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TÂNIA DIAS JORDÃO
A PAIXÃO SEGUNDO G.H. , DE CLARICE
LISPECTOR: transtextualidade bíblica
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
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TÂNIA DIAS JORDÃO
A PAIXÃO SEGUNDO G.H. , DE CLARICE
LISPECTOR: transtextualidade bíblica
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos
Literários, da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de Concentração: Literatura
Brasileira Mestrado.
Linha de Pesquisa: Literatura, História e
Memória Cultural.
Orientadora: Dilma Castelo Branco Diniz
FALE/UFMG.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2007
2
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Universidade Federal de Minas Gerais
Faculdade de Letras
Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
Dissertação intitulada A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector: transtextualidade
bíblica”, de autoria da mestranda Tânia Dias Jordão, aprovada pela banca examinadora
constituída pelas seguintes professoras:

Profa. Dra. Dilma Castelo Branco Diniz FALE/UFMG Orientadora

Profa. Dra. Nádia Battella Gotlib USP

Profa. Dra. Haydée Ribeiro Coelho FALE/UFMG

Profa. Dra. Ana Maria Clark Peres
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários
FALE/UFMG
Belo Horizonte, 08 de março de 2007.
3
À minha doce Maria.
4
Profundamente agradeço a Deus, Fonte da Vida e da Sabedoria, porque tudo é Dom
do seu Amor.
Sou, também, muitíssimo grata:
Aos meus pais, Maria e Nemes, aos meus irmãos e sobrinhos, pelo carinho, estímulo,
ajuda e paciência incondicionais.
À minha orientadora, por fazer caminho comigo, lúcida e ternamente...
Aos amigos, curiosos incentivadores, e ao João Santiago, primeiro leitor do projeto do
mestrado, que acreditou e também impulsionou esse sonho.
Aos Mestres. Todos. Tantos que tanto me ensinaram.
Aos funcionários da FALE/ UFMG. Particularmente à Rosângela, bibliotecária.
À Congregação das Filhas de Jesus, pela solidez da formação a mim oferecida.
À minha amada filha.
Aos que ousam fazer a travessia... Em todos os tempos.
Com toda ternura.
Trago mis manos vacias
Y mi corazón lleno de nombres”
Anônimo
5
Resumo
Cotejando A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, com a Bíblia, a partir de um
recorte transtextual, mostra-se que a Escritura Sagrada é o hipotexto do romance e o
“grande código” para que se possa compreendê-lo mais profundamente, e que a
personagem G.H. vive sua Paixão como uma experiência mística oposta à Paixão do
próprio Cristo. Se esta se porque o Filho de Deus assume nossa humanidade,
aquela se apresenta como o avesso da paixão bíblica: G.H faz sua travessia perdendo
a própria humanidade. A autora apropria-se da poética e dos temas bíblicos,
camuflando-lhes os textos, rasurando-lhes o tecido.
6
Sumário
RESUMO..................................................................................................................6
INTRODUÇÃO.........................................................................................................8
BÍBLIA: GRANDE CÓDIGO..................................................................................16
Muitos diziam: “Ele tem um demônio! Está delirando! Por que o escutais?” ..............................................18
Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi .............................................................................21
Teu nome é como óleo escorrendo ...............................................................................................................24
E a luz brilha nas trevas.................................................................................................................................29
No princípio era o Verbo...............................................................................................................................33
Procuro-o e não o encontro............................................................................................................................38
Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo.............................................................................................49
Numa terra do deserto, /num vazio solitário e ululante.................................................................................57
A MÍSTICA DA PAIXÃO........................................................................................61
E se as primícias são santas, a massa também o será.....................................................................................62
Esvaziou-se a si mesmo.................................................................................................................................65
Quando eu gritei, tu me ouviste ....................................................................................................................75
Um véu está sobre o seu coração ..................................................................................................................79
É chegada a hora! ..........................................................................................................................................83
Trazemos este tesouro em vasos de argila ....................................................................................................85
Cruel como o abismo é a paixão / uma faísca de Iahweh!.............................................................................91
Pois de sua plenitude /todos nós recebemos /graça por graça.......................................................................96
CONCLUSÃO........................................................................................................99
RÉSUMÉ..............................................................................................................105
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................105
Da autora......................................................................................................................................................106
Geral.............................................................................................................................................................108
Dicionários e Enciclopédias.........................................................................................................................116
ANEXO.................................................................................................................116
7
Introdão
Traduzir uma parte
na outra parte
que é uma questão
de vida ou morte
será arte?
Ferreira Gullar
Muito já se produziu acerca da escritura de Clarice Lispector, e mesmo de seu romance
de 1964, A Paixão Segundo G.H. Essa obra revela dimensões não do modernismo
brasileiro da década de 60, mas é um testamento do seu caráter universalista na
criação de sua prosa original.
O romance tem a forma livre que semelhante gênero assumiu nas últimas décadas. É o
relato de uma aventura interior que, exatamente por sê-la, não possui momento exato
para o início: estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar
com o que vivi.”
Essa é uma obra poética, multívoca, de temática existencial que, através de uma
linguagem paradoxal e permeada de anadiploses, sustenta a experiência de
perda/busca da identidade pessoal da narradora-personagem, enquanto incide, no
plano da linguagem, na luta com e contra as palavras, através do fluxo de consciência.
E, aqui, o que se pretende é mostrar que a Bíblia funciona como hipotexto desse
romance. Relendo A Paixão Segundo G.H. após concluir todas as disciplinas bíblicas
do curso de teologia, pude perceber o quanto essa autora faz uso das categorias
bíblicas na construção do itinerário interior da protagonista. Existem nessa obra
iniludíveis transposições bíblicas, desde o próprio título, e é sobre tais ressonâncias
que se tecerá este estudo.
8
Não se traçará, portanto, um paralelo entre vida e obra de Clarice, ainda que se
reconheça a importância de um trabalho assim. Aliás, esse aspecto foi sobejamente
executado por vários críticos e estudiosos, dentre os quais se destacam Olga de Sá,
Claire Varin e, entrelaçando vida, obra e Bíblia, Dany Kanaan.
A propósito, esse autor, que em sua recente tese se aproxima bastante do que aqui
me proponho, afirma:
A obra clariceana não é de fácil assimilação, pois exige demais do leitor,
descentrando-o constantemente, questionando-o, abalando seu sistema de
referência... incluindo o de leitura. Ou seja, diante de sua obra, os modelos
tradicionais de interpretação de texto parecem falhos, como se o tempo todo algo
ficasse de fora
e fica. Clarice havia percebido isso em relação à sua obra e
em várias ocasiões comentou o fato, como podemos conferir no trecho a seguir:
“Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não
me pega mais’”(Lispector, 1973, p.14).
[...] Clarice reivindica para si, constantemente, tudo o que experiencia
no plano literário, atribuindo a este, por sua vez, tudo o que experiencia no
plano biográfico. Vida e obra em Clarice estão estreitamente ligadas.
1
(Grifo meu).
De fato, como a autora conhece bastante as Escrituras Sagradas, o leitor pode
perceber o quanto ela faz uso de categorias bíblicas na construção do itinerário interior
de G.H. através de recursos utilizados tanto na linguagem quanto na temática, que
constituem uma prática transtextual, a transposição; no caso, como nos referimos,
da literatura bíblica.
É tão clara a intertextualidade que nossa autora estabelece com a escritura sagrada
que pesquisando sobre a relação de Clarice com a Bíblia, encontrei 567 títulos a este
respeito. A verdade é que Clarice é desses autores que fornecem teoria para a crítica
literária, quiçá até mesmo pela prática da metalinguagem, além do veio psicanalítico,
muito explorados em suas obras. Não obstante, o número cai em demasia quando se
trata de relacionar a Bíblia com a obra em questão. Não pude encontrar mais que oito
estudos relacionando a Bíblia com A Paixão Segundo G.H. Destes, um, de Benedito
1
KANAAN, 2003, p. 19.
9
Nunes
2
, aborda dados místicos da obra da autora, no entanto não aprofunda o aspecto
bíblico presente no romance, ainda que o reconheça.
Quem tampouco aprofunda esse aspecto no romance de 1964 são os escritores de
origem judaica; brasileiros que parecem ter particular interesse em tratar de temas
bíblicos nas obras de Clarice, certamente pelo marcante crivo semita que percorre seus
escritos desde uma perspectiva e escrita femininas. Quanto ao romance A Paixão
Segundo G.H., é citado para exemplificar a inter-relação das obras de Clarice com o
judaísmo ou com a literatura bíblica como um todo, mas não encontrei um estudo
específico, nem entre esses especialistas, da obra aqui em relevo. Dentre eles, vale
destacar o chamado primeiro filósofo judeu, grande revolucionário do judaísmo,
Yoshua Ben Yosef e as escritoras Berta Waldman, do Centro de Cultura Judaica (São
Paulo), Yudith Rosenbaum e Rachel Gutierrez.
3
O citado Dany Al-Behy Kanaan
4
muito recentemente publicou sua tese de doutorado
(PUC-SP) na qual estuda as relações entre escritura/ vida de Clarice e Bíblia, e dedica
uma seção ao romance A Paixão Segundo G.H. O autor busca responder ao dilema de
separar ou integrar autores e obras e acaba por encontrar nos textos sagrados do
Antigo e Novo Testamentos uma plataforma de ressonância ecoante, em que as notas
e harmonias da vida e da escrita se entrelaçam na produção de um novo texto: o texto
do leitor.
Mas as grandes estudiosas de Clarice que, primeiramente, exploraram o filão bíblico
presente nessa obra da autora são Olga de Sá
5
e Luiza Lobo. A primeira colaborou com
Benedito Nunes quando da publicação da edição crítica de A Paixão Segundo G.H. e
revela procedimentos da escritura de Clarice, tais como a desconstrução da linguagem
e o ritual epifânico.
6
E ela ainda mostra, em outros escritos
7
seus, muito do uso que
Clarice faz da Bíblia, além de explorar a epifania como procedimento típico da escritura
sagrada judaico-cristã. Pretendo aprofundar tal estudo ao longo deste trabalho, além
de apresentar dados novos, que a epifania é um recurso de transposição de uma
categoria experiencial bíblica. No ensaio Paródia e metafísica”, Olga de comenta o
2
NUNES, 1988.
3
<www.nilc.icmsc.sc.usp.br/literatura/claricelispector >
4
KANAAN, 2003.
5
Se Olga de não tivesse por título de uma de suas obras A Travessia do Oposto, seria esse o título desta
dissertação; e, talvez, bem mais apropriado para o que aqui se demonstra, como se verá.
6
. 1988.
7
Idem, 1979 e 1993.
10
procedimento da repetição como sendo semita, bíblico. Demonstrarei como se dão
essas repetições, transposição
8
da linguagem, nas obras aqui cotejadas.
Luiza Lobo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nos brinda com A Gênese da
Representação Feminina na Literatura Ocidental: Bíblia, Cabala, Idade Média. Em seu
estudo também menciona procedimentos bíblico-semitas utilizados por Clarice em A
Paixão Segundo G.H., todavia sua preocupação é muito mais com o feminino que com
o especificamente bíblico, do ponto de vista literário
9
.
Nolasco
10
, em sua dissertação Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura. Uma
leitura (des)construtora dos processos de criação das escrituras de Uma aprendizagem
ou O livro dos prazeres e Água viva, traça um paralelo entre as duas obras que dão
título a seu estudo e mostra como Clarice se auto-plagia. Poder-se-ia dizer que faz
plágio também da Bíblia? É evidente que não. Mas é evidente também que constrói seu
texto sobre o bíblico, à medida que desconstrói o hipotexto.
O próprio título do romance suscita uma leitura bíblico-teológica que nos remete à
Paixão de Jesus Cristo segundo os evangelistas. Como lembra Genette
11
, pode haver
uma relação entre uma obra literária e seu paratexto, no caso o título, geralmente
menos explícita e mais distante que no conjunto de todo o texto. No entanto, A Paixão
Segundo G.H. é um título bastante evocativo dos textos evangélicos. Daí que, por
corresponder ao que aqui se busca, quanto à terminologia adotada, em se tratando da
comparação das obras, opta-se pela categoria funcional de Genette.
Através da linguagem mística e espiritual, nota-se o interesse da autora por uma
temática evocativa da Bíblia e a afinidade com a literatura e cultura hebraicas de
antanho. O romance está mesmo unido à Bíblia como um hipertexto desta. Em algum
momento esta derivação é de ordem descritiva e intelectual, no qual um metatexto
evoca explicitamente seu hipotexto, como se pode ver, por exemplo, quando a
personagem infringe a interdição hebraica de tocar no imundo, no impuro e comenta
que conhece a proibição bíblica (PSGH
12
, pp.46-7 // Levítico, 11); quando fala do maná
do deserto (PSGH, p.67 // Êxodo, 16) ou se refere ao paraíso, ao Éden (PSGH, p.63 //
8
GENETTE, [2003?] o nome transposição à prática hipertextual em que uma relação de transformação
de regime sério. Aqui também uma transformação semântica, como na paródia, mas não seria uma relação
parodística, como é denominada por Olga de Sá (1988), por seu caráter sério.
9
<http://acd.ufrj.br/pacc/INTRODIC1.html.>
10
NOLASCO, 1997.
11
GENETTE, 1982, p.2.
11
Gênesis, 2), dentre tantíssimos outros exemplos. Em outros trechos simplesmente se
pode perceber que resulta daquele texto anterior, sem se referir claramente a ele, o
que será largamente demonstrado ao longo desta dissertação. Há, ainda, a própria
forma discursiva de inflexão teológica em todo o solilóquio de G.H., com o tom
confessional de uma penitente.
13
Portanto, o recorte deste trabalho é transtextual: trata-se de mostrar como a
romancista se utiliza de categorias semitas em sua obra; como A Paixão Segundo G.H.
dialoga com o texto bíblico através da transposição
14
e, até, do travestimento;
15
tendo,
é claro!, por pressuposto, uma entrada reflexiva originada na minha experiência
literária adquirida a partir do curso de Letras, na PUCCAMP; da exegese bíblica, do
curso de Teologia, no CES, da Companhia de Jesus (BH); e, evidentemente, da vida de
leitora voraz e de professora de literatura ; logo, do meu ponto de vista dessa
poética específica.
Por isso, segundo Genette
16
, que além das alusões textuais (G.H. invoca
personagens bíblicos, evoca passagens bíblicas) ou paratextuais (o título, índice
contratual) a obra engloba também a transposição, o travestimento, pode-se dizer que
essa escritura faça parte da classe de obras que são, em si mesmas, um arquitexto
transgenérico.
Quase que se poderia dizer que uma tradução poética ou literária, aqui (ao menos
em alguns trechos), também denominada recriação, transcriação ou transposição
12
Neste estudo, para citações será utilizada a sigla PSGH no lugar do nome da obra. A edição consultada é:
LISPECTOR, Clarice, A Paixão Segundo G.H., Ed. crítica, Benedito Nunes, coordenador. Brasília, DF:
CNPq, 1988. (Coleção arquivos; v. 13).
13
Categorias funcionais referidas segundo GENETTE, [2003 ?].
14
Ibidem: A respeito dessa categoria funcional afirma: “Para as transformações sérias, proponho o termo
neutro e extensivo da transposição ( p.7 ) de longe a mais rica em operações técnicas e em investimentos
literários” ( p.9 ). Em oposição à paródia, que pode ser pontual, “a transposição, ao contrário, pode se aplicar
em obras de vastas dimensões, como Fausto ou Ulisses, cuja amplitude textual e a ambição estética e/ou
ideológica chegam a mascarar ou apagar seu caráter hipertextual, e esta produtividade mesma está ligada à
diversidade dos procedimentos transformacionais que ela põe em funcionamento” (p.9).
15
Ibidem: O autor propõe (re)batizar de travestimento, a transformação estilística com função degradante, do
tipo Virgile travesti; p.6 Observa que diferenças entre paródia e travestimento de um lado, e charge e
pastiche, do outro. Essa distinção repousa evidentemente sobre um critério funcional, que é sempre a oposição
entre satírico e não satírico; a primeira pode ser motivada por um critério puramente formal, que é a diferença
entre uma transformação semântica (paródia) e uma transposição estilística (travestimento), mas ela comporta
também um aspecto funcional, pois é inegável que o travestimento é mais satírico, ou mais agressivo, em
relação a seu hipotexto que a paródia, que não o toma exatamente como objeto de um tratamento estilístico
comprometedor, mas apenas como modelo ou padrão para a construção de um novo texto que, uma vez
produzido, não lhe diz mais respeito” (p.7). Essa é a terminologia utilizada ao longo deste trabalho.
16
Idem, 1982, p. 5.
12
criativa. Tal operação consiste em, mantendo-se o perfil sensível da mensagem,
transcriá-la noutra língua; ou na mesma, passando, por exemplo, de uma linguagem
arcaica a uma atual. Para isto, é preciso que o signo seja traduzido não quanto ao
seu significado, mas quanto à sua iconicidade específica, podendo se dar, em alguns
casos, uma adaptação, interpretação ou até exegese da obra literária. Obviamente,
para fazer uma tradução assim, o tradutor tem que ser criativo e dominar elementos
da criação poética, o que, certamente, não falta à Clarice Lispector.
Historicamente a tradução remonta à Hermenêutica, em que se intentava interpretar a
vontade dos deuses; depois, aos textos sagrados, transpondo-os de uma língua e
cultura a outra (como o código de Hamurab, transcriado na Torá judaica); depois,
ainda, os próprios hebreus na primeira diáspora, em Alexandria, traduziram do
hebraico/ aramaico grande parte do Antigo Testamento para o grego. Hoje é comum
encontrar traduções de textos antigos em línguas vernáculas. Dá-se também
comumente a apropriação de categorias, temas e mesmo trechos tomados de textos
sagrados, muitas vezes culturalmente assimilados, em poéticas modernas e pós-
modernas, através de transposições criativas.
Não seria este o caso dessa inquietante obra de Clarice Lispector, objeto desta
dissertação? Ao longo de A Paixão Segundo G.H., a autora substitui o discurso bíblico
por outro, remetendo o leitor ao texto de partida seja através de analogias, como a
que se dá entre a paixão humana e a paixão de Cristo, seja através de travestimentos,
como naqueles que desconstrói a oração Ave Maria, originariamente feita através de
versículos bíblicos, seja ainda pela linguagem, pela categoria semita da passagem
que se em um deserto , ou até pela experiência da protagonista que ascende ao
misticismo através da descida às profundezas do seu inconsciente.
Obviamente, não temos em A Paixão Segundo G.H. um exemplo de tradução da
Bíblia, o livro, ou melhor, a coleção de livros, como o próprio nome diz (já que se
constitui de 73 livros) mais traduzida do mundo; não obstante, está claro que nesse
romance a autora usa a Bíblia transtextualmente, com muita liberdade e criatividade,
como se faz necessário em se tratando de uma criação literária que toca, de perto, a
tradução poética. Porém é, certamente, em todos os sentidos, plena travessia...
17
17
Etimologicamente o termo “tradução” remonta à travessia.
13
A interlocução entre as obras (Bíblia Sagrada & A Paixão Segundo G.H.), portanto,
parte da transposição de categorias de uma para a outra e até da transcriação de ritos
cristãos, como é o caso da própria Eucaristia. Isso se quase sempre através da
linguagem repetitiva, tipicamente bíblica.
Yudith Rosenbaum observa acerca do contexto em que aparece a primeira publicação
de Clarice que
Clarice mostrava que “o mundo da palavra é uma possibilidade infinita de
aventura, e que antes de ser coisa narrada a narrativa é forma que narra”. Ao
destacar a palavra como força demiúrgica de um mundo misterioso, Clarice
convoca um olhar crítico atento aos meandros mais sutis de um pensamento que
vibra intensamente na linguagem. A potência demolidora da palavra em relação a
um universo que com ela dialetiza põe em questão o mal como força tensionante
desse mesmo universo.
18
Ora, desde a primeira página da Bíblia vemos a força da palavra que é, a um
tempo, palavra e ação. “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve luz” (Gn 1,3). Portanto, o que
Clarice inaugura com Perto do Coração Selvagem enquanto literatura brasileira é
também uma forma de continuidade com a tradição bíblica, cuja relação palavra que
corresponda à ação se continuamente, como marca de conversão, de cura, de
transformação, enfim. No contexto bíblico, a escuta da palavra é essencial. Para
Kanaan também, Clarice
reivindicará em relação ao seu texto, não uma leitura pura e simples, mas uma
escuta, querendo marcar com isso um efeito particular, o da transformação gerada
pela palavra, a qual se concretiza não apenas na escrita, mas sobretudo na fala,
ou seja, na palavra dita e escutada. Num e noutro contextos, as palavras mantêm
muito um sentido de ação; a palavra faz, realiza, cria. Daí a importância do outro,
que possa escutar essa palavra, testemunhá-la, vivê-la e dar provas de sua ação.
19
Esse autor aponta algumas das características de Clarice que podem remeter às
tradições judaicas: a insistência na temática das origens, dos rituais de passagem, da
busca, dos desencontros, da revelação de uma verdade, de uma espera constante, do
destino. De fato, tudo isso é facilmente comprovável em seus escritos e haverá forte
incidência de algumas dessas características em A Paixão Segundo G.H. Segundo ele,
18
ROSENBAUM, 1999, p. 19.
19
KANAAN, 2003, p. 23.
14
pouco se tem enfatizado as marcas cristãs na obra de Clarice, como uma espécie de
receio de contrariar sua origem reconhecidamente judaica. Apontam-se certas
referências a Cristo, a cenas que lembram a tradição cristã, mas o se aprofunda
essa investigação”
20
. Como se enfatizar essas marcas significasse atribuir a Clarice
uma religiosidade ou uma origem cristã. No entanto, o fato é que
Clarice faz referências tanto à tradição judaica como à cristã em sua obra. Não
“privilegia” uma em relação à outra. Serve-se das imagens que uma e outra
podem fornecer no sentido de captar a realidade que tanto luta por descrever,
expressar em palavras. Ela sempre perseguiu o indizível; o que haveria de mais
indizível do que a experiência mística? Sempre buscou a palavra como forma de
expressão; onde a palavra alcança sua maior expressão senão na tradição bíblica
judaico-cristã? para lembrar uma célebre frase que abre o Evangelho segundo
São João: “No princípio era o Verbo...” Pois é justamente o verbo que Clarice
persegue como forma de acercar-se do Verbo, origem de tudo...
21
E Olga Borelli, em “A difícil definição”, menciona que ela sempre vivia num atualismo
místico. Deus era a sua mais íntima possibilidade.”
22
Olga esteve muito próxima a
Clarice em seus últimos anos, foi sua secretária, depois de Clarice ter tido a mão
queimada em um incêndio em sua casa. Inclusive esteve com ela, quando da sua
morte, lhe dando a mão
23
. “Pelo conhecimento que dela tive notei que sua ação na vida
sempre correspondia a uma busca. Em suas conversas sempre surgia o
questionamento do sentido da vida, Deus, morte, matéria, espírito”.
24
Portanto, a partir de tudo o que se disse, parece claro que o referencial das
tradições bíblicas judaica e cristã permeia a obra de Clarice Lispector e que a
metodologia aqui utilizada será traçar um paralelo entre alguns temas e procedimentos
bíblicos a missão; a visão (profética); o deserto, como lugar de passagem,
encontro, transformação; a epifania (estado de graça); o pecado; a comunhão; a
paixão e a obra em questão, partindo das contradições da escrita de Clarice,
culminando na paixão de G.H. Isso se fará através da análise detalhada da estrutura
circular de A Paixão Segundo G.H., da linguagem utilizada, da sondagem introspectiva
20
Ibidem, p. 23.
21
Ibidem, p. 21.
22
BORELLI, 1988, p. XXIII.
23
G.H. pede ao leitor que lhe dê a mão para que ela possa suportar o relato. Olga, que esteve com Clarice em
seus últimos instantes, testemunha que a escritora também lhe pediu a mão para suportar a travessia final.
24
Ibidem, p. XXIII.
15
que chega às vias da experiência mística, tendo por pressuposto básico a Literatura
Bíblica.
Em um primeiro capítulo, os temas e procedimentos bíblicos acima citados, serão
tratados enquanto demonstração da utilização da Literatura Bíblica pela autora
(privilegiando a matriz poética), que a Bíblia é uma literatura fundamental e
fundante da literatura do Ocidente e acabou por tornar-se um verdadeiro código
25
do
ler e do escrever de todos os povos de raízes judaico-cristãs.
No segundo capítulo, os mesmos temas serão desdobrados na perspectiva mística da
paixão, na qual se privilegiará a experiência dos opostos vivida por G.H. Ser & Não-ser
(identidade e missão). Imanência & Transcendência. Paixão (paradoxal em si).
Utiliza-se, nesse intento, como referencial teórico-crítico, tanto obras de caráter
literário quanto de exegese bíblica. Todas as obras da autora assim como todos os
livros da Bíblia
26
são, de alguma forma, passíveis de serem citados nesse cotejamento.
Quanto à terminologia adotada, como se disse, em se tratando da comparação das
obras, opta-se pela categoria funcional de Genette.
Capítulo I
blia: grande digo
25
A expressão é de W. BLAKE. cf. p. 19 desta dissertação.
26
Para o leitor não habituado às citações dos livros bíblicos, assim como para as abreviaturas das obras de
Clarice Lispector, há um anexo às páginas 164-8, desta dissertação.
16
Ah, mas ao mesmo tempo como posso desejar que meu coração veja?
se meu
corpo é tão fraco que não posso encarar o sol sem que meus olhos
fisicamente chorem — como poderia eu impedir que meu coração
resplandecesse em
lágrimas fisicamente orgânicas se em nudez eu sentisse a identidade: o
Deus?
Meu coração que se cobriu com mil mantos.
PSGH, 65
A Paixão Segundo G.H é escrita como transtextualidade bíblica. Não parece incomum
que uma brasileira de origem judaica teça sua escritura a partir do dado literário-
religioso. Como afirma Guinsburg
27
esse é “um povo que se distinguia por tender a
fazer da religião o principal centro de sua vivência coletiva” desde o século II antes de
Cristo, e a religião segue sendo o principal eixo do tradicionalismo judaico. Ora, a
forma de entretecer sua escritura demonstra uma faceta da afinidade ontológica que
Clarice Lispector tem com a cultura judaica, na perspectiva bíblica: “[...] eu estava
nadando lenta no meu mais antigo caldo de cultura, o suor era planctum e pneuma e
pablum vitae, eu estava sendo, eu estava sendo” (PSGH, 106).
É como diz Borges: “Parece obvio, para los judíos, que las palabras tienen poder”
28
e,
noutro momento, afirmando sobre si próprio: “[...] esas páginas no me pueden salvar,
quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la
tradición.”
29
É da tradição comum em nossa “memória cultural” que a autora lança mão
na construção de sua escritura.
segundo Haroldo de Campos
30
, retomando W. Blake, a Bíblia é o grande código do
modo de ler moderno (e, claro!, por conseguinte, de escrever. Clarice Lispector que o
diga). Na perspectiva cultural judaico-cristã em que vivemos imersos, isso é
extremamente coerente.
27
Citado por CAMPOS, 1991, p. 239.
28
BORGES, 2001, p.102.
29
Idem, 2000, p.168.
30
CAMPOS, 1991, p.18.
17
Esta leitura forçosa (e forçadamente) “sincrônico-retrospectiva” é, ademais, uma
das marcas inafastáveis do modo de ler moderno, pelo qual o babélico Borges,
como frisa E.R. Monegal em Uma Poética da Leitura, não deixa de ser um dos
grandes responsáveis. Leitura como produção simbiótica de novos textos, como
intertextualidade e palimpsesto. Sobretudo, no caso, se tivermos presente a
hipótese do poeta visionário William Blake, segundo a qual a Bíblia é o “Grande
Código da arte (da literatura) ocidental”, hipótese endossada e elaborada
criticamente por Northrop Frye. Enquanto código, portanto seria lícito
acrescentar —, constantemente suscetível de recodificação e reinterpretação pelos
operadores literários situados no presente de criação. (Grifo meu).
Suscetível, também, como aqui se pode verificar, de diversos níveis de transposições.
A própria Clarice Lispector
31
afirmava, referindo-se a sua escrita: “desde Moisés se
sabe que a palavra é divina”. E sua narradora, que se esconde sob as iniciais G.H.,
experimenta isso, porque precisa contar o que “viu”. Em verdade, bem que se poderia
afirmar sobre A Paixão Segundo G.H. o mesmo que H. Meschonnic diz de Qohélet
32
, em
Campos: “Este livro é construído por suas obsessões. Exemplos, provérbios, tudo é
ritmado pelo movimento de ressaca, pela repetição dos termos, cuja visada não é o
pessimismo, mas a lucidez, não o abstrato, mas o concreto”.
