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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)
FACULDADE DE LETRAS (FALE)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS (PÓS-LIT)
A PALAVRA EMPENHADA: RECURSOS RETÓRICOS NA
CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE
FRANCISCO ADOLFO DE
VARNHAGEN
Laura Nogueira Oliveira
Belo Horizonte, Abril/2007
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Laura Nogueira Oliveira
A PALAVRA EMPENHADA: RECURSOS RETÓRICOS NA
CONSTRUÇÃO DISCURSIVA DE
FRANCISCO ADOLFO DE
VARNHAGEN
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, da Faculdade de Letras da Universidade
Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do
título de Doutor em Literatura Comparada.
Área de Concentração: Literatura Comparada
Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. José Américo de Miranda Barros
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
Abril/2007
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Aos meus filhos, Alice e Marcelo, e ao Orlando,
meu companheiro, com amor.
AGRADECIMENTOS
Comecei a redigir este agradecimento muito, mas muito antes de ter conseguido
colocar um ponto, pelo menos provisório, na redação desta tese. Em incontáveis momentos,
quando lia um texto teórico ou folheava um documento – material recolhido em diferentes
espaços – as Bibliotecas da UFMG, a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, a Biblioteca
do Colégio Militar da Luz, a Biblioteca da Fundação Calouste Gulbenkian, a Biblioteca da
Faculdade de Psicologia e Ciência da Educação, o Arquivo Histórico Militar, a Biblioteca
Nacional, todos em Lisboa – sempre me vinha à mente as inúmeras mãos pelas quais todos
aqueles materiais tinham passado, antes de chegar às minhas. Nesses momentos, lembrava-
me e sentia saudades das pessoas que possibilitaram o acesso a eles.
Ler um documento recolhido na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, por
exemplo, é trazer à memória o cheiro muito particular da sala de Obras Raras, com sua
enorme altura e beleza; mas é também lembrar dos funcionários que, de tantas vezes
solicitados, nas várias visitas realizadas ao estabelecimento, acabavam até mesmo sabendo
qual é nosso objeto de pesquisa.
Mas falar em biblioteca, é sobretudo lembrar aquela do Colégio Militar; é lembrar
de seu Nunes, de Natividade e de Luiza. Seu Nunes, funcionário aposentado, foi quem me
recebeu, num frio dia de meados de fevereiro quando, pela primeira vez, entrei naquele
estabelecimento. Foi ele, circundado pela Natividade e Luiza, quem me escutou com uma
paciência e um interesse enormes: afinal, o que trouxera aquela brasileira ao bicentenário
Colégio da Luz? Sua atenção logo foi traduzida na prontidão em me fornecer livros e mais
livros descidos e empilhados para que eu pudesse ler e pedir, lá no xerox, para seu Pernas e
a outra d. Luiza reproduzirem para mim. Todas estas pessoas não foram apenas prestativas,
foram amigas. Nos horários do almoço nos divertíamos avaliando como nossa língua era
igual e simultaneamente diferente. Fica aqui registrado meu sincero e eterno agradecimento
aos funcionários do Colégio Militar da Luz: Maria Natividade Afonso Correa Rodrigues,
Luisa Amélia Figueiredo Ortigão Coimbra Neves e a Manuel Marcelino Nunes. Além
deles, agradeço imenso ao Coronel José Alberto da Costa Matos, porque foi graças a sua
solicitude que tive acesso ao Arquivo morto da Secretaria do Colégio, assim como consegui
retirar, em tempo hábil, os documentos do Arquivo Histórico Militar. Foi ele ainda quem
me ensinou a pesquisar no fichário daquela Instituição, possibilitando-me chegar
exatamente aos documentos que me interessavam.
Mas é preciso lembrar das bibliotecas próximas, aquelas várias que compõem a rede
de Bibliotecas da UFMG; dentre elas, destaco a Biblioteca da Faculdade de Letras, onde as
solícitas funcionárias inúmeras vezes auxiliaram-me a encontrar um livro perdido entre as
prateleiras ou pesquisaram a possível existência de um livro em outras bibliotecas do
Brasil. Agradeço aqui, em especial, a Rosângela.
A todos estes funcionários e a inúmeros outros, agradeço o acesso que me
facultaram aos materiais que possibilitaram a redação da presente tese. Certamente sem a
colaboração de todos eles, não teria como redigir o presente trabalho.
Agradeço às funcionárias da secretaria do Pós-Lit, na figura de Letícia Magalhães
Munaier Teixeira, que sempre se mostram atenciosas e cuidadosas na realização de seu
ofício. Ao longo dos últimos anos, várias vezes as informações por elas prestadas foram
mais do que importantes para me orientar.
Agradeço à CAPES pelo financiamento da pesquisa em Portugal. Agradeço aqui,
em especial, às competentes e prestativas funcionárias da Instituição, Aline Chanes e
Valdete Lopes, que resolveram todas as questões burocráticas da bolsa-sanduíche e que
garantiram minha sobrevivência, sem sobressaltos, em Lisboa.
Agradeço ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFMG por ter-
me aceito entre seus discentes. Afinal, apesar de vir de uma área vizinha, não sou formada
em Letras. Agradeço a todos os professores do Programa pelos cursos ministrados e, em
especial, aos professores Jacyntho Lins Brandão, Georg Otte e Marcus Vinicius de Freitas.
À professora Maria Cecília Bruzzi Boechat, que analisou e avaliou o projeto final e
que compôs a banca da qualificação, agradeço imenso. Mas agradeço, antes de tudo, por ela
ter sido o “porto-seguro” que me acolheu no momento de angústia de reelaboração dos
capítulos que compõem esta tese. Agradeço o carinho, a paciência e o interesse então
demonstrados.
Logicamente agradeço em especial a meu orientador, professor José Américo de
Miranda Barros. Foi ele quem, antes mesmo do projeto inicial ser aprovado na seleção,
apoiou minha pretensão. Depois, permaneceu um fiel mestre, sempre pronto a despender
inúmeras horas de leitura conjunta, correção e revisão dos textos preparados. Foi também
ele quem, no decorrer do processo, apoiou a reviravolta que resolvi realizar no projeto
inicial. A ele sinceramente agradeço a honestidade e a sinceridade que têm marcado nosso
relacionamento acadêmico, iniciado há exatos dez anos.
Agradeço também, ao professor Kazumi Munakata, da Pontifícia Universidade de
São Paulo, pela competência e precisão com que leu o texto da qualificação. Porém, muito
antes dessa leitura, o professor Kazumi foi um orientador ex-ofício, indicando-me inúmeras
e preciosas referências bibliográficas e, inclusive, enviando-me material que desconhecia
ou a que não tivera acesso. Agradeço de coração a disponibilidade para ler meus e-mails e
compartilhar meus interesses.
Ao professor Justino Magalhães, da Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação da Universidade de Lisboa, agradeço o pronto aceite em me orientar durante o
período de pesquisa desenvolvido em Lisboa. As conversas mantidas com o professor
Justino e sua competência em me orientar foram fundamentais para o sucesso do trabalho
realizado. Agradeço a atenção e o interesse com que sempre me atendeu, apresentando-me
a Universidade, suas bibliotecas, assim como realizando comigo os primeiros passos na
Biblioteca Nacional de Lisboa. Foi também graças a sua presença na primeira visita oficial
ao Colégio Militar que obtive autorização para pesquisar nos arquivos daquela Instituição.
No final do período de doutoramento, pude contar com uma mais que preciosa
liberação do trabalho, concedida pelo Cefet-MG. Agradeço ao Conselho Diretor que
decidiu pela extensão do direito a essa liberação aos funcionários em período probatório.
Agradeço nas pessoas do diretor-geral da Instituição, professor Dr. Flávio Antônio dos
Santos, e da diretora da Uned-Divinópolis, professora Sandra Vaz Soares Martins. Ao
serviço público federal agradeço o reconhecimento do direito de o profissional desejar e
buscar seu aperfeiçoamento profissional.
É certo que minha gratidão é eterna a todos meus familiares. Ao Orlando, meu
companheiro, amigo e confidente, que comigo compartilhou todos, absolutamente todos os
momentos de angústias e de alegrias, não tenho palavras para agradecer. Meu muito
obrigada. A meus filhos, Alice e Marcelo, peço desculpas pela cabeça ocupada, ao longo de
tantos anos, com um objeto de estudo. Agradeço a eles a compreensão que sempre
demonstraram diante de uma mãe que várias vezes se ausentava ou que não partilhava um
cinema ou um feriado. Mas a tarefa um dia chega ao fim, e eles, talvez mais do que eu,
sabiam disso. Muito obrigada.
Aos meus irmãos, Eduardo e Gustavo, agradeço o interesse e o incentivo para seguir
adiante. Reparto com eles, e com meus pais, Geraldo e Hilze, a alegria da tarefa encerrada.
Muito obrigada.
Se a retórica faz ao homem moderno o efeito de um fantasma caricato,
como pretender interessá-lo pela tópica, cujo nome é apenas conhecido,
mesmo pelo especialista de literatura que evita deliberadamente os
subterrâneos – e também as fundações! – da literatura européia?”
CURTIUS, Ernst Robert. La literature européenne et le Mayen Age latin. Paris:
1956.
La langue est l’arme la plus sûre pour établir une domination durable,
et les grands écrivains sont de vrai conquérants.
BOISTE, Pierre Claude Victoire. Dictionnaire universel de la langue française
avec le latin e les étynologie, extrait comparatif, concordance, critique et
supplément de ses dictionnaires. Paris: H. Verdière, 1823.
Há verdades acerca das quaes o historiador deve proceder como o
dramaturgo, que esconde de traz dos bastidores o que julga conveniente
á melhoria da sua producção.
VARNHAGEN, F. A. Como se deve entender a nacionalidade na História do
Brasil. Anuário do Museu Imperial. Petrópolis: Ministério da Educação e
Saúde, 1948 (1852).
RESUMO
A tese é um estudo das prescrições estabelecidas, por Francisco Adolfo de Varnhagen, para
a escrita da história. Fugindo de possíveis tentações de anacronismo, recuperou-se o
significado por ele atribuído ao fato de que, para se escrever a história, era preciso que o
historiador fosse, a um só tempo, erudito, filósofo e literato. Simultaneamente, dialogou-se
com a tradição crítica varnhageniana e analisou-se como ela compreendeu aqueles
pressupostos. Por fim, analisaram-se textos escritos por Varnhagen, demonstrando como
ele, formado que fora em Humanidades, lançava mão de recursos discursivos retóricos
próprios a cada um dos diferentes gêneros de discurso literário que praticava.
ABSTRACT
This thesis is a study of the rules established by Francisco Adolfo de Varnhagen for writing
history. Escaping from the possible lures of anachronism, he attributed the recovery of
meaning to the fact that, in order to write history, the historian should not only be a scholar
but also a philosopher and a man of letters. Simultaneously, a dialogue was engaged with
the Varnhagenian critical tradition and the way it perceived those assumptions was
analyzed. Finally, critical texts written by Varnhagen were also analyzed showing how his
background in Humanities helped him to make use of the rhetorical discourse resources that
characterize each of the different genres of literary discourse that he used.
SUMÁRIO
Introdução ...........................................................................................................................12
Capítulo 1 Sem factos muito averiguados, não existe matéria de que escrever historia..24
1.1. O reconhecimento do erudito.....................................................................................31
1.2. O problema da citação ...............................................................................................34
1.3. Ranke revisitado ........................................................................................................42
1.4. Varnhagen revisitado .................................................................................................45
Capítulo 2 O historiador como luz e guia para a marcha da nação ................................56
2.1. A historia magistra.....................................................................................................63
2.2. A philosophia e a tradição crítica da obra de Varnhagen ..........................................73
Capítulo 3 Deve pois, alguma vez que outra, o historiador sentir como os poetas, e
expressar-se como elles........................................................................................................79
3.1 A questão do estilo na Correspondência ativa............................................................86
3.2. A questão do estilo nos textos prefaciais...................................................................96
3.3. O estilo varnhageniano segundo a recepção crítica .................................................105
Capítulo 4 Um aluno do Real Colégio Militar................................................................114
4.1. Sobre a grade curricular do Real Colégio Militar....................................................120
4.2. Sobre o ensino de literatura no Real Colégio Militar ..............................................126
Capítulo 5 A polêmica entre Varnhagen e M. d’Avezac..............................................135
5.1. Defesa prévia ...........................................................................................................139
5.2. As restrições de d’Avezac........................................................................................153
5.3. A réplica...................................................................................................................158
Capítulo 6 A Descrição do Brasil na 2ª edição da HGB ...............................................168
6.1. Sobre os retoques feitos na Descrição geral do Brasil.............................................171
6.2. A proposição ............................................................................................................173
6.3. A descrição ..............................................................................................................179
6.4. O leitor posto em cena .............................................................................................197
Capítulo 7 Varnhagen, biógrafo.....................................................................................204
7.1. Varnhagen e o gênero demonstrativo ......................................................................206
7.2. Biografias redigidas para a Revista do IHGB..........................................................209
7.3. Sobre os personagens históricos na HGB ................................................................218
7.4. A biografia de Tiradentes na HGB ..........................................................................221
Considerações finais .........................................................................................................233
Bibliografia........................................................................................................................241
Anexos................................................................................................................................251
Anexo 1. Registo dos Alumnos do Real Collegio Militar
Anexo 2. .Registo dos Termos de Concurso as Cadeiras e Substituições
Anexo 3. Processo de José Frederico Pereira Marecos no Arquivo Histórico Militar
Anexo 4. Matricula dos alumnos do 3º anno lectivo
Anexo 5. Real Colegio Militar – Termo dos Exames Finaes Nº 2
Introdução
13
Há tempos o historiador italiano Carlo Ginzburg encanta seus colegas brasileiros.
Sensível e erudito, ele desperta a curiosidade de seu leitor e é capaz de prendê-lo em uma
teia narrativa que prima pela clareza e pela fluidez. As qualidades de seu texto são
sobretudo resultantes de um aguçado espírito investigativo e de uma poderosa capacidade
analítica. Ginzburg apresentou os fundamentos de seu método de trabalho e de seu modelo
analítico em um texto publicado na revista italiana Crisi della ragione.
1
Sob a epígrafe
“Deus se esconde nos detalhes”, convidava seu leitor a conhecer um modelo de
identificação de obras artísticas desenvolvido, no final do século XIX, pelo médico
Giovanni Morelli. Como estudioso de obras de arte, Morelli se preocupava com a
existência, nos museus, de inúmeras peças cujas atribuições autorais estavam equivocadas.
Advertia, entretanto, que era preciso desenvolver ferramentas apropriadas de análise para se
fazer a correta atribuição. Segundo Morelli, os historiadores da arte se concentravam nos
traços mais evidentes de um artista, os quais eram, exatamente por isso, aqueles que com
mais facilidade um falsário reproduzia. Por isso não conseguiam nem distinguir as obras
falsas das verdadeiras e nem identificar a autoria de obras que permaneciam espúrias.
Morelli propunha então, segundo Ginzburg, um novo método de trabalho: era preciso se
ater aos traços mais sutis – que marcariam, estes sim, a obra de um artista. O estudioso
deveria aprender a concentrar sua atenção e a identificar os traços menores, aparentemente
desprezíveis e sem importância para a própria escola do autor. O método consistia em um
cuidadoso registro de detalhes característicos, por meio dos quais o artista se revelaria e
cuja imitação seria impossível, e em uma aguçada habilidade para prestar atenção e para
perseguir detalhes minúsculos, aparentemente desprezíveis, que a outros passariam
completamente despercebidos. Um método de trabalho que se baseava na valorização e na
atenção às minúcias, aos “detalhes marginais e irrelevantes enquanto chaves reveladoras”.
2
1
O texto original em italiano foi publicado em 1979 e recebeu, no Brasil, duas traduções e publicações
distintas. Cf. GINZBURG, 1989; GINZBURG, 1991. O texto de Carlo Ginzburg, mais que uma apresentação
ou descrição de um modelo, é uma utilização do paradigma teórico indiciário. Como um mestre de ofício que
é capaz de desempenhá-lo com maestria e, exatamente por isso, também capaz de explicá-lo, Ginzburg expõe
o método em uma ação simultânea à sua utilização.
2
GINZBURG, 1991, p. 97. Segundo Ginzburg, Morelli colocou em seu livros minuciosos registros de lóbulos
de orelhas, formatos de mãos, de dedos e de unhas, porque acreditava que seria nestes lugares pouco comuns
que o artista efetivamente deixava impressa sua individualidade. Foi graças a esse método que Morelli
corrigiu, afirma Ginzburg, “cerca de uma dezena de autorias em algumas das principais galerias da Europa”.
Cf. GINZBURG, 1991, p. 90. Segundo Ginzburg, apesar de ter sido extremamente criticado em sua época,
por se ater apenas a pormenores ditos insignificantes, o método proposto por Morelli acabou por influenciar
14
Ginzburg nos lembra como “o conhecimento do historiador é indireto, baseado em
signos e fragmentos de evidências, conjectural”.
3
Esse conhecimento se funda em
conjecturas formuladas a partir da interpretação de sinais deixados por uma realidade que
não mais podia ser diretamente observada, mas que, nem por isso, permaneceria
desconhecida. Se o passado não se encontra mais diante de nossos olhos, é inacessível
diretamente, ele não é, contudo, impossível de ser recuperado. É a existência de evidências
do passado que nos permite ter acesso a ele.
Porém, é preciso que o historiador apure a sensibilidade e a capacidade para ler as
marcas e os sinais mais ínfimos deixados pelos homens que já se foram. É preciso
efetivamente prestar atenção nos detalhes, porque seria neles, ou por meio deles, que se
encontrariam as chaves para a decodificação dos significados ocultos, talvez inacessíveis
por outros métodos. Trata-se de aprender a articular as pistas disponíveis para compreender
as concepções de mundo, os valores culturais e morais de realidades passadas que talvez
não sejam mais os nossos. Enfim, é preciso desenvolver a capacidade de perceber para além
das aparências imediatas e de reconstituir, por meio de uma imaginação controlada, mundos
que sob nossos olhos não se encontram mais.
No presente trabalho seguem-se os ensinamentos de Carlo Ginzburg. Aqui
perseguiram-se detalhes e pormenores de declarações de Francisco Adolfo de Varnhagen,
nas quais abordava os preceitos que seguira ao escrever sua obra de história. Foram
investigados os recursos utilizados em sua construção discursiva, para se buscar
compreender a forma como o historiador oitocentista estruturava seus textos. Entre o
homem que prescrevia sobre o modo como se deveria escrever a história e o historiador a
escrever seus textos havia um elo: a formação escolar que estruturara um literato, segundo
o significado que tinha, à época, a palavra. Varnhagen foi um homem das letras e foi esse
Arthur Conan Doyle em sua criação ficcional: o detetive Sherlock Holmes. Em suas aventuras, esse detetive
se esmerava para desvendar e resolver intrigantes e aparentemente insolúveis mistérios. Ginzburg lembra que
também Freud declarou a profunda impressão positiva que o método de Morelli havia exercido sobre si, antes
da elaboração da teoria da psicanálise. O nascimento da psicanálise teria, assim, com declaração explícita de
seu fundador, um vínculo estreito e documentado com a proposta investigativa de Morelli.
3
GINZBURG, 1991, p. 105.
15
literato que se pretendeu encontrar e compreender: perseguiram-se marcas e sinais deixados
por ele, tanto em suas declarações quanto em seus próprios textos.
Os três primeiros capítulos desta tese foram dedicados, respectivamente, à análise
do significado atribuído por Varnhagen às três qualidades que um historiador deveria
possuir para redigir um trabalho de história. Essas qualidades foram por ele apresentadas a
D. Pedro II, Imperador do Brasil, em 1852, num texto a ele dirigido e intitulado Como se
deve entender a nacionalidade na História do Brasil.
4
Trabalho pouco conhecido e citado,
Como se deve entender (...) foi o texto onde Varnhagen apresentou, discutiu e defendeu, de
modo sistematizado e organizado, aqueles pressupostos que o haviam orientado na redação
da HGB. Afirmava, então, ser preciso “assentarmos bem quaes sejão reconhecidamente os
dotes necessarios ao historiador”.
5
E, sem rodeios prescrevia que um historiador deveria
ser, simultaneamente, erudito, filósofo e literato.
Em todos os três capítulos, o esforço realizado foi o de não cobrar de Varnhagen
conceitos e atitudes similares aos nossos. Se ele dizia que um historiador deveria possuir
aquelas três qualidades, interessa, antes de mais nada, interrogá-lo e permitir-lhe que
exponha e explique suas idéias. De alguma forma, buscou-se dar a ele a voz e, com esse
intuito, foram vasculhados seus escritos em busca de passagens capazes de nos auxiliar a
ouvi-lo.
4
Esse texto foi lido, no mesmo ano, na Academia da História de Madri, segundo informação do próprio autor,
que naquele ano trabalhava na embaixada brasileira na Espanha. Cf. VARNHAGEN, 1857, tomo II, p. XV,
nota. Esse texto somente foi publicado em 1948, no Anuário do Museu Imperial. Segundo Clado Lessa,
Varnhagen foi removido da legação brasileira em Lisboa para a de Madri em janeiro de 1847, como adido de
primeira classe. Em junho de 1847, foi promovido a secretário. Em novembro de 1851, depois de uma estadia
no Brasil, foi promovido a Encarregado de Negócios do Brasil, junto ao governo espanhol, cargo que
implicava a direção da legação. Varnhagen ocupou esse cargo até dezembro de 1858, quando foi promovido a
Ministro Residente e transferido para Assunção, no Paraguai. Sobre a carreira de Varnhagen na diplomacia
brasileira, cf. LESSA, 1954, v. 223, p. 144-181. Avaliando o estudo de Clado Ribeiro Lessa sobre Varnhagen,
José Honório Rodrigues afirma ter sido ele o mais apaixonado e engagé biógrafo do historiador. Cf.
RODRIGUES, 1967, p. 171. Realmente, conforme se poderá verificar ao longo deste trabalho, Lessa foi um
defensor incondicional tanto da obra quanto das posições assumidas pelo Visconde de Porto Seguro. Do
mesmo modo que seu biografado, Lessa era um ardoroso defensor da monarquia e das idéias de extermínio
dos indígenas brasileiros. Exatamente por esta admiração incondicional de Lessa por seu biobliografado,
encontramos nele uma rica fonte de informações sobre Varnhagen. Lessa preocupou-se em dar notícias
minuciosas de toda a obra intelectual de Varnhagen.
5
VARNHAGEN, 1948 (1852), p.229.
16
Como fontes privilegiadas para o recorte desses trechos, além do texto em questão –
Como se deve entender a nacionalidade... –, utilizou-se a correspondência mantida por
Varnhagen, ao longo de toda a sua vida, com diversos destinatários, assim como os textos
prefaciais que redigiu para algumas de suas obras de história.
Varnhagen correspondia-se com personalidades importantes – como, por exemplo, o
Imperador do Brasil, o primeiro-secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
ou o bibliotecário da Biblioteca de Évora – e em suas cartas expunha as concepções que
possuía acerca do trabalho da escrita da história.
6
Nelas, Varnhagen cuidadosamente
mencionava, em várias oportunidades, suas descobertas arquivísticas, suas visitas a
bibliotecas e arquivos, seus trabalhos finalizados ou em andamento e sugeria pesquisas a
serem realizadas. Conversando com seus pares, revelava suas preocupações e investimentos
intelectuais, afirmava-se como um homem do mundo das “letras”, palavra que empregava
para se referir à sua produção intelectual. Nesse caso, muito para além de uma possível
relação de amizade ou de intimidade, as cartas podem ser lidas como um esforço de
Varnhagen para a construção de sua imagem como um homem devotado à pesquisa e ao
trabalho intelectual.
A escolha dos textos prefaciais, como fonte documental privilegiada, justifica-se
pela própria natureza desse gênero de discurso, que faz, desses textos, a ocasião para a
explicação e defesa da obra, por parte do autor. Trata-se, portanto, de um tipo de fonte que
auxilia muito na compreensão das intenções e convicções do autor. Seguem-se aqui os
estudos de Gérard Genette, que englobou-se na categoria de prefaciais todas as espécies de
textos escritos “à propôs du texte qui suit ou qui precede”.
7
Segundo Genette, o prefácio
ganhou, na era do livro impresso, autonomia frente ao texto que o antecede ou segue e
adquiriu características lingüísticas específicas.
8
No século XIX, existia uma regra lógica
que presidia à redação de prefácios, uma dispositio retórica
9
ou uma gramática da
6
A correspondência ativa de Varnhagen foi coligida por Clado Ribeiro de Lessa. Cf. LESSA, 1961.
7
GENETTE, 1987, p. 150.
8
GENETTE, 1987, p. 150-152.
9
Como ensina Roland Barthes, a retórica foi um grandioso sistema de classificação da linguagem e de
reflexão sobre ela, ou uma metalinguagem que tinha como objeto a produção de discursos armados para a
persuasão, ou ainda “um programa destinado a produzir discurso”, que “reinou no Ocidente, desde o século V
antes de J.C. até o século XIX da era cristã”. Cf. BARTHES, 1975, p. 148, 151, 178, 181. A mesma opinião é
partilhada por Pierre Guiraud que afirma terem sido as regras modelares para os gêneros transmitidas de
forma dogmática, desde a Antigüidade até os começos do século XIX, quando ainda prevaleciam rigidamente
17
enunciação, que estabelecia a ordem de exposição dos argumentos: geralmente se fazia a
defesa prévia da obra, argumentando ser ela uma arte útil seja no plano moral e ou cívico,
porque seu objeto estaria inscrito nos qualificativos de verdade, utilidade, seriedade,
moralidade e humanidade.
10
Esses textos também se distinguem pela autoria, e Genette
denomina “auctoriale” ou “autographe” aqueles em que o autor assume a responsabilidade
pelo prefácio. Nesse tipo específico de prefácio, o autor da obra pretendia monitorar e
controlar a leitura, apontando e indicando a seu leitor motivos para iniciá-la e levá-la
adiante. Tratava-se, então, de conquistar o leitor no prefácio e, para tanto, o autor lançava
mão de inúmeros recursos da retórica. Uma estratégia comumente adotada pelos autores
para alcançar a benevolência do leitor consistia em apresentar-se como incapaz diante da
grandiosidade do tema tratado. Desse modo, valorizava-se a obra, destacando a relevância,
a importância e a pertinência do tema/objeto abordado, assim como as vantagens
intelectuais, documentais, morais, sociais e/ou políticas alcançadas com sua leitura. Outro
recurso retórico empregado nos discursos prefaciais consistia em destacar o esforço
empreendido pelo autor para alcançar a verdade dos acontecimentos. Segundo Genette,
esses dois tipos de valorização da obra foram comumente utilizados em prefácios de obras
de história e teóricas.
11
Varnhagen redigiu textos prefaciais “auctoriales”, dirigindo-se diretamente a seu
leitor e utilizando a instância prefacial para apresentar e explicar as intenções, idéias e
conceitos que o orientaram na redação da obra em questão. Por um lado, ele buscava
convencer seu leitor da boa intenção que o movera ao redigi-la, apresentando-a como
resultado de anos de pesquisa e reflexão em busca da verdade histórica. Por outro, pretendia
as formas e convenções – de um estilo próprio para cada gênero: um para o épico, outro para o dramático, um
outro para o histórico e assim sucessivamente. Levado o raciocínio às últimas conseqüências, a arte de
escrever se reduziria à escolha do gênero mais adequado ao pensamento que se deseja exprimir: “A cada
gênero correspondem modos de expressão necessários e rigorosamente definidos, que determinam não
sòmente a composição, como também o vocabulário, a sintaxe, as figuras e os ornamentos”. Ainda segundo
Guiraud, a expansão dos gêneros literários, com suas preceptísticas próprias, iniciada na Grécia antiga, onde
se distinguiam os gêneros em prosa daqueles em verso, alcançou a Idade Média, quando os antigos e rígidos
formulários de composição foram recolhidos e referenciados. Na Renascença, assistiu-se a um renovado
interesse pela questão dos gêneros literários, e a noção de gênero permaneceu inalterada. Os gêneros
continuaram compreendidos como conjuntos de regras a serem respeitadas e obedecidas pelo escritor quando
se pusesse a escrever sobre determinado tema ou objeto. A noção de gênero tornou-se a base da produção
literária e subdividiu-se em categorias cada vez mais numerosas. Cf. GUIRAUD, 1970 (1954), p. 18, 25.
10
Gérard Genette remete seu leitor ao trabalho de H. Mitterand sobre textos prefaciais redigidos para
romances no século XIX. Cf. MITTERAND, 1980, p. 31.
11
GENETTE, Gérard, 1987, p 184.
18
guiar seu leitor em direção ao que considerava ser a correta leitura e compreensão da obra.
É possível afirmar que esses textos formam um conjunto, devido à similitude que guardam
entre si. Serão considerados como prefaciais todos os textos que ele escreveu a propósito de
suas obras, inclusive as dedicatórias endereçadas a D. Pedro II.
A força da argumentação varnhageniana nesses textos prefaciais não pode ser
menosprezada. Afinal, o autor não apenas buscava demonstrar a solidez de seus princípios,
como pretendia garantir que eles não ficassem diluídos ao longo da obra. Contudo, apesar
da importância a eles atribuída por Varnhagen, uma parte deles não se encontra mais
acessível à grande maioria dos leitores de sua obra, que sequer sabe que eles foram um dia
escritos.
Em 1854 e 1857, respectivamente, Varnhagen publicou o primeiro e o segundo
volumes de sua História geral do Brasil (HGB). Em 1877, essa obra foi reeditada em
Viena, após ser “muito augmentada e melhorada pelo autor”, conforme ele informa a seus
leitores, no frontispício da obra. Essa segunda edição serviu de base à terceira, completa,
realizada apenas em 1927 pela Editora Melhoramentos. Tal edição, que tem servido de base
a todas que se seguiram, foi realizada sob os cuidados de Rodolfo Garcia, que a ela
adicionou um prefácio esclarecedor do histórico da obra e do trabalho que empreendera.
Graças aos cuidados de Garcia, é possível saber que, em 1906, Capistrano de Abreu
redigira notas para uma terceira edição da HGB, a qual, em virtude de um incêndio que
destruiu a oficina impressora, terminou por ser apenas de um terço da obra. As anotações
de Capistrano foram conservadas e ampliadas por Rodolfo Garcia. Na quarta edição
integral da HGB, realizada em 1948, a Editora Melhoramentos acrescentou um Aditamento
ao prefácio redigido por Rodolfo Garcia, no qual informava a realização de supressões à
obra. Foram então retiradas, sem que maiores explicações fossem dadas ao leitor, as
Dedicatórias a D. Pedro II, os Prefácios e um Prólogo redigidos por Varnhagen tanto para
a primeira como, acrescidos e/ou modificados, para a segunda edição de sua obra. Nas
edições posteriores da HGB essas supressões foram conservadas.
Contudo, Varnhagen conservou e mesmo ampliou o número de textos prefacias na
segunda edição da HGB. O fato de ele destacar um conjunto de idéias e de apresentá-las em
um ou mais textos prefaciais comprova a importância por ele atribuída a esse tipo de
19
trabalho – de redação de um texto para apresentar e reafirmar a defesa de seus princípios.
Parece razoável dizer que a eliminação deles nas reedições da obra privou o leitor atual de
compartilhar e compreender as preocupações, desejos e, inclusive, os pressupostos que
haviam orientado e movido Varnhagen.
Além desses textos prefaciais suprimidos das últimas reedições da HGB, foram
também utilizados os prefácios redigidos por Varnhagen para o Florilégio da poesia
brasileira, para a História das lutas com os holandeses no Brasil e para a História da
independência do Brasil.
Como Varnhagen entendia o texto prefacial como um texto didático ou um locus
privilegiado para a tomada de posição do autor frente a seu objeto e a seu leitor, neles
encontramos inúmeras passagens em que o autor expunha o que significava ser um
historiador erudito, filósofo e literato. O prefácio era para ele um espaço de prescrição e de
reflexão sobre a obra em questão, e de diálogo com seu leitor – mas não se tratava,
entretanto, de trocar idéias, mas de apresentá-las como as únicas corretas e possíveis.
O leitor dos três primeiros capítulos sentirá uma tendência à repetição dentro de
cada um deles. Varnhagen foi um autor que inúmeras vezes reafirmou suas concepções e,
de certa forma, assim como ele o fez, procurou-se, aqui, um efeito duplamente calculado:
favorecer uma aproximação a seus pressupostos para a escrita da história e mostrar como
ele categoricamente reafirmou suas concepções.
Os três primeiros capítulos constituem, em suma, um subconjunto, no qual se
buscou um diálogo com Varnhagen, mas também com a crítica especializada sobre a obra
do autor, a fim de compreender tanto as qualidades por ele apresentadas e defendidas como
dotes indispensáveis a todo aquele que se dedicasse à missão de ser um “historiographo”,
quanto o de verificar até que ponto essa crítica tem lido anacronicamente as qualidades
apresentadas e defendidas pelo autor ou, pelo menos, não procurou compreender as
filiações das idéias varnhagenianas.
No primeiro capítulo, destacamos as referências feitas por Varnhagen a seus
trabalhos nos arquivos e sua consciência da importância da pesquisa para a escrita da
história. Varnhagen definia o que entendia por erudição e prescrevia ser ela um dote
indispensável àquele que se dedicasse à tarefa de escrever a história. Contudo, a par das
20
incansáveis e inúmeras pesquisas que realizou, veremos como Varnhagen foi um
historiador parco em citação. Em sua perspectiva, o historiador deveria ser visto como um
homem douto, um pesquisador e conhecedor das provas, que “extratava” o que encontrava
nas fontes, o que o eximiria da tarefa de cuidadosamente citar. Neste aspecto, Varnhagen se
revela um historiador um tanto afastado do ideal moderno de historiador, que deveria citar
para corroborar suas assertivas. Simultaneamente, se aproxima do historiador previsto por
Cícero, para quem o historiador deveria ser imparcial e dizer apenas a verdade.
12
Como
prová-lo? Com sua palavra: Varnhagen compreendia o ato de escrever a história como a
realização da tarefa de um erudito que apresentava suas conclusões e sentenças respaldado
no grau de autoridade e de reconhecimento que alcançara para si. O historiador apresentava
para seu leitor o veredicto histórico imparcial e inquestionável.
No segundo capítulo, resgatamos o preceito varnhageniano de que o historiador
devia ser, além de um erudito, também um filósofo. Como filósofo, ele resgataria do
passado as ações dignas de serem louvadas e eternizadas; ao mesmo tempo, a história
castigaria os maus, eternizando sua desonra. A seu ver, à história estava reservada a missão
de ministrar lições de virtude e de incentivar sua imitação e emulação: a história era útil por
ser a “mestra da vida”, como haviam prescrito Cícero e Políbio, dentre outros que redigiram
louvores à história, na Antigüidade.
13
No terceiro capítulo, estudamos o último dos preceitos que, segundo Varnhagen,
deveria um historiador seguir. Só seria historiador aquele que fosse literato. Para ele, um
autor deveria escrever segundo os preceitos estabelecidos e os modelos reconhecidos para
os diversos gêneros literários. Varnhagen apresentava-se como homem de letras, que
dominava as discussões em voga sobre a adequação dos gêneros a temas específicos e,
sobretudo, como um autor capaz de bem realizá-la. Para isso, lançava mão de seu
aprendizado de retórica e atualizava, a seu modo, em seus textos, práticas discursivas
prescritas e revisitadas desde a Antigüidade clássica. Isso implica afirmar que, no contexto
de seu tempo, elas ainda eram reconhecidas como válidas e corretas.
12
Segundo Hartog, as “regras básicas” ciceronianas para o historiador seriam: “não ousar dizer nada de falso;
não ousar dizer nada que não seja verdadeiro; não ser suspeito de complacência ou rancor”. Cf. HARTOG,
2001, p. 181.
13
Hartog que a fórmula da história fornecedora de exemplos se transformou em “um lugar-comum” nos
elogios da história”. Cf. HARTOG, 2001, p. 183.
21
O quarto capítulo desta tese é dedicado à análise da primeira formação de
Varnhagen como literato. Recupera-se aqui o aluno do Real Colégio Militar (RCM),
matriculado, aos onze anos de idade, naquele internato militar dedicado à preparação de
oficiais para o Exército português. Como aluno do Real Colégio, Varnhagen realizou, em
seus primeiros três anos de escolarização, estudos em línguas – latim, português, francês e
inglês – e em literatura. Essa formação em línguas e em literatura guarda, contudo, uma
especificidade própria ao tempo: ao estudar línguas e literatura, os alunos eram, à época,
formados em retórica.
14
A análise do significado que tinha à época o ensino de literatura foi
feita, no presente capítulo, a partir de uma prova de concurso, realizado no RCM, para o
provimento de uma vaga para professor de língua e literatura portuguesa. O candidato
aprovado foi professor de literatura do aluno Francisco Adolfo de Varnhagen. Este capítulo
constitui uma ponte entre as posições assumidas pelo historiador, estudadas nos três
primeiros capítulos, e sua prática concreta da escrita da história.
Nos três últimos capítulos desta tese, foram analisados textos varnhagenianos de
diferentes gêneros: polêmica, descrição e biografia. Em todos eles prevaleceu a pretensão
de desnudar os recursos discursivos empregados e revelar o literato, preocupado com o
aperfeiçoamento de sua linguagem, com a composição de seus textos e com a eficácia a ser
alcançada. Nesse sentido, os textos de Varnhagen foram estudados com vistas ao
desvelamento das intenções partidárias que o moviam a redigi-los. Simultaneamente,
pretendeu-se verificar a atualização dos preceitos retóricos realizada pelo autor em suas
obras. Esses capítulos constituem, então, um segundo subconjunto nesta tese.
Entretanto, não se pode esquecer de que, para Varnhagen, o historiador deveria ser,
simultaneamente, erudito, filósofo e literato. Era sobre esse tripé que o historiador
estruturaria sua obra, que, por sua vez, tornar-se-ia irrealizável, se algum dos lados faltasse
14
O professor Roberto Acízelo de Souza estudou a presença marcante do ensino de retórica no Colégio Pedro
II, durante o século XIX. Cf. SOUZA, 1999. Sobre a permanência do ensino de retórica em Portugal, no
mesmo período, o professor Joel Serrão afirma que “o sistema de aulas de Humanidades ministradas por
professores régios (...) manteve-se para a generalidade dos discentes (...)”, no período que se seguiu à
revolução liberal de 1820. Cf. SERRÃO e MARQUES, 2002, p. 378-379. Sobre a permanência do ensino das
humanidades na França, Cf. CHERVE L e COMPÈRE, 1997.
22
a esse triângulo. É por isso que a escolha dos textos analisados não foi aleatória: ela recaiu
em gêneros distintos, mas também em textos ligados à HGB ou contidos nessa obra.
Pretendeu-se recuperar, de alguma forma, a inexistência, na perspectiva de Varnhagen, de
qualquer distância entre a retórica e a escrita da verdade histórica.
No capítulo 5, vamos encontrá-lo participando de uma polêmica com o então
presidente da Sociedade de Geografia de Paris, M. d’Avezac, em torno de como se deveria
escrever uma história nacional. Tratava-se, como hoje a entenderíamos, de uma discussão
acadêmica. Porém, a polêmica, como gênero literário, tinha regras específicas de
composição, e Varnhagen as empregou no debate. Visou-se, nesse capítulo, a analisar as
estratégias discursivas empregadas pelos debatedores. Ao mesmo tempo, analisou-se a
compreensão que os debatedores tinham da forma como se deveria escrever a história.
No capítulo 6, vamos encontrar o historiador Varnhagen preocupado com a
Descrição geral do Brasil, que, a partir da segunda edição da HGB, passou a ser o primeiro
capítulo da obra. Na primeira edição este capítulo era a oitava seção da obra. Para deslocar
o capítulo de lugar, ele o reescreveu – o estudo comparado das duas versões do texto
constitui o objeto do capítulo. A Descrição havia sido um dos temas discutidos na polêmica
com d’Avezac, estudada no capítulo anterior.
Por fim, no capítulo 7 encontraremos o Varnhagen biógrafo, nas páginas da Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e também nas de sua História geral. Das
páginas da Revista do Instituto, foram escolhidas as biografias de Eusébio de Matos e de
Antônio de Morais Silva; nas páginas da HGB, foi estudada a construção da personagem de
Tiradentes. Nesse caso, fez-se uma comparação entre a versão do trecho em que o autor
aborda a figura de Tiradentes na primeira edição da HGB e a versão publicada na edição
revista da obra – já que foram constatadas importantes alterações na composição do texto.
Juntamente com vários de seus contemporâneos, Varnhagen contribuiu para a formação de
um “panteão de heróis nacionais”.
Ao longo de toda a tese, utilizei textos escritos em épocas diferentes, em português
e em francês. Optei por conservar a ortografia da época. Por um lado, caso se uniformizasse
a ortografia, seria necessário adotar e explicitar uma regra geral para a atualização, o que
daria ao trabalho um outro caráter, que escapa aos objetivos da presente tese. Por outro,
23
conservar a ortografia da época ajuda a lembrar que estamos trabalhando com épocas
distintas da nossa. Se, num primeiro momento, o leitor pode se sentir tentado a acentuar
palavras ou mudar a pontuação dos trechos citados, com o correr da leitura, acredito, é
convidado a entender que tratamos com outros homens, iguais e distintos de nós. A
conservação da ortografia nos auxilia a sermos menos tentados pelo anacronismo. Por fim,
a conservação da ortografia da fonte utilizada traz outra preocupação. Como utilizei
largamente a Correspondência ativa de Varnhagen coligida por Clado Lessa, no início da
década de 1960, vi-me diante de outro problema: Lessa, segundo declara, atualizou a
ortografia das cartas por ele reunidas, mas não apresentou o critério adotado. Apesar desse
contratempo, mantive a ortografia e a pontuação das fontes utilizadas.
Capítulo 1
Sem factos muito averiguados, não existe matéria
de que escrever historia
1
1
O título deste sub-capítulo recupera e reproduz de forma proposital um trecho do texto aqui estudado.
25
Em Como se deve entender a nacionalidade na História do Brasil, o primeiro dos
preceitos apresentados por Varnhagen como fundamentais à escrita da história foi a
erudição:
Sem erudição no assumpto não existe matéria de que escrever historia, ou a obra
escripta, sem factos muito averiguados (por mais esmerada que seja a elocução) não
poderá ser recebida, sobretudo dos estrangeiros, senão como uma novella ou
romance provável.
1
Mais adiante, aclarava o que entendia por isso: “De tudo quanto dizemos temos
documentos que apparecerão em seu logar, e são elles que nos darão algumas convicções”.
2
Varnhagen manifestava, por um lado, a certeza de que, sem um seguro conhecimento de
fatos colhidos em documentos, não era admissível a escrita da história. Afiançava que suas
opiniões não eram simples conjecturas, mas frutos de averiguações documentais que
alicerçavam sua obra e fundamentavam seus pontos de vista. Por outro lado, vinculava a
boa recepção de uma obra de história exatamente à sua construção documentada.
Porém, apesar de asseverar ser a erudição um dos três preceitos necessários ao
historiador, ele foi o menos explorado pelo autor no texto em questão. Varnhagen limitou-
se a anunciar a importância da averiguação dos fatos e da escrita documentada da história,
mas nenhuma palavra disse acerca dos arquivos visitados, das pesquisas empreendidas, dos
desafios enfrentados, dos documentos encontrados e dos fatos averiguados. Enfim, se o
texto pretendia esclarecer o Imperador acerca dos dotes de um historiador, pouco se dizia
sobre a metodologia de trabalho empregada para que se tivesse “matéria com que escrever”
e para que se realizasse a “verificação dos fatos”. O que, afinal, significaria, para
Varnhagen, recolher matéria para se verificar fatos e escrever a história?
Se, no texto em questão, Varnhagen pouco explicitou o trabalho despendido para se
alcançar uma “erudição na matéria”, em sua correspondência particular, pelo contrário,
procurou não deixar dúvida sobre as atividades que realizava. Ao longo de toda sua vida,
ele pacientemente expôs, a alguns de seus correspondentes, o compromisso com a pesquisa
arquivística e com o resgate de documentos perdidos e de fatos históricos desconhecidos.
Nessas oportunidades ele clareava seu método de trabalho.
1
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 229.
2
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 233.
26
É nessa Correspondência que se pode ler, já em 1839, uma carta dirigida a Joaquim
Heliodoro da Cunha Rivara – então diretor da Biblioteca de Évora –, na qual lhe dizia estar
às voltas com a publicação das Reflexões críticas sobre a obra do colono brasileiro
seiscentista Gabriel Soares de Sousa. E, apesar de seu trabalho estar em fase de impressão
pela “Academia das sciencias”, solicitava informações sobre as três cópias manuscritas do
cronista existentes na Biblioteca de Évora: “Quizera o título, author e anno que encerram as
differentes copias; e da mais antiga dellas precizava do resultado de uma cotejação dos
nomes adulterados para publicar as variantes”; pedia ainda que se prestasse atenção em
possíveis marcas características existentes nesses códices, tais como: “algum signal, ou
numeração antiga ou moderna, encadernação curiosa, etc.”.
Logo na seqüência,
desculpava-se por sua pretensão de ensinar a Rivara como proceder frente a manuscritos:
“V. Sa. sabe melhor do que eu o que convem fazer, e por isso escusadas são explicações.”
Afinal, como bibliotecário, Cunha Rivara certamente sabia que, num trabalho de “cotejação
de exemplares”
3
de códices, o estabelecimento do original dependia de um criterioso
trabalho de identificação de todas as marcas e sinais perceptíveis.
Mas, além do pedido que encaminhava, Varnhagen redigia ainda uma lista com
observações sobre a “Notícia ou Catálogo de manuscritos feita por V. Sa”. Ao que tudo
indica, Rivara preparava uma listagem dos manuscritos existentes na Biblioteca de Évora e
Varnhagen, solícito, pretendera contribuir para complementá-la: fornecia informações sobre
a localização de cópias ou variantes daqueles manuscritos em outras bibliotecas e/ou já
impressos. Colocava-se à disposição.
Escrita ainda na juventude do autor, quando contava 23 anos de idade, a carta a
Cunha Rivara revela inúmeros pensamentos que orientavam o ânimo de Varnhagen em seu
trabalho inicial de pesquisador: a valorização da pesquisa documental em bibliotecas, a
3
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 21-22. Ao que tudo indica, Rivara atendeu ao pedido de Varnhagen, porque,
em carta datada de julho de 1839, desculpa-se pela demora em agradecer aos favores que lhe prestara Rivara.
Pela proximidade temporal entre a carta acima citada, datada de 3 de junho, e esta, do dia 13 de julho, parece-
me razoável supor que Rivara enviara as “notícias” sobre o códice de Gabriel Soares. Cf. Varnhagen in
LESSA, 1961, p. 25. Ao longo do segundo semestre de 1839, Varnhagen muitas vezes se referiu a seu
trabalho de preparação das Reflexões críticas nas cartas endereçadas a Rivara. Nessas oportunidades, foram
variadas suas reflexões em torno da obra de Gabriel Soares: discutia desde temas tratados pelo autor
quinhentista até a necessidade de uma nova edição de sua obra, assim como concluía ser impossível “se
imprimirem as ‘variantes’ resultantes da cotejação”. (grifo do autor) Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 25-
33.
27
insistência na busca de variadas versões de documentos manuscritos e uma infindável
crença no trabalho do pesquisador de restaurar os documentos originais por meio da
“cotejação”. Mas, sobretudo, a carta a Rivara revela, acredito, um jovem desejoso de
participar do círculo daqueles que “davam notícia” de “objetos de Bibliographia”. Por isso
fazia questão de informar a Rivara que tinha “relações com pessoas de muito saber nesta
capital”. Dentre elas, destacava a “amisade com o Redactor do Panorama o Sr. Alexandre
Herculano, que foi agora despachado Bibliothecario da Bib. Real, e poderá dar muita
notícia [sobre a localização de manuscritos e textos impressos]”. Ao mesmo tempo, não
titubeava ao afirmar que, se se tratasse de informações sobre “objecto litterario”, ele
próprio tinha “extenso conhecimento da Bibliographia Portugueza especialmente de
manuscritos sobre coisas ultramarinas, de que agora há tanta azáfama na Europa”.
4
Em outubro do mesmo ano de 1839, Varnhagen enviou ao então primeiro-secretário
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), Januário da Cunha Barbosa, uma
carta na qual solicitava que “se digne apresentar ao Instituto de que é digno secretário o
incluso exemplar de um escripto que acabo de publicar (...)”. Dizia-se então feliz por “ter
tido occasião de fazer algum serviço ao paiz em que primeiro vi o sol (...)” e esclarecia que
na confecção das Reflexões procurara estabelecer o texto e sua autoria, assim como não
poupara “a mínima occasião de dar noticias de muitos escriptos dignos de serem
conhecidos para constituírem os elementos necessários à historia e geographia do Brazil”.
Afinal, os “archivos e bibliothecas da Europa, especialmente os de Portugal, contêm tão
ricos e preciosos manuscriptos sobre o Império (...)”.
5
Varnhagen fazia, então, questão de
deixar registrado que, apesar de ainda ser um “jovem mancebo”, já era um homem
formado, que sabia ser importante recuperar a documentação para a escrita da história,
assim como sabia onde localizá-la e como tratá-la. Procurava convencer seus interlocutores
do quanto conhecia das bibliotecas e dos acervos portugueses e europeus.
Simultaneamente, registrava que, sem o conhecimento de tais documentos, seria impossível
a escrita da história do Brasil.
4
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 24. Seria casual Varnhagen colocar-se lado a lado de Alexandre Herculano?
Guilhermino César, ao comentar a avaliação feita por de Alexandre Herculano das poesias de Gonçalves Dias,
afirma que, na década de 1840, Herculano era o “pontífice das letras portuguesas”. Cf. CÉSAR, 1978, p.
XLVII.
5
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 39-40.
28
Meses antes de encaminhar suas Reflexões críticas ao IHGB, em agosto de 1839,
Varnhagen dirigia-se a Cunha Barbosa e declarava desejar “que o Público saiba quanto
antes desta meritoria acção onde tanto figura o nome de V. Sª, que eu desejo que todos
conheçam – porque gosto que se conheça o mérito e os serviços”.
6
Do mesmo modo como
desejava que o público reconhecesse o mérito de trabalhos alheios, parece razoável supor
que gostasse e desejasse que também os seus “méritos e serviços” fossem reconhecidos. E
para tal trabalhava. Certamente, quando escrevia a Cunha Barbosa, Varnhagen esperava
que seus esforços merecessem consideração e, nesse intento, foi duplamente feliz: sua carta
foi lida na sessão de 19 de dezembro de 1839 do IHGB e publicada no primeiro tomo de
sua Revista; e Varnhagen ainda foi agraciado com o título de sócio correspondente do
mesmo Instituto, que admitira, segundo Clado Lessa, os “dotes de historiador e analista
demonstrados nesse trabalho”.
7
Em seu primeiro retorno ao Brasil, em 1840, Varnhagen viajou para São Paulo e, de
lá, escreveu novamente a Januário da Cunha Barbosa, para relatar e enumerar as pesquisas
que empreendera naquela vila e as descobertas que fizera. Ele reafirmava a seu amigo que o
trabalho do historiador dependia da reunião dos documentos históricos e que era
imprescindível a ida aos locais onde tais documentos poderiam vir a ser encontrados.
Tenho folheado nesta cidade os livros e papeis dos Archivos da Camara Municipal,
e os de datas de sesmarias da antiga Provedoria da Fazenda, não me escapando o
cartório dos Jesuítas, que me forneceu alguns esclarecimentos; neste vim achar
também uma copia da doação de Pero Lopes de Sousa (...).
8
Em maio de 1842, depois de assumir o posto de adido à embaixada brasileira em
Lisboa
9
, tendo a missão de procurar e recolher em arquivos portugueses documentos
referentes à história do Brasil, Varnhagen escrevia a Januário da Cunha Barbosa:
6
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 31.
7
LESSA, 1961, p. 31, nota 3. Segundo Lessa, Varnhagen foi aceito como sócio correspondente em sessão de
25 de janeiro de 1840. Talvez o sucesso encontrado junto ao Instituto tenha estimulado Varnhagen a vir
pessoalmente ao Brasil. Em abril de 1840 escrevia a Cunha Rivara e anunciava sua decisão: “O meu anterior
destino era uma viagem à Alemanha, porém repentinamente mudei-o inteiramente. Vou ver os bosques
virgens da América meridional, e partirei até 5 do mez que vem. Não tenho ainda itinerário formado, nem
quero pensar nisso, pois me sujeitarei às circunstância”. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 47.
8
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 55.
9
Segundo Clado Lessa, Varnhagen teve sua cidadania brasileira reconhecida em 19 de fevereiro de 1842, e
em maio do mesmo ano era nomeado adido de primeira classe à legação em Lisboa. Cf. LESSA, 1954, tomo
223, p. 133-134. Informação similar é repetida em nota da Correspondência de Varnhagen; segundo Lessa,
sobretudo a partir de sua admissão como funcionário do serviço diplomático brasileiro, “Varnhagen pôde
29
Ainda bem que hoje, graças à munificencia do nosso Augusto Imperador, me acho
em situação muito favoravel, não só para me occupar em servil-a [servir à
Instituição, no caso o IHGB] já e directamente no que me encarregar, como pouco a
pouco e indirectamente, reunindo por mais antiga e espontanea vocação os
elementos para a organização de uma conveniente História Geral do Brazil, que é
este dos paizes que mais se proporciona quando haja os elementos ao novo methodo
de escrever a historia. Por ora ainda me acho no primeiro século, graças à riqueza
dos documentos que cada dia vou achando na Torre do Tombo, e de que por ora
não me occupo de tirar copias, porém só apontamentos. Na minha Memoria
intitulada – As primeiras negociações diplomáticas respectivas ao Brazil – se
encontram já muitos factos históricos, que pela primeira vez apparecem conhecidos.
(...) Porém, ainda que as minhas averiguações hoje sejam relativas às épocas mais
remotas, não me descuido de diligenciar e obter copias do que é importante ainda
mais moderno.
10
(grifo do autor)
Varnhagen segue listando e apontando os documentos referentes à história do Brasil
que já encontrara ou dos quais tinha notícias e pretendia localizar. Terminava afirmando
“que é quase exclusivamente à geografia e historia do nosso paiz, que o Instituto tanto tem
já fomentado, que se dedicam todas as minhas horas vagas”.
11
Fazia sobressair que o maior
serviço que poderia vir a prestar ao Instituto era o de reunir e organizar documentos
históricos para a redação, aí sim, de uma “conveniente”
12
história do Brasil. Ficava assim
entendido que todas as outras histórias do Brasil, escritas anteriormente e que não se
haviam pautado por preocupações semelhantes, não preenchiam os requisitos básicos para
se constituírem em obra de história. O “novo
methodo de escrever a historia”, ao qual se
referia, não podia prescindir da pesquisa documental.
Em sua correspondência, Varnhagen permanentemente repisou, sempre que era
oportuno, as atividades de pesquisa com as quais estava envolvido, solicitando e dando
informações sobre a localização de documentos em bibliotecas, referindo-se à necessidade
de serem cotejadas cópias de alguns manuscritos, anunciando suas visitas a arquivos e
dedicar-se de corpo e alma às pesquisas históricas, pois os trabalhos da chancelaria não lhe tomavam grande
parte do tempo”. Cf. LESSA, 1961, p. 83. O próprio Varnhagen nos informa de suas novas atividades. Em
carta dirigida a Cunha Rivara, em outubro de 1842, anunciava: “agora vou quase diariamente à Torre do
Tombo aonde ando em buscas sobre o Brazil, a quem já talvez saberá que estão ligados os meus destinos.
Admitiram-me lá com uma patente dos Engenheiros, ficando cá pela Europa em commissão litterária (...). Cf.
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 87.
10
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 92.
11
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 95. No mesmo ano de 1842, Varnhagen manifestava a seu amigo Cunha
Rivara a necessidade de se preparar para ler documentos antigos. Anunciava ao amigo: “Saberá que estou
matriculado na Paleographia da Torre do Tombo? (...) “Ah, se eu ainda venho a escrever uma historia da
Civilização do Brazil?”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 89.
12
Sobre o significado da palavra “conveniência” para Varnhagen, ver a discussão realizada no terceiro
capítulo da tese.
30
bibliotecas, enfim, demonstrando e reafirmando a importância de seus trabalhos e de suas
descobertas. Esse foi um comportamento por ele sempre adotado.
13
Assim, em 1854, à primeira edição do primeiro volume da HGB, Varnhagen
acrescentou um Supplemento, onde fazia, conforme declarava, “algumas addicções e
retoques [ao volume] (...) pelo encontro de muitos documentos, que antes desconheciamos,
e pelo exame de outros, que não tinhamos á mão.” Afirmava que resolvera publicar o que ia
encontrando, porque assim esperava contribuir para retirar “das trevas e do cahos” as
“verdadeiras fontes e mananciaes da nossa historia”.
14
Em 1877, decorridos vinte anos desde a finalização da primeira publicação da HGB,
e muitos anos mais desde a realização de suas primeiras pesquisas, ele permanecia fiel ao
princípio de que o aturado esforço de investigação era o caminho que tornava possível a
escrita da história e o encontro da verdade histórica. Na Dedicatória ao Imperador,
Varnhagen comunicava que a nova edição da obra tinha vantagens sobre a precedente
devido à “(...) maior cópia de factos apurados, como pela mais exacta apreciação de
outros”. Ressaltava ter a consciência tranqüila, porque sempre escrevera com escrúpulo e
imparcialidade, tratara “sempre de averiguar e de narrar os fatos”.
15
No Prólogo
16
,
reafirmava sua certeza quanto à importância da pesquisa e do levantamento documental
para a construção da história e destacava que sua obra era diferente de tudo que até então se
escrevera, porque era fruto de cuidadosas pesquisas e da busca da imparcialidade.
Fosse em suas cartas endereçadas a inúmeros correspondentes ilustres, fosse nos
textos prefaciais à sua HGB, Varnhagen insistia nos mesmos postulados; era com um ardor
de pesquisador incansável, de um amante de arquivos e bibliotecas que se referia às tarefas
de buscar e examinar papéis e livros antigos. Essa era a novidade e a razão da importância
de seu trabalho, conforme salientava. E esse tem sido o aspecto mais reconhecido de sua
obra pela crítica especializada que, desde o final do século XIX, destacou a enorme
importância de seu trabalho de pesquisa e de exegese documental. Trata-se de uma tradição
13
Cf. LESSA, 1961, p. 83.
14
VARNHAGEN, 1854, p. 481. (Supplemento).
15 VARNHAGEN, (1877). (Dedicatória). Deve-se observar que esse texto abria a obra, o que poderia
aumentar as chances de ser lido pelos leitores em geral.
16 VARNHAGEN, s.d. (1877), tomo I, p. V – XVII. (Prólogo).
31
que, tendo em João Capistrano de Abreu seu fundador, alcança nossa contemporaneidade
nos trabalhos de Arno Wehling.
1.1. O reconhecimento do erudito
Em 1878, João Capistrano de Abreu publicou um Necrológio de Varnhagen no
Jornal do Commercio. Tem-se aqui uma das primeiras leituras críticas de sua obra.
Capistrano destacava que a Varnhagen apaixonavam “problemas não solvidos”, “códices
corroídos pelo tempo” e “livros que jaziam esquecidos ou extraviados”; reconhecia o
“tirocínio acadêmico” do historiador e seu espírito “infatigável” de explorador; salientava a
importância de sua pertinaz preocupação com a pesquisa e a autenticidade dos documentos;
chegando a afirmar que, na HGB, há uma “massa cyclopica de materiaes”.
17
Avaliações semelhantes a essa foram feitas: por Oliveira Lima – que afirmava ser “o
traço dominante da individualidade de Varnhagen (...) a paixão da investigação histórica”
18
;
por Basílio de Magalhães – que afirmava possuir Varnhagen “uma pasmosa capacidade de
trabalho”
19
; por João Ribeiro – que garantia que “nenhum outro, depois dele, veio para
excedê-lo e os seus discípulos conseguiram apenas completá-lo
20
.
Mais recentemente, José Honório Rodrigues tampouco poupou elogios ao se referir
ao trabalho de pesquisa testemunhado pela obra:
Varnhagen sobrepujou, em sua época, como historiador, todos os seus
contemporâneos (...) como historiador incomparável do Brasil. Incomparável pela
vastidão das pesquisas que realizou e dos fatos que revelou; incomparável pela
17
ABREU, 1931, p. 127 (a). Em sua correspondência ativa, Capistrano solicita a amigos que seguissem as
orientações fornecidas por Varnhagen para encontrar documentos em arquivos europeus. Capistrano utiliza-se
de informações dadas por Varnhagen para solicitar a busca na Biblioteca Nacional, em Lisboa, e no Museu
Britânico. É razoável supor que manifestava, desse modo, a seriedade que via no trabalho realizado por
Varnhagen. Cf. Abreu in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 19/18, 140/147. Quando da edição do
segundo volume da HGB, em 1857, Varnhagen publicou uma série de cartas de avaliação do primeiro tomo
de sua obra. Dentre elas estava uma redigida por Alexandre Humboldt, para quem a obra do historiador “se
fonde sur des pénibles et sérieuses recherches”. Cf. VARNHAGEN, 1857, s/p. (Pos-scriptium).
18
LIMA, 1903, p. 11.
19
MAGALHÃES, 1928, p. 53.
20
Ribeiro (1922) apud LACOMBE, 1967, p. 138.
32
publicação de inéditos que promoveu; incomparável pela perseverança com que
caminhou pelos caminhos da história brasileira (...).
21
Para José Honório Rodrigues, Varnhagen, no que se refere à revelação de fatos, fez
“mais de que pode esperar o leitor desavisado”, devido à gigantesca pesquisa realizada,
justificando a opinião de que “nenhum historiador nacional contemporâneo o iguala no
conjunto da obra”. Retomando a expressão de Capistrano, o crítico reconheceu ser a obra
“ciclópica”, “pelo esfôrço, pela perseverança, pela erudição, pelo conhecimento revelador”
e afirmava que ela é “uma obra sem paralelo, pela vastidão da pesquisa realizada por tôda
parte, pela acumulação dos fatos, pelos achados novos, pelo esfôrço de incorporá-los numa
síntese”.
22
Em trabalho posterior, José Honório Rodrigues retomou essas avaliações e
reafirmou que a “História Geral do Brasil é, até hoje, a que reúne, sem contestação, o
maior número de fatos”, constituindo-se, a seu ver, até aquele momento, na obra “mais
completa da historiografia brasileira”.
23
Maria Alice Canabrava partilha da mesma avaliação e vê Varnhagen como o
iniciador da pesquisa sobre a história brasileira em arquivos estrangeiros. Para a
historiadora, Varnhagen se distingue pela “análise crítica rigorosa [que] precede o
reconhecimento da validade das fontes e sua erudição se nutre do conhecimento extenso
das mesmas”. Essa atitude parece revelar, ainda segundo Canabrava, a influência de
Leopold von Ranke. Para ela, o aturado esforço de Varnhagen para levantar a
documentação e realizar sua exegese estava ligado à sua convicção de que “a verdade
objetiva continha-se nos documentos”.
24
Também para Arno Wehling, Varnhagen era um rankiano, cuja obra foi edificada
sobre o “domínio da técnica de análise documental, investigação empírica e explicação
hermenêutica”.
25
Segundo ele, o método da história consistia, em Varnhagen, na exegese
documental, e ao historiador cabia a tarefa de realizar a crítica rigorosa, sistemática e
exaustiva das fontes. Se os cientistas de outras disciplinas realizavam experiências para
comprovar suas teses, os historiadores realizavam cuidadosa recuperação das fontes
documentais, graças às quais alçava-se ao patamar da cientificidade e da veracidade.
21
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 170.
22
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 175/187/196.
23
RODRIGUES, José Honório, 1969, p. 132-133.
24
CANABRAVA, 1971, p. 418-419.
25
WEHLING, 1999, p. 45.
33
Wehling reitera, em inúmeras passagens, a influência rankiana sobre o historiador
oitocentista: “em Varnhagen, como em Ranke (...) a providência divina era algo mais
próximo e atuante na história”; “em Varnhagen, como em Ranke (...) esse pressuposto é
fundamental”; “esta é, segundo parece, a chave da interpretação da visão rankeana da
história, como também de Herculano ou Varnhagen.”
26
Contudo, Wehling reproduz a dúvida que vem desde Capistrano de Abreu: “Não
parece [Varnhagen] ter conhecido, pelo menos à época da primeira e segunda edições da
História geral do Brasil, a obra de Ranke, talvez pela dificuldade de leitura dos textos em
alemão”.
27
Para Wehling, porém, o ponto central era que, “certamente influenciado pelo
clima da culture savante” de sua época, Varnhagen entendia a escrita história como
resultante da pesquisa e da exegese documentais. Um historiador rankiano seria, enfim, um
historiador decidido a “escrever tal qual as coisas se passaram”, a partir de documentos
cuidadosamente recolhidos e examinados; ou escrever uma “história crítica, fundamentada
na obra de erudição (...), nos estudos paleográficos e diplomáticos (...)”. Uma história que,
segundo Wehling, se opunha à “tradição da historiografia humanista”, que tinha seus
modelos nos gregos e nos romanos.
28
Conforme ensina nossa contemporânea e dominante história da historiografia, a
história moderna surgiu no século XIX, com a obra de Ranke. Dataria de então a
preocupação dos historiadores não apenas com a pesquisa arquivística, mas também com a
26
WEHLING, 1999, p. 49, 61, 62, 79, 129. Destaquei apenas algumas das passagens nas quais o autor
reafirma a similaridade entre os pressupostos da escrita da história varnhagenianos e os rankianos.
27
WEHLING, 1999, p. 136-137. Em nota, afirma-se que Clado Lessa elucidou a questão e remete o leitor
para a explicação dada pelo autor citado. Na consulta ao indicado trabalho encontra-se um trecho onde Clado
Lessa está preocupado em rebater uma crítica feita por Capistrano de Abreu a Varnhagen: Capistrano cobrava
do historiador o uso de uma teoria elaborada por um geógrafo alemão; para Capistrano, a omissão desse
trabalho só se explicaria pelo desconhecimento da língua. Para Lessa, a explicação de Capistrano não tinha
sentido, porque Varnhagen, além de filho de alemão, estudara a língua paterna. Cita então uma carta dirigida
por Varnhagen ao general Francisco José Soares Andréia, comandante do Imperial Corpo de Engenheiros,
datada de agosto de 1851. Nela, Varnhagen afirmava que fora ao Colégio dos Nobres habilitar-se em língua
alemã. Lessa não estava preocupado com a questão de ter sido ou não Varnhagen influenciado pela obra de
Ranke. Cf. LESSA, 1945, p. 61-63. Em outra passagem de sua biobliografia de Varnhagen, Clado Lessa
informa que: “Não nos foi difícil rastrear a origem indocumentada desta opinião de Capistrano [sobre
Varnhagen não saber alemão]. Em 1869 Varnhagen apresentou à Academia das Ciências de Viena uma
pequena monografia escrita por êle originalmente em francês, e vertida por um amigo, a seu pedido, para a
língua italiana, então um dos idiomas oficiais do império austro-húngaro, condição indispensável para que
fosse inserta nas Atas desta sociedade. Ora, seria natural que o ministro do Brasil a escrevesse em alemão, se
pudesse servir-se desse idioma, - foi o que seguramente conjecturou o historiador cearense.” Cf. LESSA,
1954, p. 144-145. Tomo 224.
28
WEHLING, 1999, p. 136.
34
comprovação de suas afirmativas. Diferentemente dos antigos, que se teriam limitado a
narrar os acontecimentos, os historiadores modernos fundamentavam seus textos com
extenso e erudito trabalho de levantamento de provas, como também realizariam o
cuidadoso trabalho de anotar seu texto: as notas de rodapé eram entendidas como uma
demonstração e prova de que o historiador pesquisou em diversos arquivos e manipulou e
utilizou inúmeras fontes documentais para construir seu texto. Como parte inerente da
elaboração de uma obra de história, haveria o trabalho de citar, parte indispensável do
métier do historiador moderno: a erudição fundamentaria a escrita da história e deveria ser
comprovada pelas anotações feitas ao texto.
Assim, o que importa na discussão não é bem se Varnhagen pôde ou não ler
diretamente a obra de Ranke: o que faria dele um rankiano seria o fato de ele ser um
historiador moderno. Assim como Ranke, Varnhagen ter-se-ia submetido às novas
prescrições do trabalho de escrita da história, pesquisando e anotando seu texto, de modo a
informar ao leitor o fundamento de suas certezas. Essa é a avaliação crítica da obra
varnhageniana feita por seus estudiosos desde Capistrano de Abreu, que, pela primeira vez,
estabeleceu um paralelismo entre a obra de Varnhagen e a do historiador alemão.
Capistrano inaugurou uma tradição de avaliação da obra varnhageniana que afirma ser
Varnhagen um autor moderno, porque sua obra pode ser aproximada e comparada àquela
elaborada por Ranke.
1.2. O problema da citação
Curiosamente, porém, Capistrano de Abreu justamente um dos fundadores da
tradição que reconhece o valor das pesquisas arquivísticas de Varnhagen e de suas
descobertas documentais , no decorrer dos trabalhos que realizou para a primeira reedição
da HGB, enfrentaria dificuldades que contrariaram a avaliação que ele mesmo fizera
,
problema que só apareceu no decorrer da longa convivência de Capristano com seu
predecessor.
29
29
A correspondência ativa de João Capistrano de Abreu foi organizada e prefaciada por José Honório
Rodrigues. Cf. RODRIGUES, José Honório, 1977
35
Na correspondência de Capistrano encontram-se várias referências a seu trabalho de
preparação da primeira reedição da História geral do Brasil. Em fevereiro de 1900,
contratado pela livraria Laemmert, em carta a Guilherme Studart, informava-o de sua nova
empreitada e solicitava-lhe:
Já comecei a impressão e espero dar o primeiro volume até maio: ao todo hão de ser
três. Ficar-lhe-ia muito obrigado se V. quisesse mandar as notas e retificações que
tem sobre ele, e que, não preciso dizer, sairão com o seu nome. (...) O primeiro
volume compreende o período anterior à guerra holandesa; terá umas 600 páginas.
30
Nos anos seguintes, esse pedido de auxílio para anotação de Varnhagen seria várias
vezes repetido. Em agosto de 1901, escrevia:
Em tempo escrevi-lhe uma ou duas cartas, de que não tive resposta. Em uma pedi
me mandasse as notas que tivesse sobre Varnhagen, de que estou preparando uma
edição para Laemmert – está aí uma cousa que acima esqueci. Repito o pedido: suas
notas sairão com seu nome: as que de agora preciso referem-se aos capítulos
anteriores à guerra holandesa: já tenho impresso até o descobrimento do Brasil: 128
págs.
31
Em setembro do mesmo ano, retomava o convite: “Repito o pedido das notas para
Varnhagen”. Em junho de 1902, dizia pretender terminar a publicação de parte da obra até
o final do ano e relembrava o solicitado anteriormente: “Há alguns anos fazia-lhe o pedido
que agora repito: mande quaisquer retificações e notas, que serão publicadas com seu
nome. Estou apenas nos donatários”. Voltaria à questão no mês seguinte: “E você deixou
sem reposta meu pedido de concorrer com as notas que puder para a nova edição de
Varnhagen! Repito-o e insisto. Suas notas sairão em seu nome. Estou às voltas com os
donatários”.
32
Como observa José H. Rodrigues, essa correspondência é de inestimável valor,
devido às discussões de questões referentes a problemas da história do Brasil.
33
Sobre o
trabalho de preparação da HGB para reedição, as cartas escritas por Capistrano a Studart
permitem aquilatar o grande investimento de tempo despendido para desempenhá-lo. Ao
longo de anos, Capistrano referiu-se às anotações que fazia, acreditou estar finalizando a
empreitada e anunciou para logo a reedição da obra. Porém, ao contrário de suas
expectativas iniciais, foram sete anos de trabalho! Por que tamanha demora?
30
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 149.
31
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 150.
32
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 152/153/158.
33
RODRIGUES, José Honório, 1977, p. XV.
36
É também em uma carta ao amigo Studart, escrita no final de 1903, que Capistrano
fornece uma pista para responder à questão. Afirmava então que Varnhagen seria “muito
mais descuidado e inexato do que pensava a princípio: basta ver a cambulhada que fez de
Francisco Caldeira e Alexandre de Moura. Toda a expedição do Maranhão precisa ser
escrita de novo (...)”.
34
O descuido e a inexatidão de Varnhagen precisavam ser corrigidos
– ao longo de anos, Capistrano dedicou-se à tarefa de tornar a HGB “menos confusa”,
conforme avaliava, graças a um copioso trabalho de anotação. Por isso, quem hoje se
debruçar sobre a HGB poderá verificar o grande número de páginas dedicadas às anotações.
Mas são anotações feitas, em sua maior parte, por Capistrano e depois continuadas e muito
acrescidas por Rodolfo Garcia, não por seu autor. Preparar a HGB para reedição deu a
Capistrano “um trabalhão”, conforme declarava, porque avaliava que Varnhagen não
desempenhara bem seu trabalho. Em algumas de suas cartas a Studart, é possível mesmo
encontrar um Capistrano que esmorecia diante do gigantesco trabalho de fazer a anotação
da História geral. Em abril de 1904 revelava:
Varnhagen, pelo menos na Torre do Tombo, levou para casa alguns documentos e
se esqueceu de restituí-los: não podia depois indicar a procedência. Tu não és
Varnhagen. Por que motivo, portanto, te insurges contra uma obrigação a que se
sujeitam todos os historiadores, principalmente desde que, com os estudos
arquivais, com a criação da crítica histórica, com a crítica das fontes, criada por
Leopoldo von Ranke, na Alemanha, foi renovada a fisionomia da História?
35
Anotar uma obra era deixar nela inscritos os procedimentos da crítica histórica
realizados: a busca arquivística e a análise dos documentos. Capistrano lembrava seu amigo
Studart que Ranke fundara uma nova forma de escrever a história e, desde então, tornara-se
imprescindível que o historiador escrevesse sempre apresentando a prova documental. Em
novembro de 1906, informava Studart de que: “Nas anotações de Varnhagen tenho de citar-
te a cada passo”. E voltava a insistir na ausência de citações nos próprios trabalhos de
34
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 162.
35
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 166. Em julho de 1897, Capistrano de Abreu escrevia a
Assis Brasil e informava a seu correspondente, que se encontrava em Lisboa, que: Varnhagen vira “na
biblioteca da Ajuda [em Lisboa] um exemplar manuscrito da História do Brasil do Frei Vicente do Salvador”.
Capistrano afirmava a Assis Brasil que esse códice, desde então, desaparecera. Capistrano solicitava a Assis
Brasil que, decorridos mais de cinqüenta anos, desde que Varnhagen noticiara a existência desse códice na
biblioteca da Ajuda, verificasse se ele fora reencontrado. Talvez se tenha nessa passagem de Capistrano uma
manifestação de suas suspeitas sobre atividades ilícitas praticadas por Varnhagen. Cf. Capistrano in
RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 85.
37
Studart, advertindo-o: “É pena teres caldo a procedência: como responder ao desalmado
que puser em dúvida a autenticidade dos documentos?
36
Ao chamar a atenção de Studart para a ausência de citação em seus trabalhos,
Capistrano destacava uma grande falta cometida por Varnhagen. O que o incomodava – e
aqui se destaca – era o fato de Varnhagen não ter corretamente se submetido às exigências
da “nova fisionomia da história”. Se Varnhagen realmente retirou ou não documentos da
Torre do Tombo e não os devolveu, Capistrano não duvidava da informação que tinha e a
passava adiante. No caso, interessa destacar que, para ele, a ausência de citações em
Varnhagen era explicável: o historiador não podia indicar a seu leitor a origem de muitas de
suas informações porque se o fizesse estaria se auto-incriminando. A seu ver era
impossível, de outra forma, compreender e explicar o fato de que, tendo vasculhado tantos
arquivos, localizado tantos documentos e verificado sua autenticidade, Varnhagen não fosse
meticuloso no trabalho de anotar seu texto. Afinal, era inadmissível, na avaliação de
Capistrano, esse tipo de comportamento em um historiador contemporâneo de Ranke.
37
A ausência de citação em Varnhagen foi observada e destacada por outros
estudiosos de sua obra.
Na década de 1940, Afrânio Peixoto redigiu uma Nota Preliminar à reedição do
Florilégio da poesia brasileira preparada pela Academia Brasileira de Letras. Ele externava
então sua admiração pelo trabalho realizado por Varnhagen e afirmava ser o Florilégio
muito mais do que uma antologia de poemas “ou uma seleta que denunciaria o gosto
literário do colecionador” ou ainda “obra apenas agradável de artista”. A seu ver, o
Florilégio constituía-se em um verdadeiro “arquivo literário”, digno do “autor da História
Geral”. Se comparada a outras antologias já existentes em sua época, a obra, a seu ver,
distinguia-se de todas elas por ser “obra séria de crítica e erudição ou história literária”.
Afirmava que “até com seus defeitos (...), [e] embora esses defeitos”, o “grande
36
Capistrano in RODRIGUES, José Honório, 1977, p. 177.
