqui chorando pra ir
pedi esmola na cidade. Todo dia nós trazia uma perua cheia, arroz, feijão, cada
um dava o tantinho que podia. nós foi vivendo assim..., vivendo assim..., até
saí um tal de crédito de fomento que chama, crédito de fomento é quando a
gente vai vim pra dentro dos lote. viemo pros lote, viemo pros lote. Acabou
aquele crédito de fomento, começamos sofrer de novo..., de novo sofrendo.
Quantas vezes eu tava capinando do outro lado ali, eu tonteava de fome, meu
barraquinho era ali ó, tonteava de fome, falei eu não agüento mais, vinha
praqui, descansava um pouco. Coisa que eu nunca tinha comido era beterraba,
berinjela, a gente pegamos berinjela velha onde que aquele pessoal, onde
que é jogado lá na cidade. Aí a vizinha ia buscar de carrinho de cavalo,
passava no meu barraco aqui pra me um pouco, dava um pouco pra outra
ali e tal. Nós passava tudo ali. Então, muita pessoa que não sabe, fala: o Rio
das Pedras [assentamento] tem tudo, mas é mentira, mentira deles, aqui até
hoje [outubro de 2003] não tem nada
222
.
Para os trabalhadores, o sentido de mudanças que a ocupação da fazenda Rio das
Pedras poderia trazer em relação às condições de vida às quais as famílias estavam
submetidas no meio urbano, começava a delinear traços profundos de dificuldades de
sobrevivência logo nos primeiros meses de vida na fazenda. Essa situação foi sendo
agravada com o passar dos anos, tanto com a falta de meios para suprir as necessidades
dos primeiros meses de assentamento, uma vez que os primeiros recursos foram
investidos na construção de suas casas, quanto pela inexperiência dos trabalhadores em
administrar os recursos no momento em que chegavam.
Apesar de essas dificuldades terem sido vivenciadas de forma individual, logo a
partir do momento em que os lotes foram divididos, ainda assim, proporcionaram maior
união entre as famílias assentadas. Dessa forma, o relacionamento entre os trabalhadores
caracterizou o companheirismo como a principal marca da convivência ao longo de todo
o processo de luta pela terra na fazenda Rio das Pedras. De modo semelhante, a relação
entre os trabalhadores e as lideranças do movimento foi marcada pela cumplicidade,
221
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
222
Iraci Pedro dos Santos-Ex-morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em outubro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras Uberlândia/MG.
84
assinalada desde os primeiros anos de assentamento das famílias. Segundo Célia
Umbelini, no dia em que ocorreu a ocupação, as famílias de trabalhadores e as
lideranças do MLT vieram todos juntos para a fazenda. Além disso, mesmo
(...) depois eles [lideranças do movimento] continuaram assim por uns quatro
ou cinco meses, assim, internamente né. Depois, eles já via assim que a coisa já
tava mais ou menos encaminhada, e fica os coordenadores, que são tirados da
comunidade mesmo né. os do Movimento vai cuidar da vida deles pra lá,
primeiro eles vêm e faz assembléia
223
.
Procurando manter estreitas relações entre os trabalhadores, desde os primeiros
meses do assentamento, as assembléias, ocorridas desde o trabalho de base, foram então
intensificadas pelo movimento. No início do processo de ocupação e nos primeiros anos
após o assentamento, essas assembléias significavam a maneira mais eficaz de exercer e
pôr em prática a identidade coletiva e os interesses comuns entre os trabalhadores
assentados e as lideranças do movimento, dentre os quais o objetivo de assegurar a
permanência das famílias no interior do assentamento, mediante a busca da realização
de projetos para serem desenvolvidos no assentamento, foi o principal. Nesse sentido,
eram nas reuniões que os trabalhadores assentados, inclusive o presidente e o vice-
presidente do assentamento, como as lideranças do movimento, discutiam, inicialmente,
acerca do modo como a terra seria trabalhada, se a produção assumiria a forma
individual ou coletiva, que tipo de plantação seria priorizada nos primeiros momentos
ou quais espécies de criação trariam mais vantagens em termos de subsistência para
todas as famílias
224
.
Desavenças e solidariedade no assentamento
Marcadamente necessários para definir ou redefinir não apenas os ideais, mas
também o próprio sentido do movimento, os encontros e as assembléias consistiam no
momento de deixar claro aos trabalhadores tanto o significado da bandeira do MTL,
como a importância de suas idéias e concepções políticas. O principal símbolo da
bandeira do Movimento, o globo terrestre, simboliza a terra, que deveria ser bem
repartida entre todos. Contudo, mais que uma concepção política, o globo representa
ainda uma tomada de posição diante do modo como a terra está repartida no país, bem
223
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
224
Informações obtidas através de conversas informais com moradores reunidos na sede do assentamento
Rio das Pedras. ago./2003.
85
como uma oposição velada ao sistema capitalista de produção, baseado na propriedade
privada da terra, e em favor do socialismo
225
. Trata-se da posição dos trabalhadores sem
terra, figura central dos símbolos do movimento, concretizada em suas ações de
ocupação de terra por todo o país e de uma forma de valorização dos símbolos políticos
do movimento pelos trabalhadores.
Nas relações sociais, o envolvimento político se expressa também nos momentos
de lazer, por meio dos símbolos do movimento, especialmente da bandeira, de modo
que a atmosfera voltada para a política como forma de contestação social faz parte das
lides cotidianas dos trabalhadores. Até nos jogos, nas datas festivas religiosas e ainda na
comemoração do aniversário do assentamento, as cores da bandeira do movimento eram
utilizadas, buscando serem, dessa forma, interiorizados os ideais de transformações
sociais apregoados pelo movimento.
Essa maneira de apresentação cotidiana dos símbolos do movimento era feita
com a intenção de ressaltar esses valores políticos da entidade, não apenas aos
trabalhadores assentados, mas ainda aos visitantes que iam ao assentamento, quer
fossem compradores potenciais de lotes, pesquisadores, viajantes ou outros. A utilização
da bandeira do movimento visava consolidar nos imaginários sociais dos trabalhadores
assentados não apenas os símbolos e os ideais do movimento, mas a construção de uma
identidade política que demarcava os limites entre os interesses dos sem terra e das
classes consideradas detentoras do poder político e econômico. Nesse sentido, era
comum a afirmação de que no Brasil, “os trabalhadores pobres sofrem por causa das
pessoas que domina a economia e a política e faz o que quer e quando quer, e não têm
ninguém pra mudar isso, os trabalhadores, que sofrem junto, que pode se unir e
exigir que o país mude”
226
. Assim, o significado da luta pela terra, por meio da
ocupação de propriedades de terra privadas, caracterizava dinâmicas e mudanças sociais
buscadas pelo grupo. Ao afirmar que os sem terra lutam para “mudar as pessoa, para
225
Esses ideais puderam ser claramente observados no Manifesto 2002, a cartilha do Movimento, na qual
os líderes militantes afirmam: Nossas trajetórias, mais que promoverem enfrentamentos de cunho
exclusivamente reivindicatórios, pautadas sempre na perspectiva de superação da ordem capitalista, nos
possibilitaram também, o acúmulo de importantes reflexões sobre a estratégia socialista dos
trabalhadores, do qual não abrimos mão. Lutamos por um novo socialismo, com liberdade e democracia.
Um socialismo possível em escala internacional. possível a partir da organização e ação direta das
massas. Sustentamos que outros movimentos, como o MTL, devem carregar nas suas lutas a estratégia da
destruição do sistema do capital, tarefa não exclusiva dos partidos políticos”. In: MOVIMENTO TERRA,
TRABALHO E LIBERDADE-MTL. MANIFESTO 2002Cartilha do MTL. Uberlândia: MTL, 2002.
226
Geraldina Ferreira da Silva-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras/Assentamento
Rio das Pedras - Uberlândia/MG.
86
mudar as idéias das pessoa e fazer elas entender que outras pessoa precisa sobreviver
também, foi por isso que nós veio pra cá, que nós se uniu”
227
, Célia Unbelini
demonstrava o caráter político e social que a identidade de interesses assumiu entre os
trabalhadores ao longo de todas as experiências coletivamente vivenciadas na busca por
mudanças. Retratando um quadro em que os interesses coletivos do grupo entraram em
contradição com os de outros segmentos sociais, a identidade que foi construindo-se
entre os trabalhadores do assentamento Rio das Pedras, permitiu-lhes visualizar-se
como grupo potencialmente capaz de promover mudanças coletivas, mesmo visando à
realização de objetivos individualizados no que se referisse à produção e às formas de
sobrevivência durante o assentamento.
Nesse sentido, puderam ser contatados dois momentos bem específicos nos
quais os interesses e as perspectivas dos trabalhadores, com relação à ocupação da
fazenda Rio das Pedras, tomaram outros rumos. O primeiro, caracterizado pelo interesse
geral dos trabalhadores em buscar o acesso à terra e às previsões materiais necessárias
para se manterem; e o segundo, delineado pelas escolhas apregoadoras de caminhos
individualizados, pelas quais, apesar de continuarem unidos, a relação dos assentados
transformou-os de um grupo, antes unido pela ação conjunta com vistas a um objetivo
comum, para um conjunto, agora unido apenas pelas condições sociais semelhantes,
mas vividas, então, em termos individuais. Assim, a partir do momento em que os lotes
foram sendo divididos e formando-se a associação de moradores, todas as famílias
optaram por morar e trabalhar individualmente na fração de terra que lhes coube,
transformando, ao mesmo tempo, os objetivos coletivos em buscas individuais.
Conforme ressaltou Fernando Nascimento, primeiro presidente do assentamento
Rio das Pedras, os trabalhadores chegavam à fazenda com mentalidade individualista,
algo que, em sua opinião, contribuiu muito, além da divisão dos lotes, para que os
trabalhos e a própria produção de modo geral tomasse rumos individuais. Falando sobre
as experiências coletivas entre os assentados e sobre o rompimento dessas formas de
realizar o trabalho na fazenda quando se instituiu o assentamento, Fernando ressaltou:
Quando estávamos acampados, tivemos algumas experiências coletivas.
Plantamos milho, plantamos seis alqueires de mandioca. Tivemos até uma
horta comunitária. Mas a própria fragmentação dos lotes e a concepção das
pessoas de que cada um tem a sua própria terra aniquilam a capacidade de
trabalho coletivo. No modelo de reforma agrária individual, você divide os
227
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em setembro de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
87
três principais elementos, divide a terra, divide o capital e divide o trabalho.
Mas uma proposta diferente, onde se possa unificar tudo isso, seria muito
melhor
228
.
Apesar de tudo, durante as lides diárias, ainda que o trabalho se realize de forma
individual, as representações simbólicas coletivas permanecem práticas muito comuns
no assentamento, percebidas tanto no costume de astear a bandeira, neste caso em dias
específicos, como nas comemorações de aniversário do assentamento, festas religiosas,
dia das crianças, mas, em especial, nos momentos de muitas dificuldades enfrentados
pelos trabalhadores, que se reuniam buscando encontrar alternativas que pudessem
representar ajuda para todas as famílias, ainda que de forma individualizada.
Por outro lado, mesmo que a opção por lote e trabalho individual tenha marcado
os rumos nas relações e na vida dos assentados, os laços de solidariedade, que foram
acentuados desde os primeiros momentos de acampamento, passando pela fase de
assentamento, ainda permanecem fortes entre os trabalhadores. Aliás, muitos moradores
afirmam ter conseguido o que possuem por meio da ajuda de outros trabalhadores.
Nessa perspectiva, foi muito comum os assentados relatarem os trabalhos que
realizavam uns nos lote de outros. Um trabalho que se dava por meio de afinidades e
amizades construídas ao longo dos anos de experiência conjunta. Algo que não se pode
chamar oficialmente de trabalho coletivo, que essa maneira de ajuda mútua era e
ainda é feita de forma isolada, mas que tem representado fortes laços de solidariedade e
companheirismo entre pessoas que aprenderam o valor das trocas de favores.
Nessas relações de trocas de apoio entre as famílias assentadas, ainda que o
trabalho se realize individualmente em cada lote, a força de trabalho, muitas vezes, é
empregada entre duas ou até três famílias que se tornaram muito próximas em termos de
amizade e afinidade, prática que, certamente, tem contribuído para amenizar algumas
necessidades e mesmo as dificuldades dos assentados em se manterem na fazenda
229
.
Nesse sentido, a experiência que muitos tinham com o trabalho no campo foi fator
importante na construção de alternativas no caminho da produção e na busca por sanar
as dificuldades das famílias. Por meio das experiências de vida que a maioria das
famílias havia tido no meio rural, alguns costumes do campo também ajudaram no
suprimento das necessidades surgidas, sobretudo aquelas relativas aos cuidados com a
228
NASCIMENTO, Fernando. Assentamento Rio das Pedras: As 4 cercas da reforma agrária. Revista
Movimento. Brasil: Movimento. n. 2. jan.fev./2005.pp. 14-15.
229
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em setembro de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG
88
saúde. Na busca de outros meios de garantir a saúde no assentamento, o hábito de
plantar diferenciados tipos de ervas medicinais no lote com certeza representou a
transposição de certos costumes do campo para as práticas cotidianas do assentamento e
a procura por alternativas de meios de vida.
Entretanto as dificuldades enfrentadas logo que os trabalhadores chegaram à
fazenda foram aumentadas com os problemas de assistência técnica, que surgiram desde
o início da produção individual das famílias, ao mesmo tempo em que culminaram, em
seguida, com problemas entre os trabalhadores e o próprio movimento. Segundo o
senhor Iraci dos Santos, um dos problemas principais enfrentados pelos trabalhadores,
ao longo dos dois primeiros anos de assentamento, aconteceu por parte do Estado. Num
primeiro momento, o governo concedeu os financiamentos para que os assentados
pudessem plantar, mas não destinou, ao mesmo tempo, os técnicos para auxiliá-los na
produção, de modo que, quando esses profissionais foram ao assentamento fornecer a
capacitação aos trabalhadores, os recursos tinham sido gastos em outras compras
necessárias pelos trabalhadores, não restando muito para a plantação
230
.
Nas palavras do próprio senhor Iraci, quando precisou de assistência técnica não
apareceu ninguém, quando estava plantando café também não apareceu nenhum técnico,
quando apareceram o técnico e o engenheiro, estava trabalhando na terra, mas ainda
considera que poderia ter plantado muito antes se a assistência técnica tivesse ocorrido
no tempo em que necessitou
231
. Mantendo opinião semelhante a essa, Célia Umbelini
ressaltou a falha administrativa do Estado com relação à estruturação do assentamento
Rio das Pedras, devida à ausência completa de um planejamento adequado para esse
fim. Conforme Célia:
Não adianta você ter assistência técnica se você não tem o recurso pra
corrigir. Primeiro, na época que tinha os créditos, que teve os créditos,
não tinha os técnicos, agora, que não tem dinheiro pra plantar, tem
assistência técnica. Daí você vê o tamanho da contradição!
232
.
Desse modo, o que se percebe é que as ações do Estado para a implementação de
políticas públicas no assentamento não foram acompanhadas de um planejamento
administrativo e técnico adequado que poderia evitar esse tipo de problema, por
intermédio de ajuda planejada aos moradores do assentamento Rio das Pedras. Disso
230
Iraci Pedro dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras Uberlândia/MG.
231
Idem.
232
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em setembro de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
89
decorre toda uma série de conseqüências inesperadas na vida concreta dos
trabalhadores, que saem da cidade para tentar a sorte no campo, mas, quando ali se
instalam, enfrentam situações as mais adversas possíveis, nas quais a melhoria nas
condições de vida está longe de ser alcançada pela maioria com a nova realidade
vivenciada.
Conforme entrevistas realizadas, alguns moradores ressaltaram que a culpa não é
somente do Estado, pois existem certos trabalhadores que, na verdade, não se esforçam,
não possuem um plano pessoal de ação para o trabalho no lote, não fazem a sua parte, e
acabam com o primeiro, o segundo e ainda com outros financiamentos, após isto,
terminam por vender seus lotes e voltam para a cidade, permanecendo em dívida com o
governo. Assim, a falta de recursos para plantar, muitas vezes, tem como causa o
próprio despreparo dos trabalhadores em relação à administração dos recursos dentro de
um plano pré-determinado de ação. Na opinião de Lúcia Helena,
às vezes, as condições não ajuda né, mas a partir do momento que a gente tá na
terra, eu acho que a gente já tem que ir planejando, você tem que ter reservado
seu dinheirinho pra preparar a terra, pra comprar semente, e tem muitos que
deixa pra arrumar na última hora, nunca certo, porque é coisa de última
hora, falta de organização, porque não administra direito a ordem do trabalho
dele
233
.
De acordo com Juaris de Souza, atual presidente da Associação dos Moradores
do Assentamento Rio das Pedras, muitos desses problemas advieram da falta de uma
assistência técnica adequada, que chegasse acompanhada não apenas de orientações
teóricas referentes às várias técnicas de produção, mas da realização de práticas
associativas, além da necessidade de fornecer aos trabalhadores certos conhecimentos
básicos acerca da administração dos recursos disponíveis para serem aplicados na
plantação. Nas palavras do próprio presidente, o hábito de serem administrados por
outrem, que os trabalhadores mantinham na cidade, foi levado para a fazenda e
permaneceu arraigado quando se instituiu o assentamento, de modo que as
transformações necessárias na forma de organização do trabalho, levada com os
trabalhadores para a realidade do assentamento, concretizada na execução de funções e
não na administração dos recursos da produção, precisam construir novos modos de
trabalho. Conforme Juaris:
233
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
90
A pessoa não conta de trabalhar e produzir com os braços e sem ter cabeça
de jeito nenhum. Então, a pessoa, se não tiver um melhoramento do
conhecimento, ela não tem condições de produzir e administrar. Principalmente
a parte administrativa, porque a pessoa acostuma a vida todinha a ser
administrada por outra pessoa, porque a pessoa pode trabalhar até na fazenda
trinta anos, mas chega aqui amanhã e o cara chega e fala, não, você vai
plantar isso, você vai dar cobertura, você vai colher, agora ele pra poder pegar
e fazer o dele mesmo, ele não dá conta
234
.
Nesse mesmo sentido, somando-se ao problema de administração dos recursos
pelos moradores, um dos maiores percalços, que esteve nas queixas de grande parte dos
trabalhadores entrevistados durante a pesquisa, diz respeito à prestação da assistência
técnica aos assentados. Conforme Lourival Silva, o principal problema relativo à
assistência técnica ocorreu devido à quantidade mínima de técnicos para atender a um
assentamento com 87 famílias. Apenas um engenheiro e um técnico são destinados à
assistência do assentamento Rio das Pedras, e na tentativa de percorrer todos os lotes, o
trabalho é, freqüentemente, realizado às pressas e numa época em que os assentados
estão no seu período do plantio. Ademais, os trabalhadores sentiram uma profunda
insegurança em relação à assistência dada pelos técnicos que os visitaram, pois na
maioria dos casos, sua especialidade era agrícola, enquanto a maior parte dos assentados
aplicava-se à agropecuária bovina
235
. A esses problemas, acrescenta-se o fato de que, no
caso do Rio das Pedras, alguns trabalhadores sequer receberam orientação dos técnicos,
uns porque, quando a assistência foi ao assentamento, já tinham plantado, devido a certa
experiência que tinham com cultivo, outros porque realizavam trabalhos informais nas
proximidades da fazenda, não se encontrando no lote durante a visita dos técnicos.