Muitos diziam: “Ele tem um demônio! Está delirando! Por que o
escutais?”
33
Tema constante na obra de Clarice Lispector, aqui também, em A Paixão Segundo
G.H., a autoconsciência é fonte de angústia e parte de um fato aparentemente
corriqueiro: surpresas sucessivas susto, medo desencadeiam a experiência de
G.H. quando se prepara para limpar o quarto da empregada que se despedira e o
encontra em “uma ordem calma e vazia”, “um aposento todo limpo e vibrante como
num hospital de loucos onde se retiram os objetos perigosos”, em reverberante luz:
um “quarto-minarete (PSGH, 27); e um mural a carvão com um homem, uma
mulher e um cão nus. “E antes de entender meu coração embranqueceu [...]” (PSGH,
31), novo susto ao se defrontar com uma barata saindo do guarda-roupa: “o grito
31
LISPECTOR, 1977, p. 95.
32
Coélet, narrador do Eclesiastes. CAMPOS, 1991, p. 23.
33
Jo 10,20. (Todos os livros bíblicos serão abreviados, conforme se faz usualmente em qualquer citação
bíblica. Cf. ANEXO). No contexto bíblico, uma pessoa louca ou epilética era considerada possessa por um
demônio. É o caso desta afirmação sobre Jesus “Ele tem um demônio! Está delirando!” considerado
louco devido a seus ensinamentos.
18
ficara me batendo no peito” (PSGH, 32). Esse passa a ser o instante de aquisição de
consciência da própria existência, e, assim, assume sua condição humana de intensa
solidão. Opta, então, por prosseguir seu caminho que, da mesma forma como começa,
termina, ou melhor, continua, numa circularidade marcada por seis travessões no
início e no fim da narrativa. Sinal de incompletude, que o sete, para os hebreus,
simboliza a totalidade humana e mesmo a perfeição divina?
O pressuposto para esse questionamento é o uso atento, consciente, que Clarice faz da
numerologia; o que também nos transporta à cabala
34
hebraica. O número sete é
particularmente incisivo em Água Viva
35
; já em A Hora da Estrela, seu sétimo romance,
o Autor nos diz: “A história determino com falso livre arbítrio vai ter uns sete
personagens e eu sou um dos mais importantes deles, é claro” (HE, 17). Neste
contexto, não se pode deixar de sublinhar também a repetição do termo “espírito” no
excerto abaixo.
Poderia contar todos os fatos, mas do que sentira não poderia falar: mais
sentimentos que palavras. Ao que se sente não modo de dizer. Pode-se
misteriosamente aludi-los.
Repetindo muito uma palavra ela perde o significado e vira coisa oca e
retumbante e ganha o próprio e enigmático corpo duro.
Espírito espírito espírito espírito espírito espírito espírito
36
. Afinal que é espírito? é
o que sinto dentro de não-mim?
Mais. É uma palavra morfologicamente faiscante e audaciosa, como os vôos de
pássaros. Espírito: e levantou vôo.
34
Ainda que não seja o assunto desta dissertação, não há como não mencionar de passagem a “cabala” em que
Ângela Pralini diz ter entrado. Seria interessante que se fizesse um estudo pormenorizado sobre numerologia
nas obras de Clarice. “Sete fôlegos de gato. O número sete acompanhava-a, era o seu segredo, a sua força. [...]
as sete letras de Pralini davam-lhe força. As seis letras de Ângela tornavam-na anônima(OEN, 38,42, grifos
meus). Poder-se-ia pressupor, assim, que os seis travessões que limitam a narrativa de G.H. tenham a mesma
função de suas iniciais, pois: torná-la anônima? Ou também reforçariam, junto ao anonimato das iniciais, que
a personagem é “a mulher de todas as mulheres”, cada ser humano, cada um do Gênero Humano?
35
Todas as obras de Clarice Lispector, assim como os livros bíblicos, estão abreviadas nas citações. Se
necessário, consultar as abreviações ANEXO.
36
Para NUNES (1988, 137-8), a romancista, pela repetição, vai desgastando a palavra, “desescrevendo” o
texto, “conseguindo um efeito mágico de refluxo da linguagem”. Ora, é isso que faz com que se alcance o
silêncio, o “indizível” segundo a própria Clarice.
19
Às vezes a palavra repetida torna-se o bagaço seco de si mesma e não refulge
mais nem como som”. (EPR, 77)
37
No Cristianismo, o Espírito de Deus é simbolizado por um pássaro, uma pomba, e sete
são os seus dons. Impossível não fazer analogia dessa aproximação poética, fluída,
que Clarice faz entre espírito” e pássaro, e o desejo de elevação a Deus próprio da
espiritualidade judaico-cristã. Mesmo que no excerto ela queira negar isso pelo
desgaste provocado pela repetição.
E para construir o itinerário interior de G.H. a ficcionista também faz uso de algumas
categorias bíblicas através de uma linguagem contraditória
38
, repetitiva. O que
sustenta a experiência de perda/busca da identidade pessoal da personagem. uma
pedra/osso no meio do caminho. Poder-se-ia dizer, como Miller, “essa repetição
insistente tende, em seguida, a se repetir no aparelho psíquico
39
, o que justificaria,
aqui, portanto, abordar essa temática na perspectiva da psicanálise, partindo das
interdições, visões, culpas experimentadas pela protagonista:
... a visão de uma carne infinita é a visão dos loucos, mas se eu cortar a carne
em pedaços e distribui-los pelos dias e pelas fomes [...] será de novo a vida
humanizada (PSGH, 11. Grifo meu.)
Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi
porque não entendo. Sei que vi porque para nada serve o que vi. Escuta, vou
ter que falar porque não sei o que fazer de ter vivido. Pior ainda: não quero o que
vi. O que vi arrebenta a minha vida diária. Desculpa eu te dar isso, eu bem queria
ter visto coisa melhor. Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de
meu pecado inútil (PSGH, 13. Grifos meus).
...viver a vida em vez de viver a própria vida é proibido (PSGH, 92. Grifos
meus.)
É evidente que muitos outros exemplos poderiam ser tomados, no romance, para
demonstrar o que acima se disse. Não obstante, a necessidade de se fazer um recorte
faz com que se eleja por objeto de estudo, aqui, não a psicanálise, ainda que seja um
37
BORELLI, 1981, p.77. Trata-se de Esboço para um possível retrato. Essa obra também está abreviada por
se tratar de uma coletânea de fragmentos de textos da própria Clarice.
38
A linguagem contraditória em PSGH está analisada às páginas 86 – 90 desta dissertação.
39
MILLER. 1998, p.28.
20
campo privilegiado para se ler Clarice, mas a interlocução desse romance com a Bíblia,
privilegiando, neste contexto, a perspectiva poética.
Voltei-me para ver a voz que me falava; ao voltar-me vi
40
A narrativa se constrói como numa visão, tal qual se pode ler a partir das experiências
proféticas no Antigo Testamento, e do Apocalipse, no Novo Testamento, com breves
intervalos, como a seguir, em que a temática remonta ao Pentateuco
41
(Torá):
EU FIZERA o ato proibido de tocar no que é imundo.
E tão imunda estava eu, naquele meu súbito conhecimento indireto de mim, que abri
a boca para pedir socorro. Eles dizem tudo, a Bíblia, eles dizem tudo — mas se
eu entender o que eles dizem, eles mesmos me chamarão de enlouquecida.
Pessoas iguais a mim haviam dito, no entanto entendê-las seria a minha derrocada.
[...] (PSGH, 47. Grifo meu.)
um liame entre a profecia e a loucura? Talvez se pudesse estabelecer a linha
divisória pelo fato do profeta falar em nome de Deus e suas profecias se realizarem.
Tendo que selecionar alguns trechos do romance que demonstrem o aspecto
visionário, imagem poética e profética, esbarra-se na dificuldade de não repetir grande
parte da obra, que a própria protagonista afirma: “Não, em tudo isso eu não
estivera enlouquecida ou fora de mim. Tratava-se apenas de uma meditação visual.”
(PSGH, 73. Grifo meu). Trata-se da visão que tivera ao meio dia...
Estou mais cega do que antes. Vi, vi sim. Vi, e me assustei com a verdade bruta...
(PSGH, 15)
Como direi agora que já então eu começara a ver o que só seria evidente depois?
sem saber, eu estava na ante-sala do quarto. Já começava a ver, e não sabia;
vi desde que nasci e não sabia, não sabia.
Eu via o que aquilo dizia: aquilo não dizia nada.
Eu estava vendo o que só teria sentido mais tarde. (PSGH, 24)
40
Ap 1,12.
41
No excerto a narradora se refere aos livros bíblicos Levítico e Deuteronômio, com citação explícita. À
frente essa interdição será retomada.
21
No desmoronamento, toneladas caíram sobre toneladas. E quando eu, G.H. até
nas valises, eu, uma das pessoas, abri os olhos, estava não sobre escombros
pois até os escombros haviam sido deglutidos pelas areias estava numa
planície tranqüila, quilômetros e quilômetros abaixo do que fora uma grande
cidade. As coisas haviam voltado a ser o que eram. [...] começo dos tempos.
(PSGH, 45)
Enfim, um trecho de um capítulo
42
da obra, importante nesse aspecto, que parte da
visão real do Rio de Janeiro desde a perspectiva da janela daquele quarto de
empregada, e se amplia, virtualmente, por paisagens bíblicas/ tempo bíblico:
Eu procurava uma amplidão.
Daquele quarto escavado na rocha de um edifício, da janela do meu minarete, eu
vi a perder-se de vista a enorme extensão de telhados e telhados tranqüilamente
escaldando ao sol. Os edifícios de apartamentos como aldeias acocoradas. Em
tamanho superava a Espanha.
Além das gargantas rochosas, entre os cimentos dos edifícios, vi a favela sobre o
morro e vi uma cabra lentamente subindo pelo morro. Mais além estendiam-se os
planaltos da Ásia Menor. Dali eu contemplava o império do presente. Aquele era o
estreito de Dardanelos. Mais além as escabrosas cristas. Tua majestosa
monotonia. Ao sol a tua largueza imperial.
E mais além, o começo das areias. O deserto nu e ardente. Quando caísse a
escuridão, o frio consumiria o deserto, e nele se tremeria como nas noites do
deserto. Mais ao longe, o lago salgado e azul cintilava. Para aquele lado, então
devia ser a região dos grandes lagos salgados.
Sob as ondas trêmulas do mormaço, a monotonia. Através das outras janelas dos
apartamentos e nos terraços de cimento, eu via um vaivém de sombras e
pessoas, como nos primeiros mercados assírios. Estes lutavam pela posse da Ásia
Menor.
Eu havia desencavado talvez o futuro ou chegara a antigas profundidades tão
longinquamente vindouras que minhas mãos que as haviam desencavado não
42
A denominação “capítulo” será usada para distinguir as diferentes partes da obra, trinta e três fragmentos
ligados uns aos outros por alguma frase repetida, conforme se verá adiante, no entanto esses fragmentos não
possuem títulos nem são numerados.
22
poderiam suportar. Ali estava eu de pé, como uma criança vestida de frade,
criança sonolenta. Mas criança inquisidora. Do alto deste edifício, o presente
contempla o presente. O mesmo que no segundo milênio antes de Cristo. [...]
E porque eu mesma estava tão certa de que terminaria morrendo de inanição sob
a pedra desabada que me prendia pelos membros então vi como quem nunca
vai contar. Vi, com a falta de compromisso de quem não vai contar nem a si
mesmo. Via, como quem jamais precisará entender o que viu. [...] (PSGH, 69-70)
Muitas são as referências bíblicas espaço-temporais presentes no excerto acima, ainda
que os acontecimentos “reais” estejam claramente situados num quarto de empregada
de uma cobertura, no décimo terceiro andar de um edifício do Rio, e se dêem durante
algumas horas (da manhã e tarde) do dia anterior à narrativa. Entretanto, ela tem
essa visão apocalíptica “da janela do [seu] minarete” por volta do meio-dia, e, o quê
vê?
“Aldeias acocoradas”, “gargantas rochosas”, cabras pelos morros, “planaltos da Ásia
Menor”, deserto, “lago salgado e azul”, “mercadores assírios”... Num tempo tão
presente quanto no “segundo milênio antes de Cristo” tempo em que começa a
formação do povo hebreu, que por volta de 1850 a.C. Abraão chega a Canaã (Gn
12) quantas e quantas alusões às civilizações (bíblicas) antigas... Mesopotâmia,
Egito (“reis, esfinges e leões”).
E a todo instante a narradora se expressa em termos apocalípticos: olhei então a
barata. E vi: era um bicho sem beleza para as outras espécies. E ao vê-lo, eis que o
antigo medo pequeno voltou por um instante” (grifos meus). Vai e volta
percorrendo, em sua visão infinita, cenários bíblicos: “Olhando-a, eu via a vastidão do
deserto da Líbia, nas proximidades de Elschele. [...] eu era capaz de ver ao longe
Damasco, a cidade mais velha da terra” (PSGH, 73). “Vejo uma noite na Galiléia. A
noite na Galiléia é como se no escuro o tamanho do deserto andasse” (PSGH, 74). E
migra, freqüentemente, do deserto ao dilúvio, de um a outro oposto: “E então vai
acontecer numa rocha nua e seca do deserto da Líbia , vai acontecer o amor de
duas baratas.[...] Sobre a rocha, cujo dilúvio
43
milênios secou, duas baratas
secas”(PSGH, 74).
43
Nova alusão às origens: Gn 6-9.
23
Assim, com metáforas apocalípticas se sucedendo: terremoto: “no desmoronamento,
toneladas caíam sobre toneladas” (PSGH, 45) e dilúvio: “e depois, como após um
dilúvio, sobrenadavam um armário, uma pessoa, uma janela solta, três maletas. E isso
me parecia o inferno, essa destruição de camadas e camadas arqueológicas humanas”
(PSGH, 46), G.H. vai perfazendo seu itinerário como quem cai em um abismo; até que
ela, que atinge o atonal, o neutro, entende: “botando na boca a massa da barata, eu
não estava me despojando como os santos se despojam, mas estava de novo
querendo o acréscimo” (PSGH, 109).
Tal qual acontece no relato de G. H., nas narrativas bíblicas é comum que visões
proféticas partam do cotidiano e sejam por ele metaforizadas. Jeremias (1,13-14)
uma panela fervendo, símbolo do que se concretizará no capítulo 4, versículos 5-22,
seguido de nova visão (Jer 4, 23-31), em que vislumbrará a destruição do país.
Teu nome é como óleo escorrendo
44
Ora, a visão aqui entendida como imagem poética está entretecida em recursos
retóricos, tais como a repetição e a dissonância. Aliás, Haroldo de Campos
45
ao referir-
se às contribuições de Meschonnic afirma que esse poeta francês julga “não-pertinente
quanto aos textos bíblicos a distinção convencional entre poesia e prosa”, para tanto,
comenta que o ensaísta enfatiza o “aspecto ritmopéico, rítmico-prosódico, do original
hebraico, uma ‘pontuação do fôlego’. Segundo opina, a estrutura rítmica já é portadora
de sentido”. Isso se largamente na escritura clariceana como aliás tem sido
apontado pela crítica desde o estranhamento com sua sintaxe inusitada até a
constatação relativa à poeticidade da sua prosa. É ainda o mesmo Haroldo de
Campos
46
que, em seu espetacular ensaio introdutório ao poema sapiencial: Qohélet/
O-que-sabe, transcriado por ele, nos diz:
Para enfrentar a dificuldade apontada por N. Frye na tradução bíblica o
contraste no texto entre o tom oracular (autoritário-repetivo) e o mais imediato e
familiar (registros partilhados entre a ‘voz de Deus’ e a ‘voz do homem’), temos
já, em nossa língua, na prática literária moderna, um fundo retórico
preconstituído, graças a escritores como Guimarães Rosa (Grande Sertão) e João
44
Ct 1,3.
45
CAMPOS, 1991, p. 26.
46
CAMPOS, 1991, p. 34-5.
24
Cabral (Autos), como também a certo estrato da dicção drummondiana.
Abeberaram-se, todos, na tradição (memória oral do povo) e na inovação
paralela; na surpresa “consentida” de efeitos sonoros, lexicais e morfo-sintáticos,
freqüentes vezes resgatados por revitalização ao arcano das falas populares; ao
mesmo tempo remotos e saborosamente vivos, atualíssimos, portanto.
Certamente sem visar preservar o registro da oralidade, mas, com muita propriedade
esculpindo uma “surpresa ‘consentida’ de efeitos sonoros, lexicais e morfo-sintáticos”
não seria o caso de incluirmos Clarice Lispector entre esses inovadores do
Modernismo? Se não, ao menos que se ressalte que a “extrema flexibilidade da forma
expressiva da literatura bíblica (grupos condensos de palavras regidos por variações
paralelísticas semântico-sintáticas; ritmo de aparência ‘livre’)”, como o diz B.
Hrushovski
47
, transborda em sua obra.
O grito ficara me batendo dentro do peito (PSGH, 32).
Nenhum ruído e no entanto eu bem sentia uma ressonância enfática, que era a do
silêncio roçando o silêncio (PSGH, 33).
Mas se souberem, assustam-se, nós que guardamos o grito em segredo inviolável
(PSGH, 41).
Minha tensão de súbito quebrou-se como um ruído que se interrompe.
E o primeiro verdadeiro silêncio começou a soprar.
[...] Enfim o corpo, embebido de silêncio, se apaziguava (PSGH, 42).
[...] e meus lábios secos recuaram até os dentes.
[...] a vida me havia acontecido de dia (PSGH, 51).
Dentro do mesmo filão de expressões saborosas, vale ressaltar a beleza da frase
seguinte que, na edição que utilizo, falta a última vírgula: “Nem mesmo o medo mais,
nem mesmo o susto mais.” Entretanto, noutras edições a expressão aparece sempre
conforme grafada abaixo, o que modifica por completo o período e dá-lhe outra carga
de poeticidade, certamente mais próxima à poética de Clarice.
Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto, mais (PSGH, 69).
47
Ibidem, p. 28.
25
Sigo com outras expressões ontológicas de A Paixão Segundo G.H., das muitíssimas
que poderia selecionar, mantendo, ainda, a ordem em que aparecem no texto:
Os edifícios de apartamentos como aldeias acocoradas (PSGH, 69).
Pois a barata me olhava com sua carapaça de escaravelho, com seu corpo
rebentado que é todo feito de canos e de antenas e de mole cimento e aquilo
era inegavelmente uma verdade anterior a nossas palavras... (PSGH, 77).
De madrugada estarei de ao lado do ginete mudo, com os primeiros sinos de
uma Igreja escorrendo pelo regato, com o resto das flautas ainda escorrendo dos
cabelos (PSGH, 83).
— Tu eras a pessoa mais antiga que eu jamais conheci. Eras a monotonia de meu
amor eterno, e eu não sabia. Eu tinha por ti o tédio que sinto nos feriados. O que
era? era como a água escorrendo numa fonte de pedra, e os anos demarcados na
lisura da pedra, o musgo entreaberto pelo fio dágua correndo, e a nuvem no alto,
e o homem amado repousando, e o amor parado, era feriado, e o silêncio no vôo
dos mosquitos. E o presente disponível. E minha libertação lentamente entediada,
a fartura, a fartura do corpo que não pede e não precisa (PSGH, 100).
As asas das coisas estavam abertas, ia fazer calor de tarde, já se sentia pelo suor
fresco daquelas coisas que haviam passado a noite morna, como num hospital em
que os doentes ainda amanhecem vivos (PSGH, 100).
Passei pelo roer a terra e pelo comer o chão. [...] (PSGH, 100)
Meu mundo hoje está cru[...] quero a raiz grossa e preta dos astros (PSGH, 101).
... fechei os olhos com a força de quem tranca os dentes... (PSGH, 105).
Sua linguagem, rica em recursos expressivos, envolve tanto o plano prosódico quanto
o nível da repetição dos sons, aliterações, paronomásias. E não é raro que se depare
com alguma adjetivação estranha: “E estremeci de extremo gozo como se enfim eu
estivesse atentando à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente
doce. [...] Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma
fonte.” (PSGH, 35).
26
No entanto, muitíssimo mais freqüentes são as frases em que o ritmo é
essencialmente musical; “nossas mãos que são grossas e cheias de palavras” (PSGH,
101), em que uma exploração nítida do poder sugestivo da consoante /s/. Ou
eram nervos seccionados que tivessem secado suas extremidades em arame (PSGH,
29. Grifos meus). Em que, além da aliteração do som /s/, se tem essa moldura”
original: eram/arame. Já em A vida se vingava de mim, e a vingança consistia apenas
em voltar, nada mais. [...] Os possessos, eles não são possuídos pelo que vem, mas
pelo que volta. Às vezes a vida volta” (PSGH, 46) temos outros dois sons muito
queridos nessa obra /v/ e /p/. Bem menos freqüentes são os encontros consonantais e
dígrafos que se interpolam como em: “e que se tornou uma criança-semente que não
se quebra com os dentes” (PSGH, 101).
o oxímoro construído em dualidades e antíteses, “sutura da linguagem e do
pensamento,” como quer Sant’Anna
48
, transbordam do texto “com frases, às vezes,
lógica e gramaticalmente ‘catastróficas’, porque subvertem o solo lingüístico
tradicional”. Por exemplo:
Era finalmente agora. (PSGH, 53)
Assim se morre sem se saber para onde. (PSGH, 53)
Eu quero o que eu te amo. (PSGH, 89)
De fato, Sant’Anna nota o acentuado uso de oxímoros na obra. Mais: chega a constatar
que a própria história se constrói a partir de uma desconstrução. “O romance (ou
novela) se estrutura a partir da catástrofe. É uma obra de linguagem que se efetiva a
partir da negação da linguagem convencional.[...]” O crítico observa “que nos três
níveis de uma análise estrutural: narração, personagens e lingua(gem), ocorre o
oxímoro”.
Mas note-se, a partir da literatura bíblica, que o próprio Cristianismo nasce da na
Ressurreição de Cristo, após sua Paixão. Tal paradoxo: derrota que se faz vitória,
morte que germina/culmina ressurreição é a raiz não da cristã, como da
construção mesma de toda a experiência narrada no Novo Testamento.
48
SANT’ANNA, 1988, p. 253-5.
27
“Romance-parábola em que o alegórico e o expressionístico se interpenetram”
49
, é
possível à linguagem manter-se nesse discurso extremo que é o paradoxo. O paradoxo
é um metalogismo da mesma forma que as repetições, cuja análise faremos a seguir.
É através dos enunciados paradoxais que Clarice Lispector diferencia poeticamente sua
prosa e são eles que tentam interpretar a experiência de G.H.: “Eu estava vendo o que
teria sentido mais tarde quer dizer, mais tarde teria uma profunda falta de
sentido.”
A respeito dos opostos que formam oxímoros, dos muitíssimos de A Paixão Segundo
G.H., retomo alguns abaixo:
Viver não é vivível. (PSGH, 15)
Minha rouquidão de muda já era rouquidão. (PSGH, 61)
Não me deixes tomar essa decisão já tomada. (PSGH, 63)
Medo da minha falta de medo. (PSGH, 64)
Eu agora era pior do que eu mesma. (PSGH, 83)
O opaco me reverberava os olhos. (PSGH, 88)
Eu sempre havia tido uma espécie de amor para o tédio. E um contínuo ódio dele.
(PSGH, 91).
Se eu tivesse precisado tanto de mim para formar minha vida, eu teria tido a
vida. (PSGH, 92)
Foi sempre a minha vida errada que me anunciou para a certa. (PSGH, 98)
Assim, surgem efeitos poéticos também da forma surpreendente como novos sentidos
são agregados às palavras: “Trata-se exatamente de agora [...] até as bordas do copo
verde. O tempo freme como um balão parado. O ar fertilizado e arfante.” (PSGH, 53).
“[...] sentada, eu estava consistindo. Sentada, consistindo, eu estava sabendo que se
não chamasse as coisas de salgadas ou doces, de tristes ou alegres ou dolorosas ou
mesmo com entretons de maior sutileza [...]” (PSGH, 56). Aqui, vale notar que além
do inusitado uso do verbo consistir também é evidente, no excerto, a repetição.
Esta matriz poética, a repetição, é largamente usada nos livros sapienciais bíblicos (em
quase todos os Salmos, no Cântico dos Cânticos, no Eclesiastes, nos Provérbios...) e
mesmo no Novo Testamento. Exemplo típico são as bem-aventuranças em Mt 5,3-12 e
Lc 6,20-23. Transcrevo, abaixo, as maldições, também em Lucas, capítulo 6:
49
NUNES, 1989, p. 143.
28
“[...] ai de vocês, os ricos, porque têm a sua consolação! Ai de vocês, que
agora têm fartura, porque vão passar fome! Ai de vocês, que agora riem,
porque vão ficar aflitos e vão chorar! Ai de vocês, se todos os elogiam, porque
era assim que antepassados deles tratavam os falsos profetas. (Grifos meus).
E um dos muitos trechos permeados de repetições do romance em estudo:
“Eu vi. Sei que vi porque não dei ao que vi o meu sentido. Sei que vi
porque não entendo. Sei que vi porque para nada serve o que vi.” (PSGH,
13. Grifos meus).
E a luz brilha nas trevas
50
Sant’Anna
51
sublinha que os dois dígitos (a mulher e a barata) têm uma relação de
complementaridade binária. São a semente de uma série de desdobramentos, de
bifurcações, de dualidades pelas quais caminha toda a narrativa”. Ora, essa é uma
forma semita de expressão muitíssimo comum na Bíblia. Dualidades perpassam os
evangelhos, por exemplo. Se se tomar somente o primeiro deles, o Evangelho segundo
Mateus, e sem referências aos textos laterais e paralelos, em uma demonstração
parcial, teremos:
Bem/mal: Mt 7,15-20.
Entrar/sair: Mt 10,11-14.
Encoberto/descoberto; trevas/luz; segredo/anúncio: Mt 10, 26-27.
Festa (casamento)/enterro; penitência/condescendência: Mt 11,17-19.
Sábios/simples: Mt 11,25-26.
Sujeição/suavidade; pesado/leve: Mt 11, 30.
Boa semente/má semente: Mt 13,24-30 (parábola do joio); 36-43 (explicação da
parábola).
Esconder/achar; vender/comprar: Mt 13,44-46 (parábola do tesouro e da pérola).
Puro/impuro: Mt 15, 10-20.
Filhos/cães (judeus/gentios): Mt 15,26.
Maior/menor: Mt 18,1-4.
Chefe/servo; primeiro/último: Mt 20,25-28.
50
Jo 1,5.
51
SANT’ANNA, 1988, 251.
29
Dizer/fazer: Mt 21, 28-32 (parábola dos dois filhos).
Palavra/ação; humilhar/exaltar: Mt 23,1-12 (Hipocrisia e vaidade dos escribas e
fariseus).
Salvação/perdição: Mt 25,31-46 (O último julgamento).
Vigiar/repousar; prontidão/fraqueza: Mt 26,36-46.
Amizade/traição: Mt 26, 47-56.
É bom considerar, dentro do contexto do pensamento típico do judaísmo, que Mateus,
o publicano, pertencente ao colégio dos doze apóstolos, redigiu seu evangelho na
Palestina, em língua hebraica (aramaico), ao contrário dos demais sinóticos (segundo e
terceiro evangelhos) cuja língua original é o grego. Esse dualismo expresso por meio
de antinomias é comum também a João, autor do quarto evangelho.
Ainda que esteja sobejamente exemplificado ser este um modo de pensar comum a
autores bíblicos, outra citação será transcrita abaixo, retirada do mesmo primeiro
evangelho. Foi escolhida porque a mesma dualidade aqui presente aparece e,
inclusive, perpassa, indiretamente, o romance em questão.
Perder/achar: Mt 10,39:
“Aquele que acha a sua vida, vai perdê-la, mas quem perde a sua vida por causa
de mim, vai achá-la”.
Importa ainda notar o hebraísmo do texto evangélico que para ressaltar a necessidade
do desapego incondicional fala de “ódio” em oposição à entrega generosa, amor total.
Em Lucas, temos:
“Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos,
irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” (Lc 14, 26).
Também A Paixão Segundo G.H. é alicerçada sobre oposições que se constróem a
partir das decisões que são tomadas passo a passo pela protagonista. Considerando,
para citar como exemplo, somente o primeiro capítulo do texto que na verdade
trata da temática que será abordada em toda a obra
52
temos:
52
Também esse é um procedimento recorrente nos livros bíblicos. O Prólogo de João (Jo 1, 1-18), por
exemplo, já trata de todos os temas desenvolvidos em seu Evangelho.