37
Sobre a anotação da HGB, Tito Lívio Ferreira assegura que foi o trabalho realizado por Capistrano de
Abreu e Rodolfo Garcia que garantiu que “os concomitantes exigidos [os documentos utilizados pelo autor]
acham-se apostos em notas elucidativas abertas no rodapé das páginas dêsse livro. E revelam, de maneira
explicita, como a jornada varnhageneana fôra dificilima e cuidadosa, através da documentação inédita
colhida”. Ferreira não pretendia denunciar a falta de anotação feita pelo autor à sua obra, mas termina por
apontá-la. Cf. FERREIRA, 1944, p. 116.
38
historiador” Varnhagen nela se apresentava.
38
Mas que defeitos eram esses? O autor
apresenta dois casos:
Um exemplo apenas, e que importa ao ‘Florilégio’. Em 1923 celebrou-se o
centenário de Gregório de Matos. Teria o poeta nascido na Bahia a 7 de abril de
1623. Esta data fora aceita por Januário da Cunha Barbosa, José Maria da Costa e
Silva, Teixeira de Mello, Pereira da Silva, Valle Cabral, Sacramento Blake, Sílvio
Romero, Araripe Júnior, Fausto Barreto e Carlos de Laet, Xavier Marques, que
arrastou a Academia Brasileira. Entretanto, tranqüilamente, sem apresentar
documento, Varnhagen, no ‘Florilégio’ dava outra data, 20 de dezembro de 1633.
Sílvio Romero pôde, então, ‘decidir’: ‘Varnhagen dá, por engano, 1633.
[Porém,] Varnhagen tinha documento: estava no ‘Códice’ manuscrito de obras do
poeta que hoje está na Coleção Varnhagen, do Itamaraty, onde leu: ‘os pais que por
illustres e catholicos foram bem celebrados o derão à luz em 20 de dezembro de
1633’.
39
(grifos do autor)
(...) Outro fato, no mesmo ‘Florilégio’ que se poderá tomar como intuição, mas que,
bem examinado, é uma certeza, é aquele da supressão de Bento Teixeira, e sua
‘Prosopopéia’, geralmente havido como o iniciador da poética e da literatura
nacional e a que Varnhagen não concedeu sequer menção. O nosso autor disputa
tenazmente a Portugal vários desses poetas, até o próprio Gonzaga, enquanto tem
dúvidas. (...) Porém, quanto a Bento Teixeira e a sua ‘Prosopopéia’, Varnhagen não
teria dúvida, tanto que nem o menciona... Ele só, contra toda gente...
Seria documentado em Botelho de Oliveira (...)? (...) para Botelho de Oliveira,
Bento Teixeira não seria ‘filho do Brasil’ e Varnhagen nele acreditava, pois devia,
no século XVII, sabê-lo mais do que nós. E é o que apura Rodolfo Garcia,
informado pela Primeira visitação às partes do Brasil pelo licenciado Heitor
Furtado de Mendonça (Denunciações de Pernambuco) que Bento Teixeira era
natural do Porto... Varnhagen, sumariamente o excluiu de um ‘Florilégio da Poesia
Brasileira’, porque o sabia lusitano.
40
(grifos do autor)
E conclui seu raciocínio:
Estão aqui dois documentos de nosso asserto: Varnhagen nunca diz coisa de oitiva.
Ainda quando não cite o seu documento. Isso ocorre dezenas de vezes, em sua
mesma ‘História Geral’. É, entretanto, documentável e às dezenas de vezes têm sido
documentadas, principalmente por seu discípulo Rodolfo Garcia, o número um dos
Varnhagenianos.
41
Do mesmo modo que ocorrera com Capristano, Afrânio Peixoto surpreendia-se com
o fato de Varnhagen não informar seu leitor da origem de suas certezas. E, talvez o mais
surpreendente, essa não era uma característica circunstancial ao Florilégio, pois até mesmo
38
PEIXOTO, 1946, p. 19.
39
PEIXOTO, 1946, p. 20-21.
40
PEIXOTO, 1946, p. 21-22.
41
PEIXOTO, 1946, p. 22. Sérgio Buarque de Holanda, em uma nota em Visões do Paraíso, também
demonstrava certa surpresa ao constatar ausência de citação em Varnhagen: “Que Chaves veio na frota de
Cabôto, declara-o expressamente Varnhagen, sem indicar, no entanto, onde apóia sua afirmativa”. Cf.
HOLANDA, 1959, p. 84, nota 15.
39
na HGB tal fato se repetia “dezenas de vezes”. Não por acaso, afiançava que Varnhagen
dera um enorme trabalho para seus discípulos:
Capistrano e Garcia, vão mourejando por
citar e revelar esses documentos, em que se apoiou o mestre para suas afirmações
categóricas.”
42
Apesar de Varnhagen ser “documentável”, ele não citava. E isso porque,
segundo Peixoto: “Não é que enunciando um fato verdadeiro, embora controvertido,
Varnhagen, que tinha diante dos olhos o documento, que conseguira, ‘esquece’ de o citar,
omitindo a prova e se dando ao luxo de querer ser aprovado, sob palavra?”.
43
(grifo do
autor).
Em 1954, ao escrever sobre a Obra de Varnhagen, Clado Lessa concorda que nela
escasseavam as citações das fontes, fato que seria explicável, segundo ele, por pelo menos
três motivos. Primeiro: Varnhagen havia pesquisado em inúmeras bibliotecas de diferentes
países e sempre fizera apontamentos sobre os fatos que apurava, porém:
(...) guardava-os [os apontamentos] para mais tarde, e, muitas vezes, ao ter que
utilizá-los, com os arquivos a centenas de léguas, de distância, coisa corrente na
vida agitada que levava, já não se recordaria mais de onde os extraíra, nem quiçá,
compreenderia as sumaríssimas indicações de procedência apontadas à margem dos
papéis e cadernos de extratos. Não podendo citar tudo pormenorizadamente,
preferiu adotar como norma nesses casos o alvitre de abster-se de citações, e com
isso deu fortes dores de cabeça aos pósteros para descobrirem onde é que êle foi
buscar esta ou aquela informação (...).
44
Para Lessa, Varnhagen sempre trabalhou muito e com pouco tempo para
desempenhar a gigantesca tarefa que se propusera realizar. Supõe que, se o historiador se
colocasse a “escrever notas e citações marginais”, terminaria por perder o “fio das idéias” e,
por isso, corretamente optara por extratar os documentos “em apontamentos na parte
necessária e que diretamente se encaixava no plano de composição da obra que tinha em
mente”.
45
Para Lessa, Varnhagen, mesmo cometendo o erro de não citar, terminara por
acertar, porque, afinal,
forneceu a Capistrano de Abreu e a Rodolfo Garcia oportunidade para as magistrais
anotações a sua obra, que se recomendam principalmente pelo desenvolvimento
dado à indicação das fontes utilizadas, mas, via de regra, pouco citadas pelo
sorocabano.
46
42
PEIXOTO, 1946, p. 20.
43
PEIXOTO, 1946, p. 20.
44
LESSA, 1954, vol. 224, p. 191-192.
45
LESSA, 1954, vol. 224, p. 192.
46
LESSA, 1954, vol. 224, p. 192.
40
Segundo: Varnhagen esforçara-se, em seus primeiros trabalhos, para apresentar “as
fontes de que se servia”, mas, uma vez dadas as informações elas se tornariam conhecidas,
o autor “julgava-se naturalmente dispensado de tornar a fazer citações de procedência para
os informes que dava”.
47
Por fim, Clado Lessa lembra que Varnhagen foi um homem do serviço diplomático
brasileiro e que, no desempenho de suas funções, passou a vida viajando. Acredita, por
isso, que, em suas sucessivas mudanças, houve “inevitáveis perdas e descaminhos de
papéis”.
48
Conclui que seriam razões como as expostas que explicariam a parcimônia com
que Varnhagen apresentava em seus textos os documentos dos quais se utilizara.
É possível verificar, por um lado, que esses três estudiosos varnhagenianos
compartilham igual compreensão do que significava ter uma postura crítica frente à escrita
da história: ao historiador moderno competia realizar o trabalho duplo e concatenado de
pesquisa documental e de ratificação de seu texto com a citação. Por outro, eles
concordavam que Varnhagen fora um historiador moderno, profundamente envolvido com
a busca arquivística e a exegese documental. Porém, o estudo da obra de Varnhagen
revelou a eles um autor que resistia frente a uma das exigências de seu ofício. Existiria,
portanto, uma contradição inerente ao construto final da produção de Varnhagen e trataram
então de explicá-la: Capistrano supõe que o historiador estava impossibilitado de citar
porque retirara os documentos de seus devidos depósitos, Peixoto credita as lacunas ao
esquecimento e Lessa o desculpa pela imensidão da tarefa realizada.
47
LESSA, 1954, vol. 224, p. 191/194.
48
LESSA, 1954, vol. 224, p. 193. Não deixa de ser curioso lembrar que, mesmo considerando as enormes
dificuldades no deslocamento de papéis e de bibliotecas, Varnhagen permaneceu por longos anos trabalhando
em embaixadas brasileiras na Europa. Ele assumiu o posto de adido de primeira classe à legação brasileira em
Lisboa em maio de 1842, tendo-se afastado do cargo em 1846, quando investigou em arquivos espanhóis, a
pedido do governo brasileiro, documentos referentes aos limites do Brasil com as Guianas. Em janeiro de
1847 foi removido em definitivo para a legação brasileira em Madrid, no posto de adido de primeira classe,
onde se conservou até maio de 1851, quando aportou no Rio de Janeiro. Foi durante a estada na capital do
Império que recebeu sua nomeação para o cargo de Encarregado de Negócios em Madrid, em novembro de
1851. Durante esse período, de maio a novembro de 1851, exerceu a função de primeiro secretário do IHGB.
Em 1852 assumiu seu novo cargo na capital espanhola, onde permaneceu até o final do ano de 1858. Foi
durante o período em Madrid, portanto, que Varnhagen publicou sua HGB. Segundo Lessa, nesses anos,
desde sua nomeação como adido em Lisboa, Varnhagen “pôde dedicar-se de corpo e alma às pesquisas
históricas, pois os trabalhos da chancelaria não lhe tomavam grande parte do tempo”. Foram, portanto, longos
não apenas os anos de pesquisa, mas também o de residência em não muitos lugares. Seria então válido
pensar que as mudanças levaram o historiador a perder parte dos documentos que um dia tivera em mãos? Cf.
LESSA, 1961, p. 83-85/ nota p.65/ nota p. 166; Cf. LESSA, 1954, vol. 223, p. 146.
41
Contudo, pode-se afirmar que, seja na justificativa dada por Clado Lessa ou nas
cobranças feitas por Capistrano e Peixoto, em qualquer dos casos existe um sentimento de
perplexidade. Uma perplexidade alimentada inclusive pela própria expectativa criada pelo
autor. Havia, afinal, uma distância entre a insistência de Varnhagen em falar sobre suas
pesquisas, tanto em sua correspondência como em seus prefácios, e a despreocupação em
apresentá-las em seu texto, na forma de anotações. No Prefácio elaborado para a primeira
edição da HGB e depois republicado na segunda edição, Varnhagen afirmava que em sua
obra fizera
(...) o primeiro enfeixe proporcionado dos factos que, mais ou menos
desenvolvidos, devem caber na Historia Geral, em logares convenientes; indicam-se
as fontes mais puras e genuínas; e estes dois serviços ficam feitos (...).
49
Era o próprio Varnhagen a indicar que, ao desempenhar seu trabalho, o historiador
tinha duas tarefas a cumprir: por um lado, ele colhia sua documentação nos arquivos onde
estudara, por outro, ao redigir o texto de sua obra, ele estava obrigado a indicar a origem de
suas certezas. Logicamente, o autor estava submetido ao dever de anotar seu texto.
Sem dúvida, Varnhagen foi um grande pesquisador, responsável pela revelação da
riqueza de fontes documentais referentes à história do Brasil que jaziam nos arquivos
europeus, sobretudo nos portugueses. Justamente devido ao gigantesco trabalho de
recuperação e restabelecimento de vários desses documentos, Capistrano o aproximou da
tarefa empreendida por Ranke. Porém, o mesmo Capistrano foi o primeiro que, seguido
posteriormente por outros estudiosos, constatou faltar em Varnhagen o cuidado com a
citação. Muito incomodado, denunciou que Varnhagen não se submetia completamente aos
pressupostos da “moderna crítica história” e teria descurado da apresentação da
“procedência” de suas informações.
A aproximação com Ranke, nessa perspectiva, deveria ter sido abandonada, a partir
mesmo de Capristano. A conseqüência, porém, seria talvez excessivamente perniciosa,
levando à reconsideração do lugar ocupado por Varnhagen na historiografia moderna
brasileira. Estudos recentes sobre Ranke, entretanto, mostram que a aproximação deve ser
mantida, se colocada em novos termos.
49
VARNHAGEN, 1877, s/p. (Prefácio)
42
1.3. Ranke revisitado
Como relembra Anthony Grafton, em recente e impressionante trabalho, a tradição
historiográfica considera Leopoldo von Ranke o fundador da moderna crítica histórica. Para
essa tradição, seria na obra de Ranke que “la observación sistemática y la cita tanta de
pruebas originales como de argumentos formales (...) se conviertieron en ocupaciones
necesarias y atractivas del historiador.”
50
Como tal, portanto, a construção textual rankiana
deveria apresentar contundentes marcas reveladoras do trabalho de pesquisa e de exegese
documental por ele realizados. No entanto, se Grafton constatou, por um lado, que nos
diários e na correspondência de Ranke encontram-se fortes e repetidas declarações de uma
paixão incondicional pela pesquisa e pela busca do documento original
51
, por outro,
surpreendeu-se diante da sistemática recusa de Ranke em anotar seu texto. Em carta a seu
editor, o historiador chegou a apresentar sua rejeição em fazer anotações a sua obra.
52
Grafton destaca que essa atitude de Ranke foi ferozmente criticada por historiadores seus
contemporâneos, que o acusaram de ser um escritor sentimental e de fazer referências
inexatas e superficiais em seu texto. Essa situação permitiu a Grafton levantar duas
hipóteses.
A primeira hipótese é a de que a recusa de Ranke de anotar sua obra poderia ser
interpretada como uma marca de seu não afastamento da “concepción clásica de lo que
debia ser una obra histórica [e se negava] a desfigurar su vigoroso estilo narrativo y sus
descriptiones realistas de las batallas com los artefactos antiestéticos de la mecánica
50
Segundo Grafton, a tradição moderna insiste que os historiadores antigos simplesmente aspiravam a
descrever “com elocuencia los ejemplos de discurso y acción buenos e malos, prudentes e imprudentes, con el
fin de proporcionar lecciones morales y políticas válidas para todo tiempo e lugar”. Cf. GRAFTON, 1998, p.
24. Carlo Ginzburg também duvida dessa visão da historiografia antiga e coloca em questão se realmente os
gregos não escreviam suas obras de forma referencial. Sobre Tucídides afirma que ele “se serviu de indícios
arqueológicos e literários para reconstituir, com grande audácia conjectural, um passado remotíssimo.” Seria
inegável, em sua avaliação, uma “tensão entre os capítulos arqueológicos de Tucídides e a narrativa da Guerra
do Peloponeso (...)”. Cf. GINZBURG, 2002, p. 59-60.
51
Segundo Grafton: “Ranke decía que su método histórico no imitaba modelo alguno, ni siquiera el de la
erudicón clásica crítica de la generación inmediantamente anterior a la suya (...). (...) En su propia época, la
retórica de Ranke generalmente era persuasiva. (...) Practicantes de disciplinas muy diversas reconnocían que
el método histórico de Ranke era radicalmente nuevo. (...) Durante casi un siglo después de la época de
Ranke, sus discípulos repitieron com un mantra una versión exagerada de lo que les había inculcado el
maestro: ‘La proposición de que antes del comienzo del siglo pasado el estudio de la historia no era científico
se puede sustentar a pesar de algunas excepciones (...)’.” Cf. GRAFTON, 1988, p. 44.
52
Cf. GRAFTON, 1998, p. 47-48.
43
erudita”.
53
Nessa perspectiva, Ranke teria preferido conservar o espírito literário de sua
narrativa e a coerência interna de seu texto, optando por a não citar, se assim o pudesse
fazer. E isso porque, a seus olhos, a citação profusa conspiraria contra “la ilusión de
veracidad e inmediatez” que a história poderia alcançar. A citação terminaria por
interromper “la historia relatada por un narrador omnisciente”.
54
A tão propalada assertiva
de Ranke – de que escreveria a história “tal como se passara” e que foi interpretada como
uma declaração pragmática do historiador cientista preocupado em relatar o que as fontes
documentais revelavam – não passava de “un pasaje aún más famoso de Tucídides”. Ao
fazer referência a ela, portanto, Ranke revelava que tinha em mente o modelo de escrita da
história estabelecido na antiguidade clássica, pelos historiadores gregos. Ao recusar a
citação em seu texto, ele defendia a escrita da história como uma narrativa vigorosa, capaz
de envolver e convencer seu leitor; a citação não faria mais que interromper o fio dessa
narrativa.
Porém, ao seu tempo, não era mais a Ranke possível deixar de anotar o seu texto.
Donde uma segunda hipótese levantada por Grafton: Ranke viveu em um mundo onde
existia uma tradição consolidada de escrita da história. Uma tradição que se pautava pela
pesquisa crítica de fontes documentais: o uso de técnicas de verificação de autenticidade
dos textos e de identificação dos textos coevos aos acontecimentos estudados; uma tradição
de erudição que era anterior ao próprio Ranke e da qual ele próprio era herdeiro, mesmo
que a negasse.
55
No período iluminista, os historiadores filósofos, como Voltaire,
defendiam que o importante era acompanhar a marcha da evolução da humanidade. Esses
historiadores, contudo, conviviam com outros, como William Robertson, que combinavam
em seus trabalhos as preocupações dos filósofos com aquelas vindas da tradição histórica
antiquária; uma tradição que remonta aos historiadores dos séculos XVI e XVII, que
praticaram um modelo de investigação erudita, que insistiam na importância suprema da
fonte primária e que se preocupavam com a precisão e a fundamentação de seus textos.
56
53
GRAFTON, 1998, p. 49. Neste aspecto é importante lembrar os estudos de Peter Gay sobre a obra de
Ranke, no qual se destaca o aspecto dramático da narrativa rankeana. Cf. GAY, 1990 (1974).
54
GRAFTON, 1998, p. 49.
55
“Ranke decía que su método histórico no imitaba modelo alguno, ni siquiera el de la erudicón clásica crítica
de la generación inmediantamente anterior a la suya (...)”. Cf. GRAFTON, 1988, p. 42.
56
Grafton lembra que “mucho antes de Ranke (...), había nacido la historia crítica, aquélla cuyo autor sufre
horrores por un error de pocos meses en una cronologia tanto como al atribuir motivos e identificar causas.
44
Essa metodologia de trabalho remete, segundo Grafton, a uma tradição vinda do
mundo antigo, no qual, além de narrativas eloqüentes com escassas referências a
documentos, edificara-se também uma história a partir da investigação e da apresentação de
provas documentais. Uma herança que, vinda dos antiquários, insistia na busca e na análise
das provas documentais e na referência explícita, e que, conservada na Idade Média e
transmitida no Renascimento, foi recebida pelos historiadores do Iluminismo.
57
Em que momento, porém, ocorreu a conjunção da história dos antiquários com a
literária? Em sua busca genealógica, Grafton encontrou, no final do século XVII, um
Diccionario biográfico preparado por Pierre Bayle. Esse trabalho, redigido com exaustivas
referências e citações, transformou-se em leitura dos europeus cultos, aos quais fascinava,
por combinar a erudição com a filosofia. O Diccionario de Bayle está repleto de afirmações
sobre o método antiquário preexistente, pois insistia na necessidade da busca da fonte e na
citação referencial – o historiador sempre deveria apresentar as provas de suas assertivas
para seu leitor. O trabalho de Bayle pode ser avaliado, segundo Grafton, como sendo aquele
no qual se inventou e defendeu “la doble narración del historiador moderno, en la cual el
texto expone los resultados finales mientras el comentário describe el viaje para llegar a
ellos”.
58
Nascia, então, uma nova metodologia da história, que combinava os argumentos
técnicos vindos da antiga Arte com a preocupação dos antiquários.
59
Talvez por isto, para
aqueles homens, os comentários exaustivos deviam aparecer apenas ao final dos textos,
enquanto as notas de rodapé seriam curtas. Grafton conclui que os historiadores do final do
(...) existia um modelo de historia narrativa autocrítica, una narracíon de sucesos políticos basada en la
investigación de archivos y la crítica de fuentes”. Cf. GRAFTON, 1998, p. 87/88.
57
“Los anticuarios, además de leer textos, pesaban y medían monedas antiguas, excavaban e ilustraban
edificios y estatuas, trataban de reconstruir el aspecto de objetos antiguos, de armas y armaduras (...). Los más
audaces (...) desafiaban a los piratas del Mediterráneo y los rigores de la vida en regiones musulmanas para
explorar las ruinas griegas de Atenas y otras partes. Otros reconstruían la historia en lo más profundo de los
archivos nacionales y locales. (...) Todos citaban abundantemente a sus fuentes”. Cf.GRAFTON, 1998, p.
104-105.
58
GRAFTON, 1998, p. 116. Segundo Grafton, como o trabalho de Bayle não foi o único, à sua época,
elaborado a partir dessas preocupações, existiriam outras condições, sociais e culturais, que conduziram ou
favoreceram os intelectuais de então a tomar consciência sobre o problema de se escrever sobre o passado
com autoridade. Naquele momento, no Discurso sobre o método, Descartes havia construído uma
contundente crítica ao conhecimento histórico ao defini-lo como pura emissão de opinião. Anotar os textos,
apresentar os testemunhos históricos fidedignos e os argumentos fundamentados era criar um modelo novo de
construção do conhecimento histórico capaz de se contrapor às críticas feitas pelo cartesianismo ao
conhecimento histórico. Tratava-se de uma resposta, dos homens envolvidos com a escrita da história, a uma
filosofia e ciência experimentais que se tornavam dominantes.
59
GRAFTON, 1998, p. 97.
45
século XVIII e início do XIX, como Gibbon y Robertson, que se utilizaram das estratégias
de Bayle para redigir suas narrativas históricas, ao mesmo tempo em que as ampliaram,
tornaram possível a emergência de “la historia crítica de tipo moderno”.
Uma das contribuições de Ranke a este processo, segundo Grafton, foi ter envolvido
o processo de pesquisa em uma aura de encanto e de entusiasmo. Diferentemente de seus
antecessores, que se referem à pesquisa como dura obrigação, Ranke se empolgava com os
arquivos, o que levou Grafton a afirmar que ele introduzira “el drama en el proceso de
investigación y crítica”. Ranke era um apaixonado pelos arquivos, o que não significa que
suas incansáveis investigações resultassem em citações cuidadosas. Grafton insiste na idéia
de que Ranke “deploraba las notas y no las componía con el cuidado y el ingenio que
aplicaba a sus invetigaciones o a la redacción de los apéndices de sus libros”.
60
1.4. Varnhagen revisitado
O estudo de Anthony Grafton pode nos auxiliar a analisar a compreensão que
Varnhagen tinha do papel da erudição na escrita da história. Desde o Necrológio escrito por
Capistrano de Abreu no final do XIX, Varnhagen foi apontado como um seguidor dos
pressupostos da escrita da história estabelecidos por Ranke: um historiador-pesquisador
incansável e um autor preocupado com a autenticidade e fidedignidade dos documentos que
utilizava como fontes. Porém, o mesmo Capistrano de Abreu, quando se viu às voltas com
o trabalho de preparar uma primeira reedição da HGB, assustou-se diante do que encontrou:
Varnhagen não seguia à risca o que Ranke estabelecera. Contudo, assim como Ranke,
Varnhagen seguia pressupostos metodológicos da escrita da história muito próprios de seu
tempo, do tempo em que também Ranke escrevia. Como um homem da erudição, o
historiador se apresentava enquanto autoridade no assunto tratado. Conseqüentemente, o
texto herdava de seu autor a própria autoridade.
Duas pistas podem ser seguidas. Uma primeira: Afrânio Peixoto, talvez com uma
ponta de ironia, perguntava se Varnhagen, ao deixar de citar, não se dava “ao luxo de
60
GRAFTON, 1998, p. 127/129.
46
querer ser aprovado, sob palavra”. Ou seja, as palavras do historiador deveriam alcançar tão
alta validade ou serem dignas de tamanha consideração, que se estabeleceriam acima de
qualquer suspeição. Talvez seja razoável afirmar que Varnhagen realmente desejava que o
leitor se colocasse “sob sua palavra”.
Uma segunda pista: Clado Lessa afirma que, caso se tivesse o trabalho de contar as
notas existentes nos livros de Varnhagen, seria possível verificar que ele “não foi mais
parco em citações que a maioria de seus contemporâneos”.
61
Ou seja, não seria uma
característica ímpar de Varnhagen a escassez de citações: assim como seus
contemporâneos, ele escrevia sem maiores preocupações com a anotação de sua obra.
Vejamos.
Em 1851, Varnhagen escreveu ao IHGB sugerindo a publicação da obra de Gabriel
Soares de Sousa, restabelecida em sua versão original. Esclarecia então que a obra do autor
quinhentista apresentada era o resultado de seu trabalho de cotejar os vários códices da obra
que localizara. Lembrava que graças a esse trabalho merecera a aprovação da Academia
Real de Ciências de Lisboa, que, como prova de reconhecimento, o acolhera como seu
associado. Do mesmo modo como a obra fora recebida na Europa, esperava vê-la no Brasil.
Porém, Varnhagen também destacava que fizera anotações à obra de Gabriel Soares:
Para melhor inteligência das doutrinas do livro acompanho esta cópia dos comentos
que vão no fim. Preferi êste sistema ao das notas marginais inferiores, que talvez
seriam para o leitor de mais comodidade, porque não quis interromper com a minha
mesquinha prosa essas páginas venerandas de um escritor quinhentista.
62
Por um lado, apontava a importância de se anotar um livro: para que ele ficasse
mais claro para seu leitor - “para melhor inteligência das doutrinas do livro”. Nesse sentido,
é lícito afirmar que Varnhagen compreendia o trabalho da anotação como digno de atenção
e dever de ofício dos que se debruçavam sobre obras antigas. Por outro, ele discutia qual a
melhor forma para apresentar essas anotações: elas deveriam ser postas ao final da página,
o que seria mais cômodo para o leitor, ou ao final do texto? Ele conhecia e discutia
processos diferentes de anotão e explicava sua opção pelos “comentários ao final do
texto”: porque desse modo não haveria intromissão nas “páginas venerandas” do autor. Ou
61
LESSA, 1954, vol. 224, p. 194.
62
VARNHAGEN, 1987 (1851), p. 13. (Ao Instituto Histórico) A carta tem a data de 1º de março de 1851.
47
seja, as notas eram essenciais, mas elas não deveriam jamais ser um obstáculo ao fio da
narrativa. Seriam as anotações realmente indispensáveis?
Na Introdução escrita para os Breves comentários (...) à publicação da obra de
Gabriel Soares na Revista do IHGB, Varnhagen faz um desabafo carregado de significado e
bastante esclarecedor de suas convicções:
Nos presentes commentarios, não repetiremos quanto dissemos nas Reflexões
criticas (...). Além de havermos em alguns pontos melhorado nossas opiniões,
evitaremos aqui de consignar citações que podessem julgar-se nascidas do desejo de
ostentar erudição; desejo que se existiu em nós alguma vez, quando principiantes,
por certo que já hoje nos não apoquenta.
63
Nesta altura de sua vida, confessa que, quando jovem estudante, vivera
“apoquentado”, ou seja, atormentado com coisas pequenas, sem importância, e, dentre elas,
a de redigir citações. Afinal, segundo Varnhagen, na juventude, um autor era obrigado a
exibir-se e alardear seus conhecimentos, pois essa era a fórmula a ser seguida por aqueles
que pretendessem ser reconhecidos e aceitos no mundo das letras. Nessa circunstância, a
redação de citações era uma maneira de mostrar para todos que ele era um homem de
erudição. Contudo, uma vez que esse patamar de reconhecimento fosse alcançado, não
precisava mais preocupar-se com “aparentar”, ou seja, mostrar e provar, ser um erudito.
Não haveria mais necessidade de se “apoquentar” com a elaboração de citações profusas,
simplesmente para “ostentar erudição”.
Provavelmente, portanto, Clado Lessa estava correto ao afirmar que Varnhagen, em
seus primeiros trabalhos, indicava as fontes de que se servia. Essa era a perspectiva do
próprio Varnhagen: um principiante devia exibir seus conhecimentos para se afirmar
enquanto um homem de letras. Será que Varnhagen se absteve de multiplicar suas citações
porque já considerava seus leitores suficientemente informados sobre as fontes que
utilizara, ou porque, àquele momento, já se considerava reconhecido como erudito e,
enquanto tal, dispensado de multiplicar suas referências? É razoável supor que existisse, em
meados do século XIX, uma compreensão bastante própria do que significava ser um
homem erudito.
Para nos aproximarmos da noção, pode ser útil recorrer aos dicionários de época,
com o propósito de resgatar a compreensão que então se tinha da palavra – o que nos
63
VARNHAGEN, 1971 (1851), p. 354-345.
48
limitaremos a fazer nos dicionários de língua portuguesa. Em 1789, Antônio de Morais
Silva reeditou, reformando e acrescentando, o Diccionario da Lingua Portugueza que fora
composto por D. Rafael Bluteau entre 1712 e 1728. Essa é considerada a primeira edição
do Diccionario... de Morais. Em 1813, Morais Silva reeditou seu Diccionario onde pode-se
ler que erudito é tudo o que é “dotado de erudição”, enquanto erudição é definida como
“saber, noticias litterarias”.
64
Um homem erudito era aquele que detinha muita informação,
conhecimento sobre coisas “litterarias”, ou seja, sobre as “lettras, sciencias, estudos”.
65
Esse homem era considerado “douto”, ou “instruído, ensinado em alguma arte, scencia”.
66
Portanto, parece razoável afirmar que Afrânio Peixoto estava correto ao supor que
Varnhagen desejava “ser aprovado sob palavra”. Para Varnhagen, uma vez que se tornara
um homem cuja erudição era reconhecida por seus pares, ou que se tornara, em uma
palavra, “douto”, acreditava não precisar mais prová-la a todo momento. Por mais que, ao
findar o século XIX, estudiosos como Capistrano de Abreu passassem a cobrar, da geração
de historiadores de meados do século, uma postura mais criteriosa frente ao trabalho da
citação, tudo indica que esse não era ainda um pensamento dominante entre eles.
Vimos, no início deste capítulo, Varnhagen dirigindo-se ao Imperador, em 1852,
para lhe apresentar os pressupostos que o haviam orientado na redação da HGB, que
proximamente teria seu primeiro volume publicado. Afirmava então que “sem erudição no
assumpto não existe matéria de que escrever historia”, pois seria a erudição, a seus olhos,
que possibilitaria ao historiador ter sua obra recebida não como uma “uma novella ou
romance”. Ou seja, era preciso que o historiador fosse reconhecido como um erudito pelos
receptores de sua obra. Restava ao historiador, portanto, provar ser um homem de erudição.
64
MORAIS SILVA, 1922 (1913), p. 73, vol. I. A escolha do dicionário de Morais Silva para a busca do
significado das palavras à época se justifica por ser ele então reconhecido como um trabalho sério e de valor.
Justifica-se sobretudo porque, além de redigir uma biografia de Morais Silva, conforme se verá em capítulo
posterior desta tese, Varnhagen fazia uso de seu dicionário. Nas anotações à obra de Gabriel Soares, em
vários verbetes encontram-se referências ao trabalho do lexicógrafo. Cf. VARNHAGEN, 1971 (1851)
(Comentário). No Prefácio, publicado no segundo volume da primeira edição da HGB, Varnhagen discutiu a
questão da ortografia das palavras empregadas e, acerca o uso de onde, donde e adonde, remetia o leitor para
o Diccionario de Morais. CF. VARNHAGEN, 1857, p. XIV (Prefácio). Em nota à seção sobre a Conjuração
Mineira, remetia o leitor para o Diccionario de Morais onde encontraria o sentido da palavra conluio,
empregada na frase. Cf. VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. II, p. 312, nota 21. Nesta tese, o dicionário de
Morais será várias vezes utilizado para se buscar o significado contemporâneo de palavras empregas por
Varnhagen.
65
MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. II, p. 231.
66
MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 641.
49
Como daria testemunho, a favor de si mesmo, de que era um homem da pesquisa e da
exegese documentais? Aos nossos olhos, o historiador deveria permanentemente apresentar
as provas de suas assertivas. Essa não era exatamente a perspectiva de Varnhagen.
Em 1877, ele redigiu um longo Prólogo para a segunda edição do primeiro volume
da HGB. Na oportunidade, reapresentava o vasto processo de pesquisa realizado e o longo
tempo dispensado para preparar a HGB:
(...) rebuscamos antigos documentos nos archivos, não só do Brazil, como de
Portugal, da Hespanha, da Hollanda e da Italia; percorremos pessoalmente todo o
nosso littoral; visitamos os Estados Unidos, várias Antilhas e todas as republicas
limitrophes; - tudo, há mais de trinta annos (...).
67
No mesmo texto, comparava seu trabalho ao de Rocha Pitta e afirmava que,
diferentemente do historiador baiano, que “não recorrêra ás mais puras fontes da história”
68
,
ele não se poupara “a nenhuns esforços, a fim de remontar ás fontes mais puras”.
69
A nova
edição da HGB, afiançava, era superior à obra de Rocha Pitta, graças aos “muitos mais
factos inéditos apurados”.
70
Ele concluía seu Prólogo informando o leitor de que pretendera
que a obra saísse “tão compacta quanto possível”, para torná-la mais barata. Por esse
motivo, optara por não reproduzir “em cada um delles [dos volumes] os documentos já
extensamente explicados no texto”
71
. Advertia, então, que adotara o mesmo procedimento
usado na primeira edição da HGB:
Depois de haver reduzido as nossas explicações a mui poucas páginas, as essenciaes
de satisfação ao público, não as julgando de um interesse permanente, maximè para
os estranhos, tivemos por mais acertado o deixal-as para um pequeno folheto
separado, que opportunamente será publicado.
72
Muito provavelmente esse “folheto” jamais foi publicado. Em nenhuma das
biobliografias de Varnhagen a ele se faz referência. Também não há, nos fichários da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e no da Biblioteca Nacional de Lisboa, qualquer
texto indexado do autor que possa ser o mencionado folheto. Muito provavelmente também
nos manuscritos do historiador não existe tal texto, porque Clado Lessa teve amplo acesso à
Biblioteca Varnhagen do Itamaraty, onde estão depositados seus papéis, e não faz menção à
67
VARNHAGEN, 1877, p. X. (Prólogo).
68
VARNHAGEN, 1877, p. XIII. (Prólogo).
69
VARNHAGEN, 1877, p. X. (Prólogo).
70
VARNHAGEN, 1877, p. XV. (Prólogo).
71
VARNHAGEN, 1877, p. XVII. (Prólogo).
72
VARNHAGEN, 1877, p. XVII. (Prólogo).
50
existência de texto inédito manuscrito de seu biografado. Porém, ao leitor de seu Prólogo,
Varnhagen solicitava que tivesse resignação diante das sentenças emitidas por uma
“autoridade insuspeita”; a esse leitor não deixava opção senão a de concordar com os
“incontestáveis” argumentos apresentados por ele, frutos “das provas que, mediante aturado
estudo, conseguimos reunir”.
73
Entretanto, não necessariamente essas provas precisavam
ser apresentadas, porque o autor, enquanto uma autoridade ou um erudito, tinha a
prerrogativa de atribuir a seu texto a “carta de recommendação”.
74
Resta ainda destacar e analisar duas palavras empregadas pelo próprio Varnhagen.
Em maio de 1842, conforme visto, o encontramos declarando, em correspondência ao então
primeiro-secretário do IHGB, que recolhia “os elementos para a organização de uma
conveniente História geral do Brazil”. No Post Editum ao primeiro volume da HGB,
datado de 1854, ele explicava que existiam tipos diferentes de narrativa histórica, e
empregava a palavra conveniente:
Uma coisa é a Historia Geral (...) de um Estado, e outra são as actas das suas
cidades e villas; os annaes e fastos das suas provincias; as chronicas dos seus
governantes; as vidas e biographias de seus cidadãos benemeritos. Aquella não
impede que nestas se trabalhe, em cada qual tem a narração proporções
convenientes.
75
Em 1857, em carta dirigida ao primeiro-secretário do IHGB, destacava que um dos méritos
da HGB, percebido por um sócio da agremiação, estava na capacidade demonstrada por seu
autor de “combinar a conveniencia com a verdade”.
76
A outra palavra, elocução, Varnhagen a emprega em 1852 quando afiançava ao
Imperador que “sem factos muito averiguados” não haveria matéria com que escrever a
história e, exatamente por isso, eles eram, em grau de importância, muito superiores a uma
“esmerada elocução”.
77
Isso não implicava uma desconsideração da importância de uma
esmerada elocução. O que se destaca é que ao empregar as palavras conveniente e
elocução, Varnhagen nos coloca frente a conceitos bastante diferentes dos nossos. Se
73
VARNHAGEN, 1877, p. XIII. (Prólogo). Max Fleiuss afirmava que Varnhagen “escrevendo sobre a
historia, não procurava discutir, nem averiguar mais: dictava sentenças; em sua consciencia de de mestre, que
realmente era, julgava sem appellação”. Cf. FLEIUSS, 1930, p. 412.
74
As expressões “autoridade insuspeita” e “carta de recommendação” foram empregadas por Varnhagen para
qualificar afirmações de Toqueville por ele transcritas. Cf. VARNHAGEN, 1877, p. V. (Prólogo).
75
VARNHAGEN, 1854, p. 479. (Pos Editum).
76
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 250.
77
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 229.
51
novamente recorrermos ao Diccionario de Morais Silva, poderemos ler que “conveniencia”
é definida como: “accomodar os meyos á conveniência da obra, i. é, como convèm”.
78
Ao
passo que “elocução” era “a parte da Rhetorica que ensina a fallar com escolha de palavras
e boa collocação”.
79
Assim, para escrever uma história “conveniente”, o historiador não
poderia prescindir da “elocução”: era preciso que ele acomodasse sua escrita segundo o
gênero em questão e que cuidasse da forma da composição – aliás, Varnhagen já dissera
que um historiador deveria ser, além de um erudito e filósofo, um literato.
Ao anunciar que colocara as notas à obra de Gabriel Soares ao final do texto, para
não “interromper com a minha mesquinha prosa essas páginas venerandas de um escritor
quinhentista”, Varnhagen adotava uma estratégia de anotação. Porém, escolhia essa forma
porque, a seu ver, a anotação não poderia “interromper” as “venerandas páginas” do colono
quinhentista. Ou seja, uma narrativa histórica deveria ser feita de maneira que o leitor a
percorresse sem interrupção, sem nenhum tipo de interpolação. Parece razoável supor que
ao empregar essas expressões, referindo-se à obra de Gabriel Soares, Varnhagen
apresentava sua avaliação acerca da forma da escrita da história. Talvez essas expressões
nos auxiliem a entender por que o historiador, depois de tanto se dedicar à pesquisa, não
realizou com regularidade o árduo trabalho da citação, que dele cobraram seus anotadores.
Isso não significa, porém, que Varnhagen não se sentisse na obrigação de anotar seu
texto. Vejamos dois exemplos. Um primeiro: em 1854, no Post Editum acrescentado ao
primeiro volume da HGB, ele informava a seu leitor:
(...) não duvidamos de que em uma nova edição, se a chegarmos a preparar, teremos
de dar a alguns pontos maior desenvolvimento: e se a preparar outro, talvez que lhe
sejam de não pequeno auxilio, sem ir mais longe, as nossas notas no fim de cada
pagina.
80
Ao que tudo indica, se seguirmos a avaliação de Capistrano de Abreu e mesmo de
Clado Lessa, esse trabalho de citação não chegou a ser feito a contento, pelo menos de
acordo com o que modernamente se esperaria. Afinal, em 1877, Varnhagen reeditou sua
HGB e colocou no frontispício da obra o chamamento: “muito augmentada e melhorada
pelo auctor”. Foi essa a edição utilizada por Capistrano para preparar a terceira reedição,
78
MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 465.
79
MORAIS SILVA, 1922 (1913), vol. I, p. 653. Acerca da discussão da conveniência dos estilos nos gêneros
literários, ver a discussão feita no terceiro capítulo desta tese.
80
VARNHAGEN, 1854, p. 479. (Post Editum).
52
que saiu incompleta, em 1906. Foi nela também que trabalhou Rodolfo Garcia para
preparar a chamada terceira reedição completa da HGB. Nos dois casos, eles trabalharam
muito na anotação da obra.
Um segundo exemplo: no Post-facio à Historia das luctas (...), Varnhagen insistia
com seu leitor para que confiasse em suas afirmativas, porque tivera “para isso razões”.
Razões, lembrava, que vinham respaldadas por “quarenta anos” de trabalho dedicados à
“apuração de fatos”. Porém, no que se refere às provas, lamentava não poder todas fornecer
porque não as tinha mais à mão. E justificava: suas mudanças constantes o obrigavam a não
“acumular papéis” e lhe era impossível guardar “tantos fatos na memória”:
Não foi o texto de Frei Domingos Teixeira (...) que me deu argumentos para
escrever que os capitulados no Maranhão (...) voltaram a Pernambuco (...); podendo
entretanto assegurar que tive para isso razões que me convenceram, bem que não as
apontei; e que espero tornar a encontrar. (...) Na vida que tenho levado, mudando
tantas vêzes de residência, de país, até de continente, nem sempre tenho podido ter
nos meus papéis e apontamentos a ordem que desejara. Os originais, aliás pouco
bem escritos, uma vez dados à imprensa, para não amontoar papéis, são logo
inutilizados; e, às vêzes, entre tantos fatos, não me é possível conservar tudo na
memória. Muitos outros fatos tenho conseguido apurar, no longo curso de perto de
quarenta anos, a respeito dos quais, se hoje me pedissem as provas, eu não saberia
dá-las, nem indicar o processo mental seguido no seu achado.
81
Em 1957, contratado pela editora Melhoramentos para preparar uma terceira edição
da História da independência do Brasil, Hélio Viana redigiu uma Explicação onde
apresentava um histórico das edições existentes da obra e expunha os critérios que adotara
para atualizar as notas do texto de Varnhagen, “com antigas e novas fontes documentais”.
Sobre as citações elaboradas pelo próprio autor da obra, Viana informava que:
“desdobramos as bibliográficas, geralmente muito resumidas, assim como identificamos
pessoas, obras e referências parcialmente indicadas no texto ou em notas”.
82
A simples
contagem do número das anotações feitas por Hélio Viana ao Prefácio da obra em questão
são uma amostra do que dizia: das 29 notas desse texto, apenas duas foram redigidas por
Varnhagen! Do mesmo modo que os críticos anteriormente apresentados, Viana apontava a
parcimônia com que Varnhagen construía suas anotações.
81
Varnhagen apud. LESSA, 1954, vol. 224, p. 193-194. A História das luctas... foi publicada pela primeira
vez em 1871, em Viena, e reeditada no ano seguinte, em Lisboa. Cf. FLEIUSS, 1930, p. 431.
82
VIANA, 1957, p. 10.
53
Poder-se-ia argüir que, não tendo Varnhagen publicado a História da
independência, o que ocorreu apenas anos depois de sua morte, não teria sido concluído o
trabalho de preparação. Contudo, ele chegou a redigir um Prefácio para a obra, em que
destacava que o trabalho do “historiógrafo” era de o de cotejar “os documentos e as
informações orais apuradas” que conseguira “ajuntar”. Por isso, afiançava que a
importância daquela obra estava, primeiramente, em trazer “não pouca novidade”. Em
segundo lugar, esperava que ela fomentasse a coleta de novos documentos e informações,
“enquanto há de alguns sucessos testemunhas vivas ou possuidoras de documentos”.
Apesar de parecer incentivar a busca de novas fontes, Varnhagen valorizava seu trabalho,
porque, afinal, garantia que dava “notícias de tôdas as publicações, jornais e folhetos que
foram sucessivamente dirigindo a obra da Independência”.
83
Porém, no que se refere à anotação da obra, informava: “Não nos sendo possível
estar em cada página citando as provas do que afirmamos (...) contentar-nos-emos de
indicar as principais daquelas em que, segundo nossos exames, manifestamente se
equivocou o conhecido orador contemporâneo (...)”.
84
Por que não lhe era possível
apresentar as provas de suas assertivas? E por que só apresentar aquelas que comprovassem
o erro de um “orador contemporâneo”? Porque, a seu ver, o trabalho do historiador
consistia sim em recolher e apontar “novos documentos e informações fidedignas” e, na
seqüência, emitir “certos juízos” e dar “com critério e boa-fé e imparcialidade (...) o seu
veredicto”.
85
Ao leitor cabia se fiar na palavra do autor, que se apresentava como um
ardoroso investigador da verdade.
Talvez, aqui, a reflexão de Anthony Grafton acerca da forma empregada por Ranke
para escrever a história nos auxilie:
Ranke escribió una historia de los métodos de investigación y su aplicación en la
literatura histórica que resultó ser una autojustificación (y autodramatización) más
que una descripción precisa. (...) Desde el punto de vista de la práctica en lugar de
la teoría, el desarrollo de la historia parece más gradual (...) más evolutivo que
revolucionario.
86
83
VARNHAGEN, 1957, p. 11/13.
84
VARNHAGEN, 1957, p. 13.
85
VARNHAGEN, 1957, p. 11.
86
GRAFTON, 1998, p. 129.
54
Assim como Ranke, Varnhagen debruçou-se sobre a documentação, mas, apesar de
insistir na importância da pesquisa incansável, não necessariamente ela se traduziu, em sua
obra, em anotações ao texto. Pode-se, então, retornar ao texto de 1852, Como se deve
entender a nacionalidade (...), escrito por Varnhagen para anunciar a D. Pedro II a
conclusão da HGB. Depois de asseverar que de “tudo quanto dizemos temos documentos
que apparecerão em seu logar”, Varnhagen esclarecia que a “verdade histórica” era
“apresentada da forma que, segundo a consciencia do historiador, interessa e convém á
nação”. Como homem dotado de “estudos, meditação e conhecimento”, o historiador tinha
em suas mãos o poder de “não faltar á verdade” e conscientemente narraria as “glorias da
pátria”. Reconhecido por seus contemporâneos como um homem “erudito” ou “douto” e
como um pesquisador incansável, restava a eles se fiarem nas palavras do
“historiographo”.
87
Ao historiador cabia a tarefa de criteriosamente narrar os
acontecimentos, de forma conveniente ao gênero em questão.
Talvez não por acaso, Celso Vieira identificou em Varnhagen uma semelhança com
os “velhos chronistas portuguezes”. Segundo ele, Varnhagen era um escritor clássico, que
tinha “um sólido criterio de julgamento do bem e do mal (...), mercê de valores e formulas
tradicionaes, para o encômio ou para o estigma”.
88
A seu ver, Varnhagen escrevia de forma
narrativa, encadeando “élo por élo” os fatos”.
89
Esse critério, segundo Vieira, era o mesmo
critério de Damião de Góes, que “no prólogo da Chronica del Rei Dom Emanuel afirmava: ‘(...)
o mais substancial que no screver das Chronicas se requere ... he com verdade dar a cada hum o
louvor, ou reprehensam que merece’.”
90
Por fim, é preciso destacar que a análise aqui realizada se restringiu às declarações do
próprio Varnhagen, extraídas de suas cartas e prefácios, e às avaliações dos mais destacados de
seus críticos. Sabe-se, contudo, que resta o imenso trabalho de avaliação das anotações de
Varnhagen a seus textos. Afinal, não se pode negligenciar o fato de que, no primeiro volume da
HGB, ele acrescentou ao volume um conjunto de Notas e provas do primeiro tomo
91
. Foram 54
páginas de notas destinadas às várias secções que compunham o volume. No segundo volume
87
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 233/234.
88
VIEIRA, 1923, p. 35-36.
89
VIEIRA, 1923, p. 38-39.
90
Damião de Góes apud. VIEIRA, 1923, p. 36, nota 1.
91
VARNHAGEN, 1854, p. 420-474. (Notas).
55
da HGB, publicado em 1857, Varnhagen repete o procedimento e as Notas
92
ao volume
aparecem entre as páginas 465 e 484. Apesar de não se ter realizado uma análise dessas notas,
pode-se informar que, por exemplo, a única nota sobre a Inconfidência Mineira está na página
478 e diz o seguinte: “Da boa rainha D. Maria I, recitou o illustre brazileiro José Bonifacio em
20 de março de 1817 um bello elogio, que foi impresso no Rio de Janeiro – por Paula Brito, em
1839”.
93
Como se vê, ao contrário do que por princípio poderíamos imaginar, nenhuma alusão é
feita a documentos ou bibliografia por ele utilizados
Acredito que restam, provavelmente, pelo menos dois duros trabalhos a serem
realizados e que escapam aos fins desta tese. Um seria o de confrontação entre a narrativa de
Varnhagen e as notas por ele apresentadas, para se analisar o modo como ele anotou seu texto.
Se na avaliação da crítica especializada, Varnhagen pouco anotou sua obra, o que caracterizaria
as poucas notas que fez? Um segundo trabalho seria o de analisar as anotações feitas por
Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia na HGB. Não fora Capistrano o primeiro a denunciar a
ausência de notas no texto de Varnhagen? O que significou para ambos os críticos anotar a obra
de Varnhagen?
92
VARNHAGEN, 1857, p. 465-484. (Notas).
93
VARNHAGEN, 1857, p. 478. (Notas)
Capítulo 2
O historiador como luz e guia para a marcha da
nação
1
1
O título deste capítulo recupera e reproduz de forma proposital um trecho do texto aqui estudado.
57
O segundo preceito apresentado por Varnhagen em Como se deve entender a
nacionalidade... como necessário a um homem que almejasse o título de historiador é o de
ser filósofo. E, a seu ver, um historiador seria filósofo se, dotado de “discernimento
crítico”, fosse capaz de controlar “seus impulsos menos nobres de odio, ou de despeito, ou
de vingança” e de professar “maximas de política e de sciencia do governo, applicaveis a
seu paiz”.
2
Ao homem que se submetia a esse preceito, cabia escrever uma história que
(...) além de testemunha do tempo passado, [fosse] luz e guia para a marcha da
nação à qual a história deve não só ministrar exemplos de patriotismo e de governo,
como apontar e censurar os erros e faltas cometidas no passado, a fim de poupar às
gerações futuras o cair nos que já custaram tristes experiências a outros.
3
Assim, ao escrever a HGB, Varnhagen o fazia com a intenção de comprovar que a
história tinha uma missão entre os homens e que sua obra, por sua vez, a desempenharia de
forma correta e plena. Para ele, em primeiro lugar, a história era luz, porque, ao iluminar o
passado e clarear o caminho percorrido pelos homens, era capaz de apontar rumos e guiar
os homens no presente; a história ministrava lições que, se bem ensinadas e aprendidas,
possibilitariam ao presente evitar erros cometidos no passado e, sobretudo, incentivar a
imitação de ações gloriosas. Perseguindo essa finalidade, a história faria “originar (...) as
glorias da patria” dos feitos e acontecimentos da “civilização do actual Império”. O
historiador-filósofo teria a capacidade de resgatar do esquecimento os gloriosos feitos que
haviam conduzido à formação e à consolidação da nacionalidade brasileira. Para tal,
aconselhava Varnhagen, o historiador-filósofo também deveria agir como um dramaturgo,
escondendo, “por traz dos bastidores”, as “ações (boas ou más) desnecessarias, segundo seu
modo de ver”, para a “geração actual”.
4
Em sua Correspondência ativa, é recorrente a idéia da missão patriótica à qual
estava submetida uma obra de história e donde advinha sua importância. Em várias
passagens de suas cartas, Varnhagen expôs e explicou a seus correspondentes esses pontos
de vista.
2
VARNHAGEN, 1948 (1852), p.229.
3
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 229.
4
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 234.
58
Em outubro de 1839, em sua primeira carta dirigida a Januário da Cunha Barbosa,
sugere que o então primeiro-secretário do IHGB deveria fazer ingerências junto ao governo
do Brasil no sentido de se contratarem pessoas responsáveis para realizar cópias de
documentos referentes ao Brasil em arquivos de bibliotecas européias. E por que assumir
tal investimento? Porque, a seu ver, ao governo cabia a tarefa de “alimentar o espírito de
nacionalidade”, que tinha como primeira base “a história e o conhecimento do paiz natal”.
5
Varnhagen acreditava
que, a um governo preocupado com a edificação da Nação, cabia a
tarefa de fomentar o conhecimento da história pátria, porque nela se teria o alicerce do
nacionalismo nascente. Não por acaso, em outra oportunidade, novamente dirigindo-se ao
mesmo interlocutor, fazia referência ao Instituto Histórico, qualificando-o como uma
“instituição útil e patriótica”, por assumir a missão de fomentar o conhecimento histórico.
6
Também em algumas das cartas endereçadas ao Imperador, Varnhagen expôs sua
compreensão da importância da escrita da história. Em 1851, listava os trabalhos que até
então produzira “em prol do paiz”, avaliando que tais trabalhos o credenciariam a solicitar
“a graça de uma condecoração” como recompensa, porque neles “ideou symbolizar (...) a
unidade do Império”.
7
Como intelectual, desempenhara seu papel; no campo das idéias,
travara sua batalha. Em 1857, comunicava a finalização do segundo volume da HGB,
rendendo graças a Deus pela idéia que tivera de prestar tão “grande serviço à nação”,
pois,
afinal, a uma obra de história cabia a missão de semear entre seus leitores os germens do
nacionalismo. Sugeria ao Imperador que a mandasse “adotar nas escolas de direito e
militares e nos colegios”, porque
não perco occasião de a pregar [a necessidade da unidade nacional] na Historia
Geral, que por si só, se for adoptada nas Academias, há de contribuir e muito a
elevar o patriotismo e a harmonia do espírito nacional, fomentada pela igualdade de
educação de todos os subditos.
8
Assegurava ainda ao Imperador que essa preocupação o acompanhara na elaboração
de quaisquer de suas obras, até mesmo na seleção das poesias do Florilégio da poesia
brasileira e na elaboração das biografias aí inseridas:
5
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 39-40.
6
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 55.
7
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 167.
8
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 246.
59
E aqui repetirei de novo a V. M. I. o que já Lhe disse em 1851, que o motivo
principal porque eu emprehendera o ‘florilégio’ e escrevia biographias de
Brazileiros de todas as províncias era para ir assim enfeixando-as todas e fazendo
bater os corações dos de umas províncias em favor dos das outras, infiltrando a
todos nobres sentimentos de patriotismo, de ‘nação’, único sentimento que é capaz
de desterrar o provincialismo excessivo, do mesmo modo que desterra o egoísmo,
levando-nos a morrer pela pátria ou pelo soberano que personifica seus interesses,
sua honra e sua glória.
9
(grifo do autor)
Talvez seja necessário destacar as expressões empregadas pelo autor: enfeixar, fazer
bater os corações, infiltrar sentimentos, desterrar o provincialismo e levar a morrer pela
pátria e por seu soberano. Varnhagen construía a imagem de que as províncias do Império
deveriam-se constituir como um feixe único e integrar suas particularidades ao todo, graças
ao trabalho de reuni-las e firmemente atá-las. As províncias deveriam possuir um único
coração, que, pulsando unívoco, garantiria a todas elas, em conjunto, e a cada uma, em
particular, a própria existência. No reverso da imagem, é possível pensar que, se fosse
atingido aquele coração, o feixe como um todo estaria condenado à morte.
Em 1853, quando da publicação do terceiro volume do Florilégio da poesia
brasileira
10
, ele chegou mesmo a comparar sua empreitada intelectual a um movimento de
Cruzada, o que faria dela uma verdadeira luta santa em defesa da nacionalidade brasileira.
11
Lutara, fazendo uso da erudição acumulada ao longo de anos, e não pretendia abandonar o
campo de batalha. Como um cruzado, não aposentaria jamais sua espada e, em inúmeras
ocasiões, dela faria uso para defender seus pontos de vista, sempre classificando-os, contra
avaliações contrárias, como patrióticos. Os trabalhos que escrevera e escrevia, garantia,
eram filosóficos exatamente porque comprometidos com a constituição da nacionalidade
brasileira.
Entretanto, foi nos prefácios que redigiu para seus trabalhos que Varnhagen tratou
com maior prodigalidade da importância moral das obras de história. A seus olhos, o leitor
de sua obra não deveria ser apenas informado daqueles pressupostos, mas, sobretudo,
persuadido da sinceridade do autor e de sua escolha irrepreensível. Os prefácios são parte
dessa estratégia de persuasão, respondendo antecipadamente a possíveis críticas, expondo e
9
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 246.
10
Os dois primeiros tomos do Florilégio foram publicados em 1850 e o terceiro apenas em 1853. No terceiro
tomo, Varnhagen incluiu um suplemento contendo autores já abordados nos tomos anteriores. Cf. PEIXOTO,
1987, p. 22-25.
11
VARNHAGEN, 1987 (1853), vol. 3, p. 201.
60
explicando os fins a que se propunha alcançar. Procurava, assim, abrigar-se sob o manto
dos esclarecimentos justificadores de suas escolhas e dos juízos emitidos, elaborando uma
verdadeira autocrítica preventiva, na qual expunha tanto os fins que deveriam nortear a
escrita de uma obra de história quanto a sua utilidade moral.
Nas dedicatórias insertas na HGB, Varnhagen afirmava que ela vinha ao encontro da
compreensão que o próprio Imperador tinha da utilidade de uma obra de história. Na
Dedicatória da primeira edição do primeiro volume da HGB, lembrava que “todo o Brasil”
sabia que o Imperador amparara a formação do Instituto Histórico com o “intuito de
fomentar o estudo da Patria Historia”. Como um governante esclarecido, Varnhagen
avaliava que o Imperador compreendera ser a história “tão importante ao esplendor da
Nação, á instrucção commum e até ao bom governo do paiz”. Apresentava-se, por seu
turno, como um autor associado ao Instituto e como um humilde e leal súdito que tivera a
felicidade de ser favorecido e estimulado pela “Regia Munificencia”. Assim, a obra que
vinha entregar ao público, além de “votada áquela associação, de que faz parte”, era um ato
de agradecimento ao apoio recebido e uma resposta às expectativas do “sabio imperante”.
12
Do Imperador solicitava, então, que dispensasse a ela, como herdeira de tantos vínculos e
apoios, a mesma proteção votada ao Instituto e ao autor. Mais de vinte anos depois, na
Dedicatória escrita em 1877, ele insistia na idéia de que não era ele, autor, que
compreendia a importância de uma obra de história, mas que a HGB era uma resposta
positiva ao intuito do Imperador, “que reconheceu e sanccionou a importancia do estudo da
Historia da Nação (...)”.
13
E essa não seria, insinuava, uma atitude altruísta de D. Pedro II.
Não por acaso, Varnhagen colocara no frontispício da HGB, como uma epígrafe, a assertiva
do Visconde de Cairu: “a importancia de uma Historia Geral de qualquer Estado
independente é reconhecida em todo o paiz culto”.
14
Ou seja, todos que se debruçassem
sobre a HGB deveriam saber que ela, como obra de história nacional, partilhava desse
reconhecimento, por ser útil
(...) para ministrar dados aproveitáveis na administração do Estado, e também para
fortificar os vínculos da unidade nacional, e aviventar e exaltar o patriotismo, e
12
VARNHAGEN, s/p, 1854. (Dedicatoria).
13
VARNHAGEN, 2ª ed., 1877, s/p., tomo I. (Dedicatória).
14
Varnhagen colocou a frase do Visconde como epígrafe dos dois volumes na primeira edição da HGB.
61
ennobrecer o espírito público, augmentando a fé no futuro e na glória das lettras
(...).
15
Na edição do primeiro volume da HGB, de 1854, Varnhagen acrescentou à seção de
Introdução um subtítulo: Duas palavras sobre esta obra. As “duas-palavras” diziam
respeito a dois temas introduzidos pelo autor na forma de perguntas que ele mesmo se
prontificava a responder. Uma delas era: por que escrever uma obra de história? E
prontamente respondia: uma obra de história, imparcialmente escrita, tinha o propósito de
ministrar “algum conselho para os que venham a ter a missão de governar ou de organizar
estados novos” porque “os exemplos do passado lhe ajudam a indicar conveniencias do
futuro”.
16
Ela tinha, portanto, um público-alvo, formado por aqueles que conduziam os
destinos da nação, pois o estudo da história pátria lhes forneceria exemplos de ações
meritórias, das quais retirariam ensinamentos para iluminar e encaminhar suas decisões na
contemporaneidade.
Em 1857, no Prefácio do segundo volume da HGB, Varnhagen apresentava-se
como um “abnegado literato” que dedicara parte de sua vida a preparar uma história geral
do Brasil. Lembrava que, segundo o conde de Ericeira, esse era um trabalho “útil ao
publico e ingrato para o autor”, porque, uma vez concluído, logo o autor passava a ser
julgado pelos fatos que omitira ou dados que alterara, devido a novos documentos que
conhecera. Sobretudo havia crítica, acreditava, quando o historiador, “dotado de convicções
profundas e de caracter firme e independente”, propunha-se a “corrigir opiniões erradas”.
17
Voltava a insistir na proposição de que uma obra daquela natureza auxiliaria “ao estadista,
ao jurisconsulto, ao publicista, ao diplomata, ao estrategico, ao naturalista, ao funcionario e
aos varios artistas”
18
, ou seja, aos condutores do destino da nação. E insistia que, para ser
vitorioso na batalha a enfrentar, recorrera às “fontes mais puras e genuínas” e, sobretudo,
fizera “apreciações justas e imparciaes para justa e imparcialmente poder caminhar de
15
VARNHAGEN, 2ª ed., 1877, s/p., tomo I. (Dedicatória).
16
VARNHAGEN, 1854, p. 11-12. (Introdução).
17
VARNHAGEN, 1857, p. V-VI. (Prefácio)
18
VARNHAGEN, 1857, p. VII. (Prefácio). Logicamente, ao apontar a utilidade de uma obra de história para
esses homens, Varnhagen também escolhia seus leitores. Numa sociedade marcada pela escravidão, pelo
latifúndio, pela desigualdade e pela exploração social, ele se dirigia a uma ínfima parte dela, que era, contudo,
apresentada como a nação em sua totalidade
62
frente levantada, expondo a progressiva cilivisação do Brazil, sentenciando imparcilmente
aos delinquentes e premiando o merito”.
19
Foi no Prólogo da reedição da HGB, em 1877, que ele mais se estendeu sobre os
temas morais que, conforme acreditava, envolviam a escrita da história. Lançava mão,
então, da “autoridade insuspeita” de Toqueville, para responder àqueles que “imaginem de
menos interesse o estudo da nossa história”. Afiançava que, segundo o autor citado, era o
estudo da história que possibilitaria a um povo conhecer e valorizar “todas as tradições do
seu passado único”, enquanto seu desconhecimento o tornava propenso a cair em guerras
civis infindáveis ou sob o jugo de estrangeiros.
20
Mas, a seu ver, o estudo da história do Brasil era ainda muito mais profícuo a seus
cidadãos do que se imaginava. E isso porque, avaliava, fora “entre as principaes [nações] da
America a que custou mais esforços e mores trabalhos aos seus colonizadores”. Lembrava
que, contrariamente aos colonizadores espanhóis, que encontraram povos “obedientes e
com certa civilisação”, e aos ingleses, que desfrutaram de um clima ameno, “sem cobras
nem animaes venenosos”, o colono português havia-se defrontado com uma natureza
indomável e um clima abrasador. Esse colono também se achou frente a frente com hordas
selvagens, contra as quais foi obrigado a lutar. Nessas lutas, lembrava, “não poucos
pereceram e foram por elles devorados”. Assim, fora “á custa das lágrimas do exílio” que
os colonos “legaram (...) a nós, seus herdeiros, as casas fabricadas, as fazendas criadas, as
villas e cidades fundadas, - a vida, a religião, o commercio, a riqueza, a civilização, ... a
pátria em fim”.
21
Assim, haveria possibilidade de se imaginar que a existência, no Brasil
independente, de “eminentes cidades policiadas e fontes de riqueza, abertas pela
agricultura, pela industria e pelo comercio”, era fruto do acaso? Logo em seguida
respondia: “Não. Custára a vida e o trabalho de um grande número de gerações (...). (...)
muitos [colonos] nos legaram acções meritorias e de abnegação e desinteresse, que não só
por gratidão como até por conveniencia, nos cumpre commemorar (...)”.
22
E era exatamente
por isso que concordava com o desembargador Alencar Araripe, de quem citava:
19
VARNHAGEN, 1857, p. IX. (Prefácio).
20
VARNHAGEN, 1877, p. VIII-IX. (Prólogo).
21
VARNHAGEN, 1877, p. VIII-IX. (Prólogo).
22
VARNHAGEN, 1877, p. VI. (Prólogo).
63
(...) nada excita tanto o esforço do homem para o bem como a recordação das
nobres acções dos seos maiores... O zelo de suffragar a virtude dos Paes é já nos
filhos um princípio de virtude. Supprima-se ás nações o conhecimento do seu
passado e teremos a humanidade sempre no berço da infancia.
23
Em todo o caso, era fundamental que o leitor percebesse não ser ele, autor, quem
valorizava o empreendimento de redigir uma obra de história, mas, sim, autoridades
insuspeitas.
O historiador consciencioso era aquele que, como ele, não se poupara esforços para
remontar “às fontes mais puras” e para poder, assim, “escrever antes um livro util e proprio
a estimular o trabalho e a prática das boas ações”.
24
E útil era, segundo Varnhagen, narrar
os feitos e acontecimentos que permitiam recompor, numa linha única, desde o início da
colonização, a formação da unidade da nação. Como historiador consciencioso, escrevera
uma obra que tinha em mira “(...) fornecer dados aproveitáveis na administração do Estado,
(...) fortificar os vínculos da unidade nacional, e aviventar e exaltar o patriotismo, e
enobrecer o espírito público, aumentando a fé no futuro e na glória das letras (...)”.
25
Uma
história que tinha, portanto, preocupação com o presente e o futuro da nação, a qual o
historiador, por sua vez, se propunha a bem orientar e encaminhar, graças aos exemplos que
fornecia. Varnhagen acreditava que sua obra era uma lição de patriotismo que cabia aos
vivos conservar na memória, para servir à manutenção e à consolidação da unidade
nacional. Enfim, orgulhoso, podia-se apresentar como um historiador-filósofo, como um
verdadeiro mestre e guia da nação.
2.1. A historia magistra
Com essa concepção, Varnhagen atualizava a compreensão dos fins e da
importância da escrita da história que vinha da Antiguidade clássica, como o próprio autor
explicitamente manifesta em carta de 1858, dirigida a D. Pedro II, no trecho em que
comenta o recebimento de uma carta elogiosa de Martius, pouco depois da publicação do
segundo volume da HGB:
23
VARNHAGEN, 1877, p. VII. (Prólogo).
24
VARNHAGEN, 1877, p. X-XII. (Prólogo).
25
VARNHAGEN, 1877, s/p. (Dedicatória).
64
De Martius recebi uma carta honrosíssima de parabens pela conclusão da minha
historia. É escripta em Münich no dia de Natal. Segundo elle o maior merecimento
da minha obra esta no caracter, e segundo suas próprias palavras uma ‘obra que
respira tanto patriotismo, tão clássico sentimento moral antigo, tão são desejo de
melhorar a ordem social, uma obra que respira toda gravidade, pela qual os antigos
tanto nos encantam’ – vem muito a tempo etc. Não remetto a V. M. I. a carta
original porque trata ella de outros muitos pontos sobre perguntas delle acerca de
etymologias botânicas etc. brasílicas, e não tenho agora tempo para copial-a.
26
(grifos do autor)
Von Martius era um homem de prestígio junto ao círculo de D. Pedro II – como
também em círculos intelectuais europeus. Em 1847, ele vencera um concurso proposto
pelo IHGB, com um texto intitulado: Como se deve escrever a História do Brasil. À época
da premiação, o secretário do Instituto, Januário da Cunha Barbosa, avaliara que o texto de
von Martius era “como um farol de uma história, que dará honra ao sábio que a
empreender”.
27
Ora, Varnhagen girava esse farol em direção à sua obra – afinal, ela recebia
o reconhecimento das mãos do próprio autor premiado. Porém, o que se destaca é que von
Martius valorizava não as pesquisas realizadas ou os documentos antigos encontrados e
examinados, mas o “tão clássico sentimento moral antigo, tão são desejo de melhorar a
ordem social”. E Varnhagen se dizia honradíssimo com as palavras do botânico bávaro e
provavelmente se sentia duplamente recompensado: recebera o reconhecimento de von
Martius e realizara a história magistra dos gregos e romanos. Afinal, segundo von Martius,
“o maior merecimento” da HGB estava na correta realização dos pressupostos prescritos
pelos antigos clássicos para a escrita da história: uma obra dessa natureza deveria, no
sentido prescritivo do verbo, ter preocupações morais. Ao escrever ao Imperador e revelar
as congratulações recebidas, Varnhagen se mostrava dignificado por elas. Certamente o
elogio de von Martius era memorável, a seus olhos, porque discriminava a envergadura
moral da HGB.
Pode ser também que a satisfação de Varnhagen se devesse mesmo à
correspondência entre o que dizia von Martius e o que ele esperava alcançar com a HGB.
No ano anterior, quando da publicação do segundo volume da História Geral, ele escrevera
26
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 259.
27
Apud. WELHING, 1994, p. 721.
65
a D. Pedro II, informando ter grifado, no volume a ele endereçado, passagens onde se
poderia “melhor conhecer o caracter e a lealdade do escriptor”.
28
Em 1877, no Prólogo à HGB, Varnhagen informava seu leitor que não seguira
nenhum modelo na escolha dos assuntos tratados na obra e que
Longe de nos limitarmos á narração dos successos politicos, ou a estereis
biographias dos mandões, cujas listas ordenadas alias julgamos da maior
importância para a chronologia, procurámos occupar-nos principalmente dos factos
mais em relação com o verdadeiro desenvolvimento e civilisação do paiz (...),
procurando sempre escrever antes um livro util e próprio a estimular o trabalho e a
práctica das boas ações (...).
29
O que lhe parecia central e que defendia, era que uma história nacional deveria ser,
antes de mais nada, uma “História geral”. Essa história geral da civilização do Brasil,
permitiria a seu povo sentir-se partícipe do todo único da nacionalidade brasileira, o que
apartaria o provincialismo e evitaria que interesses locais e parciais se colocassem acima
dos interesses gerais. Sua obra, garantia, era útil porque “representava (...) a integridade do
Brasil”
30
e oferecia modelos de “boas ações”. Logicamente, as ações boas, segundo sua
compreensão, eram aquelas ligadas à efetivação do processo colonizador, fundador da
nacionalidade.
Varnhagen não estava sozinho em sua compreensão da história como “mestra da
vida”, que, pelos exemplos do passado, era capaz de conduzir os homens em seu trabalho
de consolidação e de perpetuação de sua nação. Essa concepção já fora expressa, em 1836,
por Domingos José Gonçalves de Magalhães, nas páginas da Niterói, Revista Brasiliense:
Tudo o que poder concorrer para o esclarecimento da historia geral dos progressos
da humanidade merecer deve a nossa consideração. Jamais uma Nação poderá
prever o seu futuro, quando ella não conhece o que ella é, comparativamente com o
que foi. Estudar o passado, é ver melhor o presente, é saber como se deve
marchar.
31
Para Magalhães, ao presente cabia restaurar as ruínas do passado e reconhecer os
erros cometidos, porque um povo que desconhecia seu passado, jamais poderia encaminhar
28
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 238. Infelizmente não consegui localizar o volume da HGB que foi
endereçado por Varnhagen a D. Pedro II.
29
VARNHAGEN, 1877, p. XI.
30
VARNHAGEN, 1857, p. VIII-VI.
31
MAGALHÃES, 1978 (1836), p. 144-145.
66
bem seu futuro. Em 1840, Januário da Cunha Barbosa reafirmava, nas páginas do periódico
da agremiação, que:
A História, tornando-lhe [ao homem de Estado] presente a experiência dos séculos
passados, ministra-lhe conselhos tão seguros como desinteressados, que lhe aclaram
os caminhos que deve seguir, os escolhos que deve evitar, e o seguro porto, a que
uma sólida manobra pode felizmente fazer chegar a nau do Estado.
32
A partir dessa concepção da história, pode-se considerar que Varnhagen esperava
que sua obra fosse útil não apenas para seus contemporâneos, mas acreditava que ela
alcançaria o reconhecimento da posteridade e seria eternamente relembrada como um
monumento de patriotismo e de amor à verdade histórica.
Em várias oportunidades manifestou-se sobre essa expectativa. Em maio de 1853,
escrevia a D. Pedro II, referindo-se ao processo de impressão da HGB, e remetia inclusa
uma primeira versão da dedicatória que incluiria na obra. Nela o autor declarava esperar
que a obra chegasse à posteridade.
33
Em fevereiro de 1854, voltava à questão: “fica como
minha obra de uma vez escripta, e que ella viverá eternamente, e fará eternamente honra,
Deus mediante, ao Brazil e ao reinado de Seu Excelso Protector”.
34
No Prefácio da edição
da HGB, de 1857, novamente previa que a “posteridade decretará as producções que hão de
aparecer escriptas em cada uma das sempreverdes folhas dessa coroa. Ousadamente nos
atrevemos a assegurar que aspiraria a Historia Geral a entrar na competência (...)”.
35
Pode-
se supor que ele esperava que sua obra, eternizada, legaria também a seu autor as glórias da
posteridade.
E essa glória Varnhagen perseguiu com bastante afinco ao longo de sua vida,
julgando ser um objetivo louvável de todo homem que se dedicava às letras. Em 1872,
escrevia a Antônio Feliciano de Castilho e lhe aconselhava a realizar “qualquer árdua
32
Apud. GUIMARÃES, 1988, p. 15. Manoel Luís Salgado Guimarães afirma que a história era vista pelos
membros do IHGB como um instrumento “para a compreensão do presente e encaminhamento do futuro”.
Segundo o autor, essa concepção de história abrigava “aspectos de uma visão antiga e moderna de se pensar a
história. A perspectiva moderna dessa concepção residia na idéia da “marcha linear e progressiva que articula
futuro, presente e passado”. No presente trabalho se busca, ao contrário do que empreendeu Guimarães,
compreender a visão antiga de história presente em Varnhagen e que também, parece razoável indicar, era
partilhada pelos membros do IHGB. Cf. GUIMARÃES, 1988, p. 12/15
33
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 202.
34
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 213. Em outubro de 1854, em nova carta a D. Pedro II, Varnhagen
informava que fizera modificações na dedicatória a ser incluída na HGB para que melhor exprimisse “quanto
sente meu coração”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 216.
35
VARNHAGEN, 1857, p. VIII. (Prefácio).
67
traducção” para enfrentar a “pouca appetencia para trabalhos litterários”, na qual se
encontrava. Lembrava ao correspondente que essa era uma tarefa capaz de “levar por diante
dois grandes estímulos para uma alma magnânima: os do amor da pátria e do amor da
gloria”.
36
Dedicar-se a trabalhos “literários” era buscar a eternidade. Uma pretensão que,
revelada na correspondência particular, era, contudo, dissimulada nos textos destinados à
publicidade. Na Introdução redigida para o Florilégio da poesia..., Varnhagen afirmava
que no primeiro século da colonização vieram para o Brasil apenas aqueles que buscavam
riquezas. Segundo ele, os poetas portugueses preferiam se dirigir à África e à Ásia, onde
conseguiam melhor satisfazer sua ambição de glória e esclarecia: “as miras do litterato
alcançam mais alto: não é aos gôsos, nem mesmo ás glórias terrenas a que aspira – é á
glória immortal”.
37
Como um homem dedicado às letras, ele também esperava alcançar essa
glória”.
38
Varnhagen abordava, assim, temas que foram caros aos antigos: a função moral da
história e o incentivo à imitação e à emulação, a convicção de ser necessário escrever uma
história imparcial, capaz de premiar e de vilipendiar, a certeza de que escrevia a verdade
histórica e a esperança de se alcançar a eternidade graças à obra que se edificava. Esses
pressupostos, por sua vez, recebiam o aval de contemporâneos que reconheciam nele a
competência para escrever uma história segundo aquelas finalidades. A relação com o
pensamento clássico também pode ser constatada em várias passagens da HGB, nas quais
Varnhagen faz referência a autores como Cícero, Heródoto, Strabo, Tácito, ou em que o
autor recomendava que se buscassem informações na Ilíada.
39
36
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 365.
37
VARNHAGEN, 1946, p. 10. (1846).
