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_ Bom, eu queria que você começasse definindo a você mesmo.
_ Eu sou um sonhador. Acima de tudo um sonhador. Todas as vezes que eu fui feliz na
minha vida foi quando eu me permiti sonhar, delirar, inventar as coisas. Sonhar com um
mundo melhor, um país melhor, imaginar como vai ser quando tudo for diferente,
quando eu tiver conseguido realizar os meus sonhos. O sonho te empolga. Você começa
a acreditar naquilo. Te dá uma coragem, uma força. Agora, toda vez que eu tentei me
adequar à realidade, eu fui extremamente infeliz, sabe? Você começa a pensar nas
dificuldades, em tudo que pode dar errado. É a sabedoria dos medíocres, A segurança,
bom senso. Você não pode ousar. Tentar fazer diferente. Quando você depende do
reconhecimento alheio é uma merda. Porque você não pode simplesmente existir. A
sociedade é que tem que dizer que você merece existir e ser feliz. E é isso aí que os
medíocres dominam. Porque eles são a maioria. Então isso aqui virou o império da
mediocridade. Bom é ser igual. Bom é ser ruim. É por isso que rapidamente o sujeito
tem que ser capaz de desenvolver um certo cinismo pra poder sobreviver. O cinismo é
como uma vacina. Na vacina a pessoa é infectada por um vírus inócuo pra desenvolver a
imunidade contra o vírus de verdade. O cinismo é assim. Você fica meio acanalhado pra
poder não adoecer no contato com a canalhice.
Ou o sujeito chega aos trinta anos e já é um amargurado pelo simples fato de ele ser
brasileiro. Porque ele vive numa realidade que é antibiótica, massacrante. (...)
_ E como é que essas questões que te tocam tanto, que te deixam assim tão exaltado,
afetam teu trabalho de artista?
_ Agora eu tô passando por uma crise muito grande, sabe? Mas não é crise de
criatividade não. É crise temática. Eu não tenho nada pra dizer. Porra! Eu sou branco,
homem, heterossexual, eu tenho grana. Eu vou falar do quê? Eu penso muito nisso. Vou
falar de amor? Amor é o caralho! Não, mas aí você vai dizer: “mas você é brasileiro, já
não basta?”. Eu sei. Eu ando pelas ruas. Eu vejo TV porra! Eu vejo uma criança na rua
me pedindo dinheiro, isso me comove, me revolta. Mas aí eu vou falar o quê? “Isso tá
errado, isso não pode, isso me deixa triste”. Eu vou xingar o presidente, Deus e o
mundo. Você ta entendendo? Eu vejo o sofrimento, mas eu particularmente, não sofro.
E eu acho uma... uma pretensão muito grande falar em nome dos pobres, falar em nome
dos outros.
É aquela história dos intelectuais dos anos 60, né? Cinema novo. Falar em nome do
povo ... falar pro povo as coisas que ele tem que saber pra se libertar. É ridículo! Os
pobres, os discriminados, os oprimidos sabem dizer sozinhos, sabem se expressar
sozinhos. Não precisam da arrogância de um cara branco e bem alimentado como eu. E
digo mais: estão achando as suas próprias soluções, independente do Estado, dessa
imprensa calhorda e dos intelectuais.
Então pra quem é representante de uma classe falida como eu, de um projeto falido, o
que me resta é observar o povo. Oh! Olha aqui, olha aqui a contradição oh! O intelectual
brasileiro, os ricos desse país dizem “o povo” quando na verdade estão se referindo só
aos pobres. Ta vendo? Eu acabei de cometer esse ato falho agora. Quer dizer: não existe
um povo brasileiro do qual todos fazem parte. Povo são os pobres. Os ricos são outra
coisa. Então eu não vou falar de fome porque eu não sei o que que é fome. Falar em
nome dos que têm fome? Eu considero um desrespeito, porra! Uma afronta ! “Eu falar
de fome pra quem tem fome” ou “em nome dos que têm fome”. Eu não vou falar de
revolta com a polícia que a polícia não me pára, não me prende porra! Não me bate.
Não me revista. Quando um policial tem que falar comigo ele me chama de “doutô”!
Então o que eu tenho que fazer é ficar na minha e ver se eu acho alguma coisa pra dizer.
Por enquanto eu não achei nada. E quem não tem nada pra dizer ...tem mais é que ficar
calado. Quer um queijo? ...
O silêncio dos intelectuais parece estar cheio de perguntas ainda sem respostas.
Com a perda dos valores universais pelas correntes do pensamento que dominaram o
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