30
Coragem/covardia: pp. 9-10:
“Nesta minha covardia a covardia é o que de mais novo me aconteceu, é a
minha maior aventura, essa minha covardia é um campo tão amplo que a
coragem me leva a aceitá-la na minha nova covardia, que é como acordar de
manhã na casa de um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir”.
Perder-se/encontrar-se; ganhar/perder
53
: pp. 10. 12. 15:
“É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo
de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. Até agora
achar-me era já ter uma idéia de pessoa e nela me engastar [...]”.
“No entanto na infância as descobertas terão sido como num laboratório onde se
acha o que se achar? [...] Mas como adulto terei a coragem infantil de me perder?
perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando”.
“Todo momento de achar é um perder–se a si próprio”.
“Quero saber o que mais, ao perder, eu ganhei”.
Prisão/liberdade: pp.10-11:
“A idéia que eu fazia de pessoa vinha da minha terceira perna, daquela que me
plantava no chão. [...] As duas pernas que andam, sem mais a terceira que
prende. E eu quero ser presa. Não sei o que fazer da aterradora liberdade que
pode me destruir. Mas enquanto eu estava presa, estava contente? ou havia, e
havia, aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?
Entrada/saída
54
: p. 10:
“[...]por segurança chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de
saída. Por que não tenho coragem de simplesmente achar um meio de entrada?
53
A esse propósito, considerar o logion paradoxal sobre as etapas presente e futuro da vida humana: Jo 12, 25:
“Quem ama sua vida a perde/ e quem odeia sua vida neste mundo/ guarda-la-á para a vida eterna”.
Mt 16, 25: Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de
mim, vai encontrá-la.” Tema presente também em Mc e Lc, reiteradamente.
54
NUNES, na edição crítica, 1988, observa em nota: “Entrada/saída são ‘topoi’ místicos. Os sentimentos que
prevalecem são medo e susto.”
31
Oh, sei que entrei sim. Mas assustei-me porque não sei para onde essa
entrada. E nunca antes eu me havia deixado levar, a menos que soubesse para o
quê”.
Forma/caos — forma/nada: p. 11:
“Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar uma
forma, nada existe. [...] Uma forma contorna o caos, uma forma construção à
substância amorfa[...]”.
“Devo ficar com a visão toda [...] ou dou uma forma ao nada”.
Vida/morte: p. 12:
“[...] por um átimo experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez
manusear o proibido tecido da vida. É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o
disse. Quase não me pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição
dentro de mim de minha época”.
Compreender/não compreender: p. 12:
“Toda compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda
incompreensão. [...] Talvez me tenha acontecido uma compreensão tão total
quanto uma ignorância. [...] Qualquer entender meu nunca estará à altura dessa
compreensão [...]”.
Encontro/desencontro: p.13:
“[...] eu que sempre pensara que encontrar seria fértil e úmido como vales
fluviais. Não contava que fosse esse grande desencontro”.
Carência/amor: p. 14:
“Aquilo que provavelmente pedi e finalmente tive veio no entanto me deixar
carente como uma criança que anda sozinha pela terra. Tão carente que o
amor de todo o universo por mim poderia me consolar e me cumular[...]”.
32
De Perto do Coração Selvagem a Um Sopro de Vida, encontra-se esse aspecto
relacional dos contrários em que se fundamenta A Paixão Segundo G.H. Além disso, se
se pode observar em Clarice a sacralização da palavra “a vastidão dentro do quarto
pequeno aumentara, o mudo oratório alargava-o em vibração até a rachadura do teto.
O oratório não era prece: não pedia nada. As paixões em forma de oratório” (PSGH,
54) há, ainda, que se salientar que a linguagem de conteúdo religioso e místico
mantém uma estrutura hierática, como já lembrara Sant’Anna, recordando sobretudo a
sua conotação com aquilo que de hierático tem o hieroglifo enquanto escrita sagrada
dos sacerdotes, em oposição à escrita demótica, mais popular e profana. De fato,
hieroglifo é uma palavra repetidas vezes utilizada no texto.
Essa é uma linguagem-sujeito, divinizada pelo ritual que desenvolve. Não é uma
linguagem-objeto, puro conteúdo transparecendo banalidades. Nisto, é uma
linguagem-ritual. Daí o seu caráter circular, fechado e a composição em tom de
‘oratório’ termo que reaparece aqui e ali dando ainda mais solenidade à
epifania. Como um oratório com seus contrapontos e fugas, com diversos temas
se desenvolvendo num rodízio ascensional e espiralado, lembra as volutas das
catedrais barrocas em direção ao infinito. Catedrais que reúnem o grotesco e o
sublime numa dialética e oxímoro. E, no entanto, tudo decorre de algo
minúsculo que se passa num quarto de um apartamento entre uma mulher e uma
barata.
55
No princípio era o Verbo
56
E, dentro do viés proposto por Luís Costa Lima de que esse romance seria uma via
mística ao revés
57
, mais ainda, considerando como veremos adiante, na abordagem
de Claire Varin a paixão de G.H., representante do Gênero Humano, em oposição à
vivida pelo Filho de Deus, transcrevo, abaixo, um trecho da oração de Jesus logo antes
de sua paixão, segundo João (17,11d-12c.21bc.22-23.).
Pai santo,
guarda-os em teu nome
que me deste,
55
SANT’ANNA, 1988, 250
56
Jo 1,1.
57
LIMA, 1969, pp. 98-124.
33
para que sejam um como nós.
Quando eu estava com eles,
eu os guardava em teu nome
que me deste;
[...]
Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti,
que eles estejam em nós.
[...]
Eu lhes dei a glória que me deste
para que sejam um, como nós somos um:
Eu neles e tu em mim,
para que sejam perfeitos na unidade
e para que o mundo reconheça que me enviaste
e os amaste como amaste a mim.
Não foram destacados os termos repetidos porque isso seria grifar quase todo o texto,
dificultando a sua leitura. O mesmo vale para o texto a seguir, um dos muitos do
romance em estudo que, como se verá, além do uso repetido de vocábulos, também
se mostra como o avesso do texto anterior:
Meu Deus, dá-me o que fizeste. Ou me deste? e sou eu que não posso dar o
passo que me dará o que fizeste? O que fizeste sou eu? e não consigo dar o
passo para mim, mim que és Coisa e Tu. Dá-me o que és em mim. Dá-me o que
és nos outros, Tu és o ele, eu sei, eu sei porque quando toco eu vejo o ele. Mas o
ele, o homem, cuida do que lhe deste e envolve-se num invólucro feito
especialmente para eu tocar e ver. E eu quero mais do que o invólucro que
também amo. Eu quero o que eu Te amo. (PSGH, 89).
A repetição, aliada à transposição de certas expressões bíblicas, constitui, no texto, a
raiz principal de onde emana a seiva retórica. Imitação que me deu a chance de usar
um tom monótono que me satisfaz muito: a repetição me é agradável, e repetição
acontecendo no mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena enjoada diz
alguma coisa”, declara Clarice
58
. O emprego reiterado dos mesmos termos e das
mesmas frases, apresenta-se sob determinadas formas características dotadas de
valor rítmico, desempenhando sempre função expressiva. Na literatura bíblica,
sobejam exemplos desse procedimento tão recorrente também na obra de Clarice.
58
LISPECTOR, em “Fundo de Gaveta” (saiu na mesma ocasião que PSGH), 1964, p. 293.
34
Clássico, nesse sentido, é o prólogo de João: “No princípio era o Verbo [...] tudo foi
feito por meio dele [...]” que retoma tema e termos das primeiras palavras da Bíblia:
“No princípio Deus criou [...]”. A propósito de A Paixão Segundo G.H., a própria
narradora traz essa marca, a cópia, em seu relato, como antes em sua vida de
escultora: “Ah, se mais um grafismo que uma escrita, pois tento mais uma
reprodução que uma expressão. Cada vez preciso menos me exprimir. Também isso
perdi? Não, mesmo quando eu fazia esculturas eu tentava apenas reproduzir”
(PSGH, 15). G.H. afirma viver entre aspas, citar o mundo. Sua casa é uma réplica:
Tudo aqui se refere na verdade a uma vida que se fosse real não me serviria. O
que decalca ela, então? Real, eu não a entenderia, mas gosto da duplicata e a
entendo. A cópia é sempre bonita. [...] sempre pareci preferir a paródia,
ela me servia[...] decalcar uma vida provavelmente me dava segurança
exatamente por essa vida não ser minha [...] (PSGH, 21. Grifos meus).
É que essa escultora amadora pretendia arrumar seu apartamento: “Ordenando as
coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo” e, como o Criador que o com a voz
mas também com argila fez sua criação e descansou no sétimo dia, também ela
pretende descansar “na sétima hora como no sétimo dia” (PSGH, 23).
E a recusa do paraíso informe. A escultora necessita da forma: “Essa coisa corajosa
que será entregar-me, e que é como dar a mão à mão mal-assombrada do Deus, e
entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso. Um paraíso que não quero!” (PSGH
13).
E a narradora, que sempre preferiu a paródia, traveste o texto bíblico: Entrai pela
porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição. E
muitos são os que entram por ele. Estreita, porém, é a porta e apertado o caminho
que conduz à Vida. E poucos são os que o encontram” (Mt 7, 13-14). Na voz da
personagem: “A entrada para este quarto tinha uma passagem, a estreita: pela
barata” (PSGH, p. 39). A barata é o travestimento da figura do Bom Pastor, que é o
caminho para a Vida: “Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; entrará e
sairá e encontrará pastagem” (Jo 10, 9).
Em sua busca da forma narrativa, em seus travestimentos bíblicos, a narradora que
decalca para ter segurança também faz alusões ao profeta Isaías quando, ao iniciar
35
sua narração, diz: “Soube o que não pude entender, minha boca ficou selada, e me
restaram os fragmentos incompreensíveis de um ritual” (PSGH, 12). Ora, Isaías tem
uma visão que o deixa cheio de pavor: 6,5: “Ai de mim, estou perdido!” tal qual o
sentimento que G.H. descreve sobre si no primeiro capítulo da obra, ao rememorar sua
“visão” , em seguida, como G.H. que tem a boca selada
59
, o profeta tem os lábios
tocados por uma brasa (6,6), assim, purificado, poderá proclamar a Palavra de Deus;
aliás como Jeremias (1,9) e mesmo Ezequiel (3,1-3).
o profeta Jeremias expressa toda a dor de experimentar-se convocado para a
missão. Sente a violência sedutora do Senhor: Jer 15,10-21; 20,7-18: “Tu me
seduziste, Iahweh, e eu me deixei seduzir;/ Tu te tornaste forte demais para mim, tu
me dominaste.” Por sua vez, G.H., conhecedora da experiência dos chamados, observa
que quando Deus escolhe alguém porque precisa especialmente dele, violenta-o, e nós
também podemos violentar Deus (PSGH, 97). Talvez ressoe aqui também o texto de
Mt 11,12: “[...] o Reino dos céus sofre violência dos que querem entrar e violentos se
apoderam dele.” Que, em G.H., ecoará: “Tenho que me violentar para precisar mais”
(PSGH, 97).
Vale notar ainda a transposição de Mt 5,3: “Bem-aventurados os pobres em espírito,
porque deles é o Reino dos Céus”, enquanto, em Clarice: “A revelação do amor é uma
revelação de carência bem-aventurados os pobres de espírito porque deles é o
dilacerante reino da vida” (PSGH, 97 ); a alusão ao decálogo (Ex 20,12): “falta (sic),
por exemplo, pai e mãe; ainda não tive a coragem de honrá-los” (PSGH, 103) e a
citação literal de uma das frases de Jesus (Lc 23,31), a caminho do Calvário: “Ele
dissera: ‘Se fizeram isto com o ramo verde, o que farão com os secos’” (PSGH, 84).
Porém, dentre as transposições mais expressivas, ainda que apareça fragmentada ao
longo do texto, está a oração “Ave Maria”. Constituída de duas partes, a primeira é
uma junção de dois versículos bíblicos, saudação do anjo Gabriel: “Alegra-te (ave),
[Maria,] cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1,28) acrescido da exclamação de
Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre!” (Lc 1, 42).
59
Ainda que “selar” se refira a fechar hermeticamente, carrega também a conotação de trazer o selo de
alguém. É o que ocorre com o profeta, que tendo sua boca tocada pela brasa, passa a falar em nome de Deus.
Claro que aqui também se poderia seguir na análise do reverso do texto bíblico que Clarice faz. Neste caso,
poder-se-ia partir da oposição: G.H. tem a boca fechada (selada, impossibilitada de falar) e Isaías a boca
aberta (selada pela brasa para falar em nome de Deus).
36
A segunda parte é uma súplica dos fiéis: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai
60
por nós
pecadores agora e na hora de nossa morte. Amém!” Como é comum aos cristãos que
rezam a Ave Maria dirigirem-se à mãe de Jesus com a expressão “minha mãe”,
também ela será retomada aqui como um travestimento.
Santa Maria, mãe de Deus, ofereço-vos a minha vida em troca de não ser
verdade aquele momento de ontem (PSGH, 50).
[...] e eu também sabia que na hora de minha morte eu também não seria
traduzível por palavra (PSGH, 51).
Reza por mim, minha mãe, pois não transcender é um sacrifício (PSGH, 54).
O que sai da barata é: “hoje”, bendito o fruto de teu ventre (PSGH, 55).
[...] porque, minha mãe, eu me habituei [...] (PSGH, 55).
Mãe: matei uma vida, e não braços que me recebam agora e na hora
do nosso deserto, amém. Mãe, tudo agora tornou-se de ouro duro.
Interrompi uma coisa organizada, mãe, e isso é pior que matar, isso me fez
entrar por uma brecha [...] estou com medo de minha rouquidão, mãe.
A barata é de verdade, mãe.
Mãe, eu fiz querer matar, mas olha o que quebrei: quebrei um
invólucro! [...]De dentro do invólucro está saindo um coração grosso e branco e
vivo como pus, mãe, bendita sois entre as baratas, agora e na hora desta tua
minha morte, barata e jóia (PSGH 61. Grifos meus).
Dignos de serem dados como exemplos também, neste contexto, são os
travestimentos relativos ao Reino de Deus. Tomar-se-á aqui somente os que se
referem, claramente, à resposta dada a Pilatos por Jesus, em sua paixão: “O meu
reino não é deste mundo” (Jo 18, 36):
Então pela porta da danação eu comi a vida e fui comida pela vida. Eu
entendia que meu reino é deste mundo. E isto eu entendia pelo lado do
inferno em mim (PSGH, 77).
60
Em português, em toda a oração usa-se o plural: “vós”.
37
Porque é como se eu estivesse me dando a notícia de que o reino dos céus
já é (PSGH, 95).
E eu não quero o reino dos céus, eu não o quero, agüento a sua
promessa. [...] Mas o Deus é hoje e seu reino já começou (PSGH, 95).
E seu reino, meu amor, também é deste mundo (PSGH, 95).
Meu reino é deste mundo... e meu reino não era apenas humano. Eu
sabia. Mas saber disso espalharia a vida-morte, e um filho no meu ventre
estaria ameaçado de ser comido pela própria vida-morte, e sem que uma
palavra cristã tivesse sentido... Mas é que tantos filhos no ventre que
parece uma prece (PSGH, 80. Grifos meus).
Essa técnica discursiva, que percorre todo o livro, vai além da simples transposição de
textos bíblicos. Chega ao limite, após o momento ritual da preparação para que se
coma a barata. Por analogia, associa-se logo o gosto quase nulo da massa branca da
barata à hóstia. É a própria narradora quem o diz: “Ah, as tentativas de experimentar
a hóstia.” (PSGH, 157).
Olga de
61
, comenta essa analogia: “Um fenômeno místico. O cristão é assimilado
pelo Corpo de Cristo e Nele se transforma. Se Ele é Deus, como disse, e como crê o
cristianismo, transcende o homem”. Portanto, pela Eucaristia, “manducação da hóstia”,
o cristão é alçado à comunhão com Deus. Com G.H. dá-se o mesmo efeito de
transformação, que às avessas. “A manducação da barata, protótipo da matéria-
prima do mundo”, produz “a redução da personalidade de G.H. ao nível da pura
matéria viva.” Assim G.H. se despersonaliza, “se perde como pessoa, para alcançar-se
como ser e encontrar sua identidade ao nível do puramente vivo”.
Procuro-o e não o encontro
62
61
SÁ, 1988, p. 217
62
Ct 5,6. O tema da busca no Cântico dos Cânticos, aliás num ambiente de idílio pastoril, lembra Jacó e
Raquel (Gn 29,1-12 ). Essa procura se repete em todo o Cântico: 1,7; 3,1-4; 5,2-8; 6,1 como um refrão
redacional.
38
Essa experiência de limites, deseroização, despersonalização, parte de uma busca para
chegar ao nada. assim se pode conhecer a condição humana; indo ao extremo. Em
sua análise do Eclesiastes (Coélet) Haroldo de Campos já notara:
a exegese rabínica, reportada no KOH
63
(Ibn Ezra, Sforno, Metzudas David),
acentuava que, no experimento ‘salomônico’, não havia uma entrega
indiscriminada ao prazer e ao desvario, mas uma busca, sob o controle da
sabedoria, para o melhor conhecimento da condição humana. Segundo
entendo, trata-se efetivamente de um exercício de lucidez, não meramente
especulativo, nem simplesmente irônico. Uma experiência de limites, através
da prova do prazer e até da desrazão, muito diferentes da ascese e da abstinência
cristãs. Lembro-me, para dar um exemplo atual, do caso de Walter Benjamin,
submetendo-se deliberadamente aos efeitos do haxixe, para vivenciá-los e
descrevê-los
64
(Grifos meus).
É evidente que a experiência de G.H. vivida no quarto-minarete não se dá, a princípio,
como busca para o melhor conhecimento da condição humana, ainda que ela chegue a
isso
65
; mas a paixão de narrar o que viveu, a paixão do dia seguinte (segunda paixão)
sim, nasce de uma procura; aliás, é assim que ela inicia seu relato:
estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. [...]” (PSGH, 9).
Começar e terminar! seu romance com seis travessões, construi-lo
circularmente
66
, incitam a curiosidade do leitor. Essa circularidade será ressaltada pelo
fato de iniciar um capítulo sempre com a mesma frase com que termina o anterior.
Esse procedimento também é bíblico. Trata-se da inclusão, isto é, repetir a mesma
idéia no princípio e fim de um texto para mostrar que se trata de um conjunto e ainda
para ajudar a assimilação daquele conteúdo. Em toda a obra nota-se essas inclusões
63
Haroldo de Campos usa essa abreviatura para Eclesiastes. Ele que intitula sua transcriação do texto bíblico
como Qohélet/ O-que-sabe, em vez do usual Coélet, aqui, certamente por se reportar a rabinos de língua
inglesa, abrevia Koheles (KOH).
64
CAMPOS, 1991, p. 116-7.
65
No penúltimo capítulo a narradora analisa seu processo de deseroização e, à página 112, conclui qual é, em
sua experiência a CONDIÇÃO HUMANA.
66
Talvez se possa relacionar esse inusitado uso dos travessões ao seguinte trecho de Água Viva: “Minha
pequena cabeça tão limitada estala ao pensar em alguma coisa que não começa e não termina porque assim
é o eterno. [...] Mas a cabeça também estala ao imaginar o contrário: alguma coisa que tivesse começado
pois onde começaria? E que terminasse mas o que viria depois de terminar? [...] Mas bem sei o que quero
aqui: quero o inconcluso.” (p. 35) Quanto à reflexão sobre o ETERNO, vale ainda ressaltar ser este um dos
atributos, em destaque no judaísmo, do inominável Deus.
39
na qual uma palavra é retomada iniciando a frase seguinte, uma frase é retomada
iniciando o parágrafo seguinte:
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo então? [...] (PSGH, 14).
Tais anadiploses são, pois, facilmente observáveis no conjunto de toda a obra.
Sobretudo pelo fato da última frase de um capítulo ser repetida no começo do seguinte
e mesmo, dentro da espiral narrativa, do primeiro capítulo ser encadeado ao último
por seis travessões, numa estrutura nitidamente cíclica:
Pág. 9 Princípio:
estou procurando, estou procurando.
Pág.16 Fim: É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.
Pág.17 Princípio: É QUE um mundo todo vivo tem a força de um Inferno.
Pág. 22 Fim: Só eu saberei se foi a falha necessária.
Pág.23 Princípio: SÓ EU saberei se foi a falha necessária.
Pág. 25 Fim: Depois dirigi-me a corredor escuro que se segue à área.
Pág. 26 Princípio: DEPOIS dirigi-me a corredor escuro que se segue à área.
Pág. 31 Fim: Então, antes de entender, meu coração embranqueceu como
cabelos embranquecem.
Pág.32 Princípio: ENTÃO, antes de entender, meu coração embranqueceu como
cabelos embranquecem.
Pág. 34 Fim: Foi então que a barata começou a emergir do fundo.
Pág. 35 Princípio: FOI ENTÃO que a barata começou a emergir do fundo.
Pág. 37 Fim: Cada olho reproduzia a barata inteira.
Pág. 38 Princípio: CADA olho reproduzia a barata inteira.
Pág. 40 Fim: Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido.
Pág. 41 Princípio: EU CHEGARA ao nada, e o nada era vivo e úmido.
Pág. 43 Fim: Perdão é um atributo da matéria viva.
40
Pág. 44 Princípio: PERDÃO é um atributo da matéria viva.
Pág. 46 Fim: Eu fizera o ato proibido de tocar no que é imundo.
Pág. 47 Princípio: EU FIZERA o ato proibido de tocar no que é imundo.
Pág.49 Fim: Então, de novo, mais um milímetro grosso de matéria branca
espremeu-se para fora.
Pág.50 Princípio: ENTÃO, de novo, mais um milímetro grosso de matéria branca
espremeu-se para fora.
Pág. 52 Fim: Finalmente, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.
Pág. 53 Princípio: FINALMENTE, meu amor, sucumbi. E tornou-se um agora.
Pág. 55 Fim: Pois o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.
Pág. 56 Princípio: POIS o que eu estava vendo era ainda anterior ao humano.
Pág. 58 Fim: Neutro artesanato da vida.
Pág. 59 Princípio: NEUTRO artesanato da vida.
Pág. 61 Fim: Nem mesmo o medo mais, nem mesmo o susto, mais.
Pág. 62 Princípio: NEM MESMO o medo mais, nem mesmo o susto, mais.
Pág. 63 Fim: Dá-me a tua mão:
Pág. 64 Princípio: DÁ-ME a tua mão:
Pág. 65 Fim: A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima.
Pág. 66 Princípio: A VIDA pré-humana divina é de uma atualidade que queima.
Pág. 68 Fim: Eu procurava uma amplidão.
Pág. 69 Princípio: EU PROCURAVA uma amplidão.
Pág. 72 Fim: Voltei-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardência,
pelo menos não era povoado.
Pág. 73 Princípio: VOLTEI-me de chofre para o interior do quarto que, na sua ardência,
pelo menos não era povoado.
41
Pág. 75 Fim: Mas há alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.
Pág. 76 Princípio: MAS HÁ alguma coisa que é preciso ser dita, é preciso ser dita.
Pág. 77 Fim: Pois em mim mesma eu vi como é o inferno.
Pág. 79 Princípio: POIS EM mim mesma eu vi como é o inferno.
Pág. 81 Fim: O inferno é o meu máximo.
Pág. 82 Princípio: O INFERNO é o meu máximo.
Pág. 83 Fim: Eu estava comendo a mim mesma, que também sou matéria viva do
sabath.
Pág. 84 Princípio: EU ESTAVA comendo a mim mesma, que também sou matéria viva
do sabath.
Pág. 87 Fim: Ela sentiria falta do que deveria ser seu.
Pág. 88 Princípio: ELA sentiria falta do que deveria ser seu.
Pág. 90 Fim: Porque a coisa nua é tão tediosa.
Pág. 91 Princípio: PORQUE a coisa nua é tão tediosa.
Pág. 92 Fim: Não devo ter medo de ver a humanização por dentro.
Pág. 93 Princípio: NÃO devo ter medo de ver a humanização por dentro.
Pág. 95 Fim: Aumentar infinitamente o pedido que nasce da carência.
Pág. 96 Princípio: AUMENTAR infinitamente o pedido que nasce da carência.
Pág. 98 Fim: O gosto do vivo.
Pág. 99 Princípio: O GOSTO do vivo.
Pág.101 Fim: Nossas mãos que são grossas e cheias de palavras.
Pág.102 Princípio: NOSSAS mãos que são grossas e cheias de palavras.
Pág.104 Fim: É que não contei tudo.
Pág.105 Princípio: É QUE não contei tudo.
Pág.107 Fim: O divino para mim é o real.
42
Pág.108 Princípio: O DIVINO para mim é o real.
Pág.109 Fim: Falta apenas o golpe da graça
que se chama paixão.
Pág.110 Princípio: FALTA apenas o golpe da graça
que se chama paixão.
Pág.113 Fim: A desistência é uma revelação.
Pág.114 Princípio: A DESISTÊNCIA é uma revelação.
Pág.115 Fim: E então adoro.
“Pode-se dizer que os capítulos de G.H. são elos de uma corrente narrativa.”
67
Também Olga de
68
observara que se parece ao paralelismo bíblico esse
encadeamento dos capítulos. Notou que Clarice faz uso desse procedimento poético de
que é impregnado o texto bíblico e, ainda, que são trinta e três capítulos ou
fragmentos, o que reforça o caráter místico do texto, pois tradicionalmente se diz que
Jesus Cristo viveu trinta e três anos
69
. É a mesma Olga quem diz:
A leitura contínua da obra de Clarice Lispector leva o leitor, envolvido pela
singularidade de sua escritura, a uma conclusão desconcertante: a repetição
reiterada e o paradoxo, recursos permanentes de seu estilo, constituem também
armação estrutural de sua ficção, a menos como romancista.
70
De fato, em “Paródia e Metafísica”
71
, a ensaísta comenta a linguagem de Clarice ao
longo do romance mostrando que o paralelismo é, primariamente, uma figura de
repetição. sobre o paradoxo, “este recurso retórico que diz respeito à questão da
credibilidade dos discursos, inclinando os textos bíblicos para o sentido paródico, causa
um efeito de perplexidade e estranhamento, que tanto a paródia quanto o paradoxo
veiculam”. Portanto, Clarice submeteria a linguagem “a um processo de corrosão e
negação contínua” seja pela paródia, neste trabalho denominada travestimento, por
não ter o caráter de burla, seja pelo paradoxo ou ainda pela repetição desgastante.
67
SANT’ANNA, 1988, p.238.
68
SÁ, 1988, 220.
69
No mundo literário de Clarice Lispector, tão permeado de números, é interessante notar que construiu sua
obra também em 33 anos.
70
SÁ, 1988, 214.
71
Ibidem, p. 220.
43
Conforme enunciado acima, a inclusão, procedimento que encadeia A Paixão
Segundo G.H., é típico da literatura bíblica e pode ser comprovável, por exemplo, tanto
no terceiro Evangelho quanto nos Atos dos Apóstolos, escritos de Lucas. Aqui não se
trata de frases que se repetem para unir capítulos, mas de encadeamentos dentro de
determinadas molduras que favorecem a memorização dos textos à medida em que se
estruturam, em que estabelecem sua coesão interna.
Típico para que se reconheça esse processo é o chamado “Evangelho da Infância”, no
qual são postas em paralelo as figuras de João Batista e Jesus e todas as demais
personagens envolvidas no nascimento de ambos: Lucas 1,5 – 2,52:
44
João Batista
1,13: Disse-lhe, porém, o Anjo: “Não temas,
Zacarias, [...] Isabel, tua mulher, vai te dar
um filho, ao qual porás o nome de João.”
1,15: Pois ele se grande diante do Senhor
[...].
1,18: Zacarias perguntou ao Anjo: “De que
modo saberei disso?” [...]
[resposta do Anjo: 1,19-20
conclusão de Isabel: 1,25]
1,57: Quanto a Isabel, completou-se o tempo
para o parto, e ela deu à luz um filho.
1,58: [vizinhos e parentes se alegraram]
1,59-60: No oitavo dia, foram circuncidar o
menino. [...] “ele vai se chamar João”.
[peça poética, cântico de Zacarias: 1,67-79]
1,80: O menino crescia e se fortalecia em
espírito. E habitava nos desertos [...]
Jesus
1,30-31: O Anjo, porém, acrescentou: “Não
temas, Maria! [...] Eis que conceberás no teu
seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás
com o nome de Jesus”.
1,32: Ele será grande, será chamado Filho do
Altíssimo [...].
1, 34: Maria, porém, disse ao Anjo: “Como é
que vai ser isso, [...]?
[resposta do Anjo: 1,35-7
conclusão de Maria: 1,38]
2,6: [...] completaram-se os dias para o
parto, e ela deu à luz o seu filho [...]