Ao ser entrevistado, ainda no ano de 2003, o senhor Iraci dos Santos mostrou
sua profunda insatisfação em relação à assistência técnica, ao afirmar:
Quando eu precisava de assistência técnica não apareceu ninguém, quando eu
estava plantando café não apareceu, agora, por exemplo, eu não tenho como
pagar assistência técnica pra olhar café meu, nem lavoura de milho, nem feijão
que esse ano eu tenho que fazer tudo, o que falta pra nós é o dinheiro,
assistência técnica pra quê? É pra correr atrás do dinheiro pra nós né? Que
sem o agrônomo, por exemplo, que se ele não assinar pra mandar pro banco,
uai, o banco não sabe que nós precisa, que eu ir no banco, por exemplo,
ninguém nem me atende lá, mesma coisa de chegar um cachorro lá, a mesma
coisa, não adianta. Igual eu falei, assistência técnica pra mim precisa gente,
eles ta vindo assim mesmo aqui, nós ta pagando eles sem eles trabalhar pra
234
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
235
Lourival Soares da Silva-Liderança da Região do Triângulo Mineiro. Morador do assentamento Rio
das Pedras. Entrevista concedida em janeiro de 2007. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
91
nós, eles fica andando na estrada. Era hora de vim calcário, vim adubo,
nada disso não apareceu até hoje, fazer curva de nível, foi trato, até hoje nada.
Eles vêm todo dia, mas só que eles fica pra lá né, eles só fica pra lá
236
.
Contudo, como indiretamente a equipe técnica havia sido contratada pelo MTL,
por intermédio da 25 de Julho, uma ONG encarregada da seleção da equipe, todos os
problemas dos assentados com o trabalho realizado pela equipe técnica era visto como
erros cometidos pelo próprio MTL, uma vez que foi o movimento que contratou a 25 de
Julho. Quando foi questionado a respeito da relação dos moradores com o MTL, o
presidente do assentamento afirmou: “não, com o Movimento nós não tivemos
problema de divergência, nós tivemos com a equipe técnica. tem mais de ano que
nós não estamos com boa convivência com eles. Hoje nós estamos colocados como
que está sem Movimento”. Sobre a assistência técnica, Juaris de Souza ainda declarou:
Nós tinha um problema com eles também porque nós tinha uma assistência
técnica aqui que era da 25 de Julho, eles não estavam fazendo o trabalho
deles. Nós dispensamos eles, eu saí da coordenação deles, eles não voltaram
pra conversar com nós. Eles fizeram um projeto pra nós, mas ficou sujeito à 25
de Julho né. Aí, no final, eles trabalhavam pra nós, nós pagava, pagamos
viagem pra Norte de Minas e tudo e, no final, nós perdemos o projeto. s
trouxemos o pessoal da gerência do projeto e substituímos eles né, rompemos o
contrato com a 25 de Julho, do MTL, que era o pessoal de assistência técnica
nossa, hoje, nós contratamos outra. O MTL é duas coisas, é Movimento MTL e
equipe técnica é 25 de Julho, o Movimento é a parte jurídica e a parte de
assistência é a 25. O Movimento tem a equipe técnica, agora a equipe técnica
não pode ser contratada pelo MTL, ela é contratada pela 25, que a 25 é a ONG
que o MTL administra, que ele organiza e dirige
237
.
Por causa de todos os problemas de ordem técnica e pessoal, os trabalhadores,
em geral, foram se afastando do MTL, com o passar do tempo no assentamento
238
, e
atualmente o Rio das Pedras não possui movimento formal para representá-lo
239
. Houve
236
Iraci Pedro dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
237
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
238
Segundo Lúcia Helena, a ocorrência de certas discussões pessoais entre uma liderança do Movimento
e um, ou alguns, dos assentados, acabava comprometendo o relacionamento dessa entidade com todo o
assentamento. Sobre isso, Lúcia afirmou: “O Movimento em si, para os acampados e hoje assentados, eu
particularmente não tenho o que reclamar, porque depois que eu fui assentada eu assentei mais duas
filhas, através do mesmo Movimento, mas, às vezes, o Movimento deixa a desejar, por coisas pessoais,
divergências pessoais. Às vezes, uma liderança do Movimento tem alguma discussão com um acampado
ou assentado, é prejudicado o assentamento todo, por causa de um os outros são prejudicados”.
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
239
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
92
um distanciamento progressivo dos trabalhadores com as lideranças do movimento, que
ocorreu também graças a outros motivos. Conforme relataram os trabalhadores, existiu
uma proposta do movimento, ainda durante o acampamento, feita aos assentados, para
que passassem ao MTL uma quantia financeira equivalente a 2% do total da renda
gerada pela produção de cada família, recurso que seria gasto nas viagens e demais
despesas arcadas pelo movimento com o Rio das Pedras e com a implantação de novos
assentamentos
240
. Alguns trabalhadores foram a favor dessa proposta, enquanto que a
maioria foi contra, e com o tempo, os moradores que se opuseram foram deixando de ir
às reuniões feitas pelo movimento e automaticamente isolando-se das suas lideranças
241
.
Além disso, os trabalhadores também enfatizaram a crescente diferença que foi
se instaurando nos objetivos do movimento em relação aos dos moradores do Rio das
Pedras. Com o passar do tempo, o movimento começou a priorizar outras ocupações,
até mesmo como forma de buscar estabelecer-se como organização coletiva de luta por
reforma agrária. Assim, procurando expandir a implantação de novas ocupações de terra
e possíveis assentamentos, visando ao fortalecimento do movimento como instituição
formal, as lideranças dessa entidade, freqüentemente, passaram então a convidar os
trabalhadores assentados na fazenda Rio das Pedras, a participar de novas ocupações de
terra
242
. Mas a essa empreitada poucos se aderiram, pois a maioria focalizava objetivos
que não iam ao encontro de novas ocupações, mas à busca de meios para permanecer na
fazenda, o que demandava o tempo que deveria ser empregado no trabalho no interior
do lote adquirido e não em outras ocupações de terra, como desejava o movimento.
Segundo Célia Umbelini, períodos após a ocupação da fazenda Rio das Pedras, o
movimento pedia aos trabalhadores que continuassem ajudando nas ocupações, mas que
a maioria não podia, pois não dispunha de tempo para isso. Questionada sobre os
motivos pelos quais os trabalhadores se afastaram do movimento e se essa entidade
ainda está atuando no assentamento, Célia respondeu:
240
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
241
Segundo Lúcia Helena, o afastamento dos trabalhadores com relação ao movimento teria ocorrido
ainda em 1999. Sobre esse momento, Lúcia declarou: “quando foi pra sair o primeiro dinheiro, que foi R$
2.000,00, em 1999, o Movimento pedia 2% para o Movimento sabe, então teve muitos, a maioria não
quis ceder esses 2%, foi onde houve esse racha, o pessoal abandonou o Movimento. A maioria não
quis, aí foi onde abandonou o Movimento. Foi em 1998/1999, aí foi quando já começou atrasar projetos, a
energia depois foi travada através disso também”. Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da
Associação de Mulheres do Assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
242
Geraldina Ferreira da Silva-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras/Assentamento
Rio das Pedras - Uberlândia/MG.
93
Hoje em dia não porque foi o povo aqui mesmo que expulsou o Movimento aqui
de dentro sabe. É porque eles acha, na imaginação, que eles explora o povo
sabe. Eles quer mandar na vida da gente, parecia que eles é dono da gente,
porque nos colocou na terra, parece assim que eles fica impondo coisas pra
gente, ninguém aceita né. Às vezes, eles querem que a gente continue no
Movimento, porque você tem um lote, mas não tem dia nem pra você, que se
eles vir aqui chamar, você tem que largar tudo e sair correndo atrás deles pra
fazer outro assentamento, pra ajudar um acampamento que vai ser
despejado. E depois que a gente tem as coisas pra cuidar, a gente não tem essa
disponibilidade, e eles implica com a gente porque quer que a gente faça
assim né. a gente morre de fome em cima da terra, não é verdade?! Eu acho
assim, que eles nos ajuda e tudo mais, mas a gente não tem que ficar escravo
deles, fazer o que eles querem nas horas que eles querem!
243
.
Nesse sentido, a ocupação da fazenda Rio das Pedras, e posteriormente a
instituição da associação de moradores, formando o assentamento Rio das Pedras,
culminou com problemas técnicos e econômicos que, somados a desentendimentos dos
trabalhadores assentados com as lideranças do MTL, foram criando uma situação de
profundas dificuldades de sobrevivência no assentamento, algo que, desde logo, se
agravou com o despreparo de muitos dos trabalhadores diante da nova realidade de vida
no campo, ainda que um número expressivo tivesse tido esse tipo de experiência. Em
meio a essa realidade de imprevisão e de dificuldades com relação à sobrevivência no
assentamento, muitos trabalhadores sofreram as conseqüências de não conseguirem
trabalhar a terra e formar sua produção. Por causa disso, em vários casos, muitos
trabalhadores tiveram de vender seu lote e retornar para a cidade, de onde haviam saído
com tanto sacrifício em busca de dias melhores, ou ainda, procuraram empregar-se
informalmente nos lotes dos próprios compradores, nas propriedades localizadas nas
imediações da fazenda Rio das Pedras, ou mesmo em Uberlândia.
Recentemente, ao conceder entrevista para um dos jornais de Uberlândia, o
coordenador do assentamento Rio das Pedras relatou que o número de trabalhadores que
vendeu o lote torna-se, com o passar do tempo, cada vez mais significativo. Ainda nessa
reportagem, fica ressaltado que:
Embora pareça um paraíso, o Rio das Pedras não difere dos demais no que diz
respeito a venda irregular de lotes. O coordenador confirma que o problema
também existe na propriedade. De acordo com as suas contas, 34 beneficiários
optaram, depois de algum tempo, por vender o que tinham e voltaram para a
cidade. ‘Sem dinheiro para tocar o investimento e com as dívidas no banco
foram embora, afirma’
244
.
243
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
244
Jornal Correio – Ano 67, n. 20379, de 29/01/2006.
94
Na realidade, grande parte dos moradores que vendeu o lote não teve outra
opção senão esta, pois a vida no assentamento não estava proporcionando meios de
sobrevivência. Quando concedeu sua entrevista, o senhor Iraci dos Santos, apontou um
outro problema existente, que considera muito grave, e que atrapalha demais o
desenvolvimento da produção dos trabalhadores. Em sua opinião, o próprio movimento
tinha culpa nos caminhos que tomaram a produção do assentamento, pois não evitou
que uma assistência técnica descompromissada fosse contratada e, por isso mesmo, os
trabalhadores não conseguiam avançar e estabelecer a produção de forma satisfatória.
De acordo com Iraci dos Santos, esse foi um dos motivos pelos quais ele próprio optou
por produzir individualmente. A respeito do movimento, revelou:
Ele [o Movimento] nunca deu assistência, eles mandaram nós ser escravo
deles. Até um dia na assembléia eu falei não, um dia eu pego minha terra, o dia
que eu pegar minha terra, pra vocês pôr a mão num fósforo vocês têm que pedir
licença. Infelizmente não aconteceu aqui, de ver quem era o coordenador meu
aqui, hoje sofrendo no lote igual eu mesmo ou talvez pior, que muitos até
precisou de vender porque não tinha como viver mais, porque não é peitudo no
serviço igual eu aqui trabalhando, isso aqui eu desmatei tudo de unha e dente
como se diz. Ele ajuda a gente pra tirar da cidade pra vim para cá, depois
que aqui nós fica igual cachorro, mesma coisa de cachorro, pronto, não tem
recurso nem nada mais, isso é só política pura, pra nós não resolve nada
245
.
A maioria dos assentados, entretanto, apesar de desejar realizar o plantio em sua
própria terra, não possui subsídio para isso, uma vez que, não raro, os recursos
provenientes do governo são insuficientes ou, por outro lado, são muitas vezes mal
administrados pelos inexperientes trabalhadores. No caso do assentamento Rio das
Pedras, de 1997 até 2002, os moradores ainda não contavam com, praticamente, infra-
estrutura alguma, e os créditos que foram concedidos pelo INCRA, além de chegarem
sempre atrasados, eram insuficientes para a produção. Por meio de entrevistas
concedidas, Célia Umbelini ressalta que, para a maioria dos trabalhadores, a maior
dificuldade nas fases iniciais do assentamento era a falta dos elementos essenciais à
produção e, sobretudo, à vida em si, como a falta de água e, em menor grau, mas não
245
Iraci Pedro dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2002. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
Quando foi entrevistado em 2002, o senhor Iraci havia formado uma plantação de caem seu lote, e
parecia mesmo que tudo daria certo para ele, que, naquele momento, era um dos pouquíssimos que havia
conseguido plantar algo na terra, porém, quando voltamos novamente ao assentamento, em 2006, ele já
tinha se mudado. Conforme entrevista com a moradora que comprou seu terreno, Zoete Ferreira Soares, o
senhor Iraci teria vendido seu lote porque, infelizmente, sua esposa ficou muito doente, não tendo
condições de permanecer morando longe de cuidados médicos, além disso, o senhor Iraci não estava
mais conseguindo manter a produção e os trabalhos no lote devido à sua idade avançada.
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menos importante, a falta da energia e do transporte
246
. Entretanto, apesar de certa
homogeneidade nas formas de reivindicações de terra nos vários conflitos particulares
ocorridos no país, os movimentos de trabalhadores sem terra no Brasil apresentam uma
heterogeneidade de relações, englobando setores diferenciados dos trabalhadores. Sobre
isto, Grzybowski ressalta:
Na realidade, contam-se por milhões os trabalhadores rurais sem terra no
Brasil. Mas não são todos os que não têm terra que agem e pensam como os
camponeses e aspiram ter terra. Além disso, são frações específicas destes
camponeses sem terra que se incorporam ao Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra, revelando, (...) a diversidade de relações sociais como um
elemento configurador dos movimentos sociais de trabalhadores rurais
247
.
Durante a pesquisa, essa heterogeneidade natural em todas as relações sociais
pôde ser claramente constatada. Por um lado, entre os trabalhadores aqui estudados,
existem aqueles com objetivo de conseguir a terra, plantar conjuntamente, em benefício
de todos, e morar no assentamento com a sua família. Esse tipo de trabalhador incorpora
perfeitamente os ideais do Movimento, fazendo parte da coletividade e encarando os
objetivos do grupo como os próprios. Por outro, existe também aquele trabalhador que,
apesar de desejar um pedaço de terra para plantar e viver com sua família, prefere
trabalhar individualmente, e por isso rejeita as sugestões de trabalhos coletivos por parte
do Movimento.
Existem ainda outros tipos de trabalhadores sem terra os quais vêem no acesso a
terra a possibilidade de voltar a morar na cidade. Esses trabalhadores, quando
conseguem a terra, com o passar de algum tempo, vendem-na, retornando ao meio
urbano. E ocorrem ainda, na maioria dos casos, as experiências daqueles que vendem a
terra, definitivamente, por não conseguirem nela permanecer, sobretudo, devido à falta
de recursos e de conhecimento sobre o trabalho rural. Segundo Juaris de Souza,
246
Quando foi entrevista em 2003, Célia Umbelini afirmou: “pra nós a maior dificuldade é a bendita água
né? A energia eu sempre falo, a energia ajudava muito que, por exemplo, você pode ter duas vaquinhas,
mas se você fizer um queijo por dia e de qualidade, tudo bem né? Agora, aqui do jeito que nós faz minha
filha não dá. E transporte, que é as únicas coisas que pega muito, a gente aqui, eu e ela (Vilma, a vizinha)
fazia, no passado a gente trabalhou fazendo doce e queijo, tinha dia nós, você vê a distância do posto né?,
pra nós ir e voltar à a gente..., pra ir até que o filho dela levava a gente, ora de caminhonete ora de
moto né, mas pra voltar de tarde nós tinha que, você a gente ia vender os queijo, a gente trazia mais
queijo era pra casa. A gente ia duas vezes por semana não é Vilma? Como não pra você fazer uma
compra e trazer na cabeça de aqui, todo dia que nós vinha nós vinha com um peso, que todo dia que
nós ia e voltava nós tinha que trazer peso né, trazia um pouco cada dia. Então, a dificuldade maior nossa
aqui é a água. Agora, a tal da energia já vai saí né?, fica a água ainda, fica a água e o transporte. Célia
Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista
concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
247
GRZYBOWSKI, ndido. Caminhos e Descaminhos dos Movimentos Sociais no Campo. 3 ed.
Petrópolis: Vozes, 1991. p. 34.
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um dos maiores problemas é a falta de investimento para produção né. Esse é o
maior problema, é a falta de recursos. E agora o problema de venda de lotes é
conseqüência também de outras coisas. A primeira é que um o outro vender
num valor alto, acha que vai resolver os problemas dele com a venda e pegá um
dinheiro aí, talvez R$80.000,00 R$100.000,00 ou cento e poucos mil reais
248
.
Contudo acontece também a existência de trabalhadores que passam a encarar o
movimento e a vida em si no assentamento como uma fuga das cobranças da sociedade
do trabalho, são os que sabem, quase que unicamente, reclamar constantemente da sua
vida, do Estado, do Movimento, do tempo, da sorte de terem nascido pobres e de si
mesmos, julgando-se incapazes de mudar de vida por seus próprios esforços, enfim,
os trabalhadores que desejam e alguns poucos que parecem não desejar mudar de vida
por meio do cultivo da terra. Essa heterogeneidade existente entre nos objetivos que vão
tomando forma quando da instituição do assentamento dos trabalhadores, se dúvida, foi
um dos grandes problemas para a realização dos objetivos perseguidos pelo movimento
e pelo conjunto de trabalhadores, que potencializam todas as suas forças na realidade do
assentamento.
Por acreditar na possibilidade de melhorar suas condições de vida, a maioria se
defrontou com imprevistos por parte do Estado e do próprio movimento, que, a partir de
determinado momento, começa a priorizar novas ocupações de terra, visando se
fortalecer como entidade. Muitos trabalhadores, para suprir suas necessidades imediatas,
passaram a estreitar os laços de amizade construídos ao longo do processo de luta na
fazenda, buscando, sobretudo, meios para uma existência mais digna, mediante o
trabalho cooperado, ainda que não tenha se dado definitivamente de forma coletiva,
que, no assentamento Rio das Pedras, a maioria dos trabalhadores optou pelo trabalho
realizado de forma individual, algo que contribuiu para causar o enfraquecimento da
força de ação do grupo. Como conseqüência disso, muitos voltaram para as cidades ou
passaram a viver com base na renda obtida de trabalhos informais, extra propriedade,
fatos que denotaram a ineficiência da reforma agrária em estabelecer condições de vida
que proporcionassem a permanência e sobrevivência dos trabalhadores no assentamento
Rio das Pedras, a exemplo do que, aliás, tem ocorrido com muitos projetos de
assentamentos resultantes da reforma agrária no país.
248
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
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CAPÍTULO III
PERCALÇOS, AVANÇOS E REALIZAÇÕES NA TERRA CONQUISTADA
Organização interna do assentamento
Uma vez constituído, o assentamento Rio das Pedras ficou disposto em três
categorias de organização formal: uma associação dos assentados, da qual participam
todas as famílias; uma associação das mulheres, que congrega 32 famílias; e uma
cooperativa em fase de estruturação, que contava com 60 cooperados, quando de sua
criação, um ano e meio após o assentamento das famílias na fazenda, mas que,
atualmente, está com seu projeto abandonado
249
. Na fase inicial do assentamento, foram
formados oito grupos por afinidades entre as famílias, como parentesco, amizade,
origem, objetivos, etc. Com a junção de alguns deles, nos últimos anos, existiam quatro
grupos, cada um contando com um coordenador, mas todos começaram a esvaziar-se
após o terceiro e o quarto anos de existência do assentamento.
