Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MARISTELA GATTI PIFFER
O TRABALHO COM A LINGUAGEM ESCRITA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
VITÓRIA
2006
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
1
MARISTELA GATTI PIFFER
O TRABALHO COM A LINGUAGEM ESCRITA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Educação do Centro de
Educação da Universidade Federal do
Espírito Santo, como requisito parcial para a
obtenção do grau de Mestre em Educação,
na linha de pesquisa Educação e
Linguagens.
Orientador: Profª Drª Cláudia Maria Mendes
Gontijo.
VITÓRIA
2006
ads:
2
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
(Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil)
Piffer, Maristela Gatti, 1966-
P627t O trabalho com a linguagem escrita na educação infantil / Maristela
Gatti Piffer. – 2006.
374 f. : il.
Orientador: Cláudia Maria Mendes Gontijo.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito Santo,
Centro de Educação.
1. Alfabetização. 2. Linguagem. 3. Textos. I. Gontijo, Cláudia Maria
Mendes. II. Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação.
III. Título.
CDU: 37
3
4
A Paulo e Guilherme,
por apoiarem as minhas opções compartilhando
os percalços do caminho.
Aos meus pais, Dionísio e Omilda,
pela vida de amor e dedicação aos filhos.
5
AGRADECIMENTOS
Às crianças que participaram da pesquisa, por me ensinarem a ler os seus textos e aos seus
familiares, pela confiança e disponibilidade com que acolheram o trabalho.
Aos profissionais do Centro de Educação Infantil que possibilitaram a minha inserção em
sala de aula, abrindo espaços e tempos para a realização do estudo.
Ao Sistema Municipal de Ensino de Vitória que propiciou a minha disponibilidade para
freqüentar o curso de Mestrado.
Ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo,
pela oportunidade de atuar no campo da pesquisa.
Às amigas Dilza Côco, Shenia D’arc, Dânia Monteiro, Regina Godinho e demais colegas da
linha de pesquisa, pelos valiosos saberes e experiências compartilhados.
Aos companheiros das nossas escolas públicas, especialmente da EMEF “José Áureo
Monjardim”, por ajudarem a valorizar esse espaço de atuação política.
À Alina Bonella, pelas indicações e incentivo no trabalho de revisão textual.
Às professoras Cleonara Maria Schwartz, Edivanda Mugrabi e Vânia de Carvalho Aráujo,
pelas importantes contribuições apresentadas no processo de produção.
Aos demais professores do Curso de Mestrado, pelos momentos de estudo e reflexão em
sala de aula.
Ao professor João Wanderley Geraldi, por sua honrosa presença na banca de defesa e
pelas preciosas contribuições que se constituíram em referências fundamentais para este
estudo.
Especialmente, à minha orientadora, professora Cláudia Maria Mendes Gontijo, pela
amizade, carinho e competência com que me introduziu no campo da pesquisa e por
acreditar no papel do ensino, mediando, em tantos e diferentes momentos de interlocução, a
apropriação dos conhecimentos necessários à prática investigativa.
6
Rios sem discurso
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
cortado, a água se quebra em pedaços,
em poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada,
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhum comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse rio,
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para fazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloqüência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
(JOÃO CABRAL DE MELO NETO)
7
RESUMO
Este trabalho integra estudos desenvolvidos no campo da linguagem, numa
abordagem histórica, cultural e social, pela linha de pesquisa Educação e
Linguagens, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
do Espírito Santo. Trata de um estudo de caso do tipo etnográfico que tem por
objetivo a investigação dos eventos mediados pela linguagem escrita, numa turma
de crianças entre seis e sete anos de idade de um centro de educação infantil do
Sistema Muncipal de Ensino de Vitória, ES. Parte do pressuposto de que a
apropriação da linguagem escrita é uma forma de experiência histórica e cultural que
se inicia desde os primeiros anos de vida da criança e se potencializa nas
experiências sociais que são mediadas pela palavra e pelo outro. Discute as
relações de ensino observadas na sala de aula, buscando compreender as
condições de escritura dos textos e sua repercussão no processo de produção de
sentidos e de constituição de sujeitos. A partir dos dados coletados por meio da
observação participante em sala de aula, entrevistas com os sujeitos, gravações em
audiovisual e fotografias, seleciona para análise eventos em que foram suscitadas
situações de produção recorrentes. Para análise dessas situações, toma por base os
pressupostos teóricos da perspectiva bakhtiniana de linguagem, buscando dialogar
com a realidade observada a partir de duas principais demandas: o trabalho com as
histórias em quadrinhos e com os textos de opinião. Considera que as análises
efetuadas possibilitam
entrever as contribuições e implicações do conceito de
gênero textual para o processo de alfabetização, concluindo que a adoção do texto,
como eixo do trabalho educativo na educação infantil, implica a conciliação de
demandas teórico-práticas que pressupõe o reconhecimento da sala de aula como
espaço dialógico habitado por sujeitos sócio-históricos e como lugar de interação
verbal em que são confrontados diferentes saberes, em que a repetição e a criação
são dimensões interdependentes e constitutivas do trabalho de produção.
Palavras-chave: Educação Infantil. Alfabetização. Linguagem escrita. Gêneros
textuais.
8
ABSTRACT
This paper integrates studies developed in the field of language, in a historical,
cultural and social approach, through the line of Education and Language research,
of the Post-Graduation course of Education in the Federal University of the State of
Espírito Santo. It is about a study case of an ethnographic type which goal is
investigating the events mediated by the written language, in a group of six to seven-
year-old kids of an educational center for children of the Teaching Municipal System
of Vitória/ES. It assumes that the appropriation of the written language is a way of
historical and cultural experience that begins in the children’s first years of birth and
gets stronger with the social experiences mediated by words and others. It discusses
the relations of teaching observed in classrooms, searching for the understanding the
condition of how texts are written and its repercussion in the process of meaning
production and subject constitution. From the data collected through the participant
observation in the classroom, interviews, audiovisual recording and photographs, it
selects for analysis events in what situations of recurrent production had been rouse.
To analyze these situations, it takes as reference the theoretical assumptions of
bakhitinian perspective of language, aiming at dialoguing with the reality observed
from two main demands: the work with comic books and opinion texts. It considers
that the analysis made was able to glimpse the contributions and implications of the
textual gender concept for the process of teaching how to read and write, concluding
that having the text as an axle for educative work in the children education, implicates
the conciliation of theoretical-practice demands that assume the acknowledgement of
the classroom as a dialogic space habited by social-historical citizens and as a verbal
interaction place where different knowledge is confronted and the repetition and
creation are dimensions considered interdependent and constitutive of the production
work.
Keywords: Children education. Teaching reading and writing. Written language.
Textual genders.
9
LISTA DE FOTOS
Foto 1 - Exposição de trabalhos das crianças............................................................ 96
Foto 2 - Programação da semana da criança............................................................. 96
Foto 3 - Correspondência enviada às famílias ........................................................... 96
Foto 4 - Estante de livros da biblioteca....................................................................... 97
Foto 5 - Espaço destinado à leitura na biblioteca ....................................................... 97
Foto 6 - Sala de aula ................................................................................................ 104
Foto 7 - Movimentação das crianças na sala de aula............................................... 104
Foto 8 - Capa da agenda literária ............................................................................. 106
Foto 9 - Página da agenda literária .......................................................................... 106
Foto 10 - Interação das crianças com materiais escritos na sala de aula................. 107
Foto 11 - Interação das crianças com materiais escritos na sala de aula................. 107
Foto 12 - Interação das crianças com materiais escritos na sala de aula................. 107
Foto 13 - Envelope decorado por Cris...................................................................... 144
Foto 14 - História em quadrinhos de Amarildo ......................................................... 145
Foto 15 - Texto de Let (11-5-2005)........................................................................... 150
Foto 16 - Texto de Joa (11-5-2005).......................................................................... 151
Foto 17 - Texto de Kai (11-5-2005) .......................................................................... 152
Foto 18 - Texto de Cris (11-5-2005) ......................................................................... 153
Foto 19 - Crianças folheando os gibis (31-7-2005)................................................... 159
Foto 20 - Texto produzido por Mon, Raf e Ron (31-7-2005)..................................... 161
Foto 21 - Texto produzido por Lua, Pat e Kai (31-7-2005) ....................................... 166
Foto 22 - Texto produzido por Gab, Gil e Jac (31-7-2005) ....................................... 169
Foto 23 - Registro dos tipos de balões no bloco de atividades (19-7-2005)............. 174
Foto 24 - Cartaz com os tipos de balões (20-7-2005) .............................................. 174
Foto 25 - Nat produzindo o texto (19-7-2005).................................................................. 177
Foto 26 - Resultado do trabalho de Nat (19-7-2005) ................................................ 177
Foto 27 - Marc produzindo o texto (19-7-2005)............................................................ 178
Foto 28 - Resultado do trabalho de Marc (19-7-2005).............................................. 178
Foto 29 - Professora 1 comparando as produções de Marc (19-7-2005) ................. 179
Foto 30 - Texto de Lay (19-7-2005).......................................................................... 179
Foto 31 - Texto de Joa (19-7-2005).......................................................................... 183
Foto 32 - Texto de Wes (19-7-2005)......................................................................... 184
10
Foto 33 - Parte da história de Maurício de Souza .................................................... 187
Foto 34 - Legenda elaborada pela turma.................................................................. 187
Foto 35 - Cartaz com tipos de onomatopéias ........................................................... 188
Foto 36 - Processo de elaboração dos quadrinhos (4-8-2005)................................. 190
Foto 37 - Processo de elaboração dos quadrinhos (4-8-2005)................................. 190
Foto 38 - Texto de Cris (4-8-2005) ........................................................................... 190
Foto 39 - Texto de Marc (4-8-2005).......................................................................... 190
Foto 40 - Texto de Joa (4-8-2005)............................................................................ 191
Foto 41 - Texto de Gil (4-8-2005) ............................................................................. 191
Foto 42 - Texto de Wes (4-8-2005) .......................................................................... 191
Foto 43 - Texto de Kai (4-8-2005) ............................................................................ 191
Foto 44 - Texto de Joa em foco (4-8-2005) .............................................................. 193
Foto 45 - Livro O que tem nesta venda? (Elias José)............................................... 196
Foto 46 - Texto de Mat (10-11-2005)........................................................................ 199
Foto 47 - Texto de Cris (10-11-2005) ....................................................................... 200
Foto 48 - Texto de Lay (10-11-2005)........................................................................ 200
Foto 49 - Texto de Ped (10-11-2005) ....................................................................... 201
Foto 50 - Texto de Joa (10-11-2005)........................................................................ 202
Foto 51 - Livro A bruxinha atrapalhada (Eva Furnari)............................................... 204
Foto 52 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada........... 206
Foto 53 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada........... 207
Foto 54 - Texto produzido por Kai, Ped, Pat e Mar (29-11-2005)............................. 209
Foto 55 - Texto produzido por Ron, Let, Gil e Iur (29-11-2005)................................ 210
Foto 56 - História em quadrinhos Cadê a Dilly? ....................................................... 220
Foto 57 - Registro realizado por Nat (20-7-2005) ..................................................... 226
Foto 58 - Registro realizado por Marc (20-7-2005)................................................... 228
Foto 59 - História em quadrinhos de Maurício de Souza.......................................... 231
Foto 60 - Reescrita coletiva da história em quadrinhos (30-11-2005) ...................... 233
Foto 61 - Reescrita de Marc (11-5-2005).................................................................. 237
Foto 62 - Reescrita de Mar (11-5-2005) ................................................................... 237
Foto 63 - Reescrita de Joa (11-5-2005).................................................................... 239
Foto 64 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada........... 241
Foto 65 - Reescrita de Marc (13-12-2005)................................................................ 248
Foto 66 - Reescrita de Kai (13-12-2005) .................................................................. 249
Foto 67 - Reescrita de Raf (13-12-2005) .................................................................. 252
11
Foto 68 - Texto de Ped (29-9-2005) ......................................................................... 262
Foto 69 - Texto de Jac (29-9-2005) .......................................................................... 262
Foto 70 - Texto de Mon (29-9-2005)......................................................................... 266
Foto 71 - Texto de Iur (29-9-2005) ........................................................................... 266
Foto 72 - Texto de Marc (29-9-2005)........................................................................ 267
Foto 73 - Texto de Joa (29-9-2005).......................................................................... 267
Foto 74 - Espaço escolar destinado à coleta de opiniões......................................... 276
Foto 75 - Texto produzido por Ped (8-6-2005) ......................................................... 277
Foto 76 - Texto produzido por Iur (8-6-2005)............................................................ 277
Foto 77 - Texto produzido por Pat (9-6-2005) .......................................................... 278
Foto 78 - Texto produzido por Joa (8-6-2005).......................................................... 278
Foto 79 - Livro Serafina e a criança que trabalha (AZEVEDO; HUZAK; PORTO, 1999) . 281
Foto 80 - Texto produzido por Gil, Joa, Igo e Kai (31-8-2005).................................. 286
Foto 81 - Texto produzido por Mon (14-9-2005)....................................................... 288
Foto 82 - Cartaz com o poema Sem casa ................................................................ 291
Foto 83 - Texto de Gab (23-11-2005)....................................................................... 294
Foto 84 - Texto de Mon (23-11-2005)....................................................................... 294
Foto 85 - Texto de Kai (23-11-2005)......................................................................... 294
Foto 86 - Texto de Gil (23-11-2005) ......................................................................... 295
Foto 87 - Corredor de entrada da escola.................................................................. 297
Foto 88 - Exposição de trabalhos do Grupo IV......................................................... 297
Foto 89 - Convite do Grupo IV.................................................................................. 297
Foto 90 - Parte da história Chapeuzinho Laranja ..................................................... 298