2,10-20: [pastores e uma multidão do
exército celeste se alegraram]
2,21: Quando se completaram os oito dias
para a circuncisão do menino, foi-lhe dado o
nome de Jesus, conforme o chamou o Anjo,
antes de ser concebido.
[peça poética, cântico de Maria: 1,46-55]
2,39-40. 52: [...] voltaram à Galiléia, para
Nazaré, sua cidade. E o menino crescia,
tornava-se robusto, enchia-se de sabedoria; e
a graça de Deus estava com ele. E Jesus
crescia em sabedoria, em estatura e em
graça, diante de Deus e diante dos homens.
45
Fora do quadro da infância, quando se encerra o ministério de Jesus em Jerusalém,
são os anúncios da paixão que se repetem. Sempre há dados novos, mas a preparação
para o momento crucial — literalmente — se dá quase nos mesmos termos:
9,22: E disse (aos discípulos): “É necessário que o Filho do Homem sofra muito,
seja rejeitado pelos anciãos, chefes dos sacerdotes e escribas e ressuscite ao
terceiro dia”.
9,44-45: Disse aos discípulos: “[...] o Filho do Homem vai ser entregue às mãos
dos homens”. Eles, porém, não compreendiam tal palavra. [...]
18,31-34: Tomando consigo os Doze, disse-lhes: “[...] vai cumprir-se tudo o que
foi escrito pelos profetas a respeito do Filho do Homem. De fato, ele será entregue
aos gentios, escarnecido, ultrajado, coberto de escarros; depois de o açoitar, eles
o matarão. E no terceiro dia ressuscitará”’. Mas eles não entenderam nada. Essa
palavra era obscura para eles e não compreendiam o que ele dizia.
Ainda dentro da temática da paixão repetições quase literais como em 9,23: “Se
alguém quer vir após mim, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me”.
E 14,27: “Quem não carrega sua cruz e não vem após mim, não pode ser meu
discípulo”.
No entanto, a grande moldura dos escritos lucanos é vista nas primeiras e últimas
linhas do seu Evangelho e dos Atos dos Apóstolos.
LUCAS
1,1-4: Prólogo Visto que muitos tentaram compor uma narração dos fatos
que se cumpriram entre nós conforme no-los transmitiram os que, desde o
princípio, foram testemunhas oculares e ministros da Palavra a mim também
pareceu conveniente, após acurada investigação de tudo desde o princípio,
escrever-te de modo ordenado, ilustre Teófilo, para que verifiques a solidez dos
ensinamentos que recebeste.
24,49-52: “Eis que eu vos enviarei o que meu Pai prometeu. Por isso permanecei
na cidade até serdes revestidos da força do Alto”.
Depois, levou-os até Betânia e, erguendo as mãos, abençoou-os. E enquanto os
abençoava, distanciou-se deles e era elevado ao céu. Eles se prostraram diante
46
dele, e depois voltaram a Jerusalém com grande alegria, e estavam
continuamente no Templo, louvando a Deus.
72
ATOS DOS APÓSTOLOS
1,1-5 Prólogo — “Fiz meu primeiro relato, ó Teófilo, a respeito de todas as coisas
que Jesus fez e ensinou desde o início, até o dia em que foi arrebatado, depois de
ter dado instruções aos apóstolos que escolhera sob a ação do Espírito Santo.
Ainda a eles, apresentou-se vivo depois de sua paixão, com muitas provas
incontestáveis: durante quarenta dias apareceu-lhes e lhes falou do que concerne
ao Reino de Deus. Então, no decurso de uma refeição com eles, ordenou-lhes que
não se afastassem de Jerusalém, mas que aguardassem a promessa do Pai, ‘a
qual, disse ele, ouvistes de minha boca: pois João batizou com água, mas vós
sereis batizados com o Espírito Santo dentro de poucos dias’”.
28,30-31 Epílogo
73
“Paulo ficou dois anos inteiros na moradia que havia
alugado. Recebia todos aqueles que vinham procurá-lo, anunciando o Reino de
Deus e ensinando o que se refere ao Senhor Jesus Cristo com firmeza e sem
impedimento”.
Importa notar que, assim como Lucas escreve seu Evangelho e os Atos dirigindo-os a
um “amigo de Deus” (Teófilo), G.H. constrói sua narrativa dirigindo-a a outra pessoa
(“amante/s”, “mãe”, “doutor”, “Deus”), seu interlocutor. Como Lucas que narra a
Paixão do Senhor para que o discípulo ( qualquer amigo de Deus) possa aprender e
apreender os fatos através da narrativa, G.H. também o faz como um testemunho
querendo poupar quem a ouve:
Se tu puderes saber através de mim, sem antes precisar ser torturado, sem antes
ter que ser bi-partido pela porta de um guarda–roupa, sem antes ter quebrado os
teus invólucros de medo que com o tempo foram secando em invólucros de pedra,
assim como os meus tiveram que ser quebrados com a força de uma tenaz até
que eu chegasse ao tenro neutro de mim
se tu puderes saber através de mim...
então aprende de mim, que tive que ficar toda exposta e perder todas as minhas
malas com suas inicias grafadas (PSGH, 75).
72
Em nota da Bíblia de Jerusalém, retomada aqui, lê-se: “O evangelho de Lc termina no Templo onde
começara, com a alegria e o louvor divinos”.
73
Uma vez mais se toma, aqui, a nota referente a um trecho, da blia de Jerusalém: “Assim, a chegada de
Paulo a Roma, que termina um programa de evangelização (cf. Lc 24,47; At 1,8 +), revela-se como o ponto
de partida de uma nova expansão do cristianismo. Lucas terminara seu evangelho abrindo-o para a
perspectiva da missão dos apóstolos; termina igualmente o livro dos Atos abrindo-o para o futuro.”
47
“Então aprende de mim” diz G.H. como um eco do “tomai sobre vós o meu jugo e
aprendei de mim” (Mt 11,29) de Jesus. Ela também teve que ficar exposta, tal qual o
crucificado despojado de suas vestes. E, lendo na perspectiva do Calvário o evangelho
de G.H., em suas iniciais grafadas nas malas, não poderiam também ressoar “INRI”
grafadas na cruz
74
? Usam-se “malas” quando se está a caminho, fazendo uma
travessia... Seriam, aqui, símbolos da cruz?
Tanto no Evangelho quanto nos Atos dos Apóstolos, Lucas insiste na travessia.
Ademais, refrões redacionais nos Atos
75
como aqueles do anúncio da paixão no
Evangelho. E além da reiteração de termos, também a sobreposição de
personagens nalguns casos, como em se tratando de ESTEVÃO & JESUS. O texto de At
6,8 - 7,60, que narra prisão, discurso e martírio de Estevão, faz eco ao processo de
Jesus em vários pontos:
O diácono é descrito como se fora o próprio Jesus (6,8): Estevão, cheio de
graça e de poder, operava prodígios e grandes sinais entre o povo.
Há suborno de falsas testemunhas contra ele (6,11).
Vêem seu rosto transfigurado (6,15; 7,55-56).
Sobretudo, que se notar as semelhanças entre Estevão moribundo e Jesus
em sua paixão (7,55-60):
Estevão, porém, repleto do Espírito Santo, fitou os olhos no céu e viu a glória de
Deus, e Jesus, de pé, à direita de Deus. E disse: ‘Eu vejo os céus abertos, e o
Filho do Homem, de pé, à direita de Deus’. Eles, porém, dando grandes gritos,
taparam os ouvidos e precipitaram-se à uma sobre ele. E, arrastando-o para fora
da cidade, começaram a apedrejá-lo. As testemunhas depuseram seus mantos
aos pés de um jovem chamado Saulo. E apedrejaram a Estevão, enquanto este
invocava e dizia: ‘Senhor Jesus, recebe meu espírito’. depois, caindo de
joelhos, gritou em voz alta: ‘Senhor, não lhes leves em conta este
pecado’. E, dizendo isto, adormeceu. (Grifos meus)
Enquanto em Lc 23,46: “e Jesus deu um grande grito: ‘Pai, em tuas mãos entrego o
meu espírito’. Dizendo isto, expirou.” E em Lc 23,34: “Jesus dizia: ‘Pai, perdoa-lhes:
não sabem o que fazem’”.
74
Assim aparece no símbolo cristão o que Pilatos manda escrever sobre a cruz (Jo 19,19): Jesus Nazareno
Rei dos Judeus.
75
Cf., por exemplo: At 2,41; 6,7; 9,31; 12,24.
48
Esse procedimento de retomar textos bíblicos anteriores é recorrente na Bíblia desde
Gênesis. Mas ali se forja, sobretudo, a partir das diferentes fontes. O próprio relato da
criação, o primeiro da Bíblia, é narrado duas vezes (Gn 1,1 - 2,4a e Gn 2,4b-25).
Quanto ao posicionamento reiterativo assumido por Clarice, a repetição domina como
processo que a sua introspecção um aspecto de ininterrupta continuidade à voz da
narrativa, aumentando a área de silêncio entre as palavras. Como conseqüência desse
procedimento repetição extática, intensa chega-se ao esvaziamento da
expressão, conduzindo ao silêncio, que se registra como um profundo vazio.
Possivelmente por isso é que Benedito Nunes emprega o sintagma “descortínio
silencioso” equivalendo à epifania.
76
De fato, nada entre a realidade exposta, des-
cortinada, e quem a experimenta, senão o silêncio.
Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo
77
Ora, de Gênesis a Apocalipse é possível traçar paralelos de textos bíblicos com a
escritura de Clarice Lispector; seja enquanto travestimento, seja enquanto citação.
Porém, talvez a maior “apropriação” que Clarice faça da Escritura Sagrada seja a da
epifania; e que a própria função expressiva, através da repetição, nada mais intente
que fazer eclodir a re-velação.
Repetição
78
como instrumental da epifania ou como mais uma contradição no conjunto
da obra, o que aqui interessa mais de perto é que ambas, repetição e escritura
epifânica, demonstram facetas da afinidade ontológica que Clarice Lispector tem com a
cultura judaica, na perspectiva bíblica.
76
NUNES, 1989, p.71.
77
At 2,3.
78
A respeito disto nos diz Olga de Sá: “O recurso estilístico da repetição se muda (...) num processo
instrumental desse processo maior, que visa a epifanizar, criticamente, certos aspectos mínimos da realidade.
Estaria também a repetição a serviço daquele ‘estilo humilde’ que tem sido uma das confissões de Clarice
Lispector a respeito de si mesma, um estilo de busca? Seria realmente a repetição, o instrumental de sua
escritura epifânica? Não seriam antes dois pólos em constante oposição: o modo de iluminação, epifânico,
glorioso, que muitos sentiram como uma espécie de barroco, e o estilo humilde, rastreante da anti-epifania,
feito de repetições que chegam ao balbucio, onde o silêncio cobre a personagem, mas não cobre o narrador?”
SÁ, 1979, p. 158-9.
49
Olga de Sá
79
afirma: “Essa epifania realiza-se na chave da antítese e do paradoxo”.
Rossoni
80
ao contrapor “Epifania e Satori” afirma que “para se apreender o sentido
primeiro do discurso de Clarice Lispector, parece ser necessário o entendimento de que
um dos traços fundamentais de sua atitude literária se concentra no procedimento da
revelação, ao qual se associa o termo epifania”.
Rossoni lembra que esse fato tem sido posto em evidência por vários críticos, dentre
eles, Fernando G. Reis no artigo “Quem tem medo de Clarice Lispector”. Este ensaísta
diz “que o texto de Lispector responde a uma indagação vital, uma vez que se
posiciona como um retorno às origens primordiais do homem. Nesse estado, o instante
de reconhecimento é, aparentemente, um ‘nada’,” e isso se deve a “uma atitude de
desnudamento dos personagens”. Ainda segundo Rossoni, Fernando Reis destaca “que,
na escritura de Clarice, persiste uma ‘técnica do susto’ em que o instante mais banal
estimula a suspensão do tempo e a descristalização da realidade”.
Esse instante de desestabilização da ordem natural é que culmina em epifania, um
estado de experiência que impossibilita descrever o que quer que seja objetivamente;
suplanta a reflexão sugerida por palavras. E, por ser incapaz de descrever o processo
vivido, nesses momentos a narradora fica dando voltas. Então, a palavra sugere, a
personagem e o leitor fazem a experiência enquanto o discurso se abre, possibilitando
o retorno às instâncias da exterioridade. Discurso aberto para fora, instaura-se,
então, o que a palavra não pode dimensionar: o ‘susto’, o desgarrar-se de todas as
coisas fenomênicas, a plena transformação para o âmbito do estado original”.
E é o mesmo Rossoni
81
quem constata que “o termo epifania, embora aplicado à
literatura, tem origem ligada à devoção religiosa e se forma a partir da associação dos
termos gregos epi = sobre e phaino = aparecer, brilhar.” Assim sendo, “é uma
transliteração do grego epiphaneia que significa uma revelação ou desvendamento”.
Liturgicamente
82
, a Festa da Epifania (celebrada dentro do Tempo do Natal) refere-se à
ocasião em que o Menino-Deus se revelou aos magos do Oriente; não obstante, esse
nome também se a outras manifestações espirituais. Literariamente, o termo
epifania significa uma experiência surpreendente, que parta de algo, a princípio,
79
SÁ, 1988, 213.
80
ROSSONI, 2002, p. 91-2.
81
Ibidem, p. 99.
82
Para os católicos.
50
corriqueiro e, no entanto, venha a se tornar uma revelação dentro de uma obra,
trazendo êxtase, iluminação às personagens.
Clarice, por sua vez, parece apropriar-se do sentido teologal do termo e utilizá-lo
literariamente. Aliás, não se pode esquecer que antes de ser palavra sagrada, a
própria bíblia é palavra humana escrita com arte, portanto, literatura.
A epifania como processo ou visão do mundo, a fusão do eu e do mundo, é peculiar a
Joyce, o grande escritor irlandês, segundo a maioria dos críticos que estudaram sua
obra. E para Olga de
83
, mais que como um meio de expressão ou técnica, é assim
que a epifania deve ser entendida: como visão de mundo. Para a ensaísta,a epifania
é um modo de desvendar a vida selvagem que existe sob a mansa aparência das
coisas, é um pólo de tensão metafísica, que perpassa ou ultrapassa a obra de Clarice
Lispector.”
No bojo da obra de Clarice Lispector, a epifania está presente muitas vezes como
“epifanias de belezas...” “intervalos de vida que a preenchem e dela transbordam.”
Entretanto “seus momentos epifânicos não são necessariamente transfigurações do
banal em beleza. Muitas vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo,
a náusea.”
84
As epifanias de beleza, radiosas, são mais freqüentes na Bíblia ou, ao menos, com
marca mais clara de epifania que as corrosivas. A transfiguração de Jesus diante de
Pedro, Tiago e João (Mc 9,2-8 // Mt 17,1-8 // Lc 9,28-36) na qual “suas vestes
tornaram-se resplandecentes” [...] “E lhes apareceram Elias e Moisés conversando com
Jesus” [...] “E uma nuvem desceu, cobrindo-os com sua sombra. E uma voz, que saiu
da nuvem, disse: ‘Este é o meu Filho amado; ouvi-o’ [...]” é um exemplo clássico.
Poder-se-ia, ademais, citar o batismo de Jesus por João, narrado nos quatro
evangelhos, em que “os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como
uma pomba e pousando sobre ele. Ao mesmo tempo, uma voz vinda do céu dizia:
‘Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo’” (Mt 3,16-17); e a manifestação
do Espírito Santo através de línguas de fogo, precedida de barulho como de forte
vendaval (At 2,1-13).
83
SÁ, 1979, p. 106.
84
Ibidem, p.155.
51
Esses são alguns exemplos típicos dessa realidade complexa que se pode experimentar
com todos os sentidos
85
, cuja representação se faz além do fascínio do belo. O
grotesco, por sua vez, que origina a nauseante experiência epifânica de G.H., terá na
Bíblia lugar, por exemplo, em Ez 37,1-14, quando da visão do vale cheio de ossos
ressequidos que, à voz da profecia, se juntam, vão se cobrindo de nervos, carne, pele
e, por fim, são penetrados pelo espírito. Conforme se disse anteriormente, assim
como as visões proféticas partem, comumente, do cotidiano, também a epifania surge
a partir de algo, quase sempre, comum; no caso das obras de Clarice
86
, de fatos
triviais, como se deparar com uma barata enquanto se faz uma faxina, por exemplo.
Vou agora te contar como entrei no inexpressivo que sempre foi a minha busca
cega e secreta. De como entrei naquilo que existe entre o número um e o número
dois, de como vi a linha de mistério e de fogo, e que é uma linha sub-reptícia.
Entre duas notas de sica existe uma nota, entre dois fatos [...] é aquilo que
ouvimos e chamamos de silêncio. (PSGH, 64)
E, gradativamente, o texto conduz personagem e leitor a regiões outras que
necessitam ser catarticamente vivenciadas em todas as esferas para cumprirem o
ritual de revelação.
A partir do texto sagrado, aquilo que se revela, celebra-se. A celebração, qualquer que
seja, supõe uma seqüência ritualística, desde a sua preparação. São gestos e palavras
que se repetem, remetendo a uma realidade outra e maior. Isto se também com
G.H.: O ritual.
Ela não apenas através dos símbolos, porém contata com a realidade, pela
manducação da barata; não é uma epifania do ver, é um ritual do comer. A barata
não é somente um ícone da vida, mas é ela mesma massa viva, “um tamanho
escuro andando” (PSGH, 74), parte de uma realidade maior. No mais ínfimo, o
Supremo
87
.
85
Olga de (1978, p. 113) menciona que a “epifania constitui [...] uma realidade complexa, perceptível aos
sentidos, sobretudo aos olhos (visões), ouvidos (vozes) e até ao tato[...] O Antigo Testamento destaca o ouvir,
o Novo Testamento, o ver, como nas provas da ressurreição de Cristo”.
86
Nas obras de Clarice nem sempre a epifania se dá pela visão. Por exemplo: Joana (PCS 68-9) a experimenta
pelo tato; Macabéa (HE 86;87; 90;91) pela voz; Ana, do conto “Amor”, tal qual G.H., também tem seu
êxtase graças a uma visão (LF 34; 36; 37;39; 40), conforme atesta Nádia Gotlib (1995, 273): Ana “chega até a
casa que guarda, ainda, terrível e deliciosamente, o encanto do jardim. E tudo volta ao normal, mas não como
era antes... Nesse conto, o mergulho faz-se progressivamente, quando o equilíbrio da vida domesticada se
rompe cedendo a uma desordem que cresce, enquanto a ordem diminui”.
87
SÁ, 1988, p. 226.
52
“O ritual é o próprio processar-se da vida no núcleo, o ritual não é exterior a ele: o
ritual é inerente[...] O ritual é a marca de Deus[...] O único destino com que nascemos
é o ritual”( PSGH, 75). Assim, através do ritual que se processa como mergulho ao
estágio da primordialidade se atinge o descortinamento. Por conseguinte a
grandiosidade do êxtase não se relaciona com a realidade em que se inscreve a
personagem. O crítico Sant’Anna
88
analisa esse processo em três instantes:
1. há uma situação corriqueira;
2. surgem sinais de algo inusitado, que se transforma numa epifania reveladora;
3. esgota-se a epifania e a personagem volta ao cotidiano modificada.
Na obra em questão:
1. G.H. inicia seu dia preparando-se para arrumar a casa.
2. Defronta-se com a barata no quarto da empregada
89
.
3. Sua vida é retomada acrescida de algo.
Para esse autor, “essa tríade sintagmática: a mulher, a mulher versus a barata e a
mulher depois da barata, sintetizam um drama existencial e simbólico. [...]são uma
peripécia onde o herói está perseguindo algo.” Ao contrário das histórias convencionais
em que esse algo é um bem precioso
90
(“um tesouro, um talismã, um amor, um
reino”) em A Paixão Segundo G.H. a busca tem um caráter metafísico. Basta analisar
os primeiros períodos da obra para que se comprove isso.
O crítico observa também que em Clarice o texto é um ritual. A própria G.H. é
ritualística. Devido a isso o relato faz memória de um encontro com a revelação
epifânica. De fato, seu caráter ritual reafirma a epifania. Ora, “ritual é uma seqüência
88
SANT’ANNA, 1988, p. 241.
89
No meio do processo epifânico, dentro do espaço onde se ritualiza o conhecimento através de humilhantes
e desmobilizadoras provas, o conhecimento de si mesmo através do outro (G.H. através da barata) pode ser
entendido, ainda, na medida em que (antropologicamente) concebamos essa barata como um animal totêmico.
E como animal (ou inseto, tanto faz) totêmico ele exerce função dupla. É ao mesmo tempo o sujeito-objeto de
culto, de aproximação e sedução. [...] a ‘massa branca’, que em transe ela põe em sua boca, é o sangue e o
corpo da entidade sacrificada, tal gesto levaria G.H. à ‘redenção’. Era um gesto de rebaixamento e
humilhação como quem beijasse um leproso”. (Sant’Anna, 1988, p. 245).
90
A própria narradora, a esse respeito, comenta: “Porque, sentada na cama, eu então me disse:
Me deram tudo, e olha o que é tudo! É uma barata que é viva e que está à morte. E então olhei o trinco
da porta. Depois olhei a madeira do guarda-roupa. Olhei o vidro da janela. Olha o que é tudo: é um pedaço
de coisa, é um pedaço de ferro, de saibro, de vidro. Eu me disse: olha pelo que lutei [...] e olha o que era o
tesouro!” (PSGH, 88 ).
53
solene, essa narrativa hierática, esse avanço pausado, que se repete, circularmente ou
de forma espiralada ajuntando o alto e o baixo num mesmo anelo e aspiração.” No
ritual há trans-significação: água em vinho (metamorfose: mulher em barata).
Assim é que, no ritual eucarístico em que se faz memória de Jesus na última ceia a
transformação, re-significação do pão (Corpo de Cristo) e do vinho (Sangue de
Cristo). E, claro, além desse ritual — narrado em Mt 26,26-29; Mc 14,22-25; Lc 22,15-
20; I Cor 11,23-25 — a Bíblia narra muitos outros: desde as oferendas de Caim e Abel,
primícias do solo e do rebanho (Gn 4,3-4), passando pelo sacrifício de Abraão (Gn
22,1-18) e percorrendo toda a Escritura pode-se deparar com toda sorte de rituais.
No quinto romance de Clarice, o ritual que compõe a dupla paixão da personagem
viver e relatar o que viveu se dá enquanto G.H. busca encontrar-se, conhecer sua
própria identidade. Ritual que a narradora associa ao de Cristo, que passa por
inúmeros sacrifícios, opróbrios, torturas... até ser assassinado na cruz para, enfim,
alcançar a ressurreição. Desde o princípio da narrativa se tem a insinuação dessa
ritualização permeada de mistério. Um silêncio e um destino que me escapavam, eu,
fragmento hieroglífico de um império morto ou vivo. [...] ao olhar o retrato eu via o
mistério. [...] Nunca, então, havia eu de pensar que um dia iria de encontro a este
silêncio”. (PSGH, 18).
O mundo no qual vivia não exigia dela e nem ela dos outros mais que “a primeira
cobertura das iniciais dos nomes”, mas a protagonista desconfiava da existência de
outra G.H., escondida em seu interior; o que era sugerido nas fotografias. Olhar-se de
relance nas fotografias tinha sido, talvez, o maior contato consiga mesma. “O resto era
o modo como pouco a pouco eu havia me transformado na pessoa que tem o meu
nome. E acabei sendo o meu nome” (PSGH, 18). É, pois, partindo dessa
superficialidade sou aquilo que de mim os outros vêem” (PSGH, 18) que se inicia
o percurso ritualístico de nossa personagem.
“O ritual une o baixo e o alto, o sublime e o grotesco, o sacro e o profano. Elimina
tempos e espaços
91
”. Em Clarice existe a consciência do ritual tanto implícita quanto
explicitamente: Implícita, quando ele não é sequer mencionado, mas todas as suas
etapas são percorridas. Explícita, quando ela teoriza ao longo do texto sobre a
91
SANT’ANNA , 1988, p. 242.
54
natureza mesma do ritual. E à medida em que assume o caráter ritual, ao longo da
experiência, a narradora se metamorfoseia.
Desde uma ótica antropológica, os rituais, em especial os ritos de passagem, se
organizam numa seqüenciação também triádica
92
:
1. ritos preliminares: nos quais a separação do indivíduo do grupo a fim de
prepará-lo para provações;
2. ritos liminares: nos quais o indivíduo encontra-se na margem entre a sua vida
antiga e a por vir; experimenta ao mesmo tempo do sagrado e do profano e se
deixa sacrificar para dar provas de sua transformação. Equivale à experiência
epifânica;
3. ritos pós-liminares: os quais indicam que o indivíduo fez a experiência e foi
aprovado (provar, experimentar: saborear, sentir o gosto/ passar pela
provação, ser experimentado, participar do saber), e pode, enfim, ser
jubilosamente acolhido pela comunidade como novo membro.
Tais rituais se encontram em comunidades desde as ditas primitivas, como as
indígenas e africanas tribais, até aquelas religiosas tradicionais, como Institutos
Religiosos, por exemplo; e mesmo dentro de clubes e associações, e podem ser
percebidos como estágios de crescimento do indivíduo. São ritos de passagem, um re-
início, uma morte e ressurreição.
No romance de 1964, a narradora conta a experiência vivida na véspera desde o
momento preliminar em que a personagem uma mulher fútil, superficial, que
sequer se lembra do rosto da empregada recém-despedida com quem convivera por
seis meses; que vive entre aspas, preocupada unicamente com a aparência, de quem
não se diria jamais que viveria uma experiência epifânica pela manhã, decide
penetrar no espaço até então vedado e desconhecido. Experimenta a sensação de
“pré-clímax” (PSGH, 36). Caminha para o quarto da empregada através do “corredor
escuro” (lugar de passagem que une e separa) detendo-se a observar o interior dos
edificíos, áreas antes não reparadas, e começa a se desligar do mundo convencional.
Vai para arrumar, organizar e desorganiza-se
93
.
92
VAN GENNEP, 1978, p. 36.
93
“E é para arrumar que ela entra no quarto da empregada. E ocorre a catástrofe, a desarrumação total de
seu ser. Súbito lhe vem a sensação de ‘horror’, ‘terror’, ‘morrer’. As palavras que começam a marcar a
narrativa o: ‘tragédia’, ‘inferno’, ‘queda’. Então ela anota o ‘desmoronamento de civilizações’, tem a
55
A narrativa tem início mostrando que algo acontecera, uma experiência fundamental
de perda/ encontro: “Perdi alguma coisa que me era essencial, e não me é mais.
Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até
então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável” (PSGH, 9).
A consciência dessa mudança ainda não é a consciência plena do que se é. Passada a
paixão vivida, através da paixão de narrar o que viveu é que se completará a
busca:Preciso saber, preciso saber o que eu era!” Então é que nasce a percepção da
fugacidade, da futilidade daquela vida anterior à epifania: “Eu era isto: eu fazia
distraidamente bolinhas redondas com miolo de pão, e minha última e tranqüila
ligação amorosa dissolvera-se amistosamente com um afago, eu ganhando de novo o
gosto insípido e feliz da liberdade. Isto me situa?” (PSGH, 18). Frágil personalidade,
nada mais portando que a capa de um nome, pois “é suficiente ver no couro de minhas
valises as iniciais G.H., e eis-me” (PSGH, 18). A narradora percebe que, devido a tudo
isso, até então vivera com um leve tom de pré-climax e que o pré-clímax fora “talvez
até agora a minha existência.” (PSGH, 19)
Sustos contínuos
94
marcam os ritos liminares: claridade ofuscante, ordem
inesperada, mural em carvão na parede do quarto, barata, que aparece como
antagonista e é esmagada; mais: comungada. “É que a redenção devia ser na própria
coisa. E a redenção na própria coisa seria eu botar na boca a massa branca da barata”
(PSGH, 105). “[...]‘alguma coisa se tinha feito’.” (PSGH, 106). Paradoxo sobre
paradoxo, a epifania é de tal forma ofuscante que resta a experiência de que “toda
compreensão súbita se parece muito com uma aguda incompreensão” (PSGH, 12).
