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Maria Tereza Carneiro Lemos
A (DE)MISSÃO DO INTELECTUAL
Literatura e cultura brasileiras nas transições dos séculos
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras da PUC-
Rio como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras
Orientador: Júlio Valadão Diniz
Rio de Janeiro, 30 de março de 2007
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310632/CA
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Maria Tereza Carneiro Lemos
A (DE)MISSÃO DO INTELECTUAL
Literatura e cultura brasileiras nas transições de séculos
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor pelo
programa de Pós-Graduação em Letras do Departamento de Letras do Centro de
Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora
abaixo assinada.
______________________________________________
Prof. Júlio Cesar Valladão Diniz
Orientador
Departamento de Letras – PUC-Rio
____________________________________________________
Profa. Marília Rothier Cardoso
Pontifícia Universidade Católica– PUC-Rio
_______________________________________________
Profa. Rosana Kohl Bines
Departamento de Letras – PUC-Rio
_______________________________________________
Prof. André Monteiro Guimarães Dias Pires
Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora – CES-JF
___________________________________________________
Profa. Maria Antonieta Jordão de Oliveira Borba
Departamento Literatura Brasileira e Teoria da Literatura. - UERJ
_______________________________________________
Prof. Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Coordenador Setorial do Centro de Teologia
e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, ______ de ___________________ de ________.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310632/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a
reprodução total ou parcial do trabalho sem
autorização da universidade, da autora e do
orientador.
Maria Tereza Carneiro Lemos
Graduou-se em Letras na Universidade Santa
Úrsula, em 1984. Completou o Mestrado em Letras
na PUC-Rio em 1994. Lecionou em diversas
escolas de ensino médio e fundamental. Foi
coordenadora e professora do Curso de Letras da
UCP (Universidade Católica de Petrópolis) de
1996 a 2003. Coordenou a pesquisa do curso de
Letras e o curso de pós-graduação em língua
portuguesa da mesma universidade. Participou de
congressos na área de literatura e publicou diversos
artigos sobre literatura e cultura em revistas
especializadas.
Ficha Catalográfica
CDD: 800
Lemos, Maria Tereza Carneiro
A (de)missão do intelectual : literatura e
cultura brasileiras nas transições dos séculos /
Maria Tereza Carneiro Lemos ; orientador: Júlio
Valadão Diniz. – 2007.
209 f. ; 30 cm
Tese (Doutorado em Letras)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2007.
Inclui bibliografia
1. Letras Teses. 2. Cultura. 3. Literatura.
4. Transições de séculos. 5. Missão. 6.
Intelectualidade. 7. Margens. I. Diniz, Júlio
Valadão. II. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Departamento de Letras. III.
Título.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310632/CA
Aos meus filhos Diana, Mayra e Felipe, meus presentes e futuros.
Aos meus pais, pelo estímulo de todas as horas.
Ao Walmir, meu amor.
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Agradecimentos
Ao meu orientador Júlio Diniz, pela parceria segura e inspirada na produção desta tese.
Ao CNPQ e à PUC-Rio, pelos auxílios que possibilitaram a realização deste trabalho.
Aos professores da Banca Examinadora pelo interesse e pela contribuição valiosa.
À Chiquinha, pela simpatia e paciência infinitas.
À Profª Maria Clara Taves, pela amizade e pela tradução.
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Resumo
LEMOS, Maria Tereza Carneiro. DINIZ, Júlio César Valladão (orientador). A
(de)missão do intelectual – Literatura e cultura brasileiras nas transições de
séculos. Rio de Janeiro, 2007, 209 p. Tese de Doutorado. Departamento de
Letras. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A transição do séc. XIX para o XX, marcada pela Revolução científico-
tecnológica no mundo ocidental, acabou por infligir aos países periféricos um violento e
atribulado processo de modernização, inspirado na noção positivista do “progresso” que
teve como um dos efeitos mais importantes a construção dos Estados-Nação. Em prol
dessa mudança, surgia no Brasil um importante utilitarismo intelectual que só atribuía
valor às formas de criação que se apresentassem como fatores de mudança social. Hoje,
na transição dos séc. XX-XXI, a utopia da construção do Estado-Nação não alimenta
mais as artes. E a literatura, orientada agora por outros valores, parece ter perdido seu
poder de criar projetos, sozinha, tornando-se a expressão de um mundo desiludido. Mas,
num processo de deslocamento e descentramento, por meio de um discurso híbrido,
entre música e escrita, surge o espaço privilegiado da voz dos excluídos, com atitude
crítica e propositiva, revelando um novo lugar discursivo de reflexão e de veiculação da
“verdade”.
Palavras-chave
cultura – literatura – transições de séculos – missão – intelectualidade - margens
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Abstract
LEMOS, Maria Tereza Carneiro; DINIZ, Júlio César Valladão. The
(dis)mission of the intellectual - Brazilian Literature and Culture along the
transition of centuries. Rio de Janeiro, 2007, 209 p. Thesis. Literature
Departament. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
The transition from the XIX to the XX century was marked by the scientific –
technological revolution in the Western world. This was responsible for a violent and
troubled process of modernization in the peripheral countries, inspired by the positivist
idea of “progress”, which had in the construction of the Nation – States one of its most
important achievements. Favouring that change, a notable intellectual utilitarianism
appeared in Brazil; it only accepted those forms of creativity bearing elements able to
produce social changes. Nowadays, in the transition from the XX to the XXI century,
the utopia of making Nation – States does no longer “feed” art. And literature, now
turned toward other values, seems to have lost its power to create projects by itself,
having become the expression of a non-illusioned world. However, in a process of
displacement and shifting out of centre, by means of a hybrid discourse, half-way
between music and writing, there appears the privileged space for the clamour of the
excluded, with a critical and propositional attitude, disclosing a new discoursive place
for reflection and for the conveyance of “truth”.
Key-words
culture – literature – transition of centuries – mission – intellectuality - margins
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Sumário
1. Introdução 10
2. A (de)missão do homem público 18
2.1. A República desencantada 24
2.2. A (de)missão do mosqueteiro intelectual 36
3. Sobrevivendo no inferno da Belle Époque 52
3.1. O teatro da regeneração 52
3.2. Cidadania “a porrete” 63
3.3. A insustentável leveza 76
4. É difícil saber saber 89
4.1. Ética x estética 99
4.2. A (o)missão do intelectual ou a (sub)missão do especialista 106
5. A (re)missão ao contemporâneo
126
5.1. A (ad)missão do intelectual 126
5.2. O textemunho 147
5.3. A atitude 165
6. Conclusão 193
7. Bibliografia 198
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Grande é a verdade, mas ainda maior, do ponto de vista prático, é
o silêncio em torno da verdade.
Aldous Huxley Admirável mundo novo
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1
Introdução
As transições dos séculos são momentos que trazem em seu bojo o estímulo para
se pensarem as reformas e os ajustes necessários para a preparação de uma nova era.
Nicolau Sevcenko, em seu estudo A corrida para o século XXI, empregou a metáfora da
montanha-russa para representar com maior precisão a escalada dos séculos dos tempos
modernos: ele afirma que o período entre o século XVI e meados do XIX seria o tempo
de ascensão contínua do homem na montanha-russa. Trata-se do período marcado pela
ascensão da burguesia na Europa ocidental que, ajudada pelo desenvolvimento
tecnológico, alcançaria o domínio sobre as forças naturais e sobre fontes de energia cada
vez mais poderosas. Enfim, nessa rota de ascensão contínua, o homem atingiria, no
cume, a hegemonia européia sobre o mundo através do grande projeto de civilização
que prometia um futuro de abundância, racionalidade e harmonia para todos os países.
A passagem do século XIX para o XX, marcando a segunda fase desta aventura
na montanha-russa, é o momento em que o homem atinge o cume. Este estágio máximo
é marcado pela Revolução Científico-Tecnológica que, por volta de 1870, inicia uma
série de transformações profundas no mundo ocidental, como as novas aplicações da
eletricidade, a fabricação dos veículos automotores, dos novos meios de transporte
como o transatlântico, o avião e novos meios de comunicação, como o telégrafo, o
rádio; e o mais importante: o otimismo inabalável no progresso e na civilização. No
entanto, por trás deste cenário supostamente seguro, surgirá, no início do novo século,
uma face trágica e até então oculta desta escalada: o homem é jogado na Grande Guerra
como um “mergulho no vácuo”. Aqui, ele se precipitará numa queda vertiginosa que
provocará a perda das referências do espaço e do controle das faculdades conscientes.
Neste momento, os países periféricos marcados pelo analfabetismo e pela noção
de atraso, experimentam a sua “vertigem” a partir do momento em que são levados
compulsoriamente a se entregar a um violento processo de modernização que os
colocará no páreo do progresso das grandes nações. Na esteira das transformações
estruturais desses países, surge “um ilimitado utilitarismo intelectual” que só atribuía
valor às formas de criação e produção cultural que se apresentassem como fatores de
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11
mudança social
1
. No Brasil, “começávamos a aprender de cor a civilização”, nas
palavras de Euclides da Cunha. Este, à semelhança de outros intelectuais brasileiros
como Lima Barreto, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Coelho Neto, Tobias Barreto,
Capistrano de Abreu e Graça Aranha - apesar de pertencerem a diferentes gerações e
não representarem um grupo ideologicamente homogêneo – assumiram uma postura
social e política de agentes dessas transformações e difusores das novas idéias do seu
tempo. O engajamento tornava-se a condição ética do homem de letras, a ponto de
alguns críticos referirem-se a estes autores como “Mosqueteiros Intelectuais”. A maior
parte deles estava empenhada no projeto de construção do Estado-Nação, ou seja, na
modernização da estrutura social e política do país que, para grande parte desses
intelectuais, deveria atualizar-se de acordo com o exemplo europeu e americano do
norte.
O início do século XX, no Brasil - mais precisamente na Belle Époque carioca -
assiste a uma fragmentação desta intelectualidade, em que muitos, fascinados pela
modernização da capital, na sua “Regeneração”, começaram a viver uma vida
confortável, à sombra do poder, distanciando-se da antiga postura crítica. Outros
críticos, posteriormente, apontam esta fase como marcada por uma “profunda
decadência cultural e intelectual”, um “vazio de idéias” e o “fim de uma tradição”. É
nesse momento que despontam dois grandes intelectuais que, resistindo às seduções da
europeização do Rio de Janeiro, solitários e alienados compulsoriamente da vida
pública, soltavam sua voz sem eco, mostrando o “Brasil esquecido”. São eles: Euclides
da Cunha e Lima Barreto. E serão eles os protagonistas do estudo de Nicolau Sevcenko,
Literatura como missão – Tensões sociais e criação cultural na Primeira República.
A utopia da “Pátria Humana”, termo usado por Euclides da Cunha para
simbolizar o seu grande anseio, movia também Lima Barreto. Para o primeiro, a “Pátria
Humana” seria o resultado possível e desejado do progresso material do século XIX que
atingiria o seu auge no século XX. Para Lima Barreto, o verdadeiro progresso deveria
ser compatível com as tradições, com as origens do povo, e jamais concebido como um
processo de anulação das forças desse povo. Ambos sabiam que alguma coisa deveria
ser feita pelos escritores a serviço do povo brasileiro para retirá-lo da situação de
miséria e ignorância em que vivia. Desprezada pelos governos, a população brasileira
era vítima da sua própria (des)organização social e política. A paixão marcava o
1
SEVCENKO, 2003: 81
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engajamento dos dois escritores que, imbuídos de uma grande missão humanitária,
dirigiram toda a sua obra para a formação de um modelo de Estado-Nação. A
monumental obra Os sertões expôs a cruel contradição brasileira através da ferida aberta
pelo Exército no corpo da Nação. Lima Barreto, através de suas personagens visionárias
como Policarpo Quaresma e Gonzaga de Sá, denunciava, entre outras questões, os
perigos do nosso processo modernizador único, unilateral e cosmopolita que apagava a
originalidade, anulava o homem e distanciava cada vez mais ricos de pobres. Questões
que se tornaram hoje emergenciais.
A literatura, naquele momento, já sofria o início de um abalo que a própria
modernização trazia: a transformação súbita da vida urbana, o cinema e a fotografia
começaram a modificar as formas literárias tradicionais. O grande passado da unidade
romântica ruía, e agora a arte da escrita deveria se adaptar ao mundo e não mais o
mundo a ela como no século XIX romântico.
A vida cultural brasileira, no início do século XX, é marcada pelo Modernismo
paulista que surge como um projeto de revolução estética e ideológica orientado para o
“abrasileiramento do Brasil”, em contraposição ao cosmopolitismo dominante. Mas os
embates entre estética e ética levaram os intelectuais modernistas, Mário de Andrade e
Oswald de Andrade, a fazerem um importante “balanço” do movimento na década de
40 em que debatiam o papel do intelectual da sua época. Mário de Andrade confessava
– na conferência “O movimento modernista” no Itamarati, em 1942 – que a sua geração
falhou: “Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude
interessada diante da vida contemporânea. (...) uma coisa não ajudamos
verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do
homem. E esta é a essência mesma da nossa idade”
2
.E cobra essa missão da arte:
Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos, amor,
amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana como a que
vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar neles em livros de ficção e mesmo
de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer outro (...) De
resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também.
3
A primeira literatura modernista, sendo uma literatura de resistência aos valores
artísticos vigentes, era implicitamente resistente aos valores ideológicos que
determinavam esta arte. Mas este fenômeno de resistência se fazia como um processo
2
ANDRADE, s.d.: 252.
3
ANDRADE, s.d.:. 252, 255
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inerente à escrita e não como tema dessa escrita. É compreensível que Mário,
analisando o primeiro modernismo, em 1942, percebesse que, depois da literatura de 30,
a sua geração tornava-se anacrônica política e socialmente. Os valores que nortearam a
arte desta primeira geração estavam sem dúvida mais ligados ao fenômeno estético do
que ao fenômeno ético da resistência.
O Brasil, a partir deste momento, assiste a uma verdadeira “dialética do
engajamento” na literatura - para usar os termos de Renato Franco em seu estudo
Itinerário político do romance pós-64: A festa. Entre distanciamentos e aproximações
das questões sócio-políticas, no decorrer do século XX, a literatura brasileira mostrou
sua capacidade de mediação entre cultura e poder em momentos importantes da nossa
história. Muitos intelectuais acabam por se aproximar do poder através de “um namoro
com a idéia de participação social e política [o que] levou os artistas brasileiros a uma
aproximação gradativa do Estado”. A idéia do engajamento acabou gerando “um
vínculo empregatício entre o jovem intelectual e o Estado modernizador”
4
.
Na “montanha-russa” de Sevcenko, a transição do século XX para o XXI levou
o homem ao loop, ou seja à “síncope final e definitiva, o clímax da aceleração
precipitada, sob cuja intensidade extrema relaxamos nosso impulso de reagir,
entregando os pontos, entorpecidos”
5
. O loop é a imagem da vida contemporânea
determinada pela Revolução da Microeletrônica e pela aceleração das inovações numa
escala multiplicativa, “uma autêntica reação em cadeia”, tornando o mundo cada vez
mais “imprevisível, irresistível e incompreensível”. E o grande perigo apontado pelo
autor é que este efeito perverso provoca uma anuência passiva, cega e irrefletida. E se
nos deixamos levar pelo ritmo das mudanças, nunca teremos tempo para parar e refletir.
A única porta de saída, ou a solução para este entorpecimento, seria a crítica. Ela seria a
contrapartida cultural diante da técnica, ou um “modo da sociedade dialogar com as
inovações, ponderando sobre seu impacto, avaliando seus efeitos e perscrutando seus
desdobramentos”, e conclui que “uma comunidade que perca sua capacidade crítica
perde junto sua identidade, vê dissolver-se sua substância espiritual e extraviar-se seu
destino”
6
. É o que podemos perceber no mundo atual: a lógica da globalização e as
vertiginosas mudanças tecnológicas arrastam as sociedades mais pobres numa tormenta,
desestabilizando suas estruturas e instituições, destruindo seus recursos naturais e
4
SANTIAGO, 2002: 193.
5
SEVCENKO, 2001: 17
6
Idem.
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aumentando dramaticamente suas antigas desigualdades sociais.
O “ilimitado utilitarismo intelectual”, exercido por meio da literatura, no início
do século XX, que convergia para a utopia da construção do modelo de Estado-Nação,
hoje, um século depois, parece existir sob outras formas. Um fenômeno importante a ser
considerado, no século XXI, é o fato de que:
O discurso literário não pode mais sustentar ou acionar o elo entre a cultura e o
estado-nação, não pode mais ocupar a posição de significante vazio que poderia
suturar uma articulação hegemônica no nível do estado-nação. Ainda em outras
palavras, o discurso literário não é mais o lugar privilegiado da expressão social,
entendido como aquilo que regula através do próprio regulamento, i.e., o próprio
princípio do estado. Se o valor social enquanto significante-mestre para todos os
significados, se articulou na modernidade com o estado-nação através da mediação
literária, tal mediação não é mais válida, não porque a literatura não possa mais fazê-
la, mas sim porque o estado-nação não é mais o referente primário do valor social.
7
No entanto, a literatura hoje, estando impossibilitada de realizar a tradicional
mediação entre estado e valor social, ainda não perdeu, como poderíamos supor, sua
importante função no contexto social e político. Como mostra Wander M. Miranda,
configuram-se outras possibilidades:
Nesse contexto, a literatura contemporânea pode desempenhar uma função decisiva,
quer por ver-se livre do papel anterior de mediadora junto ao estado nacional-popular,
quer por desempenhar como nenhum outro discurso as funções de deslocamento e
distanciamento que são, para Ricardo Piglia, a sexta proposta a ser agregada às
propostas de Ítalo Calvino para o próximo milênio.
8
O deslocamento tornou-se uma condição fundamental para a compreensão da
literatura e da cultura hoje. Trata-se do deslocamento das ideologias estabelecidas –
esquerda e direita – para o múltiplo, o multifacetado; deslocamento dos grandes projetos
para os projetos particulares, em que o posto de “missionário”, porta-voz de uma
coletividade, é substituído pelo cidadão comum, não mais comprometido com propostas
transformadoras, mas preocupado com a possibilidade de convivência com o presente.
Como nos é mostrado através da imagem do loop, o resgate da capacidade
crítica é vital para o homem contemporâneo, o que representaria o resgate da sua
própria identidade e do controle sobre o seu destino. No processo de crítica e construção
social, a literatura tem sido um instrumento fundamental em todos os tempos, ela tem o
7
MOREIRAS, 2001.
8
MIRANDA, 2002: 31
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privilégio de - diferentemente da História que lida exclusivamente com a realidade -
lidar com a possibilidade. E neste mundo profundamente conturbado em que vivemos,
acreditamos ser de grande importância – e ao mesmo tempo um grande desafio –
perguntar à literatura qual é o seu papel.
Este estudo busca compreender o nosso momento atual através do processo de
modernização a que fomos submetidos. Para tanto buscamos nas origens deste processo,
algumas determinantes que explicam muito do Brasil de hoje revelando uma trajetória
que completa um século de vida, entre duas transições de séculos. Percebemos que a
conjuntura brasileira de hoje é filha direta de um determinado modelo de modernização.
Várias questões vêm à tona na construção deste conhecimento e uma em particular é
determinante: a exclusão social, um efeito do processo de modernização que acaba por
provocar grande parte do imenso desequilíbrio que vivemos hoje. Desenvolvemos esta
percepção através de uma visão cultural, mais especificamente a literatura e a
transformação do seu papel durante este período por meio de deslocamentos que
configuram hoje uma nova arte. Modernização e exclusão são apresentadas como um
processo constante de causa e efeito, a exclusão do próprio brasileiro por ideologias
discriminatórias. República, democracia e globalização apresentam-se como as grandes
promessas não cumpridas e se desmascaram mostrando o mesmo rosto.
Atamos as duas pontas deste processo escolhendo autores das transições dos
séculos – também excluídos - que tematizam e tematizaram esta questão: partindo de
Lima Barreto chegamos hoje aos movimentos culturais da periferia, à “literatura
marginal”, às narrativas prisionais, e a um novo modelo de intelectual que se impõe,
mostrando como a arte e a cultura têm respondido a este contexto histórico e têm criado
um verdadeiro projeto de resistência. A partir de uma compreensão histórica da
intelectualidade brasileira, desenvolvemos esta análise procurando atar as pontas do
nosso processo de modernização na busca de uma maior compreensão do nosso
momento.
Não temos aqui a pretensão de fazer um estudo histórico-descritivo, mas
partindo de uma compreensão histórica da categoria “missão” do intelectual escritor e
artista, pretendemos apreender e comparar os contextos histórico-culturais que
orientaram e orientam as transições dos séculos – XIX-XX e XX-XXI – no Brasil, para
melhor configurar a questão central. Outras questões, por estarem na deriva da proposta
central, se impõem como objetivos específicos: “Existe uma missão na literatura
contemporânea brasileira?” “Que missão (ou missões) seria(m) esta(s)?”; “Que valores
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orientam esta literatura?”; “Qual é o papel do intelectual na nossa literatura
contemporânea?”; “Podemos ainda falar em utopia?”
Por termos como objeto de estudo a contemporaneidade, devemos considerar o
fato de estarmos lidando com um contexto em formação, e portanto - e sobretudo hoje -
com um terreno incerto. Nas palavras de Flávio Carneiro “se conviver com a incerteza
pode nos levar ao caos, também pode nos livrar da ilusão de que há verdades absolutas.
Nesse caso, a instabilidade deve ser entendida não como adversária, mas como aliada.”
9
.
Sem a pretensão de dar uma resposta única e absoluta à questão central,
queremos discutir e orientar uma compreensão do valor da literatura contemporânea e
suas relações com o nosso momento histórico, e quem sabe, rastrear os “resíduos
utópicos” que se encontram espalhados ou escondidos por estes territórios escuros,
buscando uma compreensão da situação cultural em processo na qual se desenham
conexões a serem aprofundadas entre os vários ramos do saber e as várias atividades
humanas.
Interessa-nos aqui pesquisar a reação da arte e dos artistas ante a provocação da
realidade que os cerca. Enfim, pesquisar os vários momentos em que a arte e a cultura
se vêem às voltas com a desordem, ou a ruptura de uma ordem tradicional, que o
homem ocidental acreditava imutável e identificava com a estrutura objetiva do mundo.
Enfim, pesquisar a própria vocação da arte e da cultura em aceitar ou rejeitar essa nova
noção e dar-lhe forma. Neste processo o papel do intelectual e suas transformações são
fundamentais, o que nos leva a pensar sobre a questão da representatividade e a sua
legitimidade. Neste sentido, buscamos os testemunhos de artistas e escritores que
produziram – e produzem - nas últimas transições de séculos, focos de resistências, seus
esforços de inclusão de comunidades como facilitadores de caminhos, e as novas formas
da arte neste sentido.
Para tanto consideramos autores brasileiros, representantes de uma corrente
crítica com uma proposta transformadora, vindos das classes socialmente excluídas, que
configuram um importante fenômeno na literatura brasileira atual, gerando formas
híbridas em que a música e a palavra tornam-se o instrumento de combate político às
formas de opressão social e ao discurso instituído. Dentro deste contexto, outras
testemunhas ganham voz e conquistam o espaço midiático de forma inovadora. Por
9
CARNEIRO, 2005
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17
meio da música, das artes plásticas e da dança, a cultura hip-hop invade a cena urbana
numa posição de combate às formas de opressão e injustiça.
A “literatura marginal” surge como uma nova classificação que dá voz àqueles
que agora são as testemunhas-representantes de grupos antes “representados” por
“outros”. Problema desafiador para a atual crítica literária, pois leva-nos a uma
confrontação com valores construídos através dos tempos e que conformam a “alta
cultura”, o cânone, fazendo-nos reconsiderar o campo da literatura a partir de outras
vozes, antes “exteriores à literatura”.
Esta literatura testemunhal inclui as narrativas de presidiários que reconstruíram
suas vidas através da escrita, como porta-vozes de toda uma coletividade e alcançaram
um novo estatuto como sujeitos de um passado, de uma comunidade e enfim como
cidadãos e sujeitos políticos. Toda essa matéria testemunhal alcança especial
importância tanto pelo viés da mediação literária quanto pela confrontação entre
testemunho e as matérias da mídia e do senso comum, em outras palavras: um confronto
político entre a experiência real e a “ficção oficial”.
É revelada, desta forma, uma curiosa face do novo intelectual: aquele que se
formou na marginalidade, sofreu, desceu aos infernos e como “sobrevivente”, deu a
volta por cima e emerge legitimado pelo conhecimento adquirido, através do estudo, ou
da própria vivência e experiência da escassez.
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2
A (de)missão do homem público
A intelectualidade latino-americana sempre foi integrante fundamental na
formação das suas cidades. Estas, como focos civilizadores, foram o único receptáculo
possível das fontes culturais européias que ditariam as normas da submissão do vasto
território “selvagem” à nova ordem. A primeira norma constituiu-se na educação das
letras, fato que possibilitou ao intelectual, formado nos moldes da cultura européia e
detentor das letras no novo continente, a conquistar uma posição privilegiada em total
conjunção com o poder central e regulador das sociedades que se formavam. Este grupo
de intelectuais constitui a cidade das letras, nos termos do crítico uruguaio Ángel
Rama.
Foram eles os responsáveis pela ordenação das cidades: enquanto representantes
do poder central atuavam através de todas as atividades escriturárias
1
que sempre
articularam os espaços e as relações sociais, como também na função de projetistas da
cidade ideal, através da língua e da cultura européias cujos signos ordenavam a
urbanidade latino-americana. Estabelecia-se, como parte da nova ordem que se
instalava, uma conduta de organização social representada pela imposição da escrita ao
novo continente. A oralidade, característica dos povos nativos, construía com
suficiência a base de toda a sua milenar tradão cultural, como também seus códigos de
ética e de comportamento. Essa tradição deveria enfrentar o estamento da palavra
escrita como a única maneira possível de se fixar as formas de vida. Enquanto a palavra
oral organizava um mundo natural e harmônico de condições imutáveis, refletido na
vida social, a civilização e a palavra escrita traziam, por sua vez, através de uma visão
utilitarista, um universo de relações sociais que tanto se organizava independentemente
do mundo natural como o tornava seu serviçal.
Houve, na realidade, um desencontro secular entre a minuciosidade prescritiva
das leis e códigos desta cidade letrada e a anarquia da sociedade que legislavam. Trata-
se do desencontro estrutural entre realidades muito distintas que sempre determinou e
determina ainda hoje, a história das sociedades periféricas – e sua submissão à
colonização, à modernização ou à globalização.
1
O termo “atividade escriturária”, aqui, tem o mesmo sentido que lhe dá Ángel Rama, ou seja, é relativo
não só às funções burocráticas, mas a todas as atividades relacionadas à escrita.
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Estas funções escriturárias concederam um lugar de destaque a um conjunto de
profissionais como advogados, escrivães e burocratas da administração. Por conta disto
e da própria tradição cultural e religiosa, houve uma verdadeira mistificação da
escritura, e extensivamente, da arte retórica. Rui Barbosa, em 1902, formulava a famosa
Réplica ao projeto de código civil que o Senado brasileiro examinava, representando o
pleno cumprimento da função letrada que teria conseqüências profundas na
jurisprudência brasileira. O jurista defendia que “um código civil terá de ser obra
excepcional, monumento da cultura de sua época [pois] mais que ser uma realização
científica, é uma grande expressão da literatura nacional”, e completa: “Com que outra
coisa, a não ser com as palavras, se haviam de fazer as leis? Vida, propriedade, honra,
tudo quanto nos é mais precioso, dependerá sempre da seleção das palavras”
2
. Nesse
caso, o rígido sistema semântico da cidade letrada era totalmente justificado, pois dessa
forma, tornava obrigatório que tais leis e códigos respondessem a um único sistema
interpretativo. Daí compreende-se a nota tradicionalista que sempre esteve relacionada
ao funcionamento da cidade letrada, como também a grande contribuição que os
homens de letras lhe deram, já que a “língua culta” era o instrumento de maior alcance
para reger a ordem simbólica da cultura.
Esta mistificação da escritura consolidou entre nós não só a perpetuação do
poder letrado, mas a diglossia que sempre marcou a formação das sociedades latino-
americanas, e que correspondia, acima de tudo, à representação da enorme fissura social
com todas as discrepâncias que possam existir em sociedades primitivas submetidas à
compulsão civilizatória. No comportamento lingüístico destas sociedades sempre foram
nítidas duas línguas: a pública e de aparato, língua colonizadora, reguladora da
sociedade e ordenadora da civilização, inflexível e cristalizada como a única língua que
chegava aos registros escritos - o instrumento do grande poder da cidade letrada; e a
outra, popular e cotidiana, utilizada pelos falantes em sua vida privada, de domínio da
“plebe”, em evolução constante, cuja informalidade e criatividade foram sempre
identificadas com corrupção, barbarismo e ignorância - a língua da cidade real.
O domínio da língua “oficial” representava a purificação de uma hierarquia
social, provava a sua proeminência e estabelecia um cerco defensivo em relação a um
meio hostil e, principalmente, “inferior”. Essa atitude defensiva em torno da língua e do
poder que ela representava, conseguiu intensificar a adesão à norma. A “ordem”,
2
BARBOSA, 1953: 92-3.
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princípio fundamental de todo o processo civilizatório, deveria logicamente estar
presente no próprio mecanismo da língua, que afinal, foi o instrumento ordenador por
excelência. O domínio dessas normas exigia uma capacidade lógica e uma racionalidade
próprias dos seus falantes e, portanto, o manejo correto seria restrito a eles
exclusivamente. Dessa forma a propriedade e a língua delimitavam a classe dirigente.
“A língua é a companheira do Império”
3
, afirmação que definia bem o seu papel na
ordem social, e principalmente, a consciência que tinha a cidade letrada do manejo
dessa língua minoritária (às vezes quase secreta) e que defendê-la e purificá-la era a sua
grande missão, único recurso para manter e sustentar o seu poder.
A cidade letrada quer ser fixa e atemporal como os signos, em oposição
constante à cidade real que só existe na história e se adapta às transformações da
sociedade. O problema principal seria o da capacidade de adaptação da cidade letrada às
transformações de uma sociedade em constante crescimento populacional, numa
evolução desordenada que distanciava cada vez mais os nativos das suas tradições, e
que experimentava uma constante imposição de regras e valores estranhos a sua
vivência. Esse culto à norma e à erudição, na cidade letrada, criava uma sacralidade em
torno dos letrados como uma maçonaria lingüística reservada aos iniciados, mistificada
e ambicionada pelos laicos.
Pareceu-me então que aquela faculdade de explicar tudo, aquele seu desembaraço de
linguagem, a sua capacidade de ler línguas diversas e compreendê-las, constituíam, não
só uma razão de ser de felicidade, de abundância e riqueza, mas também um título para
o superior respeito dos homens e para a superior consideração de toda a gente.
Sabendo, ficávamos de alguma maneira sagrados, deificados... (...) Se minha mãe me
parecia triste e humilde - pensava eu naquele tempo - era porque não sabia, como meu
pai, dizer os nomes das estrelas do céu e explicar a natureza da chuva.
4
Isaías Caminha, protagonista do romance Recordações do escrivão Isaías
Caminha, de Lima Barreto, encarnava o aspirante a esta condição - vindo das classes
populares – que vivia os embates que se configuravam, desde então, no preconceito
lingüístico, insígnia de uma distinção social tão característica da nossa cultura. As
palavras de Olavo Bilac refletem bem a questão: “As arruaças deste mês (...) vieram
mostrar que nós ainda não somos um povo. (...) No Rio de Janeiro e em todo o Brasil,
os analfabetos são legião. E não há “povo”, onde os analfabetos estão em maioria.”
5
.
3
Frase que celebrava a Gramática sobre a língua castelhana (1942).
4
BARRETO, 1997: 39.
5
DIMAS, s/d: 802.
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21
Estava criada a sólida barreira entre a cidade letrada e a cidade real, o que transformaria
os próprios intelectuais simultaneamente em produtores e consumidores, organizando-se
um círculo fechado da cultura que só começou a ceder no início do século XX, quando
as classes médias começam a ingressar na vida cultural.
Vale ser citada a proposta do filósofo venezuelano Simón Rodriguez - mestre de
Simon Bolívar, “O libertador” da América Espanhola - que estabelece um paralelo entre
o governo e a língua: ele reclama que ambos deveriam surgir da idiossincrasia nativa e
que não fossem meras transposições das fontes européias. Do mesmo modo que propôs
uma reforma ortográfica para que uma escritura simplificada registrasse a pronúncia
americana, distanciada da norma européia, reclamou que a institucionalização
governamental deveria corresponder aos componentes da sociedade americana e não
derivasse de um transplante mecânico das soluções européias. E, do mesmo modo que a
ortografia se ajusta a três princípios - origem, uso constante e gênio próprio de quem
fala – devendo responder a este último (o que equivale dizer à pronúncia) “para
adequar-se à boca quando nem a origem nem o uso decidem”, da mesma maneira
deveria ser feito com o que chamou de “origem de desenhar Repúblicas”, opondo-se ao
que ele via que estavam fazendo seus conterrâneos de 1828: “quando nem a origem nem
o uso decidem, apelam ao terceiro princípio, mas em lugar de consultar o gênio dos
americanos, consultam o dos europeus. Tudo lhes chega embarcado”.
Simón Rodriguez dizia que as repúblicas não se fazem com doutores, com
literatos, com escritores, mas com cidadãos: “Nada importa tanto como o ter Povo:
formá-lo deve ser a única ocupação dos que se identificam com a causa social”
6
. Mas a
sociedade letrada latino-americana não se abalou diante desses questionamentos e
demonstrou o seu potencial em se reconstituir e se ampliar sob os transtornos
revolucionários. A proposta educacional de Simón Rodriguez, considerada uma
generosa utopia inviável, acabou testemunhando, ainda, uma restauração educacional
que se desenvolvia então, aplicada à formação de elites dirigentes, como na Colônia, e
portanto, de candidatos à burocracia que reconstituiria a cidade letrada e asseguraria a
concentração do Poder de maneira anti-democrática:
Não esperem dos colégios, o que não podem dar ...estão fazendo letrados ...não
esperem cidadãos. Persuadam-se que, com seus livros e seus compassos sob o braço,
sairão os estudantes a receber, com vivas, a qualquer um que acreditem dispostos a dar-
lhes os empregos em que tenham posto os olhos ...eles ou seus pais.
6
RODRIGUEZ, 1975: 267.
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Do modo atual de proceder na educação, deve-se esperar homens que ocupem
os postos distinguidos, isto é, que formem quadros políticos, civis e militares; mas, os
três carecerão de tropas, ou terão que estar lidando sempre com recrutas.
7
No Brasil, a educação brasileira seguia os mesmos moldes, no comentário de
Lima Barreto, em 1921:
O nosso ensino superior, que é o mais desmoralizado dos nossos ramos de
ensino; que se impregnou, com o tempo, de um espírito de serviçal da burguesia rica ou
de potentados políticos e administrativos, fazendo sábios e, agora privilegiados, seus
filhos e parentes (...) não é mais destinado a formar técnicos de certas e determinadas
profissões de que a sociedade tem “precisão”.
8
Ao invés da proposta utópica de Simón Rodriguez, o que assistimos, desde a
modernização, é a execução de operações de um certo “embalsamento” das tradições
dos povos primitivos e rurais em extinção, ou seja, daqueles que não tinham o poder da
escrita e foram condenados pela sua oralidade. Deve-se lembrar a dinâmica das
tradições orais desses povos, que nunca estiveram imóveis, nem nunca deixaram de
produzir novos valores e objetos, rearticulando seu acervo tradicional. Poderíamos dizer
que têm algo em comum com o funcionamento da cultura urbana, mas a intensa
aceleração do ritmo civilizado, e principalmente, a tradição simbólica religiosa desses
primitivos que sempre buscam nas suas origens as forças necessárias para a vida futura,
numa constante louvação ao passado, são diferenças fundamentais. Quanto à produção
cultural, é grande a diferença no que se refere ao recorte que as culturas urbanas
introduzem no seu fluxo peculiar, a nítida consciência com que traçam os limites que
separam um produto do conjunto e o incorporam num nível distinto, superior,
hierarquizando-o e reclassificando-o dentro de planos diferentes que respondem a
demandas também diferentes. Assim são produzidas as obras literárias.
Na medida em que esse universo agonizante funciona à base de tradições
analfabetas e usa um sistema de tradições orais, pode-se dizer que a letra urbana passa a
recolhê-lo no momento da sua desaparição e “celebra mediante a escritura seu responso
funeral”, nas palavras de Ángel Rama. Por mais generoso e útil que seja esse empenho,
não se pode deixar de perceber que a escritura de que se utilizam esses intelectuais,
aparece quando diminui ou se apaga o esplendor da oralidade das comunicações
primitivas ou rurais, quando a memória viva das canções e narrações dessas
comunicações está sendo destruída pelas pautas educativas que as cidades impõem,
7
Idem, t. I, p. 273.
8
“As reformas e os ‘doutores’” in BARRETO, 1956, Feiras e mafuás, p. 236.
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pelos produtos substitutivos que põem em circulação, pela extensão dos circuitos
letrados que produzem. Neste sentido, a escritura dos letrados é uma sepultura onde é
imobilizada, fixada e detida para sempre a produção oral.
No Brasil, temos o exemplo de Sílvio Romero, o conceituado crítico literário
sergipano que se dedicou a um trabalho de recopilação das culturas orais do Brasil a
partir do seu domínio do instrumental científico: Poesia popular no Brasil (1879-80) e
Contos populares do Brasil (1883) e Contos populares do Brasil (1885). Sílvio Romero
dedicava-se a uma análise metódica e científica de um material que era retirado da sua
função cognitiva, como sistema de vida de uma comunidade, para incorporá-lo ao
sistema literário letrado.
A literatura, ao impor a escritura e negar a oralidade, nega o processo produtivo
desta e o fixa sob as formas de produção urbana. A oralidade não desaparece, a
desculturação que a modernização impõe dá lugar a novas culturações, mais fortemente
marcadas pelas circunstâncias históricas. Para estas mudanças, a cidade letrada será
cega, como também para o processo oral que se desenvolve dentro da própria cidade,
onde se prolonga a produção oral que se mistura com a própria escrita dando lugar a
novas linguagens.
De forma mais fiel e não científica, numa tentativa de representar uma certa
oralidade dos povos rurais brasileiros através da escrita, tivemos escritores como
Simões Lopes Neto e Waldomiro Silveira que se dedicaram, no final do século XIX, a
uma maior compreensão dos valores desses povos, seus costumes, sua fala, a
ingenuidade característica, o drama do seu abandono e da livre exploração que sofriam.
Mostravam que essa oralidade valia a pena ser registrada, era também merecedora de
atenção e traduzia uma cultura. Esse esforço em se registrar a cultura não letrada
atingiria a genialidade, cinqüenta anos depois, em Guimarães Rosa, fazendo deste
registro um monumento artístico de moldes originalíssimos, preservado na
representação da autenticidade do mundo rural.
Mas esses regionalistas, na transição dos séculos, tinham muito pouca ou
nenhuma recepção na capital que vendia livros brasileiros editados em Portugal, na sua
maioria, ou pela Garnier, já instalada no Brasil, que se dedicava aos Mestres nacionais
urbanos. O fenômeno Coelho Neto e sua produção extraordinária retratam bem a
recepção literária da belle époque carioca, interessada no “sorriso da sociedade” como
seu próprio espelho.
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24
2.1. A República desencantada
A luta pela implantação da República no Brasil traz um novo grupo de forças
representadas pelos diversos modelos do novo regime. Adaptada aos três alicerces de
poder: o popular da Revolução francesa; o liberal da Revolução industrial e o positivista
da Ciência, a implantação da República no Brasil tornou-se um grande campo de
batalhas ideológicas. Os intelectuais, representantes dos ideais de justiça e liberdade
abraçavam a causa republicana como sendo – a grosso modo – o regime de governo
popular dando fim ao regime de governo do privilégio real. José Murilo de Carvalho
aprofunda, no seu estudo A formação das almas: o imaginário da República no Brasil,
o esforço de ideologização do novo regime, despendido pelos republicanos brasileiros,
no intuito de atingir o imaginário popular, recriando-o dentro dos valores da nova
ordem. Esse esforço não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível ao público
analfabeto. Ele deveria ser feito por meio de sinais mais universais, de leitura mais fácil,
como as imagens, as alegorias, os símbolos, os mitos. Com curto alcance, se pensarmos
em termos de nação brasileira, esses símbolos acabavam se limitando ao imaginário das
capitais do sul e sudeste brasileiros, deixando a grande parte do território sem
conhecimento do que seria uma república ou um sistema de governo. Portanto, falar de
uma participação popular em termos de Brasil torna-se sempre uma utópica força de
expressão, ou a representação do eterno desejo de se totalizar a nação.
O esforço de ideologização do novo regime é direcionado a uma população com
uma certa acessibilidade dentro do vasto território nacional, para a qual inventa-se uma
certa República, carregada de qualidades generosas, retratada na figura feminina de uma
Grande Mãe de seios fartos, inspirada no imaginário da Revolução francesa. As charges,
o hino, a bandeira, as artes plásticas, os monumentos em praça pública, as
comemorações serão a tradução da República para os que não a conheciam, ou a
intensificação da sua superioridade para os que nela confiavam como também para os
que dela desconfiavam.
A cidade letrada brasileira republicana incorporou, com entusiasmo inédito, um
verdadeiro patriotismo francês:
Todas as nossas aspirações, todas as preocupações dos republicanos da
propaganda, eram de fato copiadas das tradições francesas. Falávamos na França bem-
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amada, na influência da cultura francesa, nas melhores coisas das nossas lutas políticas
relembrávamos a França. A Marselhesa era o nosso hino de guerra, e sabíamos de cor
os episódios da grande revolução. Ao nosso brado, ´Viva a República!` seguia-se quase
sempre o de ´Viva a França!`. (...) A França era a nossa guiadora, dela falávamos
sempre e sob qualquer pretexto. (depoimento de um oficial da Marinha em O Paiz,
20/11/1912)
Benjamim Constant pronuncia a conferência “Da liberdade dos antigos
comparada à dos modernos” em 1819, no Athénée Royal de Paris. O teor da conferência
é bastante significativo do tipo de “liberdade” que caracterizaria o governo republicano
implantado no Brasil. O conferencista explicava que a liberdade apregoada pela
Revolução francesa, sob a influência de Rousseau, não se adaptaria aos tempos
modernos. Esta liberdade, adotada pelos jacobinos, que caracterizava as repúblicas
antigas de Atenas, Roma e especialmente Esparta, era a liberdade de participar
coletivamente do governo, da soberania, a liberdade de decidir na praça pública os
negócios da república, enfim a liberdade do homem público. Por outro lado, a liberdade
dos modernos, que nascia da nova concepção de organização política da sociedade, era
a liberdade do homem privado, a liberdade dos direitos de ir e vir, de propriedade, de
opinião, de religião. A liberdade moderna não exclui o direito de participação política,
mas esta agora se faz pela representação e não pelo envolvimento direto. Benjamim
Constant argumentava que o desenvolvimento do comércio e da indústria não permitia
mais que as pessoas dispusessem de tempo para se dedicar e deliberar em praça pública,
nem elas estavam interessadas em cumprir esta função. A própria representação
incorporada por Benjamim Constant mostrava aqui a sua contradição quando pretendia
falar em nome de uma sociedade desigual e impossível de se depreender na sua
totalidade. E completa dizendo que “hoje, o que se busca é a felicidade pessoal, o
interesse individual; a liberdade política tem por interesse garantir a liberdade civil”. A
via genética da transformação chamou-se liberalismo, e a sua filosofia, o egoísmo
utilitarista
O utilitarismo, doutrina moral do início do século XIX cujos grandes
representantes foram os ingleses Jeremy Bentham e John Stuart Mill, tornava-se a
grande filosofia da vida moderna, estabelecendo como fundamento das ações humanas a
busca egoística do prazer individual, do que deveria resultar maior felicidade para um
maior número de pessoas, admitindo-se a possibilidade dum equilíbrio racional entre os
interesses individuais, conforme a crença de seus adeptos. A nova doutrina introduziu
os interesses como móveis do comportamento e o hedonismo modernista como sua alta
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finalidade. Dentro dessa visão, criava dificuldades para a concepção do coletivo, do
público. A solução mais comum foi a de simplesmente definir o público como a soma
dos interesses individuais.
Criavam-se repúblicas de acordo com os novos preceitos de “liberdade” e
“liberdades” de acordo com as necessidades da nova ordem mundial. Enfim, a
República, já distante da sua idealização original, servia bem a diversas ideologias e
poderia adaptar-se bem a todas. O Brasil escolheu (ou foi escolhido) o modelo da
República liberal norte-americana, inspirada no utilitarismo de Hume da “liberdade
individual”, para orientar a Constituição de 1891. José Murilo de Carvalho lembra as
inadequações produzidas pela implantação do modelo americano do norte, aqui no
Brasil. Enquanto os americanos do norte já viviam numa sociedade igualitária
conquistada pelos colonos, o Brasil caracterizava-se por desigualdades profundas e pela
concentração do poder. Nessas circunstâncias o liberalismo assumia um caráter de
consagração da desigualdade, de sanção da lei do mais forte. Acoplado ao
presidencialismo, o darwinismo republicano – a última versão da postura liberal - tinha
em mãos os instrumentos ideológicos e políticos para estabelecer um regime
profundamente autoritário, sem o menor interesse em promover uma república popular,
expandindo além do mínimo necessário a participação política. Dentro dessa visão, o
patriota era praticamente incompatível com o homem econômico e a cidadania
incompatível com a cultura. E mesmo a ideologia da república jacobina, de inspiração
revolucionária e igualitária, acabou sendo adaptada, no Brasil, às hierarquias locais:
havia o cidadão, o cidadão-doutor e até o cidadão-doutor-general.
Um grupo de intelectuais à antiga - como o abolicionista Joaquim Nabuco -
percebendo a impossibilidade de se fazer a república na praça pública, buscava uma
outra saída. E esta saída foi defender a versão positivista que unia ingredientes
importantes como a separação entre Igreja e Estado; a condenação da Monarquia em
nome do progresso; e a proposta de incorporação do proletariado à sociedade moderna.
Enfim, o lema positivista “Ordem e progresso” significava tornar a República um
sistema viável de governo.
Mas, na realidade, a República brasileira, além de ter surgido numa sociedade
profundamente desigual e hierarquizada, foi proclamada num momento de intensa
especulação financeira, causada em grande parte, pelas sucessivas emissões de dinheiro
feitas pelo governo para atender às necessidades geradas pela abolição da escravidão.
Esse espírito de enriquecimento pessoal a todo custo dava ao novo regime uma marca
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incompatível com a virtude republicana. E nesse caso não poderia nem se falar na
definição utilitarista do interesse público como a soma dos interesses individuais, já que
não existia preocupação com o público. Predominava a mentalidade predatória, o
espírito do capitalismo sem a ética protestante.
A América Latina, neste período sob estudo, tomou o caminho da
“ocidentalização” na sua forma burguesa liberal com grande zelo e ocasionalmente
grande brutalidade, de uma forma mais virtual que qualquer outra região do mundo,
com exceção do Japão.
9
A inexistência de um sentimento de comunidade, ou de nação, entre os
brasileiros, é apontado como um fator fundamental para esta dificuldade em se
implantar uma República virtuosa, como também para dificuldade em lidar com os dois
modelos de liberdade, a dos antigos e a dos modernos, apontadas por Benjamim
Constant. A busca dessa identidade coletiva para o país, como uma base para a
construção da nação, seria uma tarefa imperiosa para grande parte da geração intelectual
da Primeira República (1889-1930). E para alguns tornava-se um verdadeiro projeto ao
qual dedicavam sua vida e sua obra. A missão era redefinir a República. Os
propagandistas e os principais participantes do movimento republicano perceberam logo
que não se tratava da República dos seus sonhos. Alberto Torres, num desabafo, dizia
que “Este Estado não é uma nacionalidade; este país não é uma sociedade; esta gente
não é um povo. Nossos homens não são cidadãos”
10
. Na visão de Lima Barreto, a
República incitou um tropel confuso:
Cada qual mais queria, ninguém se queria submeter ou esperar, todos lutavam
desesperadamente como se estivessem num naufrágio. Nada de cerimônias, nada de
piedade; era para frente, para as posições rendosas e para privilégios e concessões. Era
um galope para a riqueza, em que se atropelava a todos, os amigos e inimigos, parentes
e estranhos. A República soltou de dentro de nossas almas toda uma grande pressão de
apetites de luxo, de fêmeas, de brilho social.(...) Sem a grande indústria, sem a grande
agricultura, com o grosso do comércio nas mãos dos estrangeiros, cada um de nós
sentindo-se solicitado por um ferver de desejos caros e satisfações opulentas, começou a
imaginar meios de fazer dinheiro à margem do código e a detestar os detentores do
poder que tinham a feérica vara legal de fornecê-lo a rodo.
11
Entre acordos e desacordos com o poder instituído - como as lutas pela
Independência, Abolição dos escravos e a República, a nossa cidade letrada começa a
9
HOBSBAWM, 1977: 139.
10
TORRES, 1982: 297.
11
BARRETO, 1997: 190.
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sofrer sua grande ruptura e fragmentação ao se deparar com a modernização que contara
com o seu irrestrito apoio. É próprio do poder necessitar de um extraordinário esforço
de ideologização para se legitimar. A fonte máxima das ideologias procede do esforço
de legitimação do poder. A nova ordem que se estabelecia com a modernização exigiu o
esforço de uma outra ideologização. Os homens de letras, que sempre estiveram ligados
ao poder como tradutores e executores desse esforço, tiveram que se deparar com uma
conjuntura desestruturadora das suas próprias crenças e tradições.
Grande parte daqueles que atuaram diretamente nas lutas pelas reformas do final
do século XIX, depois de vitoriosos, vêem-se, de uma hora para outra, relegados a uma
total “inutilidade” dentro do novo contexto político e econômico que se formava. As
aspirações humanitárias que motivaram as grandes reformas e orientaram as suas ações,
foram, num curto espaço de tempo, esquecidas e substituídas pelos valores que se
impunham pela nova ordem mundial. A intelectualidade brasileira vive, na transição dos
séculos XIX-XX, o grande abalo da sua tradição desde as origens coloniais.
A palavra-chave que sempre justificou a intervenção européia é a ordem,
ideologizando a colonização, legitimando e justificando todas as atrocidades contra os
povos nativos – como também será a palavra chave da nova ideologia dominadora da
modernização. Por definição, toda ordem implica uma hierarquia perfeitamente
disciplinada. A questão é que a hierarquia apresentada pela nova ordem modernizadora
operava a partir de outros valores e critérios, diametralmente opostos aos tradicionais: o
poder de aquisição de bens materiais em substituição à aquisição da sabedoria, do
conhecimento e dos bens espirituais.
Trata-se da história da erosão de um equilíbrio delicado que a sociedade
mantinha antes da sua existência secular e capitalista. Era um equilíbrio entre a vida
pública e a vida privada, ou seja, entre um terreno impessoal em que os homens
poderiam investir uma espécie de paixão, e um terreno pessoal em que poderiam
investir uma outra paixão. Esta organização social era regida por uma imagem da
natureza humana baseada na idéia de um caráter humano natural; este caráter não era
criado pelas experiências de uma vida, mas revelado por elas. Ele pertencia à Natureza e
se refletia no homem. À medida que tanto a secularidade quanto o capitalismo
adquiriram novas formas no século XIX, essa idéia de uma natureza transcendente
perdeu gradativamente seu significado. Os homens passam a acreditar que são os
autores do seu próprio caráter – e da sua própria natureza -, que cada acontecimento de
suas vidas precisava ter um significado que definisse o que – ou quem - eram eles. Mas
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as instabilidades e contradições de suas vidas tornavam difícil dizer qual era esse
significado. Ainda assim o envolvimento em questões de personalidade aumentou cada
vez mais. Gradualmente, essa força perigosa, misteriosa, que era o eu, passou a definir
as relações sociais. Tornou-se um princípio social. Nesse ponto o terreno público de
significação impessoal e de ação impessoal começou a diminuir.
O próprio evanescimento da res publica está intimamente ligado à crença de
que as significações sociais são geradas pelos sentimentos de seres humanos
individuais. Essa transformação camuflou duas áreas da vida social: uma é o âmbito do
Poder e outra é o âmbito das aglomerações em que vivemos. Essa crença distorceu
nosso entendimento do que é a cidade. A cidade como instrumento da vida impessoal,
terreno onde a multiplicidade e a complexidade de pessoas tornam-se disponíveis como
experiências sociais, o fórum no qual se torna significativo unir-se a outras pessoas sem
a compulsão de conhecê-las enquanto pessoas, esta experiência se perdeu através das
modernas “tiranias da intimidade”
12
.
A superprodução que gerara a Grande Depressão de 1873 e que marcou os anos
seguintes, começou a impor ao mundo suas necessidades prementes: inicia-se um
urgente processo de produção de consumidores. O grande desafio passou a ser criar um
mercado para a excessiva oferta de produtos industrializados. A fúria industrial passou a
ser a grande norma vigente e se transformava, através de um discurso ideológico bem
articulado, em conceitos como: progresso, civilização, ordem. Na verdade inicia-se um
processo de persuasão coletiva através de um discurso “democrático” de grande alcance,
que camuflava a tirania do consumo. O governo da autoridade soberana sobre uma
multiplicidade de hábitos e de ações não precisa ser originado por coerção brutal, pode
surgir por sedução, de tal forma que as pessoas queiram ser governadas por uma
autoridade única que se coloque acima de todas elas. Uma instituição pode dominar
como uma fonte única de autoridade, uma crença pode servir como padrão único para
enfrentar a realidade. Configurava-se o Admirável mundo novo, previsto por Aldous
Huxley em 1932, em que
Um Estado totalitário verdadeiramente eficiente seria aquele em que os chefes
políticos de um Poder Executivo todo-poderoso e seu exército de administradores
controlassem uma população de escravos que não tivessem que ser coagidos porque
amariam a sua servidão.
13
12
SENNET, 1988: 413-4.
13
HUXLEY, 2001: 28.
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30
A razão pela qual as transformações materiais não levaram à percepção de um
caos total, ou a razão pela qual as pessoas da classe média podiam sentir que a
sobrevivência era possível na cidade, ou pela qual a vida cosmopolita era importante e
significativa, apesar de todos os seus terrores, era exatamente porque os cidadãos não
precisavam inventar uma cultura urbana com imagens de como seria a vida na cidade,
de como enfrentar o desconhecido, de como se comportar diante de estranhos. Havia
uma cultura herdada. Essa cultura era o domínio público. Ela sobreviveu para os nossos
tataravós como um instrumento para que se tentasse preservar a ordem em meio a
mudanças materiais muito grandes. Aquilo que os nossos antepassados receberam com
o tempo e como o fizeram com todas as heranças, foi desperdiçado. A burguesia
deformou a cultura de se levar uma vida significativa distanciada das incertezas das
circunstâncias pessoais.
Richard Sennett define a nova vida pública que se formava no século XIX a
partir da nova noção de consumo e a relação pessoal que ele estabelecia. Com o
estímulo que se passou a dar ao comprador para revestir os objetos de significações
pessoais, além da sua utilidade, surge um novo código de credibilidade baseado no
comércio. O investimento de sentimentos pessoais e a observação passiva estavam se
unindo. Karl Marx definiu essa psicologia do consumo como o “fetichismo das
mercadorias”. Estar em público era ao mesmo tempo uma experiência pessoal e passiva.
O trabalho da propaganda industrial se faz por um ato de desorientação que depende
dessa superposição de imagens: o fetiche sobre o objeto real. O século XIX vive o
entrecruzamento dessas duas crenças relativas ao domínio público: um novo espectador,
passivo, e o outro que ainda acreditava na vida pública.
Mas era visível que este homem público sentia-se mais confortável enquanto
uma testemunha da expressão de outra pessoa, do que como um ativo condutor da
própria expressão. Um exemplo ilustrativo dessa nova sedução é o caso do personagem
Aires, de Machado de Assis, que gostava de ver as notícias privadas impressas “porque
faz da vida de cada um uma ocupação de todos”
14
. Como lembra Beatriz Jaguaribe, “A
maledicência, o falar mal da vida alheia, cumpre uma função de extravasamento
retórico. É a tática censurada, mas praticada, de fomentar a crítica sem comprometer
uma ação direta”
15
.
14
ASSIS, 1988: 61.
15
JAGUARIBE, 1998: 48.
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31
A modernização é fruto de um amplo processo de sedução e de redução de um
continente à condição de periferia, imposta por uma força distante, indiferente aos
sacrifícios dos homens, que age de acordo com a lógica quase mecânica de uma
economia-mundo. Era fundamental, para a “sobrevivência” das indústrias que nasciam,
convencer todas as sociedades tradicionais da necessidade do consumo dos produtos
industrializados. Não importava a necessidade dos homens, mas a da indústria,
iniciando-se assim a lógica que vivemos plenamente hoje: produzir o consumidor para o
produto. É na esteira dessas transformações que surge a propaganda como o grande
veículo do discurso ideológico hegemônico. Paralelamente, outras linguagens
institucionais funcionavam com eficácia no sentido de garantir a grande hegemonia
européia e a expansão do seu mercado.
A ambição de se tornar uma grande nação moderna a partir da promessa de bem
estar para todos, igualmente, o sentimento de inferioridade diante das nações
civilizadas, a desvalorização das tradições nacionais diante das maravilhas da sociedade
de consumo eram alguns aspectos que tornavam as sociedades periféricas presas fáceis
diante da selvageria das grandes potências. O deslumbramento da cidade letrada diante
das maravilhas da modernização impedia que os homens de letras tivessem a visão real
das coisas ou do preço que se pagaria como economia periférica: inicia-se o longo
processo político e econômico de tornar os países periféricos seus dóceis dependentes,
através dos empréstimos “generosamente oferecidos” pela Inglaterra. Nas palavras de
um cronista da época:
Desde então, a progressão da taxa de capitalização e a expansão dos recursos,
principalmente através dos empréstimos sucessivos e generosos dos anos que
antecederam a Guerra, fez-se numa cadência que chegava mesmo a surpreender e
preocupar os próprios agentes insufladores desse processo
16
.