38
Talvez não seja demais lembrar que essa é uma questão que se encontra em Quintiliano: “Le principal
aiguillon de la passion pour la littérature, n’est-ce pas l’amour de la gloire? QUINTILIANO, 1954, vol. 4,
livro XII, p. 273. Segundo François Hartog: “Enquanto a eloqüência do fórum triunfa e se consuma no
presente, a história, memória rerum gestarum, endereça-se à posteridade, como promessa de imortalidade: ela
se encarrega do desejo de permanência. (...) Além do mais, fazendo brilhar a glória de seu objeto, o
historiador aumenta, no mesmo movimento, sua própria reputação (fama)”. Cf. HARTOG, 2001, p. 184.
39
Em passagens de sua obra, Varnhagen mencionava os autores antigos e o fazia sempre de forma positiva,
recomendando-os como modelos ou como fontes de informação. Por exemplo, numa nota ao Discurso
Preliminar, incluso na primeira edição do segundo volume da HGB, afirmava que até os pagãos admitiam a
existência do pecado original e recomendava a consulta aos escritos de “graves escriptores”, como Cícero e
Ovídio. Cf. VARNHAGEN, 1857, p. XVIII, nota 1. (Discurso Preliminar). A consulta ao Diccionario de
Morais se tem que: “grave – (...) autor grave; i. é, de juízo, e probidade. Digno de ponderação, atenção (...).
Autorizado, digno de fé: v.g. testemunha – serio, sizudo, decoroso”. Cf. MORAIS SILVA, 1922 (1913), p.
100, t. 2. Assim, ao afirmar que autores como Platão, Cícero e Ovídio eram “graves”, Varnhagen os apontava
68
Essa aproximação pode parecer estranha, uma vez que, segundo François Hartog, o
tópos da história como magistra, passando por reformulações, “permaneceu ativo até o fim
do século XVIII”.
40
A mesma opinião é partilhada por Adolfo Hansen, que reconhece essa
permanência na historiografia dos séculos XVI a XVIII.
41
Entretanto, Varnhagen, escrevendo sua obra no segundo e terceiro quartéis do
século XIX, manifestava, em suas assertivas, idéias e conceitos que permitem aproximá-lo
da tradição preceptística antiga. Afinal, não é demais lembrar, ele fora elogiado por von
Martius por atualizar os “sentimentos morais antigos” em sua HGB, ficara honrado e
notificara a avaliação ao próprio Imperador. No início do século XX, Pedro Lessa fazia
uma avaliação da obra varnhageniana muito semelhante a essa de Martius. Na sessão solene
de comemoração do centenário de nascimento de Varnhagen, realizada no IHGB em 1916,
afirmou que a leitura dele permitia verificar que o historiador oitocentista fora “um adepto
convicto da velha eschola de Polybio e de Plutarcho, que pretenderam fazer da Historia um
vasto repositório de licções moraes e políticas”.
42
Pedro Lessa aponta Políbio e Plutarco como possíveis modelos de sua concepção de
História; o próprio Varnhagen fazia referência a Cícero, Heródoto, Homero, Strabo e
Tácito, em páginas da HGB; von Martius avaliava que sentimentos morais antigos
como autores dignos de serem consultados, porque deveriam ser imitados e emulados. Na HGB, encontram-se
outras citações de escritores antigos. Vejam-se alguns exemplos. Na terceira secção, Varnhagen descrevia as
ações praticadas pelos tupis em suas guerras, classificava-as como “maldades” e concluía: “não nos devemos
admirar, quando outros selvagens, no dizer de Horácio, brigavam só pela posse de uns covis ou de algumas
bolotas”. Na secção IV, lembrava que a América foi conquistada quando na Europa a “imprensa publicava os
monumentos da civilização grega e romana”. Informava que os europeus então conheceram cenas
degradantes, “muitos costumes absurdos, e quase incríveis, descritos por Heródoto, Strabo, Tácito e César”.
Na mesma secção, discutia a provável origem dos indígenas tupis e defendia a hipótese de serem eles
descendentes do povo cário. Argumentava que esse povo fugira para a América, depois da derrota nas guerras
que se seguiram à guerra de Tróia, e que tinham, provavelmente, origem “de raça aparentada com os
Egípcios”. E para que o leitor tivesse a confirmação dessas idéias, convidava-o a voltar à Ilíada para verificar
que “os cários não eram gregos”; acrescentava que a informação também era dada por Strabo. Cf.
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 36/53/55.
40
HARTOG, 2001, p. 20.
41
HANSEN, 1994, p. 47.
42
LESSA, Pedro, 1917, p. 633. O trecho destacado por Pedro Lessa da obra de Varnhagen (o Prefácio a
Historia das luctas com os hollandeses) é o seguinte: “Achavamo-nos (...) no Rio de Janeiro, e
accidentalmente em Petrópolis, e ainda estava por decidir a titânica lucta que o Brasil sustentou no Paraguai
(...) e eramos testimunhas dos desfallecimentos de alguns, quando, com o assentimento de varios amigos, nos
pareceu que não deixaria de concorrer a acoroçoar os que já se queixavam de uma guerra de mais de dous
annos, o avivar-lhes a lembrança, apresentando-lhes, de uma fórma convincente, o exemplo de outra mais
antiga, em que o proprio Brasil, ainda então insignificante colonia, havia luctado, durante vinte e quatro
annos, sem descanço, e por fim tinha vencido, contra uma das nações naquelle tempo mais guerridas da
Europa”.
69
perpassavam o trabalho do historiador. Considerando o próprio título dado por ele ao texto
que enviou ao Imperador, em 1852 – Como se deve entender... – poderíamos supô-lo como,
ao menos, leitor de Luciano de Samósata (assim como os membros do IHGB que
propuseram o tema para o concurso do qual von Martius saiu vencedor).
43
Seria também
um leitor de Políbio e de Plutarco?
Em todo caso, estamos diante de autores que, conforme destacou François Hartog,
argumentaram “a favor do assunto [da escrita da história], de sua importância”.
44
Os
escritos desses autores, que sobreviveram até nós, constituem parte, como mostra Hartog,
de um longo debate acerca da forma de se escrever a história e de seus fins. Todos esses
escritores que aparecem citados, direta ou indiretamente, por Varnhagen – como Cícero,
Tácito e Luciano – ou que se supôs por ele lidos – como Políbio e Plutarco –, fizeram parte
de uma “história de longa duração” de reflexão e prescrição sobre a história.
Ao mencionar esses autores, o que fazia sempre de forma positiva, Varnhagen
parece sugerir que os tenha lido e/ou os julgava como autores respeitáveis. Desse modo,
acabou por ficar indicada sua pertinência a uma longa tradição, que foi alimentada e
atualizada à medida que teve suas idéias e conceitos retomados.
Dessa longa tradição, três autores antigos merecem distinção: Políbio, seguindo a
suposição de Pedro Lessa, no início do século XX; Cícero, porque Varnhagen o citou,
mesmo que numa curta passagem; por fim, Luciano de Samósata, porque tornou-se difícil
não estabelecer uma filiação, a partir da aproximação dos títulos dados a seus textos e pelo
mesmo modo de tratamento da metodologia da história (normativo e moral). Ler as defesas
que esses autores fizeram da importância moral de se escrever uma obra de história – ou
seus louvores à história – nos auxilia a iluminar os conceitos com os quais Varnhagen
trabalhava. É importante lembrar que Varnhagen escrevia no momento de confirmação do
Estado Nacional Brasileiro e que sua obra lhe parecia portadora da missão moral de
43
O título dado por Varnhagen a seu texto – Como se deve ... – relembra aquele dado por Luciano de
Samósatra que, em 165 da nossa era, publicou um texto intitulado: Como se deve escrever a história.
Varnhagen, ao redigir o texto que endereçou ao Imperador, propunha-se a apresentar as regras que seguira
para corretamente redigir a história do Brasil. Seu texto era normativo, assim como o de Luciano, que
expunha e defendia os preceitos a serem observados e seguidos pelos historiadores na escrita da história. Cf.
HARTOG, 2001, p. 225-235. Também von Martius, em seu texto preparado para o concurso proposto pelo
Instituto Histórico, era prescritivo.
44
HARTOG, 2001, p. 11.
70
corroborar o regime político e de colaborar para manutenção e consolidação da unidade
nacional.
Políbio – que já recebe a concepção da história como “ fornecedora de exemplos a
serem imitados” como “um tema convencional, senão obrigatório”
45
– fazia sua apologia,
definindo-a como a “oportunidade de melhoramento mais acessível aos homens”, como o
meio mais seguro de se preparar “para as atividades políticas” e, por fim, como “o mestre
mais distinto e o único que ensina a suportar com nobreza as mudanças da sorte”. O estudo
da história, prescrevia Políbio, era pragmático, pelos ensinamentos de experiências úteis
aos vivos, sendo apenas os “medíocres” incapazes de por eles se interessarem. Mas advertia
que a história, para ser útil aos homens, deveria fornecer-lhes uma visão de conjunto do
tema tratado. Metaforicamente, argumentava que a visão de “partes disjuntas de um corpo
que foi animado e belo” não permitia a compreensão do grande animal anteriormente
existente. A história deveria apresentar “uma visão de conjunto e equilibrada do todo”
46
,
pois:
(...) deve-se pensar que a história particular contribui muitíssimo pouco para a
experiência e a certeza do todo. Portanto apenas o entrelaçamento e a comparação
de todos os feitos uns com os outros – e ainda a partir de suas semelhanças e
diferenças – alguém poderia dispor da capacidade e da possibilidade de, pela
observação, tirar da história, a um só tempo, tanto o útil, quanto o prazeroso.
47
Cícero, por sua vez, não foi historiador, mas escreveu “muito sobre a história” e
suas principais formulações, que, constituindo-se no “fundo da cultura historiográfica
ocidental”, foram, como ressalta Hartog, “incansavelmente retomadas até a época
moderna”.
48
Em Do Orador, Cícero prescreve regras para aqueles que se dedicassem ao
ofício de historiador:
Com efeito, quem ignora que a primeira lei da história é não ousar dizer algo falso?
Em seguida, não ousar dizer algo que não seja verdadeiro? Que não haja, ao se
escrever, qualquer suspeita de complacência? Nem o menor rancor? Evidentemente,
esses fundamentos são conhecidos por todos, mas a própria construção repousa nos
fatos e nas palavras (...).
49
45
HARTOG, 2001, p. 171.
46
Políbio in HARTOG, 2001, p. 111/117.
47
Políbio in HARTOG, 2001, p. 117.
48
HARTOG, 2001, p. 15/182.
49
Cícero in HARTOG, 2001, p. 145,
71
Cícero, como observa Hartog, define a história como “testemunha dos séculos, luz
da verdade, vida da memória, mestra de vida, mensageira do passado”. Porém, a condição
para ser tudo isso, era a de o historiador responder afirmativamente a todas as regras a eles
apresentadas a história trata da verdade e o historiador é sempre imparcial em seus juízos.
O historiador ciceroniano não deveria “ousar dizer nada de falso; não ousar dizer nada que
não seja verdadeiro; não ser suspeito de complacência ou rancor”, conforme conclui
Hartog.
50
Dele, exigia-se que fosse imparcial e, para isso, Cícero prescrevia que
apresentasse os fatos e que
a inteligência dos fatos requer a ordem dos tempos e a descrição dos lugares. Pede
também, já que em fatos importantes e dignos de memória se espera que haja
primeiro deliberações, depois execução e em seguida resultados, que sobre as
deliberações seja indicada qual é aquela que o autor aprova (...).
51
Ou seja, havia um conjunto de topoi a serem empregados por aquele que se
dedicasse à escrita da história: obediência à ordem cronológica, descrição dos lugares onde
os eventos se passaram, escolha de acontecimentos dignos de serem rememorados, narração
desses acontecimentos e, por fim, emissão, por parte do historiador, de seus juízos. Assim,
havia uma forma própria para o historiador narrar a história, que era distinta daquela
empregada pelos advogados no fórum, em que prevalecia a eloqüência; ao historiador cabia
“perseguir um gênero oratório difuso e arrastado, que flua regularmente com uma certa
suavidade”.
52
Como um orador, Cícero preocupava-se com a forma da escrita da história, e
essa tinha, a seu ver, estreita ligação com os fins a que o historiador deveria se propor:
narrar os fatos e escrever a história verdadeira, pois apenas ela se apresentaria insuspeita
aos olhos do leitor e, exatamente por isso, seria “mestra-da-vida”.
Ainda em Cícero se encontra a discussão acerca da glória a ser alcançada pelo
historiador com sua obra. Em uma carta dirigida a seu amigo Lucéio, Cícero lhe pedia que
redigisse sobre o período em que ele fora cônsul, porque tinha certeza de que ambos
sairiam em vantagem: ele, Cícero, por ter seu próprio nome “celebrado através de teus
50
Cícero in HARTOG, 2001, p. 181.
51
Cícero in HARTOG, 2001, p. 151.
52
Cícero in HARTOG, 2001, p. 151.
72
escritos” e Lucéio, por angariar louvores graças aos próprios escritos.
53
Segundo Hartog, na
perspectiva dos autores latinos, que também era a de Cícero:
Enquanto a eloqüência do fórum triunfa e se consuma no presente, a história,
memória rerum gestarum, endereça-se à posteridade, como promessa de
imortalidade: ela se encarrega do desejo de permanência. (...) Além do mais,
fazendo brilhar a glória de seu objeto, o historiador aumenta, no mesmo
movimento, sua própria reputação.
54
Contudo, foi Luciano de Samósata quem compôs, segundo Hartog, “o retrato de
Tucídides como modelo do historiador”.
55
O texto de Luciano, Como se deve escrever a
História, traduzido e apresentado por Hartog, impressiona por seu profundo tom
preceptístico. Luciano começa estabelecendo as qualidades pessoais do historiador, que
deveria ser “incorruptível, livre, amigo da franqueza e da verdade” e comportar-se como
um “juiz equânime”. Essas qualidades, como sugere Luciano, estariam em Tucídides que,
num movimento duplo, pretendera discernir entre “a virtude e o vício na historiografia” e
escrever “para a posteridade a verdade dos acontecimentos”. Ainda de Tucídides, Luciano
declara recuperar a idéia de que a “utilidade é o fim da história”, pois que “se alguma vez,
de novo, acontecem coisas semelhantes, poder-se-á (...), consultando-se o que foi escrito
antes, agir bem com relação às circunstâncias que se encontram diante de nós”.
56
Mas se o
historiador visava aos homens de seu tempo, Luciano advertia ser fundamental que ele
mirasse sobretudo a posteridade. Prescrevia então que o historiador não escrevesse para
bajular os vivos, mas simplesmente escrevesse a história “com a verdade”. E concluía:
“tens o cânon e o prumo de uma história justa”.
57
Enfim, parece razoável supor que Varnhagen seguia um “cânon” e um “prumo” de
uma história que tinha raízes muito mais antigas do que até agora se avaliou.
53
Cícero in HARTOG, 2001, p. 153.
54
HARTOG, 2001, p. 184.
55
HARTOG, 2001, p. 223.
56
HARTOG, 2001, p. 225.
57
Luciano in HARTOG, 2001, p. 233.
73
2.2. A philosophia e a tradição crítica da obra de Varnhagen
Ao longo do tempo, os críticos da obra de Varnhagen têm destacado sua visão
utilitarista da história – uma tradição de avaliação fundada ainda no século XIX. Capristano
foi o primeiro a chamar a atenção para ela. Segundo ele, Varnhagen escreveu “paginas
inspiradas pelo amor do futuro da Pátria”
58
, e que fora esse amor à terra natal que o levara a
não colocar “o debate [seja sobre o conhecimento histórico ou sobre alguma opinião que
emitira] no terreno abstrato e absoluto da justiça, porém no da conveniência e da
utilidade”.
59
De acordo com Capristano, conveniente, para Varnhagen, era a história que
expunha os graves problemas que afligiam a pátria – problemas tais como o dos indígenas,
o da emigração estrangeira, o da segurança, dentre outros – e que, simultaneamente,
auxiliava os vivos a solucioná-los. Por isso, conclui, a história, para Varnhagen, era “um
meio de chamar a emigração, e pedir a atttenção do governo para o estado pouco defensavel
do paiz (...)”.
60
Essa história era útil porque conduziria à construção de um ideal de nação.
Por fim, também é de Capistrano a avaliação de que o Varnhagen historiador comportava-
se como um juiz em um tribunal, punindo ou louvando os homens e suas ações:
(...) a Conjuração bahiana de João de Deus, um cataclysma de que rende graças á
Providencia por nos ter livrado; a Revolução pernambucana de 1817, uma grande
calamidade, um crime em que só tomaram parte homens de intelligencia estreita, ou
de caracter pouco elevado. Sem D. Pedro a independência seria illegal, illegitima,
subversiva, digna da forca ou do fuzil.
61
Muitos intelectuais, no século XX, retomaram e repisaram a apreciação de
Capistrano sobre a obra de Varnhagen, destacando-lhe a visão moralista e pragmática da
história e o papel judicativo atribuído ao historiador.
58
ABREU, 1931, p. 131. (a)
59
ABREU, 1931, p. 137. (a) Apesar de Capistrano não especificar a qual debate fazia então referência, pelo
contexto do texto, que é um necrológio no qual avaliava a obra em geral do Visconde, pode-se supor que dizia
respeito tanto ao debate no campo do conhecimento histórico quanto das sugestões que Varnhagen apresentou
sobre reformas a serem implementadas no Brasil. Pode-se destacar que o Memorial Orgânico foi o texto onde
Varnhagen sintetizou suas propostas para vários dos problemas brasileiros. A seu ver esses problemas seriam:
a localização litorânea da capital, a escravidão negra, as fronteiras, a necessidade de incrementar a imigração,
o tamanho físico desigual das províncias brasileiras. No Memorial, Varnhagen expunha esses problemas e
apresentava propostas para solucioná-los. Cf. VARNHAGEN, 1849; VARNHAGEN, 1850.
60
ABREU, 1931a, p. 137/138.
61
ABREU, 1931a, p. 137-138.
74
Em 1903, por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, Oliveira Lima
afirmava que Varnhagen fizera “obra de moralista” com sentido pragmático, pois escrevera
para incentivar os homens de seu presente à ação, “pela lembrança dos feitos gloriosos de
outras gerações” e que comportava-se como um juiz, porque tinha a convicção de que ao
historiador cabia a missão de bem transmitir ao futuro as ações elogiáveis ou censuráveis
ocorridas no passado.
62
Já na segunda metade do século XX, Américo Jacobina Lacombe considerava que
as pesquisas e os estudos de Varnhagen foram norteados pelos desafios apresentados por
seu tempo. Num momento de consolidação da unidade nacional e de reafirmação da
monarquia, Varnhagen fez parte, dizia Lacombe, de um grupo de intelectuais que chamara
a si a tarefa de “criar a unidade cultural do país e combater o provincialismo”
63
,
esclarecendo os homens e apontando-lhes diretrizes para a ação. Lacombe avalia que
Varnhagen fez da história “uma arma para, explicando o passado, armar a nação para a
conquista do futuro”.
64
José Honório Rodrigues, em três trabalhos distintos sobre a obra de Varnhagen,
concordava com a avaliação de que o historiador oitocentista buscara a “lição da História,
que servisse à administração e ao Governo”. Porém, de modo distinto dos examinadores
anteriores, Rodrigues analisava criticamente a obra varnhageniana. Por um lado, asseverava
que a concepção histórica de Varnhagen beirava o idealismo, devido a sua convicção de
que “a máxima grandeza e elevação dos Estados se deve às providências de seus
pensadores mais profundos”.
65
Por outro, Rodrigues dizia que Varnhagen foi “um
historiador comprometido”
66
, que “(...) tinha a consciência mais íntima e essencial de seu
dever como historiador: a de que lhe cabe a responsabilidade do julgamento, ainda que erre,
pois na raiz grega da palavra história está a função de juiz, a de julgar.
67
Rodrigues dizia
que concordava com essa compreensão da história – de que o historiador julga ao escrevê-
la – embora divergisse radicalmente das posições políticas, sociais e religiosas do
62
LIMA, 1903, p. 28/25-26.
63
LACOMBE, 1967, p. 151.
64
LACOMBE, 1967, p. 141-154. Lacombe reafirmou esta análise da obra de Varnhagen, em texto posterior.
Cf. LACOMBE, 1991.
65
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 186/181-182.
66
RODRIGUES, José Honório, 1969, p. 195-196/ 170-171.
67
RODRIGUES, José Honório, 1988, p. 19.
75
historiador. Ele denunciava os julgamentos de Varnhagen como tendenciosos, pois, em sua
avaliação, os homens bons para o historiador eram sempre aqueles que se colocaram ao
lado dos colonizadores portugueses e da religião católica.
68
Contudo, Rodrigues advertia
que Varnhagen tinha profunda convicção de que, além de servir à verdade, escrevia uma
história que convinha e que era útil à nação brasileira, exatamente por rigorosamente
apresentar “seu julgamento histórico sôbre as personalidades”.
69
Conforme destaca
Rodrigues, Varnhagen julgava, punindo ou louvando os personagens históricos, segundo
seus valores conservadores.
À análise de Rodrigues, Nilo Odália somou a idéia de que a HGB “resume e
consubstancia os anseios, as preocupações, os ideais, os projetos de uma classe dominante
em relação a uma nação em constituição”.
70
Em sua opinião, a obra de Varnhagen
traduziria uma visão de mundo política porque assumiu a dupla missão de revelar que a
nação em formação era fruto do processo colonizador e civilizador, europeu e branco, e de
orientador da continuidade dessa formação.
71
Mais recentemente, Odália retomou seus
estudos de Varnhagen e confirmou que, nele, a história está prenhe da noção de que sua
função era a de criar um passado único e contínuo, que daria sentido à idéia da nação e que
essa atividade contribuiria para determinar o futuro dela.
72
Contemporaneamente, o professor Arno Wehling apontou a necessidade de
compreender as relações entre a produção intelectual de Varnhagen e seu contexto social.
Segundo Wehling, Varnhagen partilhava com os homens de seu tempo das preocupações
com o futuro político da nação, o que denunciaria, a seu ver, uma combinação do
pragmatismo ilustrado do século XVIII com o progressismo próprio do pensamento liberal
do século XIX. Para Wehling, Varnhagen partilhava, com seus contemporâneos, das
preocupações com o processo de formação das nações européias e americanas e imbuía-se
da missão se instrumentalizá-los para agir na direção correta, para bem edificá-las.
Varnhagen, conforme destaca Wehling, foi um homem que lançou mão do pensamento
68
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 180.
69
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 186/187.
70
ODÁLIA, 1979, p. 13-14.
71
Cf. ODÁLIA, 1979, p. 18.
72
Cf. ODÁLIA, 1997, p. 38.
76
filosófico iluminista e liberal para construir suas obras, que deveriam servir à obra maior de
construção do estado nacional brasileiro.
Capistrano, Oliveira Lima e Lacombe constataram a perspectiva moralista de
Varnhagen – a de escrever uma obra que convinha à nação em formação por ministrar-lhe
exemplos úteis. José Honório e Nilo Odália procuraram descortinar os vínculos políticos
dessa obra: aquele denunciava os preconceitos varnhagenianos, para quem bons homens
seriam apenas os brancos colonizadores; este expunha os interesses das classes dominantes
defendidos na obra de Varnhagen. Já Wehling buscou a vinculação dos conceitos
varnhagenianos a valores partilhados por seus contemporâneos: o pragmatismo setecentista
e o progressismo oitocentista.
Contudo, a análise da correspondência ativa e sobretudo dos prefácios de
Varnhagen permitem afiançar que o autor, escrevendo em meados do século XIX, no
momento de constituição do estado nacional brasileiro, lançou mão da compreensão dos
antigos da história e a atualizou para escrever uma obra de história que servisse, segundo
compreendia, à nação em formação. Para isso, ele fazia o elogio da história, apresentando-a
como capaz de relembrar aos vivos a lenta e dura luta travada, ao longo de séculos, para a
formação das bases da nacionalidade. A história era útil aos homens do presente, conforme
entendia, porque a ela estava reservada a missão de apresentar aos vivos feitos gloriosos e
de fomentar neles o desejo da imitação e da emulação. Assim, declarava escrever com fins
morais, apresentando belos e úteis exemplos. Mas se esse era o fim da história, para
alcançá-lo, ela deveria pautar-se pela narrativa da verdade. Nesse aspecto, as assertivas de
Varnhagen lembram Tácito, para quem o historiador deveria escrever “sem amor” e “sem
ódio”, ou “sem cólera e sem parcialidade”.
73
Ou o aproximam de Tucídides, para quem,
segundo lembrava Luciano no século II, o historiador deixava para “a posteridade a verdade
dos acontecimentos”.
74
E exatamente por dever escrever a história verídica, o historiador alcançava a
imparcialidade e deveria afastar-se da eloqüência. Para Varnhagen, o discurso floreado
apenas serviria para inocular nos leitores o sentimento de suspeita em relação à
imparcialidade com que o historiador trabalhara. Mas ser imparcial, adiantava-se ele, não
73
Tácito in HARTOG, 2001, p. 221.
74
Luciano in HARTOG, 2001, p. 225.
77
significava que o historiador não emitisse juízos, pois, como um bom mestre, ele deveria
indicar, para seu leitor, aquelas ações que aprovava, assim como, conseqüentemente, as que
reprovava. Para que a história fosse mestra, ela tinha de cumprir seu papel de orientar
corretamente a vida aqueles que a estudassem. O historiador não poderia furtar-se a essa
obrigação. Nesse aspecto, as reflexões de Varnhagen também o aproximam de Tácito, para
quem “poucos têm a sagacidade para distinguir o honrado do covarde, o útil do nocivo”.
75
Porém, o historiador, como juiz, recolheria as provas, as estudaria com atenção e, após a
análise cuidadosa, emitiria, enfim, seu justo veredicto. Ao contrário do advogado, que
precisa convencer sua platéia, o historiador apenas proclama a sentença final, afiançando a
seu leitor que se restringira àquilo que estudara nos documentos. A história prescinde da
eloqüência.
Por fim, o que o historiador esperava alcançar com sua obra? Sem medo de censura,
porque o censurável seria exatamente o contrário, ele desejava a glória. Preferencialmente,
ela deveria vir ainda durante sua vida, com os títulos e homenagens que Varnhagen não se
cansou de reclamar, sobretudo a D. Pedro II. Afinal, sua obra não tinha em mira, como
declarava, o bem da “pátria que o vira nascer”?
76
Mas, caso seus contemporâneos fossem
incapazes de reconhecer todos os esforços despendidos para completar sua obra e os anos
de juventude que perdera em benefício de sua nação, declarava que não se magoaria, pois
tinha certeza de que a posteridade reconheceria sua obra e se encarregaria de garantir-lhe a
glória.
Num momento de estruturação do estado nacional brasileiro, Varnhagen escreveu a
HGB sob a perspectiva dos interesses da elite brasileira e defendeu a formação de um país
branco e europeizado. No entanto, estruturou sua obra a partir de uma releitura dos
clássicos antigos. Foi neles que buscou tanto a concepção da história utilitária quanto a
noção de que a atividade do historiador era eminentemente judicativa.
77
75
Tácito in HARTOG, 2001, p. 215.
76
Em várias de suas cartas a D. Pedro II, Varnhagen pede condecorações como reconhecimento pelos
trabalhos que produzira. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961.
77
Celso Vieira, em 1923, destacara que Varnhagen pautava-se por um padrão de escrita da história, que ele
seguia “o bom senso dos velhos chronistas portuguezes (...), para o encomio ou para o estigma”. Segundo ele:
“É o mesmo critério do insigne Damião de Góes, advertindo no prólogo da Chronica del Rei Dom Emmanuel,
‘... o mais substancial que no escrever das Chronicas se requere ... he com verdade dar a cada hum o louvor,
ou reprehensam que merece’.” Cf. VIEIRA, 1923, p. 36. (grifo do autor). De todo modo, Vieira destacava
78
Varnhagen sempre foi reconhecido como um pesquisador incansável e um autor
preocupado com a autenticidade e fidedignidade dos documentos que utilizava como
fontes. Isso não significa, entretanto, que tenha deixado de se comportar como um juiz,
distribuindo reprimendas e louvores aos homens do passado. Escrevia para seus
contemporâneos e para as gerações vindouras: seus louvores e repreensões deveriam servir
de lição aos homens do presente e do porvir. Exatamente pela missão iluminadora dos
homens do presente, a obra histórica deveria ser persuasiva –, sendo também preciso
lembrar que um historiador, segundo Varnhagen, além de erudito e filósofo, deveria, no
sentido prescritivo do verbo, ser um literato.
também a “convicção judiciária ou dogmática” presente na obra de Varnhagen: “(...) a história antiga e
moderna, segundo Francisco Adolpho de Varnhagen, não é em substancia outra cousa senão uma variante
daquelle julgamento dos mortos, a que procediam, outr’ora, os sacerdotes (...). Juiz elle tem a idea fixa da
prova: incumbe ao historiador, antes do mais, recolher depoimentos, pesquisar factos, colligir indicios.
Argamassada a prova, o juiz dará em seguida, com os seus fundamentos claros e breves, uma sentença
inappellavel”. Cf. VIEIRA, 1923, p. 43-44.
Capítulo 3
Deve pois, alguma vez que outra, o historiador
sentir como os poetas, e expressar-se como
elles...
1
1
O título deste capítulo recupera e reproduz de forma proposital um trecho do texto aqui estudado.
80
Tratar-se-á, agora, do último dos três preceitos que, em 1852, Varnhagen,
escrevendo ao Imperador, apontara como imprescindível ao historiador. Ainda que
apresentado em último lugar a seu correspondente, não parece ser a Varnhagen menos
central o fato de que um historiador, para bem narrar o passado, além de erudito e filósofo,
tivesse de ser um literato. No texto em questão, Como se deve entender a nacionalidade...,
a apresentação deste preceito foi aquela na qual o autor mais se estendeu.
Um de seus trechos é especialmente significativo, no que diz respeito à
compreensão que tinha Varnhagen da prática da escrita e da forma de tratar e usar a
linguagem e ao entendimento do que para ele significava ser um historiador-literato.
Venha porem o homem mais erudito nos annaes historicos d’um paiz, e seja elle tão
philosopho e estadista quanto se queira, poderá ainda escrever uma pessima
historia, com que não ature um só leitor, se o desalinho da linguagem, e a
incorrecção de frase a faz confusa, ou o que ainda é peor, se os ornatos
pretenciosos, alheios tantas vezes á difficil ‘facilidade’ que deve mostrar o estylo, a
tornão desagradavel. Na narração histórica o historiador deve, quanto possa
aproximar seu estylo do dos oradores de tribuna. Cumpre ser correcto, puro,
harmonioso e tão elegante quanto possa, sem cair em affectação. Todo escripto
historico depende de narração; e esta se acha submettida aos preceitos da unidade,
da verossimilhança, (pois verdades ha que mal contadas se tornão ‘inverossimeis’),
e do interesse para todo o leitor. Estes preceitos não forão conhecidos ou entendidos
pelos dous chronistas do Rio de Janeiro, Pizarro e Balthazar, e por isso suas obras
não tem quem as lea. Pelo que fica dito, obvia é a necessidade de que o historiador
seja a um tempo erudito, philosopho, e litterato. Como porém exigir-se poesia na
Historia, quando parece que a invenção d’aquella tão opposta é a verdade n’esta
requerida. Entendamo-nos. Exige-se no historiador algum gênio poetico mas não
para ‘improvisar’. A poesia, em sua accepção mais lata, tem por fim
verdadeiramente a expressão do bello e do sublime, quer com a harmonia da
palavra, quer com os sons da musica, quer com o pincel ou o cinzel, quer
finalmente com as proporções architectonicas. Tem alma poetica todo o que é capaz
de conceber e definir, por qualquer d’estas formas, o bello e o sublime; mas
verdadeiramente, só é poeta o que em logar de combinar os sons a manejar o pincel
ou o cinzel, ou servir-se do esquadro (isto é, em logar de ser musico, pintor,
esculptor ou architeto) domina a palavra, e a obriga a moldar-se á sua concepção
‘poetica’. Factos há tão sublimes na historia de todos os povos, paragens tão
encantadoras em alguns paizes, como no nosso, acções tão bellas e generosas de
alguns heroes, que o historiador que os não descrevesse poeticamente não
interessaria o leitor, de um modo conveniente á propria verdade. Não poderá porém,
por via de regra, ter todos os dotes de historiador um poeta, digamos assim, de
profissão. A propria erudição historica que tem de colher, os aridos estudos de
politica e legislação, a que se deve dedicar, não se coadunão com a impaciencia dos
grandes genios criadores, e serião, só por si, capazes de suffocar muito estro a
menos que o poeta não fosse d’esses privilegiados do Céo, como os Schiller e os D.
81
Francisco Manueis, que reunião ao estro grandes dotes historiographicos. Deve
pois, alguma vez que outra, o historiador sentir como os poetas, e expressar-se
como elles, para poder desempenhar o seu mister. Algumas imagens poéticas não só
concilião ás vezes mais ‘interesse’, como dão á pintura mais ‘verossimilhança’.
2
(grifos do autor)
Como se pode observar, Varnhagen pretendia deixar muito explícito que era
imprescindível o historiador seguir os bons princípios do uso da linguagem. Assim, antes
de mais nada um historiador não poderia apresentar “desalinho e ser incorreto” no emprego
da língua em que escreve. Ou seja, deveria escrever segundo os rigores das regras
gramaticais de sua língua e ser “correto, puro e harmonioso” no emprego da palavra, de
forma a cativar e conquistar seu leitor.
Nesse sentido, um historiador literato era aquele que, em primeiro lugar, tinha a
gramática como fundamento e princípio da “arte de escrever e de falar corretamente (ars
bene loquendi)”.
3
Ao afirmar que qualquer obra de história seria “péssima” se fosse
“desalinhada” e “incorreta”, muito provavelmente Varnhagen fazia eco à importância
atribuída, desde a Antigüidade, às regras elementares da expressão falada e escrita. Em
Quintiliano, encontra-se a preocupação com a correção e a clareza que todo e qualquer
texto deveria alcançar. Segundo Marco Aurélio Pereira, apesar de Quintiliano afirmar
expressamente que não redigira um tratado gramatical, ele defendia “o estudo sério da
gramática, em primeiro lugar”, na formação de um orador. A correção gramatical no
emprego das palavras era a primeira norma a ser perseguida pelo autor que desejasse
alcançar a clareza e a elegância. Para Quintiliano, a gramática era o alicerce e o fundamento
indispensáveis à ciência do “domínio da palavra”.
4
Além de exigir “correção, pureza e harmonia” de um texto de história, Varnhagen
prescrevia que ele fosse “tão elegante quanto possa, sem cair em affectação”. E o que era
um texto elegante? Se recorremos ao Diccionario de Morais Silva, encontraremos a
seguinte definição para a palavra “elegante”: “Em que há elegancia: v.g. discurso, palavras
elegantes. O que falla com elegancia. Em que há bom gosto, discrição; com elegante juízo”.
Por sua vez a palavra elegância é definida como: “escolha, policia nas palavras, e no
2
VARNHAGEN, 1948 (1852), p. 230-231.
3
PEREIRA, 2000, p. 50.
4
PEREIRA, 2000, p. 61-63. Pereira destaca ainda que em Quintiliano a arte de falar corretamente envolvia
não apenas os poetas, mas todos os outros escritores. Cf. PEREIRA, 2000, p. 66-67.
82
fallar”.
5
Ter elegância no uso das palavras era empregá-las de modo “policiado”, o que, no
contexto da frase, demanda nova busca de seu significado coevo, que é inusual para nós.
Ter “polícia na palavra” significava empregá-la com polidez, com discrição ou, como dizia
Varnhagen, era preciso que se escrevesse “sem cair em afetação”. Recorrendo novamente
ao dicionário de Morais Silva: um discurso afetado era aquele escrito “sem singeleza” (...),
“apartando-se da decente simplicidade, e naturalidade”.
6
O discurso elegante era, se
seguirmos essas definições, o que parecia natural ou que não deixava à mostra os recursos
empregados em sua elaboração. Como dizia Varnhagen, era preciso escrever sem que “os
ornatos pretenciosos, alheios tantas vezes á difficil ‘facilidade’ que deve mostrar o estylo”
tornassem a obra “desagradável”.
E, para Varnhagen, um texto de história deveria ser elegante porque “todo escripto
historico depende de narração”, ou seja, ao escrever uma obra de história era preciso que se
escolhessem as palavras, que se primasse pela elegância e clareza do texto, que se seguisse
uma correta disposição da matéria e que se cuidasse da elocução. Além disso, era preciso
que o historiador desse a seu texto a aparência de naturalidade. Enfim, era preciso que o
historiador tivesse estilo. E qual seria o estilo apropriado ao gênero histórico? Varnhagen
não se furtava de apresentá-lo e, novamente categórico, ensinava que ao historiador cabia
aproximar seu estilo do “estylo dos oradores de tribuna”. Ou seja, para que o historiador
pudesse escrever de forma elegante, deveria pautar-se pelas conveniências próprias do
gênero histórico e estas eram similares às do gênero judiciário.
7
A seu ver cabia à história,
assim como aos juízes, conseguir as provas, analisá-las, para, finalmente, emitir o veredicto
final, defendendo ou acusando uma causa e provando para seus leitores a veracidade dos
fatos que narrava.
8
Como um juiz, o historiador construiria sua narrativa sem deixar
brechas para dúvidas ou questionamentos. Prescritivo, Varnhagen estabelecia que a
narrativa histórica estava submetida a regras.
5
MORAIS SILVA, 1922 (1813), vol. I, p. 651.
6
MORAIS SILVA, 1922 (1813), vol. I, p. 53.
7
Segundo Pierre Guiraud, o gênero histórico é definido como “o relato verídico e a apreciação dos fatos
importantes que constituem a vida de uma nação”. Cf. GUIRAUD, 1970 (1954), p. 24.
8
Tratando do gênero judiciário, Quintiliano prescrevia que: “Mas primeiramente devemos ver ‘Qual é o
gênero da causa? Qual a sua questão? Que coisas temos a nosso favor e que coisas contra nós?’ Depois destas
considerações passaremos a ver o que pertence à ‘prova’ e à ‘refutação’. Daí como havemos de ‘narrar’. Pois
sendo a narração a preparação das provas, não se pode fazer bem, sem primeiro se saber de que provas
havemos de servir-nos”. Cf. QUINTILIANO, 1944, vol. I, p. 146-147. (grifos do autor). Em Horácio pode-se
ler: “Que cada género, bem distribuído ocupe o lugar que lhe compete”. Cf. HORÁCIO, 1984, p. 85.
83
Do mesmo modo que na criação poética, ao redigir um texto o historiador tinha,
segundo Varnhagen, de preocupar-se com o belo; mas se o belo na poesia era alcançado
pela harmonia da forma, no discurso histórico ele era atingido graças à capacidade de o
historiador torná-lo verossimilhante, por meio da invenção apropriada.
Ora, certamente Varnhagen remete seu leitor aos ensinamentos retóricos dos
antigos, à medida que se preocupa com seus preceitos fundamentais. Assim, nos termos de
Lausberg, estudioso de retórica, pode-se dizer que uma das preocupações de Varnhagen diz
respeito à inventio, ou seja, à primeira fase de elaboração de um discurso, definida como “o
acto de encontrar pensamentos (res) adequados (aptum) à matéria (...) que servem como
instrumentos intelectuais e afectivos para obter, pela persuasão do juiz, a vitória do partido
representado”. Não se tratava, porém, tal como advertia Lausberg, de um processo de
criação, mas de se encontrar os pensamentos aptos para o discurso, por meio de “perguntas
adequadas”.
9
Por sua vez, ainda segundo Lausberg, e assim como compreende Varnhagen,
a inventio era inseparável da dispositio, ou seja, da organização das idéias segundo a
finalidade a que se destina o discurso; trata-se de uma distribuição eficaz e favorável da
totalidade do discurso para se garantir a credibilidade e combater o tédio.
Na perspectiva de Varnhagen, se a incansável e exaustiva pesquisa documental era
inerente ao trabalho do historiador, também o era sua a tarefa de saber bem traduzir seus
achados numa elegante construção discursiva. Um discurso histórico elegante deveria ser
composto a partir de uma invenção e de uma disposição da matéria capazes de torná-lo
verossimilhante. Muito enfaticamente, ele condicionava a capacidade do historiador de
narrar a verdade à forma de sua narrativa. Se bem executada, reconstituiria o passado e
convenceria os homens do presente – ou daria a seu leitor a sensação de verossimilhança.
Ser um historiador-poeta não significava, portanto, improvisar ou seguir somente a
inspiração. Significava cuidar de sua construção textual e, não por acaso, Varnhagen
afirmava que só era “verdadeiramente poeta” aquele que, “em logar de ser musico, pintor,
esculptor ou architeto (...) domina a palavra e a obriga a moldar-se á sua concepção
poética”. A revelação da verdade dependia do controle da palavra e de seu correto emprego.
Dependia também, portanto, da elocução, definida por Lausberg como “a expressão
9
LAUSBERG, 1972, p. 91. Segundo Lausberg, no século XII estas perguntas foram reunidas no hexâmetro:
quis, quid, ubi, quibus, auxiliis, cur, quomodo, quando?. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 91.
84
lingüística dos pensamentos encontrados pela inventio”. Na construção do discurso o
orador depende, segundo Lausberg, “da gramática – das regras que regulam a pureza
lingüística e idiomática – e da retórica – que é o sistema de regras de bem dizer”.
10
É preciso destacar que, no longo trecho transcrito, Varnhagen, por quatro vezes,
utilizou o verbo “dever”. E o fez no sentido prescritivo, estabelecendo a forma como se
deveria escrever a história. Para além de sua preocupação com a pesquisa infindável de
arquivos e com a exegese documental, ele entendia e acreditava desempenhar a forma papel
estruturante na narrativa histórica.
A preocupação com a forma da escrita estava, ainda, diretamente ligada ao leitor.
Ele era o motivo último do trabalho realizado, o alvo a ser atingido. Varnhagen afirmava
que um dos “preceitos” de que dependia a narrativa histórica era “o interesse do leitor”.
Essa capacidade de produzir uma “obra aturável” determinaria, no leitor, a decisão de dar
prosseguimento ou não à leitura iniciada. Somente se ele desejasse prosseguir a leitura seria
possível apresentar-lhe a totalidade histórica e convencê-lo da exatidão da narrativa
realizada, assim como da justeza dos exemplos apresentados e dos juízos e conselhos
ministrados. Da pesquisa partira o historiador, mas seu trabalho só concretizaria seus
objetivos se possuísse elegância textual, de modo a alcançar com eficácia o receptor.
11
Na carta endereçada a D. Pedro II, em 1852, Varnhagen explicava pacientemente ao
Imperador do Brasil a orientação que seguira em seu trabalho de redação da HGB: ela não
seria apenas resultado de erudição. De antemão, prevenia seu privilegiado leitor das
preocupações que o haviam levado a uma cuidadosa construção textual, segundo os
objetivos que pretendia alcançar e a compreensão que tinha do ato de escrita da história.
Forma, fins e conteúdo andavam unidos, e, se algum desses elementos faltasse a uma obra
histórica, ela não se realizaria enquanto tal. Ressalte-se que Varnhagen inverte agora a
ordem que utilizara para apresentar os preceitos inerentes ao ofício do historiador. Se na
exposição desses preceitos, ele iniciara pela exigência da erudição, pré-requisito necessário
ao ofício e vinculado à figura do autor, uma vez pronta a obra histórica, a primeira
qualidade a ser nela observada vinculava-se ao leitor, ou seja, a capacidade manifesta do
historiador de bem expressar suas idéias, ao dominar a palavra por “ser literato”.
10
LAUSBERG, 1972, p. 115.
11
Sobre o papel da história como iluminadora dos homens no presente, ver o segundo capítulo desta tese.
85
A compreensão das reflexões de Varnhagen sobre o “historiador literato” implica,
de todo modo, a compreensão também do que, para ele, e para seu tempo, estava envolvido
no tratamento das questões sobre o estilo. Pierre Guiraud lembra que data do final do
século XVIII o aforismo de Buffon (1707-1788) – “le style est l’homme même” – que foi
interpretado como eco de uma nascente compreensão da linguagem, compreensão em que o
estilo é uma criação sempre renovada da experiência humana.
12
Guiraud assim comenta
essa máxima: “Isto equivale a dizer, simplesmente, que as idéias, a substância do discurso,
podem ser tomadas do seu autor, enquanto a forma que êste lhes deu permanece de sua
propriedade e não pode ser transformada, alterada ou imitada”. Segundo ele, o aforismo de
Buffon marcou o momento em que se instaurou no Ocidente, a discussão que atravessaria
todo o século XIX: “O problema do etilo nunca foi tão vivo e universalmente discutido. (...)
o problema não cessa de preocupar os escritores, os críticos, os historiadores, os filósofos
(...)”.
13
Ao longo do século XIX, afirma Guiraud, foi elaborada a compreensão moderna da
linguagem enquanto instrumento de expressão das experiências, das emoções e dos
sentimentos do indivíduo.
14
Entretanto, Guiraud alerta para a necessidade de se ler o aforismo de Buffon com
cuidado, para se perceber que ele estava longe de ter a abrangência que modernamente se
lhe atribui, opinião partilhada pelo historiador Peter Gay. Segundo essa outra perspectiva,
na sentença de Buffon estaria contido um enfático apelo aos escritores seus
contemporâneos para que tratassem o estilo não como uma simples ornamentação de suas
obras, mas como o alicerce do trabalho do escritor. Certamente, o que Buffon pretendia
dizer era que o estilo de um escritor deveria expressar “de maneira instrutiva (...) seu
passado pessoal”.
15
Ao proclamar que o estilo revelava o homem, Buffon insinuava que o
grande escritor era aquele que trazia as marcas indeléveis de uma formação aprimorada.
Para além de uma compreensão do estilo como expressão da individualidade, deslindar o
estilo de um escritor seria nele encontrar impresso as marcas que o distinguiam e o faziam
partícipe de um seleto grupo intelectual. Ter estilo era compartilhar formulações
12
GUIRAUD, 1970 (1954), p. 47.
13
GUIRAUD, 1970 (1954), p. 55.
14
Como afirma Mattoso Câmara Jr, no século XIX estilo passou a significar, numa acepção estrita, a forma
pela qual o indivíduo se apropria e faz uso dos “elementos que a língua ministra”, ou seja, das “possibilidades
de expressão que se apresentam na língua”. Cf. CÂMARA Jr., 1956, p. 90.
15
GAY, 1990 (1974), p. 20-21.
86
consagradas, que fariam de um homem um homem de estilo e, por isso, segundo Peter Gay,
“uma boa parcela do discurso sobre o estilo concentra-se na busca de formulações literárias
felizes e da virtude tradicional, ainda que admiravelmente esquiva, da clareza”.
16
Assim,
em seu aforismo, Buffon empregava a palavra “estilo” num sentido que se nos tornou
completamente estranho. Mas, um sentido que era partilhado por Varnhagen.
3.1 A questão do estilo na Correspondência ativa
Varnhagen compartilhou suas opiniões sobre o estilo e o controle da palavra com
alguns de seus correspondentes, além do próprio Imperador. Em várias passagens de suas
cartas, revelava seus cuidados com a correção gramatical e com a adequação do assunto ao
gênero. Em outros trechos, pacientemente dedicava-se a tornar inteligíveis as estratégias de
composição que empregara para gerar determinados efeitos no público leitor – revelava os
fins persuasórios que almejara. Ao apresentar e desnudar a composição de sua obra,
demonstrava dominar as discussões em voga acerca do estilo e anunciava sua capacidade
de realizar formas literárias consagradas pela tradição. Pode-se admitir que nessas ocasiões
ele desejava mostrar e mesmo ostentar o controle que tinha sobre a palavra escrita.
Nos parágrafos subseqüentes serão apresentados, em ordem cronológica, trechos
retirados de cartas redigidas por Varnhagen. Eles comprovam que não foi apenas em 1852,
às vésperas da edição da HGB, e dirigindo-se a D. Pedro II, que Varnhagen tratou da
questão do estilo e, por outro lado, revelam uma preocupação permanente, que dá bem a
medida da importância atribuída por Varnhagen, na elaboração de seus textos, à adequação
entre conteúdo, forma e fim.
Em agosto de 1839, Varnhagen escrevia a Heliodoro da Cunha Rivara
17
e com ele
discutia acerca do estilo a ser adotado em uma obra:
Falla-me V. S
a
no seu trabalho á cerca de classicos portuguezes. Nasceu-me o
desejo de saber em que sentido era, por que eu tinha sobre isso já escripto alguma
16
GAY, 1990 (1974), p. 19.
17
A correspondência entre Varnhagen e Cunha Rivara mereceria um estudo à parte. Nela podem-se verificar
uma liberdade de expressão e uma espontaneidade inexistentes em todo o restante de suas cartas. Acredito ser
possível afirmar que Varnhagen era autêntico em seu relacionamento com Cunha Rivara, a quem inúmeras
vezes chama de amigo, diz esperar para o Natal e revela angústias e satisfações.
87
coisa em estillo meu romântico á Walter Scott; – e creio que em gênero didactico e
desta natureza offereceria novidade. Passei a esta lembrança depois de ter
premeditado diálogos, que também para o meu fim seria bom estillo. Penso porém
que o trabalho de V. S
a
será mais elevado e sério.
18
Destaque-se: “em estilo meu romântico á Walter Scott”. O estilo era dele, mas havia
um modelo que fora construído por Scott. Essa escolha, por sua vez, respondeu a um
intento muito claro; terminara por seguir o “estilo romântico” e não o fizera por
casualidade, por simples inspiração, mas por avaliar e julgar ser o melhor estilo, no sentido
de modelo e de forma, para realizar o gênero literário que pleiteava: o gênero didático.
Muito provavelmente, o escrito a que Varnhagen faz referência é a Crônica do
descobrimento do Brasil, que se constitui em uma paráfrase romanceada da Carta de Pero
Vaz de Caminha. Esta suspeita é corroborada pela afirmação de Inocêncio da Silva acerca
da Crônica:
Vi uma carta do autor [Varnhagen] dirigida a um sábio e respeitável literato, na
qual dava razão desta sua composição, dizendo que a escrevera [a Crônica] para
fazer chegar ao conhecimento do público a interessante carta de Pero Vaz de
Caminha, e que preferira a forma do romance por ser este o melhor meio de adaptar
ao gosto de todos a história do país.
19
Inocêncio não cita a quem era endereçada essa carta e nem onde a pudera ler.
Contudo, desperta a atenção o fato de Inocêncio também destacar que Varnhagen apenas
publicara a Carta de Caminha “na forma de romance”, porque pretenderia, então, agradar
ao público. Varnhagen escrevera a Crônica porque estaria preocupado em chamar a atenção
dos brasileiros para um documento de sua história e julgara ser o romance
20
a única forma e
o melhor veículo para atingir seu intento
21
– fazer com que os brasileiros se interessassem
pela Carta de Caminha e pela história do Brasil.
No mesmo ano de 1839, Varnhagen voltava a dirigir-se a Cunha Rivara, sugerindo
matérias sobre as quais poderia versar em artigos destinados à revista Panorama.
18
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 31.
19
SILVA, 1859, tomo II, p. 320. A Crônica do descobrimento foi publicada pela primeira vez no Tomo IV,
de 1840, na revista Panorama e numa segunda edição do mesmo ano, revista pelo autor.
20
A compreensão de Varnhagen do romance não é distinta daquela de tratadistas de retórica do século XIX.
Em seu estudo sobre a forma subjacente à obra de José de Alencar, Eduardo Vieira Martins recuperou
opiniões de alguns desses tratadistas sobre o romance e constatou que eles preconizavam “uma finalidade
moralizante” e que tentavam enquadrá-lo nas “categorias retórico-poéticas tradicionais”. Cf. MARTINS,
2005, p. 80-89.
21
Varnhagen dizia, na mesma época, em outra carta dirigida a Cunha Rivara, que a carta de Caminha era uma
“linda narrativa”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 35.
88
Aconselhava-o a escrever quadros históricos (ou “curiosidades do Brasil”), continuando
trabalho iniciado por Alexandre Herculano. Era, porém, enfático ao prescrever:
Convêm ainda dizer outra reflexão; que convirá ser effectiva para todos os artigos
que se escreverem em periódicos como o Panorama. É necessário que em todos
elles trabalhe a imaginação, quero dizer, que com verdade haja imagens e poesia
que deleite. V. S
a
bem o saberá – É necessario que quem escreve incuta as suas
ideas e é nisto que consiste a maior ‘originalidade’ que de V. S
a
pedem os
Directores do Panorama.
22
Varnhagen recomendava a seu amigo que, antes de se dedicar à redação de qualquer
texto para uma revista como a Panorama, era preciso refletir acerca do estilo a ser adotado
nos artigos. Preceituava uma norma a ser seguida: era preciso ter imaginação para deleitar o
leitor.
23
Não se tratava, porém, de gerar apenas uma pura sensação de descomprometido e
gratuito regozijo. O deleite a ser gerado era propositalmente construído para “incutir
idéias”, constituindo a originalidade do escritor não a sua criatividade singular, mas a
capacidade de produzir imagens para conquistar o leitor e de levá-lo à concordância com as
idéias apresentadas.
24
Interessante é que nos gêneros textuais tratados nesses dois trechos, Varnhagen
tratava de gêneros textuais – o romance histórico (ou quadros históricos) e a biografia –
próximos ao da história e, apesar disso, não manifestou qualquer preocupação acerca da
relação com o mundo exterior. Sua preocupação gira em torno da escolha da melhor
maneira de um autor arquitetar seu texto para agradar ao “respeitável público”, ou seja,
considerava o texto segundo a forma que deveria ser adotada para atingir esse objetivo.
Verossímil, portanto, seria a obra que estivesse adequada às expectativas de seu destinatário
e fosse capaz de, exatamente por isso, conduzi-lo à concordância com os princípios
anunciados pelo autor. Uma definição, em outros termos, propriamente retórica, pois, como
22
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 34.
23
Eduardo Vieira Martins lembra que a palavra imaginação não tinha, entre os retóricos do século XIX, o
significado que posteriormente lhe será atribuído. Martins cita, por exemplo, o tratadista Miguel do
Sacramento Lopes Gama, para quem o conceito de imaginação estava ligado a imago, consistindo na
capacidade de combinar ou reunir imagens em conformidades com a afeição que se desejava “excitar nos
outros”. Apud. MARTINS, 2005, p. 47.
24
Em outra carta ao mesmo Cunha Rivara, Varnhagen informava ter lido seu artigo sobre “a vida do
Arcebispo” publicado em o Panorama; gostara do que lera porque encontrara “viveza de imagens que agrada
ao ‘respeitavel público’.”(grifo do autor) Varnhagen in LESSA, 1961, p. 35.
89
lembra Eduardo Vieira Martins, “retoricamente, o verossímil não é a correspondência à
verdade, mas à doxa, à opinião do leitor”.
25
Pode-se argumentar que Varnhagen pretendia agradar para garantir a aceitação para
publicação de seus artigos pela revista Panorama, uma vez que ele, assim como todos os
colaboradores da Revista, recebia pelos artigos aprovados e publicados em suas páginas.
26
Contudo, se essa preocupação existia e foi inclusive por ele manifesta em passagens de suas
cartas a Cunha Rivara, no caso há uma compreensão da linguagem que constitui a base de
suas colocações e que acompanha suas preocupações de ordem financeira. Assim, a
motivação do escritor pode ser variada, e inclusive financeira, mas a finalidade da
linguagem era sempre a de obter o efeito pretendido sobre o leitor.
27
Quando Varnhagen
ressalta a necessidade de “gerar imagens”, não faz apenas referência ao emprego dos tropos
da linguagem: muito para além do uso das figuras de linguagem, deve-se pensar na
totalidade do discurso. Para agradar e convencer um leitor, uma obra tinha de ser
conveniente ao gênero, o que novamente nos remete às prescrições retóricas sobre o decoro
interno, tanto quanto o externo.
28
25
MARTINS, 2005, p. 142.
26
Nas cartas de Varnhagen a Cunha Rivara é possível encontrar passagens nas quais problemas de ordem
material são discutidos. Em agosto de 1839, por exemplo, informava a seu amigo o valor que a revista
Panorama pagava por artigos: “A Direcção paga desde 1200 até 2400 por página, sendo, aquele o preço das
boas traducções e este o de artigos de moral, religião etc”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 29.
27
Lausberg define a retórica, num sentido restrito, adverte, como “a arte do discurso partidário”; trata-se de
um sistema de formas de pensamento e de linguagem que pode servir à finalidade de quem discursa para obter
o efeito que pretende; um sistema que é aprendido pelos sujeitos e cuja aplicação “torna-se mecânica”. Cf.
LAUSBERG, 1972, p. 75-76. A antiga arte retórica comportava na sua origem cinco operações distintas e
seqüenciais: inventio, dispositio, elocutio, actio e memoria. Porém, Barthes afirma que logo as duas últimas
operações foram abandonadas, porque se a retórica servia aos discursos declamados, ela se prestava “também
quase exclusivamente para obras [escritas]”. De uma teoria de produção de discurso, conforme se encontrava
em Aristóteles, ela se torna, ainda na antiguidade, uma “teoria da arte de escrever”, deixando a retórica de
opor-se à poética: “Dionísio de Halicarnasso (...) em seu De compositione verborum (...) [ocupa-se]
unicamente com um valor novo: o movimento das frases”. Cf. BARTHES, 1975, p. 161.
28
Segundo Adolfo Hansen, em sua Arte Poética, Horácio pensa em termos de “uma doutrina da proporção
retórico-poética”: uma obra de arte, fosse uma pintura ou uma poesia, deveria guardar, por um lado, o decoro
interno – a “adequação estilística das partes da obra ao todo” – e, por outro, o decoro externo, entendido
como a “adequação da obra às circunstâncias convencionais da recepção”.
A adequação interna de uma obra,
segundo Hansen, dizia respeito ao perfeito ajuste entre a invenção, a disposição e a elocução e está ligada às
“três grandes funções retóricas de docere (utilidade), delectare (prazer) e movere (mover)”. A adequação
externa, por sua vez, dizia respeito à avaliação positiva dos ouvintes/leitores quanto aos modelos
reconhecidos como autoridades naquele gênero. Assim, conclui o professor Hansen: “[Em] Horácio a obra é
bem realizada quando não se pode acrescentar nada a ela, nem nada pode ser extraído dela. Por isso, impõe-se
o sistema dos gêneros e suas correções estilísticas diferenciais, com clarezas e obscuridades específicas (...)”.
Cf. HANSEN, 1994, p. 123, 125.
90
A questão da conveniência da obra ao gênero foi retomada em carta de 1842,
endereçada a Januário da Cunha Barbosa, secretário perpétuo do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB). Depois de dar notícias de inúmeros documentos que
encontrara ou que acreditava vir a encontrar, concluía sua carta lembrando que até então
nada publicara, apesar das inúmeras horas gastas com a pesquisa. Prestava conta de seu
trabalho, reconhecia e agradecia o emprego de adido especial na embaixada brasileira em
Lisboa e comunicava estar a reunir “os elementos para a organização de uma conveniente
Historia da Civilização do Brasil”. Porém, para tal, acreditava necessitar de, além do
empenho em seus trabalhos de pesquisa, “fazel-o com mais madureza, e sem precipitação
por todos os escriptores condemnada nas expressões proverbiais do velho Horácio”.
29
Varnhagen referia-se explicitamente a Horácio, sugerindo que Januário da Cunha Barbosa
poderia buscar, no poeta, explicações para seu aparente atraso em publicar os resultados de
suas pesquisas. Certamente Varnhagen lembrava os ensinamentos de Horácio de que um
autor estava obrigado a se preparar com cautela e antecedência, para depois empreender a
produção de um texto. Na Arte Poética de Horácio se encontra a seguinte recomendação
aos poetas:
Vós que escreveis, escolhei matéria à altura das vossas forças e pesai no espírito
longamente que coisas vossos ombros bem carregam e as que eles não podem
suportar. A quem escolher assunto de acordo com as suas possibilidades nunca
faltará eloquência nem tão-pouco ordem luzida.
30
29
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 95. A referência a Horácio não parece ser gratuita, uma vez que ela se
repete em outras e distintas passagens de sua obra. Em 1852, dez anos depois da passagem citada, Varnhagen
publicou, na Revista do Instituto Histórico, uma biografia de Antônio de Morais Silva. Nela fazia referência
ao poeta romano: “Acerca do diccionario de Moraes se póde dizer com Horacio: Ubi plura nitent, non ego
paucis offendar maculis.” Cf. VARNHAGEN, 1852, p. 246. Em 1854, no primeiro volume da História geral
do Brasil, Varnhagen descrevia o estado de selvageria e barbárie no qual afirmava viverem os indígenas
brasileiros; consolava seu leitor lembrando que: “não devemos admirar, quando outros selvagens, no dizer de
Horácio, brigavam só pela posse de uns covis ou de algumas bolotas”. Cita então a seguinte frase retirada de
Horácio: Glandem atque cubiliá propter pugnabant”. Cf. VARNHAGEN, 1978 (1854), vol. I, p. 36.
Certamente Varnhagen citava em latim porque havia um reconhecimento social desse saber. Em um estudo
sobre o uso do latim em diferentes domínios, Peter Burke afirma que a língua permaneceu empregada em
trabalhos científicos, em citações, em conversas diplomáticas, em tratados internacionais, dentre outros, pelo
menos até final do XIX. Burke alerta para o fato de que essa permanência não é homogênea para toda a
Europa e nem para todos os domínios do conhecimento. Cf. BURKE, 1993. Também André Chervel afirma
que o domínio do latim era um símbolo que conferia “une marque indélébile de l’appartenance à l’élite avec,
comme signe de reconnaissance, sinon la maîtrise et le goût des langues anciennes, du moins une certaine
familiarité avec des phrases ou des citations latines’’. Cf. CHERVEL, 1993, p. 9-10.
30
HORÁCIO, 1984, p. 57. Segundo Rosado Fernandes, em sua Arte Poética, Horácio: “Procura sobretudo
expor as suas ideias, tiradas ou não de autores precedentes, e tenta provar que para fazer poesia não deve
pensar o aprendiz de poeta que a poesia é uma actividade de amador, que o poeta nasce por geração
espontânea, nem confiar em demasia no talento, nas aptidões naturais do poeta. Para que a poesia seja algo de
91
Segundo Rosado Fernandes, tradutor da Arte Poética, a obra horaciana “encontrou,
como em toda a Europa, favor muito especial entre os latinistas portugueses, que dela
fizeram várias edições”.
31
Tais traduções foram conhecidas, em Portugal, desde o século
XVI e, na segunda metade do século XVIII e ao longo do XIX, a Arte Poética mereceu
nada menos que dez traduções e publicações diferentes, em Portugal.
32
Assim, ao fazer
referência a uma teoria poética tão conhecida e apreciada, Varnhagen transformava o que
poderia ser um demérito – o fato de não tornar público o fruto de suas pesquisas, que eram,
inclusive, possibilitadas pelo emprego na embaixada brasileira – em qualidade.
Se tinha consciência de ser preciso a um autor uma larga preparação, isso não
significa, porém, que Varnhagen acreditasse que apenas aos mais velhos era dado o direito
de se expressarem. Nas cartas trocadas com seu amigo Cunha Rivara, Varnhagen afirmava
ser “honra e não desar, o abalançar-se a emprezas grandes”.
33
Incentivava seu amigo a
escrever para a revista Panorama e lembrava ser preciso enfrentar os temores:
Vejo que V. S
a
faz muito caso de difficuldades futuras e passadas. Lembro a V. S
a
que muitas vezes tenho ouvido dizer ao Sr. Herculano, ‘que quem quer escrever
para o publico deve ser descarado em quanto está com a penna na mão’. D’outro
modo tudo são receios, tudo são dúvidas, medos de errar, de deixar escapar alguma
coisa, de ... tudo. Convem sim ter e seguir certas normas, mas não sermos tão
scepticos que depois de escrevermos uma duzia de vezes algumas linhas n’um papel
nos não atrevamos a continuar. Quem me daria a mim, – rapaz de 22 anos,
atrevimento para me arrastar em questões acadêmicas, se não fosse às vezes o
preciso ‘descaramento litterario’, tão necessario como o político! (...) Aqui em
Lisboa conheço um velho de grande saber e erudição, e como tal conceituado; a
tudo tem que dizer e notar alguma coisa: mas por isso mesmo ainda se não atreveu a
pôr penna em papel com medo de que lhe escape alguma noticia, ou algum Autor a
citar.
34
(grifos do autor)
Novamente é possível buscar em Horácio as lições que Varnhagen incorporara e
agora prescrevia. Na Arte Poética, Horácio afirmava que havia “caracteres de cada idade”.
Quando um jovem escrevia, havia a marca, em sua escrita, da impetuosidade e da
inconstância de opinião; mas com o amadurecimento vinha o “espírito viril”, e, ainda
elevado, de útil à cidade, para que alcance o seu fim educativo e estético, tem o poeta de possuir talento e arte,
e para melhorar o seu critério literário deve submeter-se a trabalho aturado nunca desprezando a opinião dos
críticos. Só assim, com uma vigilância perfeita, poderá o poeta criar poesia verdadeiramente digna deste
nome”. Cf. ROSADO FERNANDES, 1984, p. 29.
31
ROSADO FERNANDES, 1984, p. 36-39.
32
Cf. ROSADO FERNANDES, 1984, p. 38-45.
33
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 33.
34
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 35-36.
92
segundo Horácio, o homem velho “foge a comprometer-se para não ter de sofrer depois ao
remediar os erros”. Assim, concluía Horácio, era preciso que se reconhecesse que
muitas desvantagens traz consigo o mudar dos anos, mas muitas outras o declinar
leva consigo: não deve, pois, o papel do velho ser confiado ao jovem, nem o de
homem ao rapaz. Que sempre os autores se atenham às qualidades e atributos de
cada idade.
35
Varnhagen dizia a Cunha Rivara que tinha “descaramento literário” ao colocar-se a
escrever. E não havia nada de mal nessa atitude: sendo um rapaz de pouca idade, sabia não
possuir “grande saber e erudição”, mas possuía coragem para seguir os conselhos de
Alexandre Herculano. Enfrentava a pena e o papel e lançava-se a empreendimentos
“literários”, sem se deixar dobrar pelo temor da censura. É claro que, advertia, “convém
sim ter e seguir certas normas”, que controlavam e orientavam a palavra. Essa discussão é
importante não apenas para reafirmar a preocupação de Varnhagen com o aspecto formal
do texto, mas também sua consciência de que a perfeição só se alcançaria com a
experiência.
Em maio de 1853, quando comunicava ao Imperador a conclusão do primeiro
volume da HGB, afirmava que, apesar de a obra estar pronta, tomara a decisão de a ir
“retocando até entrar no prelo”; meses mais tarde voltava a referir-se aos “retoques,
correções (...)”
36
que continuava a fazer na obra já concluída. Em dezembro daquele ano,
estando em Paris, cuidando da publicação da HGB, informava:
Por ora não entreguei o texto ao prelo; porque devendo ser morosa a obra das
gravuras, basta que o texto se comece a imprimir poucos mezes antes da conclusão
daquellas, o que dará tempo a novos retoques, que cada dia vou fazendo, sobretudo
em cortes desapiedados para dar à redação mais unidade e harmonia.
37
Novamente as afirmações de Varnhagen nos convidam a voltar aos antigos: Horácio
expressamente recomendava que os poetas “gastassem tempo no demorado trabalho da
lima”, devendo ser censurado “todo o poema que não for aperfeiçoado com muito tempo e
muita emenda e que depois de retalhado dez vezes, não for castigado até ao cabo”.
38
É claro que se pode imaginar que Varnhagen exagerava seu desvelo para com a
HGB para gerar uma boa impressão no Imperador. O que se destaca, porém, é que os
35
HORÁCIO, 1984, p. 81.
36
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 201/205.
37
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 209.
38
HORÁCIO, 1984, p. 97-98.
93
retoques e correções a que se referia consistiam em melhorias na composição de suas frases
e de suas passagens. Se o texto passava também por “cortes desapiedados”, fossem
retoques, correções ou cortes, em todos os casos o autor visava a “dar à redação mais
unidade e harmonia”. Afinal, a expressão lingüística dos pensamentos deveria pautar-se em
uma relação de combinação perfeita das palavras, passagens e capítulos, a fim de produzir
uma sensação agradável e de prazer no leitor. A harmonia e a unidade da obra eram
estruturantes da coerência interna da obra, portanto, condições primárias para que ela
atingisse o leitor, conforme Varnhagen expusera e insistira em outras ocasiões.
Em 1857, quando da finalização do segundo volume da HGB, Varnhagen enviou a
D. Pedro II uma longa carta, na qual essas observações eram recuperadas e rememoradas.
Tratava-se, agora, porém, de explicar a composição de algumas passagens da HGB:
Não poderia aqui explicar uma a uma todas as razões que tive para dar certos
toques, para empregar taes ou taes frazes na Historia Geral. Assim v. gr. na pag.
412 (do Tomo 2º) há duas palavras que parecem desfavorecer, e sem embargo estão
ahí de intento e depois de muita reflexão. Era necessário começar por não me
constituir adulador, para melhor encaminhar commigo o leitor a crer o que logo
depois digo em tópicos mais melindrosos e essenciais à heroicidade. Como
chronista poderei ser mais adulador ou panegyrista, como historiador produziria
effeitos negativos. Creio que faço justiça ao Sr. D. Pedro 1º.
39
(grifos do autor)
A força do trecho precisa ser considerada. Varnhagen acreditava ser imprescindível
esclarecer a seu privilegiado destinatário que a escrita da HGB fora realizada de maneira
muito premeditada e cuidada. O Imperador deveria estar ciente das estratégias discursivas
empregadas na composição do texto. Não sendo possível, naquele momento, enumerar
todas elas, necessário se fazia destacar que as palavras tinham sido escolhidas e dispostas
segundo os fins pretendidos. No trecho em questão, alertava ao Imperador para o fato de
que o texto da HGB parecia “desfavorecer” D. Pedro I em algumas passagens; para além da
apresentação de inúmeras provas documentais, o autor dava a impressão de que avaliava os
méritos do personagem. Alegava, porém, tratar-se de uma estratégia, cujo efeito pretendido
era fazer com que o leitor adquirisse confiança na imparcialidade do autor. E como esta
confiança seria adquirida? No exemplo por ele mencionado, tratava-se de não temer a
revelação das fraquezas do primeiro Imperador do Brasil. A estratégia de construção textual
era revelada ao Imperador, mas ao leitor comum as palavras de elogio apresentar-se-iam,
39
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 246-247.
94
afinal, “naturais e espontâneas”. O apelo à emoção não podia dar ao leitor a impressão de
tratar-se de obra de panegirista. A estratégia da exposição visava a conduzir o leitor à
concordância com os raciocínios e com os pontos de vistas apresentados e defendidos pelo
historiador.
Clado Lessa identificou, na primeira edição da HGB, a passagem que
“desfavorecia” a figura de D. Pedro I: “Era [o Príncipe D. Pedro] franco e sympathico, mas
nem sempre grave, e às vezes caprichoso. Enthusiasta pela gloria, não conhecia ainda bem
em que ella consistia”.
40
Muitos anos depois da carta de 1857, voltando a se dirigir a D. Pedro II, Varnhagen
outra vez se referiu à independência do Brasil. Naquele momento – 1875 – ele anunciava
ter esperado a presença do Imperador na Europa para lhe apresentar a nova versão da
História da independência que preparara:
Todo entregue a um novo trabalho, e contando com a vinda de V. M. I. à Europa no
decurso deste anno, deixei de Lhe escrever, pensando aqui surprehendel-O com a
leitura de algumas passagens desse mesmo trabalho, – a Historia da independência,
desde 1820 a 1825, já terminada no todo, e só dependendo de retoques e
aperfeiçoamentos ‘na forma’.
41
Na mesma carta, anunciava que D. Pedro I voltaria a sair de suas páginas como
verdadeiro herói – “segundo as provas que apresento”
42
–, mas que a obra ainda não fora a
público porque necessitava ainda de “retoques e aperfeiçoamentos ‘na forma’.” É preciso
destacar que o grifo da expressão “na forma” implica que o autor julgava serem necessários
aprimoramentos estilísticos para a conclusão da obra; não bastavam “as provas”. Ao
término da carta, dizia:
Lisongeio-me de que, entrando em liça com todo valor e disposto a travar batalhas
campaes com quem quer que seja, porei em devido logar os demais lidadores da
independencia e farei bem sentir que foi o Sr. D. Pedro 1º tão amigo da gloria, que
até de N. Sra. era devoto sob essa invocação (...) a quem o Brazil deveu
principalmente a independencia, de modo que se encontrarão mui naturaes e
expontaneas as palavras com que encerro a obra: ‘saudando, com veneração e
reverencia a memória do príncipe fundador do Imperio’.
43
(grifos do autor)
40
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 247, nota 1.
41
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 432. José de Alencar também faz referência ao incansável trabalho de
correção de texto ao qual estava submetido um autor, segundo o preceito estabelecido em Horácio em sua
Arte Poética. Apud. MARTINS, 2005, p. 102.
42
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 432.
43
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 432-433.
95
Varnhagen retomava suas preocupações da adequação dos acontecimentos ao seu
modo de apresentação e aos objetivos perseguidos. As palavras deveriam parecer “mui
naturaes e expontaneas”. Escrevera uma história engajada, utilizando-se de provas
documentais. Mas, se as provas apresentadas eram idôneas, só seriam efetivamente
indiscutíveis e verossímeis se a composição textual fosse capaz de as fazer “bem sentir”.
Enfim, pretendia que seu leitor terminasse por reconhecer como legítimas a “veneração e
reverência” de que era digno o primeiro Imperador do Brasil. Era pelo coração, talvez
muito mais que pela razão, que esperava a adesão do leitor. Como tinha certeza de que
atingiria o leitor, podia assim concluir o capítulo sobre o Grito do Ipiranga: “Terminamos,
pois, saudando, com veneração e reverência, a memória do príncipe ‘Fundador do
Império’.”
44
(grifo do autor)
Na segunda edição da HGB, realizada em 1877, Varnhagen suprimiu os três
capítulos referentes à independência, porque já redigira a História da independência. No
último capítulo, anunciava: “Essa nossa História da independência já se acha escrita, e será
publicada apenas consigamos elucidar algumas poucas dúvidas que ainda temos”.
45
O
trecho citado por Clado Lessa, que constava do segundo volume da primeira edição da
HGB, passou a fazer parte do quarto capítulo da História da independência. Esse trecho,
modificado por Varnhagen, tornou-se o seguinte: “O Príncipe Dom Pedro, ao ficar de
regente no Brasil, não contava ainda vinte e três anos. Dotado de talento natural, era pouco
instruído, volúvel e um tanto vaidoso, mas bastante franco, generoso, liberal e ativo”.
46
Acredito que a oposição de marcas de caráter permanece presente nesse trecho: mas as
marcas negativas do caráter de D. Pedro I foram compensadas pelas positivas, que
chegavam a sobrepujar as primeiras, sobretudo porque foi destacado o fato de ser D. Pedro
I, à época da independência, ainda muito jovem. Varnhagen chegava mesmo a qualificá-lo
como liberal!
Na primeira forma de elaboração do trecho, o leitor tinha de lembrar, por conta
própria, da juventude de D. Pedro I em 1822, o que justificaria suas atitudes de “pouca
gravidade”. Na segunda formulação da passagem, Varnhagen explicita a idade do
44
VARNHAGEN, 1978b, t. 5º, p. 259.
45
VARNHAGEN, 1978a, t. 5º, p. 235.
46
VARNHAGEN, 1978b, p.75. A História da independência só veio a ser publicada em 1916 na Revista do
Instituto, t. 79.
96
imperador e, nesse caso, a oposição entre defeitos e qualidades pessoais tornava-se apenas
uma questão a ser resolvida pelo passar dos anos. Talvez por isso, Varnhagen insistisse
tanto, nas cartas dirigidas a D. Pedro II, que, apesar de a História da independência já se
encontrar pronta, em 1875, dependia ainda de aprimoramentos estilísticos.
Varnhagen desnudava para D. Pedro II, seu protetor e benfeitor, assim como a
privilegiados correspondentes, os recursos de que lançara mão para redigir suas obras. Ele
se mostrava para esses correspondentes “um homem de estilo”: aquele que dominava a
palavra, fazendo-a dobrar-se aos seus intentos. Ele julgava suas estratégias de composição
textual tão sutis que era necessário destacá-las e desvendá-las. Ou, talvez, o valor da obra
estivesse exatamente na capacidade de seu autor saber empregá-las. De qualquer modo, é
possível acompanhar Varnhagen, ao longo de sua vida, a manifestar, para seus
correspondentes, preocupações que giravam em torno de questões postas pela preceptística
retórica.
3.2. A questão do estilo nos textos prefaciais
Se Varnhagen desnudava, para seus correspondentes, suas estratégias discursivas e
seus objetivos ao adotá-las, o mesmo não fez com o leitor de suas obras. Nos prefácios que
redigiu para elas, poucas foram as passagens onde explicitou os recursos discursivos que
empregara. Não se trata, entretanto, apenas de uma questão de quantidade. Nessas
passagens, ao contrário do que fizera em sua correspondência, ele fundamentalmente
apresentou e defendeu a necessidade do estudo das obras e dos autores reconhecidos como
autoridades no domínio da língua para aqueles que se dedicassem às “lettras”. Apresentava-
se como um autor que dialogava com essa tradição reconhecida e que conhecia e dominava
a gramática da língua culta. Para esses leitores afirmará que o historiador escrevia de forma
“imparcial e sizuda”.