Foto 91 - Cartaz com as opinões das criaas sobre a história Chapeuzinho Laranja 301
Foto 92 - Texto de Joa (2-9-2005)............................................................................ 302
Foto 93 - Texto de Pat (2-9-2005). ........................................................................... 302
Foto 94 - Texto de Vic (2-9-2005)............................................................................. 302
Foto 95 - Texto de Gil (2-9-2005) ............................................................................. 302
Foto 96 - Texto de Nat e Lay (9-11-2005) ................................................................ 308
Foto 97 - Texto de Iur e Vic (9-11-2005)................................................................... 309
Foto 98 - Texto de Kai e Ped (9-11-2005) ................................................................ 310
Foto 99 - Texto de Cris e Wes (9-11-2005) .............................................................. 311
12
LISTA DE SIGLAS
CBO – Classificação Brasileira das Ocupações
IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatítica
INAF – Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional
MEC – Ministério da Educação e do Desporto
PMV – Prefeitura Municipal de Vitória
PPGE – Programa de Pós-Graduação em Educação
PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores
RCNEI – Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil
SEF – Secretaria da Educação Fundamental
SEME – Secretaria Municipal de Educação de Vitória
UFES – Universidade Federal do Espírito Santo
13
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 15
2 ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL ................................................ 20
3 DIFERENTES OLHARES SOBRE A ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO
DA EDUCÃO INFANTIL .................................................................................. 34
3.1 ALGUNS PONTOS DE PARTIDA ........................................................................ 34
3.2 ESTUDOS QUE FOCARAM A LINGUAGEM ESCRITA ...................................... 37
4 A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ESCOLA: SUBSÍDIOS TEÓRICOS
E METODOLÓGICOS ........................................................................................... 61
4.1 LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE HUMANA ..................... 62
4.2 A PERSPECTIVA BAKHTINIANA DE LINGUAGEM ........................................... 68
4.3 SOBRE A ABORDAGEM METODOLÓGICA ...................................................... 79
4.3.1 O processo de inserção em campo e de coleta de dados .......................... 85
4.3.2 A instituição escolar ....................................................................................... 92
4.3.3 A sala de aula ................................................................................................ 103
4.3.4 As crianças-sujeitos: relações no ambiente escolar e familiar ................ 107
4.3.5 As professoras e suas trajetórias de trabalho com a linguagem escrita .. 117
5 O TRABALHO COM TEXTOS NA SALA DE AULA .......................................... 129
5.1 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS .................................................................. 136
5.1.1 A produção de histórias em quadrinhos .................................................... 142
5.1.2 As atividades de reescrita a partir das histórias em quadrinhos ............. 216
a) A reescrita coletiva de histórias em quadrinhos ......................................... 220
b) A reescrita em duplas de histórias em quadrinhos ..................................... 235
c) A reescrita individual de histórias em quadrinhos ....................................... 256
14
5.2 OS TEXTOS DE OPINIÃO ................................................................................ 270
5.2.1 A escola ......................................................................................................... 275
5.2.2 O trabalho infantil ......................................................................................... 280
5.2.3 O direito à moradia ....................................................................................... 289
5.2.4 A história Chapeuzinho Laranja .................................................................. 296
5.2.5 Um dia de cão ................................................................................................ 304
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................ 315
7 REFERÊNCIAS ................................................................................................... 324
APÊNDICES ............................................................................................................ 330
APÊNDICE A – Protocolo de pesquisa .................................................................... 331
APÊNDICE B – Consentimento livre e esclarecimento I ......................................... 333
APÊNDICE C – Consentimento livre e esclarecimento II ........................................ 334
APÊNDICE D – Consentimento livre e esclarecimento III ....................................... 335
APÊNDICE E – Formulário para caracterização da escola ..................................... 336
APÊNDICE F – Formulário para caracterização da sala de aula ............................ 338
APÊNDICE G – Formulário para caracterização das crianças ................................ 339
APÊNDICE H – Roteiro da conversa com as crianças ............................................ 340
APÊNDICE I – Questionário para as famílias .......................................................... 342
APÊNDICE J – Roteiro da entrevista com as professoras ...................................... 344
APÊNDICE L – Roteiro da entrevista com a pedagoga ........................................... 347
APÊNDICE M – Caracterização das crianças ......................................................... 351
APÊNDICE N – Levantamento dos dias em campo ................................................ 366
APÊNDICE O – Técnicas de observação participante ............................................ 367
APÊNDICE P – Fotos que compõem o corpus da pesquisa ................................... 368
APÊNDICE Q – Eventos observados em sala de aula ............................................ 369
APÊNDICE R – Levantamento das transcrições efetuadas ..................................... 374
15
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado de nossa pesquisa de Mestrado que foi desenvolvida num
Centro de Educação Infantil do Sistema Municipal de Ensino de Vitória-ES, em uma
classe de crianças entre seis e sete anos de idade. Partindo de uma abordagem
qualitativa sócio-histórica, adotamos a modalidade estudo de caso do tipo
etnográfico, tendo em vista a investigação dos processos de constituição de sentidos
que se entrecruzaram nas práticas com a linguagem escrita na sala de aula. Nossa
inserção em campo ocorreu no período de maio a dezembro de 2005, quando
buscamos captar a dinamicidade das práticas educativas por meio da observação
participante, registros em diário de campo, filmagens e transcrições dos eventos,
fotos dos textos produzidos e entrevistas com os sujeitos.
As questões que envolvem o processo de alfabetização, quando tratadas no campo
das instituições educativas infantis, são particularmente
desafiadoras, pois remetem-
nos a considerar as concepções de infância, de linguagem e de educação que
orientam as práticas educativas nessa etapa da escolarização básica, bem como as
condições em que foram e o produzidas. Desse modo, a aproximação com o
cotidiano escolar e com as práticas que se desenvolvem na sala de aula se constitui,
no contexto desta pesquisa, em aspecto fundamental para compreendermos como
têm sido reelaborados os diferentes conhecimentos que subsidiam o trabalho com a
linguagem.
No Brasil, no século XX, assistimos a mudanças conceituais na forma de conceber o
processo de ensino aprendizagem da língua escrita na fase escolar. Nesse cenário,
a alfabetização foi concebida por uma multiplicidade de enfoques e concepções que
foram se tornando hegemônicas nas práticas e nos discursos teóricos. Tomando as
contribuições de Braggio (2002) e Gontijo (2002), podemos traçar, em linhas gerais,
as implicações decorrentes desses enfoques no campo da alfabetização.
O enfoque comportamentalista, também reconhecido por behaviorista, empirista ou
associacionista, parte do pressuposto de que a aprendizagem da língua ocorre por
meio do domínio mecânico das relações entre os sons e as letras, ou seja, por um
16
processo de codificação e decodificação. Essa forma de conceber a alfabetização se
evidencia
nos métodos sintéticos, como o alfabético, o silábico e o nico.
Contrapondo-se à idéia de que a aprendizagem da leitura e da escrita deveria ocorrer
das partes para o todo, a partir de século XIX, começam a ser veiculados métodos de
ensino que preconizam que a aprendizagem se efetiva do todo para as partes. Esse
enfoque pode ser observado nos métodos analíticos de alfabetização, como os da
palavração, da sentenciação e o historiado que se sustentam em uma abordagem
global e ideovisual decorrente da Psicologia da Gestalt.
De acordo com Braggio (2002), os pressupostos que fundamentam os métodos
sintéticos e analíticos podem ser compreendidos sob o mesmo ponto de vista, pois
ambos reduzem a aquisição da língua a uma experiência sensorial, fisicamente
observável, na qual a linguagem é concebida como um sistema fechado, autônomo,
constituído de elementos que não se relacionam entre si e que estabilizam os
significados das palavras, isolando-as, conforme salienta Gontijo (2002), da
totalidade do fenômeno lingüístico e do conteúdo sócio-histórico-cultural. Subjacente
aos métodos de ensino da leitura e da escrita na fase inicial de alfabetização, está o
sujeito, entendido como um ser isolado da sociedade, passivo, acrítico, incapaz de
mudar a si mesmo e a realidade social na qual está inserido.
Uma virada epistemológica no campo da alfabetização ocorreu com a emergência
do paradigma cognitivista, particularmente a partir dos estudos realizados no campo
da Psicolingüística, por Avram Noam Chomsky (1928-), e no campo da Psicologia
Genética, por Jean Piaget (1896-1980). Esses estudos possibilitaram a articulação
de pressupostos teóricos e metodológicos que orientaram a pesquisa experimental
realizada por Emília Ferreiro e Ana Teberosky, em Buenos Aires, nos anos de 1974,
1975 e 1976. Assim, a partir do final dos anos 1980 e início dos anos 90, ocorreram
mudanças significativas nas práticas de alfabetização. Essas mudanças tinham
como principal foco a concepção de um sujeito ativo, ou seja, um sujeito que
aprende, que elabora hipóteses e constrói o conhecimento a partir da interação com
o objeto.
Nesse sentido, a corrente construtivista, como tem sido denominada, distingue-se da
empirista pelo fato de que, nessa nova abordagem, o conhecimento não ocorre por
17
associações mecânicas, mas é resultado da atividade do sujeito e das relações que
estabelece na interação com o objeto. Contudo, a vertente construtivista não
possibilitou mudanças substanciais no modo de conceber a linguagem, o ser
humano e a sociedade, uma vez que preconiza o desenvolvimento da escrita na
criança como um processo universalizante, abstraído das condições materiais e
humanas que estão subjacentes aos processos de apropriação dessa forma de
linguagem.
Desse modo, compreendemos que tratar das questões que envolvem o processo de
alfabetização, no contexto das relações humanas, significa pensar sua constituição
histórica, cultural e social. Assim, a alfabetização é concebida, neste estudo, como
um dos processos de inserção da criança no mundo da escrita. Um processo “[...]
pelo qual as crianças tomam para si o resultado do desenvolvimento histórico-social,
de modo que desenvolvam as possibilidades ximas da humanidade, quais sejam,
da universalidade e liberdade do homem” (GONTIJO, 2002, p. 2, grifo da autora).
Ancorada nas postulações da Psicologia Histórico-Cultural, essa forma de conceber
a alfabetização, lembra-nos Gontijo (2004), remete à idéia de que ela se inicia para
as crianças, que nascem e vivem em meios onde se fazem usos da escrita em
diversas situações sociais, muito antes de participarem de processos educativos
institucionalizados. Dessa premissa, decorre, também, a importância de
considerarmos a escrita como uma forma especial de linguagem e, desse modo, a
alfabetização como parte de um amplo processo de desenvolvimento da linguagem
na criança, desenvolvimento esse que se inicia desde os primeiros anos de vida e se
potencializa nas experiências sociais que são mediadas pela palavra e pelo outro. A
linguagem, nessa perspectiva, constitui-se nas relações sociais e, ao mesmo tempo,
é uma atividade constitutiva
dos seres humanos.
Assim, partindo de pressupostos que reconhecem as dimensões dialógica, histórica
e cultural da linguagem, buscamos focalizar os eventos mediados pela linguagem
escrita, numa turma de crianças de seis anos da educação infantil, com o objetivo de
analisar os sentidos constituídos no trabalho de escritura realizado na sala de aula
pelas crianças e professora, procurando apreender aspectos sociais dessa atividade
humana em suas situações concretas de produção.
18
As contribuições decorrentes do nosso estudo foram organizadas em cinco
capítulos. Inicialmente, analisamos a proposta de trabalho com a linguagem escrita
explicitada no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998),
buscando compreender como foram constituídas as orientações teórico-práticas
delineadas nesse documento. A partir dessas considerações iniciais, delimitamos o
problema de pesquisa e os objetivos que orientaram nosso olhar investigativo em
campo. Em seguida, na segunda parte do trabalho, situamos a produção acadêmica
nessa área do conhecimento, analisando estudos que focaram a linguagem escrita
no contexto da educação infantil a partir da década de 1990. Nessa análise,
buscamos explicitar os pressupostos teóricos e metodológicos que subsidiaram sete
trabalhos acadêmicos, confirmando nosso interesse pelos processos que se
desenvolvem no interior das relações pedagógicas, particularmente, pelas condições
de produção do trabalho de escritura realizado por crianças e professores, em
classes de alfabetização, no contexto da educação infantil.
Na terceira parte, tratamos do aporte teórico que subsidiou nosso estudo,
explicitando idéias, conceitos e concepções subjacentes às práticas de produção de
textos na escola. Nesse contexto teórico, as contribuições da Perspectiva
Bakhtiniana de Linguagem constituíram-se em princípios fundamentais para a
análise dos eventos observados em sala de aula. Partindo desses pressupostos,
configuramos as contribuições decorrentes da abordagem metodológica centrada no
estudo de caso do tipo etnográfico, explicitando como ocorreram os processos de
inserção em campo e de coleta de dados, para, em seguida, caracterizar a
instituição escolar, a sala de aula e os sujeitos que participaram do estudo.
Por fim, abordamos as situações de trabalho com a linguagem escrita, observadas
na sala de aula, analisando as condições de produção dos textos e como
influenciaram na atividade interdiscursiva das crianças. A partir de um levantamento
geral dos eventos que compõem o corpus da pesquisa, situamos as propostas de
produção que foram recorrentes, definindo duas principais categorias de análise: o
trabalho com as histórias em quadrinhos e com os textos de opinião. Por meio
dessas propostas, buscamos reconstituir as complexas relações de ensino
aprendizagem experimentadas pelas crianças e pelas professoras, tecendo
19
considerações acerca dos processos de constituição de sentidos e de sujeitos que
se entrecruzaram na sala de aula pesquisada.
Acreditamos que este estudo pode ampliar as discussões em torno das práticas de
produção de textos nas classes de alfabetização, suscitando reflexões que,
certamente, contribuirão para o
avanço da compreensão desses processos na
construção de outros caminhos para que as crianças e os professores, sujeitos de
direitos, possam constituir-se, também, sujeitos de idéias, saberes, opiniões, valores,
cultura... De caminhos que possibilitem, como nos diz Geraldi (1997), tornar a sala
de aula um lugar de interação verbal e de diálogo. Lugar onde alunos e professores
possam trazer os seus diferentes saberes, confrontando-os com outros saberes
produzidos historicamente, num constante movimento de (re)criação que jamais
deixa de considerar o vivido, o experimentado, mas que também aponta o novo, o
inesperado.
20
2 ALFABETIZAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL
Pensar a educação infantil em seu contexto histórico, político e educacional é um
desafio que se coloca para a compreensão dos processos de ensino aprendizagem
da linguagem escrita nessa etapa da escolarização básica. Nesse sentido, algumas
questões orientaram nosso olhar em direção às concepções de alfabetização que,
historicamente, permearam os discursos e as práticas educativas nessa fase de
desenvolvimento da criança. Afinal, como se deu o processo de institucionalização
da educação infantil? Que intenções educativas foram se delineando no decorrer
dessa história? Considerando nosso objeto de estudo, como é tratada a linguagem
escrita no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil?