A passagem estreita fora pela barata difícil, e eu me havia esgueirado com nojo
através daquele corpo de cascas e lama. E terminara também toda imunda, por
desembocar através dela no meu passado que era o meu contínuo presente e o
meu futuro longínquo. (PSGH, 43)
Não compreendo o que vi e nem sei se vi, que meus olhos terminaram não se
diferenciando da coisa vista. por um inesperado tremor de linhas, por uma
sensação de que ‘ia caindo séculos e séculos’ e está presenciando os ‘últimos restos humanos’ naquele deserto
em que tudo se nadifica e tende para o neutro”. (SANT’ANNA, 1988, 248)
94
“Essa catástrofe tem uma ligação estrutural com um topos das narrativas clássicas e mitológicas: a queda do
herói, o precipitar-se no buraco, no precipício, nos infernos ou lugares cheio de figuras teriomórficas. Isto
ocorre com Alice de Lewis Carrol, caindo num buraco que lhe abre portas para um mundo mágico; isto ocorre
com Jonas caindo no ventre da baleia e com José colocado no poço pelos irmãos e dali saindo para a glória do
trono real egípcio” (SANT’ANNA, 1988, 248-9).
56
anomalia na continuidade ininterrupta de minha civilização, é que por um átimo
experimentei a vivificadora morte. A fina morte que me fez manusear o proibido
tecido da vida. É proibido dizer o nome da vida. E eu quase o disse. Quase não me
pude desembaraçar de seu tecido, o que seria a destruição dentro de mim de
minha época. (PSGH, 12. Grifo meu).
os ritos pós-liminares comportam a transformação, a “deseroização” da nossa
heroína que se nadifica no processo. “Se eu me confirmar e me considerar verdadeira,
estarei perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser” (PSGH, 9).
Um modo de ser que retira de si o que é inútil, uma terceira perna que lhe dava a
ilusão de ser estável, equilibrada. Para alcançar esse modo novo de ser precisou se
despersonalizar: “a despersonalização como a destituição do individual inútil — a perda
de tudo o que se possa perder e, ainda assim, ser”; necessário foi deixar de ser a
heroína: “a gradual deseroização de si mesmo é o verdadeiro trabalho que se labora
sob o aparente trabalho, a vida é uma missão secreta” (PSGH, 112) para então chegar
pelo caminho único, a via-crucis, à desistência “verdadeiro instante humano”
glória da condição humana (PSGH, 113).
Passada a experiência epifânica, quando retorna ao estado de normalidade, o que
ocorre não é exatamente o recobro daquela consciência inicial, nem a perda dela. Essa
nova consciência é a própria superação de ambas como forma de conhecimento. Desse
modo, parece se tratar de afirmar uma consciência inebriada por um olhar inaugural,
cuja visão daquilo que sempre esteve presente e tão evidente nunca antes fora
divisado até que se revela pela vivência epifânica de G.H.
Numa terra do deserto, /num vazio solitário e ululante
95
Para que ocorra tal manifestação, G.H. tem que passar pelo deserto, lugar em que se
a culminância ritualística. Tanto na experiência bíblica quanto na mística mais
global, deserto/silêncio é o espaço referencial por excelência para que haja a epifania,
o encontro com o Outro revelando o próprio Eu.
Epifania é um conceito central do mundo judaico e tem suas raízes nas experiências
mesmas do Povo de Deus, no deserto, a caminho da libertação. Realidade complexa
95
Dt 32,10: “Ele o achou numa terra do deserto, /num vazio solitário e ululante./
Cercou-o, cuidou dele e guardou-o com carinho, /como se fosse a menina dos seus olhos.”
57
perceptível aos sentidos, a epifania acontece, em algum grau, com todos os escolhidos
por Deus para uma missão. É assim com Moisés, que tendo levado as ovelhas além do
deserto, vê a “sarça que ardia, mas não se consumia” (Ex 3,1-6); com Isaías, diante
do Senhor e de seus serafins com seis asas, cada, entre gonzos e fumo (Is 6,1-13);
com Elias que, após andar pelo deserto, refugia-se na montanha de Deus até que Ele
passe em uma brisa suave (I Rs 19,1-12).
Muito se poderia dizer, ainda, da epifania no Antigo Testamento. Tomo os profetas
como seres especialmente dotados a experienciar tais manifestações, porque entendo
serem suas visões fruto da imensa sensibilidade para perceber, no cotidiano, uma
revelação da voz do Senhor e, por conseguinte, de sua vontade sobre o povo.
Considerados loucos, malditos por todos, desejam abandonar a vocação profética mas
não podem deixar de falar da voz que lhes queima as entranhas (tomando como
exemplo o profeta Jeremias, conferir: 11,18 12,6; 15,10-21; 17,14-18; 18,18-23;
20,7-18).
Do Novo Testamento, dentre muitas outras possíveis, pode-se citar a epifania sucedida
no momento do batismo de Jesus por João. No caso, segundo São Marcos e São João,
quem experimenta a epifania é João Batista, o profeta que vivera no deserto se
alimentando de gafanhotos e mel (Mt 3,3-4). Deus irrompe no mundo, sob a forma de
pomba, enquanto se ouve “dos céus uma voz: ‘Tu és o meu Filho muito amado: em ti
ponho minha afeição.’” Manifestação esta que é narrada nos quatro Evangelhos (Mt
3,13-17; Mc 1,9-11; Lc 3,21s; Jo 1,31-34). Após o batismo de Jesus, ele próprio vai
para o deserto para ser tentado pelo diabo (Mt 4,1-11).
Também G.H., no confronto com a barata, mergulha em um deserto, desce ao interior
abismal e grotesco que a conduz aos limites do aprofundamento introspectivo
destinado ao silêncio.
“Los habitantes del desierto, en el ámbito de Palestina, son nómadas. Para los
escritores bíblicos que viven en regiones cultivadas, el desierto está vacio de hombres
(Jer 2,6;9,1-4; Job 38,26), abandonado (Is 27,10; 6,12; 7,16), [...] es la soledad (Det
32,10)...”
96
. Para o Povo de Deus, a vida no deserto, durante o Êxodo, aparecia como
um ideal perdido (Am 5,25; Os 12,10). Ideal, porque único lugar possível para fazer a
experiência da transcendência:
96
Diccionario de la Bíblia.
58
“Por isso, eis que vou, eu mesmo, seduzi-la,
conduzi-la ao deserto
e falar-lhe ao coração.” (Os 2,16)
O profeta Oséias, utilizando a imagem da esposa para o Povo de Deus e do esposo
para Deus, narra a necessidade do encontro no deserto, diante do nada. se a
sedução; assim também o experimenta G.H.: “E na minha grande dilatação, eu estava
no deserto. Como te explicar? eu estava no deserto como nunca estive. Era um
deserto que me chamava como um cântico monótono e remoto chama. Eu estava
sendo seduzida. E ia para essa loucura promissora” (PSGH, 40).
Deserto que, paradoxalmente, é a habitação dos demônios (como AzazelLev. 16,8
que habitava na terra árida, onde Deus não exerceria a sua ação fecundante). que
se reiterar que é no deserto que o próprio Cristo é tentado (Mt 4,1), antes de assumir
sua missão salvífica. No deserto espaço G.H. se perde e se busca; encontra-se no
Outro. No deserto narrativa espaço agônico do sujeito e do sentido, a G.H. do dia
seguinte vai errar e errante reencontrar-se para de novo perder-se, juntamente com o
sentido do que narra.
“No entanto, a personagem, que retorna ao mundo, é e não é mais a mesma que
fora, quando dele foi apartada. Sua experiência negativa terá sido um processo de
transformação interior, consumada, como a dos ascetas, no segredo da
consciência solitária, entre um momento de ruptura e um momento de retorno.
Essa trajetória, que sintetiza a linha de ação de A Paixão Segundo G.H.,
acompanha, de muito perto, a via mística, reproduzindo-lhe as imagens típicas de
deslocamento espacial (saída/entrada), a tópica do deserto (avidez, secura,
solidão, silêncio) e a contraditória visão do inefável (realidade primária, núcleo,
nada, glória). ‘E a larga vida do silêncio’, interior e exterior, silêncio compacto que
tem a amplidão e a aridez de um deserto.”
97
(Grifos do autor).
Quando se está em um deserto ou como um deserto, despossuído de tudo quanto se é
e se tem, então, e só então, é possível que o Absoluto se manifeste.
97
NUNES, 1989, p. 66.
59
A narradora-protagonista vive o nada no ser-se deserto, porém já antevê a
possibilidade do fruto da experiência assumida: “delicadeza de primeira tímida
oferenda, como a de uma flor” (PSGH, 84). Quando Iahweh sela a aliança com seu
povo, no Sinai, estabelece: “trarás o melhor das primícias para a casa de Iahweh teu
Deus.” (Ex 34,26a). A Bíblia está permeada de primeiras oferendas”, após
experiências de deserto. Do Gênesis (4,4: Abel) ao Apocalipse (14,4: os resgatados do
Cordeiro), quem passa pela provação oferece os melhores e primeiros frutos da terra e
acaba por oferecer-se; “que podia oferecer de mim eu que estava sendo o
deserto, eu que havia pedido e tido?” (PSGH, 84. Grifo meu); “...e andai em amor,
assim como Cristo nos amou e se entregou por nós a Deus, como oferta e sacrifício de
odor suave” (Ef 5,2).
60
Capítulo II
A Mística da Paixão
Despedaça a língua e todos os conceitos...
O resto é silêncio.
Esse silêncio, porém, é Deus.
Eckardt
Tu, tu, fulgor do silêncio.
PSGH, 85
Como pois inaugurar agora em mim o pensamento?
e talvez só o pensamento me salvasse, tenho medo da paixão.
PSGH, 11
Nenhum pacto é mais possível com o ser silencioso e clandestino que desloca a alma
de seu centro. “Manifestar o inexpressivo é criar” (PSGH, 15), diz-nos G.H. Percebe
que a missão secreta de sua vida é, humildemente, assumir a própria mudez. “É
exatamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria
mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem” (PSGH,
112). Ela traça uma trajetória ascética, feita de uma metamorfose dupla, enquanto
relata sua própria travessia... Uma metamorfose, no rumo da experiência mística, se
dá como perda da identidade pessoal; outra, em direção ao silêncio que a busca, se
como perda da identidade da narrativa. Tanto o escrínio da narrativa quanto a própria
narrativa esvaziam-se, pois. Silêncio!
Silêncio como figura do deserto espaço da re-velação. O deserto é o lugar por
excelência da experiência mística. “O deserto da vida divina é o silêncio das coisas que
61
a visão alcança, o silêncio da coisa em sua mudez, a que a palavra nos liga e de que a
palavra nos separa.”
98
E se as primícias são santas, a massa também o será
99
Para os místicos, através do silêncio, do ser-se deserto, é que se a purificação
dos sentidos e da inteligência, a fim de tornar a alma receptiva à graça divina e pronta
a ser habitada por Deus. Quem segue o caminho da ascese, conforme testemunham
Santa Teresa D’Ávila, São João da Cruz, Mestre Eckardt, Inácio de Loyola, experimenta
o desprendimento do próprio Eu, para favorecer o encontro da Alma com o Absoluto.
G.H. vive essa fase, que é a do deleite abismal, a qual os místicos cristãos procuram
ultrapassar. Todavia, não a vive no plano do divino, mas no da coisa em si, informe,
caótica. Em oposição ao refrigério da visão beatífica buscada pelos santos. O que se
manifesta para G.H. é um êxtase orgíaco, frenesi de magia negra, alegria de Sabath,
que consiste na alegria de se perder.
“O silêncio, a desistência da compreensão e da linguagem, é o termo final da aventura
espiritual de G.H., que principia pela náusea e culmina no êxtase do Absoluto,
indiscernível do Nada.
100
Convergência de todas as coisas, esse nada é o lugar do
contraste extremo: inferno/paraíso. “Eu chegara ao nada e o nada era vivo e úmido”
(PSGH, 41). G.H. chegara à plena imanência na qual o Deus assim mesmo,
precedido com o artigo e o “eu” e o mundo são uma só realidade.
Em seu ensaio “No Território da Paixão: A Vida em Mim”, Nádia Gotlib
101
adverte que
ao leitor é dada a tarefa de desvendar o texto, perpassar os possíveis sentidos em que
“cada imagem desenterra o que de mais arcaico e talvez até convencional
mas, ao mesmo tempo, de mais marginal nesta configuração do seu outro lado, ao
recuperar o que os sistemas não abrigam”. De fato, as imagens são extremas. Trata-
se do imundo, do interdito, do terrível. Esses “monstros-sistemas” (a expressão é da
ensaísta) são gradativamente derrubados na luta de reivindicação da difícil liberdade
do refazer o mundo, recriá-lo ao abdicar da limpeza, da piedade, da beleza.
98
NUNES, 1989, p.71.
99
Rm 11,16
100
NUNES, 1969, p. 112.
101
GOTLIB, 1990, pp. 9-11.
62
E Gotlib questiona se nessa história de vida e morte não se daria paralelamente
também a “história de uma relação profana e sagrada? que também seria a história de
uma relação erótica e sexual? orgia de Sabá? E histórias dos começos, [...]”. E, ao
referir-se aos “começos”, à Origem (Gênesis) de tudo o que existe, conclui: “As
experiências primordiais das espécies na Terra equivalem-se, ainda, às dos homens já
unidos em Cristo”.
É que essa autora analisa o texto de Clarice como sendo, entre tantos discursos, uma
parábola: “Porque, entre tantas paixões, esta história também pode ser a paixão
místico-religiosa do Cristo que, pela via-crucis, passa pela dor e pelo prazer de redimir
a humanidade e reintegrá-la a todas as coisas e a Deus”. Isso justificaria apresentar o
romance tal como um evangelho, agora segundo G.H. Gotlib prossegue: “a história da
paixão é a história da vida crua, sangrando, no que tem de mais pungente: toda a sua
grandeza e toda a sua miséria”. Portanto, parábola que se inscreve sobre a Paixão de
Cristo.
A prática de retomar textos anteriores, hipotextos, dando-lhes novas características é
muito comum na Sagrada Escritura tanto quanto o é à própria Clarice, conforme se
tem demonstrado. Não é raro encontrarmos seus textos recopiados e misturados a fim
de disfarçarem sua origem; outras vezes são simplesmente superpostos, ou ainda a
própria autora cita uma obra sua dentro de outra.
No caso da Bíblia, como a escritura parte de uma tradição oral, é comum haver
tradições paralelas, relatos paralelos dentro do mesmo livro por exemplo, em
Gênesis, o relato de Rebeca em Gerara (Gn 26,1-11), de tradição javista que
celebra a beleza da ancestral da raça, a habilidade do Patriarca e a proteção divina
fora anteriormente narrado nos capítulos 12, também javista, e 20, eloísta, referindo-
se à Sara. Ou, se se quer, a narrativa da multiplicação dos pães: enquanto Lc 9,10-17
e Jo 6,1-13 falam de um única multiplicação, os sinóticos Mateus e Marcos fazem uma
duplicata do relato ((Mt 14,13-21; 15,32-39 e Mc 6,30-44; 8,1-10).
Portanto, assim como Clarice constrói essa sua obra sobre temas bíblicos, isso foi
prática comum no Novo Testamento, que se baseou na tradição antiga em tudo: Jesus
veio dar-lhe cumprimento. Em todo o evangelho segundo Mateus, por exemplo, Jesus
63
é apresentado como o novo Moisés. Portanto, o próprio Antigo Testamento é hipotexto
para o Novo.
E persistindo no veio bíblico da transposição narrativa é que Clarice Lispector faz sua
personagem experimentar a paixão com toda a carga semântica que “experimentar”
traz, relativa ao saber e ao sabor, que põe na boca a massa branca da barata. E a
experimenta sadicamente, até o extremo. Mas em oposição a Cristo que vive a paixão
porque chega ao extremo do amor (Jo 13,1), G.H. defronta-se com a vida na sua
totalidade, esgotada, que já nem é vida, é morte. Então torna-se possível “o apreender
a vida em si, na sua imanência, com horror e encantamento”, não o transcender,
porque “a transcendência é uma transgressão” (PSGH, 54).
Sabia que teria que comer a massa da barata, mas eu toda comer, e também o
meu próprio medo comê-la. Só assim teria o que de repente me pareceu que seria
o antipecado, pecado assassino de mim mesma.
O antipecado. Mas a que preço.
Ao preço de atravessar uma sensação de morte.
Levantei-me e avancei de um passo, com a determinação não de uma suicida mas
de uma assassina de mim mesma. (PSGH, 106)
Não obstante, antes de chegar a esse ponto liminar do ritual, a narradora-protagonista
teve que atravessar um deserto. Ela, que atravessara o corredor, entrara no
quarto, entrara no armário escuro, tem que atravessar a passagem estreita, entrar na
barata. “A passagem estreita fora pela barata difícil
102
” (PSGH, 43).
Porém o percurso é lento e profundamente difícil. Em um primeiro momento, logo que
chegara ao quarto, sentira-se repelida por ele: “De início eu fora rejeitada pela visão
de uma nudez tão forte como a de uma miragem; pois não fora a miragem de um
oásis que eu tivera, mas a miragem de um deserto” (PSGH, 33). Não suporta a visão
e, quando se decide a enfrentá-la, a sensação de estar em um deserto se confirma:
“Então abri de uma vez os olhos, e vi em cheio a vastidão indelimitada do quarto”
(PSGH, 39). E G.H. passa desse “deserto”, espaço místico, externo, tantas vezes lugar
de revelação na Sagrada Escritura, para a consciência do ser-se deserto: “Naquelas
102
Transposição de Mt 7,13-14 .
64
areias do deserto eu estava começando a ser de uma delicadeza de primeira tímida
oferenda
103
, como a de uma flor. Que oferecia eu? que podia eu oferecer de mim — eu,
que estava sendo o deserto [...]?” (PSGH, 84).
Esvaziou-se a si mesmo
104
Adensa-se seu deserto, o silêncio grita mais e mais, faz-se ensurdecedor e o
deserto/silêncio faz com que se penetre no mistério, no espaço mais virtual que real
em que se o relato e, do inconsciente de G.H., se é remetido, por analogia, ao
espaço bíblico deserto/silêncio em que se o encontro com a Alteridade. Espaço por
excelência da experiência mística. Aí se conhece Aquele-que-é, Iahweh.
Assim se deu com Moisés quando passou pelo deserto e viu um arvoredo em meio a
chamas, mas que não se queimava e, interpelado pela visão, quer entender o que se
passa. Encontra-se então com a presença do próprio Deus, que lhe envia em missão.
Hesitante, quer saber o nome de quem lhe envia. Mas “disse Deus a Moisés: ‘Eu sou
aquele que é.’ Disse mais: ‘Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou até
vós.’ [...] ‘Iahweh, o Deus de vossos pais [...] me enviou até vós’.” (Ex 3,1-15).
Ser é próprio de Iahweh (o Eterno). “Vós que sois, que éreis e sereis” (Ap 11,17).
“Aquele-que-é, Aquele-que-era e Aquele-que-vem” (Ap 1,4) e é como se denomina
Jesus: “EU SOU” (Jo 8,24; 13,19). Segundo a mística bíblica, nós somos n’Ele, que
não existimos por nós mesmos: “nele vivemos, nos movemos e existimos” (At 17,28).
E, então, na procura do ser até chegar ao mais profundo não-ser para se
reconhecer sendo caminha a narradora.
Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas superficialmente.
Eu era a imagem do que não era, e essa imagem do não-ser me cumulava toda:
um dos modos mais fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era,
então “não ser” era a minha maior aproximação da verdade: pelo menos eu tinha
o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”, tinha o meu oposto. [...]
103
A esse respeito ver Gn 4,3-4; Ex 34,19. cf Cap. I, p. 61.
104
Fl 2,7
65
[...] Detalhadamente não sendo, eu me provava que — que eu era. (PSGH, 22)
E à medida que atinge o não-ser, a gradual “deseroização”, percebe: esse é o
verdadeiro trabalho que se elabora sob o aparente trabalho, a vida é uma missão
secreta. Tão secreta é a verdadeira vida que nem a mim, que morro dela, me pode ser
confiada a senha, morro sem saber de quê”. Mergulhada na busca da compreensão de
si mesma, então, como os enviados de Deus para uma missão, nota que nasceu
incumbida: “E o segredo é tal que, somente se a minha missão chegar a se cumprir é
que, por um relance, percebo que nasci incumbida toda vida é uma missão secreta.”
A missão secreta
105
de sua vida é, portanto, essa deseroização de si mesma. Perdendo
o próprio nome, G.H. identifica-se com todos os seres. As iniciais G.H. encobrem-lhe o
verdadeiro nome. Falta-lhe a identidade, que é a partir do nome que se tem a
identidade.
Portar um nome é, segundo a Bíblia, estar apto a exercer a missão que o nome
carrega. Abrão, ao ser chamado a ser “pai de uma multidão”, passa a ser denominado
Abraão (Gn 32,27-28). Os filhos dos profetas portarão nomes com significados, por
vezes, trágicos, para ser sinal para o Povo de Israel. Este é o caso dos filhos de
Oséias: Jezrael (Os 1,4), Lo-Ruhama (1,6) e Lo-Ami (1,9). No Novo Testamento,
tomamos como exemplo Simão, a quem Jesus mudara o nome para Pedro (Cefas) para
designar o sustentáculo da Igreja nascente: pedra (Mt 16, 17-18: Simão/ Pedro); (Jo
1,42: Simão/ Cefas). E mesmo o próprio nome “Jesus” (hebraico Yehoshú’a), cujo
significado é “Iahweh salva”.
No entanto, como foi dito, G.H. não porta um nome
106
. Estaria apta a exercer
alguma missão? A própria ausência do nome insinua-se como busca de sua identidade.
105
Em Descoberta do Mundo, Clarice diz: “Fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei.” (DM,
153). É que foi concebida com base em uma superstição que fazia crer que sua mãe ficaria curada de uma
doença misteriosa se desse à luz. Só que sua mãe não se curou. Assim, além de nascer em fuga, nasce também
carregando a culpa, o fracasso de sua missão.
Ainda que não esteja cotejando vida e obra da autora, não como fugir de traçar paralelos entre ambas,
considerando o que a mesma Clarice disse: “No fundo Flaubert tinha razão quando disse: ‘Madame Bovary
c’est moi’. A gente está sempre em primeiro lugar”. (“Clarice pela última vez”, entrevista de Clarice
Lispector por Nevinha Pinheiro, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 15/12/77).
106
Clarice Lispector, quando nasceu, foi chamada de Haia (vida). De fato, nasceu com a “missão” de dar vida
à própria mãe. Sua missão vital é um paradoxo, como a linguagem que privilegiará. Ao chegar ao Brasil,
com dois meses de idade, seu nome, como o dos demais membros da família foi mudado pelo pai, num desejo
de mudança de situação de vida: torna-se, assim, Clarice, luzente. A mudança de nome da autora e de sua
família é comentada por vários de seus biógrafos, dentre os quais se destacam Claire Varin, Dany Kanaan e
NOLASCO, 2001, 309.
66
G.H., protótipo do gênero humano em eterna busca
107
de si próprio... em busca de sua
condição humana. Ao encontrar sua “missão secreta”, ao deseroizar-se, reencontraria-
se.
Assim, A Paixão Segundo G.H. sintetiza o sentido místico dessa mulher comum em
paralelo com a Paixão do Homem
108
por excelência. É o sofrimento de buscar a própria
identidade e, depois, de narrar a busca feita que culmina desistência, ápice da re-
velação.
A paixão visa à posse do ser, à posse da identidade última, perseguida em 182
páginas de uma escritura arfante, em que o texto respira e transpira esse
itinerário do indizível. Paixão do homem, sua via-crucis, a insistência busca a
desistência final, como glória e prêmio. Desistir é revelação última, a epifania
das contradições entre ser e linguagem.
109
(grifos da autora)
É como se G.H. “subisse para baixo”, ou seja, para alçar o cume da própria existência,
experimenta a descida abismal ao inferno de si própria. Isso é a Paixão! O Filho de
Deus também passou pela descese abismal. Deixou a glória (Jo 1,1) e se fez homem
na sua condição de fraqueza e mortalidade (Jo 1,14), se fez servo, o último de todos
(Jo 13,3-16), se entregou à morte (Jo 18,1 – 19,37).
E que se vejam as folhas, como elas são verdes e pesadas, elas se exasperam em
coisa, que cegas são as folhas e que verdes elas são. E que se sinta na mão como
tudo tem um peso, à mão inexpressiva o peso escapa. Que não se acorde quem
está todo ausente, quem está absorto está sentindo o peso das coisas. Uma das
provas da coisa é o peso: voa o que tem peso. E cai o meteorito celeste
— o que tem peso. (PSGH, 92)
Absorta sentindo o peso das coisas e igualada às coisas , toda ausente, G.H.
conclui: “E cai [...] o que tem peso”! Mas ela não quer perder a sua humanidade
“ah, perdê-la dói, meu amor” (PSGH, 92); no entanto sabe que precisa passar para a
outra margem, fazer a travessia do próprio “martírio humano” (PSGH, 85), “ver a
humanização por dentro”. Cair!
107
A esse respeito, ver análise feita relativa à circularidade do romance que se inicia e termina em eterna
busca, no Cap. I desta dissertação.
108
“Eis o homem!” É assim que Pilatos apresenta Jesus, já torturado, aos judeus, durante a Paixão. (Jo 19,5).
109
SÁ, 1988, p. 213.
67
“Para chegar à desistência foi necessária uma enorme insistência. A missão secreta do
escritor e a de Clarice preenche penosa tarefa: tenta dizer o que o ser é.”
110
Todavia, sua personagem experimentará exatamente o oposto, o não-ser, o
inexpressivo. Numa leitura bíblica isto é coerente ao extremo, porque somente Iahweh
é (Ex 3,13-15), e G.H. sabe disso: “Porque o Deus não promete. Ele é muito maior que
isso: Ele é, e nunca pára de ser. [...] O presente é a face hoje do Deus” (PSGH, 94).
A personagem se constrange entre os opostos que a corroem enquanto experimenta a
epifania, e o divino coteja o diabólico:Foi assim que fui dando os primeiros passos no
nada. Meus primeiros passos hesitantes em direção à Vida e abandonando a minha
vida. O pisou no ar, e entrei no paraíso ou no inferno: no núcleo” (PSGH, 54). O
concreto, “o pé”, pisa o abstrato, “o ar”, revelando a contradição inerente ao processo
vivido por G.H.
Eu estava sendo levada pelo demoníaco.
Pois o inexpressivo é diabólico. Se a pessoa não estiver comprometida com a
esperança, vive o demoníaco. Se a pessoa tiver coragem de largar os
sentimentos, descobre a ampla vida de um silêncio extremamente ocupado[...] —
o demoníaco é antes do humano. (PSGH, 65)
A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar
porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a
altura de poder cair. (PSGH, 112).
Ora, Sant’Anna
111
fizera menção à queda da heroína se é que se pode chamá-la
assim mostrando que “assim como os heróis ‘caem’ descendo aos infernos, G.H.
‘cai’ metamorfoseando-se na barata, vivendo ambiguamente o grotesco e o sublime”.
De fato, ocorre a despersonalização de G.H. "A despersonalização como a grande
objetivação de si mesmo" (PSGH, 112). Então, o crítico ressalta que “num primeiro
momento ela cruza esses sentidos misturando um com o outro num trabalho de
sinestesia (que é uma das formas de oxímoro) e, depois, busca a ‘neutralidade’
112
dos
próprios sentidos como forma de superá-los.” E mostra que
110
SÁ, 1988, p. 214.
111
SANT’ANNA, 1988, p. 256.
112
É G.H. quem diz: “Não tenho palavras para exprimir e falo então em neutro. Tenho apenas esse êxtase,
pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância exprime o neutro de que falo.” (PSGH, 103)
68
esse uso tão intensivo da negação atinge um nível identificado com a dialética: da
negação da negação. Ou seja, um processo onde o ‘menos’ mais outro ‘menos’
somam ‘mais’, como na matemática. A negação dupla que termina por ser uma
afirmação. Tal é a força absurda dos paradoxos e oxímoros. Por isso é que essa
anti-narrativa se converte numa narrativa, essa anti-personagem numa
personagem e esta anti-lingua(gem) numa linguagem.
Por isso, em resumo, pode-se dizer que A Paixão Segundo G. H. é um anti-
romance com anti-personagens numa anti-língua. E é a partir daí que passa a ter
vida
113
.
Por isso, falar torna-se um ato mudo, e falar com Deus, “o que de mais mudo existe”
(PSGH, 103). “Aquilo de que se vive e por não ter nome a mudez pronuncia é
disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser”. “Ah, mas
para se chegar à mudez, que grande esforço da voz” (PSGH, 112). Silêncio que nasce
da impossibilidade da voz e se expande num deserto.
E na minha grande dilatação, eu estava num deserto. Como te explicar? Eu estava
no deserto como nunca estive. Era um deserto que me chamava como um cântico
monótono e remoto chama. Eu estava sendo seduzida. E ia para essa loucura
promissora. (PSGH, 40).
Não é seduzida num jardim, como Eva, mas num deserto é tentada, como Jesus. Cita,
explicitamente, a Bíblia, ciente da proibição, consciente da tentação, buscando
interpretar a razão do interdito.