47
Os textos prefaciais de Varnhagen tinham o tom didático de lições a
serem ensinadas e aprendidas.
47
A expressão “sizuda e imparcial” é de Varnhagen e aparece no Prefácio escrito para o segundo volume da
HGB, de 1857. Varnhagen afirmava que péssimo era o Brasil não possuir até o momento “uma historia geral,
digna deste nome, e sizuda e imparcialmente escripta”. Cf. VARNHAGEN, 1857, p. VI, tomo II. (Prefácio).
Já em 1844, escrevendo a Januário da Cunha Barbosa, muitos anos antes, portanto, da redação da HGB,
97
No Prólogo do primeiro volume do Florilégio, redigido quando de sua publicação,
em 1850, inicia afirmando, de modo aparentemente paradoxal ao que discutia com seus
correspondentes, que não fora sua pretensão oferecer “modelos de arte poética”, mas sim “o
que por mais americano tivemos”. Tal objetivo o conduzira a escolher exclusivamente
poesias que considerava brasileiras por terem seus autores, “ao menos no assunto”,
mostrado a alma nacional.
48
Isto não significava, prevenia seu leitor, que tais poemas fossem bem redigidos e
cuidados. Pelo contrário, advertia que muitos deles eram até mesmo rudes e sem lima. Não
se deve concluir, entretanto, que, a seu ver, a composição poética era algo a ser produzido
apenas a partir da inspiração, pois, no mesmo Prólogo, alertava para o fato de ser um
enorme erro “consignar a idéia de que no Brasil não se deve, e muito, estudar os clássicos
portugueses e a gramática”. E não apenas o estudo de poetas de língua portuguesa, mas
também o dos poetas clássicos, constituíam condição preliminar, enfatizava, para a
formação de um grande poeta. E para isto remetia
(...) o leitor para o que diremos na Introdução, acerca do estudo dos clássicos, e
lembramos que Byron, com seu grande gênio, e Irving e Cooper, por serem poetas
tão originais e americanos, só conseguiram tão brilhante nome, depois de haverem
estudado muito, e muito, os livros antigos e modernos da literatura inglesa.
49
Na Introdução escrita para o Florilégio, intitulada Ensaio histórico sobre as letras
no Brasil – à qual Varnhagen faz referência na citação acima –, lembrava que se
enganavam aqueles que pretendiam ser poetas graças à inspiração, sem conhecer as bases
constitutivas da elaboração poética, ou o “abc da arte”, como dizia:
Lancemos as vistas para o nosso Brasil. Deus o fade igualmente bem, para que aqui
venham as letras a servir de refúgio ao talento (...). Deus o fade bem, para que os
poetas, em vez de imitarem o que lêem, se inspirem da poesia que brota com tanta
profusão, do seio do próprio país, e sejam antes de tudo originais – americanos.
Mas que por este americanismo não se entenda, como se tem querido pregar nos
Estados Unidos, uma revolução nos princípios, uma completa insubordinação a
todos os preceitos dos clássicos gregos e romanos, e dos clássicos da antiga mãe-
pátria. Não. A América, nos seus diferentes estados, deve ter uma poesia,
Varnhagen deixava pistas de como enxergava o método e o estilo de como se deveria escrever a história
nacional: “Mas, uma vez que algum facto positivo se levanta, a historia com o seu aspecto sisudo superior a
todas as sympathias deve recebe-lo como prova ao julgamento no seu tribunal de justiça, e é ella recta no
lavrar da sentença, embora com esta se vá desherdar de bellas propriedades com que se enriquecia, e que até
ahí julgava serem-lhe de direito pertencentes”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 126.
48
VARNHAGEN, 1987 (1850), p. 14. (Prólogo).
49
VARNHAGEN, 1987 (1850), p. 17-18. (Prólogo).
98
principalmente no descritivo, só filha da contemplação de uma natureza nova e
virgem; mas enganar-se-ia o que julgasse, que para ser poeta original havia que
retroceder no abc da arte, em vez de adotar, e possuir-se bem dos preceitos do belo,
que dos antigos recebeu a Europa.
50
Assim, ao mesmo tempo em que prescrevia que os poetas brasileiros buscassem
inspiração na própria América, declarando-se mesmo “um pouco em briga com a
mitologia”
51
, deixava claro ser preciso prosseguir tendo como modelo a Antigüidade, onde
a poesia encontraria as formas a serem seguidas: “por este americanismo não se entenda
(...) uma revolução nos princípios, uma completa insubordinação a todos os preceitos”. Para
Varnhagen existiam preceitos a serem seguidos e formas a serem “imitadas” para a
composição das poesias. A seu ver, não existia composição sem o estudo de princípios ou,
não existia poesia sem imitação. Todo poeta que desejasse construir poemas adequados,
deveria empregar as palavras e compor suas frases seguindo as fórmulas consagradas pelo
uso. E onde encontrá-las? A resposta era imediata: nos “clássicos gregos e romanos” e nos
“clássicos da antiga mãe-pátria”. A seu ver, a “originalidade” que se exigia da poesia
americana não eximia o poeta de conhecer e “de adotar, e possuir-se bem dos preceitos do
belo, que dos antigos recebeu a Europa”. O verdadeiro poeta americano seria aquele que,
possuído pelos preceitos clássicos, “se inspirem da poesia que brota com tanta profusão, do
seio do próprio país”.
Esta era a lição que o autor ensinava
52
: só se pode ser original e criativo
considerando-se o que foi estabelecido pelos bons autores. Uma outra faceta da pedagogia
da imitação, entretanto, era o convite à emulação. Aos jovens escritores eram fornecidos os
modelos a serem seguidos, mas neles se fomentava o desejo permanente de virem a se
50
VARNHAGEN, 1987 (1850), p. 44. (Introdução)
51
VARNHAGEN, 1987 (1850), p. 14. (Prólogo)
52
Em setembro de 1856, Varnhagen escrevia a D. Pedro II acusando a recepção de “dois exemplares da
Confederação dos Tamoyos que V. M. I. Ordenou que me fossem remettidos”. Declarava ter lido o poema
“com avidez” por sabê-lo alvo de “críticos violentos”. Anunciava que faria sua própria avaliação da
Confederação, mas de antemão advertia que não plagiava aqueles críticos, porque apenas lera “umas cartas
em defensa do poema no J. do Commercio”. Então expunha sua opinião: “Infelizmente está o poema mui
longe de poder, no mais mínimo, aspirar às honras da epopéa nacional do século de Pedro 2º. Nem o
assumpto da tal confederação bestial é verdadeiramente épico; nem foi della chefe Aimbire, mas sim
Quoniambebe; nem o auctor, excepto na parte descriptiva, tem ao genero épico tendência, nem tem o saber,
nem a robustez de principios, nem a generosidade e grandeza d’alma, que o genero requer pois é muitas vezes
homem, e homem de paixões pequeninas”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961, p. 237. Na avaliação do poema de
Gonçalves de Magalhães, Varnhagen expunha “princípios” que deveriam ser obedecidos por aqueles que se
propusessem a escrever poemas e, no caso, épicos: o poeta deveria escolher corretamente o assunto, dominá-
lo completamente e ter paixão “n’alma”.
99
tornar, eles mesmos, autores a serem imitados, o que somente seria atingido se tivessem
superado em perfeição os modelos existentes até então. Era a possibilidade de ascensão à
categoria de auctoritas que garantiria a imortalidade de uma obra, e esta, por sua vez, a do
próprio autor. As posições de Varnhagen relembram os ensinamentos de Quintiliano que no
livro X das Instituições, segundo Barthes, “constrói uma propedêutica para o escritor: é
preciso ler e escrever muito, imitar modelos, corrigir muitíssimo, mas depois de ter deixado
descansar o escrito”.
53
Segundo Marco Aurélio Pereira, Quintiliano recomendava ser
preciso
(...) conformar-se a certos padrões, o que de forma alguma implica uma negação da
criatividade ou da originalidade, que não deixam de constituir quesitos a observar.
A imitação, assim, não constitui um princípio limitador: valorizar o que o passado
produziu de bom não é, necessariamente, prender-se a ele de maneira cega. Não é
cultuá-los de maneira servil que se devem levar em conta os ‘modelos’ do passado,
mas para procurar atingir sua excelência e, nisso, até mesmo para ultrapassá-los.
(...) imitar significa antes ‘espelhar’ – para aperfeiçoar!
54
(grifos do autor).
Varnhagen, entretanto, não se limitou a discutir questões sobre o domínio da
linguagem nos prefácios redigidos para uma coletânea de poesias, como era o Florilégio.
Também nos prefácios redigidos para a HGB, apresentava-se como um autor que sabia
empregar a palavra segundo as regras estabelecidas pela gramática, que conhecia os
clássicos e com eles dialogava sobre o manejo da língua vernácula. Simultaneamente, fazia
uma defesa prévia contra possíveis críticas contra seus textos e, dando aparências de
humildade, solicitava antecipadamente desculpas para seus possíveis erros gramaticais.
No primeiro volume da HGB, publicado em 1854, Varnhagen acrescentou um Post
editum, intitulado Duas palavras acerca da presente edição. Declarava então que não
dispusera de tempo suficiente para “aprimoral-a [a redação da HGB], com a devida attenção
e pausa”. Confessava que chegara a receber sugestão para publicar a obra em francês, não
apenas para conseguir maior número de leitores, mas também para ter menor
“responsabilidade, principalmente pelo que dicesse respeito aos apuros da linguagem”.
Recusara a sugestão por considerá-la até mesmo afrontosa, porque não se dispunha a
53
BARTHES, 1975, p. 160. Adolfo Hansen também lembra que Quintiliano recomendava aos oradores para
lerem “o elenco dos autores consagrados pelo costume como autoridades, para imitá-los”. Cf. HANSEN,
1994, p. 62.
54
PEREIRA, 2000, p. 31. Segundo Adolfo Hansen porque eram virtuosos os autores forneciamexempla,
exemplos e casos, que [deviam] ser seguidos pela aemulatio, a emulação, que é uma imitação dos predicados
de uma obra qualquer que supera o imitado (...)”. Cf. HANSEN, 1994, p. 11-12.
100
esquivar-se do desafio apresentado. Muito pelo contrário, decidira aplicar o máximo de si
para que “a linguagem [saísse], bem que em geral castiça”. Porém, reconhecia que, mesmo
realizada a publicação, provavelmente não alcançara a perfeição esperada. Por isso, vinha
“sem escrúpulo appellar para a generosidade do publico, afim de que lhe perdoe o não
haver retardado ainda mais a impressão e publicação da obra (...)” o que, garantia,
permitiria que “ella [a linguagem tivesse] saído por certo mais apurada”. Desse modo,
prevenia-se contra esperadas censuras frente aos possíveis “desalinhos” que escaparam
“entre seus rabiscos”. Entretanto, não satisfeito, afirmava ainda que muitos enxergariam os
erros cometidos “simplesmente para embicarem n’alguma frase descuidada”. A esses
censores, que se postavam como “sabichões”, lembrava que: “(...) um dos mais abalisados
historiadores de nossos dias, o illustre Prescott, confessa que seus escriptos, depois das
primeiras edições tiveram de ser revistos pelo que respeitava á correcção grammatical e á
dicção”.
55
Ainda no primeiro volume da HGB, Varnhagen se manifestou sobre a mesma
questão, no Suplemento que adicionou à obra. Na oportunidade, comprometia-se a
aperfeiçoar a linguagem empregada e a apurar suas frases, quando da reedição da obra.
56
Em 1857, no Prefácio preparado para o segundo tomo da HGB, Varnhagen
retomava as questões sobre a língua vernácula:
A linguagem estudamos que saísse castiça e de boa lei, sem com tudo levar os
escrupulos ao ponto de não empregar certas palavras e frazes, só porque não se
encontram competentemente alfabetadas. – sendo que algumas deviam merecer
preferencia em uma obra acerca do Brazil. Assim como até agora ninguém
censurou a Castanheda, nem a Barros, nem a Couto, nem a Lucena, tratando da
Asia, o haverem empregado as vozes bárbaras pardáu, junco, catur e outras, não
haveria razão para que, tratando-se da América, se não adotassem muitos vocábulos
americanos admittidos pelo uso. Com estas convicções, empregariamos maracá,
pocema, tangapema, tujuco e tujapar (...), ainda quando o P. Vieira nos não
houvera dado o exemplo; e patiguá e tipoya, ainda sem a autoridade de Simão de
Vasconcelos (...).
57
(grifos do autor)
Para os leitores de seu Prefácio, Varnhagen apresentava-se como um autor que não
apenas reconhecia as autoridades no vernáculo, mas que também tinha tal intimidade com
as obras clássicas, que com elas dialogava. Era por ser também um conhecedor das regras
da língua que não se comportaria frente àquelas autoridades de modo passivo; procurara,
55
VARNHAGEN, 1854, p.477-478. (Post editum).
56
VARNHAGEN, 1854, p. 481. (Suplemento).
57
VARNHAGEN, 1857, p. XII-XIII. (Prefácio).
101
declarava, que a “linguagem (...) saísse castiça”, o que não significava, entretanto, que
deixaria de empregar “certas palavras e frazes (...) só porque não se encontram
competentemente alfabetadas”. A mesma atitude manifestava no que respeita à ortografia
das palavras: garantia que, diante da “anarchia” reinante, seguira “os mais autorizados
cultores da lingua”. Contudo, novamente enfatizava que fizera escolhas próprias:
(...) não accentuámos, como entre nós se pratica abusivamente, a proposição dativa,
senão quando essa proposição envolve ao mesmo tempo o artigo feminino que se
contrahiu nella para evitar o hyato a a; por outra, em geral somente se deve
accentuar a proposição dativa nos casos em que ella se traduziria em francez por à
la. (...) admittimos a irregularidade dos verbos construir, destruir, progredir, etc.
dizendo constroe, destroe, progride, etc. Escrevemos onde, donde, aonde,
reconhecendo casos neste advérbio, que segundo Moraes admitte, por assim dizer, o
caso composto a onde.
58
No mesmo Prefácio, Varnhagen anunciava que: “Acerca do estylo não daremos
muitas explicações; porque talvez nem acertássemos a nos fazer ouvir, quanto mais a
entender”.
59
Mas não se continha:
Apesar da grave sentença de Buffon, temos a persuasão de que, como tudo quanto é
humano, o estylo depende muitas vezes das disposições do animo, originadas de
causas que nem sempre está em nós remover. Demais: no primeiro volume desta
obra, principalmente, capitulo ha escripto com differença de cinco ou seis annos do
que lhe está vizinho; segundo no-lo permettiam as occasiões de que então
dispúnhamos, para ir pondo em ordem, e tirando do cahos, os apontamentos que
tínhamos, e que até certo ponto nos escravisavam a penna. Impossivel fora pois
evitar que não escapassem repetições, incorrecções e faltas de clareza, que se vão
advertindo; e bem que sejam muitas, quase nos admiramos de que, ao tratar de
tantos assumptos novos, prodedentes de origens tão desencontradas, não
comettessemos muitas mais.
60
Varnhagen não citou a frase de Buffon, mas certamente fazia referência ao
aforismo: “le style est l’homme même”. Ora, Varnhagen desabafava e declarava-se
persuadido de que o estilo dependia do estado de espírito do homem, “apesar da grave
sentença de Buffon”. Ao empregar o advérbio “apesar”, acredito que ele expunha sua
angústia: escrevendo com anos de distância os capítulos da HGB, impossível lhe fora não
variar o estilo da redação e, devido a esses transtornos: “impossivel fôra (...) evitar que não
escapassem repetições, incorreções e faltas de clareza”. Ou seja, a seus olhos, esses
contratempos haviam atrapalhado o pleno controle que o autor deveria ter de seu texto, de
58
VARNHAGEN, 1857, p. XIV. (Prefácio).
59
VARNHAGEN, 1857, p. XI. (Prefácio).
60
VARNHAGEN, 1857, p. XI-XII. (Prefácio).
102
modo a poder alcançar um ideal de forma textual – um texto não podia ter repetições,
incorreções e falta de clareza. Novamente as reflexões de Varnhagen nos remetem aos
ensinamentos retóricos. Segundo Lausberg, a clareza era uma das virtudes da elocução – da
expressão lingüística do pensamento – e seria alcançada graças ao encadeamento claro dos
pensamentos e a uma formulação lingüística suficientes para tornar o texto compreensível.
Lausberg lembra ainda que a clareza do texto era considerada condição para o sucesso do
discurso.
61
Varnhagen, porém, não deixaria de amenizar sua autocrítica, dizendo-se mesmo
admirado “de que, ao tratar de tantos assumptos novos, procedentes de origens tão
desencontradas, não comettessemos muitas [faltas] mais”. Lembrava e citava, então, uma
máxima de Rousseau: “Ce n’est pas assez d’une moitié de la vie pour faire un livre, et de
l’outre pour le corriger”.
62
Ou seja, aqueles que se dedicavam à tarefa da escrita sabiam
quanto era difícil dela se desembaraçar e, sobretudo, escrever e atingir a perfeição. Mas ela
deveria ser perseguida. Ainda no Prefácio preparado para a edição do segundo volume da
HGB, de 1857, Varnhagen dedicou um longo trecho para explicar a seu leitor a questão do
estilo na história:
Em todo caso porém protestamos contra os que interpretem indevidamente as frazes
em que na introdução do princípio desta obra expusemos o systema que havíamos
adoptado. Ahi promettemos conservar fria imparcialidade no ‘exame’ da verdade
dos factos, não sacrificando jamais ao interesse dramático a certeza de haverem
elles succedido deste ou daquelle modo; pois de outra fórma podia resultar
dissonancia na harmonia que entre si tem de guardar, uma vez que effectivamente
succederam; quando em historia o criterio da verdade só se define e se entende bem
pela inversa, pelo erro. Longe estavamos porém com isso de significar que, em
alguns casos como na descripção do Rio de Janeiro, por exemplo, não nos
esforçariamos para elevar, e até para empolar o estylo, afim de pintar com mais
verdade esta verdadeiramente empolada paragem da terra, ou que n’outos não
consentiriamos que os periodos saissem aquecidos com o calor da convicção ou do
patriotismo ou de qualquer outra paixão nobre, e repassados do nosso modo de
sentir na presença de successos, que fora necessário ser de pedra uma pessoa para
não se commover. O que distingue principalmente, tratando assumptos históricos, o
verdadeiro historiador do poeta, é que este, que para o ser ha de ter mais
imaginação que fria critica, commovido de certa maneira, cria e adapta tudo ás suas
inspirações; ao passo que aquelle estuda primeiro o facto, apura-o por meio das
provas que requerem o seu criterio; e só depois sentencêa com gravidade,
transmittindo ao publico a sentença e os seus porquês; e claro está que da mesma
61
LAUSBERG, 1972, p. 127.
62
VARNHAGEN, 1857, p. XII. (Prefácio).
103
fórma que os sentiu, se a penna lhe sabe obedecer, o que nem sempre succede.
63
(grifo do autor)
Varnhagen explicava para seu leitor o que era, para ele, o método do historiador:
iniciava examinando com “fria imparcialidade” a “verdade dos factos” apurados “por meio
das provas” levantadas com “critério” para, na seqüência, transmitir ao público “a sentença
e os seus porquês”. O método do historiador era, para Varnhagen, similar ao do juiz e,
como um juiz, o historiador emitia vereditos. E do mesmo modo que o método era similar,
similar também era o estilo. Era por isso que, segundo Varnhagen, não se encontrariam
passagens ornamentadas ou imaginativas em sua HGB, porque o estilo do juiz e o do
historiador, conseqüentemente, deveria ser “imparcial e sizudo”.
Contudo, isso não significava, advertia, que o historiador não pudesse escrever
como um dramaturgo. A seu ver, existiam episódios ou paisagens que para narrar ou
descrever era preciso “empolar o estylo, afim de pintar com mais verdade esta
verdadeiramente empolada paragem da terra”; em outras ocasiões, avisava que permitira até
mesmo que os “períodos saissem aquecidos com o calor da convicção ou do patriotismo ou
de qualquer outra paixão nobre” pois, afinal, seria preciso “ser de pedra uma pessoa para
não se commover”. Haveria algum erro nessa atitude? Antes que o censurassem, reafirmava
que o historiador julgava a partir da fria crítica dos fatos. Diferentemente do poeta,
portanto, ele estava subordinado à prova e não à imaginação; enquanto o poeta seguia as
“suas inspirações”, o historiador submetia-se “ao exame da verdade dos fatos”. Havia
acontecimentos, entretanto, que deveriam ser narrados ou descritos dramaticamente, para
que a verdade fosse alcançada.
No Post scriptium, anexo ao segundo volume HGB, de 1857 – portanto, no mesmo
volume do trecho do Prefácio comentado – Varnhagen afirmava que toda obra de história,
além da “requerida unidade”, necessitava de um “certo calor e paixão indispensável para
representar a propria verdade”.
64
Esse Post scriptium foi eliminado pelo autor, em 1877,
quando da segunda edição da HGB.
O Prefácio de 1857, entretanto, foi republicado na edição de 1877. Interessante,
porém, é que Varnhagen fez algumas alterações nesse Prefácio, e uma das mais
63
VARNHAGEN, 1857, p. XII. (Prefácio).
64
VARNHAGEN, 1857, s/p (Post scriptium).
104
significativas foi exatamente a eliminação do trecho acima analisado. E como nenhuma
advertência se fazia sobre as alterações realizadas, talvez seja razoável pensar que
Varnhagen o suprimiu porque percebera que, ao destacar os recursos discursivos
empregados – sobretudo os dramáticos – despertava a atenção do leitor e, desse modo,
corria o risco de ver a eficácia almejada diminuída. O historiador, como um juiz
sentenciador, corria o risco de ver suas sentenças-verdades postas em causa.
Muito provavelmente foram preocupações dessa natureza que também o levaram,
em 1877, a retomar a questão do estilo na história no Prólogo preparado para a reedição da
HGB. Tinha agora, porém, um objetivo distinto. Reafirmava que a história, diferentemente
da poesia, era um “ramo da crítica” e não da “eloquencia”, e que o papel do historiador era
o de “descrever [os fatos] com a maior exactidão e clareza”. Repetia a comparação entre o
estilo do historiador e o do juiz: o estilo do historiador não era aquele “verboso e florido
dos advogados, mas antes o de “um verdadeiro juiz, que depois de averiguar bem os factos,
ouvindo as testemunhas, com o devido criterio, deve, feito o seu allegado com o possível
laconismo, sentenciar”. Asseverava que um historiador, como ele, debruçava-se sobre a
documentação, estudava e meditava e, na seqüência, construía seus “argumentos
incontestaveis que resultam das provas que, mediante aturado estudo, conseguimos reunir”.
E então, como um juiz, ele, historiador, anunciava seu veredito. Esse era o estilo a ser
empregado na história. Não aquele imaginativo e apenas admirador do belo. O estilo da
história deveria se afastar do “brilho e do ornato”, que até mesmo levava a apartar a
verdade. E ao leitor então não deixava senão a opção de atender ao apelo do historiador e se
resignar: “ante a verdade dos factos”.
65
Em tom de ardorosa defesa de um princípio,
prescrevia então que:
Pelo brilho e ornato do estylo não levamos pois a menor pretenção de campear. (...)
Como temos dito por vezes, a escola histórica a que pertencemos, é, estranha a essa
demasiado sentimental que, pretendendo commover muito, chega a afastar-se da
propria verdade. Fazemos a esse respeito uma verdadeira profissão de fé (...).
66
65
VARNHAGEN, 1877, p. XII-XIII (Prólogo). No Prólogo, da edição de 1877 da HGB, ele reafirmou suas
preocupações com o domínio da língua: “a linguagem porém procurámos sempre que saísse puritana e de boa
lei”. Dizia-se então até mesmo honrado, porque ouvira “da boca de alguns de escriptores nossos, politicos e
litteratos, que a nossa obra havia tido grande parte a firmal-os no manejo da lingua vernacula”. Cf.
VARNHAGEN, 1877, p. XII. (Prólogo).
66
VARNHAGEN, 1877, p. XII-XIII (Prólogo).
105
Assim, quem se propusesse a comparar sua obra àquela redigida por Rocha Pitta,
poderia verificar a diferença profunda. Segundo ele, a obra “do escriptor bahiano [era]
omissa em factos essenciaes, destituída de criterio” e seu autor, além de não recorrer “ás
mais puras fontes da historia”, era “mais imaginativo que pensador; mais poeta e admirador
do bello que crítico, vassallo da razão e escravo das provas authenticas”.
67
Tais desvirtudes
encontradas na obra de Rocha Pitta eram exatamente o contraponto da sua própria obra,
afirmava.
Assim, enquanto, em sua correspondência, Varnhagen discutira suas escolhas
estilísticas, apresentara e esmiuçara suas construções frasais, explicando os efeitos
pretendidos, nos prefácios à suas obras de história, muda o tom, que se torna o de um
doutrinador. O trecho do Prefácio de 1857 à HGB, em que fizera advertências sobre a
ocorrência de “períodos (...) aquecidos com o calor da convicção”, foi, conforme visto, por
ele suprimido na edição de 1877. Conservava, entretanto, a explanação de que o
historiador, como o juiz, era um emissor de sentenças verídicas, porque construídas a partir
das provas levantadas. Varnhagen pretendia convencer seu leitor de que sua obra não fazia
mais do que traduzir a verdade contida nos documentos.
3.3. O estilo varnhageniano segundo a recepção crítica
Entre seus contemporâneos, Varnhagen, foi reconhecido como um homem de estilo,
segundo a acepção que a palavra tinha à época.
Talvez a primeira referência às qualidades estilísticas dos textos de Varnhagen tenha
sido feita pelo conde D. Francisco de São Luiz, que avaliou as Reflexões Críticas
68
a pedido
da Academia Real de Ciências de Lisboa. Afirmava ele que Varnhagen escrevia de modo
67
VARNHAGEN, 1877, p. XII-XIII (Prólogo).Escuta-se nas afirmações de Varnhagen uma ressonância das
colocações de Políbio acerca da diferença entre a história e a tragédia, para quem: a tragédia procurava
“aturdir e fascinar os ouvintes no tempo presente”, a história visava “através das ações e discursos
verdadeiros, para todo o tempo, instruir e convencer quem deseja aprender”. Cf. Políbio apud. HARTOG,
2001, p. 119.
68
Trata-se das Reflexões redigidas por Varnhagen sobre a obra de Gabriel Soares de Souza e publicadas com
o título de Noticia do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, no tomo III da Collecção das noticias para a
historia e geographia das Nações Ultramarinas, 1839. Cf. FLEIUSS, 1930. p. 423.
106
“claro e conciso, e com erudiçam curiosa, opportuna, e nam enfastiada”.
69
Ou seja, segundo
o conde, o texto de Varnhagen, além de demonstrar, na medida certa, erudição, guardava as
virtudes de ser “claro e conciso”. D. Francisco, por sua vez, fazia uso dos instrumentos de
crítica literária então reconhecidos como válidos, empregando os critérios da clareza e da
concisão para sua avaliação.
Desses mesmos critérios lançou mão, em 1851, Joaquim da Costa Cascaes, antigo
colega de Varnhagen no Real Colégio Militar da Luz.
70
Nas páginas da Revista Universal
Lisbonense, Cascaes publicou uma apreciação do Florilégio da poesia brasileira e avaliou
o texto introdutório, intitulado Ensaio histórico (...), como “escripto em estilo
conveniente”.
71
Para Cascaes, Varnhagen escrevera o Ensaio histórico de forma apropriada
ao assunto tratado: fora hábil ao lançar mão de corretos recursos estilísticos para o gênero
em questão.
Na edição do segundo volume da HGB de 1857, Varnhagen acrescentou, ao final do
volume, um Post scriptium, onde declarava: “Não podéra soltar das mãos este volume, sem
o acompanhar da manifestação da minha gratidão aos que mais me favoreceram depois da
publicação do primeiro (...)”. Nessas avaliações, o estilo de Varnhagen apareceu várias
vezes elogiado: Humboldt reconhecia que “mème les ornements artistiques ne lui manquem
pas”; Gonçalves Dias declarava que “achei o estylo optimo”, enquanto Rebello da Silva
afirmava que a obra tinha valor e demonstrava “as qualidades do escriptor” que:
72
Pintando de vista, mas com tacto e o vigor conciso do observador, que sabe olhar e
reproduzir ... soube ligar o discriptivo imaginoso com a exposição authentica da
verdade dos factos. Mas sua phantasia, ornando a verdade, aviva-a, não a desflora; e
sem esquecer o plano da obra, e as proporções que lhe prescreve o espaço limitado,
offerece-nos um painel acabado, que a erudicção adopta; porque as bazes são as
mais seguras, e que o gosto não pode deixar de acolher, porque narração tocada de
certa graça campestre e pittoresca, entra pelos sentidos, convencendo ao mesmo
tempo a intelligencia.
73
69
SÃO LUIZ apud RODRIGUES, José Carlos de, 1873, p.110.
70
Joaquim da Costa Cacaes foi colega de Varnhagen pelo menos em três anos do curso do Real Colégio
Militar, conforme se pode ler nos livros de Matrícula dos alunos referentes ao segundo, terceiro e quarto anos.
Cf. Matrícula dos Alumnos do 2º Anno lectivo, livro I; Matrícula dos Alumnos do 3º Anno lectivo, livro I;
Matrícula dos Alumnos do 4º Anno lectivo, livro I.
71
CASCAES, 1851, p. 431-432.
72
VARNHAGEN, 1857, s/p (Post scriptium).
73
VARNHAGEN, 1857, s/p (Post scriptium). Varnhagen fez questão de destacar a importância intelectual
dos homens que avaliaram sua obra: lembrava aos leitores que Humboldt era “o rei das sciencias no século
XIX” e que Rebello da Silva era em Portugal “um dos primeiros litteratos e publicistas”.
107
A avaliação de Rebello da Silva é significativa porque explicita como as qualidades
do escritor foram usadas para o bem do historiador: fora o correto “discriptivo imaginoso”
que permitira a Varnhagen alcançar a “exposição authentica dos factos” – a “phatansia”
ornava e avivava “a verdade”. Ou seja, o emprego adequado das ornamentações permitira a
Varnhagen expor de forma duplamente eficiente, pois atingia os “sentidos” e a
“inteligência”. Rebello valorizava o texto varnhageniano em termos de sua capacidade de,
fazendo uso de “certa graça campestre”, ser eficaz sem, contudo, afrontar a verdade – e
sim, pelo contrário – de torná-la mais real.
No último quartel do XIX, Capistrano de Abreu afirmava haver na HGB “muito
pensamento e muita idea que esclarece de modo feliz factos antes percebidos de modo
imperfeito”. Mas ponderava que, se isso não era reconhecido, “em parte deve attribuir-se a
não ter sido a Historia Geral estudada com a attenção que merece, em parte á falta de
aptidões artisticas em nosso historiador”.
74
E o que seria essa falta de aptidão artística?
Muito provavelmente estaria no fato de Varnhagen oscilar, na avaliação de Capistrano,
entre uma tendência à crônica e à história e, para Capistrano, a história não era,
diferentemente da crônica, uma simples compilação de fatos:
A obra de Varnhagen, por exemplo, tem incontestavelmente muito de chronica, mas
abunda em paginas que revelam muita perspicácia, contém observações e vistas que
escapariam a qualquer intelligencia oridinaria, possue, sem contestação, também o
caracter de historia.
75
Entretanto, Capistrano julgava que Varnhagen poderia “apresentar obra melhor, si
(...) não lhe faltassem aptidões artísticas: isto é, si elle fosse capaz de ter uma intuição do
conjunto, imprimir-lhe o sello da intenção e mostrar a convergencia das partes”.
76
Capistrano explicava que Varnhagen: “na distribuição das materias, quase nunca tomou
como chefe de classe um acontecimento importante, mas factos muitas vezes inferiores,
demissões de governos, tratados feitos na Europa, mortes de reis, etc.”; e afirmava ainda
que a Varnhagen faltara sensibilidade para perceber as feições próprias de cada etapa
distinta da história do Brasil:
Sob as mãos de Varnhagen, a historia do Brasil uniformiza-se e esplandece; os
relevos arrazam-se, os característicos misturam-se e as côres desbotam. Vê-se uma
74
ABREU, 1931, p. 203, 204. (b).
75
ABREU, 1931, p. 203. (b).
76
ABREU, 1931, p. 205. (b).
108
extensão, mas plana, sempre igual, que lembra as paginas de um livro que o
brochador descuidoso repete.
77
Capistrano sugeria, na seqüência, uma divisão da história do Brasil em seis períodos e
afirmava, que eles “apresentam entre si, ao lado de feições congêneres, caracteres que os
separam pronunciadamente”. Julgava, então, que: “estes caracteres (...) Varnhagen não os
soube distinguir. É o defeito fundamental do seu livro”.
78
Ou seja, para Capistrano,
Varnhagen “não nos deu coisa que, ao menos de longe lembre a arte”, porque escrevera
muito em forma de crônica.
79
A falta de arte que Capistrano atribuía a Varnhagen estava na
diferença entre a sua concepção do que deveria ser uma obra de história e a do autor da
HGB.
No início do século XX, a falta de arte em Varnhagen, apontada por Capistrano, foi
analisada como falta de estilo. Vejamos dois exemplos. Em 1903, Oliveira Lima afirmou
que Varnhagen não fora um artista, porque não soubera conjugar “a sagacidade da
verificação com o talento da exposição, alliar a circumspecção do pesquizador á habilidade
do narrador”. Acreditava que Varnhagen não possuíra as “galas do estylo” e que não era
“um estylista (...)”, pois escrevia sem garbo, sem elegância, sem brilho; considerava ainda
que os textos de polêmica de Varnhagen eram fracos de argumentação, enfadonhos e
marcados pela “ausencia de todo cunho artistico”.
80
Oliveira Lima procuraria explicar o
estilo de Varnhagen e afirmaria que o historiador era um “sizudo cronista militar”, que
escrevia “à velha moda portugueza, sem adubos nem temperos francezes”.
81
Como cronista,
narraria seqüencialmente os acontecimentos; como militar, que era por formação, seria duro
e sizudo. Interessante é que Varnhagen explicitamente declarava, inclusive para seus
leitores, que escrevia como um “imparcial e sizudo” juiz.
Em 1923, Celso Vieira afirmou que Varnhagen fora um “adorador de Buffon e de
seus conceitos”, inclusive aqueles relativos à importância do estilo.
82
Em sua opinião,
77
ABREU, 1931, p. 206. (b).
78
ABREU, 1931, p. 208, 209. (b).
79
ABREU, 1931, p. 211. (b).
80
LIMA, 1903, p. 10/15/19/27. O texto de Varnhagen, ao qual se referia Oliveira Lima, é Os indios bravos e
o Sr. Lisboa, publicado em 1867. Varnhagen nele defendia suas idéias sobre os indígenas brasileiros,
contrapondo-se às argüições postas por João Francisco Lisboa, em seu Jornal do Timon.
81
LIMA, 1903, p. 38.
82
Sobre a origem do texto de Celso Vieira, sabe-se que foi pronunciado no Gabinete Português de Leitura, a
17 de fevereiro de 1923. Procede de Rocha Pombo a informação de que o texto de Celso Vieira foi
originalmente um discurso: “Mas quanto ao nosso Patrono [Varnhagen] ides ouvir daqui a momento a palavra
109
Varnhagen preocupava-se com a forma, mas não tinha efetivamente “galas de estilo”.
Vieira recupera a assertiva de Varnhagen – “pelo brilho e ornato do estylo não levamos
pois a menor pretensão de campear. Irão os períodos muitas vezes como foram de primeiro
jacto concebidos, em presença dos documentos estudados”
83
– para afirmar que Varnhagen
manifestava desprezo com relação ao estilo, mas que isso não passava de dissimulação,
para escamotear sua incapacidade estilística. Interessante novamente é que Celso Vieira
reconhecia no estilo de Varnhagen “a solidez, o decoro, a clareza” – todas as qualidades
estilísticas destacadas e elogiadas pelos contemporâneos de Varnhagen, mas que então
passam a ser consideradas como defeitos.
Na década de 1960, José Honório Rodrigues interpretaria de um outro modo a
“dissimulação” identificada por Celso Vieira. Segundo Rodrigues, “a arte da exposição de
Varnhagen (...) é fruto da sua ideologia e concepção da história”.
84
Como um homem do
pensamento conservador, Varnhagen odiava toda manifestação de inconformismo,
condenava o republicanismo, defendia sempre a atuação civilizatória realizada pela
colonização portuguesa – era um monarquista convicto. Contudo, segundo Rodrigues, ele
ocultava toda sua atitude parcial e mesmo preconceituosa. Exemplificava sua afirmativa
recordando que, por exemplo, Varnhagen diminuíra os méritos de José Bonifácio no
processo da independência, mas que “sua gravidade e compostura conseguiam ocultar o
ódio que alimentava pelo parecer escrito por José Bonifácio depois de sua visita à Fábrica
de Ipanema, em 1820, cheio de críticas à administração de Varnhagen pai”.
85
Rodrigues
atrelava a ideologia de Varnhagen a sua “arte de exposição”. Ou seja, interpretava a
dissimulação como uma estratégia adotada por Varnhagen: a aparência grave do historiador
não permitia a seu leitor perceber seu preconceito – o leitor ficava com a certeza de que
fulgurante do nosso digno orador official”. Cf. ROCHA POMBO, 1923, p. 25. Pode-se presumir que o texto
do discurso é o mesmo que aqui se analisa, pois Celso Vieira era o primeiro vice-presidente do Instituto
Varnhagen que se criava. Sobre o Instituto Varnhagen, nada foi apurado. Contudo, Rocha Pombo, na
qualidade de seu presidente perpétuo, pronunciou um Discurso Inaugural na sessão de instalação. Afirmava,
então, que a história era a “mais edificativa de todas as sciencias” e que aqueles que “não tem o senso da
Historia esquecem o passado tambem pode dizer-se que negam o futuro”. Cf. ROCHA POMBO, 1923, p. 35,
33. O Instituto se propunha a ser um centro cuja missão seria a “rehabilitação cívica” do país por meio da
“revivescencia da nossa cultura historica”. ROCHA POMBO, 1923, p. 39.
83
VARNHAGEN, 1877, p. XII. (Prólogo).
84
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 189.
85
RODRIGUES, José Honório, 1988, p. 3-17.
110
realmente Bonifácio fora um personagem de menor importância na independência do
Brasil.
José Honório desnudava, assim, uma estratégia discursiva de Varnhagen, uma
estratégia de dissimulação, empregada para persuadir seu leitor de seu ponto de vista
partidário. Em seus prefácios, Varnhagen apresentava-se como o tribuno a pronunciar a
verdade. Ele desejava que seus leitores tivessem essa convicção: o historiador apresentava
seus veredictos com a mais pura imparcialidade, a partir do que havia encontrado na
documentação. Isso não significa que Varnhagen não lançasse mão de “ornamentos” para
compor a HGB. Mas, para seu leitor, ele enfatizava que o estilo da história não podia ser o
eloqüente e florido – e como não podia ser, Varnhagen garantia que não o havia
empregado. Afinal, apenas o estilo sério, prudente e discreto – o discurso do juiz – poderia
bem anunciar as verdades reveladas pela pesquisa erudita do historiador. Tratava-se de uma
escolha, de uma estratégia estilística premeditada.
Já se afirmou que a obra de Varnhagen é “monolítica”.
86
O que se acrescenta é que
Varnhagen também foi o mesmo em suas preocupações com o domínio da palavra. Para
seus leitores, ele assegurava, conforme enfatizava, escrever sem afetação, sem vícios de
linguagem, sem ornamentações, como o sentenciador da verdade histórica. Talvez
Varnhagen tenha sido feliz em seus efeitos pretendidos, apesar de a crítica especializada
não os avaliar nessa direção. Vejamos um exemplo. No final da década de 1970, Nilo
Odália denunciava que no campo da criação literária “faltava [a Varnhagen] o espírito de
fineza para ser um literato” e que “em suas obras históricas o estilo é pesado e monótono”.
Compara o estilo de Varnhagen ao de um botânico, “descrevendo espécime raro da flora, a
mesma aridez, o mesmo distanciamento”, sem nenhum tipo de atrativo capaz de segurar seu
leitor, o que denunciaria “graves limitações literárias”. Odália afirmava ainda que “seu
estilo é o de um erudito”.
87
Só que para Odália, isso aparecia como defeito.
Parece novamente razoável supor que Varnhagen seguia, também nesse aspecto,
prescrições vindas de uma longa tradição. Se voltarmos aos escritores da Antigüidade,
86
A afirmativa é de Arno Wehling, para quem: “A vasta obra de Varnhagen iniciou-se no final da década de
1830 estendeu-se até o ano de sua morte, 1878. É uma obra monolítica, no sentido de que nela não se
encontram fases ou etapas sucessivas; o que existe é um interesse multifacetado (...)”. WEHLING, 1999, p.
47.
87
ODÁLIA, 1979, p. 11, 12, 13.
111
poderemos encontrar vários deles prescrevendo sobre a forma da escrita da história. Políbio
preceituava que a história era um gênero que tratava “das ações dos povos” e “dos fatos” e
que, diferentemente da tragédia, encontrava-se inteiramente ao lado “do verdadeiro,
visando ao proveito de quem gosta de aprender”. Como um gênero, a história tinha um
estilo: ela deveria guardar “uma certa austeridade”.
88
Quintiliano preceituava que o
historiador deveria escrever como “quem procura não a beleza da exposição, mas a
confiança”.
89
Já Luciano de Samósata estabelecia que o historiador escrevesse de forma
densa e “adequada à vida pública”, numa linguagem que fosse por todos facilmente
compreendida, mas que também recebesse elogios dos homens cultos. Quanto aos ornatos,
dizia que poderiam ser empregados, desde que não tornassem a linguagem artificial: “que
sua expressão caminhe com os pés no chão, elevando-se até a beleza e a grandeza do que se
diz e adequando-se a cada coisa o máximo possível”. De qualquer modo, Luciano lembrava
que o historiador estava submetido a duas normas. A primeira: comprovar os fatos que
narrava, mesmo que ao “ao preço de mil penas e sofrimentos”. A segunda: empregar a
linguagem de modo a “explicar claramente os fatos e fazê-los aparecer em plena luz (...)”.
90
Se aos leitores de seus prefácios Varnhagen se apresenta como o juiz circunspecto,
contudo, a seus correspondentes, ele não cessou de se apresentar como um homem de
estilo, que conhecia e manipulava a palavra segundo suas intenções persuasivas e o gênero
em questão, ou, simplesmente, como um literato. Em suas cartas é possível encontrá-lo
referindo-se a seus mais diferentes escritos como trabalhos de caráter literário. Vejam-se os
seguintes casos, dentre inúmeros que poderiam ser arrolados: em 1840, declarava a
Januário da Cunha Barbosa que pretendia algum dia (...) emprehender alguma tentativa
amena na litteratura Brasileira”
91
, que no caso dizia respeito à escrita de uma história do
Brasil; em 1841, referia-se ao Instituto Histórico como uma “corporação litteraria”
92
; em
88
Políbio apud. HARTOG, 2001, p. 121/119.
89
Quintiliano apud. HARTOG, 2001, p. 165.
90
Luciano apud. HARTOG, 2001, p. 227/229.
91
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 55. Varnhagen encontrava-se no Brasil e de São Paulo escreveu a Januário
da Cunha Barbosa, afirmando estar interessado em, ao ler os documentos encontrados nos arquivos da câmara
da vila, “(...) familiarizar-me com differentes pessoas que figurarão em diversas épochas”, para
posteriormente escrever uma história nacional.
92
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 63. Trata-se de uma carta dirigida a Januário da Cunha Barbosa, então
primeiro-secretário do IHGB.
112
1851, protestava merecer condecorações do Império por suas “locubrações nas lettras”
93
;
em 1867, declarava que a correspondência que mantivera com João Francisco Lisboa tinha
“caracter de litteraria”
94
; em 1874, afirmava não possuir “vaidade litteraria”.
95
Contudo, se tivermos em mente a noção de literatura como criação de obras
ficcionais ou a filha da inspiração e manifestação do talento individual, não é possível
compreender bem o que, para Varnhagen, que falava de produção literária inclusive quando
se referia a trabalhos no campo da pesquisa histórica, significava ser um literato. Morais
Silva assim define a palavra “litterato”: “adj. Que respeita ás Lettras, sciencias, estudos,
erudições. Os homens doutos”.
96
Ser um literato seria, segundo a definição, deter o
conhecimento de um vasto conjunto de obras e, simultaneamente, possuir o conhecimento
das regras de sua composição. Por isso, em Varnhagen, o historiador era também um
literato.
97
Por fim, certamente é importante devolver-lhe a palavra. Em 1852, ele escreveu a
D. Pedro II a seguinte carta:
Meu Senhor! A leitura de uns artigos dos dois primeiros números do Guanabara
sobre Berredo, moveu-me de não deixar para mais tarde a solução de uma questão
importante acerca da qual convém muito ao pais e ao Throno que a opinião se não
extravie, com idéas que acabam por ser subversivas. Submetto, pois, a V. M. a
memoria junta, acerca de como se deve entender a nacionalidade brasileira, e a V.
M. Imperial fico o Dar-lhe o destino que mais conveniente Julgue. Eu lembro que
93
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 168. O texto em questão encontra-se no Arquivo Imperial de Petrópolis,
sem assinatura e sem destinatário. É iniciado assim: “Francisco A. de Varnhagen pediu verbalmente a S. M.
Imperial a graça de uma condecoração”, e continua todo na terceira pessoa. Porém claramente foi redigido
pelo interessado, conforme destacou Lessa. Cf. LESSA, 1961, p. 166, nota.
94
VARNHAGEN, 1867, p. 8. A frase está no texto publicado por Varnhagen contra os ataques de João
Francisco Lisboa às suas idéias sobre os indígenas brasileiros. Ele transcreveu nesse texto a correspondência
mantida entre os dois, no início dos anos de 1850. Tratar-se-ia, segundo afirmava, de uma correspondência a
que fora obrigado por dever de ofício e porque lhe fora solicitada. Lembrava que Lisboa fora enviado em
missão especial pelo governo brasileiro a Portugal, a fim de recolher documentos referentes à história do
Brasil e, não conhecendo os arquivos portugueses, solicitara-lhe ajuda.
95
VARNHAGEN, 1874, p. 10. O trecho está na carta de Varnhagen dirigiria ao IHGB – um Officio Protesto
–, contra a defesa que, na Revista do Instituto, Antonio Henriques Leal fizera das idéias indianistas de João
Francisco Lisboa, contra as dele. Dizia tornar público o folheto para se defender.
96
MORAIS SILVA, 1922 (1813), vol. II, p. 231.
97
Já no final de sua vida, em 1874, em carta enviada ao IHGB, ele afirmava ser: “o primeiro a reconhecer em
meus passados escriptos, não só faltas, que eu proprio vou de boa fé descobrindo e revelando, como
desigualdades e inferioridades, e ás vezes até afectaçôes de estylo. A muitos outros que valem mais do que eu
passou outro tanto. Admitto que hoje mesmo, habituado á gravidade do estylo official, o sigo nos meus
ensaios historicos, que por certo se não recommendam pela brilhantez da phantesia. Nem tão pouco o sinto:
escrevo de acordo com a lisura do meu caracter e a sinceridade de todo o averiguador consciencioso. Cf.
VARNHAGEN, 1874, p. 10-11.
113
poderia, depois de ser lida n’uma sessão do Instituto (onde fosse pela pessoa que V.
M. Imperial se Dignar Indicar), entrar n’um dos primeiros números do Guanabara,
donde depois a transcrevesse a Revista.
Sei que com esta e outras busco expontaneamente novos trabalhos; mas se alguém
se não expõe a elles, dizendo, com abnegação e em bem do paiz, destas verdades,
onde iríamos parar?! – A minha vida é do Brazil, que é a minha pátria, e de V. M.
Imperial, que me Protege. Cumpre-me pois combater, com as armas que devo a
Deus, pelo que julgo em consciência em favor de V. M. I. e do Brazil.
98
(grifos do
autor)
Em nota a essa carta, Clado Lessa informa que o texto a que Varnhagen fazia
referência era a “Introdução à 2ª edição dos Anaes do Maranhão de Bernardo Pereira de
Berredo, escrita por Gonçalves Dias em 1849, e reeditada no 1º e 2º números do
Guanabara, de que era um dos redatores.” Para Clado Lessa, Gonçalves Dias tecera, nessa
introdução, “um apaixonado e romântico ditirambo das qualidades da raça tupi, que
considerava a verdadeiramente representativa da nacionalidade”.
99
Varnhagen discordava
dessa avaliação.
A edição desse texto movera Varnhagen, segundo confessava a D. Pedro II, a
enviar-lhe “uma memória” acerca da questão da nacionalidade brasileira. Ele fazia
referência ao texto: Como se deve entender a nacionalidade ..., onde argumentava contra as
idéias de Gonçalves Dias. A seu ver, a nacionalidade brasileira “não era índia, mas crioula e
christã”, sendo que os indígenas haviam sido “apenas absorvidos pela raça colonisadora”;
tratava-se, portanto, de uma afronta ao monarca e ao Brasil o fato de literatos defenderem,
em verso e em prosa, que os indígenas eram “o instrumento de quanto no Brasil se tem
praticado de util ou de glorioso”. Afiançava que essas idéias chegavam mesmo a ser
subversivas, pois a história deveria ser escrita de forma que “convem á nação”. Para
aqueles que julgavam serem os indígenas o berço da nacionalidade, perguntava: “aspiramos
nós a ser selvagens? ou a render culto e vassalagem aos asquerosos sacrifícios de
anthropophagia?”.
100
Conforme avaliava, eram tantos descalabros que ele não podia mais se
calar! Ao Imperador solicitava ou mesmo sugeria que o auxiliasse, divulgando suas idéias
no Instituto Histórico, em sua Revista e na própria Guanabara, berço da perversão moral.
Porém, estava firmemente convencido de que seria capaz de dar “a solução” para o caso,
não permitindo a vitória de idéias subversivas. Sua arma: a palavra.
98
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 187-188.
99
LESSA, 1961, p. 187, nota 1.
100
VARNHAGEN, 1948 (1952), p. 233-234.
Capítulo 4
Um aluno do Real Colégio Militar
115
Apresentando e reafirmando os princípios normativos de sua obra, Varnhagen
sustentava uma compreensão da forma e dos fins da escrita da história que remonta a uma
tradição de longuíssima duração. Isso não significa, em hipótese alguma, imputar-lhe o
epíteto de antiquado em um mundo moderno. Muito pelo contrário, seus contemporâneos
compartilhavam suas preocupações com o controle da palavra e também discutiam as
normas de “como se deve escrever a história”. E, se essa era uma tradição partilhada, ela
certamente implicava uma formação.
Sobre a formação de Varnhagen, porém, seus estudiosos fornecem apenas alguns
indícios: Pedro Lessa informava que “Varnhagen estudou mathematicas no Real Collegio
Militar, em Portugal (RCM)”
1
; Basílio de Magalhães dizia que “Tendo seguido
[Varnhagen], aos oito annos de edade, para Portugal (em consequencia do regresso do pae),
lá foi que fez os estudos primarios e secundarios, bem como o de engenharia militar”
2
;
Américo J. Lacombe afirmava que Varnhagen teve “uma formação cultural (...) em
Lisboa”
3
; José Honório Rodrigues, que a “formação militar do historiador em Portugal,
tenente desde 1837, modelou suas convicções ideológicas, que nunca foram abaladas”
4
; e
Nilo Odália afirmava que a formação de Varnhagen, no “campo das ciências exatas” pouco
o habilitara para o trabalho como historiador.
5
Na década de 1950, Clado Lessa afirmava que os biógrafos de Varnhagen pouco se
interessavam por sua formação. Segundo ele, esse desinteresse era fruto da certeza de que
esses dados eram “pormenores de pouca importância quanto aos efeitos sôbre a gloriosa
carreira do historiador-diplomata”.
6
Ao afirmar que a “gloriosa carreira” de Varnhagen
1
LESSA, 1916, p. 614.
2
MAGALHÃES, 1928, p. 8.
3
LACOMBE, 1967, p. 147.
4
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 189-190.
5
ODÁLIA, 1979, p. 9-10.
6
LESSA, 1954, vol. 223, p. 95. Clado Lessa afirmava que as características “psicológicas” de Varnhagen se
explicavam por seu “sangue alemão”. Segundo ele, Varnhagen tinha a “lhe correr nas veias sangue alemão,
isto é, do povo da terra mais estudioso e aferrado às próprias convicções que se conhece”. Cf. LESSA, 1955,
vol. 226, p. 4. Não é demais destacar que em plena década de 1950, Clado Lessa propalava, na Revista do
IHGB, teorias racialistas correntes no mundo ocidental desde meados do século XIX. Em outras passagens do
estudo de Lessa sobre Varnhagen, ele manifestou sua adesão a essas teorias. Tais teorias estabeleciam a
existência de raças humanas distintas entre si. Segundo Lilia Schwarcz, os teóricos da raça afirmavam existir
“uma continuidade entre caracteres físicos e morais” e “a preponderância do grupo racio-cultural ou étnico no
comportamento do sujeito”. Cf. SCHWARCZ, 1995, p. 58-60.
116
prescindia de sua formação, Lessa buscava engrandecer os méritos pessoais de seu
biografado. Contudo, ele estava correto ao afirmar que “[os] biógrafos (...) apenas muito
por alto aludem aos seus estudos em Lisboa durante a segunda infância e a adolescência”.
7
Já na década de 1970, Alice Canabrava repisaria no mesmo ponto –“conhecemos pouco a
formação intelectual de Varnhagen” – e acrescentaria que apenas se sabia de seu
“treinamento como autodidata, na experiência de longos anos junto aos arquivos”.
8
Ainda acerca da formação de Varnhagen, Clado Lessa informava que a mais rica
fonte de dados, e a única utilizada pelos biógrafos, era a “carta-ofício” enviada pelo
historiador, no início de 1843, ao então comandante do Imperial Corpo de Engenheiros.
9
A
carta-ofício é uma autobiografia na qual Varnhagen, pleiteando sua promoção na carreira
militar, recordava seus estudos feitos em Portugal – “as minhas applicações e affeições erão
[à sua época como estudante] (...) para o Brazil” – e julgava que eles “me ajudarão a obter
mais vantajosa situação na carreira, cujo amor de classe e dos estudos conservo e
conservarei sempre”.
10
Na seqüência, rememorava sua formação escolar, informando que
freqüentara “as aulas de primeiras lettras e lingua franceza” no Rio de Janeiro e que, pouco
após regressar a Portugal, tornara-se aluno do Real Colégio Militar (RCM):
Chamado à Europa por meu pai, entrei, nos fins de 1825, para o Real Colégio da
Luz, onde, seguindo o curso regularmente por sete annos, além de obter aprovações
todas plenas nos exames de latim, francês, inglês, filosofia, retórica, geografia,
história, completei o primeiro ano matemático, e o segundo de estudos militares,
especialmente relativos ao serviço de Estado Maior, tática, estratégia, reunindo a
isto a escola das diferentes armas, equitação, esgrima e desenho linear, de figura,
arquitetura, paisagem, perspectiva e topografia que tive durante os sete anos. Findei
êste curso em agôsto de 1832.
11
7
LESSA, 1954, vol. 223, p. 95. Em outra passagem da biografia de Varnhagen, Lessa reafirma sua avaliação:
“As fontes biográficas existentes são totalmente omissas de dados sôbre os anos da primeira infância do
historiador-diplomata, como sucede em geral com as de grandes homens”. Cf. LESSA, 1954, vol. 223, p. 92.
8
CANABRAVA, 1971, p. 418. A experiência arquivística de Varnhagen é por ele noticiada em várias
passagens de suas cartas. Pode-se dizer que, além de realizar as pesquisas, Varnhagen fazia questão de
anunciar que as realizava. Também no Prologo preparado para a segunda edição da HGB, Varnhagen lista os
arquivos onde pesquisara. Cf. VARNHAGEN, 1877, p. IX-X. (Prólogo).
9
LESSA, vol. 223, p. 95. Lessa reeditou essa carta-ofício na Correspondência ativa de Varnhagen. Cf.
LESSA, 1961, p. 99-102.
10
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 101.
11
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 101. Essas informações são corroboradas por Inocêncio da Silva que, em
1858, afirmava que Varnhagen fora : “admittido (...) como alumno interno do Real Collegio Militar, então
estabelecido no sitio da Luz, subúrbio de Lisboa. Permaneceu ahi durante alguns annos, (...). Saindo d’aquelle
estabelecimento em 1832 (...)”. Cf. SILVA, 1858, p. 358. Mas, sobretudo, as informações são confirmadas
pelo cadastro de Varnhagen arquivado no Colégio Militar. Nele pode-se ler: “Foi admittido a alumno
Estadista, por Aviso da Secretaria de Estado dos Negocios da Guerra em data de 17 de setembro de 1825.
117
Nessa “carta-ofício”, escrita para justificar sua pretensão a uma promoção, além de
informar que cursara as matérias voltadas para a prática militar, fazia sobressair sua
formação em línguas vivas, no latim e na retórica.
12
No contexto, falar de formação retórica
pode ser sintomático.
Em trabalho publicado na Revue d’Histoire Littéraire de la France, Jean Molino
chamava a atenção para o fato de que os estudos sobre o ensino de retórica oitocentista
tendem a interpretá-lo como se restringindo apenas ao domínio dos tropos e das figuras de
linguagem – “comme s’ils remplissaient à eux seuls l’espace de la rhéttorique”. Segundo o
autor, muito ao contrário disso, a retórica oitocentista “fait partie d’une discipline plus
vaste, qu’on appellera selon les cas belles-lettres ou littérature”. O ensino da literatura ou
das belas-letras incluía a gramática, a retórica, a poesia e a literatura, na qual estavam
compreendidas, afirma o autor, a história, o romance, a crítica, dentre outros gêneros. Era
por isso que, além dos manuais de retórica, o ensino literário “compreend-il (...) de manuels
de morceaux choisis des plus grands auteurs, latins et français, comme en témoigne le
recuil, maintes fois réédité au cours du siècle”.
13
Esse ensino, segundo Molino, tinha uma
pretensão ambiciosa de formação intelectual, “stylistique, esthétique et éthique” do
educando.
14
A definição de “belles-lettres” apresentada por Molino se aproxima daquela dada
por André Chervel para o termo “humanidades”. Segundo Chervel, as humanidades eram
um modelo de formação que foi utilizado nas escolas secundárias e que, na França, se
constituiu no modelo dominante, dos séculos XVI ao XIX. Esse modelo de formação
visava à preparação estética, retórica, moral e cívica do educando, ou seja, “une éducation
Sahio por completar os Estudos”. Ainda nesse cadastro pode-se saber que Varnhagen passou a freqüentar a
Escola em outubro de 1825 e saiu em 29 de agosto de 1832. Cf. Registo dos Alumnos do Real Collegio
Militar. (Anexo 1) O curso do Real Colégio Militar, à época em que Varnhagen nele estudou, tinha a duração
de seis anos. Realmente Varnhagen nele permaneceu por sete anos porque repetiu o segundo ano do então
denominado “Curso Preparatório”, como adiante se discutirá.
12
Muito provavelmente, ao se apresentar como um oficial que dominava línguas vivas e até o latim,
Varnhagen o fazia porque havia um reconhecimento social desse saber, conforme já se destacou. Conforme
destaca Peter Burke, o fato de um escritor citar em latim era considerado, ainda no século XIX, prova de
erudição, o que o tornava possível candidato a partícipe do restrito grupo dos eruditos. Cf. BURKE, 1993.
13
Segundo Molino, os trechos publicados nos livros de lições escolares pertenciam a diversos gêneros
literários: “narrations, tableaux, descriptions, définitions, fables et allégories, morale religieuse ou philosophie
pratique, lettres, discours et morceaux oratoires, dialogues philosophiques ou littéraires (...)”. Cf. MOLINO,
1980, p. 182-183.
14
MOLINO, 1980, p. 183. Os artigos publicados nesse número da Revista foram dedicados à discussão da
retórica no século XIX.
118
de l’individu, de l’esprit, de l’intelligence, de l’âme (...)”.
15
Nesse sentido, se o estudo do
latim ocupava “le centre” da formação, os textos escolhidos para serem explicados,
traduzidos, memorizados, imitados e emulados como modelos eram aqueles considerados
como formadores de virtudes – a coragem, a justiça, a moderação, a honestidade, a
abnegação, dentre outras.
16
Entre os autores estudados nessas escolas, Chervel destaca que
predominavam os antigos: Ovídio, Virgílio, Tito-Lívio, Cícero, dentre outros. Os alunos
decoravam trechos desses autores que se tornavam modelos para suas futuras composições;
tratava-se de fazer “l’élève s’imprégner des principes de la langue classique” e,
simultaneamente, imbuí-lo de princípios estéticos e éticos.
17
Enfim, essa educação visava a
formar um indivíduo partícipe de um limitado grupo que
par la pratique des textes et des auteurs, par le contact avec des civilisations
fondatrices, par l’exercice de la traduction, de l’imitation et de la composition, a
acquis le goût, le sens critique, la capacité de jugement personnel et l’art de
s’exprimer oralement et par écrit conformément aux normes reçues.
18
Na primeira metade do século XX, Max Fleiusss afirmou ter sido Varnhagen
educado nas humanidades. Fleiuss não indicava as razões que o haviam levado a tal
afirmação, mas provavelmente tinha em mente a compreensão do que significava, no século
XIX, o estudo de retórica. Provavelmente era por isso também que, segundo Fleiuss,
Varnhagen crescera estudando os clássicos da língua portuguesa, que teriam moldado seu
estilo.
19
Varnhagen declarara sua formação em línguas e na retórica. Poder-se-ia afirmar
15
CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 9. O texto de Chervel introduz um número especial da revista Histoire
de l’Éducation, dedicado a estudos sobre as humanidades clássicas, na França. Um outro número da mesma
revista foi dedicado ao ensino espanhol, do século XVI ao XIX – período correspondente àquele que, segundo
Chervel, as humanidades dominaram o ensino secundário francês. Nesse número, Jean-Louis Guereña faz um
apanhado dos trabalhos sobre a construção das disciplinas no ensino secundário espanhol, no século XIX, e
também aborda a questão do ensino das humanidades. Cf. GUEREÑA, 1998, p. 57-87.
16
Segundo Chervel: “Pour qu’une littérature soit considerée comme formatrice, il faut qu’elle comporte des
leçons morales ou civiques et qu’elle mette en scène des comportements dignes d’être imités”. Cf.
CHERVEL, 1997, p. 10.
17
CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 11. Para Chervel: “L’éducation classique, c’est donc aussi une
formation de l’esprit que tend à développer un certain nombre de qualités, la clarté dans la pensée et dans
l’expression, la rigueur dans l’enchaînement des idées et des proportions, le souci de la mesure et de
l’équilibre, l’adéquation aussi juste que possible de la langue à l’idée. Pour y parvenir, les élèves sont soumis
à toute une panoplie d’exercices, oraux e écrits”. Cf. CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 14.
18
CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 6.
19
Segundo Fleiuss: “(...) [Varnhagen] floresceu no estudo de humanidades e familiarizou-se bastante com os
classicos portuguezes, cujos moldes lhe contornaram o estylo dogmatico e frio, contemporaneo do de
Alexandre Herculano e Rebello da Silva”. Cf. FLEIUSS, 1930, p. 412. Clado Lessa também afirmava que
Varnhagen estudara “humanidades” sem, contudo, apresentar maiores explicações para sua afirmativa. Cf.
LESSA, 1954, vol. 223, p. 98.
119
que o Real Colégio Militar, onde ele estudara, dava a seus alunos uma formação humanista
ou em belas-letras?
Nesse capítulo se discutirá a composição da grade de disciplinas do Real Colégio
Militar, a partir de documentos legais que regulamentaram seu funcionamento, assim como
as mudanças pelas quais ela passou, ainda no primeiro quartel do XIX. Visou-se, em
primeiro lugar, a apresentação das disciplinas obrigatórias que compunham essa grade, no
momento em que Varnhagen foi aluno da Instituição. Ou seja, se ele relembrava seu estudo
de retórica realizado no Colégio Militar, efetivamente a disciplina existia na composição da
grade curricular da Instituição?
Em segundo lugar, buscou-se verificar se as considerações de Jean Molino sobre o
ensino de retórica no século XIX, assim como o estudo de Chervel sobre as humanidades
em escolas francesas, seriam paradigmas válidos também para uma instituição de ensino
militar portuguesa.
20
Com esse objetivo, analisei uma prova de concurso de um professor
de língua portuguesa e literatura, do qual Varnhagen foi aluno. Essa prova, acredito,
permite-nos iniciar um contato, que ultrapassa o instituído legalmente, para examinar os
valores e conteúdos reconhecidos como válidos e corretos pela Instituição escolar em
questão. Considerando que o concurso foi preparado, executado e avaliado por professores
da Instituição, a análise dos critérios de avaliação adotados assim como da prova do
professor aprovado, pode auxiliar na identificação do tipo de profissional o Colégio Militar
desejava, que conteúdo exigia que dominasse, assim como os valores que compartilhava, ao
20
Segundo Joel Serrão, o Colégio Militar “fez figura de caso à parte no panorama do ensino secundário
português”. Mesmo considerando que seus objetivos fossem a formação castrense do educando, Joel Serrão
afirma que “seu plano de estudos compreendia tanto a formação primária como disciplinas secundárias da
área das ‘Humanidades’.” (grifo do autor). Cf. SERRÃO e MARQUES, 2002, p. 379. Sobre o ensino de
humanidades nas escolas portuguesas do XIX, fiz um levantamento de trabalhos sobre a temática no fichário
da Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa, e não consegui verificar a existência de pesquisas
sobre o assunto. A mesma ausência notei em três revistas portuguesas de educação. Fiz um levantamento
desde o início da década de 1980, quando, parece-me, os estudos sobre as humanidades começaram a ganhar
fôlego. Pesquisei o índice das seguintes revistas: Revista Portuguesa de Pedagogia, publicada pela Faculdade
de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra; Revista Portuguesa de Educação,
publicada pelo Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho; Revista de História das Idéias,
publicada pelo Instituto de História e teoria das idéias da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Ainda procurando artigos sobre o ensino de humanidades em Portugal, li o índice dos números da
Paedagogica Historia Internacional Journal of the history of education, publicada na Bélgica, até o segundo
volume de 2002 – que era o último número da revista existente na Universidade de Lisboa. Nenhum artigo
sobre a temática foi identificado. É claro que se trata de um levantamento preliminar, mas que indica, no
mínimo, uma pequena produção sobre a temática, em Portugal.
120
aprovar o candidato em questão. Segue-se aqui a orientação de Dominique Julia acerca de
estratégias de pesquisa e de análise da cultura escolar:
Na análise histórica da cultura escolar, parece-me de fato fundamental estudar como
e sobre quais critérios precisos foram recrutados os professores de cada nível
escolar: quais são os saberes e o habitus requeridos de um professor? (...) o exame
ou o concurso definem, tanto na forma das provas como nos conteúdos dos saberes
propostos aos candidatos, a base mínima de uma cultura profissional a se possuir.
21
O esforço realizado visa a uma aproximação do tipo de profissional que o Colégio
Militar desejava ter, o que certamente está ligado ao tipo de educando que pretendia formar.
4.1. Sobre a grade curricular do Real Colégio Militar
22
Em outubro de 1825, quando o menino Francisco Adolfo de Varnhagen passou a
freqüentar as aulas do Real Colégio Militar, localizado no então distante bairro da Luz, ele
entrava numa Instituição destinada à preparação de oficiais para o Exército Português, em
funcionamento havia mais de duas décadas.
23
21
JULIA, 2001, p. 24/30. Dominique Julia define a cultura escolar como: “(...) um conjunto de normas que
definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e um conjunto de práticas que permitem a
transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos”. Cf. JULIA, 2001, p. 9.
22
O Colégio Militar da Luz é uma instituição bicentenária, conhecida em Portugal pelo rigor de sua disciplina
e pela excelência da formação dada a seus alunos. Ao longo de sua existência, a Instituição formou quadros
para o oficialato do Exército português e também inúmeros homens que se destacaram na vida política,
intelectual e artística do país. Contudo, apesar da importância da escola na formação desses quadros, ela foi
até hoje objeto de apenas uma dissertação de mestrado. Os estudos sobre a escola foram produzidos por
homens diretamente a ela ligados – professores ou ex-alunos –, a partir da rica documentação existente em
seu arquivo. Dentre esses estudos destaca-se sobremaneira o publicado pelo Coronel Costa Matos, nas
comemorações do bicentenário do Colégio, realizadas em 2003. Sobre os ex-alunos do Colégio que ocuparam
postos de destaque na vida portuguesa, o professor Carlos Adolpho Marques Leitão, na sessão solene de
comemoração do primeiro centenário do Colégio, afirmava: “Seria aqui logar para referir os nomes mais
illustres dos filhos d’esta instituição; mas difficil é a escolha ou a preferencia, porque todos têem sabido
nobilitar a escola que os educou”. Na seqüência Marques Leitão listava vários ex-alunos. Cf. Sessão Solemne
commemorativa do Primeiro Centenario do Real Collegio Militar, 1903, p. 26-28. No período em que estive
pesquisando nos arquivos do Colégio, de março a junho de 2003, o então diretor tinha encomendado, a um
professor recém-aposentado um levantamento de todos os alunos egressos da Instituição, nos últimos trinta
anos, que se haviam destacado na vida portuguesa. Infelizmente não tive acesso aos resultados finais do
trabalho.
23
Ao ser matriculado no Colégio, Varnhagen recebeu um número de identificação – 114. Esse número
acompanhava o aluno durante toda sua vida escolar e só era novamente atribuído a outro aluno depois que seu
detentor formasse ou fosse afastado da escola, por reprovação ou por ter ultrapassado a idade máxima
permitida de 17 anos. Cf. Registo dos Alumnos do Real Collegio Militar. Como aluno estadista, Varnhagen
estudou gratuitamente na Instituição, custeado pelo Estado português. O Colégio também tinha alunos que
pagavam por seus estudos. Cf. MAYA, 1903, p. 11.
121
A origem do Colégio remonta ao período de guerras vivido pela Europa, decorrentes
dos sucessos Revolução Francesa e, particularmente, a partir da ascensão de Napoleão
Bonaparte ao poder, em 1799.
24
Assim como os demais países europeus, Portugal vivia sob
a ameaça francesa. Nesse cenário, em dezembro de 1801, o Ministro da Secretaria da
Guerra e dos Estrangeiros do governo português – D. João de Almeida de Melo e Castro
nomeara um Conselho Militar para deliberar sobre questões referentes ao Exército
Português.
25
No trabalho realizado por esse Conselho, apontava-se a necessidade de
melhorar a preparação do oficialato do exército, para fazer frente à ameaça representada
pela França. Apesar de não oficialmente instituído, o Colégio resultou dessa preocupação
do governo português.
Em agosto de 1802, o coronel António Teixeira Rebelo, então comandante do
regimento de Artilharia da Corte, dirigia-se ao ministro Mello e Castro e anunciava ter em
mãos uma lista de futuros educandos. Teria início, naquele ano, uma experiência de
funcionamento de uma escola no denominado quartel da Feitoria: “Ponho na Prezença de
V. Exª a relação nominal dos Alunos que estão em circunstâncias de entrar no pequeno
Collegio de educação ao qual V. Exª faz a destinta honra de ser Patrono”.
26
Entretanto, provavelmente devido às enormes dificuldades que Portugal viveu desde
o início do século XIX, sobretudo depois da partida da Corte para o Brasil – em 1808 –, o
Real Colégio só seria regulamentado provisoriamente em 1814
27
, por meio de portaria dos
24
Sobre as guerras européias decorrentes da Revolução Francesa, cf. HOBSBAWM, 1982, p. 95. Hobsbawm
lembra que a Europa viveu uma guerra quase ininterrupta de 1792 a 1815.
25
Cf. COSTA MATOS, 2003, vol. I, p. 42-48.
26
Apud. COSTA MATOS, 2003, vol I, p. 51. Apesar de no Colégio Militar se considerar o ano de 1803 como
o inicial de seu funcionamento, o Coronel Costa Matos argumenta que a experiência fora iniciada no ano
anterior. Para Rómulo de Carvalho, fora “por iniciativa pessoal” que António Teixeira Rebelo decidira criar,
em 1803, um Colégio destinado aos “filhos dos militares sob seu comando”. Cf. CAVALHO, 1996, p. 524.
Dessa mesma opinião partilha Joel Serrão que afirma: “O Colégio Militar teve a sua origem no Colégio da
Feitoria (perto de S. Julião da Barra), estabelecido em 1803 por iniciativa do coronel António Teixeira Rebelo
e destinado, primacialmente, à instrução dos filhos dos militares do Regimento de Artilharia da Corte, mas
admitindo também civis”. Cf. SERRÃO e MARQUES, 2002, p. 378-379.
27
O Coronel Costa Matos afirma que a experiência do Colégio mostrava resultados pois que já formara
oficiais que se encontravam na ativa. Segundo ele há “referências de, em 1808, terem saído do Colégio os
primeiros 2 cadetes para Cavalaria; no ano seguinte, 3 oficiais, 2 sargentos e 1 sargento-ajudante; e em 1810
(...) terão sido de 5 o número dos que ascenderam a oficial. Cf. COSTA MATOS, 2003, p. 124. Para Joel
Serrão, as invasões francesas no território português, a partir de 1807, haviam despertado o “Governo para a
necessidade de incrementar a formação militar”, o que levou “ao aproveitamento desta intituição [o Colégio
criado pelo coronel Teixeira Rebelo] com fins meramente castrenses”. Cf. SERRÃO e MARQUES, 2002, p.
379.
122
Governadores do Reino – que então governavam Portugal em nome do Rei.
28
Esse
regulamento provisório foi substituído, em 1816, pelo Alvará, e Regulamento para o Real
Collegio Militar da Luz, no qual se regulava o funcionamento do Colégio, inclusive
naqueles aspectos diretamente referentes ao ensino. No Capítulo I do Título V – “Do plano
dos Estudos Civis, e Militares” –, estabelecia-se o objetivo do ensino a ser ministrado no
Colégio: “a Educação, e Instrucção própria da Mocidade, que se destina ao Serviço Militar”
e estipulava-se que as disciplinas do currículo deveriam ter “conexão com aquelle serviço”,
assim como “corresponder ao fim desse Estabelecimento”.
29
Enfim, as disciplinas a serem
cursadas no Colégio deveriam:
(...) habilitar com os Estudos indispensaveis a porção de Meus Vassallos, que se
propõem á honra de Servir-Me [ao Rei] na brilhante carreira das Armas, e o tornar a
Classe da Officialidade dos Meus Exércitos mais digna, e apta para prosseguir, e
aperfeiçoar-se nos importantes, e superiores ramos da Sciencia Militar.
30
A regulamentação do Colégio atualizava as propostas que, pode-se dizer, vinham de
1802, quando o Conselho Militar, criado pelo ministro Melo e Castro, apresentara-lhe a
necessidade de melhorar a preparação dos oficiais do Exército português.
Porém, ao contrário do que se poderia imaginar, a primeira grade curricular do
Colégio não era composta exclusivamente por disciplinas técnicas ou diretamente ligadas
ao serviço militar. Ao longo dos quatro primeiros anos de escolarização, o aluno – admitido
entre os nove e onze anos de idade – cursava, em um regime de internato por dez meses
consecutivos com uma folga por semana (na quinta-feira, mas sem direito de sair da
escola), além das primeiras letras, as gramáticas da língua portuguesa, latina, francesa e
inglesa, a aritmética e a álgebra, assim como a lógica.
31
Nos dois últimos anos de
28
O prédio escolhido para abrigar o Real Colégio Militar era um edifício localizado a uns 6 quilômetros do
centro de Lisboa, e mandado edificar pela infanta D. Maria, filha do rei D. Manuel, para abrigar um hospital
de enfermos pobres. Esse edifício fora muito arruinado pelo terremoto que em 1755 atingira Lisboa. Para
receber o Colégio, o prédio passou por reparações. Em 1835, o Colégio foi transferido para o antigo edifício
da Congregação dos Missionários, denominada de Rilhafolles. Posteriormente, em 1848, em conseqüência de
seu grande número de alunos, o Colégio passou a funcionar no Convento de Mafra, localizado a 43 km de
Lisboa. Ao longo dos anos seguintes essa transferência foi motivo de questionamentos, inclusive por parte de
diretores da instituição que atribuíam à localização do Colégio a causa da decadência de seu ensino. Em 1859,
o Colégio voltaria a funcionar no bairro da Luz, onde está até hoje. Cf. MAYA, 1903, p. 17, 41, 57-58.
29
Alvará, e Regulamento para o Real Collegio Militar da Luz, 1816, p. 25.
30
Alvará, e Regulamento para o Real Collegio Militar da Luz, 1816, p. 1.