Durante os primeiros anos de existência da associação de moradores, as questões
referentes à produção e estruturação do assentamento Rio das Pedras eram todas
discutidas nas reuniões, que ocorriam duas vezes por mês. Dessas reuniões,
participavam os trabalhadores assentados, denominados base, os representantes do
movimento e os coordenadores de grupos do assentamento. Após cada encontro, os
coordenadores tinham como incumbência interagir com seus respectivos grupos, para
passar os resultados das reuniões e discutir os temas tratados
250
. Essa forma de
organização, que perdurou nos três primeiros anos da vida no assentamento, possibilitou
aos trabalhadores e às lideranças do movimento, bem como aos representantes do
assentamento se encontrarem com mais freqüência para discussão e deliberação das
questões de interesse coletivo. Porém, os grupos foram se desfazendo com o passar do
tempo, de modo que, atualmente, as reuniões se dão uma vez por mês, apenas com a
participação dos trabalhadores e dos representantes do assentamento, não contando com
a presença das lideranças do MTL, que não retornaram ao assentamento. Ademais, o
comparecimento dos trabalhadores às reuniões diminuiu bastante, tendo em vista que
aqueles que adquiriram lotes dos antigos assentados constituem enorme diferencial na
249
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
250
Idem.
98
rotina do assentamento
251
. Curioso notar que muitos desses novos moradores, embora
compareçam às assembléias logo após a compra do lote, com o passar do tempo, no
entanto, vão percebendo diferenças na maneira de pensar e de efetivar o trabalho
realizado no assentamento, sobretudo no que diz respeito às funções coletivas, tal como
apregoado pelos representantes da associação de moradores. Divergindo deste
posicionamento e acompanhando uma tendência constatada entre os antigos moradores,
a opção pela produção organizada de forma individual também marcou a concepção e a
prática do trabalho de todos aqueles que adquiriram lotes após a efetivação do
assentamento.
Entretanto, além dos atuais moradores dos lotes, que desde 2003 começaram a
compor novas caracterizações no assentamento, assinaladas pelo início da venda de
lotes, outro fator também contribuiu para que os grupos formados continuassem se
enfraquecendo e se desfazendo. Na opinião de alguns assentados, em muitos casos, os
próprios representantes dos grupos pararam de informar às bases, de forma detalhada,
sobre todas as decisões tomadas nas assembléias realizadas no assentamento, causando
desinteresse em muitos trabalhadores. Sobre isso, Lúcia informou o seguinte:
Na época de acampamento, é feita uma organização com vários coordenadores:
educação, produção, higiene, vários coordenadores. Esses coordenadores são
do assentamento, coordenador de grupo. Então, esses têm uma força política
maior. Os que fazem parte da comissão, nem sempre, os coordenadores passa
certinho, pra base entender, sabe! E toda turma sempre tem aqueles mais
ignorantes um pouco, ou, não quer entender também
252
.
Com a dissolução dos grupos, pode-se dizer que a intenção que os assentados
ainda tinham de realizar trabalhos coletivos, no início da implantação do assentamento,
foi totalmente deixada de lado. Durante o acampamento, os trabalhadores tiveram uma
experiência com cultivo coletivo, quando as famílias se uniram em grupo e produziram
vários tipos de hortaliças que eram consumidas ou comercializadas nas cidades vizinhas
e no âmbito do próprio assentamento, representando o período de maior coletividade
251
João Roberto, que comprou seu lote na fazenda ainda em 2003, nunca participou da cooperativa, que
hoje está desfeita, mas, conforme ressaltou, atualmente, cria gado, planta cana, possui um alambique,
pretende produzir cachaça e rapadura e participar da cooperativa. Contudo João Roberto relata que seu
relacionamento com os moradores do assentamento é muito bom e que tem direito a todos os créditos
concedidos pelo INCRA, principalmente os provenientes do Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar-PRONAF. João Roberto da Silva-Morador do assentamento Rio das Pedras.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
252
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
99
dos trabalhadores ao efetuar o trabalho nos lotes
253
. Logo após o parcelamento das
terras, houve apenas duas tentativas de trabalho coletivo: uma em 1998/99 e,
posteriormente, com a formação de um viveiro coletivo, que se encontra abandonado.
Contudo, presente nas relações de trabalho no assentamento, a cultura do
individualismo, própria do sistema capitalista, baseada no distanciamento do que se
mostra diferente, acentua-se ainda mais quando se trata da relação dos assentados com
seus vizinhos, do entorno da fazenda. Para isso, tem contribuído muito o preconceito
existente contra os assentados, associado, geralmente, à incompreensão dos seus atos e
percepções políticas em relação à forma de reivindicar a terra, por meio da sua
ocupação
254
.
Outro aspecto que cabe ressaltar está relacionado ao fato de que, se, por um
lado, as iniciativas de trabalhos coletivos no assentamento Rio das Pedras não foram
adiante, por outro, atualmente, a maioria dos trabalhadores possui algum tipo de
ocupação remunerada, ainda que fora dos lotes. Alguns dos assentados adultos
trabalham de empreito em serviços de roças, em locais próximos do assentamento, no
próprio município de Uberlândia ou em outras cidades, exercendo funções de pedreiro,
servente, ajudante de serviços gerais, entre outras tarefas, de modo que grande parte
desses trabalhadores desenvolve suas atividades informalmente
255
.
Quanto à Previdência Social, até o ano de 2002, existiam 15 pessoas assentadas
que se aposentaram por idade ou tempo de serviço e uma por invalidez
256
, hoje, existem
253
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
254
É importante ressaltar que o julgamento dos trabalhadores também se processa, em certos casos, sob
outras formas. Como ficou constatado nas entrevistas com alguns moradores que compraram lote no
assentamento, existe também uma incompreensão no que se refere às dificuldades enfrentadas pelos
assentados e à conseqüente ausência de produção nos lotes, não raro, generalizada e concebida como
sendo o resultado da inércia dos trabalhadores do assentamento. Nesse sentido, a fala de Zoete Ferreira
Soares, compradora de lote no assentamento, é exemplar: “Agora, eu acho assim muito difícil, na maneira
deu pensar, ficar oito anos, nove anos, dez anos, num pedaço de chão e não fazer quase nada, porque já
vai fazer dois meses e eu acho que a gente já deu uma limpada, já arrumou alguma coisinha, já pôs animal
e isso aí agora é a longo prazo, vai melhorando”. Zoete Ferreira Soares. Compradora de lote do
assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de
2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
255
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da
Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
256
Contrato de outubro/1998. Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de
Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das
Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 7. E ainda
conforme entrevistas e conversas informais com os assentados.
100
somente oito, pois algumas daquelas pessoas retornaram para a cidade
257
. Mas essa
renda, ainda que pequena, ajudou na manutenção de algumas famílias cujos chefes, com
idade avançada, não possuíam renda por meio do trabalho executado nos lotes.
Em termos de habitação, a maioria dos trabalhadores mora em casas de
alvenaria, sendo raras as casas construídas com placas de muro. Até o ano de 2004, os
moradores ainda não contavam com energia elétrica e tinham de fazer uso de velas,
lamparinas, lampiões e poucos podiam utilizar geradores próprios
258
, de modo que a
energia chegou ao assentamento, definitivamente, apenas sete anos após sua instituição
formal, quando muitas famílias assentadas vendiam seus lotes, retornando à cidade
259
.
No que se refere à circulação de pessoas e mercadorias no assentamento, pode-
se dizer que as famílias ainda encontram muitas dificuldades de locomoção. As estradas
disponíveis não estão encascalhadas, comprometendo a movimentação das pessoas e
dos produtos alimentícios colhidos nos lotes, principalmente nos períodos de chuva.
Isso também força uma mudança na rotina dos alunos, que, muitas vezes, são forçados a
deixar os veículos que as transportam para terminarem o trajeto até a escola a ou,
simplesmente, não assistem às aulas do dia. Neste sentido, os assentados passam por
sérias dificuldades de deslocamento no assentamento desde o período de acampamento
das famílias. Conforme ressaltou Célia Umbelini, nas épocas de chuva, as dificuldades
para transitar nas ruas do assentamento aumentam, pois nesses momentos as ruas ficam
escorregadias e cobertas de lama, não sendo raro o atolamento de veículos
260
.
Trabalho e vivências no cotidiano dos assentados
A produção realizada no assentamento Rio das Pedras, de maneira geral, desde o
acampamento das famílias até os dias atuais, tem ocorrido de uma forma bastante
precária, mesmo reconhecendo que os trabalhadores que permaneceram em seus lotes,
257
Geraldina Ferreira da Silva-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras/Assentamento
Rio das Pedras - Uberlândia/MG.
258
Francisco Conrado DAraújo-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
259
Segundo Juariez de Souza, atual presidente da associação de moradores do assentamento, os lotes
começaram a ser vendidos ainda no ano de 2003. Hoje, do total de oitenta e sete famílias que foram
assentadas na fazenda, quarenta já venderam seus lotes e retornaram para as cidades de origem porque
não conseguiram se manter no campo, por meio do cultivo da terra, como foi esclarecido anteriormente.
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
260
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
101
na lida diária com a terra, possuem boa noção de plantio, o que se deu, principalmente,
após sucessivas experiências mal sucedidas, resultantes da falta de recursos e de
planejamento adequado para a execução das atividades no campo.
Entre os problemas freqüentemente vivenciados por aqueles moradores, a falta
de recursos, de um lado, e a ausência de um plano de ação visando à produção, de outro,
certamente, representam os maiores obstáculos para a sobrevivência nos lotes, gerando
impasses que tiveram como conseqüência a própria perda da plantação no início das
experiências das famílias com o cultivo. Conforme Célia Umbelini, nas primeiras vezes
em que os trabalhadores plantaram, perderam toda a lavoura, pois semearam na época
errada. Segundo informou, quando a fazenda foi dividida em lotes:
Cada um foi plantar o que quis, uma turma plantaram arroz , primeiro ano,
no coletivo, e plantaram milho também. No primeiro ano de assentamento, eles
deram azar demais que plantaram e perderam né. Perdeu! Perdeu porque
plantaram quase no fim de janeiro né, pegaram o crédito quase no final de
janeiro, plantaram pra perder. Mas eles arruma o crédito e exige que você bota
ele na terra, eles não quer nem saber se é pra dar ou se é pra jogar o dinheiro
fora. Chegou aqui: ‘ó, você vai pegar dois mil reais, você vai plantar eles!’.
que a chuva estava indo embora! Uai, plantar como? Uai, plantar,
plantaram, todo mundo plantou, agora colher, me pergunta quantos? Nenhum!
Pois é, você já viu plantar arroz, milho, no final de janeiro?!
261
.
Questionada sobre a importância da assistência técnica cedida aos trabalhadores,
para que esse tipo de problema fosse evitado na produção, Célia Umbelini declarou que,
apesar de haver esse tipo de apoio no primeiro ano de assentamento, como a prioridade
dos recursos destinados aos assentados era a plantação nos lotes, mesmo sabendo que o
período era impróprio para plantar, os trabalhadores tomaram tal decisão, perdendo a
colheita. Sobre isso, Célia ainda ressaltou:
A exigência, quando eles dá o dinheiro pra gente, é que é pra plantar, então, se
é pra plantar, então nós vamos plantar! Só que a gente sabia que ia plantar pra
perder! É só jogar o dinheiro fora que, aliás, nós já vai ter que pagar o
dinheiro que nós jogou fora, que ele foi jogado fora, eles exige que se plante!
Na época, tinha uma tal duma assistência técnica do Lumiar, que fazia o
projeto e exigia que se plantasse, não importava a época, até parecia que a
gente tinha um sistema de irrigação montadinho, beleza, que você pode plantar
qualquer época do ano né, que a gente não depende da natureza né?
262
.
Na realidade, a assistência técnica concedida aos assentados de Rio das Pedras
teve início ainda em 1998, quando uma equipe do Projeto Lumiar permaneceu no
261
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
262
Idem.
102
assentamento pelo exato período de um mês. Porém, a formação desta equipe não se
confirmou e os trabalhadores ficaram sem assistência durante o período de plantio,
causando muitos transtornos para a produção e razões de desmotivação nos
assentados
263
.
Posteriormente, entre novembro de 1999 e junho de 2000, formou-se outra
equipe do Projeto Lumiar, composta por um agrônomo e um técnico agrícola. Nesse
momento, a equipe elaborou alguns projetos, financiados pelo Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF
264
. Mas sem as devidas condições de
acompanhamento na implantação do projeto, a equipe foi desfeita em julho de 2000.
Após essa tentativa, entre os meses de novembro de 2000 e janeiro de 2001, formou-se,
novamente, outra equipe de assistência técnica, mas dessa vez foram feitos apenas os
projetos de custeio e a seguir foi novamente desfeita
265
.
Apesar de tudo, de acordo com o Plano de Consolidação do assentamento Rio
das Pedras, nos primeiros quatro anos de assentamento os sistemas produtivos estavam
divididos em três grupos principais e se diferenciavam quanto ao tipo de atividades
desenvolvidas. O primeiro grupo, constituído por 42 famílias, cultivava mandioca,
milho, arroz e feijão. Destas famílias, nove cultivavam esporadicamente, não criavam
nada no lote e dependiam de outras fontes de renda, trabalhando fora da propriedade. O
segundo grupo, de 31 famílias, desenvolvia suas atividades voltadas para a criação de
gado de leite, que, em sua maioria, dava mais gastos do que leite, além das dificuldades
que havia em manter esse tipo de atividade, com uma média de 13 cabeças por família.
Mais ou menos 13 destas 31 famílias dependiam exclusivamente da produção do leite,
enquanto o restante cultivava mandioca, milho ou arroz para subsistência. O terceiro e
menor grupo, formado por 10 famílias, optou pelo cultivo de olerícolas - abóbora,
quiabo, pepino, jiló, melancia-, a sua renda agrícola dependia primordialmente desse
263
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
264
“Em 1995, foi instituído o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF”.
O programa “visa dar apoio financeiro, com encargos favorecidos, aos produtores rurais que desenvolvem
suas atividades agropecuárias e não agropecuárias utilizando-se, basicamente, de mão-de-obra familiar,
objetivando o aumento da renda, a elevação da produção, a melhoria da produtividade, o uso racional da
terra, a proteção ao meio ambiente e, por conseguinte, a melhoria de vida e a fixação do homem ao
campo”. BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA. Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF. Disponível em: www.incra.gov.br. Acesso: 20/12/2005.
265
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
103
tipo de atividade, com todos os grupos baseando-se no trabalho familiar
266
. Dessa
forma, à exceção do primeiro ano de assentamento das famílias, no qual houve trabalho
coletivo, pode-se dizer que em todas as áreas de produção, a organização básica
fundamenta-se na Agricultura Familiar, trabalho apoiado somente na o-de-obra dos
membros da família.
Apesar disso, ocorre muitas relações de trocas de experiências de cultivo,
mediante trabalhos realizados com a ajuda de algum vizinho de lote ou ainda entre
certas famílias que se tornaram muito amigas
267
. Nos primeiros anos de vida dos
trabalhadores no assentamento, a produção se dava predominantemente sob forma de
subsistência, explorada de modo individual, em pequenas áreas, com o plantio de arroz,
milho, feijão, mandioca, realizado por poucas famílias. Posteriormente, alguns
assentados introduziram a fruticultura, com o cultivo de maracujá, banana, pêssego e
figo, mas mesmo atualmente essa produção é bem pouco significativa.
Ainda no que se refere à produtividade, existem algumas famílias que produzem
excedente para a comercialização, sendo que a maioria planta apenas para consumo
próprio. Muitas das famílias que ainda permanecem no assentamento nada plantam, mas
todas as famílias que plantam têm problemas com a produtividade. Conforme Célia
Umbelini, os problemas com a produção no assentamento, além da assistência técnica,
que deixa a desejar, advêm da falta de conhecimento sobre plantio. Quando questionada
acerca dos principais problemas enfrentados pelos trabalhadores ao realizar a produção,
Célia afirmou:
Dificuldade é muitas, acho que a falta de conhecimento, principalmente!
Porque eu fui criada na roça, mas em terra boa né, no Estado de São Paulo, aí
eu achei que viria pra roça e ia ser igual a gente vivia por lá, mas na verdade
fica muito diferente e o incentivo do governo é pouco, não o dinheiro eu falo,
sabe, é a assistência! Se tivesse assistência técnica desde o início, uma
assistência técnica competente, eu acho que 90% dos vendedores de lote não
teriam vendido . Porque essas terras nossa aqui, a gente não conhecia elas!
você pega aquele crédito, aplica mal e não resultado. Se a gente tivesse
uma assistência técnica, eu acho que a gente se virava muito melhor, o povo
desempenhava muito melhor. Porque aqui, o que a gente fez e perdeu,
você vê, em oito anos, a gente já perdeu demais, então desanima as pessoas!
268
.
266
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
267
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação das Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
268
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
104
Nesse sentido, os problemas referentes à assistência técnica acabaram refletindo
sobre a própria utilização de insumos, pois a maioria dos assentados emprega adubação
química, mas sem recomendação e acompanhamento técnico adequado, inclusive sobre
o período mais apropriado para aplicação. Poucos moradores corrigem o solo com
calcário e a irrigação é praticada apenas pelos produtores de olerícolas. Alguns
trabalhadores utilizam equipamentos próprios ou ainda alugados, na mecanização para o
cultivo do solo, mas a maioria necessita de algum tipo de ajuda advinda da Secretaria de
Agropecuária do Município de Uberlândia
269
. Para os trabalhadores que se dedicaram à
criação de gado no assentamento, essa atividade é voltada, sobretudo, para a produção
de leite, mas com rebanhos de baixo padrão genético e, por conseguinte, baixa
produtividade, cuja média gira em torno de 4,8 litros de leite por vaca e com uma
variação de 2 a 9 litros por animal
270
.
De modo geral, os principais problemas encontrados por todos os trabalhadores
são a falta de recursos e, principalmente, de acompanhamento técnico. Esta situação faz
com que muitas famílias não consigam investir em qualquer tipo de produção, tendo
que viver de renda conseguida fora do assentamento. Mas, segundo Célia Umbelini, a
falta de recursos para plantar também contribui de modo negativo, em certa medida,
para os insucessos na produção:
Mas se pensa, a pessoa fica um ano e meio [oito meses] aqui acampada, os que
tinha alguma coisinha na cidade foi vendendo e comendo naquela época, e
depois começou a comer o que não tinha mais, quando pegou o primeiro
crédito depois o povo já tava tudo devendo. Aí até saí o outro, sem você
produzir nada na terra, também já tava devendo tudo outra vez, ou então
chegava um filho não tinha um chinelo pra calçar, o outro também não tinha
uma roupa pra vestir né, então parte dos créditos foi gastado é com comida
mesmo, o povo queria era comer, ia pegar, ia morrer de fome?! Não ia. Uns já
tava devendo quase a metade, outros tava devendo mais da metade e o povo
em cima cobrando e brigando né? eles fala assim, nós, até hoje, a gente
reconhece assim, que ele [o governo] não precisava dinheiro pra ninguém,
mas se ele colocasse a pessoa na terra e corrigisse a terra e falasse: ‘ aqui a
semente, vocês vão plantar e colher’, era bem melhor do que ele por aí onze mil
e quinhentos reais na mão do povo, na hora errada, numa terra dessa aqui sem
corrigir
271
.