A República no Brasil, iniciando-se na esteira dessa nova ordem mundial que se
instala, faz uma nítida seleção política que elimina da cena, primeiramente, as antigas
elites do Império para depois então eliminar os grupos comprometidos com os anseios
populares, aqueles “excessivamente comprometidos com a República”, em outras
palavras, movidos pelo legítimo ideal da res publica. Opera-se, dessa forma, uma
verdadeira filtragem de elementos hostis ao novo regime que se impõe. E por este
“filtro” passam também alguns “homens de letras” que representavam os grandes ideais
16
Jornal do Comércio, 15/11/1909, “Editorial”.
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32
dos valores universais que orientaram as sociedades até o século XIX. Euclides da
Cunha resume de forma exemplar os “novos tempos”:
O Qüinqüênio de 1875-1880 é o da nossa investidura temporã na filosofia
contemporânea, com seus vários matizes, do positivismo ortodoxo ao evolucionismo no
sentido mais amplo e com várias modalidades artísticas, decorrentes, nascidas de idéias
e sentimentos elaborados fora e muito longe de nós. A nossa gente, que mal ou bem ia
seguindo com os caracteres mais ou menos fixos, entrou, de golpe, num suntuoso
parasitismo. Começávamos a aprender de cor a civilização, coisas novas, bizarras,
originais, chegando, cativando-nos, desnorteando-nos e enriquecendo-nos de graça
...Diante de novos descortinos mais amplos, partiu-se a cadeia tradicionalista que se
dilatara até aquele tempo...
17
Contribuiu decisivamente para a nova configuração brasileira o fenômeno do
encilhamento, que promoveu um processo cruel de substituição dos grupos econômicos
através da queima de fortunas seculares, transferidas para as mãos de “um mundo de
desconhecidos” por meio de negociatas diversas. A expansão de crédito para empresas
industriais criou numerosas sociedades anônimas e a intensa especulação com ações.
Enfim, a especulação financeira passa a ser uma prática comum de enriquecimento,
sendo transferida do jogo dos títulos e ações para as operações suspeitas em torno das
oscilações cambiais que marcaram o início da República.
O Encilhamento, com aquelas fortunas de mil e uma noites, deu-nos o gosto
pelo esplendor, pelo milhão, pela elegância e nós atiramo-nos à indústria das
indenizações. Depois, esgotados, vieram os arranjos, as gordas negociatas sob todos os
disfarces, os desfalques, sobretudo a indústria política, a mais segura e a mais honesta.
18
A “filosofia contemporânea”, apesar de ter nascido de idéias e sentimentos
elaborados fora e muito longe de nós, como explica Euclides da Cunha, não se resumia
em mera imitação, mas era fruto da amplitude de um único processo de mudança em
todo o mundo ocidental. Convencidos da urgência da modernização do país, motivados
pelas idéias européias relacionadas ao mito da civilização e do progresso, a
intelectualidade brasileira, imbuída da promessa da modernidade de prosperidade para
todos, tornou-se a grande difusora e propagandista das transformações no cenário
político, econômico e social brasileiro. E para compensar seu sentimento de
inferioridade e atraso em relação às nações civilizadas, cria seus próprios mitos, como o
da superioridade da nação que se revelará num futuro: a ideologia do país novo, do
17
CUNHA, 1966, vol. 1, p. 209-10.
18
BARRETO, 1997: 190.
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33
“gigante adormecido”, a nova Canaã para os imigrantes que chegavam. O mito ufanista
romântico da riqueza e da exuberância natural transforma-se no mito da riqueza material
e do utilitarismo da vida. A beleza das paisagens passa a ser a da vida urbana marcada
pela exuberância das chaminés das indústrias. Esta ideologia se impõe até transformar-
se na propaganda “Poluição é progresso”.
A economia começa a ditar as regras da nova ordem mundial e
conseqüentemente, das condutas sociais, impondo os novos valores materiais em
substituição aos antigos valores universais e abstratos que caracterizavam a mentalidade
pré-moderna. A estrutura cultural flutuava sobre a econômica, reproduzindo-a. A
filosofia, disciplina que tinha uma voz privilegiada na interpretação do mundo com a
intenção de ampliar incessantemente a compreensão da realidade, tendo o homem como
tema fundamental dessa compreensão, perde seu lugar para a economia, ciência que
trata dos fenômenos relativos à produção, distribuição e consumo de bens materiais. Na
verdade, “o abandono da idéia de solidariedade está por trás desse entendimento da
economia e conduz ao desamparo em que vivemos hoje”, esclarece o geógrafo e
pensador brasileiro Milton Santos, sobre a atual situação brasileira do século XXI. Da
mesma forma, Lima Barreto percebeu estas relações um século antes:
Se a dissolução dos costumes que todos anunciam como existente, há, antes
dela houve a dissolução do sentimento, do imarcescível sentimento de solidariedade
entre os homens.
19
O individualismo, levado aos exageros destruidores do egoísmo, enfraqueceu os
laços de solidariedade ... Infelizmente (...) a noção de sacrifício se extingue com os
progressos do individualismo revolucionário, cujo preceito supremo é o cada um por
si”
20
Este quadro favorece o surgimento de novos atores, muito mais ágeis na corrida
pelo ouro e atentos às chances do momento, espertos jogadores e apostadores movidos
pela lógica do oportunismo. Dessa forma, a operação de substituição de valores, é
surpreendentemente rápida. A especulação financeira que traz à cena o enriquecimento
imediato, não mais como fruto do trabalho, mas das práticas do jogo financeiro, reforça
o início do processo de individualização e competição característico do novo mundo
capitalizado e define bem o que Richard Sennet chama de “respeitabilidade burguesa
19
BARRETO, 1956, Coisas do Reino do Jambon, p. 80.
20
“O bumba-meu-boi”, Revista Kosmos, janeiro de 1906.
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34
fundada na sorte”
21
. Os novos princípios para se fazer dinheiro e para se dirigir grandes
organizações eram um mistério até mesmo para aqueles que eram muito bem sucedidos.
Era possível, de fato, ganhar ou perder muito dinheiro rapidamente. “Tudo que é sólido
desmancha no ar”, uma frase do Manifesto Comunista de Marx e Engels, foi o ponto de
partida para Marshall Berman construir um painel vertiginoso sobre a “aventura da
modernidade” na obra que tem a frase como título.
José Veríssimo, um dos críticos brasileiros mais respeitados no início do século
XX, vai mais longe ao comentar as novas práticas especulativas: “A bolsa nesses
últimos tempos é a fotografia da sociedade, cada qual procura enganar a cada um com
mais vantagem (...), os ricos de hoje são os troca-tintas [trapalhões] de ontem”
22
.
Lima Barreto, um crítico ferrenho da cultura da bajulação e da submissão que
reinava na época, criou o exemplar Genelício
23
:
Quando entrava um ministro, fazia-se escolher como intérprete dos
companheiros e deitava um discurso; nos aniversários de nascimento, era um soneto que
começava sempre por “Salve” e acabava também por “Salve! Três vezes Salve!”. O
modelo era sempre o mesmo; ele só mudava o nome do ministro e punha data. No dia
seguinte, os jornais falavam do seu nome, e publicavam o soneto.
Durante o processo de mudança política, os cargos rendosos e decisórios
passaram rapidamente para as mãos desses grupos de recém-chegados que acabavam
sendo premiados com as ondas de “nomeações”, “indenizações”, “concessões”,
“garantias”, “privilégios” e “proteções”. Até mesmo os “gentis-homens” remanescentes
do Império, aderindo à nova regra, “curvam-se e fazem corte ao burguês plutocrata”.
Já se foi o tempo em que acolhíamos com uma certa simpatia esses parentes que vinham
descalços e malvestidos, falar-nos de seus infortúnios e de suas brenhas. Então a cidade
era deselegante, mal calçada e escura, e porque não possuíamos monumentos, o
balouçar das palmeiras afagava a nossa vaidade. Recebíamos então sem grande
constrangimento, no casarão, à sombra de nossas árvores, o gentio e seus pesares, e lhes
manifestávamos a nossa cordialidade fraternal (...) Agora porém a cidade mudou e nós
mudamos com ela e por ela. Já não é a singela morada de pedra sob coqueiros; é o salão
com tapetes ricos e grandes globos de luz elétrica. E por isso quando o selvagem
aparece é como um parente que nos envergonha. Em vez de reparar nas mágoas do seu
coração, olhamos com terror para a lama bravia dos seus pés. O nosso smartismo
estragou a nossa fraternidade
.
24
21
SENNET, 1988: 176.
22
“Livros novos”, Jornal do Comércio, 2/4/1900.
23
BARRETO, s/d.: 46.
24
A semana dia a dia”, Jornal do Comércio, 30/3/1908.
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35
Esse processo de transformações deveria convergir necessariamente para o
campo das instituições políticas, ou seja, à implantação do Estado-nação brasileiro. Esta
implantação era nada menos que uma forma de se estabilizar uma nova ordem e
adaptar-se a uma crise única de crescimento mundial, cuja origem se encontrava
justamente nas nações que já haviam fundado as instituições, se não adequadas a esta
“crise”, pelo menos capazes de enfrentá-la. Portanto, a modernização no Brasil não foi,
como às vezes é sugerido, uma mera cópia de padrões europeus, mas algo muito maior,
um avassalador processo de mudanças em nível mundial que arrastava as sociedades
tradicionais.
Essa implantação das instituições de padrão europeu, como uma forma de se
estabelecer a ordem tão desejada, acabou produzindo os resultados de acordo com a
própria incapacidade de adaptação desses modelos às nações periféricas: o enorme peso
das instituições que configuram o poder e a falta de capacidade dos indivíduos em
enfrentá-las e vencê-las. Podemos compreender a famigerada burocracia brasileira e sua
máquina eternamente “emperrada” como um sinal desta inadequação de modelos
importados de uma sociedade que os inventou, para outra que os importou. O peso
dessa burocracia parece ser o resultado da necessidade de controle ou de um esforço de
“domesticação” por parte de um poder instituído sobre uma sociedade em formação, em
grande parte ainda primitiva.
Os mitos partem de componentes reais, mas não são obviamente traduções do
funcionamento da sociedade, e sim desejos possíveis de seus integrantes. São
condensações de suas energias acerca do mundo, que em outras sociedades como a
norte-americana, por exemplo, se abastecem nas forças individuais, enquanto no Brasil
como nas sociedades latino-americanas, esses desejos passam por uma percepção aguda
do poder, concentrado em altas esferas e simultaneamente, uma sutil desconfiança em
relação à capacidade individual de se opor a ele. Em outras palavras, as sociedades
urbanas latino-americanas operam dentro de modelos mais coletivizados e seus mitos
opositores do poder passam através da configuração de grupos. É compreensível,
seguindo essa lógica, a necessidade que têm os brasileiros de representações coletivas,
de líderes orientadores, sacerdotes da sociedade. A representação coletiva prevalece
sobre a iniciativa individual.
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36
2.2. A demissão do mosqueteiro intelectual
25
O pior destino que se pode legar a um mosqueteiro é não incumbi-lo de nenhuma
missão.
Nicolau Sevcenko
Houve, no Brasil, um claro deslocamento social imposto pela nova ordem. O
valor de mercado dava início ao processo de substituição dos atores sociais. Os
“homens de letras” perdiam sua importância diante das demandas da nova conjuntura
social, tornavam-se inúteis como representantes de antigos valores, e as classes
desfavorecidas foram simplesmente eliminadas do centro urbano, deixadas ao sabor do
acaso e da miséria. Esse deslocamento das tradicionais classes sociais para fora da cena,
se procedeu paralelamente à entrada dos novos atores. Um sentimento de frustração e
impotência tomou conta dos tradicionais homens de letras que não se adequavam às
expectativas reais do novo homo economicus, e não exerceram as funções esperadas nos
cargos de comando, imediatamente ocupados pelos ágeis oportunistas que atuavam no
ritmo da lógica do mercado.
A sabedoria deixou de ser a aspiração dos espíritos para ser a anomalia dos
solitários. É interessante considerar nessa moral de parvenus. Entre nós ouvimos a todo
instante dizer-se: até não vale a pena a gente estudar, porque só os nulos, os
incompetentes é que sobem. Tenho ouvido algumas vezes: _ Se tivesse um filho, ele
não aprenderia a ler, ficaria bem estupidozinho, a fim de vencer na vida; e tenho ouvido
enumerar o enorme catálogo das pessoas incompetentes que ocupam posições
superiores ao seu mérito. O nosso país é, a este respeito, na opinião dos pessimistas, um
país essencialmente perdido.
26
Os “mosqueteiros intelectuais” eram os ilustrados que praticamente não
existiram no Brasil do século XVIII, e seguindo a tradição redentorista do letrado
americano, estavam destinados, fatalmente, à orientação de uma sociedade que apenas
havia começado a praticar as forças democráticas. Durante as lutas pela República e
Abolição da escravatura, conquistaram a posição de heróis revolucionários, sendo
intitulados “mosqueteiros intelectuais”. Havia neles uma aura de paladinos, defensores e
representantes dos anseios – ambiguamente - populares, unida à capacitação pelas
25
Expressão utilizada pelos escritores João Alexandre Barbosa em A tradição do impasse, p. 77-111 e
Ciro Vieira da Cunha em No tempo de Paula Ney, p. 12, 40, 77 e 93, para designar o enmgajemanto que
se tornava a condição ética do homem de letras do final do século XIX.
26
AMADO, 1947: 25.
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37
letras, que os legitimou como os grandes norteadores da nação. Essa era a aura do
homem heróico, aquele que não possuia existência privada, já que todos os seus atos
eram direcionados à comunidade, à contemplação pública. E seus feitos são heróicos na
medida em que revelam um etos comunitário sem as restrições da vivência
individualizada. Essa representação coletiva do herói vinha de encontro à nova ordem
de valores da modernidade.
Por ser parte real, parte construído, por ser fruto de um processo de elaboração
coletiva, o herói diz menos sobre si mesmo do que sobre a sociedade que o produz.
Esses cavaleiros tornaram-se logo coisa do passado. Sua “cruzada modernizadora”,
vitoriosa, largou-os à margem, sem mais utilidade. Dedicados ao utilitarismo social do
século XIX, vêem-se transformados em personagens socialmente inúteis no novo
século, na hora do triunfo dos seus ideais. Os agravos contra a total inversão de valores
e o forte sentimento de desprezo e traição pareciam ser um sentimento comum a todos,
como mostra o crítico José Veríssimo:
Todos se presumiam e diziam republicanos, na crença ingênua de que a
República, para eles palavra mágica que bastava à solução de problemas de cuja
dificuldade e complexidade não desconfiavam sequer, não fosse na prática
perfeitamente compatível com todos os males da organização social, cuja injustiça os
revoltava
27
Euclides da Cunha desabafava: “A ver navios! Nem outra coisa faço nesta
adorável República, loureira de espírito curto que me deixa sistematicamente de lado...”.
“Os que lutam entre as convicções mal firmadas e as que lhes vêm do passado sofrem,
mas é, sobretudo, desse mau ajustamento”, dizia Medeiros e Albuquerque
28
.
O momento era da “imbecilidade triunfante” nas palavras de Euclides da Cunha,
uma verdadeira “mediocracia” - termo que se tornou corrente. A cidade das Letras
parecia desmantelar-se, fato que se associava com a perda da segurança dos valores do
espírito, das artes e da filosofia que formaram a tradição ocidental. Os talentos já não
significavam nada, como afirmava Farias Brito: “Aqui o homem de espírito, o pensador,
o artista é o objeto quase de escárnio, por parte dos senhores da situação e dos homens
de Estado. Um pensador, um artista vale para eles menos que uma forte e valente
cavalgadura; um poeta menos que uma bonita parelha de carro”.
27
Vida literária” in Revista kosmos, n. 7, 1904
28
MEDEIROS E ALBUQUERQUE, 1933: 78.
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38
Mário Pederneiras, um poeta intermediário entre as linhas avançadas do
Simbolismo e o Modernismo de 1922, com ressentimento irônico, debocha do burguês,
tema que seria retomado por Mário de Andrade e relacionado ironicamente às
“adiposidades cerebrais” na poesia Ode ao burguês.
Eu preferia ter nascido
Um pesado burguês, redondo e manso,
Alimentado e rude;
Desses que vivem a vender saúde,
Cuja vida, incolor e sem sentido,
É um cômodo vale de descanso.
29
Esses paladinos, de uma hora para outra, deveriam descer das alturas da
representação pública e tornar-se homens comuns. O próprio jornalismo, como grande
empregador das classes letradas, tratou de desmistificá-los, trazendo-os ao convívio
fácil e diário das leituras rápidas. João Luso, jornalista experimentado, acompanhou
Euclides da Cunha na redação de um pequeno texto nos escritórios do Jornal do
Comércio e comentou que “levou aquilo mais de três horas, para ocupar no dia seguinte
um reduzido espaço no jornal”.
João do Rio publica em 1908 o Momento literário, o primeiro livro brasileiro de
entrevistas, que trazia alguns dos epígonos intelectuais falando de dentro das suas casas,
sobre suas rotinas de trabalho e a literatura. Na introdução, João do Rio, em conferência
com um amigo, justifica a sua publicação:
O público quer uma nova curiosidade. As multidões meridionais são mais ou
menos nervosas. A curiosidade, o apetite de saber, de estar informado, de ser
conhecedor são os primeiros sintomas da agitação e da nevrose. Há da parte do público
uma curiosidade malsã, quase excessiva. Não se quer conhecer as obras, prefere-se
indagar a vida dos autores. Precisamos saber? Remontamos logo às origens,
desventramos os ídolos, vivemos com eles. A curiosidade é hoje uma ânsia... Ora, o
jornalismo é o pai dessa nevrose, porque transformou a crítica e fez a reportagem.
30
Aqueles valores abstratos, representados pelos homens públicos, transformavam-
se em valores muito concretos: a roupa, a moda, o carro, a utilidade das coisas, enfim,
era o que importava. O dandismo, a elegância, o smartismo ditavam o novo estilo com
um poder legitimador do novo homem:
29
FILHO, 1958: 54.
30
RIO, s/d. : 6.
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39
Mas o Brasil transforma-se, civiliza-se. (...) Uma nova necessidade infiltrou-se nos
nossos hábitos: a necessidade da higiene e do confortável. O escritor precisa de higiene,
de cuidados, de luxo. Eu acredito que o gênio profundo e fecundo de Coelho Neto não
se expandiria de maneira tão maravilhosa se não tivesse o ambiente de luxo e de
conforto da sua sala de trabalho; e Medeiros e Albuquerque não possuiria aquela
regularidade, aquela precisão, aquela clareza de argumentos e de estilo se não adquirisse
na vida todas as comodidades do corpo e do espírito. Há vinte anos um sujeito para
fingir de pensador começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje,
um tipo nessas condições seria posto fora até mesmo das confeitarias, que são e sempre
foram as colmeias dos ociosos.
31
O novo homem passava a ser medido pelo valor do mercado e seu peso
estipulado pelo seu poder de adquirir, questão tratada de forma exemplar em toda a obra
de Machado de Assis. O homem público, regido pelos valores do trabalho, honra e
dever foi substituído pelo “sujeito de préstimo”, o tempo era curto e a urgência grande.
Os novos tempos traziam os ideais de um outro ídolo: o “burguês plutocrata”, bem
representado nas palavras de Tavares Bastos:
O país não pertence aos ídolos, o país se volve para aqueles que sabem o que querem, os
verdadeiros liberais, os reformadores, os inimigos da rotina, os derribadores das estátuas
de barro, os adversários da palavra oca, os homens de idéias. A salvação da sociedade
está justamente nesta incontestável tendência para as coisas úteis, para as reformas
necessárias, irresistível corrente a que não se pode pôr de frente ninguém, ninguém, ou
cinja a coroa dos louros civis, ou cingisse embora o diadema real. Esta sede de
novidades, esta transformação moral, esta força democrática é que alenta e comove a
nação. Nomes, palavras, discursos vãos, tudo isso já é irrisório. Só merecem conceito a
reforma útil e o sujeito de préstimo.
32
Graça Aranha em Canaã, resume a situação num certo tom apocalíptico e
profético:
Tudo se desagrega, uma civilização cai e se transforma no desconhecido ... Há uma
tragédia na alma do brasileiro quando ele sente que não se desdobrará mais até o infinito
... E a tradição rompeu-se, o pai não transmitirá mais ao filho a sua imagem, a língua vai
morrer, os velhos sonhos da raça, os longínquos e fundo desejos da personalidade
emudeceram, o futuro não entenderá o passado.
33
A perda das tradições e a confusão dos espíritos revelavam um mundo que se
diluía nas incertezas e no sentimento trágico, como revela o encontro de
Coelho Neto e Paula Ney: o primeiro fala da sua pretensão em se tornar um homem de
31
Idem, p. 100.
32
VITA, 1968: 262.
33
ARANHA, s/d.: 40.
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40
letras, e recebe os pêsames do amigo escutando o seguinte conselho irônico: “Neste país
viçoso a mania das letras é perigosa e fatal. Quem sabe sintaxe aqui é como quem tem
lepra. Cure-se! Isto é um país de cretinos! Convença-se ... letras só as de câmbio”. A
literatura, que mediava os projetos de resistência das grandes campanhas públicas do
passado, perdia sua força diante da lentidão na produção, circulação e consumo
literários, ainda intensificada pela concorrência com a imprensa diária, um sistema de
informações coerente com o novo ritmo da vida moderna. A popularidade e o consumo
do jornal criava uma forte indústria que acabou sendo a grande empregadora dos
extintos “homens de letras”.
Gilberto Amado ratifica esse ponto de vista:
Esse indivíduo [o artista] é um expatriado, o país não o conhece; não se
estabelece entre ele e o ambiente essa virtualidade, essa simpatia e compreensão
recíprocas que lhe criam o domínio e o triunfo. O artista aí há de fatalmente recuar para
o fundo da cena. É uma figura secundária
34
José Veríssimo, através da sua coluna no Jornal do Comércio, praticamente
dirigiu todo o movimento literário na primeira década do século XX, travando uma luta
constante a favor do afastamento entre a camada intelectual e os grupos no comando da
República:
Os intelectuais têm, entretanto, perfeita razão, penso eu, de se apartarem do
campo onde a pretexto de patriotismo e outra coisas práticas em ismo, se manipulam
todas as transações, se preparam todas as capitulações de consciência, se aparelham e
acomodam todos os interesses, que constituem o fundo da vida política moderna. Os
que lho censuram confundem grosseiramente política, eleições, jornalismo, briga por
empregos e posições, o parlamentarismo com todas as suas mentiras, as ficções
desmoralizadas do constitucionalismo, com os altos interesses humanos e sociais,
quando nada há de comum entre uns e outros.
35
De uma forma ainda não vista antes, a intelectualidade conquistava uma relativa
autonomia em relação às práticas ligadas ao poder vigente ou à simples respeitabilidade
pública. Pode-se perceber a capacidade de funcionamento autônomo de que é capaz a
classe letrada. Ángel Rama chama atenção para “o sobrevivente poder da cidade das
letras, além da independência e do forçoso epigonalismo que se registra entre seus
34
AMADO, 1947: 25.
35
VERÍSSIMO, 1902: 68-9 e 71.
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41
membros, religando-os fervorosamente às origens, quando uma constituição do grupo
intelectual se conserva tanto tempo sem modificação profunda”
36
Mas esta independência era ao mesmo tempo desejada e compulsória, sendo na
verdade um resultado do desprezo social e do analfabetismo que assolava o país e a
literatura. Dessa forma, era uma independência contraditória: libertadora por um lado,
preservando o campo ético, mas esterilizante por outro, negando o campo da ação. E
nesse último aspecto, tinha um preço elevado: implicaria uma posição socialmente
marginalizada, às vezes miserável, agravada pelas crises econômicas que marcaram a
Primeira República. O poder redentorista das letras ruía, a modernização forçou uma
situação em que a cidade das letras, sob uma iminente falência, demitia os seus letrados.
Coelho Neto descreve a visita que fez a um poeta na sua agonia de morte:
Que trabalho para conseguir achar a pocilga em que se extinguiu o espírito
irradiante! (...) O quarto ...Ah! meu amigo ... uma estufilha com um postigo sobre o
telhado. Cama de ferro sem lençóis, uma mesa de pinho atulhada de jornais e brochuras,
uma cadeira espipada, andrajos escorrendo de pregos à parede, e, num caixote, um coto
de vela vasquejando numa garrafa.
37
O mesmo Coelho Neto descrevia o seu primeiro encontro com Aluísio Azevedo,
já então uma grande personalidade das letras no Rio de Janeiro: “Ó sonho! Rui Vaz
[Aluísio Azevedo] ali estava, não como um deus no santuário venerável, mas homem,
simples homem, modesto e pobre, entre móveis reles, de calças de brim, camisa de
setineta aberta no peito curvado sobre a bacia do seu lavatório”. Alberto de Paula
Rodrigues dizia que Lima Barreto era “evitado pelos demais literatos pois já cedo, no
dia, estava completamente embriagado e seu aspecto era repugnante”
38
. E Lima
Barreto, por sua vez, justificava: “Muitas causas influíram para que eu viesse a beber
(...). Adivinhava a morte do meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo; previa moléstias
com tratamento caro e eu sem recursos”
39
Euclides da Cunha, também assolado pela falta de reconhecimento, confessava:
“Não fui ao Briguiet porque me faltou tempo e dinheiro. Os padres do Colégio Anchieta
[onde estudava o filho do escritor] esmagaram-me com uma conta e fim de ano
assombradora; depois vieram as do médico, do farmacêutico. Um horror”.
40
36
RAMA, 1985: 47.
37
COELHO NETO, 1924: 173-4.
38
FREYRE, 1962: 652-253.
39
BARRETO, 1956, Cemitério dos vivos, p. 47-8.
40
CUNHA, 1966, vol. 1, p. 539.
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42
Mas havia os que defendiam os novos valores do mercado e a conformidade com
a nova aparência, como uma marca externa da capacidade interior. O dândi João do Rio
argumenta:
Os tempos mudaram, meu caro. Há vinte anos um sujeito para fingir de pensador
começava por ter a barba por fazer e o fato cheio de nódoas. Hoje, um tipo nessas
condições seria posto fora até mesmo das confeitarias, que são e sempre foram as
colmeias dos ociosos. Depois, há a concorrência, a tremenda concorrência de trabalho
que proíbe os romantismos, o sentimentalismo, as noites passadas em claro e essa coisa
abjeta que os imbecis divinizam chamada boêmia, isto é, a falta de dinheiro, o saque
eventual das algibeiras alheias e a gargalhada de troça aos outros com a camisa por
lavar e o estômago vazio...
— Há de permitir que eu o considere feroz. Em segundo, a idéia clara de que o homem
de letras só tem um desejo, mesmo quando está na torre de marfim: conquistar o favor
público, ser lido e ser notado.
41
Esses “intelectuais de casaca”, sem maiores compromissos sociais, bem
colocados na nova ordem, muito requisitados para as famosas conferências, convidados
de honra para o magistério público ou para alguns cargos de fachada no poder central,
além de empregados da imprensa, tornavam-se homens ricos dedicados a uma literatura
que representava o “sorriso da sociedade”, como um espelho do seu público.
Hoje, sejamos francos, a literatura é uma profissão que carece do reclamo e que tem
como único crítico o afrancesado Sucesso. Não sei se conhece o livro de Gastão Ragot a
respeito. O êxito, resultante ou acidental, é uma força. Esta força não é cega e não é
inexplicável: vem de uma corrente que o vulgo acompanha, mas que o filósofo analisa,
corrente que obedece a leis fáceis de determinar. O autor, seja ele qual for, de uma
notoriedade lucrativa, de valor no mercado — porque a venda é uma força — deve o
seu sucesso ao favor público. O público não simpatiza senão com os que o sabem tocar
e lisonjear. A marca de um autor cotado é uma boa marca. Ele a princípio é quem a
recomenda; ela depois é que o faz valer. Por isso o autor que vence é uma espécie de
jogador feliz
42
O fenômeno Coelho Neto ilustra bem a “notoriedade lucrativa”. O escritor
ressurgiu como uma das personalidades mais importantes na virada do século. Foi
professor público de história da arte, professor de literatura do Ginásio de Campinas em
1900; em 1909 foi efetivado como lente do Colégio Pedro II, o mais importante instituto
de ensino secundário do país. Nesse mesmo ano é eleito deputado pelo Maranhão,
depois nomeado secretário do governo do estado do Rio, professor de história das artes
e literatura dramática da Escola Dramática Municipal, além de diretor desta mesma
41
Op. Cit. P. 100.
42
Idem, idem.
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43
instituição. Isso tudo sem deixar de ser um dos mais assíduos colaboradores da
imprensa diária, das revistas mundanas, mestre-de-cerimônias de festas oficiais e semi-
oficiais, paraninfo preferencial dos formandos da cidade e um conferencista de sucesso
garantido. E ao mesmo tempo realizou uma carreira literária sem paralelos na história
das letras nacionais, ao menos quanto ao volume. O escritor, apontado pela crítica como
preciosista e mercenário, conseguiu uma espetacular proeza no limitadíssimo mercado
editorial brasileiro: cinqüenta volumes publicados, até 1908:Sim, e a todos prezo, sim,
cinqüenta! Bastava que em cada um houvesse uma página digna para que os
publicasse”. Alcançava, até a sua morte, em 1934, a produção de 120 volumes. Cercado
de glórias, o escritor viveu plenamente o sucesso. Viajou para a Europa em 1913 e viu
seus livros traduzidos para outros idiomas. Foi também presidente da Academia
Brasileira de Letras e aclamado “Príncipe dos prosadores brasileiros”.
— Sou um trapista do trabalho, a bête de somme dos franceses — quero, e mourejo
como um servo da gleba... Ah! meu amigo, o artista não é o zoilo das confeitarias à cata
de jantar.
Preciso de um relativo conforto, preciso rodear os meus filhos de bem- estar.Trabalho!
Creio que só a tenacidade e o querer têm obstado a minha morte. Hei de ir até o fim com
o prazer de ter pago sempre as minhas dívidas...
43
João do Rio, em entrevista com o escritor, afirma que “Coelho Neto é no Brasil
o que Rudyard Kipling é na Inglaterra, — o homem que joga com maior número de
vocábulos. Alguém já lhe calculou o léxico em 20.000 palavras”. O escritor argumenta:
A palavra escrita vive do adjetivo, que é a sua inflexão. Daí a grande necessidade de
disciplinar o vocabulário (...) A questão não é de vocabulário; é de disciplina. (...) Eu
consegui disciplinar o vocabulário. Dada uma certa impressão, concluída uma idéia,
posso sentar-me e escrever. A idéia sai vestida e os termos exatos juntam-se no perfeito
reflexo da impressão.44
Lima Barreto, representante da intelectualidade da oposição, comenta:
O deputado [Coelho Neto] ficou sendo o romancista que só se preocupou com o
estilo, com o vocabulário, com a paisagem, mas que não fez do seu instrumento artístico
um veículo de difusão das grandes idéias do tempo, em que não repercutiram as ânsias
de infinita justiça dos seus dias; em que não encontrou eco nem revolta o clamor das
vítimas da nossa brutalidade burguesa, feita de avidez de ganho, com a mais sinistra
43
Idem, p. 19.
44 Idem, idem.
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44
amoralidade para também edificar, por sua vez, uma utopia ou ajudar a solapar a
construção social que já encontrou balançando. (...) não pode ser o que um literato deve
ser quando logra pisar em tais lugares: um semeador de idéias, um batedor do futuro.
45
A mistificação da escritura, nesse contexto, promoveu a mistificação da arte
retórica que passava a ser uma espécie de instrumento que validava e legitimava todas
as disciplinas. A própria ciência acabou se rendendo a essa arte a ponto de fazer dos
médicos, muitas vezes, profissionais mais treinados nas artes literárias do que na
fisiologia humana. Gilberto Freyre ilustra bem esse poder legitimador da letra,
lembrando que, ainda no século XIX:
A Medicina científica propriamente dita, se viu, por vezes, em situação de
estudo ou de culto quase ancilar do da literatura clássica; do da Oratória; do da Retórica;
do da elegância de dizer; do da correção no escrever; do da pureza no falar; do da graça
no debater questões às vezes mais de Gramática que de Fisiologia
46
O Dr. Armando, do romance O triste fim de Policarpo Quaresma, “escrevia
artigos, estiradas compilações, em que não havia nada de próprio, mas ricos de citações
em francês, inglês e alemão”. Ao menos a aparência de leitor de grandes obras era
fundamental: “À noite, ele abria as janelas das venezianas, acendia todos os bicos de gás
e se punha à mesa, todo de branco com um livro aberto sob os olhos”
47
.
As disciplinas confundiam-se de tal forma que, na conclusão de Lima Barreto,
“Os gramáticos não olhavam com bons olhos uma tal invasão por parte dos cirurgiões,
na sua seara. Ruminaram a vingança” contra os médicos: aqueles começaram a dar
consultas sobre a arte de escrever “nas páginas mortas dos jornais diários”, e, de acordo
com os preceitos puristas da língua, criaram uma “patologia lingüística” como as
construções populares, modismos profissionais, que começaram a analisar e explicar
como fazem os médicos com as moléstias.
O burocrata Genelício, para ser respeitado e promovido, também se servia da
retórica salpicada de citações estrangeiras em artigos de contabilidade pública:
Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente gênio. Não se
limitava ao soneto, ao discurso (...) No intuito de anunciar aos ministros e diretores que
tinha uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornais longos artigos
sobre contabilidade pública. Eram meras compilações de bolorentos decretos, salpicadas
aqui e ali com citações de autores franceses ou portugueses.
48
45
BARRETO, 1956, Impressões de leitura, p. 76.
46
FREYRE, 1959: 200.
47
BARRETO, s/d.:117.
48
Idem, p. 46.
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45
A mania da retórica tinha uma relação íntima com a cultura da burocracia e a sua
tradicional ineficiência, perpetuando e vulgarizando – nesses tempos de art nouveau - a
cidade escriturária através dos serviços prestados pela cidade letrada ao Poder, da
mesma forma que este também regia as operações letradas, inspirando seus princípios
de concentração, elitismo, hierarquização. O ex-funcionário da Secretaria de Guerra,
Lima Barreto, comenta:
Tantas foram [as reformas] que o meu decreto de nomeação recebeu, em apostilas e
outros lançamentos, um texto maior dez vezes que o primitivo do meu provimento no
cargo. (...) os “bispos” e os doutores na ciência infusa do papelório fizeram obras tão
perfeitas que, em uma das tais remodelações, foram criadas duas repartições para tratar
do mesmo assunto.
49
O doutor era o nome genérico para designar aquele que sabia, ou seja, aquele
que sabia tudo e qualquer coisa: “Para o povo até, indiferentemente, o engenheiro é
capaz de curar e o médico de construir estradas de ferro”. A supremacia da classe
letrada se deveu a este paradoxo: seus membros foram os únicos exercitantes da letra
num meio desguarnecido de letras, os donos da escritura numa sociedade analfabeta, e
se dedicaram a sacralizar esta escritura dentro da tendência gramatológica da cultura
européia. (...) Esse empenho constitui um sistema independente, abstrato e
racionalizado, que articula autonomamente seus componentes, abastecendo-se na
tradição interna do signo e preferencialmente em suas fontes clássicas. Ángel Rama
mostra que muitos aspectos da cidade letrada não mudaram muito desde os fins do séc.
XVI:
Todos os que manejavam a pena estavam estreitamente associados às funções
do poder e compunham [...] um país modelo de funcionalismo e de burocracia. Desde a
sua consolidação no último terço do século XVI, essa equipe mostrou dimensões
desmesuradas, que não se adequavam ao reduzido número dos alfabetizados aos quais
podia chegar a sua palavra escrita e nem sequer às suas obrigações específicas, e ocupou
simultaneamente um elevado nível dentro da sociedade obtendo portanto, uma parte
nada desprezível de seu abundante excesso econômico
50
.
O mito do “homem de letras” conservava-se forte, sendo que agora, na cidade
modernizada, passava a servir para alcançar posições mais respeitadas e admiradas
como a de “doutor”, mito tão cultuado entre nós, ambicionado pelas famílias dos ricos
49
“As reformas e os ‘doutores’ ” in BARRETO, 1956, Feiras e mafuás, p. 230.
50
RAMA, 1985: 43.
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46
fazendeiros ou dos comerciantes imigrantes, ambos, na maioria das vezes, analfabetos.
A letra aparecia como mais uma alavanca de ascensão social, de respeitabilidade
pública e de incorporação aos centros do poder. A literatura, por sua vez, esvaziada,
perdia o seu espaço: “Daí parecerem-se todos os romances uns com os outros e tomar a
época neste ponto uma cansativa e pesada feição uniforme”
51
. O mito do doutor, um
sonho perseguido pelos jovens provincianos, é ironizado pelo Lima Barreto:
Ah! Doutor! Doutor!... Era mágico o título, tinha poderes e alcances múltiplos, vários,
polimórficos... Era um pallium, era alguma coisa como clâmide sagrada (...) os maus
olhares, os exorcismos se quebravam. De posse dela, as gotas de chuva afastar-se-iam
transidas do meu corpo, não se animariam a tocar-me nas roupas, no calçado sequer. O
invisível distribuidor dos raios solares escolheria os mais meigos para me aquecer, e
gastaria os fortes, os inexoráveis, com o comum dos homens que não é doutor. Oh! Ser
formado, de anel no dedo, sobrecasaca e cartola, inflado e grosso, como um sapo-
entanha antes de ferir a martelada à beira do brejo; andar assim pelas ruas, pelas praças,
pelas estradas, pelas salas, recebendo cumprimentos: Doutor, como passou? Como está,
doutor? Era sobre-humano!... (...) Quantas prerrogativas, quantos direitos especiais,
quantos privilégios esse título dava! Podia ter dois e mais empregos apesar da
Constituição; teria direito à prisão especial e não precisava saber nada. Bastava o
diploma.”
52
Ángel Rama fala sobre a função ideologizante do intelectual que surgiu com a
emergência da sociologia. Como sociólogos, cabia-lhes a condução espiritual da
sociedade. A função ideologizante que germina entre os escritores da modernização,
vem dos seus maîtres penseurs. Ao declinar as crenças religiosas sob os embates
científicos, os ideólogos resgatam a sua mensagem, laicizando-a, e compõem uma
doutrina adaptada às circunstâncias e assumem, em substituição aos sacerdotes, a
condução espiritual (Rui Barbosa; Coelho Neto e suas conferências, livros, magistério;
Olavo Bilac e seu papel na “regeneração”, e a obrigatoriedade do serviço militar). Em
seu afã de substituir o sacerdócio, recorriam a alguns de seus instrumentos estilísticos,
como a oratória majestosa e cumpririam uma perseverante tarefa para dignificar e
sacralizar o intelectual (torre de marfim de Olavo Bilac) em um tempo conturbado e em
uma sociedade materialista que prescindia do velho sistema de valores espirituais. Uma
“cura de almas”, médicos que se aplicam ao espírito, perfeitamente em acordo com o
cientificismo civilizatório, portanto novos sacerdotes da humanidade, a eles corresponde
ocupar o lugar vago que havia deixado o desmembramento da aliança Estado-Igreja,
ocupando junto ao poder do Estado a função complementar que desempenhava a Igreja
51
“Em forma de crônica”, Fon Fon, 3/8/1912.
52
BARRETO, 1997: 46.
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47
do Patronato, mesmo que não oferecessem uma Instituição compacta, mas Academias,
Colégios ou Tribunais. No entanto esse poder espiritual era visto por eles como
emanação dos dons individualistas do talento pessoal, insubmissos a todas as ataduras
institucionais, incluindo às dos partidos políticos. Não era em vão que a sociedade civil
havia dado passos no caminho democratizador.
O poder de penetração e institucionalização da classe letrada entre nós se
traduziu também na proliferação das “academias literárias”, garantindo a difusão, a
imposição e a contemplação do letrado e da norma culta. A discrepância entre a
quantidade de academias e o analfabetismo quase total da população mostra o poder do
mito. Lima Barreto comenta:
Por todos esses Estados brasileiros, há academias literárias e todas elas com
quarenta imortais, sendo os Estados vinte e incluindo a do Distrito Federal, vulgo,
brasileira, temos, se a aritmética não falha, oitocentas e quarenta sumidades literárias, o
que não é muito para país tão vasto e tão culto, como dizem ser o nosso.
53
Dentro da nova lógica do utilitarismo, sem compromisso com grandes projetos,
desvinculada das lutas nacionais, a própria língua pareceu ter perdido seus ideais
passando a servir mais como um instrumento de ornamento art noveau: simples
significantes sem significados. A concepção de “utilidade” tornava-se ambígua, a língua
era útil apenas como um instrumento de persuasão e intensificação de um status quo. O
estilo art nouveau identificava delicadeza com superficialidade, apresentando um novo
“homem de letras”:
Foi-se o tempo das ganas, das raivas, das descomposturas. Agora não se ataca mais. Não
há tempo. A delicadeza é um resultado da falta de tempo. Já Avianus, um fabulista
latino que La Fontaine copiou com descaro, dizia: nullus proemissis vincere posse
minis...— Há também o lado bom, e esse é que a alma e o cérebro do Brasil tomam as
feições modernas, que as idéias do mundo são absorvidas agora com uma rapidez que
pasmaria os nossos avós; que o jornalismo inconscientemente faz a grande obra de
transformação, ensinando a ler, ensinando a escrever, fazendo compreender e fazendo
ver; que o individualismo e o arrivismo criam a seleção, o maior esforço, a atividade
prodigiosa, e um homem de letras novo, absolutamente novo, capaz de sair dessa forja
de lutas, de cóleras, de vontade, muito mais habilitado, muito mais útil e muito mais
fecundo que os contemporâneos.
— E esse homem, o literato do futuro...?
54
53
“Academia de Letras” in BARRETO, 1956, Vida Urbana, p. 212.
54
RIO, s/d.: 101.
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48
A cordialidade que tem suas origens nos vínculos afetivos provindos de
repertórios de origem rural - como explica Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do
Brasil –, traduz-se, no mundo moderno, nos sistemas de patronato de grupos de
interesses recíprocos. Nesse sentido, a cordialidade não tem um sentido de postura
afável ou amável, mas diz respeito à singularização pessoal dos interesses sociais. Em
outras palavras, a cordialidade reforça o vínculo afetivo e ao mesmo tempo intensifica a
intransponibilidade das hierarquias sociais, temperada pela afabilidade das classes
dirigentes em relação aos seus subalternos. Essa cordialidade está intimamente ligada à
língua, e se traduz através desta, principalmente. A cordialidade também está presente
na elegância, no smartismo, enfim na nova imagem do homem urbano que o distinguia
bem como classe social, criando os distintivos da superioridade e da mistificação. Todo
este sistema de aparências somado ao grande interesse pela vida privada construía o
novo ídolo.
_ O homem que escreve é sempre um ídolo. Mesmo quando escreve mal, o que não é
raro. (...) Não se pode imaginar a admiração e o culto que se devota aos homens de
letras nossos. (...) Eu conheci um estudante que acompanhava o Coelho Neto de longe e
estragou com um pince-nez grau 7 os seus olhos sãos, só porque o Neto usava grau 7.
São inúmeras as pessoas que recusam a apresentação de Machado de Assis porque estão
convencidas da impossibilidade de balbuciar uma palavra diante do Mestre, e muito
homem fino conheço eu colecionando tudo quanto escreve Olavo Bilac...
55
A intelectualidade brasileira não só conquistou uma certa independência, inédita
até então, mas também – e por isso - viveu a sua grande fragmentação durante o
processo de modernização, partindo-se em grupos bem distintos. À parte aqueles que se
adaptaram plenamente à nova ordem: a “literatura de frac” da notoriedade lucrativa; o
segundo grupo, o dos “derrotados”, por oposição aos primeiros, eram marginalizados, e
optaram por duas formas bem distintas de reação, constituindo o discurso da oposição:
os “nefelibatas” que revelavam um desejo de fuga de uma realidade intolerável, a qual
não poderiam se adaptar, e os “missionários”, a partir de uma clara posição de
resistência à degradação dos valores, dedicaram sua obra a uma moderna e lúcida
interpretação da nacionalidade, e, como visionários, previam os problemas de base que
definiriam os desajustes políticos e sociais que temos hoje. Estes são os mantenedores
da tradição mais pura da “Geração de 70”, os sucessores legítimos dos “mosqueteiros
intelectuais”. Lima Barreto e Euclides da Cunha, mesmo ligados às instituições de
55
Idem, p. 3.
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49
poder, criavam um discurso crítico utilizando-se destas mesmas instituições negando a
notoriedade lucrativa dos homens de letras.
A literatura brasileira atualmente está dividida em dois campos opostos: o dos
escritores que têm casaca e o dos que não a têm. (...) Ao modesto artista do paletó curto
e chapéu mole, vedam a entrada no Palácio Monroe; em compensação esse mesmo
artista de paletó-saco e chapéu mole nega aos outros, os de casaca, o direito de fazerem
arte cá fora.
56
Por sua vez, os que faziam literatura cá fora, denunciavam:
Essa gente que em todos os períodos de crise sempre aparece para melhor
caracteriza-los pelo espírito de exploração ou pela futilidade, que inspira tais homens e
os move. Pouco se lhes dá que os outros estejam mergulhados no sofrimento ou
ansiosos diante da negra perspectiva das coisas. Então como nunca é que a vida lhes é
mais fácil, graças à sua falta de senso moral.
57
Os nossos autorizados sabedores de cousas literárias, hão de concordar que,
antes do romantismo, houve boêmia artística e literária; e que haverá depois, por
motivos que a própria arte explica nas exigências que faz a certos temperamentos,
caracteres e inteligências, quando atraídos por elas. O que é difícil de explicar, apesar de
ter existido, de existir e haver de existir, é literatos lacaios, cavadores de propinas,
gratificações, ajudas de custo, obtidas com lambidos artigos de um proxenetismo torpe,
a grandes notabilidades munificentes, à custa do Estado.
58
É importante notar que esses intelectuais também tinham a capacidade de se
institucionalizar a partir de suas funções específicas (donos das letras) procurando
tornar-se um poder autônomo dentro das instituições do poder a que pertenciam:
audiências, seminários, colégios, universidades. A partir da sua condição de servidores
de poderes, estão em contato com o princípio institucionalizador que caracteriza
qualquer poder, sendo portanto, os que melhor conhecem seus mecanismos e, também,
os que melhor aprendem a conveniência de outro tipo de institucionalização, o do
restrito grupo que exerce as funções intelectuais. Não apenas servem a um poder, como
também são donos de um poder. Este inclusive pode embriagá-los até fazê-los perder de
vista que sua eficiência, sua realização só se alcança se o centro do poder real da
sociedade o apóia, lhe dá força e o impõe. Vê-se com freqüência os intelectuais como
meros executantes dos mandatos das instituições – ou das classes - que os empregam,
56
“Bilhetes à coroa”, Fon Fon, 19/10/1907.
57
Nestor Vítor in RIO, s/d.: 50-1.
58
BARRETO, 1956, Bagatelas, p. 248.
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50
esquecendo-se assim sua peculiar função de produtores, consciências que elaboram
mensagens, e principalmente, sua especificidade como desenhistas de modelos culturais,
destinados à constituição de ideologias públicas.
O desenvolvimento do “novo jornalismo” representa o fenômeno mais marcante
na área da cultura, com profundas repercussões sobre o comportamento do grupo
intelectual. Novas técnicas de impressão e edição permitem um grande barateamento da
imprensa. O acabamento mais apurado e o tratamento literário e simples da matéria
tendem a tornar obrigatório o seu consumo cotidiano pelas camadas alfabetizadas da
cidade. Esse “novo jornalismo”, somado às revistas mundanas, torna-se a febre da nova
burguesia urbana, significando um hábito de bom-tom da elite dentro da atmosfera da
regeneração do Rio de Janeiro. Cria-se dessa forma, uma “opinião pública” urbana
sequiosa do juízo e da orientação dos homens de letras que preenchiam as redações.
O alto índice de analfabetismo que marcava a população brasileira sempre
representou um grande entrave para a recepção dos homens de letras. A pobreza que
assolava grande parte da população não permitia qualquer tipo de reflexão sobre altos
valores do espírito, mas os “valores da necessidade” para a sobrevivência. Na República
dos conselheiros, esses intelectuais reintegrados ao poder, mas não identificados com
ele, assumem uma nova luta pela “redenção das massas miseráveis”, fato que os levaria
a uma nova escala de representatividade e poder, nos moldes do passado heróico e
redentorista: a alfabetização em massa. Essa nova luta solidária poderia representar uma
nova perspectiva de leitores tão desejados e necessários para a atividade literária. Seria
uma luz no fim do túnel para a reintegração do homem de letras.
A febre da alfabetização como um ideal humanitário tomou conta até mesmo de
intelectuais que criticaram de forma impiedosa e preconceituosa a cultura popular, e
dedicaram-se com fervor ao aburguesamento do Rio de Janeiro. Olavo Bilac, ao receber
João do Rio para entrevista, explicava o seu novo trabalho:
— Oh! Não, meu amigo, nem versos, nem crônicas — livros para crianças, apenas isso
que é tudo. Se fosse possível, eu me centuplicaria para difundir a instrução, para
convencer os governos da necessidade de criar escolas, para demonstrar aos que sabem
ler que o mal do Brasil é antes de tudo o mal de ser analfabeto.
59
Mas o socialismo invadia o pensamento ocidental, e o ideal de igualdade e
justiça seria a nova motivação para os homens de letras em sintonia com a cultura
59
RIO s/d.: 4.
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51
francesa, nossa guardiã intelectual. Aprendíamos as primeiras lições sobre a nova
doutrina:
Nós nos regulamos pela França. A França não tem agora lutas de escola, nós também
não; a França tem alguns moços extravagantes, nós também; há uma tendência mais
forte, a tendência humanitária, nós começamos a fazer livros socialistas. Esta última
corrente arrasta, no mundo, todos quantos se apercebem da angústia dos pobres e do
sofrimento dos humildes. Um artista sente mais as dores terrenas que cem homens
vulgares, os poetas são como o eco sonoro do verso de Hugo, entre o céu e a terra, para
transmitir aos deuses os queixumes dos mortais...
60
Não ser socialista poderia representar um constrangimento irreparável para um
verdadeiro intelectual. Desprezar a pobreza, não se dedicar aos mais fracos, poderia
levar a um crescente descrédito, vergonhoso para um alto sacerdote social. Só restaria
ao “sagrado” Bilac – como o definiu João do Rio -, uma estarrecedora confissão:
Mas se um moço escritor viesse, nesse dia triste, pedir um conselho à minha tristeza e
ao meu desconsolado outono, eu lhe diria apenas: Ama a tua arte sobre todas as coisas e
tem a coragem, que eu não tive, de morrer de fome para não prostituir o teu talento!
61
A luta pela alfabetização representava também, para grande parte desses
intelectuais, uma outra luta contra um sistema oligárquico opressor - tanto para as
classes desfavorecidas quanto para os intelectuais dos antigos valores - dominado pelas
necessidades de formação de uma periferia a serviço da urbes central. Mas,
evidentemente, essa generosidade ambígua não convinha às oligarquias brasileiras,
levando o projeto ao inevitável fracasso, e a tentativa solidária dos intelectuais não
passou de um lampejo socialista para “francês ver”. Na verdade, a população brasileira
era quase totalmente analfabeta, fato que isolava cada vez mais a cidade letrada,
aumentando drasticamente as diferenças entre ela e a cidade real. E só ela, a cidade
letrada, é capaz de conceber, como pura especulação, a cidade ideal, projetá-la antes de
sua existência, conservá-la além de sua execução material, fazê-la sobreviver inclusive
em luta com as modificações sensíveis que introduz incessantemente o homem comum.
Enquanto a cidade letrada atua preferencialmente no campo das significações e
inclusive as autonomiza em um sistema, a cidade real trabalha mais comodamente no
campo dos significantes e inclusive os afasta dos encadeamentos lógico-gramaticais.
60
Idem, p.5.
61
Idem, p. 5.
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3
Sobrevivendo no inferno da Belle époque
As repúblicas purgaram nas tiranias sua incapacidade para conhecer os
elementos verdadeiros do país, derivar deles a forma de governo e governar
com eles.
José Martí
3.1. O teatro da regeneração
Quem mora na cidade não tem garantia de nada
Paul Auster, No país das últimas coisas
A cidade do Rio de Janeiro abre o século XX repleta de perspectivas
promissoras. Núcleo da maior rede ferroviária nacional, a cidade mantinha contato
direto com todas as regiões do país, intermediando os recursos da economia cafeeira;
aparecia como o 15º porto do mundo, aumentando a febre do consumo que vinha com
as novidades e a última moda trazidas pelo dernier bateau, além do privilégio da sua
condição de centro político e financeiro do país.
O crescimento acelerado da cidade mostrava também as suas insuficiências. O
antigo cais não permitia que atracassem os navios de maior calado. As ruelas estreitas,
em declive, típicas da cidade colonial, dificultavam a conexão entre o porto e os
terminais ferroviários. As áreas pantanosas expandiam a febre tifóide, o impaludismo, a
varíola e a febre amarela. E o que era pior, para uma cidade ansiosa pela civilização: o
medo das doenças e as turbulências políticas e sociais intimidavam os europeus que se
mostravam cautelosos com seus capitais no Brasil, justamente na hora em que a sua
presença e seus investimentos tornavam-se primordiais. Era necessário, então, se
promover uma transformação na capital que, acima de tudo, apagasse a imagem colonial
e trouxesse finalmente, a civilização - ou pelo menos a imagem dela.
Essa ordem ideal conjugava vários fatores, a começar pela substituição das elites
sociais e da ocupação do seu espaço dentro da cidade, o que acarretaria na remodelação
do centro da urbes e a consagração do “progresso” como objetivo coletivo. Esse
processo de metamorfose não conseguiu esconder a política de exclusão que estava por
trás da ideologia reformista. A enorme população de excluídos, sobretudo ex-escravos,
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53
que habitava o centro da cidade, motivo de vergonha para os civilizadores, passou a ser
tratada como um mal que deveria ser extirpado para que a imagem da civilização se
instalasse. O processo de remodelação da cidade chamou-se, significativamente,
“regeneração”, que trazia implícita não só a restauração física, mas o conceito
discriminador de “correção” social, eliminando os pobres da cena, através de uma
mudança de cenário cuja superficialidade revelava o descaso em relação a eles e à falta
de uma política social voltada ao problema que se relacionava a toda a nação. O intuito
era regenerar a fachada que esconderia a cidade real. É o que sugere Renato Cordeiro
Gomes, ao fazer o jogo de contrastes em “A cena e a obscena de uma cidade, dita
maravilhosa”:
Era preciso construir um palco ilusionista para representar os tempos modernos
com todos os seus aparatos (...) Por outro lado, nos bastidores desse palco arquitetado
pelo poder, penetra a visão disfórica, marcada pelo traço crítico direcionado ao
progresso, porque lê a cidade real. E vê o terrível ao lado do belo, o cômico somado ao
trágico, a loucura em tensão com o lógico.
1
Olavo Bilac, o maior representante do sacerdócio social da época, construiu,
através das suas crônicas na imprensa – principalmente na Revista Kosmos -, a ideologia
reformista na sua forma mais completa. Descreveu com sadismo parnasiano a
demolição da velha cidade, personificando e glorificando o novo na destruição
“regeneradora”:
No aludir das paredes, no ruir das pedras, no esfarelar do barro, havia um longo
gemido. Era o gemido soturno e lamentoso do Passado, do Opróbrio. A cidade colonial,
imunda, retrógrada, emperrada nas suas velhas tradições, estava soluçando no soluçar
daqueles apodrecidos materiais que desabavam. Mas o hino claro das picaretas abafava
esse protesto imponente. Com que alegria cantavam elas, as picaretas regeneradoras ! E
como as almas dos que ali estavam compreendiam bem o que elas diziam, no seu
clamor incessante e rítmico, celebrando a vitória da higiene, do bom gosto e da arte!
2
A maioria dos intelectuais latino-americanos, vocacionalmente urbanos,
trabalharam também como projetistas de cidades. Partindo dos planos desenhados pelos
textos literários, articulando os signos que permitiam pensar e sonhar a cidade,
reivindicavam que a ordem ideal se encarnasse entre os cidadãos. “Agora, porém, a
cidade mudou e nós mudamos com ela e por ela” já dizia o cronista do Jornal do
1
GOMES, 1994: 106-7.
2
“Crônica”, Revista Kosmos, março de 1904
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54
Comércio
3
. A cidade, afinal seu habitat natural, funcionava como uma moldura desta
intelectualidade, e como fruto dos seus desejos, deveria refletir o seu brilho e o seu
poder.
O intelectual, como todos sabem, é um animal sobretudo moderno. Sempre
houve artistas. Sempre houve escritores. Mas não houve sempre - é toda a diferença -
artistas ou escritores saindo de sua disciplina para sem a sombra de um mandato e
fortalecidos por uma autoridade adquirida em outra parte, achar ao mesmo tempo
natural e útil vir misturar sua voz aos grandes debates da cidade.