31
Sobre o período letivo vigente no Colégio Militar, no parágrafo VII, do título V do Alvará de 1816, pode-se
ler: “O anno letivo deverá principiar no 1º de Outubro, e constará de dez mezes contínuos sem férias, á
excepção de hum feriado na Quinta-feira de cada semana, se nella não houver dia Santo; no mez de Agosto
immediato ao ultimo lectivo serão examinados todos os Estudantes (...)”. No parágrafo VIII, se determinava
123
escolarização, o aluno cursava disciplinas da formação militar: noções gerais de mecânica,
hidrodinâmica, óptica, desenho de arquitetura, princípios de tática elementar,
castrametação
32
, fortificação de campanha, desenho de arquitetura. Compunham ainda a
grade curricular aulas de dança, esgrima, evoluções e manobras militares e doutrina cristã.
33
Se a educação militar pretendia capacitar os educandos para assumir os postos de comando
do Exército, ela não prescindia de uma base então denominada de “literária”. Segundo seu
primeiro diretor, o coronel António Teixeira Rebelo: “Sem o conhecimento das línguas,
sem a perfeição da razão, sem a memória dos factos e países do mundo: o homem não sabe
determinar-se, seus juízos nem sempre são verdadeiros”.
34
Pode-se dizer que a primeira grade curricular do Real Colégio, estabelecida pelo
Alvará, era uma composição entre duas vertentes educacionais: uma, apoiada numa longa
tradição e voltada para o domínio da língua e o controle da palavra; outra, fundada sobre o
domínio e o controle de técnicas militares, conhecimento que se poderia chamar de
científico e que preparava o jovem para o ingresso no mundo profissional.
35
O Colégio não
era uma escola “liberal”, no sentido atribuído por Chervel, ou seja, que ministrava um
ensino gratuito ou “détachée de toute préocupation utilitaire”.
36
Contudo, para bem compor
a classe dos oficiais, entendia-se necessário dar aos educandos uma instrução literária, pois
ela formaria homens detentores de perfeita razão, de corretos juízos e capacitados para o
comando, conforme expressava seu primeiro diretor.
que: “No ultimo dia de Agosto deverão sahir os Collegiaes a passar o mez de Setembro em suas casas (...)”.
Cf. Alvará, e Regulamento para o Real Collegio Militar da Luz, 1816, p. 28.
32
Castrametação: arte e técnica de escolher, medir e preparar terreno para a construção de acampamento ou
fortificação (cf. Houaiss, Dicionário da Língua Portuguesa).
33
Alvará, e Regulamento para o Real Collegio Militar da Luz, 1816, p. 27-28.
34
REBELO, António Teixeira. Rezumo do plano detalhado do Real Collegio Militar. Apud. COSTA
MATOS, 2003, vol 1, p. 125. Segundo Costa Matos, Teixeira Rebelo defendia que uma “educação uniforme e
uma boa preparação [seria] conseguida através da junção das ‘artes e ciências’.” (grifo de Costa Matos)
35
Segundo André Chervel, a educação ocidental tem, desde sua mais remota origem grega, duas correntes:
“L’une est fondée sur la nature, sur les choses, sur l’univers (...). L’autre s’appuie sur les textes portés par une
longue tradition, et sur la langue, à la fois outil de la communication et de la persuasion et support
indispensable, voire consubstantiel, de la pensée (...)”. Cf. CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 5.
36
CHERVEL, 1997, p. 9-10. Ainda segundo Chervel, a educação humanística preparava “des hommes libres,
en les faissent accéder, dès leur jeunesse, aux plus hauts sommets de la pensée et de la création humaines”.
Cf. CHERVEL e COMPÈRE, 1997, p. 10.
124
A grade curricular estabelecida pelo Alvará de 1816 foi modificada por meio de um
Aviso real, em setembro de 1824, que determinou a extinção da
37
cadeira do 2º anno mathematico, actualmente existente no real collegio militar, e
crear em logar d’ella uma cadeira em que se professem matérias de instrucção
militar, ficando por este modo para o futuro o curso militar propriamente dito
d’aquelle real collegio dividido em dois annos.
38
Nesse Aviso, considerava-se que os alunos formados pelo Colégio destinavam-se ao
“serviço do estado maior do exercito e das armas de infanteria e cavallaria” e, por isso, era
necessário proporcionar um “desenvolvimento da instrução própria dos fins d’aquelle
collegio”. Pode-se dizer que o decreto era orientado pela preocupação com o
aprimoramento da preparação técnica dos educandos.
A mesma preocupação orientou uma segunda reformulação do “plano de estudos” –
denominação dada à grade das disciplinas obrigatórias – do Colégio, decretada em julho de
1826. As disciplinas dos seis anos da escolarização foram divididas em dois cursos
distintos e seqüenciais, cada qual com três anos de duração: um primeiro, denominado de
“preparatório”, e um segundo, “militar”.
39
Por um lado, o decreto de 1826 significou o
reconhecimento legal de dois cursos dentro do Colégio e implicou uma nova “divisão das
disciplinas” que ampliava em um ano o “curso militar” e, em contrapartida, reduzia, na
mesma proporção, o tempo dedicado às disciplinas literárias. Por outro, apesar dessa
redução, a reforma de 1826 confirmou o reconhecimento institucional da importância de
uma formação em línguas na preparação do oficial.
Em 1873, Luciano Cordeiro, então professor do Colégio, redigiu uma Nota histórica
para a coletânea que fizera dos decretos e portarias referentes às grades curriculares do
Colégio Militar. Em sua avaliação, a reforma de 1826 conservava a tradição segundo a qual
37
CF. CORDEIRO, 1873, p. 3-16. Em 1872, Luciano Cordeiro, professor de filosofia e literatura do Colégio,
foi encarregado, conforme testemunha, de preparar um trabalho sobre as várias reformas dos planos de
estudos pelas quais passara o Colégio, até aquele ano. Luciano Cordeiro reuniu, nesse trabalho, as sucessivas
grades curriculares, assim como os decretos, portarias e avisos referentes às disciplinas que deveriam compor
essa grade. A composição da grade curricular do Colégio Militar passou por sucessivas modificações, ao
longo do período compilado por Cordeiro, conservando, porém, seu caráter duplo de preparação literária e
científica.
38
Reforma de estudos In: CORDEIRO, 1873, p. 33. A grade curricular resultante do decreto de 1824, sofreu
um acréscimo, realizado por portaria, em maio de 1825, quando à disciplina História e Geografia foi somada a
Cronologia. Cf. CORDEIRO, 1873, p. 35.
39
No decreto de 1826 se lê: “As disciplinas que actualmente se ensinam em um curso de seis annos no
referido collegio serão divididas em dois cursos de tres annos cada um; a saber; um curso de preparatórios, e
um curso militar”. Cf. Reforma de Estudos In: CORDEIRO, 1873, p. 35.
125
“o collegio militar era uma escola especial que, sem mutuas invasões, devia reunir a um
curso de conhecimentos geraes, indispensavel base, os estudos especiaes necessarios a um
official de infanteria e cavallaria”.
40
Interessante, destaca-se, é que a denominada
“indispensável base” de conhecimentos era constituída pelo estudo das línguas e das
gramáticas latina, portuguesa, francesa e inglesa. É importante destacar, também, que essa
avaliação era feita já em meados da segunda metade do século XIX, o que denuncia a
permanência da importância atribuída, pela Instituição, àquela formação.
A reforma de 1826 modificou ainda o “curso preparatório”, porque nele acrescentou
o estudo da literatura entre as disciplinas a serem cursadas pelos alunos do terceiro ano.
Para Luciano Cordeiro, a introdução da literatura decorria do fato de ser ela “complemento
natural do estudo elementar e pratico das línguas, e indispensavel elemento de cultivo
intellectual e do exercicio publico d’este poderoso instrumento de civilisação e acção que
se chama a palavra (...)”.
41
(grifo do autor) Ou seja, para Cordeiro, o estudo da literatura
capacitaria o aluno para ser um sujeito ativo, para agir por meio da palavra junto às outras
pessoas. Ora, falar em ação com a palavra é compreendê-la como um instrumento de
persuasão. Nesse sentido, pode-se dizer que Luciano Cordeiro, professor de literatura do
Colégio Militar na década de 1870, compreendia a literatura como o ensino das “belles-
letres” ou da retórica, aproximando-se, assim, da compreensão identificada por Jean Molino
no oitocentos francês: o estudo da literatura diz respeito ao aprendizado de preceitos e de
modelos consagrados e reconhecidos pela tradição, envolvendo, simultaneamente, uma
formação moral e ética.
42
Essa era a compreensão de literatura partilhada pelos professores
do Colégio Militar, na década de 1820.
40
CORDEIRO, 1873, p. 21.
41
CORDEIRO, 1873, p. 21/35. É certo que o professor Luciano não deixava, enquanto professor de literatura,
de valorizar sua própria cadeira ao fazer essa declaração. O aluno do “curso preparatório” cursava ainda a
filosofia racional e a doutrina cristã, ministrada nos dias santos e feriados.
42
Desde a década de 1830, na grade curricular do Colégio Militar à disciplina literatura aparece somada a
eloqüência; no final da década de 1860, conserva-se a palavra eloqüência, mas passa a constar, ao invés de
literatura, noções históricas de literatura. Talvez nesse momento possa-se dizer que a retórica se separava da
literatura, que começa a constituir-se em um campo próprio de conhecimento. Sobre as grades do Colégio
Militar: Cf. CORDEIRO, 1873, p. 8-15.
126
4.2. Sobre o ensino de literatura no Real Colégio Militar
Uma vez instituído o ensino da literatura, tinha-se uma nova disciplina a ser regida
no Colégio. Certamente um professor já lotado na Instituição poderia desempenhar a
função. Contudo, em 13 de setembro de 1827, conforme consta em ata no Livro 1º - Registo
dos termos de concurso as cadeira e substituições, realizou-se no Colégio Militar concurso
para o provimento da vaga da cadeira de “Lingoa Portuguesa e Litteratura”.
43
Poucos dias antes de o concurso ser realizado, em 10 de setembro de 1827, um
Aviso da Secretaria d’Estado dos Negócios da Guerra determinou a forma de realização, a
partir de então, das seleções de professores para provimento de vagas no Real Colégio
Militar. Segundo o Aviso:
A opposição será feita perante huma Congregação composta dos Lentes do Curso
Militar, com o Professor das Matérias da Opposição, quando estas forem de
Preparatórios. O oppositor explicará dos Compendios respectivos, o Capitulo, ou
Capitulos que os Membros da Congregação lhe mandarem explicar, e satisfará ás
refflexões que sobre o assumpto da opposição lhe forem feitas: áquella explicação
se juntará a traducção, e analise filosófica, rethorica, ou grammatical, conforme o
assumpto da opposição, e o oppositor fará uma peça de composição sua sobre o
assumpto dado, nas Matérias que admittirem esta prova; o assumpto desta
composição deve ser regulado de modo que a sua execução seja, razoavelmente,
possível em huma hora de tempo; a opposição theorica durará o tempo que parecer
conveniente para formar juízo d’ella.
44
Uma consulta ao Dicionário de Morais Silva nos auxilia a compreender o Aviso.
Segundo Morais Silva, “opposição” é: “o acto de oppòr-se, resistir, impugnar (...) pondo
forças em contrario; (...) argumentando contra, ou com outros, ou em concurso, para levar
Officio, Cargo ou Beneficio”.
45
“Oppositor” é “o que pertende Cadeira de Lente, ou
professor”.
46
Segundo o Aviso, a banca de concurso seria formada por uma Congregação de
professores, dos quais um faria a “opposição”, ou seja, seria aquele que “argumentaria
contra” ou questionaria, pode-se entender, o candidato. Esse, denominado de “oppositor”,
explicaria um capítulo ou capítulos do Compêndio indicado pela Congregação e
43
Cf. Livro 1º Registo dos termos de concurso ás cadeira e substituições. (Anexo 2)
44
Livro 1º Registo dos termos de concurso ás cadeira e substituições, 1827, s/p. A regulamentação da forma
dos concursos do Colégio certamente visava um controle do tipo de profissional a ser contratado. Naquele
mês de setembro de 1827, três concursos foram realizados no Colégio para o provimento de três diferentes
cadeiras, duas do “curso preparatório” e uma do “curso militar”. Cf. Livro 1º Registo dos termos de concurso
ás cadeira e substituições. (Anexo 2)
45
MORAIS SILVA, 1922 (1813), vol. II, p. 367.
46
MORAIS SILVA, 1922 (1813), vol. II, p. 368.
127
responderia à argüição –“satisfará ás refflexões que sobre o assumpto da opposição lhe
forem feitas”. Na seqüência, o “oppositor” redigiria “uma peça de composição sua sobre o
assumpto dado”.
Certamente, a seqüência avaliativa, estabelecida pelo Aviso de 1827, visava a
selecionar profissionais que dominassem o conteúdo a ser ministrado e que soubessem
argumentar a favor de seu ponto de vista, tanto de forma oral quanto escrita. Certamente,
também, conhecer o candidato selecionado nos permite ter acesso aos saberes que lhe
foram demandados e de que modo e por que atendera às expectativas da banca avaliadora e,
desse modo, da própria Instituição.
Segundo consta na Ata do concurso da cadeira de “Lingoa Portuguesa e
Litteratura”, apresentaram-se cinco candidatos: dois eram bacharéis, um era ex-seminarista,
que estudara latim, filosofia e retórica, outro, ex-professor de gramática latina e um último,
que estudara filosofia. O candidato aprovado e que se tornaria professor do Colégio, José
Frederico Pereira Marecos, era bacharel em leis pela Universidade de Coimbra.
Infelizmente, não consta da ata do concurso o ponto do compêndio, assim como não há
registro da “opposição”. Contudo, no Livro 1º Registo dos termos de concurso as cadeira e
substituições, está registrado que os textos escritos pelos candidatos dos concursos de 1827
foram encaminhados ao então vice-diretor do Colégio – Brigadeiro Cândido José Xavier –
pelo primeiro Comandante, João José da Cunha Fidié (que compusera as bancas dos três
concursos então realizados)
47
:
Tenho a honra de enviar á presença de V.Exª. os Termos do resultado, e mais
circumstancias que occorrêrão nas Opposições á Cadeira e Substituições, que se
achão vagas neste Real Collegio Militar, e que tiverão lugar nos dias 12, 13, e 14 do
presente mês de Septembro, acompanhando os referidos Termos, os Requerimentos
documentados dos respectivos Opposittores que se appresentarão em Concurso, e as
Peças de composição e analyse que servirão de assumpto em cada huma das
sobreditas opposições, na conformidade da Portaria da Secretaria d’Estado dos
Negocios da Guerra de 10 do presente mês, para que V.Exª. se Sirva de fazer subir
tudo á Presença de S. A. S., e A Mesma Augusta Senhora Haja por bem de resolver,
o que julgar mais conveniente.
48
Muito provavelmente, a “peça” escrita pelo candidato aprovado – assim como as
dos reprovados, se existissem – poderia nos auxiliar a compreender qual o ideal de
47
Cf. Livro 1º Registo dos termos de concurso ás cadeira e substituições. (Anexo 2)
48
Livro 1º Registo dos termos de concurso ás cadeira e substituições. (Anexo 2)
128
professor de literatura pleiteava a banca do Colégio, assim como o significado que tinha a
palavra, à época.
No Arquivo Histórico Militar do Estado Maior do Exército português existe um
arquivo pessoal dos oficiais graduados da Instituição, inclusive dos civis que serviram em
órgão ligados a ela.
49
Como professor do Colégio Militar, José Frederico Pereira Marecos
teve sua documentação, referente ao tempo de serviço prestado ao Exército, arquivada.
Entre os documentos de Marecos, encontra-se seu pedido de permissão, dirigido à
“Sua Alteza”, para participar do concurso para a cadeira de literatura no Real Colégio.
50
Além da solicitação, encontra-se em sua pasta um texto, assinado por ele, intitulado Sôbre a
Rhetórica. Embora não seja datado, o texto é, sem dúvida, aquele por ele escrito para o
concurso em questão – pode-se imaginar seu percurso: a “peça” escrita por Marecos,
encaminhada ao vice-diretor do Colégio, teria sido, na seqüência, enviada à Secretaria da
Guerra e então utilizada para abrir sua pasta individual e arquivada. Além disso, o texto tem
marcas que permitem supô-lo redigido para um concurso de professor: Marecos discorreu
sobre o tema e, na seqüência, tratou de métodos de ensino e textos didáticos. Mas o que
seria a retórica para o professor Marecos? Por que e como ensiná-la? Essas foram as
questões por ele respondidas e, ao fazê-lo, explicitava a compreensão do que se deveria
ensinar na disciplina literatura. Certamente ao ser aprovado pela banca, tinha a anuência de
seus futuros pares.
Marecos inicia seu texto louvando a retórica por sua longevidade e perenidade:
“nenhuma [das artes e ciências] mostrão principios tão remotos como da Rhetorica”. Na
seqüência, rememora as origens gregas e traça um histórico – “foi então que ella appareceu
e brilhou”, a ponto de Péricles ter por ela governado e de com ela ter Demóstenes
defendido a Grécia contra a espada de Filipe. Da Grécia, a retórica alcançara Roma, onde,
49
Agradeço imenso a atenção e a presteza do Coronel Costa Matos. Foi ele quem me orientou na pesquisa
que realizei no Arquivo Histórico Militar, assim como me informou da existência desse arquivo pessoal dos
oficiais graduados do Exército português no Arquivo Histórico Militar. Como tinha pouco tempo para realizar
a pesquisa, a orientação do Coronel Costa Matos foi preciosa.
50
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p.(Processo Individual) O texto
integral da petição de Marecos é: “Diz José Frederico Marecos bacharel formado em Leis pela Universidade
de Coimbra, que tendo-se desde os primeiros annos applicado ao Estudo da Literatura, se julga habil para
entrar no concurso, que para uma cadeira d’essas materias se fará no Real Collegio Militar e Para Vossa
Alteza se digne mandar que o Sup. entre em concurso e seja provido na mesma cadeira se for de justiça”.
(Anexo 3)
129
lembra Marecos, o mestre Quintiliano a “ensinou publicamente”. Com o fim do Império
Romano, afirma ele, a ruína também atingiu “as artes”. Mais tarde, porém, os árabes,
invasores da Europa, “quiserão ressuscitar as lettras” e traduziram os filósofos gregos, mas
a transformaram “numa algara cheia de contra-sensos de antitheses pueris, d’equivocos e
enigmas”. Foi nesse tempo que, avalia Marecos, a retórica passou a “ser considerada como
um monopolio sagrado, como arte exclusiva dos homens d’Igreja”. Mas o erro desses
tempos estava, segundo ele, na exagerada independência das artes, “de sorte que o
Grammatico não podia ser filosofo, nem esse Rhetorico”. Avalia, então, que no século
XVIII toda essa distorção fora corrigida e que “o systema analytico” mostrou a relação
existente entre os conhecimentos humanos, a ponto de ser “impossível saber perfeitamente
uma coisa só e separada”. Disso decorria que “A grammatica, a logica e a rhetorica são hoje
consideradas correlativas e inseparaveis: seu objecto é o discurso que devem tornar
correcto, exacto e elegante; e estes tres effeitos so valem unidos” (grifos do autor). E era
por isso que “ninguém duvida que a Rhetorica deve ser uma arte commum a todo o homem
educado”
51
, pois, afinal:
Em quase todas as circunstancias e estados da vida é necessário fallar, e é melhor
fazê-lo bem. Tudo pode ser objecto da eloquencia: o militar tem muitas vezes
necessidade de persuadir como o político; o naturalista pode ser tão elegante como
o orador: e effectivamente Buffon não é menos eloquente de que Bossuet, nem
Bonaparte menos forte que Rousseau.
52
Porém, se todo homem educado deveria estudar retórica, Marecos pergunta qual o
“methodo mais profícuo” para se aprender a arte. Declarava respeitar o nome de
Quintiliano, que tinha “o suffragio dos maiores críticos”, apesar de serem as Instituições, na
sua avaliação, “alheas de nossas circunstancias, quase sempre restrictas ao genero judicial”.
Ponderava que, entretanto, é
por esse libro que se ensina; cumpre ao Professor hábil tirar d’elle vantagens, dando
uma Idea dos seus preceitos geraes, fasendo estudar n’elle a nomenclatura das
bellesas da Eloquencia, e considerando mais como um methodo necessário para
analizar as produções do gênio de que para creá-las.
53
51
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
52
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
53
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3). Essa afirmativa de Marecos é similar àquela feita por Jerônimo Soares Barbosa, tradutor para o português
da obra de Quintiliano. Segundo Barbosa: “Quintiliano quer se ensine a Retórica com mais brevidade, e
130
Porém, prosseguia Marecos, se os preceitos se aprendiam em Quintiliano, “os bons
modêlos são os melhores compendios”. Ao professor cabia a tarefa, argumentava, de
analisar com seus alunos “um bom livro levando a sua urbanidade a ponto de fazer que se
apprenda por hábito”. Retoricamente voltava a perguntar, então, que livro deveria um
professor tomar para analisar. Afirmava que na língua portuguesa “temos poucos modelos
perfeitos”, mas que escolheria “em prosa Fr. Luis de Sousa, Camões e Ferreira em verso”; e
acrescenta à sua lista: Brito, Lucena, Jacinto Freire, Arraes, Barros, Sá de Miranda,
Bernardes, Caminha e Vieira. Enfatizava, então, julgar “necessaria ao menos a leitura de
algum clássico, se não para a eloquencia para o conhecimento da lingua, primeira base para
tudo”.
54
Marecos encerrava seu texto lançando mão do artifício da falsa modéstia e apelando
para a indulgência de seu leitor: “VExª não menos indulgente que profundo literato,
desculpará as ommissões, e erros talves, d’estas pequenas reflexões de um rapas que tem
verdadeiro desejo d’instruir-se”.
55
Ao redigir o texto em questão, composto para um concurso, Marecos es
preocupado em mostrar seus conhecimentos. Defende a Arte, o seu estudo e aprendizado,
explicitando os saberes que lhe eram exigidos para assumir a vaga de professor de literatura
que pleiteava. Discorria também sobre o método de ensino da Arte: em Quintiliano se
leriam os preceitos, cujas aplicações seriam buscadas nos clássicos. Assim, se em
Quintiliano se encontravam as ferramentas, o bom professor era aquele que, segundo
Marecos, as ensinaria pelo estudo das obras clássicas, ou seja, aquelas avaliadas e
consideradas como resultantes do correto e do bom emprego das ferramentas da retórica e,
certamente também, da gramática – Marecos afirmava que o estudo dos clássicos serviria,
ao menos, para o aprendizado da língua. Era pela repetição dessas obras e pela imitação da
simplicidade; e recomenda ao mestre inteligente escolha de tudo o melhor, contentando-se ao princípio com
ensinar só isso, sem o trabalho de refutar o contrário. (...) O mesmo Quintiliano pois reconheceu, que nem
tudo o que êle escreveu (...) a respeito da Arte, se devia ensinar aos que aprendem, e autorizou de algum modo
por êste lugar os mestres das suas Instituições a fazerem nelas os cortes necessários para abreviar a instrução
da mocidade, e não a confundir com regras demasiadas e embaraçosas”. Segundo Barbosa, muitos mestres
acabaram “acomodando” os 12 livros da Instituição, em menos volumes e ele fizera o mesmo: “reduzindo-a
[a Instituição] ao meramente preciso”. Cf. BARBOSA, 1944. p. 16, 17, 20.
54
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
55
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
131
realização nelas alcançada que o educando se imbuiria dos preceitos, tornando-se um
homem iniciado nas regras da composição um homem, enfim, educado. A idéia de
Marecos, de que pelo hábito da repetição o educando se “impregnaria” dos modelos,
aparece em Do orador de Cícero. Falando pela boca de Antônio, Cícero afirma que lia por
prazer, mas também por que: “quando passeio ao sol, mesmo se passeio por uma outra
causa, me acontece, por um efeito natural, adquirir cor; ora, quando (...) leio com bastante
atenção esses livros gregos, sinto do mesmo modo que seu contato colore meu discurso”.
56
Semeado de citações em inglês, francês e latim, o texto de Marecos é,
simultaneamente, sua auto-apresentação e afirmação como um homem que, formado em
Leis pela Universidade de Coimbra, dedicara-se “ao Estudo da Literatura” e que, por isso,
julgava-se habilitado “para entrar no concurso, que para uma cadeira d’essas Matérias
[língua e literatura portuguesas] se fará no Real Collegio Militar”. Não é casual que tenha
iniciado seu texto sob a epígrafe de Buffon: “Bien écrire c’est tout à la fois bien penser,
bien sentir et bien rendre”.
57
Afinal, pleiteando a vaga, Marecos precisava provar que
reverenciava a Arte, que conhecia seus preceitos e que era um “bom professor”, por saber
como ministrá-los.
José Frederico Pereira Marecos foi professor de literatura do Real Colégio Militar
de outubro de 1827 a 11 de janeiro de 1832, quando foi despedido pelo Ministro e
Secretário d’Estado da Guerra, em meio à intervenção no Colégio pelos miguelistas, que
governavam Portugal.
58
Tendo feito concurso para a vaga de professor de “Lingoa
Portuguesa e Litteratura”, Marecos foi despedido do “lugar de Professor de Rhetorica”,
conforme consta em sua carta de demissão.
59
Em 1834, entrou com processo junto ao
56
Cícero apud HARTOG, 2001, p. 149.
57
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
58
Portugal viveu, desde a morte de D. João VI, em março de 1826, um conturbado o período político. O
herdeiro do trono, D. Pedro IV, era Imperador do Brasil, com o título de Pedro I, que abdicou ao trono
português em nome de sua filha, desde que ela se casasse com seu tio, D. Miguel. A ação de D. Pedro era uma
tentativa de compôr um governo com os absolutistas portugueses, que apoiavam D. Miguel, e os liberais.
Contudo, em março de 1828, D. Miguel foi coroado rei de Portugal. O país entrou em guerra civil. Segundo
Joel Serrão, D. Miguel nunca exerceu seu poder sobre a totalidade do país, pois sempre houve focos de
resistência. Ainda segundo Serrão, o governo miguelista foi conservado “pela força e pela repressão
constantes, multiplicando as prisões, os maus-tratos, as mortes e as execuções”. Cf. SERRÃO e OLIVEIRA
MARQUES, 2002, p. 566-577.
59
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. (Processo Individual) (Anexo
3).
132
Ministério e Secretaria da Guerra para se ressarcir das perdas pecuniárias que sofrera desde
sua demissão. Apresentava-se como “Professor de Litteratura”.
60
No período em que atuou
no Colégio, é possível encontrar, nas Atas de reuniões da “Congregação Litteraria”, trechos
nos quais há referência a Marecos como professor de retórica. Por exemplo, na sessão de 6
de outubro de 1829, os professores do Colégio discutiram a proposta de
que a declamação, que está em uso na Aula de Inglez, se transfira para a Aula de
Rhetorica, e que n’esta Aula, além de se ensinarem os preceitos da Arte Oratoria, se
faça conhecer aos Discipulos a sua applicação em algumas peças de Eloqüência
para este fim escolhidas (...).
61
Nota-se, nessas situações, o uso indistinto dos termos “literatura” e “retórica”.
Parece razoável afirmar que, para aqueles homens, ser um professor de literatura implicava
ensinar as regras da composição e fazer “conhecer aos Discipulos a sua applicação”.
Marecos iniciou sua atividade docente em outubro de 1827 – na Sessão de 31 de
outubro de 1827 da Congregação Literária, notificou-se o “Decreto que nomeia a José
Frederico Pereira Marecos, Professor da Lingoa Portugueza, e Litteratura”.
62
Isso significa
que no ano letivo então iniciado, e que se encerrou em agosto de 1828, Marecos pela
primeira vez lecionou para os “discípulos” do 3º ano do Curso Preparatório. Efetivamente
60
José Frederico Pereira Marecos, caixa 636, Arquivo Histórico Militar, s/n/p. . (Processo Individual) (Anexo
3). Marecos foi atendido em sua demanda.
61
Ao final, a Congregação decidiu que, “á vista da exposição que fez o Professor de Inglez, continuasse elle a
exercitar os seus Discipulos na declamação da Lingua Ingleza”. Deve-se destacar que o aprendizado dos
preceitos de composição ocorriam em outras disciplinas. Cf. Termos das Sessões da Congregação Litteraria
deste Real Collegio Militar (Livro 2), p. 48, verso. Este é o segundo Livro de atas da Congregação Literária
do Colégio Militar. O primeiro foi aberto com a ata da reunião realizada em 3 de março de 1814 e foi
encerrado com a seguinte notação, seguida pela assinatura do então vice-diretor do Colégio: “Fica o mesmo
Livro encerrado, como por este Termo se encerra, para não continuar nelle [ilegível] a respectiva
escripturação; e seja esta aberta, desde o 1º de Outubro do Corrente anno, em Livro novo, numerado,
rubricado, e encerrado, na forma do estyllo. Real Collegio Militar, aos 16 de dezembro de 1824”. Cf. Registo
dos Assentos das Congregações Literárias do Real Collegio Militar Anno 1814.
62
Termos das Sessões da Congregação Litteraria deste Real Collegio Militar (Livro 2), p. 33, verso. Órgão
escolar oficializado pelo Alvará de 1816, a Congregação Literária era dirigida pelo diretor do Colégio e
composta por todos seus professores. Tratava-se de um órgão colegiado com poder de decisão sobre vários
aspectos da vida escolar. Nele eram apresentados os trabalhos preparados por professores, discutia-se e
sugeria-se a adoção de compêndios, decidia-se sobre a compra de livros e de materiais de ensino, assim como
se discutia o calendário das provas e os professores que comporiam as bancas. Nas atas das reuniões da
Congregação foram registradas as propostas e as resoluções tomadas em cada uma delas, mesmo que de
forma sucinta. Além de oficializar a existência da Congregação Literária, o Alvará de 1816 estabelecia que
fosse aberto um livro próprio, no qual deveriam ser registradas as resoluções tomadas em suas reuniões.
Estabelecia ainda que esse livro fosse, uma vez preenchido, arquivado na Secretaria do Colégio para que
servisse tanto para futuras consultas como para depois se escrever a história do Colégio. Cf. Alvará, 1816, p.
37-38. Os livros das reuniões da Congregação Literária se encontram hoje no arquivo da Secretaria da
Instituição, exceto o primeiro deles que, restaurado, está sob a custódia do Museu existente no Colégio.
133
se comprova, conforme consta no livro dos Exames finaes do Real Collegio Militar, 2,
Curso Preparatório, que, em agosto de 1828, os “discípulos” do terceiro ano foram
examinados na disciplina, pelo professor de literatura.
63
Francisco Adolfo de Varnhagen foi matriculado no 3º ano do Curso Preparatório
64
,
em outubro de 1828 e foi examinado ao final do ano letivo, em agosto de 1829.
65
Cursou,
dentre as disciplinas do 3º ano, a “Lingoa Portuguesa e Litteratura”, tendo sido aluno do
Professor José Frederico Pereira Marecos. Conforme se pode ler no livro dos Exames finaes
do Real Collegio Militar, nº 2, Curso Preparatório, Varnhagen fez prova da disciplina em
12 de agosto de 1829 e foi novamente avaliado em gramática e língua francesa, inglesa e
portuguesa e em literatura portuguesa em 18 de agosto do mesmo ano.
66
Encerrava, nesse
ano, o Curso Preparatório do Real Colégio Militar, tendo obtido aprovação plena nas
disciplinas.
Parece razoável afirmar que o professor Marecos ensinou a seus alunos as regras de
composição retórica pela Institution oratoire de Quintiliano – essa fora, pelo menos, a
proposta que anunciara ao fazer a prova para o provimento da vaga.
67
Se considerarmos
também que Marecos defendeu que os preceitos se aprendiam pela leitura dos clássicos,
certamente também lera e analisara, com seus alunos, algumas das obras do cânone da
língua portuguesa.
68
63
Exames finaes do Real Collegio Militar, nº 2, Curso Preparatório, p. 48 verso, 49.
64
Matricula dos Alumnos do 3º anno lectivoN 1. (Anexo 4).
65
Varnhagen entrou para o Colégio Militar no início do ano letivo de 1825, sendo aprovado no final em
agosto de 1826 – ele fez prova de primeiras letras e de desenho. Cf. Exames finaes do Real Collegio Militar,
nº 2, Curso Preparatório, p. 15, 15 verso, 16, 17 verso. Mas no segundo ano em que deveria ter feito provas
finais em agosto de 1827, encontra-se apenas seu registro de prova de Gramática e Língua Francesa. Muito
provavelmente, Varnhagen não foi considerado apto sequer para fazer as provas das demais disciplinas. Em
outubro de 1827, ele foi matriculado no 2º ano, tendo feito, em agosto de 1828, as provas finais desse ano.
Varnhagen foi então submetido a exame de Gramática Latina e Portuguesa. Cf. Exames finaes do Real
Collegio Militar, nº 2, Curso Preparatório, p. 44 verso, 45.
66
Exames finaes do Real Collegio Militar, nº 2, Curso Preparatório, p. 59 verso-63 (Anexo 5)
67
A forte suspeita de que Marecos ensinava as regras de composição retórica por Quintiliano, além de seu
próprio testemunho, vem do fato de inexistir, na Biblioteca do Colégio, compêndios de retórica publicados em
Portugal na primeira metade do século XIX. É certo que esses compêndios existiam, mas não no acervo da
Instituição. Sobre a publicação de compêndios de retórica em Portugal oitocentista, Cf. ROSADO
FERNANDES, 1972, p. 29-30.
68
A forma como as provas finais eram realizadas, sempre com pelo menos um outro professor do Colégio,
constituía uma avaliação também do próprio professor e uma forma de fiscalizar o conteúdo trabalhados.
Também é significativo destacar que as turmas eram pequenas. A turma de Varnhagen, no terceiro ano do
curso preparatório, por exemplo, era composta por apenas 19 alunos. Isso significa dizer que a Instituição
tinha poucos alunos e que o ensino era muito “tête à tête”. Há nas Atas da Congregação Literária várias
134
Não parece ser possível desligar as produções intelectuais de Varnhagen do
substrato que o formou e que constituía, afinal, o substrato da própria cultura escolar e
social de sua época. Segundo Rosado Fernandes, o oitocentos português foi “um século de
intensificação retórica”, por mais paradoxal que isso possa parecer. Porém, ainda segundo
Rosado Fernandes, a retórica se tornou “mais discreta, na medida em que, deixando de ser
um fim em si própria, passa a existir em função da obra literária”.
69
Tendo Varnhagen estudado línguas e retórica, até que ponto essas disciplinas o
formaram? Coloca-se aqui um outro desafio proposto por Dominique Julia: “O que sobra
da escola após a escola? Quais marcas ela realmente imprimiu nos indivíduos de uma
sociedade (...)?”.
70
O conhecimento da retórica e a importância a ela atribuída por Varnhagen podem
ser comprovados no capítulo 3 desta tese, que mostra como ele, quando adulto, não se
cansou de discutir com seus pares temas que envolviam a elegância textual, a composição
segundo as conveniências dos gêneros, a preocupação em convencer o leitor e em
conquistá-lo para o campo defendido, a recomendação para que se estudassem os clássicos
e neles se vissem os modelos a serem seguidos. Varnhagen pensava o ato de escrever e
tratava a palavra segundo os preceitos que vinham da antiga Arte retórica. Talvez não seja
demais lembrar que ele fora “aprovado plenamente” na disciplina “lingoa portuguesa e
litteratura” por seu professor José Frederico Pereira Marecos.
O modo como Varnhagen atualizou seu aprendizado, realizado ainda quando
menino, deve ser buscado, entretanto, em sua atuação efetiva, nos textos escritos por ele,
objeto dos capítulos que se seguem.
71
discussões sobre modos de controlar e fiscalizar os estudos dos alunos. Certamente a documentação existente
fornece elementos para um estudo do funcionamento do cotidiano do Colégio e suas práticas educativas.
69
ROSADO FERNANDES, 1972, p. 29-30.
70
JULIA, 2001, p. 37.
71
Certamente o aprendizado em retórica feito por Varnhagen não se restringiu à disciplina ministrada pelo
professor Marecos. Além de ocorrer em outras disciplinas, como acima se sugeriu, o “discípulo” do Colégio
escutava as “orações de sapiência” realizadas no início dos anos letivos e escutava os sermões do vigário na
formação cristã que recebia. Certamente as situações de valorização da língua, escrita e falada,
multiplicavam-se no Colégio. A leitura das atas da Congregação Literária informam algumas delas, que
necessitam, contudo, de serem levantadas e analisadas.
Capítulo 5
A polêmica entre Varnhagen e M. d’Avezac
136
Em 1877, Varnhagen reeditou a História geral do Brasil e, no frontispício do
primeiro volume anunciava que a obra fora “muito augmentada e melhorada pelo Autor”.
No Prologo redigido para essa edição, afiançava que os melhoramentos resultavam de anos
de trabalho, porém fazia questão de lembrar a seu leitor que uma obra “(...) desta natureza,
em quanto o autor vive e trabalha, não chegou ao seu verdadeiro fim (...)”. Ele fazia, dessa
forma, uma defesa prévia do que se seguia. Para os críticos de plantão, deixava o recado:
que não se arvorassem a “fazer estereotypicas” obras cujo autor estava vivo. Assim,
garantia que “(...) nesta edição se não encontra ainda a nossa última palavra: mas sim em
um exemplar, com grandes margens, em que vamos fazendo correcçôes (...)” e que vinha à
luz apenas para “alliviar-nos dos grandes cuidados que nos estava dando a guarda do seu
original”.
1
Feitas todas as ressalvas, Varnhagen apresentava alguns “dos muitos additamentos e
melhoramentos importantes desta edição”. Os “additamentos” diziam respeito a “factos
inéditos, apurados exclusivamente pelo criterio histórico (...)”, e o autor chamava a atenção
para algumas delas: “começando pela descobrimento da etymologia da palavra Tupi, pela
verdadeira explicação da derrota de Pinzon (...), seguindo-se que já no reinado de D.
Manuel começára a colonização e o fabrico do assucar no Brazil (...)”. Quanto aos
“melhoramentos”, pode-se entender que eles se constituíam em “retoques em favor da
maior harmonia do todo”, feitos em “quasi todas as secções”
2
, e na transferência
(...) para o princípio a secção respectiva á descripção do Brasil em geral, seguindo-
se as respectivas aos Indios, as quaes, não só onde estavam causavam grande
interrupção no fio da narração, como ficam desta forma constituindo melhor ponto
de partida da obra toda.
3
Na primeira edição da HGB, as seções dedicadas à descrição do Brasil e aos
indígenas brasileiros constituíam, respectivamente, aquelas de números VII a X. Conforme
anunciava Varnhagen, na segunda edição da HGB, elas passaram a formar as quatro
primeiras seções da obra. Ao leitor, Varnhagen declarava que recolhera abundantes fatos
1
VARNHAGEN, 1877, p. XVI-XVII. (Prologo). A primeira edição da HGB ocorreu em 1854 e 1857, do
primeiro e segundo volumes, respectivamente.
2
VARNHAGEN, 1877, p. XIV-XVII. (Prologo). Sobre as contínuas correções realizadas por Varnhagen em
seus escritos, ver o terceiro capítulo da primeira parte desta tese.
3
VARNHAGEN, 1877, p. XVI. (Prologo).
137
novos, que melhorara a redação de vários tópicos e que percebera que a localização
daquelas quatro seções, no meio da HGB, “causavam grande interrupção no fio da
narrativa”. Para que o leitor melhor acompanhasse essa narrativa, ele, autor, optara por
trocar os capítulos de localização, a fim de eliminar esse problema.
Decorridos vinte anos desde a publicação do segundo volume da HGB, Varnhagen
tranqüilamente informava, sem maiores delongas, a decisão de efetuar a mudança. O autor,
assim, não fazia referência à calorosa discussão que ocorrera anos antes, quando justamente
essa mudança fora sugerida por um avaliador da obra, M. d’Avezac-Macaya, e o autor
energicamente a rechaçara.
4
Tal sugestão, dentre outras feitas pelo crítico, gerou uma das
muitas polêmicas intelectuais – ou literárias, como então se denominavam –, em que
Varnhagen se envolveu.
Ainda no final do século XIX, Capistrano de Abreu já sugeria a influência de
d’Avezac nas mudanças realizadas na segunda edição da HGB, observando, primeiramente,
que, “(...) na realização da historia do Brasil, o visconde de Porto Seguro se cingiu ao
programa traçado magistralmente pelo grande naturalista Martius”.
5
Ao emitir essa opinião,
Capistrano fazia referência a uma observação feita, em 1857, por d’Avezac, e declarava
com ela concordar: a de que, na elaboração de sua HGB, Varnhagen seguira o esquema
proposto por Martius.
6
Segundo Capistrano, essa semelhança saltava “aos olhos de quem
conhece o trabalho de Martius e o de Varnhagen”.
7
Mas Capistrano destacava também que
“o que, porém, ainda não foi notado, é que na segunda edição o autor da Historia geral
4
Marie-Armand Pascoal d’Avezac-Macaya era chefe de seção no Ministério da Marinha e das Colônias do
Segundo Império, secretário-geral e, além de presidente da Sociedade de Geografia de Paris, membro da
Academia de Inscrições e Boas Letras. Cf. LESSA, 1955, Tomo 226, p. 48. O texto de d’Avezac foi
publicado na revista da Sociedade de Geografia de Paris e tinha o título: Considérations géographiques sur
l’histoire du Brésil (...) e era datado de maio de maio de 1857. Parte desse texto será analisado na seqüência
deste capítulo.
5
ABREU, 1931b (1882), p. 196.
6
Escrito em 1843 para um concurso promovido pelo IHGB, a monografia de von Martius – Como se deve
escrever a história do Brasil – foi premiada pelo Instituto em 1847, mas publicada anteriormente, em 1844,
em sua Revista. O trabalho de von Martius respondia à demanda do Instituto de criação de parâmetros para a
escrita da história nacional. Cf. LISBOA, 1995, p. 88.
7
ABREU, 1931b (1882), p. 196. Mais contemporaneamente Manoel Luís Salgado Guimarães observa que o
“programa” para a escrita da história de von Martius foi “em linhas gerais, aquele que se corporificará com a
publicação de História nacional, de Francisco Adolfo de Varnhagen”. Cf. GUIMARÃES, 1988, p. 18.
138
enxertou nas idéas de Martius as vistas luminosas de d’Avezac, contra as quaes a principio
protéstara energicamente”.
8
Porém, Capistrano limitou-se a sustentar que Varnhagen incorporara “as vistas
luminosas” de d’Avezac, sem especificar as observações do crítico francês que ele,
Capistrano, julgava inseridas na segunda edição da HGB. Também não esclarecia por que
Varnhagen reagira tão energicamente às críticas de d’Avezac. De todo modo, ao lembrar a
polêmica ocorrida em 1857, Capistrano não permitiu que ela caísse no esquecimento –
muito provavelmente, ao contrário do que desejaria Varnhagen.
O trabalho de d’Avezac sobre a HGB é um longo arrazoado, no qual vários aspectos
da obra foram analisados. No presente capítulo se recuperam parte de sua crítica e a
resposta veemente de Varnhagen. Como fontes, foram utilizados os textos escritos pelos
dois debatedores e cartas de Varnhagen que versam sobre a questão. Objetivou-se analisar a
forma como Varnhagen e seus contemporâneos compreendiam e realizavam uma discussão
de cunho intelectual. As estratégias discursivas empregadas por eles lembram as que foram
descritas por Roland Barthes como típicas de uma disputatio: um diálogo agressivo, um
verdadeiro exercício no qual um oponente e um respondente se enfrentavam no campo da
argumentação. Na disputatio, segundo Barthes, os adversários aspiravam a levar o opositor
a contradizer-se para, desse modo, dominá-lo e liquidá-lo.
O processo (ou protocolo) é o do sic et non: sobre determinada questão, reúnem-se
testemunhos contraditórios (...). O respondente é quase sempre o candidato que
responde às objeções apresentadas pelo oponente (...). A disputatio invade tudo, é
um esporte (...).
9
Segundo Barthes, a disputatio remonta aos gregos antigos e levou ao
desenvolvimento de uma verdadeira sensibilidade para o conflito que tornava insuportável
aos homens ver-se conduzidos a se contradizerem. E, se essa sensibilidade nasceu com os
gregos, segundo Barthes, ela terminou atingindo o Ocidente de modo geral. Em uma
disputa, os oponentes comportavam-se como verdadeiros carrascos e tentavam “castrar-se
mutuamente”.
10
8
ABREU, 1931b (1882), p. 196.
9
BARTHES, 1975, p. 172/173.
10
BARTHES, 1975, p. 173. Segundo Adolfo Hansen, a formação de um orador pressupunha a participação
em exercícios retóricos; neste caso, os jovens deveriam aprender a defender as causas e a ter o controle das
formas, em todas as situações discursivas. Cf. HANSEN, 1994, p. 63.
139
A polêmica era para Varnhagen, assim como para seus contemporâneos, uma
disputa ou um combate travado no campo discursivo e que tinha como arma o domínio da
palavra. Quando delas participou, utilizou-se de várias estratégias discursivas que visavam
a destruir a argumentação construída por seu oponente, buscando também minar a
credibilidade moral e intelectual daqueles que se levantavam contra suas opiniões e teorias.
Na década de 1950, Clado Lessa recuperou e extratou os debates nos quais
Varnhagen esteve envolvido, inclusive o travado com d’Avezac. Para Lessa, se o francês
influenciara na reelaboração da HGB, isso se dera apenas em aspectos secundários da obra,
como, por exemplo, na troca de posição do capítulo de descrição do Brasil e aqueles
referentes aos indígenas.
11
Muito provavelmente, essa avaliação tem-nos privado de
analisar e conhecer dois aspectos de uma polêmica intelectual do século XIX que nos
possibilitariam melhor compreender aqueles homens. Um deles diz respeito à própria forma
discursiva em que uma polêmica era travada; o outro está ligado à preocupação deles com o
modo como se deveria escrever uma obra de história.
5.1. Defesa prévia
De junho de 1857 a março de 1858, Varnhagen endereçou seis cartas distintas a
proeminentes figuras do Império brasileiro
12
: uma ao Visconde de Maranguape, Ministro
dos Negócios Estrangeiros do Império; outra a Manuel de Araújo Porto Alegre, primeiro-
secretário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); três ao Imperador D.
Pedro II e uma última a Paulo Barbosa da Silva, Mordomo-mor da Casa Imperial.
13
Em
todas elas um tema comum era abordado, direta ou indiretamente: a crítica do primeiro
11
Lessa ironizava a interpretação de Capistrano, afirmando que o historiador “pomposamente” denominara a
crítica do francês de “vistas luminosas”. Cf. LESSA, 1955, vol. 226, p. 76, nota 73.
12
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 240-260.
13
A Mordomia-mor da Casa Imperial era responsável por assuntos relativos ao cerimonial e à etiqueta, assim
como pela administração das residências oficiais e pelos funcionários que nelas prestavam serviços à família
imperial. Entretanto, segundo Lúcia Guimarães, Paulo Barbosa foi um mordomo-mor que ultrapassou em
muito suas atribuições. Ele foi introduzido na mordomia ainda na menoridade de D. Pedro II, passando a
exercer sobre ele ascendência direta. Permaneceu no Paço, como Mordomo-mor, até 1846, quando foi
nomeado Ministro Plenipotenciário em São Petersburgo, exercendo ainda o cargo em Berlim e em Viena. Em
1855, voltou a ocupar a Mordomia-mor da Casa Imperial, tendo novamente acesso aos bastidores da Quinta
da Boa Vista. Cf. GUIMARÃES, 2002, p. 568-569.
140
volume da História geral do Brasil feita por M. Armand Pascoal d’Avezac-Macaya, a
pedido da Sociedade de Geografia de Paris.
Essas cartas guardam especificidades, porque foram dirigidas a diferentes
correspondentes e, com cada um deles, Varnhagen destacou, da crítica de d’Avezac, um
aspecto a depreciar. A atitude de Varnhagen pode ser interpretada como uma escolha
premeditada. Certamente ele julgava que, ao enfatizar o ponto escolhido, alcançaria a
adesão prévia de seu interlocutor. Nessas cartas, várias vezes Varnhagen lançou mão de
recursos discursivos apropriados para gerar em seu leitor efeitos premeditados. Desse
modo, pode-se afirmar que ele as compôs com fins calculados: para atrair a atenção e
conquistar o apoio de seu correspondente, assim como para desmoralizar seu crítico,
colocando-o numa situação de suspeição. Dessa forma, Varnhagen utilizava-se de recursos
discursivos próprios do que se entendia ser uma composição destinada ao debate ou à
polêmica. Segundo Chaim Perelman, o ponto de vista retórico é caracterizado pela
preocupação fundamental “relativa às opiniões e aos valores do auditório a que se dirige o
orador, e mais particularmente, referente à intensidade de adesão desse auditório a cada
uma das teses invocadas pelo orador”. Perelman destaca ainda que, quando o auditório é
formado apenas por um ouvinte, “é essencial saber quais são as opiniões e os valores aos
quais ele adere com mais intensidade e nos quais o orador pode basear o seu discurso, de
modo que este último tenha uma ascendência garantida sobre a personalidade de seu
ouvinte”.
14
Apesar das especificidades que distinguem umas das outras, pode-se afirmar que, na
correspondência ativa de Varnhagen, as cartas em questão formam um subconjunto
15
:
porque nelas se tratou, em um mesmo período de tempo e de modo mais ou menos extenso,
de uma mesma temática, e porque foram escritas e enviadas ao Brasil provavelmente antes
de as críticas à HGB pelo francês serem aqui conhecidas. Ao prepará-las e remetê-las,
Varnhagen chamou a si as tarefas de anunciar que a HGB fora alvo de censura e de preparar
a opinião de seus privilegiados correspondentes para aderirem à defesa da obra que ele
14
PERELMAN, 1997, p. 181.
15
Segundo Clado Lessa, organizador da Correspondência Ativa, Varnhagen tinha o hábito de tratar, com mais
de um correspondente, de assuntos que o empolgavam. Lessa afirma que adotou o critério de organizar a
correspondência varnhageniana cronologicamente porque isso facilitava ao leitor acompanhar as
preocupações do autor em um dado momento. Cf. LESSA, 1961, p. 16.
141
elaborava. Antes que seu opositor pudesse apresentar seus argumentos, Varnhagen se
antecipava, minando o campo em que a discussão seria travada.
A carta ao Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império, datada de junho de
1857, foi a primeira do conjunto em questão. Varnhagen iniciava sua missiva dando ares de
possível desinteresse para com o assunto ou de não possuir seguras informações sobre o
conteúdo da crítica de d’Avezac: “Consta-me que na Sociedade Geographica de Paris se leu
há dias um parecer àcerca da minha historia geral do Brazil”. Seria essa uma informação
segura? Quem leu? O que constava nesse trabalho? Porém, a imprecisão da informação era
seguida por informações mais objetivas. De chofre, Varnhagen informava a seu
correspondente que o redator do parecer era nada menos que um “dos partidários de que a
Guiana Franceza deve chegar ao Amazonas”. O parecerista, afirmava, era um dos franceses
que defendia o direito da França de apoderar-se de parte do território brasileiro. E o mais
grave, advertia Varnhagen, era que esse homem, o senhor d’Avezac, estava-se aproveitando
de um “ensejo litterário” para “propalar suas opiniões (...) fazendo calar no animo dos
Francezes as opiniões que até agora a sua diplomacia não tem podido fazer triumphar nos
protocollos dos negociadores”.
16
Curiosamente, Varnhagen dava a impressão de não ter maiores informações sobre o
conteúdo do parecer, assim como omitia o fato de que d’Avezac era, à época, o presidente
da Sociedade Geográfica de Paris. Não se tratava, portanto, apenas de um “empregado do
ministério das Colônias” e um militante da causa expansionista francesa, como dava a
impressão. Ocultando essas informações, criava-se e garantia-se a aceitação da imagem de
d’Avezac como um militante de causas afrontosas a interesses brasileiros. Como patriota e
funcionário da diplomacia de seu país, Varnhagen apresentava-se profundamente
preocupado com as conseqüências de tal “parecer” no espírito dos franceses! Afinal,
d’Avezac estaria, conforme avaliava, “invadindo a nossa indisputável justiça” e o fazia de
forma completamente desonrosa, pois agia “à surdina”.
17
Insinuava que M. d’Avezac, ao
invés de claramente expor seus verdadeiros propósitos e os defender com argumentos de
justiça, agia de forma dissimulada, encobertando, sob um parecer “literário”, seu interesse
de criar uma opinião pública na França favorável às pretensões expansionistas.
16
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 240-241.
17
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 240-241.
142
Descortinando o uso do recurso da dissimulação por d’Avezac, Varnhagen pretendia
apontar as intenções ocultas no trabalho do geógrafo francês e, consequentemente, colocá-
lo sob suspeita.
18
Insistindo que o trabalho de d’Avezac colocava em perigo iminente as fronteiras da
Nação brasileira, Varnhagen engrandecia o assunto, exagerava sua importância. Para
convencer seu correspondente, lançava mão do recurso da amplificação e retoricamente
perguntava: poderia o Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império aceitar tamanha ação
traiçoeira?
19
Seguro da eficácia de sua argumentação, atrelava a necessária avaliação do
Ministro à sua e proclamava: “Estou certo que V. Exª conhece melhor do que eu a
gravidade da questão e a conveniência de não [a] consentirmos”.
20
Contudo, Varnhagen sabia que poderiam acusá-lo de ser um autor injuriado diante
das censuras à sua obra. Ciente disso, procurou desarmar o espírito de seu correspondente,
reafirmando que sua preocupação mais profunda era o risco que corria sua pátria e, que,
como zeloso patriota, “(...) não deixaria, em defensa própria, de responder a algum ponto
em que venha a ser menos justamente julgado; com maior razão me creio nessa obrigação,
desde que vejo os direitos do meu paiz aggredido (...)”.
21
Se tão grande era a ameaça às fronteiras brasileiras, poder-se-ia pensar que
Varnhagen sugeriria ao Ministro uma intervenção do governo imperial junto ao governo
francês ou alguma ação diplomática mais eficaz. O que fazer? Ele respondia:
(...) creio essencial apresentar estes e outros argumentos em francez; e em francez
destruir, se puder, todos os que apresente o Sr. D’Avezac; porém isso em um
folheto separado, de cujo título se reconheça que nelle se discute a questão.
22
(grifos
do autor)
Tratava-se de uma batalha no campo discursivo. Varnhagen acreditava ter em mãos
os mesmos instrumentos que seu adversário – dominava a língua francesa –, assim como
estava certo de que saberia usá-los para “destruir” as ameaças ao Brasil. Como um
cavaleiro, colocava-se à disposição do governo de seu país para lutar contra possíveis
18
Segundo Lausberg, a dissimulação é uma figura de pensamento, que “consiste em esconder a opinião do
partido a que se pertence”. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 254.
19
Varnhagen lançou mão, em toda essa exposição, do recurso retórico da amplificação. Sobre o recurso da
amplificação, cf. LAUSBERG, 1972, p.106-108.
20
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 240.
21
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 240.
22
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 241.
143
agressores. Lembrava ainda ser preciso responder, o mais rapidamente possível, ao parecer
de d’Avezac, pois estava certo de que a rapidez de uma resposta seria “um argumento em
favor da sua espontaneidade”.
23
Certamente, ele fazia referência aos efeitos pretendidos:
uma resposta imediata passaria a impressão de ser natural ou desprovida de artifícios de
linguagem. Nesse caso, Varnhagen defendia a idéia de que o leitor era conquistado desde
que confiasse na sinceridade da argumentação. Apresentava então suas pretensões: desejava
ir pessoalmente a Paris, com licença especial do cargo que ocupava na embaixada brasileira
em Madrid, para, em francês, como anunciara, responder a seu censor; desejava ainda que,
às expensas do governo brasileiro, se publicasse seu texto de resposta a d’Avezac. Adotada
a estratégia, estava certo da vitória.
Movido, porém, pela urgencia do assumpto, e pela idea de que talvez a resposta
poderá sair melhor com uma ida minha até Paris, creio do meu dever, antes de tudo,
pedir as ordens do Governo Imperial; e supplicar-lhe: 1º Licença para
comprehender na minha resposta este ponto, entendendo-me até para isso, se o
Governo Imperial o julgar prudente, com os nossos representantes em Paris e na
Haya, indo eu até Paris, se nos parecer conveniente. 2º Que o folheto seja impresso
à custa do Governo, em grande número de exemplares, para se distribuir
principalmente na França.
24
Enfim, Varnhagen praticamente reduzia a censura de d’Avezac à HGB apenas à
questão das fronteiras brasileiras, como se não existissem aspectos da obra visados pela
crítica do geógrafo francês. O mesmo faria na carta endereçada ao Mordomo da Casa
Imperial, a quem, em novembro de 1857, avisava estar de partida para Paris, onde
responderia “a certo indivíduo que se apresenta como campeão officioso da questão do
Oyapoc contra o Brasil”.
25
Tratado de forma depreciativa como “um certo indivíduo”, sem
nome e importância, d’Avezac era, supostamente, um homem a serviço de camuflados e
suspeitos interesses lesivos ao Brasil. Pode-se supor que ao dirigir-se ao Mordomo da Casa
Imperial, Varnhagen esperava que todas essas impressões chegassem também aos ouvidos
de S.M.I.
23
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 241.
24
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 241. Infelizmente, a correspondência passiva de Varnhagen não está
publicada e não foi possível verificar, em seu arquivo pessoal, que se encontra depositado no Ministério das
Relações Exteriores no Rio de Janeiro, a existência da resposta que obteve. O Arquivo Varnhagen não está
aberto para os pesquisadores. Mal consegui ter acesso ao fichário, que já está todo processado. Contudo,
conforme se verificará na seqüência, Varnhagen certamente obteve a pretendida licença.
25
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 257.
144
Também em novembro do mesmo ano, Varnhagen dirigiu a mais longa carta do
conjunto em questão a Manuel de Araújo Porto Alegre, então primeiro-secretário do IHGB.
Nessa carta, voltou a vincular d’Avezac a interesses expansionistas franceses. Tratando-se,
porém, de um correspondente ligado a uma “instituição literária”, Varnhagen esmerou-se
na desqualificação da erudição de seu censor e de seu trabalho, preparando favoravelmente
o espírito do leitor para a defesa que apresentaria. Certamente, temia que as críticas tecidas
por d’Avezac viessem a prejudicar a imagem da HGB, exatamente no momento em que o
segundo volume da obra fora publicado.
26
Varnhagen iniciava a carta comunicando sua aceitação como membro da Sociedade
Geographica de Paris, por indicação de M. d’Avezac. Informava ainda que esse mesmo
senhor fora o autor de uma crítica à HGB, que acabara de receber e que na seqüência
analisaria. Entretanto, antes de mais nada, solicitava a Porto Alegre que indicasse, em nome
dele, Varnhagen, o senhor d’Avezac para membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, pois desejava corresponder dessa forma “à delicadeza que devia ao (...) meu
censor”.
27
Ao propor d’Avezac para membro do IHGB, Varnhagen pretendia rechaçar
qualquer suspeição de ser ele passional e de não reconhecer os méritos do trabalho do
francês. Pelo contrário, agradecia até os “repellões, que às vezes me dá o censor”, pois
avaliava que assim se saberia que os “elogios que me vota não são de compadresco”.
28
Essa
era a imagem que construía de si junto ao primeiro-secretário do IHGB: a de um homem
sem ressentimento, grato e, acima de tudo, preocupado com a justiça.
Dissipadas possíveis prevenções contra si, passava a avaliar o trabalho de d’Avezac.
Declarava que, apesar de tê-lo recebido há pouco, julgava de seu dever “dar-lhe [a Porto
Alegre] conta da impressão que me deixou a simples leitura”. Ou seja, advertia não ter
ainda uma reflexão madura e prevenia-se assim contra possíveis acusações de ser pouco
ponderado ou precipitado. De início, mostrava-se admirado diante da extensão do trabalho:
“nada menos do que 268 paginas de leitura”, para censurar uma obra que, conforme forçava
26
Em julho de 1857, Varnhagen escreveu a D. Pedro II anunciando que dava a público o segundo volume da
HGB. Neste momento, um trabalho como o de d’Avezac, que questionava alguns dos alicerces do primeiro
volume da História Geral, não poderia ser bem vindo. Em julho, ao anunciar a edição deste segundo volume,
Varnhagen não fazia referência ao trabalho do francês, apesar de já ter notícia de sua existência. Cf.
Varnhagen in LESSA, 1961, p.242.
27
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 248-249.
28
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 249.
145
a lembrança, não chegava a ter 500 páginas.
29
Salientando a extensão do trabalho de
d’Avezac, Varnhagen insinuava tratar-se provavelmente de um defeito. Não seria a
extensão uma camuflagem que, sob o manto da prolixidade, escondia fraquezas
substanciais? Varnhagen, porém, não ficaria apenas na insinuação e terminava
acrescentando que o mais grave era que “nessas 268 páginas [se tinha] uma decidida
pretenção de ostentar erudição”. Uma pretensão que, em sua avaliação, não passava de
presunção: a seu ver, d’Avezac alardeava erudição, pois suspeitava que o número de
páginas de sua crítica “às vezes consiste (...) em simples e puros catálogos de livros àcerca
do Brazil”. Era por isso que, segundo Varnhagen, “embora com tanta erudição, o censor
não consiga provar o que deseja”.
30
Irônico, desqualificava o trabalho de d’Avezac e
menosprezava, de antemão, os possíveis argumentos apresentados pelo censor.
Mas Varnhagen pretendia ampliar o descrédito de seu crítico e, para isso, recuperou
as informações que passara, meses antes, ao Ministro dos Negócios Estrangeiros. Repetia
para o primeiro-secretário do IHGB ser d’Avezac um “partidário de que a Guiana franceza
deve chegar ao nosso Amazonas”.
31
D’Avezac seria um homem tendencioso, que usava de
insinuações em prol dos interesses de seus país. Poder-se-ia confiar na sinceridade e na
legitimidade das palavras desse crítico sobre uma obra de história-pátria brasileira? Quem
garantiria que as censuras feitas à HGB não eram fruto de outras ocultas vontades de
desrespeitar e de desconsiderar os interesses do Brasil? Esses interesses poderiam até
mesmo ultrapassar a própria Guiana, insinuava. E, caso Porto Alegre desejasse confirmar a
informação, bastaria olhar no
mappa do Brazil que acompanha o parecer [onde] se lê ao norte do Amazonas e no
logar que occupam hoje todas as Guianas a inscripção – ‘France Equinociale’ –; e
embora se refira ao passado, revela-nos ella as aspirações a certo plano de formar-se
desse lado uma grande colonia franceza, à custa da nossa Guiana e não sei que
mais.
32
Uma vez construída a prevenção contra d’Avezac, era preciso, contudo, conquistar a
simpatia e o apoio dos membros do Instituto. E apesar de a carta ser dirigida à pessoa do
primeiro-secretário, por meio dela Varnhagen tomava a licença de se dirigir a seus
29
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 248.
30
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 249. Parece razoável supor também que Varnhagen insinuava que a
extensão do trabalho afrontava o preceito da brevidade.
31
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 249.
32
LESSA, 1961, p. 250.
146
consócios para solicitar-lhes que: “encarecidamente não [se] jure em nenhuma das
asserções do parecer do Sr. D’Avezac, enquanto lhe não chegam as respostas que a elle
vamos dar o nosso collega Dr. Silva e eu”.
33
Ou seja, sem o declarar, esperava que a carta
fosse lida em uma sessão da agremiação para que todos dela tomassem conhecimento. E,
para certificar-se de que isso aconteceria, amplificava a importância da defesa da HGB com
um raciocínio entimemático: lembrava que na obra eram recuperados e confirmados
direitos históricos sobre o território brasileiro, direitos que seriam uma herança da
colonização portuguesa.
34
Com esse argumento, entrelaçava sua obra com os interesses do
Brasil, como se ambos formassem uma única e mesma coisa. Ora, sendo a HGB uma
história sobre a colonização portuguesa, negar a obra significaria negar a própria revelação
dessa herança. Do que decorria também que não defendê-la era colocar-se contra o próprio
Brasil. Seria esse um comportamento esperável de tão devotos patriotas?
Pelo que não admira que pretenda deitar por terra a justiça de todas as nossas
tradições históricas, nas questões dos antigos interesses no Brazil com respeito aos
francezes, e neste sentido a minha obra atravessou-se-lhe como uma barreira mais
forte do que eu podera imaginar. (...) Aos nossos proprios compatriotas deixo pois
com esta prevenção o arbítrio de, com conhecimento de causa, tomarem o partido
do adversário dos proprios interesses brazileiros que são os interesses portuguezes
d’outro tempo.
35
Nessa carta a Porto Alegre, Varnhagen discutiu ainda questões que envolviam o
modo como se deveria escrever uma história de um país. Ele declarava-se injustiçado diante
da afirmação de d’Avezac de que apenas seguira “o programma feito por Martius” na
redação da HGB. Afirmava que, ao contrário disso, ele meditara a sua obra e, sobretudo,
encontrara “[o programa] em todos os tratados do dia àcerca do modo como se deve
escrever a historia geral de qualquer nação”.
36
Explicava ainda a Porto Alegre que decidira iniciar a HGB pelas grandes
navegações, que antecederam a de Cabral, por seguir o exemplo de um grande historiador –
33
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 250.
34
. O raciocínio entimemático construído por Varnhagen que pode ser assim esquematizado:1) se a HGB
recuperava os direitos sobre o território conquistados pela colonização portuguesa; 2) se a HGB defendia a
herança do Brasil; 3) logo a defesa da HGB era a defesa do próprio Brasil. O racicínio empregado era
amplificado. A amplificação é um efeito retórico por meio do qual se engrandece o assunto, graças ao
emprego de artifícios e dentre eles pode-se utilizar o agravamento das circunstâncias. Esse era o recurso
empregado, no caso, por Varnhagen. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 106-108
35
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 249-250.
36
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 252.
147
Bancroft – que, segundo afirmava, “começa o 1º capítulo da sua historia bem americana
com estas palavras: A empreza de Colombo (...)”. Seguira o modelo por julgar não
prejudicar “o arranjo total della [da obra]” e por melhor ligar a história do Brasil à “historia
da humanidade em geral”.
37
Nessa passagem, ele expunha a disposição da matéria que adotara e o objetivo a que
visara. Lembrava que pensara em iniciar a obra pelo capítulo de descrição do Brasil, mas
fizera uma outra opção, por julgar que desse modo melhor marcaria o início da colonização
e da civilização do país. Afinal, a seu ver, apenas “com [Cabral] começa verdadeiramente a
nossa historia”.
38
Ao explicar a disposição da matéria adotada, Varnhagen explicitava os
pressupostos que seguira para compor a obra em geral, abordando questões que envolvem a
dispositio, ou seja, tratava das prescrições retóricas para a disposição da matéria. Segundo
Lausberg, tais prescrições previam que a disposição deveria ser realizada no sentido de
ordenar o discurso tendo em vista conquistar o ouvinte. Essa é a disposição que se chama
de externa, porque se pensa numa ordenação tendo em vista o outro. Essa escolha
determina, porém, a própria disposição interna da matéria, ou seja, a escolha das partes e da
ordenação para a composição do discurso.
39
Preocupado com a conquista do leitor para o
que pretendia – convencê-lo de que o Brasil-nação era filho da colonização portuguesa –,
Varnhagen explicitava para Porto Alegre, assim como para os demais membros do IHGB,
as normas de composição seguidas e os fins que se propunha a alcançar.
Também ligada à adequação do discurso ao público estava a “estranheza” que
declarava sentir diante da proposta de d’Avezac para que descrevesse o Brasil de forma
mais científica. Segundo Varnhagen, essa sugestão denunciava desconhecimento, por parte
do crítico, das prescrições próprias para o gênero histórico. Segundo se recomendava,
lembrava Varnhagen, tais descrições de paisagem, em uma obra de história, deveriam ser
feitas com “grandes traços breves e rápidos”. Ao contrário disso, d’Avezac cobrava mais
prolixidade e mais cientificidade! Segundo Varnhagen, o francês errava duplamente, pois
desconsiderava que o público-alvo não era versado em ciências naturais. Nesse caso, uma
37
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 251.
38
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 251.
39
LAUSBERG, 1972, p. 95
148
obra mais científica e prolixa poderia ser-lhe incompreensível. Poderiam esses leitores
acreditar nas palavras do escritor se não conseguissem compreendê-lo?
Varnhagen fazia menção à discussão retórica sobre a virtude da clareza que todo
texto, consoante a seu gênero específico, deveria perseguir. Afinal, segundo a preceptística,
apenas um texto claro garantia sua compreensibilidade e apenas um texto compreensível
tornava confiável seu autor e seria capaz de persuadir o leitor.
40
Ao contrário do sugerido
pelo crítico, julgava que o capítulo em questão estava até mesmo “com excesso [de
informações científicas] para o commum dos leitores”.
41
Portanto, julgava ser preciso revê-
lo, mas no sentido contrário ao sugerido pelo crítico, tornando-o mais claro e, graças a isso,
mais compreensível e convincente.
Ele não apenas expunha para Porto Alegre as escolhas feitas para a composição de
sua obra, como mostrava-se convencido de que redigira corretamente, segundo as
exigências do gênero em questão: “tenho consciencia do que fiz e saberei defender-me”.
42
Conforme fazia acreditar, tinha razão em ter auto-confiança, pois polemizava com um
crítico vacilante em suas observações. Afinal, depois de sugerir maior delonga nas
explicações, seu censor terminara elogiando a disposição da matéria adotada na obra e a
brevidade com que os temas foram tratados, como confirmava o seguinte trecho de
d’Avezac, citado por Varnhagen:
(...) a economia geral do volume apresenta ao primeiro aspecto uma série contínua
de trinta e uma secções ou pequenos capítulos succedendo-se como os anneis
múltiplos e semelhantes d’uma cadeia não interrompida, de maneira que não se
gravariam tão bem os successos na memoria, se o espírito de synthese não viesse
ajudar a reunil-os por grupos mais claramente caracterizados.
43
(tradução e grifo de
Varnhagen)
Ao reconhecer como elogio o trecho acima, Varnhagen pretendia mostrar, por um
lado, que d’Avezac verificara que a HGB se inscrevia na memória de quem a lia.
Provavelmente, portanto, deduzia Varnhagen, o censor assentia que a obra era
40
Cf. LAUSBERG, 1972, p. 121/128. Em Quintiliano pode-se ler a seguinte explicação sobre a virtude da
clareza: “Pour moi, la première qualité, c’est la clarté, la propriété des termes, leur ordre normal, une période
ne se prolongeant pas trop longtemps; qu’il n’y ait rien de manque ni de trop; voilà le moyen d’être approuvé
par les connaisseurs et compris par le commun. Je parle de l’élocution. (...) Si nous ne disons ni moins ni plus
qu’il ne faut, si nous ne négligeons pas l’ordre et la précision, tout sera clair et accessible même aux auditeurs
que prêtent une oreille négligente”. Cf. QUINTILIEN, 1954, vol. III, livro VIII, p. 155.
41
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 253.
42
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 253.
43
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 253.
149
compreensível, adequada ao público-alvo e, exatamente por isso, convincente. Por outro
lado, insinuava que, se d’Avezac aceitava ser a obra capaz de convencer graças a seu
encadeamento e síntese, avaliava positivamente a disposição da matéria adotada pelo autor,
assim como o modo como fora abordada.
44
Tudo isso conjugado, implicava o
reconhecimento da adequação da obra ao público e ao gênero, o que significaria reconhecer
a propriedade da elocução adotada na HGB. Dupla seria, portanto, a contradição de
d’Avezac ao cobrar maior prolixidade e cientificidade do autor, até mesmo no capítulo de
descrição do Brasil.
A carta de Varnhagen a Porto Alegre nos revela um autor preocupado com a
censura feita a sua obra. Contudo, ao contrário do que se poderia esperar, Varnhagen
centrou a defesa da HGB em torno de regras vindas da preceptística retórica. Apesar de não
mencionar os nomes, seu raciocínio, ao longo de toda carta, gira em torno de questões
como a brevidade, a clareza, a disposição e a elocução, assim como a do convencimento do
leitor. Ele procurava mostrar-se ciente de que existiam formas aceitas e reconhecidas “do
modo como se deve escrever a historia geral de qualquer nação”, conforme declarava
explicitamente. Citava o trabalho do historiador norte-americano Bancroft e o texto de von
Martius como “programmas” a serem seguidos. Declarava que nos autores da época se
encontravam regras de como se deve escrever a história. Contudo, como todo escritor que
esperava alçar-se ao patamar de autoridade, fazia questão de mostrar que não apenas
conhecia e respeitava essas normas, mas que também era “um homem que meditou a sua
obra”
45
, sendo, portanto, um escritor que procurara superar os próprios modelos. Aqui
ainda, Varnhagen caminhava pelo campo da retórica.
Quanto aos possíveis erros históricos apontados por d’Avezac, Varnhagen
mostrava-se plenamente convicto de que erradas eram as observações de seu censor.
Persuadido de suas certezas e lançando mão de uma expressão horaciana, afirmava que “lhe
devolverei com toda força o dormitar do bom Homero”. Ou seja, se alguém havia cochilado
44
Segundo Lausberg, a virtude a ser alcançada pela disposição é o decoro, ou seja, a adequação do discurso
tanto ao público alvo quanto a seu gênero específico. Haveria uma forma correta de disposição ou um estilo
próprio para cada gênero. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 95. Segundo Hansen, “a palavra nuclear na retórica é
decoro”. Cf. HANSEN, 1994, p. 15.
45
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 251.
150
e errado, assim como às vezes até a Homero ocorrera, esse alguém era o próprio censor.
46
Não por acaso, Varnhagen empregava expressões contundentes e bradava que provaria os
erros de d’Avezac: “penso provar-lhe”, “provarei terminantemente” e “saberei defender-
me”.
47
A contestação de Varnhagen aos possíveis erros históricos existentes na HGB não
formava o cerne da carta a Porto Alegre, se considerada em seu todo. Conforme visto, ele
se preocupara, fundamentalmente, em desacreditar e desmoralizar seu crítico, em
conquistar a confiança de seu leitor – e dos membros do IHGB – e em defender a
disposição e a elocução de sua obra. A defesa se centrava em explicitar o conjunto de
normas que seguira para redigir a HGB e que objetivam a persuasão de seu leitor. Avaliava,
então, que d’Avezac se incomodara
por eu ter feito resahir na historia do descobrimento, e sem faltar à verdade, a figura
de Cabral, por meio de um simples artifício na maneira de contar, tão applaudido
aliás pelo nosso collega, o profundo Dr. Joaquim Caetano da Silva, que a tal
respeito se expressa pelas seguintes palavras: ‘Não se poderá louvar bastante a arte
com que na melindrosa questão dos primeiros descobrimentos do nosso littoral,
soube combinar a conveniencia com a verdade, pondo em primeiro plano a figura
de Cabral’.
48
(grifo do autor)
Ou seja, dentre os elogios que recebera ao primeiro volume da HGB e que inclusive
publicara como anexo ao segundo volume, Varnhagen escolheu exatamente um que
destacava a “conveniência” da obra. Conforme visto no terceiro capítulo da primeira parte
desta tese, a palavra conveniência, à época, dizia respeito ao correto emprego das regras de
46
A expressão horaciana à qual Varnhagen fazia referência era a seguinte: Quandoque bonus dormitat
Homerus. Segundo Paulo Rónai, a expressão significa que até os maiores artistas podem falhar, pois até
mesmo Homero errara. Rónai cita a seguinte frase de José de Alencar onde se faz referência à expressão
horaciana: “É possível que me espacem descuidos; mas onde está este que não cochila, quandoque bonus,
como dizia o velho Horácio?” Cf. RÓNAI, 2000, p. 148. No texto que escreveu para responder a d’Avezac,
Varnhagen fazia explicitamente referência ao dito horaciano: “Donc, me permettant de retourner contre mon
savant critique la pointe horatienne qu’il s’est plus à aiguiser contre moi: Quandoque bonus dormitat
Homerus”. Cf. VARNHAGEN, 1858, p. 19. Na tradução de Rosado Fernandes o trecho de Horácio é o
seguinte: “E não posso deixar de indignar-me todas as vezes que dormita o bom Homero: contudo, é natural
que, na descrição de tão grande assunto, alguma vez nos domine o sono”. Cf. HORÁCIO, 1984, p. 109.
47
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 251, 252, 253.
48
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 250. No Post scriptium da HGB¸ Varnhagen citou um outro trecho da carta
de Joaquim Caetano da Silva, a quem chama de “talentoso colega rio-grandense”. A carta dataria de setembro
de 1855 e o trecho dela destacado e publicado por Varnhagen foi o seguinte: “Li as suas paginas com o
mesmo escrupulo que se fossem minhas, e fiquei contentissimo com ellas. Parabem ao Brazil, que possue
finalmente de mão de hum seo filho, huma Historia que ha de ser traduzida em todos os idiomas e louvada por
aclamações unânimes... Logo ao entrar em materia mostra o meu amigo o seo espirito escrutador e pensador
com aquella grande referencia a Lullio, e vai ostentando sem interrupção este duplo caracter”. Cf.