Eu me sentia imunda como a Bíblia fala dos imundos. Por que foi que a Bíblia se
ocupou tanto dos imundos
114
, e fez uma lista dos animais imundos e proibidos?
por que se, como os outros, também eles haviam sido criados? E por que o
imundo era proibido? (PSGH, 46)
“Mas não comereis das impurezas: quais são a águia, e o grifo, e o esmerilhão”. E
nem a coruja, e nem o cisne, e nem o morcego, e nem a cegonha, e todo o
gênero de corvos.
113
SANT’ANNA, 1988, p. 255.
114
Além de considerar a referência explícita a Lev. 11,13-19 e Dt 14, 11-19, conferir também Mt 15, 1-11.
69
Eu estava sabendo que o animal imundo da Bíblia é proibido porque o
imundo é a raiz
[...]o fruto do bem e do mal
comer a matéria viva
me expulsaria de um paraíso de adornos, e me levaria para sempre a
andar com um cajado pelo deserto.
Pior
me levaria a ver que o deserto também é vivo e tem umidade, e a ver que
tudo está vivo e é feito do mesmo. (PSGH, 47. Grifo meu.)
Esta transgressão, comer o fruto do bem e do mal ingerindo o “imundo e proibido”,
cuja referência bíblica é dada no próprio texto, traz à tona a ancestralidade judaica
bíblica. G.H. comunga satanicamente com o gosto do vivo.
Então, a personagem descobre a derrocada de suas referências humanas, das quais
restaram somente as iniciais “G.H.”, e se lança em busca de um lugar onde o sujeito
psíquico se reconheça; mesmo que, para isso, se faça necessário “entrar no inferno da
matéria viva, cair na danação de [sua] alma” para fugir da rotina supérflua até então
estabelecida do ser organizado e comungar com o nada, tocando, em ato sacrílego, no
imundo.
Para construir uma alma possível
uma alma cuja cabeça não devore a própria
cauda
a lei manda que se fique com o que é disfarçadamente vivo. E a lei
manda que, quem comer do imundo, que o coma sem saber. Pois quem comer do
imundo sabendo que é imundo
também saberá que o imundo não é imundo. É
isso?
“E tudo o que anda de rastos e tem asas será impuro, e não se comerá”. (PSGH,
47).
A barata ser impuro, “ser empoeirado”, “um bicho de cisterna seca” (PSGH, 39)
vive no deserto
115
em que G.H. entrou. Considerando o aspecto da transposição própria
desta análise, pode-se associá-la à serpente que causou a expulsão de Adão e Eva do
jardim do Éden: “como se [...] a barata pudesse dar um bote” (PSGH, 34); A barata
que enchia o quarto de vibração enfim aberta, as vibrações de seus guizos de cascavel
no deserto” (PSGH, 39). É que assim como a serpente do paraíso fizera com Eva, o
inseto seduz G.H. que provará do fruto proibido: o de dentro da mesma barata. “A
115
Conforme se demonstrou no capítulo anterior, o deserto é uma das categorias bíblicas mais férteis: local
de rituais de passagem traz a ambivalência de separação/ proximidade de Deus.
70
barata é pura sedução. Cílios, cílios pestanejando que chamam
116
. [...] E neste deserto
de grandes seduções, as criaturas: eu e a barata viva” (PSGH, 40).
O fruto proibido do paraíso está na árvore do conhecimento do bem e do mal. É
desejável para adquirir discernimento (Gn 3,6). Comê-lo faz com que os olhos de Adão
e Eva se abram, e assim que eles o comem passam a ter consciência da própria nudez
(Gn 3,5.7). Da mesma forma, quando G.H. prova o interdito, a massa branca da
barata, também passa a ter consciência de si mesma.
G.H. se questiona sobre a árvore do conhecimento do bem e do mal e quer comer da
vida: “A verdade é o que é [...] assim, pois entende? por que teria eu medo de comer
o bem e o mal? se eles existem é porque é isto que existe”. E depois dessa
justificativa, interpela seu interlocutor: “Lembra-te que eu comi do fruto proibido
117
e
no entanto não fui fulminada pela orgia do ser. Então, ouve
118
: isso quer dizer que me
salvarei ainda mais do que eu me salvaria se não tivesse comido da vida... Ouve
[...]”.(PSGH,93. Grifos meus.)
A narradora deseja dois frutos, o conhecimento do bem e do mal e a vida! Temas tão
caros à nossa autora, a experiência da liberdade e a queda narradas no livro das
origens (Gn 2,4b- 3,24) são retomadas aqui. No primeiro livro bíblico, são duas as
árvores destacadas: “a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do
conhecimento do bem e do mal” (Gn, 2,9. Grifos meus). Importa notar que a árvore
presente no meio do jardim é a da VIDA; mas se a proibição de Deus é para que não
se coma “da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela
comeres terás que morrer”, a árvore a qual Eva se refere ao contestar a serpente é
aquela “que está no meio do jardim” (Gn 3,3), logo, a da vida. Portanto, as duas
seriam a mesma árvore. Um único fruto leva à consciência de si e à morte.
E numa analogia mais próxima à paixão de Cristo tomando por pressuposto o
próprio título da obra, cuja análise se fará a seguir , pode-se ver a barata/ serpente
como figura do demônio que tentou Jesus no deserto, sem no entanto ter conseguido
116
Sabe-se que a serpente “prende” sua vítima pelo olhar.
117
Acerca da experiência da liberdade, no paraíso, Gn 2, 8-17. 3,1-24. Da escolha, Dt 30,15-20. Sl 1.
118
“Ouve” tantas vezes altercado dentro da visão, traz à memória Xemá (“Ouve”) que segue sendo uma das
mais caras orações da religião judaica, uma afirmação do monoteísmo. A esse respeito, cf. Dt 6, 4-13. Texto
retomado no Novo Testamento em Mc 12, 29-31.
71
seduzi-lo. De qualquer forma, após passar pela experiência da provação tendo sido
provado, experimentado; mas sem ter provado... o Cristo também adquire nova
consciência de si próprio e de sua missão: dar a VIDA.
G.H. é, pois, “tentada” pelo “ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso.” “Era uma
máscara”. (PSGH,50). Enquanto nós, “pelo pecado original, nós perdemos a nossa
máscara”. Assim, seduzida, pergunta-se: “Seriam salgados seus olhos? Se eu os
tocasse que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava se eu os tocasse
com a boca, eu os sentiria salgados?” (PSGH, 50). E em vez de recuar G.H. vende a
própria alma para saber
119
: “ Mas é que o inferno já me tomara, meu amor, o inferno
da curiosidade malsã. Eu estava vendendo a minha alma humana, porque ver
começara a me consumir em prazer, eu vendia o meu futuro, eu vendia a minha
salvação, eu nos vendia.” (PSGH, 51). E como, em vez de vender a alma ao diabo, a
“vende” ao próprio Deus, inverte o pacto fáustico ao mudar os pólos luz e trevas: “A
alegria de perder-se é uma alegria de sabath”. [...] “E era um inferno aquele”. “O
inferno não é a tortura da dor! é a tortura de uma alegria”
120
(PSGH, 66).
Tomando, então, distância da realidade humana, pode objetivar: “É que eu não estava
mais me vendo, estava era vendo. Toda uma civilização que se havia erguido, tendo
como garantia que se misture imediatamente o que se com o que sente, toda uma
civilização que tem como alicerce o salvar-se” (PSGH, 42).
Entretanto, recusando a salvação, “a desistência tem que ser uma escolha” (PSGH,
113), prescindindo de religião, G.H. busca o indizível através das experiências místicas
do judaísmo e do cristianismo. Lança, mesmo, seu olhar arguto sobre uma religião de
origem africana (macumba) e o mundo muçulmano.
Quanto à minha fome, para a minha fome eu contaria com as tâmaras de dez
milhões de palmeiras, além de amendoim e de azeitona. E tinha de saber, de
antemão, que, à hora de rezar do meu minarete, eu poderia rezar para as
areias.
119
Referência ao mito fáustico.
120
Sabbath, de onde vem “sábado”, entre os hebreus é dia consagrado a Iahweh, dia de descanso como fora de
repouso para o Senhor o sétimo dia da criação. (Gn 2,2-3). Mas os profetas lançaram várias imprecações
contra os sabás, festas pagãs, celebradas também pelos israelitas em cumes de montanhas como festas de
alegria, segundo os ciclos lunares, e com ritos de prostituição. “Eu entrara na orgia do sabath. Agora sei o que
se faz no escuro das montanhas em noites de orgia”. (PSGH, 66)
72
Mas para as areias eu provavelmente estivera pronta desde que nascera: eu
saberia como rezá-las, para isso eu não precisaria me adestrar de antemão, como
as macumbeiras que não rezam para as coisas mas rezam as coisas. Preparada eu
sempre estivera, tão adestrada que eu fora pelo medo.
Lembrei-me do que estava gravado em minha memória, e até aquele momento
inutilmente: que árabes e nômades chamam o Saara de El Khela, o nada, de
Tanesruft, o país do medo, de Tiniri, terra além das regiões da pastagem. Para
rezar as areias, eu como eles já fora preparada pelo medo. (PSGH, 72)
Assumindo a perdição, em si mesma como é o inferno; “contrário da redenção”
(PSGH, 78). “A orgia do inferno é a apoteose do neutro. [...] Até mesmo o horror
impunível ia ser generosamente reabsorvido [...] pelo profundo abismo do Deus”
(PSGH, 79). Exultante nesse “escuro alegre” (PSGH, 81), tocando as fímbrias do
mistério do próprio Deus, de diante Dele” (PSGH, 86) como uma personagem do
Apocalipse, tremendo “toda por medo do Deus”. Treme “de medo e adoração pelo que
existe” (PSGH, 89), tudo o que consegue ver, odeia. “Não quero esse mundo feito de
coisas” (PSGH, 90). E prossegue:
Ah, envio meu anjo para aparelhar o caminho diante de mim.
121
Não, não o meu
anjo: mas a minha humanidade e sua misericórdia.
Enviei o meu anjo para aparelhar o caminho diante de mim e para avisar às
pedras que eu ia chegar e que se adoçassem à minha incompreensão (PSGH, 90).
Mas o caminho segue sendo árduo demais. E, para suportá-lo, traveste as experiências
de Francisco de Assis, o santo que beijara o leproso: “o erro básico de viver era ter
nojo de uma barata. Ter nojo de beijar o leproso era eu errando a primeira vida em
mim” (PSGH, 105).
Mas beijar o leproso não é bondade sequer. É auto-realidade, é auto-vida
mesmo que isso também signifique a salvação do leproso. Mas é antes a própria
salvação. O benefício maior do santo é para com ele mesmo, o que não importa:
pois quando ele atinge a grande própria largueza, milhares de pessoas ficam
121
Cf. Ml 3,1. O texto de Malaquías, retomado nos evangelhos referindo-se a João Batista, diz “Eis que vou
enviar meu mensageiro para que prepare um caminho diante de mim.” Como lembra Haroldo de CAMPOS,
mensageiro equivale a anjo. Citando W. BENJAMIN em Deus e o Diabo no Fausto de Goethe, p. 179, Haroldo
de Campos observa: “cabe à tradução uma função angelical, de portadora, de mensageira (compreendida esta
na acepção etimológica do termo grego ángelos, do hebráico mal’akh)”.
73
alargadas pela sua largueza e dela vivem, e ele ama tanto os outros assim como
ama o seu próprio terrível alargamento, ele ama o seu alargamento com
impiedade por si mesmo. (PSGH, 108).
E, para reagir contra o nojo, G.H. então se lembra de que bebera o branco leite
materno, que é antes do humano e não tem gosto. “Por que teria eu nojo da massa
que saía da barata? Não bebera eu do branco leite que é líquida massa materna?”
(PSGH, 105). Tenta raciocinar, mas o raciocínio lógico não funciona mais. E G.H.
vomita violentamente, tão exaltada quanto se estivesse agindo sob uma hipnose. É
que cobra/barata hipnotiza pelo olhar. Depois da revolução em seu corpo, sentindo-se
fisicamente como uma menina, pode, enfim, avançar e comer a massa branca da
barata. “Como uma transcendência. [...]Pois mesmo ao ter comido da barata, eu fizera
por transcender o próprio ato de comê-la” (p. 107).
O insípido néctar, a demoníaca sede, a sede pecaminosa, “é um nada que é o Deus” e
situa-se “no pólo oposto do sentimento-humano-cristão (PSGH, 67). Comera do
insípido; iconizara, divinizara a barata e a comungara.
Eu estava limpa [...] a ponto de entrar na vida divina [...] vida tão primária como
se fosse um maná caindo do céu e que não tem gosto de nada
122
: maná é como
uma chuva e não tem gosto. Sentir esse gosto do nada estava sendo a minha
danação e o meu alegre terror. (PSGH, 67).
Minha alegria e minha vergonha foi ao acordar do desmaio. Não, não fora um
desmaio. Fora mais uma vertigem, pois eu continuava de pé, apoiando a mão no
guarda-roupa. Uma vertigem que me fizera perder conta dos momentos e do
tempo. Mas eu sabia, antes mesmo de pensar, que, enquanto me ausentara na
vertigem, “alguma coisa se tinha feito”. (PSGH, 106).
“Até que a lembrança ficou tão forte que meu corpo gritou todo em si mesmo”. E com
as unhas crispadas na parede, cheia de nojo, apropria-se de versículos do livro da
revelação, travestindo-lhes o contexto: “‘ porque não és nem frio nem quente,
porque és morno, eu te vomitarei da minha boca’, era Apocalipse segundo São João”
123
(PSGH, 107).
122
Referência a Êxodo 16.
123
Ap 3, 16. De fato, mais uma vez a narradora demonstra conhecer a Bíblia. No contexto do Livro da
Revelação, as palavras são ditas por Cristo ao bispo (Anjo da Igreja) de Laodicéia.
74
Diante da barata partida ao meio que náuseas, e que acabará por comungar
sacrilegamente, dá-se a transformação interior da narradora, o desapossamento de
sua alma. “De um lado, o grotesco do animal, de outro a introspecção paraxística,
submergindo a personagem em si mesma, o EU que sofre a experiência e tenta contá-
la cindindo num OUTRO, anônimo, impessoal e neutro como o DESERTO”.
124
Quando eu gritei, tu me ouviste
125
À medida, pois, que G.H. narra ao leitor o caminho árduo e conflituoso percorrido
caminho que compreende a saída de seu bem-estar, conforto e organização, para o
ingresso no caótico desconhecido passa por um processo em que perde o apoio nas
convenções e no cotidiano tranqüilo, que lhe davam a certeza da estabilidade. Sua
individualidade é aniquilada ao fazer a experiência extrema, viver sua paixão. Dessa
forma, cai a máscara instituída para o olhar do outro: “O mundo se me olha. Tudo olha
para tudo, tudo vive outro; neste deserto, as coisas sabem as coisas” (PSGH, 43).
O motivo do olhar assinala a presença do outro. Segundo Sartre, faço-me de certa
maneira outro e sou objeto para o outro. Estabelece-se, assim, a relação de uma
consciência a outra.
“A diferença entre sujeito e objeto reaparece interiormente como desdobramento
do eu num ele, que exerce a ação de existir. Nem G.H. nem a barata existem
simplesmente ou apenas coexistem; uma é para si mesma aquilo que se espelha
no olhar da outra. O eu não se relaciona com um tu, mas com um ele que
também é. Ação e paixão do sujeito, que se torna agente e paciente, a sua
existência é a existência do outro que ele já é em si mesmo.
126
(grifos do autor).
Tomando por pressuposto uma abordagem psicanalítica de Laura Arias, é o olhar que
traçará o percurso da criança. É a visão do Outro (o primeiro grande outro são os pais)
que gravada no inconsciente, perfila o modo de olhar e o desejo. Para essa autora,
G.H., ao encontrar-se com a barata, encontra-se com os próprios vestígios de
animalidade. “A animalidade prazer do sangue, ato de animalidade, ato de assassinato.
124
NUNES, Remate de Males, no. 9, p 60.
125
Sl 138(137), 3.
126
NUNES, 1989, 73.
75
Morte de sua antiga condição: paixão que a anima e que é revelada no momento do
confronto. A barata a olha. Este olhar configura-se como outro...”
127
Por seu lado, G.H.
“olha a barata e a come. Ver é igual a ter relações e ter relações é igual a comer.”
128
Na Bíblia ver é essencial para que se possa profetizar. (Ez 37, por exemplo). Quem
experimenta a presença do totalmente Outro, torna-se apto para ver a realidade e
mesmo além dela, como as freqüentes visões dos separados por Deus (Ap 1,11; 5,6;
7,9...). Não se pode, porém, ver a face da Total Alteridade e continuar vivendo.
Novamente o texto de Clarice leva o leitor a contemplar Moisés, agora sobre a
montanha
129
, suplicando a Iahweh: “Rogo-te que me mostres a tua glória.” Mas o
Senhor contesta: “Não poderás ver a minha face, porque o homem não pode ver-me e
continuar vivendo” (Ex 33,18.20). Assim também G.H. deseja ver a face de Deus, mas
teme
130
(PSGH, 63), “[...] ai de mim, eu não estava à altura senão de minha própria
vida” (PSGH, 107). [...] Mas eu bem sabia que não mulher que tem medo de ver,
qualquer um tem medo de ver o que é Deus. Eu tinha medo da face de Deus[...]”
(PSGH, 63).
O horror é que sabemos que é em vida mesmo que vemos Deus. É com olhos
abertos mesmo que vemos Deus. E se adio a face da realidade para depois de
minha morte é por astúcia, porque prefiro estar morta na hora de vê-Lo e
assim penso que não O verei realmente, assim como tenho coragem de
verdadeiramente sonhar quando estou dormindo.
[...] E se a pessoa essa atualidade, ela se queima como se visse o
Deus. A vida pré-humana divina é de uma atualidade que queima”. (PSGH, 94.
Grifo meu).
É tão grande a distância que entre a santidade de Deus e a indignidade do homem
(Lv 17,1), que o homem deveria morrer se visse a Deus (Ex 19,21; Nm 4,20). É por
isso que Moisés (Ex 3,6), Elias (1Rs 19,13), e mesmo os serafins (Is 6,2) cobrem o
rosto diante de Iahweh. No Novo Testamento, “a glória de Deus manifesta-se em
127
Letras e Letras, p. 86.
128
Ibidem.
129
A própria G.H. se sente, em sua cobertura, “como se estivesse no pico de uma montanha” (PSGH, 24). A
montanha, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, é local de experiências epifânicas, ainda mais se
estiver situada em um deserto.
130
Cf. Is 6,5.
76
Jesus” (Jo 1,14; 11,40; 2 Cor 4,46), e “somente Jesus contemplou a Deus, seu Pai” (Jo
1,18; 6,46; 1 Jo 4,12). Para os homens, a visão face a face está reservada à felicidade
do céu (Mt 5,8; Jo 3,2; 1Cor 13,12). então o absolutamente Tu, “Tu, fulgor do
silêncio”, se nos revela. G.H.
não escolhe o intento de ser, mas parte em busca da face imaculada de Deus: o
absoluto, o todo. Entre o momento de ruptura e o momento de retorno escolhe a
via mística, aprofundando-a para cada vez mais precisar de Deus na busca da
santidade: o máximo de ser e da existência. Escolhe o silêncio.
131
Com “avidez pelo mundo”, a narradora percorre paradoxo sobre paradoxo até
encontrar-se no âmago do seu “eu”. Sabe, todavia, que “a essência é de uma insipidez
pungente” (PSGH, 111) e que a existência se pela despersonalização, “a maior
exteriorização a que se chega”, “a perda de tudo o que se possa perder e, ainda assim,
‘ser’”. Como as camadas da barata antes percorridas, esforça-se por tirar uma a uma
todas as máscaras que, afinal, é o que a caracteriza, até que possa encontrar em si
mesma “a mulher de todas as mulheres” (PSGH, 112).
Usa do Outro para sua gradual deseroização: “através da barata viva estou
entendendo que também eu sou o que é vivo”. Por outro lado, “quem se atinge pela
despersonalização reconhecerá o outro sob qualquer disfarce” (PSGH, 112).
No momento em que fecha a porta do guarda-roupa espremendo a barata, e crê tê-la
matado, pergunta-se pelo tempo que estivera por matar, referindo-se não à barata,
mas à possibilidade mesma de matar.
A narradora se conta da potência tanática que jazia na latência temporal: “Há
quanto tempo estivera eu por matar?”. O sujeito parece ser transcendido
justamente por uma pulsão destrutiva fundamental e irredutível. A destrutividade
se revela como potencialidade, um vir-a-ser constitutivo daquele fundo anárquico
pulsional.
132
A resposta está contida noutra questão: “Que fizera eu? então eu talvez soubesse
que não me referia ao que fizera à barata mas sim o que fizera eu de mim?” (PSGH,
36). Ora, a morte da barata é a morte da protagonista. Identifica-se com a alteridade,
131
Letras e Letras, p. 92.
132
ROSENBAUM, 1999, p. 167.
77
levando-a consigo, ao espelhar-se. Na cara da barata vê, pois, o seu rosto enquanto
o rosto do outro. “Olhei-a com aquela boca e seus olhos: parecia uma mulata à
morte” (PSGH, 37). Barata-Janair.
Janair, identificada com a barata, é Outro por suas características de negra e pobre;
ante a narradora branca e rica e talvez se possa contrapor também, aqui, as
características, relativas aos gêneros, estereotipadas na data da publicação do
romance (e ainda hoje, em muitos contextos): G.H. vive sozinha em seu apartamento
de cobertura; independente, participando de um padrão “masculino” para a época:
“para uma mulher essa reputação é socialmente muito, e situou-me, tanto para os
outros como para mim mesma, numa zona que fica socialmente entre mulher e
homem” (PSGH, 19); o que a contraporia à mulher que se ocupa dos afazeres
domésticos. Por isso mesmo Janair é capaz de interpelar à narradora tão
profundamente: está em plano oposto. O quarto da empregada, raramente visitado
pela patroa, é o lado oculto do outro. É de lá que o “eu deverá devir-se”. Um lugar que
não é o da protagonista: é prisioneira do Outro.
Na dança entre o olhar da barata e o da empregada Janair rainha negra , G.H.
busca ainda o apoio do interlocutor: Dá-me de novo a tua mão, não sei ainda
como me consolar da verdade” (PSGH, 93).
“... es necesario que la narración se construya. De allí la necesidad del ‘otro’; del
receptor del mensaje por quién se clama desde las profundidades del cuarto
que ya se ha transformado en una bajada a los infiernos; de esa mano que se
busca en la oscuridad como sostén para narrar lo acontecido.
133
G.H. traça esse percurso em busca do “outro” e da linguagem perdida, como uma
eremita. E se apoiará num “tu” que na verdade nada mais é que o desdobramento do
“eu”. Portanto, o que ocorre é um monólogo que tende ao diálogo, sem que, no
entanto, este seja alcançado.
Como destaca Benedito Nunes, o diálogo reduz-se à condição de um “diálogo a um”,
no qual o “tu” constitui um “estratagema precário” contra a incomunicabilidade,
133
RUSSOTTO, 1989, p. 203.
78
utilizado para questionar o estado de antagonismo insuperável que faz do diálogo um
“monólogo a dois”
134
.
Essa natureza dialógica está presente em toda a inflexão teológica ao longo do
solilóquio da narradora, com o tom confessional de uma penitente, muito próximo ao
de Davi (Sl 51 [50]).
Um véu está sobre o seu coração
135
Romance escrito em primeira pessoa, com o relato da protagonista subdividido nos
dois tempos de sua experiência existencial: anterior e posterior à epifania, A Paixão
Segundo G.H. é, por conseguinte, a confissão de uma experiência tormentosa,
motivada por um acontecimento banal inesperado. A vida cotidiana de G.H. inicia o
processo de fuga do banal quando se surpreende com a ordem cheia de luz em
que se encontra o quarto de sua ex-empregada, seguida de sucessivos sustos. A
aparição da barata e seu esmagamento ultrapassam as surpresas anteriores pelo
desencadeamento da náusea. “A visão da barata esmagada gerou em G.H. uma
ruptura com a linguagem e com o seu EU”.
136
(Grifo meu).
Enquanto caminha em direção ao fracasso da linguagem, na busca/perda de sua
identidade a narradora passa por seu “mais difícil espanto”. que caminha em
direção à destruição do que construiu, vai para a despersonalização: quer tirar de si as
características, “como quem se livra da própria pele”. Tudo o que a caracteriza é na
sua percepção simplesmente o modo como se torna mais facilmente visível aos
outros e como, enfim, termina sendo superficialmente reconhecível por si mesma.
“Assim como houve o momento em que vi que a barata é a barata de todas as
baratas, assim quero de mim mesma encontrar em mim a mulher de todas as
mulheres” (PSGH, 112). Despojada, pois, de si própria, mergulhando num momento
de existência abismal, ela se anula como pessoa, nivelada à barata. Se anula como
persona para chegar à verdade do que é.
Diante dela projetam-se, enquanto vive em êxtase selvagem,
134
NUNES, 1973, pp. 67- 72.
135
2Cor 3,15.
136
RAUEN, Construtura, no. 7, p. 30.
79
os contrastes inconciliáveis da existência
amor e ódio, ação e inação, violência
e mansidão, crueldade e piedade, santidade e pecado, esperança e desespero,
sanidade e loucura, salvação e danação, pureza e impureza, liberdade e servidão,
o belo e o grotesco, o humano e o divino, o estado natural e o estado de graça, o
sofrimento e a redenção, o inferno e o paraíso.
137
Tal linguagem contraditória que irá sustentar a experiência da procura e da perda
da identidade de G.H. durante todo o relato é comparável ao que Hegel considera
como sendo a força motora do desenvolvimento: contradição que emerge da luta dos
contrários. Apesar da luta permanente, os contrários não se excluem, ao revés,
convivem mutuamente. Sob o ângulo do materialismo dialético, a convivência dos
contrários provoca a unidade dos mesmos; relativa que temporária. A luta, por
outro lado, é absoluta. A contradição, além de explicar o desenvolvimento, esclarece a
origem do movimento interno de G.H. O confronto da personagem com o inseto
repulsivo assinala a máxima oposição que engloba os demais opostos citados.
Inicia seu relato dizendo que, à mesa, ia formando, prazerosamente, “uma pirâmide
curiosa”. Juntava uma bolinha de miolo de pão à outra e formava “um triângulo reto
feito de formas redondas, uma forma que é feita de suas formas opostas (PSGH,
21). Ela reconhece que “vivia o lado avesso daquilo que nem sequer conseguiria
querer ou tentar”, que seguia “à risca e com amor uma vida de ‘devassidão’, e pelo
menos tem o oposto do que não conhece nem pode nem quer: uma vida de freira.”
Ela tinha tudo, “embora do modo contrário” (PSGH, 22. Grifos meus).
Assim também, a barata, presença ativa, fascinante e destrutiva, opõe-se à mulher
que a vê, desempenhando nesse conflito um papel de mediadora. “O que nela é
exposto é o que em mim eu escondo: de meu lado a ser exposto fiz o meu avesso
ignorado” (PSGH, 50).
Nesse contexto, a linguagem é mais uma contradição. Se bem que sustente todas
as demais. Não se pode, todavia, confundir contradição da linguagem em A Paixão
Segundo G.H. com obscuridade da linguagem. Esta não é nada obscura, ainda que
também passional; lançada numa espécie de jogo decisivo com a realidade. Obscura é
a experiência de que ela trata. Exigir que a autora obedecesse a um padrão de clareza
137
NUNES, 1989, p. 59.
80
ou de expressividade direta, quando o objetivo da obra é uma experiência não
objetiva, seria pedir a incoerência do romance.
Tal qual no êxtase místico, G.H. percorre, até o seu regresso ao mundo humano do
qual saíra, uma gama de sentimentos contraditórios: “havia chamado de alegria o meu
mais profundo sofrimento”; “eu havia oferecido o meu inferno a Deus. O meu soluço
fizera de meu terrível prazer e de minha festa uma dor nova”; sentimentos
extremos que são estágios e figura da vida espiritual: “eu me perguntava se estava
fugindo para um Deus por não suportar minha humanidade”; “entendia eu que aquilo
que eu experimentara, aquele núcleo de rapacidade infernal, era o que se chama de
amor?” (PSGH, 85). A repugnância à matéria viva, neutra, pré-humana e divina,
proporciona-lhe a alegria de perder-se”, e mesmo a dor infernal é-lhe indiferente, e
tem o efeito consolador de um paraíso.