Na trajetória
de institucionalização da educação infantil,
1
podemos perceber que as
concepções que orientaram os processos educativos situaram, basicamente, a
linguagem escrita sob duas perspectivas dicotômicas: em espaços/tempos de
políticas de cunho estritamente assistencialista e higienicista, o trabalho com a
linguagem escrita
foi praticamente desconsiderado; numa concepção tecnicista de
educação, esse trabalho passa a incorporar as propostas educativas e seu
aprendizado é enfocado como meio de suprir as carências culturais da população,
ou seja, ele passa a ter a função de preparar as crianças para a
aprendizagem da
leitura e da escrita.
A partir da década de 1980,
2
observamos, no cenário brasileiro, importantes
iniciativas voltadas para a superação das concepções estritamente assistencialistas
e propedêudicas de educação infantil que, vinculadas aos movimentos populares,
aos campos jurídico e acadêmico, suscitaram diferentes olhares para a educação
das crianças nessa etapa da escolarização básica. Algumas das principais
repercurssões decorrentes desses movimentos podem ser observadas no
1
De acordo com Kuhlmann Jr. (2000), em nosso país, até meados do século XIX, o atendimento
institucionalizado às crianças de zero a seis anos de idade praticamente não existia. Foi somente na
segunda metade do século XIX, com a grande expansão das relações internacionais e com o
crescente processo de industrialização, que se iniciou a difusão das instituições de educação infantil.
2
Nesse período, a educação em creches e pré-escolas, como um direito da criança e um dever do
Estado, foi reconhecida na Constituição Brasileira de 1988 (art. 208) e reafirmada na Lei nº 9.394/96
(art. 29) ao estabelecer a educação infantil como etapa inicial da escolarização básica, tendo em vista
o desenvolvimento integral das crianças em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social.
21
Referencial Curricular Nacional da Educação Infantil (RCNEI,1998), documento
destinado a subsidiar o trabalho nas instituições de educação infantil, elaborado pelo
Ministério da Educação e do Desporto e pela Secretaria da Educação Fundamental.
3
Dentre os diversos eixos que compõem as orientações expressas no referencial,
encontra-se o eixo de trabalho com as linguagens oral e escrita, que está
estruturado a partir de um esquema comum aos demais: considerações sobre a
presença do eixo, suas relações com a criança, objetivos, conteúdos, orientações
didáticas para o professor, observação, registro e avaliação formativa. Há, ainda,
uma divio interna que separa alguns aspectos referentes à linguagem oral dos da
linguagem escrita. Essa forma de organização é justificada com o argumento de que
o documento possui um caráter instrumental e didático somente para sua
apresentação, “[...] devendo os professores ter consciência, em sua prática
educativa, que a construção de conhecimentos se processa de maneira integrada e
global [...]” (BRASIL
, 1998, p. 7).
Apesar desse esclarecimento, alguns estudos têm apontado críticas aos aspectos
estruturantes do RCNEI. De acordo com Cerisara (2003), uma das questões
evidenciadas, nos pareceres da versão preliminar do documento, diz respeito à
separação entre essas duas modalidades de linguagem, pois essa separação pode
“[...] apresentar-se problemática, porque dilui a questão cultural da linguagem,
dicotomizando-a e fragmentando-a, como se as crianças tivessem apenas duas
linguagens” (CERISARA, 2003, p. 37). Essa crítica, no entanto, parece-nos
complicada, pois a questão que se coloca não diz respeito ao fato de existirem
apenas duas linguagens, mesmo porque, no referencial, são contempladas
orientações para o trabalho com as outras linguagens (a matemática, a música, as
artes visuais e o movimento, por exemplo), mas sim aos aspectos que envolvem as
relações entre linguagem oral e escrita.
3
O RCNEI é composto por três volumes: o documento Introdução com informações mais gerais sobre
creches e pré-escolas no Brasil; o volume ligado ao âmbito da Formação Pessoal e Social que trata
dos processos relativos à constituição da identidade e da autonomia pelas crianças; e o terceiro
volume, Conhecimento de Mundo, contendo os eixos de trabalho orientados para a construção das
diferentes linguagens pelas crianças: Movimento, Música, Artes visuais, Linguagem oral e escrita,
Natureza e sociedade, Matemática.
22
Tomando por exemplo o estudo realizado por Marcuschi (2001), podemos apontar
algumas contribuições para essa questão. Partindo do pressuposto fundamental de
que as nguas se fundam em usos, o autor se propõe a esclarecer a natureza das
práticas sociais que envolvem o uso da língua, considerando as relações de
continuidade entre discurso oral e escrito. Aponta uma perspectiva dialógica em que
a língua é considerada como um fenômeno interativo e dinâmico. Para o autor, “[...]
as relações entre fala e escrita não são óbvias nem lineares, pois elas refletem um
constante dinamismo fundado no continuum
4
que se manifesta entre essas duas
modalidades de uso da língua” (MARCUSCHI, 2001, p. 34).
Contribuições dessa natureza, que oferecem outras possibilidades para a
compreensão das relações fala e escrita, também precisam ser explicitadas num
referencial cuja intenção seja contribuir efetivamente com as práticas de ensino. Se
considerados os usos cotidianos da língua, é possível observar e compreender que
oralidade e escrita o são responsáveis por domínios dicotômicos. Conforme nos
lembra Marcuschi (2001), na sociedade coexistem práticas sociais que são
mediadas tanto pela escrita, quanto pela oralidade. Se a escrita, em muitas
situações, é vista como tendo maior prestígio social, isso não é decorrente de
parâmetros lingüísticos, mas de posturas ideológicas.
Tecidas essas considerações, conduziremos a análise do eixo de trabalho que
aborda a aprendizagem da linguagem escrita verificando quais são as concepções
teóricas que subsidiam a proposta explicitada no referencial. No texto introdutório, a
aprendizagem da língua é assim situada: “Aprender uma língua não é somente
aprender as palavras, mas também os seus significados culturais e, com eles, os
modos pelos quais as pessoas do seu meio sociocultural entendem, interpretam e
representam a realidade” (BRASIL, 1998, p. 117). Em nota de rodapé,
explicações sobre o conceito de ngua tomado na proposta como “[...] um sistema
de signos histórico e social que possibilita ao homem significar o mundo e a
realidade” (p. 117). Apesar dessa abordagem abrangente sobre o conceito de
4
No livro Da fala para a escrita: atividades de retextualização (publicado em sua 3ª edão em 2001),
Marcuschi apresenta gráficos para demonstrar que tanto a fala como a escrita se dão em dois contínuos:
na linha dos neros textuais e na linha das características espeficas de cada modalidade.
23
língua, o texto o explicita a base teórica que o sustenta, apresentando poucos
elementos para a sua compreensão.
Em seguida, o documento traz algumas considerações sobre as idéias de prontidão,
de maturação biológica, de pré-requisitos e suas influências nas práticas correntes
nas instituições de educação infantil em relação ao aprendizado da linguagem
escrita. Discute, também, as perspectivas que enfatizam a associação, a repetição e
a memorização bem como as práticas delas decorrentes com uso de procedimentos
de segmentação, de seqüenciação, de vivência motora e corporal. Faz uma crítica a
essas abordagens argumentando que elas consideram a aprendizagem da
linguagem escrita como a aquisição de um sistema de codificação e não como um
sistema de representação da língua, além de se basearem em definições do que é
fácil ou difícil para a criança.
A partir dessas considerações, o Referencial começa a explicitar a concepção que
sustenta a sua proposta educativa. Referindo-se às novas direções, delineadas nas
últimas décadas, para o aprendizado das linguagens oral e escrita, o documento
alerta que, “[...] ao se considerar as crianças ativas na construção de conhecimentos
e não receptoras passivas de informações há uma transformação substancial na
forma de compreender como as crianças aprendem a falar, a ler e a escrever”
(BRASIL, 1998, p. 120). Apontados como inovações teóricas que precisam ser
reconhecidas, esses pressupostos veiculam a adoção de uma abordagem de cunho
construtivista sem, contudo, as devidas considerações epistemológicas decorrentes
dessa proposta. Ao discutir questões relacionadas com os pressupostos
construtivistas e suas filiações com outros modismos, Rossler (2000, p. 6) salienta:
Com o capitalismo, a produção humana se torna indefinida, não se
limitando mais ao essencial, à satisfação das necessidades imediatas
dos homens. Isto, por sua vez, determina nos homens uma
necessidade de modificarem, renovarem, transformarem
continuamente, tanto a si mesmos quanto a própria sociedade, e esta
necessidade de transformação, segundo Heller, seria uma das
maiores conquistas da humanidade.
O autor ainda explica que essa orientação para o futuro, para o novo é, todavia,
permeada por uma crescente alienação que se transforma em moda, isto é, na
necessidade de acompanhar o que existe de novo na sociedade para superar
24
atrasos. Nesse sentido, o ideário construtivista se constituiu como novidade no meio
educacional sendo fortemente difundido por discursos pedagógicos instituidores de
novas práticas por meio de diferentes vertentes teóricas, mas cujo núcleo central é a
epistemologia genética de Piaget. A vertente adotada no RCNEI é mais claramente
evidenciada nas orientações sobre o desenvolvimento da linguagem escrita com
pressupostos acerca das hipóteses e dos “erros” cometidos pelas crianças em seu
processo de construção de conhecimento. É assumida, então, a adoção de uma
concepção construtivista a partir dos pressupostos lingüísticos e psicológicos de
Ferreiro e Teberosky com as seguintes considerações, apresentadas em nota de
rodapé:
A concepção de aprendizagem da linguagem escrita com base nas idéias
e hiteses que as crianças constroem ao tentar compreendê-la foi
desenvolvida com base nos trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberosky,
entre outros, a partir da década de 70. Os resultados dessa pesquisa
encontram-se publicados, no Brasil, no livro ‘A psiconese da Língua
Escrita’, que consta da bibliografia deste documento, e em outras obras
das mesmas autoras (BRASIL, 1998, p. 128).
Essa explicação remete-nos a considerar que ocorre, nesse discurso pedagógico,
uma predominância teórica dos pressupostos lingüístico-psicológicos da teoria de
Ferreiro e Teberosky, com indicação de diferentes obras das autoras. A ênfase na
teoria da Psicogênese da ngua Escrita ainda pode ser confirmada com base na
constatação de que, embora outros conceitos e princípios epistemológicos tenham
sido abordados no documento, não explicitação do referencial teórico pertinente.
É o que ocorre, por exemplo, com os pressupostos da teoria da enunciação,
contemplados na página 121 do documento, quando são tomados conceitos sem as
devidas referências.
Dessa forma, ao propor mudanças no trabalho com a linguagem escrita a partir da
focalização e da valorização das idéias de Ferreiro e Teberosky (1999), o documento
apresenta uma proposta estática e previsível. Uma proposta que, de certa forma,
pode prover a conformação de condutas e, conseqüentemente a regulação das
práticas. Marinho (2003) contribui brilhantemente com essa questão em seu trabalho
sobre O discurso da ciência e da divulgação em orientações de Língua Portuguesa.
A respeito do uso de referências bibliográficas em discursos de orientações
curriculares oficiais, ela diz que ocorre uma aparente homogeneidade enunciativa
25
cujo efeito é o de construção de “[...] um conhecimento universal, aparentemente
capaz de sintetizar e de diluir as polêmicas que emperrariam o fazer, o agir na
prática cotidiana dos professores” (MARINHO, 2003, p. 131). Por outro lado, ocorre
também o apagamento do sujeito enunciador, com o uso da voz passiva, do trabalho
metalingüístico de explicação que, segundo alguns estudiosos citados por Marinho
Moirand (1992) e Authier-Revuz (1982) seria uma estratégia de aproximação com
o leitor leigo. Essa estratégia configura-se a partir de um discurso de “vulgarização
científica” que também é utilizada no discurso pedagógico.
Sem pretender prolongar a análise das estratégias discursivas utilizadas no
documento, iremos destacar outros dois aspectos que nos chamaram a atenção e
que também foram discutidos por Marinho (2003): o uso excessivo de notas de
rodapé e a estratégia lingüística formada por artigos definidos.
Como constatou a autora, ao examinar os Parâmetros Curriculares Nacionais de
Língua Portuguesa, no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, as
notas de rodapé também foram usadas com a provável
5
intenção de oferecer mais
explicações sobre conceitos fundamentais supostamente desconhecidos pelo leitor e
reforçar a predominância da perspectiva teórica adotada. Ocorre, dessa forma, uma
articulação periférica no texto, por meio de “referências eruditas”, de “peças de
defesa”
6
que, ao serem evidenciadas, promovem a sedução e o convencimento. A
respeito do uso de artigos definidos, a autora nos diz que essa estratégia é pica do
discurso científico: “[...] o nomeado é o acordado, o comprovado, o descoberto, o
dado” (MARINHO, 2003, p. 132). Por meio dessas estratégias discursivas, institui-se,
então, o que é relevante para as “novas” práticas, “facilita-se” o trabalho docente
sem, no entanto, a devida e necessária aproximação com o contexto escolar.
Podemos perceber a ocorrência desses mecanismos nas estratégias utilizadas para
convencer o leitor da necessidade de reconhecer que “[...] o processo de letramento
está associado tanto à construção do discurso oral como do discurso escrito”
(BRASIL, 1998, p. 121). Nessa passagem, observamos, então, uma articulação
5
Utilizamos o termo provável, pois o documento, obviamente, não explicita essas intenções.
6
Expressão usada por Compagnon (1996) e por Marinho (2003) para explicar como as notas são
usadas como dispositivo textual e discursivo.