4
A reforma constituía um jogo de símbolos no espaço público. Inicia-se uma
operação de substituição dos elementos que compunham o cenário da “cidade velha”
pelos novos símbolos da civilização inspirados na capital francesa e na sofisticação da
sua arquitetura. O centro da cidade passou a ser preparado para se tornar uma grande
vitrine, e o símbolo maior deste Rio de Janeiro ideal e “regenerado” foi a Avenida
Central, o seu cartão postal e o grande palco do Brasil moderno. Nela só era permitida a
passagem dos “merecedores”, os bem-vestidos que poderiam formar um quadro único e
harmônico com o meio, que representasse a elegância da civilização. E dentro dessa
visão, deveriam ser eliminados todos os símbolos da tradição identificada com o
“atraso”, como argumenta Olavo Bilac:
(...) voltei-me e contemplei mais uma vez a Avenida, em toda a sua gloriosa e
luminosa extensão. E só então reparei nos coretos, nas bandeiras, nas sanefas, nos arcos
de folhagem com que enfeitaram o boulevard (...) Para que folhagens, para que sanefas,
para que bandeiras, para que coretos? Tirem-me quanto antes, já, desta Avenida, que é a
glória da minha cidade, esta ornamentação de festa de roça! O enfeite da Avenida é a
própria Avenida, - é o que ela representa de trabalho dignificador e de iniciativa ousada,
de combate dado à rotina e de benefício feito ao povo.
5
No entanto, o autor, sugerindo uma avenida “democrática”, escondia a
escandalosa realidade da exclusão transformada em lei que obrigava o uso de paletó e
sapatos para todas as pessoas, sem distinção, no Município Neutro. O objetivo da lei era
pôr “termo à vergonha e à imundície injustificáveis dos em manga-de-camisa e
descalços nas ruas da cidade”.
A população do Rio que, na sua quase unanimidade, felizmente ama o asseio e a
compostura, espera ansiosa pela determinação desse hábito selvagem e abjeto que nos
impunham as sovaqueiras suadas (...) pelo nariz do próximo e do vexame de uma súcia
de cafajestes em pés no chão (sob o pretexto hipócrita de pobreza quando o calçado está
3
“A semana dia a dia”, 30/3/1908
4
LEVY, 1988: 26.
5
Gazeta de Notícias, 19 de nov. de 1905.in DIMAS, s/d..
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55
hoje a 5$ [cinco mil-réis] o par e há tamancos por todos os preços) pelas ruas mais
centrais e limpas e de uma grande cidade... Na Europa ninguém, absolutamente
ninguém, tem a insolência e o despudor de vir para as ruas de Paris, Berlim, de Roma,
de Lisboa, etc, em pés no chão e desavergonhadamente em mangas de camisa.
6
Os executores da reforma constituíam a tríade formada pelo urbanista Pereira
Passos, o engenheiro Paulo de Frontin e o higienista Oswaldo Cruz que representavam a
ciência e a técnica no comando da cidade letrada.
O desejo de ser Paris e o ilusionismo urbano chegaram ao ponto de impelir o
prefeito Pereira Passos a importar pardais da França - os pássaros que costumavam
habitar as praças parisienses - e estátuas também encomendadas na França ou em outras
capitais européias, para adornar as praças cariocas. Alguns anos mais tarde, no período
em que se iniciava a Grande Guerra, quando as pessoas se encontravam na Avenida,
cumprimentavam-se com um “Viva a França”.
Em pouco tempo e com a ajuda dos jornalistas, a burguesia carioca se adaptou
ao seu novo equipamento urbano abandonando os salões coloniais para se expandir
pelas novas avenidas, praças, palácios e jardins. Para que a nova ordem ideal se
mantivesse, surgiram organizações, ou “Ligas”, encabeçadas por intelectuais
comprometidos com as mudanças, impedindo qualquer risco de “retrocesso” nos rumos
da civilização. Nesse sentido, surge a “Liga contra o Feio”, liderada pelo jornalista Luís
Edmundo, em 1908 e a “Liga da Defesa Estética”, liderada pelo prosador parnasiano
Coelho Neto.
Enquanto isso, na “obscena” da cidade, a população humilde, expulsa do centro,
fugia para o alto dos morros, formando as favelas, que seriam o novo alvo dos
“regeneradores”. O Dr. Carlos Seidl, diretor da Saúde Pública do Distrito Federal,
expunha o problema:
hediondamente enxertados de barracões toscos e casebres de horrível aspecto,
fétidos, repelentes, abrigando moradores de ambos os sexos, sem água, sem esgotos (...)
Só o Morro da favela tem 219 habitações desse gênero; o de Santo Antônio, 450,
vivendo em ambos uma população de perto de 5000 almas.
E acrescentava que “Em outro distrito desta cidade, no 8º, existem antigas
cocheiras de prado de corridas transformadas em habitações humanas”. E revelando a
surpreendente “distância” entre as duas “cidades”, ou a invisibilidade dos despossuídos
6
“Ça marche”, Revista Fon Fon, 24/06/1909.
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56
diante das classes favorecidas, o diretor explicava aos mais “céticos” - ou mais cegos:
“possuímos fotografias que atestam não haver exagero na surpresa que este caso
inspira”
7
.
As barracas, os quiosques varejistas, as carroças e os carrinhos-de-mão foram
alguns dos elementos também eliminados da cena urbana. Nos bastidores do Rio, do
início do século XX, desenhavam-se já os traços que hoje compõem o quadro do nosso
“Brasil, terra de contrastes”. A pobreza que sobrevivia e se multiplicava ao lado da
elegância parisiense revelava a cegueira ideológica que contaminava as mentalidades.
Mas muitos dos nossos escritores, sensibilizados, resistiam à superficialidade, como é o
caso de Alcindo Guanabara, jornalista atuante durante o período da presidência Campos
Sales (1899-1902). Ele já havia lutado pelas causas da abolição e da República, e em
1917, desenvolveu um importante trabalho social publicado no livro Pela infância
abandonada e delinqüente no Distrito Federal e fundou o jornal A Nação onde
desenvolveu um projeto socialista. Indo de encontro à ideologia reformista, Alcindo
Guanabara chamava a atenção para a cidade real:
Quando os despojamos dos seus mesmos tugúrios, que substituímos pelos
palácios que nos envaidecem, esquecidos de que os miseráveis, expulsos à força,
abrigavam-se nos casebres de caixas de querosene e folhas-de-flandres nos cumes dos
morros, ou de sapé e barro cru ao longo das linhas férreas (...) não se trata aqui só de
operários: trata-se da grande, da enorme maioria da população, acumulada, acamada em
casas que não merecem esse nome, habitando vinte pessoas onde não cabem quatro,
definhando-se, estiolando-se, gerando uma raça de raquíticos, inutilizando-se para o
trabalho, morrendo na idade útil.
8
Como resultado da nova política de modernização, surge o rápido processo de
empobrecimento da população num mercado com oferta abundante de mão-de-obra para
poucas chances de trabalho, onde competiam desigualmente estrangeiros qualificados e
brasileiros analfabetos. Visconde de Taunay referia-se “à febre de pretendido
industrialismo que avassalou o Rio de Janeiro; fazendo acudir a essa cidade gente de
toda parte, quer das antigas províncias, quer de fora do país”
9
.
Dos antigos palácios que acolhiam confortavelmente as ricas famílias cariocas,
srgem as famosas “casas de cômodos” – herdeiras dos cortiços, como o retratado por
Aluísio Azevedo -, que sobreviveram em determinados espaços da cidade, como no Rio
7
“A função governamental em matéria de higiene”, Jornal do Comércio, 11/12/1913
8
GUANABARA, 1911: 72-4.
9
TAUNAY, 1933: 99.
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57
Comprido, passando a ser os “depósitos humanos” de parte dessa população excluída.
Lima Barreto descreve um deles: “Atualmente, os dois andares do antigo palacete que
ela fora, estavam divididos em duas ou três dezenas de quartos, onde moravam mais de
cinqüenta pessoas (...) Num cômodo (em alguns) moravam às vezes famílias inteiras”.
10
A cidade real foi sempre tema de interesse do grande jornalista carioca Paulo
Barreto, popularmente conhecido como João do Rio. As hospedarias baratas são
descritas pelo cronista, assustado diante da miséria humana, numa visita durante a noite
em companhia de autoridades:
E começamos a ver o rés-do-chão, salas com camas enfileiradas como nos
quartéis, tarimbas com lençóis encardidos, em que dormiam de beiço aberto, babando,
marinheiros, soldados, trabalhadores de face barbada. Uns cobriam-se até o pescoço.
Outros espapaçavam-se completamente nus. Trepamos todos por uma escada íngreme.
O mau cheiro aumentava. (...) Os quartos estreitos, asfixiantes, com camas largas
antigas e lençóis por onde corriam percevejos. A respiração tornava-se difícil.
Quando as camas rugiam muito e custavam a abrir, o agente mais forte
empurrava a porta, e, à luz da vela, encontrávamos quatro e cinco criaturas, emborcadas,
suando, de língua de fora (...) Alguns desses quartos, as dormidas de luxo, tinham
entrada pela sala das esteiras, em que se dorme por 800 réis. (...) Completamente nua, a
sala podia conter trinta pessoas, à vontade, e tinha pelo menos oitenta nas velhas
esteiras, atiradas ao assoalho (...)
Havia com efeito mais um andar, mas quase não se podia lá chegar, estando a
escada cheia de corpos, gente enfiada em trapos, que se estirava nos degraus, gente que
se agarrava aos balaústres do corrimão _ mulheres receosas da promiscuidade, de saias
enrodilhadas. Os agentes abriam caminho, acordando a canalha com a ponta dos
cacetes. Eu tapava o nariz. (...) A metade daquele gado humano trabalhava; rebentava
nas descargas dos vapores, enchendo paióis de carvão, carregando fardos. Mais uma
hora e acordaria para esperar no cais os batelões que a levasse ao cepo do labor, em que
empedra o cérebro e rebenta os músculos.
Grande parte desses pobres entes fora atirada ali, no esconderijo daquele covil,
pela falta de fortuna. Para se livrar da polícia, dormiam sem ar, sufocados, na mais
repugnante promiscuidade.
Desci. Doíam-me as têmporas. Era impossível o cheiro
de todo aquele entulho humano.
11
A cidade crescia e enriquecia maltratando e matando os seus operários.
“Civilizava-se” às custas da formação de um espaço repressor, dominado pela vigilância
de uma polícia que representava o autoritarismo do Poder central, escondido por trás da
elegância das avenidas. “A República chegou austera e ríspida. Ela vinha armada com a
política positivista de Comte, e com seus complementos: um sabre e uma carabina”
12
,
dizia Lima Barreto. A perseguição policial existia contra aqueles que, envergonhando a
cidade, eram presos pelo crime da “vadiagem”, como se fosse o resultado de uma
10
BARRETO, 1997: 221-2
11
RIO, 1951: 160-3
12
BARRETO, 1956, Feiras e mafuás, p. 21.
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escolha: “Mas a polícia é feroz: a lei manda considerar vagabundo todo o indivíduo que
não tem domicílio certo e não quer saber se esse indivíduo tem ou não tem a
probabilidade de arranjar qualquer domicílio”, comentava Olavo Bilac
13
. Lima Barreto
fala, com ironia, sobre o assunto:
A grande cidade do Prata tem um milhão de habitantes: a capital Argentina tem
longas ruas retas, a capital argentina não tem pretos, portanto, meus senhores, o Rio de
Janeiro, num país de três ou quatro grandes cidades, precisa ter um milhão, o Rio de
Janeiro, capital de um país que recebeu durante quase três séculos milhões de pretos,
não deve ter pretos.
14
Benjamim Costallat, personalidade irreverente que contrariava a ideologia
cosmopolita dominante da Belle Époque, e best seller com o seu livro Mme. Cinema,
tem sido, de forma injusta, pouco lembrado pela história da literatura brasileira.
Cronista de sucesso, denunciava o cosmopolitismo cego que dominava a capital,
tornando-se uma voz dissonante na cidade das letras. Às vésperas da inauguração da
Exposição Internacional do Centenário, denuncia a cidade “que sempre pensou com o
cérebro alheio” que seria substituída, como fruto do seu desejo, pela nova cidade com
“personalidade própria”:
E ao lado da velha cidade, decrépita e gasta, que sempre pensou com o cérebro
alheio, que sempre imitou instituições dos outros, que plagiou o Manequinho de
Bruxelas, a Ópera de Paris (...) ao lado da velha cidade, ignorante e pernóstica, que bebe
chá às cinco porque Londres assim o faz, e toma ares displicentes porque Paris assim o
ordena, ao lado da velha cidade tão característica pela sua natureza, mas tão pouco
característica pelos seus costumes (...).
15
Outro episódio, bastante revelador da ideologia discriminadora da época, causa
polêmica na imprensa carioca: os “Oito Batutas”, entre eles Pixinguinha, vão a Paris,
com o apoio do governo brasileiro, e segundo muitos dos nossos jornalistas, nem na arte
e nem no esporte o Brasil deveria mostrar sua face negra e mulata. Benjamin Costallat
responde:
Levarão o Brasil tal qual ele é no seu sentimento e na sua beleza. (...) Devemos
procurar ser conhecidos na Europa tal qual somos. Com os nossos negros e com tudo
mais... Nada perdemos com isso. Temos uma personalidade internacional tão digna
quanto as outras, e cumpre afirmá-la a cada instante. (...) Eu quisera que no Brasil
13
DIMAS, s/d: 54.
14
BARRETO, 1956, Vida urbana, p. 83
15
COSTALLAT, 1923: 113-114
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houvesse gente verde, gente de todas as cores, calor de enlouquecer, calor de matar,
para poder afirmar com orgulho a existência de todas essas pretendidas calamidades aos
europeus.
16
Em 1921, o “Sacro Colégio do Football”, reunido em sessão secreta, decide não
levar a Buenos Aires “campeões que tivessem, nas veias, algum bocado de sangue
negro _ homens de cor, enfim”. Lima Barreto, diante do absurdo, escreve:
Foi sua resolução de que gente tão ordinária e comprometedora não devia
figurar nas exportáveis turmas de jogadores (...) A providência conquanto
perspicazmente eugênica e científica, traz no seu bojo ofensa a uma fração muito
importante, quase a metade, da população do Brasil; deve, naturalmente, causar
desgosto, mágoa e revolta.
17
Diante desse quadro não é de surpreender que o primeiro e mais famoso time de
futebol carioca na época, o Fluminense, passasse pó-de-arroz nos seus jogadores negros.
Daí o apelido “pó-de-arroz”, que hoje poucos sabem a origem... Não só a grande parte
da população pobre mas todos os tipos de manifestações culturais populares foram alvo
da repressão policial. A imprensa também fazia a sua parte através da formação de uma
opinião pública impiedosa: “como seria deliciosa a alegria do carnaval se lhe tirassem
essa feição externa de folia do interior da África!”
18
. Foram proibidas as festas
populares e as diversas manifestações religiosas que não condiziam com a austeridade
européia e católica. João Luso escrevia no Jornal do Comércio: “Veja o amigo o que diz
esse jornal: o último [candomblé] foi a polícia encontrá-lo na Rua do Lavradio, lá
embaixo, junto à Praça Tiradentes! É extraordinário, mais alguns dias e teremos um
candomblé na Avenida!”.
É interessante notar, dentro dessa realidade avessa às crenças populares, a
extraordinária recepção do livro Religiões do Rio de João do Rio, que vendeu 8 mil
volumes em seis anos, um recorde de vendas nacional que superava as de muitas obras
dos best sellers Coelho Neto e Olavo Bilac. O livro, uma revelação da “obscena”
carioca, relatava as diversas crenças e religiões não oficiais que existiam nos
subterrâneos da cidade. De acordo com a vendagem, a classe letrada carioca mostrou
grande interesse pelo assunto, sugerindo uma curiosidade voyeurística em relação às
crenças populares e às aflições do seu povo, sem deixar de manter a devida distância em
relação a eles, e sem ameaçar sua imagem de distintos burgueses.
16
Idem, p. 23-25
17
BARRETO, 1956, Feiras e mafuás, pp. 94-95
18
O meu domingo”, Fon Fon, 7/3/1908.
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60
Os “reformistas” que encarnavam o progresso na sua noção estritamente
materialista, vista na sua superficialidade, mostravam-se desinteressados em aprofundar
a realidade com todas as implicações que seus projetos acarretariam. Num tom
dramático, que não esconde o preconceito e a euforia cega, Olavo Bilac comenta:
Num dos últimos domingos, vi passar pela Avenida Central um carroção atulhado de
romeiros da Penha; e naquele boulevard esplêndido, sobre o asfalto polido, entre as
fachadas ricas dos prédios altos, entre as carruagens e os automóveis que desfilavam, o
encontro do velho veículo, em que os devotos urravam, me deu a impressão de um
monstruoso anacronismo; era a ressurreição da barbaria, era a idade selvagem que
voltava, como uma alma do outro mundo, vindo perturbar e envergonhar a vida da
cidade civilizada.
19
João do Rio mostrava-se mais sensível ao mascaramento da realidade e
denunciava a superficialidade do olhar em imagens cinematográficas:
No trottoir roullant da Grande Avenida passa, na auréola da tarde de inverno, o
Rio inteiro, o Rio anônimo e o Rio conhecido, o Rio dos miseráveis ou o Rio cuja vida
se prolonga de legendas odiosas e de invejas contínuas. Mas ninguém vê a miséria.
Podem parar nas terrasses dos bares, podem entrar pelas casas de chá os mendigos,
ressequidos esqueletos da seca do norte (...). A luz de inverno lustra os aspectos, faz
ressaltar os prismas belos, apaga a fealdade. Não há gente desagradável, como não há
automóveis velhos. Ninguém os vê. Os olhos estão nas mulheres bonitas, nos homens
bem vestidos, nos automóveis de luxo. É um desfilar de ópera.
20
Lima Barreto, observador da cidade, concluía: “O mundo passa por tão profunda
crise, e de tão variados aspectos, que só um cego não vê o que há nesses projetos de
loucura, desafiando a miséria geral”. Num tom premonitório, Orestes Barbosa avisava
que “enquanto a sociedade for assim, havemos de viver a fazer balanços sinistros no fim
de cada ano. A grande indústria do delito vai aumentando. No fundo das estalagens há
as oficinas do crime, que um dia hão de apavorar”
21
.
Um texto bastante esclarecedor da obsessão cosmopolita que tomou conta da
mentalidade carioca e da cruel intolerância social que ela implicava, vale ser transcrito
aqui. Trata-se de reflexões de um cronista do Jornal do Comércio sobre dois índios
aculturados do interior de São Paulo que vêm pedir proteção e auxílio ao governo
federal:
19
“Crônica”. Revista Kosmos, out. 1906
20
RIO, 1917: 34.
21
BARBOSA, 1993: 25.
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61
Lembro-me sempre, por mais que queira esquecer, a amargura, o desespero com
que pusemos os olhos rebrilhantes de orgulho naquele carro fatal, atulhado de caboclos,
que a mão da providência meteu em préstimo por ocasião das festas do Congresso Pan-
Americano. A cabeleira da mata virgem daquela gente funesta ensombrou toda a nossa
alegria. E não era para menos. Abríamos a nossa casa para convidados da mais rara
distinção e de todas as nações da América. Recebíamos até norte-americanos! (...)
Íamos mostrar-lhes a grandeza do nosso Progresso, na nossa grande Avenida recém-
aberta, na Avenida à beira-mar, não acabada, no Palácio Monroe, uma tetéia de açúcar
branco. No melhor da festa, como se tivesse caído do céu ou subido do inferno eis os
selvagens medonhos, de incultas cabeleiras metidas até os ombros, metidos com gente
bem penteada, estragando a fidalguia das homenagens, desmoralizando-nos perante o
estrangeiro, destruindo com o seu exotismo o nosso chiquismo.
Infelizmente não era mais tempo de providenciar, de tirar aquela nódoa
tupinambá da nossa correção parisiense, de esconder aqueles caboclos importunos, de,
ao menos, cortar-lhes o cabelo (embora parecesse melhor a muita gente cortar-lhes a
cabeça), de atenuar com escova e perfumaria aquele escândalo de bugres metediços (...).
Não houve remédio senão aturar as feras, mas só Deus sabe que força de vontade
tivemos de empregar para sorrir ao Sr. Root, responder em bom inglês, vendo o nervoso
que nos sacudia a mão quando empunhávamos a taça dos brindes solenes e engolir, de
modo que não revelasse aos nossos hóspedes que tínhamos índios atravessados na nossa
garganta. Foram dias de dor aqueles dias de glória. A figura do índio nos perseguia com
a tenacidade do remorso. A sua cara imóvel interpunha-se à dos embaixadores e à nossa.
As suas plumas verdes e amarelas quebraram a uniformidade negra das casacas.
Broncas sílabas tupis pingaram, enodoando o primor das línguas educadas
22
.
Os símbolos nacionais confrontam-se aqui da mesma forma que se confrontavam
os dois “brasis”. O espírito colonizador vestia-se agora de cosmopolitismo, o purismo
das “línguas educadas” dominava, tirânico, a língua nativa. O antigo desejo de ser
brasileiro passa a ser agora o desejo de ser estrangeiro. Fatos que parecem provar um
freqüente “bovarysmo” enraizado na nossa cultura, ou o desejo de parecer ser o que não
se é. Ainda como nacionalistas românticos, parecíamos querer, no fundo, satisfazer um
gosto europeu pelo exotismo. E os seus símbolos, como o verde-amarelo das plumas,
que um dia foram motivo de orgulho, tornava-se agora vergonhoso diante do negro das
casacas cosmopolitas.
Estas incongruências entre o ser e o parecer, tão incutidas na sociedade carioca
da Belle époque, fizeram com que Lima Barreto teorizasse sobre o nosso bovarismo
social. Além de ter lido o romance de Flaubert, o escritor carioca leu também Le
Bovarysme de Jules Gaultier, obra mencionada no seu Diário íntimo. Segundo Lima
Barreto, o bovarismo é “o poder partilhado no homem de se conceber outro que não é”.
O nível de bovarismo, explica o autor, “mede o afastamento entre o indivíduo real e o
imaginário, entre o que é e o que ele acredita ser”
23
.
22
“A semana dia a dia”, Jornal do Comércio, 30/3/1908
23
BARRETO, 1956, Diário íntimo, p. 94
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62
Dentro dessa visão, o próprio cosmopolitismo confunde-se com bovarismo,
invadindo todo o tecido social, e sendo o grande motor do espírito “regenerador” da
cidade.
Na realidade, o que a fúria reformista fez com a cidade antiga
é o resultado de um juízo, ainda que inconsciente, de não-valor e de uma
vontade destruidora substancial pervertida, ainda que inconfessa. A luta não é entre
cultura e incultura, mas entre duas culturas, a segunda das quais tem como meta a
destruição da primeira, tida como oposta e como obstáculo a seu desenvolvimento
24
Os reformistas preparavam o cenário num palco voltado para fora, para um
público essencialmente estrangeiro, que deveria encontrar no novo Rio de Janeiro a
metonímia do Brasil modernizado. A regeneração foi esse esforço de criar o modelo da
norma urbana como representante de todo o território nacional. Nas palavras de Lima
Barreto: “De uma hora para outra, a antiga cidade [do Rio de Janeiro] desapareceu e
outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa
muito de cenografia”
25
.
A capital tornava-se o centro de dominação do território nacional e seus
problemas fingiam ser os da nação inteira, da mesma maneira que dentro dela se
reproduziam os conflitos nacionais pela incorporação da imigração interna, em alguns
pontos duplicada pela externa. Dessa forma, dois universos traduziam-se em duas
cidades: a real, que se expandia como uma anarquia, atrás da qual corria a ordem para
organizá-la (e também para freá-la) e a ideal, filha do modelo europeu conhecido e dos
livros em que era contada, já que eram estes e as revistas ilustradas, os que construíam
essa “utopia enceguecedora” - nas palavras de Ángel Rama - que enturvava a visão da
realidade circundante. Nas palavras de Ruben Darío: “Bosque ideal que o real
complica”.
26
A “verdade” científica fazia a sua parte na idealização da cidade. Monteiro
Lobato, em carta a Godofredo Rangel, em 1908, explica de forma exemplar a ideologia
racista que servia como base para a nossa concepção social, e amparada pela ciência,
legitimava as ações públicas:
24
ARGAN, 1992: 86.
25
BARRETO, 1956, Os bruzundangas, p. 106.
26
RAMA, 1985: 110.
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63
Estive uns dias no Rio. Que contra-Grécia é o Rio! O mulatismo dizem que traz
dessoramento do caráter. Dizem que a mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que
é o caráter e dá uns produtos instáveis. Isso no moral – e no físico, que feiúra! Num
desfile, à tarde, pela horrível rua Marechal Floriano, da gente que volta para os
subúrbios, perpassam todas as degenerescências, todas as formas e más formas humanas
– todas, menos a normal. Os negros da África, caçados a tiro e trazidos à força para a
escravidão, vingaram-se do português da maneira mais terrível – amulatando-o e
liquefazendo-o, dando aquela coisa residual que vem dos subúrbios pela manhã e reflui
para os subúrbios à tarde [...] Como concertar essa gente? Como sermos gente no
concerto dos povos? Que problemas terríveis o pobre negro da África nos criou aqui na
sua inconsciente vingança! [...] Talvez a salvação venha de São Paulo e outras zonas
que intensamente se injetam de sangue europeu. Os americanos salvaram-se da
mestiçagem com a barreira do preconceito racial. Temos também aqui essa barreira,
mas só em certas classes e certas zonas. No Rio não existe.
27
O preconceito racial, que começava no próprio espaço físico do Rio de Janeiro e
nas leis que o ordenavam - e presente nas palavras do autor – era convenientemente
invisível para muitos. A barreira do preconceito, nos moldes estadunidenses, era
sugerida como uma solução. No mesmo tom de desprezo e certo sarcasmo, Monteiro
Lobato criou o Jeca Tatu, a partir de um artigo escrito para um jornal, em que identifica
o caboclo com uma “velha praga” que destruía toda a vegetação paulista: “A nossa
montanha é vítima de um parasita, um piolho da terra (...) poderíamos, analogicamente,
classificá-lo entre as variedades do (...) parasita do couro cabeludo produtor da pelada
(...). Este funesto parasita da terra é o CABOCLO”.
28
Enquanto o autor apontava o
caboclo como a praga que destruía a natureza, parecia “esquecer” a devastação da mata
atlântica de todo o Vale do Paraíba causada pelos Barões paulistas do café que
contratavam e ensinavam estes mesmos caboclos a prática da devastação.
3.2. “Cidadania a porrete”
29
Dentro da realidade de um Brasil dividido em dois, a questão da cidadania era
praticamente desconhecida, muitas vezes equivocada e sempre irrelevante para os
dirigentes do país. Um povo que não se sentia responsável pelo seu próprio destino -
governado por autoridades distantes, culturalmente inacessíveis, que só faziam
aumentar o sentimento de inferioridade da grande massa analfabeta - sentia-se
constantemente ameaçado pelas dificuldades e, na busca pela sobrevivência, nunca
chegavam a saber o que era ser cidadão.
27
BROCA, 1975: 107.
28
LOBATO, 1994: 161
29
Título do artigo de José Murilo de Carvalho, Jornal do Brasil, Caderno B/Especial, 18/12/88, p.6
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José Murilo de Carvalho, no artigo “Cidadania a porrete”, comenta o
depoimento de Adolfo Ferreira dos Santos, negro, de 98 anos, ex-marinheiro e
admirador do líder da Revolta da Chibata, João Cândido. Adolfo Ferreira declarou que
as chibatadas e lambadas que levou - como os demais marujos de sua época –
quebraram-lhe o gênio e fizeram com que “entrasse na compreensão do que é ser
cidadão brasileiro”. A triste ironia do relato traz a idéia do equívoco que iria se
formando, com o tempo, em relação à noção de cidadania. José Murilo de Carvalho
comenta que a declaração de Adolfo Ferreira é reveladora da “original contribuição
brasileira à teoria e prática da moderna cidadania”. Beatriz Resende lembra que as
raízes da compreensão desta “cidadania” brasileira encontram-se na escravidão: o “bom
cidadão” é aquele que se encaixa na hierarquia que lhe é determinada, e não o que se
sente livre e igual.
Machado de Assis, em crônica publicada em 4 de novembro de 1897, conta a
história da morte do sineiro da Glória, João, ex-escravo. A história, apesar de conter
certo lirismo no ato generoso de dedicação cega ao ofício, pode ser emblemática de uma
outra cegueira internalizada na cultura da subserviência - talvez necessária à própria
sobrevivência.
João dobrava o sino enquanto os partidos subiam ou caíam (...) Quando se
decretou livre o ventre das escravas, João é que repicou. Quando se fez a abolição
completa, quem repicou foi João. Um dia proclamou-se a República. João repicou por
ela, e repicaria pelo Império se o império tornasse. Não lhe atribuas inconsistência de
opiniões; era o ofício.
30
A concepção moderna do termo cidadão é definida na França, por volta de 1788,
e passava a ser empregada pelos patriotas para designar o homem que se tornou livre e
que goza de seus direitos políticos em oposição aos súditos. De forma anedótica, Artur
Azevedo tratou do assunto no conto “O Velho Lima”
31
que relata o 1º dia da República
no Brasil, vivido pelo velho Lima, empregado de uma antiga repartição pública, que não
sabia que a República havia sido proclamada. Neste dia, o protagonista começa a ser
tratado como “cidadão” pelos seus colegas de trabalho, o que lhe causa, entre outras
novidades, um certo estranhamento. O termo, dentro do novo contexto republicano,
deveria ter o mesmo sentido daquele usado pelos franceses e soava como uma palavra
mágica que trazia em si um novo conceito de “homem livre”. Mas, na realidade não
30
ASSIS, 1973: 768.
31
AZEVEDO, s/d.: 11.
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passaria de mais um ornamento vocabular “à francesa”. O estranhamento da
personagem diante da palavra “cidadão” só fazia reforçar a inadequação do termo
dentro da realidade absurda: o novo regime político do país fora implantado sem o
conhecimento - e muito menos a participação - dos seus “cidadãos”.
Da mesma forma que a cidadania francesa se formou a partir dos ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade, a cidadania inglesa foi construída sobre um
profundo sentimento de liberdade, o que não se repetia nas colônias, como se pode
perceber. Nas palavras de Leandro Konder,
O tema – cidadania – é daqueles que o saber universitário não tem o direito de
monopolizar; é um tema que revela a sua riqueza quando passa a ser debatido em
termos acessíveis ao cidadão comum, isto é quando os seus problemas são enfrentados
numa linguagem que o põe ao alcance (na medida do possível) de todos os cidadãos (em
lugar de deixá-lo entregue a uns poucos sábios).
32
Ao contrário do que reivindica Leandro Konder, no Brasil, “cidadão” parecia ser
mais um título de distinção, uma comenda, como havia os “barões”, os “condes”, etc. O
próprio espaço urbano – o legítimo espaço do cidadão - no Rio de Janeiro, era exclusivo
desta burguesia, a quem era dado o “direito à cidadania”. Por outro lado, a cidadania dos
desfavorecidos era a repressão ou o porrete, como bem compreendeu Adolfo Ferreira
dos Santos. Remontando ao pensamento grego, na polis, além da vida privada há
também a vida pública. O público é o próprio mundo, na medida em que é comum a
todos. A praça pública é originalmente o lugar do debate, das decisões do povo. Se
excluímos homens do espaço público, estamos lhes negando a cidadania, e a cidade
torna-se então um outro espaço, artificial e fragmentado: “Ontem domingo, o calor e a
mania ambulatória não me permitiram ficar em casa. Saí e vim aos lugares em que um
“homem das multidões” pode andar aos domingos
33
. Como concluiu Lima Barreto,
“Vê-se bem que a principal preocupação do atual governador do Rio de Janeiro é dividi-
la em duas cidades: uma será a européia, a outra a indígena
34
.
Nas palavras de José Murilo de Carvalho, “[os técnicos] chegados ao poder, do
espírito da República guardavam no máximo alguma preocupação com o bem público,
desde que o público, o povo, não participasse do processo de decisão”. E define bem a
condição do “cidadão” brasileiro no termo “estadania”, representando o estado do
32
KONDER, 1986: 110.
33
BARRETO, 1957, Vida urbana, p. 71.
34
BARRETO, 1957, Marginália, p. 35
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indivíduo diante da organização política e social feita a partir da máquina
governamental, à revelia do seu povo.
Dentro dessa lógica, surgiu uma das maiores revoltas populares que tivemos no
Rio de Janeiro, a partir de uma imposição do poder público sobre a vida privada: a
revolta da vacina, em 1904. De acordo com a ideologia reformista e higienista da
cidade, foi estabelecida, por decreto, a vacinação obrigatória de toda a população contra
a varíola. E para se atingir este fim, o governo utilizou-se mais uma vez de métodos
autoritários - e dessa vez violentos - contra a população. A revolta foi para as ruas,
demonstrando, ao contrário do que se podia supor, o poder de resistência do povo e a
atitude cidadã de lutar pelos seus direitos, mesmo que, para isso, fosse necessária a
força bruta contra aqueles que nunca foram reconhecidos como seus representantes.
Para que o governo reconhecesse o fracasso da sua investida, foi preciso travar uma
batalha sangrenta, causando muitas mortes entre os revoltosos.
Do lado do povo estavam o jornal Correio da manhã e alguns intelectuais como
Rui Barbosa e Lima Barreto que se declaravam contra a imposição. Olavo Bilac, fiel
representante da ideologia reformista, usou mais uma vez do seu fel contra a população
pobre, desta vez, culpando-os pelo analfabetismo, como uma “turba-multa irresponsável
de analfabetos”. Beatriz Resende lembra que “A participação política da população
inexistindo de fato através de mecanismos democráticos, legais, só poderia se dar fora
dos canais oficiais, através de greves, arruaças, quebra-quebras”
35
. Da mesma forma,
sempre aconteceu em todos os governos autoritários e ditatoriais da História.
O problema se ampliava no Rio de Janeiro e circunscrevia a todos: a mobilidade
da cidade real, seu tráfico de desconhecidos, suas sucessivas construções e demolições,
seu ritmo acelerado, as mutações que os novos costumes introduziam, tudo contribuiu
para a instabilidade, a perda do passado e a conquista obsessiva do futuro. E na luta por
essa conquista, chegavam em primeiro lugar, logicamente, aqueles já estabelecidos no
topo da escala social. Dessa forma, a cidade projetada começou a viver para um
imprevisível amanhã e deixou de viver para um ontem nostálgico e identificador.
Àqueles não adaptados à nova realidade, excluídos desse futuro, só restaria a
identificação com o passado, desprezado pela modernização.
A cidade ideal, então, não era simplesmente Paris, mas muito mais que isso, era
a tradição da metrópole conservada no espírito das ex-colônias. Essa cidade central que
35
RESENDE, 1993: 42.
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também é sonhada na periferia, graças à imaginação promovida pelas letras e pelas
imagens, é confirmada pela estrutura centralizada que faz avançar toda a vida nacional a
partir da sua capital dominadora, tornando-a ambição de todos, mesmo daqueles
espalhados pelos cantos longínquos do país.
A emergência do pensamento crítico, com uma relativa margem de
independência, ocorreu dentro desse contexto e se deveu ao liberalismo econômico que
por um tempo descentralizou a sociedade, desenvolveu-a, dotou-a de serviços
complexos, ampliou o terciário com uma certa margem de autonomia onde cresceria o
grupo intelectual adverso. Durante o período de crescimento, um setor urbano absorvia
esta pequena parte do excedente, sobretudo aqueles dedicados a funções intelectuais (de
escreventes a ministros) que anunciavam as futuras equipes das cidades das letras do
século XX, pois grande parte destas equipes não correspondia mais, como havia sido
norma, aos filhos das “boas famílias”, mas sim a descendentes de artesãos, pequenos
negociantes, funcionários e até filhos de escravos. Estes intelectuais foram um produto
da urbanização e, pode se dizer, das suas insuficiências, como prova o espírito
provinciano dos muitos Isaías Caminha
36
, que a partir da urbanização iniciante no
interior desenvolveram a ambição capitalina, e a partir da sua ambígua posição média -
de provincianos letrados- quiseram rivalizar com a classe alta.
A modernização trouxe aos setores inferiores urbanos uma pequena parte das
riquezas derivadas da intermediação comercial e da incipiente industrialização. Ainda
mais eficaz foi o plano educativo que se aplicou primordialmente aos habitantes das
cidades e lhes abriu perspectivas de ascensão social. Esse projeto educativo não foi
apenas bem recebido, mas reivindicado ardentemente como uma alavanca igualitária.
“Verifiquei que, até ao curso secundário, as minhas manifestações quaisquer, de
inteligência e trabalho, de desejos e ambições, tinham sido recebidas, senão com
aplauso ou aprovação, ao menos como coisa justa e do meu direito.”
37
Neste contexto, surgem escritores como Lima Barreto e Euclides da Cunha,
empenhados em fazer de suas obras um instrumento de ação pública e de mudança
histórica. O primeiro, como descendente de escravos, e o segundo, nascido no interior
do Estado, veio para a capital completar os estudos e trabalhar. Nas palavras de Nicolau
Sevcenko, tornaram-se “escritores-cidadãos” que exerciam suas funções com os olhos
36
Personagem do romance de Lima Barreto, Recordações do escrivão Isaías Caminha, que nasceu
no interior do Espírito Santo e vem para a capital com o intuito de realizar o sonho de ser “doutor”.
37
BARRETO, 1997: 33.
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postos nos centros de decisão e nos rumos da sociedade numa atitude pervicaz de
“nacionalismo intelectual”.
38
Destaca-se Lima Barreto e a sua concepção de arte e
“contágio artístico” preconizada por Tolstói, que diz ser a arte efetiva na medida em que
o artista for sincero. Dentro desse espírito, Lima Barreto fala apaixonadamente da
literatura como a sua grande missão:
Mais do que qualquer outra atividade espiritual da nossa espécie, a Arte,
especialmente a Literatura, a que me dediquei e com quem me casei; mais do que ela
nenhum outro qualquer meio de comunicação entre os homens, em virtude mesmo do
seu poder de contágio, teve, tem e terá um grande destino na nossa triste humanidade.
39
E coerentemente, para que a Literatura efetivamente tenha o “poder de contágio” e
alcance um grande destino na humanidade, a sua linguagem deve ser acessível, popular,
cumprindo realmente a função de atingir e unir aqueles que a lêem, democratizando a língua e
descodificando os signos exclusivos do domínio letrado. A literatura de Lima Barreto, dessa
forma, é um ato de cidadania, atribuindo a si mesmo a tarefa pública de interlocutor que
transforma em escrita as queixas do cidadão: “A minha sociedade agora não será mais a dos
simuladores do talento, do trabalho, da honestidade, da temperança; será a dos défroqués, dos
toqués, dos ralés de todas as profissões e situações”.
40
Ironicamente, o autor insinua o paradoxo
da exclusão “em francês”. E em nome destes excluídos ele fala:
Não vê que é preciso dinheiro para se ter boa alimentação, vestuário e
domicílio, condições primordiais da mais elementar higiene; entretanto por isto ou por
aquilo, a maioria da população do Brasil se debate na maior miséria, luta com as
maiores necessidades, não podendo obter aqueles elementos de vida senão
precariamente, mesmo assim custando-lhe os olhos da cara.
41
O autor dirige-se ao representante da política sanitarista do governo republicano, na
figura do Dr. Carlos Chagas, e conclui: “O que há em sua Excelência, é o que há em todos de
sua categoria: Sua Excelência nunca conheceu necessidades e afere a vida dos outros pela sua
feliz e rica.”
42
. A literatura então será o instrumento do humanismo por excelência:
A literatura do nosso tempo (...) possa ela realizar, pela virtude da forma, não
mais a tal beleza perfeita da falecida Grécia, que já foi realizada; não mais a exaltação
do amor que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens de todas as raças e
38
SEVCENKO, 2003: 134-5.
39
BARRETO, 1957, Impressões de leitura, p. 57.
40
“A minha sociedade (...) será a dos que abandonaram o hábito religioso, dos malucos, dos
protestadores” in BARRETO, 1957, Bagatelas, p. 179.
41
“Os tais higienistas” in BARRETO, 1957, Coisas do Reino do Jambon, p. 143
42
Idem, 144.
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classes, fazendo com que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se
entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade
.
43
Para o autor, como para Tolstói, quanto maior capacidade de comunicação tiver
a arte, mais verdadeira ela será, e para que isso ocorra, a clareza e a objetividade são
essenciais. Além disso, a linguagem objetiva da crônica, ou mesmo da ficção de Lima
Barreto, tem um caráter emergencial. A comunicação deveria ser alcançada pelo mais
comum dos homens, traduzindo seus anseios. Nesse sentido a própria linguagem
tornava-se também resistência aos valores da elite dominante. A art nouveau que
imperava na época traduzia nada mais que uma doce satisfação com a vida, fazendo se
pensar no adorno, no supérfluo. Ou, nas palavras de Roland Barthes, “toda retórica visa
a superar a dificuldade do discurso sincero”. E foi a partir desse confronto de valores
entre a superficialidade e a sinceridade que se contruía a crítica à linguagem “fácil”de
Lima Barreto:
.
O meu correspondente acusa-me também de empregar processos do jornalismo
nos meus romances, principalmente no primeiro. Poderia responder-lhe que, em geral,
os chamados processos do jornalismo vieram do romance; mas, mesmo que, nos meus,
se dê o contrário, não lhes vejo mal algum, desde que eles contribuam por menos que
seja para comunicar o que observo; desde que possam concorrer para diminuir os
motivos de desinteligência entre os homens que me cercam.
(...) Tento executar esse ideal em língua inteligível a todos, para que todos
possam chegar facilmente à compreensão daquilo a que cheguei através de tantas
angústias.
44
A “literatura cidadã” era a forma que o autor encontrou de fazer política.
Dedicado ao desmascaramento dos papéis institucionais e sociais, a função do escritor
era a da oposição desvinculada de partidos e alianças, que se fazia através da escrita.
“Sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por
definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político”
45
.
Detentor de uma voz social legitimada nos seus livros e na imprensa, Lima
Barreto destacava-se como o único escritor negro e pobre, neto de escravos, na cidade
letrada. Este trânsito entre os dois “mundos” lhe dava uma legitimidade especial, foi o
espaço conquistado como um importante porta-voz e testemunho. “Ninguém
testemunha pelas testemunhas” dizia Paul Celan em Glória das cinzas.
43
BARRETO, 1956, Histórias e sonhos, p. 33-4.
44
Idem, p. 34-5
45
ARENDT, 1981: 11.
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A flexibilidade lingüística de Lima Barreto traduzia a modernidade enquanto
mostrava uma língua viva, passível de mutação. Modernidade em oposição à rigidez
lingüística dos literatos da elite que por sua vez traduziam um mundo que tentava ser
fixo - na sua ordem hierárquica – e mutável enquanto se traduzisse em auto-benefício. O
equilíbrio entre as forças do passado e o vir-a-ser da língua e do cotidiano revelavam o
espírito moderno de Lima Barreto, um autor “de olho no mundo” à sua volta: “Não sou
contra a inovação, mas quero que não se rompa de todo com os processos do passado,
senão o inovador arrisca-se a não ser compreendido”. O que coincidia com um princípio
do modernismo identificado com a liberdade, nas palavras de Marshall Berman: “É
somente mantendo vivos esses laços que o ligam às modernidades do passado, laços ao
mesmo tempo estreitos e antagônicos, que o modernismo pode auxiliar os modernos do
presente e do futuro a serem livres”.
46
Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909) foi o primeiro romance
publicado de Lima Barreto. Trata-se da história exemplar do homem do interior que
sonha com o “eldorado” da capital, uma autobiografia romanceada que acaba sendo,
tanto uma denúncia do preconceito racial como também uma corajosa exposição da
falsa concepção de imprensa e seu serviço prestado ao sistema. Era o primeiro esboço
do poderio da mídia que temos hoje.
Para reparar este estado de coisas – em geral, o impacto que viviam os recém-
chegados à cidade e o desencanto com a realidade em comparação à imagem dos livros,
estes intelectuais recorrem à literatura. Ela cumpre uma operação paralela à
desempenhada nas culturas orais dos campos. Se com o passado dos campos a literatura
constrói a nacionalidade, com o passado urbano constrói a identificação dos cidadãos. E
dentro da norma urbana, é criada uma identificação baseada na instabilidade que a
própria cidade propõe como fruto da modernidade.
Na linha evolutiva do progresso, a cidade será submetida a uma demolição
permanente, que apaga o que vai se tornando velho na busca do sempre-novo. Os novos
significados estão sempre brotando e caindo das árvores construídas.
A remodelação do Rio de Janeiro da Belle Époque que se preparava
urbanisticamente para entrar na era moderna, alterou não só o perfil e ecologia urbanos,
mas também o conjunto de experiências de seus habitantes.
47
46
BERMAN, 1986: 329.
47
GOMES, 1994: 105.
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Esses escritores tanto cumprem uma tarefa idealizadora como também criam o
espaço das novas possibilidades. Alberto Torres e Afonso Celso foram alguns dos
“mosqueteiros intelectuais” que lutaram pelos ideais da República e da Abolição e que
continuaram atuando na política e nas letras do início do século XX, dedicando-se a um
novo projeto de nacionalidade, a partir da desilusão republicana. Alberto Torres, depois
de ocupar vários cargos públicos, entre eles o de ministro do Interior na Primeira
República, torna-se um representante do antiliberalismo. Acabou desenvolvendo um
projeto de reforma política e social inspirado no evolucionismo positivista no qual o
Estado surge como solução e como caminho para um futuro de racionalidade.
Desenvolve, dessa forma, uma concepção autoritária de governo que define a sociedade
como algo amorfo, devendo ser subordinada a um Estado coordenador e autônomo. A
nação brasileira deveria ser criada pelo Estado. Defendia, dessa forma, a democracia
social que deveria formar o “homem”, o “indivíduo” em oposição à democracia política
que tinha “o encargo falaz de formar e apoiar o ‘cidadão’- tipo clássico do titular dos
direitos políticos”.
48
Trata-se de um nacionalismo que se caracterizava pela noção equivocada de uma
organização do país outorgada de cima para baixo. A tese reforçava o tradicional poder
da cidade letrada e os modelos europeus de sociedade. Para o autor, o Estado no Brasil
não poderia ser apenas regulador, como numa nação já desenvolvida, já que o Brasil não
havia criado ainda os vínculos orgânicos capazes de consolidarem-no como nação.
Caberia então, ao Estado, a função – ou a elevada missão - de “formar o povo”.
Percebe-se o total desprezo pela noção de cidadania a partir do pressuposto de que o
povo era incapaz de participar do direcionamento do seu próprio destino. Ainda assim
as idéias de Alberto Torres inspiraram muitos intelectuais dedicados ao tema da
nacionalidade como Oliveira Viana, que o consolidou, na década de 30, dando suporte a
um tipo de pensamento autoritário brasileiro.
Desenvolvendo um outro tipo de nacionalismo, Afonso Celso, nascido em Ouro
Preto, também se dedicou à política, ainda no Império, e mesmo sendo republicano,
abandonou a carreira logo após a proclamação da República. Decepcionado com o novo
regime, passa a dedicar-se ao jornalismo e à poesia. Defendeu a nacionalização da pesca
e a interiorização da capital do Brasil. E teve sucesso com o livro Porque me ufano do
meu país, trazendo para o uso popular a palavra ufanismo que significa uma atitude de
48
TORRES, 1982: 64.
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orgulho desmedido do seu país. Foi um grande difusor do ideário nacionalista na década
de 1910-20, “chefe venerável do nacionalismo brasileiro” nas palavras de Wilson
Martins. Estes intelectuais dedicaram-se a projetos nacionais que ora idealizavam uma
nação cujo Poder deveria “construir um povo”, na tese de Alberto Torres, ora
dedicavam-se a um projeto nacional romântico, conforme o ideal de Afonso Celso.
A escritura construiu as raízes, desenhou a identificação nacional, enquadrou a
sociedade em um projeto, mas se por um momento os homens concernidos por esses
desígnios se tivessem posto a refletir, haveriam estabelecido que tudo isso que resultava
tão importante, eram simplesmente planos desenhados no papel, imagens gravadas em
aço, discursos de palavras enlaçadas, e ainda menos e mais que isso, o que as
consciências chegavam a sonhar a partir dos materiais escritos, atravessando-os com o
olhar até perdê-los de vista para só desfrutar do sonho que eles excitam no imaginário,
desencadeando e canalizando a força desejante
49
.
A experiência do estranhamento, muito comum nos romances de Lima Barreto,
torna-se um contraponto à idealização do cidadão – ainda inspirada nos moldes
clássicos da racionalidade e da busca de perfeição das formas - insistentemente criada
pela cidade letrada. Essa virtualidade – ou a “utopia enceguecedora” - existente no
projeto nacional a partir da capital, foi percebida por Lima Barreto e traduzida nos seus
personagens mais emblemáticos como o já citado Isaías Caminha, Gonzaga de Sá e
Policarpo Quaresma. Este último, como uma idealização, torna-se uma paródia da sua
própria condição,
é em parte Lima Barreto e em parte o duplo de Lima Barreto ironizado pelo
primeiro; esse desdobramento é da maior importância, porque o romance não é a penas
uma proposta nacionalista - é também a sátira do nacionalismo ingênuo e declamatório
à la Afonso Celso (cujo pai, o Visconde de Ouro Preto era padrinho de Lima Barreto) e
Alberto Torres. O Brasil, escrevia por exemplo este último, “tem por destino evidente
ser um país agrícola: toda a ação que tender a desviá-lo deste destino é um crime contra
a sua natureza e contra os interesses humanos” (...) Dir-se-ia que toda a segunda parte
do Policarpo Quaresma foi escrita para contrapor a sardônica realidade às idealizações
fáceis de gabinete.
50
Wilson Martins especula o que estaria além de uma fácil ingenuidade encontrada
em Policarpo Quaresma. Um certo tipo de nacionalismo acabava tornando-se loucura
dentro da realidade hostil e perversa, como mostram as ações do personagem dentro do
romance. O romance, nesse sentido, não tem a pretensão de ser uma transparência
imediata da realidade, pois “os objetivos da obra literária estão longe de ser estes. Em
49
RAMA, 1985: 97-8.
50
MARTINS, 1977: 10.
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lugar de retratar o real, o que ela busca é transfigurá-lo”
51
, como afirma Antonio
Candido.
Vários diálogos se estabelecem no romance O triste fim de Policarpo Quaresma.
A utopia da grande nação entra em choque com as “utopias enceguecedoras” da
República, do cosmopolitismo, das tradicionais instituições e dos valores culturais.
Efetivamente, os intelectuais reformadores da Belle Époque só conseguiram
cumprir a função ideologizante da modernização para o público culto, modelado pela
educação e pelos meios letrados que nesse tempo estavam trocando os referentes
religiosos pelos culturais. Paradoxalmente, esta perda fortaleceu a condução da Igreja
sobre a massa inculta. Esta última, excluída pela modernização que atraía os letrados a
serviço do Estado modernizador, era vítima de um sistema educacional que atendia mais
à formação dos dirigentes que às necessidades sociais da comunidade. Abandonada,
essa massa inculta viu nos sacerdotes seus autênticos defensores e guias espirituais
como ficou demonstrado desde a Insurreição de Canudos liderada por Antônio
Conselheiro, ou na fala do Brasil esquecido do personagem Felizardo em Policarpo
Quaresma: “Terra não é nossa...E frumiga?...Nós não tem ferramenta...isso é bom para
italiano ou alamão, que governo dá tudo...governo não gosta de nós...”
52
.
O massacre de Canudos revelou a dramática distância entre essas classes
excluídas e o Poder central. Além de toda a manipulação da opinião pública e as
atrocidades do exército brasileiro, foi revelado o engodo da pretensão republicana em
ser um regime político popular. E provava também, como o novo regime imposto pelo
exército, estava garantido pelas forças repressoras das armas que ocupavam o espaço
que a ideologização não conseguiu alcançar no vasto território nacional.
O povoado de Canudos foi massacrado pelo crime de ser uma sociedade
autônoma, composta por indivíduos não-consumidores, dotada do poder de se auto-
organizar, insubmissa à República e ao latifúndio, como espaço alternativo que crescia
assustadoramente e provava a cada dia sua capacidade de ser bem sucedida em se
constituir numa nova ordem social independente. Além do mais, a cidade precisava
assimilar essa população rural, que seria abrigada precariamente nas suas margens,
como peças fundamentais para o seu desenvolvimento. Havia aí uma afronta pluralizada
às bases que sustentavam o Poder, e por isso Canudos deveria cair. Publicamente, uma
razão plausível deveria justificar esse fim e essa razão foi inventada: um “motim
51
CANDIDO, 1980: 22.
52
BARRETO, s/d.: 98.
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monarquista”. Para isso, todo o aparato simbólico ideologizante foi acionado por meio
do conluio entre o Poder central, as forças armadas e os meios de comunicação. Mas
não contavam com a inteligência inquiridora de um jornalista do Estado de São Paulo,
que, estarrecido, escreveria um J´accuse em Os sertões, revelando a trama criminosa.
Movido pela indignação diante do “triunfo das mediocridades”, numa “seleção
natural invertida: a sobrevivência dos menos aptos, a evolução retrógrada dos
aleijões”
53
, Euclides da Cunha dedicou-se a um vasto projeto alternativo para a
sociedade brasileira, também inspirado nas teses positivistas de um Estado forte, mas
essencialmente diferente do ideário de Alberto Torres no que se refere ao respeito à
cidadania. Começando pela eliminação das “estéreis e artificiosas combinações
políticas”
54
, as oligarquias e o seu regime de mazelas, o segundo passo seria a
incorporação do sertão e da sua gente à vida civil e econômica do litoral e dos grandes
centros urbanos. Para isso seria necessária a difusão da educação escolar e de todo o
amparo do Estado às regiões mais abandonadas do país, estabelecendo uma justiça
verdadeira nas relações de trabalho e garantindo o pleno direito à cidadania às
populações sertanejas. Além do incentivo à expansão das terras cultiváveis
incrementando a fertilidade e a produtividade.
Mas tais projetos utópicos dedicados à dignificação da nação não passaram de
linhas bem traçadas no papel. As “forças ocultas” da nova ordem enterravam esses
projetos antes de saírem do papel. José Martí, o grande mártir da independência de
Cuba, na ocasião da sua luta, fala sobre a “dor” dos hispano-americanos que pode se
estender à dor das sociedades periféricas:
Porque é dor dos cubanos e de todos os hispano-americanos, que apesar de que herdem
pelo estudo e aquilatem com seu talento natural as esperanças e idéias do universo,
como é diferente o que se move sob seus pés do que eles levam na cabeça! Não tem
ambientes nem raízes nem direito próprio para opinar sobre as coisas que mais os
comovem e interessam, e parecem ridículos e intrusos se, de um país rudimentar,
pretendem adentrar com grande voz pelos assuntos da humanidade (...). É como ir
coroado de raios e calçado de chinelos. Esta é verdadeiramente uma dor moral e um
motivo de tristeza infinita.
55
53
SEVCENKO, 2003: 177
54
Idem, p. 181.
55
Artigo publicado em El Economista Americano, Nova Iorque, Julho de 1888, “Heredia”, recolhido
em Nuestra América, Caracas, Biblioteca Ayacucho, 1977, p. 205.
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Com um alto custo, - de uma dor moral e um motivo de tristeza infinita - a
América Latina, a partir do seu “entre-lugar”, ainda conseguiu dar uma grande
contribuição para a cultura ocidental. Como afirma Silviano Santiago,
esta contribuição vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de
pureza: estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu
peso esmagador, seu sinal de superioridade cultural, à medida que o trabalho de
contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais e mais eficaz. A América
Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao movimento de
desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos feitos e imutáveis que
os europeus exportavam para o Novo Mundo
56
Seguindo essa lógica estão os mecanismos de articulação entre a cidade ideal e a
cidade real latino-americanas. A concentração da urbe remediava a concentração do
poder que ocupava seu centro, mas também abarcava forças opostas que estavam em
tensão e ameaçavam com a irrupção da violência a ordem hierárquica. A cidade real era
o principal e constante opositor da cidade das letras, a quem esta deveria ser submetida:
a repentina ampliação que sofreu sob a modernização e a irrupção das multidões
semearam a consternação, sobretudo nas cidades de importante população negra ou
imigrante, pois na América índia o antigo submetimento que a Igreja havia internalizado
nos habitantes continua sustentando a ordem, mas não o bastante, pois nessas relações
de troca havia também uma obediência fingida, um sincretismo que garantia a
resistência.
Enfim, esse processo de transculturação na Belle Époque carioca não permitiu,
como em outros momentos da nossa história cultural e literária – como no romantismo e
no modernismo -, a mútua fecundação ou a fluidez entre o local e o mundial que
possibilitam uma permanente transferência de influências enriquecedoras. O local foi
boicotado pelo cânone cosmopolita e as produções da literatura rural não passavam de
tímidas manifestações sem recepção na capital.
56
SANTIAGO, 2000: 16.
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76
3.3. A insustentável leveza
Numa outra esfera, para a aparente ordem urbana ser mantida, a modernização,
sob sua máscara liberal, apoiou-se em um intensificado sistema repressivo, como parte
fundamental no processo de controle e dominação. A legislação republicana
determinava o recolhimento das ruas de qualquer indivíduo que perturbasse a “ordem”,
premissa muito relativa e passível de diversas interpretações. Enfim, acabou servindo
muito bem aos desígnios civilizatórios da “regeneração” repressiva.
A exclusão dos “insubordinados” à ordem modernizadora era representada pelo
manicômio e pela prisão, essa última se encarregava de recolher os “vadios” – num país
com alta taxa de desemprego -, os descalços, enfim, os pobres que maculavam a
imagem civilizada da cidade, representando um risco à ordem; e o manicômio
encarregava-se de recolher os “mentalmente desajustados”, ou aqueles que não
poderiam ser enquadrados como “criminosos”. Em ambos os casos, a população era, na
sua quase totalidade, de negros e imigrantes pobres.