269
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
270
Contrato de out./1998. In: Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de
Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das
Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
271
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
105
Além das várias dificuldades com relação à assistência técnica concedida aos
trabalhadores assentados, quase não houve cursos para os moradores, pois, no que se
refere à capacitação profissional, o projeto de maior expressão no assentamento Rio das
Pedras foi realizado pela Universidade Federal de Uberlândia-UFU, apenas em 2005,
executado ao longo de dois anos. Denominado Programa de Apoio Científico e
Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-MG/Triângulo Mineiro,
esse projeto, em parceria com outros organismos oficiais, ofereceu vários cursos de
capacitação aos assentados, dentre as mais de sessenta atividades ali implementadas,
com ênfase nas áreas de educação, produção e saúde
272
. Antes da efetivação desse
programa, alguns assentados até haviam recebido capacitação isolada, participando de
cursos de avicultura e floricultura na Escola Agrotécnica de Uberlândia.
Entretanto, de modo geral, até o ano de 2005, ainda não haviam sido realizados
cursos de capacitação que se estendessem a todos ou que congregasse a maioria dos
trabalhadores assentados, como ocorreu no caso do PACTo. Questionado sobre as
vantagens do programa para o assentamento, Juaris de Souza, presidente da associação
de moradores, ressaltou:
Teve muitas, nessa parte mesmo de conhecimento, eu não posso especificar
porque tem muitas coisas que as pessoas aprenderam que eu nem não sei, não
participei. Dentro da organização mesmo, quando tinha encontro na
universidade, a associação das mulheres mesmo que tomava a frente, elas
participavam com barracas, organizando os produtos pra poder tá vendendo os
produtos pro pessoal, isso é uma coisa importante. Dentro da educação
mesmo, nós tivemos aí, na parte de alfabetização, não foi do jeito que nós
pensava, mas foi uma coisa boa, porque muitas pessoas já participou
bastante. que parou né, era pra ter dado continuidade, chegou no final,
agora parou. Dentro do telecurso também o ano passado foi, na parte de
geografia teve muita gente que fez o telecurso do ensino fundamental. Esse ano
era pra ter dado continuidade na matéria de português, por no final também
ficou parado, mas foi uma coisa que incentivou e ajudou muita gente. Na
parte da produção, na parte da orgânica também, nós tivemos curso no final
também que foi uma coisa importante, tivemos professor do Espírito Santo que
teve aqui ministrando curso. Na mudança da agricultura familiar, que é uma
272
Recentemente, entre os anos de 2004 e 2006, foi realizado no assentamento Rio das Pedras o Programa
de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo - MG/TM, criado
pela Universidade Federal de Uberlândia por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação,
contando com a colaboração de várias parcerias institucionais, além do trabalho de alunos e professores
de diversas áreas do conhecimento da UFU. Junto com o assentamento Rio das Pedras, o Zumbi dos
Palmares, também localizado no município de Uberlândia, o Bom Jardim e o Ezequiel Dias, de Araguari,
também foram beneficiados pelo programa. Durante o programa, foram realizados ao todo vinte projetos
de pesquisa e mais de sessenta atividades com ênfase nas áreas de educação, produção e saúde no âmbito
dos assentamentos. Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-
PACTo-MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006.
106
coisa que precisa ser implantada, essa parte da orgânica na produção do
adubo e tudo, foi uma coisa que eles tiveram aí e ensinou
273
.
Apesar da realização dos cursos de capacitação para os trabalhadores terem
demorado muito a ocorrer no assentamento Rio das Pedras, os créditos recebidos pelas
famílias assentadas chegaram ainda no primeiro ano de existência do assentamento.
Esses créditos foram provenientes de duas iniciativas governamentais, a saber, o
Programa de Crédito Especial para a Reforma Agrária-PROCERA, e o Programa
Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar-PRONAF. Segundo o Plano de
Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, a média de endividamento total por
assentado no Banco do Brasil é de R$ 11.500,00, divididos entre custeio e investimento.
No caso do PROCERA, o valor da vida por assentado foi de, aproximadamente,
R$2.500, 00, com um desconto de 70%, o que diminuiu a parcela para R$ 750,00 a ser
dividida em 15 parcelas anuais no valor de R$ 50,00. O PRONAF, por sua vez, propôs
investimento estabelecendo parcelas anuais de R$ 1.455, 79, com desconto de 40% ,
passando para R$ 873.48
274
. Porém, todas as dívidas dos assentados e dos pequenos
produtores da Agricultura Familiar, em geral, passaram por um processo de
repactuação, pelo qual os investimentos foram todos estudados individualmente,
aplicando-se novos índices de desconto e novos prazos para os trabalhadores assentados
efetuarem o pagamento.
Atualmente, a maioria dos moradores do assentamento encontra-se com as
dívidas atrasadas e acumuladas no banco. No entanto, apesar de não plantarem grandes
quantidades, alguns comercializam o pouco excedente dos produtos no assentamento e
nas cidades vizinhas. De modo geral, porém, muitas pessoas não conseguiram montar a
sua estrutura produtiva na agropecuária de forma a sustentar seus familiares, sendo
necessário desenvolver atividades fora da propriedade. Conforme relatou o presidente
do assentamento, não raro, os trabalhadores assentados empregam-se mesmo nos lotes
dos próprios novos moradores, os quais adquiriram lote no assentamento mediante a
compra.
Sobre as relações de trabalho entre os antigos assentados e os novos moradores,
que são os que compraram lote no assentamento, Juaris de Souza ressaltou:
273
De acordo com Juaris de Souza, 40 dos 87 lotes já foram vendidos na fazenda Rio das Pedras.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
274
Contrato de outubro/1998. Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de
Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das
Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
107
No início, quando chega [os compradores], apresenta ser bom demais, chega
com dinheirinho e tudo, inclusive, o que aconteceu com nós, na época de fazer
o assentamento, o problema que tem, vem pra cá, já não era pra tá trabalhando
pros outros né?! Então, hoje, talvez tenham alguns que está em dificuldade, a
tendência já é, não, chega um com um dinheirinho [os compradores], ele
[morador antigo] vai trabalhar na diária com o outro e ganhar um dinheiro
todo mês pra defender a feira. Aí acha bom, fala: “não, o cara é bom!”, Mas
isso aí, nós tivemos essa discussão e tudo, falo não, se fosse pra poder
trabalhando, ficava trabalhando pro fazendeiro, não precisava fazer o
assentamento. Ou então, a pessoa ficava trabalhando de carteira assinada na
cidade ou qualquer coisa!!
275
.
Ainda conforme Juaris de Souza, os novos moradores do assentamento, em sua
grande maioria, chegam ao seu lote e logo começam a prosperar em termos de produção
e organização do trabalho na terra. Em sua opinião, é injusto que esses recentes
moradores recebam os mesmos benefícios que os trabalhadores antigos, que passaram
por todas as dificuldades, correndo risco de vida para ter acesso à terra. Nas próprias
palavras de Juaris:
Poucos que compraram lote não estão prosperando, não estão no empenho né.
Principalmente porque quem comprou o lote hoje o governo libera o
investimento, que hoje é de R$18.000,00 inclusive, nós, que estamos assentados
antigos, nós ficamos mal vistos, pensam que somos preguiçosos porque nossa
cerca..., olha como a cerca da comadre aí! Na época, pegamos R$7.000,00,
seis anos. Hoje, o que compra é regularizado, pega os R$18.000,00 e,
além disso, pega o PRONAF [Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar] todo ano, além de ter pegado o lote, que estava com as
benfeitorias todinhas. Então, é uma desigualdade isso aí. Depois que ele está
no lote e ele estando trabalhando ele é regularizado e depois de regularizado
ele tem todos os benefícios de um assentado, igual um assentado. E assentados
antigos não, nós estamos com quatro ou cinco anos que não temos direito a
nenhum crédito, nem de custeio, nada!
276
.
Nesse sentido, são realmente muitos os novos moradores do assentamento que,
desde que chegaram ao Rio das Pedras, vivem numa situação bem melhor que a dos
trabalhadores antigos, o que causa espanto e incompreensão dos dois lados. Aqueles,
por acreditarem que os antigos moradores não se esforçaram para ampliar a produção e
melhorar a sua condição social, ainda mais, contando com o apoio financeiro do
governo; estes, por acharem que os novos moradores, considerados pela maioria dos
assentados como sendo provenientes de camadas sociais mais abastadas, não deveriam
ter o direito de receber todos os benefícios estatais que os verdadeiros sem terra, que
lutaram pela expropriação da fazenda, receberam. Apesar desses conflitos que, na
275
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
276
Idem.
108
realidade, ficam apenas nas palavras e na imaginação de cada um dos moradores do
assentamento, quer sejam dos antigos ou dos novos, os compradores, de fato, recebem
todos os financiamentos que um morador que foi assentado na fazenda, quando de sua
desapropriação, recebeu. Desse modo, o atual modelo de reforma agrária, tanto abre
margens para a venda de lotes, à medida que permite sua ocorrência, quanto funda as
bases para financiar, duplamente, a reforma agrária. Ao responder se tem recebido os
mesmos créditos que os antigos moradores, Vitor Pereira de Lima, morador que
comprou lote no assentamento, afirmou:
Mesma coisa, os mesmos benefícios, no meu caso não, minha casa eu construí
com recurso próprio, a água eu consegui com recurso próprio, a única coisa
que eles me deram aqui foi uma fossa biodigestora, o resto foi tudo por minha
conta. Mas, teve outros que tiveram mais coisas, após esse termo de
compromisso do INCRA, eu tenho os mesmos benefícios junto ao banco:
financiamento, PRONAF, financia com três anos de carência e dez pra pagar,
depois vem o PRONAF-custeio, que é pra plantio, é anual, financia hoje e o
ano que vem, na mesma data, tem que pagar, mas eu não peguei esse ainda,
não sei a taxa de juro, mas vai indo
277
.
Contudo, a venda de lotes no assentamento Rio das Pedras continua ocorrendo e
os trabalhadores, que tanto lutaram para retornar ao campo, acabam dele se retirando
para mais uma vez voltar à cidade, de onde saíram com tanto sacrifício em busca de
melhores condições de vida. Conforme informou João Roberto da Silva, morador que
comprou lote no Rio das Pedras:
Hoje, tem lote vendendo aí até por R$100.000,00 - R$150.000,00. Eu não vendo
não, os que venderam estão jogando fora, estão voltando pra trás, sem
nada. Inclusive, tem um morando ali, o Cido, eu comprei já dele, então, quando
eu entrei [comprou em 2003], ele teve que sair, hoje ele não tem nada, tem dia
que ele chora! Ele tá morando de favor aqui da sede!
278
.
Diante de tantas dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores que ainda moram
no assentamento Rio das Pedras, poucos conseguiram gerar algum tipo de excedente.
Para esses moradores, a comercialização da produção ocorre de forma reduzida, de
modo que predomina o comércio informal, em que alguns produtores de queijo, doce,
requeijão, pamonha e mandioca ofertam seus produtos no próprio local, em Uberlândia
e na cidade de Ribeirão Preto. O comércio dos produtos é feito de forma individual,
277
Vitor Pereira de Lima-Morador do assentamento Rio das Pedras. Comprador de lote no assentamento.
Entrevista concedida em julho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
278
João Roberto da Silva. Morador do assentamento Rio das Pedras. Comprador de lote no assentamento.
Entrevista concedida em julho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
109
freqüentemente, em pequenos armazéns e na Central de Abastecimento de Minas
Gerais-CEASA, unidade de Uberlândia
279
. Em maio de 2002 foi criada, e registrada na
Junta Comercial, a Cooperativa de Produção, Industrialização e Comercialização dos
Produtores Assentados na Fazenda Rio das Pedras-COARPE
280
. Apesar de formalmente
constituída, a cooperativa ainda não está efetivamente atuando, forçando os assentados a
realizar compras individualmente, para se manterem no lote, algo muito trabalhoso e
dispendioso para os trabalhadores. Pelo que as entrevistas com os moradores indicam, a
cooperativa contou com muitos participantes somente no seu início.
Com o passar do tempo, apesar dos trabalhadores continuarem a freqüentar as
reuniões realizadas para discutir a respeito de projetos de produção para o assentamento,
a própria cooperativa foi enfraquecendo-se, devido aos poucos projetos implantados.
Segundo relatou Célia Umbelini, atualmente:
A cooperativa parada, até que tinha muito participante, mas agora diz que
vai funcionar, fez-se uma reunião pra trocar a diretoria, mas até hoje
[24/08/2006], ninguém veio aqui pra buscar papel nenhum da cooperativa, pra
ir atrás de mudar a diretoria no papel. Agora, dizem que vai funcionar de
verdade, por causa da fábrica de farinha, porque a fábrica de farinha, pelo
menos o maquinário foi doado pela prefeitura pra cooperativa, eles disse que
deram esse maquinário, que até hoje não chegou aqui, tem o prédio lá, mas
o maquinário não chegou aqui ainda, fez o prédio perto da sede, aquele
amarelo, mas nada de maquinário!
281
.
Além dos problemas gerados na implantação de projetos no assentamento, os
trabalhadores também apontam a presença dos recentes moradores que compraram lote
dos antigos e que, em certos casos, atrapalham a organização dos antigos moradores no
que se refere à cooperativa. Conforme ressaltou Juaris de Souza, o relacionamento dos
trabalhadores com os compradores de lote no assentamento é bastante amigável, mas,
com o tempo, essas relações vão se desgastando devido a desacordos surgidos. Esse
desentendimento entre moradores antigos e novos ficou bastante explicitado, segundo o
presidente do assentamento, por meio das divergências no que se refere à utilização de
um posto de resfriamento de leite, implantado no assentamento Rio das Pedras com
279
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
280
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002.
281
Ao falar sobre os papéis, Célia refere-se aos documentos para troca de diretor da cooperativa, que
atualmente é seu marido, o senhor Lauro Joaquim de Morais, que se dispôs a conversar, mas optou por
não conceder entrevista formal. Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante
da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em agosto de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.
110
recursos advindos do Instituto de Terras de Minas Gerais-ITER
282
. Nas palavras de
Juaris:
Quase todos têm um relacionamento bom. Quando compra, o relacionamento é
100%. Agora, depois que é regularizado também, as pessoas não são como
aquelas que foram assentadas, antigas, que passou pelas dificuldades todas.
Porque as pessoas, quando elas vêm pra cá, elas têm uma capacidade maior
do que o que foi assentado, que passou pelo processo de acampamento. Então,
ele vem, chega, se precisa de vir aqui na casa da comadre ou qualquer um,
eles vêm aqui, trata bem, se precisar de ir na cidade, eles vai junto; enquanto
eles precisam! Agora, depois que eles não precisam também, eles quer ser
individualista e tocar a vida deles! O objetivo deles é uma coisa individual
né, de tocar a vida deles do jeito que eles pensavam
283
.
Questionado acerca da participação dos novos moradores do assentamento nos
trabalhos e reuniões da cooperativa, que atualmente encontra-se parada, Juaris de Souza
apontou os problemas surgidos nessa relação, ao declarar:
Têm alguns que participa e têm interesse em participando, mas são poucos.
Têm alguns que têm o interesse em participando, mas pra tirar proveito
próprio, inclusive nós corremos com alguns aí, esse problema do leite
mesmo, que tem gente que foi assentado aqui hoje, ele pega o leite aqui de
dentro e leva pra fazenda fora. Então, eles desorganizam nós demais com o
tanquinho que tem! Elas pegaram, porque elas [a associação das mulheres]
também tinham um projeto para produção na época, que o governo liberava
um projeto pra comercialização. Até, na época, teve um problema com as
mulheres, falou que elas não estavam produzindo nada, como que elas iam
comercializar o que elas não produziam? Chegou no final, ficou pra poder
pegar esse tanquinho e teve problema também com as pessoas que usam o
tanquinho, que as mulheres, pra poder regularizar a documentação delas e
tudo, pra poder elas pegarem uma porcentagem pra elas. E eles [compradores],
não aceitaram, pelo uso do tanquinho! Então, eles pegam o leite e leva pra fora
do assentamento aqui e desorganiza a comunidade nossa!
284
.
Desse modo, das tentativas de trabalho coletivo no assentamento, não é apenas a
COARPE que não está indo adiante em seus projetos de produção. A Associação de
Mulheres do Assentamento Rio das Pedras-AMARP, instituída ainda no ano de 2000
285
,
resultou em poucos avanços em termos de aquisição de máquinas ou instrumentos
necessários ao trabalho nos lotes e ainda no que tange à realização de cursos voltados
para a produção e para os trabalhos gerais do assentamento. Sobre a Associação de
Mulheres, Lúcia Helena, sua atual coordenadora, informou:
282
Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-
MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006. p. 63.
283
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
284
Idem.
285
Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-
MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006. p. 28.
111
Nós montamos uma associação de mulheres no dia oito de agosto de 2001
[2000], com o intuito de conseguir algum trabalho pra ajudando a família, e
através dessa associação, nós conseguimos um tanque de expansão. Agora, nós
mandamos dois projetos pra entidades que a gente nem sabe qual é ainda, é a
nossa equipe de assistência técnica que tá mandando, foi um projeto de galinha
caipira e uma máquina pra desidratando frutas. Até hoje, conseguimos foi o
tanque com a associação, o tanque, devido a ter poucas mulheres e nem
todas paga a associação. Têm 34 mulheres, que, na verdade, as que tomam
conta da coisa mesmo são umas quinze, então, as outras quase não pagam
associação, a gente tem que correr atrás de projetos e a condição financeira da
associação é pouca, mas tá aí, a gente tá pelejando!
286
Não bastasse a maioria das mulheres que compõem a Associação de Mulheres
não se interessar em participar efetivamente das reuniões e da contribuição necessária à
sua manutenção, também os moradores, em geral, tanto os antigos, como os novos,
optaram por não contribuir com a entidade; uns, por achar que seus projetos não teriam
resultados, outros, porque acreditam que se a até mesmo cooperativa não foi adiante, a
associação encontraria dificuldades ainda maiores para seguir adiante.
No entanto, na opinião de Célia Umbelini, que sempre tem comparecido aos
trabalhos da associação, sendo uma das poucas mulheres que se empenham para ver os
resultados dos seus projetos, mesmo aqueles moradores que não participam e sequer
contribuem com recursos para mantê-la, utilizam o posto de resfriamento de leite,
conseguido mediante essa associação, uma vez que, quando este equipamento chegou
ao assentamento, todos os moradores que trabalhavam com a produção de leite, foram
autorizados a utilizá-lo
287
. A respeito dessa associação, Célia ressaltou:
parada, muito parada! O único projeto que deu certo foi aquele tanque de
leite, aquele é da associação das mulheres, um projetinho que a gente
conseguiu. Assim, a associação das mulheres fez pra criar galinha caipira!
eles falou que não financia produção, o técnico que estava na época falou:
“vocês pode pegar um tanque de leite!”. a gente pegou o tanque! Agora,
todo mundo que tem leite utiliza o tanque, ele é um tanque de resfriar o leite, é
da associação das mulheres. Aí, quando o povo começou a aumentar o leite, fez
uma reunião na assembléia, disseram se podia pôr leite, eles vieram falar
comigo e com a Lúcia, eu falei: “quem tem que organizar pra colocar o leite é
vocês, que tem o leite, vocês organiza e utiliza o tanque”. Porque ele estava
parado né. Aí, na época, surgiu uma questão aí, que eles tinha que pagar um
dinheirinho pra associação das mulheres, mas eles não aceitaram a idéia né, os
outros, os homens aqui do assentamento. Aí, portanto, a gente conseguiu esse
tanque, mas nós não utiliza e ninguém colabora com nós por nada, pra gente
pagar o que nós temos que pagar todo ano, as despesas da associação! A gente
286
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação das Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
287
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
112
sempre faz uma festinha ou então as próprias mulheres começa a contribuir
com um pouco de cada uma pra gente poder pagar!