26
entre os pressupostos da perspectiva lingüístico-psicológica adotada e a perspectiva
do letramento, que pode ser comprovada nas seguintes premissas explicitadas em
diversos trechos do documento:
a) grande parte das crianças que vivem em meios urbanos está em contato com
a linguagem escrita por meio de diferentes portadores textuais, antes de
ingressar na instituição educativa;
b) a intensidade e a qualidade do contato com a linguagem escrita (o grau de
letramento) são indicadores na desenvoltura pela qual a criança elabora suas
hipóteses, apontando a importância do contato com a escrita nas instituições
de educação infantil;
c) a aprendizagem da leitura e da escrita é concebida como “[...] um processo de
construção de conhecimento pelas crianças por meio de práticas que têm
como ponto de partida e de chegada o uso da linguagem e a participação nas
diversas práticas sociais de escrita” (BRASIL, 1998, p. 122).
Além dessas premissas, o documento explicita a seguinte definição de letramento
(em nota de rodapé): “[...] produto da participação em práticas sociais que usam a
escrita como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas que precisam
da escrita para torná-las significativas” (BRASIL, 1998, p. 121). Explica ainda que,
“[...] dessa concepção decorre o entendimento de que, nas sociedades urbanas
modernas não existe grau zero de letramento, pois nelas é impossível não participar,
de alguma forma, de algumas dessas práticas” (p. 121).
Com relação a essas explicações, teceremos duas considerações. A primeira diz
respeito ao significado de letramento explicitado no documento. Além de não conter
informações sobre a autoria desse significado, não considera, também, que existem
diferentes abordagens para essa perspectiva. Institui-se, então, o letramento
pretendido, o letramento adequado para as práticas educativas. Segundo Kleiman
(2003), as práticas de letramento apresentam características macro e
microestruturais e seus significados variam conforme seus usos. A esse respeito,
Marcuschi (2001, p. 19, grifos do autor), lembra que se deve “[...] ter imenso cuidado
diante da tendência à escolarização do letramento, que sofre de um mal crônico ao
supor que só existe um letramento”. Comenta ainda que, pelo fato de existirem
27
“letramentos sociais” que surgem independentemente da escola, eles não podem ser
equiparados somente à aquisição da escrita.
A segunda questão que nos interessa comentar está relacionada com a existência
de um grau diferente de zero de letramento
das pessoas que vivem nas sociedades
urbanas modernas. Terzi (1995), ao comparar as condições de exposição a
materiais escritos das crianças da classe média com as crianças de classes menos
privilegiadas, argumenta que, mesmo sendo praticamente impossível não entrar em
contato com a escrita numa sociedade letrada, “[...] a quantidade e a qualidade
desse contato dependem das condições de vida e das características da
comunidade em que as pessoas vivem (TERZI, 1995, p. 53). Dessa forma, com
base em dados empíricos, a autora evidencia que o acesso aos materiais escritos e
às experiências de leitura é distinto, para diferentes parcelas e grupos da sociedade
e, desse modo, a qualidade e os tipos do letramento também se diferenciam,
principalmente porque vivemos numa sociedade desigual e excludente que dificulta
o acesso aos bens culturais.
Outros aspectos contemplados na proposta de trabalho com a linguagem escrita
dizem respeito à natureza conceitual da escrita, ao seu aspecto funcional e ao papel
do professor no processo de aprendizagem. Quanto ao primeiro aspecto, o
documento explicita que “[...] a aprendizagem da escrita envolve a compreensão de
um sistema de representação e não somente a aquisição de um código de
transcrição da fala” (BRASIL, 1998, p. 122). Além disso, aponta a necessidade de a
criança “[...] compreender não só o que a escrita representa, mas também de que
forma ela representa graficamente a linguagem” (p.122).
Dessa forma, essas idéias reforçam os pressupostos construtivistas, confirmando
que a alfabetização não é um processo que envolve apenas o desenvolvimento de
capacidades de percepção, memorização e treino de capacidades sensório-motoras,
mas é “[...]
um processo no qual as crianças precisam resolver problemas de natureza
lógica até chegarem a compreender de que forma a escrita alfabética em português
representa a linguagem, e assim poderem escrever e ler por si mesmas (BRASIL,
1998, p. 122).
28
Considerando as explicações dadas sobre o sistema de escrita, podemos perceber
que a preocupação em oferecer ao leitor informações dessa natureza, inclusive com
algumas explicações em nota de roda pé,
7
confirma nossas observações acerca do
uso desse recurso no discurso veiculado pelo RCNEI. Sabemos que uma discussão
sobre a natureza conceitual da escrita e da sua constituição como sistema de
representação
da fala requer a explicitação de referenciais que considerem as
origens desses conceitos. Requer que se abra mão, conforme analisa Marinho
(2003), dos processos de uniformização de sentidos que fazem dos documentos
oficiais mecanismos históricos de estabilização de conceitos no campo pedagógico.
Nesse sentido, vale a pena tomarmos as discussões de Tfouni (2004) e sua
abordagem sobre a ngua escrita como um sistema de representação. Partindo do
pressuposto básico de que “[...] a escrita é o produto cultural por excelência”
(TFOUNI, 2004, p. 10), a autora mostra que, desde a sua origem, essa forma de
linguagem está associada a um jogo de dominação e poder, de movimentos de
participação e exclusão, de desenvolvimento social, cognitivo e cultural dos povos.
Dessa forma,
[...] a escrita pode ser tomada como uma das causas principais do
aparecimento das civilizações e do desenvolvimento científico,
tecnogico e psicossocial da sociedade nas quais foi adotada de
maneira simples. Por outro lado,o podem ser esquecidos fatores
como as relações de poder e dominação que eso por ts da utilização
restrita ou generalizada de um código escrito (TFOUNI, 2004, p. 14).
Assim, não basta, como explicitado no RCNEI, ajudar a criança a compreender de
que forma a escrita alfabética em português representa a linguagem. O tratamento
da escrita, como sistema de representação, pressupõe que suas origens, seus usos
e finalidades sociais sejam considerados com base numa perspectiva histórica,
crítica, reveladora.
Na perspectiva adotada pelo documento, isto é, a teoria psicogenética de Ferreiro e
Teberosky, os problemas a serem resolvidos pelas crianças na alfabetização seriam
7
A nota esclarece: “Como a escrita alfabética pode transcrever tudo que é dito, a tentação de
considerá-la como representação completa da emissão do falante. Porém, a escrita não é mera
transcrição da fala e representa apenas parte de seu sentido. Uma frase falada em tom irônico, como,
‘Você é linda!’, é escrita da mesma forma que a mesma frase dita em tom sério. Dentre outras coisas,
a forma gráfica não determina completamente a interpretação, que precisa ser inferida do contexto”
(BRASIL, 1998, p. 122).
29
de natureza lingüística e psicológica. Essa configuração remete-nos a considerar
que os processos de aquisição da escrita são condicionados pelo desenvolvimento
de competências individuais próprias de uma abordagem cognitivista piagetiana. De
acordo com Macedo (2002), as propostas de alfabetização fundadas na abordagem
cognitivista, ao centrarem o foco nas relações entre sujeito e objeto, numa
perspectiva desenvolvimentista, desconsideram o capital cultural do sujeito bem
como sua realidade sócio-histórica
a partir do suposto de que os processos de
desenvolvimento são únicos e invariantes.
Por outro lado, ao tentar uma aproximação com a perspectiva do letramento, é
apontada no documento uma abordagem utilitarista da alfabetização. Macedo (2002,
p. 94) explica que a principal meta dessa abordagem “[...] é produzir leitores que
atendam aos requisitos básicos de leitura da sociedade contemporânea”. Em outras
palavras, produzir “alfabetizados funcionais”. A ênfase ao aspecto funcional da escrita
pode ser percebida em diferentes partes do documento. Na parte que se refere ao
desenvolvimento da linguagem escrita na criança, encontramos o seguinte trecho:
Nas sociedades letradas, as criaas, desde os primeiros meses, eso
em permanente contato com a linguagem escrita. É por meio desse
contato diversificado em seu ambiente social que as crianças descobrem
o aspecto funcional da comunicação escrita, desenvolvendo interesse e
curiosidade por essa linguagem (BRASIL, 1998, p. 127).
Essa descoberta, segundo o Referencial, ocorre quando as crianças começam a
perceber o que a escrita representa e fazem perguntas sobre a sua função e o seu
significado. Assim, dentre as práticas de escrita, sugeridas na página 145, estão a
“[...] participação em situações cotidianas nas quais se faz necessário o uso da
escrita, escrita do nome em situações em que isso é necessário, produção de textos
individuais e/ou coletivos ditados oralmente ao professor para diversos fins”. Essas
recomendações são reforçadas com orientações para que o trabalho com produção
de textos seja constituído por meio de uma prática continuada na qual a reprodução
dos contextos cotidianos possibilite a construção de sentidos para a escrita: escrever
para não esquecer, para se comunicar, etc.
Dessa forma, ocorre um movimento de (re)configuração do processo de
alfabetização que pode ser compreendido como uma tentativa de ampliar a
30
abordagem lingüística de Ferreiro e Teberosky com orientações sobre os aspectos
funcionais da escrita. Entretanto, essa perspectiva remete a uma visão pragmatista de
alfabetização, pois veicula o desenvolvimento econômico, ou seja, o acesso ao mundo
funcional da escrita desde cedo para, mais tarde, se ter acesso ao mundo do trabalho.
Assim, conforme aponta Macedo (2002, p. 24), “[...] sacrifica a análise crítica da
ordem social e política que dá origem à necessidade de leitura em primeiro lugar”.
De acordo com Gontijo (2002), um processo de alfabetização que não torna possível
uma relação consciente com o significado da linguagem escrita é alienador e essa
alienação é decorrente da transformação das finalidades do processo de
alfabetização em simples meio da reprodução da existência. A autora não
desconsidera que os aspectos funcionais sejam importantes, pois eles podem se
tornar motivos que “agem efetivamente” sobre as crianças e, assim, contribuir para a
apropriação da significação social da linguagem escrita. Contudo,
As crianças, ao aprenderem apenas com a finalidade de usarem a
escrita como meio de comunicação a distância, de serem
trabalhadoras e, ilusoriamente, imaginarem que essa aquisição
proporcionará mudança de suas condições materiais e, também, com
a finalidade de realizarem as atividades propostas pela professora na
sala de aula, estão se alienando da humanidade e constituindo a sua
individualidade em-si (GONTIJO, 2002, p. 131).
Atendendo à demanda de oferecer subsídios didáticos aos professores
alfabetizadores, também foram delineadas, no RCNEI, algumas orientações práticas
que giraram em torno da construção de um ambiente alfabetizador, da organização
do tempo escolar, da elaboração de projetos e seqüência de atividades, da utilização
de portadores variados e do uso do computador. Para finalizar, foram explicitadas
algumas orientações sobre a observação, registro e avaliação formativa. Nesse
aspecto, a proposta do RCNEI, para o trabalho com a linguagem escrita, enfatiza a
importância de se observar o interesse das crianças pelas situações de uso da
escrita ressaltando:
Mesmo sem a exigência de que as criaas estejam alfabetizadas aos seis
anos, todos os aspectos envolvidos no processo de alfabetizão devem ser
considerados. Os critérios de avaliação devem ser compreendidos como
referências que permitem a análise do seu avanço ao longo do processo,
considerando que as manifestações desse avanço o são lineares, nem
inticas entre as crianças (BRASIL, 1998, p. 159).
31
Com essa orientação, é encerrada a proposta de trabalho com a linguagem escrita.
O enfoque dado a não exigência da alfabetização e, por outro lado, a necessidade
de se considerar “todos os aspectos” envolvidos nesse processo, além da utilização
de critérios como referência para a compreensão dos avanços da escrita na criança,
parece confirmar a adoção de uma concepção construtivista de alfabetização.
Entretanto, em algumas situações são apropriados pressupostos da perspectiva
histórico-cultural sem as devidas referências e reflexões, o que nos permite
questionar a consistência teórico-metodológica dessa proposta, especialmente no
que se refere às práticas com a linguagem escrita.
Ao escrever sobre os pareceres relacionados com as concepções teóricas presentes
no RCNEI, Cerisara (2003) explica que a perspectiva construtivista, advinda da base
piagetiana, foi criticada por sua fundamentação confusa sem o aprofundamento
necessário, levando a uma abordagem eclética de concepções divergentes que
pode influenciar a prática educativa. Sabemos, também, que as condições de
produção do RCNEI estão associadas às reformas educacionais da escola moderna,
nas quais a ordem e o detalhe das coisas ensináveis
8
permeiam a formalização do
processo educacional. Nesse sentido, o caráter instrumental e didático do RCNEI,
também revelado no eixo de trabalho com as linguagens oral e escrita, evidencia sua
estreita relação com o modelo escolar predominante no ensino fundamental.
Desse modo, entendemos que o RCNEI ainda não contempla os anseios de grande
parte dos profissionais e pesquisadores comprometidos com uma educação de
qualidade para as crianças de zero a seis anos de idade. Contudo, apesar das
implicações político-pedagógicas, o documento é uma demonstração do
reconhecimento da educação infantil como um espaço educativo e contribui para a
superação de uma concepção estritamente assistencialista.
Assim, na tentativa de compreendermos como têm sido reelaborados os diferentes
conhecimentos que subsidiam o trabalho com a linguagem escrita na educação
infantil, propomos, neste estudo, uma aproximação com o cotidiano dessas
instituições. Para And (2004), essa perspectiva pressupõe uma visão de escola
8
Expressão utilizada por Bujes (2002), a partir da formulação de Palamidessi (2001), para significar
seu entendimento de currículo.
32
como espaço social, como espaço de criação e recriação de conhecimentos, valores
e significados. Para tanto, é fundamental o rompimento de uma visão estática do
cotidiano escolar, pois
Conhecer a escola mais de perto significa colocar uma lente de aumento
na dimica das relações e interações que constituem o seu dia-a-dia,
apreendendo as forças que a impulsionam ou que a retêm, identificando
as estruturas de poder e os modos de organização do trabalho escolar
e compreendendo o papel e a atuação de cada sujeito nesse complexo
interacional onde ações, relações, conteúdos são construídos,
negados, reconstruídos ou modificados (ANDRÉ, 2004, p. 41).
Partindo do pressuposto de que o estudo sobre a prática escolar cotidiana pode
contribuir com o debate acerca dos processos que envolvem o fenômeno da
alfabetização, esta pesquisa pretende investigar os eventos mediados pela
linguagem escrita
em uma classe de crianças de seis anos de idade, num Centro de
Educação Infantil da Rede Municipal de Ensino de Vitória, a fim de
analisar se ou
como o processo de ensino aprendizagem da linguagem escrita tem
possibilitado a constituição de sentidos por meio do trabalho de escritura.