Dessa forma, estar desempregado numa sociedade que apresentava altas taxas de
desemprego, não possuir habitação, ou mesmo não andar calçado configuravam o crime
da “vadiagem” ou a “loucura” de estar fora do padrão, e portanto, uma falta que deveria
ser paga com o isolamento no manicômio ou na penitenciária. O discurso do poder
articulava-se em torno da “ordem” tão necessária para que se alcançasse o “progresso”.
Para tanto, as instituições como a polícia e a ciência faziam sua parte: dedicavam-se
com todo o esmero à legitimação da ideologia excludente: “a identidade política entre
republicanos e alienista passava pela adoção comum do pensamento positivista que
fundamentava uma concepção intensamente elitista e excludente da política e da
sociedade”
57
.
Dentro dessa lógica, os “degenerados” incluíam prostitutas, mendigos,
alcoólatras que tanto poderiam ser considerados loucos como criminosos. Para os
médicos alienistas, a cidade aparecia como lugar propício ao desenvolvimento de
indivíduos degenerados, que não se identificavam com a nova ordem social que a
República buscava implementar. Fato que não significava uma tentativa de
compreensão dos possíveis erros dessa nova ordem, mas pelo contrário, mostrava o
57
CUNHA, 1990: 36-7.
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77
poder inquestionável e soberano desta ordem sobre os homens. Isto se traduzia em
excluir os que não tinham “capacidade” de se adaptar.
Apesar das tendências mais modernas na psiquiatria internacional estarem em
processo de questionamento da forma asilar, os objetivos de exclusão social presidiram,
numa medida muito forte, a instalação do saber e das instituições psiquiátricas no
Brasil, atendendo às necessidades da explosão urbana
.
58
Os loucos são de proveniências as mais diversas: originam-se, em geral das
camadas mais pobres da nossa gente pobre. São pobres imigrantes italianos,
portugueses, espanhóis e outros mais exóticos: são negros roceiros (...) são copeiros, são
cocheiros, cozinheiros, operários
59
Era criada dentro do espaço da cidade, uma anticidade, com os refugos da
primeira. A relação de causa e efeito entre sociedade civilizada e produção da loucura
pode ser observada nas teses defendidas por alguns alienistas brasileiros cujo
fundamento teórico é encontrado no trabalho do alienista francês Esquirol. O ambiente
da cidade seria propício ao descontrole das paixões como vício do jogo, do álcool, a
prostituição e contribuiria para produzir e estimular paixões factícies. A contradição
estava no fato de que o “tratamento” era direcionado às conseqüências das “anomalias”
e não às causas. E vamos mais longe: “as paixões artificiais, criadas por necessidades
que não estão ligadas à conservação e reprodução da vida, servem para inscrever, na
individualidade moral, a ordem civilizada”
60
.
A teoria da degenerescência, ao creditar à hereditariedade a principal parcela de
responsabilidade, confere à esfera da cidade uma grande importância e a torna objeto
central de estudo e de intervenção. O alienismo, a medicina social, a engenharia, assim
como a polícia e todo um conjunto de instituições de uma cidade higienizada, livre da
peste e do perigo, que reproduza em seu interior a imagem vitoriosa da ordem
burguesa
.
61
O plano ordenador da cidade ideal tentava criar um projeto a partir de um forte
desejo de uniformização – que representaria, por outro lado, maior controle - dos seus
habitantes, negando-se a compreender que os atores históricos não são modelos de
coerência, continuidade, racionalidade; as tensões entre o vivido e o imaginado e
desejado são fundamentais para uma real interpretação da sociedade.
58
CUNHA, 1986: 46.
59
BARRETO, Lima, 1993: 143.
60
MACHADO, 1978: 413.
61
CUNHA: 1986: 27.
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78
Ainda segundo o alienista francês, algumas atividades como as intelectuais,
poderiam ser responsabilizadas pelo estímulo à loucura. Esta crença, enraizada no senso
comum, relaciona a loucura ao excesso de estudo. Muitas vezes, isto era expresso tanto
por saberes leigos, quanto pela própria psiquiatria: “Trata-se de uma crença disseminada
pelo conjunto da sociedade segundo a qual o estudo excessivo poderia provocar a
loucura, principalmente naqueles não preparados para o desempenho intelectual pela
ausência de formação acadêmica”
62
. Estariam entre esses casos, as mulheres que muitas
vezes, pela opressão social, mostravam-se mais propícias aos “ataques de nervos” que,
somados às leituras “bovaristas”, tornavam-se casos de hospício. Policarpo Quaresma,
por exemplo, por se dedicar muito à leitura, tinha “hábitos esquisitos”, segundo os
vizinhos, já que não se tratava de um “doutor”.
Sua criatura, Policarpo Quaresma, à imagem do criador, é o Quixote na ordem
modernizadora brasileira. Idealista e louco, incompreendido e ridicularizado, encarna
melancolicamente uma nação-policarpo que desperdiçou seus frutos. A experiência da
loucura faz parte da condenação ao deserdamento. O gênero romance, nas palavras de
Ángel Rama, extraiu das suas baixas origens sua capacidade de adaptação, de
sobrevivência, de transformação. Toda a vez que a retórica pretendeu dignificá-lo, ele
escapuliu de suas mãos para voltar prazeroso à sarjeta: daí ressurge com novas energias,
sob novas formas. Assim o gênero parece cumprir bem o papel de resistência tão
fundamental na cultura latino-americana. Lembrando o pícaro de Lazardini, o romance
restaura a sua condição original como arma de combate para destruir uma ordem
estabelecida, apelando para a clássica argúcia (única, entre as coisas que essa ordem foi
capaz de admitir) do falar irresponsável do marginalizado social: o deserdado ou o
louco, Lázaro ou Quixote.
63
Entre a poesia do louco e a sua realidade social e científica,
Lima Barreto aprofundou a compreensão das dinâmicas sociais de construção e
manipulação da loucura. “Quero contar simplesmente as impressões da minha sociedade
com os loucos, as minhas conversas com eles, e o que esse transitório comércio me
provocou pensar”
64
.
Os habitantes da cidade que não se enquadravam nos padrões de “normalidade”
eram submetidos à autoridade policial que lhes recolhia ao presídio ou ao manicômio. A
passagem da cidade à anticidade dos loucos representava um nível acima na escala da
62
ENGEL, 2001: 18.
63
RAMA, 2001: 42.
64
BARRETO, 1993: 177.
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79
exclusão: no manicômio estes homens seriam submetidos a uma nova ordem
hierárquica e normativa onde o médico seria a autoridade e teria agora o poder de
classificar vidas a partir de valores científicos - e não podemos esquecer - de valores
sociais e culturais, reproduzindo na anticidade, os mecanismos de funcionamento da
cidade.
Desde os tempos do Império, o manicômio tinha suas vagas divididas em
número suficiente para a internação de escravos e índios degenerados, o que confirma
os mecanismos de exclusão mascarados em ciência, já há muito tempo aplicados no
Brasil. Com o início da República, o objetivo da instituição asilar ficava mais evidente:
a determinação era de que o hospício Nacional de Alienados deveria recolher “Todas as
pessoas que, por alienação mental adquirida ou congênita, perturbarem a tranqüilidade
pública, ofenderem a moral e os bons costumes”
65
segundo determinação da lei. A
ampliação da esfera de controle da loucura, alimentada pela “política regeneradora” e
excludente da cidade e realizada através da poderosa máquina repressiva do Estado,
contribuía para o grande aumento da população internada no manicômio. Foucault em
História da Loucura na Idade clássica, já relacionava a loucura com a cidade: “o
momento em que a loucura é percebida no horizonte social da pobreza (...) [é] o
momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade”
66
. O alienista
Juliano Moreira chamou atenção para o fato de que o aumento da população de
alienados crescia devido a alguns imigrantes, aos negros e indígenas degenerados e ao
surgimento de uma população periférica pobre em torno dos centros urbanos, além dos
doentes crônicos como os tuberculosos e os leprosos.
Lima Barreto inaugura uma nova linha de crítica social na qual se destaca uma
identidade transcultural
67
. No seu diário, a transparência da crítica social cede lugar aos
dilemas internos de adaptação ao mundo. O autor torna-se, pela sua própria trajetória
social, retratada nos seus diários e no romance sobre a loucura - Diário íntimo, Diário
de hospício (1919-20) e Cemitério dos vivos (1921-22) uma particular exemplificação
dos mecanismos de inclusão/exclusão da sociedade carioca. “Cansado de sentir”,
confessava:
65
Coleção de leis do Brasil 1890, janeiro/março – Arquivo Nacional.
66
FOUCAULT, 1978: 78.
67
Termo usado por Ángel Rama que designa o processo de desarraigamento de culturas
tradicionais para a formação de outra.
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80
O álcool não entrava nos meus hábitos (...). Naquela ocasião porém deu-me uma
vontade de beber, de me embriagar, estava cansado de sentir, queria um narcótico que
fizesse descansar os nervos tendidos pelos constantes abalos daqueles últimos dias.
68
Vindo da periferia urbana, Lima Barreto acabou sendo o representante daqueles
sem representação, sem identificação na cidade. Em contraste com as sociedades rurais
brasileiras que, mesmo abandonadas pelo Poder e castigadas pela pobreza, conservavam
uma identidade folclórica como uma redenção, os sertões e o agreste ajustavam-se a
uma poética nacional, enquanto os subúrbios tornavam-se o território dos aculturados,
cuja identidade e tradições eram segregadas pelo poder público da capital dominante.
Não há dúvida de que o artista pode ir contra seu meio social, pode ser um
revolucionário, um não-conformista. Mas até quando luta contra a sociedade que o
formou, até quando foge como Gauguin, não deixa de levar consigo sua educação, sua
classe, alguns dos valores coletivos que chegaram a fazer parte de sua carne, de seu ser
profundo. A única solução verdadeiramente revolucionária é a de Nietzsche, é a fuga à
loucura
69
.
Lima Barreto falava de um não-lugar entre a cultura popular e os referentes
letrados. A experiência do escritor atópico seria radicalmente traduzida pela vida no
manicômio, na divisa entre o plano macro – em relação à cidade, e micro – na relação
da sua lucidez com a loucura, tanto como observado como observador. Essa condição
possibilitou ao escritor, no Diário do Hospício e no Cemitério dos vivos, importantes
indagações sobre as relações entre cidade normativa e anticidade do hospício; a
linguagem determinista da ciência e o silêncio incompreensível da loucura, a construção
de um tempo progressivo e linear no pensamento científico e a circularidade repetitiva
dos loucos; a fabricação ficional do “eu” diante da incomunicabilidade da loucura e da
classificação da ciência.
70
. No diário, a intenção era “observar as reações da loucura
sobre a articulação da palavra; alguns trôpegos da língua, alguns balbuciam, e outros
quase mudos”
71
. Numa circularidade sobre si mesmo, o Diário do hospício é um
registro patético e singularmente objetivo no qual o escritor, internado entre os loucos
depois de um acesso de delírio alcoólico, esquece de si para avaliar a situação em que
68
BARBOSA, 1981: 112.
69
BASTIDE, 2006: 56.
70
JAGUARIBE, 1998: 60.
71
BARRETO, 2001: 1247.
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81
está e, depois, volta sobre si, aprofundando o autoconhecimento graças ao conhecimento
do meio.
72
A escritura, dessa forma, atua como mecanismo de salvação. É na anticidade dos
loucos que se articula dramaticamente a crítica à sociedade normativa, sendo
interessante observar como é construída a partir do sentimento de indignação, uma clara
idéia de justiça. A literatura como missão social em nome dos cidadãos é agora no
hospício, envolta pelo silêncio do não discurso dos loucos, desprovido de
reivindicações.
A loucura se reveste de várias e infinitas formas: é possível que os estudiosos
tenham podido reduzi-las em uma classificação, mas ao leigo ela se apresenta como as
árvores, arbustos e lianas de uma floresta: é uma porção de coisas diferentes
73
.
Mas este não-lugar acaba tornando-se um espaço propício para a sua
automodelação. Ao contemplar os loucos e refletir sobre eles, Lima Barreto, entre
palavra e silêncio, situa-se no não-lugar da fuga à loucura referida por Nietzsche e
Roger Bastide como o espaço da não-cultura, ou da solução verdadeiramente
revolucionária.
A linha tênue entre sanidade e loucura foi tema explorado pela perspicácia
irônica de Machado de Assis em O alienista. A racionalidade científica, dominante na
época, é posta à prova e ridicularizada na encarnação do “clichê do cientista que o
século XIX formulou e nos transmitiu”
74
: o médico Simão Bacamarte. A leitura atenta
da novela de Machado de Assis nos leva a considerar, como questão central, não
simplesmente o tema da loucura, mas a articulação entre ciência, linguagem e poder, na
sociedade brasileira do final do século XIX, em outras palavras, Machado de Assis
subverteria a noção de discurso científico e sua “competência”. A confrontação entre
poderes – ciência e governo – é representada pelo médico e pelo barbeiro Porfírio,
respectivamente, e mediada pelas modalidades dos seus discursos. Este último,
organizara uma rebelião contra a Casa Verde de Bacamarte, mas depois de “despertar
em si a ambição do governo” (cap. VII), toma o poder, e por não ter ainda “a confiança
dos principais da vila”, percebe que “o alienista podia fazer muito nesse ponto”.
Porfírio, através de um discurso elogioso: “Logo, em assunto tão melindroso, o governo
72
CANDIDO, 1993:47.
73
BARRETO, 1993: 148.
74
LIMA, 1976: 30.
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82
não pode, não deve, não quer dispensar o concurso de Vossa Senhoria (...) Unamo-nos e
o povo saberá obedecer” (cap. IX), consegue a “colaboração” da ciência. Enfim, ao
assumir o poder, o barbeiro “percebe que necessita de uma legitimação simbólica, que a
ciência lhe poderia fornecer”. E dentro deste jogo de poderes, “a divisão entre loucos e
sadios não é uma questão apenas médica, mas acima de tudo um critério social” e
conclui-se que “a loucura já não se concebe como o outro lado da razão, mas como o
que se interna dentro dela”, nas palavras de Luiz Costa Lima
75
.
Corroborando as contradições do alienista, Lima Barreto percebeu a fragilidade
dos mecanismos da racionalidade científica: “outra coisa que me fez arrepiar de medo
na seção Pinel foi o alienista (...) julgo-o mais nevrosado e avoado do que eu (...) É
muito amante de novidades, do vient de paraître, das últimas criações científicas ou que
outro nome tenham”
76
. E sobre o médico que lhe atendeu pela segunda vez:
É bem curioso esse Henrique Roxo.(...) Ele me parece desses médicos
brasileiros imbuídos da certeza de sua arte (...) pouco interessado em levantar o véu de
mistério – que mistério! – que há na especialidade que professa. Lê os livros da Europa,
dos Estados Unidos, talvez, mas não lê a natureza.
Enfim, “o louco pode conhecer a verdade, tanta verdade que a sociedade se
vinga destes infelizes visionários, estigmatizando-os. Mas ser louco é também sofrer
interminavelmente”, afirma Artaud sobre Van Gogh.
77
. Lima Barreto “canalizou a
própria vida para a literatura, que a absorveu e tomou o seu lugar”, nas palavras de
Antonio Candido
78
. Ao que o escritor responde que “a arte e a literatura são cousas
sérias pelas quais podemos enlouquecer”
79
.
Apesar de não ter terminado o romance Cemitério dos vivos, Lima Barreto
deixou importantes descrições sobre o exercício do poder dentro dos asilos e a tensão
nas relações entre médicos e pacientes, bem como as deficiências das práticas
psiquiátricas terapêuticas. A denúncia das mazelas do regime republicano se estenderia
também para o interior dos muros do Hospício Nacional de Alienados e indicaria as
permanências e continuidades do novo regime em relação ao sistema de tratamento dos
doentes internados. Mostra que a anticidade do manicômio reproduzia tanto o poder
75
Op. Cit. p. 31.
76
BARRETO, 1993: 43
77
SONTAG, 1986: 45.
78
CANDIDO, 1993: 48.
79
BARRETO, 1956, Impressões de leitura, p. 221
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83
abusivo e autoritário da cidade como também a miséria e o abandono dos seus
habitantes.
Um grito abafado está presente em toda a obra de Lima Barreto mas se
personifica em seus personagens mais visionários e idealistas como nas suas próprias
mortes complacentes: Triste fim de Policarpo Quaresma (1915) e Vida e morte de M. J.
Gonzaga de Sá (1919). Policarpo lutou, mas estava sozinho e sucumbiu gradualmente às
forças de anulação; Gonzaga de Sá, já sentindo a inutilidade da luta, limitou-se a
observar, através de uma visão panorâmica da cidade do Rio de Janeiro, a sua própria
diluição na diluição do seu lugar.
A obra de Lima Barreto nos apresenta um mundo em diluição: um olhar sobre o
Brasil que percebe o fim de uma era e, entre a complacência e o desespero, só enxerga
“o triste fim” de um país policarpo, que desperdiçou seus frutos. O romance Vida e
morte de M. J. Gonzaga de Sá é uma ode a esse mundo que se extinguia, através do
olhar sobre o Rio de Janeiro como uma metonímia do Brasil. Este foco ainda busca o
mundo que resiste, os sinais do tempo que se apaga, expondo as imagens num último e
triste resgate. Um tempo em que tudo rejeitava a diluição, e as coisas eram feitas sob o
signo da eternidade. Gonzaga de Sá traz na sua poesia o grito contra a efemeridade da
vida moderna, contra a fúria destruidora do tempo que se anunciava. Nas palavras de
Octavio Paz, “ ‘tradição moderna’ é a expressão da condição dramática de nossa
civilização, que procura seu fundamento, não no passado nem em nenhum princípio
imóvel, mas na mudança”
80
. O Rio de Janeiro de Gonzaga de Sá apresenta esse limiar
entre o mundo sólido do passado e o mundo condenado à eterna diluição do futuro.
O romance é o gênero decisivo na formação da literatura latino-americana, e
muitas vezes é também uma arma de combate para a destruição da ordem estabelecida,
afirmava Angel Rama lembrando o exemplo de Lázaro ou Quixote e o falar
“irresponsável do marginalizado social: o deserdado ou o louco”
81
. Este caráter
subversivo do romance, em relação à ordem preexistente, vem da “sua capacidade de
fazer com que a sociedade se enfrente e se depare com questões relativas às
transformações da sua estrutura”, afirma o ensaísta
82
.
A obra de Lima Barreto, na sua totalidade, é um exemplo deste caráter
subversivo. E entre seus romances, a crítica ao nosso processo modernizador nunca foi
80
PAZ, 1984: 25
81
RAMA, 2001: 42.
82
Idem, p. 10.
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84
tão viva e melancolicamente poética como em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá.
Vamos nos ater aqui a esta narrativa, mostrando como o autor uniu crítica e leveza,
criando uma personagem de tal forma fluida e difícil de captar, que mais parece feita de
pura substância espiritual, sendo ao mesmo tempo uma de suas personagens mais
contundentes. O romance que se propõe a ser uma biografia de Gonzaga de Sá feita pelo
seu amigo Machado, não passa de um esboço, um retrato mal traçado do biografado,
como confessa o biógrafo ao assumir as dificuldades de decifrar o amigo: “Havia nele
um drama de organização e inteligência ou o que havia? Fiz, como verão, todas as
hipóteses, mas nunca nenhuma me satisfez.”
83
Gonzaga, um burocrata estéril e apagado, vivendo numa “obscuridade a que se
havia voluntariamente imposto”
84
, destituído de poderes, atrai Machado que vê neste
amigo um semelhante: ambos oprimidos, são profundamente conscientes das causas do
peso que os esmaga. As velhas instituições inúteis, a presença do estrangeiro intruso, a
exploração dos mais fracos, tudo isto representa o grande peso do mundo que desfila
diante dos dois observadores como um triste espetáculo:
Nós fomos subindo a rua devagar, por entre curiosos exemplares de uns pais de
família. Graves homens de fisionomia triste, curvados ao peso da vida (...) Eu não
compreendo, continuou, que haja quem se resigne a viver desse modo e organizar
famílias dentro de uma sociedade, cujos dirigentes não admitem, para esses lares
humildes os mesmos princípios diretos com que mantêm os deles luxuosos
85
A estranha obediência de todo um grupo humano a uma só ordem, a um só ideal,
no desfile da Independência, parecia sugerir a formação de um pensamento único,
confirmar a falta de uma consciência crítica e a inutilidade da luta: “Que motivos
ocultos, sob a grosseria dos fatos históricos, explicavam essa estranha impulsão e aquela
mesma obediência a um mesmo ideal e a uma mesma ordem?”
86
. A festa da
Independência torna-se falsa e sem sentido, “sob a grosseria dos fatos históricos”, pois
ninguém percebia o quanto ainda éramos dependentes, como aponta Gonzaga: “vocês
arranjaram novos dominadores, com os quais vocês não se poderão entender nunca; e
expulsaram os antigos com os quais, certamente, se viriam a entender um dia. Erraram,
e profundamente”. Os “novos dominadores” aparecem no Teatro Lírico: “são
83
BARRETO, 1956, Vida e morte de M.J.Gonzaga de Sá., p. 82
84
Idem, p. 50
85
Idem., p.112
86
Idem, .p. 142
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85
estrangeiros, novos no país, ferragistas e agiotas enriquecidos, gente nova...”
87
; ou
desfilavam pela Rua do Ouvidor “grandes mulheres estrangeiras, cheias de jóias, com
espaventosos chapéus de altas plumas, ao jeito de velas enfunadas ao vento, impelindo
grandes cascos” que, ironicamente, segundo Gonzaga, “Estão se dando ao trabalho de
nos polir”
88
. A constatação é resignada: os brasileiros necessitavam de um “polimento”
através da moda, e da atitude das grandes mulheres estrangeiras que, metaforizadas,
eram as caravelas da nova colonização. O estrangeiro traz o sentido do seu peso nas
exageradas proporções, como no grande espaço que ocupa em nosso país, freqüentando
os melhores cenários e deslumbrando a todos que os viam, como “gente nova” já
incorporada à nação.
Há a triste constatação de que o presente não traz nenhuma vantagem em
relação ao passado, ao contrário do que todos acreditavam. Simplesmente as antigas
forças opressoras traziam outras vestimentas e outras promessas. Independência e
República não passavam de uma aparência do novo, como alerta Gonzaga: “São os
mesmos fazendeiros sugadores de sangue humano; são os mesmos políticos sem idéias;
são os mesmos sábios decoradores de compêndios estrangeiros e sem uma idéia própria
(...) Há quarenta anos era assim; não mudou.”
89
Ao referir-se à ignorância e à ausência de consciência crítica dos colegas de
repartição, o burocrata desabafa “Tenho desgosto de não ter procurado a luz, as alturas,
de me ter deixado ficar covardemente entre tais patos, entre tais perus (...) ignorantes e
sórdidos”
90
. Ítalo Calvino vê “uma constante antropológica nesse nexo entre a levitação
desejada e a privação sofrida”
91
. Nesse sentido, a leveza e o vôo tornam-se a única
forma possível de combate à opressão para Gonzaga de Sá. Da mesma forma, no
romance de Milan Kundera A insustentável leveza do ser, o peso da vida estava em todo
tipo de opressão, como em toda decadência institucional que representava a tirania do
poder stalinista, e nesse contexto, qualquer leveza tornava-se insustentável.
Orgulhoso de ser um descendente de Estácio de Sá, o fundador da cidade onde
nascera, Gonzaga torna-se um passeador, um flâneur que fazia do Rio de Janeiro o
grande espetáculo da sua vida, e interpretando a cidade, revelava o passado e o presente
da história dos seus habitantes, como a sua própria. Sua visão panorâmica da cidade
87
Idem, p.156
88
Idem, p. 104, 105
89
Idem, p. 159
90
Idem, p.149
91
Idem, p. 40
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86
muitas vezes se fazia como de um sobrevôo, o que deixava Machado maravilhado “era
o abuso que [Gonzaga] fazia da faculdade de locomoção”
92
. A própria descrição física
de Gonzaga, vale lembrar, “um velho alto..., todo seco, com um longo pescoço de
ave”
93
aproxima-o de um pássaro. Sua casa, como um ninho, situada no alto de Santa
Teresa, “olhava para a Lapa, para a Glória, para a Armação, para Niterói..”
94
. Criava
pombos, pois gostava “do seu vôo, das irisadas penas do seu pescoço, da sua graça, da
sua natureza intermediária de ave de terreiro e de vôo...”. Sua irmã Escolástica lembrava
que Gonzaga sempre fora “extravagante” e quando menino foi surpreendido pelo pai na
janela pronto para voar.
O primeiro encontro dos dois amigos, Gonzaga e Machado, foi marcado no
Passeio Público para assistir a um espetáculo sui generis: “ver certo matiz verde que o
céu toma, às vezes ao entardecer”
95
. Oprimidos, os dois amigos dão as costas para os
absurdos da sociedade e buscam leveza no encanto do espaço e da natureza. O romance
se baseia na função do olhar.
As reflexões de Gonzaga alternam-se entre uma melancólica sensação de perda e
uma irônica visão do progresso e da civilização: ”Levamos a procurar as causas da
civilização para reverenciá-las como se fossem deuses... Engraçado! É como se a
civilização tivesse sido boa e nos tivesse dado a felicidade!”
96
. Lembra Calvino que a
leveza está “sobretudo naquela específica modulação lírica e existencial que permite
contemplar o próprio drama como se visto do exterior, e dissolvê-lo em melancólica
ironia” e acrescenta que “a melancolia é a tristeza que ficou leve”
97
e que em Gonzaga
traz um sentido de resignação e compadecimento. A ironia do discurso é apontada por
Berman como a marca da expressão moderna: “a mais profunda seriedade moderna
deve expressar-se através da ironia”
98
que seria a perfeita expressão da contraditória
modernidade.
Curiosamente Gonzaga não deixou nada escrito, era um pensador como aqueles
poetas e filósofos da Antigüidade que criavam sua peripatética filosofia sem
preocupação com registros ou autorias, vivia na “obscuridade a que se havia
voluntariamente imposto”. E Machado surpreendia-se com o fato de um homem com
92
Idem. p. 63
93
Idem, p. 36
94
Idem, p. 43
95
Idem, p. 38
96
Idem, p.128
97
Idem, p. 32
98
Idem, p. 14
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87
aquela instrução não publicar suas idéias. Na verdade, “como Merimée, não tinha a
quem oferecer colares de pérolas. Gonzaga, solitário, sem filhos, membro de família a
extinguir-se, a quem iria dar a sua glória?”
99
. Nada o prendia ao chão desse mundo, nem
família nem registros das suas criações. Apenas um papel, escrito por ele, foi
encontrado casualmente entre alguns documentos deixados ao seu amigo Machado.
Constitui seu único legado: uma enigmática história da construção de “uma máquina
voadora”. O texto é a chave para o entendimento do enigma Gonzaga de Sá, uma
alegoria de sua vida. A história chamada “O inventor e a aeronave” relata a dedicação
de 20 anos da vida de um inventor à construção de uma máquina voadora. Trata-se de
um obcecado projeto de vida com um único objetivo: “Iria subir, iria remontar os ares,
transmontar cordilheiras, alçar-se longe do solo, viver algum tempo quase fora da
fatalidade da terra, inebriar-se de azul e de sonhos celestes, nas altas camadas
rarefeitas...
100
No entanto “a máquina não subiu”, finalizando a parábola. O único legado
deixado por Gonzaga nos faz concluir que seu vôo era insustentável neste mundo, seu
projeto, utópico. O grande empreendimento do inventor não vingou. O balão não subiu
como suas idéias não alcançaram seu fim, suas crenças ficaram presas ao chão, seu
projeto de vôo atado ao papel, sua leveza insustentável, presa à fatalidade da terra. Nas
palavras de Ítalo Calvino, “muito dificilmente um romancista poderá representar sua
idéia de leveza ilustrando-a com exemplos da vida contemporânea sem condená-la a ser
o objeto inalcançável de uma busca sem fim”
101
.
Pela primeira vez presenciou-se, na curta duração de uma vida humana, a
desaparição ou transmutação dos espaços físicos que a acompanhavam desde a infância.
A cidade que tinha como objetivo a permanência do indivíduo dentro do seu contorno,
transformava-se ou se dissolvia, desarraigando-o da realidade que era um de seus
constituintes psíquicos. Além de tudo, nada dizia aos imigrantes que entravam num
cenário com o qual não tinham uma história em comum. Houve portanto uma
generalizada experiência de desenraizamento quando a cidade entrou no movimento que
regia o sistema econômico expansivo da época: os cidadãos já estabelecidos
anteriormente viam desvanecer-se o passado e se sentiam condenados à precariedade, à
transformação, ao futuro; os cidadãos novos, pelo simples fato de seu traslado da
99
Idem, p. 51
100
Idem, p. 130.
101
CALVINO, 1990: 19.
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88
Europa, já estavam vivendo esse estado de precariedade e precisavam de vínculos
emocionais com o cenário urbano que encontravam na América. Enfim, a contradição, o
paradoxo são experiências fundamentais da modernidade, como bem define Marshal
Berman:
Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-se fortalecido
pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder de controlar e
freqüentemente destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se compelido a
enfrentar essas forças, a lutar para mudar o seu mundo transformando-o em nosso
mundo. É ser ao mesmo tempo revolucionário e conservador: aberto a novas
possibilidades de experiência e aventura, aterrorizado pelo abismo niilista ao qual tantas
das aventuras modernas conduzem, na expectativa de criar e conservar algo real, ainda
quando tudo em volta se desfaz.
102
102
BERMAN, 1986: 14.
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4
É difícil saber saber
O ingresso das classes médias na vida cultural, a partir do início do século XX,
foi determinante para a expansão de um público consumidor da cultura que até então se
caracterizava por ser um círculo fechado onde os intelectuais eram ao mesmo tempo
produtores e consumidores. Outros fatores mostram-se determinantes para a formação -
e transformação - do intelectual do século XX, sobretudo em relação às artes e à cultura,
como os que se encontram nas origens do movimento Modernista brasileiro.
As vanguardas européias da transição dos séculos XIX-XX, que inspiraram o
modernismo em todo o mundo, ofereciam, além das estéticas de ruptura com a arte
tradicional, as premissas para o questionamento da própria hegemonia européia, a partir
do momento que começaram a propor uma revisão dos padrões de arte eurocêntricos. A
etnologia surgiu como tese fundamental para este questionamento como uma ciência
que nasceu no momento em que se operou um descentramento, ou seja, no momento em
que a cultura européia foi deslocada, expulsa do seu lugar, deixando então de ser
considerada como cultura de referência. “Esse descentramento tem conseqüências
extraordinárias no processo de formação do intelectual modernista e de configuração
das várias etnias que explodem a almejada cultura nacional em vários estilhaços”,
afirma Silviano Santiago
1
. Inicia-se assim o processo de “desrecalque localista”, ou seja,
o brasileiro começava a superar seu complexo de inferioridade em relação à Europa.
Antonio Candido esclarece que, no modernismo, “o mulato e o negro são
definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração, exemplo. O
primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura (...)
As nossas deficiências, supostas ou reais são reinterpretadas como superioridades”,
processa-se um verdadeiro “desrecalque localista”
2
, completa o crítico.
Este “desrecalque localista” veio desestabilizar o tradicional cosmopolitismo que
imperava no Brasil da Belle Époque, o que possibilitou ao modernismo, como uma
redenção, dar alguma visibilidade ao brasileiro. “O primeiro capítulo do projeto
1
“Atração do mundo – políticas de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira” in
SANTIAGO, 2004: 27.
2
CANDIDO, 1965: 143-5.
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90
ideológico do modernismo” foi a “incorporação das classes marginalizadas como parte
integrante da nacionalidade moderna e reconfiguração da história nacional, aliando
passado e presente”, resume Anderson Pires da Silva
3
.
Nas palavras do importante crítico literário da década de 20, Tristão de Athayde:
”Se o século XVI pertenceu a Pernambuco, o XVII à Bahia, XVIII a Minas Gerais, XIX
ao Rio de Janeiro, o século XX é o século de São Paulo”. A afirmação é confirmada
pelos fatos e justificada por fatores políticos e econômicos que determinaram ser São
Paulo “o centro de excelência da arte moderna no Brasil”
4
. Em depoimento, Mário de
Andrade garantia que o verdadeiro fator da Semana de Arte Moderna foi Paulo Prado.
Este, um bem sucedido empresário paulista do ramo do café, foi o grande mecenas da
Semana, que mostrava, de forma eficientíssima, a combinação entre arte e negócio.
É neste contexto que, a partir de 22, o projeto modernista se desvincula da
vanguarda futurista européia e passa a elaborar uma discussão sobre a identidade
nacional. O projeto se desenvolve principalmente nos escritos de Oswald de Andrade e
Mário de Andrade, que passam a ser reconhecidos como protagonistas do modernismo
brasileiro. E, de acordo com os estudos sobre o movimento, “a figura de Mário de
Andrade será construída como melhor exemplo do modelo intelectual modernista”
5
.
Este modelo deve-se sobretudo ao desenvolvimento da tese sobre o “abrasileiramento”
da nação, a qual Mário dedicou grande parte da sua vida e obra. Um importante
panorama do seu pensamento é encontrado na vasta produção epistolar dirigida aos
grandes nomes da intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX.
As cartas a Carlos Drummond de Andrade são exemplares na construção da tese
sobre o “abrasileiramento do Brasil”. Mário de Andrade aponta o intelectual Joaquim
Nabuco - árduo defensor do eurocentrismo na nossa cultura -, como referência do nosso
cosmopolitismo, e cria o termo “moléstia de Nabuco” como um mal que assolava a
quase todos os brasileiros: “O Dr. Chagas descobriu que grassava no país uma doença
que foi chamada de moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que
todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. E explica:
moléstia de Nabuco é isso de vocês [brasileiros] andarem sentindo saudade do cais do Sena
em plena Quinta de Boa Vista e é isso de você falar dum jeito e escrever covardemente
3
SILVA, 2006: 37.
4
Idem, p. 33.
5
Idem, idem.
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91
colocando o pronome carolinamichaelismente. Estilize a sua fala, sinta a Quinta de Boa
Vista pelo que é e foi e estará curado da moléstia de Nabuco
6
.
A partir de 1924, depois das propostas estéticas apresentadas pela Semana de Arte
Moderna, os modernistas perceberam que aquela visão imediatista de incorporação ao
mundo moderno não funcionou. Apesar de todos os esforços de modernização dos
meios expressivos, a incorporação não acontecia. Por este motivo – e em consonância
com o pensamento de Lima Barreto -, eles passaram a defender que a vida cultural do
país, isto é, a entrada do país no concerto das nações cultas, dependia da afirmação dos
traços culturais locais - um fenômeno que se processou em toda a América Latina-,
como explica Ángel Rama,
Nas origens da grande renovação das letras latino-americanas do século XX, houve
coincidência entre todos os escritores e todas as correntes estéticas para manejar as
contribuições de fora como meros fermentos a serem usados na descoberta de analogias
internas.
7
A consciência de que o Brasil podia – e devia – ser transformado, de que o Brasil
podia ser reinventado, é o que está presente na essência do modernismo. Uma nova
utopia tornava-se possível. Isto acarretou uma virada na trajetória do movimento,
marcando o início do segundo tempo no qual o ideal universalista se desdobrou nas
teses nacionalistas. Pode-se fixar este marco inicial na publicação do “Manifesto da
Poesia Pau-Brasil”, de Oswald de Andrade, em 1924, “no qual brota um projeto de
modernidade em arte baseado nas incorporações da tradição e do novo, do popular e do
culto”
8
:
O trabalho da geração futurista foi ciclópico. Acertar o relógio império da literatura
nacional.
Realizada essa etapa, o problema é outro. Ser regional e puro em sua época.
9
O Manifesto é dedicado ao escritor francês Blaise Cendras - que visitara o Brasil
pouco antes, em excursão às cidades históricas de Minas, em companhia dos
modernistas brasileiros“por ocasião da descoberta do Brasil”, ou da redescoberta
6
Carta a Carlos Drummond de Andrade in ANDRADE, s/d.: 71.
7
“Os processos de transculturação na narrativa latino-americana” in RAMA, 2001: 214.
8
SILVA, 2006, Op. Cit. P. 38.
9
TELES, 1983: 326.
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92
modernista. A valorização dos elementos populares da cultura brasileira funciona como
argumento de ruptura com a cultura européia. O “caleidoscópio de intenções e
intuições”
10
que constituía o Manifesto, era “contra o gabinetismo, a prática culta da
vida”; “contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”; e pelo “contrapeso da
originalidade nativa para inutilizar a adesão acadêmica”
11
.
Mário de Andrade, em carta a Tarsila do Amaral, confessava ser “inteiramente
pau-Brasil” e chegava a afirmar que “Avanço mesmo que enquanto o brasileiro não se
abrasileirar, é um selvagem”, traduzindo, em poucas palavras, a desmistificação do
poder letrado dominante no Brasil e a “selvageria” das suas relações com a cultura
local. A ideologia da negação de si mesmo, o conseqüente complexo de inferioridade e
o roubo da identidade brasileira, eram certamente a grande selvageria.
Mário de Andrade vai além:
Os tupis nas suas tabas eram mais civilizados que nós nas nossas casas de Belo
Horizonte e São Paulo. Por uma simples razão: não há civilização. Há civilizações. (...)
Nós só seremos civilizados em relação às civilizações o dia em que criarmos o ideal, a
orientação brasileira. Então passaremos da fase do mimetismo, pra fase de criação. E
então seremos universais, porque nacionais.
12
As numerosas cartas de Mário de Andrade, neste período, afirmam
repetidamente que a entrada do país no concerto das nações cultas deveria resultar do
processo de abrasileiramento da cultura:
Veja bem: abrasileiramento do brasileiro não quer dizer regionalismo nem mesmo
nacionalismo = o Brasil pros brasileiros. Não é isso. Significa só que o Brasil pra ser
civilizado artisticamente, entrar no concerto das nações que hoje em dia dirigem a
Civilização da Terra, tem de concorrer pra esse concerto com a sua parte pessoal, com o
que o singulariza e o individualiza, parte essa única que poderá enriquecer e alargar a
Civilização.
13
O “abrasileiramento da cultura” deveria passar necessariamente pelas tradições
que teriam ficado à margem do cosmopolitismo. Neste ponto há um eco de Lima
Barreto: a compreensão do passado e das tradições seriam fundamentais para a
compreensão do futuro, o folclore se apresentava como uma forma deste conhecimento,
conforme mostrava o personagem Policarpo Quaresma. Mas o seu “triste fim” teria a
10
SILVA, 2007, p. 40.
11
TELES, 1983: 327-330.
12
Carta a Carlos Drummond de Andrade, Op. cit., p. 80.
13
ANDRADE, 1958: 39.
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sua redenção no folclore vivo de “Belazarte” e na perpetuação das lendas na escrita do
narrador de Macunaíma.
Mário de Andrade defendia que o folclore era uma tradição móvel, dotada do
poder de transportar determinados conteúdos inalterados ao longo do tempo e a
identidade nacional constituiria um desses conteúdos. Ela seria um substrato guardado
na alma do povo, na arte do povo. Para o modernista, na formação da identidade
nacional, a arte tem a função de explicitar, de pôr em relevo seus traços definidores, e
precisará, para isto, manter vínculos estreitos com as manifestações artísticas populares.
Neste caso a arte nunca será algo secundário e inútil, mas constituirá um elemento
decisivo na formação de uma entidade coletiva, como defendia o intelectual modernista.
Júlio Diniz, no ensaio “Na clave do moderno”, ressalta que “Mário de Andrade
reconhece a importância da música folclórica e popular como um saber que se
diferencia organicamente da concepção erudita, principalmente em países
colonizados”
14
.
Mário e Oswald, ambos em busca dos elementos definidores da nacionalidade,
acabaram pensando a arte nacional, de “forma oposta”, como ressalta Anderson Pires da
Silva. Mário compreendeu a proposta pau-Brasil “exclusivamente pela questão da
valorização do erro. Essa coincidência de idéias foi o momento em que mais se
aproximou de Oswald, o qual tentava superar”
15
. Por outro lado, Oswald de Andrade
partiria para um projeto mais arriscado: a “antropofagia”, “uma forma de subversão da
história oficial”
16
. A antropofagia representaria, na visão de Oswald, uma lógica cultural
capaz de negar a lógica colonialista/jesuítica, propondo desta forma, outro modelo de
evolução cultural.
A troca saudável entre o local e o universal passa a acontecer plenamente a partir
do modernismo no Brasil, confirmando a máxima de que só o particular se universaliza.
A questão é bem traduzida em carta a Carlos Drummond: “veja bem, eu não ataco nem
nego a erudição e a civilização, como fez o Oswaldo num momento de erro, ao
contrário respeito-as e cá tenho também (comedidamente, muito comedidamente!) as
minhas fichinhas de leitura. Mas vivo tudo.”
17
A fluidez desta troca permitiu uma permanente transferência de influências
enriquecedoras. Essa mútua fecundação foi fundamental para o processo cultural
14
DINIZ, 2000; 45.
15
SILVA, 2006: 47.
16
Idem, p. 49.
17
ANDRADE, s/d.: 69.
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94
modernista e interpretada por Oswald de Andrade no Manifesto antropofágico de
1928
18
:
Tupy, or not tupy that is the question
Contra todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida.
(...)
Queremos a revolução Caraíba. Maior que a Revolução Francesa. A unificação de todas
as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua
pobre declaração dos direitos do homem.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropófago,
o Visconde de Cairu: - É a mentira muitas vezes repetida.
Mas não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos
comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti.
Luiz Carlos Lima afirma que “uma característica do modernismo brasileiro foi a
fome, fome estética e fome de utopia. Oswald e Mário foram dois esfomeados”
19
. A
questão é bem analisada por Silviano Santiago no artigo “O entre-lugar do discurso
latino-americano”
20
, quando o ensaísta discute a destruição sistemática dos conceitos de
unidade e de pureza pelos latino-americanos. A América Latina institui o seu lugar no
mapa da civilização ocidental graças ao movimento de desvio da norma, ativo e
destruidor. Nesta destruição está implícita a abolição da escravização cultural tão
violentamente imposta durante a nossa formação, trazendo em si uma libertação, um
outro olhar, uma nova escuta, uma naturalidade em relação à cultura popular que nos
remete à solidariedade dramaticamente eliminada durante a modernização e tão
reclamada pelos intelectuais adversos da 1º República.
Em virtude do fato de que a América Latina não pode mais fechar suas portas à
invasão estrangeira, não pode tampouco reencontrar sua condição de “paraíso”, de
isolamento e de inocência, constata-se com cinismo que, sem essa contribuição, seu
produto seria mera cópia _ silêncio _, uma cópia muitas vezes fora de moda (...). Sua
geografia deve ser uma geografia de assimilação e de agressividade, de aprendizagem e
de reação, de falsa obediência. (...) Guardando seu lugar na segunda fila, é no entanto
preciso que assinale sua diferença, marque sua presença, uma presença muitas vezes de
vanguarda..
21
18
“Manifesto antropofágico” in TELES, 1983: 353-7.
19
“A utopia antropofágica” in TELES, 1995: 94-5.
20
SANTIAGO, 2000: 16.
21
Idem, p. 16.
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95
A antropofagia é defendida por Oswald de Andrade como um ato de perspicaz
digestão de elementos estrangeiros. A digestão é a atitude inteligente, é a seleção e o
aproveitamento daquilo que alimenta, a negação da passividade. E no elogio à
assimilação, ao canibalismo, os modernistas elogiavam também a mestiçagem e a
riqueza contida na mistura das raças em contraposição ao purismo e à discriminação da
ciência da cultura hegemônica. Oswald de Andrade, no artigo “O sol da meia-noite”,
traduz a assunção do espírito brasileiro e a sua lição para a Alemanha nazista:
Perguntava-me a revista Diretrizes, ultimamente, em enquete, que se devia fazer
da Alemanha depois da guerra? (...) É preciso alfabetizar esse monstrengo. (...) A
Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo
chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E
precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita no melting-point do
futuro. Precisa mulatizar-se.
22
Essa valorização do mestiço traz em si a redenção cultural ao brasileiro, ao negro
e ao índio sofridos e excluídos nos processos de colonização e modernização, em outras
palavras, a já citada “incorporação das classes marginalizadas como parte integrante da
nacionalidade moderna”.
Como afirma Anderson Pires da Silva: “A negação do acadêmico na
configuração da intelectualidade moderna permite uma das suas principais articulações:
a aproximação com o povo”
23
. Em carta a Carlos Drummond de Andrade, Mário de
Andrade escreve sobre a escuta solidária, indiferenciada e feliz, como uma necessidade
interior, um exercício sócio-político, e a vontade do saber:
E então parar [na rua] e puxar conversa com gente chamada baixa e ignorante! Como é
gostoso! Fique sabendo de uma coisa, se não sabe ainda: é com essa gente que se
aprende a sentir e não com a inteligência e a erudição. Eles é que conservam o espírito
religioso da vida e fazem tudo sublimemente num ritual esclarecido de religião.
24
O analfabetismo adquiria um tom de exotismo, não como sinal de atraso, mas de
“cor local”. Silviano Santiago esclarece:
O contrato lingüístico estabelecido pela conversa, antes de ser apenas fator de
comunicação social, é fala comprometida com a vida em sociedade, e mais: com a
22
ANDRADE, 1972: 62.
23
ANDRADE, s/d.: 42.
24
Idem, p. 69.
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96
própria construção de uma sociedade urbana onde artistas eruditos entenderiam melhor
as manifestações populares e a originalidade de suas expressões artísticas. “Puxar
conversa”, expressão típica de Mário, é o modo de o intelectual modernista se
aproximar agressiva e despudoradamente, sensual e fraternalmente do outro, para que
este, ao passar de indivíduo a cidadão e de objeto a sujeito do conhecimento, transforme
o sujeito que puxou a conversa em receptáculo do saber que desconhecia e que, a partir
do congraçamento, passa a também ser seu. Nesse sentido é que se pode compreender
melhor um dos problemas mais instigantes que Mário de Andrade levantou na década
de 1920: “É difícil saber saber”
25
. (grifo meu)
É difícil saber saber livre dos preconceitos, livre dos valores impostos pela
ideologia dominante. É difícil saber valorizar outros conhecimentos que não são os
nossos. O que o outro sabe que nós não sabemos, se não passa pelas esferas do nosso
sistema de legitimações - ciência, escolas, diplomas -, é visto como inferior. O
conhecimento pela experiência da cultura do outro é dessa forma vetado e estamos
sempre reproduzindo a hegemonia de um saber que nos foi um dia imposto pelos nossos
antigos e novos colonizadores. Edward Said em Cultura e imperialismo analisa diversos
discursos europeus que constroem o “Oriente” como um “outro”:
O que há de marcante nesses discursos são as figuras retóricas que encontramos
constantemente em suas descrições (...), os estereótipos (...), as idéias de levar a
civilização a povos bárbaros ou primitivos, a noção incomodamente familiar de que se
fazia necessário o açoitamento, a morte ou um longo castigo quando eles se
comportavam mal ou se rebelavam, porque em geral o que “eles” melhor entendiam era
a força ou a violência; “eles” não eram como nós, e por isso deviam ser dominados
26
.
Na visão de Marilena Chauí
27
, as elites detêm o poder não só porque detêm a
propriedade dos meios de produção e o aparelho do Estado, mas porque têm
competência para detê-los, em outras palavras, porque detêm o saber. Se enquanto
“maior”, o dominante é representado como um senhor, enquanto detentor do saber é
representado como “melhor”.
Ao assumir o quanto é difícil saber saber, os modernistas atentam para a
existência de outro conhecimento, e outra forma para construí-lo e expressá-lo. Com
esta visão desenvolvem um outro sentido para o “erro” na língua portuguesa. Esta
tradicional concepção do “erro” só faz recuperar a idéia de língua européia como
referência para se instituir o parâmetro. Se o erro existe é porque está comparado a um
25
“Atração do mundo – políticas de globalização e de identidade na moderna cultura brasileira” in
SANTIAGO, 2004: 29.
26
SAID, 1999, p. 11-31.
27
CHAUÍ, 1982: 49.
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“acerto”, o que justifica o julgamento. Os modernistas, ao se aplicarem em mostrar
como somos diferentes da Europa e como, por isso, deveríamos ver e exprimir de forma
diferente as coisas, acabam descobrindo os encantos desse “erro” e o vêem como
respostas culturais das classes populares ao domínio do modelo estrangeiro imposto, e
então tal erro passa a ser classificado como “desvio” ou uma deliciosa transgressão. É a
questão que inspira o “Manifesto da poesia pau-brasil”, de Oswald de Andrade, e com a
qual Mário de Andrade está em total sintonia. O manifesto defende a idéia de que a
poesia deve acolher a “contribuição milionária de todos os erros” e canta “a alegria da
ignorância que descobre”. “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do
mundo. Ver com olhos livres”
28
, completa. Estava decretada a liberdade poética e
artística.
Mário de Andrade, de forma mais disciplinada, tentava criar a “Gramatiquinha”
brasileira em que a “consciência nacional” deveria passar por uma reforma lingüística
capaz de propor outra “gramática”. E completa: “Se conseguir que se escreva brasileiro
sem ser por isso caipira, mas sistematizando os erros diários de conversação, idiotismos
brasileiros e sobretudo a psicologia brasileira, já cumpri o meu destino”
29
Oswald de Andrade e Mário de Andrade, aparte as diferentes posturas críticas,
artísticas e pessoais, foram os ícones da criação de uma “consciência nacional” em que
propunham uma nova forma de ação intelectual que valorizava a relação solidária e
interessada pelo “outro”, o brasileiro comum, recusando o poder da cidade letrada num
“país de dores anônimas. Doutores anônimos. Sociedade de náufragos eruditos”
30
, nas
palavras de Oswald de Andrade. Neste sentido era forjada uma nova utopia, com a
possibilidade de uma ampla cultura em que pessoas de mundos diferentes pudessem
influenciar-se reciprocamente de forma genuína. A arte, como a cultura brasileira,
deveria ser “principalmente comum”:
arte não consiste só em criar obras de arte. Arte não se resume a altares raros de
criadores genialíssimos. Não o foi no Egito não o foi na Idade Média, não o foi na Índia
nem no Islã. Talvez não o seja, para maior felicidade nossa, na Idade Novíssima que se
anuncia. A arte é muito mais larga, humana e generosa do que a idolatria dos gênios
incondicionais. Ela é principalmente comum.
31
.
28
“Manifesto da poesia pau-brasil” in TELES, 1983: 327.
29
ANDRADE, 1958: 54.
30
Idem, p. 326.
31
ANDRADE, 1963: 417
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Em Macunaíma, Mário de Andrade, além de registrar lingüística e culturalmente
a vida do nativo brasileiro, a sua característica descontração, o bom humor e a
malandragem do “herói de nossa gente”, afirma a função agregadora da arte, e
principalmente, o valor coletivo da vocação do artista. A saga de Macunaíma foi
acompanhada pelo papagaio que pertencia ao séqüito do imperador. Ele então, acaba
sendo encontrado por um homem a quem relatou toda a história do herói. Este homem é
o autor do livro.
E só o papagaio no silêncio do Uriracoera preservava do esquecimento os casos
e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói.
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou
eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me
acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque
rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de
Macunaíma, herói de nossa gente.
Tem mais não.
32
O encadeamento entre os fatos passados e o presente do leitor que passa a
conhecê-los, e a quem é dirigido o epílogo, são assegurados pelo papagaio e pelo
escritor. O escritor faz com que a história originária, que contém a chave da identidade
nacional, permaneça viva para os homens de hoje. Esta seria a missão do escritor para o
intelectual modernista: a função, reconhecida coletivamente, de apreender e de
transmitir a identidade nacional, preservando a memória e recusando o esquecimento.
O modernismo brasileiro trilhou todo esse caminho dos possíveis, mas o
distanciamento entre os seus intelectuais e o povo brasileiro frustrou a possibilidade da
revolução estética se transformar numa revolução social. O movimento criava o projeto
de “incorporação das classes marginalizadas como parte integrante da nacionalidade”
representado, não pelos marginais, mas pela intelectualidade da burguesia paulista.
Seria necessário que no terreno da educação fosse oferecido também o mesmo processo
de consciência dos possíveis. Só então poderia ser viável uma revolução cultural. Sem
essa possibilidade, a revolução estética modernista restringiu-se ao grupo de artistas da
metrópole paulista – paralelamente aos outros modernismos de outras capitais
brasileiras – e acabou sendo derrotada pelo autoritarismo das elites no golpe de estado
de 1937, com o início da ditadura de Getúlio Vargas. Sem deixar de considerar as
contradições internas, o que nos interessa aqui, sobretudo, é a compreensão do projeto
modernista nas suas articulações com o contexto cultural brasileiro do início do século
32
ANDRADE, 1988: 168.
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99
XX, levando em conta as dinâmicas – sobretudo políticas, sociais e culturais – que
articularam este contexto.
4.1. Ética X Estética
O silêncio seria a resposta desejada pelo imperialismo cultural, ou ainda o eco sonoro
que apenas serve para apertar mais os laços do poder conquistador. Falar, escrever,
significa: falar contra, escrever contra.
Silviano Santiago
Os debates em torno do “abrasileiramento do Brasil” ou da “redescoberta do
Brasil”; a relativa disputa em torno da autoridade intelectual do movimento modernista;
ou mesmo a busca do “contra-discurso da submissão cultural nas rasuras da história
oficial”
33
que marcaram o Modernismo brasileiro, criaram um sólido debate estético e,
por outro lado, a lacuna em relação à questão ética. Este ponto parece pacífico entre os
intelectuais brasileiros da década de 40, como mostra o inquérito de Edgar Cavalheiro
feito a “quarenta figuras da intelectualidade brasileira” para O Estado de São Paulo. O
inquérito de Cavalheiro revelava a primeira recepção crítica do Modernismo, vinte anos
depois da Semana de Arte Moderna. Nas palavras de Anderson Pires da Silva, “dois
pontos são recorrentes nos relatos dos convidados: a sensação de que o Modernismo,
apesar dos talentos revelados, não foi além do esteticismo”
34
. O que é reforçado pelo
depoimento de Jorge de Lima que declara a sua ojeriza diante de “dois vícios atuais”: a
burguesia social e a burguesia literária. Da primeira restava “poucas virtudes”; da
segunda, “nada resta. O esteta é o seu tipo”
35
A década de 40 foi bastante significativa na avaliação do movimento modernista
principalmente no que se refere aos testemunhos deixados por Mário de Andrade na
conferência o “Movimento modernista” proferida no Itamarati em 1942, e Oswald de
Andrade na conferência “O caminho percorrido”, proferida em Belo Horizonte, em
1944. Ambos, distantes 20 anos da revolução da qual foram os grandes protagonistas,
sentiram-se impelidos a deixar os seus testamentos intelectuais. As conferências
acabaram se tornando, também, uma reavaliação confessional dos dois autores,
33
SILVA, 2006: 44.
34
Idem, p. 63.
35
CAVALHEIRO, 1944: 8.
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100
considerando-se que cada um abordava de forma muito pessoal seu caminho percorrido.
Em ambos os casos, a questão ética tornou-se o tema.
Oswald de Andrade, depois de ter gradualmente perdido espaço junto à
intelectualidade brasileira, usou parte do seu discurso para se defender do ostracismo e
de alguns desentendimentos que surgiram com o tempo, marcando a sua fala com
egocentrismo e ressentimento, valorizando seus feitos e sua mágoa.
Se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à Europa dentre duas guerras, foi o Brasil
mesmo. O primitivismo nativo era o nosso único achado de 22 (...). A Antropofagia foi
na primeira década do modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato com nossa
realidade política porque dividiu e orientou no sentido do futuro.
36
O discurso é marcado pela semântica da guerra e do combate, em que o autor
ataca, com seu conhecido deboche, os seus inimigos que surgem contra os seus
“aliados”. A “luta” se trava contra as críticas feitas a ele pelos intelectuais acadêmicos e
pela geração de 45:
Quem havia de publicar essa carta senão a ratazana em molho-pardo que é o Sr.
Cassiano Ricardo? Nesse documento vem à tona o estado de sítio que proclamaram
contra mim os amigos da véspera modernista de 22. Pretendia-se que eu fosse esmagado
pelo silêncio, talvez por ter lançado Mário de Andrade e prefaciado o primeiro livro de
Antônio de Alcântara Machado. (...) Tudo isso teria um vago interesse anedótico se não
viesse elucidar as atitudes políticas em que se bipartiu o grupo oriundo da Semana.
Comigo ficaram Raul Bopp, Oswaldo Costa, Jaime Adour da Câmara, Geraldo Ferraz e
Clóvis Gusmão.
37
Este espírito de guerra, muito ao gosto futurista, reflete a própria atitude
destruidora que dominou o modernismo paulista e que dominava ainda Oswald de
Andrade. Atitude que destoa essencialmente da de Mário de Andrade que, ao mesmo
tempo em que confessava que a sua geração foi apolítica, mostrava que ela abriu
caminho para se pensar o lugar do intelectual na sociedade. Minimizava seus atos e o
próprio movimento do qual se tornou o grande ícone, apresentando as contradições do
afã destruidor modernista: “o movimento modernista foi essencialmente destruidor. Até
destruidor de nós mesmos”
38
.
Numa longa análise do passado com os olhos do presente, Mário confessa que,
na verdade, eles, modernistas de 22, tinham “apenas servido de altifalantes de uma força
universal e nacional muito mais complexa que [eles]”. E não deixa de mostrar um
36
ANDRADE, 1972: 96
37
Idem, idem.
38
Idem, p.240
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101
descompasso entre as atitudes do seu grupo e a realidade brasileira, desmistificando os
heróis do movimento:
Todo esse tempo destruidor do movimento modernista foi pra nós tempo de festa, de
cultivo imoderado do prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo nossa
capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém pode imaginar como nos
divertimos.