288
.
Entretanto, apesar dos diversos problemas de ordem técnica enfrentados pelos
trabalhadores, quando uma família é assentada, com os documentos legalizados no
INCRA e os trabalhadores de posse do título provisório da terra, uma vez que o título de
domínio definitivo da terra é concedido aos moradores após dez anos como
assentado
289
, o primeiro passo do INCRA é a elaboração do Projeto de Assentamento-
PA, um plano que, geralmente, é escrito pelo movimento social ao qual se vincula o
assentamento instituído por desapropriações de terra.
No assentamento Rio das Pedras foi implantado o Programa de Consolidação
(Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária-PAC
290
. Em
parte financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID, o PAC
“viabilizou melhoria na sede, estradas, a instalação de energia elétrica, realização de
curvas de nível nos lotes, poços para a obtenção de água e saneamento”
291
. Contudo,
288
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
289
De acordo com o INCRA, o “Título de Domínio Definitivo é o título que posse definitiva do lote à
família nele assentada. Ele o pode ser negociado pelo prazo de 10 anos. Após o recebimento do Título
de Domínio, o(a) beneficiário(a) tem 20 anos de prazo, com três anos de carência, para efetuar o
pagamento em prestações anuais. Caso seja pago em dia, o valor terá uma redução de 50% sobre a
correção monetária. Também terá desconto de 50% na prestação anual a família que mantiver na escola
os lhos que tenham entre 7 e 14 anos. Os valores dos créditos de apoio à instalação e aquisição de
material de construção são cobrados em separado. O que for gasto com obras de infra-estrutura,
topograa e o plano de desenvolvimento dos assentamentos não é considerado dívida e portanto não é
cobrado. As parcelas do empréstimo obtido por meio do Pronaf são pagas diretamente ao banco onde for
realizada a transação do empréstimo”. BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-
INCRA. O que é Programa Nacional de Reforma Agrária? In: Manual dos Assentados e Assentadas da
Reforma Agrária. Disponível em: www.incra.gov.br. Acesso: 13/02/2007.
290
O plano do Programa de Consolidação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC do Assentamento Rio das Pedras, foi elaborado pela Prefeitura Municipal de Uberlândia e
por representantes técnicos do Movimento de Libertação dos Sem Terra-MLST. “Desde o ano de 1999, o
PA [Plano de Assentamento] Rio das Pedras conta com um Plano de Desenvolvimento elaborado sob a
coordenação do Movimento de Libertação dos Sem Terra-MLST-, um movimento social que atua na
região. Com a inclusão do assentamento no PAC, foi necessário que se atualizasse e se reformulasse o
referido plano para atender às normas do Programa, formando-se uma equipe multidisciplinar na
Secretaria Municipal de Agricultura com este objetivo, seguindo-se as metodologias de planejamento
participativo, sempre levando para os assentados, as tomadas de decisões”. Assim, a equipe foi formada
por dois agrônomos, um cnico agrícola e um coordenador de equipe, todos da Secretaria Municipal de
Abastecimento e Agropecuária da Prefeitura Municipal de Uberlândia; juntamente com um engenheiro
agrônomo do Movimento de Libertação dos Sem Terra de Luta-MLST de Luta; e ainda, com a
participação da Universidade Federal de Uberlândia, que realizou o trabalho “Diagnóstico Ambiental e
Projeto Final de Assentamento”, com vistas à obtenção da “Licença de Operação Corretiva”. In: Plano de
Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária-
PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura Municipal de
Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. pp. 29-30.
291
Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-
MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006. p. 28.
113
no caso do assentamento Rio das Pedras, pouco das propostas de sua organização e
estruturação executou-se em tempo adequado às necessidades dos trabalhadores.
No início da etapa de instituição formal do assentamento, na implantação das
propostas de estruturação do local, o próprio movimento ajudou mais intensamente,
pressionando os órgãos públicos nessa direção, mas, com o tempo, os assentados
focaram sem movimento para representá-lo e sem muita força coletiva
292
. Em geral,
dentre as propostas principais do programa elaborado para a instalação de infra-
estrutura e organização do assentamento, inicialmente, foram priorizadas a implantação
da rede de energia elétrica, a despoluição e canalização da água para todos os lotes e o
sistema de esgoto, mas todos implementados num período bem posterior ao planejado
no programa.
No tocante ao saneamento básico, nos primeiros anos, muitas famílias sofriam
problemas ligados à qualidade da água para o consumo doméstico, como pôde ser
constatado nas entrevistas, pois a maior parte dos trabalhadores tinha de captar água
diretamente dos córregos, quase sempre, contaminados. Geralmente, a poluição e a
contaminação das águas do Rio das Pedras ocorrem porque, como se deu nos primeiros
anos do assentamento e permanece ainda hoje, não existe separação dos diferentes tipos
de lixos e, sequer, caminhão para recolhê-los. Os moradores queimam o lixo produzido,
alguns depositam em buracos e fendas de erosão, outros jogam mesmo em qualquer
lugar, de forma aleatória, pois o manejo do lixo não é uma prática em nenhuma
propriedade
293
. Dessa forma, um dos maiores problemas enfrentados pelos assentados
nos cinco primeiros anos foi justamente a precariedade do acesso à água para as
necessidades básicas e também para a produção. Até o ano de 2002, a maioria dos lotes
ainda não possuía água e seus moradores tinham que fazer longas caminhadas até outros
lotes para conseguir levar um pouco para casa. Por isso mesmo, os trabalhadores
obtinham a água por meio da captação direta nas minas e nos córregos, freqüentemente,
poluídos pela água da chuva e contaminados pelos agrotóxicos utilizados na plantação
dos lotes, o que fez com que muitos trabalhadores tivessem que captar água nas
cisternas construídas por algumas famílias
294
.
292
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação das Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
293
João Roberto da Silva-Morador do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de
2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
294
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG
114
Com os recursos para a execução do programa, provenientes do contrato
financiado entre o Banco Interamericano de Desenvolvimento-BID, e o Instituto de
Colonização e Reforma Agrária-INCRA, o abastecimento de água no Rio das Pedras
foi implantado em 2004, mediante a construção de quatro poços artesianos que
abastecem os 87 lotes do local”
295
, mesmo período em que a energia começou a ser
instalada no assentamento. A implantação da rede de esgoto ainda não tem previsão, os
trabalhadores fazem uso das fossas sanitárias ou do sistema de fossas biodigestoras
296
,
com os recursos oriundos do Programa de Consolidação e Emancipação (Auto
Suficiência) dos Assentados de Reforma Agrária-PAC, por meio de transferência de
tecnologia da Instrumentação Agropecuária-Embrapa
297
.
No que diz respeito às condições de saúde, os trabalhadores reclamam muito de
gripes, resfriados, alergias e coceiras, e ainda existem casos de alcoolismo que
necessitam de tratamento médico. Também há ocorrência de doenças mais graves, como
câncer de pele, pressão alta, diabetes, e problemas cardíacos, que requerem cuidados
especiais. Porém não existe nenhum órgão municipal que conceda médicos que possam
atuar dentro do assentamento, na orientação sobre prevenção e tratamento dessas
doenças, com exceção de alguns projetos desenvolvidos pela Universidade Federal de
Uberlândia junto aos assentados, sobretudo, pelo Programa de Apoio Científico e
Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo
298
.
Apesar de tudo, o companheirismo entre os moradores do assentamento Rio das
Pedras sempre tem servido para amenizar as situações difíceis. Conforme José Gilberto
295
Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-
MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006. p. 57.
296
Conforme a Embrapa, “a Fossa Séptica Biodigestora é uma fórmula simples e barata de tratar o esgoto
na zona rural e consiste em desviar a tubulação dos vasos sanitários para caixas de fibrocimento, nos
quais os coliformes fecais são transformados em adubo orgânico, pelo processo de biodigestão. Com isso,
além do lençol freático não ser contaminado pela chamada fossa negra, comum na zona rural, ainda é
possível obter adubo orgânico de qualidade para ser usado nas plantações, preparo de viveiros, entre
outros. O sistema é de cunho social e por isso não é comercializado, mas a Embrapa Instrumentação
Agropecuária ensina o processo de montagem e instalação. (...). O sistema experimental da Fossa Séptica
Biodigestora foi instalado em 2001, em uma fazenda em Jaboticabal, interior de São Paulo, sendo que o
adubo orgânico foi usado com sucesso em s de graviola e macadâmia, gerando economia de adubo
químico de quase três mil reais por ano para o produtor rural e médico, Aleudo Santana. (...). Hoje, já são
mais de 100 fossas instaladas dentro e fora do Estado de São Paulo, dezenas de dias de campo realizados
em Minas Gerais, várias cidades do interior de São Paulo, e um prêmio conquistado, o da Fundação
Banco do Brasil de Tecnologia Social 2003. (...). no assentamento Rio das Pedras, em Uberlândia, o
INCRA instalou 87 fossas e outras quatro unidades piloto em assentamentos de Brasília, apoiadas pela
Fundação Banco do Brasil”. Fossa Biodigestora é montada na Expointer. BRASIL. Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento-MAPA. In: Informativo da Embrapa Instrumentação Agropecuária.
Ano 4, n. 28 - ago./set. de 2005. Disponível em: www.embrapa.gov.br. Acesso: 30/08/2006.
297
Programa de Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-
MG/Triângulo Mineiro. Relatório Final. Uberlândia: UFU, 2006. p. 60.
298
Idem.
115
dos Santos, morador do assentamento, os trabalhadores “são muito solidários uns com
os outros, sempre que algum tá com problemas, todos quer saber o que é e ajudar”
299
,
o que demonstra o espírito de fraternidade presente entre os trabalhadores, muito
importante nos vários momentos difíceis vivenciados pelos assentados.
Trabalhando em condições muito precárias, os assentados não utilizam nenhum
tipo de prevenção para a segurança do trabalho e aplicam inseticidas nas plantações sem
proteção alguma
300
, de modo que alguns trabalhadores foram mesmo intoxicados pela
inalação de produtos químicos. Após dias realizando trabalho pesado no assentamento
ou nas cidades vizinhas, quando chegam os finais de semana, os homens ocupam seu
tempo de lazer com pescaria, jogos de futebol, baralho, malha e dominó. Existem
muitos campos de futebol improvisados no assentamento e está sendo construído um
campo oficial na sede. Por outro lado, as únicas diversões para as mulheres são as
visitas e, para as poucas que gostam, a pescaria e alguns daqueles jogos, uma prática
que permite, ao menos, sair da rotina.
De modo geral, os moradores, ocasionalmente, realizam festas na sede do
assentamento, principalmente para comemorar a data de aniversário do assentamento,
aos 14 de abril, a festa do Divino Espírito Santo, no segundo domingo de junho e o dia
das crianças, aos 12 de outubro, organizada pela Pastoral da Criança e a associação do
assentamento
301
. A respeito das formas de lazer no assentamento, a coordenadora da
Associação de Mulheres, Lúcia Helena, relatou o seguinte:
Aqui dentro mesmo não tem nenhum centro de lazer, mas cada um se diverte
da maneira que achar mais viável. Eu, por exemplo, quando eu quero me
divertir, eu vou ali, arranco umas minhoquinhas, pego uma vara e vaso pro rio.
Cada um tem uma opção, aí, às vezes, a gente faz festa na sede, tem o barracão
de festa, outra hora, junta quatro, cinco, faz um churrasquinho ou liga um
sonzão e vai dançar forró, cada um tem uma opção
302
.
Dessa forma, além da precariedade das condições de vida no assentamento, as
opções de lazer para os trabalhadores apresentam-se muito restritas. Mas, apesar das
dificuldades, alguns trabalhadores, dentre os que ainda permanecem morando no
299
José Gilberto Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em fevereiro de 2004. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
300
Davi Agenor dos Santos-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em janeiro de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
301
Plano de Consolidação e Emancipação (Auto-Suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma
Agrária-PAC. Plano de Consolidação do Assentamento Rio das Pedras, Uberlândia-MG. Prefeitura
Municipal de Uberlândia: Uberlândia/MG, 2002. p. 27.
302
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação das Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
116
assentamento, disseram que as condições de vida melhoraram e que se sentem mais
felizes do antes. Conforme relatou Lúcia Helena, a vida no assentamento tem sido como
um sonho realizado, um antigo desejo pelo qual tanto lutara nos últimos anos de suas
experiências. Ao responder sobre as condições de vida no lote adquirido em
comparação com as condições anteriores e, caso necessário, se faria tudo novamente,
Lúcia ponderou:
Com certeza, mil vezes melhor! Faria. Faria e refaria! É bom demais da conta
isso daqui! É um sonho sabe, que você não quer acordar, pra você não parar
de sonhar! Super tranqüilo, vizinho, é a mesma coisa de você não ter! Ninguém
te amola, a hora que precisa procura a gente, se a gente puder ajudar ajuda, a
mesma coisa, se a gente precisar, ajudam também
303
.
Apesar de fazer parte do pequeno grupo daqueles que se sentem, de fato,
satisfeitos com a vida no assentamento, o senhor Fausto Lopes Nascimento também
afirmou que vive melhor agora, algo conseguido por meio da luta organizada. Sobre a
análise que fez de sua trajetória como militante, na busca pelo acesso à terra, declarou:
Eu tinha vontade de ter um pedaço de terra, porque eu, toda vida, fui criado na
roça e meu pai tinha uma fazendinha, fui criado na roça, quando surgiu esse
assunto, eu falei: ‘vou buscar a minha terra!’, foi por isso que eu vim. Pra mim,
foi bom ter conseguido essa terra, mas a gente passou muita dificuldade,
sacrifício e humilhação demais até conseguir essa terra. Eu acho que essa terra
foi muito bem paga, porque, pelo sacrifício que nós tivemos até ir em busca
dessa terra, é dificuldade demais da conta!
304
Ainda que contando com umas poucas experiências bem sucedidas no
assentamento Rio das Pedras e, mesmo assim, após esforço e superação de vários
obstáculos, de modo geral, logo nos primeiros anos de assentamento das famílias, a
situação de dificuldades presente em toda a fase de acampamento tornaram-se ainda
mais complicadas. Isso contribuiu para que muitos trabalhadores tomassem a iniciativa
de vender seus lotes. Mediante uma transação simples em cartório, o trabalhador
assentado começou a passar o direito de posse do lote à outra pessoa, meio que
possibilitou que muitos moradores vendessem o lote pelo qual tanto haviam lutado,
tendo em vista as difíceis condições de vida suportadas no assentamento. Desse modo,
atualmente, muitos são aqueles que, por não terem conseguido permanecer morando no
assentamento, retornaram para a cidade de onde saíram, sobretudo para Uberlândia, uma
303
Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação das Mulheres do Assentamento Rio das
Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
304
Fausto Lopes Nascimento-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
117
vez que a maioria das famílias que foram assentadas na fazenda Rio das Pedras saiu
desse município
305
.
Para os trabalhadores que permaneceram no assentamento, a experiência em
participar da reforma agrária possibilitou a crítica de quem sentiu de perto as suas
falhas. Nesse sentido, na opinião de alguns:
Ela é uma reforma agrária que tá criando muita falta de condições das pessoas
produzindo. Primeira coisa, é pela capacidade e competência das pessoas,
segunda coisa, é o problema da assistência técnica que é feita pelos
Movimentos. E os Movimentos não têm nenhuma responsabilidade em
desenvolvendo o trabalhador. Eles pensam no lado deles, contrata um técnico
que não tem capacidade, não tem competência, não tem responsabilidade! Isso
foi o que aconteceu com nós. Então, do jeito que tá a reforma agrária e com os
lotes individual do jeito que tá, não funciona. Então, se não tiver uma
capacitação e vontade dos Movimentos pra poder ajudar as pessoas a produzir
e ter conhecimento, principalmente conhecimento, que é o essencial, e é uma
coisa que quem podia tá ajudando nisso é a universidade, não vai
306
.
Ainda a respeito da reforma agrária no país, outros trabalhadores também tinham
algo a dizer. A opinião de quem passou tantos momentos arriscados para pressionar o
Estado para que tome medidas efetivas na reforma estrutural do campo, revela um
sentimento de desânimo e de profunda discordância das ações dos governos diante da
realidade de vida dos trabalhadores assentados no campo, mediante a reforma agrária.
Na apreciação do senhor Fausto Lopes Nascimento, a reforma agrária no Brasil existe
apenas na teoria, estando longe de ser capaz de transformar, de fato, a vida do pequeno
agricultor. Com as seguintes palavras, Fausto assegurou:
No meu ponto de vista, a reforma agrária ainda está no papel! Porque não é só
dar terra para o agricultor, você tem que dar assistência para o agricultor.
Porque o governo põe os coitados na terra, mas não assistência, não
adianta! Porque dar a terra para o companheiro não é isso não, precisa de
assistência. Assistência técnica, precisa de dinheiro para o povo trabalhar, e
fiscalização, dá o dinheiro para o povo trabalhar, mas fiscaliza, tem que
fiscalizar a aplicação do dinheiro, porque não é dar o dinheiro pro cara,
ele compra carro velho, compra lata velha e fica por isso mesmo, não emprega
em nada. Falta principalmente assistência e fiscalização!
307
.
305
Conforme Juaris de Souza, o trabalhador somente recebe o título definitivo da terra após 10 anos
morando nela, possuindo, a partir daí, o direito de vendê-la. Porém, o INCRA abre mão para as famílias
que não conseguem, de nenhuma forma, sobreviver na terra adquirida, é quando ocorre a venda. De
acordo com Juaris, 40 dos 87 lotes foram vendidos na fazenda Rio das Pedras. Entrevista concedida em
junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
306
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
307
Fausto Lopes Nascimento-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
118
Desse modo, não conseguindo permanecer no campo, muitos dos trabalhadores
assentados, ao retornarem para as cidades, além de aumentar, ainda mais, a demanda
por serviços públicos, passa novamente a viver difíceis condições. Como conseqüências
diretas ou indiretas das diversas formas de exclusão social, concretizadas, entre outros
fatores, na ineficiência dos serviços públicos oferecidos e nos jogos de interesses que
geram e asseguram o domínio dos espaços rurais e urbanos no país, os processos de
exclusão social dão mostras de que o Estado brasileiro ainda não conseguiu conciliar,
mediante reformas necessárias no campo e na cidade, desigualdade e desenvolvimento
social. Nesse percurso de saída e volta dos trabalhadores do meio urbano, fica evidente
a correlação direta das condições de vida no campo e na cidade, de tal forma que, do
mesmo modo como, direta ou indiretamente, sempre ocorreu no país, os espaços rural e
urbano refletem uma relação de interdependência constante.
As diversas lutas no campo da Região do Triângulo Mineiro e principalmente no
município de Uberlândia, têm ocorrido, em grande parte, assim como em vários locais
do país, devido ao número expressivo de grupos sociais da cidade relegado às mais
difíceis condições de sobrevivência. Muitas vezes por conta dessa situação, apresentam-
se em seu cenário social não apenas os diversos tipos de movimentos populares com
suas reivindicações específicas, mas as diferenciadas formas de violências, latrocínios e
delitos, entre outros sintomas de manifestação da insatisfação de grupos sociais em
estado de plena rejeição à realidade local vigorante. Assim:
Se de um lado a cidade é moralizada, de ponta a ponta (...), e aparece como
ordeira, laboriosa e passiva, caminhando em busca do desenvolvimento urbano
e social, de outro, as recusas, os movimentos sociais organizados, as
manifestações “espontâneas” da população demonstram que essa sociedade
não é tão harmoniosa e pacífica quanto quer a memória oficial. A alteração do
traçado urbano, a estrutura moderna e avançada da arquitetura, e a
especulação imobiliária, a situação do pólo comercial e industrial da região,
fatos que atestam o seu progresso econômico, contrastam com a violência, o
crime, o roubo, a mendicância, a prostituição, os jogos de azar, o favelamento,
deixando entrever, nos conflitos sociais, a recusa à ordem (...) estabelecida
308
.