A definição desse centro de interesse é decorrente de uma concepção de
alfabetização que, conforme argumenta Smolka (2003, p. 69),
[...] não implica, obviamente, apenas a aprendizagem da escrita de
letras, palavras e orações. Nem tampouco envolve apenas uma
relação da criança com a escrita. A alfabetização implica, desde a sua
gênese, a constituição do sentido. Desse modo, implica, mais
profundamente, uma forma de interação com o outro pelo trabalho da
escritura para quem eu escrevo o que eu escrevo e por quê? [...]
essa escrita precisa ser sempre permeada por um sentido, por um
desejo, e implica ou pressupõe, sempre um interlocutor.
Essa perspectiva nos remete a considerar que, mesmo antes de compreender as
relações lingüísticas do sistema alfabético de escrita, as crianças se apropriam de
sentidos produzidos socialmente e expõem, nos textos que escrevem, suas idéias,
valores, saberes, cultura e, portanto, revelam, por meio do processo de escritura,
como se apropriam/elaboram o discurso social. A educação infantil pode ser tomada,
nesse contexto, como um espaço social e pedagógico privilegiado para o estudo das
práticas que envolvem o trabalho com a linguagem escrita.
33
Nesse sentido, tendo em vista o interesse pelos processos de constituição de
sentidos que se desenvolvem nas práticas com a linguagem escrita, no contexto da
educação infantil, configuramos nosso percurso de investigação com base nos
seguintes objetivos:
a) identificar a(s) perspectiva(s) teórica(s) que orienta(m) o trabalho com a
linguagem escrita nas diretrizes curriculares para a educação infantil do
Sistema Municipal de Ensino de Vitória e no projeto político-pedagógico da
escola, explicitando suas relações com as orientações curriculares nacionais
oficiais;
b) verificar as concepções de alfabetização dos adultos que interagem com as
crianças-sujeitos no ambiente escolar e familiar;
c) observar os eventos mediados pela linguagem escrita nas interações ocorridas
em aula, a fim de identificar os gêneros textuais trabalhados e analisar o
contexto imediato de produção dos textos, os processos que se desenvolveram
no trabalho de escritura e os textos produzidos pelas crianças;
d) analisar as concepções de linguagem e de sujeito subjacentes às práticas de
escrita na sala de aula.
Esta proposta de investigação demanda, obviamente, a explicitação de
posicionamentos teóricos que abordem conceitos e pressupostos orientadores da
pesquisa. Compreendemos, também, que, para a construção desse percurso bem
como para a identificação de possíveis variantes que influenciam na constituição dos
sentidos no processo de apropriação da linguagem escrita, será necessário
caracterizar a instituição e os sujeitos da pesquisa, explicitando os aspectos
relacionados com as suas interações com a escrita no contexto social imediato. Esse
objetivo será configurado na parte destinada aos subsídios teórico-metodológicos.
No próximo capítulo, considerando a problemática que orienta este estudo bem
como seu percurso de investigação, revisitaremos a produção acadêmica pertinente,
com o objetivo de examinar hipóteses, pressupostos, conceitos, explicações,
interpretações em torno dessa problemática, buscando, nesta análise, possibilidades
de avanços e de novas contribuições para a temática em questão.
34
3 DIFERENTES OLHARES SOBRE A ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DA
EDUCÃO INFANTIL
3.1 ALGUNS PONTOS DE PARTIDA
Podemos dizer que foi a partir da década de 1980, quando efervescia o debate
sobre a alfabetização no âmbito da educação infantil, que a produção científica
nessa área foi se intensificando. Em Alfabetização: Série Estado do Conhecimento,
um estudo organizado por Maciel e Soares (2000), verificamos uma considerável
produção científica na área da alfabetização, incluindo pesquisas cujo foco central é
a educação infantil. Os trabalhos foram apresentados com base nos seguintes
critérios: temas privilegiados na construção do conhecimento sobre alfabetização,
pressupostos teóricos e tipos de pesquisa. Tomando o levantamento bibliográfico
organizado por temas privilegiados na construção do conhecimento sobre
alfabetização, encontramos os seguintes trabalhos:
a) Conceituação de língua escrita: A concepção do sistema alfabético por
crianças em idade pré-escolar (CONTINI JÚNIOR, 1986); Competências de
leitura e escrita de uma amostra de crianças de 4, 5, 6 anos de jardim de
infância (RODRIGUES, 1989); Alfabetização como processo discursivo
(SMOLKA, 1987);
b) Concepção de alfabetização: A expectativa da criança pré-escolar e a prática
pedagógica (CARTAXO, 1988); A representação de pré-escola: suas relações
com a prática de alfabetização (DURAN, 1988); Da pré-escola à
alfabetização: caminhos e descaminhos (MAISON, 1989);
c) Determinantes de resultados: Pré-escola: solução para o fracasso escolar?
(LIMA, 1983); Efeitos da pré-escola sobre rendimento em alfabetização ao
final da classe de alfabetização (OTRANTO, 1986); Análise dos resultados
globais e parciais obtidos nos testes ABC relacionando os efeitos da pré-
escolaridade, do nível socioeconômico e da interação entre ambos sobre a
prontidão para a leitura e escrita (PEIXOTO, 1980); A educação pré-escolar e
rendimento de crianças nas séries iniciais da escola de grau (SÁ, 1979),
35
Um estudo da pré-escola através de seus egressos e relação com a evasão
na 1ª série (VERHINE, 1986);
d) Língua oral e língua escrita: Aspectos metodológicos da capacidade de
segmentação em crianças de 5 a 9 anos (GOYANO, 1983); Seqüenciação
fonêmica de pré-escolares e suas relações com a prática de ensino na
alfabetização (MELO, 1983);
e) Prontidão: Fracasso escolar e alfabetização: uma crítica ao período
preparatório (LANZA, 1988); Prontidão, compensação e pré-escola: prática e
crítica (MACEDO, 1988);
f) Proposta Didática: O ensino da língua materna na pré-escola: contribuição
para a formulação de objetivos (LOBO, 1980); A individualização do ensino
em uma pré-escola: relato de uma experiência (TEIXEIRA, 1983).
A partir das temáticas que orientaram os trabalhos da década de 1980, podemos
observar certa influência das idéias que predominavam e permeavam as políticas
públicas educacionais para a infância nesse período. A perspectiva da educação
compensatória e da prontidão também foi foco de atenção do discurso acadêmico. A
educação infantil passava por profundas mudanças, tanto no que diz respeito à
legislação quanto às concepções educativas e, nesse contexto, a produção do
conhecimento também teve um papel relevante na configuração de novas propostas
educativas.
Dessa forma, a partir da década de 1990 e, especialmente com os estudos de
Ferreiro e Teberosky (1999), percebemos que uma razoável estabilidade teórica e
metodológica permeou o movimento em torno da polêmica sobre a alfabetização,
inclusive no contexto da educação infantil. Todavia, sabemos que as condições que
produziram essa “aparente” satisfação, em relação ao trabalho com a linguagem
escrita na educação infantil (a implementação do RCNEI, por exemplo), foram
articuladas por meio de políticas cujas implicações no campo educacional precisam
ser questionadas. Nesse sentido, terá o estudo de Ferreiro e Teberosky (bem como
os outros trabalhos dele decorrentes) e a sua proposta psicolingüística de aquisição
da linguagem escrita contribuído efetivamente para as questões que envolvem o
processo de alfabetização? Como a produção acadêmica, a partir desse período,
tem participado e contribuído com essa discussão?
36
Ao buscarmos os trabalhos produzidos a partir da década de 1990, não
encontramos muitas abordagens diretamente relacionadas com a problemática da
alfabetização na educação infantil, como na década de 80, uma vez que a demanda
por ampliação da cobertura dos serviços na educação infantil e a ampliação do
universo cultural com o qual as crianças, de maneira geral, passam a interagir, são
fatores que vêm exigindo o desenvolvimento da pesquisa em várias direções.
O estudo sobre o estado do conhecimento na educação infantil, organizado por
Rocha, Silva Filho e Strenzel (2001), mostra que as pesquisas do tipo diagnóstico
institucional, de avaliações de programas e das práticas pedagógicas ganham
destaque nesse período. No entanto, “[...] mesmo nos trabalhos preocupados com a
identificação e definição do caráter educativo da creche e pré-escola ou nos estudos
históricos que subsidiam a crítica às concepções vigentes, o ‘interior’ das instituições
é pouco investigado” (ROCHA; SILVA FILHO; STRENZEL, 2001, p. 10). Esse
quadro sofre algumas mudanças, quando o desenvolvimento das pesquisas
extrapola o nível dos levantamentos e diagnósticos e passa a contemplar aspectos
históricos, sociais, psicológicos e pedagógicos envolvidos na educação das crianças.
Dessa forma, os diferentes tipos de relações estabelecidas no cotidiano das
instituições são tomados como objetos de estudo sem, contudo, abrir possibilidades
de práticas mais satisfatórias devido à ênfase na sua insuficiência.
No conjunto de temas abordados nas pesquisas, os estudos relacionados com a
apropriação da linguagem escrita também foram privilegiados na produção científica
9
dos seguintes programas de pós-graduação: Universidade Federal Fluminense:
Araújo (1991) e Sampaio (1994); Universidade Federal de Santa Maria: Batistel
(1994); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: Beer (1990), Diniz (1991),
Garuti (1995) e Machado (1993); Universidade Estadual de Campinas: Vilela (1995)
e Ewbank (1994); Universidade Federal de São Carlos: Souza (1996) e Semensato
(1992); Universidade de São Paulo: Santos (1992) e Oliveira (1991); Universidade
Federal de Santa Catarina: Rocha (1991); Universidade Federal do Paraná: Ramos
(1995); Universidade Federal de Minas Gerais: Passos (1995) e Oliveira (1994);
9
Os estudos apontados na pesquisa realizada por Rocha, Silva Filho e Strenzel (2001) são do
período de 1983-1996. Como já apresentamos a produção decorrente da década de 1980, nos
deteremos apenas nos trabalhos que emergiram no período de 1990 a 1996.
37
Universidade Metodista de Piracicaba: Guimarães (1995); Universidade Federal do
Ceará: Dias (1990). Não encontramos, nessa pesquisa sobre o estado do
conhecimento da educação infantil, resultados abordando a temática que orienta
este estudo na Universidade Federal do Espírito Santo.
10
Todos os trabalhos aqui apresentados focalizam questões relacionadas com o
processo de aquisição da linguagem escrita na educação infantil a partir de diferentes
abordagens teórico-metodológicas. Assim, diante da diversidade de pesquisas e,
sobretudo, da impossibilidade de examiná-las completamente, elegemos, a partir da
leitura dos resumos, os seguintes trabalhos para análise: Garuti (1995), Passos
(1995), Santos (1992), Semensato (1992). Embora sejam orientados por diferentes
perspectivas teórico-metodológicas, os estudos selecionados enfocam as práticas
educativas com a linguagem escrita em suas relações com o contexto escolar e esse
aspecto foi fundamental na seleção dos trabalhos.
Além desses, serão tomados para análise os estudos de Abaurre, Fiad e Mayrink-
Sabinson (2002) e de Nogueira (1991). Apesar de não centrarem o foco do estudo
na educação infantil, esses trabalhos trazem importantes contribuições para a
análise a que nos propomos: o papel mediador do interlocutor e a discussão sobre o
contexto de produção
da linguagem escrita pelas crianças. Assim, tendo explicitado
os contornos dessa revisão de literatura, passamos à análise dos trabalhos.
3.2 ESTUDOS QUE FOCARAM A LINGUAGEM ESCRITA
Iniciaremos nossa análise por um dos trabalhos mais atuais sobre a aquisição da
linguagem escrita e de grande influência no debate contemporâneo: Abaurre, Fiad e
Mayrink-Sabinson divulgam, na obra Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o
trabalho com o texto (2002), a investigação que vêm realizando desde 1992, no
10
Embora a Universidade Federal do Espírito Santo não tenha contribuído com discussões
especificamente relacionadas com a temática que orienta este estudo, foram produzidos oito
trabalhos sobre a educação infantil no período de 1983-1996: Araújo (1994), Brotto (1983), Castro
(1996), Cola (1996), Couriel (1991), Oliveira (1993), Ronchi Filho (1995) e Souza (1996). Na busca
em arquivo da própria universidade, encontramos outros trabalhos que foram produzidos após esse
período, sem, no entanto, uma abordagem diretamente relacionada com o tema. Um desses
trabalhos é o de Rangel (2003) que trata da formação continuada de professores da Educação Infantil
no Sistema Municipal de Ensino de Vitória.
38
âmbito do Projeto Integrado de Pesquisa A relevância teórica dos dados singulares
na aquisição da linguagem escrita, financiado pelo CNPq e desenvolvido no Instituto
de Estudos da Linguagem/Unicamp.
Ao discutirem os pressupostos teóricos que fundamentam a perspectiva adotada na
pesquisa (a relevância dos dados singulares no processo de aquisição da linguagem
escrita), as autoras assim se posicionam:
Acreditamos que os dados da escrita inicial, por sua freqüente
singularidade, são importantes indícios do processo geral através do
qual se vai continuamente constituindo e modificando a complexa
relação entre sujeito e linguagem. [...] pelo fato de darem maior
visibilidade a alguns aspectos desse processo, esses dados podem
contribuir de forma significativa para uma discussão mais profícua da
natureza da relação sujeito/linguagem no âmbito da teoria lingüística
(ABAURRE; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 15).
A discussão sobre o estatuto teórico dos dados singulares em ciências humanas, de
acordo com as autoras, emergiu, silenciosamente, no final do século XIX, e foi
retomada pelo historiador italiano Carlo Ginzburg (1986) que, ao discutir o
paradigma que ele chama de indiciário, define princípios metodológicos para garantir
o rigor nas investigações centradas no detalhe, na singularidade dos dados. A
adoção do paradigma indiciário de cunho qualitativo pressupõe um tratamento
metodológico diferente dos modelos centrados na quantificação e na repetibilidade
dos resultados obtidos em situações experimentais.