O próprio tema “paixão” tem sua fundamentação na linguagem contraditória. Lida de
um ângulo cristão, a paixão leva indubitavelmente à ressurreição. A vida nova supõe o
abandono completo até a morte. Também no romance de Clarice, o que se consegue
ver em G.H. é seu fracasso. Ela
“fracassa separando-se da linguagem comum pela realidade silenciosa que
nenhuma palavra exprime. A paixão da linguagem terá seu reverso na
desconfiança da palavra, e o empenho ao dizer expressivo, que alimenta essa
paixão, transformar-se-á numa silenciosa adesão às próprias coisas.”
138
E o que é a paixão, na perspectiva deste trabalho, senão “fracasso”? Problematizada e
esvaziada a forma narrativa, o romance narra o seu próprio malogro: o fracasso da
história, a dissolução do romance. Então, paixão da existência e da linguagem
consomem, passo a passo, o romance. Assim, através da linguagem metafísica, Clarice
Lispector confirma o poder demiúrgico da Palavra que se faz caminho aberto a todas as
possibilidades de experiência.
Como já se disse à saciedade, A Paixão Segundo G.H. oscila entre o ser e a linguagem.
O pensamento em G.H. vai e vem, se repete e se corrige, tal qual nos livros
sapienciais Jó, Eclesiástico e Eclesiastes, por exemplo, para não falar em Provérbios
que é um livro compósito.
138
NUNES, 1989, p. 112.
81
Na coletânea bíblica, o Eclesiastes é sem dúvida um dos livros mais estranhos. Nele
não ressoa aquela voz que imprimiu a marca de alguns dos momentos mais
característicos dessa literatura, sobretudo através dos Profetas: a do diálogo do
homem com Deus. Ainda que mantenha uma forma de relação com um remoto e
fatídico Elohim, Coélet o faz sob forma monológica, na solidão da sentença sapiencial,
sabedor de que se acha condenado a não ir além de si mesmo e da própria voz, sua
expressão. E monólogo interior é a forma adotada pela narradora desse romance de
Clarice; também ele, como Eclesiastes, encerrado em uma espécie de intransitividade.
Desde o seu primeiro romance, a escrita de Clarice Lispector surge radicalmente
contrastante, mesmo em relação ao romance brasileiro de 1930, marcado pelo neo-
naturalismo. Enquanto seus mais ilustres antecessores, ainda que renovadores da
literatura nacional, mantinham a supremacia do tema regionalista sobre a linguagem
(caso de José Lins do Rego e Graciliano Ramos, por exemplo) nossa autora mostrava
que “o mundo da palavra é uma possibilidade infinita de aventura, e que antes de ser
coisa narrada a narrativa é forma que narra”
139
.
No romance de 1964, o primeiro de Clarice escrito em primeira pessoa, a narradora
delimita a história por uma perspectiva autobiográfica, ressignificando toda a sua vida
passada à luz do que vivera na véspera. O passado, por sua vez, existe como
tomada de sentido no presente. Desenvolve-se, no limite, a lembrança de sua
experiência epifânica através, tanto do fracasso da linguagem quanto, possivelmente,
da invenção da linguagem. Ela rememora o que vivera re-elaborando o acontecido.
Para Lúcia Helena
Perpassa os textos de Lispector uma aura de filosofia, através da constante alusão
ao imaginário religioso e metafísico judaico-cristão, no qual ela adensa questões
candentes como a culpa original, a náusea, a origem da vida e da criação, e a
pergunta pelo sentido da existência. No entanto, longe de estabelecerem
doutrinas, os livros de Lispector inserem estas questões no cotidiano de seres
geralmente perdidos em suas próprias indagações, ou, até, incapazes de indagar,
para os quais o ludismo de linguagem do narrador funciona não como forma
intensa de penetração no mundo do inconsciente, mas também como forma de
refletir sobre a dissociação do ego e a fragmentação do self de muitas de suas
personagens, de que são exemplares Laura (“A imitação da Rosa”), Ana (“Amor”),
139
CANDIDO, 1988, p. XVIII.
82
ambas da coletânea Laços de Família, e G.H. (A paixão segundo G.H.)
140
. (Grifos
da autora).
É que Clarice escreve infringindo a lei: “quando a gente escreve ou pinta ou canta
transgride uma lei. Não sei se é a lei do silêncio que deve ser mantido diante das
coisas sacrossantas e diabólicas” (SV, 153). Por isso é que faz emergir em escritura
toda uma gama de experiências que se tece no ficcional, pois, para ela, a palavra é
força demiúrgica de um mundo misterioso. De fato, Clarice rejeita os que nela buscam
decifrar sentidos. Impenetrável, diz: “A criação não é uma compreensão, é um novo
mistério”
141
. Toda a sua obra se move em uma busca infinita de sentidos.
É chegada a hora!
142
Sintomático, nessa busca de sentidos, é que, no mesmo ano em que publicou A Paixão
segundo G.H., seu quinto romance, Clarice tenha lançado também, dentro de A Legião
Estrangeira, o conto “A quinta história”.
Mas, se G.H. encontra a barata no quinto capítulo e tem que escolher ir ou não até o
fim no encontro consigo mesma, passando pelo inseto asqueroso; a personagem do
conto que duplica o romance faz outra escolha: “Áspero instante de escolha entre dois
caminhos
143
que, pensava eu, se dizem adeus, e certa de que qualquer escolha seria a
do sacrifício: eu ou minha alma. Escolhi. E hoje ostento secretamente no coração uma
placa de virtude: ‘Esta casa foi dedetizada’” (LE, 93).
Trata-se de um conto no qual aparece uma técnica narrativa concêntrica: o cinco
continhos todos iniciados com a mesma frase: “Queixei-me de baratas”. Esse início
140
HELENA, 1997, p. 36.
141
Apud BORELLI, 1981, p. 81.
142
Jo 12,23.
143
A respeito das opções contínuas que temos que fazer dia a dia, segundo a Torá, todas nascem de uma
escolha fundamental: a vida, como uma bênção, ou a morte, como uma maldição (Dt 30,15-20). Tema de
diversos outros textos bíblicos e de abertura do livro dos Salmos.
Considerar também o que diz ROSENBAUM, 1999, p.24: “[...] As personagens clariceanas serão flagradas
no momento máximo de uma crise, sempre virtualmente pressentida pela armação narrativa. Devemos
entender ‘crise’ aqui no sentido etimológico decorrente do verbo grego crino: ‘escolher, distinguir, discernir,
decidir, julgar[...]’, sendo a crise (e daí, também, a crítica) justamente o ato ou a faculdade de ‘peneirar’
(crivo), separar e, portanto, julgar determinada situação. A dimensão de movimento, desequilíbrio e conflito é
inequívoca, acolhendo o Mal como elemento mobilizador desse estado crítico, responsável pela tensão que
sustenta e faz desenrolar-se o enredo.
83
idêntico funcionará como uma cadeia unindo, internamente, as histórias, pela
repetição.
Além disso, todas possuem um mesmo tema: modo de matar baratas” que invadem,
a cada noite, um apartamento no alto de um edifício. Cada historieta não passa de um
parágrafo, são como sinopses do que seriam se escritas mais longamente. E a quinta,
um pouco mais desenvolvida, nos o contraponto para A Paixão Segundo G.H.,
que a opção não é a transgressão; antes, é ostentar “no coração uma placa de virtude”
ainda que também secretamente. o é entrar em comunhão; é eliminar,
“dedetizar” os insetos.
Portanto, seja a estrutura de “A quinta história” concêntrica e espiralada como a de
A Paixão Segundo G.H. seja o tema, baratas, o encontro/confronto com o inseto
repulsivo à dona da casa (que mora na cobertura/ no alto de um edifício) ou a
cronologia da publicação (1964), tudo faz com que o leitor seja remetido de uma a
outra obra de Clarice Lispector.
Sobre seu quinto romance, Clarice declarara ter perdido o controle de G.H. ao
compreender, repentinamente, que sua personagem teria que comer as entranhas da
barata esmagada pela porta do armário.
Aqui se impõe ao leitor também, como a G.H., uma escolha: fechar o livro ou seguir
com a personagem sua tormentosa experiência de despersonalização que irá conduzi-
la aos abismos do inconsciente, ao nada, ao neutro, ao núcleo, à matéria viva infernal
e divina, raiz do bem e do mal, do puro e do impuro; já que o ideal de G.H. é recusar
a transcendência, substitui-la pela imanência.
Para isso ela rouba “a morte do Rei” (PSGH, 83), no silêncio de um deserto em que
“só o braseiro, o vento errante” e para ela “nenhum cantil de água, nenhuma
vasilha de comida”. Nesse lugar de jejum e morte, no entanto, pensa que pode achar
um tesouro, se souber esperar: Um cálice de ouro?” (PSGH, 70). Mas dentro do
reverso da experiência mística que vive, o tesouro que conseguirá para guardar em
seu escrínio, em seu sacrário em vez do Santo Graal, do cálice usado por Jesus na
última ceia será um amontoado de coisas.
84
Desde a pré-história eu havia começado a minha marcha pelo deserto, e sem
estrela para me guiar
144
, a perdição me guiando,o descaminho me guiando
até que morta pelo êxtase do cansaço, iluminada de paixão, eu enfim
encontrara o escrínio. E no escrínio, a faiscar de glória, o segredo escondido. [...]
Dentro do escrínio o segredo:
Um pedaço de coisa.
Um pedaço de ferro, uma antena de barata, uma caliça
145
de parede.
Minha exaustão se prostrava aos pés do pedaço de coisa, adorando
infernalmente. (PSGH, 88)
E como o Rei crucificado, que deu a vida livremente (Jo 10,17-18), G.H. afirma: “para
ter esse segredo [...] de novo eu daria a minha vida”. [...] “A mim me fora dado
demais. Que faria eu com o que me fora dado? ‘Que não se aos cães a coisa
santa’.” (PSGH, 89). Essas palavras bíblicas, recordadas pela narradora, no contexto
do Evangelho de Mateus (7,6) podem se referir à Eucaristia que não deve ser dada aos
indignos dela.
Portanto, o percurso místico vivido às avessas por G.H., reverte de seu sentido o sinal
maior do Cristianismo, o sacramento da Eucaristia, símbolo da Paixão de Cristo,
celebrada, liturgicamente, em sua memória. Paixão da personagem atravessando
paixão do discurso e sendo atravessada por ela.
Trazemos este tesouro em vasos de argila
146
Dentro das contradições de sua escrita, no prólogo
147
“a possíveis leitores” de A
Paixão Segundo G.H., Clarice propicia reflexão àquelas “pessoas de alma formada,
que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e
penosamente atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar
(grifo meu). E não mesmo outra forma de entrar nesse percurso com sua
personagem senão gradualmente e com muita dor vivendo, também, a paradoxal
paixão: o que supõe travessia do “oposto daquilo que se vai aproximar”. Portanto,
144
Referência à estrela que guiou os sábios do Oriente que foram a Belém adorar Jesus (Mt 2,1-12).
145
Uma caliça, não o “cálice” esperado!
146
2Cor 4,7.
147
A respeito do prólogo de PSGH, Nádia B. Gotlib observa: “Se na parábola do semeador, do Evangelho de
São Lucas, dois tipos de leitores ‘A vós, é concedido conhecer o mistério do reino de Deus, mas aos
outros, [ele é anunciado] por parábolas; para que vendo não vejam; e ouvindo, não entendam , parece que
Clarice dirige-se preferencialmente aos que vendo, vejam. E ouvindo, entendam” (1990, p. 10).
85
além da (dupla) paixão de G.H., o leitor “de alma formada” também é convidado a
viver a paixão. Ele é o “tu” que a mão à narradora; é também um dos “outros” do
relato.
Este desdobramento dramático do eu, cindido em busca de uma identidade outra e
contrária, fictícia e verdadeira, sustentará o aproximar-se das duas personagens do
romance: G.H. e o outro, que é, entre outros, a barata. G.H., a narradora que cria e
conta o que vivera no dia anterior “vou criar o que me aconteceu” (PSGH, 15) , é
a mulher burguesa que enxerga a barata, sente náuseas, consegue matar o inseto e o
come. O processo que vive do esmagar, destruir e, por fim, comungar o Outro, chega
até o mais pleno não-eu, realizando o que a epígrafe de Berenson
148
, escolhida pela
autora, anunciara: “Uma vida plena pode ser aquela que alcance uma identificação tão
completa com o não-eu que não haja nenhum eu para morrer.”
Assim, desde a abertura de A Paixão Segundo G.H. o leitor é preparado pela
epígrafe escolhida pela escritora. É a culminância da trajetória de G.H. prefigurada:
identificada com a barata, desumanizada portanto, “deseroizada”, para usar expressão
da própria narradora, a paixão se esvai no vazio.
A paixão não é só a experiência nauseante de ter ingerido a massa branca e insossa da
barata, ainda que isso tenha sido, sem dúvida, uma experiência-limite de comungar
com a matéria prima do mundo, esclarece Olga de Sá, “porque para a manducação da
barata, G.H. renunciou à sua vida pessoal, a seu ser como linguagem”.
149
Paixão
150
é travessia. Dá-se na experiência de retirar as camadas que cobrem, os véus
que envolvem o ser a fim de se ter a revelação plena. É ontologia. G.H., ao renunciar à
148
Ao tratar das instâncias que envolvem o texto literário, isto é, do "paratexto” apresentação editorial,
nome do autor, títulos, dedicatórias, prefácios, etc Gérard Genette observa que a função mais direta da
epígrafe é a de comentário, esclarecimento ou justificativa não do texto, mas do título. (GENETTE, Gérard.
Seuils. Paris: Seuil, 1987. p. 145. Tradução: Dilma Castelo Branco Diniz).
149
1988, p. 215-6.
150
CHAUÍ, escrevendo Sobre o Medo” em Os Sentidos Da Paixão, ressalta: “Três são os afetos originários,
demonstra o livro III da Ethica: o desejo, a alegria e a tristeza. O desejo (cupiditas) é a própria essência do
homem enquanto concebida como determinada a fazer algo por uma afecção nela existente. Não envolve a
consciência, diz Espinosa, senão quando conhecemos ou imaginamos conhecer a causa de nossos apetites.
Quando a causa é imaginária (isto é, depositada no desejado e não no desejante), o desejo é paixão; quando a
causa é real (isto é, o próprio desejante) o desejo é ação” (p. 54). [...]Aliás, o prefácio do Theologico-politicus
é taxativo: sob o medo os homens desprezam a razão, a prudência e o cálculo. Como dissera Montaigne,
ganham asas nos pés, quando deveriam imobilizar-se, e ficam paralisados, quando deveriam fugir” (p. 73).
86
sua vida mesquinha, “a sinceridade não me levaria a vangloriar da mesquinhez”
(PSGH, 19), abre-se, pode então se identificar com todo ser.
Ao começar sua jornada, sem se dar conta minimamente do processo que inicia,
atravessa a cozinha, atravessa a área de serviço, atravessa o corredor escuro. Em
meio à travessia, o interior do próprio prédio, como verá, depois, o avesso de si
própria ao viver o reverso do humano...
Decidida a começar a arrumar pelo quarto da empregada atravessei a cozinha
que dá para a área de serviço.[...] Encostei-me à murada da área.[...] Olhei para
baixo: treze andares caíam do edifício. [...] Olhei para a área interna. Por fora
meu prédio era branco, com lisura de mármore e lisura de superfície. Mas por
dentro a área interna era um amontoado oblíquo de esquadrias, janelas,
cordames e enegrecimentos de chuvas [...]. O bojo de meu edifício era como uma
usina. (PSGH, 24. Grifos meus).
Depois dirigi-me ao corredor escuro
151
que se segue à área. (PSGH, 25)
Todavia, o caminho é íngreme, sujeito a desvios, passível de quedas. Importa aqui
considerarmos o conceito de paixão de Lebrun para nos atermos, posteriormente, à
experiência de G.H.
Lemos nos Novos Ensaios de Leibniz: “Prefiro dizer que as paixões não são
contentamentos ou desprazeres nem opiniões, mas tendências, ou antes,
modificação da tendência, que vêm da opinião ou do sentimento, e que são
acompanhadas de prazer ou desprazer”. Esta definição da paixão está em
conformidade com nossos hábitos de espírito. Paixão, para nós, é sinônimo de
tendência — e mesmo de uma tendência bastante forte e duradoura para dominar
a vida mental. Ora, é digno de nota que esse significado da palavra paixão traga
em sua franja o sentido etimológico de passividade (paschein, pathos), sentido
lembrado por Descartes no começo do Tratado das Paixões: “Tudo o que se faz ou
acontece de novo é geralmente chamado pelos filósofos de paixão relativamente
ao sujeito a quem isso acontece, e de ação relativamente àquele que faz com que
aconteça”.
151
Assim como a “Noite Escura” de São João da Cruz, o escuro, aqui, remete também a provações espirituais;
não obstante ser de manhã e a “Visão” se dar ao meio-dia.
87
Aqui, Descartes recorda brevemente a definição aristotélica do agir e do padecer.
Esses dois conceitos são inseparáveis, mas cada um deles designa uma potência
bem distinta. Padecer é inferior a agir por dois motivos. Em primeiro lugar, é
próprio do agente encerrar em si mesmo um poder de mover ou mudar, do qual a
ação é a atualização [...]. Diz-se paciente, ao contrário, àquele que tem a causa
de sua modificação em outra coisa que não ele mesmo. [...] Em segundo lugar,
padecer consiste em ser movido.
152
A partir dessa perspectiva filosófica, nota-se a desqualificação da paixão para os
clássicos gregos. Ainda para Lebrun
153
, a aparição das características da paixão
depende da intervenção de um agente exterior e esse aspecto é fundamental para a
determinação do pathos. “A paixão é sempre provocada pela presença ou imagem de
algo que me leva a reagir, geralmente de improviso. Ela é então o sinal de que eu vivo
na dependência permanente do Outro” (grifos meus).
Assim é que, no primeiro instante, G.H. se sente ofuscada quando espera umidade,
sujeira e escuridão e se depara com secura, ordem e claridade: “Mas ao abrir a porta
meus olhos se franziram em reverberação e desagrado físico” (PSGH, 26). Da porta, se
depara com um painel a carvão: “E foi numa das paredes que num movimento de
recuo vi o inesperado mural. [...] Estava quase em tamanho natural o contorno a
carvão de um homem nu, de um mulher nua, e de um cão que era mais nu do que um
cão” (PSGH, 27) que lhe parece uma escrita, não um ornamento; uma inscrição
rupestre cujas figuras lembram-lhe múmias guardando um local sagrado. “À medida
que mais e mais me incomodava a dura imobilidade das figuras, mais forte se fazia em
mim a idéia de múmias” (PSGH, 27). E, com mal-estar real, “deixa vir a sensação [...]
do silencioso ódio” da empregada (PSGH, 28). Sente-se coagida com a presença que
Janair, a empregada, deixara no quarto, desnorteada com a simplicidade inesperada
do aposento, desanimada, surpresa. Entrara no avesso de sua casa: o quarto-
minarete.
“O quarto divergia tanto do resto do apartamento que para entrar nele era como
se eu antes tivesse saído de minha casa e batido a porta. O quarto era o oposto
do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de meu
talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de
minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas, das aspas que
152
LEBRUN, 2002, p. 17 (grifos do autor).
153
Ibidem, p. 18.
88
faziam de mim uma citação de mim. O quarto era o retrato de um estômago
vazio.” (PSGH, 29)
Irritada, incomodada fisicamente com o quarto: sua secura, silêncio, luz... força-se “a
um ânimo e uma violência”. E entra. “Embaraçada ali dentro por uma teia de vazios”
(PSGH, 30), ela abre uma fresta no armário esturricado pelo sol, e como não consegue
abrir totalmente sua porta, dentro põe o quanto cabe de seu rosto:
“De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus
olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado
que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me
batendo dentro do peito”. (PSGH, 32)
Assim, sucessivamente, atravessa sustos e sustos, até que possa atravessar sua
própria vida, seu ser que requeima em paixão. É, como diz Lebrun, retomando Hegel:
“Nada de grande se faz sem paixão”.
154
Evidentemente, não foi casual a escolha do título A Paixão Segundo G.H. para a que
veio a ser considerada uma das obras mais significativas de Clarice Lispector. Rossoni
chama a atenção para um ponto instigante, sobre o qual se teceram muitas
conjecturas
155
: “Por que G.H.? É como se a personagem em convulsivo exercício
mental atingisse o término mais anterior da própria aventura, o envolvimento com o
resíduo amorfo da barata, e se encontrasse com o amorfo de si mesma”.
Possivelmente, por isso mesmo, carregue o anonimato espelhado na designação G.H.,
isto é, um nome que é ‘sem-nome’; uma estrutura mínima de letras”, iniciais,
segundo a narradora nos informa ao vê-las gravadas nas valises, “que poderiam
adquirir sentido se encaixadas numa seqüência alfabética: no intervalo entre F e I, isto
154
LEBRUN, 2002, p. 23.
155
Dentre as quais sublinho a inusitada leitura de Marcelo Simões Nogueira em seu ensaio “Um teto segundo
G.H.” para quem a personagem clariceana estava sob a ação de THC (maconha): “Ocorre-me agora o quão
curioso e surpreendente é o fato das letras G e H serem o exato ponto concêntrico entre o C e o L (iniciais de
Clarice Lispector) no abecedário, o núcleo alfabético destas duas letras. Observe:
a-b-C----d---e--f-G-H-i--j---k----L-m-n...
plena simetria; entre o C e o G três letras (d, e, f), assim como entre o L e o H (i, j, k). Para um livro
onde o nódulo da história é exatamente a viagem heautoscópica da protagonista rumo ao “núcleo” de si
mesma, essa particularidade e tanto menos importa se consciente ou não por parte da escritora somente
ratifica a presença de Clarice Lispector como que espelhada em sua personagem.
http://www.gardenal.org/norma/archives/2004/02/index.html no G o o g l e.
89
é, algo que se auto-impregna violentamente entre o F[im] e o I[nício] do que se é. No
que se tem”
156
.
Para esse autor, se se entender o termo paixão como o percurso transcorrido para
vivenciar o estado do martírio, então poder-se-á entrever “que a expressão exprime o
percurso apaixonado pelo qual o homem se direciona rumo ao próprio anonimato,
representado pela sigla G.H.”.
157
Porém, mais coerente com a leitura que aqui se faz dessa obra de Clarice, é o
posicionamento da canadense Claire Varin lendo, em G.H., todo o gênero humano
158
.
De qualquer forma, o próprio título nos alerta para a perspectiva da paixão da
narração (“A Paixão Segundo G.H.”) que se concomitantemente à narração da
paixão. Nos evangelhos, a paixão de Jesus é narrada segundo a perspectiva de
Mateus, Marcos, Lucas e João. Cristo vive a paixão e cristãos (aqueles que carregam a
marca passional de Cristo) a relatam. Seria aos evangelistas que G.H. se refere
enquanto desesperadamente se debate sem saber como iniciar sua narrativa? “O
relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as
informações são terrivelmente incompletas” (PSGH, 14. Grifos meus).
No entanto, G.H. narra a própria paixão e, no narrar, experimenta nova paixão. Tem
que traduzir sinais desconhecidos para língua também desconhecida (PSGH, 15); tem
que confrontar a linguagem ao seu avesso e, com toda a intensidade que é própria da
paixão, reproduz a experiência passional atualizando-a através da repetição. Assim,
pela impossibilidade da progressão da narrativa, tem-se no cadenciamento repetitivo a
paixão da linguagem.
Clarice, em A Paixão Segundo G.H., “conseguiu revolver os mais remotos veios do
pathos e uni-lo à sedução e ao fascínio da escrita, ao seu pouvoir aimant de l’
amoureux a expressão é de Roland Barthes poder amante, magnético, e
amoroso, compassivo”.
159
156
ROSSONI, 2002, p. 124.
157
Ibidem.
158
VARIN, em nota, questiona: “A personagem feminina G.H. seria andrógina? G.H. como gênero humano?”
2002, p. 72.
159
NUNES, 2002, p. 279.
90
O indizível me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem.
quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar sabendo que a voz diz
pouco, começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória
não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos
160
. Em matéria de
viver nunca se pode chegar antes. A via-crucis não é um descaminho, é a
passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o
nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este se chega quando se
experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a
desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais
sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E esta, é a
glória própria de minha condição.
A desistência é uma revelação. (PSGH, 113) (Grifos meus).
Que abismo entre a palavra e o que ela tentava [...] (PSGH, 44)
Cruel como o abismo é a paixão / uma faísca de Iahweh!
161
Mesmo que estejamos acostumados, quando ouvimos falar em “paixão”, a pensar num
tipo apenas dela: o amor apaixonado
162
, não se admite no contexto dessa obra que se
entenda o termo “paixão” enquanto amor ardente, conjugal; arrebatamento amoroso.
A narradora (autora implícita) mesma parece estar ciente que poderia haver alguma
confusão na compreensão do título por leitores incautos. Na verdade, Clarice os quer
“de alma formada” capazes de percorrer essa via-sacra profana para descobrir,
sofrida e lentamente, através do oposto do que se vai atingir, esta “alegria difícil” a
que chama paixão como adverte logo de entrada. Por isso esclarece: “eu era uma
mulher de quem se poderia dizer ‘vida e amores de G.H’” (PSGH, 102). E, mais
adiante: “Embora, quanto a meus desejos, a minhas paixões, [...] continuem sendo
para mim como uma boca comendo” (PSGH, 111).
160
CRISTO diz de si: “Eu sou o caminho”[...] “Ninguém vem ao Pai senão por mim”. Para G.H. a trajetória
somos nós mesmos”. Mais um travestimento de texto evangélico.
161
Ct 8,6.
162
Para RIBEIRO, 2002, p. 417, provavelmente quem por primeiro identificou o termo “paixão” ao
arrebatamento amoroso que se impôs definitivamente no uso habitual da palavra parece ter sido Stendhal.
Talvez essa acepção seja anterior a ele; “mas, de qualquer forma, foi ele quem deu ao amor-paixão sua melhor
e decisiva definição. Foi ele quem consumou a constituição da paixão como amor-paixão. em seu livro: Do
amor, escrito em 1820.
91
Aqui, esse termo ganha amplitude semântica: a paixão “pode ser igualmente força de
escrita” como quer Benedito Nunes. “Passional e apaixonante, esse texto de nossa
autora mergulha em veios arqueológicos, em camadas afetivas culturalmente
soterradas da sensibilidade humana”.
163
O curso histórico da palavra ‘paixão’ atesta a perda da riqueza cumulativa dos
significados distintos e correlatos que se constelaram no termo grego pathos, do
qual se originou. Filosoficamente, a avaliação do conceito respectivo – passividade
do sujeito, experiência infligida, sofrida, dominadora, irracional por oposição a
logos ou a phronesis, que significam pensamento cido e conduta esclarecida;
variou da posição problematizante dos filósofos gregos da época clássica
Sócrates, Platão e Aristóteles – à posição negativa dos filósofos estóicos e de seus
descendentes no início da época moderna, Descartes e Espinosa.
“O grego sempre viu”, afirma Dodds, “na experiência de uma paixão, algo de
misterioso e assustador, a experiência de uma força que está dentro dele, que o
possui em lugar de ser por ele possuída”. A própria palavra pathos o testemunha;
do mesmo modo que seu equivalente latino passio, significa aquilo que acontece a
“um homem, aquilo de que ele é a vítima passiva”.
164
E o crítico continua dizendo que Platão em A República: “viu na força da paixão ‘uma
fonte de energia que, como a libido freudiana, pode ser canalizada seja para uma
atividade sensual seja para uma atividade intelectual’.”
165
Daí concluir que a filosofia,
“paixão do pensamento”, porque condicionada afetivamente, seja também
“pensamento da paixão” na medida em que tenta compreender o irracional. “A crítica
da ilusão romântica — ilusão que não compromete a essência do romantismo — alerta-
nos contra a postura ingênua que reclama da literatura o puro espelhamento das
paixões”. De fato, por mais apaixonada e apaixonante que seja a narrativa, “a paixão
expressa já é a paixão passada, arrefecida, recordada, medida, distanciada”
166
.
Corroborando para este estudo, o mesmo Benedito Nunes atesta que o relato do
transe, ao qual se entremeia a compreensão que G.H. vai adquirindo de si própria, à
medida que interpreta a sua experiência uma experiência vivida, no dia anterior,
163
NUNES, 2002, p. 268 (grifo do autor).
164
NUNES, 2002, p. 270.
165
Ibidem, p. 271
166
Ibidem, p 271.
92
e por isso narrável —, se assemelha a uma “transposição da via mística se não for a
sua réplica parodística”.
Refere-se “ao misticismo stricto sensu, diferente da piedade religiosa, que se
desenvolveu em todas as culturas segundo padrões distintos e, às vezes, à margem da
religião institucionalizada: o caminho individual de acesso” à divindade, através de
uma experiência prática da qual resultará um desprender-se de si mesmo e da
realidade. Acesso que é tanto conhecimento interno
167
, contemplativo, quanto união e
desprendimento. “União amorosa para os cristãos, na base da crença de um deus
pessoal, liberação bramânica da verdadeira natureza divina do homem e liberação
budista da existência ilusória”
168
.