39
As palavras de Ernst Bloch confirmam a afirmação: “O modernismo foi esta
consciência dos possíveis, foi esta festa dos possíveis”
40
. Mário de Andrade reconhecia
a indiscutível importância do movimento que, mesmo com todo o cultivo imoderado do
prazer, e distante da “dor” real do país, não foi o fator das mudanças políticas e sociais
posteriores a ele, mas acabou sendo um “preparador” dessas mudanças, e um “criador
de um estado de espírito revolucionário e de um sentimento de arrebatação”. E defende
o papel da sua geração como preparadora do espírito de liberdade que dominou a
geração de 30.
Resume em três princípios básicos, a nova realidade que o modernismo criou: o
direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e
a estabilização de uma consciência artística nacional. O primeiro princípio representa a
liberdade de experimentação conquistada pelos artistas brasileiros que, à exceção dos
românticos, “jogaram sempre colonialmente no certo. Repetindo e afeiçoando estéticas
já consagradas, [eliminando] assim o direito de pesquisa, e conseqüentemente de
atualidade.”
41
.
O espírito destruidor veio da Europa (“é muito mais exato imaginar que o estado
de guerra da Europa tivesse preparado em nós um espírito de guerra, eminentemente
destruidor”) como veio da Europa “o espírito modernista e as suas modas”, mas Mário
defende-se: chamá-los de “antinacionalistas” ou “antitradicionalistas europeizados” era
“falta de sutileza crítica”. E defende São Paulo com exemplos da tradição regionalista
do estado, como a arquitetura e o urbanismo neocolonial nascidos também lá, até
concluir: “desta ética estávamos impregnados”
42
: ética nacionalista.
Paralelamente ao afã destruidor que dominava esses artistas, o nacionalismo
representou a grande construção modernista, e estaria aí a atitude ética: a construção de
39
ANDRADE, s/d-a: 241
40
LIMA, op. cit. p. 95 .
41
ANDRADE, s/d.-a: 243.
42
Idem, p. 235-6.
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102
símbolos, imagens e instrumentos que representam valores – nacionais - e rejeitam
antivalores - estrangeiros. Nas palavras de Alfredo Bosi:
A translação do sentido da esfera ética para a estética é possível, e já deu
resultados notáveis, quando o narrador se põe a explorar uma força catalisadora da vida
em sociedade: os seus valores. À força desse ímã não podem subtrair-se os escritores
enquanto fazem parte do tecido vivo de qualquer cultura.
43
A estética nacionalista junto à pesquisa da “língua brasileira”, que confrontava
os fortes valores nacionais aos fracos antivalores estrangeiros, eliminava o academismo
reinante tanto no tema quanto na linguagem das artes naturalistas dominantes, e ao
mesmo tempo procurava construir uma outra realidade através das artes. No entanto,
Mário não vê no nacionalismo modernista, a “verdadeira consciência da terra”. Este
espírito atualizado que radicava-se na terra brasileira, “não se deu sem alguma patriotice
e muita falsificação” gerando um “conformismo legítimo”, e observa:
o que caracteriza essa radicação na terra, num grupo numeroso de gente modernista, de
uma assustadora adaptabilidade política, palradores de definições nacionais, sociólogos
otimistas, o que os caracteriza é um conformismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado
nos melhores, mas na verdade cheio de uma cínica satisfação. A radicação na terra,
gritada em doutrinas e manifestos, não passava de um conformismo acomodatício.
44
Completa que “a verdadeira consciência da terra levava fatalmente ao não-
conformismo e ao protesto”
45
. O modernismo paulista, no seu afã nacionalista e festivo,
acabou se desviando desta “verdadeira consciência”, quando representou o Brasil de
forma simbólica e otimista. Desmistifica também a construção da “língua brasileira”
que, por falta de critérios científicos adequados, acabou reduzida a manifestações
individuais, aderindo-se também a um certo espírito festivo. Mário conclui: “era ainda o
mesmo caso dos românticos: não se tratava duma superação da lei portuga, mas duma
ignorância dela.”
46
Inserido agora no contexto mundialmente conturbado da 2º guerra, em que o
engajamento tornava-se uma questão ética, Mário de Andrade fazia uma rígida auto-
crítica em relação ao engajamento social e político, ao interesse pelo humano que o seu
movimento não teve. A estética se faz através da arte que é uma expressão do social:
43
BOSI, 2002: 120.
44
ANDRADE, s/d.-a: 243.
45
Idem, p.244
46
Idem, p. 252
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103
Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio de uma expressão
interessada da sociedade, que é a arte. Esta é que tem uma função humana, imediatista e
maior que a criação hedonística da beleza. E dentro dessa funcionalidade humana da
arte é que o assunto adquire um valor primordial e representa uma mensagem
imprescindível. Ora, como atualização da inteligência artística é que o movimento
modernista representou papel contraditório e muitas vezes gravemente precário.
47
O segundo princípio, da “atualização da inteligência artística brasileira”, por
apresentar contradições profundas em relação às necessidades sociais e políticas, parece
ser, segundo Mário, a grande falha do movimento. Diferente da “liberdade de pesquisa
estética” que lida com a forma, a técnica e a beleza na arte, a “atualização da
inteligência” lida com a dimensão mais ampla da arte, ou seja, com a “força interessada
da vida”. E conclui a sua conferência:
Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos esquecemos de mudar: a atitude
interessada diante da vida contemporânea. (...) uma coisa não ajudamos
verdadeiramente, duma coisa não participamos: o amilhoramento político-social do
homem. E esta é a essência mesma da nossa idade”
48
E cobra da arte sua missão ética:
Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar os valores eternos,
amor, amizade, Deus, a natureza. Quero exatamente dizer que numa idade humana
como a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar neles em livros de
ficção e mesmo de técnica, é um abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer
outro (...) De resto, a forma política da sociedade é um valor eterno também.
49
E aponta o movimento de 30 como aquele que deixa de lado o caráter destruidor
e assume uma construção de “uma fase mais calma, mais modesta e quotidiana, mais
proletária”
50
. Naquele momento do ano de 1942, o caráter construtivo da arte tornava-se
uma questão premente. O espírito destruidor das vanguardas parecia já se desgastar e a
arte deveria, mais do que nunca, realizar sua função social e política.
O embate, ao final da conferência, ganha um caráter de conclamação
revolucionária: “Façam ou se recusem a fazer arte, ciências, ofícios. Mas não fiquem
apenas nisto, espiões da vida, camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão
47
Idem, p. 245
48
ANDRADE, 1972: 101.
49
ANDRADE, s/d.-a: 99, 100
50
Idem, p.242
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passar. Marchem com as multidões.”
51
. E declarava: “o meu passado não é mais meu
companheiro. Eu desconfio do meu passado.”
52
. Mário de Andrade – experimentando a
desilusão do artista com a sua arte e o seu mundo-, assistia ao individualismo e ao
formalismo que tomaram conta do cenário artístico moderno, acarretando um desvio do
verdadeiro destino coletivo da arte. Neste ambiente a arte não alcançava o seu poder
agregador e Mário de Andrade foi lançado na solidão do seu mundo privado. As
desilusões com as duas grandes guerras, a recente invasão da França pela Alemanha
nazista e a repressão do governo de Getúlio Vargas fazem com que Mário de Andrade
mergulhe num profundo desamparo existencial até a sua morte, “num suicídio discreto”,
em 1945.
O horrível é que eu me imaginava participante da vida e agora que sinto toda a
minha literatice com um safado abstencionismo, os meus próprios estudos me enojam
como uma covardia sem limite. Só existe uma solução: “Oh sono, vem! Que eu quero
amar a morte - Com o mesmo engano que amei a vida (...)
Um suicídio discreto, mui discreto não fica mal e num xi xabe.
53
E como o rio Tietê em “Meditação sobre o Tietê”
54
, “num banzeiro de água
pesada e oliosa”: - poema escrito pouco antes da sua morte – deixa o testemunho
poético da sua desilusão,
É noite e tudo é noite. O rio tristemente
Murmura num banzeiro de água pesada e oliosa.
(...)
Já nada me amarga mais a recusa da vitória
Do indivíduo, e de me sentir feliz em mim.
Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,
E fui por tuas águas levado,
(...)
Estas águas
São malditas e dão morte, eu descobri! e é por isso
Que elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos homens,
Paspalhonas. Isto não são água que se beba, eu descobri!
O artista se despedia dos amigos, da literatura e do mundo, não tendo “direito
mais de ser melancólico e frágil”, vendo seus versos “tomando as cordas oscilantes da
serpente”. A sua melancolia contrastava com o sangue e a força militante de Oswald de
51
Idem, p. 255
52
Idem, p. 254
53
ANDRADE, 1981: 100.
54
ANDRADE, 1987: 87.
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Andrade que, num tom ardente e revolucionário, revisitava o seu “caminho percorrido”,
em Belo Horizonte, conclamando os intelectuais como os guerreiros da sociedade:
Com a guerra, chegamos aos dias presentes. E os intelectuais respondem a um
inquérito. Se a sua missão é participar dos acontecimentos. Como não? Que será de
nós, que somos as vozes da sociedade em transformação, portanto os seus juízes e
guias, se deixarmos que outras forças influam e embaracem a marcha humana que
começa? O inimigo está vivo e ainda age (...) O papel do intelectual e do artista é tão
importante hoje como o do guerreiro de primeira linha.”
55
(grifo meu).
A tradição da atitude redentorista do intelectual inspirava as palavras de Oswald
de Andrade. O “mosqueteiro intelectual” do século XIX tornava-se agora o guerreiro
revolucionário do século XX. E o desejo de mudar o mundo, falando em nome da
sociedade, reforçava o messianismo que impedia ao mesmo tempo um questionamento
da própria representatividade do artista intelectual num “país de dores anônimas e
doutores anônimos” como “altifalantes de uma força universal e nacional muito mais
complexa que [eles]”. Por fim, Oswald de Andrade conclama os mineiros a se unirem a
seus irmãos paulistas, estendendo o seu chamado a todos os irmãos brasileiros. O
intelectual mineiro deveria abandonar o romantismo da serenata para se dedicar ao
realismo das armas nos moldes da Grande Guerra, como o meio possível em prol da
utopia:
Tomai lugar em vossos tanques, em vossos aviões, intelectuais de Minas !
Trocai a serenata pela metralhadora ! Parti em espírito com os soldados que vão deixar
suas vidas na carnificina que se trava por um mundo melhor. (...) Vinde com vossos
irmãos de São Paulo, com vossos irmãos do Norte e do Sul, fazer com que se cumpram
os destinos do Brasil !
56
Os dois discursos terminam conclamando os intelectuais à revolução. Enquanto
Mário, em 1942, julgava o passado de forma impiedosa, cobrando uma atitude que não
foi possível realizar 20 anos antes, Oswald, imbuído da ideologia marxista, apontava
para um futuro revolucionário.
A primeira literatura modernista, sendo uma literatura de resistência aos valores
artísticos vigentes, era implicitamente resistente aos valores ideológicos que
determinavam esta arte. Mas este fenômeno de resistência se fazia como um processo
inerente à escrita e não como tema dessa escrita. É compreensível que Mário, em 1942,
quando analisava o primeiro modernismo, tivesse percebido que, depois da literatura de
55
ANDRADE, 1972: 252 -5
56
Idem, p. 252
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30, a sua geração tornava-se anacrônica política e socialmente. Os valores que
nortearam a arte desta primeira geração, mais ligados ao fenômeno estético do que ao
fenômeno ético da resistência, parece terem tido um papel “gravemente precário” para o
“amilhoramento político-social do homem”, como “essência mesma da nossa idade”.
Atualmente, revisitar Mário de Andrade e Oswald de Andrade, é também compreender
uma importante transição histórica em que um mundo novo e desconhecido se
configurava, sob uma ordem que tentava insistentemente eliminar as utopias.
4.2. A (o)missão do intelectual ou a (sub)missão do especialista
O escritor não se sente solicitado pela sociedade em que vive; desliga-se dela
com facilidade, não estabelece uma relação profunda com suas necessidades espirituais,
e deixa de se sentir um provedor de sua comunidade.
Ángel Rama
Na atual transição de séculos, assistimos a um profundo questionamento do
papel do intelectual ocidental que nos obriga a uma radical revisão das tradicionais
funções e do prestígio que o caracterizaram nos últimos séculos. Historicamente, o
“intelectual”, termo difundido nas línguas européias, generalizou-se significando a
classe culta. Na cultura francesa, a palavra ganha um sentido especial a partir do famoso
Manifeste des Intellectuels, de 1898, do qual participam importantes escritores como
Zola e Proust, tomando uma posição muito clara na luta pela justiça no caso Dreyfus,
que tentava condenar injustamente o General judeu Dreyfus, envolvendo uma manobra
do exército francês que negava a revisão do processo para a reparação de uma possível
injustiça. Aí surge o grande exemplo da intervenção intelectual num caso cívico e
político. O título J´accuse – eu acuso - traduz a força do manifesto, colocando em risco
a credibilidade das instituições francesas e a própria liberdade do escritor que acusava.
O manifesto confirmava e instituía uma atitude característica da função do intelectual: a
coragem de dizer “não” diante de forças poderosas de um sistema no qual está inserido.
Num sentido mais geral, os intelectuais, tradicionalmente, formam uma categoria
particular, que se distingue pela instrução e pela competência, mais especificamente de
escritores “engajados” e que pode designar artistas, cientistas, estudiosos em geral, que
tenham adquirido, com o exercício da cultura, uma autoridade e uma influência nos
debates públicos. Por essas razões torna-se muito comum a posição de esquerda da
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maior parte dos intelectuais, em acordo com sua atitude crítica e problematizante diante
do status quo, o que os levaria, muito freqüentemente, ao apoio militante de
movimentos revolucionários.
As palavras de Jean Paul Sartre, “um intelectual, para mim, é alguém que é fiel a
um conjunto político e social, mas não deixa de contestá-lo”, revelam a contradição
fundamental que experimenta um intelectual na sua trajetória. As relações de
distanciamento e aproximação com o Poder, e com a elite burguesa – da qual faz parte,
em geral – o sentido de justiça numa sociedade injusta, a função de “representante” e
porta-voz de uma comunidade e a relação com o seu próprio poder, representam alguns
dilemas que exigem do intelectual um constante - e muitas vezes difícil - equilíbrio
entre o seu pensamento e a sua ação.
Esse dilema que caracterizou a experiência intelectual durante o século XX,
torna-se agora mais agudo em tempos de globalização econômica e cultural. O
intelectual parece desorientado dentro de um mundo em profundas e aceleradas
transformações. Muitas vezes, suas ações parecem ter-se desligado da perspectiva
humanista que sempre o caracterizou, para encontrar a legitimidade em valores de
performatividade e suas relações com o mercado.
Durante muito tempo, o político foi a forma como o intelectual intervinha,
direta ou indiretamente, para mudar o mundo. Apostando-se sempre na possibilidade de
mudança, através de um certo messianismo, posicionavam-se como combatentes e
referentes de esperança. Com a desvalorização do político, a desaparição do homem
público, ou pelo menos a dificuldade para lhe dar as formas sociais e culturais possíveis,
tornou-se praticamente impossível para o intelectual contemporâneo manter o seu
estatuto de porta-voz da coletividade e “guardião do bem”.
Na política atual, completamente descaracterizada e distanciada do exercício da
cidadania ou do trabalho pelo bem comum, Milton Santos argumenta que a democracia,
reduzida a uma democracia de mercado e amesquinhada como eleitoralismo ou
consumo de eleições, acaba sendo orientada pelas pesquisas, como um aferidor
quantitativo formador da opinião, levando tudo isso ao empobrecimento do debate de
idéias e à própria morte da política
57
. Sobre essa questão e a crise política do PT no
governo Lula, em 2005, Marilena Chauí, filósofa brasileira conhecida pela participação
57
SANTOS, 2000: 54.
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efetiva no contexto do pensamento e da política no país, sempre dedicada à ampliação
da discussão filosófica para fora do círculo elitista da academia, argumenta:
Pautada pelas teses da pós-modernidade, a sociedade contemporânea
transformou a política numa operação de marketing e o político num produto a ser
consumido pelo eleitor. Neste mundo que hoje entendemos como sociedade do
conhecimento, os intelectuais se transformaram em especialistas com receitas de bem-
estar a serviço da lógica das empresas. Nesse sistema, quem detém algum conhecimento
comanda os demais, e no Brasil isso é especialmente acentuado porque o nosso
intelectual é herdeiro da tradição dos bacharéis, dos poetas de prestígio, uma tradição
autoritária.
58
Dando continuidade à fala de Marilena Chauí, pode-se afirmar que continua
vigorando, em pleno século XX, na consciência do letrado, a crença de que está
desterrado nas fronteiras de uma civilização que se encontra nas metrópoles européias.
O período de modernização, ao incorporar novas pautas de especialização, respondendo
à rígida divisão do trabalho que se traduzia nos diversos planos de estudos das
universidades, fez também com que os letrados não pudessem mais dominar o universo
inteiro das letras, como era a sua tradição. De modo que se delimitaram, com maior
precisão, velhas e novas disciplinas, e surgiram os historiadores, sociólogos,
economistas e literatos.
Desde a Idade Média, a instituição dos intelectuais por excelência sempre foi a
universidade, nascida com a missão de formar o saber da alta cultura exigente e de
desempenhar um papel fundamental na formação de elites. Mas na modernidade, surge
um novo modelo, criado por Humboldt: o modelo berlinense, cujo objetivo não era
apenas formar as pessoas para o saber, mas formá-las na sua humanidade através do
próprio saber. Isto implicava um saber sem condições, profundamente autônomo, o que
significava uma formação para a liberdade do homem, enfim uma universidade como
espaço de liberdade e razão crítica. Esse modelo, que ainda hoje prevalece, apresenta-se
em profunda crise num mundo onde as diversas manifestações de racionalidade
dificilmente se reconhecem, respeitam-se e se articulam. A legitimação do saber se
desligou de uma perspectiva epistemológica e humanista para uma legitimidade
engendrada nas expectativas do mercado. Dentro desta visão, Milton Santos diferencia
“letrados” e “intelectuais”:
58
“O silêncio dos intelectuais” – ciclo de debates no Consulado da França. O Globo , 23/9/2005
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O terrível é que, nesse mundo de hoje, aumenta o número de letrados e diminui
o de intelectuais (como já acontecia no mundo de Lima Barreto). Este tem sido um dos
dramas atuais da sociedade brasileira. Tais letrados, equivocadamente assimilados aos
intelectuais, ou não pensam para encontrar a verdade, ou, encontrando a verdade, não a
dizem. Nesse caso, não se podem encontrar com o futuro, renegando a função principal
da intelectualidade, nas palavras de Milton Santos: o casamento permanente com o
porvir por meio da busca incansável da verdade.
59
Um relatório elaborado por Jean François Lyotard, a pedido do Conselho das
Universidades do Quebec, em 1979, fala de “um espírito de performatividade
generalizada”, ligado ao desenvolvimento pós-moderno das técnicas:
É mais o desejo de enriquecimento que o de saber que impõe inicialmente às
técnicas o imperativo de aperfeiçoar as performances e realizar produtos. A conjugação
orgânica da técnica com o lucro precede a sua junção com a ciência. As técnicas só
tomam importância no saber contemporâneo através da mediação do espírito de
performatividade generalizada. (...) No contexto da deslegitimação, as universidades e
as instituições de ensino superior são a partir de agora solicitadas a formar
competências, e não ideais: tantos médicos, tantos professores desta ou daquela
disciplina, tantos engenheiros, tantos administradores, etc. A transmissão dos saberes já
não parece destinada a formar uma elite capaz de guiar a nação na sua emancipação,
fornece apenas ao sistema os jogadores capazes de assegurar convenientemente o seu
papel nos postos pragmáticos de que as instituições têm necessidade.
60
O próprio conceito de educação parece ter-se desvirtuado por completo do seu
sentido original, adquirindo o novo objetivo - que as instituições de ensino já não se
esforçam mais em ocultar -, de formador de funcionários para o sistema. Milton Santos
explica:
O sistema universitário, no qual deveria prevalecer a diversidade de idéias, tem
sido vítima da doença da globalização, isto é, a tendência a um pensamento único. E a
universidade não tem defesa completa contra essa doença. Nesta fase de globalização,
onde a realização hegemônica e as coisas mais importantes que são feitas são precedidas
por um discurso ideológico, o trabalho de análise e crítica fica muito mais difícil. O
aparelho do estado decidiu adotar, sem críticas, o processo globalitário e busca aplicar
os princípios dessa globalização perversa na universidade.
61
Nas condições atuais em que se processa a vida universitária, só através da
atitude crítica e problematizante, o intelectual poderá evitar o esvaziamento total do seu
lugar. Um passo importante nessa direção é o questionamento da própria posição crítica.
59
Entrevista de Milton Santos feita por Carlos Tibúrcio, 28/06/2001.
60
Apud “Novas configurações da função intelectual” in O papel do intelectual hoje
61
Jornal do Brasil, 27/08/2000 – Entrevista com Milton Santos. Le monde diplomatique.
in www.geocities.com
.
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110
Estamos ainda presos às tradições colonialistas da cidade letrada, imersos num certo
culto à erudição dos pensadores europeus que insistimos em ter como fontes do saber.
Nos estudos contemporâneos, conseguimos admitir, ao lado dos tradicionais mestres
europeus, no máximo alguns pós-colonialistas como fonte dos estudos das obras
nacionais. Esta posição, muito comum nos meios acadêmicos do Brasil, explica a pouca
ou nenhuma atenção dada aos estudos culturais latino-americanos e a forte permanência
da tradição da cidade letrada – ou da cultura hegemônica - no nosso modelo
contemporâneo de saber.
Milton Santos faz uma distinção entre o letrado e o trabalho do intelectual dentro
da universidade:
A universidade é o lugar de intelectuais, o sujeito que dedica todo o tempo a
busca da verdade, e também de letrados. Você pode ser um bom professor e um
pesquisador. Tem espaço para os dois na universidade. Mas, é verdade também que,
embora ela esteja formando intelectuais, ela tem produzido em maior número letrados -
sujeitos que, ao contrário dos intelectuais, são incapazes de ampliar e aplicar o
conhecimento que possuem. O espaço universitário se define por ser o lugar do livre
pensar, de criar idéias e discuti-las. Esse é sentido real da vida universitária. No entanto,
acho que o clima atual não favorece a liberdade de pensar.
Isso se traduz de forma clara no tipo de crítica de arte em que o complexo
sistema de obras é explicado através de um método tradicional e reacionário cuja única
originalidade é o estudo das fontes e influências. A análise de uma obra literária, por
exemplo, entre nós, trazia a até alguns anos atrás, a referência do modelo estrangeiro
como ponto crucial de comparação. Talvez hoje já possamos falar numa nova visão
crítica que se constitui a partir das demandas de outra conformação cultural. Mas não
conseguimos nos desvencilhar completamente da atração irresistível do estudo das
influências. E ainda usamos este critério como uma medição para qualificar uma obra
nacional, como se ainda não tivéssemos o direito e a capacidade de criar padrões
artísticos próprios. A questão colocada por Silviano Santiago ainda parece pertinente:
Poder-se-ia surpreender a originalidade de uma obra de arte se se institui como única
medida as dívidas contraídas pelo artista junto ao modelo que teve necessidade de
importar da metrópole? Ou seria mais interessante assinalar os elementos da obra que
marcam a sua diferença?
62
62
“O entre-lugar do discurso latino-americano” in SANTIAGO, 2000: 17-19.
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111
Deveríamos substituir tal método – “em que a fonte torna-se a estrela inatingível
e pura”, contaminando sem se deixar contaminar -, por um outro em que aqueles
elementos abandonados pela crítica policial serão importantes em benefício de um novo
discurso crítico, que por sua vez negligenciará a caça às fontes e às influências e
estabelecerá como único valor crítico a diferença. Ángel Rama em A cidade das Letras
cita um trecho De la legislación escolar de Motevidéu que demonstra com clareza
alguns equívocos que orientam o ensino latino-americano:
Na realidade existe a união estreita de dois erros e de duas tendências desencontradas, o
erro da ignorância e o erro do saber aparente e presunçoso: a tendência autocrática do
chefe de campanha, e a tendência oligárquica de uma classe que se crê superior. Ambos
se auxiliam mutuamente: o espírito universitário presta às influências de campanha as
formas das sociedades cultas, e as influências de campanha conservam à Universidade
seus privilégios e o governo aparente da sociedade.
63
Esta troca de privilégios caracteriza bem a nossa história definindo as relações
do saber com o poder, ao lado da satisfação imediata dos desejos que tem contribuído
bastante para o afastamento entre o intelectual e os princípios da cidadania ou da
participação coletiva. Dessa forma, contentando-se com uma produção puramente
teórica como um suficiente serviço prestado à sociedade, os intelectuais afastam
quaisquer vínculos de proximidade com o outro, tornando a experiência profissional
marcada pelo apagamento gradativo do afeto e da naturalidade. Esta vivência é
caracterizada por uma atuação em que o intelectual é tanto o ator quanto espectador
desta encenação. E dentro dessa lógica, limitam-se à obediência às instituições que lhes
empregam, aprendendo a fazer o permitido e a excluir o proibido, quando não
transgridem, de forma cautelosa.
A forma como as universidades estão sendo geridas atualmente é burocrática,
amarrada a regras. Em cada departamento, que deveriam gerir as coisas e não as
pessoas, vigoram leis, às quais os professores devem se submeter, e prêmios,
concedidos àqueles que cumprem as regras. A cooptação é feroz. O resultado disso é a
redução da autonomia intelectual do corpo docente e da capacidade de se fazer uma
autocrítica. Os professores estão imobilizados. Cada vez que um colega passa para o
lado da burocracia é um caminho sem volta. Eu costumo dizer que o "buroprofessor" é
pior do que o burocrata simples. Isso porque ele detém o conhecimento. A burocracia
dentro da universidade tem a tendência de dar mais importância aos meios do que aos
fins, de privilegiar o resultado ao invés do conjunto. Isso a universidade não suporta.
Ela é a única instituição que não suporta ser institucionalizada
63
RAMA, 1985: 77.
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112
O Professor Milton Santos defende a idéia de que a institucionalização é
incompatível com a liberdade de pensamento. A universidade, portanto, ao se
“institucionalizar”, perdeu a sua essência de espaço da liberdade de pensamento e razão
crítica. E completa:
Nesse processo as realizações dependem da fabricação de idéias. A
universidade, a fábrica de idéias por excelência, torna-se, então, um lugar estratégico.
Só que para a produção da globalização. Em países onde há cidadania, uma idéia de
democracia social e onde a vida intelectual tem mais densidade, é mais fácil a
universidade resistir a essa tendência. Em lugares onde a idéia de cidadania e a
preocupação com o bem estar das maiorias nunca existiu, como aqui no Brasil, a
universidade se enfraqueceu. A burocracia também contribuiu para enfraquecê-la.
64
O esvaziamento da universidade como espaço do livre debate e da produção de
idéias, isolada da dinâmica do mundo social, acaba constituindo-se numa espécie de
exílio para o intelectual. Este isolamento ainda é intensificado por um outro tipo de
exílio, desta vez imposto pelo sistema midiático. O escritor peruano Manuel Scorza, que
viveu mais da metade da sua vida exilado, fugindo das repressões em seu país, fala
sobre a visibilidade do escritor intelectual hoje, no mundo controlado pela mídia: “Um
escritor hoje em dia, não é necessário fuzilá-lo: ele é executado num programa de
televisão, negando-lhe o acesso à televisão... Ele deixa simplesmente de existir”
65
.
Afastado da mídia, o intelectual é silenciado. A mídia, hoje, como o grande espaço de
legitimação dos discursos, e nas mãos dos grandes grupos econômicos que controlam o
setor, tenderá, logicamente, a dar lugar àqueles que representam esses grupos. Os meios
de comunicação de massa ocupam hoje um lugar tão assustadoramente central que o
que não passa por eles não existe. Assim não é preciso que o poder político promova o
banimento do intelectual por meio da censura, hoje esse banimento está nas mãos da
mídia. E o saber então, fica condenado ao exílio universitário.
Cada vez mais, a produção de um contingente significativo de professores das
áreas de ciências humanas e sociais não chega a ter nenhum tipo de interferência no
rumo dos acontecimentos no país – vazio que tende a ser preenchido pela burocracia
acadêmica e pelo acirramento de uma competitividade estéril.
66
64
Entrevista com Milton Santos, “A universidade burocratizou-se” in Jornal doBrasil, 27/08/2000.
65
Entrevista à Folha de São Paulo, 25/9/ 1983.
66
FIGUEIREDO, 2004: 146.
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113
Mas se pensarmos que o papel do intelectual está em plena transição – como a
própria instituição universitária – poderíamos apontar para um outro lugar desta “fala”,
um outro campo possível de ação política, passível de novos e inesperados contornos,
questionando o sentido comum e limitado que tem sido aplicado atualmente ao
intelectual, pela institucionalidade acadêmica, jornalística, e pela indústria editorial,
como um profissional da pesquisa ou da ensaística, exclusivamente. A necessidade da
conjunção entre teoria e prática, entre sujeito da escrita e sujeito da realidade, deveria
ser uma posição prioritariamente assumida por estes intelectuais, considerando algo que
muitas vezes parece ter sido esquecido: que o conhecimento deve ter como objetivo a
ação ética. Eduardo Prado Coelho, na conferência “Novas configurações da função do
intelectual”, defende a função intelectual como a de um tradutor:
Aquilo que podemos defender como um novo papel do intelectual é
precisamente o de tradutor, no sentido amplo do termo: isto é, aquele que procura
manter espaços em comum através de uma intervenção que estabeleça pontes entre os
diversos códigos por vezes extremamente diferenciados. Essa atividade (...) visa traduzir
as linguagens entre as culturas, entre a filosofia, a arte e a ciência, entre o saber comum
e o pensamento especializado, entre a política e o pensamento, entre as gerações mais
novas e as gerações mais antigas, entre a religião e as posições agnósticas
67
Na literatura brasileira, esta função do tradutor tem marcado os escritores da
série que surgiu nos últimos anos a partir do livro Cidade partida (1994), de Zuenir
Ventura, que marca um lugar de relativa abertura da voz da periferia para o mercado das
grandes editoras. A partir daí, surgem obras como Estação Carandiru (1997), em que o
autor, Dráuzio Varela, faz a sua escuta médica, de traços confessionais, expondo o
trágico mundo oculto na maior prisão do país, por meio da confiança entre quem relata e
quem escuta. Dois anos antes, não mais como escritor tradutor, mas sobretudo como
testemunha, surgiu Paulo Lins e o best seller Cidade de Deus (1995).
A série continua até chegarmos a Cabeça de porco (2005), em que o “tradutor”
dá lugar ao “colaborador” que escreve em parceria com as testemunhas, como é a
autoria coletiva deste livro: Luís Eduardo Soares, antropólogo, divide a narrativa da
obra com as experiências e a pesquisa feita pelos representantes da periferia - o rapper
Mv Bill e o presidente da CUFA (Central Única de Favelas), Celso Athayde - sobre a
tragédia dos jovens brasileiros e seu envolvimento com a violência em todo o território
nacional. Estas experiências têm trazido uma nova e promissora perspectiva para o
67
CORDEIRO, 2004: 21.
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114
intelectual como um sujeito imerso no mundo social, onde argumenta e articula a sua
voz às outras vozes sociais, propondo perguntas e respostas capazes de estimularem a
nossa prática de sujeitos significantes e reflexivos.
Não é mais possível conceber o intelectual que reflete e “indica” o caminho,
mas, pelo contrário, tornou-se claro que hoje o intelectual age organizado, intervindo,
criando. De forma muito diferente do intelectual modernista, hoje, ele não é mais um
vanguardista, não profecia em relação ao futuro, não antecipa a história. As vanguardas
acabaram e o intelectual coloca-se agora na retaguarda, o que pode representar um lugar
bastante produtivo como tradutor das linguagens entre as culturas. Alain Badiou aponta
para o conceito gasto de vanguarda que representou sempre um desejo destruidor desde
o início do século XX e chama atenção para um certo descompasso da arte em relação
ao movimento geral do pensamento e às novas questões filosóficas e políticas: “A única
filosofia adequada às exigências da arte que virá é uma filosofia afirmativa, que
privilegie a invenção construtiva e não a desconstrução. Em suma, uma filosofia que
proponha um novo conceito de verdade”
68
Em outras palavras, o lugar onde faz sentido
a ação intelectual, seria um lugar de confluências entre o conhecimento científico, a
criação literária e artística e o debate de idéias.
Há aqueles que defendem a intervenção no processo de exclusão ao qual a
academia se dedica. Esse processo deslegitima, de maneira geral, as práticas culturais
não reconhecidas cientificamente - não-acadêmicas - como aquelas relacionadas às
experiências sociais envolvidas com a emoção ou com o saber popular afro-brasileiro,
indígena, etc., ou nas palavras de Daniel Mato
69
, deveríamos começar a questionar a
hegemonia dos conceitos de “estudos” e “pesquisa”, como excludentes, para dar a idéia
de “Práticas intelectuais em cultura e poder”, de forma ampla, como práticas extra-
acadêmicas que possam ser valorizadas nos estudos universitários. As tradicionais
pesquisas acadêmicas, ao excluírem certas práticas intelectuais, acabam afetando a
pertinência e legitimidade social da formação e prática universitárias, excluindo do seu
campo de possibilidades valiosas oportunidades de intercâmbio, aprendizagem e
participação em algumas dinâmicas sociais.
Enquanto ressaltam que o intelectual perdeu hoje a sua participação ativa no
debate político, Marilena Chauí se defende: “Mais importante que a revolta, entretanto,
68
Folha de São Paulo, Caderno “Mais”, 29/9/2002.
69
MATO, 2004: 79.
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115
é a virtude, no sentido de se compreender a adversidade para transformá-la em algo
produtivo”. E explica:
Os intelectuais estão em silêncio mas está cheio de ideólogo tagarela ... Muita gente
prefere que o intelectual vocifere sua revolta e todos vão para casa tranqüilos. Mais
importante que a revolta, entretanto, é a virtude, no sentido de se compreender a
adversidade para transformá-la em algo produtivo. Podíamos ficar horas aqui abrindo
um leque enorme de motivos de indignação os mais diversos e até opostos, mas o
intelectual às vezes tem que preferir o silêncio se o quadro ainda não está claro. Sim,
estou indignada, mas confesso que ainda não compreendo bem a natureza da minha
indignação e os fatos em si. Por isso não tenho escrito sobre o assunto nem dado
entrevistas.
70
E continua:
Num mundo em que a democracia só garante as liberdades entre aqueles que
compartilham uma mesma identidade nacional, vejo esquerdas defendendo a lógica de
que o inimigo é o diferente, o estrangeiro, o oposto, o que deve ser exterminado. Esse
quadro de fragmentação envolve todas as esferas, da arte – absorvida pela indústria
cultural – à política, passando pela ciência, cujas conquistas associam-se à competição
econômica e na qual o conhecimento científico vira segredo empresarial. Por isso o
cidadão, ao refletir sobre a atualidade política, enxerga o mal no caráter deste ou
daquele político ou indivíduo, e jamais nas instituições ou em seu funcionamento: Isso
acontece porque, de acordo com os preceitos da pós-modernidade que hoje se festeja
tanto, só o presente, só o imediato, o impulso, interessam. Esta maneira de enxergar a
realidade é contrária à própria noção de cidadania
Silviano Santiago refere-se a este fenômeno atual de esvaziamento das idéias e
dos ideais como o culto à amnésia e à sua filha, a preguiça intelectual
71
. Elas
reaparecem nos momentos em que domina o descaso da elite letrada em relação à
violência e à injustiça reinantes no mundo e costuma terminar quando mãe e filha são
despertadas pela “invasão dos bárbaros”, para retomar o poema do grego Konstantinos
Kaváfis, “Esperando os bárbaros”. O poema fala da desistência, da entrega passiva do
governo aos bárbaros, da total descrença e da imobilidade dos homens causada pela
falta de ideais.
Ampliando o assunto, poderíamos trazer “As invasões bárbaras” (2003), filme
canadense de Denys Arcand, extraordinário como representação da morte das utopias
representada na própria morte do protagonista, Rémy, um professor universitário
esquerdista que defendia o ideário revolucionário dos anos 60 e agora agoniza,
esperando o seu fim. Para tentar minimizar o sofrimento de Rémy, seu filho Sébastien,
70
“O silêncio dos intelectuais”, O Globo, 23/9/2005
71
SANTIAGO, 2004b: 28
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116
um bem sucedido especulador do mercado financeiro, antes ausente, reaparece e arma
uma pequena rede de corrupção em torno do leito de morte do pai, garantindo-lhe o
melhor atendimento no hospital ao “comprar” administradores e enfermeiras. Os antigos
amigos de Rémy surgem, depois de muitos anos distantes, simbolizando a geração
revolucionária, agora como burgueses bem estabelecidos.
As utopias tornam-se apenas sonhos destruídos que os filhos, na hora da morte
dos seus pais, tentam reinventar para lhes dar algum alento. Estas utopias agora são
compradas como são comprados os funcionários do hospital por Sébastien que só crê no
dinheiro e no seu poder de construir um mundo. Os ataques do 11 de setembro são
vistos na TV pelo grupo de amigos e divulgados como as primeiras invasões bárbaras ao
império americano. Mas isto não esgota o sentido do título do filme, tanto o império
como os seus adversários estão sendo tomados de assalto por uma nova geração de
bárbaros: os cínicos.
E junto às utopias morre também a cidade letrada no desmantelamento ético e
político de uma sociedade corrompida pela razão cínica, como argumentou o cineasta
Sílvio Tendler
72
. Dentro deste contexto torna-se urgente a restauração da função crítica
do intelectual que, por ocupação e posição, pode se colocar à distância do cotidiano e do
real e à distância também, o mais possível de si próprio.
Aqui aparece com toda evidência uma antinomia, que não tem solução teórica,
que somente a phrónesis, a sabedoria, pode permitir ultrapassar. O intelectual pode
pretender ser cidadão como os outros, deve também pretender ser, de direito, porta-voz
da universalidade e da objetividade. O intelectual só pode se manter nesse espaço,
reconhecendo os limites do que sua suposta objetividade e universalidade lhe
permitem
73
O próprio poder da classe média entra em questão, como num último suspiro. A
literatura de resistência à ditadura parece ter mostrado a agonia do poder de resistência
cultural dos intelectuais desta classe. A produção artística pós 64, incluindo aí a forte
presença da música popular brasileira, mostrava ainda um intenso fôlego para o
combate, tanto na prática quanto na escrita, mas no entanto já anunciava também o
fracasso, quando tematizava a inutilidade desta luta.
Esta participação da literatura na vida política nunca foi tão contundente como
nos romances pós-64. O golpe militar, que implantou o governo autoritário e a censura,
criou na literatura um verdadeiro projeto de combate: Quarup de Antônio Callado e
72
Jornal do Brasil, Caderno B, 7 /11/ 2003.
73
FIGUEIREDO, 2004: 134.
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117
grande parte dos romances da década de 70 como Bar Don Juan do mesmo autor, Os
novos de Luís Vilela, Em câmara lenta de Renato Tapajós e Quatro-Olhos de Renato
Pompeu falam da luta política, fazendo uma revisão do papel do intelectual que, como
personagem-escritor, oscila entre o ato da escrita e a ação revolucionária. Outros
romances da década seguem a linha, já existente nas obras citadas acima, da crítica à
modernização conservadora dos anos da ditadura, e da “utilidade” da literatura como
instrumento político. Em síntese, nesta época, fazer literatura era fazer política, o que
muitas vezes representava a hesitação: escrever ou agir? Essa hesitação do escritor,
dentro das obras, reflete muito bem o dilema que existia fora delas, revelando,
sobretudo, o fracasso da resistência cultural à ditadura: “Ser intelectual neste país é ser
aquele que esquece, que vai largando pelo caminho a sua carga”, dizia uma personagem
do romance Operação silêncio, de Márcio de Souza
74
A hesitação desses intelectuais
revela uma peculiaridade dos escritores latino-americanos, já apontada por Angel Rama:
esse modo descontínuo, nervoso, inseguro, que é a constante americana com
que os escritores dedicam-se a seus livros, roubando tempo de seus trabalhos
cotidianos.(...) O escritor não se sente solicitado pela sociedade em que vive; desliga-se
dela com facilidade, não estabelece uma relação profunda com suas necessidades
espirituais, e deixa de se sentir um provedor de sua comunidade.
75
Ao constatar a inutilidade da luta, o intelectual da classe média seguiu o caminho
teórico, silenciou-se, como se tivesse perdido uma certa fórmula de combater. O que
fazer agora e como fazer são questões ainda sem respostas. Enquanto isso, sutilmente,
este intelectual seguiu o caminho de incorporação ao sistema através da contestação
teórica bem articulada, especializada, dirigida a um pequeno círculo de pensadores que
não sai das paredes universitárias, satisfazendo vaidades e incorporando-se à “escala de
medição” que este sistema lhe oferece: os artigos ou papers publicados em revistas
especializadas. O sistema o valoriza na medida em que ele produz oposição teórica,
apenas. Assim, um outro universo de idéias se forma na produção acadêmica: um
mundo de brilhantismo e inteligência paira, olímpico, acima das nossas cabeças, não
ameaçando a ordem estabelecida aqui em baixo.
Roland Barthes fala sobre o esforço incessante da modernidade para ultrapassar
a troca:
ela quer resistir ao mercado das obras (excluindo-se da comunicação de massa),
ao signo (pela isenção do sentido, pela loucura), à boa sexualidade (pela perversão, que
74
SOUZA, 1979: 86.
75
RAMA, 2001: 52
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118
subtrai a fruição à finalidade da reprodução). E, no entanto, não há nada a fazer: a troca
recupera tudo, aclimatando o que parece negá-la: apreende o texto, coloca-o no circuito
das despesas inúteis mas legais: ei-lo de novo metido numa economia coletiva (ainda
que fosse apenas psicológica); é a própria inutilidade do texto que é útil
76
Percebemos, hoje, que grande parte da literatura nacional tem se ocupado de um
profundo vazio. As obras que tematizam a classe média, constroem a sua representação
sob a forma da desclassificação social, parecendo não perceber os problemas
dominantes desta classe espremida entre os dois extremos da sociedade, e determinando
um certo vazio temático que muitas vezes leva o escritor a se perguntar o que contar. O
romance moderno traz em si “a falta”, entre outras, a perda da experiência e a crise do
narrador, apontadas por Benjamim, caracterizando a ”crise da narrativa”. “O que
contar?” é uma questão freqüente e central como nos contos de O concerto de João
Gilberto no Rio de Janeiro (1982) de Sergio Sant’Anna, em que o escritor cria
hipóteses, fala do que poderia ter sido mas não foi, um futuro possível que a própria
ficção não conseguiu realizar.
A declarada “crise do narrador” anuncia a perda de um importante mediador, ou
aquele “que sabe dar conselhos”, que imprimia à literatura uma “dimensão utilitária”
77
.
Surgem as histórias com vários focos narrativos, várias visões, várias verdades que
acabam por configurar uma impossibilidade do ato de narrar. Enquanto o narrador
tradicional, como artesão, imprimia a sua marca no relato e transmitia a sua sabedoria,
perpetuando uma tradição passada de pai para filho, os autores pós-modernos parecem
estar tirando da literatura todo o seu poder de transcendência, o que na verdade reflete
um fenômeno muito mais amplo: a sociedade industrial, com a sua visão curta e
imediatista, criou o ritmo alucinante que devora o passado e o próprio presente. E sem
controle sobre o nosso tempo, o futuro passa a ser assustador. Grande parte das
narrativas contemporâneas, focando um curto aqui-agora, revelam as contradições do
nosso mundo sem fôlego para projetos.
Na vida das grandes metrópoles, o individualismo, a perda da solidariedade, e
conseqüentemente, o afastamento do outro, acabam determinando a ausência da “tela” -
o outro - assim, o olhar narrativo, muitas vezes, só consegue captar em espelhos
partidos, fragmentos de imagens. O mundo, para ser visto, dá sinais de exaustão,
empobrecendo os olhares e transformando-se em imagens pasteurizadas. As coisas
parecem não responder mais ao nosso olhar. O espaço é apertado, o olhar é curto e se
76
BARTHES, 1999: 34.
77
BENJAMIM, 1975: 63.
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volta para o que está perto, para a minúcia, renunciando o encantamento do distante.
Talvez não se possa mais falar em paisagem, só em imagens. Esta miopia do olhar, ou
este encurtamento da visão, parece caracterizar bem a experiência da classe média hoje,
como uma classe social que encurtou suas expectativas e definhou econômica e
culturalmente.
É o que percebemos a partir da leitura de Eles eram muitos cavalos de Luís
Ruffato. O próprio título evoca um trecho do “Cancioneiro da Inconfidência” de Cecília
Meireles que serve de epígrafe para o livro: “Eles eram muitos cavalos / mas ninguém
mais sabe os seus nomes, / sua pelagem, sua origem ...”. A narrativa de Ruffato retrata a
São Paulo contemporânea em que o anonimato predomina, padronizando seres humanos
que se confundem com ratos, sirenes, secretárias eletrônicas, lixo e tudo o mais que é
produzido pela grande metrópole. A cidade é a grande personagem que joga na tela
narrativa a sua confusão auditiva e visual. O escritor argentino Ricardo Piglia, em
Formas Breves, diz que “os músicos contemporâneos comprovam e dizem o que
ninguém sabe: que a cultura de massa não é uma cultura da imagem, mas do ruído”. E é
o ruído que está presente em toda a obra de Ruffato. A repetição das palavras acentua a
força do olhar que passa, sem ordenação, como a própria desordem sintática. Esta tela
torna-se um olhar narrativo entorpecido, um “sujeito invisível” que não busca sentidos,
não seleciona, mas é olhado pelo mundo. É narrado tudo o que chega a ele, como um
foco mecânico que estivesse transitando pela cidade.
O que está em questão através dos processos de narração, são processos de
pensamento: a maneira de pensar a relação do leitor com o texto, a relação do texto com
o mundo, a maneira de nos pensarmos dentro da nossa sociedade e de pensar a própria
sociedade. Ruffato, em entrevista à revista Palavra 9, explica que, para ele, o romance e
o conto tal qual eram produzidos nos séculos XIX e XX são formas já esgotadas: “e
estão esgotadas porque cada uma delas funcionava por causa de uma realidade que
tentava entender. Acho que é instrumental mesmo, você precisa de instrumentos
específicos para descrever realidades específicas. E eu acredito que naqueles momentos
em que o romance burguês nasceu, ele precisava ter essa estrutura formal. E hoje você
não consegue mais entender o mundo, o universo ou a realidade em que a gente vive,
tendo a mesma estrutura, porque o mundo mudou. A unidade é toda estilhaçada,
fragmentada e esgarçada. Ela não é mais aquela unidade certinha, compartimentada, em
que as coisas funcionam da maneira como funcionavam”. Lembro aqui o que diz o
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escritor Jean Ricardou, “quem põe em causa a narração, ataca do ponto de vista
ideológico algo absolutamente enorme, e por isso eles [escritores] são tão temidos”
78
A experiência radical desses autores se encontra tanto no nível da escrita quanto
no tema. João Gilberto Noll, em 1996, publica o romance A céu aberto que causa um
profundo incômodo pela ausência de julgamentos éticos e morais, explorando
excessivamente as cenas e sexo e homossexualismo. O autor, em encontro com o
público, no dia 25 de setembro de 2002, no Instituto Moreira Sales, no Rio de Janeiro,
disse que “a literatura tem várias missões” e que a sua missão na literatura é a de “falar
o que não é falado socialmente, falar o que a sociedade cala, o que não é politicamente
correto. Levantar o tapete e mostrar o que está escondido debaixo dele”.
Regina Céli Alves da Silva, analisando a obra deste autor, evoca a figura do
vampiro como uma representação do homem de hoje no mundo das imagens:
Vampiros que se alimentam pelos olhos, que comem imagens, vagando pelo
mundo como que condenados a encontrar um sentido que já não conseguem restaurar.
Dia após dia, noite após noite, sob a luz do sol ou nas sombras, comem o que vêem
pela frente sem jamais ficarem saciados, empanturrados, talvez. Como aqueles seres
de Herzog, ou de Copolla, ou de Jordan, sentem-se sozinhos, mergulhados em
profunda dor que lhes traspassa o corpo e o espírito. Esses narradores, ao lerem os
signos a sua volta, saturam-se com as imagens cotidianas e seus sentidos óbvios. Esse
é o mal que lhes aflige: a eterna repetição.
79
A crise da razão, um impasse que marca a contemporaneidade, revela o fato de
que não conhecemos mais a razão libertária, mas a razão que aprisiona. Esta é uma
questão essencial também nos contos de Sérgio Sant’Anna como a confissão fria e
racional de “Um discurso sobre o método”, ou na atuação do personagem que é um
“monstro” de racionalidade em “O monstro”, revelando o que esta razão produz: frieza,
fragmentação do sujeito, monstros. São homens que sentem falta de um sistema para
explicar a vida. Hoje, o pensamento científico se exauriu, transbordou, e o homem não
tem mais o místico, o mistério, o “não visto”, que o fazia, em outros tempos, um ser em
harmonia.
Sobre a produção literária brasileira contemporânea, Silviano Santiago falou, em
palestra lida na homenagem a José Saramago, em Boston (EUA), sobre o “caráter
anfíbio” da nossa literatura, argumentando que,
78
BARTHES, 1974: 36.
79
SILVA, 2002: 161
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121
por um lado, o trabalho literário busca dramatizar objetivamente a necessidade
de resgate dos miseráveis a fim de elevá-los à condição de seres humanos (já não digo à
condição de cidadãos) e, por outro lado, procura avançar – pela escolha para
personagens da literatura de pessoas do círculo social dos autores – uma análise da
burguesia econômica nos seus desacertos e injustiças seculares. Dessa dupla e antípoda
tônica ideológica – de que os escritores não conseguem desvencilhar-se em virtude do
papel que eles, como vimos, ainda ocupam na esfera pública da sociedade brasileira _
advém o caráter anfíbio da nossa produção artística.
80
E afirma que, em conseqüência desta dupla e antípoda tônica ideológica, surge
um vazio temático que se refere à parca dramatização na literatura dos problemas
dominantes na classe média. A literatura brasileira tem feito caricatura, tem passado por
cima da complexidade existencial, social e econômica da pequena burguesia, afiando o
gume da sua crítica numa configuração socioeconômica antiquada do país, semelhante a
que nos foi legada pelo final do século XIX. Silviano Santiago relaciona este dado à
grande quantidade de livros de literaturas estrangeiras que são traduzidos e consumidos
no Brasil.
Nossos escritores que representam os problemas da classe média escrevem para
o seu próprio nível social, de nenhum modo escrevem para a sociedade inteira do seu
país. Ángel Rama lembra que, na América Latina, de maneira geral, “não há leitores
camponeses; não há, praticamente, leitores operários (...) não há leitores da classe média
baixa”
81
A classe média, que representa o grande público leitor, ocupa também, de
maneira geral, o lugar de consumidora privilegiada da cultura de massa,
compreendendo o mundo através das lentes da mass media. Consome revistas e
publicações profundamente comprometidas com o sistema, co-autoras da “ficção
oficial” e assim a consciência em relação à realidade que a cerca é formada: satisfeitos
leitores constroem opiniões e verdades, tornando-se fáceis presas na selva
mercadológica. Esta “classe mídia”, programada para se esvaziar do seu potencial
crítico e muito mais interessada no seu poder consumidor de símbolos de status,
esmagada economicamente, sem tempo para mais nada além de ganhar dinheiro, sente-
se plenamente satisfeita com as suas responsabilidades de cidadã bem (in)formada pela
mídia: sua participação na transformação social ou na construção de uma sociedade
mais justa perdeu o sentido, já que esta ficção midiática, sem aprofundar os males da
nossa sociedade e suas causas, estigmatiza, alimenta preconceitos, invertendo a situação
80
SANTIAGO, 2004a: 66.
81
RAMA, 2001: 61.
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122
e criando a confusão em que causas e efeitos perdem seus reais contornos, a ponto de
convencer, muitas vezes, que as vítimas são as culpadas na nossa selva social.
Na esteira dessa ideologia dominante, cria-se com facilidade a crença em mitos
que representam o fim do sonho. E somos impelidos a preparar as novas gerações para
sobreviverem na grande selva mercadológica, obrigando-a a conviver com a idéia de
estar no mais complicado dos mundos, e para sobreviver nele, o único caminho é a
adaptação aos seus padrões. Dentro dessa “realidade”, a arte não é útil e a cultura é uma
quimera.
O controle ideológico dos discursos permite apenas a apresentação de uma parte
da realidade. Estar “bem informado” pode também representar estar “bem enganado”.
As manifestações de resistência não interessam ao sistema da informação e do consumo.
No plano artístico e cultural temos notícias detalhadas sobre as recentes produções e
best sellers do mercado, mas a grande mídia não dá informações sobre as manifestações
artísticas e culturais periféricas que estão produzindo, através de um movimento
grandioso – impossível de se desconsiderar - a arte e a cultura mais transformadoras e
ricas temática e esteticamente. A arte das ruas surge como a reação às paredes do
controle institucional, e o local ganha legitimidade em contraposição ao mundo
globalizado.
O hip hop e o grafite, a nova arte das ruas, combativa e crítica, interessará ser
notícia na medida em que for “deglutida” pelo sistema, e possa se tornar, também,
objeto de consumo do grande mercado. No campo da literatura, ao lado das obras que
representam a classe média, surgem publicações que configuram um novo campo -
como a série citada anteriormente sobre a abertura à voz da periferia – que passa das
margens ao centro da produção editorial, criando novos e profundos desafios para a
crítica literária tradicional.
A esterilidade da classe média tem inspirado intelectuais que ao mesmo tempo
assumem sua condição de fracassados na luta pela transformação social, como é o caso
do curta metragem Nada a declarar, de 2004, dirigido por Gustavo Acioli, que trata o
problema de forma exemplarmente atual. O tema se desenvolve através de uma
entrevista a um artista contemporâneo, “representante de uma classe falida e de um
projeto falido” - muito bem interpretado pelo ator Bruce Gomlevsky, que, esvaziado da
utopia, fala da sua esterilidade criadora ou da sua angustiada “crise temática” dentro de
um país dominado pela mediocridade e pela injustiça.
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123
_ Bom, eu queria que você começasse definindo a você mesmo.
_ Eu sou um sonhador. Acima de tudo um sonhador. Todas as vezes que eu fui feliz na
minha vida foi quando eu me permiti sonhar, delirar, inventar as coisas. Sonhar com um
mundo melhor, um país melhor, imaginar como vai ser quando tudo for diferente,
quando eu tiver conseguido realizar os meus sonhos. O sonho te empolga. Você começa
a acreditar naquilo. Te dá uma coragem, uma força. Agora, toda vez que eu tentei me
adequar à realidade, eu fui extremamente infeliz, sabe? Você começa a pensar nas
dificuldades, em tudo que pode dar errado. É a sabedoria dos medíocres, A segurança,
bom senso. Você não pode ousar. Tentar fazer diferente. Quando você depende do
reconhecimento alheio é uma merda. Porque você não pode simplesmente existir. A
sociedade é que tem que dizer que você merece existir e ser feliz. E é isso aí que os
medíocres dominam. Porque eles são a maioria. Então isso aqui virou o império da
mediocridade. Bom é ser igual. Bom é ser ruim. É por isso que rapidamente o sujeito
tem que ser capaz de desenvolver um certo cinismo pra poder sobreviver. O cinismo é
como uma vacina. Na vacina a pessoa é infectada por um vírus inócuo pra desenvolver a
imunidade contra o vírus de verdade. O cinismo é assim. Você fica meio acanalhado pra
poder não adoecer no contato com a canalhice.
Ou o sujeito chega aos trinta anos e já é um amargurado pelo simples fato de ele ser
brasileiro. Porque ele vive numa realidade que é antibiótica, massacrante. (...)
_ E como é que essas questões que te tocam tanto, que te deixam assim tão exaltado,
afetam teu trabalho de artista?
_ Agora eu tô passando por uma crise muito grande, sabe? Mas não é crise de
criatividade não. É crise temática. Eu não tenho nada pra dizer. Porra! Eu sou branco,
homem, heterossexual, eu tenho grana. Eu vou falar do quê? Eu penso muito nisso. Vou
falar de amor? Amor é o caralho! Não, mas aí você vai dizer: “mas você é brasileiro, já
não basta?”. Eu sei. Eu ando pelas ruas. Eu vejo TV porra! Eu vejo uma criança na rua
me pedindo dinheiro, isso me comove, me revolta. Mas aí eu vou falar o quê? “Isso tá
errado, isso não pode, isso me deixa triste”. Eu vou xingar o presidente, Deus e o
mundo. Você ta entendendo? Eu vejo o sofrimento, mas eu particularmente, não sofro.
E eu acho uma... uma pretensão muito grande falar em nome dos pobres, falar em nome
dos outros.
É aquela história dos intelectuais dos anos 60, né? Cinema novo. Falar em nome do
povo ... falar pro povo as coisas que ele tem que saber pra se libertar. É ridículo! Os
pobres, os discriminados, os oprimidos sabem dizer sozinhos, sabem se expressar
sozinhos. Não precisam da arrogância de um cara branco e bem alimentado como eu. E
digo mais: estão achando as suas próprias soluções, independente do Estado, dessa
imprensa calhorda e dos intelectuais.