(aspas no original).
Entretanto, apenas o lado do chamado progresso de Uberlândia, supostamente
estendido a todos, tem sido lembrado e exaltado por muitos daqueles que setores
dominantes local. Contrariando tais argumentações, alguns autores têm lembrado que,
308
MACHADO, Maria Clara T. Muito Aquém do Paraíso: Ordem, Progresso e Disciplina em Uberlândia.
Revista História e Perspectivas. n. 4. jan./jun. Instituto de História. Uberlândia: UFU, 1991. p. 38.
119
apesar do avanço científico e tecnológico ser inquestionável no sistema capitalista,
paradoxalmente, o progresso verificado no seu interior não consegue dar sustentação à
liberdade, à igualdade e à fraternidade. Pelo contrário, tem sido fonte geradora de
maiores desigualdades sociais, em grande parte, causas das diferenciadas formas de
violências e da manifestação da miséria extremada, da discriminação e do racismo no
mundo
309
.
Outros estudos ressaltam que a tese do progresso como advindo do trabalho que
muitos supunham ser a alavanca para a ‘riqueza das nações’, foi fortemente obscurecida
pela enorme distância entre ricos e pobres, visivelmente acentuada no mundo entre as
décadas de 1960 e 1990, cabendo principalmente ao decorrer dos anos 1980 um
progressivo e significativo aumento da miserabilidade dos países indigentes, que se
tornaram, além disso, mais pobres e dependentes dos países desenvolvidos, o que gerou,
ao mesmo tempo, uma maior concentração da riqueza mundial
310
.
Observando como esse cenário se apresenta nos dias atuais, fica evidente que,
apesar da riqueza no mundo ter aumentado com o passar dos anos, torna-se manifesta a
constatação de que ainda não foi possível oferecer melhores condições de vida para a
maioria das populações mundiais, de modo que o progresso, como fator constituinte de
riqueza para os homens, contempla um reduzido número de grupos sociais e, nesse
sentido, a ambicionada liberdade no mundo permanece ainda muito distante de ser uma
realização nos diversos países do globo, naturalmente, pela sua incompatibilidade com
realidades sociais concretamente desiguais.
A realidade dos moradores assentados frente às políticas públicas oficiais
Os diversos problemas ocorridos no assentamento Rio das Pedras, apesar de
sensíveis, a exemplo de vários outros projetos de assentamento implantados no Brasil,
mediante as ocupações de terra, longe de refletirem apenas as circunstâncias internas e
os conflitos gerados por forças de sujeitos, interesses e concepções de mundo diferentes,
existentes nesses assentamentos, decorreram, em especial, da incapacidade do próprio
plano nacional de reforma agrária conceber políticas públicas específicas, capazes de
contemplar os imperativos referentes à realidade de cada assentamento instituído.
309
WELLERSTEIN, I. Sobre progressos e transições: Um balanço. In: Capitalismo histórico &
civilização capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. p. 84.
310
FONTANA, Josep. História depois do fim da história. Bauru – São Paulo: EDUSC, 1998.
120
A implementação dos programas de reforma agrária, em geral, não estabeleceu
medidas que assegurassem melhores condições de vida para o pequeno produtor rural
beneficiado com a aquisição da terra. Em 1985, com a criação do Ministério da Reforma
e do Desenvolvimento Agrário-MIRAD, o governo José Sarney pôs em debate a
proposta para a elaboração do Plano Nacional de Reforma Agrária da Nova República-
PNRA. Esse plano difere um pouco dos que houve anteriormente, porque
(...) escolheu a desapropriação por interesse social como instrumento principal
a ser usado no processo de reforma agrária. Este instrumento, previsto na
Constituição ao Estado o direito não de desapropriar terras que não
estejam cumprindo sua função social (latifúndios e minifúndios), como também
de indenizar o valor dessas terras em TDA (Títulos da Dívida Agrária),
pagando em dinheiro tão somente as benfeitorias
311
.
Na proposta para o PNRA, apresentada em Brasília no dia 27 de maio de 1985,
durante o Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, ficou estabelecido como
meta assentar 1,4 milhões de famílias. Assinado pelo Ministério da Reforma e do
Desenvolvimento Agrário-MIRAD e pelo INCRA, o plano tinha como fundamento
básico o Estatuto da Terra. De acordo com essa lei, o acesso à propriedade rural seria
promovido mediante a distribuição de terras pela inclusão da desapropriação por
interesse social, pela doação, compra ou venda, pela arrecadação dos bens vagos ou
ainda por herança
312
. A desapropriação por interesse social refere-se aos latifúndios
313
que excedam três vezes o módulo rural de propriedade. O módulo é a área explorada
diretamente por uma família cuja dimensão varia em função do tipo de cultura e de onde
é localizada
314
, de modo que não existe uma medida única de módulo rural para todo o
território nacional, fato que dificulta o processo de reestruturação agrária no país.
Inicialmente, a grande vantagem desse plano estava na possibilidade de se indenizar o
valor das terras desapropriadas em Títulos da Dívida Agrária-TDA, um fundo de
311
SILVA, José Graziano da. Para Entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São Paulo:
Brasiliense, 1985. p. 76.
312
Título II. Da Reforma Agrária. Dos Objetivos e dos Meios de Acesso à Propriedade Rural. Capítulo I.
Estatuto da Terra, de 30 de novembro de 1964. (Organização dos textos, notas remissivas e índices por
Juarez de Oliveira.) 7 ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
313
Conforme José Graziano: “o Estatuto da Terra considera latifúndio por dimensão todo imóvel de área
superior a 600 vezes o módulo, independente de sua forma de exploração. Isso significa que uma grande
empresa rural, mesmo que produtiva, é passível de ser desapropriada por interesse social”. In: SILVA,
José Graziano da. Para Entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.
18.
314
Conforme o próprio Estatuto da Terra, o Módulo Rural é a área nos termos do inciso II, referente à
Propriedade Familiar, a qual constitui: “o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo
agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso
social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente
trabalhado com a ajuda de terceiros”. Artigo 4º, I e II.
121
investimento que, quando puder ser resgatado, perdeu parte do seu valor. Porém, como
o PNRA se fundamenta no Estatuto da Terra, outro grande problema encontrado no
caminho da realização da reforma agrária está no fato de que o Estatuto foi modificado
em 1966, no que se refere aos TDA quando:
O Decreto 59443, de 1.12.66, assinado pelo general Castelo Branco e seu
ministro Otávio Bulhões, simplesmente faz dos TDA um grande negócio
especulativo. No seu artigo 8º, por exemplo, o titular de TDA nominativos pode
pedir a emissão de novo certificado em nome de terceiro, subdividir o título em
vários e até mesmo converte-lo em título ao portador
315
.
Conforme José Graziano, “o fundamental é não pagar o valor de mercado das
terras desapropriadas: seria uma negociata e não uma reforma agrária”
316
, mas
essa medida não é mais aprovada pelas leis brasileiras. Portanto, a Legislação
constitui um dos grandes obstáculos à realização da reforma agrária no Brasil, uma vez
que, para ocorrer segundo os critérios de uma reforma na estrutura agrária do país, que
não utilize as formas do mercado para o pagamento das terras desapropriadas, não conta
mais com o respaldo das leis. A reforma agrária esbarra, em última instância, na
máquina burocrática do Estado, com seu papel de financiador das terras desapropriadas.
Assim, a realidade do assentamento Rio das Pedras, caracterizada pelo desenrolar
de uma reforma agrária para a qual o Estado não possui planejamento adequado e não
oferece assistência técnica constante aos assentados, não foi vivenciada somente pelos
trabalhadores desse assentamento, mas dos muitos outros espalhados pelo país afora, os
quais foram sendo criados de forma desordenada, sobretudo, durante o governo de
Fernando Henrique Cardoso, 1995-2002. Esse governo, além de responder às pressões
exercidas pelos trabalhadores, por meio de ocupações de terra, se utilizou dos
assentamentos para propagandas políticas do seu governo. À medida que eram
promovidas as ocupações de terra, o Estado promovia as desapropriações que, no
entanto, não eram acompanhadas de planejamento para contemplar as diferenciadas
necessidades de cada um.
Nesse sentido, apesar da propaganda oficial insistir em frisar que o governo
realizou a maior reforma agrária dos últimos tempos, na prática, isso não aconteceu,
pois a estrutura agrária brasileira continuou concentrada como sempre esteve. O que
315
SILVA, José Graziano da. Para Entender o Plano Nacional de Reforma Agrária. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
316
Idem. p. 73.
122
ocorreu foi uma reforma agrária de marketing, uma vez que o Ministério da Agricultura
pretendia ter números para apresentar para a imprensa
317
.
Na realidade:
O que o governo FHC desenvolveu foi uma política de assentamentos, sem ter
tocado em nada na estrutura fundiária brasileira. Ao mesmo tempo em que
efetuou o maior número de assentamentos da história, um número superior de
famílias abandonou o campo pela ausência de políticas públicas que lhe
permitissem nele viver com dignidade. Neste período, ao invés de uma
democratização da propriedade, houve uma concentração maior. O governo
FHC não tinha uma política e um plano de Reforma Agrária como estratégia de
desenvolvimento. Os assentamentos não obedeceram a um planejamento
elaborado, mas foram sendo criados respondendo à pressão exercida pelos
movimentos sociais. Seu governo adotou a “política do bombeiro”, tentando
debelar os focos de incêndio no campo. Costuma-se dizer que adotou políticas
compensatórias para enfrentar os conflitos. Ao invés de fortalecer o INCRA e
sua estrutura, criou o ministério que gerou uma série de conflitos de
competência
318
.
Ao procurar inflar os números dos assentamentos implantados pela reforma,
nesse governo, os espaços vazios - as chamadas ‘áreas fantasmas’; as famílias que
ocupavam determinada área havia décadas e até mesmo trabalhadores mortos eram
todos contabilizados nos vários balanços dos assentamentos resultantes da reforma
agrária
319
. No entanto, propaganda à parte, a condução das políticas públicas para os
assentamentos ocorridos no Brasil, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso,
tinha drásticas conseqüências, principalmente no que se refere à morosidade nos
procedimentos de vistoria das terras ocupadas e desapropriações de estabelecimentos
latifundiários. Os recursos demoravam a chegar e quando chegavam eram insuficientes,
considerando o fato de que os trabalhadores não receberam, ao mesmo tempo, as
orientações técnicas de como trabalhar a terra de uma maneira segura e produtiva.
Dentre as medidas tomadas no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, além
da implantação do Banco da Terra, caracterizado por linhas de crédito mediante as quais
as terras poderiam ser compradas dos grandes proprietários pelos próprios trabalhadores
sem terra, manobra realizada pelo governo para resolver os conflitos no campo,
procurou-se executar a reforma agrária por meio do simples cadastramento dos
317
BALDUÍNO, Dom Tomás.; CANUTO, Antônio. Reforma Agrária Ontem e Hoje. Comissão Pastoral
da Terra-CPT. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso: 23/04/2005.
318
Idem.
319
SCOLESE, Eduardo. A Reforma Agrária. São Paulo: Publifolha, 2005. pp. 82-83.
123
trabalhadores sem terra nas agências de correio
320
. Deste modo, os trabalhadores que
desejavam ter acesso à terra deveriam fazer sua inscrição nos correios e esperar uma
resposta do INCRA, via correspondência. Caso fosse selecionado, o trabalhador passaria
por uma série de avaliações segundo critérios de classificação estabelecidos pelo órgão,
os quais iam desde a idade do trabalhador, que não poderia ser inferior a 21 anos, o
tamanho da família, o número de filhos, a renda anual familiar, entre outros pré-
requisitos
321
. Mas,
a realidade é que a demanda por terra no país tem permanecido acima da
capacidade e da vontade de realização dos governos. No segundo mandato de
FHC, pelo menos 800 mil famílias (cerca de 3,3 milhões de pessoas)
preencheram fichas nos Correios para concorrer a um lote de terra. Em seus
oito anos de governo, porém, pouco mais de 300 mil famílias foram
assentadas
322
.
Esse foi o cenário de constituição do assentamento Rio das Pedras, à semelhança
do que tem ocorrido com a grande maioria dos assentamentos implantada no restante do
país. A perspectiva de melhores condições de vida dentro do ramo de produção de cada
família é bem limitada, que, desde o início, os trabalhadores não possuíam o saber
técnico necessário a qualquer cultivo que se propusessem a realizar na terra recebida.
Seus filhos, pelas dificuldades como os pais levam a vida, são levados, em grande parte,
a deixar a escola para ajudar no sustento da família e, na maioria das vezes, se tornam
serventes de pedreiro ou empregados em casas comerciais em Uberlândia ou cidades
vizinhas. O sonho de cultivar a terra possui seus entraves, principalmente, na carência
de conhecimentos específicos necessários sobre o trabalho com a terra e de recursos
para nela serem empregados.
Entretanto, apesar da maior parte da população brasileira estar concentrada nos
centros urbanos, a reforma agrária não deve ser pensada por este viés, mas pela sua
função social, ao conceder terras a quem precisa para sobreviver, uma vez que os frutos
de uma agricultura forte, mas concentrada nas mãos de poucos, não consegue resolver
todos os problemas relativos às carências dos trabalhadores do campo. Nesse sentido, se
bem planejada e conduzida fosse, a reforma agrária no país poderia ser encarada como
uma perspectiva por melhores condições de vida aos trabalhadores que necessitam da
320
BRASIL. Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária-INCRA. O que é Programa Nacional de
Reforma Agrária? In: Manual dos Assentados e Assentadas da Reforma Agrária. Disponível em:
www.incra.gov.br. Acesso: 13/02/2007.
321
Idem.
322
SCOLESE, Eduardo. A Reforma Agrária. São Paulo: Publifolha, 2005. p. 10.
124
terra para plantar, ainda mais porque “no Brasil, ela se transformou numa questão
diferente: pode evitar que as metrópoles sejam inchadas por desempregados do campo
e também funciona na esfera da justiça social ao conceder a terra a quem precisa dela
para tirar o sustento da família”
323
. Deste modo, a reforma agrária deve ser abordada
no Brasil visando, entre outras coisas, atender às necessidades dos trabalhadores
marginalizados dentro do sistema capitalista, urbanos ou rurais, que buscam, no cultivo
da terra, o seu meio de subsistência.
Diante de um quadro de precariedade do qual fazem parte os trabalhadores sem
terra, as pressões por meio das ocupações de propriedades latifundiárias, realizadas por
esses grupos no Brasil forçam as autoridades, via de regra, a expor suas posições e
metas para a execução da reforma agrária, ainda que essa questão seja tratada em
segundo plano. Durante os primeiros meses do atual governo Lula, em meio às
constantes ocupações de terra que se intensificavam a cada momento, o presidente,
buscando justificar seus compromissos com a reforma na estrutura fundiária do país e
com setores expressivos destes trabalhadores, deixou clara a sua opinião em relação às
normas à que a reforma agrária deveria enquadrar-se para que fosse efetivada. Em
discurso na cidade de Três Corações, ainda no início do seu primeiro mandato, Lula
afirmou que a reforma agrária
não será feita no grito, mas dentro da lei, (...) neste país, a reforma agrária vai
ser feita por uma questão de justiça social, por uma necessidade de repartir um
pouco melhor o território produtivo, para que a nossa gente tenha a
oportunidade de trabalhar
324
.
Esse discurso evidencia o plano de ação do governo Lula rumo às metas a serem
perseguidas para a implantação da reforma agrária no Brasil, visto que, para o presidente,
ela não vai ser feita no grito. Nem no grito dos trabalhadores, nem pelo grito dos que
são contra, ela vai ser feita respeitando a legislação vigente e num clima de
harmonia”
325
. Porém, esse pressuposto, para a grande parte dos trabalhadores sem terra,
consiste claramente em deixar suas manifestações às margens das políticas públicas
nacionais para a reforma agrária.
Na ótica dos trabalhadores, a reforma agrária, via Estado, constitui a maneira
encontrada pelos governos para justificar algo que, na prática, não faz parte da pauta das
323
Revista Veja. Ano 33, nº 19, 2000.
324
Reforma Agrária não será feita "no grito", diz Lula na Folha On-line. Folha de São Paulo. 2/abr. 2004.
Disponível em: www.folha.uol.com.br. Acesso: 07/04/2005.
325
Idem.
125
políticas públicas estabelecidas para o país, mas que deve ser visto como uma de suas
preocupações. Comentando sobre o que considera alguns dos maiores entraves jurídicos
e governamentais para a reforma agrária, Juaris de Souza expôs sua opinião a respeito
do modo como a reforma tem sido conduzida no Brasil, ao declarar:
A Constituição diz uma coisa: ‘toda terra improdutiva, ela tem que ser
desapropriada para fins de reforma agrária’. A lei brasileira não funciona de
jeito nenhum. A justiça não funciona e o que o Congresso votou não tem
validade. Porque pelo Congresso, o que ele votou na reforma agrária, era pra
assentado muitos milhões. O juiz, todo juiz é comprado, juiz e advogado, nós
sabemos disso, qualquer juiz, pra poder tirar uma família, se nós entrar aqui
amanhã, ou hoje, que é feriado, amanhã eles estão tirando, na reintegração.
Agora, se for pra poder votar a lei o contrário, pra liberar pra reforma agrária,
é depois de ter passado por todos os processos, ele demora seis meses pra
poder dar o visto dele, o juiz. Então, isso aí é a pior coisa que existe, é a justiça
brasileira, pro pobre né, pros trabalhadores
326
.
Na fala de Juaris, a exemplo de muitas das opiniões dos assentados da fazenda
Rio das Pedras, verifica-se a profunda desconfiança dos trabalhadores sem terra com
relação às normas prescritas pela legislação brasileira para execução da reforma agrária
no país
327
. Essa forte dúvida dos trabalhadores na reforma agrária por meio da lei
evidência outro motivo contundente da ocorrência das ocupações de terra no Brasil.
Mesmo assim, quando concluiu suas premissas sobre a reforma agrária, Lula referiu-se
também aos trabalhadores sem terra, mostrando que a reforma vai se dar num clima de
harmonia e que esse processo
(...) será feito da forma mais tranqüila possível, da forma mais pacífica
possível, porque eles sabem (os trabalhadores sem terra) que o país tem lei, tem
regras. E ela vale para o presidente da República, vale para o sem-terra e vale
para o "com-terra". Este é um país democrático, é um país livre, e quem quiser
326
Juaris de Souza-Presidente do assentamento Rio das Pedras. Entrevista concedida em junho de 2006.
Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
327
Opinião semelhante à de Juaris, são as de Célia Umbelini que, ao ser questionada sobre a reforma
agrária, no Brasil, respondeu: “Eu acho que pelo menos devia era renovar, porque dizem que esta lei que
rege a reforma agrária hoje é da década de 40. Essa lei muito ultrapassada, antiga, pelo menos não
resolve os nossos problemas né, devia era mudar, melhorar, renovar. Eu acho que devia melhorar é
porque quando a coisa pega pro lado do trabalhador a lei funciona, quando pega pro lado que não é o do
trabalhador, ela não funciona mais!”; e de Lúcia Helena, ao declarar: “Eu acho que ela deveria ser
menos morosa. O sistema do governo todo, porque fica mais é na promessa mesmo. Problema de
demora!”. Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras.