VARNHAGEN, 1857, tomo II, s/p. (Post scriptium)
151
composição segundo os gêneros. Varnhagen declarava-se de antemão vitorioso sobre
d’Avezac, porque conseguira, “por meio de um simples artifício na maneira de contar”,
alcançar seu intento de destacar a figura de Cabral. Afinal, fora seu objetivo estabelecer que
datava da viagem de Cabral o início da colonização e civilização do Império. E, assim
como empregara esse artifício, insinuava que outros utilizara para convencer seus leitores
de que “havia uma cadeia não interrompida” desde o início da colonização até o presente
do Império. Nesse aspecto, portanto, d’Avezac fora um competente leitor, porque
compreendera que, graças à cadeia civilizatória iniciada em 1500, a Nação brasileira
existia. O objetivo de sua obra fora alcançado – ou seja, ela fora capaz de convencer seu
leitor –, mesmo porque até seu crítico o admitia. Seria possível aceitar o questionamento à
disposição e à elocução adotadas na HGB?
Nas três cartas endereçadas a D. Pedro II em que abordou a crítica de d’Avezac,
Varnhagen o fez em curtas passagens. Na primeira, datada também de novembro de 1857,
ele solitava ao Imperador que lesse a carta enviada a Porto Alegre para que se inteirasse de
como responderia ao crítico. Insistia na tese de que o Sr. d’Avezac escolhera “o campo da
sciencia para nelle debater principalmente a questão do Oyapoc”, pois estava certo de ser
nessa direção que caminhava “todo o relatório, ainda na parte em que parece querer-me
desconceituar como pouco patriota”. Novamente insinuava que respondia a uma afronta aos
interesses brasileiros. Porém, desejava que a carta dirigida a Porto Alegre fosse lida em
uma sessão do Instituto e por isso não se furtou ao ímpeto de recomendar ao Imperador que
intercedesse em tal sentido e que também garantisse sua publicação nas páginas da Revista
do IHGB, “como artigo separado e não nas actas” – portanto, em lugar de destaque.
49
Varnhagen, que no ano de 1851 exercera o cargo de Primeiro-Secretário do Instituto, sabia
que D. Pedro II, além de assíduo freqüentador de suas reuniões, era protetor da
agremiação.
50
Dele Varnhagen solicitava o amparo à divulgação de sua resposta a
49
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 254.
50
Cf. SCHWARCZ, 1995, p. 106. Varnhagen exerceu o cargo por um semestre e fora eleito em 23 de maio de
1851. O Instituto Histórico contou, ao longo de todo o Segundo Reinado, com o apoio financeiro, em forma
de subvenção anual, realizado pelo governo imperial. Segundo a professora Lúcia Guimarães, o IHGB se
transformou em um influente reduto intelectual, cujas reuniões mais pareciam reuniões do Conselho de
Ministros. E, a partir de 1849, as reuniões do Instituto passaram a contar com a freqüente presença de D.
Pedro II, que, desta data até sua partida do Brasil, em 1889, “participou de 508 reuniões ordinárias, sem
contar as sessões públicas de aniversário e outras comemorações”. Cf. GUIMARÃES, 1994, p. 59, 60, 62, 63.
152
d’Avezac. Estava certo de que seria atendido, pois, afinal, tratava-se da defesa dos próprios
interesses do Estado brasileiro.
Em janeiro de 1858, em uma segunda carta, insistia na tese de serem as críticas de
d’Avezac “feitas com intenções bem evidentes” de defender interesses expansionistas
franceses. Naquela data, tendo obtido licença especial para se afastar de seu posto na
embaixada brasileira em Madrid, Varnhagen se encontrava em Paris. Informava ao
Imperador que daria uma resposta merecida ao crítico da HGB, pois começaria “a ler a
verdadeira Historia Geographica do Brazil”, sua resposta a D’Avezac.
51
Na terceira e
última carta da série, datada de março do mesmo ano, informava que: “minha resposta ao
Sr. d’Avezac foi bem acolhida e será publicada no Bulletin”.
52
A leitura dessas cartas permite perceber que Varnhagen variou o modo de tratar a
crítica de d’Avezac, segundo as especificidades de seus correspondentes e atendendo a
diferentes objetivos.
Junto ao Ministro dos Negócios Estrangeiros do Império, esperava alcançar a
licença de seu posto de trabalho e o financiamento para a publicação de sua resposta a
d’Avezac; a Manuel de Araújo Porto Alegre desejava provar ser um homem de estilo, que
sabia e dominava as técnicas de composição e que sabia como se devia escrever uma obra
de História; de D. Pedro II esperava o prestigioso apoio para difundir sua pré-defesa entre
os membros do Instituto e os leitores de sua Revista. Varnhagen procurava fazer com que a
opinião dos juízes, no caso o primeiro-secretário do Instituto e seus consócios, o Ministro
dos Negócios Estrangeiros e o próprio Imperador, coincidisse com a dele, Varnhagen, antes
mesmo de sua resposta a d’Avezac ser elaborada.
Em todas as cartas, Varnhagen empregou recursos retóricos a amplificação, o
raciocínio entimemático, a dissimulação, a tentativa de mostrar a contradição de seu censor
ou de apresentá-lo como moralmente suspeito. Tais cartas podem ser entendidas como
peças de uma polêmica, ou de uma disputatio. Se desse modo as compreendermos, mais
facilmente se desvelam os recursos retóricos empregados – verdadeiras armas utilizadas no
51
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 254.
52
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 260.
153
sentido de derrotar seu censor e de responder, conforme declarava ao Imperador,
“triunfantemente (...) ao Sr. d’Avezac”.
53
5.2. As restrições de d’Avezac
O trabalho de d’Avezac sobre o primeiro volume da HGB, intitulado Considérations
géographiques sur l’Histoire du Brésil, estava dividido em três partes. Na primeira,
d’Avezac examinou alguns temas tratados na HGB, como as navegações européias do
século XV-XVI, a divisão do Brasil em capitanias hereditárias, a origem dos povos tupis, a
descrição da natureza brasileira, as tentativas francesas de ocupar a colônia portuguesa e as
invasões francesa e holandesa. Na segunda, destacou e discutiu alguns desses temas, como
as navegações espanholas e francesas, os territórios franceses na Amazônia e o Tratado de
Tordesilhas. Na última e mais extensa parte de seu trabalho, apresentou e discutiu
documentos e bibliografia referentes a vários temas de história do Brasil.
54
A primeira parte do trabalho, denominada Analyse critique de la nouvelle Histoire
du Brésil, foi dividida em nove subpartes. Delas, destacarei as três primeiras, em que
d’Avezac fez uma apreciação geral da obra e a sexta, intitulada Description du sol,
révolutions physiques, na qual analisou a descrição do Brasil feita por Varnhagen na HGB.
Nessas quatro subpartes, d’Avezac discutiu prescrições para a escrita de uma obra de
história e a forma como Varnhagen deveria ter descrito a geografia física, a geologia, a
botânica e a zoologia do Brasil.
D’Avezac abriu seu texto anunciando categoricamente: “il est proverbial que la
Géographie est la compagne inséparable de l’Histoire”. A seu ver, esse provérbio era
verdadeiro sobretudo para as obras de história de países novos, localizados em regiões
pouco conhecidas. Nelas, acreditava, o autor deveria necessariamente tratar de temas, como
o descobrimento, a exploração e a colonização, que seriam “presque tout entière du
53
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 254.
54
Segundo avaliava Clado Lessa, o trabalho de d’Avezac sobre o primeiro volume da HGB era “uma longa e
elogiosa apreciação, cheia de restrições, porém, da História geral do Brasil”. Cf. LESSA, 1955, Tomo 226, p.
48.
154
domaine de la Géographie”.
55
Em seu raciocínio, o historiador deveria abrir a história de
um país descrevendo cuidadosamente o território para que, na seqüência, pudesse tratar de
seu desbravamento e ocupação.
Porém, advertia d’Avezac, Varnhagen decidira primeiramente mostrar “la péninsule
ibérique au milieu de ses luttes contre la puissance musulmane”. A HGB, avaliava, abria-se
sob “le point de vue exclusif et jaloux des conquérant portugais”. E essa escolha seria um
erro, pois o autor “ne s’est pas placé au point de vue proprement brésilien”.
56
Tal atitude,
insistiria d’Avezac, dominava toda a obra e “amoindrit les propostions du sujet”.
57
Ou seja,
Varnhagen não apenas deixara de apresentar seu tema de forma grandiosa para atrair a
atenção de seu leitor, como o apequenara e o desvalorizara frente às navegações
portuguesas, que formavam a matéria do capítulo de abertura da HGB. Esses seriam erros
imperdoáveis a um escritor preocupado com uma apresentação séria e convincente de seu
tema.
Não iniciar a HGB com a descrição do novo país significava também, segundo
d’Avezac, o desconhecimento, por parte de Varnhagen, dos modelos para a escrita da
história. Citava, então, a seguinte frase de um autor do século XVI: “L’on ne doit faire
d’aucune Histoire, si la Géographie, son oeil droit et lumière naturelle, ne marche
devant”.
58
Mas d’Avezac julgava que Varnhagen deveria especialmente ter-se lembrado de
“l’exemple d’Hérodote”, caso em que “le narrateur aura soin, dans les occasions
opportunes, de décrire le théâtre des événements, source d’intérêt varié pour le lecteur
(...).
59
Adotar esse pressuposto significaria, a seu ver, transportar o leitor ao cenário dos
acontecimentos e conquistar seu interesse para a narrativa do que se seguiria. Assim
procedera Heródoto em sua obra de história, assim deveriam escrever os historiadores. Ao
invés de seguir o modelo consagrado, Varnhagen resolvera inovar e construir um caminho
diverso. Errara, postulava d’Avezac: ao abrir a HGB com a narração dos feitos europeus,
afastara-se do ponto de vista dos brasileiros e do sancionado modelo de escrita da história.
55
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 1-2.
56
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 9-10.
57
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 39.
58
Cf. AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 1, nota 1. D’Avezac citava a obra Les trois mondes, par le seigneur de
la Popellinière, de 1582.
59
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 8.
155
Além da insubordinação ao modelo, Varnhagen errara também, a seu ver, no
excesso de brevidade com que descrevera o Brasil:
La description du pays (...) est donnée par notre auteur avec une brevité excessive.
Une terre d’immense étendue, aussi neuve encore aujourd’hui pour ses possesseurs
que pour les étrangers, semblait réclamer une exposition plus développé de ses
formes extérieuses, de sa constitution géognostiques, de ses productions naturelles
si variées dans leur admirable richesse.
60
Se a brevidade era uma virtude a ser perseguida pelos escritores, seu excesso
também era um erro, porque conduzia à obscuridade do texto. Segundo d’Avezac, quando
os autores descreviam regiões novas que eram desconhecidas pela maior parte dos leitores
– até mesmo pelos brasileiros – o autor não poderia ser excessivamente breve, pois, nesse
caso, corria o risco de ser obscuro e se tornar incompreensível. Destacava então que,
enquanto Varnhagen consagrara em média 14 páginas para cada uma das seções de sua
obra, a Descrição Geral do Brasil ocupava apenas 8. D’Avezac afirmava ser “le chapitre si
court, le plus court hélas de tout le volume, qu’il consagre à la description de son pays
natal”.
61
Varnhagen deveria, em sua avaliação, ampliar e aprofundar essa descrição. Em
tom preceptístico – na sexta sub-parte da primeira parte de sua crítica –, apresentou
detalhadamente o que deveria conter tal descrição.
Iniciava aconselhando ser preciso descrever cuidadosamente a constituição física do
território:
Nous aurions voulu que le nouvel historien nous fît embrasser (...) d’abord le rideau
des montagnes littorales (...) en arrière, sur une deuxième ligne, la puissante chaîne
dorsale (...) par les cimes d’Itambé, de Piedade (...); puis, en arrière encore, le
système occidental des versants (...) et au delà duquel s’étendent d’un côté les
reliefs que dessinent le bassin du Paranahyba, de l’outre les plateau où prennent
naissance les grandes affluents de l’Amazone e de la Plata.
62
D’Avezac indicava ainda que o historiador deveria engrandecer sua obra, tratando
da grandiosa história geológica das terras brasileiras, que ficara inscrita “sur les
gigantesques monuments”.
63
Era preciso descrevê-la em toda sua magnitude.
Nulle région, peut-être, autant que le Brésil, ne porte l’empreinte significative de
ces grandes vicissitudes qui constituent les primitives annales de la terre, l’auteur
aurait pu nous montrer cette assise rocheuse cédant à l’effort d’une brusque
60
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 33.
61
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 33.
62
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 33.
63
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 34.
156
dislocation, se déchirer alors et se redresser sur une étendue (...). Une autre
révolution physique, d’une plus puissante énergie, vint, à une époque ultérieure
(...).
64
Porém, ao contrário do que se poderia esperar, o tema sequer obtivera “une page
speciale” na obra, pois Varnhagen, cometendo o erro do excesso de brevidade, limitara-se a
descrever a terra brasileira no momento “de la prise de possession des nouveaux venus
d’Europe”.
65
Assim, ao invés de explorar o que distinguia e elevava o tema, o historiador
redigira apenas uma “digression passagère” e isso porque, insistia d’Avezac, ele se colocara
sob o ponto de vista do dominador português. Nesse caso:
Hâtons-nous d’ajouter, cependant, que ce tableux, que emprunterait aux majesté de
la nature un caractère de si haute poésie, et dont la place serait marquée dans une
introduction largemente conçue, au début de l’ouvrage, se trouverait (...) à l’étroit
dans une simple digression passagère, telle que l’a faite notre auteur (...).
66
D’Avezac não apenas sugeria, mas chegava mesmo a lamentar a incapacidade do
autor para aproveitar o assunto em favor de sua própria obra. Insinuava que, caso se tratasse
de falta de conhecimento sobre o tema, ele, crítico, se encarregava de suprir a deficiência,
indicando bibliografia a ser consultada: “Voir, dans les Mémoires de l’Academie des
sciences, Savants étrangers”.
67
D’Avezac sugeria ainda não ter Varnhagen sequer
aproveitado a formação que tivera em sua casa paterna. Se seu pai fora o criador e o
primeiro diretor de uma fundição no Brasil, provavelmente ele fora iniciado nos
conhecimentos geológicos. Mas não dava mostras de haver aproveitado tal vivência
formadora. A deficiência poderia consistir, ainda, em uma deficiência de domínio do estilo,
apropriado ao gênero em questão. Também nesse caso, d’Avezac não se furtou ao direito de
prescrever. Recomendava ao historiador que evitasse “la diffusion, l’enflure de style, la
surcharge d’érudition; il unira la chaleur poétique de la jeunesse à la raison de l’âge mûr”.
68
Contudo, D’Avezac denunciava que Varnhagen provavelmente já percebera seu
erro, pois, em nota àquele primeiro volume da HGB, anunciava poder “dar a alguns pontos
[da obra] maior desenvolvimento [em edição futura]”.
69
O crítico não perdia a oportunidade
e tomava a declaração de Varnhagen como uma concordância prévia com as censuras feitas
64
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 38.
65
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 34-39.
66
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 38-39.
67
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 34.
68
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 8.
69
VARNHAGEN, apud. AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 39.
157
por ele. E se alguma seção da HGB precisava ser melhor desenvolvida, continuava,
certamente entre elas estaria aquela de descrição do Brasil.
Além disso, D’Avezac lembrava ter Varnhagen também declarado que a HGB
poderia apresentar uma outra disposição da matéria em nova edição. Se o próprio autor
acreditava ser isso possível, isso significava que ele, censor, estava correto em sua
observação: a HGB deveria ser aberta com a descrição do Brasil. A estratégia é clara:
D’Avezac pretendia que seus ouvintes da Sociedade de Geografia considerassem sua
censura tão correta, que contava até mesmo com a anuição do censurado:
Nous nous persuadons volontiers, ou surplus, que l’auteur a dejá senti lui-même le
desavantage de conditions trop étroites où il s’est laissé emprisionner; il nous
semble entrevoir qu’il médite, pour une édition nouvelle, une autre disposition dans
l’ordonnance générale de son oeuvre, e nous serons heureux que nos incitations
puissent contribuer à l’affermir dans ce dessein.
70
Por fim, todas as censuras feitas teriam, lembrava d’Avezac, uma finalidade muito
maior. Logo no início de seu trabalho, ele fizera questão de recuperar a idéia de que o
historiador deveria conhecer os fins morais de sua obra, sem, entretanto, vincular essa
lembrança à HGB. Ou seja, não apontava qualquer passagem em especial da obra que lhe
houvesse inspirado sentimentos patrióticos. Nesse sentido, pode-se supor que Varnhagen
talvez não tivesse muita clareza de sua missão como historiador. Uma suspeição que seria
agravada pelo fato de, segundo d’Avezac, Varnhagen escrever sob o ponto de vista do
conquistador português, iniciando sua obra “na Europa”. Assim, além de corretas em
termos de como se deveria escrever uma obra de história, suas censuras também o seriam
em termos do compromisso do historiador com a escrita de uma obra que fosse útil a seus
contemporâneos e a sua pátria. Por isso, “mieux que tout cela [correção da obra], il écrira
comme en homme de bien, que fait servir le passé à l’enseignement de l’avenir, et que
consacre ses efforts à diriger toutes les volontés vers un seul but, la prospérité de la
commune patrie”.
71
70
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 39.
71
AVEZAC-MACAYA, 1857, p. 8. d’Avezac fazia referência aos fins morais que toda obra de história
deveria alcançar. Varnhagen também afirmava, conforme discuti no capítulo 2 da primeira parte desta tese,
que um historiador deveria escrever obras para serem luz e guia da Nação.
158
5.3. A réplica
No início do ano de 1858 Varnhagen leria, na Sociedade de Geografia de Paris, sua
réplica às críticas de d’Avezac à HGB. Seu texto, intitulado Examen de quelque point de
l’histoire géographique du Brésil..., foi posteriormente publicado na Revista da mesma
Sociedade e em uma edição avulsa.
72
No subtítulo do trabalho anunciava tratar-se de
Éclaircissements Nouveaux sobre, dentre outros: a segunda viagem de Vespúcio, as
explorações espanholas no norte do Brasil, o tratado de Tordesilhas, a viagem de Pinzon, o
ponto de vista que deveria adotar um historiador nacional, o ponto de início da história do
Brasil. Como d’Avezac construíra sua crítica entrelaçando os dois últimos aspectos – o
ponto de vista e o ponto de início de uma obra de história nacional – abordaremos as
respostas de Varnhagen a eles.
Quanto ao ponto de vista adotado na HGB – ou da Nationalité historique – advertia
que: “Mon critique entend naturellement par ‘point de vue proprement brésilien’ celui où
devrait se placer un Indien Tupi pur sang, et il faut que je lui laisse toute la responsabilité
d’une telle appréciation”.
73
(grifo do autor) Lembrava que, sendo brasileiro e escrevendo
uma história dos ancestrais da maioria dos brasileiros atuais, não poderia “me placer au
point de vue nègre ou indien”.
74
Acusava d’Avezac de apoiar uma tese que “tout innocente
qu’elle est en apparence, finit par être radicalement subversive de notre véritable
nationalité”.
75
Afinal, argumentava, o Brasil era herdeiro de Portugal e como prova disso
bastava olhar a origem da dinastia reinante no país, assim como seus símbolos, língua e
literatura, usos e costumes e até mesmo parte de sua legislação. Empregando o princípio de
que a verdade anda sempre de mãos dadas com a justiça, argumentava silogisticamente:
72
Clado Lessa afirma que a edição em separado tinha mil exemplares e foi realizada às custas do autor. Cf.
LESSA, 1955, Tomo 226, p. 58-59. Lessa não fornece sua fonte de informação. Pode-se lembrar que
Varnhagen solicitou que o governo imperial arcasse com os custos da edição em separado. Os dois
exemplares a que tive acesso, um depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e o outro da Biblioteca
Nacional de Lisboa, trazem na última capa a inscrição: “Extrait du Bulletin de la Société de Géographie”.
Ambos fazem parte do lote publicado em separado, mas não trazem qualquer indicação de que foram
custeados pelo autor. Pode-se apenas supor que, tendo obtido licença para ir a Paris, conforme solicitara ao
Ministro dos Negócios Estrangeiros, Varnhagen talvez também tenha obtido verbas para editar sua resposta.
73
VARNHAGEN, 1858, p. 54.
74
VARNHAGEN, 1858, p. 53.
75
VARNHAGEN, 1858, p. 55.
159
La nation brésilienne, ayant acceptée de la mère patrie des legs si importants, en a
pris aussi la responsabilité qu’ils imposent. En dehors de ce principe, tout est
ingratitude et tout est logiquement faux. Un historien national ne pourrait écrire
qu’en historien national, à moins de se rendre absurde.
76
O raciocínio pode ser assim desdobrado: 1) se Portugal fornecera ao Brasil vários
legados; 2) se o Brasil aceitara e usava esses legados; 3) logo, a história do Brasil era a
história da presença portuguesa em seu território. Essa era a verdade e, caso o historiador
não desejasse cair no ridículo, por escrever coisas absurdas, que não se aventurasse pelo
caminho da falsidade. Porém, em sua opinião, o maior absurdo era que a tese de d’Avezac
encontrava partidários até mesmo no Brasil. Convocava então os brasileiros que percebiam
a gravidade “de semblables opinions et d’autres plus extravagantes encore”, a com ele
partilhar um “cris de guerre” contra os que desprezavam “les services de leurs propres
aïeux”.
77
Um grito de guerra que ele lançara quando lera o resultado de suas reflexões – após
“longtemps méditée avant de commencer la rédaction de mon histoire”, enfatiza –, na
Academia da História de Madrid e publicara no segundo volume da HGB.
78
O texto em
questão, intitulado Os índios perante a nacionalidade brasileira, é uma longa
argumentação contra a tese de serem os indígenas os representantes da nacionalidade
brasileira. Varnhagen construiu esse texto partindo de perguntas retóricas e respondendo
com raciocínios silogísticos. Veja-se um exemplo de um encadeamento inteiro de
raciocínio construído por ele: 1) Pergunta: “Eram os que percorriam o nosso território, á
chegada dos christãos europeos, os seus legitimos donos?”; 2) Resposta: “segundo os
princípios admitidos pelos publicistas, não é possível reconhecer que os nossos antigos
Indios (...) eram os legitimos donos das terras”. A resposta era uma conclusão verdadeira,
segundo Varnhagen, resultante do seguinte encadeamento das proposições: a) se “(...) em
vez de habitar, [os índios] percorriam nómades [a terra], disfructando dellas em quanto não
espantavam a caça, ou em quanto com sua primitiva agricultura não haviam (...), cançado a
76
VARNHAGEN, 1858, p. 55.
77
VARNHAGEN, 1858, p. 54-55. Segundo Roland Barthes, o entimema é uma dedução, um silogismo
incompleto apenas em sua construção lingüística, porque no plano das idéias ele é completo. No ouvinte, o
entimema produz a sensação de que ele está a descobrir coisas novas a partir de seu próprio raciocínio, de sua
capacidade de inferir. O entimema tem força persuasória porque estimula a vaidade do destinatário do
discurso, apesar de abreviá-lo. Segundo Barthes, já em Aristóteles se encontra a certeza de que um discurso é
tanto mais belo e pleno de sentido quanto menos extenso ele é em expressão. Cf. BARTHES, 1975, p. 187.
78
VARNHAGEN, 1858, p. 56.
160
terra (...)”; b) se “(...) os Tupis nada mais eram do que os ultimos invasores do território,
hoje brasileiro, o evidenceam as mais antigas tradições que recolhemos (...)”; c) logo: eles
não eram os legítimos donos das terras brasileiras antes da chegada dos europeus.
79
Na resposta a d’Avezac, Varnhagen recuperou as premissas de que partira e a
conclusão lógica a que chegara em cada uma das perguntas retóricas que apresentara nesse
texto. Como a argumentação que construíra, conforme avaliava, sustentava-se sobre
premissas plausíveis, podia afiançar que “j’ai prouvé dans ce discours”
80
que a
nacionalidade da história brasileira era branca e européia. Sua argumentação entimemática,
recuperada na resposta a d’Avezac, era a seguinte: 1) se os indígenas eram os últimos
invasores nômades do território brasileiro e não seus mais primitivos proprietários; 2) se
tais homens eram canibais amorais e desvirtuosos, apartados da verdadeira religião e; 3) se
eram selvagens incapazes de se civilizarem sem a ajuda dos europeus; 4) se o uso da força
era o único meio de fazê-los respeitar a lei; 5) se no presente o elemento europeu
predominava na população brasileira; 6) logo, ficava demonstrado
que, s’il est vrai que cet élément civilizateur est celui qui prédomine encore,
l’histoire du pays, ne pourrait aucunement s’empêcher d’être plus ou moins
d’accord avec lui, quand même l’historien national serait assez ingrat pour
méconnaître les bienfaits des civilisateurs, et trop peu pieux pour ne pas respecter
non plus la mémoire de ses ancêtres.
81
Podia, então, transformar a acusação de d’Avezac – de que não escrevera sob o
ponto de vista da nacionalidade brasileira – em elogio:
La question ainsi considérée, c’est le plus grand éloge qu’on puisse faire de l’esprit
patriotique que respire mon histoire, que de dire qu’elle est écrite plus dans le sens
des colons d’Europe que dans celui des nègres ou des Indiens (...).
82
Com outro raciocínio silogístico, ironizava ainda mais a idéia de que a história
brasileira poderia ser escrita do ponto de vista dos indígenas. Para Varnhagen, isso seria
verdade se e somente: 1) “si ceux-ci [os indígenas], sortant des forêts vierges, avaient
envahi les villes (...)”; 2) “s’ils s’étaient de nouveau emparés de tout les pays”; 3) “si
encore actuellement ils y dominaient”; 4) logo “l’histoire nationale devrait bien considérer
79
VARNHAGEN, 1857, p. XVI-XVII. (Discurso Preliminar)
80
VARNHAGEN, 1858, p. 56.
81
VARNHAGEN, 1858, p. 57-58.
82
VARNHAGEN, 1858, p. 58.
161
au premier plan les Indiens”.
83
Logicamente, tais proposições deveriam ser reconhecidas
como falsas e absurdas, e a conclusão, portanto, como inadmissível.
Desse modo Varnhagen pretendia conduzir seus ouvintes, da Sociedade de
Geografia de Paris, e seus futuros leitores do texto impresso, a com ele concordar e
concluir: apenas a conquista e a colonização do território pelo branco e europeu constituíam
a história do Brasil; somente ela poderia servir de guia para a nacionalidade em sua
formação e em direção a um futuro glorioso. Então, que seus ouvintes e leitores
concluíssem também: ele, Varnhagen, que escrevera com senso de responsabilidade e
convicto de servir à verdade, não se poderia dobrar a modismos inconseqüentes e ridículos.
Não cessou aí, porém, a réplica. M. d’Avezac julgava, conforme afirmara, que
Varnhagen seguira os conselhos de Carl F. P. von Martius na elaboração da HGB.
84
Varnhagen retomou o texto de von Martius, trazido à cena por d’Avezac, e dele retirou a
seguinte passagem: “O portuguez que deu as condições e garantias moraes e physicas para
um reino independente... se apresenta como o mais poderoso e essencial motor”.
85
Assim,
demonstrava-se que a história do Brasil era, também aos olhos de von Martius,
prioritariamente a história de sua civilização pelo branco colonizador. Varnhagen
argumentava que chegara a essa conclusão “par ma propre inspiration”, mas que as palavras
de seu amigo,“le savant Bavarois”, reforçavam suas convicções.
86
Que seus ouvintes e
leitores novamente concluíssem: a censura de d’Avezac, na contramão de seus objetivos,
revertia-se em verdadeiro louvor.
Para dar mais respaldo à HGB, Varnhagen recuperou outra passagem de von
Martius, em que se afirmava: “o periodo da descoberta e colonisação primitiva do Brazil,
não pode ser comprehendido senão em seu nexo com as façanhas marítimas, commerciaes,
e guerreiras portuguesas”.
87
Varnhagen declarava que abrira a HGB com um capítulo sobre
a expansão européia por uma escolha deliberada de unir a história do Brasil à história da
civilização européia. Não se tratava, advertia, de simplesmente seguir a proposição de von
83
VARNHAGEN, 1858, p. 58.
84
D’Avezc e Varnhagen faziam referência ao texto de von Martius intitulado Como se deve escrever a
História do Brasil.
85
MARTIUS apud VARNHAGEN, 1858, p. 53, nota 1.
86
VARNHAGEN, 1858, p. 53.
87
MARTIUS apud VARNHAGEN, 1858, p. 53, nota 1.
162
Martius, mas sim de uma preocupação de introduzir a HGB, pois que a história do Brasil
efetivamente se abria “à l’arrivée de Cabral à Porto-Seguro”.
88
Desse modo, quando
d’Avezac o acusara de iniciar uma obra de história do Brasil na Europa, efetivamente não
compreendera os fins a que se propusera alcançar: unir essa história à história da
humanidade. Lembrava que, pelo bem da clareza do raciocínio, uma narrativa não deveria
ser interrompida com assuntos que lhe eram estranhos. Era por isso que, para conservar a
coerência interna de sua narrativa, entendia ser a ordem a seguinte: descrição do Brasil,
descrição dos povos que ocupavam o Brasil e, na seqüência, chegada dos portugueses,
conquista e colonização. Em que lugar, então, deveria ser colocado um capítulo sobre a
expansão européia? Sem sombra de dúvida, concluía: no início da obra.
D’abord, que le digne rapporteur me pardonne, mais évidemment mon récit ne
s’ouvre qu’au Brésil, il s’ouvre à l’arrivée de Cabral à Porto-Seguro. Le chapitre
précedent n’est que d’introduction, et il n’aurait pas été facile de bien le placer au
milieu de la narration, sans trop en interrompre le fil. (...) mais il nous a paru
qu’avec la méthode que nous avons suivie, au moins dans cette édition, nous
réussirions mieux à la lier à l’histoire de l’humanité en général (...).
89
Varnhagen lembrava que d’Avezac também cobrara que a descrição da paisagem
fosse “plus scientifique” e “plus étendue, car elle est tout entiére renfermée dans huit pages
(...)”. Irônico, acrescentava: “le savant critique s’est donné la peine de les compter”.
90
Assim, além da disposição adotada na obra, d’Avezac também questionava sua elocução.
Varnhagen, por seu lado, tratou de defendê-las. Declarava concordar que uma história
deveria possuir um capítulo de descrição do cenário onde se desenvolveriam os
acontecimentos – tanto que, recordava a seu crítico, escrevera uma seção de descrição do
Brasil. Mas veementemente discordava da crítica ao conteúdo e à forma de seu capítulo de
descrição do Brasil. Iniciava destacando que
ce chapitre de mon livre est justement celui que j’ai le plus travaillé, surtout pour y
réussir à la fois à être bref sans devenir obscur ni insuffisant, et à être exact sans
faire parade de la moindre ostentation des termes techniques d’aucune des sciences,
soit mathématiques, soit physiques, soit naturelles (...).
91
E acrescentava:
88
VARNHAGEN, 1858, p. 63.
89
VARNHAGEN, 1858, p. 63.
90
VARNHAGEN, 1858, p. 64.
91
VARNHAGEN, 1858, p. 64.
163
J’avais là-dessus des idées bien arrêtées, qui me faisaient voir qu’on ne peut
aucunement juger par son étendue de la bonté, ni de la justesse, ni de la clarté d’une
description géographique dans l’histoire; et que, bien au contraire, les meilleurs
tableaux des pays, dans les ouvrages historiques, sont ceux que l’on fait à grands
traits, avec plus de nerf, et où, par des artífices littéraires, l’auteur sait le mieux
cacher sous des apparences agréables toute la profondeur des sciences dont la
nomenclature a quelquefois des sons trop barbares pour se plier aux régles du
goût.
92
Nos dois trechos, toda a defesa de Varnhagen gira em torno da correção retórica de
seu texto e de sua adequação ao gênero. Lembrava que apenas um trabalho “aturado”
93
de
composição conduziria à perfeição uma elocução: não por acaso, salientava que o capítulo
em questão fora exatamente aquele no qual mais trabalhara. Avisava que sua preocupação
fora a de alcançar as virtudes retóricas da brevidade e da clareza, fugindo da obscuridade,
da insuficiência e do excesso. E era exatamente porque perseguira essas virtudes que,
confessava, não ostentara erudição por meio do uso de termos convenientes apenas a obras
de ciências naturais. Isso não significava, advertia logo, que não detivesse esse
conhecimento pois, pelo contrário: “j’ai les moi-même tant étudiées, et que je cultive
encore comme un des charmes de ma vie”.
94
O que seu censor desejava, propagava Varnhagen, era que se sobrecarregasse o
capítulo de descrição do Brasil com uma ostentação de erudição científica que, segundo ele,
era imprópria para uma obra de história. Tratava-se de um conselho inconveniente, que
denunciava um desconhecimento das regras próprias para as composições em gêneros
literários específicos. Em tom preceptista, estabelecia que em uma obra de história: 1) as
informações científicas deveriam ser passadas ao leitor sem o uso de termos que não se
dobrassem “aux règles du goût”; 2) o autor deveria controlar e manipular a palavra e, sob
“artifícios literários”, dar à descrição uma aparência agradável e de naturalidade, tornando o
texto claro para o público-alvo; 3) o historiador mostraria a arte com que construíra o
cenário em sua história exatamente na destreza de manipular a palavra, para tratar de temas
científicos.
Segundo prescrevia, as informações científicas tinham uma forma própria para
serem tratadas no gênero. Varnhagen alardeava conhecer essas regras e, exatamente por
92
VARNHAGEN, 1858, p. 65.
93
Foi Oliveira Lima, no início do século XX, quem qualificou o trabalho realizado por Varnhagen de
“aturado”. Cf. LIMA, 1903, p. 13.
94
VARNHAGEN, 1858, p. 65.
164
isso, conforme afirmava, tratara de geologia, de botânica ou de zoologia, na HGB, sem
empregar o vocabulário desgracioso próprio das ciências. Declarava que usara artifícios de
linguagem para alcançar seus fins e exemplificava: referira-se a questões geológicas do
Brasil, por meio da construção de uma “peinture pittoresque” do país; tratara das questões
“phytologiques”, mencionando as madeiras para construção e as frutas saborosas; versara
sobre zoologia, lembrando a beleza dos pássaros e a qualidade dos animais para a caça; não
deixara sequer de tratar de animais peçonhentos e perigosos, amenizando o terror que
inspiravam os tigres e as serpentes.
As considerações de Varnhagen remetem, por um lado, ao segundo livro das
Instituições Oratórias, em que Quintiliano trata das virtudes de uma narração e afirma : “a
maior parte dos Retóricos (...) querem que ela seja clara, breve e verossímil”.
95
Nos
ensinamentos retóricos, estabelecia-se que o que não era claro para o público-alvo não era
compreensível e, conseqüentemente, corria-se o risco que não viesse a ser aceito como
verdadeiro.
96
As objeções de Varnhagen a seu censor – e por ele tratado como um verdadeiro
adversário a ser derrotado e calado –, por sua vez, dizem respeito às convenções de
funcionamento dos gêneros literários e remetem às discussões clássicas acerca do decoro de
uma obra. Uma obra tinha decoro desde que nela se reconhecessem os corretos predicados
prefixados pelos modelos reconhecidos como de excelência no gênero em questão.
97
Fazendo referência implícita a esse conceito, Varnhagen chegava a ser irônico com seu
censor:
J’ai pensé qu’en écrivant une histoire de la civilisation de mon pays, je n’étais
aucunement tenu de la commencer par les époques géologiques, et qu’au contraire
tous ces détails rentraient plutôt dans le ressort d’une autre branche des
connaissances humaines: je me proposais d’écrire l’histoire civile du Brésil et non
l’histoire naturelle.
98
95
QUINTILIANO, 1944, vol. I, livro II, p.187.
96
Pode-se lembrar que em Quintiliano se lê: “muitas coisas há verdadeiras, e contudo pouco críveis”. Cf.
QUINTILIANO, 1944, vol. I, livro II, p.187-188.
97
Cf. HANSEN, 1994, p. 15. Para Hansen, o modo de se compreender a qualidade de um discurso será
transformado “a partir da segunda metade do século XVIII romântico”, quando uma obra passou a ser
reconhecida por sua “originalidade de intuição expressiva; como unidade e profundidade de uma consciência
autonomizada”. Cf. HANSEN, 1994, p. 16. Contudo, salienta-se novamente que toda a argumentação de
Varnhagen gira em torno da preceptística retórica.
98
VARNHAGEN, 1858, p. 66.
165
Taxativo, destacava: escrevera uma obra de história civil e, nesse gênero, uma
descrição científica era inadequada. Ao ridicularizar as censuras feitas por d’Avezac,
Varnhagen pretendia conduzir seus ouvintes e leitores a enxergar o crítico como
despossuído de armas condizentes com a batalha que se propusera a travar. Não seria
d’Avezac um atrevido inconseqüente, que se punha a tratar de questões sobre as quais não
tinha domínio? Não seriam suas censuras risíveis e indignas?
Uma vez desmoralizado seu censor, Varnhagen deixava a posição de defesa e partia
para o ataque, invertendo os papéis na disputa. E se d’Avezac ostentara erudição e exibira
seus conhecimentos geológicos do território brasileiro, devolvia no mesmo tom a censura
recebida, mostrava seu conhecimento geológico do território francês:
Si un nouvel historien de France veut suivre les conseils de M. d’Avezac, il
commencera par nous mettre devant les yeux cette ceinture jurassique, avec les
deux boucles en formes du chiffre 8, qui d’aprés MM. Dufrénoy et Élie de
Beaumont, forment le principal horizon géognostique du pays. Nous verrons dans la
nouvelle histoire les cinq massifs ou îles de roches anciennes, à savoir, le nouyau du
Var, les terrains granitiques des Vosges, le massif des Ardennes, la presqu’île de la
Bretagne et les montagnes du centre. Le novateur nous expliquera ensuite les
bouleversements survenus à des époques plus récentes, les grandes assises des
terrains stratifiés superposées chronologiquement, les basaltes du Cantal et du
Mezène, et enfin les sols de Paris, d’Orleans et de Bordeaux, classés humblement
entre les terrains tertiaires et les alluvions, etc.
99
De forma categórica e irônica, terminava a parte de seu discurso desafiando seu
censor: “Sans être préalablement encouragé par un exemple de ce genre, je ne saurais
jamais me départir de me principes en écrivant l’histoire de la civilisation de mon pays”.
100
Por fim, perorava, amenizando os ânimos: agradecia sua admissão como membro da
Sociedade, o que lhe permitira responder de viva voz às críticas de seu censor, e declarava
estar certo de que tal censura objetivara, antes de mais nada, favorecer o crescimento da
ciência. Afinal, lembrava que ela “gagne toujours aux combats, où il n’y a jamais ni
vainquer ni vaincu, et où le seul défi est déjà par lui-même un grand service rendu au
progrès”.
101
Segundo Clado Lessa, nas inúmeras polêmicas em que Varnhagen se envolveu, ao
longo de sua vida, ele teria sempre adotado um tom “dogmático e intransigente” para
99
VARNHAGEN, 1858, p. 66.
100
VARNHAGEN, 1858, p. 66-67.
101
VARNHAGEN, 1858, p. 67.
166
defender seus pontos de vista, desde que possuísse “convicções assentes sôbre uma questão
de fato ou de doutrina”; e, naqueles nos quais não tinha como desconhecer “a justiça da
observação que lhe fora feita, desmanchava-se em queixas contra aquêles que, em vez de
justa homenagem aos grandes méritos de sua obra, preferiam malévolamente catar-lhe as
falhas (...)”. Lessa avaliava ser tal atitude de Varnhagen fruto de sua formação cultural e de
sua índole “vaidosa e combativa”, que terminava por levar seu biografado a se mover “pelo
amor próprio do autor”.
102
Contudo, para além de uma “índole” inata segundo o parecer de Clado Lessa,
Varnhagen foi um homem formado nas humanidades e treinado no domínio das regras de
composição retórica. A seus olhos, os censores de suas obras eram verdadeiros adversários
a serem derrotados. Conforme ele mesmo declarava, uma polêmica era um combate, no
qual era preciso conquistar aliados e/ou a deserção do campo inimigo – era preciso
convencer o auditório, ou os leitores, da tese apresentada e transformá-los em defensores do
ponto de vista partidário.
Na resposta às críticas de d’Avezac, do mesmo modo que nas cartas que endereçara
ao Brasil na segunda metade do ano de 1857, Varnhagen empregou recursos da
preceptística retórica: o raciocínio entimemático, preocupações com a clareza, a brevidade,
a disposição, a elocução e o decoro de um texto. Simultaneamente, procurou ridicularizar o
censor, tornando suas observações dignas apenas do escárnio e do riso. Parece razoável
afirmar que Varnhagen lançou mão dessas estratégias discursivas porque elas faziam parte
de sua formação cultural. Se hoje tendemos a olhá-las como a sobrevivência de formas
ultrapassadas de tratamento da linguagem – como um verdadeiro arcaísmo –, aos olhos de
Varnhagen e de seus contemporâneos, muito pelo contrário, elas continuavam reconhecidas
como válidas e corretas. Tanto d’Avezac quanto Varnhagen não pediam desculpas por
empregá-las ou foram acusados de atrasados por usá-las. Entre os debatedores, não se
detecta nenhuma desaprovação por construírem peças retóricas. Muito pelo contrário, eles
primavam pelo cuidado em construí-las.
Embora tenha-se analisado apenas uma parte de um dos inúmeros debates dos quais
Varnhagen tomou parte, ela credita a avaliação de Clado Lessa, segundo a qual o “tom”
102
LESSA, Clado, 1955, vol. 226, p. 9-11.
167
adotado por Varnhagen nessas polêmicas sempre se pautou pelo controle retórico da
palavra. Aliás, ele manipulava a palavra como uma arma a ser usada em prol de seus
objetivos.
Capítulo 6
A Descrição do Brasil na 2ª edição da HGB
169
Passados quase vinte anos do debate com d’Avezac, Varnhagen reeditou a HGB. A
segunda edição, datada de 1877, trazia diversas modificações, dentre as quais, a
transferência do capítulo da descrição do Brasil para o início da obra. Desse modo, o autor
acabava por acatar uma das orientações de seu censor. Nenhuma palavra dizia sobre o
caloroso debate ocorrido anos antes, quando, em 1858, defendera, contra as observações de
d’Avezac, ser preciso introduzir a história do Brasil ligando-a à história da humanidade em
geral. Tanto na crítica de d’Avezac quanto na resposta de Varnhagen, estava em discussão
as regras de como se devia, no sentido prescritivo do verbo, escrever uma obra de história.
Varnhagen argumentara contra as observações de d’Avezac, declarando seguir o exemplo
do historiador Bancroft, que iniciara a história dos Estados Unidos pela viagem de
Colombo. Mas, sobretudo, Varnhagen insistira na idéia de que compusera a HGB a partir
de suas próprias reflexões.
Agora, Varnhagen não apenas modificava a disposição dos capítulos em sua obra,
abrindo a HGB com a descrição do Brasil, como anunciou ser essa nova posição melhor
que a adotada anteriormente – que gerava “grande interrupção no fio da narração”. O
modelo prescrito terminava por prevalecer e Heródoto – que começou como geógrafo
1
era atualizado: Varnhagen iniciava a HGB descrevendo o território ou o cenário onde se
desenrolaria o drama da colonização portuguesa.
Varnhagen reconhecia, assim, sem que fizesse referência ao fato, que a censura de
d’Avezac apontara um erro na disposição das seções da HGB, segundo as regras
reconhecidas para o gênero histórico.
2
Ora, segundo d’Avezac, a geografia era companheira
inseparável da história, sobretudo em obras sobre as nações do novo mundo, nas quais, ao
tratar do descobrimento, exploração e colonização das novas terras encontradas, o
historiador necessariamente versava sobre temas geográficos. O exemplo, como lembrava
1
Além da própria assertiva de d’Avezac, segue-se aqui a colocação de Arnaldo Momigliano, para quem: “A
velha teoria de que Heródoto começou como geógrafo e só aos poucos desenvolveu a idéia de escrever a
história das guerras persas parece-me ainda bastante plausível”. Cf. MOMIGLIANO, 2004, p. 60.
2
Entende-se aqui por disposição da matéria o que Quintiliano prescrevia: (...) lorsque l’on élève un édifice, il
ne suffit pas de rassembler des pierres, du bois et tout disposer et placer ces matériaux, de même, en parlant,
l’abondance des idées, si grande soit-elle, ne fournirait qu’un amas confus, si cette même disposition ne les
ordonnait, ne les rapprochait et ne les enchaînait. (...) le plan est comme une juste distribution des matières,
que rattache ce qui suit à ce qui précède, la disposition est une répartition des éléments et des parties, que les
met en leur place. QUINTILIEN, 1954, vol. III, livro VII, p. 3. Em Horácio pode-se ler: “é difícil dizer com
propriedade o que não pertence à tradição (...)”. Cf. HORÁCIO, 1984, p. 75.
170
d’Avezac, vinha de Heródoto: o narrador devia descrever o teatro dos acontecimentos.
Ainda entre os antigos, segundo François Hartog, Cícero formulou regras para a escrita da
História que atravessaram os séculos.
3
Falando pela boca de Antônio, Cícero preceituara
existirem duas leis da história: “não ousar dizer algo falso” e “não ousar dizer algo que não
seja verdadeiro”. Advertia também que, sendo esses preceitos, “conhecidos por todos”, a
fundamentação da construção histórica repousava nos fatos e nas palavras e que “a
inteligência dos fatos”, por sua vez, requeria “a ordem dos tempos e a descrição dos
lugares”.
4
Entre os contemporâneos de d’Avezac e de Varnhagen, pode-se lembrar que, em
1836, Gonçalves de Magalhães, no Ensaio sobre a historia da literatura, publicado no
primeiro volume da Niterói, Revista Brasiliense, anunciando seu objetivo de traçar uma
história da literatura brasileira, fazia referência implícita ao mesmo postulado, ao afirmar
que: “toda a historia, como todo drama, supõe lugar da scena, actores, paixoens (...)”.
5
O deslocamento em questão, porém, não foi a única modificação introduzida na
obra. No Prólogo, Varnhagen anunciava que “todas as secções receberam retoques”.
6
José
Honório Rodrigues já prestara atenção nesse aviso e, concordando com o autor, afirmava
ter recebido a HGB da segunda edição uma nova redação.
7
No entanto, advertia, Capistrano
de Abreu e Rodolfo Garcia, anotadores e responsáveis pelas reedições da obra, não tinham
“se dado ao trabalho de comparar as modificações que não são insignificantes, quer pelos
acréscimos, quer pelas subtrações, quer, enfim, pela nova redação e pelas novas posições
ideológicas”.
8
Ficava, portanto, a indicação de José Honório para que se realizasse um
trabalho de cotejamento das seções das duas edições da HGB.
Este capítulo segue, em certa medida, a sugestão de José Honório. Comparam-se as
duas versões da seção de Descrição geral do Brasil preparadas por Varnhagen para a HGB
a fim de destacar os cuidados do autor com a reelaboração discursiva de seu texto, segundo
3
HARTOG, 2001, p. 181.
4
Cícero apud HARTOG, 2001, p. 151.
5
MAGALHÃES, 1978 (1836), p. 142.
6
VARNHAGEN, 1877, p. XVI. (Prólogo).
7
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 182. No final do século XIX, Capistrano observara que a segunda
edição da HGB era antes uma “refusão e remodelo da obra” do que uma simples reedição. Cf. ABREU, 1931
(1878), p. 132. (a)
8
RODRIGUES, José Honório, 1967. p. 182.
171
os fins persuasivos a serem alcançados: com vistas a construir um cenário grandioso que
comportasse o drama da conquista e da colonização, incentivando, ao mesmo tempo, o
prosseguimento da missão conquistadora e civilizadora que ele entendia ser a do homem
branco seu contemporâneo.
Em sua primeira versão, o capítulo constituía a seção de número VII da obra; na
segunda edição, passou a iniciar a obra, constituindo o seu exórdio. Publicada em vida pelo
autor, a segunda edição da HGB serviu de base para todas as reedições posteriores da obra
– no presente trabalho utilizou-se da nona edição integral, datada de 1978. Como a segunda
versão do capítulo foi a definitiva, ela servirá de guia no presente estudo. A versão de 1854
será utilizada para se destacarem as mudanças empreendidas de uma para a outra edição.
Assim, quando não se advertir do contrário, estarei fazendo referência a essa segunda
edição.
6.1. Sobre os retoques feitos na Descrição geral do Brasil
No Prólogo da reedição da HGB, Varnhagen anunciava que, na preparação de sua
obra, cuidara para que a linguagem “sempre (...) saisse puritana e de boa lei”.
9
No que diz
respeito ao capítulo que agora abria a HGB, os “retoques”, entretanto, ultrapassavam a
preocupação com a correção gramatical.
Diferentemente também do que se poderia imaginar, as modificações feitas no
capítulo tampouco respondiam a uma maior preocupação do autor em precisar a origem de
suas informações. Muito pelo contrário, se na primeira versão o capítulo possuía poucas
anotações, elas foram praticamente suprimidas nessa segunda versão. Assim, Varnhagen
eliminou as referências: 1) a Montoya, acerca do significado de palavras indígenas; 2) a
Lund, quando tratou da formação geológica de parte do território; 3) a Sigaud, de quem
recomendara consultar uma obra de 1844, pois nela estariam “reunidas as opiniões e
observações de muitos homens scentificos” acerca do clima do Brasil; 4) a Cristóbal de
9
VARNHAGEN, 1877, p. XVI-XII. (Prólogo).
172
Acuña, acerca dos mosquitos que assolavam a região amazônica; 5) a Padre Vieira e a
Southey, sobre a origem do gengibre.
10
Essas eram referências que possibilitavam ao leitor ter idéia de algumas das obras às
quais o autor recorrera para redigir a seção: trabalhos dos jesuítas do período colonial,
assim como de naturalistas e historiadores seus contemporâneos. Na segunda versão do
capítulo, Varnhagen conservou apenas uma nota, onde definia a palavra indígena caité, e
acrescentou outra, para discutir a melhor grafia para a palavra capoeira.
11
Eram, enfim,
comentários filológicos, que não esclareciam as fontes utilizadas, e que parecem apenas
servir para o autor demonstrar seu domínio da língua tupi.
12
Se as anotações de Varnhagen à primeira versão do capítulo eram insuficientes para
indicar a seu leitor as fontes por ele utilizadas para redigir seu texto, no capítulo reescrito,
elas foram praticamente eliminadas. Pode-se argumentar que, já homem maduro,
Varnhagen estava certo de ser considerado um erudito ou uma autoridade dispensada de
referenciar seu texto.
13
Mas, muito provavelmente, Varnhagen sobretudo desejava, que seu
texto não fosse interrompido: a ausência da citação era uma estratégia discursiva.
Descrevendo sem citar, ele dava a impressão ou a sensação de colocar sob os olhos do
leitor aquilo que era a realidade, como se o autor tivesse um olhar onisciente, que tudo
revelasse – ou de agir como um mestre-de-cerimônia, abrindo as cortinas de um palco para
desvelar o cenário até então oculto. Na composição do cenário, as citações seriam um
obstáculo: a toda hora desviariam o leitor e o impediriam de seguir o mestre em sua
explanação. O narrador vê o mundo e almeja fazer o leitor “ver” o que ele tem o poder de
desvelar citar seria interromper a revelação e prejudicar a verossimilhança da descrição.
14
Por isso, os “retoques” feitos por Varnhagen à seção em questão diziam respeito a um
10
VARNHAGEN, 1854, p. 90, 93, 95, 97. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
11
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 16.
12
Em 1876, um ano antes da reedição da HGB, Varnhagen publicou um longo trabalho de comparação da
língua tupi com as línguas do mundo antigo. Com esse estudo de filologia comparada, ele pretendera provar
serem os tupi descendentes de povos touranianos que conquistaram o território sul americano de seus
primitivos habitantes: “La grande nation des tupi, qui, déjà fractionnée en bandes (...), avait envahi, du nord
vers le sud, tout le territoire actuel du Brésil et du Paraguay”; “(...) le peuple en question était de la même
famille que l’égyptien ancien, et que l’un et l’autre appartenaient à ces races oural-altaïques que l’on dit
généralement touraniennes”. Cf. VARNHAGEN, 1876, p. 1, X.
13
Sobre a questão da citação em Varnhagen, ver o primeiro capítulo da primeira parte desta tese.
14
Segundo François Hartog, o objetivo dos historiadores na perspectiva de Luciano de Samósata deixou de
ser o de ele mesmo ver claramente o que se passou, para ser o de fazer o leitor “ver o que se passou”. Cf.
HARTOG, 2001, p. 235.
173
aprimoramento da organização do texto como um todo e de cada parte em particular, tendo
em vista a eficácia pretendida.
Na primeira versão da seção, tem-se uma divisão tripartite: um exórdio, uma
descrição e uma peroração. Na segunda versão, essa disposição foi conservada, mas
aprimorada, cuidando o autor para que cada parte do capítulo estivesse estreitamente ligada
aos fins que lhe cabia desempenhar no capítulo como um todo. Para isso, reelaborou,
acrescentou e suprimiu frases, eliminou erros e interpolações de idéias, adicionou e retirou
parágrafos e, sobretudo, deu a esses parágrafos um arranjo interno mais sistemático, de
modo a dotá-los de maior coerência. Desse modo, a reformulação dos parágrafos deu ao
capítulo como um todo uma melhor “concatenação ordenada das partes”, o que significa
dizer que a seção foi dotada de uma melhor disposição interna, segundo os fins a que agora
o capítulo se destinava, como se tentará mostrar.
15
6.2. A proposição
Segundo prescrevia Quintiliano: “le seul but de l’introduction est de préparer les
auditeurs à nous être plus favorables”. A introdução, advertia o retor, era fundamental, pois
“c’est au début surtout que nous devons nécessairement (...) nous insinuer dans l’esprit du
juge, afin d’y pénétrer ensuite plus avant”. Era também no exórdio que se conquistava a
atenção do auditório e o tornava “mieux disposé à s’instruire des faits”.
16
Varnhagen inicia a segunda versão do capítulo nomeando o objeto de sua descrição
– “Terra do Brasil ou somente Brasil” e vinculando sua existência à chegada dos europeus a
essas paragens: “foi o nome dado pelos Portugueses à parte mais oriental do novo
continente, em virtude de haverem aí encontrado, em abundância, certo lenho, que
subministrou ao comércio uma tinta vermelha (...)”. Ou seja, antes da presença portuguesa é
como se nada existisse. Varnhagen até lembra que “o novo pau-brasil” (porque até então a
Europa importava essa madeira da Índia) “era conhecido com o nome de ibirapitanga”. A
frase tem sujeito indeterminado. Quem conhecia? Não importa, porque era “com esse
15
Segundo Adolfo Hansen, a ordem do discurso visa sua utilidade. Cf. HANSEN, 1994, p. 65.
16
QUINTILIEN, 1954, vol. II, livro IV, p. 7, 47.
174
nome” de Brasil que a terra fora nomeada pelos comerciantes portugueses. Eles é que
deram sentido de existir à terra e, portanto, deram-lhe a própria existência. Tratava-se de
um nome que aparecia respaldado até mesmo pela classificação científica: Varnhagen
informava que o “pau-vermelho” encontrava-se “classificado pelos botânicos no gênero
Caesalpina”.
17
O modo como Varnhagen inicia a segunda versão do capítulo lembra o estudo de
Tzvetan Todorov sobre o comportamento de Colombo diante das terras novas encontradas.
Segundo Todorov: “o primeiro ato de Colombo em contato com as terras recentemente
descobertas (...) é uma espécie de ato de nominação de grande alcance: é uma declaração
segundo a qual as terras passam a fazer parte do reino da Espanha”.
18
Segundo Varnhagen,
Brasil fora um nome tão poderoso – porque afinal era a própria coisa –, que terminara por
se estender “a todas as colônias portuguesas neste continente, as quais, emancipando-se,
vieram a constituir o atual império brasílico”. O nome trazia as marcas da sua criação: no
nome da nação independente estava inscrito ser ela filha do descobrimento e da colonização
da Europa branca e cristã. Antes disso nada existia, ou não viria a existir. Assim como
Colombo nomeara as terras e delas tomava posse, Varnhagen, ao fixar na história o nome
da terra dado pelos portugueses, empurrava para o limbo tudo que estivesse fora dessa
nomeação, que, afinal, não passaria, a seu ver, de iniqüidades contrárias à moral, à justiça e
à religião.
19
E porque os portugueses chegaram e deram uso conveniente à terra, pudera se
formar “um dos Estados de maior extensão do globo”, que tinha a “décima quinta [parte]”
da superfície terrestre. Assim, se Varnhagen deslocou a descrição do Brasil para o início da
HGB, com um artifício de linguagem, conservou sua idéia central: a História do Brasil era a
da conquista do território e de sua colonização pelo português.
O império do Brasil, formado a partir da presença portuguesa, anunciava
Varnhagen, estendia-se “desde as cabeceiras mais setentrionais do caudaloso Amazonas até
quase as margens do Prata”. Tais rios, porém, não apenas delimitavam esse império
17
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol I, p. 13.
18
TODOROV, 1996, p. 28.
19
Nos três capítulos seguintes a esse, de descrição do território, Varnhagen tratou dos povos que o ocupavam.
Para ele, tais povos eram os últimos invasores do território e que o tinham conquistado de outros povos que
anteriormente ocupavam as terras. A seu ver os tupi eram povos bárbaros e incivilizáveis, cujo “dia de
expiação” chegou-lhes com “o descobrimento e a colonização, efetuados pela Europa cristã”. Cf.
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 56.
175
gigantesco. Conservando uma frase da primeira edição, Varnhagen repetia a metáfora: “Por
toda a extensão que abraçam esses dois grandes rios se erguem serranias (...)”. O Amazonas
e o Prata eram, na metáfora de Varnhagen, verdadeiros colossos, com braços grandes o
suficiente para envolver a décima quinta parte da superfície terrestre. E pelo menos um
deles era capaz não apenas de cercar o território como também de o proteger: o Amazonas
tinha o braço tão possante que desafiava até mesmo o mar – “essas águas vão com tanta
fúria arrojar-se ao mar, quase debaixo da equinocial, que durante certa distância da costa,
deixam as ondas dele de ser salgadas”. E também a terra estava sujeita à “fúria” de suas
águas: em sua superfície flutuavam “imensas ilhas” roubadas à terra firme.
20
Na construção da imagem do rio Amazonas, Varnhagen, na primeira edição, o
adjetivou como “rei” dos rios; no texto revisto, o Amazonas era por ele denominado de
“rio-mar”. Ou seja, a supremacia desse rio sobre outros, que na primeira edição aparece
como uma qualidade, que poderia ser perdida ou diminuída por algum acidente, passa a se
constituir em uma característica inata: o Amazonas era, por natureza, colossal e poderoso.
Essa sucessão de imagens, gradualmente ascendentes, pode ser analisada como uma
amplificação do objeto: o Amazonas primeiro era caudaloso, depois, abraçava um território
que correspondia à décima quinta parte da superfície terrestre, na seqüência, suas águas
enfurecidas enfrentavam o oceano e a própria terra.
21
E era esse possante “rio-mar”,
juntamente com o Prata, que “abraçava” o “império brasílico”.
22
Não é demais lembrar que na História da Independência, Varnhagen concluía que,
se a Monarquia era a única forma de governo capaz de garantir a unidade do Brasil como
nação, esta unidade já estava predestinada pela existência dos dois grandes rios que
20
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 13.
21
Para Quintiliano, a força da eloqüência “consiste essentiellement à amplifier et à attènuer”. A amplificação
poderia ser feita por quatro meios: “grossissement, comparaison, raisonnement, accumulation”. Cf.
QUINTILIEN, 1954, vol. III, livro VIII, p. 193, 195. Lausberg define como incrementum a amplificação que
“consiste na designação lingüística, gradualmente ascendente, do objeto a amplificar”. Rosado Fernandes,
tradutor para o português do trabalho de Lausberg e também seu anotador, acrescentou o seguinte exemplo de
incrementum: “este mundo não é pátria nossa, é desterro; não é morada, é estalagem; não é porto, é mar por
onde navegamos”. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 108.
22
Em 1923, Celso Vieira afirmava que as base da interpretação da história brasileira era a crença na unidade
do Império, conservada por “acto providencial”: Varnhagen acreditava “na fortaleza, na predestinação, na
suprema logica do Brasil unitário, compacto, gigantesco, infinito pelos seus attributos, mas indivisível como a
substancia”. Cf. VIEIRA, 1923, p. 93.
176
moldavam a geografia física do país. O território já trazia marcada a dimensão do futuro
império que deveria conter dentro de si:
E, meditando bem sobre os factos relatados, não podemos deixar de acreditar que,
sem a presença da coroa, a independencia não houvera ainda talvez nesta epocha
triumphado em todas as províncias, e menos ainda se teria levado a cabo esse
movimento, organizando-se uma só nação unida e forte, pela união, desde o
Amazonas até ao Rio Grande do Sul.
23
É na seqüência das imagens do Amazonas que Varnhagen inicia o parágrafo que,
bastante modificado de uma edição para outra da HGB, encerra o exórdio do capítulo. Nele,
Varnhagen objetivava mostrar que a formação física do território trazia inscrita, além do
próprio Império, um centro geográfico, que deveria ser visto como o lugar perfeito para ser
o centro do novo Império.
Na primeira versão desse parágrafo, a região central do território, apresentada como
de “clima ameno em todos os mezes do anno”, tinha a seu desfavor rios com inúmeras
cachoeiras que dificultavam a navegação. Essa dificuldade era apresentada com a seguinte
metáfora: “(...) manando de tão alto [os rios], vão caindo de andar em andar e de taboleiro
em taboleiro, galgando obstáculos, em que se formam ora saltos e cachoeiras, (...) com
grande detrimento da navegação fluvial (...)”. Porém, se esses “obstaculos naturaes” eram
de difícil remoção para os homens primitivos, Varnhagen advertia serem eles
“insignificantissimos para as [forças] da mechanica em nossos dias”. Graças ao progresso
da civilização, portanto, essa paragem central poderia tornar-se “de facil communicação” e
ser então capaz de cumprir seu destino: “parece como indicada pela natureza para vir a ser
o ponto mais importante no âmago do sertão deste continente,– um emporio do nosso
commercio interior em seculos futuros, pelo menos”.
24
O autor conclamava seus leitores a conhecer o cenário da construção da Nação
brasileira e do centro para onde deveria convergir a nacionalidade. Porém, nessa primeira
versão, a função do exórdio de conquistar a atenção e a benevolência do leitor terminava
por não ser plenamente alcançado. Por um lado, mesmo exortando a capacidade tecnológica
da modernidade para enfrentar desafios, expunham-se as dificuldades, quando o objetivo do
autor era incentivar a ocupação do interior do país. Por outro, a discussão sobre a
23
VARNHAGEN, 1978, p. 259. (b)
24
VARNHAGEN, 1854, p. 89-90. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
177
dificuldade da navegação naquela região era uma interpolação de idéias que precisava ser
eliminada. Afinal, no exórdio se pretendia despertar o interesse pelo território do Brasil e
por sua paragem central.
Na segunda versão do parágrafo em questão, Varnhagen substituiu as dificuldades
de utilização dos rios da chapada central do Brasil por uma certeza: a região era a que
“melhor se presta a ligar entre si todo o sistema de comunicações fluviais do Império”.
25
Ainda nesse parágrafo, Varnhagen realizou modificações na frase que o iniciava. Em sua
primeira versão a frase era:
Os grandes tributários da margem direita do Amazonas procedem de serras ou
chapadas que se elevam proximamente n’uma paragem central de todo o território,
da qual vão ao mar pelo Rio da Prata outras vertentes, depois de contornarem e
lindarem em parte o paiz com suas aguas.
26
Na segunda edição, a frase foi alterada para:
Os grandes tributários da margem direita do Amazonas procedem de serras e
chapadões, que se erguem numa paragem proximamente central a todo o território,
da qual vão ao Atlântico, pelo Prata, outras vertentes depois de contornarem e
banharem, com suas águas, os distritos do Sul.
27
Na segunda versão, Varnhagen precisa duas informações. A primeira era a de que os
chapadões formavam uma paragem central do Brasil – em lugar de simplesmente elevarem-
se “proximamente n’uma paragem central”. Para o leitor de hoje, essa mudança pode
parecer supérflua. Contudo, ela era fundamental no raciocínio de Varnhagen, pois
implicitamente ele fazia referência às discussões então em voga sobre o clima: as regiões
mais altas tinham clima mais ameno, mesmo quando localizadas em latitudes mais baixas.
E o clima mais fresco era aquele avizinhado ao europeu, que seria, na avaliação implícita
de Varnhagen, o clima ideal para a civilização humana. Era preciso que ficasse claro que os
chapadões eram a paragem proximamente central do território. A segunda informação
precisada: as águas dos tributários do Prata banhavam “os distritos do Sul” e não apenas os
contornavam e limitavam. Isso significa que da paragem central saíam rios tanto para o
norte quanto para o sul do País.
28
25
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 13.
26
VARNHAGEN, 1854, p. 89. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
27
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 13.
28
É preciso considerar que, no início do segundo semestre de 1877, Varnhagen viera especialmente ao Brasil
para ir a Goiás conhecer os locais que apenas observara no “mappa”. Dessa viagem resultou a publicação de
178
Nessa segunda versão da frase, Varnhagen conservava uma construção sintática
que, no mínimo, dificulta sua leitura. Na oração que dá início à segunda metade do período,
ele manteve a posposição do sujeito: “outras vertentes”, que é o sujeito, aparece colocado
não apenas depois do verbo, “vão”, como do adjunto adverbial de lugar –“ao Atlântico”; o
sujeito encontra-se ainda entremeado por vírgulas. Essa posposição dificulta a leitura e
obriga o leitor a reler a frase várias vezes para compreendê-la. Pode-se supor que
Varnhagen simplesmente desconsiderou que o problema gramatical comprometia a clareza
de sua idéia, ou que não fora capaz de corrigi-la. Mas também pode-se lembrar que,
segundo Adolfo Hansen, se a gramática é normativa e visa “a propriedade e a pureza da
língua”, a retórica visava a eficácia do discurso, a persuasão. Neste sentido, insiste Hansen,
“por vezes a retórica contradiz a gramática”, pois tratava-se do “belo eficaz”.
29
Neste
sentido, segundo Hansen:
(...) se a gramática sempre se ocupa da correção, isso não se dá com a retórica:
como antes de tudo ela visa o efeito persuasivo, pode lançar mão do que é
gramaticalmente incorreto, como licença, ou do que não é recomendável
lingüisticamente, como a impropriedade e o barbarismo (...).
30
Assim, considerando que Varnhagen não só conservou a frase em questão como
nela trabalhou, talvez seja mais profícuo analisá-la como um recurso artístico ou como uma
figura de pensamento, tendo em vista o convencimento do leitor. Segundo Lausberg, pode-
se construir uma figura de pensamento com “a sucessão das partes da frase [de forma] não
um texto – A questão da capital: maritima ou no interior. Nesse texto ele recuperou os trechos de outro
trabalho seu, o Memorial Orgânico, onde, ainda em 1849, defendera a idéia da transferência da capital do
Brasil para o interior. Ao trecho retirado do Memorial, Varnhagen acrescentou uma carta endereçada ao
Ministro da Agricultura do Império, datada de julho de 1877, da Villa de Formosa da Imperatriz, Goiás. Nessa
carta, declarava que sua viagem fora um “exito completo”, pois que pudera encontrar localidades “mui
superior a toda a expectativa” para sediar “a futura capital da União Brazilica”. Argumentava que a capital
“estaria muito mais resguardada no centro, como está no corpo humano o coração, e não na fronteira”. Talvez
porque certo da necessidade e da possibilidade da transferência da capital do Império, ele não desejava tratar
das dificuldades de acesso a essa região. Pelo contrário, apresentava soluções para a ocupação: sugeria o uso
dos bons e baratos carros de bois e, sobretudo, a construção de estradas de ferro. Era também nessa carta que
Varnhagen discutia a qualidade do clima da região central do Brasil e recorria às teorias de Humboldt: “de
que a identidade da temperatura se opera nas mais baixas latitudes pela ascensão das altitudes”. Cf.
VARNHAGEN, 1978, p. 25, 26, 30-31 (A questão da capital...). Varnhagen argumentava nesse texto com a
autoridade de viajante que conhecia a região da qual falava de visu e não mais apenas pelo “estudo dos
melhores mappas”. Capistrano de Abreu comenta a viagem de Varnhagen ao interior do Brasil: “Em seguida
abandona [Varnhagen] a posição commoda e brilhante de nosso ministro em Vienna, para, nos confins de
nossos sertões, procurar um logar pela posição defensável, proprio a servir de capital a esta Pátria (...)”. Cf.
ABREU, 1931, p. 132.(a).
29
HANSEN, 1994, p. 51, 117.
30
HANSEN, 1994, p. 50.
179
(...) lingüisticamente usual”.
31
Tal tipo de construção, argumenta esse estudioso da retórica,
visava provocar no ouvinte uma sensação de estranhamento que excitava sua atenção e era
uma arma contra o tédio. Na frase em questão, Varnhagen lança mão de uma figura de
pensamento e a constrói por meio de uma licença gramatical, tendo em mente um efeito
deliberado. À medida que o leitor lê e relê a frase, imbui-se da idéia de que a “paragem
central” do Brasil não apenas é formada por regiões mais altas e frescas, como que dela
partem tanto tributários do Amazonas quanto do Prata, que, por sua vez, envolvem o
território como um todo. Há, portanto, uma homologia entre a imagem construída e a
estrutura sintática adotada: pode-se verificar que nas frases se tem a construção seqüencial
– sujeito, verbo, conjunção, verbo, sujeito – que dá ao leitor uma visão de ascensão e
descensão. A construção sintática traz em si a idéia da ação de subir e descer, como se, ao
realizar a ação de ler, o leitor acompanhasse o viajante, que também subia e descia os
chapadões do planalto central. Essa formulação sintática foi premeditada e aperfeiçoada
pelo autor, da primeira para a segunda versão da frase.
Nos três parágrafos iniciais do capítulo visava-se a convencer o leitor da unidade da
Nação brasileira. A essa imagem se somava, coroando o exórdio, a idéia de que a
centralidade do Império estava também determinada geográfica e fisicamente. Era por isso
que, muito mais do que um simples “empório”, conforme aparecia na primeira versão da
frase, a região estava predestinada a sediar uma nova capital para o Império:
a própria natureza está indicando [a região] como a mais adequada para constituir o
grande e poderoso núcleo da futura união, segurança e independência do Estado,
oferecendo para o estabelecimento de uma grande capital quer o chapadão do
Urucuia, quer o de Santa Maria.
32
6.3. A descrição
Na seqüência do exórdio, Varnhagen iniciava uma exposição explicativa: a
descrição do território brasileiro. Ou seja, apresentado o objeto e pressupondo-se alcançado
o interesse do leitor por conhecê-lo, tratava-se agora de instruí-lo sobre o grandioso
território ou de fazê-lo enxergar o que ele era e possuía.
31
LAUSBERG, 1972, p. 96.
32
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 13-14.
180
Nas duas versões do capítulo em análise, Varnhagen conservou na descrição a
mesma disposição da matéria. De modo seqüencial e concatenado, ele tratou de cinco
temas: a formação geológica do território, seu clima, carta celeste, botânica e zoologia. Por
um lado, compôs um quadro natural da região brasileira, dando a seu leitor a impressão de
que se açambarcavam todos os seus elementos constituintes. Por outro, adotou uma
seqüência descritiva: iniciava pela formação geológica do terreno, seguindo pela análise de
seu clima e de seu céu e só então tratando de suas plantas e animais. Essa seqüência
pretendia dar ao leitor uma sensação de, partindo do que era mais oculto, consistente e
sólido no território, alcançar o que estava mais ao alto e, desse posto privilegiado, enxergar
os seres vivos que ocupavam a região. Pode-se dizer que a disposição adotada não era
aleatória e predispunha o leitor a crer que efetivamente lhe era apresentada a totalidade do
território.
Contudo, apesar da conservação da disposição geral do capítulo, Varnhagen
reescreveu o texto, tendo em vista torná-lo mais claro, breve e verossimilhante.
Considerando-se a clareza e a brevidade recomendadas para uma descrição, eliminou
digressões e argumentações que apareciam na primeira versão. Tais digressões e
argumentações, além de não fornecerem alguma informação nova sobre o tema tratado no
parágrafo específico, eram divagações que desviavam o leitor do raciocínio desenvolvido.
33
Exemplificando, eis algumas das digressões da primeira versão que foram suprimidas:
1) analisando a formação geológica do território, afirmava ter a região do Amazonas
uma formação cretosa e de terreno de aluvião, do que resultaria ser ela mais plana.
Dessa constituição decorreria que, concluía e argumentava Varnhagen, nela “se
33
Segundo Quintiliano, a interpolação de idéias prejudicava a clareza de um texto e deveria ser evitada: “a
propos de la narration on a coutume de recommander aussi d’éviter les digressions, de ne pas adresser la
parole à un autre personne, de ne pas argumenter (...). Comme l’exposition doit être claire et brève, rien ne
pourra plus rarement se justifier qu’une digression (...). Cf. QUINTILIEN, 1954, vol.IV, livro VIII, p. 79, 81.
Quintiliano prescrevia que a clareza era a virtude alcançada graças ao emprego de termos próprios e
expressivos, capazes de iluminar “les faits, les personnes, les circonstances, les lieux, les causes”. Sobre a
brevidade, preceituava que se narrasse a partir do ponto que interessava ao juiz, que se dissesse “tout ce qu’il
faut et rien que ce qu’il faut; nada se dizendo “en dehors de la cause” e para além do necessário para a
compressão da coisa. Cf. QUINTILIEN, 1954, vol. IV, livro VIII, p. 53, 55, 57. Também em Horácio se tem a
recomendação para que os poetas eliminassem tudo “tudo o que for supérfluo [pois] ficará ausente da
memória, carregada em demasia”. Cf. HORÁCIO, 1984, p. 105.
181
encontre a mais natural communicação dos sertões com o mar, sobretudo por meio
dos férreos carriz e da navegação fluvial”;
34
2) no mesmo trecho da formação geológica, Varnhagen pretendia tratar da abundância
de minas de ferro existentes no território, mas iniciava o trecho fazendo referência
às terras agricultáveis do país: “quanto á terra de cultura, predominava nella por
quase toda a extensão do Brazil a côr mais ou menos avermelhada (...)”;
35
3) ainda no trecho sobre a formação geológica, informava que o abundante ferro
encontrado no Brasil geralmente se apresentava “abraçado com o ouro” e fazia
então uma comparação: “como na Califórnia e na Australia”;
36
4) tratando do clima do país, informava que no princípio do verão ocorriam os
chamados “aguaceiros”. Fazia, então, o seguinte devaneio: eram “chamados [os
aguaceiros] em algumas partes ‘chuvas de caju’, por isso que a melhoria deste
fructo dellas depende”; (grifo do autor)
37
5) expondo sobre as plantas exógenas introduzidas e produtivas no território brasileiro,
lembrava serem as laranjeiras de origem européia muito bem adaptadas no novo
continente. Interpolava, então a seguinte idéia: “principalmente a [laranja] que dá na
Bahia, com a denominação por que é conhecida e que pouco favor faz ao pudor e
delicadeza dos que a imaginaram”;
38
6) informando ser a vegetação da região temperada do território formada por campos
virgens, onde se encontravam os pinheiros araucários ou curîs, fazia a seguinte
divagação: “de cuja abundancia provem o nome de Curi-tiba”. (grifo do autor)
39
Tais digressões trazem curiosidades que serviam para quebrar a monotonia do texto,
mas interrompiam o raciocínio. Ao eliminá-las na segunda versão, muito provavelmente
Varnhagen optara pela maior coesão interna de sua descrição, o que contribuía para sua
clareza, brevidade e verossimilhança.
34
VARNHAGEN, 1854, p. 90. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
35
VARNHAGEN, 1854, p. 91. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
36
VARNHAGEN, 1854, p. 91. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
37
VARNHAGEN, 1854, p. 92. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
38
VARNHAGEN, 1854, p. 96. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
39
VARNHAGEN, 1854, p. 96. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
182
A descrição também se tornou mais clara e verossimilhante graças a reelaborações
de frases que tinham sentido dúbio e à adição de explicações que visavam uma precisão
maior da informação fornecida.
40
Novamente, todos os “recortes” feitos por Varnhagen
favoreciam o aprimoramento das virtudes de sua descrição. Vejamos três exemplos dessas
modificações feitas pelo autor.
Na descrição do clima brasileiro, Varnhagen colocava em dúvida a possibilidade de
classificá-lo utilizando a mesma nomenclatura empregada para as estações de clima
temperado: “se estas [estações] com seus nomes inventados para as zonas temperadas os
podem ter correspondentes na zona torrida embora haja aqui, não só climas temperados,
como até frigidissimos e de neves perpetuas”.