Então pra quem é representante de uma classe falida como eu, de um projeto falido, o
que me resta é observar o povo. Oh! Olha aqui, olha aqui a contradição oh! O intelectual
brasileiro, os ricos desse país dizem “o povo” quando na verdade estão se referindo só
aos pobres. Ta vendo? Eu acabei de cometer esse ato falho agora. Quer dizer: não existe
um povo brasileiro do qual todos fazem parte. Povo são os pobres. Os ricos são outra
coisa. Então eu não vou falar de fome porque eu não sei o que que é fome. Falar em
nome dos que têm fome? Eu considero um desrespeito, porra! Uma afronta ! “Eu falar
de fome pra quem tem fome” ou “em nome dos que têm fome”. Eu não vou falar de
revolta com a polícia que a polícia não me pára, não me prende porra! Não me bate.
Não me revista. Quando um policial tem que falar comigo ele me chama de “doutô”!
Então o que eu tenho que fazer é ficar na minha e ver se eu acho alguma coisa pra dizer.
Por enquanto eu não achei nada. E quem não tem nada pra dizer ...tem mais é que ficar
calado. Quer um queijo? ...
O silêncio dos intelectuais parece estar cheio de perguntas ainda sem respostas.
Com a perda dos valores universais pelas correntes do pensamento que dominaram o
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124
século XX, o papel do intelectual como aquele que diz a verdade para os que não a
vêem, que fala pelos que ainda não sabem, representando seus interesses, foi posto sob
suspeita pelo questionamento da própria noção de uma consciência representante, como
defende Michel Foucault.
A dificuldade em apresentar-se como testemunha do universal, responsável pelos
valores fundamentais da humanidade, postura que precisavam assumir para cumprir a
sua missão, confronta-se hoje com um clima de relativismo, com ausência dos sujeitos
históricos ou dos tradicionais homens públicos, com dimensão universal.
82
Em conversa com Gilles Deleuze, em 1972, entitulada “Os intelectuais e o
poder”
83
, Michel Foucault já anunciava o aparecimento de um novo intelectual, não
mais como aquele que dizia a verdade aos que ainda não a viam e em nome dos que não
podiam dizê-la, em outras palavras: o intelectual “representante”, detentor da
consciência e da eloqüência, perseguido, “no momento em que as ´coisas` apareciam em
sua ´verdade`”, era a voz daqueles que não “sabiam falar”.
o que os intelectuais descobriram recentemente é que as massas não necessitam deles
para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o
dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse
discurso e esse saber. Poder que não se encontra somente nas instâncias superiores da
censura, mas que penetra muito profundamente, muito sutilmente em toda a trama da
sociedade. Os próprios intelectuais fazem parte desse sistema de poder, a “idéia” de que
eles são agentes da “consciência” e do discurso também faz parte desse sistema. O papel
do intelectual não é mais o de se colocar “um pouco na frente ou um pouco de lado”
para dizer a muda verdade de todos; é antes o de lutar contra as formas de poder
exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do saber,
da “verdade”, da “consciência”, do discurso.
84
Deleuze lembra que Foucault teria sido o primeiro a falar sobre a “indignidade
de falar pelos outros”:
A meu ver, você foi o primeiro a nos ensinar – tanto em seus livros quanto no domínio
da prática – algo fundamental: a indignidade de falar pelos outros. Quero dizer que se
ridicularizava a representação, dizia-se que ela tinha acabado, mas não se tirava a
conseqüência desta conversão “teórica”, isto é, que a teoria exigia que as pessoas a
quem ela concerne falassem por elas próprias.
85
82
FOUCAULT, 1979: 68.
83
Idem, p. 69
84
Idem, p. 71
85
Idem, p. 72
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125
Os espaços conquistados para e pela diferença são poucos e dispersos, na
verdade, cuidadosamente policiados e vigiados, como afirma Stuart Hall: “eu sei que o
que substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e
segregada”
86
. Lutar contra este controle e desmascarar a sua dissimulação é um dever de
todos aqueles capazes de descodificar os discursos hegemônicos.
Talvez este pudesse ser um papel redentor para o artista sem nada a declarar, ou
para os intelectuais silenciosos: lutar contra as formas de poder – manifestos e
subliminares – da sua sociedade, como também, num exercício de solidariedade, de
aceitação das diferenças e principalmente, humildade, posicionar-se na retaguarda
contribuindo com a instrumentalização daqueles que têm muito a declarar.
86
HALL, 2003: 339.
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5
A (re)missão ao contemporâneo
Não se trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na
medida em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das formas de
hegemonia.
Michel Foucault
5.1. A (ad)missão do intelectual
Esse livro eu não leio
Esse livro eu nunca li
Este dicionário eu não conheço
O meu eu já escrevi
Escrevi nas pedras
Com casca de coco
Em parceria com os loucos
Editado pelos vagabundos
Lido pelos maconheiros
E os que caminham na contramão
Meu livro é travesseiro
Das prostitutas
Nas horas de solidão (...)
Erton Moraes
1
A compreensão das relações entre discurso e poder é fundamental para se pensar
o papel do intelectual no mundo contemporâneo. A literatura, que tem perdido seu papel
privilegiado como discurso dos possíveis, por outro lado, tem gerado novas formas de
expressão, híbridas, em combinação com outros gêneros que têm trazido uma abertura
importante como espaço das possibilidades, de acordo com as demandas culturais do
mundo contemporâneo
A idéia muito difundida da “morte da literatura” não deixa de ter implícita a
tentativa de se cercear a liberdade de certos espaços discursivos, no mundo globalizado.
O escritor e crítico argentino Ricardo Piglia, ao comentar a morte da literatura em
Crítica e ficção, explica que essa suposição é uma intenção da sociedade capitalista que
não pode entender um trabalho economicamente “improdutivo” para o sistema; ou,
1
MORAES, 2005: 129.
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127
poderíamos supor também que certos espaços do livre pensar são desprezíveis para um
sistema que vive da repetição, da perpetuação do mesmo. Para o crítico argentino,
muitos letrados perderam as ilusões, tornaram-se sensatos e conformistas e correm o
risco de se tornarem funcionários do sentido comum. Para ele, intelectual-escritor deve
estar num lugar excêntrico, oposto à ordem estabelecida, fora do todo. Propõe numa
entrevista de 1985 mesclar a política com a arte, para além do canônico, frente à
uniformidade liberal.
Neste contexto, Piglia lembra que a função do porta-voz da sociedade,
tradicionalmente do intelectual escritor, que se deslocou para o ideólogo jornalista, o
técnico e especialista, rompeu com a tradição do poeta como porta-voz da tribo. Esta
tradição, que sempre teve a literatura como parte do discurso público na cidade letrada,
deve ser hoje, deslocado, descentrado como uma estratégia discursiva e ideológica para
se enfrentar a crise da literatura no mundo contemporâneo. Esta é a proposta de Ricardo
Piglia
2
, como um complemento às Seis propostas para o próximo milênio de Ítalo
Calvino, que preencheria o espaço em branco da 6ª proposta não escrita pelo autor.
Neste “deslocamento”, Piglia mostra as vantagens de “sair do centro, deixar a
linguagem falar das bordas, das margens, no que vem do outro”. Sugere dessa forma,
uma literatura do futuro, construindo na linguagem, um lugar para que o outro possa
falar: “A literatura seria o lugar no qual sempre é o outro que vem a dizer. J´est l´autre,
como dizia Rimbaud. Sempre há outro aí. Esse outro é o que há de saber ouvir para que
o que se conta não seja mera informação e tenha a forma de experiência”
3
. Neste
sentido o escritor argentino quer discutir as relações entre literatura e política, pensando
ao mesmo tempo o lugar do intelectual escritor na literatura do futuro. E lembra que
“Existe uma verdade da história e essa verdade não é direta, não é algo dado, surge da
luta e da confrontação das relações de poder”
4
. Em outras palavras, o pensador francês
Michel Foucault, ressalta a mesma questão:
o problema político essencial para o intelectual não é criticar os conteúdos ideológicos
que estariam ligados à ciência ou fazer com que sua prática científica seja acompanhada
por uma ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova política da
verdade. O problema não é mudar a “consciência” das pessoas, ou o que elas têm na
cabeça, mas o regime político, econômico, institucional de produção da verdade. Não se
trata de libertar a verdade de todo sistema de poder – o que seria quimérico na medida
em que a própria verdade é poder – mas de desvincular o poder da verdade das
2
PIGLIA, 2001: 11-13.
3
PIGLIA, 2001a: 1-3.
4
Idem, p. 30.
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128
formas de hegemonia (sociais, econômicas, culturais) no interior das quais ela
funciona no momento. Em suma, a questão política não é o erro, a ilusão, a
consciência alienada ou a ideologia; é a própria verdade.
5
(grifo meu)
A intervenção política do intelectual escritor deverá partir, fundamentalmente,
da confrontação com os usos oficiais da linguagem, ou das “ficções oficiais”, nas
palavras de Ricardo Piglia, o que representaria a determinação de desvincular o poder
da verdade das formas hegemônicas.
Andreas Huyssen
6
já apontava para o fato de que no campo cultural e político,
desde 1980, a cultura da modernidade esclarecida tem sido também uma cultura de
imperialismo interno e externo e portanto, enfatiza a importância de movimentos
culturais e políticos ligados a grupos minoritários, através do pensamento de resistência.
A proposta de Huyssen vai ao encontro da idéia pós-estruturalista do descentramento,
apontando para os princípios básicos da diferença sem dominação. Da mesma forma, a
socióloga holandesa Saskia Sassen, em seu livro As cidades na economia mundial,
estuda o fenômeno da “cidade global” e afirma que a classe média e a classe
trabalhadora organizadas não estão mais transformando as forças econômicas e
perderam seu papel “civilizador”, e então aposta no poder das minorias como elementos
potencialmente revolucionários. Estas “minorias” a que se refere Saskia Sassen, em
países centrais, seria, nos países periféricos, a “grande maioria”, ou seja, as populações
de baixa renda. Em sintonia com este pensamento, o geógrafo Milton Santos chama
atenção para a produção das condições necessárias à reemergência das massas,
“apontando para o surgimento de um novo período histórico, a que chamamos de
período demográfico ou popular”
7
.
Neste sentido, busco uma compreensão da produção cultural da periferia, no
Brasil, trazendo ao foco principalmente a chamada “literatura marginal” que têm
conquistado o público leitor brasileiro nos últimos anos e um lugar privilegiado no
mercado editorial, abalando os alicerces canônicos da nossa tradição letrada, e
sobretudo, abrindo a fresta para uma nova “verdade” possível. Esta produção, além do
seu potencial de autofortalecimento cultural e identitário, despertou a escuta para uma
outra voz, deslocando as formas tradicionais, hibridizando, tornando-se também
música, cinema, teatro, dança e outras expressões artísticas, além de criar a sua própria
5
FOUCAULT, 1979: 14.
6
“The fate of difference: pluralism, politics, and the postmodern” in HUYSSEN, 2003.
7
SANTOS, 2004: 143.
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129
mídia – em canais comunitários de rádio e TV - num evento que transborda da periferia,
agregando a ela organizações não governamentais e vários setores da sociedade civil,
trazendo implícita uma outra ideologia de construção e solidariedade. Talvez agora se
possa falar da possibilidade de uma verdadeira cidadania no Brasil, onde o local torna-
se o espaço fundador da sua construção e não um “benefício” concedido pelo poder de
Estado.
A emergência destes discursos marginais e suas vantagens de não estarem no
centro - opressor, normatizador e dominador - permitem a liberdade de outras práticas,
um não compromisso com dogmas, que tem ao mesmo tempo a capacidade de
desmistificar e destruir estereótipos, criando novas formas de expressão da realidade,
como discursos iconoclastas, absolutamente necessários na compreensão das relações
entre linguagem e poder, hoje, pela sua própria capacidade de subverter a “verdade”
estabelecida e se reestabelecer num espaço da “verdade” que brota da experiência. Vale
lembrar aqui o comentário de Gilles Deleuze sobre o método de Michel Foucault que
“sempre se opôs aos métodos de interpretação. Nunca interprete, experimente. [...] e a
experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está sendo feito”
8
As atividades dessas comunidades de periferia são freqüentemente marcadas
pela contradição entre a exigência prática da conformidade, ou seja, a necessidade de
participar direta ou indiretamente da racionalidade dominante, e a insatisfação e o
inconformismo destes homens diante de resultados sempre limitados. Dentro desta
lógica, é criada uma situação de inferiorização permanente que reforça em seus
participantes a noção de escassez e ao mesmo tempo convoca a uma reinterpretação da
própria situação individual, do lugar, do país e do mundo. ATrês, vocalista do grupo de
hip-hop Outraversão, reescreve o diálogo entre o Pai e o Filho, transformando o texto
bíblico num discurso sobre a monopolização da verdade:
_(...) residir num lugar sem conhecê-lo é como morar numa casa sem portas
nem janelas, querendo imaginar sem poder imaginar, sendo tomado pela sombra da
ignorância, sem conhecimento nem noção. (...)
_O que se pode fazer para evitar?
_O homem, através do medo, monopolizou a verdade, para que não fosse
utilizado o livre-arbítrio ...
_Pai, então, a crença também é uma forma de controle.
_Sim, é jogar areia nos olhos que já estão fechados, uma forma de padronizar
vidas, tornar tudo previsível como um jogo marcado, passado, presente e futuro ficam
idênticos, as mesmas cenas podem se repetir por anos, assim forjando a felicidade,
8
FOUCAULT, 1979: 39.
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130
fazem acreditar que tudo deve ser como está, por que simplesmente é assim. Essa é a
rotina nociva que mata a cultura e deixa sem sentido a vida.
9
Esses grupos a margem são localmente enraizados e orgânicos, e mantendo
relações de simbiose com o entorno imediato, criam também relações cotidianas que
desenvolvem espontaneamente e à contracorrente, uma cultura própria, resistente,
constituindo um alicerce para a produção de uma política. Essas comunidades moram
ali onde vivem e evoluem, criando, espontaneamente, uma vida pública, enquanto as
classes mais altas apenas circulam, utilizando os lugares como mais um recurso a seu
serviço, num mundo individualizado, sem compromissos com a coletividade.
O geógrafo Milton Santos fala da necessidade vital da linguagem oficial em criar
estereótipos, como também do seu avesso, que manifesta “o arrebatamento desvairado”
na fruição recalcada sob este estereótipo:
A linguagem encrática (aquela que se produz e se espalha sob a proteção do poder) é
estatutariamente uma linguagem de repetição; todas as instituições oficiais de
linguagem são máquinas repisadoras: a escola, o esporte, a publicidade, a obra de
massa, a canção, a informação, redizem sempre a mesma estrutura, o mesmo sentido,
amiúde as mesmas palavras: o estereótipo é um fato político, a figura principal da
ideologia. Daí a configuração atual das forças: de um lado, um achatamento de massa
(ligado à repetição da linguagem) _ achatamento fora- de- fruição, mas não
forçosamente fora de prazer _ , de outro, um arrebatamento (margina, excêntrico) rumo
ao Novo _ arrebatamento desvairado que pode ir até a destruição do discurso:
tentativa para fazer ressurgir historicamente a fruição recalcada sob o estereótipo.
10
Deve-se lembrar aqui a força da coordenação mundial dos veículos da mídia – a
utilização da imprensa, do cinema, de canções, rádio, pôsteres, slogans, imagens, cores,
monumentos – que propiciou às grandes corporações poderes de comunicação, sedução
e apoio político numa escala jamais vista. Nicolau Sevcenko explica que, desde o início
do século XX, Estados potencializados pelo virtual monopólio das novas tecnologias
comunicacionais “instituíram práticas de política cultural concebidas como autênticas
engenharias de imaginações, emoções, desejos e comportamentos”. E completa:
9
“A.C em um lugar qualquer ...” in Literatura Marginal, Caros Amigos, a Cultura da Periferia –
Ato I
10
SANTOS, 2004: 55.
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Estados baseados nesse arcabouço eletro-eletrônico e em efeitos espetaculares
assumiram diferentes feições, cada qual com suas características peculiares, desde as
nazi-fascistas e stalinistas da Europa, até o populismo autoritário de Roosevelt na
América e as fórmulas híbridas das nações periféricas, como Juan Carlos Perón na
Argentina e Getúlio Vargas no Brasil.
11
Neste espaço mundializado de jogos ideológicos, não é de se estranhar que
realidade e ideologia se confundam na compreensão do homem comum, instituindo-se
uma verdade absoluta, até o ponto de ela se inserir nos próprios objetos e apresentar-se
como coisa. Dessa forma, no mundo globalizado, o discurso acaba antecedendo grande
parte das ações humanas, ou, nas palavras de Milton Santos
12
, estamos diante de um
novo “encantamento do mundo” no qual o discurso e a retórica são o princípio e o fim.
E explica que a onipresença da informação torna-se insidiosa, tem dois rostos: um pelo
qual ela busca instruir, e outro, pelo qual ela busca convencer. Este é o trabalho da
publicidade. O esforço de convencer se torna muito mais presente, na medida em que a
publicidade se transformou em algo que antecipa a produção. Um dado essencial para
essa leitura é a compreensão de que as empresas hegemônicas produzem o consumidor
antes mesmo de produzir os produtos.
Milton Santos conclui que “a nossa grande tarefa hoje, é a elaboração de um
novo discurso, capaz de desmistificar a competitividade e o consumo, e atenuar, senão
desmanchar, a confusão dos espíritos”
13
. Esta tarefa nos permite apreciar o caráter
intelectual de outras práticas sociais, que também incluem análises interpretativas, não
necessariamente orientadas à produção de textos e sim a outras formas de ação que se
expressam com outros componentes reflexivos, como produção de conhecimentos.
Muitas dessas práticas são feitas a partir de trabalhos com diferentes grupos de
população em experiências de autoconhecimento, fortalecimento e organização; outras
são de educação popular; outras se relacionam com os afazeres dos criadores nas
diversas artes. São inúmeros os exemplos de movimentos deste tipo que nascem na
própria comunidade - e acabam se multiplicando em escala nacional - visando à
melhoria da qualidade de vida vetada pelo poder do Estado à grande parte da população.
Como parte fundamental destes processos, destacam-se os “intelectuais
orgânicos”, categoria concebida pelo filósofo italiano Antonio Gramsci, a partir da
necessidade de se desenvolver uma cultura da classe trabalhadora na Itália fascista do
11
SEVCENKO, 2001: 84
12
Op. cit., p. 55
13
Idem, p. 39.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310632/CA
132
início do século XX, relacionada a um novo tipo de educação que pudesse criar
intelectuais na e para a classe operária, contra o autoritarismo e a doutrinação ideológica
no mundo. Suas idéias para um sistema educacional deste tipo correspondem à noção de
pedagogia crítica e educação popular, segundo foram teorizadas e postas em prática,
décadas depois por Paulo Freire, no Brasil, representando um novo horizonte que se
abre dentro da própria academia para a pesquisa de ação participativa. As idéias de
Gramsci também serviram de base para a criação da “Teologia da Libertação”,
importante e controversa escola na teologia da Igreja Católica, desenvolvida depois do
Concílio Vaticano II. Ela fundamenta-se na situação social humana, tendo se
desenvolvido intensamente durante as décadas de 60 e 70, quando se expandiu de forma
especial na América Latina, entre os jesuítas, sendo uma das orientações para o
movimento das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs).
Estes movimentos das CEBs foram de extrema importância na constituição e
organização de forças políticas populares no Brasil, que tiveram nos padres, professores
e intelectuais os líderes e orientadores destas classes oprimidas nas suas lutas contra os
abusos das diversas formas de poder. Neste contexto estes líderes foram de especial
importância enquanto possibilitaram a emergência dos próprios líderes comunitários
como representantes testemunhos, participantes ativos que partilham das mesmas
experiências de vida da comunidade que representam. Estes “intelectuais orgânicos”
serão fundamentais na luta pelo domínio de um espaço social e político:
Uma das mais marcantes características de todo o grupo social que se desenvolve no
sentido do domínio é sua luta pela assimilação e conquista que são tão mais rápidas e
eficazes quanto mais o grupo em questão elaborar simultaneamente seus próprios
intelectuais orgânicos.
14
Estas lutas se vinculam tanto com a longa história dessas populações humanas,
incluindo processos que se iniciam com a conquista, colonização, importação de
escravos africanos, descolonização, colonialismo interno, como com processos mais
recentes: os projetos de modernização, o auge e declínio das esquerdas latino-
americanas, as ditaduras militares, a “guerra fria” em diversos cenários locais, os
avanços dos movimentos das minorias afro-latino-americanas e dos direitos humanos.
Cabe aqui ressaltar os aportes realizados a partir dos diversos movimentos teatrais como
o projeto pioneiro e revolucionário de Augusto Boal, o “Teatro do oprimido”, que
14
GRAMSCI, 1978: 8.
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0310632/CA
133
surgiu em São Paulo nos anos 70, definido pelo autor comoum teatro sem dogmas e
realizado por meio de um conjunto de exercícios que ensinam o ser humano a utilizar
uma ferramenta que ele já possui e não sabe (...) O teatro do oprimido não tem uma
mensagem específica (...) É um método de descoberta do desejo e de ensaio de
realização deste desejo”
15
.
Destacam-se também os movimentos de intelectuais indígenas e afro-latino-
americanos em quase todos os países da América Latina, o movimento feminista, o
movimento dos direitos humanos, diferentes movimentos de expressões musicais - a
nova canção, o rock crítico, o rap, o hip-hop -, e de novos cineastas que hoje trazem à
cena uma política do doméstico, as lutas do homem comum, os contrastes sociais e a
violência de mão dupla (sociedade capitalista x homem). A produção é fertilíssima tanto
em longa-metragens quanto em curtas, com destaque especial para o audiovisual cada
vez mais difundido como expressão da periferia.
Para enfrentar a política global do poder, fazem-se revides locais, contra-
ataques, defesas ativas e às vezes preventivas como forma de enfrentar também, o
totalitarismo representado pela centralização e pela hierarquia. Nesse sentido, a
instauração de ligações laterais, de todo um sistema de redes de bases populares, torna-
se fundamental. É o que sugere Michel Foucault, sobre a ação política:
Em todo caso, para nós, a realidade não passa de modo algum pela política, no
sentido tradicional de competição e distribuição de poder, de instâncias ditas
representativas do tipo P.C ou C.G.T. A realidade é o que está acontecendo
efetivamente em uma fábrica, uma escola, uma caserna, uma prisão, um comissariado.
De tal modo que a ação comporta um tipo de informação de natureza totalmente
diferente das informações dos jornais.
Os novos espaços alternativos de expressão e construção, e conseqüentemente de
poder, têm sido criados, a despeito de todas as adversidades e controle por parte do
poder hegemônico, quando não se submetem a negociações de espaço na mídia de
massa.
De maneira geral, estes espaços ganham legitimidade pela sua própria autonomia
e independência, conquistados a duras penas pela situação de escassez e abandono em
que vivem essas comunidades – o que, muitas vezes, representando a vantagem de “não
estar no centro”, aciona a liberdade e a criatividade “de um povo totalmente
15
Entrevista ao jornal Extra-classe, Ano 4, nº 34, Agosto de 1999 in www.sinpro-rs.org.br.
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marginalizado, mas que sempre insistiu em provar que a imaginação não tem
fronteira”
16
, diz o escritor e rapper Férrez, que desenvolve importantes trabalhos
culturais e literários como a revista Literatura Marginal, editada pela Caros Amigos -
recentemente publicada em livro - em que promove canais de ligação entre escritores
das diversas periferias do Brasil, além de ter publicado três romances (Capão Pecado,
Manual prático do ódio e Ninguém é inocente em São Paulo), como também projetos na
sua comunidade, Capão Redondo, envolvendo incentivo à leitura, criação da biblioteca,
oficinas de criação.
Sem vínculo e apoio da mídia de massa, Férrez elabora o contra-discurso:
Um dia a chama capitalista fez mal a nossos avós, agora faz mal a nossos pais e
no futuro vai fazer a nossos filhos, o ideal é mudar a fita, quebrar o ciclo da mentira dos
“direitos iguais”, da farsa do “todos são livres”, a gente sabe que não é assim (...)
Literatura de rua com sentido, sim, com um princípio, sim, e com um ideal, sim, trazer
melhoras para o povo que constrói esse país mas não recebe a sua parte.
17
Estas práticas apontam para novas possibilidades de atuação política como
também para o seu poder de estimular desenvolvimentos teóricos inovadores. Estes
intelectuais têm realizado importantes aportes conceituais, a partir dos desafios que lhes
colocam os interesses e lutas de suas comunidades e movimentos. A dupla, já conhecida
na mídia brasileira, Celso Athayde e MV Bill, são exemplos do engajamento
contemporâneo, responsáveis pela denúncia mais contundente dos últimos tempos sobre
a tragédia das crianças brasileiras envolvidas com o tráfico de drogas, que gerou os
documentários Soldado do Morro, Falcão, os meninos do tráfico e os livros Cabeça de
porco, de 2005 (em parceria com o antropólogo Luís Eduardo Soares) e Falcão: os
meninos do tráfico de 2006. Celso Athayde, um empreendedor social e cultural nato, é
um dos fundadores da CUFA – Central Única de Favelas – e criador e produtor do
prêmio Hutúz, o maior encontro da cultura hip-hop do país, que reúne artistas de todo o
mundo. MV Bill, um dos mais famosos e respeitados rappers do país, com um
repertório musical marcado pela denúncia social e política, recebeu vários prêmios
como um dos rappers mais politizados dos últimos dez anos, e como destaque do ano
em 2004, ambos concedidos pela Unicef. No Fórum Mundial das Culturas, em
Barcelona, em 2003, recebeu das Nações Unidas um documento que o consagrou, junto
16
Ferréz em “Manifesto de abertura: Literatura Marginal” in Caros Amigos – A cultura da
periferia – Ato I -
17
“Terrorismo literário” in FERREZ, 2005: 10.
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135
a vários outros artistas de vários países, como Cidadão do Mundo. MV Bill continua
morando no lugar onde nasceu, a Cidade de Deus, e fala da experiência do seu trabalho,
Afinal, eu nasci e me criei na Cidade de Deus, lugar conhecido por muitos
como um grande campo de concentração. Foi lá que tive que aprender a me defender e
buscar minha sobrevivência todos os dias. Vi, naquele lugar, muitas situações
conflitantes, mas nada que se possa comparar ao que vimos nessa pesquisa, nada.
Nenhum livro substituirá o sentimento que experimentamos durante esse tempo: fomos
felizes, fomos infelizes, mas sobretudo fiquei descrente, infelizmente. Ver esses jovens
alucinados se autodestruindo é como ver uma bomba ser detonada e começar a contar
para então juntar os cacos. (...) Todas as vezes que os homens do asfalto falam sobre
esses jovens, falam como se eles tivessem nascido predestinados à marginalidade.
Nossa idéia é outra; é permitir que as pessoas façam seus juízos do que eles são, mas
dessa vez baseados numa outra ótica, na visão de alguém que se parece com eles, não
nas palavras de quem os odeia ou tem pena desses jovens.
18
Os desafios relacionados ao compromisso, muitas vezes emocional, e em outras,
prático, colocados pelas experiências sociais, difíceis de se definir em poucas palavras,
são esclarecidos por Michel Foucault:
É possível que as lutas que se realizam agora e as teorias locais, regionais,
descontínuas, que estão se elaborando nestas lutas e fazem parte delas, seja, o começo
de uma descoberta do modo como se exerce o poder. (...) Mas se é contra o poder que se
luta, então todos aqueles sobre quem o poder se exerce como abuso, todos aqueles que o
reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se encontram e a partir de
sua atividade (ou passividade) própria.
19
Hoje a luta parte de outro lugar: não são mais as classes operárias, somente, as
exploradas e economicamente excluídas que lutam “pelo poder”. A luta é difusa e não
tem mais a unidade da luta operária. Há os que lutam para serem apenas incluídos no
poder existente e há os que querem ser reconhecidos como um outro poder. Os
primeiros, no desejo de “se incluir”, não são capazes de enxergar a verdadeira origem
dos seus males, nem se enxergar numa coletividade, mas desejam apenas tornar-se
consumidores-cidadãos, padronizados e respeitados por serem “iguais”, como os “mais
de duzentos quadrilheiros caprichosamente acompanhando a moda”
20
encarnando os
heróis da televisão no romance Cidade de Deus, ou como concluiu MV Bill diante da
18
ATHAYDE, 2005: 275.
19
Op. Cit. P. 76-7
20
LINS, 1997: 472.
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criança traficante, “os olhos dele deixavam claro que ricos e pobres querem as mesmas
coisas. Aí está o problema”.
21
Marilena Chauí completa:
Nesta perspectiva, a cultura do povo, em lugar de ser a recusa do que se passa
na esfera das elites, seria, antes, um instrumento para dominação por parte daqueles que
detêm o poder e que nele são mantidos na qualidade de elites justamente por serem
tomados como paradigma do “melhor”, a que todos aspiram.
22
E há os que já compreendem a complexidade do sistema, as máscaras do seu
poder e querem ser reconhecidos como diferentes, como o outro poder, como argumenta
Férrez: “Afinal, um dia o povo ia ter que se valorizar, então é nóis nas linhas da cultura,
chegando devagar, sem querer agredir ninguém, mas também não aceitando desaforo
nem compactuando com hipocrisia alheia”.
23
Preto Ghóez, maranhense, escritor e
rapper do Clãnordestino, vai mais longe:
No passado tivemos gênios, senhores da metáfora que faziam da contestação, da
denúncia, sujeito oculto da frase e nos sentimos íntimos, cúmplices de buscar uma
mudança, e buscamos, não? Hoje os escroques pululam na cultura, eles não querem que
nós saibamos que cultura é poder! Eles nos querem onde estamos, nos querem brutos e
tristes, nos darão armas e drogas e escreverão novos roteiros e farão novos filmes sobre
nossas vidas em nosso habitat (...) eles nos querem assim como melhor ator
coadjuvante, não nos querem escrevendo, dirigindo, atuando, não nos querem
protagonistas de nossas próprias vidas.
24
Mas Férrez mostra que hoje a representação é outra: “Não somos o retrato, pelo
contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto”. Capão Pecado,
primeiro romance escrito por Férrez, publicado em 2002, narra o cotidiano dos
moradores do bairro da periferia de São Paulo, Capão Redondo, em que a linguagem é
naturalizada de acordo com o falar do gueto:
Tá certo, ce vê, o Alaor tá na correria [trabalho], o Panetone e o Amaral também
tão dando o mó trampo [trabalho], mas o resto, mano, na moral, tão vacilando. Eles
tinham que ouvir as idéias do Thaíde38, tá ligado? “Sou pobre, mas não sou
fracassado”. Falta algo pra esses mano, sei lá, preparo; eles têm que se ligá (...) na
moral, cara, esses aí vão ser engolidos pelo sistema
21
ATHAYDE, 2005: 56.
22
CHAUÍ, 1982: 40
23
“Terrorismo literário” in FERREZ, 2005: 13.
24
“Cultura é poder” in FERREZ, 2005: 22.
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Para reforçar esta exposição, Férrez acrescentou à narrativa dois encartes de
fotos que mostram vistas aéreas do Capão Redondo, moradores caminhando pelas ruas
do bairro, retratos da miséria, enfim um relato visual que ajuda a escrita a compor a
realidade do lugar, onde ocorrem também os fatos ficcionais, num desejo de mostrar
que “este é o nosso mundo, estes somos nós”.
A linguagem específica do mundo dos “mano” traduz a rebeldia e a
desobediência às normas ortográficas, na determinação de transpor a fala para a
linguagem escrita como um desejo de construir um discurso que reivindica
autenticidade testemunhal. Na linguagem “do gueto” está a desobediência, que passa
também a significar a libertação de uma prática de escrita que estaria, por sua própria
representatividade estética, vinculada a ideais e valores da sociedade burguesa letrada.
Férrez explica “A própria linguagem margeando e não os da margem, marginalizando e
não os marginalizados, rocha na areia do capitalismo. O sonho não é seguir o padrão,
não é ser o empregado que virou o patrão”.
25
Além disso, esta linguagem requer também um esforço de compreensão do leitor
que, não participante deste mundo, deve agora se esforçar para conhecê-lo. A periferia
deve ser visível como ela é, e quem não participa da sua realidade, deve respeitar os
seus códigos, para compreendê-la. Língua é identidade, e estes discursos querem deixar
claro que “eles” são muito diferentes de “nós”. Argumentam: “temos muito a proteger e
a mostrar, temos nosso próprio vocabulário que é muito precioso, principalmente num
país colonizado até os dias de hoje, onde a maioria não tem representatividade cultural e
social”.
26
Os seus relatos têm endereço e objetivos certos: são histórias da periferia, muitas
vezes com um intuito claramente pedagógico, para a periferia. Nas palavras de Férrez,
“vamos dar uma explicada: a revista [Literatura Marginal] é feita para e por pessoas que
foram postas à margem da sociedade”
27
. A pedagogia destes discursos mostra a
preocupação constante em transmitir aos jovens uma mensagem para que não caiam na
vida do crime, lembrando que este caminho só leva à morte trágica, reforçando o ideal
de luta contra um sistema opressor e injusto e principalmente a possibilidade de uma
construção coletiva – marcada pelo plural constante nos discursos, numa solidariedade
25
“Terrorismo literário” in FERREZ, 2005: 9
26
Idem , p. 11
27
“Manifesto de Abertura” in Caros Amigos – Literatura Marginal, Ato I
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que alenta, baseada na cumplicidade e identificação com os “manos” mais velhos,
escritores e/ou famosos cantores do hip hop.
Os gêneros se misturam nas publicações, crônicas contos e poesia trazem uma
constante resistência à opressão, à injustiça, muitas vezes marcados pelo tom de revolta
que freqüentemente alcança um declarado sectarismo, como algo inevitável, em que os
“de cá” precisam combater os “de lá”, como um princípio coletivo que às vezes assume
o discurso direto àquele que está do lado “de lá”: “Sua negação não é novidade, você
não entendeu? Não é o quanto vendemos, é o que falamos, não é por onde, nem como
publicamos, é que sobrevivemos” e finaliza: “Boa leitura, e muita paz se você merecê-
la, senão, bem-vindo à guerra”.
28
Férrez explica:
Cansei de ouvir: _ Mas o que cês tão fazendo é separar a literatura, a do gueto e
a do centro. E nunca cansarei e responder: _ O barato já tá separado há muito tempo, só
que do lado de cá ninguém deu um gritão (...), foi feito todo um mundo de teses e de
estudos do lado de lá, e do cá mal terminamos o ensino dito básico. (...) Neste país você
tem que sofrer boicote de tudo que é lado, mas nunca pode fazer o seu, o seu é errado,
por mais que você tenha sofrido você tem que fazer por todos, principalmente pela
classe que quase conseguiu te matar, fazendo você nascer na favela e te dando a miséria
como herança.
A classe letrada manda um recado para Férrez, como uma repreensão, na irônica
forma clássica do soneto decassílabo, Esculachado, do poeta Glauco Mattoso:
Esculachado
29
De Glauco Mattoso
(A Ferrez)
Não “seje” “inguinorante” nunca foi
“Ansim” que algum plural se “pronunceia”!
“Nós vai” não é sintaxe que se leia!
Talvez “a gente vamos” melhor soe...
Você só faz poema que destoe!
Seu tênis pega mal calçar sem meia!
Falar de boca cheia é coisa feia!
Não coma em casa alheia feito um boi!
28
Idem.
29
In www.ferrez.com.br
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Silêncio ! Tenha modos ! Mais respeito!
Se enxergue! Dobre a língua, “Teje” preso!
“Percure” seus “dereitos”! Dói? Bem feito!
E o “mano” escuta, atônito e indefeso,
Razões para, se autor, não ser aceito,
E, como cidadão, sofrer desprezo.
Em contrapartida, Férrez responde, com a mesma ironia - a partir das palavras
do escritor João Antônio no livro Abraçado ao meu rancor:
E como já é de praxe, aqui vai um recado pro sistema:
Evitem certos tipos, certos ambientes. Evitem a fala do povo, que vocês nem
sabem onde mora e como. Não reportem povo, que ele fede. Não contem ruas, vidas,
paixões violentas. Não se metam com o restolho que vocês não vêem humanidade ali.
Que vocês não percebem vida ali. E vocês não sabem escrever essas coisas. Não podem
sentir certas emoções, como o ouvido humano não percebe ultra-sons.
30
Esta admissão do intelectual marginal traz nas pautas do seu discurso também o
preço da sua inserção no mundo letrado. Lembrando as palavras de Stuart Hall: “o que
substitui a invisibilidade é uma espécie de visibilidade cuidadosamente regulada e
segregada”.
31
, a formação do marginal como escritor e sua integração no mundo letrado
têm aflorado preconceitos e ódios, sobretudo relacionados ao poder da “alta cultura”
que tem a habilidade da escrita e a erudição como poder diferenciador. Esta
“visibilidade cuidadosamente regulada” pode se tornar um veto rigoroso, como uma
sentença de condenação ao estigma e à ignorância. As palavras do antropólogo Luis
Eduardo Soares, co-autor de Cabeça de Porco, traduzem bem a questão:
Aprendi na própria pele que a gente vê o que a cultura e a sociedade
permitem que se veja. (...). Freud nos ensinou que censuramos algumas verdades
– excluindo-as da consciência – porque são dolorosas demais ou excessivamente
subversivas para a ordem que instauramos dentro de nós mesmos.
32
Talvez o caso mais contundente e emblemático da condenação ao estigma da
marginalidade e da ignorância seja o de Márcio Amaro de Oliveira, o Marcinho VP,
30
“Terrorismo literário”, FERREZ, 2005: 14.
31
HALL, 2003: 339
32
ATHAYDE, 2005: 164.
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conhecido traficante de drogas e protagonista da biografia escrita pelo jornalista Caco
Barcellos, Abusado, o Dono do Morro Dona Marta, publicado em 2003. Em 1999,
Marcinho, como era chamado, havia sido protagonista do documentário Notícias de
uma guerra particular, realizado pelo cineasta João Moreira Salles, sobre o círculo
vicioso da violência nas favelas do Rio de Janeiro, onde policiais e traficantes
fortemente armados se enfrentavam e morriam, diariamente, sem nenhuma perspectiva
de solução. Márcio fugia de qualquer estereótipo, além de criminoso e violento, era
capaz de gestos generosos, de idéias virtuosas, de atos de grandeza e renúncia. Por mais
paradoxal que possa parecer, Marcinho era um “criminoso” profundamente preocupado
com a perpetuação do trágico destino dos jovens envolvidos com o tráfico e sonhava
com um Brasil mais justo para as gerações futuras. Nas palavras de Luís Eduardo
Soares,
A complexidade de sua figura lança desafios perturbadores para a consciência
moral e política dos observadores atentos (...) Nenhum juízo unilateral é adequado, o
que subverte dogmatismos e concepções rígidas. Esse tipo de personagem devolve à
sociedade as qualificações, imagens e valores que ela projeta sobre o outro, isto é, sobre
o objeto sacrificial destinado a concentrar e expiar o mal – ajudando-nos a exorcizar
nossas culpas ou a conviver com nossa má consciência.
33
Luís Eduardo Soares lembra “a dimensão do patrimônio moral que estava em
jogo” neste caso. E completa: “Márcio situa-se perigosamente perto de nós; pior ainda:
ao deslocar-se e problematizar a geografia moral, o personagem que Márcio representa,
redesenha fronteiras e nos torna próximos do ‘outro lado’, do ‘outro mundo’. A situação
tornou-se ainda mais polêmica quando Marcinho, já numa relação de proximidade
intelectual e de amizade com João, e concluindo que, se tivesse condições de estudar e
crescer num ambiente propício que valorizasse as suas inquietações, poderia ter sido um
líder da juventude, pede então livros a João que lhe deu clássicos da literatura brasileira
e do pensamento social brasileiro, como também autores estrangeiros. João propôs a
Marcinho que, se deixasse a vida do crime, lhe daria uma bolsa que lhe permitiria viver.
Márcio sonhava escrever uma autobiografia, aceitou a proposta de João, abandonou o
tráfico e fugiu do país para escrever sua vida e recomeçá-la. Voltou para o Brasil,
depois de muita agitação na mídia em torno do caso do “traficante foragido”, e acabou
sendo capturado em uma cabana abandonada, numa favela carioca, como se tivesse
desistido de recomeçar e fosse “empurrado” para o estigma do passado, numa entrega
33
Idem, p. 104 e 289.
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que o colocava num não-lugar, já que não era o mesmo e ainda não era outro na
sociedade em que vivemos.
Marcinho, na cadeia, voltou às leituras. Comentava Machado de Assis, Lima
Barreto, Sérgio Buarque de Holanda com desenvoltura e esteve presente ao lançamento
da sua biografia - escrita por Caco Barcellos - pressentindo, como afirmaram parentes e
amigos, que a sua “importância”, como personagem de um livro, “ultrapassando
fronteiras simbólicas que o mundo cerrado da comunidade encarcerada erguia”
34
,
poderia representar um grande perigo para a sua vida. Em 2003, Marcinho foi
encontrado morto numa caçamba de lixo da penitenciária em que cumpria pena. Seus
livros estavam jogados sobre o seu corpo e sobre eles um cartaz: “Nunca mais vai ler”.
A tragédia de Marcinho está inscrita na sua própria sentença condenatória, que
representa da forma mais cruel, o veto à mudança, ao recomeço, e na esteira dessa
condenação, o veto ao poder letrado. E ainda que tivesse sido assassinado pela
brutalidade da ignorância, foi condenado por outros condenados que não “permitiram
que ele transgredisse a única lei inviolável: não serás outro (para que eu permaneça o
que sou)”
35
ou, “porque eu também não posso ser outro”. A polícia, como a guardiã da
ignorância, usa sua autoridade para vetar aos outros criminosos um poder que ela
mesma não tem. Luís Eduardo Soares conclui que “ler custou-lhe a vida, talvez porque
livros simbolizem e realizem, neste universo infernal de reificações estendidas, a
mudança insuportável”.
36
E completa: “A carreira do crime é uma parceria entre a
disposição de alguém para transgredir as normas da sociedade e a disposição da
sociedade para não permitir que essa pessoa desista.
37
O espaço da prisão é aquele onde o poder se manifesta nas suas “dimensões mais
excessivas”, como explica Michel Foucault:
A prisão é o único lugar onde o poder se manifesta em estado puro em suas dimensões
mais excessivas e se justificar como poder moral. ´Tenho razão em punir pois vocês
sabem que é desonesto roubar, matar ...` (...) O que é fascinante nas prisões é que o
poder não se esconde, não se mascara cinicamente, se mostra como tirania levada aos
mais ínfimos detalhes, e, ao mesmo tempo é puro, é inteiramente “justificado”, visto
que pode inteiramente se formular no interior de uma moral que serve de adorno a seu
exercício: sua tirania brutal aparece então como dominação serena do Bem sobre o Mal,
da ordem sobre a desordem.
38
34
ATHAYDE, 2005: 107.
35
Idem.
36
Idem, p. 108.
37
Idem, p. 218.
38
FOUCAULT, 1979: 36.
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O domínio da letra garante a entrada a um campo infinito de possibilidades e
combinações imprevisíveis, em que a racionalidade e o conhecimento do mundo
conduzem o homem por um caminho que ele, somente ele, vai trilhar, de acordo com a
sua própria experiência, amalgamando a sua compreensão do mundo e criando,
naqueles que não alcançaram “outros mundos”, o medo do desconhecido. O veto à
transformação, a ser outro melhor, está implícito na própria cultura que precisa do
estereótipo, do estabelecido, da repetição, para se manter viva. Como dizia Paulo
Honório, o violento e dominador coronel, protagonista do romance São Bernardo de
Graciliano Ramos - que conseguia conquistar o mundo das coisas, mas arruinou a sua
vida quando percebeu que não dominava o mundo das palavras, onde sua mulher
transitava naturalmente:
Não gosto de mulheres sabidas. Chamam-se intelectuais e são horríveis (...) Usar aquele
vocabulário, vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela tentava empregar a
minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram
para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa
39
.
Corroborando o estigma de Marcinho, temos o exemplo da história de Luís
Alberto Mendes, outro prisioneiro que viveu a experiência profunda da leitura, abrindo
a possibilidade de construir, para ele também, “uma história mais bonita”. Como
Marcinho, Luís Mendes teve um amigo que lhe apresentou este novo mundo dos livros,
mas de forma diferente daquele, pôde efetivamente viver sua nova história de vida e
conseguir escrever a sua autobiografia na prisão, intitulada Memórias de um
sobrevivente:
As histórias dos livros que contava eram extremamente fascinantes e belas. Ensinou-me
a valorizar livros, a querer conhecê-los todos. Agora ansiava sair do castigo para
começar a ler aquelas histórias de que ele falava. Era poeta, e eu também quis ser poeta.
Prometeu ensinar-me. (...) Havia tanto assunto... conversei mais nesses três meses do
que em quase toda a minha vida. (...) Olhei e namorei livro por livro, caderno por
caderno. Aquilo era importante demais para mim. Eu iria construir uma nova história de
minha vida, doravante. Uma história mais bonita.
40
39
RAMOS, 1994: 136 e 156.
40
MENDES, 2001:. 453.
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Entretanto o ambiente prisional mostrava mais uma vez não ser apenas um cerco
físico, mas algo muito mais profundo e poderoso, como a prisão moral na condenação
ao mesmo. Portanto a cultura, por representar uma saída, estaria definitivamente
fechada:
Passei o dia a gemer e a colar livros estourados. A cultura, na prisão, era sempre
a primeira a sofrer agressões. Os livros do preso sempre foram tratados com o maior
desrespeito. Durante o período que passei na penitenciária, briguei e discuti com os
guardas do Choque e da Inspeção (que vistoriavam as celas) centenas de vezes por conta
do fato de eu sempre possuir muitos livros e eles quererem tomá-los de mim. Eu amava
aqueles livros e sua quase destruição doía-me mais do que as cacetadas que tomara.
Vivemos num mundo regido pelos discursos e o poder da palavra pode ser
também o poder da defesa. “O monstro”, conto de Sérgio Sant´Anna, é o discurso de
outro criminoso, que traz a qualidade de reverter a questão do estigma, apontando para
resultados surpreendentes, e no entanto verossímeis. A narrativa é uma entrevista,
veiculada pela revista Flagrante, de um assassino e estuprador confesso que nada tem a
ver com os padrões de marginalidade que marcam este tipo de criminoso: Antenor, o
protagonista, é um professor de filosofia, culto, que vive confortavelmente na zona sul
do Rio de Janeiro e namora uma mulher rica e atraente que o acompanha na experiência
limite do assassinato de Frederica, uma jovem de vinte anos, bonita e com uma grave
deficiência visual. A vítima, depois de um encontro casual com a namorada de Antenor,
Marieta, foi atraída por ela até seu apartamento, e morre, depois de ser drogada com
éter, álcool e cocaína pelos seus assassinos. O discurso assume um claro “cinismo” ao
racionalizar e “estetizar” o relato do horror, parecendo ser mais uma “invasão bárbara”
da racionalidade.
A narrativa-confissão torna-se uma habilíssima defesa em que paradoxalmente o
assassino assume a sua integral culpa pelo crime, e através da palavra acaba construindo
um outro nível de argumentação. O entrevistador comenta a surpreendente atitude do
entrevistado e os efeitos da sua retórica sobre os ouvintes:
No decorrer do processo até o seu desfecho, a extrema lucidez e articulação
verbal com que Antenor narrou os fatos e assumiu suas responsabilidades dentro deles
surpreendeu os policiais e juízes que o interrogaram e a todos que estiveram presentes
no julgamento.
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O conto é a própria voz do protagonista que vai abrindo o seu caminho narrativo
iluminado pela lógica e pela razão, diluindo o sentimento de horror que deveria ser
provocado pelo crime na retórica bem elaborada através da qual Antenor conquista a
autoridade de falar a “verdade”. O ato bárbaro se dilui na racionalidade, na frieza e na
própria “assepsia” do crime, não houve derramamento de sangue, não houve agonia,
não houve violência física. E a barbárie, a “lógica conturbada da insensatez”, nas
palavras do protagonista, torna-se científica. O autor nos força a ocupar o lugar de
espectadores passivos de uma história habilmente conduzida e concluída, que ganha
novos contornos por estarmos diante de um veículo da mídia, em que a questão da
imagem, da “pose” do protagonista - através da sua astúcia e habilidade retórica -, que,
depois de confessar o crime, “recebia cartas de mulheres com propostas amorosas” e
depois da entrevista “introduziu algumas alterações no texto final, revelando sobretudo
preocupações de ordem sintática e de clareza, para depois colocar a sua assinatura em
todos as folhas originais”
41
- faz com que o narrador conquiste mais importância que a
sua história. Afinal, no Brasil, a lei concede aos criminosos diplomados, os privilégios
da “prisão especial”:
Fica impune, não vai preso
Ele não é pobre, não é preto
Se for condenado fica em cela separada
Com televisão frigobar e água gelada
Criminoso com nível superior
42
De forma contrária, os criminosos iletrados só podem aparecer a partir do
discurso dos outros, não dominam o código da sua própria defesa, e como “ignorantes”,
não são merecedores do respeito social. Pequeno, personagem do romance Cidade de
Deus, bandido violento e analfabeto, pede para companheiros lerem as notícias dos
jornais que falam sobre seus crimes. E, sem compreender a palavra-chave da matéria
jornalística, faz uma pergunta emblemática: o que é “bárbaro”? O personagem age
como um autêntico bárbaro, mas não sabe que lugar este sentido ocupa no contexto do
mundo.
A aquisição da linguagem culta e a entrada no mundo da literatura que têm
marcado a vida e a obra de muitos escritores marginais, conquistaram o mercado
41
NOLL, 1997: 606.
42
“Só mais um maluco” de MV Bill.
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editorial nos últimos anos, apontando para um tipo de recepção que traz a força do
testemunho como questão fundamental.
São, em geral, obras catárticas que tornam-se expressões de uma transformação
interior profunda e acabam tendo em comum, a experiência do texto, seja literário ou
filosófico, como assimilação e produção, desde a leitura de obras clássicas da literatura
universal aos mais diversos escritores brasileiros até chegarem à escrita dos seus
próprios discursos. Se pensarmos que estes detentos, para chegarem até o livro e até o
público, submeteram-se ou foram submetidos à familiaridade com o sistema literário,
somos obrigados a reconsiderar o quase consenso sobre o enfraquecimento da literatura
no nosso contexto cultural.
Eneida Leal Cunha deixa, ao fim do seu artigo “Margens e valor cultural”, uma
proposta instigante de reflexão: “Os detentos e as narrativas que escrevem não estão no
exterior, nem da ordem social nem do discurso literário. É nesta posição de interioridade
residual e recalcada que me interessa pensá-los como margens”
43
. E, acredito, é nesta
interioridade residual, nesse “caldo de culturas” – como diz Milton Santos - que existe a
chance de se alcançar uma etapa superior de produção da consciência. Na esfera da
racionalidade dominante pouco espaço é deixado para a criatividade, enquanto isso,
surgem, nas outras esferas, contra-racionalidades que são na verdade outras formas de
racionalidade. E é instigante se pensar o papel da literatura dentro deste contexto
“residual”. Da mesma forma, é também instigante a constatação de um traficante
entrevistado por MV Bill e Celso Athayde: “é preciso vontade de trabalhar, de lutar, de
viver, e isso é algo que também precisa ser ensinado”. Para Marilena Chauí, “a crítica
da ideologia não se fará pelo contraponto de um segundo discurso, mas se fará por
dentro dela, isto é, pela elaboração de um discurso negativo no interior do discurso
ideológico”
44
Quando o âmbito do discurso é o período do qual nós próprios somos ao mesmo
tempo juízes e produto, o jogo das relações entre fenômenos culturais e contexto
histórico torna-se muito mais complicado. Se precisamos estabelecer esta relação
imediata, podemos cair no perigo de mistificar uma realidade histórica que é sempre
mais rica e sutil do que do modo como a propomos. Por essa razão, o discurso dos
testemunhos, trazendo a realidade sem mediações racionais, brotando da experiência
43
MARQUES, 2002: 168
44
CHAUÍ, 1982: 23.
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vivida marcada pela emoção e pelos corpos sofridos, atinge uma legitimidade de grande
valor para a compreensão deste jogo de relações. Michel Foucault argumenta:
Ora, esse problema marginal [o problema da prisão] atinge as pessoas. Fiquei surpreso
de ver que se podia interessar pelo problema das prisões tantas pessoas que não estavam
na prisão, de ver como tantas pessoas que não estavam predestinadas a escutar esse
discurso dos detentos, o ouviam. Como explicar isto? Não será que, de modo geral, o
sistema penal é a forma em que o poder como poder se mostra da maneira mais
manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de alimentação, de
aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais
delirante que se possa imaginar.
45
A literatura surge, nesta experiência prisional, como uma porta de entrada – ou
de saída - para o conhecimento do mundo, e para o autoconhecimento, através de
diários, memórias e autobiografias. Os exemplos são muitos, e entre eles podemos
destacar o já citado, Memórias de um sobrevivente, de Luís Alberto Mendes, Diário de
um detento: o livro de Jucenir; Pavilhão 9: paixão e morte no Carandiru de Hosmany
Ramos e Letras de liberdade de autores diversos. Escolhi, neste trabalho, o romance
Memórias de um sobrevivente de Luís Alberto Mendes, como representante desta
produção literária do testemunho, abordando as relações entre vida e literatura que
geram um importante processo de construção de identidades culturais e atuação política.
Michel Foucault em Vigiar e punir
46
fala da qualidade das narrações da
experiência na prisão como relatos que eram antes revelados, exclusivamente, através
da mediação dos discursos jurídico e jornalístico. Por outro lado, estas narrativas do
testemunho surgem derrubando estereótipos, expandindo em terceira dimensão
realidades antes planificadas, indo contra a estigmatização e o engessamento da
identidade. Além de serem discursos fundamentais para o deslocamento da “verdade”
instituída, ao arrancarem com violência, o “véu” enganoso que envolve as instituições
nos discursos oficiais. Michel Foucault em conversa com Gilles Deleuze explica:
E quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da
prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, esse contra-
discurso expresso pelos prisioneiros, ou por aqueles que são chamados de
delinqüentes, é o que é fundamental, e não uma teoria sobre a delinqüência.
47
45
FOUCAULT, 1979: 72.
46
FOUCAULT, 1991: 35.
47
FOUCAULT, 1979: 72.
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147
5.2. O textemunho
Precisamos viver no inferno, mergulhar nos subterrâneos sociais, para avaliar ações que
não poderíamos entender aqui em cima.
Graciliano Ramos, Memórias do cárcere
Os gêneros memorialistas têm sido um importante objeto de investigação sobre a
construção de identidades nas sociedades contemporâneas. A discussão sobre os limites
entre ficção e realidade tornam-se irrelevantes se pensarmos que as ficções encerram
verdades que deixam entrever ideologias, mentalidades, crenças e identificações que
perpassam a vida daqueles que as produzem.
Procurando evitar a reafirmação de teorias sobre minorias que constróem
identidades rígidas e reducionistas, reiterando os clássicos contrastes como dominador
/dominado, mesmo/outro, inclusão/exclusão, procuro analisar a obra de Luís Alberto
Mendes, Memórias de um sobrevivente, à luz das teorias contemporâneas sobre
identidades e formação do sujeito em autobiografias, para então alcançar uma
compreensão do papel deste sujeito e a sua produtividade política. Utilizo como base
desta análise, o livro de Daniela Gianna C. B. Versiani, Autoetnografias
48
. Seguindo
esta linha, as memórias de Luiz acabam se revelando importante objeto de investigação,
pois traduzem sistemas de pensamento e de modos de perceber os processos de
construção de “identidades” pessoais e culturais no Brasil contemporâneo; em outras
palavras, a experiência pessoal torna-se uma importante fonte de conhecimento, como
reafirma Michel Foucault:
Se discursos como, por exemplo, os dos detentos ou dos médicos de prisões são
lutas, é porque eles confiscam, ao menos por um momento, o poder de falar da prisão,
atualmente monopolizado pela administração e seus compadres reformadores. O
discurso de luta não se opõe ao inconsciente: ele se opõe ao segredo. Isso dá a
impressão de ser muito menos. E se fosse muito mais? Existe uma série de equívocos a
respeito do oculto, do “recalcado”, do “não-dito” que permite “psicanalizar” a baixo
preço o que deve ser o objeto de uma luta. O segredo é talvez mais difícil de revelar que
o inconsciente. Os dois temas ainda há pouco freqüentes – “a escritura é o recalcado” e
“a escritura é de direito subversiva” – me parecem revelar certo número de
operações que é preciso denunciar implacavelmente
49
(grifo meu)
48
VERSIANI, 2005.
49
FOUCAULT: 1979: 35.
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148
A autobiografia, para estes detentos, exerce uma importante função de
autoconhecimento a partir de “outro lugar” ou do “outro” que se tornou. A
transformação efetuada pela leitura, pelo conhecimento de outros mundos e outras
possibilidades de vida é profundamente marcada pelo desejo de se conhecer e
compreender a complexa vida passada, geralmente envolta num véu turvo de
sentimentos, traumas e emoções indecifráveis. O retorno ao passado, às experiências
vividas, revisitadas com um novo olhar, torna-se essencial como um desejo quase
intuitivo no processo existencial destes sujeitos.
Nos últimos quatro meses, revivi este livro todinho, página por página, palavra
por palavra. Foi uma viagem muito difícil. Houve momentos em que pareceu que tudo
estava acontecendo de novo. (...) Doeu, doeu fundo, mas eu precisava mergulhar
naquilo de novo.
50
Analisando a obra, busco uma compreensão da formação deste sujeito
autobiografado, como um produtor de conhecimento e como um sujeito politicamente
atuante. Sendo a autobiografia de um presidiário, a obra revela também as
particularidades do relato do indivíduo que não se inclui no padrão do intelectual
produtor de conhecimento. Fernando Bonassi, o jornalista que “descobriu” Luís Alberto
Mendes, chama atenção para a (ad)missão deste novo intelectual:
O Brasil é uma terra de doutores. E não falo apenas de “doutores de leis”. Se o
modus operandi de nossa sociedade quase sempre frustra as aspirações de ascensão
social, no quadro da literatura a possibilidade de tal ascensão é ainda mais remota.