Uberlândia/MG.; e Lúcia Helena Ronceiro da Silva-Coordenadora da Associação de Mulheres do
Assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda. Entrevista concedida em junho de
2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
126
fazer manifestações, pode fazer. O que as pessoas não podem é perder o senso
de responsabilidade
328
.
Apesar de todos esses avisos, o presidente Lula tem afirmado que considera
importante haver manifestações no país, ponderando que essas ações constituem a
forma mais concreta de exercer a democracia e a cidadania em uma nação que tem
como lema tanto a liberdade de expressão quanto de ir e vir, embora essas questões nem
sempre se concretizem na prática. No entanto, as várias afirmativas do presidente Lula,
portanto, tem deixado evidente o pressuposto de que a reforma agrária, em seu governo,
seguiria as diretrizes postas no Plano Nacional de Reforma Agrária-PNRA.
Este plano tem como fundamento o Estatuto da Terra, Lei Federal de 30 de
novembro de 1964, “que regula os direitos e obrigações concernentes aos bens imóveis
rurais, para fins de execução da Reforma Agrária e promoção da Política Agrícola”,
no qual a reforma agrária constitui “(...) o conjunto de medidas que visam promover
melhor distribuição de terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a
fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade”
329
; e a
Constituição Federal de 1988 em seus artigos que dizem respeito à aquisição e
utilização da propriedade privada da terra.
Por outro lado, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, constata-se
que, assim como ocorreu no governo de Fernando Henrique Cardoso, um de seus
compromissos era fazer a reforma agrária. Porém Lula recebeu do governo anterior um
país pleno de problemas estruturais, bem como de desigualdades sociais, desemprego e
violência urbana. Nesse sentido, as afirmações de Lula acerca da reforma agrária dão a
entender que esse processo não será concretizado tão cedo no Brasil, mesmo porque “a
bancada ruralista, apesar de mais fraca e reduzida do que em 1988, no processo
constituinte, ainda tem força, sabe arregimentar adesões e conta com a cobertura da
mídia”
330
, fato que contribuiu para emperrar ainda mais os andamentos com relação às
políticas públicas e aos projetos de assentamento que esperavam uma solução para os
problemas dos pequenos produtores do campo.
Enquanto a reforma agrária não se realiza no Brasil, a concentração fundiária
permanece, gerando distorções econômicas e desigualdades sociais cada vez maiores,
328
Lula pede bom senso: ‘Radicalizar não ajuda’. O Globo. Disponível em: www.oglobo.com.br/pais.
Acesso: 25/04/2005.
329
Art. 1º § 1º. Estatuto da Terra. 14 ed. (atual. e ampl). São Paulo: Saraiva, 1999.
330
BALDUÍNO, Dom Tomás.; CANUTO, Antônio. Reforma Agrária ontem e hoje. Comissão Pastoral
da Terra-CPT. Disponível em: www.cptnac.com.br. Acesso: 23/04/2005.
127
aumentando a distância entre ricos e pobres no campo. De modo geral, a reforma agrária
que tem sido realizada marca, profundamente, a presença dos setores organizados dos
diversos trabalhadores excluídos do acesso à terra. No entanto, ainda que represente
praticamente a única saída para os trabalhadores sem terra no Brasil, essa maneira
encontrada para alcançar sua posse, não tem lhes proporcionado melhores condições de
vida, como o retorno tanto esperado mediante a luta pela terra. Nesse sentido,
os assentamentos conquistados até aqui não têm sido sinal de mudança efetiva,
de transformação de rendas para as famílias, de qualidade de vida, o que não
quer dizer que não existam experiências positivas, mas num contexto geral
padecemos ainda de grandes problemas: assentamentos sem estradas, sem
eletrificação, sem moradia digna, sem créditos a tempo e a hora para os
companheiros produzirem, sem assistência médica, sem atendimento escolar
decente. Isso vem de muitos anos, e a política de assentamentos que, iniciada
em outros governos e continuada por esse, não está significando um processo
concreto de realização da reforma agrária. O que está acontecendo? Por que
os assentados não estão ficando na terra? Por que há uma venda cada vez mais
crescente de lotes? Por que as famílias não estão vivendo tão bem como
desejavam? Por que a renda e a produção ainda são insuficientes?
331
Entretanto, além das dificuldades para executar os planos de desenvolvimento
dos assentamentos instituídos pela reforma agrária, somente efetivada atendendo às
pressões dos movimentos sociais de trabalhadores organizados, também outros fatores
concorreram muito, nos últimos anos, para que os assentamentos de reforma agrária
fossem deixados à margem dos projetos oficiais para esse fim. Ao longo das últimas
décadas, no setor econômico do país, o agronegócio “se tornou o carro chefe das
exportações brasileiras e, por isso mesmo, se firma, se fortalece e é tratado como
prioridade. A busca de superávit primário cada vez maior na balança comercial o
torna intocável. E agronegócio e latifúndio são irmãos no Brasil
332
. Apesar desse
setor ser considerado muito importante para o desenvolvimento e crescimento da
economia brasileira, com as atenções do governo voltadas em peso para esse tipo de
agricultura, as ações e modificações na estrutura agrária do país são deixadas de lado.
Dessa maneira,
(...) fazendo o cálculo, a partir dos dados (...) de produtividade por hectare
disponível, incluindo portanto a subutilização do solo, descobrimos que a
331
João Batista da Fonseca-Dirigente Nacional do MTL. Palestra proferida em 10 de abril de 2006
durante o I Simpósio Nacional de Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas. Evento realizado nos
dias 10, 11 e 12 de abril de 2006, na Universidade Federal de Uberlândia, promovido pelo “Programa de
Apoio Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária-PACTo-MG/TM”, implementado
pela Universidade Federal de Uberlândia por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.
332
Idem.
128
produtividade dos grandes é absurdamente baixa, pois usam produtivamente
uma parte muito pequena dos estabelecimentos. Manter esta situação quando
milhões de agricultores querem cultivar e são impedidos por falta de terra,
enquanto dezenas de milhões passam fome nas cidades, mostra o grau de
absurdo que pode atingir a ausência de processos democráticos de decisão no
interesse da sociedade. E pela crescente tensão das cidades, temos de concluir
o óbvio: a reforma agrária não é mais um problema rural, é uma questão chave
da problemática urbana. Quem financia os prejuízos da impressionante
subutilização do solo agrícola somos nós
333
.
Nesse sentido, ao procurar questionar a forma como se encontra configurada a
estrutura do campo brasileiro, as ocupações de terra têm dado margens para a execução
da grande maioria dos assentamentos que foram criados nos últimos anos, no país.
Desse modo, esses assentamentos, apesar de surtirem poucas melhorias na qualidade de
vida dos seus moradores, resultam, fundamentalmente, das pressões dos trabalhadores
sem terra, o que tem forçado o Estado a promover as desapropriações. Nas palavras de
Dom Tomás Balduíno, ex-presidente e atual conselheiro da Comissão Pastoral da Terra-
CPT, essa assertiva também pode ser constatada:
A situação da reforma agrária, o que teve de reforma agrária, foi conquista
dos trabalhadores e trabalhadoras do campo. Se não houvesse essas ocupações
que hoje estão amarradas por causa da lei que pune, da lei que criminaliza a
ocupação, se não houvesse toda essa luta não haveria reforma agrária
nenhuma. A reforma agrária está acontecendo por causa disso
334
.
Apesar de caracterizar a forma mais escolhida e utilizada para conseguir a posse
da terra, o fato é que, apesar de tudo, grande parte dos trabalhadores que lutam nos
movimentos organizados, se sente desmotivada, de modo que, não raro, desistem da luta
ou procuram sobreviver por meio de trabalho fora do lote conquistado, mas, em
qualquer caso, para os que ficam no assentamento, a vida também não é fácil. Nesse
sentido, ao ser questionada sobre o modo como a reforma agrária está sendo conduzida
no Brasil e a respeito da maneira como as políticas públicas para a reforma estão sendo
implementadas, nas últimas décadas, nos diversos assentamentos do país, Célia Ubelini
declarou:
É difícil, é muito difícil! Eu falo, eu não concordo muito com essa história de
reforma agrária dessa forma aí. Isso é fazer favela rural, isso é pra tirar os
333
DOWBOR, Ladislau. Reforma agrária. SEM TERRA: JORNAL DOS TRABALHADORES RURAIS-
Ano XIV, n. 144, mar./1995.
334
BALDUÍNO, Dom Tomás. Palestra proferida no dia 10 de abril de 2006 no Simpósio Nacional de
Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas, realizado nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006, na
Universidade Federal de Uberlândia, em Uberlândia, Minas Gerais, promovido pelo “Programa de Apoio
Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária – PACTo - MG/TM”, criado pela
Universidade Federal de Uberlândia por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.
129
pobres da cidade pra não ficar enfeando a cidade com barraco e põem eles
na roça. Porque aqui fica escondido né. Aqui, não vai envergonhar os prefeitos
né, os governadores, ninguém vê uai, vê o que né? Então, fazer favela rural pra
eles é muito conveniente, tira o pobre da cidade e enfia o desgraçado lá na roça
e eles que se lasque pra lá, se morrer de fome morreu, ninguém não ta
vendo!
335
.
Na realidade, as difíceis condições dos trabalhadores do assentamento Rio das
Pedras reflete uma dimensão nacional. De modo geral, a reforma agrária não tem
conseguido implantar as mínimas condições de sobrevivência nos atuais assentamentos,
o que não significa que não existem algumas raras experiências positivas. Porém, de
modo freqüente, a situação do pequeno produtor rural, inserido no campo mediante os
conflitos ocorridos pela terra, apesar de representar o único meio efetivo de realizar
mudanças na estrutura do campo, praticamente não tem avançado, sendo muitas as
famílias que estão retornando às cidades de onde saíram.
Conforme Marcos Helênio Leoni Pena, superintendente regional do INCRA,
grande parte dos assentamentos de reforma agrária apresenta uma crítica realidade.
Segundo informou:
O Plano Nacional de Reforma Agrária-PNRA, fez um projeto, uma perspectiva
de 400 mil famílias, nós atingimos 250 mil famílias em que pese a
contestação de se é assentado, em que momento que pode ser considerado, isso
é uma discussão que leva tempo. Mas, temos que cumprir mais 150 mil para
cumprir a meta. Agora, o problema não é a meta, o problema maior, que eu
acho que é o grande desafio desse governo é exatamente a condição do
assentado, é isso que eu acho que vai ser a discussão. Aquela assistência
técnica, social e ambiental que tem que ser desenvolvida e que agora foi
implementada nesse governo, chamada ATESA, que R$ 400,00 por família
em caráter permanente para as entidades que vão prestar esse serviço. A
questão da infra-estrutura mínima: água, luz, estrada, moradia, isso nós
temos que dizer sem querer contestar, dizer que pegou uma realidade de
assentamentos entre 70, 80 a 90% sem essas condições. Então está o grande
fluxo de saída, de vendas de lotes, etc.
336
.
No assentamento Rio das Pedras, em que pese as dificuldades dos moradores em
se manter no lote, por meio do cultivo da terra, o Movimento Terra Trabalho e
Liberdade-MTL, quando organizou as famílias de trabalhadores em torno do ideal de
ocupar terras improdutivas, demonstrou seu sentido social e político. Não raro, essa
335
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
336
Marcos Helênio Leoni Pena. Palestra proferida no dia 10 de abril de 2006 no Simpósio Nacional de
Reforma Agrária: Balanço Crítico e Perspectivas, realizado nos dias 10, 11 e 12 de abril de 2006, na
Universidade Federal de Uberlândia, em Uberlândia, Minas Gerais, promovido pelo “Programa de Apoio
Científico e Tecnológico aos Assentamentos de Reforma Agrária – PACTo - MG/TM”, criado pela
Universidade Federal de Uberlândia por meio da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação.
130
entidade tem atingido seu objetivo de adquirir terras para muitas famílias plantarem e
constituírem uma nova realidade, ainda que não muito diferente da anterior.
Contudo, além de não alcançar os meios para se efetivar melhores condições de
vida para os trabalhadores, os próprios ideais do movimento não coincidem com a
realidade específica do assentamento em questão. Absolutamente contrário aos valores
capitalistas, sobretudo à propriedade privada da terra, o MTL defende uma sociedade
socialista. Paradoxalmente, o que pode ser observado no assentamento Rio das Pedras é
que as relações de trabalho se dão de forma predominantemente individual, os lotes são
propriedades privadas, não havendo, de forma geral, o trabalho coletivo.
De acordo com o Manifesto do Movimento Terra Trabalho e Liberdade, escrito
em 2002, por ocasião daquele encontro realizado em Brasília, mencionado
anteriormente, entre várias lideranças de diferentes instâncias, os princípios de justiça,
liberdade, igualdade e fraternidade, podem ser exercidos na sociedade considerando
os seguintes caminhos possíveis:
Combater a deificação da propriedade, sobretudo da terra, combater o domínio
político e econômico, buscar o controle dos meios de comunicação midiáticos,
formadores de conceitos e valores numa sociedade de massa e garantir ao povo
a elevação do seu padrão educacional e cultural
337
.
Como se verifica, os ideais do MTL estão muito distantes da realidade concreta,
principalmente da realidade que o próprio Movimento ajudou a construir. Não
necessidade de grande análise para se perceber que falta no assentamento Rio das
Pedras, além do básico à sobrevivência, uma quantidade maior de recursos e de
assistência técnica para serem investidos em um plano concreto de ação. As famílias
precisam de informações e de cursos práticos sobre o modo de trabalhar a terra dentro
do sistema em que estão inseridas. As atividades produtivas necessitam ser realizadas
por meio de um plano passível de ser concretizado, coerente com as necessidades
fundamentais, específicas e imediatas dos trabalhadores assentados.
No entanto, comparando as práticas de trabalho e de vivências no assentamento
com os princípios do movimento, nota-se que são muito divergentes. Por um lado, os
valores capitalistas são negados pelo MTL que persegue o objetivo de viver a
construção socialista em cada dia, em dualidade global e permanente com a ordem,
porém em contradição com as relações sociais, com a moral e com os valores da
337
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE-MTL. MANIFESTO 2002 – Cartilha do MTL.
Uberlândia: MTL, 2002. p. 5.
131
sociedade capitalista”
338
. Por outro, entre os assentados, os valores de propriedade
privada e de individualidade, tanto nas relações sociais quanto nas relações de trabalho,
são predominantes. Nessas circunstâncias, existem dificuldades para as lideranças do
movimento compreenderem as necessidades essenciais dos trabalhadores assentados,
surgidas após o assentamento, que fazem parte de toda uma realidade de um sistema
econômico que o próprio MTL nega, sendo que as formas de produção coletiva não são
praticadas.
Contudo, desde muito tempo, o campo está se utilizando de produtos criados
pelo sistema capitalista, à medida que faz, cada vez mais, uso de adubos, inseticidas,
máquinas, cultivo mais intensivo da terra, tornando a produção mais dinâmica. Desta
forma, as próprias transformações no modo de produzir implicam seus desdobramentos
no trabalho rural, quando são introduzidas novas técnicas para auxiliar no manejo da
terra, de forma a aumentar a produção do pequeno agricultor. Assim, “esta
industrialização da agricultura é exatamente o que se chama de penetração ou
desenvolvimento do capitalismo no campo”
339
. Porém ocorre que os trabalhadores, que
representam aqueles que realmente fazem o movimento existir, na verdade, constituem
os menos beneficiados, pois a conquista da terra, quase sempre, não tem significado a
segurança de uma vida mais justa e digna, com a qual sonharam e tanto se esforçaram
para atingir.
Conforme Célia Umbelini, numa primeira entrevista concedida em 2003, o
assentamento não lhe trouxe grandes melhorias de vida e ressalta:
Quando a gente tava na cidade sempre falo, meu marido gosta demais da terra
e tal, mas falar assim no financeiro não melhorou não, que, na cidade, eu
trabalhava, ele trabalhava, os nossos filho trabalhava né, quando você
empregada é uma bênção né? Agora quando fica desempregada aí, às vezes, a
gente..., fica mais difícil, mas a diferença pra mim não é muito não, que a gente
não consegue produzi também não, não consegue produzi e, às vezes, aqui a
gente passa muita dificuldade... Mas também como diz o outro, não é culpa
do Movimento, a culpa é do governo mesmo
340
.
Para essa moradora, os primeiros anos do assentamento não proporcionaram
uma vida melhor à sua família, sua situação financeira não mudou, porém, de outro
modo, se estivesse na cidade, empregada, poderia realizar com mais facilidade o sonho
338
MOVIMENTO TERRA, TRABALHO E LIBERDADE-MTL. MANIFESTO 2002 – Cartilha do MTL.
Uberlândia: MTL, 2002. p. 5.
339
SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1980. p. 14.
340
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em agosto de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
132
do conforto e segurança que tanto espera como resultado do trabalho. Mas, atualmente,
Célia Umbelini está sendo uma das poucas assentadas que têm conseguido se manter no
Rio das Pedras de forma mais digna. Quando foi entrevistada novamente, em 2006,
Célia afirmou que a sua vida foi muito difícil no assentamento, mas que agora quando
está colhendo os frutos do sacrifício de lutar pela terra, não pretende mais retornar para
a cidade, como desejara há alguns anos, na fase crítica da vida no assentamento.
Falando sobre o que ainda tem vontade de realizar, ressaltou:
O que ainda desejo, o meu sonho é acabar a casa, que o meu objetivo quando
eu vim pra era pra mim construir minha casa direito, vencendo dez
anos, acho que não vai sair em dez anos não. Eu acho que pra mim, o meu
sonho agora é acabar minha casa e ter uma vida mais folgada um pouquinho,
descansar um pouco. Os outros chegam, a gente fala que trabalha demais, às
vezes, as pessoas olham, acha que a gente é doida, mas a gente trabalha o
tempo todo, pra ver se consegue sobreviver!
341
.
Conversando com o senhor Lauro Joaquim de Morais, morador e ex-tesoureiro
da associação dos moradores da fazenda Rio das Pedras, o trabalhador afirmou que os
trabalhadores vão para o campo com a esperança de mudar de vida, sendo que, para
isso, contam ou pelo menos esperam uma atitude segura por parte do Estado, uma
atitude de ajuda, mas uma ajuda bem planejada e voltada para as características da
realidade do assentamento e das necessidades fundamentais dos trabalhadores
342
.
Com o passar dos anos, porém, aqueles trabalhadores perceberam que teriam
que contar mais com a ajuda uns dos outros, nas pequenas realizações do dia-a-dia,
fosse no ato de ajudar a construir um barraco, iniciar uma casa, socorrer um enfermo ou
mesmo ao reivindicar melhorias para o assentamento aos órgãos governamentais, ainda
que esse tipo de atendimento quase sempre não venha. Compreendem que isso é melhor
do que esperar por qualquer outra espécie de ajuda por parte do governo ou mesmo do
Movimento, o qual também possui seu limite de atuação.
Conforme entrevistas concedidas pelos trabalhadores, os mesmos sentem-se
abandonados pelo Estado que, ainda no começo de todo o processo, durante o
acampamento e ainda na fase de assentamento, não dispunha de um plano coerente com
as necessidades do grupo assentado. Segundo o senhor Lauro Joaquim de Morais, foram
várias as suas tentativas, nas reuniões realizadas, de motivar uma identidade política
341
Célia Umbelini-Moradora do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da fazenda.