Segundo as autoras, no trabalho com indícios, é preciso considerar os critérios de
identificação dos dados singulares que serão tomados como representativos com um
rigor mais flexível, que possibilite a formulação de hipóteses explicativas interessantes
na observação e análise do idiossincrático, ou seja, a coleta dos dados ocorre de
forma naturalística, “[...] sem o controle rígido dos contextos experimentais criados
nas situações de pesquisa” (
ABAURRE; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 2002,
p. 16).
Com base nesses pressupostos, o estudo é contextualizado com argumentações que
giram em torno da questão dos “erros” cometidos pelos aprendizes da linguagem
escrita em situações de aprendizagem escolar. Para as autoras, os erros o
indícios preciosos de um processo de aquisição da linguagem escrita que está em
39
curso. Elas comentam que esse fato foi ignorado por estudos e práticas pedagógicas
durante um longo período, reconhecendo as mudanças efetuadas a partir do
surgimento da Psicologia Genética piagetiana e das pesquisas de Ferreiro e
Teberosky que colocaram em foco o aluno como sujeito ativo na construção do
conhecimento. Entretanto, a apressada transposição desses estudos em método de
ensino acarretou, segundo as autoras (2002, p. 17), “[...] a descaracterização dos
sujeitos reais da aprendizagem, dos alunos que vivem, cada um a sua maneira, uma
história singular de contato com a linguagem e com seus interlocutores”.
Outro problema encontrado pelas autoras diz respeito à natureza dos dados da
aquisição da linguagem. São questionadas duas perspectivas metodológicas. A
primeira diz respeito aos trabalhos voltados para a aprendizagem da escrita com
base no modelo adulto. Nesse modelo, ao se tomar a gramática como referência e
ponto de chegada, desconsideram-se as operações e as hipóteses da criança sobre
a linguagem escrita. A outra perspectiva questionada é a do método clínico, que
pressupõe a coleta de dados em situações experimentais e controladas. Nesse
caso, os dados são tomados como evidências ou contra-evidências e não como
indícios episódicos e singulares. Os estudos psicolingüísticos de inspiração
piagetiana estão inseridos nessa perspectiva e a crítica levantada pelas autoras,
com relação a esses estudos, diz respeito, especialmente, à concepção de sujeito
idealizado cujas manifestações de comportamentos são alçadas, por hipóteses, à
categoria teórica de sujeito universal. Nos experimentos realizados por Ferreiro, por
exemplo, o interesse era flagrar as etapas do desenvolvimento cognitivo de um sujeito
psicológico idealizado, a fim de compreender aspectos universais desse processo.
Ainda buscando as lacunas existentes nas pesquisas sobre a aquisição da
linguagem, Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson dizem que, embora o contexto e o
interlocutor estejam sempre pressupostos nesses estudos, eles são tomados como
elementos previamente constituídos, prontos e não como elementos constitutivos do
processo. Daí decorre um problema ainda maior: a indefinição do papel do próprio
sujeito nas transformações que ocorrem no contexto, em seus atores e na própria
linguagem, isto é, a maneira como contexto e interlocutor afetam e são afetados no
processo de aquisição da linguagem é desconsiderada.
40
Em contrapartida, nos estudos caracterizados pelo paradigma indiciário, é incorporada
uma teoria da linguagem mais abrangente que contempla a história da constituição e
constante mutação do objeto lingüístico. O interesse teórico consiste em
[...] flagrar o instante em que o sujeito demonstra, oralmente ou por
escrito, sua preocupação com determinado aspecto formal ou
semântico da linguagem [...] saber que fato singular, que aspecto de
contexto, de forma ou de significação lingüística, [...] que possível
combinação desses fatores pode ter adquirido saliência particular para
o sujeito, colocando-se, assim, na origem da sua preocupação, na
origem do problema para o qual passa a buscar uma solução, ainda
que muitas vezes episódica e circunstancial (ABAURRE; FIAD;
MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 21).
Para as autoras, esses pressupostos justificam o interesse pela significação dos
dados que documentam a história dos apagamentos, refacções e reescritas de
textos, pois eles representam eventos particulares da micro-história da escrita
individual e é nesse sentido que cada texto espontâneo produzido pela criança se
torna uma importante fonte de indícios sobre a relação do sujeito com a linguagem.
Diante da necessidade de conceber o sujeito em sua singularidade, as autoras
acreditam que a pesquisa por elas coordenada pode contribuir para ampliar a
compreensão desse fenômeno. Assim, com o objetivo de definir princípios
metodológicos gerais que orientem a relação entre investigador e dados na busca
dos indícios reveladores do fenômeno, foram coletadas, de forma naturalística,
informações a respeito da produção escrita de crianças, adolescentes e adultos em
sutuações e contextos diferenciados: os sujeitos o alunos de 1º, e graus de
escolarização, a produção escrita é escolar, espontânea, com primeiras versões de
textos reescritos, com textos definitivos, gravações em vídeos e diários longitudinais
constituídos em ambiente escolar e doméstico.
Dessa forma, os milhares de dados que constituem o corpus da pesquisa são,
segundo as autoras, “[...] representativos de diferentes momentos do processo de
aquisição da representação escrita da linguagem e [...] da atividade do sujeito na
relação que continuamente estabelece com a linguagem” (
ABAURRE; FIAD;
MAYRINK-SABINSON, 2002,
p. 16). Dentre as diversas manifestações singulares
disponíveis nos textos espontâneos, as autoras destacam as decorrentes de
41
episódios de refacção textual, pois estas revelam que “[...] por trás do trabalho de
modificação de algo anteriormente escrito sob forma diversa, escondem-se
freqüentemente motivações, as mais variadas, reveladoras das singularidades dos
sujeitos e da relação por eles estabelecida com a linguagem” (p. 24).
Segundo as autoras, as modificações mais comumente encontradas nos textos
dizem respeito à correção ortográfica. Elas mostram vários exemplos que
evidenciam as prováveis razões que levaram as crianças a modificarem
espontaneamente a escrita: a saliência particular no clímax do texto, ou seja, na
“palavra-chave” do texto; a preocupação decorrente do tipo de portador; o próprio
conhecimento de mundo da criança; a adequação da palavra ao sentido ou ao estilo
do texto. Além disso, são encontradas modificações nos textos que apontam outros
aspectos morfossintáticos da linguagem, como alterações na concordância
decorrentes do replanejamento do texto; alterações resultantes da busca por uma
coerência semântica e por uma melhor adequação às normas da escrita.
Tomemos um dos exemplos citados pelas autoras, o de Ignácio: uma criança da pré-
escola particular, de Belo Horizonte, que apresenta, em seu texto, um caso de
substituição lexical. O texto (uma receita culinária de ficção”) é criado a pedido da
professora, com base na seguinte tarefa: “Pensar uma receita para o Brasil vencer a
Copa”. Uma das modificações realizadas pela criança no texto diz respeito ao uso de
letras maiúsculas. Ao escrever os ingredientes da receita (ela utiliza os jogadores
como ingredientes), a criança deixa marcas no texto que sinalizam a seguinte
correção: apaga as letras minúsculas utilizadas originalmente para escrever Bebeto,
Romário e Tafarel, substituindo-as pelas maiúsculas correspondentes. Ao proceder à
análise, as autoras explicam:
O que parece ter motivado tais modificações foi o fato de a criança, ao
escrever o nome Branco (quarto ingrediente da receita), ter optado
pela letra maiúscula (provavelmente por ter se lembrado nesse
momento, apenas, da exigência de maiúscula em nomes próprios de
pessoas), o que a fez rever as três escritas anteriores de nomes de
jogadores (ABAURRE; FIAD; MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 27).
A hipótese que sustenta a explicação é a seguinte:
42
A opção inicial pelas letras minúsculas pode ser tomada como um
indício de que, no momento inicial da escrita de uma receita por esta
criança, particular, pode ter prevalecido o caráter de ‘ingredientes’
assumido pelos nomes de jogadores, e não o fato de se tratarem de
nomes próprios (que exigem maiúsculas, o que esta criança parece
saber) (ABAURRE; FIAD ; MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 27).
Outra modificação que chamou a atenção das pesquisadoras nessa produção foi
uma substituição lexical realizada pela criança. Isso ocorre da seguinte maneira: a
criança substitui o item lexical bebe (misturase tudo e bate no liquidificador e “bebe)
pelo item lexical espalha (e acrescenta em campo). Essa modificação é analisada
assim: embora a palavra bebe seja a esperada no contexto de uma receita, ela é
substituída pelo fato de esta não ser uma receita qualquer, “[...] a criança parece ter-
se dado conta desse fato, lembrando-se dos ‘ingredientes’ [...] e da situação ficcional
em que vinha trabalhando” (
ABAURRE; FIAD ; MAYRINK-SABINSON, 2002,
p. 28).
Nesse caso, segundo as autoras, é o conhecimento de mundo da criança que a leva
a fazer a modificação do léxico para adequá-lo ao contexto da receita.
Esse exemplo, tomado para ilustrar como foram procedidas as análises, parece
comprovar que as interpretações foram realizadas a partir das pistas deixadas nos
textos, tendo em vista os movimentos dos sujeitos em torno de determinadas
operações lingüísticas. Buscando ampliar o foco das análises, Mayrink-Sabinson
enfatiza o papel do interlocutor no processo de aquisição da representação escrita.
A autora também tece considerações acerca do trabalho realizado por Ferreiro e
Teberosky, argumentando que, como o sujeito é idealizado, universal, aprende por
meio de suas ações sobre os objetos passando por etapas na construção do
conhecimento, o outro que interage com a criança não é tomado como elemento
constitutivo desse processo, mas apenas como um elemento a mais no contexto
social em ocorre essa construção. em Vigotski, é o adulto inserido nas práticas
sociais que assume o papel de prover o que será incorporado pela criança. Mayrink-
Sabinson afirma que, apesar disso, o outro em Vigotski aparece pronto, estabilizado:
“Apesar de ser previsto um movimento da criança, o OUTRO que com ela interage
[...] não se movimenta, preso que está numa linguagem estável e constituída”
(MAYRINK-SABINSON, 2002, p. 41).
43
Discordamos da autora com relação a esse aspecto, pois Vigotski, quando trata da
importância da mediação para o desenvolvimento dos conceitos superiores na
criança, não pressupõe uma estagnação do outro, mesmo porque seu objetivo é
demonstrar como as investigações psicológicas sobre a aprendizagem enfocaram
apenas o nível de desenvolvimento intelectual da criança, isto é, aquele que a
criança consegue desenvolver sozinha. Sua preocupação com os processos de
instrução o leva a comprovar que a zona de desenvolvimento potencial tem mais
importância que o nível de desenvolvimento atual das crianças. Ele afirma que “[...]
em colaboração a criança sempre pode fazer mais do que sozinha” (VIGOTSKI,
2001, p. 329). Dessa forma, sua investigação buscou rever os pressupostos
predominantes nas relações entre desenvolvimento e aprendizagem,
potencializando-os numa perspectiva de orientação para o futuro. Obviamente, esse
processo pressupõe um movimento de todos os sujeitos, inclusive daqueles que
organizam a instrução.
Para Mayrink-Sabinson os pressupostos da perspectiva bakhtiniana são os que mais
se aproximam da proposta do estudo, uma vez que a aquisição da linguagem é
concebida como um amplo processo de constituição da relação sujeito/linguagem.
Nesse sentido, a autora explica que “[...] as hesitações, as reelaborações, as
generalizações, as variações e as idiossincrasias podem ser tomadas como indícios
desses movimentos dos sujeitos em constituição” (MAYRINK-SABINSON, 2002, p.
42). Dessa forma, com o objetivo de discutir o papel do adulto no processo de
atribuir sentido à seqüência de letras que a criança desenha e às modificações
introduzidas pelo próprio modo de agir da criança no modo de agir de seu
interlocutor letrado, a pesquisadora analisa eventos singulares de interação mãe-
criança pré-escolar.
11
Conclui que as teorias que pretendem explicar o processo de
aquisição da linguagem escrita não podem desconsiderar o papel do outro, bem
como o movimento de constituição recíproca que ocorre nessas interações, ou seja,
no diálogo pela busca de sentido para a escrita ambos os sujeitos se movimentam.
Os demais trabalhos apresentados na obra trazem outros exemplos de textos em
que se podem encontrar marcas de reelaboração na produção escrita dos sujeitos
11
É importante esclarecer que esse sujeito (filho da pesquisadora) convivia intensamente com a
linguagem escrita e com adultos letrados.
44
que fazem parte da pesquisa. A interpretação dessas marcas possibilita, conforme
Abaurre (2002, p. 69), “[...] compreender o movimento que vai das operações
epilingüísticas até a reflexão metalingüística, mais controlada, planejada e
consciente”.
Podemos perceber, assim, que o foco dessas investigações está nas operações de
produção textual realizadas pelos sujeitos em interação com o seu objeto e com o
outro, interlocutor letrado. Certamente, as análises suscitadas pelas autoras
constituem-se em questões relevantes, do ponto de vista lingüístico, e apontam
contribuições interessantes para o processo de alfabetização. Contudo,
considerando a perspectiva teórica que orienta nosso olhar, acreditamos que a
análise desses aspectos ainda não é suficiente para a compreensão do conteúdo
ideológico, próprio de uma língua viva, tomada em seu contexto social.
Qualquer que seja o aspecto considerado numa enunciação, ele será determinado
pelas condições reais de produção ou, utilizando uma expressão de Bakhtin (1999),
por um “auditório social” que multidetermina a enunciação. Aos aspectos físicos,
psíquicos e fisiológicos dessa relação precisam ser incluídas tanto as situações que
emergem do contexto imediato como as do meio social mais amplo. Considerando
ainda que a apropriação da linguagem escrita pela criança, ocorre, de maneira geral,
por meio da interação em contextos escolares, é fundamental apreender, também, o
dinamismo próprio da vida escolar, compreendendo as dimensões políticas,
institucionais e instrucionais como elementos constitutivos desse processo.