Como ousa um presidiário autodidata dominar um código que os “homens de bens” têm
como sua propriedade?
51
No entanto, Vincent B. Leicht, em seu ensaio “Pluralizing poetics” (1992),
aborda a questão da literatura das minorias que muitas vezes apresentam discursos - ou
são interpretadas - de forma simplista e autocentrada, reafirmando a ideologia do regime
majoritário. Segundo Daniela Versiani, estas perspectivas, construídas a partir de um
tipo de pensamento dicotômico, apenas perpetuam oposições porque não oferecem
alternativas mais complexas para se pensar a identidade. Portanto, a proposta desta
análise é compreender a trajetória de Luís Mendes dentro de uma perspectiva pluralista,
considerando a heterogeneidade e os embates políticos presentes no seu discurso,
50
MENDES, 2001: 16.
51
Idem, p. 10
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149
negando assim a tradicional – e eurocêntrica - concepção de alteridade que engloba o
“Outro” em uma grande e única categoria.
A partir da memória das trajetórias de Luís, podemos chegar a uma compreensão
deste sujeito complexo que dilui fronteiras, mostrando-se uma identidade flexível,
porosa, e maleável e procurando dar conta desta realidade pluralizada que nos cerca,
dentro de um novo conceito de identidade. A família, a escola, as ruas, o trabalho e a
prisão são mundos entre os quais Luís transita e que serão decisivos na formação deste
sujeito complexo. A noção do homem como “estrangeiro” na modernidade, passa a
“migrante”, na nova visão contemporânea.
As memórias de Luís Mendes relatam a grande trajetória da sua vida, desde a
infância até os dias de hoje. Estamos tratando de uma autobiografia de alguém vivo -
Luís ainda está preso, condenado a oitenta anos de prisão, e sua vida se confunde com a
história contemporânea brasileira dos últimos quarenta anos, na cidade de São Paulo,
aumentando ainda mais a força deste relato como importante fonte de conhecimento
sobre a nossa realidade social onde se formou este homem, produto da interseção entre
vários “mundos”. Cito aqui Philippe Lejeune em “Le pacte autobiographique” que, ao
considerar as biografias e autobiografias textos referenciais e opostos a todas as formas
de ficção, argumenta que devem ser lidos a partir de um “pacto referencial”:
Par opposition à toutes les formes de fiction, la biographie et
l’autobiographie sont des textes référentiels: exactement comme le discours
scientifique ou historique, ils prétendent apporter une information sur une
“realité” extérieur au texte, et donc se soumettre a une épreuve de vérification.
Leur but n’est pas la simple vraissemblance, mais la ressemblance au vrai. Non
“l’effet de réel”; mais l’image du réel. Tous les textes référentiels comportent
donc ce que j’appelerai un “pacte référentiel”, implicite ou explicite, dans lequel
sont inclus une définition du champ du réel visé et un énoncé des modalités et
du degré de ressemblance auxquels le texte prétend.
52
É a partir deste “pacto referencial (...) no qual estão incluídos uma
definição do campo do real visto e um enunciado das modalidades e do grau de
semelhança que o texto visa”, que podemos construir o conhecimento sobre este sujeito
e suas interações com a sociedade contemporânea. Fernando Bonassi enfatiza a
sinceridade e o descompromisso do caráter confessional da obra de Luís Mendes,
52
LEJEUNE, 1996: 36.
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150
Luiz não quer se salvar dentro de seu livro e de suas histórias. Como
todo artista de compromisso vital, Luiz se salva ao se expressar. Tira de si um
peso que não juntou sozinho, para devolver, aos que se sentem tranqüilos em
suas coberturas dúplex, algo novo: indignação e sensibilidade radicais.
53
Contrariando discursos de minorias, freqüentemente “vitimizados”, Luiz assume
a responsabilidade sobre seu próprio destino, não se revela um ressentido nem uma
vítima do sistema, não se utiliza da tradicional dialética da exclusão/inclusão. Mas
aponta para a importância da responsabilidade de cada um sobre sua própria vida.
Convida-nos a um diálogo, acende em nós o desejo de nos aproximarmos dele. Como
indicam as palavras de Tzvetan Todorov: “As diferenças são um dado de fato, enquanto
a unidade só pode ser o resultado de um esforço”
54
Este diálogo “pressupõe, é claro,
uma diferença entre o eu e o outro, mas também um quadro comum, a vontade de
compreender o outro e de se comunicar com ele
55
. O crítico chama atenção para o
crescimento do fenômeno do “vitimismo” que muitas vezes encontra-se presente nos
discursos de minorias em que “o ideal da integração parece ter sido substituído por
aquele da segregação”
56
. E lembra que “Considerar-se irresponsável pelo próprio
destino é como considerar-se uma eterna criança, um brinquedo nas mãos de potências
infinitamente superiores”
57
.
Luiz Mendes, nas respectivas epígrafes de Brecht e Sartre que escolheu para a
sua história, parece querer resumir a sua mensagem: “A miséria e a desgraça não vêm
como a chuva, que cai do céu, mas através de quem tira lucro com isso” e “Não importa
o que o mundo fez de você, importa o que você faz com o que o mundo fez de você.”
Quando convidados a este diálogo, nós leitores, somos levados também a um mergulho
dentro de nós mesmos, em que é dada “uma chance. A chance de nos conhecermos
melhor. A chance de transformar o que é inaceitável, mas que costuma arrancar de nós
pouco menos que esgares caridosos
58
.
Por fim, a atuação política de Luiz, se dá a partir do reconhecimento e da
explicitação de suas múltiplas pertenças, ou seja, as diversas interações que vão mostrar
os processos pelos quais ocorrem identificações parciais entre indivíduos com diferentes
trajetórias. Para a compreensão desta questão, é preciso enfatizar não apenas o sujeito
53
MENDES, 2001: 10.
54
L’uomo spaesato. I percorsi dell’appartenenza, p. 168.
55
Idem, p. 169
56
Idem, p. 166
57
Idem, p. 164
58
MENDES, 2001: 10.
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151
em trânsito mas a memória dos seus deslocamentos. Isto só se torna possível a partir de
um olhar sobre a singularidade deste indivíduo que só a memória de suas experiências
pessoais tem condições de apresentar. Enfim, essas memórias nos mostrarão a
possibilidade que tem esse sujeito de transitar por diferentes sistemas culturais e
simbólicos e de continuamente construir-se através da interação com outros indivíduos e
com diferentes grupos.
Satya Mohanty defende a idéia de que “o conhecimento adquirido a partir da
mediação de determinada identidade cultural, está portanto ligado à cotidianeidade, em
que pesam as atividades cognitivas dos indivíduos ligadas ao julgamento racional tanto
quanto aos sentimentos e emoções”
59
Em outras palavras, a experiência pessoal é, ela
própria, construída a partir de pressupostos culturais e teóricos, apreendidos nas
relações sociais entre indivíduos e grupos. É nesse sentido que Satya Mohanty
defenderá a idéia de que “a experiência pessoal é social e teoricamente construída, e é
precisamente desta maneira mediada que produz conhecimento”
60
.
Utilizo aqui o conceito de “identificação” em substituição a “identidade”,
conforme propõe o sociólogo francês Michel Maffesoli. Ele mostra que a partir de um
sujeito multifacetado torna-se impossível falar de uma identidade fixa, estanque,
fechada, coerente e estável, mas sim de sucessivas identificações. Assim, diante desta
transformação da identidade para identificações, o político deixa de estar limitado a um
contexto de “identidades” de classe, sexo ou profissão, para ser compreendido como
uma política do “doméstico”, perdendo sua dimensão macroscópica para se realizar no
microscópio, no dia a dia, “nas articulações flutuantes e maleáveis do cotidiano.”
61
.
Essas identificações podem se estender, em determinados momentos da trajetória de
vida, a noções de “identidade coletiva” ou “identidade cultural” que seriam uma
extensão do conceito de “identidade pessoal”, considerando as implicações políticas,
sociais e culturais aí envolvidas.
Partindo-se do princípio que não existe uma identificação total e completa entre
um indivíduo e um grupo - já que numa trajetória de vida um mesmo indivíduo se
identificará com vários grupos através de determinadas características em comum com
cada um deles -, compreenderemos este sujeito político e produtor de conhecimento,
reconhecendo os elos que ligam esta cadeia: o que move seus trânsitos, suas
59
MOHANTY, 1997: 126.
60
Idem, p. 206.
61
MAFFESOLI, 1997: 128.
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152
identificações com os diversos grupos, suas “identidades culturais”. Poderíamos resumir
os “mundos” de Luiz em três categorias: a família, a prisão e a cidade-liberdade.
O movimento se repete em toda a história: Luiz parte da família para a cidade,
da cidade à prisão, de onde então volta, podendo também transitar em direção oposta.
Esse trânsito circular parece se repetir também na vida de grande parte dos detentos,
como provam os seus relatos.
A família é como o porto seguro ao qual Luiz volta para se “realimentar” depois
das sucessivas perdas. Cada um desses vértices representa um “mundo” bem distinto.
Sua origem, a família, tem o núcleo principal composto pelo pai e pela mãe, que criará
em Luiz sentimentos que definirão grande parte de suas relações com os diversos
“mundos”. Sua mãe será, durante toda a sua vida, a grande fonte de amor: “Amava
aquela mulher. Nem imaginava quanto.(...) Estava no centro de minha vida, o ser mais
querido e amado do mundo! A única pessoa no mundo que, eu tinha certeza, gostava de
mim de verdade.”
62
Mas a vida em família era na verdade um inferno, dominada pela
força do pai alcoólatra, violento e torturador: “Vivi a infância toda fermentando ódio
virulento àquele meu algoz e envenenando minha pobre existência”
63
No entanto, em
meio às lembranças do inferno do lar, Luiz ainda tem a memória do afeto pelo pai,
relação que oscilava entre o ódio e o amor: “Apesar de tudo, eu amava aquele meu rude
pai, apesar de odiá-lo também. Vivia atrás dele, quando sabia que estava sóbrio (o que
era raro).”
64
Enfim, confessa que “União familiar mesmo, jamais vivi” (p.26). Na
escola, tinha um péssimo comportamento, apesar de ser inteligente e conseguir boas
notas. A arte da trapaça e a atração pelos riscos já brotavam no menino:
Adorava os riscos, embora os temesse o mesmo tanto. Não era um menino
querido nas classes. (...) Jamais aprendi a conquistar pessoas. Sempre fui um fracasso
nessa arte. (...) Nos bilhetes das professoras comunicando meu comportamento
lastimável, falsificava a assinatura de meu pai. Mil e uma maneiras de enganar a tantos
quantos pudesse.
65
Daí para a primeira fuga, foi um passo. A liberdade seria conquistada nas ruas da
cidade, longe de casa, longe do pai: “As luzes da cidade, as cores, as vitrines, as
pessoas, tudo me enchia a alma de vontade de fazer parte daquilo, daquela vida.” (p.
62
MENDES, 2001: 86
63
Idem, p.15.
64
Idem, p.17.
65
Idem, p. 26-7
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153
32). Aqui surge a primeira grande identificação, determinante na sua vida.: “A cidade
me enfeitiçara”.
Pressionado pelos pais, consegue o primeiro emprego de office-boy, mas quando
recebe o seu salário (metade do salário mínimo), é obrigado a dar tudo à mãe pois o pai
estava desempregado, restando-lhe apenas alguns trocados. Logo percebeu que todo
aquele mundo que o enfeitiçava não era para todos. Havia algo que movia todo aquele
universo de luzes, vitrines e pessoas, a que poucos tinham acesso: “Só sabia que vivia
sem dinheiro, andando pela cidade, vendo as coisas gostosas, e não podia ter nada.
66
. A
cidade era a “liberdade” que escondia algo diabólico: o apelo do consumo. Os símbolos
da juventude e da liberdade estavam expostos nas vitrines e a própria liberdade estava à
venda:
A rua, a cidade, as pessoas, me atraíam. Todo o meu ser vibrava intensamente
sob o clima do programa Jovem Guarda. Eu era rock. E era tudo que significasse
liberdade, por mais prisão que fosse (...) Era mesmo impossível resistir mais. Estava
fugindo com o dinheiro da empresa.(...) Fui de loja em loja onde havia meses namorava
roupas nas vitrines. Comprei calça de helanca (o luxo da época) , jaqueta três-quartos e
todos os acessórios da moda. Vesti as roupas novas nas lojas mesmo e joguei a roupa
humilde que vestia na primeira lixeira que vi.
67
O primeiro grande roubo foi seguido de uma surra do pai e assim se inicia o
ciclo vicioso da sua vida: entre as ruas e as torturas em casa vai se formando o menino-
malandro que, para sobreviver na cidade, precisa se adaptar a um novo código. A vida
das ruas era fascinante e perigosa para aqueles que estavam à sua margem, exigia
esperteza, rapidez e riscos constantes para poderem sobreviver. Criava-se assim um
mundo paralelo, onde imperava a lei do mais forte, com valores próprios, regido pelo
código da malandragem. Submundo financiado pelo desvio do dinheiro do “mundo
oficial” onde era oferecido um outro tipo de produto para consumo: as drogas, que por
sua vez eram compradas com o dinheiro dos roubos nas ruas. Luiz Mendes revela a
formação de uma nova “identidade”:
Para eles, eu já era malandro (e esse era um título que eu queria muito), sujeito
esperto a ser respeitado. Adorei o jeito reverente como me tratavam! (...) Quis fumar um
baseado. Queria me mostrar mais malandro ainda, aproveitando a oportunidade para
formar a minha nova identidade de vez. O prestígio era fundamental.
68
66
Idem, p. 41
67
Idem, p. 46-7
68
Idem, p. 49
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154
A necessidade de “ser respeitado” como nunca fora antes, movia as suas ações.
A promoção ao status de “malandro” seria a primeira grande chance de conquistar o
respeito a que nunca teve direito. Mas o prestígio custava-lhe caro: era preciso ter
dinheiro, “pagar as contas”, ser esperto e sempre dominar a situação: “Paguei café, com
tudo a que tinham direito, para todos. Era um prazer pagar tudo (...) Sentia-me querido,
necessário, importante e plenamente aceito.”
69
. Não bastava ser um malandro qualquer,
tinha que ser “um grande malandro”: os desafios sempre o atraíram especialmente,
criando nele uma certa obsessão: “por conta disso, criei um perfeccionismo, uma
vontade de fazer tudo melhor que os outros, para que meu valor fosse amplamente
reconhecido.”
70
Luís Eduardo Soares fala da “fome de valor” desses jovens:“ Há uma
fome mais funda que a fome, mais exigente e voraz que a fome física: a fome de sentido
e de valor; de reconhecimento e acolhimento; fome de ser _ sabendo-se que só se
alcança ser alguém pela mediação do olhar alheio que nos reconhece e valoriza.”
71
Além disso, vivia-se, neste período da narrativa, o auge da cultura de resistência,
a “contracultura” com a qual os jovens teriam uma forte identificação cultural:
Seus motivos [dos amigos] eram bem parecidos com os meus. Filhos de pais
repressores, famílias conservadoras e reacionárias ante a revolução que acontecia no
mundo todo. A juventude se levantava contra o conservadorismo e as instituições
sociais, inconscientemente. A busca era ser livre a todo custo. Alguns vendiam o corpo,
outros roubavam (...) Cabelos compridos, calças justas e rock. No fundo era apenas uma
vontade de liberdade, de não ouvir mais ninguém. Não havia um pretexto consciente,
uma não-participação decidida no esquema social. Apenas vadiagem sem esperança.
Um ir-e-vir sem saber para onde, em que rumo, e por quê.
72
A droga passa a ser um forte elo entre Luiz e sua nova “tribo”. Liberdade
significava romper barreiras, quantas fosse possível, e sair sem rumo, experimentando
sensações. A euforia tornava essa união irresistivelmente forte:
De repente a vida mudou. A droga pegou fortíssimo. Tornei-me amigo de todos.
A alegria era infinita, e eu os amava com toda a minha alma (...) Paguei Cocas e
sanduíches, promovi uma festa. Repetiram inúmeras vezes “Satisfaction”, gritei, dancei,
viajei qual fosse aquele o primeiro dia de minha vida.
73
69
Idem, p. 52
70
Idem, p. 196
71
ATHAYDE, 2005: 215
72
MENDES, 2001: 52
73
Idem, p. 51
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155
Como era o destino de todos esses jovens que viviam na rua, Luiz é preso. E a
partir daí vive uma sucessão de acontecimentos que o fazem um joguete entre o crime e
a prisão. Cresce entre as ruas e as grades, e volta à família por curtos espaços de tempo,
não conseguindo mais resistir à vida que tinha conquistado no crime. Mais do que
nunca, “Crescer é descrer”. A prisão era o inferno, foi vítima das mais cruéis torturas,
descritas com detalhes durante toda a sua história. Seu ódio à polícia se confundia com
o ódio ao pai, sua ânsia em desobedecer era também o desafio aos seus repressores:
Eu os mataria, eu os trucidaria cortando-os em pedaços a machadadas, na
primeira oportunidade. O ódio zumbia em mim, vencendo o medo. Eles eram meu pai,
eram a fome, o frio, a miséria, a solidão e a ausência de minha mãe. Eles eram tudo o
que odiava no mundo. Queriam saber o que fizera com o dinheiro estrangeiro e os
objetos que levara do apartamento da vítima.
74
A “Escola do Crime” criava uma outra identificação, movida pelo ódio a tudo e
a todos. A evolução do malandro levava-os a uma outra etapa: o assalto.
O assalto era o ápice de nossa formação como malandros. Título por demais apreciado
por nós. Não achávamos que ninguém tinha mais direito que nós de ser feliz. A
felicidade para nós eram armas, carros velozes, mulheres fáceis, droga, bebidas e
curtição. (...) sermos bandidos era a glória. O nosso poder parecia infinito dentro do
carro, com as armas. Tudo era nosso. Era só descer e tomar. Se tudo o que tinha
significado estava nas mãos dos outros, nada mais justo que fôssemos tomar nossa
parte
75
.
Forma-se assim a hierarquia do crime, muito bem estruturada em seu código
informal, no entanto sólido e inquestionável. Nas palavras de Luís Eduardo Soares:
“Registre-se que o universo do crime e da violência não é vazio de valores: há uma ética
no crime e mesmo uma moral na violência (...). Por exemplo, a lealdade ao líder, que
exige resistência estóica à tortura.” Nas palavras de um traficante, o código de ética
vigora revelando a realidade paradoxal: “Existe uma lei aqui na favela que tem que ser
cumprida: quem tem maldade, tem que morrer; aqui, todo bandido tem que ser puro.”
A ousadia, a liderança e conseqüentemente o grande poder do assaltante, dentro
deste mundo, exercia um verdadeiro fascínio sobre os pequenos malandros que
almejavam chegar também a este posto: “Estava doido para conhecer um assaltante de
74
Idem, p. 74
75
Idem, p.181; 371
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156
fato. (...) Queria conhecer esses heróis. Sim, para mim eram heróis.”
76
. Enquanto as
crianças das classes altas se identificavam com os heróis benfeitores da televisão ou dos
quadrinhos, difusores dos valores do bem, defensores da ordem e da justiça, os
pequenos malandros identificavam-se com os valores da resistência a esse mundo,
difundidos pelos “heróis do crime”, também “mitificados” pela mídia: “Meu sonho era
ser malandro, daqueles que saíam nos jornais”
77
. No depoimento do pai de um jovem
traficante: “A televisão atrapalha muito, sabia? (...) Meu filho acha bonito aparecer
como um cara perigoso pras comunidades, pra polícia.”
78
Luiz também chega ao topo
desta hierarquia:
Aprendi rapidamente a assaltar. Quando tinha dificuldade, era só tomar dois conhaques,
um em cima do outro, que já eliminava escrúpulos e receios.(...) Minha necessidade de
dinheiro era constante, então me envolvia em várias quadrilhas. Era legal o conceito que
estavam formando de mim.(...) Sempre tinha várias armas, drogas de vários tipos, balas,
e isso atraía malandros conceituados no crime. Aquilo, o respeito, era muito importante
para mim. Era como, finalmente, eu estivesse vencendo.
79
Estava cheio de coragem e me sentindo o maior bandidão.(...) Estava me realizando!
Todos os meus sonhos e fantasias se concretizavam. Eu era o crime personificado
80
.
Sobre estas relações de mão-dupla, Luís Eduardo Soares esclarece que:
A carreira do crime é uma parceria entre a disposição de alguém para transgredir as
normas da sociedade e a disposição da sociedade para não permitir que essa pessoa
desista (...) Esmagando a auto-estima do adolescente que errou, a sociedade lava as
mãos, mais ou menos consciente de que está armando uma bomba-relógio contra si
mesma, contudo feliz, estupidamente feliz por celebrar e consagrar seus preconceitos
81
Mas a “felicidade” conquistada com o poder das armas e do dinheiro, não era tão
ilusória para Luiz, quanto se poderia supor. Havia um sentimento, motivado pelo
próprio aprendizado da sua experiência pessoal, que, social e teoricamente construída
(“e é precisamente desta maneira mediada que produz conhecimento”), que sinalizava,
por trás das suas ações inconseqüentes, uma realidade ética:
Eles diziam que malandro vive em constante comemoração, todo dia é festa e
alegria. Não precisavam de dias especiais para serem felizes, todo dia era dia de
ser feliz. Era o que estava sendo nossa vida, e eu adorava, apenas me sentia
76
Idem, p. 103.
77
Idem, p. 68
78
ATAHYDE, 2005: 213.
79
Idem, p. 258-9
80
Idem, p. 360
81
ATAHYDE, 2005: 236.
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157
esquisito, estranho, sendo feliz. Tinha sempre em mente que pagaria caro por
aquilo, não sabia como, nem quando, mas aquilo não era normal, ia dar errado
82
.
E deu errado: Luiz é condenado a oitenta anos de prisão pelos crimes cometidos,
incluindo dois homicídios. A avalanche da sua vida enterrou todas as possibilidades de
uma recuperação social, seu destino estava tragicamente traçado e sua liberdade acabara
para sempre.
Quando assinei o ciente daquela condenação, a realidade da minha situação de
homem enterrado vivo atingiu-me com toda a sua violência. O desespero foi completo.
Nunca mais sairia da cadeia. Eu só tinha dezenove anos... A revolta feria a alma. Era
demais dolorido saber que agora só aquilo, aquele mundinho reduzido de poucos
metros, iria ser minha vida.
83
Mas, surpreendentemente, a vida parece lhe oferecer mais uma chance,
mostrando que nem tudo estava perdido, e o que parecia irreversível, é iluminado por
uma nova esperança. Surge, como um “herói salvador”, um outro prisioneiro que, à
semelhança de um cavaleiro medieval (qualquer semelhança seria mera coincidência?),
mostra-lhe a grande porta de saída. “A esperança é um método”
84
, é o que afirma Luís
Eduardo Soares e parece explicar muito do processo existencial destes sobreviventes.
Henrique, um dos maiores assaltantes de São Paulo, com um “rosto parecido com o dos
antigos patrícios romanos (...) era uma pessoa boa, extremamente generosa e despojada
(...) o cara parecia aqueles nobres cavaleiros da Idade Média, estava sempre a tomar o
partido dos mais fracos e humildes”.
85
Henrique entregava a Luiz a “chave” da “cela”: “O novo amigo falava em livros,
contava-me romances que lera, falava em poesia, filosofia, um monte de coisas novas
para mim”. E foi a confiança, como um sentimento mágico e quase desconhecido
naquele mundo, que permitiu a abertura para a grande e definitiva transformação: “Foi a
primeira pessoa no mundo, fora minha mãe, em quem depositei minha confiança total e
irrestrita.”
86
A identificação com o amigo tornou-se também a identificação com o
mundo novo que se apresentava, e este novo mundo mostrava-se mais forte que as
grades que o tornavam incomunicável. E há aqui um toque de magia que nos remete
inevitavelmente às fantasias de histórias clássicas. Como uma Sherezade, que se
82
MENDES, 2001: 258
83
Idem, p. 406
84
ATHAYDE, 2005: 125.
85
MENDES, 2001: 438
86
Idem, idem.
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158
libertara e transformara o terrível Sultão através do seu poder de contar histórias, ou à
semelhança do Abade Faria de O Conde de Montecristo, que, através de um túnel
secreto cavado na masmorra, traz ao amigo prisioneiro a esperança através de seu
profundo conhecimento, grande sabedoria, e por fim a conquista do tesouro, Henrique
revela a Luiz o mapa do “grande tesouro”:
As histórias dos livros que contava, eram extremamente fascinantes e belas.
Ensinou-me a valorizar livros, a querer conhecê-los todos. Agora ansiava sair do castigo
para começar a ler aquelas histórias de que ele falava. Era poeta, e eu também quis ser
poeta. Prometeu ensinar-me. Passamos quatro meses no mesmo encanamento de
privada, conversávamos todo o tempo que nos era possível. Havia tanto
assunto...conversei mais nesses três meses do que em quase toda a minha vida. Seus
conceitos de nobreza de propósitos, sua visão moral diversa daquela que aprendera no
meio criminal, me falavam ao coração
87
.
O poder e a beleza daquelas palavras eram transmitidos, ironicamente, pelo
encanamento da privada, que contrasta com o que está além da dureza do ferro dos
encanamentos: o encantamento do “outro mundo”.
uma pilha de livros, cadernos com poesias e textos dele, papéis, canetas, a carta-
rascunho para minha mãe e uma carta dele mesmo. Emocionou-me. Fiquei muito feliz
em possuir um grande amigo. Olhei e namorei livro por livro, caderno por caderno.
Aquilo era importante demais para mim. Eu iria construir uma nova história de minha
vida, doravante. Uma história mais bonita. (...) Eu fazia milagres trocando livros à noite
pela janela, com uma corda fina que chamávamos teresa. O risco era enorme.
88
A identificação de Luiz com o mundo dos livros parte da sua própria abertura ao
discurso do amigo que, baseada na confiança, “falava ao coração”. Essa relação afetiva
revolvia nele os sentimentos sedimentados com os anos de sofrimento, e trazia à tona
sentimentos guardados que, ao aproximarem-no da mãe, a fonte de positividade, faziam
de Luiz um campo fértil para a transformação. Henrique, mostrando conhecer muito
bem o amigo: “Procurava me incentivar a que cultivasse o amor que havia em mim por
minha mãe, pois dizia que era a melhor parte da vida”. Surge um novo olhar: “
A dor
submete. A dor humilha até nos fazer qual pó de estrada, tapete do mundo. Dizem que
ensina. Sem dúvida, ensina. Principalmente a não querê-la mais, de modo nenhum, por
mais que contenha qualquer ensinamento”
89
.
87
Idem, p. 438
88
Idem, p. 438, 454.
89
Idem, p. 475.
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159
A construção da identidade cultural ocorre diariamente nas relações
interpessoais que por sua vez envolvem não apenas a “fria teoria” mas também os
afetos, os desejos, as visões que temos de nós e dos outros, e dos grupos entre os quais
circulamos.
A necessidade de ser respeitado como a atração pelo desafio, sentimentos que
nasceram de uma carência, foram sempre motivações para as ações de Luiz, como para
todos os outros jovens como ele, direcionando-os tanto para uma perspectiva de
construção quanto de destruição. Quando não se é visto e se vê, o mundo oferece tudo,
mas nega a presença, a presença verdadeira que vem da interação, da troca, do
reconhecimento.
Meu negócio era acumular conhecimentos, pois acreditava que isso me valorizaria para
os outros. Eu carecia de importância, e queria chocar com um tal volume de
conhecimentos e informações que me destacasse da minha condição prisional. (...) Hoje
sei que algo que me motivava profundamente em meus estudos era também a
dificuldade de penetrar no pensamento dos grandes sábios e de assimilá-lo. Sua imensa
complexidade me fascinava. Era desafio. Sempre adorei ser desafiado, porque minha
vontade tornava-se poderosa, colocando meus desejos periféricos como secundários, até
desimportantes. Ficava altamente receptivo e reunia forças desconhecidas para vencer o
desafio.
90
A experiência torna-se o fundamento do conhecimento e da possibilidade de
transformação de valores através da explicitação de múltiplas pertenças que Luís
revisita agora na sua autobiografia. No entanto, esta explicitação só ocorreu a partir do
momento que encontrou as condições mínimas favoráveis para manter as memórias e
identificações anteriores. Gilberto Velho em “Unidade e fragmentação em sociedades
complexas”, se utiliza da noção de metamorfose do indivíduo que se daria a partir das
diferenças entre o projeto individual e o projeto coletivo do grupo ao qual pertence. E
lembra que para isso, é preciso que a sobrevivência cultural de um indivíduo não esteja
condicionada à rejeição de suas identificações anteriores, ou seja, reviver o passado é
também possibilitar o futuro.
Nesse sentido, as autobiografias, biografias e memórias tornam-se um
importante espaço onde as “memórias da migração” de sujeitos podem ser expressadas,
criando um circuito comunicativo de discussões, negociações e identificações entre
sujeitos. De modo abrangente, estes gêneros literários são chamados discursos de
construção de selves.
90
Idem, p. 467
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160
A intenção do livro não foi a de ter uma mensagem. Não tenho essa pretensão. Apenas
escrevi para ter uma seqüência que permitisse que eu mesmo entendesse o que havia
acontecido realmente. Pois, afora poucos momentos em que estive no comando de
minha existência, a maior parte de minha vida transcorreu em uma roda-viva,
descontrolada e descontínua. Eu queria ordenar momentos e acontecimentos, ações e
reações, para ver se entendia um pouco dessa balbúrdia que foi minha existência
91
.
Retomando o conceito de “metamorfose” de Gilberto Velho, ao modificar-se, o
indivíduo também opera mudanças nos outros e no grupo em que se insere. E aqui
chegamos a um ponto importante: a atuação política deste sujeito está diretamente
ligada à capacidade que ele tem de manter também a memória dos seus deslocamentos.
Só assim ele pode desempenhar um importante papel político, como interlocutor entre
diferentes visões de mundo.
A produção de conhecimento está diretamente ligada às experiências vividas
através da percepção que o indivíduo tem de sua posição no mundo e dos pressupostos
teóricos a partir dos quais vê esse mundo. A explicitação dos trânsitos entre diferentes
mundos, como vimos acima, através das memórias, somada a uma posição crítica que
Luiz adquire a partir de sua “metamorfose”, criam a possibilidade de um importante
agenciamento entre esses dois mundos vividos. Esta capacidade de agenciamento, feita
através dos pressupostos “socio-teóricos” que o indivíduo apreende nas relações sociais
com outros indivíduos e grupos é também a capacitação para a construção de
conhecimento. A experiência pessoal pode tornar-se a mais eficaz fonte para construção
de conceitos.
A própria compreensão do “mundo do crime” a partir da experiência vivida
revela um conceito de sociedade como reprodutora da “sociedade oficial”, com suas leis
próprias e seu código de ética: “Malandro possuía moral engessada, com um sentimento
forte de honra. Havia até uma fidalguia, uma nobreza em certos malandros.
Acreditavam em duelo a bala ou a faca por questões de moral e honra”
92
Entre fugas e libertações, Luiz se forma na Escola do Crime, denunciando uma
situação já bastante conhecida entre nós, mas que ao invés de ser reproduzida por uma
voz “oficial” ou filtrada em reportagens de jornais, é legitimada pela voz da experiência:
Quando adentrei a sala do juiz, o velho já me lançou um olhar impregnado de
ameaças veladas. Ao tomar minha declaração fez tudo para me intimidar, me
91
Idem, p. 476.
92
Idem, p. 251
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161
amedrontar e distorcer o que eu dizia.(...) Na delegacia, era preciso assinar a declaração
como eles a haviam feito previamente, caso contrário, seria mais tortura.
93
E chama atenção para uma realidade de decadência institucional que muitos
desconheciam, enganados ainda por uma ideologia da antiga crença na solidez:
As pessoas simples do povo, como minha mãe, acreditavam nas instituições do
Estado. Acreditavam na onisciência e onipotência do governo (...) Na época já se
começava a sentir as garras do autoritarismo que caracterizaria a tomada do poder no
golpe militar de 1964.(...) O militar era acreditado, digno de crédito (...) Comunismo era
palavrão.(...) Julgava-se que o militar não fosse corrupto, como era o político. Não se
falava em golpe, e sim em revolução gloriosa. (...) nem se imaginava o que se fazia ou
se maquinava por trás das portas fechadas. (...) [a mãe] Não conseguia acreditar, ou não
queria, que naquela instituição seu filho era tratado como um cão selvagem. Com
violência extrema, num ambiente totalmente pernicioso, onde não havia a menor
preocupação de recuperá-lo socialmente.
94
E conclui:
A sociedade da época, enganada, julgava que estávamos sendo reeducados. Mas
estávamos era desenvolvendo, ampliando e trocando nossos conhecimentos
relacionados com o crime. Tenho certeza de que aqueles que executavam aquele
trabalho de nos manter presos, como o juiz de menores, guardas e funcionários
públicos, sabiam que não estavam nos reeducando.(...) O Instituto era apenas uma
vitrine que o Estado ditatorial mostrava para a sociedade. E esta engolia, aliviando sua
consciência de comunidade culpada (...) Criava-se uma geração de predadores que iria
aterrorizar São Paulo. A maioria seria morta pela polícia em pouquíssimo tempo, mas
antes disso... Nunca ninguém se preocupou em nos trazer uma mensagem positiva, nos
transmitir valores ou discutir os nossos.(...) Estávamos abandonados à nossa capacidade
de produzir uma cultura nossa e à mercê de nossos sicários.
95
Abandonados à capacidade de produzir uma cultura própria, os prisioneiros
acabavam reproduzindo um sistema tão perverso - ou mais, porque sem máscaras –
quanto o sistema da sociedade que os rejeitava. No entanto, a situação de penúria a que
eram submetidos era tanta, que o mundo prisional, ironicamente, parecia ainda oferecer
vantagens:
Considerava a estrutura da sociedade parecida com a da prisão. Uns poucos
dominavam, concentrando poderes e gozando dos privilégios. Na prisão, a maioria
cumpria suas penas dificultosa e sofridamente. Com a vantagem sobre a sociedade de
que na prisão havia pelo menos o mínimo necessário para cada um: a comida (por pior
que fosse – e era ruim demais), o teto e o uniforme.
96
93
Idem, p. 400
94
Idem, p. 133
95
Idem, p. 180
96
Idem, p. 423
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162
A lógica do mundo prisional tornava-se absurda, ali estavam os “restos” do
sistema capitalista, e sem condições de “produzirem capital”, os presos só poderiam
alcançar a liberdade se a comprassem. Enfim, o domínio dos códigos deste mundo eram
essenciais para a sobrevivência:
A corrupção nos meios jurídicos era profunda. Estávamos convictos de que só
estávamos presos porque não tínhamos capital. E não tínhamos capital porque não
roubávamos pelo dinheiro somente. O dinheiro era apenas o veículo de nossa
liberdade.(...) Ali tudo era pagar. A sêmantica do verbo pagar era bastante interessante
por ali. Tudo o que nos era fornecido pela cadeia trazia uma idéia de pagamento. A
comida não era distribuída, era paga. “Pagar um sapo” era fazer uma ameaça. Alguns
dos cabeças-frescas às vezes esperavam alguns humildes subirem da visita com a sacola
de mantimentos e coisas que a família trazia, para assaltá-los. Muitos desses assaltados,
violados ou humilhados não tomavam atitudes em represália (...) Na maioria, estavam
condenados à pena mínima e dependiam de seu comportamento para serem soltos mais
rápido. E se tomassem alguma atitude, esta teria que ser mortal. Caso apenas ferissem,
provavelmente seriam mortos no futuro, pois cobra não se fere.
97
Hoje, com a consciência das suas vivências, que possibilita também uma visão
“panorâmica”, a constatação da realidade é escandalosa:
Estávamos cientes de que aqueles que nos barbarizaram o fizeram em nome de
uma sociedade. Uma sociedade que nos repelia, brutalizava, segregava, e que quase nos
destruía. E o pior: uma sociedade que precisava dessas monstruosidades para se manter.
A tortura era uma instituição social. Se estivéssemos em um país menos demagógico e
mais civilizado, talvez recebêssemos a pena de morte. (...) Éramos ainda adolescentes,
tínhamos entre dezoito e dezenove anos, e se não nos mataram fisicamente, roubaram
todo o conteúdo que poderia existir em nossas vidas. Nos enterraram vivos. Estávamos
mortos, bem mortos. E me pareceu sempre uma incoerência matar gente que mata gente
apenas para mostrar que não se deve matar gente
98
.
Luís Eduardo Soares testemunha que “as instituições públicas são cúmplices da
criminalização ao encetarem esta dinâmica mórbida, lançando ao fogo do inferno
carcerário-punitivo os grupos e indivíduos vulneráveis – mais vulneráveis dos pontos de
vista social, econômico, cultural e psicológico”.
Mas a transformação radical que surge em sua vida - motivada exclusivamente
pela sua forte vontade, na contracorrente de uma realidade perversa, parecia descortinar
algo maior, que transcendia toda a sua vivência:
97
Idem, p. 414
98
Idem, p. 400
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163
Pude perceber que, por mais que eu mesmo, burro, idiota, jogasse pelo ralo
todas as oportunidades que a vida me ofereceu para me reerguer, elas continuaram a
surgir, como que do nada. (...) Isso me fez confiar na vida e saber que há algo, sei lá o
quê, ou quem, que deve nos querer bem, apesar de nós mesmos, e que nos ajuda, sei lá
como.
99
Quando Luiz torna-se consciente do conhecimento que têm dos códigos desses
diferentes mundos, tornando-se assim um sujeito ativo disposto a explicitar suas
experiências de trânsitos entre esses mundos, podemos pensar em Luiz como um “ator-
sujeito” que, ao partilhar suas identificações, ajuda-nos a elaborar a noção de uma
“identidade cultural” mais coerente com a experiência contemporânea:
Ainda sou aquele, mas sou também outros (...) O crime, a malandragem, a idéia
que perseguira desde a infância, de ser bandido, malandro, foram se afastando do meu
foco de visão. Agora aquilo era muito pouco para mim, diante dos horizontes que
divisava. A cultura, o aprendizado, levaram-me a fazer uma releitura do mundo. Havia
um lado melhor e eu queria pertencer a ele.
100
Este “ator-sujeito” é aquele que estará apto a desempenhar um importante papel
político como interlocutor entre estas diferentes visões de mundo e a perceber o
processo de negociação entre essas “identidades culturais”.
Acompanhei muitos serem destruídos, quais folhas ao vento. A maioria, a dor
estupidificou, desumanizou, e os fez piores do que já eram. A mim, sinceramente, não
sei por que, tornou mais sensível, mais humano, mais compreensivo e capaz de perceber
o sofrimento alheio. A dor dos outros já não me é indiferente, já me preocupa e faz
sofrer também, se nada posso fazer para minorá-la.
101
Luiz se transforma num sujeito atuante e difusor do próprio conhecimento que
adquiriu, revelando seu importante papel político, não só através das suas memórias
mas na prática de vida: “Sou professor aqui há quatro anos”
102
. Sua própria experiência
de dor e transformação o leva a querer transformar também o mundo a sua volta:
Fazia algum tempo que vinha com uma idéia de tentar criar um movimento
literário aqui. Minha idéia era montar um concurso para poesias, crônicas e contos (...)
Tentei me apoiar em entidades que se afirmam de proteção e amparo ao preso (...)
Chegando encontrei um sujeito vestido de preto (...) Chamava-se Fernando Bonassi (...)
Deu-me espaço então relatei todo o meu projeto de um concurso literário com a
99
Idem, p. 477
100
Idem, p. 469, 471
101
Idem, p. 476
102
Idem, p. 471
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164
finalidade de criar um movimento literário aqui dentro (...) O concurso realizou-se. Era
uma idéia e hoje já está na fase de premiação dos ganhadores.
103
Enfim, como Luís Mendes, entram em cena, nesta tumultuada transição de
séculos, os “malandros letrados”, aqueles que transitam nos dois mundos, dominam os
seus códigos e conquistam o lugar da fala. Um lugar - ou entre-lugar - de
entrecruzamento de discursos e tensões de realidades que fazem brotar as contradições,
levando à urgente necessidade de rever o que fazer com as coisas, as idéias e também
com as palavras.
Este malandro letrado encontrou na literatura as formas possíveis – ou as
formas-prisões
104
- de um certo modelo que, paradoxalmente, tornou-se libertador.
Aceita “a prisão como forma de comportamento, a transgressão como forma de
expressão”, nas palavras de Silviano Santiago. A expressão deste “malandro letrado”
está na transgressão, não da forma, mas no uso dessa forma para expressar a própria
transgressão social e moral.
O texto de Luiz Alberto Mendes, como um convite à reflexão sobre o “estar no
mundo” hoje, promove no leitor, mediado pelos seus próprios conceitos sócio-culturais,
uma aprendizagem através do diálogo, como proposto por Todorov, em que sobressai a
vontade de conhecer este “outro” e suas experiências neste mundo. Abertos a este
conhecimento, poderíamos concluir entre muitas coisas, que julgar é inútil, e seu efeito,
completamente ilusório, e quando ele se torna um poder institucional pode transformar-
se na prática da crueldade sem limites. A “metamorfose” de Luís atinge uma força ainda
maior se pensarmos que ocorre a despeito da própria instituição prisional e da farsa à
qual se propôs.
Poderíamos também confirmar a perversidade do sistema em que todos vivemos
– presos ou “livres” – quando ele próprio cria a ilusão de uma liberdade negociável,
comerciável, que esconde a maior das escravidões. E que para escaparmos a este
convite perverso da sociedade de consumo que nos envolve como serpente sedutora,
devemos acima de tudo ter uma vontade mais forte do que qualquer grade, e remando
contra a maré, confiar no nosso próprio poder transformador que seria a libertação da
103
Idem, p. 472, 474
104
Termo utilizado por Silviano Santiago para designar a condição da escrita do artista latino-
americano em “O entre-lugar do discurso latino-americano” in SANTIAGO, 2000: 24-2.
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cegueira, das ilusões, dos preconceitos, que conformam a prisão do mundo. Talvez
assim ainda se possa falar em liberdade, mesmo que escondida nos encanamentos.
5.3. A Atitude
O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir.
Milton Santos
Os movimentos estudantis da década de 60, movidos por uma juventude que
buscava intervir intensamente nos acontecimentos sociais e políticos, criaram um
modelo ideal de comportamento no qual o jovem surgia como o grande responsável pela
geração de utopias e projetos de transformação social. As análises sociológicas das
últimas décadas, no entanto, em geral tendo como referência esta juventude de 60, têm
caracterizado as novas gerações como alienadas politicamente, esquecendo-se, muitas
vezes, dos desdobramentos dessa esfera sobre a cultura. Caracterizada como
imobilizada pela indústria cultural e marcada por um longo período autoritário, esta
juventude é constantemente descrita como individualista, sem visão crítica da
sociedade, e impossibilitada de formular qualquer projeto de mudança.
Ultimamente, associada a uma imagem de “proscrita” e “delinqüente”, a
juventude vinda das camadas populares tem também aparecido como um obstáculo à
paz e à ordem social. Na verdade, o preconceito, o racismo e a tão divulgada expansão
da violência no mundo têm acentuado esta representação negativa do jovem. Resta
saber até que ponto assistimos ao crescimento do número de conflitos e atos violentos
na vida urbana brasileira ou à amplificação e à repetição exaustiva deles no campo
midiático. Muitos alertam para o risco de um alarmismo exagerado que acaba
naturalizando a idéia de uma cultura da violência e do medo, trazendo a reboque
interpretações reducionistas e homogeneizantes que acabam construindo o estigma e
alimentando a insensibilidade coletiva. Notícias como: “Cantando a violência, os
rappers não poupam críticas aos policiais, que reagem, como aconteceu em São
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166
Paulo”
105
, foram e ainda são comuns no noticiário brasileiro. E por outro lado, versos
como estes abaixo, tornaram-se também comuns nas músicas destes jovens:
Que polícia é essa
Que de dia diz nos proteger
E vira grupo de extermínio
Assim que escurecer ?
106
A “visão planificadora” da grande mídia tem sido gradativamente substituída por
um novo foco sobre as manifestações artísticas e culturais dos jovens de baixa renda,
que, contrariando os discursos do estigma e das generalizações dos estereótipos, têm
mostrado um intenso fôlego para a criatividade, para novos projetos e para novas
práticas políticas. Milton Santos exalta a capacidade de luta e transformação das classes
desfavorecidas:
Miseráveis são os que se confessam derrotados. Mas os pobres não se entregam.
Eles descobrem cada dia formas inéditas de trabalho e de luta. Assim, eles enfrentam e
buscam remédio para as suas dificuldades. Nessa condição de alerta permanente, não
têm repouso intelectual. A memória seria sua inimiga. A herança do passado é
temperada pelo sentimento de urgência, essa consciência do novo que é, também, um
motor do conhecimento.
107
O que se pretende compreender é o que historicamente já existe: linhas e
tradições de trabalho que transcendem e atravessam as fronteiras disciplinares, com
aproximações políticas com o cultural e vice-versa, baseadas em objetivos ou práticas
efetivas de intervenção, possibilitando uma visão política do cultural e cultural da
política. Como defende Gramsci, “o modo de ser do novo intelectual não pode mais
consistir na eloqüência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas
num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, ‘persuasor
permanente’”.
Nesse sentido, é fundamental na análise cultural contemporânea, a disposição de
se questionar fronteiras e rediscutir limites, colocando-se em pauta “novas questões
elaboradas por novos modelos de intelectuais”
108
. Beatriz Resende chama atenção dos
105
Edmundo Barreiros, “Rappers enfrentam a polícia”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 11 dez.
1994. Caderno B, p. 1
106
“Homens da lei” de Big Richard.
107
SANTOS, 2004: 132.
108
RESENDE, 2002: 138
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167
teóricos que “têm muito a ganhar ouvindo com atenção o que dizem estes intérpretes
privilegiados de nosso cotidiano que são os criadores da música popular brasileira”
109
.
Hoje “o pessoal está mais aberto” e a política encontrou novos canais, “se você não está
contente (...) você escreve, canta”:
É ... essa coisa de contar a realidade está mudando para juventude ... A gente
sabe que, na época de 1964, os estudantes se juntavam no centro da cidade e resolviam
fazer passeatas e tal... Então, a gente tá procurando um outro modo pô... tem criança de
rua sendo exterminada e gente morrendo de fome ... então vamos arrumar uma outra
maneira ... vamos colocar uma batida e vamos falar em cima dessa batida que depois
acaba ficando na cabeça dos outros ... É o jeito que o jovem hoje está arrumando para
passar isso. Antigamente eu acho que a coisa era mais politizada, uma coisa mais de
movimento negro mesmo, entendeu ? Hoje em dia o pessoal está mais aberto ... você
não precisa ser politizado, você não precisa pertencer a uma entidade com uma causa,
uma bandeira a seguir para poder entrar no movimento hip hop ou fazer rap. Se você
não está contente com uma coisa que você está vendo debaixo do seu nariz, você
escreve, canta ...
110
O conhecido rap nasceu nos guetos de Nova York a partir das experiências
musicais de DJs ( Disk Joquei´s) - como o jamaicano Kool-Herc e seu discípulo Grand
Master Flash – em festas no gueto do Bronx, utilizando-se de técnicas que se tornariam
fundamentais para o desenvolvimento deste tipo de música eletrônica. Estas novas
técnicas traziam os sounds systems, mixadores, scratch (utilização de toca-discos como
instrumento musical, aproveitando fragmentos de músicas ou movimentando o disco no
sentido contrário) e repentes eletrônicos, que mais tarde seriam conhecidos como rap,
sigla de rythm and poetry. Nestas festas realizadas em guetos afro-caribenhos, afro-
americanos e até porto-riquenhos, surgiram outros elementos associados à música: o
break – a dança; as grafitagens de muros e trens do metrô; e um estilo de se vestir
despojado com calças largas, jaquetas, camisetas bonés tênis, gorros das principais
marcas esportivas. Todos esses elementos passaram a compor o chamado mundo do
hip-hop.
A fértil produção cultural que tem marcado a periferia urbana brasileira, nestes
últimos anos, trouxe o movimento hip hop como uma das manifestações mais
abrangentes e participantes. O hip hop surgiu nos Estados Unidos, na década de 70, em
bairros de populações de baixa renda, que perderam suas tradicionais instituições locais
109
Idem.
110
Entrevista à cantora de rap Ed Whiller por Micael Hershcmann, em 11/08/ 95 in
HERSCHMANN, 2005: 56.
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de apoio. Dentro desse contexto, surgiam as identidades alternativas locais que se
formavam a partir de modas e linguagens forjadas na rua, nos guetos, entre turmas de
bairro. As origens mostram que a identidade do hip hop está profundamente relacionada
à experiência local e marcada pelo apego a um status conquistado no grupo, no gueto,
gerando um compromisso com a própria comunidade que parece querer compensar a
lacuna deixada pela omissão do Estado.
Esse quadro sugere um certo sentimento de orfandade experimentado por estas
comunidades, gerando uma união do grupo que acaba formando um novo tipo de
família, contribuindo para a construção de uma organização comunitária que serve de
base para a formação de redes de movimentos sociais marcados pela experiência
participativa. As turmas de hip hop costumam se organizar em torno de associações e
“posses” como também a partir de grupos construídos por diversas afinidades, causas de
raça ou posição geográfica.
E fui crescendo rodeado pela cultura afro-brasileira,
Mas nunca me desliguei das minhas raízes,
Estou sempre junto dos blacks que ainda existem
(...)
Mudaram as músicas, mudaram as roupas,
Mas a juventude afro continua muito louca.
Falei do passado e é como se não fosse,
O que eu vejo é a mesma determinação no hip hop
Black Power de hoje
111
Como afirma Milton Santos, “a questão capital hoje é a compreensão do nosso
tempo para que se possa enfim construir o discurso da liberação. Este, desde que seja
simples e veraz, poderá ser a base intelectual da política. E isso é central no mundo de
hoje, um mundo no qual nada se faz sem discurso”.
112
A dominação que permanecia
oculta sob o ideal de Organização – nos discursos do poder de Estado, da burocracia,
etc. - tornava fácil encarar os dominantes como elites, como detentores do saber. Mas
hoje, as classes socialmente excluídas e excluídas também desta Organização, distantes
do Estado, mais ainda das instituições globais, se desprendem e não mais encaram as
classes altas como elites ou detentoras do saber, mas despertam a sua própria visão
111
“Sr. Tempo Bom” de Thaíde e DJ Hum
112
SANTOS, 2004: 48.
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crítica, ou a “visão sistêmica” - nas palavras de Milton Santos - criando seu próprio
discurso sobre a dominação. “Eles estão presentes, emergindo diariamente dos bolsões
marginais e circulando autonomamente pela cidade como interlocutores legítimos na
feitura de um novo contrato social, na configuração de novos parâmetros de identidade
local e global” explica Frederico Coelho
113
. E assumem como elemento de sua
identidade o discurso da ruptura. Como traduzem os versos de Erton Moraes, que
servem de epígrafe para a primeira parte deste capítulo,
Esse livro eu não leio
Esse livro eu nunca li
Este dicionário eu não conheço
O meu eu já escrevi
Escrevi nas pedras
Com casca de coco
Em parceria com os loucos
Editado pelos vagabundos
Lido pelos maconheiros
E os que caminham na contramão
Meu livro é travesseiro
Das prostitutas
Nas horas de solidão
(...)
Esta nova visão que surge, escrita em “outros livros”, sob outras formas, é
incorporada por uma abrangente rede cultural que, no mundo do hip hop, chama-se
atitude, como um termo que simboliza a essência do movimento. A atitude incorpora as
modulações da coreografia, do grafismo criativo, da oratória pública e da poesia.
Segundo Luís Eduardo Soares,
Aquilo que na cultura hip hop se chama atitude talvez seja a síntese de uma estética e de
uma ética, que se combinam de modo muito próprio na construção da pessoa (...) A
atitude é o avesso da violência e acena com a paz politizada que se afirma com
agressividade crítica, isto é, com o estilo afirmativo do orgulho reconquistado.
114
O movimento hip-hop se espalhou pelo mundo, mostrando o seu forte
componente de identificação com os grupos marginalizados. No Brasil, a partir dos anos
90, o hip hop surge concentrado em São Paulo que, até hoje, continua sendo o centro
irradiador do movimento para o país. Como uma “antropofagia” das classes
113
COELHO, 2006:9.
114
ATHAYDE, 2005: 84.
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170
desfavorecidas, o local reinterpreta o global, assimila-o como uma forma de contar a sua
própria história.
Os adeptos do hip hop costumam se organizar em torno das “posses” e
associações, que têm o mesmo objetivo: fazer um trabalho comunitário através da
música, da dança e da pintura, mais freqüentemente, o break e o grafite. Em São Paulo
as “posses” como, por exemplo, o Centro de Defesa Mônica P. Trevisan (Cedeca) e a
Haussa; e no Rio a Atcon (Associação Atitude Consciente) que congrega artistas,
rappers, dançarinos de vários bairros e municípios, são responsáveis pela dinâmica
social e cultural do movimento. Estas associações em geral oferecem uma educação
diferenciada através de oficinas que ensinam os jovens a fazer os seus próprios produtos
para vendê-los; palestras e atividades relacionadas aos problemas comuns da
comunidade e realização de campanhas beneficentes. São também essas associações as
responsáveis pela organização dos principais festivais, raves e bailes. Buscam não só a
solidariedade, a cumplicidade do grupo, mas também o amparo institucional e
assistencial que parece não encontrarem em lugar nenhum, como afirma Micael
Herschmann
115
. Nas palavras do rapper e produtor Carlos Massom,
A função do rapper é testemunhar o que acontece nas ruas, incluindo a violência
policial. (...) O público do rap é de periferia, e é na periferia que há mais violência
policial. As pessoas se sentem um pouco vingadas quando escutam alguém debochando
da polícia. Mas nós nunca incitamos nada. Pregamos a conversa, a inteligência.
116
A cultura hip hop surge, no contexto social e político brasileiro, associada a
valores surpreendentes dentro da realidade ética e moralmente estilhaçada em que
vivemos. Questões como solidariedade e justiça têm sido a base sólida para a
construção deste movimento que, marcado por uma linguagem crua e agressiva, que
promove a inversão do discurso instituído, com a plena consciência da violência
estrutural do sistema em que vivemos, tem criado o movimento jovem mais crítico e
atuante desde as gerações de resistência à ditadura militar.
Em 2004, o hip-hop, representado pelos rappers MV Bill, Rappin Hood, Edi
Rock e GOG, foi recebido pelo Presidente Lula no Palácio do Planalto, com a proposta
de estabelecer planos e metas de um projeto que os levasse a uma ação política junto ao
governo:
115
HERSCHMANN, 2005: 193.
116
Carlos Massom, “Eles não sabem de nada”, Veja, São Paulo, 7 dez. 1994., p. 7.
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Precisamos estabelecer nossas metas na ação social voltada à periferia. Não
devemos aceitar qualquer tipo de apadrinhamento ou paternalismo político que
comprometa nossos ideais. Somos e seremos a juventude indignada com a submissão de
nossos governantes ao imperialismo internacional (...) Não queremos mais rostos
pintados, não queremos mais “impeachment”!!. Fazemos hoje parte da história e
resistimos até que nos calem, como resistiu aquela juventude dos anos 60 e como
resistiu a juventude da metalúrgica dos anos 80. Resistimos hoje por meio de nossa arte
e de nossa organização política e social. Não esperamos o poder para daqui a 20 anos e
nem lutamos pelo poder, só queremos espaço para que o jovem sinta-se participativo
(...) Cumpriremos nossa parte na esperança de que o poder exerça a tão prometida
cidadania.
117
O governo, em resposta, prometeu criar uma comissão interministerial formada
por integrantes do hip-hop. Hoje, em 2007, não vimos ainda a tal comissão em
funcionamento. Será que deveríamos esperar por ela? Ou deveríamos acreditar que os
movimentos políticos populares devem efetivamente lutar, não pelo Poder, mas por um
“outro poder”. Como defende Milton Santos, “uma coisa parece certa: as mudanças a
serem introduzidas, no sentido de alcançarmos uma outra globalização, não virão do
centro do sistema”.
118
Vale lembrar a importância da conquista do espaço de um novo discurso, já
efetuada pelo hip-hop, o que nos leva a questionar a compatibilidade entre o discurso
institucional e o ideal democrático, como ressalta Marilena Chauí: “não é qualquer um
que pode dizer a qualquer outro qualquer coisa em qualquer lugar e em qualquer
circunstância”
119
. Dessa forma, o “discurso competente” confunde-se com a linguagem
institucionalmente permitida ou autorizada, dirigida a um determinado público. Como
traduzem os versos irônicos do poeta Ridson:
Na escola dez verdades sobre Isabel e Palmares.
Atenção, atenção, classe. Tomem seus lugares.
Dez verdades multiplicando realidades.
Atenção, atenção, classe. Tomemos nossos lugares.
120
Além das ações políticas, o movimento hip-hop também recupera tradições
como o movimento de poetas menestréis na nova produção de “cordel urbano”,
ressaltando o poder da palavra em formas sonoras e ritmadas, que servem, não mais ao
117
“Lula assume compromisso com o hip-hop” in Revista Rap Brasil, nº 23, ano IV.
118
Op. Cit, p. 154.
119
CHAUÍ, 1982: 7.
120
“Fósforo” in FERREZ, 2005: 81.
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amor ou ao humor, mas à revolta e à indignação. Alguns cordelistas, como Ridson e
Gato Preto, são integrantes de grupos de rap como também da “família” de cordel
urbano “Extremamente” e participam da coletânea Literatura marginal, organizada por
Ferrez. Gato Preto canta uma outra Bahia nos versos do cordel “A Bahia que Gil e
Caetano não cantaram”.