41
Apesar de o advérbio “aqui” referir-se à
“zona torrida”, o leitor poderia interpretar, em uma leitura mais rápida, como dizendo
respeito ao Brasil, pois o parágrafo tinha como tema, é importante destacar, o clima geral
do país. Isso significava que o leitor poderia entender que o autor acreditava existirem
regiões de clima “frigidissimos e de neves perpetuas” no Brasil! Apenas com uma leitura
menos apressada o leitor compreenderia que as neves existiam em outras regiões do
continente americano. Na segunda versão do capítulo, a frase passou a: “(...) embora haja,
até debaixo da equinocial, não só climas temperados, como até frigidíssimos e de neves
perpétuas, bem que não dentro dos limites do território brasílico”.
42
O acréscimo eliminava
a dubiedade da informação e colocava em destaque o que lhe interessava: no Brasil
existiam regiões com clima mais ameno.
Na primeira versão da seção, Varnhagen iniciava o parágrafo sobre os peixes
existentes na região brasileira do seguinte modo: “Nos mares ha balêas e peixes-bois; e
como pescaria de regalo (...)” – Varnhagen prosseguia tratando dos peixes existentes nos
rios e mares próprios para o consumo humano.
43
Ora, as baleias e peixes-bois são
mamíferos, mas Varnhagen os citava em um parágrafo onde trataria essencialmente de
peixes bons para a alimentação humana. Nesse caso, ocorria uma miscelânea de temas
distintos: mamíferos aquáticos com peixes comestíveis. Ao misturar temas e inclusive
40
Em Quintiliano se encontra a recomendação para que o autor contasse os fatos de modo natural e
encadeado, apresentando suas causas e motivos e fazendo parecer “le plus évident possible ce qu’il raconte”.
Cf.QUINTILIEN, 1954, vol. II, livro IV, p. 63.
41
VARNHAGEN, 1854, p. 91. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
42
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 14.
43
VARNHAGEN, 1854, p. 96. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
183
classes distintas de animais, que apenas tinham em comum o viver na água, punha-se em
risco a coesão interna do parágrafo, comprometendo tanto a clareza do raciocínio quanto a
sua verossimilhança. Na segunda versão, a frase foi suprimida e o parágrafo, que agora só
tratava de peixes, se iniciava: “Como peixes de regalo se recomendam (...)”.
44
Um último exemplo: ao tratar da vegetação dos mangues brasileiros, Varnhagen
afirmava que: “(...) nos alagados do mar pullulam as rhizophoreas que chamamos mangues,
as quaes se multiplicam pelos proprios ramos”.
45
Novamente se tinha uma informação no
mínimo truncada: uma planta que se multiplicava pelos galhos. Como isso acontecia? Para
se evitarem suposições fantasiosas sobre essa reprodução, Varnhagen acrescentou uma
oração subordinada explicativa que precisava a informação: “(...) nos alagados do mar
pululam as rizofóreas, que chamamos mangues, as quais se multiplicam pelos próprios
ramos, que dos galhos se debruçam a buscar a terra”.
46
Na segunda frase, a oração “que dos
galhos ....” é uma explicação do modo como a planta se multiplica. Na primeira versão se
tinha a sensação de que do galho “saltavam” novas plantas; na segunda, o leitor é
informado de que, à medida que os galhos da planta se dobram sobre a terra, eles terminam
por se enraizar e, dessa forma, a planta se reproduz.
Para expor os cinco temas tratados – clima, cosmografia, botânica e zoologia –,
Varnhagen adotou uma única ordenação. Na segunda versão, ele passou a abrir o trecho
referente a cada tema com uma visão geral e, na seqüência, desdobrá-lo em sub-partes. Tal
ordenação favoreceu a coesão e a coerência de cada uma das partes, assim como da
descrição em sua totalidade.
Esse procedimento fora empregado para tratar do clima brasileiro já na primeira
versão da seção; na segunda, essa disposição foi conservada e generalizada para os demais
temas. Vejamos a disposição adotada por Varnhagen para tratar do clima do Brasil que foi
depois por ele generalizada para o restante da exposição. O tema era introduzido: “Numa
extensão tão vasta e com tão diferentes elevações sobre o mar, como tem o Brasil, claro
está que vários devem ser os climas e vária a ordem das estações (...)”.
47
Na seqüência dos
44
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
45
VARNHAGEN, 1854, p. 94. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
46
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol I, p. 16.
47
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol I, p. 14.
184
parágrafos, Varnhagen informava sobre as particularidades climáticas regionais: “Pode em
geral dizer-se que desde as beiras do Amazonas, seguindo pela costa até o Sul, nas margens
dos rios de todo o litoral, o clima é quente e úmido (...)”; “Nos páramos dos sertões e nas
campinas do Sul é o clima temperadíssimo (...)”.
48
Essa ordenação, que partia do geral para
o particular, foi transformada em regra, na segunda versão do capítulo, e seguida na
composição das partes restantes.
Um exemplo de como na primeira versão do capítulo não havia uma forma única de
disposição que ordenava a exposição de todas as matérias tratadas na descrição pode ser
visto no trecho dedicado à formação e composição geológica do território, que era iniciada
assim: “Geognosticamente consta a parte oriental deste território de altas serras, em geral
de formações primitivas, onde predomina o granito e mais rochas congeneres”. Varnhagen
seguia mostrando a formação que particularizava outras regiões: “arrimam pelo dorso
ocidental os sandsteins e itacolumites”; “na parte central (...) abundam as rochas calcareas
(...)”; “para as bandas do norte (...) quase tudo são formações cretosas e terrenos de
alluvião”.
49
Na segunda versão, a descrição geológica passou a ser introduzida por um longo
trecho:
Geognosticamente, a base de toda a mencionada extensão territorial é formada de
gnaisse, e suas competentes transições para as rochas congêneres; aparecendo o
mesmo gnaisse nas mais altas serras; seguindo-se, em outras, formações, tanto de
arenitos de vários caracteres, incluindo os conhecidos com os nomes, de origem
brasílica de itacolumites e itabiritites, como calcárias, umas metamórficas, outras
secundárias; vindo depois os arenitos terciários, em que se devem compreender os
das antigas matrizes dos diamantes, os quais não se têm manifestado senão de
lavagem nos rios, ou em conglomerados de recente formação.
50
Varnhagen abria agora o tema afirmando existir um único tipo de rocha, o gnaisse,
que se constituía na “base de toda” a extensão territorial. A essa base única somavam-se
outras formações: arenitos (conhecidos por itacolumites e itabirites), calcárias
(metamórficas e secundárias) e arenitos terciários. Ou seja, de uma visão do que era geral
na formação do território, Varnhagen passava a apresentar suas particularidades.
48
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol I, p. 15.
49
VARNHAGEN, 1854, p. 90. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
50
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 14.
185
Simultaneamente, esse início da descrição recuperava e engrandecia o que fora
anunciado no exórdio, onde Varnhagen construíra uma visão espacial dos limites do
território. Agora o leitor era conduzido ao âmago daquela extensão de terra. Porém,
enquanto no exórdio o autor lançara mão de metáforas para atingir seus fins de conquista
do leitor, na abertura da descrição o uso de termos técnicos da geologia torna-se um recurso
discursivo empregado com o mesmo fim. Na descrição – onde se pretendia fazer conhecer
o objeto – o emprego desses termos científicos visava dar ao leitor certeza das informações
recebidas. Não por acaso, da primeira para a segunda versão do parágrafo, Varnhagen
encadeou um maior número dos termos científicos – do mesmo modo como eliminou frases
que interpolavam idéias. Essa reescrita do parágrafo visava dar ao leitor a impressão de
precisão e correção das informações repassadas – não é demais lembrar que Varnhagen não
esclarecia de onde provinham suas informações científicas.
51
Ou seja, pode-se afirmar que
ele empregava o conhecimento científico em uma forma retórica de raciocínio: mostrar a
estrutura rochosa do território que estava fadado a suportar uma grande nação; uma
estrutura que referendava aquilo que se lia em sua superfície. Os conhecimentos científicos
prestavam-se aos fins persuasivos visados pelo autor.
Na segunda versão do trecho em análise, Varnhagen acrescentou dois parágrafos.
No primeiro, o autor apresentava, de modo seqüencial e concatenado, as riquezas minerais
existentes naquele território: não “faltam mármores”, “abundam minas de ferro, algumas de
grande possança e riqueza” e encontram-se “óxidos de ouro”.
52
A enumeração das riquezas
minerais – mármore, ferro, ouro – foi o recurso discursivo por ele empregado para
engrandecer seu objeto. No segundo parágrafo, ele amplificava ainda mais as qualidades do
território, comparando-o às regiões vizinhas. Concluía, num aparente paradoxo, ser esse
território melhor do que todas as regiões fronteiriças exatamente por aquilo que deixava de
possuir: como não tinha vulcões e nem sofria terremotos, estava livre de tremendos
flagelos. Varnhagen lançava mão, para a composição desses dois parágrafos, de meios que
visavam a engrandecer as qualidades do objeto tratado: acumulava aspectos positivos e
comparava-o favoravelmente a outras regiões.
51
Rodolfo Garcia acrescentou ao trecho uma nota onde esclarece a origem das palavras indígenas citadas por
Varnhagen. Porém não sugere a procedência das informações fornecidas por Varnhagen. Cf. VARNHAGEN,
1978 (1877), p. 21. Neste presente trabalho não se teve a pretensão de verificar a precisão das informações
fornecidas por Varnhagen.
52
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 14.
186
Por toda a extensão do Brasil continental não se encontra um só vulcão, nem têm
aparecido formações vulcânicas; donde procede o ver-se quase todo este grande
império isento do flagelo dos terremotos, que tanto afligem aos povos de várias
nações limítrofes. Em todo o Brasil, até hoje, não há memória de se haverem
sentido tremores, senão apenas nas suas estremas austro-ocidentais (Mato Grosso),
além de alguns leves abalos nas costas de nordeste (Pernambuco) (...).
53
A toda essa magnificência do território poderia-se interpor, sugeria Varnhagen, o
fato de ele estar localizado em “zona tórrida (...) debaixo da equinocial” e, por isso, ser
dotado de clima quente e adverso à civilização. Ele não desconsiderava a localização
geográfica do território no globo terrestre, mas informava que, contudo, “desde as beiras do
Amazonas, seguindo pela costa até o Sul, nas margens dos rios de todo o litoral (...) [a
região era] refrescada não só, diariamente, pela viração mareira e pelo terreal, como
também pelas chuvas amiudadas”. E novamente recorria à ciência para confirmar sua
assertiva: “Experiências feitas por muitos anos, em mais de um ponto da nossa costa, dão
em resultado que, dos dias do ano, são serenos proximamente uma terça parte, a outra
nublados, e a terceira chuvoso”. Varnhagen pretendia que seu leitor concluísse existir uma
regulação climática que tornava o litoral brasileiro menos inóspito e que poderia mesmo ser
considerada “providencial” – ele não se contém e o atribui à graça divina. Quanto a outras
regiões do país, afirmava: “nos páramos dos sertões e nas campinas do Sul é o clima
temperadíssimo” e, se comparado ao clima “dos países cuja bondade de ares é proverbial”,
chegava a ser mesmo superior, por não sofrer os rigores do calor e do frio.
54
Ou seja, segundo Varnhagen, em todas as regiões do território, fosse o litoral, o
sertão ou as campinas do sul, apesar de se estar “na zona tórrida”, o clima era ameno.
Assim, ao contrário do que se poderia pensar, estabelecia o autor, o território brasileiro não
era fervido pelos raios solares e, por isso, era compatível com a vida humana. E, para
convencer seu leitor da veracidade de suas assertivas, referia-se a “experiências
científicas”, mas também amplificava, empregando o superlativo – o clima era
53
VARNHAGEN, 1978, p. 14. José Murilo de Carvalho afirma que o Visconde de Cairu, em uma obra
intitulada Estudos do bem comum, destaca a bondade das terras brasileiras, onde inexistiam flagelos naturais
como terremotos, tufões e secas. Cf. CARVALHO, 1998, p. 65.
54
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 15.
187
“temperadíssimo” – e comparava, destacando a melhor qualidade do clima brasileiro frente
a outros de regiões vizinhas.
55
Para emoldurar todo esse cenário físico, ele não se esqueceu de considerar o espaço
celeste e, às riquezas minerais e ao clima ameno, somava um firmamento que, segundo ele,
“ostenta-se no Brasil em toda a sua esplêndida magnificência”. Afirmava ainda que, se o
céu brasileiro fosse comparado ao do hemisfério norte, não haveria como negar ser ele
“mais brilhante”.
56
Era sob esse céu maravilhoso que vicejava, segundo Varnhagen, uma
também deslumbrante vegetação:
A vegetação é sucessiva: poucas árvores perdem as folhas; algumas delas carregam
de flores, quando ainda os seus ramos vergam com o peso dos frutos da safra
anterior; e destes últimos vão uns inchando, quando já outros estão de vez ou de
todo maduros. Nos terrenos de formação de gnaisse, em vigorosa decomposição
pela ação fortíssima da atmosfera e das chuvas torrenciais, há mais umidade, e a
vegetação é mais luxuriosa, sendo aí mais admiráveis as matas-virgens. No litoral
têm as plantas bastante analogia com as da costa da África fronteira: nos alagados
do mar pululam as rizofóreas, que chamamos mangues, as quais se multiplicam
pelos próprios ramos, que dos galhos se debruçam a buscar a terra. São árvores
como que destinadas pelo Criador para marcar os leitos aos rios dos climas
entretrópicos, quando as suas águas se vão mesclando com as salgadas do mar.
Seguem muitas euforbiáceas, malváceas e leguminosas. Abundam, porém, mais que
tudo, e que em país nenhum, as famílias das palmeiras e das orquídeas, plantas
aéreas de grandes e notáveis flores.
57
Da primeira para segunda versão do trecho citado, Varnhagen acrescentou duas
explicações – “que dos galhos se debruçam a buscar a terra” e “plantas aéreas de grandes e
notáveis flores” – e a frase iniciada por: “Nos terrenos (...)”, em que se refere às matas-
virgens de vegetação luxuriosa. Pode-se avaliar que tais modificações tornavam o trecho
ainda mais eficaz em termos da pretensão do autor: descrever a vegetação brasileira,
apresentando-a como possante e pujante: eternamente verdejante e em frutificação. A
imagem da fertilidade infindável é ainda amplificada pelo autor com o emprego de verbos
que indicavam um vigor profuso: plantas pululavam, multiplicavam-se e se faziam abundar.
55
Segundo José Murilo de Carvalho, Aristóteles, Plínio e Cícero haviam condenado a “tórrida zona” como
sendo inabitável. José Murilo informa também que na época da independência ocorreu um intenso debate
entre panfletistas brasileiros e lusos em torno do clima do Brasil. À época os portugueses repetiram
Aristóteles e afirmaram que, estando o Brasil na “zona tórrida”, possuía “clima ardente e pouco sadio”. Por
causa desse clima, de acordo com os portugueses, apenas os negros suportavam viver na região. Cf.
CARVALHO, 1998, p. 64. Sérgio Buarque de Holanda lembra que, no final do século XVIII e início do XIX,
o bispo Azeredo Coutinho opunha-se aos detratores dos climas quentes e recuperava, para isso, os encômios
do clima brasileiro feitos por cronistas coloniais. Cf. HOLANDA, 1959, p. 280.
56
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 15.
57
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol I, p. 15-16.
188
Até mesmo a única flor citada – a orquídea – seria “grande e notável” – tão grande e
notável quanto a prodigalidade da natureza brasileira.
58
No trecho em questão, Varnhagen encadeou nomes científicos – rizofóreas,
euforbiáceas, malváceas e leguminosas –, novamente utilizando o conhecimento científico
como um referendo para suas assertivas. A ciência voltava a ser utilizada para fazer
verossimilhante uma descrição grandiloqüente: do mesmo modo como a ciência portaria o
conhecimento verdadeiro, sua descrição daria a impressão de ser um fiel retrato da
totalidade da cobertura vegetal brasileira.
A seqüência do parágrafo é iniciada, nas duas versões do capítulo, com um “mas”, a
partir do qual Varnhagen apresentava uma contradição naquela vegetação. Segundo ele, as
plantas brasileiras eram dotadas de uma gigantesca fertilidade e, por isso, todas elas
precisavam da luz solar para que seus órgãos de reprodução amadurecessem, o que as
levava a travar, entre si, uma verdadeira batalha. Essa disputa, segundo o autor, faria com
que muitas árvores degenerassem e terminassem por se transformar em trepadeiras, pois
apenas dessa forma conseguiam alçar os cumes das matas-virgens. Assim, a imensa
fertilidade da vegetação levava à disputa, à degenerescência e mesmo à morte. Seria essa
degenerescência que explicaria, segundo Varnhagen, a existência de tamanha quantidade de
cipós na “vegetação desses países”. O trecho em questão é dotado de grande dramaticidade,
graças à imputação de atributos humanos e de vontade própria às plantas; elas seriam,
segundo ele, verdugos, ávidas, débeis, astutas, egoístas e até mesmo assassinas, umas das
outras, em sua ávida luta pela sobrevivência. Eis o trecho na primeira versão:
Mas o que torna mais original a vegetação destes paizes é a abundancia dos cipós
que caem verticaes dos ramos das arvores ou as unem umas ás outras, como se
fossem a enxárcia de seus troncos contra os tufões, ou finalmente se enroscam por
ellas; e ás vezes com tal fôrça que as afogam, ou com tal avidez que lhes chupam o
melhor de seu succo, e as assassinam.
59
58
Pode-se aqui lembrar que, em agosto de 1840, quando de seu primeiro retorno ao Brasil, Varnhagen
escreveu a seu amigo Cunha Rivara e declarava estar um tanto decepcionado com a arquitetura das casas do
Rio de Janeiro que, a seu ver, deveria ser “mais accomodada ao clima e às riquíssimas madeiras da América”.
Sobre a vegetação em geral declarava: “V. Sª tem lido descripções da vegetação; pois eu creio que ainda tudo
quanto está escripto é pouco”. Cf. Varnhagen in LESSA, p. 52-53. Varnhagen mostrava-se aqui realmente
extasiado diante da mata atlântica que pôde conhecer.
59
VARNHAGEN, 1854, p. 95. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
189
Na segunda versão, o autor repetiu o trecho, colocando um ponto e vírgula depois
da palavra “assassinam” e acrescentando a passagem seguinte, com a qual amplificava a
imagem de que nas matas-virgens se travava uma feroz luta pela sobrevivência:
(...) substituindo assim o antigo tronco, que apodrece e se consome com o tempo,
outro novo em espiral. Tal é a necessidade das plantas de subirem para buscar a luz
do sol, e à face dele apresentarem as flores ansiosas de ver amadurecidos os órgãos
da reprodução, que todas se fazem egoístas, e até assassinas e verdugos de suas
vizinhas mais débeis, ou menos astutas. Para vencerem, neste campo de batalha
contínuo em prol da própria existência, chegam a mudar de natureza, convertendo-
se até árvores em cipós; e vindo inclusivamente, algumas palmeiras a degenerar em
trepadeiras.
60
A imagem da pujança da natureza brasileira descrita por Varnhagen nos remete à
rica produção literária que, conforme nos ensina Sérgio Buarque de Holanda, vicejara entre
os europeus muito antes de iniciada a colonização da América. Uma produção literária na
qual se empregava um esquema formado por lugares-comuns: “verde prado que não cresta,
flores e fôlhas olentes, umbroso arvoredo, águas cristalinas, belos e doces frutos, aves
canoras”.
61
Ao estudar, por exemplo, a carta Bartolozzi, de 1502, escrita por Américo
Vespúcio, Sérgio Buarque afirma que nela se encontram “todos os lugares-comuns das
descrições medievais do deleitoso horto”.
62
60
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 16.
61
HOLANDA, 1959, p. 287, 289. Também Roland Barthes afirma que as descrições de topografias e de
cenários eram muito bem codificadas. Cf. BARTHES, 1975, p. 210. Laura de Mello e Souza trabalhou com
essas descrições e destacou a tendência dos cronistas coloniais para edenizar a natureza brasileira: terra de
clima ameno, de extrema fertilidade e de vegetação exuberante, que só seria explicável graças à presença
divina. Para a historiadora, essas descrições indicariam as “persistências do universo mental” ou de um
imaginário coletivo que, atravessando séculos, constituía a mentalidade do homem moderno colonizador. Cf.
MELLO e SOUZA, 1986, p. 29, 35.
62
HOLANDA, 1959, p. 316. Varnhagen foi um estudioso dos escritos de Américo Vespúcio. Capistrano de
Abreu lembra que Varnhagen editou e comentou as obras do navegante florentino. Cf. ABREU, 1931, p.
131.(a). Segundo Oliveira Lima, Américo Vespúcio foi a maior e mais antiga “affeição historica” de
Varnhagen, “cuja importância de navegador, seriedade de correspondente e fidelidade de narrador defendeu
com grande cópia de argumentos historicos e geographicos, citações de textos e comparações de roteiros”. Cf.
LIMA, 1903, p. 16. Os trabalhos de Varnhagen sobre Vespúcio teriam, afirmava Oliveira Lima, a pretensão
de defender o navegador. Uma pretensão que Varnhagen anunciara, já em 1869, quando publicou seu
primeiro trabalho sobre Vespúcio: “Vespucci, que chegado ao ocaso da vida começára emfim a viver
socegadamente, foi depois de morto alvo de ataques injustos e acrimoniosos. Sua memória tornou-se a
victima innocente da propria fama que de principio lhe fora dispensada. Não sigamos mais este miserável
systema que consiste em vilipendiar a honra dos pequenos para exalçar a gloria dos grandes e, esclarecendo a
historia das viagens de Vespucci, advoguemos uma questão a um tempo de justiça e de moralidade”. Cf.
Varnhagen (1869) apud LIMA, 1903, p. 16. Varnhagen publicou três trabalhos sobre as viagens de Américo
Vespúcio. Cf. LESSA, vol. 226, p. 98-102. Na segunda edição da HGB, Varnhagen defende a memória de
Vespúcio afirmando ser justo o nome de América dado ao continente. Cf. VARNHAGEN, 1978, vol. I, p. 91-
92.
190
Esses topoi podem ser reconhecidos na descrição varnhageniana da geologia, do
clima e da botânica: a terra comporta riquezas, o clima é ameno e a natureza é verdejante e
fertilíssima.
63
Contudo, Varnhagen os utiliza justapondo uma ressalva: por mais luxuriosa
que a vegetação brasileira fosse, ela tendia à degenerescência, ou pelo menos as palmeiras
que aqui abundavam, segundo ele, tendiam até “a degenerar em trepadeiras”. Pode-se
interpretar a afirmativa do autor como um apelo ao fantasioso – árvores que na luta pela
vida mudavam de espécie! Porém, talvez seja mais profícuo lembrar que na segunda
metade do XVIII, o conde de Buffon largamente argumentara sobre a degenerescência da
natureza americana – dos animais e do homem. Segundo Antonello Gerbi, Buffon defendia
a “tese da debilidade ou imaturidade das Américas” e referira-se ao clima americano, aí
incluído o brasileiro, como dotado de “estações úmidas e malsãs, que estimulam o
espessamento de uma vegetação sufocante”. Sob essa vegetação, segundo Gerbi, o
naturalista setecentista afirmara que o solo continuava sempre encharcado, o que provocaria
o apequenamento e mesmo o desaparecimento dos animais. Gerbi adverte que Buffon tinha
consciência de que “subvertia a opinião tradicional das maravilhas e portentos
americanos”.
64
Pode-se analisar a idéia de Varnhagen sobre a degenerescência das plantas
brasileiras como uma adaptação da tese de Buffon, cuja obra cita nos Breves comentários à
obra de Gabriel Soares de Souza.
65
Para Varnhagen, a prodigalidade da natureza brasileira
se transformava em um mal, pois tamanha era a sua pujança, que terminava por gerar sua
auto-destruição: na aferrada luta pela vida, as plantas se transformavam em “assassinas”
umas das outras e apenas as mais “astutas” conseguiam sobreviver. Outras, procurando
63
Varnhagen foi leitor desses cronistas coloniais e também o responsável pela descoberta e divulgação de
alguns deles. Nos Breves comentários que redigiu para a obra de Gabriel Soares, Varnhagen cita vários desses
cronistas: André de Thevet, Jean de Léry, Fernão Cardim, Claude d’Abbeville, Hans Staden, Gandavo, André
Antonil, além de naturalistas do XVIII e XIX, como Curvier, Lineu, Martius, Spix. Cf. VARNHAGEN, 1851.
Francisco Iglesias avaliava que Varnhagen conhecia o fatual da história brasileira porque lera fontes primárias
e as crônicas do período colonial. Cf. IGLÉSIAS, 2000, p. 75.
64
GERBI, 1996, p. 19, 22, 427. Antonello Gerbi cita, dentre outros, o seguinte trecho de Buffon: “Neste
estado de abandono, tudo se enlanguesce, tudo se corrompe, tudo sufoca: o ar e a terra, sobrecarregados de
vapores úmidos e nocivos, não conseguem se depurar nem aproveitar-se das influências do astro da vida; o sol
dardeja inultilmente seus mais vivos raios sobre a massa fria; esta não tem condições de responder a seu
ardor; produzirá apenas seres úmidos, plantas, répteis, insetos, e somente poderá nutrir homens frios e animais
débeis”. Cf. Buffon in GERBI, 1996, p. 22.
65
Varnhagen cita a História Natural de Buffon. Cf. VARNHAGEN, 1851, p. 396, 399. Também na quarta
seção da segunda edição da HGB, Varnhagen refere-se a Buffon como um “grande gênio” que
“eloqüentemente” defendia suas teses. Cf. VARNHAGEN, 1978, vol. I, p. 53.
191
meios para sobreviver, terminavam, segundo Varnhagen, por degenerar. Nesse aspecto, ele
ressoava as teses de Buffon: as plantas que estariam passando de um estágio superior –
eram palmeiras – para uma condição qualitativamente inferior – que se transformavam em
trepadeiras. Isso significava, na teoria de Buffon, que elas estavam em um processo de
deterioração.
Essa natureza profusa terminava por ser, segundo Varnhagen, dificultosa para a
presença do homem, ou pelo menos, exigiria dele um trabalho excessivo, até que fosse
controlada. Não por acaso, ele acrescentou, na segunda edição do texto, o seguinte
parágrafo:
Apesar de tanta vida e variedade das matas-virgens, apresentam elas um aspecto
sombrio, ante o qual o homem se contrista, sentindo que o coração se lhe aperta,
como no meio dos mares, ante a imensidade do oceano. Tais matas, onde apenas
penetra o sol, parecem oferecer mais natural guarida aos tigres e aos animais
trepadores do que ao homem; o qual só chega a habitá-las satisfatoriamente depois
de abrir nelas extensas clareiras, onde possa cultivar os frutos alimentícios ou
preparar prados e pastos, que dêem sustento aos animais companheiros inseparáveis
da atual civilização. Ainda assim, o braço do homem, com auxílio do machado, mal
pode vencer os obstáculos que de contínuo encontra na energia selvagem da
vegetação.
66
Havia, portanto, na imagem grandiloqüente da natureza brasileira, uma “energia
selvagem”, possante e vigorosa, metaforicamente comparável à grandiosidade do oceano.
Era esse excesso de vitalidade que, numa aparente contradição, tornava essas regiões
“sombrias” e impróprias para a vida humana. Contudo, se há uma visão detratora da
natureza, Varnhagen apressa-se para inserir no cenário o elemento capaz de tudo corrigir: o
“machado” humano seria capaz de abrir “clareiras” na mata-virgem e de transformá-la de
covil de feras em moradia para a humanidade. No cenário natural, Varnhagen introduzia a
humanidade – que para ele reduzia-se aos detentores do “machado”, não é demais destacar.
E era somente essa presença humana que, conforme insinuava, garantiria efetivamente a
conquista do espaço natural e seu resgate, do “sombrio”, dominado por feras, para a
“clareira”, onde a luz permitiria aos frutos germinar. Apenas a ação do homem branco seria
capaz de controlar e de bem direcionar a “energia selvagem”, permitindo-lhe que, com todo
seu vigor, viesse a florescer – estancando a degenerescência a que ela estava fadada a
sofrer. A humanidade tinha, na imagem de Varnhagen, uma missão salvacionista de
66
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 16.
192
desbravar, ou seja, de amansar e submeter o que até então era bravo ou indomado. O
trabalho humano impediria até mesmo que essa natureza viesse a desaparecer! Nesse
sentido, Varnhagen afastava-se da tese bufoniana da degenerescência incontrolável da
natureza brasileira.
Contudo, era preciso que o leitor não se iludisse, pois a vegetação selvagem tinha,
segundo Varnhagen, uma vitalidade tão grande que era capaz de ressurgir como uma fênix,
mesmo depois de arrancada e queimada. Isso não significava, apressava-se ele em destacar,
que o homem não fosse capaz de vencer a luta e fazer “secar e apodrecer” as “raízes das
árvores e arbustos”, depois de muito “transitar” a terra:
É tanta a força vegetativa nos distritos quentes que, ao derrubar-se e queimar-se
qualquer mato-virgem, se o deixais em abandono, dentro em poucos anos aí vereis
já uma nova mata intransitável; e não produzida, como era de crer, pelos rebentões
das antigas raízes mas, sim, resultante de espécies novas, cujos germes ou sementes
não se encontram nas extremas da anterior derrubada, e se ignora donde vieram. (...)
a vegetação das árvores e arbustos só pára de ser espontânea, quando a terra se
transita muito, ou se cultiva com grama ou capim, até que as antigas raízes tenham
tempo de secarem e apodrecerem.
67
Pode-se pensar que Varnhagen oscilava entre uma visão edênica e outra detratora da
vegetação brasileira. Há nele o desejo de louvar a natureza brasileira e de difundir a
imagem de um clima aprazível à vida humana, nesse sentido se opondo a Buffon. Mas,
sobretudo, movia-o o interesse de incentivar a conquista do espaço natural brasileiro por
seus contemporâneos. Muito provavelmente por isso, ele optara por descrever a mata-
virgem como o palco de uma encarniçada luta pela sobrevivência; uma luta travada devido
ao excesso e ao descontrole da fertilidade.
Na descrição da flora brasileira, Varnhagen pretendera fazer ver a seu leitor a
imagem de uma potência natural que se encontrava inexplorada, desgovernada e sob o
domínio das feras – entre as quais estariam, deve-se destacar, os indígenas brasileiros. Essa
energia selvagem necessitava rapidamente de uma correta e eficaz intervenção humana, que
faria sua remissão, domando-a, controlando-a e redirecionando-a, com toda sua profusão,
em proveito dos que se dispusessem a enfrentar “os obstáculos”. Valeria a pena, para os
homens, lançarem-se nesse encarniçado campo de batalha? Essa era a questão retórica que
67
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 16.
193
Varnhagen deixava subentendida. Os parágrafos seguintes seriam encarregados de
respondê-la.
Varnhagen passava, então, a expor a produção da terra. Ao ler o parágrafo que
praticamente encerra a descrição da flora brasileira, é difícil nele não escutar a ressonância
da frase de Pero Vaz de Caminha: “Esta terra, Senhor (...) em tal maneira é graciosa que,
querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo (...)”.
68
Para alcançar esse efeito pretendido,
Varnhagen empregou estratégias discursivas de amplificação do objeto, tais como:
enumeração dos produtos dando idéia de prodigalidade, adjetivação superlativa e
comparação favorável à produção brasileira. Da primeira para a segunda edição do
parágrafo, Varnhagen:
1) conservou sua introdução, destacando e chamando a atenção para a riqueza das “plantas
exóticas à Europa” existentes no Brasil. Mudou, porém, a construção frasal: na primeira
versão, Varnhagen encadeava, em uma única frase, a apresentação das madeiras e de outros
produtos vegetais nativos; na segunda, o autor separou os períodos com um ponto final ao
término da enumeração das madeiras, antes de introduzir os outros “produtos indígenas”.
Essa alteração desfazia a miscelânea, pois separava espécies de plantas e de produtos
distintos, além de dar ao leitor a impressão de uma maior quantidade e variedade de
produtos. Em sua versão final, o trecho ficou assim:
Neste clima se produziu e produzem todas essas plantas exóticas à Europa que, por
sua utilidade, se fizeram conhecidas no comércio, começando pelo pau-brasil, e as
madeiras de construção e marcenaria, como o jacarandá, o vinhático e o piquiá de
madeira amarela, os cedros e maçarandubas vermelhas, e outras não menos
estimadas. São igualmente indígenas as plantas do algodão, da canafíscula, da
salsaparilha, da baunilha, do urucu, das castanhas e cravo chamados do Maranhão,
das sapucaias, da goma elástica, do cacau, do tabaco, e bem assim as do cará, da
mandioca e do aipi.
69
2) ampliou o emprego da adjetivação para se referir às frutas nativas. Na primeira versão, o
trecho era: “Ahi se dão alguns fructos regalados, taes como o ananaz, rei delles, o caju,
fructa duas vezes, o saputy, com razão denominado pera dos trópicos, os bellíssimos
maracujás e as coradas mangabas (...)”.
70
Na segunda versão do capítulo, a esse trecho o
68
PEREIRA, 1999, p.
69
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 17.
70
VARNHAGEN, 1854, p. 95. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...). Em seu
primeiro retorno ao Brasil, em 1840, Varnhagen escreveu várias cartas a seu amigo Cunha Rivara. Em uma
194
autor acrescentou, após a palavra “mangabas”, a frase: “e as rescendentes anonas de várias
espécies, conhecidas com os nomes de araticuns, atas, frutas-do-conde”.
71
Todo esse
espetáculo de prazer era reiterado e ampliado adiante, nas duas versões do parágrafo,
quando o autor se referia às frutas das “bandas do sul” onde, segundo ele, abundavam: “as
agridulces pitangas, os deliciosos cambucás, as refrigerantes ubaias, os aromáticos araçás e
guabirobas, as saborosas jabuticabas (...)”;
72
3) conservou a indicação de que as plantas “introduzidas” no território brasileiro produziam
melhor aqui. Esse seria o caso: “da cana, do gengibre, do anil, da canela e do cravo; e (...)
do café da Arábia, e (...) do chá da China (...)”. Entretanto, mais que prosperar, Varnhagen
afirmava, com ares de quem tudo experimentara e que desafiava quem duvidasse da
informação, que muitas dessas plantas exógenas tornavam-se superiores quando plantadas
no Brasil: as mangas brasileiras seriam “mais saborosas que as do Oriente” e a laranja
européia tornara-se “tão superior a toda que se conhece”.
73
Mas, sobretudo, Varnhagen sugeria que toda aquela prodigalidade por ele
apresentada correspondia apenas a uma parte da riqueza vegetal possível de ser extraída ou
produzida. Em uma sucessão de afirmativas, o autor dava ao leitor a impressão de uma
dadivosidade ilimitada em seu potencial explorável: existiriam “outras [madeiras] não
menos estimadas”, além das que apresentara; a horticultura e a química poderiam
aproveitar, fazer melhores e vulgarizar uma “infinidade de outros pomos”. Na segunda
versão do trecho, Varnhagen apostava que a introdução de novos produtos alienígenas
sempre resultaria em sucesso produtivo: “sem dúvida sucederá [o mesmo sucesso] com os
tão celebrados mangustães de Java e duriões de Amboíno e Malaca que, esperamos, não
tardarão a ser importados da Ásia, e devidamente cultivados”.
74
Parece razoável afirmar que, com sua veemência, Varnhagen procurava dar
consistência à imagem da terra brasileira dotada de uma prodigalidade infinita,
aproximando-a de um lugar idílico, desde que trabalhada pelas mãos humanas, é preciso
delas, datada de agosto, afirmava que: “Frutos tenho saboreado muitos, incluindo os bellos anaanazes; e todos
me são extremamente agradáveis, porque me augmentam o número de sensações experimentadas. Cf.
Varnhagen in LESSA, 1961, p. 52.
71
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 17.
72
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 17.
73
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 17.
74
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 17.
195
lembrar. Não há em sua descrição referência a qualquer tipo de empecilho e de dificuldade
à produção agrícola, como pragas, secas e enchentes. O que não significa que ele as
ignorasse. Pelo contrário, Varnhagen chegou mesmo a sugerir a elaboração de um código
penal que punisse aqueles que matassem animais como os tamanduás, que, segundo ele,
eram “exterminadores das formigas e cupins, que, nem sabemos como não se tenham em
chacaras bem tratados da mesma fórma que nellas temos cães de fila para as guardar (...)”.
75
Ele sabia o que esses insetos significavam para a lavoura. E não cessava aí o contato de
Varnhagen com os problemas da agricultura brasileira. Ele escreveu folhetos sobre as
culturas do fumo, da cana, do café, da erva-mate, da vinha e da mandioca, nos quais
discutiu problemas da produção desses gêneros no Brasil e apresentou sugestões para o seu
aperfeiçoamento.
76
Na descrição da fauna brasileira feita por Varnhagen, dois pontos merecem ser
realçados. Um primeiro refere-se ao fato de ele informar seu leitor que “os quadrúpedes
longe estão de poderem ser comparados em tamanho aos elefantes, hipopótamos e
rinocerontes do continente”. Lembrava que, contudo, no Brasil existia a anta, que era um
“proboscídeo como o elefante, mas menor que a zebra”. Na segunda edição acrescentou a
esse parágrafo sobre os quadrúpedes, a seguinte frase: “No continente setentrional
[americano] distinguia-se, entretanto, o bisonte, ou touro peludo e barbado”.
77
Ora,
Varnhagen fizera questão, nessa segunda edição do capítulo, de eliminar informações que
não diziam respeito diretamente ao cenário brasileiro. Entretanto, nesse parágrafo
acrescentava uma frase na qual se referia a um quadrúpede norte-americano. Pode-se
pensar em um deslize, mas muito provavelmente trata-se de uma decisão premeditada:
Varnhagen novamente dialogava com as teses da degenerescência do mundo natural
americano, elaboradas pelo conde de Buffon. Afinal, segundo esse naturalista, os grandes
75
VARNHAGEN, 1860, p. 14. Capistrano de Abreu, irônico, não se contém e satiriza a proposta de
Varnhagen: “Uma vez, até, faz concorrência ao Formicida Capanema, lembrando a criação de tamanduás para
dar cabo das formigas”. Cf. ABREU, 1931, p. 214. (b).
76
Cf. VARNHAGEN, 1863. (a); (b); (c); VARNHAGEN, 1877. (a); (b). Clado Lessa afirma que, quando
Varnhagen foi nomeado para o cargo de ministro plenipotenciário na Venezuela, ele recebeu do Ministro da
Agricultura a missão de estudar os métodos de produção do tabaco, cana, açúcar e café empregados nas
repúblicas latinas, para poder aconselhar melhorias na produção desses gêneros no Brasil. Segundo Lessa,
dessa missão nasceram vários dos textos escritos por Varnhagen sobre modificações e aperfeiçoamentos a
serem introduzidos na agricultura brasileira. Cf. LESSA, 1861, p. 261. Estes trabalhos de Varnhagen ainda
aguardam um estudo específico.
77
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 18.
196
animais tendiam a se enfraquecer a se apequenar nas terras encharcadas do hemisfério
austral.
78
Ao citar o bisonte, mesmo não se tratando de um animal brasileiro, Varnhagen
contrapunha-se a essas teses, que poderiam atenuar a imagem de prodigalidade que
construíra do território.
O segundo ponto a ser destacado diz respeito ao desmembramento do parágrafo
onde tratara das aves brasileiras. Na primeira versão, Varnhagen redigira um único
parágrafo dedicado a elas:
Entre as aves são mais formidaveis os jaburus, chamados pelos naturalistas tântalos;
e as emas ou abestruzes d’America. O viveiro ou aviario (fauna ornythologica lhe
chama a sciencia) brazilico apresenta originalidade, e passa pelo mais rico da terra
em superfície igual. Crê-se que de umas seis mil especies de aves que povoam este
nosso planeta, a América do sul fornece a terça parte; das quaes não cedem muitas
em belleza de plumagem ás mais vistosas d’Africa e do Oriente. Na melodia do
canto destinguem-se principalmente os sabiás e gronhatás, que podemos considerar
os melros e os canários do Brazil.
79
Na segunda versão, ele retirou a primeira frase desse parágrafo, o que significou
iniciá-lo com as frases que salientavam a grandiosidade do aviário brasileiro frente às aves
do restante do mundo. Dedicou, então, quatro novos parágrafos a louvar o esplendor, a
sonoridade e a grandeza das aves brasílicas. Iniciava enumerando e adjetivando as aves
segundo sua plumagem:
(...) as grandes araras e canindés [de plumagem vistosos], os rostrados tucanos e
tucanuçus de papo amarelo (...), os vermelhos guarás, as róseas colhereiras, os
loquazes papagaios, os verdes periquitos e, (...), os guainumbis ou chupa-flores, de
plumas acatassoladas (...) as brancas arapongas (...)”.
80
Na seqüência, relacionava inúmeras aves canoras, deixando subentendido, ao
compará-las às européias, serem elas tão melodiosas quanto as do antigo continente. Não
deixava inclusive de comparar os curiós aos rouxinóis. A comparação é importante, pois,
como explica Sérgio Buarque, o rouxinol compunha “o repertório de alegorias e sagrados
símbolos” e seriam eles os guias ao Paraíso.
81
Destacando que nesse pássaro não cessariam
os “sons harmoniosos” audíveis no Brasil, continuava a enumeração:
Por sua melodia distinguem-se, nas províncias do Norte, os curiós, tão estimados
como os rouxinóis; seguindo-se-lhes os caboclinhos, os bicudos, as patativas, os
78
Cf. Buffon in GERBI, 1996.
79
VARNHAGEN, 1854, p. 95-96. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
80
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 18.
81
HOLANDA, 1959, p. 192.
197
grunhatás (...) os vivios, e finalmente os canários, semelhantes aos pintassilgos da
Europa. Os sabiás de várias espécies, comuns a todo o Brasil, fazem ouvir longe
sons harmoniosos (...).
82
Por fim, listava as aves “pelo tamanho”: “fazem-se notáveis os agigantados tuiuiús,
os arteiros juburus, (...) as corredoras emas, que são as avestruzes deste continente”.
83
Havia em Varnhagen a clara intenção de descrever uma natureza rica e potente e,
simultaneamente, prazerosa e bela. Não pode ser casual que, ao descrever a flora brasileira,
mesmo fazendo referência à produção econômica, tenha-se esmerado em ordenar, com uma
adjetivação superlativa, as frutas brasileiras. O mesmo procedimento foi empregado nos
parágrafos sobre os pássaros, especialmente escritos para a segunda edição da HGB. A
essas maravilhas para os sentidos – o paladar, a visão e a audição – se somavam a
temperança do clima e a riqueza do subsolo. Mas toda essa maravilha, na perspectiva de
Varnhagen, precisava de ser conquistada, resgatada da selvageria e cultivada em benefício
da humanidade.
6.4. O leitor posto em cena
Segundo Quintiliano, a peroração ou “couronnement” de um discurso podia ser
colocado “sur les faits” ou “s’adresse aux passions”. Ponderava que “l’emploi des passions
est nécessaire, si la vérité, la justice, l’utilité générale ne peuvent pas triompher
autrement”
84
e lembrava que
(...) dans la péroraison, nous devons considérer les sentiments avec lesquels le juge
va mettre l’affaire en délibéré, et nous n’avons plus rien à dire après, ni
d’arguments en réserve. (...) l’orateur dira ce qui produirait le plus d’impression sur
lui-même, s’il était juge.
85
Para encerrar seu texto, Varnhagen recuperou a imagem da prodigalidade da
natureza brasileira que seria, contudo, perpassada por contrastes. O autor recuperava essa
imagem afirmando a existência, nas terras brasílicas, de remédios e de poderosos venenos e
preparava, desse modo, a peroração, que era iniciada na seqüência imediata: “Para ser mais
82
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
83
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
84
QUINTILIEN, 1954, vol. II, livro VI, p. 287, 289.
85
QUINTILIEN, 1954, vol. II, livro VI, p. 291.
198
original, oferece o país vários contrastes originais. A par de plantas de muita virtude
medicinal, à frente das quais citaremos a copaíba, a ipecacuanha, o mate e o guaraná,
produz, também, venenos atrocíssimos”.
86
O emprego do superlativo não deve ser
menosprezado.
Na primeira versão desse parágrafo, Varnhagen fazia uma descrição ordenadora do
mundo animal, dividindo-o em bons e maus: bons seriam aqueles que se prestavam aos
propósitos humanos, enquanto maus seriam os que colocavam empecilhos à realização
daqueles fins:
Ao lado da inoffensiva anta, das amphibias pacas, das domésticas cutias, dos
corredores veados campeiros e do mato, e mais caça grossa, se póde apresentar ao
caçador um faminto jaguar, ou uma medonha suçuarana, que poderíamos talvez
chamar de leoa d’America.
87
Na segunda versão, o autor manteve essa ordenação, mas trocou o gênero literário
empregado ao transformar sua descrição em uma narrativa:
Ao perseguirdes a inofensiva anta, a anfíbia paca, a meiga cutia, o corredor veado
campeiro ou do mato, estais em risco de encontrar um faminto jaguar, ou uma
medonha canguçu que poderíamos talvez chamar a hiena do Brasil.
88
Varnhagen transformava seu leitor em ator, inseria-o no cenário e praticamente
obrigava-o a vivenciar aquelas situações de perigo permanente que ocorreriam na natureza
brasileira. Ou seja, da descrição de uma caçada, o autor passava à simulação de uma caça,
enquanto o leitor era transformado em um caçador. Destaque-se também a troca da
comparação da suçuarana com a leoa, pela da canguçu com a hiena. A onça-pintada, ou
canguçu, alcança um peso de até duas vezes o da suçuarana, ou onça-parda, e é o maior
felino do Brasil. Novamente pode-se destacar que Varnhagen não faz nenhuma anotação ao
texto, mas provavelmente a troca do animal brasileiro se deve à certeza do autor de estar
comparando, na segunda versão da frase, de forma mais vantajosa para os animais
brasileiros, mesmo porque trocara a leoa pela hiena, animal de porte menor.
89
No caso, a
86
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
87
VARNHAGEN, 1854, p. 95-96. (Secção VII – Descrição do Brazil, com sua extensão actual...)
88
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
89
A suçuarana é também chamada de onça-pintada e a canguçu é a onça-pintada, segundo informa o
dicionário de Houaiss. Segundo o zoólogo Leandro Silveira, a onça-pintada (Pantera onça) e a onça-parda
(puma-concolor) pertencem a espécies distintas e são os maiores felinos existentes no Brasil. Ainda de acordo
com o biólogo, a onça-pintada é o único representante do gênero Panthera no continente americano e chega a
pesar 130 Kg. A onça-parda tem pelagem uniforme, sem pintas, chegando os machos da espécie a pesar 65
Kg e as fêmeas, 45 kg. Cf. http://www.procarnivoros.org.br/pdfs/Doutorado_Leandro.pdf
199
vantagem para o Brasil era aparentemente desfavorável: o país possuía animais tão
perigosos e predadores como a África ou a Ásia.
A troca de gênero literário fora empregada pelo autor, na primeira versão da seção,
na frase que imediatamente seguia aquela acima citada. Essa segunda frase foi conservada
na nova versão do texto e, em sua seqüência, o autor ainda acrescentou uma última frase –
que se inicia logo após a palavra “Criador” e o ponto-e-vírgula:
Ao apontardes à ágil sariema que avulta no campo, ou ao gordo macuco que
rastolha no mato, ou ao astuto jacu, escondido na ramagem da ipeúva, podereis ver-
vos surpreendido pela picada peçonhenta do insidioso réptil que, num instante,
decidirá do fio da vida que havíeis recebido do Criador; e achando-vos á beira de
um rio, não estais livre de que vos esteja tocaiando algum traidor jacaré ou
medonho sucuriú...
90
A mudança, além de harmonizar o parágrafo em termos do gênero literário
empregado, significou dotá-lo de uma maior dramaticidade. Ou seja, o leitor, transformado
em ator, era conduzido pelo autor, na versão final do parágrafo, a vivenciar várias e
distintas situações de perigo em meio a uma não citada, porém imaginável, mata-virgem.
Tratava-se também de um perigo que parecia ser cada vez maior e mais iminente, graças ao
emprego de dois recursos discursivos. Primeiramente, pela adjetivação sucessiva dos
animais peçonhentos ou carnívoros: faminto jaguar, medonha canguçu, picada peçonhenta
do insidioso réptil, traidor jacaré, medonho sucuriú. Em segundo lugar, pela concatenação
daquelas situações, se passava à certeza de quão “atrocíssimos” eram os venenos existentes
“no país”. Tão poderosos que seriam mesmo capazes de pôr fim à vida do leitor-ator.
Mas Varnhagen não abandonou seu leitor nesse mundo de “venenos atrocíssimos”.
Pelo contrário, recuperou a palavra e o recolocou em seu posto de origem; o autor voltava
ao gênero descritivo, mas mantinha o forte apelo afetivo:
Mas ânimo! que tudo doma a indústria humana! Cumpre à civilização aproveitar e
ainda aperfeiçoar o bom, e prevenir ou destruir o mau. Tempos houve em que
nalgumas das terras, hoje cultivadas ou povoadas de cidades da Europa o feroz urso
se fazia temer... E o lobo caniceiro surpreende e devora ainda a ovelha descuidada
pelo rafeiro do pastor; e a peçonhenta víbora, e os lacraus e as tarântulas, e as
nojentas osgas e salamandras, ainda se não extirparam dos mais belos jardins das
penínsulas pelas águas do Mediterrâneo...
91
90
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
91
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
200
Para criar o apelo afetivo, Varnhagen recorria ao uso do ponto de interjeição:
conclamava seu leitor a ter coragem e vontade para enfrentar todo o “atrocíssimo veneno”
e, simultaneamente, dava-lhe certeza de que a batalha estava de antemão vencida, pois
“tudo doma a indústria humana”. Ou seja, o trabalho do homem era capaz de resgatar e de
domesticar em proveito da humanidade o que lhe fosse aprazível e também de destruir
aquilo que a ameaçava. O homem era capaz, enfim, de domesticar e de trazer para o seio da
civilização e em seu benefício o que de selvagem, mas aperfeiçoável, existia no mundo
natural.
92
E para que não restassem dúvidas sobre quem era “o homem” capaz de
desempenhar essa empresa, Varnhagen lembrava que a Europa vivera sob a “ferocidade” e
o jugo de “peçonhentos” animais e que lá a batalha contra “os maus” ainda não estava
totalmente terminada, apesar de já vitoriosa. A “civilização” era para ele, portanto,
sinônimo de civilização européia.
O autor concluía então sua seção de descrição do Brasil, lembrando que “o país (...)
achava-se”, em outros tempos, dominado pelas “gentes” que seu leitor viria, na seqüência, a
“conhecer”. Relembrava, então, as riquezas do subsolo, o clima temperado, a beleza do
cenário e praticamente lamentava que tudo então ainda estivesse, antes da chegada dos
europeus, “no estado selvagem”:
Para em tudo o país ser de contrastes no estado selvagem, achava-se ele, com toda a
riqueza do seu solo e a magnificência de suas cenas naturais e a bondade dos seus
92
Segundo Manuela C. da Cunha, o critério adotado, na primeira metade do século XIX, para distinguir de
modo preciso os antropóides dos homens seria filosófico. Esse critério seria aquele que procurava estabelecer
se os humanóides teriam ou não a possibilidade de aperfeiçoarem-se. Conceito-chave no pensamento de
Rousseau, desenvolvido no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, a
perfectibilidade seria a capacidade de o homem, diante de adversidades e de obstáculos, fazer uso, para
sobreviver, de suas potencialidades e aperfeiçoar-se. No estado natural, o homem viveria ao acaso das puras
sensações. À medida que o homem teve de enfrentar, nos mais diversos climas, dificuldades cada vez
crescentes para sobreviver, precisou fazer uso dos dons dados a ele pela natureza. No pensamento
rousseauniano, a humanidade era una, pois todos os homens, indistintamente, possuiriam a possibilidade de,
através da atividade, desenvolver sua razão. Rousseau, entretanto, afirmava que o aperfeiçoamento da razão
apenas trouxera infelicidade aos homens, gerando um distanciamento cada vez maior entre ser e parecer. A
bondade estaria no estado natural e o homem selvagem, aquele que não fez uso de suas potencialidades para
se superar, seria o protótipo da felicidade humana. Cf. CUNHA, 1992. p. 5.
Contrariamente, o pensamento filosófico do século XIX apropriou-se do conceito de perfectibilidade e
interpretou-o, segundo Lilia Schwarcz, como sendo a possibilidade para “(...) o acesso obrigatório ao estado
de civilização e à virtude (...)”. Se, para Rousseau, a potencialidade de perfectibilidade prenunciava os vícios
latentes da sociedade e, portanto, um progresso às avessas, para os pensadores da primeira metade do XIX, ela
foi lida como sendo a possibilidade da superação do estado de selvageria. Logicamente, a civilização a ser
alcançada era a européia e a discussão girava em torno se poderiam ou não os selvagens alçarem-se ao
patamar europeu de comportamento, de moralidade, de organização política, religiosa e técnica. Cf.
SCHWARCZ, 1995. p. 44.
201
portos, tão prestantes ao comércio, possuído pelas gentes que passamos a
conhecer.
93
Varnhagen recuperava, assim, a imagem idílica do território, pois pretendia
convencer seu leitor de que a terra descrita possuía uma riqueza incomensurável.
Interessava a ele que esse cenário fosse visto e compreendido como um grandioso palco
capaz de suportar o glorioso processo civilizatório levado a cabo pelo homem branco,
conquistador e colonizador. Fora esse homem, na perspectiva varnhageniana, que disputara
com a pujante flora nativa as terras a cultivar e que também enfrentara e derrotara os
selvagens que anteriormente as ocupavam. A seu ver, apenas a ação civilizatória seria
capaz de efetivamente desbravar aquele território e realizar a riqueza nele contida. O
paraíso precisava ser conquistado.
Certamente, Capistrano de Abreu tinha razão ao avaliar que a história era para
Varnhagen “um meio de chamar a emigração”.
94
Pode-se também afirmar que Varnhagen seguiu os conselhos de d’Avezac abrindo a
HGB com o capítulo descritivo, inclusive declarando, no Prólogo da segunda edição, que a
primitiva localização do capítulo na obra implicava uma “grande interrupção” da narrativa
como um todo. Varnhagen ainda acompanhou as recomendações de seu crítico no que se
refere a uma maior preocupação com a descrição geológica do território. Essa parte do
texto foi praticamente reescrita e, para tal, o autor recorreu ao auxílio da ciência, dando a
seu trecho uma impressão de maior precisão. Nisso tudo, seguira as “idéias luminosas de
d’Avezac”.
Mas certamente Varnhagen fez muito mais ao deslocar a Descrição para início da
HGB. Ele reescreveu o capítulo cuidando para deixá-lo livre de passagens que colocassem
em suspeição a imagem da terra brasileira e, sobretudo, esmerando-se para que essa
imagem se tornasse mais veemente e convincente. Para isso, lançou mão de recursos
retóricos: eliminou passagens que dispersavam a atenção do leitor ou aperfeiçoou aquelas
93
VARNHAGEN, 1978 (1877), vol. I, p. 19.
94
ABREU, 1931, p. 138. (a). José Honório Rodrigues destaca o seguinte trecho da primeira edição da HGB,
na seção da Conjuração Mineira, que respalda a opinião de Capistrano.: “Esta circunstância [de ter sido
Tomás Antônio Gonzaga lembrado para chefe da Conjuração Mineira, apesar de nascido na Europa] nos
revela que então se não associavam ao espírito de independência as idéias de exclusivismo contra os nascidos
fora do Brasil, que depois se desenvolveram com excesso tal, que se o sistema continuasse, pouco poderíamos
contar com a colonização de gente européia ilustrada que nos interessa promover”. Cf. Varnhagen apud.
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 192.
202
que tinham sentido dúbio; ampliou o emprego da adjetivação dos elementos daquela
imagem grandiloqüente. Em todos os casos visava tornar seu texto mais eficaz.
Ao afirmar, no desenvolvimento da descrição, ser a terra brasileira perpassada por
contrastes, Varnhagen insinuava o que viria a confirmar na peroração. Tratava-se agora não
mais de convencer o leitor da existência de uma “potência natural” selvagem a ser domada
e bem direcionada, mas sobretudo de mover seu leitor. Ao autor competia retirar esse leitor
de sua situação de apatia e de insuflá-lo a assumir a tarefa de conquista e de colonização do
território. Uma tarefa que, na perspectiva varnhageniana, iniciada pelos ancestrais desse
leitor – que logicamente deveria ser branco e europeizado –, deveria ser prosseguida. Aos
vivos cabia a missão de dominar toda aquela natureza grandiosa, ainda inexplorada, para
dela resgatar o que fosse redimível ou extirpar o que punha em risco a existência da
humanidade e, quiçá, a da própria nacionalidade brasileira.
Nesse momento, o capítulo adquiria coerência com as idéias defendidas no Prologo
especialmente preparado para essa segunda edição da obra. Nele, o autor afirmava que os
colonizadores haviam travado uma “hórrida luta” contra inúmeros e seríssimos desafios que
lhes apresentara a empreitada de conquista e de ocupação do território. Para descrever essa
“luta”, Varnhagen lançava mão da amplificação: adicionava sucessivamente os desafios –
do que resultava a sensação da existência de uma dificuldade que se avolumava cada vez
mais:
O clima geralmente tropical na beiramar; o sol ahi abrazador para os filhos das
zonas temperadas; grande número de caxoeiras nos rios, de navegação semeada de
escolhos e de perigos; serras asperisimas, invias e cobertas de espessas e
impenetráveis matas; nestas animaes venenosos e cipós e espinhos que
embaraçavam o transito, e com uma vegetação successiva, e tão vigorosa que ainda
depois de derribado o matto virgem, depois de queimado ‘encoivarado’, semeado, e
recolhida a safra, rebentava de novo com vigor, e se não virgem, de tal natureza que
se necessitava repetir igual esforço para obrigar de novo a mesma terra a produzir,
em vez de arvores seculares, ás vezes de fructos venenosos, os alimentos
necessarios á vida do homem...
95
Ora, contra essa natureza que lhes era tão completamente hostil, muitos dos
colonizadores da “zona temperada” haviam, garantia Varnhagen, fraquejado e optado por
retornar ao “patrio lar”. Contudo, aos que souberam enfrentar e suplantar os desafios,
estavam reservadas as glórias da eternidade. Afinal era graças a sua coragem que a pátria
95
VARNHAGEN, 1877, p. VIII. (Prólogo).
203
brasileira viera a se constituir: “á custa das lágrima do exilio, nos legaram elles a nós, seus
herdeiros, as casas fabricadas, as fazendas criadas, as villas e cidades fundadas – a vida, a
religião, o commercio, a riqueza, a civilização....a pátria enfim (...)”.
96
Isso escrevia Varnhagen no Prologo da segunda edição da HGB e certamente o
fazia para insinuar no espírito de seu leitor a certeza de que aquela obra fora escrita para
louvar e eternizar a memória daqueles que não fraquejaram e não desistiram frente ao
desafios da conquista e colonização do território. No capítulo que agora abria a obra
propriamente, o autor voltava e recuperava a imagem de uma luta contra uma natureza
possante, porém indômita. Se a HGB tinha como propósito enaltecer os feitos dos
edificadores da Nação, que o leitor não tivesse dúvidas e que bravamente se apresentasse
no campo de batalha, para nele desempenhar papéis que lhes garantissem a entrada no rol
daqueles já eternizados nas páginas da história pátria: “Mas ânimo! que tudo doma a
indústriahumana!”
96
VARNHAGEN, 1877, p. IX. (Prólogo).
Capítulo 7
Varnhagen, biógrafo
205
Em 1839, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
1
iniciou a publicação de sua
hoje quase bicentenária Revista. Umas de suas seções fixas foi nomeada Biographia de
Brasileiros distinctos por letras, armas, virtudes, etc... Como indicava o título, era
destinada à publicação de biografias de brasileiros considerados ilustres. Segundo Alice
Canabrava, a seção das biografias fora criada dentro de uma feição nativista e pode ser
compreendida como fruto e extensão do labor nacionalista daquele momento. À exaltação
da natureza brasileira, acrescentou-se “o louvor aos filhos, varões preclaros e distintos pelo
saber e brilhantes qualidades, os quais a História cumpria perpetuar como modêlos nos
caminhos da honra e da glória nacional”.
2
Para a historiadora, com tal seção, constituía-se
uma verdadeira galeria de vidas exemplares que visava a inspirar e influenciar o
comportamento dos jovens no presente. O gênero biográfico era, então, muito cultivado
entre os historiadores do Instituto.
É legítimo afirmar que a redação e a publicação de biografias na Revista do IHGB
indicam a sobrevivência de uma mentalidade louvaminheira entre seus membros, que
entendiam ser importante a composição e a leitura de biografias pelos exemplos morais e de
vida. Se a seção Dos brasileiros distinctos ... foi permanente, o foi porque o gênero
encomiástico era então entendido, pelo menos entre a elite intelectual brasileira, como
válido e importante para a formação das pessoas. Por um lado, esse era um dos objetivos a
ser alcançado com a redação e publicação de biografias, por outro, a sua construção era
realizada segundo modelos retóricos de composição. Nesse sentido, elas indicam a
sobrevivência, segundo indica Jean Glénisson, do prestígio das fórmulas biográficas que
reviviam as Vidas Paralelas de Plutarco “na série de Biografias dos brasileiros distintos por
armas, letras, virtudes, etc”.
3
1
Inaugurado em outubro de 1838, a partir das propostas apresentadas, dentro da Sociedade Auxiliadora da
Indústria Nacional (SAIN), pelo militar Raimundo José da Cunha Matos e pelo cônego Januário da Cunha
Barbosa, respectivamente primeiro-secretário e secretário-adjunto da Sociedade, o Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB) nasceu sob o signo de um projeto político mais geral, de cunho conservador.
Sobre o projeto conservador construído no Brasil a partir da segunda metade da década de 1830: Cf.
MATTOS, 1994.
2
CANABRAVA, 1971, p. 417. Da mesma avaliação compartilha Manoel Luís Salgado Guimarães, que
lembra que: “A Revista do IHGB, penetrada da concepção exemplar da história, abre uma rubrica em seu
interior dedicada às biografias, capazes de fornecerem exemplos às gerações vindouras, contribuindo desta
forma também para a construção da galeria dos heróis nacionais”. Cf. GUIMARÃES, 1988, p. 15.
3
GLÉNISSON, 1983, p. 258. Segundo Jean Glénisson, o reconhecimento do valor dos discursos laudatórios
ultrapassou regimes políticos e formas de produção econômica e atingiu o início do século XX, quando ainda
206
Francisco Adolfo de Varnhagen foi um assíduo colaborador da seção, tendo escrito,
segundo informam Sacramento Blake
4
e os índices da Revista do IHGB
5
, dezenove estudos
biográficos. Muitos desses estudos eram de poetas brasileiros e foram posteriormente
republicados, em 1850 e 1853, nos volumes do Florilégio da poesia brasileira,
introduzindo a coletânea referente a cada poeta. Dentre inúmeros sócios do Instituto,
Varnhagen ofereceu também sua contribuição – ao longo de toda sua vida – para a
formação do panteão dos varões ilustres do Império brasileiro.
7.1. Varnhagen e o gênero demonstrativo
Muito provavelmente, o primeiro ensaio de Varnhagen na redação de uma biografia
tenha ocorrido quando era sócio do Conservatório Real de Lisboa
6
, em cujas atas pode-se
ler:
O Conselho em execução da determinação tomada pelo Conservatório em
Conferencia-geral de 9 do corrente a fim de se consagrar uma sessão-plena-
extraordinaria a honrar a memória dos Socios fallecidos, tem destinado o dia 6 de
novembro próximo para a referida sessão-plena, e designado os oradores pelo modo
seguinte: para o elogio do Sr. Quintella – o Sr. Varnhagen; para o elogio do Sr.
Sebastião Xavier Botelho – o Sr. Alexandre Herculano; para o elogio do Barão da
Ribeira – o Sr. João Baptista de Almeida Garrett (...). A Mesa regulará o modo e
formalidades d’esta Sessão. – Sala do Conselho no Conservatório Real de Lisboa
em 22 de maio de 1841.
7
Em novembro de 1841, cumprindo o que lhe fora determinado, Varnhagen, assim
como os outros membros do Conservatório, leu seu trabalho para “honrar a memória” de
Ignácio da Costa Quintella e intitulou-o de “elogio”.
8
se encontram, nas páginas da Revista do Instituto, declarações como a seguinte: “Deste estudo [das biografias]
tão digno da majestade da história, resulta um ensinamento profícuo às novas gerações e um estímulo para se
repetir no futuro o que tão nobremente os nossos maiores realizaram no passado”. Cf.GLÉNISSON, 1983, p.
258.
4
BLAKE, 1970 [1893], v. 2, p. 371-383.
5
RIHGB, nº.400, 1998, p. 839-843.
6
No ano de 1842, Varnhagen ocupou o cargo de secretário do Conservatório. Varnhagen fora aceito como
sócio do Conservatório em maio de 1841. Cf. Memórias do Conservatório Real de Lisboa, 1842, p. 254.
7
Memórias do Conservatório Real de Lisboa, 1842, p. 130.
8
Todos os elogios históricos pronunciados na oportunidade em que Varnhagen leu o seu, foram publicados
nas Memórias do Conservatório, em 1842. Um estudo comparado dos elogios escritos por Herculano, Garret
e Varnhagen pode ser fundamental para a compreensão do gênero epidítico à época. Infelizmente isso foge
aos propósitos desta tese.
207
Na primeira parte do texto, Varnhagen justificava a importância da composição de
discursos daquela natureza. Segundo ele, um elogio era escrito em proveito dos vivos, que
teriam estímulos para imitar e mesmo para emular as virtudes e feitos do elogiado. Se um
elogio engrandecia aquele que era objeto do louvor, nos vivos, por sua vez, alimentava a
certeza de que graças a feitos similares também alcançariam a glória póstuma. Era por isso
que, afirmava, a redação e recitação de louvores era defensável e, a seu ver, aos vivos
ficava o dever de “celebrar a memoria dos cidadãos distintos”, por seus atos e produções.
9
Fazia, assim, a apologia do próprio gênero e, simultaneamente, saudava os propósitos dos
membros do Conservatório Real de resgatar do esquecimento os homens virtuosos e dignos
de louvor. Certamente ele, como autor daquele elogio histórico, também participava da
dignidade do ato: redigindo-o, além de imortalizar o nome do elogiado, também
imortalizava seu próprio nome.
Deplorar a perda d’aquelles que nos tocam mais de perto, é consolador, é religioso:
- é quasi uma necessidade filha do instincto, nem sequer estranha aos povos na
civilização ainda infantes. Porém o público tributo de gratidão ás boas acções
procede de principios de justiça: - é um dever e também um direito, que a sociedade
se arroga, este de solemnisar a memoria pósthuma dos que trabalharam pelo
progresso do genero humano. A nósoutros, primeiros a lograr o fructo d’esses
trabalhos, compete de razão sermos tambem os primeiros a realçar além do
sepulchro os indivíduos, que em prol dos contemporaneos e dos pósteros
consagraram a melhor parte da vida. (...) Salvos, pela escriptura, para estímulo dos
que vierem, ficarão taes indivíduos seguros de sobrepujar os mesmos túmulos.
Embora venham a perecer os mármores que guardam em paz os ossos dos homens
célebre; - embora outros homens – obscuros de certo – attentem contra os cippos
que memoravam feitos dignos, acções virtuoas; - embora se obliterem todos os
padrões da passada gloria – embora: que não póde prejudicar o diluvio aos que ja na
Arca teem o refugio prevenido.
Louváveis são pois os intentos dos que hoje se reúnem n’esta sala, para celebrar a
memória dos cidadãos distinctos (...).
10
9
Cf. Varnhagen in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, 1842, p. 1. Também Plutarco, na biografia de
Timoleonte, faz uma apologia do gênero ao afirmar que se dedicara a redigir “histórias de vida” para
“organizar e conformar minha vida às virtudes daqueles como se olhando num espelho”. Apud. HARTOG,
2001, p. 175. Segundo Hartog, Plutarco construíra suas biografias com uma finalidade moral, pois desejava
que os grandes homens biografados fossem “imitados por seus contemporâneos”. HARTOG, 2001, p. 185.
10
Varnhagen in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, 1842, p. 1. Muitos anos depois dessas
considerações, em 1856, escrevendo a D. Pedro II, Varnhagen afirmava que não publicara, na Revista do
Instituto, a biografia de Ottoni que preparara, porque estava “com redacção inadequada”. Informava ainda que
dentro do Instituto “houve gente que esteve contra mim” e então manifestava sua preocupação: “Que
exemplos, Senhor, aos futuros escriptores, quer dar esse Instituto (...)!”. Cf. Varnhagen in LESSA, 1961. p.
236. Muito provavelmente, trata-se da biografia de José Elói Otoni (1764-1851), importante poeta falecido à
época.
208
Em seguida, Varnhagen aproximava a biografia do discurso epidítico e apresentava
as regras para sua composição: “O elogio historico de um individuo cuja simples
biographia é uma serie de feitos dignos, está n’essa mesma biographia. A imparcial e
singela narração da vida do heroe, possue em si mesma a verdadeira eloqüência”.
11
Não
havia, na perspectiva de Varnhagen, distância entre a composição de um discurso epidítico
e a de uma biografia, pois o elogio histórico implicava narrar a vida, desde que o elogiado
fosse homem virtuoso – determinado na adversidade, honrado, firme no caráter – e tivesse
realizado feitos louváveis.
As considerações de Varnhagen o aproximam de Plutarco, uma vez que, como
observa Françoise Frazier, a respeito das Vidas Paralelas, existe, nas biografias morais do
autor romano, uma conciliação entre o princípio biográfico – o emprego de lugares-comuns
que “suivent les étapes de la vie humaine” – e o princípio ético – “les topoi correspondent à
la division entre biens extérieurs, biens du corps et bien de l’âme”. Para a autora, a retórica,
“entendue comme technique d’invention et de disposition, (...) peut s’appliquer à tous les
genres (...). Elle régit en particulier l’éloge dont la matière est sensiblement identique à
celle de la biographie”.
12
11
Varnhagen in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, 1842, p. 1. Em 1844, escrevendo a seu amigo
Cunha Rivara, Varnhagen lhe avisava que fora escolhido pelo Conservatório para elaborar “o elogio de meu
pai” e recomendava que “para a recitação melhor seria V. Sa. [se encarregar da mesma]. Varnhagen
expressava uma grande satisfação de ter o amigo Rivara encarregado de recitar “o elogio” de seu pai. Cf.
Varnhagen In LESSA, 1961. p. 119-120.
12
FRAZIER, 1996. p. 178. Estudando as biografias renascentistas, o historiador Peter Burke declarou que
nelas se encontram empregadas inúmeras vezes as mesmas ou similares anedotas, assim como repetições de
descrições de ações ou de características de personalidade. O que para nós se apresenta como uma sucessão
de cópias, adverte Burke, era a correta aplicação de modelos adequados ao gênero em questão. É devido ao
emprego desses lugares-comuns pelos escritores que as biografias renascentistas se nos parecem como
imitação de algum trabalho original que se teria perdido. Essas biografias renascentistas se escreviam, ensina
Burke, segundo os modelos antigos e, dentre esses, sobretudo o de Plutarco, que fixara os ditos, os feitos e os
gestos que, “aparentemente banais”, ofereciam “pistas sobre a personalidade”. Os textos biográficos
renascentistas, por um lado, celebram um conjunto “de categorias morais tais como clemência, humildade,
prudência”, dentre inúmeras outras consideradas gloriosas; por outro, revelam a crença de que a personalidade
era fixa e resultante “de um equilíbrio de humores” e/ou de “fatores ligados ao nascimento”. Cf. BURKE,
1997, p. 91,92, 95. Arnaldo Momigliano faz referência à existência, na antiguidade clássica greco-latina, de
uma “abundante literatura de exempla” e informa que “los compiladores los reunían tomándolos de obras
históricas y de la tradición oral”. Na composição dessa literatura, se fazia uso de anedotas e de cenas do leito
de morte e foi ela utilizada para “estimular la imitación”. Cf. MOMIGLIANO, 1993, p. 149/150. Adolfo
Hansen recupera a seguinte passagem da Retórica para Herênio sobre “as técnicas do gênero demonstrativo
ou epidítico”: “(...) em caso de elogio, fala-se dos antepassados; se a origem é ilustre, ele foi igual ou superior
aos antepassados; se ela é modesta, é a suas próprias qualidades, não às dos ancestrais, que ele deve tudo; no
caso de vituperação, se a origem é ilustre, ele desonrou os antepassados; se é obscura, ele também não deixou
de ser uma causa de desonra para eles”. Cf. HANSEN, 1994, p. 55.
209
Perceptivelmente, Varnhagen segue, na escrita das biografias redigidas para a
Revista do IHGB, as regras retóricas prescritas para o gênero. Para a demonstração do
emprego dos topoi prescritos para o gênero, duas delas são particularmente interessantes: a
de Antônio de Morais Silva e a de Eusébio de Matos. Nelas, Varnhagen prima no emprego
dessas tópicas, enquanto, em outras biografias publicadas nas páginas da Revista do
Instituto, seu uso é ocasional. Isso justifica, portanto, a escolha do corpus analisado neste
capítulo.
Muito significativo, porém, é o fato de que Varnhagen tenha feito uso das regras
próprias para esse gênero também em alguns de seus textos de história. É o caso da
construção do personagem Tiradentes, no capítulo dedicado à Inconfidência Mineira,
incluso no segundo volume da HGB, e que será também analisado.
Enfim, se “todo ouvinte favorece mais um orador, cujos sentimentos vê em tudo
conformes aos seus”
13
, conforme sustentava Quintiliano, é possível parafraseá-lo e afirmar
que o uso desses topoi indicam a permanência de sua legitimidade; que são reconhecidos
como válidos e corretos no contexto social no qual Varnhagen escreveu e publicou. Para a
análise das três biografias em questão, recuperaram-se, fundamentalmente os ensinamentos
do mestre romano.
7.2. Biografias redigidas para a Revista do IHGB
Sobre os discursos epidíticos, usados para louvar ou censurar, Quintiliano afirmava
que, se entre os gregos eles eram produzidos para o deleite dos ouvintes, entre os romanos,
este tipo de discurso ganhara um verdadeiro valor cívico e mesmo um lugar na composição
de outros gêneros.
14
Para a composição desses discursos, Quintiliano indicava ser possível
e mesmo recomendável tecer considerações favoráveis à pátria da pessoa aclamada, a seus
pais e a seus ancestrais, porque tais louvores a ela se agregariam. Na construção do elogio
13
QUINTILIANO, 1944, vol. I, p. 118.
14
Segundo Quintilien: “(...) l’usage lui a donné [para o gênero epidítico] une place même dans la partie
pratique de la vie. Car les oraisons funèbres rentrent souvent dans les attributions de ceux qui exercent une
fonction publique et même des magistrats en sont fréquemment chargés (...); d’autres part, l’éloge d’un
témoin, ou le contraire, est souvent très important dans les procès; même aux accusés il est permis de produire
des apologistes”. Cf. QUINTILIEN,1954, vol. I, livro III, p. 371-373.
210
propriamente do herói, mostrava a conveniência de se explorar o período anterior a seu
nascimento, como os presságios, que prenunciavam as grandiosas realizações futuras do
distinto homem, assim como o tempo que se seguiu a sua morte, quando muitos eram
agraciados com homenagens ou tinham seu valor reconhecido. Aconselhava ainda que se
iniciasse pelo elogio das virtudes espirituais do homem e se seguisse a cronologia de sua
vida, sempre perseguindo seus feitos demonstrativos da constância de um elevado caráter
virtuoso:
Parfois aussi, on tirera certains développements du temps antérieur à la naissance,
des oracles ou des augures qui ont annoncé la grandeur future de notre héros (...).
Tantôt, il vaut mieux suivre la progression de l’âge et l’ordre des actions, par
exemple louer dans les premières années le naturel, puis les études, ensuite
l’enchaînement des manifestations de l’activité, c’est-à-dire des actions et des
paroles; ailleurs il sera préférable de distinguer, pour l’éloge, un certain nombre de
vertus, le courage, la justice, la tempérance, d’autres encore, et de ranger sous
chacune d’elles les actes qui s’y rapportent.
15
Lançando mão de lugares-comuns próprios para o gênero demonstrativo, na
composição das biografias de Antônio Morais Silva e de Eusébio de Matos, Varnhagen
estabeleceu a divisão tripartite do discurso – o exórdio, a narração e a peroração. E as inicia
de modo semelhante, pelo elogio aos biografados.
Na de Morais, é assinalada a importância, o valor e a utilidade de seu dicionário
para os falantes da língua portuguesa:
Poucos trabalhos litterarios tem sido mais úteis á geração actual, entre os povos que
fallão e cultivão a bella lingua de Camões e Vieira, do que o diccionario da lingua
portugueza por Antonio de Moraes Silva. Assim se fez elle tão popular entre nós,
que o appellido ‘Moraes’ se tornou quase exclusivo ao nosso lexicographo, e ao seu
livro.