Nesse sentido, vejamos como essas questões foram abordadas no trabalho de
Nogueira (1991) que trata do desenvolvimento da atividade intramental pela criança,
durante a apropriação da escrita no contexto escolar. Com o interesse em levantar,
apontar e discutir questões relativas à construção da prática educativa, a autora
assume o lugar de professora-pesquisadora e, por meio de procedimentos
participativos, analisa alguns episódios de atividades escolares de leitura e escritura
explicitando a emergência da atividade intramental na criança em suas relações com
a atividade pedagógica.
45
Inicialmente e, a partir de suas experiências como professora alfabetizadora,
Nogueira aborda alguns questionamentos que a levaram a buscar um referencial
teórico que explicitasse os modos de elaboração desse processo. São eles:
Como o processo de desenvolvimento da criança é constituído nas
interões sociais, dentro da escola? Como se dá o processo de aquisição
da escrita pela criança, neste contexto? Em que medida, a organização
de uma proposta pedagógica interfere neste processo de construção?
Como aão pedagica é construída? (NOGUEIRA, 1991, p. 2).
Adota, então, a perspectiva sócio-histórica do desenvolvimento argumentando que
é o conceito de mediação, proposto por Vigotski, que possibilita a explicitação do
movimento interpessoal-intrapessoal na elaboração do conhecimento e das funções
psicológicas. Para aprofundar teoricamente esse pressuposto, Nogueira (1991)
apropria-se das discussões de Vigotski e de seus colaboradores a respeito dos
diferentes enfoques nos estudos sobre o processo de desenvolvimento e
aprendizagem, explicitando conceitos relacionados com os seguintes aspectos: o
papel da instrução e da interação, o processo de apropriação, o desenvolvimento
das funções psicológicas superiores como a percepção, a atenção e a memória, o
conceito de zona de desenvolvimento potencial, a mediação pela linguagem, o
desenvolvimento das atividades representativas na criança, como a fala, o desenho,
a narrativa, o jogo de faz-de-conta e a escrita.
Partindo desse aporte teórico, Nogueira utiliza o conceito de mediação como
categoria explicativa da emergência de funções mentais superiores para abordar o
processo de construção da atividade intelectual em suas relações com as condições
de produção do contexto escolar, ressaltando que,
[...] na perspectiva sócio-histórica [...] o desenvolvimento das funções
intelectuais está inter-relacionado com duas formas básicas de
mediação: a mediação pelos signos, enquanto organizadora de
instrumentos para a atividade intelectual, e a mediação pelo outro, que
permite a construção partilhada da atividade mediada pelos signos
(NOGUEIRA, 1991, p. 28).
A opção pela realização do estudo no contexto escolar é justificada por ser esse o
espaço destinado a organizar situações de ensino de forma intencional. Desse
modo, “[...] a escola pode ser vista como instância de mediação entre as crianças e
os instrumentos auxiliares de desenvolvimento cultural” (NOGUEIRA, 1991, p. 7). A
46
autora fundamenta sua proposta metodológica a partir do método instrumental
proposto por Vigotski, que, conforme ela explica, se efetiva pelas observações do
curso do desenvolvimento de um processo e pressupõe, como procedimentos
metodológicos, “[...] a análise de processos e não de objetos, a explicitação e o
descrição de comportamentos e a análise do comportamento como história do
comportamento” (NOGUEIRA, 1991, p. 10).
O trabalho foi desenvolvido durante um ano letivo, quando a professora-
pesquisadora pode assumir uma turma de 1ª série do ensino fundamental. Ela
explica que a efetivação dessas duas atividades (docência e pesquisa) implicou o
planejamento, realização, registro e avaliação da prática pedagógica por meio de
uma inserção dialética no próprio trabalho pedagógico. Em sua descrição acerca da
metodologia, Nogueira não aborda a caracterização da instituição e dos sujeitos da
pesquisa. Limita-se apenas a explicitar os procedimentos de coleta de dados: foram
recortados, apresentados e analisados episódios do diário de campo, com o objetivo
de possibilitar “[...] a explicitação de como os processos de desenvolvimento das
crianças se relacionam com as formas de interação do contexto de sala de aula,
consideradas enquanto condições de produção” (NOGUEIRA, 1991, p. 11).
Antes da análise dos episódios, é apresentado um relato da prática educativa para
demonstrar a ocorrência do movimento de constituição recíproca entre as crianças e
a professora. Esse movimento, segundo a pesquisadora, provoca mudanças nos
processos de aprendizagem e de ensino. Na análise dos episódios, ela procura
evidenciar a construção da atividade reflexiva pela criança e as negociações que
ocorreram na construção da leitura trazendo algumas reflexões importantes, como: a
emergência da reflexividade no processo de auto-regulação que ocorre durante a
atividade de escritura e de leitura realizada pela criança, a constituição de sentidos
na leitura por meio de signos mediadores que atuam como recursos auxiliares à
memória, o movimento de constituição do sujeito/leitor a partir do processo
intersubjetivo de construção do conhecimento. Segundo Nogueira (1991, p. 65-66),
“[...] o dado de pesquisa do qual dispomos não é somente um registro da leitura das
crianças [...] é um registro da dinâmica da sala de aula [...] a opção pela coleta de
dados em sala de aula torna possível o acesso aos mínimos detalhes do cotidiano”.
47
Ao concluir seu trabalho, Nogueira destaca a importância do conceito de mediação
para a compreensão da relação dialética nas relações entre ensino e aprendizagem,
abordando, assim, uma das principais contribuições do estudo: se, por um lado, as
relações de ensino se constituem em condições de produção da atividade mental
das crianças, por outro, os processos de desenvolvimento das crianças se
constituem em condições de produção da proposta pedagógica.
Podemos perceber que a autora atribui importância às condições de produção,
ressaltando os diferentes aspectos na constituição do processo educativo.
Entretanto, não foram contempladas, em seu texto, as possíveis relações com o
contexto social mais amplo, abordando aspectos históricos, políticos e ideológicos
que também estão circunscritos ao contexto escolar. Se o processo de elaboração
do conhecimento, para uma análise que se fundamenta numa perspectiva sócio-
histórica, conforme reconhece a autora, é constituído por um movimento de
objetivação e de subjetivação que está impregnado por questões culturais e
históricas, quais são essas questões? Quem são os sujeitos que participam desse
processo? Qual a sua história? Em qual espaço/tempo estão situados?
Quanto aos procedimentos utilizados na coleta e análise dos dados, a autora explica
que a maior parte dos registros foi realizada em diário de campo e, em alguns
momentos, por meio de gravações em áudio, produzidas por outra pesquisadora.
Essas gravações, apesar de abrirem possibilidades de distanciamento, não foram
utilizadas para análise (apenas para discussão entre as pesquisadoras), pois,
segundo Nogueira, não se configuraram em situações do cotidiano da prática
pedagógica. Nesse sentido, quais seriam esses eventos, citados pela pesquisadora,
que “[...] não dizem respeito ao cotidiano da prática pedagógica”, mas que, ao
mesmo tempo, possibilitam discutir sobre ela? Quais discussões emergiram a partir
desses registros? Considerando que esse procedimento possibilitaria maior
distanciamento, por que não foi utilizado?
Preservar o distanciamento do objeto não é tarefa simples, pois, de alguma forma,
estamos implicados com ele. Mas, nesse caso, esse distanciamento torna-se um
fator fundamental. André (2004) nos alerta que, quando o pesquisador investiga uma
situação que lhe é muito familiar, pode correr o risco de confundir opiniões
48
preexistentes e revelações evidenciadas no estudo. Segundo a autora, “[...] o grande
desafio nesses casos é saber trabalhar o envolvimento e a subjetividade, mantendo
o necessário distanciamento que requer o trabalho científico” (ANDRÉ, 2004, p. 48).
A triangulação de dados decorrente de uma variedade de fontes de informação, por
exemplo, pode favorecer a reconstituição de percepções e de opiniões já formadas.
No trabalho de Nogueira, nota-se que a opção por relatórios descritivos das
atividades de ensino organizadas e selecionadas pela própria pesquisadora para
análise pode ter sido um dos fatores que restringiu as possibilidades de captar a
dinâmica da sala de aula para além do seu próprio fazer, ou seja, em sua complexa
relação com o contexto social mais amplo. A escolha dos procedimentos
metodológicos seria, então, uma forma de garantir maior distanciamento e de captar,
com maior profundidade, a complexidade da prática educativa.
Apesar das questões aqui colocadas, o estudo de Nogueira aponta, conforme já
situamos, o reconhecimento das pesquisas que buscam, na análise das situações
concretas de produção das práticas educativas, o movimento de constituição dos
sujeitos no processo de apropriação da linguagem escrita. Assim como no trabalho de
Nogueira, esses estudos têm voltado, predominantemente, seu foco de atenção para
as séries iniciais do ensino fundamental. Contudo, a educação infantil também tem
sido contemplada com discussões dessa natureza que emergem no contexto escolar.
Serão nessas discussões que focalizaremos nossa atenção a partir de então.
O estudo de Azenha (1995)
12
tem como objetivo central a gênese da escrita na
criança. Partindo de duas teorias psicogenéticas da linguagem escrita: os postulados
de Ferreiro e os de Luria, a autora discute os dados coletados numa investigação
com um grupo de crianças de quatro a seis anos, a fim de interpretar o desempenho
dos sujeitos em tarefas nas quais a escrita é empregada como um recurso auxiliar
para a memória. Seu foco de atenção está na emergência do uso simbólico de
rabiscos, desenhos e letras, empregados com fins de escrita.
12
Na primeira parte deste capítulo, esse trabalho foi informado da seguinte maneira: Santos (1992).
Queremos esclarecer que, em nossas análises, tomamos o texto publicado pela Editora Ática (1995).
Nessa publicação foram suprimidos os sobrenomes Bautzer Santos e alterado o título da dissertação:
O grafismo infantil: processos e perspectivas.
49
Após tecer as considerações teóricas que orientaram seu estudo, abordando os
pressupostos de base epistemológica nas pesquisas realizadas por Ferreiro e Luria
bem como as principais descobertas deles decorrentes (especialmente os aspectos
relacionados com as seqüências genéticas de cada estudo e os desacordos
existentes entre eles), Azenha confirma seu interesse na pesquisa empírica para
“[...] buscar as ‘evidências lurianas’ que possam ampliar a ótica com a qual o
paradigma da investigação de Ferreiro nos instrumentalizou para analisar a gênese
da escrita” (AZENHA, 1995, p. 68).
A autora dedica o segundo capítulo de seu trabalho à explicitação dos
procedimentos metodológicos, explicando, inicialmente, como aconteceu o estudo
exploratório preliminar. Apoiando-se na investigação de uma série de estudo de
casos com procedimentos empíricos de caráter longitudinal (o estudo foi realizado
em dois anos), a autora demonstra, desde o percurso metodológico inicial, uma
preocupação em articular os pressupostos teóricos a procedimentos de pesquisa
coerentes com a proposta do estudo. Esse cuidado também pode ser percebido
quando a pesquisadora caracteriza a instituição, o grupo de crianças, o local de
coleta dos dados, as situações experimentais utilizadas e as interações nelas
ocorridas. Além disso, a autora preocupa-se em explicitar hipóteses e objetivos de
cada percurso analítico, delineando os processos de interpretação dos dados com
base na coordenação das abordagens longitudinal e transversal. Assim, faz-se a
opção por um estudo de caso que serve de fio condutor para a seleção das
entrevistas mais ilustrativas do processo de transformação que ocorre desde o
grafismo com traços imitativos até uma grafia próxima ao sistema convencional.
Ao empreender as análises, Azenha articula suas discussões com os conceitos e
pressupostos orientadores da pesquisa, atribuindo aos dados empíricos um status
teórico que lhe permite, a partir do estudo do percurso realizado pelos sujeitos,
encontrar fortes indícios que comprovam a existência de um percurso genético
primitivo na apropriação da linguagem escrita. Nesse percurso, as crianças deixam
de utilizar grafias imitativas para construir estratégias de escrita que lhes permitem
codificar os significados mais relevantes dos conteúdos orais por meio da utilização
de recursos topográficos e icônicos.
50
Do ponto de vista dos processos psicológicos, uma das principais contribuições
desse estudo está na confirmação do caráter instrumental do desenho para a
recuperação do conteúdo, inicialmente anotado, sendo essa uma conduta que se
constitui no primeiro uso simbólico da escrita. Outro aspecto importante do estudo é
a configuração dos impasses genéticos existentes entre o registro escrito com
elementos convencionais da escrita e a impossibilidade de leitura decorrente desse
registro. Conforme reconhece a autora,
A consideração dos postulados de Vigotski (sobre a constituição do
sujeito psicológico) imprime, à interpretação da existência de
impasses, uma perspectiva que anuncia a possibilidade de novas
aberturas no desenvolvimento, na dependência da construção de
novas situações no plano interpsicológico que facultem o acesso a
artefatos culturais mais complexos (AZENHA, 1995, p. 188).
Azenha aponta, ainda, que a superação desse impasse pode ocorrer com a
aprendizagem específica dos modos de organização da escrita convencional. Esse
aspecto constitui-se em um novo ponto de viragem no registro escrito que pressupõe
diferenciações mais refinadas do signo simbólico exigindo, assim, uma investigação
empírica específica. Ela considera essa questão extremamente relevante para a
reflexão pedagógica que busque a compreensão das questões ligadas ao
desenvolvimento e à aprendizagem, bem como ao papel do ensino.
A esse respeito também se posicionou Luria, em sua investigação sobre a pré-
história da escrita na criança, ao chamar a atenção para a importância de serem
consideradas as técnicas primitivas de escrita que são desenvolvidas pelas crianças
antes mesmo de sua entrada na escola. Segundo o autor, essas técnicas são
perdidas assim que a escola proporciona à criança um ensino centrado no sistema
de signos padronizado e econômico. Nesse sentido,
Se formos capazes de desenterrar essa pré-história da escrita,
teremos adquirido um importante instrumento para os professores: o
conhecimento daquilo que a criança era capaz de fazer antes de
entrar na escola, conhecimento a partir do qual eles poderão fazer
deduções ao ensinar seus alunos a escrever (LURIA, 1998, p. 144).