Para G.H. o retorno à origem concretiza-se como encontro pleno com o Outro não
humano numa união ritualmente consumada: ela comunga a barata, associando-a à
hóstia. “A escala dos sentimentos contrários que acompanham o transe amor e
ódio, desespero e esperança, alegria e dor nos é apresentada como uma trajetória
espiritual através de figuras teológicas e religiosas” sempre contraditórias: “santidade
e pecado, salvação e danação, pureza e impureza, inferno e paraíso. Repulsiva e
atraente, ominosa e numinosa, a barata assume as proporções de uma teofania; é um
numem, uma forma primitiva, interdita do sagrado”.
169
“O silêncio que se instaura, depois de G.H. suportar a experiência de comer da massa
branca da barata e a paixão de descrevê-la, está do lado da imanência, não da
transcendência”.
170
Sofrida conquista através da qual assimilará a matéria viva com a
vida divina; passa a negar a idéia de Deus enquanto ser transcendente e, a partir de
então, precederá sempre com artigo o nome de Deus, tornando-o comum. “Escuta
sem susto e sem sofrimento: o neutro do Deus é tão grande e vital que eu, não
agüentando a célula do Deus eu a tinha humanizado.” Na visão imanentista da
narradora, Deus e o homem passam a situar-se num mesmo plano ontológico.
167
Para usar uma expressão do místico santo Inácio de Loyola, equivalendo a um conhecimento que não se dá
intelectualmente. Para Inácio, “o que sacia e satisfaz a alma não é o muito saber, mas o sentir e saborear as
coisas internamente"”(Exercícios Espirituais, 2). A expressão “sentir e saborear as coisas internamente”,
entretanto é ainda anterior a Inácio, comum a místicos medievais.
168
NUNES, 2002, 271.
169
Ibidem, p. 276-7
170
SÁ, 1979, p.203.
93
O inferno é o meu máximo. Eu estava em pleno seio de uma indiferença que é
quieta e alerta. E no seio de um indiferente amor, de um indiferente sono
acordado, de uma dor indiferente. De um Deus que, se eu amava, não
compreendia o que ele queria de mim. Sei, Ele queria que eu fosse o seu
igual, e que a Ele me igualasse por um amor de que eu não era capaz, [...] Ele
queria que eu fosse com ele o mundo. Ele queria minha divindade
humana, e isso tivera que começar por um despojamento inicial do
humano construído [...]. (PSGH, 81. Grifos meus).
Mas a narradora que não agüenta “a célula do Deus” (PSGH, 94), e que também não
suporta atravessar a paixão da narrativa, pede auxilio; traz o leitor para dentro de sua
paixão implicando-o na dor da travessia que se faz; então, segura a mão de seu
interlocutor para auxiliá-la ao longo da narrativa, a fim de que seja capaz de suportar
relatar o ocorrido. “Estou tão assustada que só poderei aceitar que me perdi se
imaginar que alguém me está dando a mão” (PSGH, 13).
Isso faz com que se recorde do início da paixão de Jesus, no Getsêmani, quando, em
extrema angústia, também tem um interlocutor, que o auxilia: (“Apareceu-lhe um anjo
do céu, que o confortava”. Lc 22,44).
Porém, enquanto G.H. roga: “Toma o que vi, livra-me de minha inútil visão, e de meu
pecado inútil” (PSGH 13), Jesus recusa o “livra-me” em sua súplica: “Minha alma está
agora conturbada. Que direi? Pai, salva-me desta hora? Mas foi precisamente para
esta hora que eu vim. Pai, glorifica o teu nome” (Jo 12,27). Enquanto G.H., na
derrocada de seu relato, teme ter que refazer o caminho traçado na véspera e busca
libertar-se da paixão de narrar, Jesus, por sua vez, assume conscientemente a
chegada da sua hora e se oferece à morte para realizar a obra do Pai, manifestando o
seu amor ao mundo (“Pai, glorifica o teu nome”) (grifos meus).
Mesmo segurando uma mão imaginária e gritando livra-me” reconhecendo como
inútil tudo o que vivera a narradora bem sabe: “a ignorância da lei do irredutível
não me escusava. Eu não poderia mais me escusar alegando que não conhecia a lei”.
Em seu conflito, conhece, então que “o pecado renovadamente original é este: tenho
que cumprir a minha lei que ignoro, e se não cumprir a minha ignorância, estarei
pecando originalmente contra a vida” (PSGH, 63. Grifos meus).
94
E se rebela contra a imensidão de um poder de quem nada vislumbra: “No jardim do
Paraíso, quem era o monstro e quem não era? [...] Até que ponto vou suportar nem ao
menos saber o que me olha?” Por isso necessita tanto do apoio de seu interlocutor;
necessita tanto segurar aquela mão: Não me abandones nesta hora, não me
deixes tomar sozinha esta decisão já tomada
171
”. (PSGH, 63. Grifos meus).
Sempre tendo como fundamento o arquétipo bíblico do paraíso, a narradora, que
caminha para a despersonalização, anseia: “Seremos inumanos e como a mais alta
conquista do homem. Ser é ser além do humano” (PSGH, 110)
É que se parece com o paraíso, onde nem sequer posso imaginar o que eu faria,
pois posso me imaginar pensando e sentindo, dois atributos de se ser, e não
consigo me imaginar apenas sendo, e prescindindo do resto. Apenas ser
isso
me daria uma falta enorme do que fazer (PSGH, 111).
Mas “apenas ser” é muito mais, porque anterior a tudo o que se possa fazer “Como
é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em relação: a ser? e no
entanto não outro caminho” (PSGH, 10). Assim também a realidade é mais que a
linguagem, porque vem antes dela. “A realidade antecede a voz que a procura, mas
como a terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o homem [...] a vida
antecede o amor, [...] e por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do
silêncio” (PSGH, 113).
O crítico Luiz Costa Lima, em ensaio sobre essa obra, afirma que A Paixão Segundo
G.H. forma uma espécie de via mística, “cujas etapas são dadas pela passagem de
cada um dos círculos convergentes. A diferença com a experiência mística reconhecida
seria a de que ela aqui não leva à comunhão da alma com Deus, mas ao Seu encontro
nas coisas que compõem o presente humano”
172
. G.H. não objetiva à interioridade,
como os místicos, mas à despersonalização como “a maior exteriorização a que se
chega” (PSGH, 112). Daí o crítico colocar ênfase não no sagrado, mas na experiência
profana que advém desse percurso de autoconhecimento do qual a personagem-
narradora sai transformada.
171
Pedido em que ecoa, por exemplo, o Sl 138 (137),8. Durante a paixão de Jesus, ele vem como expressão do
sentimento de já se ter sido abandonado, fruto da angústia na cruz: Deus meu, Deus meu, por que me
abandonaste?” é uma oração retirada do Sl 22,2 e que, no Salmo, é seguida por uma certeza jubilosa de
triunfo final. Cf. Mc 15,34; Mt 27, 45.
172
LIMA, 1969, p. 119.
95
Não há, pois, como contestar o misticismo ainda que “às avessas”, como quer Costa
Lima dessa autora complexa. Essa tendência mística perpassa essa e outras obras
suas e ultrapassa qualquer nível de especulação racional. Isso se devido a um
sentido de mistério comumente presente em seus escritos e que transparece,
sobretudo, através da experiência epifânica a qual quase sempre chamará de
“estado de graça” de suas personagens. Essa epifania se agrega à base mesma da sua
escritura, modulando as experiências textuais.
Pois de sua plenitude /todos nós recebemos /graça por graça
173
Merece ressalva, para que se compreenda em sua inteireza a mística da paixão, o
golpe da graça” (PSGH, 110), um sinônimo para “paixão”, segundo a narradora. G.H.
nos alerta para isso desde o início do relato: “É difícil perder-se. É tão difícil que
provavelmente acharei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de
novo a mentira de que vivo.” Não obstante a certeza da dificuldade de se perder, a
narradora sabe que[...] perder-se significa ir achando [...]” (PSGH, 9), mas que para
isso ela precisa estar isenta de si mesma.
É então que, através de uma sensação estranha e inquietante de nojo e usea
“era-me nojento o contato com essa coisa” (PSGH, 56) G.H. se liberta de sua
moralidade. E acaba por ver a questão moral
174
como esmagadora, mais: mesquinha; e
critica a ética cristã: “‘O escândalo ainda é necessário, mas ai daquele por quem vem o
escândalo’
175
era no Novo Testamento que estava dito? A solução tinha que ser
secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo” (PSGH, 57).
Mas o segredo não resolve, não apaga a culpa: “mesmo em segredo, a liberdade não
resolve a culpa” (PSGH, 57). Repassa, então, seus pecados, o aborto que realizara;
rejeita a realidade externa e suspende seu compromisso com a lógica do real, sendo
gradualmente envolvida pelo sono, visão, vertigem... até atingir, em processo
epifânico, o mistério da condição humana. Experimenta o peso de viver e uma
173
Jo 1,16.
174
ROSEMBAUN, 1999, p. 167, afirma: “O topos do comer transgressor marca a perda da moralidade
estabelecida, passando por uma nova moral revertida da anterior para, enfim, culminar na anulação das
diferenças e oposições. O momento intermediário sinaliza-se pela reversão do bom e do ruim, do certo e do
errado: ‘Comer a massa da barata é o anti-pecado, pecado assassino de mim mesma’, diz G. H.”
175
Mais uma citação explícita da Bíblia: Mt 18,7; Lc 17,1.
96
profunda carência e, enfim, deduz: “O amor é tão mais fatal do que eu havia
pensado[...]. Falta apenas o golpe da graça que se chama paixão” (PSGH, 109).
Pois o estado de graça existe permanentemente: nós estamos sempre salvos.
Todo o mundo está em estado de graça. A pessoa é fulminada pela doçura
quando percebe que está em estado de graça, sentir que se está em graça é que
é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si. Mas não há perigo de
perdição, agora eu sei: o estado de graça é inerente. (PSGH, 93-4)
Para chegar a esse “estado de graça”, G.H. passa por muitos estados e sentimentos
contraditórios “o sofrimento gozoso, o ‘horrível mal-estar feliz’, o abrasamento
consolador, a repulsão e atração da união mística. Mas a sua experiência menos cristã
e mais pagã, espelha o caráter orgiástico de um misticismo primitivo”
176
. Orgia de
Sabah, demoníaca, através da qual a personagem extravasa tudo o que está latente,
reprimido em si. E na qual entra ao atravessar seu deserto.
Sua via mística, ainda que pagã, é “via-crucis” e vem recheada de referências bíblicas,
sobretudo ao próprio Cristo. Termos que remetem a uma realidade sacra, transbordam
nessa obra, tais como as definições de Deus, vocábulos como "fé", “pecado”,
“santidade”, tentação”, “provação”, "paixão", "milagre", "santos", “demônio”,
"punição", “paraíso”, “inferno”, "danação", “redenção”, "transcendência", “êxtase”,
"sacrifício", etc, etc., além de expressões como "fruto proibido", “árvore da vida”,
referências à vida dos santos, citações explícitas da Bíblia.
E G.H., paradoxalmente, enquanto nega a transcendência de Deus, fá-la acontecer
pela impossibilidade humana de superar a própria carência. Assim, a imanência, desejo
último da protagonista, reverte-se de novo em transcendência sem que ela própria se
dê conta.
estou procurando, estou procurando [...]” a transcendência de Deus
substituída pela atualidade do ser acaba por culminar em “[...] E então adoro.
176
NUNES, 2002, p. 277.
97
A paixão de Cristo é a humanidade. A sua humanidade assumida, verbo encarnado.
Viver nossa condição é a paixão, paixão de Cristo.
O cristão c que, ao comungar, participa do corpo de Cristo; é assimilado por Ele e
n’Ele se transforma. Na experiência de G.H. dá-se também a transformação, que
invertidamente. a despersonalização. Ela se perde como pessoa para alcançar-se
como ser. “A despersonalização como grande objetivação de si mesmo.” “[...] Mas
apenas em imanência, porque alguns atingem o ponto de, em nós, se
reconhecerem. E então, pela simples presença da existência deles, revelarem a nossa.”
(PSGH, 112) Através do desejo do ser que se requeima na paixão da existência, traça
caminho em direção ao outro. Encontrar-se-á, ao descobrir-se participando do ser que
lhe é oposto e estranho. Seja a barata ou, em extremo oposto, o Deus.
Na perspectiva cristã, a Paixão de Jesus narrada segundo Mateus, Marcos, Lucas e
João é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a redenção da
humanidade. Será recompensada pela Ressurreição. A Paixão de G.H. se numa via-
sacra profana que a leva do entender ao não entender, do pensar ao adorar; em todo
caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais alto grau de prazer e
martírio. “A via-crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega
senão através dela e com ela.” (PSGH, 113). A isto ela chama paixão: “E é aceita a
nossa condição como a única possível, que ela é o que existe, e não outra. E que
vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo.” (PSGH, 112).
98
Conclusão
Oh! chama de amor viva [...]
Matando, a morte em vida me hás trocado.
São João da Cruz
Mãe, não entendo nada do que você escreve;
mas é tão bonito como a Bíblia.
(Clarice a Pedro Bloch sobre elogio
que ela recebeu de um de seus filhos.)
Clarice Lispector, enquanto sua mãe esteve viva, praticou os rituais judaicos
177
e
estudou as Escrituras Sagradas com o professor Moyses Lazar
178
. Certamente, seguiu
sendo uma leitora voraz dessa literatura, que se apropriou tanto dela para construir
a sua a ponto de “decalcar” seus textos, rasurá-los, tomá-los por tema... utilizá-los
transtextualmente de formas diversas.
A escritora, consciente ou inconscientemente, apropriou-se desse “Grande Código” ao
construir seu quinto romance; o que se pode constatar analisando tanto a poética
quanto a mística que o perpassam. Ambas tem raízes na literatura bíblica.
De estrutura circular, A Paixão Segundo G.H. não começa, continua; não termina,
aponta para a continuidade. Rompe com a tradição, com o enredo factual. A própria
estrutura é um convite à reflexão, posto que, enquanto obra aberta, deixa espaço para
que nela se penetre não sem partilhar também da paixão e saia livremente,
porém carregando as marcas de quem “vive” o romance. Foi assim com o Crucificado;
também saiu carregando as marcas da Paixão. Aliás, através delas é que foi
reconhecido depois de ressuscitado
179
.
177
Sua mãe morreu quando Clarice tinha apenas nove anos. Esses dados estão presentes em VARIN, 2002, pp.
27 e 56.
178
Segundo pesquisa de KANAAN, 2003, p.98.
179
Jo 20, 20.25.27.
99
Clarice rompe, pois, com o enredo, pela estrutura cíclica, narrativa iniciada por seis
travessões indicadores da volta da personagem da experiência epifânica a ser contada.
G.H. prepara-se para uma ação exterior trabalho físico não obstante concretiza
um trabalho interior místico/psíquico.
Rompe também com o espaço, extremamente reduzido e inexplorado (sala em que
tomava café / corredor / quarto da empregada) que, posteriormente, através do fluxo
da consciência/ “visão”, se estenderá aos “telhados de outras terras e terras de outros
tempos.” Traçará seu percurso do espaço real (apartamento de cobertura, no Rio de
Janeiro) para o virtual místico/bíblico, e, então, da emersão do inconsciente,
sobressairá o espaço interno pessoal e profundo deserto/silêncio usado como
lugar místico pela personagem; e, por conseguinte, a própria obra trará a marca mais
do espaço virtual que do real.
A linguagem, no romance, incide na comunicação, na comunhão, na epifania;
portanto, ela própria conduz à perspectiva teológica, que essas são características
do encontro com o plenamente Outro: Aquele-que-é”. Ousando no campo da
linguagem, Clarice cria, plasma o real, possibilita a sondagem introspectiva que vai se
desagregando das camadas humanas de G.H., enquanto identificada, na essência do
seu ser, à barata.
O motivo imediato do relato prende-se à contemplação de uma foto sua: “Na minha
fotografia eu via O Mistério” (PSGH, 18).
Mistério que lhe é revelado às avessas, que a sua experiência é como o oposto de
algo. Ela, na sua superficialidade, era “a imagem do que não era”; daí deduz: “eu tinha
o lado avesso: eu pelo menos tinha o ‘não’, tinha o meu oposto (PSGH, 22). Entra
no quarto-minarete, que reverbera em luz e que é o “retrato de um estômago vazio”.
O quarto é o avesso de sua casa, cheia de sombras e umidade: “O quarto era o
oposto do que eu criara em minha casa, o oposto da suave beleza que resultara de
meu talento de arrumar, de meu talento de viver, o oposto de minha ironia serena, de
minha doce e isenta ironia: era uma violação das minhas aspas” (PSGH, 29). “Entra”
enfim, na barata “ser feio e brilhante. A barata é pelo avesso.” “Era uma máscara”
(PSGH,50). (Grifos meus).
100
A barata é pelo avesso e, como G.H. tem que passar pela barata, sua narrativa
também atravessa o avesso, o reverso da mística e da Escritura Bíblica. Assim é
que Clarice constrói sua obra através de uma desconstrução anterior, por
sobreposição, ou, como quer G.H., ela “decalca”.
A “missão secreta” da vida da protagonista é a deseroização de si mesma: “A
despersonalização como grande objetivação de si mesmo. [...] A gradual deseroização
de si mesmo é o verdadeiro trabalho que se labora sob o aparente trabalho, a vida é
uma missão secreta. [...] não tenho nome” (PSGH, 112). Perdendo o próprio nome,
G.H. perde também a identidade. Todo substantivo possui um nome. Perde, por
conseguinte, o que é próprio do ser humano. Coisifica-se. Iguala-se à barata. Mais:
Nadifica-se. Deseroiza-se. Assim, sua missão secreta seria, na verdade, deixar a
própria humanidade.
Por outro lado, a linguagem utilizada dessacraliza versículos bíblicos, enquanto a
sondagem introspectiva chega às vias da experiência mística.
Nada mais místico que a Paixão! A Paixão de Jesus narrada segundo Mateus, Marcos,
Lucas e João é o máximo do sofrimento experimentado pelo Filho de Deus para a
redenção da humanidade. O Cristo se humaniza ao extremo da paixão. Já a Paixão
de G.H., dupla paixão: a de viver e a de relatar o que viveu, se numa via-sacra
profana; em todo caso, da morte à vida tendo suposto um defrontar-se com o mais
alto grau de prazer e martírio, desumanizando-se, igualando-se a todo e qualquer
ser.
G.H., em sua paixão, deixa a humanidade, deseroizando-se, em uma complexa
transposição da experiência do Verbo encarnado. Sim, porque a paixão de Cristo
começa quando se encarna, quando deixa a divindade para assumir nossa
humanidade. A cruz é a culminância de seu esvaziamento:
Ele tinha a condição divina,
e não considerou o ser igual a Deus
como algo a que se apegar ciosamente.
Mas esvaziou-se a si mesmo,
e assumiu a condição de servo,
101
tomando a semelhança humana.
E, achado em figura de homem,
humilhou-se e foi obediente até a morte,
e morte de cruz!
180
Importa notar que esse hino cristológico prossegue fazendo referência ao nome: “Por
isso Deus o sobreexaltou grandemente/ e o agraciou com o Nome/ que é sobre todo o
nome, para que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho [...]”
181
. E G.H, ainda sem um
nome, pode, enfim, concluir seu relato: “A vida se me é, e eu não entendo o que digo.
E então adoro. ” (PSGH, 115).
Ao passar pela paixão o Homem de Nazaré é, de novo, incorporado ao Pai, na glória:
“Por isso Deus o sobreexaltou grandemente [...]”. Ao se desumanizar, G.H., protótipo
do Gênero Humano, reconhece ser este o único caminho para, de novo, alçar à
condição humana:
A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar
porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a
altura de poder cair
posso alcançar a despersonalização da mudez se antes
tiver construído toda uma voz. Minhas civilizações eram necessárias para que eu
subisse a ponto de ter de onde descer. [...] então minha natureza é aceita,
aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos
acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única
possível, já que ela é o que existe, e não há outra. E que vivê-la é a nossa
paixão. A condição humana é a paixão de Cristo. (PSGH, 112. Grifos meus).
De fato, como reiteradamente aqui se tem afirmado, existem nesse romance
claríssimos ecos bíblicos: nas transposições de textos tanto do Antigo quanto do Novo
Testamento; no uso da inclusão, dos dualismos e paradoxos; nas alusões explícitas ou
implícitas à história de Israel; na etimologia de palavras que tenham uma importância
especial no conjunto das obras do Pentateuco (a Torá judaica) e Proféticas; na forma
poética comum aos livros sapienciais, nos temas escolhidos, na vocação para o
sublime que sua narrativa tem, etc.
180
Fil 2,6-8.
181
Fil 2, 9-10. Grifo presente na Bíblia de Jerusalém.
102
Claro está que o tema não foi esgotado neste trabalho. Há muito que se explorar nessa
perspectiva nas obras de Clarice. Mesmo em “A Paixão Segundo G.H.” se poderia
estudar, por exemplo, dentro do crivo místico, a oposição claro x escuro
particularmente incidindo sobre a “missa branca” e a “magia negra”, termos assim
designados pela narradora; além de um aprofundamento na numerologia, a partir da
Cabala.
Interessantíssimo também seria um estudo sobre a “fuga” em suas obras. É incrível a
incidência desse tema que certamente tem suas raízes na itinerância de um povo
em diáspora nas obras de Clarice. Isso desde Joana, de Perto do Coração Selvagem,
passando inclusive por suas obras infanto-juvenis, até a migrante Macabéa, de A Hora
da Estrela. Esse estudo poderia ser realizado, obviamente, em paralelo com a vida da
autora, que nasceu quando a família fugia à perseguição aos judeus, na Rússia; que,
no Brasil, migrou dentro do Nordeste e, depois, de para o Sudeste; que viveu em
diversos países do mundo (“a grandeza do mundo me encolhe” PSGH, 14)
acompanhando seu marido, um embaixador; e que, conseqüentemente, teve seus dois
filhos em países distintos: Pedro, na Suiça, e Paulo, nos Estados Unidos.
Talvez por ter estado, ao longo de sua vida, quase sempre a caminho e, também,
pelo fato da Páscoa (passagem) ser o cerne do Judaísmo , é que Clarice Lispector
tenha feito sua Obra como travessia.
E, se isso é comum em toda a sua Obra, fica patente, após este estudo, como se
essa travessia em A Paixão Segundo G.H. Aqui uma tripla passagem que, como
tripé, sustenta uma à outra: a travessia do hipotexto (Bíblia, Paixão de Cristo) ao
romance; a travessia da personagem, descese do humano ao inumano; a travessia do
discurso, que se como uma tradução passional entre signos desconhecidos:
“Precisarei com esforço traduzir sinais de telégrafo traduzir o desconhecido para
uma linguagem que desconheço, e sem sequer entender para que valem os sinais”
(PSGH, 15).
Assim, Clarice comunica a experiência de G.H., personagem e narradora, e a sua
própria ao seu leitor ideal: “pessoas de alma formada”, capazes também de
atravessar o deserto, refazer a PAIXÃO, porque “sabem que a aproximação, do que
103
quer que seja, se faz gradualmente e penosamente atravessando inclusive o
oposto daquilo que se vai aproximar”
Traduzir uma parte
na outra parte
que é uma questão
de vida ou morte
será arte?
Ferreira Gullar
104
sumé
182
En comparant A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, avec la Bible, à partir d’une
approche transtextuelle, on montre que l’Écriture Sainte est l’hypotexte du roman et
le “grand code” pour qu’on puisse le comprendre plus profondément, et que le
personnage G.H. vit sa Passion comme une expérience mystique opposée à celle du
propre Christ. Si celle-si s’accomplit parce que le Fils de Dieu assume notre humanité,
celle-là se présente comme l’envers de la Passion biblique: G.H fait sa traverssée en
perdant sa propre humanité. L’auteur s’approprie la poétique et les thèmes bibliques,
en camouflant leurs textes, en lacérant leurs tissus.
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182
Tradução de Dilma Castelo Branco Diniz.
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Anexo
116
Com o intuito de auxiliar o leitor, nem sempre familiarizado com a literatura bíblica,
transcrevo abaixo, da Bíblia de Jerusalém, abreviaturas dos 73 livros bíblicos.
Agrupo-os segundo seus gêneros literários:
ANTIGO TESTAMENTO (AT):
Pentateuco (Torá):
Gênesis Gn
Êxodo
Ex
Levítico Lv
Números Nm
Deuteronômio
Dt
Históricos:
Josué
Js
Juízes Jz
Rute Rt
Samuel 1Sm, 2Sm
Reis 1Rs, 2Rs
Crônicas
1Cr, 2Cr
Esdras Esd
Neemias Ne
Tobias Tb
Judite Jt
Ester Est
Macabeus 1Mc, 2Mc
Sapienciais:
Salmos Sl
Provérbios Pr
117
Eclesiastes (Coélet) Ecl
Cântico Ct
Sabedoria Sb
Eclesiástico (Sirácida) Eclo
Proféticos:
Isaías Is
Jeremias Jr
Lamentações Lm
Baruc Br
Ezequiel Ez
Daniel Dn
Oséias Os
Joel Jl
Amós Am
Abdias Ab
Jonas Jn
Miquéias Mq
Naum Na
Habacuc Hab
Sofonias Sf
Ageu Ag
Zacarias Zc
Malaquias Ml
NOVO TESTAMENTO (NT):
Evangelhos:
Mateus Mt
Marcos Mc
Lucas Lc
João Jo
118
História da origem cristã:
Atos dos Apóstolos At
Epístolas do Apóstolo Paulo:
Romanos Rm
Coríntios 1Cor, 2Cor
Gálatas Gl
Efésios Ef
Filipenses Fl
Colossenses Cl
Tessalonicenses 1Ts, 2Ts
Timóteo 1Tm, 2Tm
Tito Tt
Filemon Fm
Hebreus Hb
Epístolas Católicas:
Epístola de Tiago Tg
Epístolas de Pedro 1Pd, 2Pd
Epístolas de João 1Jo, 2Jo, 3Jo
Epístola de Judas Jd
Revelação:
Apocalipse Ap
As citações são feitas do seguinte modo: a rgula separa capítulo do versículo (Gn
3,1: Livro do Gênesis, cap. 3, v.1); o ponto e vírgula separa capítulos e livros (Gn 5,1-
7; 6,8; Ex 2,3: nesis, cap.5, vv. de 1 a 7; cap. 6, v. 8; Livro do Êxodo, cap. 2, v.
3); o ponto separa versículo de versículo, quando não seguidos (2Mc 3,2.5,7-9: 2
º
119
Livro dos Macabeus, cap. 3, vv. 2,5 e de 7 a 9); o hífen indica seqüência de capítulos
ou de versículos, sendo que, na seqüência de capítulos, o hífen é espacejado (Jo 3 – 5:
Evangelho segundo João, capítulos de 3 a 5).
Assim como para os livros bíblicos utilizam-se abreviaturas, também para as obras de
Clarice Lispector opta-se por utilizá-las; o que, aliás, é de praxe entre seus
estudiosos. Então teremos (cronologicamente) as seguintes referências: Gênero,
segundo aparece na própria publicação, alguns dos quais são largamente questionados
por críticos; título; abreviaturas; (data da primeira publicação):
Contos para crianças:
O mistério do coelho pensante MCP (1967)
A mulher que matou os peixes MMP (1968)
A vida íntima de Laura VIL (1974)
Quase de verdade
QV (1978)
Como nasceram as estrelas CNE (1987)
Romances:
Perto do coração selvagem
PCS (1944)
O lustre
LU (1946)
A cidade sitiada
CS (1949)
A maçã no escuro
ME (1961)
A paixão segundo G. H.
PSGH (1964)
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres
ALP (1969)
A hora da estrela
HE (1977)
Ficção:
Água viva
AV (1973)
Prosa:
120
Um sopro de vida SV (1978)
Contos e textos curtos:
Alguns contos AC (1952)
Laços de família LF (1960)
A legião estrangeira LE (1964)
Felicidade clandestina
FC (1971)
A via crucis do corpo
VC (1974)
Onde estivestes de noite
OEN (1974)
A bela e a fera
BF (1979)
Crônicas:
Para não esquecer PNE (1978)
A descoberta do mundo
DM (1984)
“Impressões leves”:
Visão do esplendor
VE (1975)
Entrevistas:
De corpo inteiro
CI (1975)
Cartas:
Correspondências. Clarice Lispector CCL (2002)
Coletânea:
Outros escritos OE (2005)
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