16
(grifo do autor)
Do mesmo modo, a biografia de Eusébio de Matos começa pela assinalação de sua
importância como “um dos filhos da América mais distinctos em letras no seculo XVII”.
17
Era preciso que ao leitor ficasse muito claro por que eram aqueles homens dignos de serem
biografados: eram virtuosos. Nos dois casos, a virtude estava na contribuição que haviam
15
QUINTILIEN,1954, vol. I, livro III, p. 375/377.
16
VARNHAGEN, 1852b, p. 244. Em junho de 1852, Varnhagen escreveu a Joaquim Manuel de Macedo,
então Secretário do IHGB e, dentre outras notícias, informava encaminhar uma “biographia de Moraes, que
redigi nesta Cidade [Lisboa], em outubro do anno passado”. Mas além de encaminhar a biografia, Varnhagen
dizia esperar que ela “ao menos sirva [para] estimular alguns Pernambucanos a observações que venhão a
aclarar alguns factos; v. gr., as datas do nascimento, da formatura, do óbito, etc.” Cf. VARNHAGEN in
LESSA, 1961, p. 181-182.
17
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 540-543.
211
dado à glória das letras nacionais: Morais era uma autoridade sem concorrência como
“lexicographo” da língua portuguesa; Eusébio de Matos foi um “insigne pregador assim em
a sutileza dos discursos como na vehemencia dos affectos (...)”.
18
Nos exórdio das duas biografias, o leitor é recebido de modo peremptório – “Poucos
trabalhos litterarios tem sido mais uteis á geração actual”; “Um dos filhos da América mais
distinctos”. A forma contundente da abertura objetivava desarmar o espírito e conquistar o
leitor, tornando-o receptivo, atento e dócil à biografia e ao biografado; ao leitor não era
dada nenhuma possibilidade de dúvida sobre a importância da escrita daquelas biografias.
Pode-se mesmo dizer que a recepção desejada já se encontrava figurada no texto.
O exórdio cumpria ainda o papel de delimitar o destinatário daqueles textos: sendo
homens distintos nas letras, Morais e Matos deveriam ser lembrados por aqueles que se
preocupavam com as luzes e a dissipação da ignorância. Por isso, a publicação daquelas
biografias era uma verdadeira chamada de atenção para as atitudes que os vivos vinham
tendo para com seus mortos ilustres. Apesar de o Diccionario de Morais ser uma obra que
se fizera “tão popular entre nós”, Varnhagen ponderava ser seu autor um desconhecido,
porque os contemporâneos: “(...) se esquecem de salvar a memoria dos patrícios dignos”.
Varnhagen, ao contrário, propusera-se a “(...) consignar n’este esboço de biographia, o
pouco que a seu respeito temos podido alcançar”, como uma “(...) homenagem de
lembrança ao varão laborioso, e, finalmente, por tributo ao paiz que o viu nascer”.
19
No
caso de Eusébio de Matos, Varnhagen acusava o desconhecimento de seu nome
20
, apesar
das pregações que escrevera. No entanto, ressaltava o biógrafo, ninguém o “excedia em
polimento de phrase e subtileza”.
21
Os “varões biografados” o mereciam ser pelos valores que os tornavam dignos de
lembranças e de homenagens. Por gratidão para com eles, que haviam contribuído para o
engrandecimento dos vindouros, era preciso garantir-lhes a eternidade. E isso apenas os
vivos poderiam fazer. Varnhagen, que se pusera em campo, realizara a empreitada e
recompusera a memória, também tinha sua parte na glória.
18
BARBOSA MACHADO apud VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 540.
19
VARNHAGEN, 1852b, p. 244.
20
Cf. VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 540.
21
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 541.
212
Obedecia-se, assim, ao preceito de Quintiliano, segundo o qual, no exórdio o autor
deve conquistar para si a benevolência da platéia: “é de suma importância, para tudo o que
tem de dizer depois, o merecer logo no Exórdio o conceito de homem de probidade”.
22
Também de Quintiliano é a recomendação de que, composto o exórdio, fosse
redigida a seqüência laudatória, tratando “das qualidades do espírito, das do corpo, e dos
bens extrínsecos”.
23
Argumentando que “só o louvor do Animo é sempre verdadeiro”,
Quintiliano apresentava o método a ser seguido: “umas vezes será melhor ir seguindo nele
os graus da idade, e a ordem natural das ações, louvando, por exemplo, nos primeiros anos,
a índole, depois as aplicações, e enfim a série do que disse, e obrou de notável (...)”.
24
Na redação das biografias em questão, Varnhagen segue uma disposição similar
àquela sugerida por Quintiliano.
25
Na seqüência do exórdio, Varnhagen conta “anedotas”
do período de juventude de seus biografados e aí inicia a exposição das “produções do
engenho” de cada um deles.
A anedota a respeito de Morais refere-se ao modo como ele tomou “gosto pela
nossa lingua e litteratura”, o que ocorrera “de um modo muito original”. Varnhagen conta
que, chegado a Coimbra, “apresentou-se o jovem Moraes na universidade pronunciando e
fallando muito incorrectamente o portuguez, e, taes vexames lhe faziam por isso soffrer
seus contemporâneos, que protestou comsigo vingar-se d’elles (...)”.
26
Quando diz que
Morais passara por “vexames”, Varnhagen nos remete a imagens de estudantes em
situações de descontração e de brincadeiras. Pode-se imaginar Morais no centro de uma
roda, sofrendo com as zombarias de seus colegas. Entretanto, ele preparava sua “vingança”:
22
QUINTILIANO, 1944, t. I, p. 156.
23
QUINTILIANO, 1944, t. I, p. 115.
24
QUINTILIANO, 1944, t. I, p. 115. Segundo Lausberg: “O topos é uma forma, que (como um recipiente,
ora com água, ora com vinho; em cada caso com função diferente) pode ser enchida com um conteúdo actual
e pretendido em cada caso”. Reconhecer um topos tem valor para se saber o momento em que um autor o
“tornou (...) e o integrou no contexto concreto, onde ele deve exercer a sua função actual”. Um exemplo de
topos encontra-se na formulação de elogio às pessoas “às quais são atribuídas, já na infância, a prudência ou a
sabedoria dignas de um velho experimentado”. O professor Rosado Fernandes, tradutor da obra de Lausberg
para a língua portuguesa, cita a seguinte passagem retirada da obra Os Maias, na qual Eça de Queirós
descreve Eusebiozinho: “Quase desde o berço este notável menino revelara um edificante amor por
alfarrábios e por todas as coisas do saber. Ainda engatinhava e já a sua alegria era estar a um canto, sobre uma
esteira, embrulhado num cobertor, folheando in-fólios, com o craniozinho calvo de sábio curvado sobre as
letras garrafais de boa doutrina”. Cf. LAUSBERG, 1972, p. 110-111.
25
QUINTILIANO, 1944, t. I, p. 116.
26
VARNHAGEN, 1852b, p. 245.
213
(...) do modo mais seguro e terminante. Começou a ler e a estudar os clássicos, e
dentro de pouco tempo era já o verdadeiro decurião que dava quináo, não só a
collegas inçados dos vicios provinciaes de Lisboa, do Porto e do Algarve, como dos
seus proprios mestres eivados da mania gallici-parla, ainda não bem zurzida (...).
27
A anedota sobre a juventude de Morais demonstrava as marcas denunciadoras de
uma índole determinada, que não esmorecia diante das adversidades: um homem que, firme
em seus propósitos, engrandecia-se diante das barreiras que se lhe apresentavam,
enfrentando-as com o trabalho enobrecedor. Segundo Varnhagen, Morais foi capaz de
emular seus colegas e mesmo seus mestres, entregando-se ao estudo das puras fontes da
língua – “dentro em pouco era já o verdadeiro decurião”. Ele alcançou a perfeição no
domínio da língua, debruçando-se sobre os clássicos; por isso foi capaz “do modo mais
seguro e terminante” de realizar sua “vingança, tornando-se mestre da língua que antes lhe
causara sofrimento. E antes mesmo de ter elaborado seu Diccionario, lembrava Varnhagen,
Morais já traduzira livros escritos em inglês e em francês para o português e, dessa forma,
“provou (...) quão bem estava possuído do manejo da lingua vernacula (...)”.
28
O esforço de Morais coroou-se com seu trabalho de lexicógrafo. Varnhagen
afirmava que na “primeira edição d’elle [do Diccionario, em 1789] não se propôz o nosso
autor a mais que a dar um resumo dos numerosos volumes indigestos e ‘palheirões’ de
Bluteau”. Entretanto, Morais não se contentara com o resultado alcançado e continuou
“estudando a lingua, lendo os clássicos”, do que resultaram os “grandes retoques e
subsídios” que receberam a segunda edição do Diccionario (de 1813) e, sobretudo, a
terceira (de 1823). O esforço não fora vão; Morais receberia, então, a glória do
reconhecimento: “o trabalho do Diccionario da lingua portuguesa foi verdadeiramente o
que lhe grangeou merecida reputação entre os litteratos”.
29
A reputação alcançada resultava
de esforços realizados ao longo de muitos anos.
27
VARNHAGEN, 1852b, p. 245.
28
VARNHAGEN, 1852b, p. 245. Morais traduziu a História de Portugal (3v.), composta em inglês por uma
sociedade de literatos; traduziu, também, as adições da versão francesa e anotou a obra, que foi publicada em
1788. De M. Arnaud, traduziu as Recreações do homem sensível (5v.), publicadas entre 1788 e 1792. Cf.
BLAKE, 1970 (1883), v.1, p.269-270.
29
VARNHAGEN, 1852b, p. 246. Não deixa de ser interessante lembrar que nesse ano de 1852 Varnhagen
escrevia ao Imperador a carta intitulada Como se deve entender a nacionalidade... e que foi analisada nos
Capítulos 1 e 2 desta tese. Nela informava a D. Pedro II o término da HGB. Ler suas palavras sobre Morais
faz lembrar a constância com que Varnhagen sempre clamou pelo reconhecimento de seus trabalhos.
214
Varnhagen, porém, fazia questão de apresentar sua avaliação daquela obra e de
apontar nela vários “defeitos”:
ha no Diccionario definições pouco exactas; ha em seu systema menos methodo e
concisão do que v. g. em Boiste; ha falta de harmonia, dando-se a etymologia de
umas palavras e de outras não; ha mesmo faltas na ordem natural das idéas, em
muitos significados, apresentando-se, ás vezes, as do sentido metaphorico e
translato antes da do natural e primitivo (...).
30
Mas a existência das faltas não deveria ser tomada como demérito: “todos esses
defeitos, e outros que se lhe notem, servem de realçar os méritos da obra; meritos que deve
ella ter para, apezar de tantos defeitos, continuar a ser autoridade”. Segundo Varnhagen,
todos os que vieram depois dele apenas o compilaram e dele se aproveitaram, apesar de o
terem vilipendiado. Concluía que “ninguém foi capaz de lhe disputar a palma”. E afirmava,
na peroração: “Até hoje porém os litteratos, desde Filinto e São Luiz, não conhecem outra
autoridade de lexicographo portuguez mais que a de Antonio de Moraes Silva”.
31
Morais
fora um homem persistente, que muito trabalhara, que se aprimorara, que legara aos
pósteros uma obra de grande importância para as letras nacionais. Nisso residia seu mérito,
lição moral a ser com ele aprendida.
Também a anedota biográfica de Eusébio remonta à juventude do autor, que, ainda
menino e mesmo encontrando-se doente, pôde revelar “a esperteza que logo mostrou nos
primeiros estudos”:
Era o reitor [do Colégio] natural de Cabo Frio, e ao que parece um tanto áspero para
os minoristas. Foi o irmão Eusébio atacado de um pleuriz, pelo qual teve de ser
sangrado. E vindo o reitor com outros padres visital-o, advirtiram que o sangue
estava denegrido e como queimado; ao que replicou o nosso irmão enfermo: ‘Pois
não é queimado do calor, senão do villão do Frio, que logo no principio ia dando
Cabo de mim’. Foi por todos applaudido o conceito, e se augmentaram os créditos
do irmão Eusebio.
32
30
VARNHAGEN, 1852b, p. 247. Barthes chama de sentido próprio aquele imediatamente anterior à criação
da figura. Cf. BARTHES, 1975, p. 217. Em Quintiliano se lê que: “on appelle terme prope, un mot qui
designe plusieurs choses, mais plus particulièrement l’une d’elles, parce que tous les autres sens sont derivés
de celui-là”. Cf. QUINTILIEN, 1954, vol VIII, p. 147.
31
VARNHAGEN, 1852b, p. 247.
32
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 541. Nessa passagem, Varnhagen utilizou o seguinte trecho do
Licenciado Manuel Pereira Rabelo: “Teve [Eusébio] aplausos grandes na companhia por aquelas ciências, que
seus estudos franqueiam no Brasil. Deram-lhe a roupeta de S. Inácio, e foi muito estimado do Padre Antônio
Vieira desde um dito, que com graça deixou cair sendo minorista: e foi o caso. Enfermou de um pleuris, e
sendo sangrado na presença da maior parte daqueles Padres, que viviam queixosos do Reitor sumamente
avaro, e natural de Cabo Frio: disse um deles (olhando para o sangue), que o achava queimado; e perguntando
o Reitor, quem o queimara, respondeu, que o Vilão do Cabo. A confiança desta aguda ninharia conciliou os
215
Como a anedota sobre Morais, essa também servia para revelar características fixas
de uma personalidade, que nelas são anunciadas. Eusébio de Matos era um homem
“esperto”, capaz, ainda na juventude, de emitir conceitos “por todos applaudidos”. Porém,
as qualidades próprias aos indivíduos se aprimoram com o estudo. Como Morais, Eusébio
fora capaz de alçar-se ao elevado patamar de seu mestre, de emular-se com ele em certos
domínios: “Seguiram-se novos estudos de humanidades e philosophia: de que era mestre o
celebre padre Antonio Vieira, e ainda Eusebio n’elles por tal fórma se distinguiu, que veiu
depois a succeder-lhe no magistério”.
33
A Arte aprimorou-lhe de tal modo o engenho, que o
próprio Antonio Vieira o reconheceu e protestou contra sua saída da Companhia de Jesus:
(...) quando o padre Antonio Vieira voltou á Bahia em 1681, já o achou carmelita
com o nome de Fr. Eusebio da Soledade. Sabendo então que era por culpa dos da
companhia que elle os deixára, exclamou: ‘– Pois tão mal fizerm que tarde se
criarão para a companhia outros Mattos’. E ao explicarem-lhe que o tinham feito
para castigar certo escândalo de um filho natural, exclamou; ‘– Creio bem que seja
isso intriga; mas que o não fora, o padre Eusebio tem tal mérito, que convinha mais
á companhia sustental-o com filhos e tudo, que privar-se de tão importante
soldado’.
34
(grifo do autor)
Varnhagen também não deixou de emitir sua avaliação da obra de Eusébio, apesar
da aparente modéstia com que revestia seu julgamento: “Se bem que não possamos decidir-
nos em assumpto tão arriscado, é certo que o Ecce homo de Mattos, isto é, suas praticas dos
espinhos, da púrpura, das cordas, da cana, das chagas, e do titulo do homem, são bellos e
correctos modelos de estylo”.
35
Posteriormente reeditada no Florilégio da Poesia brasileira, a biografia de Eusébio
de Matos sofreu poucas, mas significativas, modificações. A frase acima citada passou à
seguinte redação:
agrados do Pe. Vieira para ajuizar em Eusébio as gentilezas, que depois o canonizaram, porque se conhecem
os sábios pela pinta: como aconteceu a Sócrates com o menino Platão.” Cf. Rabelo in MATOS, s/d, v. VII, p.
1692.
33
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 541.
34
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 542. Varnhagen novamente utilizava as informações de Manuel Pereira
Rabelo: “Com este hábito [do Carmo] pregava de N. Senhora da Fé na igreja catedral no dia, em que
desembarcado de Lisboa, o Pe. Vieira foi ali, não tanto de caminho, como de propósito, por ser esta Senhora
aquela cujo simulacro lhe abriu as oficinas capitais, e porque pregava ali seu venerando Eusébio. Fez este
repetição, do que havia dito, a seu suspirado amigo, e abraçados por fim os dous com amorosas lástimas, se
foi Vieira a increpar de rigorosa a severidade, com que aquêles Padres lançaram da Companhia tão importante
soldado”. Cf. Rabelo in MATOS, s/d, v. VII, p. 1692.
35
VARNHAGEN, 1867b (1846), p. 541.
216
Se bem que não possamos decidirmos em assunto tão arriscado, é certo que o Ecce
Homo de Mattos, isto é, suas Praticas dos Espinhos, da Púrpura, das Cordas, da
Cana, das Chagas, e do Titulo do Homem, são bellos, e correctos modelos de estylo
sublime, e cheio de unção religiosa.
36
O acréscimo da palavra “sublime” revela um crítico preocupado com a precisão do
aspecto formal da linguagem, já que observou a adequação do estilo ao assunto. O
acréscimo da vírgula após a palavra “sublime” marcava a separação de duas qualidades, o
que não ocorria na primeira redação: os textos de Eusébio eram belos e, além de belos,
eram modelos corretos.
37
Varnhagen acrescentou, ainda, o trecho “cheio de unção
religiosa”, que somava à obra a qualidade de ser demonstração da fé, que emanava das
virtudes de seu autor.
A mudança mais significativa feita por Varnhagen, porém, foi na frase subseqüente
a essa. Na edição da Revista do Instituto, a frase era: “Lástima é que este livro seja hoje tão
raro, por se haver apenas impresso uma vez”.
38
Na edão do Florilégio, a frase aparecia:
“Lástima é que este livro, digno de estudar-se como bom modelo, seja hoje tão raro, por se
haver apenas impresso uma vez”.
39
Na primeira versão da frase, a lástima se restringia ao
fato de o livro ter-se tornado raro, devido à inexistência de reedição. Na segunda, a raridade
da obra tornava-se ainda mais perniciosa, por impedir que os contemporâneos pudessem
estudar “o bom modelo”. Aos olhos de Varnhagen, Eusébio possuía um estilo digno de ser
imitado e seguido. Era um exemplo e, por isso, suas “Práticas” deveriam ser reimpressas.
O parágrafo final da biografia, tal como se a lê no Florilégio, diz o seguinte: “Das
suas poesias, que nos consta eram copiosas, apenas alcançamos autêntica a pequena mostra
que publicamos”.
40
Ao mesmo tempo que dá seqüência à narrativa, esse parágrafo retoma o
36
VARNHAGEN, 1987 (1850), t. I, p. 86. A biografia de Eusébio de Matos publicada no Florilégio é
praticamente idêntica à da RIHGB, exceto em curtas passagens que serão abordadas na seqüência deste texto.
No caso específico dessa frase, os nomes das Práticas de Eusébio aparecem com iniciais minúsculas na
Revista, e com iniciais maiúsculas no Florilégio (edição da Academia Brasileira de Letras, 1987). Como não
tenho em mãos a edição do Florilégio feita pelo próprio Varnhagen, desconheço a origem dessa modificação,
se do próprio compilador ou dos responsáveis pela edição do Florilégio feita pela Academia Brasileira de
Letras. O verso da página de rosto desta edição traz os seguintes dizeres, que não nos resolve o problema:
“Nas poesias foi mantida fielmente a ortografia da época, assim como nas citações contidas no texto.”
37
Sabe-se que, no século XIX, a gramática rezava que a vírgula deveria ser empregada na separação de
adjetivos unidos por conjunções. Cf. MORAES SILVA, 1922 (1813), t.1, p.XXXVIII. Apesar disso, como
não havia vírgula na edição da RIHGB, vimos propósito estilístico do autor ao acrescentá-la.
38
VARNHAGEN, 1867b (1846) p. 541.
39
VARNHAGEN, 1987 (1850), t.I, p. 86.
40
As provas de legitimidade que autorizaram Varnhagen a considerar “autêntica” apenas uma poesia de
Eusébio de Matos mereceram o seguinte comentário de José Américo Miranda: “É de supor-se que tais provas
217
exórdio, em que sua poesia havia sido elogiosamente mencionada: entende-se que o texto
se fecha redondamente. A criação poética, sendo a essência da criação literária, foi deixada
de propósito para o final, a fim de impressionar o leitor pelo destino dela: a obra do poeta,
praticamente toda, diferentemente de sua prosa, havia sido perdida. Na edição da Revista do
Instituto, de 1846, o texto não terminava aí. Havia ainda um trecho que passou ao rodapé
no Florilégio.
Na nota ao último parágrafo da biografia publicada no Florilégio, Varnhagen
transcreveu a parte final da biografia publicada na Revista, em que afirma ter
motivos para crer que as outras [poesias de Eusébio de Matos] não estão perdidas,
mas só compreendidas nas de seu irmão Gregório por se terem encontrado nos
papéis do espólio deste; sendo mui provável, que ele houvesse adquirido as de
Eusébio; achando-se na Bahia quando este faleceu, sem outro herdeiro.
41
O encerramento rápido e lacônico do texto biográfico sugere o desconhecimento em
que caiu a obra poética do biografado. A terminação abrupta da narrativa, embora deixe a
biografia sem um fechamento retórico, transforma o silêncio (da queda no esquecimento)
em peroração.
As biografias de Morais e de Matos tinham muito a ensinar a seus contemporâneos,
segundo acreditava Varnhagen. Para nós, hoje, mais que o conhecimento das vidas dos
biografados, ler as biografias que Varnhagen escreveu pode ser uma porta de entrada para a
compreensão de seu universo de referências, dos autores que lia e seguia.
A contribuição de Varnhagen para a construção do panteão dos heróis nacionais,
entretanto, não reside apenas nos textos biográficos que redigiu, mas se estendeu também
às páginas de sua HGB, onde, ao premiar ou condenar os personagens históricos, o autor
apontava aqueles que deveriam ou não tornar-se heróis nacionais e terem suas vidas
rememoradas e emuladas. Dessa forma, ele novamente fazia eco às pretensões do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, que desejava, segundo Arno Wehling, organizar “uma
se encontrem nos manuscritos apógrafos da obra de Gregório de Matos que pertenceram ao historiador.
Efetivamente, no segundo volume de um códice que lhe pertenceu, essa paródia [o poema considerado
autêntico por Varnhagen] vem transcrita, com atribuição autoral explícita a Eusébio de Matos...”. Cf.
MIRANDA, 2005, s.p.
41
VARNHAGEN, 1987 (1850), t.I, p. 88.
218
galeria de varões de Plutarco que corroborassem as posições nacionalistas e a defesa do
Estado imperial”.
42
7.3. Sobre os personagens históricos na HGB
Alguns estudiosos da obra de Varnhagen entenderam que em sua HGB os atores
históricos foram reduzidos a apenas um seleto grupo social. Para José Honório Rodrigues,
Varnhagen adotou, na HGB, uma perspectiva idealista da história, ou porque acreditava que
a grandeza do Estado estava estreitamente vinculada “às providências de seus pensadores
mais profundos”
43
, ou porque tinha convicção de que a história era “produto dos grandes
homens (...) de pensamento”.
44
Para Nilo Odália, a HGB foi escrita de modo a “demonstrar
a superioridade de uma etnia, de uma cultura, de uma civilização, de uma religião, de um
modo de vida e de pensamento”: a do mundo europeu ocidental sobre os mundos indígena e
africano.
45
A edificação da nação brasileira, afirma Odália, aparece como desempenhada
por homens dotados de determinação suficiente para impor a vitória da civilização branca
sobre a barbárie. Tais homens constituiriam um verdadeiro “panteão de heróis” que
aparecem como “parte integrante desse processo de definição da nação”.
46
Postando-se de forma crítica frente a essas análises, Arno Wehling argumenta que
Varnhagen não fez mais que escolher, de acordo com suas opções ideológicas, filosóficas e
científicas, “alguns atores históricos privilegiados”, que comporiam “os elementos
fundamentais da dinâmica social”. Mas, se Varnhagen escolhia seus personagens históricos,
isso não significava, afirma Wehling, que escrevera apenas uma história dos grandes
personagens ou que ela fosse “uma galeria de brasileiros ilustres à Carlyle ou mesmo
Plutarco”. Impunha-se sim, a seu ver, “identificar os principais atores que, para Varnhagen,
constituem os elementos fundamentais da dinâmica social”.
47
42
WEHLING, 1999, p. 174. É interessante lembrar que, conforme destaca Roland Barthes, Plutarco
moralizou a história. Cf. BARTHES, 1975, p. 222.
43
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 180-181.
44
RODRIGUES, José Honório, 1988, p. 17.
45
ODÁLIA, 1979, p. 19
46
ODÁLIA, 1979, p. 21.
47
WEHLING, 1999, p. 158.
219
Wehling elabora, então, um quadro classificatório de dupla entrada das
personalidades históricas presentes na HGB e chega a uma tipologia bastante curiosa: de
um lado ficam os brancos, cristãos, estadistas e lusófilos que aparecem dotados de virtudes
positivas – enérgicos, audazes, talentosos, nobres de caráter, prudentes; de outro lado, os
indígenas, africanos, estrangeiros ou os não-lusófilos, portadores de valores nada
engrandecedores – volúveis, cruéis, traidores, impiedosos, ignorantes, descrentes,
desordeiros, ociosos, rancorosos, charlatões, demagogos.
48
Os valores negativos são sempre
atribuídos a personagens ou coletividades que, na visão de Varnhagen, se colocaram contra
o mundo civilizado branco e europeizado. Mas todos esses atores históricos, virtuosos ou
não, eram, lembra Wehling, personagens na HGB.
Contudo, é preciso destacar que os personagens desvirtuosos aparecem na história
varnhageniana como derrotados ou destruídos: os indígenas e os inimigos da colonização
portuguesa, fossem internos ou externos – revoltosos regionalistas ou invasores – terminam
sempre vencidos pelas mãos dos homens virtuosos que, não é demais reafirmar, eram quase
sempre brancos colonizadores ou lusófilos. Tais homens acabam, na perspectiva histórica
de Varnhagen, por concentrar em suas mãos os rumos da história, contando inúmeras vezes
inclusive com a intervenção da Providência divina.
Portanto, mesmo não sendo correto afirmar que a HGB restringe-se a uma galeria de
homens ilustres, é apropriado dizer que Varnhagen pretendeu construir um panteão
nacional. Afinal, as ações vitoriosas, aquelas que a seu ver haviam levado à edificação do
Estado Nacional brasileiro, foram realizadas por homens que se constituíam, esses sim, na
exemplaridade a ser imitada no presente. Os outros não passavam de vencidos que, caso
não fossem destruídos – tanto no passado quanto no presente –, condenariam a nação a
permanecer na selvageria ou a cair sob o domínio de estrangeiros ou a sofrer o
esfacelamento de seu território pelas mãos dos revoltosos regionais. Nesse sentido, a
história também era uma “mestra”, por fornecer exemplos de vidas a serem imitadas pelos
homens no presente. Eram os homens que haviam derrotado aqueles que puseram em risco
a possibilidade de a nação se constituir como uma unidade que se constituíam, na
48
WEHLING, 1999, p. 174.
220
perspectiva varnhageniana, como seus heróis. Eram eles que detinham, para Varnhagen, as
forças viris necessárias à construção e manutenção da nacionalidade.
Porém, o que se destaca é que as tipologias varnhagenianas dos personagens
históricos, que foram classificadas por Arno Wehling, trazem à lembrança as regras
empregadas na composição dos gêneros epidítico e biográfico: Varnhagen empregou os
topoi próprios para os gêneros em questão e fez uso do elogio e da censura para destacar ou
rebaixar o homem em questão. Pode-se mesmo sugerir que Varnhagen imitava e emulava
“auctores de vidas” na construção de seus personagens históricos.
Dentre os julgamentos de personagens históricos feitos por Varnhagen, o de
Tiradentes tem merecido comentários da crítica especializada desde o final do século XIX.
Alguns estudiosos da obra de Varnhagen afirmam que ele adotou uma posição de
condenação do personagem e o censuram pelas opiniões emitidas; outros acreditam que o
historiador foi justo em suas avaliações de Tiradentes e defendem seu ponto de vista; por
fim, há aqueles que afirmam ter Varnhagen adotado uma posição vacilante sobre o
personagem, o que denunciaria falta de segurança sobre os juízos emitidos. No primeiro
grupo de críticos estavam Capistrano de Abreu – para quem Varnhagen se constituiu em
verdadeiro juiz de acusação de Tiradentes
49
– e Celso Vieira – que afirmou ter Varnhagen
deprimido “figuras excelsas” da história brasileira, dentre elas, a de Tiradentes, porque
desconhecia a “belleza da inconfidencia mineira”.
50
No segundo grupo encontra-se Clado Lessa, que acusa Capistrano de caluniar
Varnhagen, por ser um sectário republicano que desejava louvar o “proto-mártir da
república”. Lessa destacou na HGB as passagens nas quais acreditava haver corretas
avaliações do conjurado mineiro e, entendendo que o historiador oitocentista fizera justiça,
conclui que Varnhagen apenas restabelecera a veracidade dos fatos.
51
No último grupo de críticos encontram-se José Honório Rodrigues e Arno Wehling.
Para José Honório, Varnhagen modificara sua opinião sobre Tiradentes e melhorara seu
juízo sobre o conjurado na segunda edição da HGB:
49
ABREU, 1931a, p. 138.
50
VIEIRA, 1923, p. 71-73.
51
LESSA, 1954, p. 178/180.
221
Na primeira edição chamara o Tiradentes de insignificante e indiscreto, a que o
martírio do patíbulo conferira méritos que êle não tinha, e restringiu-lhe a glória da
primeira tentativa de Independência (...). Na segunda edição melhora o tratamento
de Tiradentes (...). E mais retira o trecho depreciativo de Tiradentes e escreve que
‘êle se adiantou a aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias
do martírio que hoje lhe confere a posteridade’. Descreve a corajosa atitude de
Tiradentes no suplício, mas continua a chamar de piedosa aquela rainha de
execrável memória.
52
(grifo do autor)
Essa opinião é compartilhada por Arno Wehling. Em um quadro, no qual classificou
os “juízos emitidos sobre personagens históricos relevantes” e listou esses personagens e
seus atributos, ele afirmou ser a opinião de Varnhagen sobre Tiradentes: “oscilante, com
juízos favoráveis e contrários”.
53
Pode-se verificar que a crítica especializada tem-se dedicado a avaliar o julgamento
feito por Varnhagen do conjurado mineiro. No entanto, por um lado, ainda não se
perguntou de que modo Varnhagen construiu seu personagem histórico. Por outro, tendo
José Honório Rodrigues observado a diferença de abordagem entre a primeira e segunda
edição da HGB, não se investigou se ela representa realmente uma guinada de posição.
quando pode-se argumentar que se trata de um efeito calculado e pretendido, um resultado
planejado.
7.4. A biografia de Tiradentes na HGB
Na primeira edição da HGB, o capítulo dedicado ao movimento ocorrido em Minas
Gerais, em 1789, era intitulado Primeira conjuração em favor da independencia do Brazil.
Nesta versão, os atores históricos privilegiados eram homens formados na Europa, que
haviam incorporado os ideais de liberdade da independência das treze colônias americanas.
Varnhagen iniciava assim seu texto:
O augmento da facilidade das communicações, que acompanha o desenvolvimento
da civilisação, irmana de tal modo em sentimentos, assim os povos da mesma
nação, como os de nações differentes, que não é raro em política que os écos d’uma
grande revolução se repercutam em paragens mui distantes (...). Memorável
exemplo do que levamos dito nos offerece a bem lograda revolução feita pelas
52
RODRIGUES, José Honório, 1967, p. 178. Esse mesmo trecho foi repetido por Rodrigues, com pequenas
alterações, em seu estudo sobre a concepção conservadora da história. Cf. RODRIGUES, José Honório, 1988,
p. 15.
53
WEHLING, 1999, p. 176.
222
colonias inglezas do norte da América, para se declararem nação independente da
mãi-patria. Como era natural cada uma das outras colonias americanas, ou ao
menos a sua gente mais illustrada, reconheceram a analogia de situação. Em
Coimbra doze estudantes brazileiros, combinando entre si a possibilidade de se
declarar o Brazil independente, se comprometteram a levar ávante a idea, quando
isso fosse possivel.
54
Na seqüência de sua narrativa, Varnhagen apresentava e elogiava os planos dos
mineiros para o novo país independente e até lamentava que não houvessem gerado frutos:
Assim a esta conjuração se deve a primeira proposta dos dois grandes pensamentos,
que ainda por ventura algum dia realisará o império brazileiro: – a de uma capital
no seu interior, em Minas; e a de uma universidade central (...). Parece em verdade
que estes dois grandes pensamentos ainda não maduraram entre nós (...).
55
Não havia dúvidas sobre quem eram os mentores do movimento: a elite da
capitania. E em várias passagens, Varnhagen faz questão de mencioná-los: Alvarenga
Peixoto, que propusera um modelo para a bandeira do novo país com a divisa latina
Libertas quae sera tamen, era homem de elevada instrução; padre Carlos Correa de Toledo
era o maior vulto entre os conspiradores; Cláudio Manuel da Costa, em cuja casa ocorreram
as primeiras conferências entre os revoltosos, era advogado e poeta; Francisco de Paula
Freire de Andrada, cuja casa também serviu de ponto de encontro, era tenente-coronel
comandante do regimento de linha de Vila Rica.
56
Era uma conspiração contra a autoridade,
mas havia um substrato social ou intelectual que a dignificava.
Tratava-se de uma conjuração da elite, de letrados e de poderosos, sendo Tiradentes
figura secundária. Foram os primeiros que fizeram “conferências” e decidiram o melhor dia
para iniciar o movimento. Tiradentes pouco aparece em cena e é um agente sem voz ativa:
(...) e foi nomeado entretanto afim de convocar partido no Rio de Janeiro, e ahi
comprar armas, o alferes Joaquim José da Silva Xavier, alcunhado ‘Tiradentes’, que
havendo ali estado antes, com o P. José da Silva de Oliveira Rolim, ambos
separados da capitania pelo governador Meneses, haviam já sondado o terreno
ácerca da possibilidade de realisar-se a sublevação.
57
(grifo do autor)
Tiradentes já estivera no Rio de Janeiro “sondando” possíveis apoios; mas não agira
sozinho, pois fora acompanhado pelo padre Rolim. Retornara depois ao Rio, mas seguia
obedecendo ordens: “foi nomeado” por aqueles que realmente pensavam e decidiam nas
54
VARNHAGEN, 1857, p. 269.
55
VARNHAGEN, 1857, p. 272. Idéias semelhantes a essas eram defendidas por Varnhagen desde 1849,
quando publicou o Memorial orgânico. Cf. VARNHAGEN, 1849.
56
Cf. VARNHAGEN, 1857, p. 273.
57
VARNHAGEN, 1857, p. 273/274.
223
“conferências” realizadas. A presença significativa de Tiradentes só acontece no final do
enredo, no fechar das cortinas:
O alferes Silva Xavier foi considerado cabeça; julgando os juízes necessário para o
escarmento público algum exemplo, votaram por que fosse ao patíbulo o
insignificante e indiscreto Tiradentes. (...) O martyrio do patíbulo conferiu ao
alferes Silva Xavier méritos que elle não tinha, atribuindo-se-lhe, apezar de ‘pobre,
sem respeito e louco’, como delle diz Gonzaga, a glória da primeira tentativa pela
independencia do Brazil, que alias foi obra de muitos patrícios illustres, e de vários
indivíduos de lettras e de sciencias.
58
(grifos do autor)
A conspiração precisava ser punida exemplarmente; e alguém deveria subir ao
patíbulo, para exemplo público. Então, por decisão dos juízes, e somente por isso, “Silva
Xavier foi considerado cabeça”. Era um homem “insignificante, indiscreto, pobre, sem
respeito” e mesmo “louco”, que ganhou “a glória” graças ao “martírio”. A condenação feita
pelos juízes deu a Tiradentes “méritos” que ele não possuía. Afinal, tratava-se de uma
conspiração de “patrícios illustres” e não da plebe. Para o autor era fundamental que isso
ficasse claro.
Na segunda edição da HGB, Varnhagen realizou uma enorme modificação no
capítulo sobre a Conjuração Mineira: frases foram reescritas ou eliminadas, trechos
cortados e outros inseridos. O historiador anunciou, no próprio capítulo, os grandes
reajustes que fizera em seu texto:
Repelindo aqui, com a devida energia, a injusta acusação de havermos sido
contraditórios na sucinta narração deste sucesso, contida nas páginas da primeira
edição desta obra, narração pela maior parte escrita, não pela ouvida das tradições,
mas especialmente em presença das informações oficiais enviadas à corte pelo
próprio governador em ofício de 11 de Julho de 1789, que alguns têm citado sem o
ter visto (dando até com data errada de um ano), começaremos por declarar que a
publicação efetuada, embora interpolada e menos corretamente, do teor do
processo, nos permitirá, cingindo-nos aos depoimentos, interpretados ‘com o devido
critério’, dar atualmente a esta secção um pouco mais de desenvolvimento,
esmerando-nos, como temos feito nas demais, em ser concisos e exatos, sem nos
emaranharmos em pormenores que se contradizem, que escapam apenas lidos e que
nada aproveitam à história, pois (não nos cansaremos em repeti-lo), não consiste o
bom critério desta em juntar muitos fatos, nem muitas autoridades, mas sim em
apreciá-los devidamente, apurando deles e delas a verdade.
59
(grifo do autor)
Era a profissão de fé de um historiador que veementemente repudiava a acusação de
ser contraditório. Reafirmava que o capítulo fora escrito respeitando estritamente o que se
58
VARNHAGEN, 1857, p. 279.
59
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 310.
224
encontrava nas “informações oficiais enviadas à corte pelo próprio governador em ofício de
11 de Julho de 1789”, relativas ao caso. Anunciava agora, no capítulo reescrito, que se
restringiria “aos depoimentos”
60
e que não se deixaria emaranhar “em pormenores que se
contradizem, que escapam apenas lidos e que nada aproveitam à história”. Por um lado,
repetia e reafirmava ser a HGB fruto constante de suas pesquisas. Por outro, contudo,
lembrava a seus leitores que existiam regras para a composição de narrativas. Declarava,
implicitamente, que errara na primeira versão do capítulo, porque inserira digressões que
apenas dificultavam a fixação da atenção do leitor no essencial da narrativa. Era por isso
que, conforme afirmava, decidira “esmerar-se” e não “juntar muitos fatos”, limitando-os,
para poder “apreciá-los devidamente”.
61
Varnhagen referia-se a várias e longas avaliações que fizera na primeira versão do
texto sobre a fixação da capital do novo país em uma cidade do interior, a necessidade de
criação de uma universidade no Brasil, a importância de se incentivar “a colonisação de
gente europea illustrada” e a defesa da herança do trono brasileiro por uma princesa,
repudiando a tradição da “lei sálica” que previa apenas a sucessão masculina.
62
Todas essas
“interpolações” foram retiradas na segunda edição do texto. Porém, considerando a visão
varnhageniana moralizante da história, esses trechos não eram necessariamente
“interpolações”. Por um lado, reforçam a interpretação, feita por José Honório, de que a
história é resultante do pensamento de homens letrados; por outro, a discussão da herança
do trono procurava rebater antecipadamente qualquer interposição que se fizesse à sucessão
de D. Pedro II por sua filha Isabel. Contudo, Varnhagen optara, na segunda versão do texto,
por não interromper o fio da narrativa com idéias que extrapolavam a preocupação central
de seu texto.
As modificações feitas por ele novamente nos remetem a Quintiliano, que, segundo
Roland Barthes, definia uma narrativa como a “exposição de um fato ou acontecido, ou
como se acontecesse”. Ainda segundo Barthes, Quintiliano ensinava que na construção de
60
José Honório Rodrigues lembra que Varnhagen utilizou os Autos da Devassa na segunda edição da HGB.
Segundo Rodrigues, Varnhagen transcreve, na segunda edição da História geral, um trecho, contido nos
Autos, no qual o alferes condenava o colonialismo português. O trecho seria o seguinte: “porque poderia
assim suceder que esta terra se fizesse uma República e ficasse livre dos governos que só vêm cá ensopar-se
com riquezas”. Cf. RODRIGUES, José Honório, 1988, p. 15, nota 25.
61
Sobre a questão da eliminação de digressões em prol da clareza do texto, ver o capítulo 6 desta tese.
62
VARNHAGEN, 1857, p 272, 273, 278, 279.
225
uma narrativa o orador/escritor deveria evitar alguns vícios que conduziam à falta de
clareza, de brevidade e de verossimilhança do texto. Um deles era a digressão, por ele
taxativamente proibida: “que se não faça nela [na narrativa] digressão alguma”.
63
Ao
eliminar as passagens acima mencionadas, Varnhagen buscava aprimorar as virtudes
próprias de sua narrativa, tornando-a mais clara, breve e, conseqüentemente, mais
verossimilhante.
Ele fez questão de destacar, na segunda versão, que suas assertivas eram fruto de
reflexões feitas a partir da base documental e eram elas, afiançava, que lhe permitiram
concluir, por exemplo, que Tomás Antônio Gonzaga, “não desejava que estalasse um
rompimento” entre Brasil e Portugal.
Resulta essa nossa convicção do estudo profundo de toda a devassa, analisada com
a devida imparcialidade, ante a luz da crítica, que não se deve guiar pelo dito de
uma ou outra testemunha apaixonada, ou interessada; mas unicamente pela essência
que ressumbra do conjunto dos depoimentos, manifestamente mais sinceros, e de
todos os fatos apurados. Cremos (...) a verdade é que não se prova que Gonzaga
fosse conspirador.
64
Entretanto, toda a discussão que abria o capítulo visava a preparar o leitor, pois o
que interessava ainda estava por vir, que era a conjuração, ela própria: “Liquidado esse
ponto passaremos a ocupar-nos do assunto”.
65
O capítulo até mesmo mudara de título,
passara de Primeira conjuração em favor da independencia do Brazil a Idéias e conluios
em favor da independência em Minas. Um “conluio” é uma conspiração, mas a palavra traz
mais fortemente, em relação a “conjuração”, a imagem do desejo de lesar alguém com uma
ação malévola e até mesmo diabólica. A troca do título do capítulo não foi gratuita e
também ela já prenunciava o que viria.
Na segunda redação, Tiradentes deixou de ser um personagem coadjuvante para
ocupar um papel central na narrativa. Varnhagen, jurando fidelidade aos documentos e
protestando avaliá-los com imparcialidade, afirmava que tudo o que diria sobre ele era fruto
de longa maturação. Não se tratava de visão apaixonada, mas de convicção formada a partir
da apuração dos fatos, do estudo profundo e da imparcialidade no julgar. Com tudo isso,
Varnhagen preparava o espírito do leitor para bem receber o longo trecho sobre Tiradentes:
63
Quintiliano apud. BARTHES, 1975, p. 201.
64
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 310-311.
65
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 311.
226
“Da careação, por nós pausada e refletidamente feita, de todos os depoimentos, resulta que,
verdadeiramente, entre os vários que se conluiaram, só um chegou a entusiasmar-se pela
idéia da revolução: foi o mencionado alferes Silva Xavier (...)”.
66
O revoltoso mineiro era posto no centro do cenário porque fora o único a
“verdadeiramente (...) entusiasmar-se pela idéia da revolução”, mas tratava-se agora de um
conluio. A “alma” de Tiradentes fora atingida por uma “centelha” que “lavrou o incêndio
por tal forma que não pôde mais apagar”; ele foi possuído por uma idéia “que o abrasava,
subordinava tudo quanto via e ouvia”. Centelha, incêndio, abrasar, são palavras que trazem
à memória a imagem maldita do fogo eterno: a idéia demoníaca de revolução dele se
apoderara. A seqüência da narrativa amplificava a imagem: tão possuído se tornara ele, que
perdera todo o controle sobre si mesmo e, “com uma leviandade e audácia inauditas para
aquele tempo, a todos se propunha converter e angariar”. Imprudentemente, Tiradentes
passara a “inventar” que outros países viriam ao socorro dos conjurados e que eles seriam
apoiados por revoltosos da colônia; e “atrevidamente começou por ‘abordar’ o seu próprio
comandante, o jovem tenente-coronel Francisco de Paula Freire de Andrada”; e “tentou
inutilmente aliciar a Cláudio”; e “foi ainda ele quem contribuiu a angariar o padre Carlos
Correia de Toledo e Melo, (...) e o distinto pregador Rodovalho, o opulento padre José da
Silva de Oliveira Rolim”; e tudo isso ia ele fazendo “atacando a cada qual pelo respectivo
lado fraco”. Tiradentes era a personificação do homem sem virtude: leviano, mentiroso,
atrevido, corruptor de jovens, aliciador, aproveitador das fraquezas humanas. Mas não
paravam aí as desvirtudes do revoltoso, porque “no auge do entusiasmo, obedecia o mesmo
alferes, não só aos impulsos do patriotismo, como também aos da ambição”.
67
Novamente
Varnhagen empregava o recurso da amplificação para construir a imagem de Tiradentes: os
adjetivos depreciativos eram somados, resultando em uma totalidade que era,
contrariamente ao que ensina a matemática, muito maior que a simples soma das parcelas –
que não restassem dúvidas: Tiradentes era, efetivamente, um homem sem valor.
E se o leitor imaginasse serem essas imperfeições de caráter provenientes da
centelha que o atingira e o abrasara era preciso deixar claro: apenas os fracos se deixavam
dominar e controlar. Varnhagen então constrói uma biografia de Tiradentes: ele começara a
66
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 311.
67
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 312.
227
vida por “aplicar-se à profissão de dentista, em que chegou a ser hábil” e que lhe valeu “o
ser denominado ‘Tiradentes’.” Essa foi a única atividade a que se dedicou e na qual foi bem
sucedido. Varnhagen lembrava que, entretanto, essa profissão era então considerada tão
desonrosa
68
que, posteriormente, tornou-se um impeditivo para novas promoções na
carreira militar: “Vendo-se por vezes preterido [na promoção], o que ele candidamente
acreditava provir de falta de proteção, e devemos antes hoje atribuir à ‘desrecomendação’
que seria para ele o geral conceito de ser um ‘hábil tiradentes’ (...)”.
69
(grifos do autor)
Varnhagen continua, então, a enumerar os fracassos de Silva Xavier, ao longo da
vida: “lançou-se a também a mascatear em Minas Novas, mas saiu-se mal”; então resolveu
“sentar praça na cavalaria” e chegou até a ter sorte, porque ocorreram guerras no sul e,
graças a elas, “conseguiu ser promovido a alferes”. Mas o sucesso era uma ilusão, porque
ele “de alferes não passou”. E a lista não pára aí: “pretendeu votar-se à mineração; mas
saiu-se de novo mal”. E quando já atingia os quarenta anos, ao invés de alcançar a
serenidade e a prudência próprias da maturidade, encontrando-se no Rio de Janeiro: “
travou conhecimento do dito Dr. Maciel, quando regressava da Europa, e dele recebeu as
primeiras inspirações para se lançar, com afinco na nova empresa, de que viria a ser a
vítima principal”. Tiradentes, um derrotado ao longo de sua vida, só poderia terminá-la
com o coroamento de seu fracasso – cavando a própria morte.
70
Amplificando ainda mais sua caracterização, lança mão da descrição física do
biografado. Quintiliano considerava ser digno destacar “les avantages physiques” do
homem elogiado o que, contudo, não deveria ser feito de forma uniforme. Afinal, conforme
advertia, se um defeito físico era uma desvantagem à primeira vista, ele contribuiria para
aumentar a admiração pelo herói, desde que se soubesse bem explorá-lo a seu favor. No
caso da construção de vitupérios, Quintiliano recomendava que se empregassem os mesmos
recursos, com objetivos contrários.
71
Ao descrever o tipo físico de Tiradentes e afirmar ter
68
Varnhagen fazia aqui referência ao modo como os ofícios ligados “ao sangue” foram entendidos como
ofícios sujos e desonrosos para quem os exercia, até pelo menos os finais do século XVIII. O próprio
comentário de Varnhagen de que na época de Tiradentes eram vistos desse modo, denuncia uma mudança
cultural. Cf. MACHADO, 1978, p. 17-148.
69
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 312-313.
70
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 312-313.
71
QUINTILIEN,1954, vol. I, livro III, p. 375-377. Segundo Adolfo Hansen, as convenções estilísticas para a
composição dos discursos epidíticos estabeleciam, desde Aristóteles, que os critérios “para o louvor ou
vituperação baseavam-se” nos pares de oposição bom/belo e mau/feio, que se constituíam em topoi próprios
228
sido ele feio e antipático, Varnhagen empregava um lugar-comum do gênero epidítico: o
caráter do personagem e até mesmo seu destino estavam inscritos em sua própria
fisionomia.
72
Cumpre acrescentar que para alguns dos malogros do mesmo alferes em suas
pretensões, além da circuntância de ser ‘tiradentes’, devia também contribuir o seu
físico. – Era bastante alto e muito espadaúdo, de figura antipática, e ‘feio e
espantado’.
73
(grifos do autor)
Na primeira edição da HGB, a conjuração mineira foi descrita como um movimento
de homens letrados, que se reuniram nas casas de alguns deles e que chegaram mesmo a
conceber corretos e grandiosos planos para o país independente. Nela a conjuração aparecia
como produto dos grandes homens educados e cultos. Mas na segunda versão, ela se
transforma “em planos aéreos”
74
do Tiradentes. Varnhagen agora até mesmo duvida que se
tratara de uma verdadeira conspiração:
Pelo que respeita à sua heróica empresa, não a denominaremos ‘conjuração’. Custa-
nos até o dar-lhe o nome de conspiração; embora concedamos que fosse ele um
verdadeiro conspirador. Não houve, porém, ‘conjurados’ ou conspiradores
ajuramentados em regra; não foi a resolução precedida de conciliábulos tenebrosos,
conluiados em forma: as reuniões faziam-se quase a portas e janelas abertas, sendo
apenas o assunto, que servia nelas de tema, conversação reservada, interrompida
com a entrada de qualquer profano, que vinha de visita.
75
Na seqüência do trecho, ele empregou mais duas vezes a palavra “conluio” para se
referir à conjuração, como se pretendendo reforçar a idéia de que tudo aquilo não passara
de “atrevimento, leviandade e audácia inaudita” do desonrado tirador de dentes. E se
Tiradentes foi “um verdadeiro conspirador”, Varnhagen colocava em suspeição a existência
de uma conspiração. Ele admitia que houve conversa, em casa de Freire de Andrade, e que
em um único encontro se teve a aparência de um “conventículo, ou conluio”. Nele se
deste gênero. Cf. HANSEN, 1994, p. 38, 109. Segundo Hartog, na biografia de Alexandre, por exemplo,
Plutarco afirma que “como os pintores salientam as semelhanças a partir do rosto e das formas visíveis em
que se manifesta o caráter (...) assim também deve-se permitir-nos penetrar antes nos sinais da alma e, através
disso, desenhar a vida de cada um (...)”. Cf. Horácio apud HARTOG, 2001, p. 175.
72
O emprego deste topo pode ser encontrado em outras passagens da HGB. No caso do tratamento dispensado
por Varnhagen a D. João VI, a ausência da descrição física do monarca pode ser interpretada como proposital.
Sendo o rei de reconhecida feiúra, sua descrição poderia conduzir a fins contrários aos desejados por
Varnhagen. Neste caso ele se limitou a descrever o caráter do príncipe regente: “era o príncipe bondoso de
caráter, pio, dotado de felicíssima memória”. Cf. VARNHAGEN, 1978, p. 10, vol. 3.
73
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 313.
74
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 310. No Florilégio, Varnhagen denominava o movimento de
“fantasiada conspiração do Tiradentes”. Cf. VARNHAGEN, 1987 (1850), t. 1, p. 279. O trecho encontra-se
na biografia de Cláudio Manuel da Costa.
75
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 313.
229
tratara, afirma Varnhagen, da conveniência de não se aguardar a adesão do Rio de Janeiro,
da necessidade de se conseguir o apoio do povo de Minas e da capitania de São Paulo, da
decisão de se expulsar o governador de Minas, sem molestá-lo. Uma única reunião que ao
ser narrada pelo autor somente lhe servia de estratégia para adubar a semente da dúvida
com relação à existência efetiva de desejo de conspirar.
Mas, repetimo-lo, tudo isto não passou de conversação hipotética: não houve
decididas resoluções, a que se devesse começar a dar cumprimento. Nem sequer se
assentou em quem deveria ser o chefe. De todos o que tomou o negócio mais a
sério, constituindo-se verdadeiro cabeça de motim, foi ainda o Tiradentes, que já
não pensava em outra coisa, e quando muito, depois dele, também o vigário Toledo.
Os demais, especialmente Alvarenga e o tenente-coronel [Freire de Andrada],
pareceram antes, pouco depois, arrependidos de se haverem deixado levar tanto
adiante. Quase todos trataram sem demora de se ausentar de Vila Rica (...).
76
Tiradentes é deixado sozinho no cenário. E foi sozinho, inclusive pedindo dinheiro
emprestado e endividando-se – o que reforçava a imagem de ser um homem imprevidente -,
que “resolveu seguir para o Rio de Janeiro”; e, sempre agindo de forma indiscreta,
imprudente, inconveniente e perseverante em direção ao erro, buscava “partido em favor da
independência da pátria”. Tornar-se-ia culpado por sua própria sorte. E talvez ele fosse
também culpado pela sorte dos outros: Varnhagen insinuava que fora a imprudência de
Tiradentes que terminara por levar os demais à condenação: “Infeliz! Não tinha obtido mais
do que conseguir fazer, livre de algemas, até o sítio do seu martírio, a jornada que os
demais companheiros, menos culpados e até inocentes, haviam de fazer, pouco depois,
acorrentados”.
77
Mas era preciso que tudo isso tivesse um final. E, do mesmo modo como fizera em
outras passagens de sua HGB, Varnhagen lançava mão da intervenção da Providência para
explicar o desenrolar dos acontecimentos históricos.
78
Tiradentes, possuído “pelas idéias
que o abrasavam”, era um homem perdido, e somente Deus poderia salvá-lo.
Alvarenga, Maciel e Vidal Barbosa revelaram quanto sabiam, e o mesmo fez
religiosamente o ‘Tiradentes’ (depois de haver tudo negado a princípio) quando se
76
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 314.
77
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 314.
78
Nas Seções II a IV da HGB, Varnhagen descreveu o estado de barbárie no qual se encontravam os tupi, que
ocupavam o território brasileiro, antes da chegada dos portugueses. Na Seção II, afirma que estariam eles
fadados a desaparecer se a: “Providência Divina não tivesse acudido a dispor que o cristianismo viesse ter
mão a tão triste e degradante estado!”. A quarta Seção é encerrada com o anúncio de que todos os males
seriam derrotados graças à “expiação” que se realizaria com a presença da “Europa cristã”. Cf.
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 1, p 30/56.
230
persuadiu, devoto como era, que estava de Deus que tudo ficasse sabido. Os seus
depoimentos últimos merecem, pois, o conceito de um relato muito verdadeiro de
quanto se passou.
79
O conjurado mineiro era um homem cuja fraqueza se revelava ao leitor até nos
últimos momentos; era um covarde que tinha dificuldades em assumir seus atos. Porém,
uma qualidade ele possuía: era “mui devoto do mistério da Santíssima Trindade”.
80
E sua fé
foi sua salvação por livrá-lo do mal que dele se apossara; como réu-confesso, transformava-
se na principal testemunha para os que pretendessem narrar a verdade histórica.
O historiador Varnhagen, nesse momento, abandona a alcunha “tiradentes” e
recupera o nome e a titulação do homem: “O alferes Silva Xavier”. Abjurado o mal pela
confissão, o Tiradentes retomava sua integridade humana. Porém, a confissão não
implicava a remissão dos pecados e o alferes seria condenado por decisão dos próprios
contemporâneos: “julgando os juízes necessário para o escarmento público algum exemplo,
votaram para que fosse ao patíbulo, cumprindo-se inteiramente, a seu respeito, a dura e
cruel sentença”.
81
Essa frase da condenação foi modificada por Varnhagen para a segunda
edição da HGB; dela ele retirou as desvirtudes de ser Tiradentes “insignificante e
indiscreto”. José Honório Rodrigues afirmava ser tal modificação uma prova de que o autor
melhorara “o tratamento de Tiradentes”.
82
E, realmente, no texto de Varnhagen, o alferes
que caminhava para a execução era um homem redimido.
Do alferes Silva Xavier sabemos que ouvira a sentença com toda a serenidade; e
que, com a maior abnegação de si, chegou a dizer quanto estima vir a pagar as
culpas daqueles que ele havia comprometido. Por essa forma ele se adiantou a
aceitar para si a responsabilidade desta nobre tentativa e as glórias do martírio que
hoje lhe confere a posteridade.
O dia 21 de abril veio a ser o designado para o do seu suplício no Rio de Janeiro.
(...) Ao pedir o carrasco perdão ao réu, quando lhe vestia a alva, exclamou ele: ‘Oh
meu amigo! Deixe-me beijar-lhe as mãos e os pés: também o nosso Redentor
morreu por nós’. Marchou depois sereno ao suplício, pediu por três vezes ao
carrasco que abreviasse a execução, e com os olhos pregados no Crucifixo, subiu ao
patíbulo...
83
(grifos do autor)
Pela primeira vez, Silva Xavier parecia ter virtudes: sereno, abnegado,
comprometido, responsável, humilde e temente a Deus. Poderia ser um herói, desde que o
79
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 319.
80
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 313.
81
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 320.
82
RODRIGUES, José Honório, 1988, p. 15.
83
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 321.
231
autor novamente não semeasse no espírito do leitor uma suspeita: não estaria o alferes
agindo dessa forma por desejar “as glórias do martírio”? Glórias eternas que, de outra
maneira, certamente ele não alcançaria. Varnhagen insiste e repete a frase que já aparecera
na primeira edição da HGB: “o martírio do patíbulo conferiu ao alferes Silva Xavier, apesar
de ‘pobre, sem respeito e louco’, como dele diz Gonzaga, a glória toda de semelhante
aspiração prematura em favor da independência do Brasil”.
84
(grifos do autor) É certo que
Varnhagen eliminou dessa frase, para a segunda versão do capítulo, o trecho: “meritos que
elle não tinha”. Mas se tivesse insistido tão explicitamente em desvirtuar seu biografado,
não correria o risco de antipatizar seu leitor para com a tese defendida? Seria mesmo
preciso repetir que Tiradentes fora um homem “sem mérito”? Não correria aqui o autor o
risco de ser visto como menos digno de confiança por mostrar-se menos escrupuloso e
prudente em sua exposição? Agora era o momento, no texto, de recuperar e insistir apenas
na idéia de que a glória de Tiradentes não fora resultado de suas ações ou produções, mas
simplesmente do martírio que sofreu, por ser até mesmo “louco”.
Varnhagen, diferentemente do que pode parecer, não mudou sua avaliação sobre
Tiradentes; mudou aquela que tinha sobre a conspiração. Na primeira edição da HGB,
denominava o movimento de “primeira conjuração em favor da independencia do Brasil”;
85
na segunda edição, passou a nomeá-lo de “conluio” e de “primeira tentativa em favor da
independência em Minas”.
86
A modificação é sutil, mas o ator histórico era agora outro e
dele se poderiam esperar apenas ações imprudentes e fracassadas. No título dado ao
capítulo encontra-se explícita a desastrosa conseqüência a que a vitória do movimento
conduziria: pretendia-se a separação de Minas do Brasil e de Portugal, o que poderia ter
conduzido, caso o movimento fosse vitorioso, ao esfacelamento do território nacional.
Varnhagen fez uso de antigas lições para compor as biografias analisadas, tanto a de
Morais Silva, de Eusébio de Matos, quanto a de Tiradentes. Ao mesmo tempo, confiava
que fora capaz de demonstrar a seu leitor que não fizera mais do que “juntar os fatos” e
deles apurar a verdade; confiava, sobretudo, que fora capaz de executar o discurso
84
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 322.
85
VARNHAGEN, 1857, p. 269.
86
VARNHAGEN, 1978 (1877), v. 2, p. 306.
232
adequando o conteúdo à forma. E tanto mais destro e eficaz seria o orador, quanto mais
conseguisse não revelar sua arte. As modificações realizadas no capítulo da HGB em
questão, se resultado do conhecimento que Varnhagen passara a ter dos Autos de devassa,
eram também o resultado de um aprimoramento da utilização de regras de composição
empregadas segundo seus objetivos. O confronto entre as duas edições mostra que
Varnhagen aprimorou estilisticamente a redação do capítulo, suprimiu interpolações e,
principalmente, esmerou-se no uso de tópicas do gênero biográfico.
Resta, logicamente, uma pergunta a ser respondida: foram esses recursos do gênero
epidítico e do biográfico empregados na construção de outros personagens históricos da
HGB?
Considerações finais
234
Ao longo de anos, na década de 1960, o historiador Peter Gay se debruçou, segundo
testemunha ele próprio, sobre a obra de alguns clássicos da historiografia. No início dos
anos 70, ele publicou o resultado de anos de reflexão: o estilo de um historiador deveria ser
percebido e analisado como um poderoso índice que, habilidosamente inquirido, poderia
contribuir para a compreensão dos próprios alicerces da escrita da história. A seu ver, o
estilo na história, como em toda arte, é “forma e é conteúdo, entrelaçados para formar a
tessitura” da própria narrativa: a análise revelaria a presença dele no manejo das frases, no
emprego de recursos retóricos e no ritmo dado à narrativa pelo historiador. Se o estilo é a
marca da individualidade de um escritor, é também a resultante de uma teia complexa
composta pelas normas da cultura na qual ele se formou. A teia resultaria, segundo Peter
Gay, de “uma combinação de modos herdados, elementos tomados de empréstimo e
qualidades exclusivas”.
1
Afirma ele que o estilo é aprendido e, ao contrário do que
pensavam os românticos, os escritores iniciam sempre sua atividade seguindo um modelo
de sua admiração; a escrita se dá a partir de uma “tradição literária”, pois os escritores,
mesmo quando a negam, não lhe são indiferentes. A cada época, os escritores teriam, à sua
disposição, maneiras peculiares de expressão e estariam submetidos às convenções da
forma e dos modos específicos do momento, então aceitos como corretos e bons. Por isso, o
estudo do estilo, segundo Peter Gay, permitiria o acesso aos valores, aos ideais e aos
projetos de uma época e, simultaneamente, às intenções do historiador, aos motivos e aos
desejos que o moveram à escrita. A análise do estilo do historiador possibilitaria capturar o
profundo significado de suas afirmações e de suas percepções sobre seu próprio tempo.
Mais do que informações sobre o escritor, o estilo forneceria pistas e indicações
inconfundíveis sobre “as formas de pensar, sentir, crer e operar da cultura”.
2
Francisco Adolfo de Varnhagen, diplomata, historiador e intelectual do século XIX,
é um autor conhecido e estudado no Brasil. Sua obra foi vasculhada e analisada por
inúmeros e grandes estudiosos. Porém, ela guarda surpresas capazes de permitir a
compreensão de realidades que teimam em resistir à nossa capacidade de análise.
1
GAY,1990, p.19/25.
2
GAY, 1990 (1974), p. 20.
235
Desde o início da preparação de minha dissertação de mestrado tenho lido e relido
parte da obra de Varnhagen. Naquele momento, minha intenção era a de procurar entender
como Varnhagen abordara a questão do indígena na história do Brasil, assim como era
analisada por ele a questão do indígena seu contemporâneo. Li seus textos que versavam
direta ou indiretamente sobre o tema. Porém, essa leitura me conduziu, já naquela época, a
um homem que escrevia com uma paixão voluptuosa e com uma profunda convicção,
sempre movido pela certeza de que suas idéias estavam corretas e que era preciso
convencer o leitor de seus pontos de vista. Mas, sobretudo, existia em sua construção
discursiva, uma grande força argumentativa. Havia nelas um segredo, que as tornava
capazes de provocar reações. Em mim, Varnhagen gerava um sentimento de indignação e
conseguia me mover, ainda que em direção contrária à que inicialmente pretendera. Ou
seja, sua construção discursiva, apesar do tempo decorrido, conservava um forte poder de
apelo.
Varnhagen escreveu livros de história, textos prefaciais, biográficos, literários e de
crítica literária, sobre questões político-administrativas, sobre questões agrícolas – textos
que tratavam de problemas muito prementes, em seu tempo, para um país que acabava de
sair da situação colonial. Nesses trabalhos de Varnhagen, encontra-se um escritor cuja
palavra estava sempre empenhada na defesa de uma causa: era uma palavra militante. E ele
cuidadosamente as arranjava. Inúmeras vezes o encontramos avisando o leitor de que
publicava pela segunda vez um trabalho porque fizera-lhe correções e acréscimos. Ele
escolhia as palavras, corrigia e burilava suas frases, recompunha períodos, acrescentava,
retirava ou redistribuía matérias no corpo do texto, adjetivava em abundância passagens de
suas obras, etc. Porém todo esse cuidado estava ligado ao intuito de tornar seu texto mais
eficaz, capaz de convencer seu leitor das razões apresentadas e das idéias defendidas.
3
Ele
escrevia com a pretensão e com o objetivo de retirar seu leitor da apatia frente às questões
por ele apresentadas. Sua linguagem às vezes lembra a de um advogado a defender as
honras da causa que abraçara, outras vezes a de um senador empenhado na defesa dos
interesses da nação, ou ainda a de um juiz a emitir sentenças de condenação ou de perdão.
E, no entanto, seus textos continuam interpretados como a revelação das preocupações de
3
Aqui torna-se interessante lembrar a afirmação de Adolfo Hansen de que um orador é mais persuasivo
quando é apaixonado porque ele seria mais capaz de mover sua platéia. Cf. HANSEN, 1994, p. 62.
236
um historiador empenhado na busca da verdade documental. Afinal, conforme
estabeleceram seus primeiros estudiosos, Varnhagen não era “um estilista” e, por isso, não
haveria o que se dizer acerca da forma de composição de seus textos. Eram simplesmente
ruins. Porém, os textos são testemunhos das escolhas narrativas realizadas pelo autor e
fornecem pistas para a revelação de um “discurso subterrâneo”
4
, que resiste à aproximação.
Os textos, enquanto resultantes de uma construção autoral, revelam as estratégias
discursivas empregadas pelo autor.
5
Neste trabalho, os textos de Varnhagen foram lidos e considerados como
monumentos, ou seja, como elaborados a partir da perspectiva de mundo e das intenções de
seu autor. Tomados como monumentos, os textos de Varnhagen são o registro de como seu
produtor enxergou, compreendeu e registrou o mundo.
6
Foram, pom, lidos a
“contrapelo”, ao modo como exortava Benjamim
7
, ou às avessas
8
, como sugere Ginzburg,
pois buscou-se deslindar as intenções e motivações de sua produção. Procurou-se
desmontá-los, para analisar as estruturas discursivas empregadas pelo autor e os fins que se
propunha a alcançar.
9
Varnhagen, formado na preceptística retórica, em uma escola militar portuguesa, era
um homem de seu tempo. Na escola, como aluno, analisou, repetiu e foi constrangido a
aprender os modelos considerados clássicos, porque corretos e dignos de serem imitados e
emulados. Ainda criança, fora treinado e formado para o domínio da palavra, segundo os
modelos considerados clássicos; adulto, redigiu textos em diversos gêneros literários e
empregou estratégias discursivas aprendidas e que tinham como substrato a retórica.
4
LE GOFF, 1996, p. 103.
5
LE GOFF, 1996, p. 103.
6
Jacques Le Goff exorta os historiadores a considerar as “condições concretas” de produção dos documentos.
Cf. LE GOFF, 1996, p. 103. Como há tempos advertiu Jacques Le Goff, todo documento é um “monumento”
sempre edificado, “voluntária ou involuntariamente”, a partir de uma perspectiva de mundo de quem o
elaborou.
7
BENJAMIN, 1996, p. 225. (tese 7)
8
GINZBURG, 2002, p. 43.
9
Segue-se o que Jean Starobinski sugeria: deixar o objeto – no caso, o texto - “afirmar todas as suas
propriedades, todas as suas determinações particulares”, num esforço para “descrever e pôr em evidência os
caracteres internos da obra”, sua estrutura e sua voz. Cf. STAROBINSKI, 1974, p. 133-134.
237
Certamente, alimentava o desejo de ter sua obra reconhecida a ponto de ser alçada ao
patamar de modelo a ser imitado e emulado.
10
Varnhagen foi um autor que empregou recursos discursivos conhecidos e
reconhecidos para a composição nos vários gêneros em que redigiu. Em todos os casos, ele
visava a efeitos premeditados.
Na polêmica travada com M. d’Avezac, fez uso de recursos retóricos como: a ironia
– para desmoralizar seu oponente e/ou para colocar sob suspeita suas opiniões; raciocínios
entimemáticos – para provar o erro do raciocínio do oponente; a amplificação – para
valorizar o próprio ponto de vista ou para desvalorizar o de seu antagonista. Um debate era
entendido como verdadeira batalha, na qual os combatentes desejavam mutuamente
destruir-se.
Na composição da Descrição, que passou, a partir da segunda edição, a constituir o
texto de abertura da HGB, Varnhagen pretendeu construir um cenário grandioso para a
conquista e colonização do território brasileiro pelos portugueses, da qual trataria na
seqüência da obra. Visava também a sensibilizar seu leitor, que entendia ser o herdeiro
daqueles conquistadores, para que prosseguisse a ação civilizatória iniciada por eles. Para a
composição desse cenário, Varnhagen empregou lugares-comuns herdados de uma longa
tradição – a abundância das riquezas, a amenidade do clima, a fertilidade do solo, a beleza e
variedade dos pássaros – e fez largo uso da amplificação, para emprestar veracidade ao
cenário que descrevia de modo grandiloqüente.
11
A Descrição é, assim, dotada, por seu
autor, de grande dramaticidade. Uma dramaticidade que chega, inclusive, a dominar como
gênero textual, quando o leitor é transformado em personagem da descrição que, assim, se
transmutava em narrativa.
Para compor as biografias analisadas, Varnhagen aplicou recursos específicos do
gênero em causa: seguiu as fases cronológicas da vida do biografado, contou anedotas
10
Caso não queiramos permanecer enxergando a escola como o local do arcaísmo e do atraso, da
permanência de práticas superadas e obsoletas, inclusive no tratamento da linguagem, talvez seja preciso
enxergar que, por mais radical que foi a mudança de estatuto da linguagem pregada pelo romantismo, práticas
e convenções retóricas mais antigas continuaram em vigor ao longo da maior parte do século XIX, pelo
menos no que se refere ao ensino da retórica, enquanto disciplina escolar. Se para nós tornaram-se ilegíveis e
incompreensíveis as convenções de produção do discurso retórico, certamente se tornou difícil compreender a
convivência dos pressupostos românticos de expressão da subjetividade com a preceptística retórica.
11
Sobre os topoi adequados aos diversos gêneros, cf. BARTHES, 1975, p. 200.
238
sobre o homem em questão e que revelariam seu caráter, destacou aspectos físicos que
denotariam virtudes ou desvirtudes, amplificou por meio de adjetivação abundante.
Não se teve, obviamente, o propósito de analisar todos os gêneros em que
Varnhagen escreveu, pois, afinal, ele foi um autor copioso, tanto em quantidade quanto em
variedade de textos, como alertava Oliveira Lima. Contudo, mesmo nos textos não
analisados aqui, a regra parece se repetir: ele empregou recursos discursivos segundo o que
se esperava para os gêneros em que escrevia. Assim, por exemplo, um estudo do Memorial
Orgânico certamente nos revelará o Varnhagen tribuno, escrevendo no gênero deliberativo;
ao passo que uma análise de A picada do Mato Virgem talvez nos auxilie a desvendar os
lugares-comuns empregados em um texto de literatura de viagem, conforme praticado no
século XIX. Em todos os casos, Varnhagen escrevia a partir da compreensão de que o
assunto determinava o gênero, e esse, por sua vez, os recursos discursivos próprios a serem
empregados. Parece certo afirmar que a multiplicação de estudos de textos varnhagenianos,
a partir da chave de leitura da preceptística retórica, possibilitaria o conhecimento, cada vez
mais ampliado, da forma como o autor manejava a linguagem, a partir de modelos a serem
imitados e emulados.
Em sua correspondência, Varnhagen várias vezes expôs e explicou os recursos de
linguagem dos quais lançava mão na composição de suas obras. De seus leitores,
entretanto, toda essa discussão era ocultada, pois nos prefácios preparados para as obras, ele
se apresentava como um esmerado escritor, que conhecia e reconhecia os clássicos da
língua vernácula e emprenhava-se para que “a linguagem (...) saísse puritana e de boa
lei”.
12
Nas cartas, Varnhagen adotava o tom do preceptor a ditar regras. Comparava o
trabalho do historiador ao do juiz: ambos emitiam veredictos inquestionáveis a partir do
exame das provas levantadas e do estudo realizado. E do mesmo modo que um juiz, o
historiador sério e prudente não fazia mais que enunciar a verdade histórica – e garantia que
a alcançara – graças a um veredicto imparcial, baseado em fontes fidedignas diligentemente
buscadas, analisadas e avaliadas. Ele afiançava a seus leitores que narrara a história com
sisudez e imparcialidade, a partir da vasta documentação que pesquisara.
12
VARNHAGEN, 1877, p. XII. (Prólogo).
239
A análise realizada nos afastou, portanto, da imagem tradicional de Varnhagen
como pesquisador incansável e descobridor de preciosidades arquivísticas. Aqui se
perseguiu o homem das letras, tal como ele se autodenominava. Por um lado, o texto
varnhageniano dá a seu leitor a sensação de que se travava de uma batalha: havia sempre
uma causa em prol da qual se guerreava. Por outro, exatamente porque empregava esses
recursos, seu texto tem circunspeção, é sisudo, revela a verdade. Esse foi um efeito por ele
perseguido e calculado.
Por fim, é preciso não esquecer Fernando Braudel, que há bastante tempo alertava
os historiadores sobre a necessidade de perceberem que no domínio cultural “há as mesmas
permanências ou sobrevivências que são observáveis no campo da fixidez surpreendente do
quadro geográfico das civilizações”. Braudel convidava os historiadores a se debruçarem,
também no campo cultural, sobre “uma personagem incômoda, complicada,
freqüentemente inédita”
13
: a longa duração; convidava os historiadores a pensarem numa
história lenta, em uma temporalidade que reconhecia a convivência, no seio das formações
sociais, das mudanças, mas também, das longas permanências.
Para encerrar, algumas palavras a respeito do título desta tese: “A palavra
empenhada”, porque para Varnhagen a construção discursiva tinha eminentemente uma
função utilitária, em termos políticos, morais e éticos. A palavra era, em sua compreensão,
um instrumento de luta a ser cuidadosa e habilmente manobrado, segundo os fins de
persuasão a que se propunha alcançar. Ou ainda, Varnhagen pretendia construir textos que
excitariam paixões e que moveriam seus concidadãos a ações que ele concebia como
fundamentais à edificação e consolidação da Nação brasileira que ele desejava: una, branca
e conduzida por homens esclarecidos – aqueles que moralmente estariam aptos para a
execução dessa tarefa. A palavra de Varnhagen era empenhada porque ele a compreendia
de forma utilitarista: a linguagem tinha um papel concreto a desempenhar. A palavra
deveria ser empregada segundo os fins que se desejava alcançar com o discurso – no
sentido que os antigos atribuíam ao discurso: a utilidade (docere), o prazer (delectare) e a
13
BRAUDEL, 1997 (1969), p. 45, 47,48.
240
persuasão (movere).
14
E se na Antigüidade havia uma técnica formalizada e prescritiva para
a composição de discursos que interessavam à vida da cidade, Varnhagen, em seu tempo,
compreendia a elaboração de seus trabalhos intelectuais como diretamente vinculados aos
interesses da Nação. Em várias passagens de seus escritos, em textos introdutórios a suas
obras ou nelas mesmas e, sobretudo, nas cartas endereçadas ao Imperador ou a outras
personalidades do Império, ele fazia questão de destacar o compromisso patriótico que
conduzia sua pena. Ela não percorria o papel impunemente, conduzida apenas pelas
informações abstraídas da documentação histórica ou pelo livre espírito criativo. Não. Ele
dizia e repetia sempre: o fim que me moveu a escrever deste modo, ou a compor a obra
desta maneira foi... E o complemento da frase estava constantemente ligado à utilidade que
entendia própria de uma obra “literária”. Seu empenho era fazer com que as palavras,
reunidas em suas obras, atendessem a fins muito claros: ele se via como co-responsável
pela edificação da nacionalidade, e seus textos deveriam ser capazes de fazer os leitores
moverem-se em prol do que julgava ser o caminho correto a ser trilhado para a construção e
para a consolidação do Estado Nacional. A palavra varnhageniana é uma “palavra
empenhada” em favor de uma causa, pois o autor sempre desejava convencer, mover seu
leitor.
14
HANSEN, 1994, p. 47.
241
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ANEXOS
ANEXO 1
Registo dos Alumnos do Real Collegio Militar
ANEXO 2
Registo dos Termos de Concurso as Cadeiras e
Substituições
ANEXO 3
Processo de José Frederico Pereira Marecos no Arquivo
Histórico Militar
ANEXO 4
Matricula dos alumnos do 3º anno lectivo
ANEXO 5
Real Colegio Militar – Termo dos Exames Finaes Nº 2
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