Vem conhecer a Bahia, sou um guia diferente
Mostro a verdadeira cara da nossa gente
Vai ver que não é só carnaval, praia e acarajé
Vai ver o que é não ter alimento e manter-se de pé
Bahia de Todos os Santos? Besteira
Olho meu povo se alimentando de restos de feira
121
Na crítica à linguagem popular, são freqüentes afirmações que inferiorizam esta
produção, através de termos como “código perceptivo e lingüístico restrito”, o que seria
um eufemismo para encobrir palavras como inferior, pobre, estreito. Na verdade,
tomamos nossos próprios códigos como paradigmas e somos incapazes de apreender a
diferença de um outro código, “conciso pela fala e expressivo pelo gesto, marcado pela
fadiga, por uma relação com o trabalho na forma do cansaço, numa exaustão que
determina a maneira de designar o espaço e de viver o tempo”, como explica Marilena
Chauí
122
. Nesse sentido, estamos em sintonia com a posição teórica de Beatriz Resende,
que, ao analisar os discursos poéticos da música popular brasileira, parte de três
suposições: a resistência aos diversos cânones, pelo que há neles de excludente, já que
este se constitui não pelo que escolhe, mas pelo que rejeita; abandono das obsessões
classificatórias, tanto as de gênero literário quanto as de música popular; um esforço por
não trabalhar com os costumeiros critérios de valor, preferindo buscar nas expressões
musicais a capacidade de mover o ouvinte e sensibilizar o público.
123
Com o mesmo intuito, Alberto Moreiras adverte sobre os riscos de apropriação e
contaminação por um habilidoso e astucioso lugar de fala pela crítica literária, contra o
qual prescreve “uma leitura própria e responsável, uma leitura respeitosa de uma
diferença cultural que se presume ser radicalmente heterogênea
124
. Essa postura deve ser
a mesma dos críticos de hoje: exercício de solidariedade e respeito ao texto, à escrita do
outro; respeito à cultura do outro.
121
FERREZ, 2005: 53.
122
Idem , p. 47
123
RESENDE, 2002: 126.
124
MOREIRAS, 2001: 273
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173
Se pensamos que o rap é uma música feita, a princípio, pela periferia para a
periferia, marcada por um vocabulário que é o seu próprio código de identidade,
podemos compreender a sua capacidade de mover e sensibilizar o público. Da mesma
forma, o discurso tem que dar prova de que deseja o ouvinte - ou o leitor - como
argumenta Roland Barthes, “lá onde precisamente ele [o texto] excede a procura,
ultrapassa a tagarelice e através do qual tenta transbordar, forçar o embargo dos
adjetivos – que são essas portas da linguagem por onde o ideológico e o imaginário
penetram em grandes ondas”. Afirma ainda que o seu interesse pela linguagem está
relacionado à capacidade desta de ferir ou seduzir, e analisa a “erótica de classe” no
discurso, ressaltando o caráter substancial da linguagem popular:
Trata-se, talvez, de uma erótica de classe? Mas de que classe? A burguesa? Ela
não tem nenhum gosto pela linguagem, que já não é sequer a seus olhos, luxo, elemento
de uma arte de viver (morte da “grande” literatura), mas apenas instrumento ou cenário
(fraseologia). A popular? Aqui, desaparecimento de toda atividade mágica ou poética:
não há mais carnaval, não se brinca mais com as palavras: fim das metáforas, reino dos
estereótipos impostos pela cultura pequeno-burguesa.
125
O “reino dos estereótipos”, para Barthes, tornou-se um elemento de violência na
ficção contemporânea que descreve o caos social, na visão de Susan Sontag sobre a
metáfora, em A doença como metáfora. A liberdade retórica favorece a sensibilidade e a
espontaneidade literárias, que, por se relacionarem de modo espontâneo com a
linguagem, retiram sua força artística não das firulas do cânone, mas da experiência
libertária.
O que presenciamos hoje, nestes movimentos da periferia, é uma surpreendente
celebração da palavra, a palavra no centro como modalidade de denúncia, de afirmação,
de visibilidade e construção. O rap, como ritmo e poesia, traz esta consagração num
universo que, como disse Marilena Chauí, é caracterizado pela concisão e pelo
“cansaço”, e talvez por isso, a palavra surja como a possibilidade de um despertar e de
aproximar os homens, ou re ligar os homens a um sagrado.
Tricia Rose, no seu livro Black noise
126
, analisa o rap como um produto
comercial pós-industrial, situado na história das práticas culturais dos negros,
considerando-o como um desdobramento direto das tradições orais, poéticas e de
protesto dos afro-americanos, relacionando-o a um sermão. Este sentido parece ser
125
BARTHES, 1999: 51.
126
ROSE, 1994.
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174
fundamental para a compreensão da força do rap, como reitera MV Bill: “Eu me sentia
um pastor, carregando a Bíblia. Subia no palco como quem vai pregar. Tinha um
sentimento de missão. Ainda tenho” (grifo meu). Celso Athayde dá o seu depoimento:
Ele entrou no meu quarto e começou a falar dos seus sonhos, que acreditava tanto no
que cantava que chegava a pregar o hip hop no trem, que isso era mais importante que a
vida dele”
127
. E descreve o primeiro show de MV Bill:
em determinado momento, ele parou para falar algo. Não sei o que ele dizia; o silêncio
tomou conta da quadra da escola; ele seguia falando; tinha a segurança de quem sabe o
que diz; era impressionante ver aquele pastor pregar. Nos intervalos entre uma fala e
outra, todos aplaudiam e gritavam como se ele tivesse feito um gol de placa. Não era
possível que aquele neguinho magricela pudesse ser aquele astro, mas era. Acabou sua
performance aos gritos e aplausos efusivos. Impressionante tudo aquilo.
128
Poderíamos, aqui, nos deixar iluminar por Mário de Andrade e sua concepção de
arte como um poder de coesão social com caráter religioso, ou seja, a idéia de que as
manifestações religiosas visam promover a religação dos membros de uma dada
comunidade, e se a arte teve origem nas manifestações do culto, necessariamente
coletivas, ela manteve o mesmo poder agregador. Dentro desta concepção, o artista, que
participa como principal oficiante dessas manifestações coletivas com o seu trabalho,
suas angústias e o seu sacrifício, adquire uma importância reconhecida por todos. Nas
sociedades em que a arte mantém essa função associativa, o artista vive a sua vocação
como uma verdadeira missão. E hoje, a missão do artista, na sociedade profundamente
complexa em que vivemos, parece requerer, mais do que nunca, obstinação e coragem.
Na conclusão de Luís Eduardo Soares em Cabeça de Porco, no Brasil de hoje,
“Se desejamos competir com o tráfico e recrutar jovens, sobretudo os mais vulneráveis
ao assédio do crime” devemos optar “Pela arte, pela cultura, com a criação estética e
cultural, com as formas expressivas”
129
. Não se devendo esquecer que, além de arte,
“Rap é compromisso, não é viagem”
130
, nos versos do Sabotage. Ou nas palavras de
Bnegão:
Dignidade, simplicidade, infelizmente se tornaram artigos de luxo na atualidade
Falta de vontade, disparidade entre discurso e atitude, são os maiores pilares
dessa situação.
127
ATHAYDE, 2005: 84 e 199.
128
Idem, p. 199.
129
Op. Cit. P. 286.
130
“Rap é compromisso” do grupo Sabotage
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175
Escalafobética, patética, na qual nos metemos, pela qual vivemos e morremos
Algumas vezes mais, pra aprender, reconhecer a todos como irmãos, uns mais
evoluídos, outros não… mas todos com sua missão
Uma nova visão
O microfone, meu megafone, passando de mono pra estéreo a sua
compreensão
131
Os cantores de rap assumem um misto de contadores de histórias e cronistas do
“cotidiano maldito”, difundindo sua denúncia numa linguagem agressiva, característica
do “gueto”, através das imagens da violência, que, paradoxalmente, pregam a sua
inversão e a possibilidade de saída dessa condição. Partem de uma visão muito clara de
certos mecanismos perversos a que estão sujeitos, por parte do Estado omisso e de
grande parcela da sociedade, como o abandono e o estímulo à violência interna e à
autodestruição dessas populações, através de uma política pública que há muito tempo
não esconde sua permissividade. Os rappers avisam aos “dominados”:
Você tem que deixar de ser dominado
A vida é um jogo marcado e a gente só está no primeiro ato
O sistema dá as armas para nossa destruição
Não faça o jogo deles
Não seja bobão
132
No rap irônico “Inconstitucionalissimamente”, MV Bill rima todos os versos
malditos com a palavra mais extensa da língua portuguesa, mostrando a contradição de
uma sociedade caótica que se diz “constitucional”:
Corpo alvejado é freqüente, seja resistente
Mazelas de uma sociedade decadente
(...)
Perigo eminente
Refugiado em outro continente
Boca fechada passa imagem de decente
Quem se rebelar é delinqüente
(...)
Então respeite a minha patente
(...)
O poeta Ridson, no refrão do poema “Fósforo”, resume:
131
“Nova visão” de Bnegão
132
“Atitude errada” de MV Bill e DJ TR
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Trigo pro corpo, luz pro espírito,
Depois um livro e um revólver pra cada oprimido.
133
Na sociedade brasileira contemporânea, temos assistido ao fenômeno da
ilegalidade que invade a legalidade, estabelecendo uma relação promíscua com a ordem
pública e a degradando. Luís Eduardo Soares chama atenção para o fato de que “por
outro lado é a marginalidade que reconhece as virtudes da vida legal, deixa-se
sensibilizar por seus apelos, abre canais de comunicação, provoca diálogos morais e
procura caminhos de volta”.
134
Em “Salve-se quem puder”, Dexter e Gog escrevem a
sua indignação:
Irmão, eu daqui assisto só desgraça
Vejo o ser humano se matando de graça
Na praça, já não faz sentido andar
As rosas murcharam, contaminaram o ar
Nas casas os portões, só vivem trancados
Os carros dos milionários, são blindados
Hoje em dia, ninguém confia em ninguém
Parceiro mata parceiro por malote de cem
(...)
Enquanto uma escola é construída num lugar
Já se tem dez prisões a mais pra inaugurar
Política opressora, exclusão social
Dentista perde a vida por motivo racial
O morro e o asfalto no Rio tão em guerra
Integrantes do MST querem terra (a causa é séria!)
Uns matam, outros morrem por um qualquer
Assim que é, salve-se quem puder...
(...)
No Sudão matam negros com AK-47
Prisão de Sadam chegou via satélite
Bush, a besta de um sonho americano
Patrocina a dor do povo iraquiano
Fuzis atiram em defesa do petróleo
América do Norte garante o monopólio
O mundo se comove, porém ninguém se move
Ei doutor, cê ta na mira da minha nove
Meu microfone faz o estrago que eu quiser
135
Presenciamos hoje, uma desobediência generalizada às leis, normas, regras,
mandamentos, costumes derivados da racionalidade hegemônica, gerada pela
incapacidade, cada vez maior, do sistema, em “disciplinarizar”, e esconder suas
133
FERREZ:, 2005: 81.
134
ATHAYDE, 2005: 284.
135
“Salve-se quem puder” de Dexter e Gog
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contradições. Daí a proliferação de “ilegais”, “irregulares”, “informais”. Produz-se,
dessa maneira, não só uma consciência coletiva da incapacidade do Estado em manter a
organização social, mas a redescoberta da verdadeira razão pelos homens, e não
surpreende que tal descobrimento se dê exatamente nos espaços sociais, econômicos e
geográficos também “não conformes” à racionalidade dominante.
Com um discurso que resgata valores, cantados num ritmo preciso e marcados
pela sonoridade das rimas, os rappers têm ocupado o lugar de líderes políticos e mestres
das suas comunidades. Acabam por substituir os políticos profissionais que se deparam
com a inadequação da sua própria representatividade, como mostra a reportagem da
Folha de São Paulo:
Os rappers são espécies de “gurus” de muitos jovens nas favelas e conjuntos
habitacionais, como as Cohabs, na periferia de São Paulo. Alguns deles como o
líder do Comando DMC, Easy Jay, de Itapevi (município da Grande São Paulo),
costumam dar palestras sobre temas como drogas, desemprego e falta de
perspectiva para a rapaziada (...). O grito do rap acima do tom dos políticos teve
um momento histórico na campanha eleitoral para a Presidência em 1994. Os
petistas foram expulsos a pedradas de um comício em Campo Limpo, na zona
sul da capital. Tudo por um motivo simples demais para os jovens da platéia:
eles queriam mesmo ouvir o que tinha a dizer o grupo Racionais MCs, o maior
sucesso no rap do Brasil.
136
Na composição coletiva “Filhos do Brasil”, de Gabriel O Pensador, Big Richard,
Eduardo CaêMC, Gás-Pa, Leandro, Edwiges, Buiú e MV Bill, os rappers assumem o
papel da “Consciência Urbana”:
Atitude consciente estamos de luto
Parece que a lei está morta e o
Respeito junto (...)
Nós somos a Consciência Urbana
E viemos falar de uma triste
Realidade
Que é até difícil de acreditar
A chacina de crianças pobres
Em nossa nação (...)
Vítimas da pobreza, são mortas
Enquanto dormem
É assim que o estatuto da criança
É cumprido
Jogado nas ruas, desprotegidos
Levando tiros
Ao invés da assistência
Entregues à delinqüência
136
“Rap ocupa espaço dos políticos na periferia”, Folha de São Paulo, 28 jan. 1996, p. 16
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178
MV Bill era aconselhado por Celso Athayde, antes do sucesso, a não só
denunciar, “mas mostrar caminhos, criar alternativas, botar a cara; isso, sim, faria a
diferença”
137
. A necessidade de pensar o mundo e a necessidade de que os pensamentos
sejam aplicados de imediato, sempre fizeram parte do desafio vivido pelo intelectual.
Mas a complexidade do mundo de hoje, dominado por uma visão limitada e
unidirecionada, tentando naturalizar as contradições, torna ainda mais árduo o trabalho
daquele que se opõe, em outras palavras, não seria só nadar contra a maré, mas contra
correntes extremamente fortes. Dessa forma, só a obstinação poderia mover o
intelectual hoje, que, sem resultados, nem perspectivas de vê-los, ainda nada.
É a resposta que Celso Athayde tenta achar, depois de viajar pelas favelas do
Brasil, filmando as crianças que vivem e morrem no tráfico, um trabalho que por fim se
transformaria no livro Cabeça de porco: “Nosso livro, o que fazer de nosso livro?
Nossos projetos, nosso país. O que fazer de nós, neste país?”
138
. Luís Eduardo Soares
completou: “reconhecemos que a pergunta é maior que nós. (...) Quem ousaria
reconhecer a superioridade da pergunta sobre a resposta? (...) E agora aqui estamos, a
questão étnica intocada, cercada de pavor e idealizações; a desigualdade, fratura
exposta, naturalizada; tantas outras questões ainda não enfrentadas”.
139
No entanto, outras perguntas ainda surgem como questões aparentemente sem
resposta. É instigante se pensar como as comunidades da periferia elegeram esses
rappers como seus “gurus”, ou como MV Bill, o autor do contradiscurso do crime e das
drogas, seja respeitado e reverenciado pelos traficantes, como ficou provado na
excursão que fizeram pelas favelas de todo o país.
Paramos numa lanchonete e começamos a falar sobre rap, crime, mulheres e
sobre o que estávamos fazendo ali. A imagem do Bill abria todas as portas para nós. Era
impressionante como ele era símbolo em qualquer favela. Nos hotéis, as arrumadeiras o
cumprimentavam com orgulho, os subalternos mais humildes dos lugares aonde nós
íamos eram exatamente os que mais o reverenciavam. (...) Nas favelas de qualquer
lugar do Brasil, isso dava uma sensação de imunidade criminal. Por outro lado, pra
mim, que sei o que o Bill prega, era também uma contradição absurda. Se ele recrimina
o tráfico de drogas e critica abertamente essa prática e a escravidão a que esses jovens
estão submetidos, em todos os estados e cidades, por que então ele é herói dos
bandidos? Por mais que ele queira, não acredito que ele tenha a resposta, pelos menos
137
ATHAYDE, 2005: 202.
138
ATHAYDE, 2005: 72.
139
Idem, p. 73
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179
uma que me convença. Eu tenho as minhas respostas também, mas não estou
convencido de nenhuma delas.
140
A pergunta de Celso Athayde ecoa nas nossas mentes como algo perturbador, à
primeira vista paradoxal. Mas não resistindo a essa reflexão, somos levados a pensar
que os homens têm necessidade de valores que possam dar sentido à vida, até mesmo às
vidas que parecem não conhecer valor nenhum. E as virtudes reclamadas por este
rappers, esquecidas na margem da lógica capitalista, têm brotado na percepção dessas
comunidades a partir da confrontação entre duas realidades e das contradições que delas
resultam: a racionalidade hegemônica e a racionalidade que brota do cotidiano da vida.
A partir daí, é construído um conhecimento ético e moral pela própria comunidade, que
consegue dessa forma, apagar um pouco da confusão dos seus espíritos. Como
representantes desses valores, esses líderes ocupam também o papel tradicional de um
Pai sacerdotal, ou aquele que cuida, dá conselhos e tem sabedoria.
Estes movimentos populares criam um novo discurso de ruptura, não mais
expresso pela intelectualidade ou pelos movimentos de esquerda, mas pela juventude
organizada das periferias urbanas. Frederico Coelho ressalta que estes jovens, como
“mediadores culturais”, propõem a ruptura não se estabelecendo mais no campo da
barbárie e do terror, mas, pelo contrário, por meio de práticas pacíficas, “propiciam
novas formas de se travar contato entre as diferenças sociais e os novos parâmetros de
associativismo político e ação coletiva no âmbito da sociedade civil”
141
. Falando sobre
a violência, eles falam também da possibilidade de se sair dela, desconstroem o cinismo
operante na nossa sociedade, e invertem a noção das “invasões bárbaras”: bárbaros são
aqueles que reproduzem o cinismo
que nos domina.
Em sintonia com este pensamento, Micael Herschmann lembra que a violência, a
que muitas vezes é relacionado o movimento hip hop – na linguagem e no tema - não só
é evidência de dissidência e caos social, mas pode ser também vista, cada vez mais
claramente, como um elemento constitutivo capaz de fecundar novas expressões do
social e até mesmo como fonte de “renovação” e de vida. Relaciona-se às diferenças, à
heterogeneidade social presente em qualquer sociedade já que a luta é o fundamento de
grande parte das relações sociais.
140
Idem, p. 42.
141
Expressão criada por Silvia Ramos e utilizada por Frederico Coelho em “O inferno são os
outros: funk, hip hop e os usos estratégicos da diferença”.
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180
De maneira geral a violência gerada por grupos sociais é sempre vista como
ilegítima, como a parte “maldita” do cotidiano. No entanto, à medida que o próprio
Estado é marcado pelo abuso do poder, pela corrupção, pela omissão, e a lógica
capitalista, através das grandes corporações, impõe um sistema perverso,
economicamente explorador e socialmente excludente, existe uma violência estrutural
que se encontra nas bases de toda a organização social. E a partir daí, é gerada uma
violência de mão dupla, que se multiplica em todas as direções e não corresponde mais
aos conflitos básicos, mas a todas as relações sociais, até se tornar uma cultura, tendo a
própria violência como princípio e fim, como mostram os versos, já citados
anteriormente, de Ridson, do Movimento de Cordel Urbano: “Trigo pro corpo, luz pro
espírito / Depois um livro e um revólver pra cada oprimido”
142
. “O sistema faz o povo
lutar contra o povo”, diz MV Bill em “Traficando informação”, e aconselha em
“Atitude errada”:
Você tem que deixar de ser dominado
A vida é um jogo marcado e a gente só está no primeiro ato
O sistema dá as armas para nossa destruição
Não faça o jogo deles
Não seja bobão
143
Por outro lado, na grande mídia, assistimos à massificação da cultura da
violência que estimula muito mais o entorpecimento coletivo – ou o embrutecimento
dos embrutecidos – do que a conscientização que possibilite uma saída. Celso Athayde,
ao conhecer o tráfico de uma favela em Joinville, depara-se com a “exportação da
violência carioca” para todo o Brasil, e conclui sobre a participação efetiva da grande
mídia na disseminação da cultura da violência:
Chamavam o inimigo de “alemão”, diziam-se do “Comando Vermelho” (...)
Eles reproduziam com precisão o dialeto das favelas cariocas (...) parecia que os
comandos do Rio de janeiro tinham franchises espalhadas por lá. (...) Ali eu via
claramente o quanto a televisão contribuiu e contribui para a nacionalização da
criminalidade; como a televisão massifica e acaba estimulando as pessoas a fazer o que
se estampa na tela (...) Pior que isso, as TVs não somente fazem as matérias de maneira
equivocada – considerando-se o ponto de vista do qual observo a situação, é claro -,
como também colaboram para a manutenção e ampliação do problema, ao desenvolver
campanhas de propaganda que giram em torno da valorização de sexo, status e poder.
Mas tudo em nome da liberdade de imprensa. Então vamos nessa
144
.
142
“Fósforo”, in FERREZ, 2005: 81
143
“Atitude errada” de MV Bill e DJ TR
144
ATHAYDE, 2005: 55.
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181
O hip hop é constantemente comparado ao funk, como expressões da periferia, e
por muito tempo foram aprisionados na mesma classificação: ambos acusados de
promover festas, músicas e danças que incitam a violência. Micael Herschmann
esclarece:
a diferença é que o funk é considerado perigoso por produzir uma conduta
inconseqüente, que glorifica a delinqüência, e o hip hop é considerado perigoso por sua
postura radical e hiperpolitizada, por produzir um discurso que incita o racismo, a
intolerância, a revolta violenta das minorias.
145
Esse “perigo” tem níveis de complexidade no contexto social contemporâneo.
Marilena Chauí fala sobre os mecanismos do discurso da crise
146
na cultura
hegemônica, lembrando que a crise nomeia os conflitos no interior da sociedade e da
política para melhor escondê-los. O conflito, a divisão, a contradição são nomeados por
este discurso, como “perigo”. É criado o sentimento de um “perigo” que ameaça
igualmente a todos, que dê a eles o sentimento de uma comunidade de interesses e de
destino, levando-os a aceitar a bandeira da salvação de uma sociedade supostamente
homogênea e racional. A crise, neste sentido, serve para opor uma ordem ideal a uma
desordem real, o acontecimento é encarado como um engano, um acidente, ou algo
inadequado. Tal representação permite imaginar o acontecimento histórico como um
desvio.
O poeta Ridson mostra no poema “Epidemia”, que, em geral, a câmera filma “só
a revolta e a reação”:
Onde houve injustiça sempre haverá um rebelde.
Eles têm medo de nós porque somos maioria.
A burguesia sofre de guetofobia
(...)
“Jornal Nacional”, a chamada anuncia a notícia:
Manifestantes entram em confronto com a polícia.
Eles tinham faixas e palavras de ordem.
Contra gás lacrimogêneo, cassetetes, tropas de choque.
Só que a câmara filmou só a revolta e a reação.
De quem no desespero atira pedra em vão.
E no bloco seguinte o que se viu, ouviu:
145
HERSCHMANN, 2005: 194.
146
Op. Cit., p. 37
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182
“Pesquisa prova: desemprego diminui no Brasil”.
147
A importância do momento que vivemos está nesta descoberta do limite dos
artificialismos, que por sua vez gera a crise da “competência” do discurso instituído.
Marilena Chauí completa, dizendo que não precisamos aguardar que a ideologia se
esgote por si mesma, graças à contradição, mas trata-se de encontrar uma via pela qual a
contradição ideológica se ponha em movimento e destrua a construção imaginária.
É agora, quando o artificialismo da ciência, o artificialismo da comunicação de
massas, o artificialismo da informação, o artificialismo reinante na produção de todas as
representações alcança o seu limite, é agora que se torna possível transparecer a verdade
da ideologia contemporânea.
148
As palavras de Celso Athayde: “Claro que sei que existe uma grande diferença
entre aqueles que têm discurso e aqueles que praticam o que pregam” corroboram a
visão de Milton Santos de que “a semente do entendimento já está plantada”
149
, pelas
demandas não satisfeitas, pela confusão entre os discursos e as situações, entre a
explicação das coisas e a sua propaganda. Nos versos do poeta Ridson:
Mansões, reuniões, festas, drinks, caviar.
E na favela, nos barracos, algo começa a mudar.
O filho mostra à mãe o que ela nunca percebeu.
Porque nunca teve a oportunidade, não leu não aprendeu.
150
A imprensa e a televisão têm sido um espaço eficientíssimo para a consagração
do “discurso competente” e a conhecida estigmatização promovida por elas tem
contribuído bastante para a chamada “demonização” da cultura da periferia,
apresentando-se como resultado do sucesso destes veículos de comunicação em anular
os discursos instituintes, ou “perigosos”. A revista Veja e semelhantes, de grande
circulação nas classes média e alta, dedicando-se intensamente a este papel, têm
veiculado reportagens como “Pretos, pobres e raivosos”
151
:
Empurrada pela mão negra na contracorrente do disco, a agulha arranha o vinil.
Jovens pretos, garotos pobres, adolescentes enfezados saltam, dão piruetas rolam no
147
FERREZ, 2005: 78
148
op. Cit. P. 32.
149
Op. Cit. P. 133.
150
“Epidemia” de Ridson, in FERREZ, 2005: 80.
151
Veja, São Paulo, 12 jan., 1994, p. 52.
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183
chão (...). São gestos rápidos, gingas elétricas e agressivas. O cotidiano nas periferias
brasileiras pode ser feio e hostil (...). De suas vielas esburacadas, está ganhando força
uma cultura visceral na sua rebeldia. A cultura funk, rap, espalha-se. Tem até um nome,
de sonoridade elétrica. Hip-hop.
Invisível a maior parte do tempo, esse mundo só chama a atenção no momento
em que deixa de ser dança e música e se torna violência.
E seria mera coincidência o rap “Brasil com P”
152
?
Parte I
Pesquisa publicada prova
Preferencialmente preto
Pobre prostituta pra polícia prender
(...)
Pelas periferias praticam perversidades
Pm´s
Pelos palanques políticos prometem prometem
Pura palhaça
Proveito próprio
Praias programas piscinas palmas
Pra periferia
Pânico pólvora pá pá pá
(...)
Parte II
Papai, Pede Pizza, Papai
Patricinha, Pega Pipoca.
Poxa Papai, Pede Pizza...
Pronto. Pizzaria Pazzianoto
Prepara Pizza, Parte Palmito, Parte Presunto.
As manifestações de inconformidade constituem um processo lento, “mas isso
não impede que no âmago da sociedade, já estejam, aqui e ali, levantando vulcões,
mesmo que ainda pareçam silenciosos e dormentes”, avisa Milton Santos.
153
Num
contexto marcado pela crescente “experiência midiática”, pela crise do Estado e pela
fragilidade dos canais de representação política, a mídia apresenta-se como um espaço
fundamental de negociação, no mundo de hoje. Ainda que se diga que “a liberdade de
imprensa transformou-se na liberdade para poder comprar uma imprensa”, mesmo
assim, como representante dos grandes interesses econômicos e reprodutor de uma
lógica hegemônica, o espaço midiático deixa brechas que abrem possibilidades para o
reconhecimento de novos sentidos. E também para a compreensão de que os intelectuais
precisam desenvolver uma estratégia midiática, que, sem compromissos nem
152
“Brasil com p” de Gog in Caros Amigos – Literatura Marginal – Ato III
153
Op. Cit. P. 134.
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184
demagogias, mas com sentido de eficácia, lhes permita intervir na vida pública, como
defende Umberto Eco. A intervenção “eficaz” deve levar em conta os limites dessas
“negociações”, como sugere MV Bill:
Vinham aquelas senhoras negras, desdentadas e com roupas muito humildes, e me
abraçavam, dizendo que tinham me visto no Luciano Huck; outras que tinham me visto
no Serginho Groismann. Aquilo me fazia pensar outras coisas, me fazia pensar no hip
hop, numa nova estratégia para o movimento. Afinal os verdadeiros reis das favelas não
somos nós, do rap, que fugimos da mídia. Os verdadeiros reis que fazem as favelas
parar e colocar tapete vermelho são o Alexandre Pires, o Djavan, a Ivete Sangalo, os
Titãs. Sei lá, não quero ser nenhum deles e sei que eles não querem ser eu. Eu pensava
naquele momento, que ficar fazendo cara de mau é coisa do passado. O rap tinha sido
importante até aqui, desse modo, mas passou. Não dava mais pra ficar vivendo de bico.
Temos que ir para as realizações; chega de blefe. Eu sabia que nem todos os grupos
poderiam ir para a mídia, pois muitos não saberiam o que dizer, como dizer. Então, para
muitos uma boa contribuição seria mesmo ficar de boca fechada.(...) tudo isso passava
pela minha cabeça. Eram poucos minutos, mas muitas reflexões sobre hip-hop, sobre a
vida. O que não quero é vestir uma fantasia de Mc e ficar vivendo um Big Brother.
154
E da mesma forma, adverte o rapper paulista Thaíde:
O mercado vai fazer o rap estourar e pode se tornar algo como lambada, axé
music, o pagode ou o sertanejo. Isso é o que o mercado fonográfico quer e com certeza
vai acontecer (...) Não podemos simplesmente nos vender pra mídia, temos que ser
inteligentes e trabalhar direitinho para que as coisas aconteçam da maneira correta.
E acordo com este pensamento, Milton Santos adverte para o risco de se
estimular a cristalização dos movimentos populares:
A obtenção de resultados, por mais compensadores que pareçam, não deve
estimular a cristalização do movimento, nem encorajar a repetição de estratégias e
táticas. Os movimentos organizados devem imitar o cotidiano das pessoas, cuja
flexibilidade e adaptabilidade lhe asseguram um autêntico pragmatismo existencial e
constituem a sua riqueza e fonte principal de veracidade.
155
Micael Herschmann defende o aproveitamento das “frestas” produzidas pela
mídia, como um espaço para a percepção das diferenças: “No caso dos funkeiros, b-
boys [adeptos do hip-hop] e, talvez, de outros grupos urbanos marginalizados, na
medida em que a mídia os torna “visíveis”, permite-lhes, de certa forma, denunciar a
condição de “proscritos” e reivindicar cidadania.
156
154
ATHAYDE, 2005: 36.
155
Op. cit. p. 134.
156
Op. Cit. P. 118.
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185
O depoimento do urbanista e pesquisador do funk, Manuel Ribeiro, em
documentário para a televisão, aproveita uma “brecha” e argumenta com perspicácia:
Querem censurar as músicas dos rappers e dos MCs que falam das drogas, das
armas, da criminalidade, que mostram a realidade das favelas. Querem censurar as
músicas ... dizem que não se pode falar das armas e das drogas nas favelas. Ora, o que
não pode existir são as armas e as drogas e não a música ...
157
A música “Depoimento de um viciado” parece confirmar a questão:
Com meu destino ninguém mais se importa (...)
O vício tira a calma, a cabreiragem me acelera
O demônio rouba a alma, o inferno me seqüestra (...)
Único mano é o cano na cintura
Eu preferia tá falando de amor
Falando das crianças, e não da minha dor.
158
A informalidade que caracteriza este modo de vida alternativo da periferia é
também determinante para as soluções que surgem. Além das reservas que os jovens do
hip hop mostram nas suas relações com a grande mídia, eles apresentam saídas para este
impasse que, além de eficientes por um lado, podem ser problemáticas, por outro.
Estimulando as rádios, as TVs comunitárias e as gravadoras independentes - que têm
sido responsáveis por grande parte da produção musical do hip-hop – eles estimulam
também a pirataria no interior do seu próprio mercado alternativo. KDJ, discotecário e
integrante do grupo Racionais MCs, explica que
A gente também não quer virar “sabão em pó” na mão das grandes gravadoras, ter nosso
trabalho controlado (...) Agora, infelizmente as gravadoras independentes não são
profissionais (...), não pagam os direitos do artista (...) O mercado existe, só falta
divulgar, trabalhar ele. Você pode ver nas periferias, nas rádios comunitárias, o pessoal
toca nossa música nova em fita pirata que gravou em show. Os caras gravaram,
reproduziram várias cópias e estão tocando ...
159
Para não virar “sabão em pó”, existe também um custo, o custo da falta de uma
experiência na administração de um mercado. Mas isso parece não preocupar os
rappers, KDJ explica que, mesmo sem muita estrutura e contando apenas com a “mídia
157
Documentário A realidade do funk, veiculado pela CNT em março de 1996.
159
HERSCHMANN, 2005: 268.
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186
alternativa”, os Racionais MCs venderam 400 mil cópias do disco Raio X do Brasil. Nas
palavras do produtor musical Fabio Macari,
o pessoal não acredita que possa existir essa técnica aqui porque a gente
praticamente não tem recurso. Não tem quase nada, mas faz na raça ...Hoje tem gente do
hip hop montando selo, transformando esse selo numa gravadora mesmo, tendo o
estúdio, o processo parcial ou até mesmo integral nas mãos.
160
Alguns apontam “uma revanche” da cultura popular sobre a cultura de massa,
quando, por exemplo, ela se difunde através do uso dos instrumentos que na origem são
próprios da cultura de massa. No entanto, a cultura popular, que se realiza segundo
níveis mais baixos de técnica, de capital e de organização, poderia apresentar, por estas
condições, uma fraqueza, mas aparente, como argumenta Milton Santos,
na realidade é uma força, pois se realiza, desse modo, uma integração orgânica com o
território dos pobres e com o seu conteúdo humano. Daí a expressividade dos seus
símbolos, manifestados na fala, na música e na riqueza das formas de intercurso e
solidariedade entre as pessoas. E tudo isso evolui de modo inseparável, o que assegura a
permanência do movimento.
161
A rebeldia destes movimentos impõe a informalidade nas relações sociais
rompendo fronteiras que desafiam também o direito de propriedade. O “pirateamento”,
um recurso característico do rap, que consiste na utilização natural de outras músicas e
gravações, nada mais é que uma demonstração de que “tudo é de todos” ou, no rap, nem
tudo se cria, mas muito se transforma, numa constante reciclagem. O uso da tecnologia
e as “pilhagens” são aspectos fundamentais no desenvolvimento e no uso da forma pelo
hip hop, uma combinação essencial para a evolução geral do movimento.
O grafite, a arte gráfica do hip-hop, também reclama essa democratização dos
espaços, esse “desmanche de bordas”
162
, nas palavras de Moacyr dos Anjos, mostrando
que toda a tentativa de rebater, desafiar ou vencer a imposição da escrita, passa
obrigatoriamente pela própria escrita. “Poder-se-ia dizer que a escritura acaba
absorvendo toda a liberdade humana, porque só no seu campo se desenrola a batalha de
160
Idem, p. 271.
161
Op. Cit. P. 144.
162
Título do ensaio de Moacyr dos Anjos “Desmanche de bordas: notas sobre identidade cultural
no Nordeste do Brasil” in HOLLANDA et al. (org.), 2000: 53.
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187
novos setores que disputam posições de poder. Assim pelo menos parece comprová-lo a
história dos graffitis na América Latina”
163
, afirma Ángel Rama.
Ao fazer uma apropriação depredatória da escritura, o grafite confirma a
ilegalidade que desafia o poder que rege a sociedade. Hoje, depois de muitos anos de
repressão à palavra escrita nos espaços públicos – ou à popularmente chamada
“pichação” - foram liberados espaços para os desenhos artísticos que, misturados à
palavra escrita, formam as grandes telas urbanas de artistas-grafiteiros que fazem
questão de se diferenciar dos “pichadores” que escreviam em rabiscos, com
agressividade, as mensagens políticas e filosóficas à sociedade opressora.
Os grafites acabaram se impondo, apesar das proibições e perseguições, pela sua
insistência em marcar a democratização do espaço público, escrevendo nos muros,
como nas páginas da cidade. Enfim, os grafiteiros conseguiram o merecido
reconhecimento, promovendo as artes plásticas que não deixam de trazer também a sua
conotação de protesto, ao invés da pura palavra da revolta. Os grafites são a rebeldia
que se instala na cidade letrada, ocupando o espaço público e publicando a arte. A arte
que se quer visível.
Nossa tremenda sorte é o fato de que no Brasil, a cultura jovem popular já plantou e
colheu no solo que, espontaneamente, sua história mesma sedimentou. Já há um modelo
jovem alternativo, em pleno funcionamento nos bairros pobres, nas vilas, favelas e
periferias. Não fosse assim o tráfico e o crime teriam recrutado muito mais do que a
minoria que logrou envolver em suas falanges guerreiras. Há a personagem alternativa
que corresponde ao modelo cultural (e político, eu acrescentaria) alternativo: ela (ou
ele) é pacífica e pacifista, valoriza a solidariedade e a compaixão, difunde a crença na
justiça e na igualdade, criticando duramente o país que estamos fazendo: um Brasil que
nega esses valores na prática enaltecendo-os no discurso. O hip hop , mesclando o
break, o grafitti e o rap, é sua principal forma de expressão e organização. Concorrem
para a afirmação desse modelo alternativo meninos e meninas.
164
O contradiscurso do hip hop luta também contra uma “pobreza naturalizada”,
conforme tem sido descrita pela ideologia dominante, como algo que faz parte da lógica
hegemônica e nada temos a fazer contra ela, já que é uma “doença” da civilização, cuja
produção acompanha o próprio processo econômico. O consumo se impõe como a
explicação das diferenças. Além da pobreza absoluta, recria-se incessantemente uma
pobreza relativa que leva à classificação dos homens a partir da sua capacidade de
consumir.
163
RAMA, 1985: 63.
164
ATHAYDE, 2005: 231.
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188
O período em que vivemos revela uma pobreza de novo tipo, uma pobreza estrutural
globalizada, resultante de um sistema de ação deliberada. Examinando o processo pelo
qual o desemprego é gerado e a remuneração do emprego que se torna cada vez pior, ao
mesmo tempo em que o poder público se retira das tarefas de proteção social, é lícito
considerar que a atual divisão “administrativa” do trabalho e a ausência deliberada do
Estado de sua missão social estejam contribuindo para uma produção científica,
globalizada e voluntária da pobreza.
165
Dentro dessa lógica, não há atitude ética possível, mas nos resta apenas lamentar
um fato inevitável. De outra forma, nos séculos anteriores à “globalização”, a pobreza
estava associada a questões sociais e naturais. As soluções para o problema eram
privadas, assistencialistas, locais. Num mundo onde o consumo ainda não estava
largamente difundido e o dinheiro ainda não constituía uma lógica social, a pobreza era
menos discriminatória. Daí poder-se falar de pobres “incluídos”, que hoje são os
excluídos conforme a lógica do sistema, na concepção de Milton Santos.
Os versos bem construídos de Ridson atacam esta naturalização da pobreza
colocando à prova uma certa concepção de “paz”:
Sua idéia de paz é diferente da minha.
Sua paz inclui a escravidão da minha família.
Com o meu silêncio, meu consentimento.
Meu confinamento dentro de um gueto.
A paz que eu não aceito e rejeito é a paz dos guetos.
A paz capaz de te obrigar a ignorar o olhar de preconceito.
Aquela paz imposta por viaturas da ROTA.
Paz de escravos, paz de gente morta.
166
A existência passa a ser a produtora da sua própria pedagogia. A grande maioria
dos escritores marginais e rappers alcançaram um alto nível de conhecimento e
compreensão de forma autônoma, através das leituras ou das entrelinhas das leituras, da
arte e da sua própria percepção do mundo, num processo auto-didático. Quando a
sociedade ou os governos proporcionam a estes jovens acesso à criação cultural e à
expressão artística, na prática, lhes oferecem um campo em que podem exercitar a
própria subjetividade, mostrando-se e inventando-se como pessoas, diante dos olhares
atentos e respeitosos da audiência, que os valorizam pela simples atenção que prestam.
165
SANTOS, 2004: 86.
166
“Epidemia” IN FERREZ, 2005: 80.
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189
Essa atenção valoriza quem se sente ninguém, quem se sente, em geral, invisível. Ela
ilumina a alma, alimenta um saudável narcisismo, e a imprescindível auto-confiança,
como argumenta Luís Eduardo Soares, e propõe: “Forte com sua auto-estima
revigorada, quem sabe o jovem conquista, ele mesmo, ela mesma, esse afeto, dando-o a
outro, dando-se a outrem, apontando-o a outro, em lugar da arma, como um convite à
solidariedade e ao amor”. E completa:
Se desejamos competir com o tráfico e recrutar os jovens, sobretudo os mais
vulneráveis ao assédio do crime _ e o fazemos para previnir a violência mas também
para salvar-lhes a vida e garantir-lhes os direitos fundamentais _ teremos de customizar
as políticas sociais, isto é, adaptá-las a cada beneficiário, respeitando-lhes as
singularidades pessoais e a vontade subjetiva de valorização. Como seria possível
combinar uma política de massas e um ajuste fino, individualizante? Pela arte, pela
cultura, com a criação estética e cultural, com as formas expressivas. Daí a importância
estratégica do hip-hop, que é genuinamente popular e ligado às idéias de cidadania,
respeito e paz.
167
É importante lembrar que a cultura de “massa” é a negação de uma cultura
democrática, pois em uma democracia não há massa; nela, a idéia de um aglutinado
amorfo de seres humanos sem rosto e sem vontade é algo que tende a desaparecer para
dar lugar a sujeitos sociais e políticos válidos. Os movimentos culturais da periferia são
modalidades que rompem essas “bordas” utilizando elementos da cultura de massa na
formação de sujeitos sociais e políticos. Sendo que as apropriações feitas pela cultura
popular, reproduzem não só “modalidades oficiais”, mas também, e sobretudo,
“modalidades subversivas”. Se os instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o
conteúdo não é global, nem a motivação é o chamado mercado global. As expressões da
cultura popular revelam na sua força e capacidade de difusão, aquilo que Milton Santos
chamou de “regionalismos universalistas”, uma forma de expressão que associa a
espontaneidade própria à ingenuidade popular à busca de um discurso universal, que
acaba por ser um alimento da política.
No atual domínio exercido pela cultura de massa, principalmente sobre as
classes médias, o ideal de democracia parece estar cada vez mais longe. Estas classes,
depois do “milagre econômico” das décadas de 70 e 80, percebem agora que já não
mandam, ou que já não partilham mais do poder. Esta certeza de não influir
politicamente tem se fortalecido, levando-as a desejar menos política e menos
167
ATHAYDE, 2005: 286.
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190
participação, quando a reação correta deveria ser exatamente o contrário. Dentro dessa
lógica, os jovens das classes médias mostram-se envolvidos em práticas sociais e
conflitos que são constantemente interpretados como a prática irracional do consumo,
desprovidos de qualquer interesse pela política e pelo coletivo. Desenha-se,
principalmente a partir dessas camadas médias, um futuro sombrio, que parece revelar a
divulgada “falência” desta classe, não só econômica, mas sobretudo, cultural e política.
A cultura de massas produz símbolos fixos direta ou indiretamente a serviço do
poder ou do mercado. Frente ao movimento social e com o objetivo de não parecerem
envelhecidos, “são substituídos, mas por outra simbologia também fixa: o que vem de
cima está sempre morrendo. A lógica do sistema é a mudança constante (...) Já os
símbolos ‘de baixo’, produtos da cultura popular, são portadores da verdade da
existência e reveladores do próprio movimento da sociedade”, afirma Milton Santos.
Por outro lado, estamos assistindo a uma nova apropriação dos símbolos de uma
cultura de resistência, semelhante a outras épocas em que foram incorporados estilos da
contracultura. Nas palavras do escritor Preto Ghóez: “E já se vai uma longa caminhada
dentro da cultura hip hop, e ao longo dessa caminhada eu venho acompanhando um
fenômeno interessantíssimo: todo mundo quer ser favela!”
168
.
Os jovens de classe média, ao incorporar os símbolos da cultura da periferia, o
vocabulário, o estilo, parecem sugerir também a sua incapacidade de criar símbolos
próprios e diferenciadores. Sendo aqueles naturalmente incorporados à cultura de
massa, estariam talvez mostrando a esterilidade criativa produzida por ela, reproduzindo
símbolos de consumo que não os diferencia dos seus pais, mas os tornam seres
conformados, o contrário do que é culturalmente a marca da juventude. Sua insatisfação
aflora, muitas vezes, como uma rebeldia “sem causa”, através da violência gratuita -
como, por exemplo, a que praticam alguns lutadores de jiu jitsu e seus semelhantes, em
boates da zona sul carioca, ou desocupados e perigosos filhos de juízes que incendiaram
um índio em Brasília.
Enquanto assistimos a uma hibridização social ou uma fluidez das relações dos
jovens no consumo da cultura da periferia, reveladas desde a moda dos bailes funk, por
outro lado, um conjunto de enunciados jornalísticos tenta interditar esta aceitação
quando relaciona, indiscriminadamente, esta cultura à violência. Dessa forma, corremos
o risco de não perceber a resistência das classes desfavorecidas se nos obstinamos em
168
FERREZ, 2005: 22.
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191
não perceber a inovação introduzida naquilo que é costumeiro e que parece ter o mesmo
sentido para todos. Marilena Chauí explica:
Para que a ideologia seja eficaz é preciso que realize um movimento que lhe é
peculiar, que é recusar o não-saber que habita a experiência, ter a habilidade para
neutralizar a história, abolir as diferenças, ocultar as contradições e desarmar toda
tentativa de interrogação. (...) A ideologia teme tudo quanto possa ser instituinte ou
fundador, e só pode incorporá-lo quando perdeu a força inaugural e tornou-se algo já
instituído. Podemos perceber a diferença entre ideologia e saber, na medida em que
neste, as idéias são produto de um trabalho, enquanto naquela as idéias assumem a
forma de conhecimentos, isto é, de idéias instituídas.
169
Essas práticas sociais e culturais fundadoras, “instituintes”, próprias da cultura
popular, como fruto de um trabalho e da experiência, são não só temidas, mas
deslegitimizadas pela ideologia hegemônica, por sua própria capacidade de desafiar as
esferas institucionais, confrontado experiência e ciência. Existem os discursos
legitimadores por excelência, que têm o objetivo de ensinar a cada homem como se
relacionar com o mundo e com os outros homens
170
. O sujeito passa a se relacionar com
o seu trabalho pela mediação do discurso da tecnologia, com o desejo pela mediação do
discurso da sexologia, com a alimentação pela mediação do discurso dietético, com a
criança pelo discurso pedagógico e pediátrico, com a natureza pela mediação do
discurso ecológico, pelos demais homens pela mediação do discurso sociológico e
psicológico. Em outras palavras, o homem passa a relacionar-se com a vida através de
mil pequenos modelos científicos nos quais a dimensão propriamente humana da
experiência desaparece.
Nesse ponto as práticas sociais e culturais periféricas apresentam, a partir da
lacuna destes discursos mediadores, o campo fértil da experiência e conseqüentemente o
potencial de construção de outros sistemas de pensamento, ou discursos fundadores.
Surge aí uma fronteira frágil: por outro lado, no terreno hegemônico, na passagem do
que era instituinte à condição de discurso instituído ou de discurso do conhecimento,
assistimos ao movimento pelo qual a ideologia incorpora e consome as novas idéias,
desde que tenham perdido as amarras com o tempo originário de sua instituição e,
assim, fiquem fora do tempo. Foi o que ocorreu com todos os movimentos da
contracultura, os hippies e seus símbolos, ou os punks, que, descontextualizados,
169
CHAUÍ, 1982: 5
170
Como ressalta Marilena Chauí, a partir das idéias do pensador francês Claude Lefort, in
CHAUÍ, 1982:37.
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192
tornaram-se estilos para o consumo. O esforço natural da cultura hegemônica é de que
permaneçam soterradas todas as manifestações da diferença e da contradição no interior
da sociedade, para que as representações do social e do político coincidam com o real.
No entanto, um outro discurso tem se mostrado possível, em que a palavra e as
artes são instrumentos privilegiados de construção da verdade. Poderíamos aqui evocar
Brecht e “as cinco dificuldades para se dizer a verdade”, como um princípio norteador
para o intelectual de hoje: ter a coragem de escrever a verdade; ter a inteligência de
reconhecer a verdade; possuir a arte de manejar a verdade como uma arma; ter a
capacidade de escolher aqueles em cujas mãos a verdade se torna eficiente; ter a astúcia
de divulgar a verdade entre muitos, de difundi-la.
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6
Conclusão
A cidade letrada diluiu suas fronteiras, “desmanchou suas bordas” na
“modernidade líquida” do mundo contemporâneo. O desmanche se processa em
movimentos opostos de correntes que se chocam e se diluem em novas misturas. Um
primeiro movimento é resultado do empenho vertical, unificador e homogeneizador,
conduzido por um mercado cego, indiferente às heranças e às realidades atuais dos
lugares e das sociedades, impondo elementos mais ou menos maciços da cultura de
massas, indispensável ao reino do mercado. Mas como essa conquista, mais ou menos
eficaz, segundo os lugares e as sociedades, jamais é completa, encontra resistência da
cultura preexistente, e nesse sentido, oposto, não sem o aproveitamento de elementos da
“outra corrente”, constituem-se assim formas mistas sincréticas.
Os homens não são igualmente atingidos pelo fenômeno da globalização, da
corrente unificadora e homogeneizadora, cuja difusão encontra obstáculos na
diversidade das pessoas e na diversidade dos lugares. Na realidade, a globalização
agrava a heterogeneidade, dando-lhe mesmo um caráter ainda mais estrutural. Uma das
conseqüências de tal evolução é a nova significação da cultura popular, com potencial
para rivalizar com a cultura de massas. Outra é a produção das condições necessárias à
reemergência das próprias massas, apontando para o surgimento de um novo período
histórico, a que Milton Santos chama período demográfico ou popular.
Na corrente da racionalidade dominante, pouco espaço é deixado para a
variedade, a criatividade e a espontaneidade. Enquanto isso – e por isso - na
contracorrente, surgem outras formas de racionalidade produzidas e mantidas pelos que
estão “em baixo” e que conseguem escapar da “outra racionalidade” dominante. Isso se
deve, em grande parte, como aponta Milton Santos - e trazendo o ensinamento de Jean
Paul Sartre - à experiência da escassez que torna a história possível, “graças à unidade
negativa da multiplicidade concreta dos homens”, nas palavras do filósofo francês.
O nosso tempo consagra a multiplicação das fontes de escassez, seja pelo
número avassalador de objetos presentes no mercado, seja pelo chamado incessante ao
consumo. A cada dia apresenta-se um novo objeto que nos é mostrado para provocar o
apetite. A humanidade atual vive, mediante o mercado e a publicidade, dessa maneira,
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criando desejos insatisfeitos, mas também reclamando explicações diante de uma
realidade imposta, cada vez mais “desmascarada”, acredita Milton Santos. Pode-se dizer
que tal movimento se repete, enriquecendo o movimento intelectual. A experiência da
escassez torna-se a ponte entre o cotidiano vivido e o mundo. Dessa forma, “constitui
um instrumento primordial na percepção da situação de cada um e uma possibilidade de
conhecimento e de tomada de consciência”, defende Milton Santos.
1
A multiplicidade de situações regionais e municipais, trazida com a
globalização, instala uma enorme variedade de quadros de vida, cuja realidade preside o
cotidiano das pessoas e deve ser a base para uma vida civilizada em comum. Assim a
possibilidade de cidadania plena das pessoas depende de soluções a serem buscadas
localmente, defende Milton Santos, e conclui: “Tudo indica que estamos atingindo a
fronteira, agora que, nos diversos níveis da vida econômica, social, individual, vivemos
uma racionalidade totalitária que vem acompanhada, paradoxalmente, de uma perda da
razão”.
Neste caso, o papel dos intelectuais será talvez, muito mais do que promover um
simples combate às formas de ser da racionalidade dominante – tarefa importante, mas
insuficiente, nas atuais circunstâncias – mas deve empenhar-se por mostrar,
analiticamente, a vida sistêmica dos excluídos e suas manifestações de resistência a uma
conquista indiscriminada e totalitária do espaço social pela racionalidade dominante.
Assistimos, hoje, à configuração de uma nova inteligência que traz uma visão
renovada da realidade contraditória de cada parte do território nacional, e deve ser
oferecida à reflexão da sociedade em geral, que encontrará nessa nova organização os
elementos necessários para a postulação e o exercício de uma outra política, mais
condizente com a busca do interesse social. Essa nova inteligência configura uma outra
noção de representação no mundo de hoje, e se constitui a partir do cidadão comum
como protagonista da sua história. Não é mais o intelectual que se compromete com as
causas da comunidade, mas é alguém que já nasce comprometido com a sua condição
de pobreza e miséria; e fala sobre a contradição, não mais mediado pela ciência, mas
pela experiência. Esse intelectual não tem mais a aura. Costumava ser o objeto da
Sociologia e agora se torna sujeito da sua própria sociologia. Derruba mitos de uma
tradição autoritária da nossa intelectualidade identificando-se com a simplicidade e a
pobreza e oferecendo embates desafiadores à cultura letrada e ao poder do cânone. Esse
1
SANTOS, 2004: 130.
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“novo intelectual” ainda conta com a autonomia que se perdeu na experiência do
intelectual tradicional.
Esta é uma visão oferecida a nossa intelectualidade. Há os que dizem que ainda
não temos os ouvidos disponíveis para integrar a novidade que vem por aí. Ela é
agressiva, assustadora e violenta. Mas por outro lado, pode dar ainda algum sentido ao
futuro. A denúncia do desumano pode fazer com que as pessoas despertem para o
desejo de mudança.
É o que parece representar o esforço das manifestações populares da periferia
onde despontam intelectuais – orgânicos, na concepção gramsciana – como MV Bill e
Celso Athayde, que pretendem ir além da denúncia, “pretendem mostrar a cara”, como
parecem querer mostrar na sua viagem pelos “infernos” do Brasil – em Cabeça de porco
e Falcão, os meninos do tráfico: que não nos habituemos com o inferno, lutando para
que haja, ainda, indignação e ação. É algo que poderia ser resumido na conclusão de
Marco Pólo depois da sua viagem pelo mundo, no romance Cidades invisíveis de Ítalo
Calvino:
O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no
qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de
não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se
parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e
aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não
é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
2
No desmanche de bordas da atualidade, o deslocamento, tese exemplar de
Ricardo Piglia, torna-se fundamental para a compreensão do nosso momento, em que as
artes mantêm o papel fundamental que sempre tiveram. A literatura, agora, livre de
antigos papéis, guarda ainda a importante condição de terreno das possibilidades, e das
vozes daqueles que ficaram à margem do sucesso dos fatos, como aponta Nicolau
Sevcenko
Para que ele [escritor] cumpra o papel e o destino que lhe cabem, é necessário que se
perca nos meandros de possíveis inviáveis. Desejos inexeqüíveis, projetos
impraticáveis: todos porém produtos de situações concretas de carência e privação, e
que encontram aí o seu âmbito social de correspondência. (...) A literatura, portanto,
fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não
vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém
sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) Pode-se, portanto, pensar
2
CALVINO, 1990: 150.
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numa história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias
não consumidas. A produção dessa Historiografia teria, por conseqüência, de se
vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginais ao sucesso dos fatos.
Estranhos ao êxito mas nem por isso ausentes, eles formaram o fundo humano de cujo
abandono e prostração se alimentou a literatura. Foi sempre clara aos poetas a relação
intrínseca existente entre a dor e a arte.
3
Roland Barthes completa que todas as análises sócio-ideológicas concluem pelo
caráter deceptivo da literatura: a obra seria sempre escrita por um grupo socialmente
desiludido ou impotente, fora de combate por situação histórica, econômica, política; a
literatura seria a expressão dessa decepção.
A marca da ruptura está presente na expressão cultural e artística das duas
transições de séculos. A proposta de ruptura do modernismo brasileiro em relação à
cultura européia, na valorização dos elementos da nossa cultura popular, serviu para
épater les bourgeois, na tentativa de incorporar “as classes marginalizadas como parte
integrante da nacionalidade moderna”, atacando um gosto e um ambiente do qual os
próprios modernistas faziam parte.
Hoje, o discurso de ruptura da cultura marginal do século XXI, por sua vez,
marca a tomada de voz dos próprios marginais empenhados em dar visibilidade à
diferença, marcar seu lugar neste mundo e denunciar as contradições estruturais do
nosso sistema. Será então uma ruptura elaborada por aqueles que a experimentam no
seu cotidiano, reafirmando a nova concepção do intelectual, já apontada por Michel
Foucault na década de 70: “o que os intelectuais descobriram recentemente é que as
massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito
melhor do que eles; e elas o dizem muito bem”.
Os discursos, as linguagens e as expressões artísticas têm implicações políticas
profundamente importantes numa realidade em que as formas da política tradicional se
distanciam cada vez mais do seu papel de legítima representação popular. A linguagem
da rebeldia, presente na literatura marginal ou no hip hop, está na ordem do poder
libertador em oposição à opressão da linguagem que se quer fixa, estável, da palavra de
ordem, do lugar comum. Existe de um lado este poder estabilizante e do outro, a
possibilidade. Freqüentemente o intelectual que se encaixa no discurso instituído acaba
se calando ou se igualando no mesmo discurso.
3
SEVCENKO, 2003: 30-31.
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O mundo de hoje deve ser enxergado como o que na verdade ele nos traz, isto é,
um conjunto presente de possibilidades reais, concretas, todas factíveis sob
determinadas condições. “O futuro são muitos”, lembra Milton Santos. Em outras
palavras: a realidade é, além do que somos, tudo aquilo em que ainda não nos tornamos,
ou seja, tudo aquilo em que nos projetamos como seres humanos, por intermédio dos
mitos, das escolhas, das decisões e das lutas. Como nos ensina Mário de Andrade, é
imprescindível saber saber.
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