Entrevista concedida em junho de 2006. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
342
Lauro Joaquim de Morais-Morador do assentamento Rio das Pedras, participante da ocupação da
fazenda. Entrevista concedida em junho de 2003. Associação da Fazenda Rio das Pedras. Uberlândia/MG.
133
mais forte e independente das ações do Estado entre os assentados, mas uma identidade
fundamentada, sobretudo, no trabalho coletivo. Porém, conforme relatou, os interesses
entre os trabalhadores são muito variados e a força política não se configura em suas
manifestações e imaginários sociais com a mesma intensidade.
Entretanto um assentamento de reforma agrária não pode conceber a aquisição
da terra como o elemento mais importante para que uma nova realidade, baseada na
melhoria de vida dos trabalhadores, possa ser firmada. A posse da terra consiste, na
verdade, no primeiro passo em direção à realização da reforma agrária, que deve vir
acompanhada de medidas estruturais mediante ações do governo para esse fim, bem
como de um plano flexível e adequado ao assentamento a que se destina. Nestes termos,
fica evidente que:
(...) com a conquista de um pedaço de terra, não existe reforma agrária.
Novas conquistas precisam ser feitas para que ela seja efetivada, relacionadas
(...), à garantia de uma política agrícola adequada aos trabalhadores, à saúde,
educação, lazer, etc.; necessidades que eles devem ter supridas no assentamento,
para garantir a continuidade das famílias no campo e que esta se com
dignidade
343
.
O símbolo da dependência dos trabalhadores em relação às ações do Estado e
ainda em relação ao próprio Movimento, impregnado senão em quase todas as
manifestações e opiniões dos trabalhadores, pelo menos na grande maioria analisada,
por meio dos relatos orais, torna-se um impasse à sua própria melhoria econômica.
Alguns, possuindo consciência de certa independência ao realizar seu trabalho com a
terra, na lida diária, da qual tinham inclusive certa experiência, conseguem plantar e
viver com mais dignidade no campo do que na cidade, de onde saíram, fato que,
infelizmente, não ocorreu com a maioria dos trabalhadores, que retornou para outros
centros.
Deste modo, o fato é que a grande maioria dos trabalhadores do assentamento
Rio das Pedras, embora com o sonho e a perspectiva de viver do trabalho na terra,
espera uma atitude do Estado ou mesmo do movimento, mesmo que também tenha
consciência das dificuldades e assim vai vivendo conforme a sorte permite, muitos, sem
grandes ambições, sem acreditar em sua própria força de transformar a vida com os
escassos recursos disponíveis. O movimento, por sua vez, consegue afirmar-se a cada
343
MARKUS, Maria Elza. Trabalhadores Sem Terra: Somo nóis que é o Movimento. Tese/Doutorado em
História Social. São Paulo: PUC/SP, 2002. p. 238.
134
ocupação, a cada assentamento instituído. Certamente, uma idéia que propõe alcançar
melhores condições de vida para um conjunto de pessoas e dividir imensidões de terras
em poder de poucos- ideais de todos os movimentos de reforma agrária-, deve ser
compreendido como algo positivo, sendo um começo para que as terras do campo
possam ser melhor distribuídas. Contudo, na prática, a busca desses objetivos ocorre de
uma forma bastante conflituosa e, por vezes, contraditória, não sendo raro ter como
conseqüência a desilusão de muitos trabalhadores. Talvez seja chegado o momento de
repensar e reorganizar tanto os ideais do movimento com relação ao sistema capitalista
e às necessidades mais elementares dos trabalhadores, quanto o atual modelo de reforma
agrária que está sendo colocado em prática no Brasil.
De forma geral, os trabalhadores sem terra constataram a morosidade em todos
os processos oficiais de concessão de terra, demora essa causada pela burocracia do
Estado, durante os procedimentos de aquisição legal da terra. Este aspecto foi apontado
pelos trabalhadores como sendo um dos grandes problemas da via governamental de
acesso à terra. Muitos disseram ter tentado esse meio, mas com o tempo, deram-se conta
de que esperavam por algo que dificilmente seria concretizado, desistiam, devido ao
desânimo e à desconfiança nos processos de acesso à posse da terra, realizados pelo
Estado. Por esse motivo, os trabalhadores têm como forma de acesso a um pedaço de
terra as manifestações sociais que realizam em todo o país. Parte dos resultados obtidos
nesta pesquisa mostra que as ocupações de terra continuam representando uma opção
para inúmeros sujeitos desprovidos deste acesso. Opção caracterizada pela incerteza,
pelo risco, pelas ilusões de melhorias de vida e por infinitos imprevistos. Apesar dos
riscos de vida que enfrentam nessa empreitada, é nas ocupações de terra que os
trabalhadores depositam todas as suas esperanças de consegui-la, encarando a via do
Estado como um caminho duvidoso.
Portanto, mesmo não sendo o meio mais seguro de conseguir a terra, as
ocupações têm sido prioridades nas ações dos trabalhadores sem terra em direção ao seu
acesso. Ainda que envolvam o risco de morte, os movimentos sociais de trabalhadores
em conflito com proprietários rurais continuam sendo uma constante no Brasil, fato que
tem como causas principais a concentração da propriedade fundiária no país e a
inexistência de uma decisão e ação efetivas com relação à reforma agrária por parte do
Estado. Desse modo, a sociedade não é algo imposto de fora para dentro, as pessoas
também fazem parte desta construção, das suas ‘escolhas’, dos seus valores. Aquilo que,
135
em tese, deveria manter uma sociedade coesa, unida, em sentido amplo, são as
“normas, valores, linguagens, instrumentos, procedimentos e métodos de fazer frente às
coisas e de fazer coisas e ainda, é claro, o próprio indivíduo”
344
. De modo claro, isso
não significa que não haja transgressões das normas e das regras impostas, mas as leis,
ao mesmo tempo em cumprem o papel de contornar os conflitos e as desordens dentro
da sociedade, muitas vezes, constitui motivo para que os próprios embates ocorram. No
entanto, diferentes configurações sociais surgem lenta e continuamente, fruto da síntese
das dimensões econômica, política e cultural, emergidas de novas significações sociais.
Não raro, essas novas formas tomam referências nas antigas para mudar o que está
estabelecido e promover o novo, que surge do antigo, apontando para a transformação.
Assim, a sociedade se constrói a partir de novas imaginações sociais
345
, a partir
da ocorrência de novos valores, significados e interpretações que definem a sua
identidade. O grupo de trabalhadores do assentamento Rio das Pedras, ao procurar um
novo caminho para a realização de suas necessidades e utopias, é bem provável, o fez
motivado pelos significados que essa mudança de rumos representou em suas vidas e na
expressão dos seus valores. Certamente, na relação com os diversos sujeitos envolvidos
nos processos de luta por terra, quer sejam opositores ou defensores de sua causa, esses
trabalhadores colocaram em conflito diferenciados símbolos, valores e imaginações
sociais. Buscando efetuar suas aspirações, grande parte dos trabalhadores assentados,
aqui estudados, não realizou os anseios de morar e viver melhor por intermédio das
experiências no campo. Entretanto, essa mobilização manifestou erros, acertos, sonhos,
conflitos e contradições, sintetizando experiências coletivas permeadas por relações de
identificação, amizade e companheirismo.
344
CASTORIADIS, Cornelius. O Imaginário: a criação do domínio social-histórico. In: As encruzilhadas
do labirinto II: os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
345
Idem.
136
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos anos, o interesse dos pesquisadores brasileiros nas temáticas voltadas
para as questões referentes aos conflitos rurais existentes no país aumentou de forma
significativa. Não raro, o estudo dessas questões incide, em especial, nas nuanças
relacionadas com os movimentos sociais organizados e na forma utilizada por
trabalhadores para pressionar o Estado com vistas a alcançar a almejada reforma
agrária. Estudos como esses são importantes, entre outros aspectos, porque permitem
compreender a ocorrência das ocupações de terra realizadas pelos trabalhadores e as
reações dos latifundiários a esse tipo de atuação coletiva. Certamente, esses grupos
constituem frações sociais de muita expressão na trajetória das transformações ocorridas
no espaço rural do país. Os primeiros, devido à efetivação da luta, na busca por
mudanças nesse meio, os segundos, pela condição de proprietários de extensas áreas
rurais que, com freqüência, desencadeiam conflitos no campo.
Procurando estudar a forma de organização de um grupo de trabalhadores sem
terra, composto de pessoas provenientes de vários municípios do Triângulo Mineiro, em
grande parte, da cidade de Uberlândia, este trabalho buscou compreender os processos
de arregimentação das famílias, os motivos de suas participações na luta pela terra e os
conflitos ocorridos entre os diversos sujeitos envolvidos nesse percurso, analisando o
modo como ocorreu o processo de ocupação da fazenda Rio das Pedras e as etapas que
deram origem à instituição formal do assentamento das famílias. Entre essas pessoas, as
ações dos trabalhadores sem terra, ocupantes da referida área, junto ao Movimento de
Luta pela Terra-MLT, atual Movimento Terra Trabalho e Liberdade-MTL, tiveram
atenção especial. No entanto, a análise também se direcionou para as atuações do
proprietário do imóvel ocupado e do próprio Estado, visando abranger o exame de
certas políticas públicas para a reforma agrária no país.
Indo ao encontro dessas questões, esta pesquisa discutiu, inicialmente, a própria
existência dos trabalhadores sem terra, procurando apreender, no primeiro capítulo da
dissertação, o porquê da disposição das pessoas em lutar pela terra. Para isso, tornou-se
necessário analisar os processos de exclusão social à que os trabalhadores participantes
da ocupação estavam submetidos, a concentração fundiária na região e notadamente no
próprio município de Uberlândia, local de onde saiu grande parte dos trabalhadores, hoje
moradores da antiga fazenda e atual assentamento Rio das Pedras. Com o objetivo de
137
compreender o sentido social e político da reforma agrária em Uberlândia e suas relações
com o restante do país, a intenção foi encontrar explicações para os insucessos do
assentamento Rio das Pedras em efetivar as condições sociais necessárias à permanência
dos trabalhadores nesse espaço conquistado. Para isso, o trabalho buscou fazê-lo
mediante a apreensão das atuações e representações sociais presentes nas ações e falas
dos sujeitos assentados e demais agentes envolvidos.
Nesse sentido, procurou-se levar os desdobramentos e impasses que compuseram
a história ainda recente do assentamento Rio das Pedras para uma discussão mais ampla,
em termos de Brasil, por meio das possíveis inter-relações entre a reforma agrária dessa
realidade local e do restante do país. Isso requereu também analisar o modo como a
questão agrária está estabelecida na legislação e como é vista pelos movimentos sociais.
Mediante entrevistas realizadas com os próprios trabalhadores ocupantes da fazenda Rio
das Pedras, hoje assentados, com militantes e lideranças regionais do movimento; pela
análise de documentos oriundos do movimento e de diferentes instituições, da leitura de
bibliografias, revistas e jornais a respeito da problemática agrária no país, foi possível
estudar, no segundo e terceiro capítulos do trabalho, como surgiu e se desenvolveu o
assentamento Rio das Pedras, abordando os problemas e os avanços ocorridos em sua
interação com o restante do país.
Os resultados finais da pesquisa possibilitaram constatar, entre os motivos
principais que levaram aqueles sujeitos a se lançar na perigosa empreitada de ocupar
terras improdutivas, as difíceis condições de vida no meio urbano, aliadas à falta de
oportunidades de emprego na cidade e a certa identidade de muitos trabalhadores com os
modos de vida no campo foram fatores decisivos. Contudo, juntamente com esses
elementos, verificou-se, sobretudo, a vontade consciente desses trabalhadores de mudar
suas vidas, ainda correndo todos os riscos advindos de uma ocupação de terra.
Mesmo considerando a realidade brasileira que, pelas diversidades de aspectos
culturais e econômicos, aliadas às imprevisibilidades políticas, volta e meia, instituindo
categorias sociais heterogêneas, se mostre contra quaisquer atos no caminho da
ocupação e da aquisição da posse da terra, ainda assim, o impulso por mudanças
contribuiu para a ocorrência de ações motivadas pela esperança por dias melhores. Com
isso, ao promover a organização unificada dos trabalhadores, as ações de ocupação de
terra objetivam, principalmente, efetuar o enfrentamento e a superação das adversidades
para ter acesso à terra e aos mecanismos para nela permanecer, sonho que os atuais
138
moradores da fazenda Rio das Pedras insistiram e ainda insistem em realizar, embora
foram muitos aqueles que, por não conseguirem, desestimularam-se.
Entretanto, sobre o movimento dos trabalhadores em constante reivindicação pela
terra, cabe reconhecer uma grande heterogeneidade entre os agentes que o compõem.
Dentre esses grupos, torna-se comum encontrar pessoas que parecem não ansiar pela
reorientação de suas vidas, saindo do meio urbano para o campo, algo que fazem
forçados pelas circunstâncias. Para alguns dos trabalhadores que se inserem nas
mobilizações de luta pela terra, o movimento é encarado mais como um meio que lhes
permite fugir das cobranças da sociedade do trabalho. Aos que possuem aquele forte e
interiorizado desejo de cultivar a terra e dela tirar o sustento de suas famílias, resta
sempre um caminho difícil de percorrer, a começar pelo fato de que, no país inteiro, via
de regra, as ocupações e esperanças de alteração nas condições de vida dos trabalhadores
assentados, encontram seus limites, sobretudo, no descaso e no despreparo do próprio
Estado em relação à execução da reforma agrária.
Entre as falhas governamentais, acentua-se a ausência de um plano de ação
específico e adequado às necessidades particulares de cada assentamento. Além disso,
cabe reconhecer, também, o despreparo dos próprios trabalhadores diante da realidade de
trabalho no campo, os quais, além das dificuldades para implantar as mínimas condições
materiais, como a habitação e a infra-estrutura no assentamento, enfrentam também os
problemas relativos à própria assistência técnica fornecida pelas instituições estatais,
volta e meia, imprópria às necessidades inerentes às peculiaridades dos trabalhos
realizados no assentamento. Porém, existem aqueles poucos que, superando dificuldades
e desafios, conseguem se instalar e se manter na área conquistada. Para isso, tem sido
fundamental o desenvolvimento de formas variadas de ajuda mútua, solidariedade e
companheirismos, consolidados pela convivência no assentamento.
Contudo, o latifúndio no Brasil permanece forte, com sujeitos prejudicados por
pelo desequilíbrio na divisão do campo, legado de uma colonização planejada para
atender os interesses de poucos. Pelo que se pôde notar nas falas e opiniões dos
moradores do assentamento Rio das Pedras, no imaginário dos sujeitos que participam
dos conflitos agrários, a concepção da posse da terra está diretamente ligada à noção de
utilidade. Na ótica dos trabalhadores, se a terra é mantida inutilizada, ausente de
processos produtivos, não pode, como deve ser ocupada por aqueles que dela
necessitam para manter sua sobrevivência. A idéia de utilidade da terra, que está ligada,
139
direta ou indiretamente, ao questionamento da concentração de terras improdutivas,
constitui fator ideológico, de cunho político e social, na medida em que promove ações
que vão de encontro com a cultura política e a ordem estabelecida.
Todavia, de modo natural, como em todas as dimensões sociais, ainda que se leve
em conta a existência de uma identidade de interesses marcante entre os sujeitos que
lutam pelo acesso à terra no país, percebida, sobretudo, nos objetivos semelhantes que
existem no interior das ações de ocupação, torna-se também arriscado tomar os objetivos
daquele grupo de sujeitos sociais como homogêneos, pois as expectativas, no que se
refere à aquisição da terra, tem sido muito variável, de modo que não são todos os
sujeitos que anseiam plantar e viver no campo, ainda que esta, certamente, seja a vontade
da grande maioria. De fato, a existência de diferentes objetivos, ligados à concepção do
que se considera melhoria nas condições de sobrevivência, deve ser considerada.
Por outro lado, o estudo buscou questionar como a ocupação de uma
propriedade privada da terra se configura na concepção dos trabalhadores, em seus
imaginários sociais, uma vez que perante a lei a ocupação de uma propriedade privada
teoricamente constitui uma ação ilegítima. Pelo que foi possível constatar, as estratégias
executadas pelos trabalhadores, com seus respectivos movimentos sociais de
reivindicação pelo acesso e uso da terra, em última instância, possuem entraves na
própria Legislação brasileira, que não margens para a realização de uma reforma
profunda na estrutura agrária do país. Este era o pano de fundo presente em 1985,
quando foi criada a proposta para a reelaboração do primeiro Plano Nacional de
Reforma Agrária-PNRA.
Os resultados obtidos com esta pesquisa mostram que a questão agrária no
Brasil, para ser discutida, deve considerar as características sociais, políticas,
econômicas e culturais existentes no país. Essas dimensões fazem parte de um jogo de
forças e interesses variados que se manifesta por meio de agentes sociais atuantes em
diversos campos da sociedade brasileira. No caso das mobilizações dos diversos sujeitos
por acesso a terra, as ações empreendidas por autoridades governamentais, pelos
proprietários rurais, sobretudo os latifundiários, e pelos movimentos sociais organizados
merecem uma atenção especial, pois realizam suas ações movidos por objetivos
definidos conforme modos de ser, agir e pensar que caracterizam principalmente seus
interesses. Na realidade, o assentamento Rio das Pedras não apresentou muitos avanços
em termos de condições de vida. Passado o período de acampamento, os trabalhadores
140
ainda continuaram numa situação de dificuldades provocada pela escassez de recursos e
pelo pouco conhecimento sobre o cultivo da terra. Até os dias atuais, pode-se dizer que
os trabalhadores ainda presentes no assentamento Rio das Pedras explicam a
permanência no campo baseada na própria experiência que mantinham com o cultivo da
terra, em detrimento da aprendizagem advinda dos trabalhos de assistência técnica
fornecidos pelas instituições públicas.
Afora os poucos trabalhadores que tiveram êxito com o trabalho na terra, a
produção desse assentamento, de modo geral, sofreu sérias conseqüências ainda no seu
início e poucos assentados conseguiram produzir o suficiente para o próprio sustento.
No entanto, ao congregar fatores de ordem social e econômica, o estudo dos conflitos
agrários requer que consideremos também a cultura dos sujeitos que participam dos
processos de luta, de modo a possibilitar a compreensão do sentido atribuído ao direito
de posse e uso da terra no país. Por meio da análise dos significados que esses conflitos
representam para os envolvidos e dos diferentes posicionamentos políticos em interação
constante com os planos materiais e simbólicos desses sujeitos, melhores explicações
desses eventos vão surgindo.
Existem algumas cercas que, apesar dos seus vigilantes guardiões, os esforços
coletivos se encarregam da sua destruição; outras, entretanto, o grau de dificuldades
para derrubá-las é muito maior. Certamente, as mais difíceis de serem transpostas não
possuem dimensões concretas e mensuráveis. Por acreditarem que, ao ocupar uma área
de terras as condições para as mudanças em suas vidas estariam estabelecidas os
trabalhadores, muitas vezes, são surpreendidos ao enfrentar barreiras mais difíceis de
serem rompidas do que as próprias cercas de arames farpados. São barreiras simbólicas,
impregnadas na cultura política do país, acalentadas, sobretudo, pelos setores
dominantes e pelas autoridades instituídas e que se expressam nas formas de se perceber
e praticar, ou não, a justiça social e na maneira de pensar e implementar medidas
concretas, cujos efeitos estão diretamente relacionados à construção da sociedade em
que vivemos.
141
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