O estudo de Azenha pode ser considerado, nessa perspectiva, um importante
instrumento para o trabalho com a linguagem escrita nas instituições de educação
infantil. Por outro lado, a pesquisa empírica que condiciona os sujeitos a uma
51
situação experimental pode ficar restrita a uma análise psicológica que não conta
de captar as relações dialógicas decorrentes de intensas atividades discursivas,
como as que ocorrem nas práticas escolares.
Retomando as considerações de Smolka sobre as relações de ensino na sala de aula,
queremos ressaltar que a escrita não pode ser tomada apenas como um objeto de
conhecimento, pois “[...] como forma de linguagem, ela é constitutiva do conhecimento
na interação” (SMOLKA, 2003, p. 45). A sala de aula é, portanto, um espaço de
interação social e de interlocução no qual a linguagem pode ser experenciada em
suas várias possibilidades, num constante movimento de compreensão, de criação e
de transformação.
O desafio que se coloca, portanto, é articular as descobertas subjacentes de
situações empíricas experimentais à dinâmica da sala da aula, à complexidade dos
processos educativos institucionalizados e aos seus aspectos políticos, econômicos
e ideológicos. Com relação ao trabalho com as crianças de zero a seis anos, isso se
torna ainda mais desafiador: pressupõe uma formação de qualidade para os
profissionais que atuam nessa instituição e condições de trabalho dignas e
coerentes com as demandas teóricas e práticas dos processos de ensino.
Apesar desses desafios, é importante ressaltar que o movimento teórico, em torno
das questões que envolvem a linguagem escrita, é de fundamental importância,
especialmente aqueles que contribuem para nossa compreensão acerca dos
processos psicológicos em suas relações históricas e sociais, contrapondo-se,
assim, às concepções idealizadoras de sujeito e de sociedade que concebem a
escola como um espaço de reprodução das relações sociais dominantes.
Nesse sentido, Passos (1995), buscando compreender as práticas de alfabetização
em duas instituições de níveis sociais diferentes (uma pré-escola particular e uma
pré-escola pública da cidade de Belo Horizonte) resgata, em seu texto introdutório,
as contribuições da História, da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia para
fundamentar teoricamente a concepção de criança, de aprendizagem e de
alfabetização que fundamenta seu estudo. Sem aprofundar esse debate teórico, a
autora deixa algumas pistas que nos permitem inferir a base epistemológica da
52
pesquisa. Ao discorrer sobre os aspectos que devem sustentar uma educação de
qualidade, ela situa as tendências pedagógicas predominantes nos programas
educacionais dirigidos às crianças de zero a seis anos: romântica, cognitiva e crítica,
apoiando-se nos pressupostos da segunda e da terceira tendências.
Parte de uma concepção de prática pedagógica que: 1º) defende a qualidade e
proporciona o desenvolvimento das crianças; 2º) reconhece a criança como um ser
ativo e agente de seu desenvolvimento que se constrói na e pela interação com outras
pessoas de seu ambiente, 3º) considera as experiências anteriores das crianças e o
diálogo como meio de aprofundar significados e modificar comportamentos. Toma
alguns pressupostos veiculados por Kramer (1985), Soares (1988), Goes e Smolka
(1992), Franchi (1991), Gnerre (1991), Rego (1985), Colello (1995), Ferreiro e Palácio
(1989) para construir a concepção de alfabetização que fundamenta o trabalho. Essa
concepção pode ser compreendida a partir da seguinte premissa:
[...] não é o contato com as letras que alfabetiza, mas a
compreensão a respeito das diferentes modalidades da escrita, de
seus diversos suportes materiais, das suas funções e características é
que faz com que a criança ingresse no ‘mundo do letramento’, antes
mesmo de conhecer as letras ou o funcionamento da escrita
(PASSOS, 1995, p. 14).
Considerando nossas reflexões acerca do RCNEI, podemos encontrar algumas
semelhanças entre as duas propostas: uma delas é a adoção de uma abordagem de
cunho construtivista, defendida no Capítulo I, quando a pesquisadora, ao identificar
a origem do problema, relata a importância da teoria psicogenética de Piaget e das
descobertas de Ferreiro. Outra semelhança encontra-se na aproximação desses
pressupostos com a perspectiva do letramento. Ao fazer a crítica à concepção da
privação lingüística, a autora enfatiza a importância de articular os princípios
funcionais no processo de alfabetização: “[...] criar oportunidades para a
familiarização com a escrita e o reconhecimento de suas funções no meio em que
vivemos são deveres fundamentais de todo educador” (PASSOS, 1995, p. 16).
Voltando ao percurso do trabalho, após a breve abordagem teórica explicitada no
texto introdutório da dissertação, a pesquisadora anuncia sua intenção em mostrar
que, em classes sociais diferentes, são também diferentes as funções atribuídas à
53
alfabetização e que essas diferenças se refletem no processo de aquisição da leitura
e da escrita. Parte do seguinte princípio:
[...] práticas atuais de alfabetização, desenvolvidas na pré-escola,
estão muito distantes do ‘ideal’ de promover a compreensão a respeito
da aquisição da leitura e da escrita como algo a ser construído e
recriado de modo significativo e funcional (PASSOS, 1995, p. 17-18).
Esses objetivos, originados do princípio citado, permitem-nos, antes mesmo de
examinar a análise dos dados, questionar a perspectiva de investigão do estudo. Se
a autora pretende mostrar, o fenômeno o estaria determinado? Essa abordagem
generalizante da ptica educativa preocupa-nos, pois compreendemos que o existe
a pré-escola, mas sim pré-escolas e, nesse sentido, múltiplas e diferentes práticas, o
que desautoriza a autora a afirmar que estão muito distantes do ideal. O ideal seria a
prática fundamentada na perspectiva adotada no estudo? Ideal para quem? Para quê?
Sem atentar para essas questões (não encontramos considerações a esse respeito),
Passos (1995) justifica seu interesse em investigar a prática educativa de
alfabetização nessas instituições, retratando, no Capítulo I, sua trajetória
profissional. Procura demonstrar como as contribuições de Ferreiro foram relevantes
nessa trajetória atribuindo aos pressupostos da Psicogênese da Língua Escrita o
status de novo, de salto teórico qualitativo, comprovado em sua própria experiência
profissional. Esse referencial teórico é complementado com contribuições de outros
autores (Smolka, Cook-Gumperz, Vygotsky e seus colaboradores, Frago e Soares)
que possibilitaram, segundo a autora, o aprofundamento da relação linguagem e
aprendizagem. Essas contribuições são incorporadas ao texto com breves reflexões.
Em apenas um parágrafo é explicitada a perspectiva da Psicologia Sócio-Histórica
(assim denominada pela pesquisadora). Expressões como relação dialógica,
interativa e discursiva e desenvolvimento cultural da criança” são tomadas pela
autora sem as devidas considerações filosóficas e epistemológicas, configurando-se,
do nosso ponto de vista, em expressões ilustrativas e enriquecedoras.
Essa configuração teórica remete-nos às críticas de Duarte (2001) a respeito da
aproximação entre as idéias de Vigotski e as idéias neoliberais e pós-modernas.
Uma aproximação que implica o distanciamento do universo ideológico marxista
produzindo leituras unilaterais que destacam alguns conceitos e omitem outros.
54
Duarte explica que essa aproximação pode ser realizada de diferentes maneiras. No
trabalho de Passos, ela pode ser compreendida da forma mais comumente utilizada:
“[...] aproximação entre a teoria vigotskiana e a concepção psicológica e
interacionista-construtivista de Piaget” (DUARTE, 2001, p. 2).
Com relação à abordagem metodológica, Passos (1995) relata as dificuldades
encontradas no início da pesquisa, especificamente no que diz respeito à sua
inserção em campo. Explicita os critérios de escolha das instituições, descreve o
cronograma de trabalho, as turmas e relata suas preocupações iniciais. Define o
estudo de caso com elementos da pesquisa etnográfica, como metodologia de
estudo, sendo a observação e análise de documentos utilizados como
procedimentos metodológicos. A autora ainda explica que os nculos com as
instituições ocorreram de maneira diferenciada. Na escola pública, ela foi
reconhecida como pesquisadora e, na escola particular, como estagiária, o que
trouxe repercussões para o estudo.
Assim, com o objetivo de abordar as condições de funcionamento das escolas
pesquisadas, a autora dedica o III capítulo à caracterização das instituições, da
clientela e dos sujeitos envolvidos diretamente na pesquisa. Após traçar o perfil das
escolas pesquisadas, ela situa a instituição creche-pré-escola no contexto histórico e
político, abordando contribuições importantes acerca do surgimento dessas
instituições, das concepções educativas que predominaram no decorrer da história e
das mobilizações que emergiram na década de 1980. Partindo desse percurso
histórico, são explicitadas questões a serem respondidas com base na descrição da
rotina diária e das atividades relacionadas com a leitura e com a escrita:
- A pré-escola vem atendendo às necessidades da criaa?
- Existe uma compencia dos profissionais para atuar com as crianças?
- Qual é a concepção de criança que es sendo trabalhada?
- A metodologia para trabalhar a alfabetização vem sendo adequada?
(PASSOS, 1995, p. 78).
Ao apresentar os dados, a autora descreve minuciosamente o cotidiano da sala de
aula percorrendo o seguinte caminho: caracterização do espaço físico da sala de
aula, da rotina diária, da entrada e saída das crianças, da rotina diária da sala de
aula, da merenda e do recreio, das aulas especializadas, da relação da escola com
55
a família, das datas comemorativas, do processo de avaliação, da formatura, da
dinâmica do processo de alfabetização, dos materiais pedagógicos, das atividades
de linguagem escrita, das atividades de leitura, atividade de “para casa”, atividades
de linguagem oral e atividades complementares. Faz o mesmo percurso descritivo,
que vai da página 81 a 247, com comentários acerca de alguns aspectos que lhe
chamaram a atenção, para analisar a prática das duas pré-escolas.
Inicia suas considerações finais relatando impressões pessoais sobre a pesquisa e
apresentando um quadro-síntese das análises realizadas. Retoma alguns
questionamentos propondo a construção do perfil de cada pré-escola a partir de
treze categorias que o utilizadas como fio condutor da análise conclusiva. A
pesquisadora constata divergências na maior parte dos aspectos analisados. No que
se refere às concepções de alfabetização, a pré-escola particular apresenta uma
prática caracterizada pela autora como tradicional, rígida quanto aos valores e
conhecimentos transmitidos. Ao final do ano, as crianças são alfabetizadas. Na pré-
escola pública investigada, não havia uma proposta de alfabetização definida e o
trabalho era marcado pela ausência de atividades e de planejamentos, não
oferecendo à maior parte das crianças possibilidade de alfabetização.
Segundo Passos, o resultado de sua pesquisa mostra que “[...] a pré-escola,
indiferente à classe social a qual serve não tem conseguido desempenhar sua
função educativa” (PASSOS, 2005, p. 297, grifos nosso). Diante dessa constatação,
ela deixa alguns desafios para os profissionais que trabalham com alfabetização
nessas instituições, recomendando por fim que:
[...] é preciso reconhecer a importância da instituição pré-escolar no
âmbito mais amplo da potica educacional, para que se possa, assim,
combater o a inadequação de práticas esreis, sem
fundamentação, principalmente quando se trabalha a alfabetização, como
também as metodologias que se recusam a considerar as difereas
individuais, o currículo oculto e a complexidade dos processos cognitivos
envolvidos na aquisição da linguagem escrita (PASSOS, 1995, p. 298).
Compreendemos que a maior importância do estudo realizado por Passos (1995)
está na busca por uma prática de qualidade nas instituições destinadas a atender às
crianças de zero a seis anos, incluindo o processo de alfabetização como um
fenômeno social relevante na investigação dessas práticas. A pesquisa, apesar de
56
confirmar alguns indicadores históricos das práticas de alfabetização nesse nível de
escolarização, apresenta alguns pontos dos quais discordamos e que podem estar
relacionados com a adoção de concepções teóricas divergentes e com a falta de
rigor metodológico. Notamos certa ênfase na descrição e nos comentários, com
predomínio de análises subjetivas, sem explicitação dos procedimentos de
observação e com desvios no foco de análise. Esses desvios podem ter sido
provocados pela indefinição de categorias conceituais para a sustentação das
análises. Além disso, a autora tece afirmações enfáticas, generalizantes, com
recomendações que nos pareceram teoricamente autoritárias.
Retomando as reflexões de André (2004) sobre os principais problemas nos estudos
da prática escolar, encontramos subsídios que poderão confirmar nossas
impressões. Partindo do princípio da relativização
13
na pesquisa etnográfica, a
autora explica que
[...] a pesquisa etnográfica não pode se limitar à descrição de
situações, ambientes, pessoas, ou à reprodução de suas falas e de
seus depoimentos. Deve ir muito além e tentar reconstruir as ações e
interações dos atores sociais segundo seus pontos de vista, suas
categorias de pensamento, sua lógica. Na busca das significações do
outro, o investigador deve, pois, ultrapassar seus métodos e valores,
admitindo outras lógicas de entender, conceber e recriar o mundo
(ANDRÉ, 2004, p. 45).
A construção de categorias de análise ao longo do estudo e a apreensão e
descrição dos significados culturais dos sujeitos, são, segundo André (2004),
condições essenciais para evitar a supervalorização dos dados empíricos ou o seu
enquadramento numa teoria predeterminada de acordo com as concepções e
valores do pesquisador. Essas constatações são comprovadas em análise crítica de
dez relatórios de pesquisa do período de 1982 a 1992. Em um desses estudos, cujo
referencial teórico inicial é a concepção de Ferreiro, a pesquisadora constata a
existência de um fosso entre esse referencial e as aulas observadas.
Essa é uma questão que também está colocada no trabalho de Passos quando, ao
enfatizar a perspectiva adotada (também da base psicolingüística de Ferreiro com
aproximações com outras teorias, conforme elucidamos), conduz sua análise para
13
André, citando Dauster (1989), explica que esse princípio consiste em colocar o eixo de referência
no universo investigado por meio do descentramento do investigador.
57
uma supervalorização dos dados a partir de seus próprios valores apresentando-os
na forma como se manifestam, sem o aprofundamento de seus condicionantes e de
suas implicações. Essa perspectiva investigativa remete-nos a considerar que o
cotidiano escolar foi tomado como o lugar de coleta de dados, uma concepção
limitada que, segundo André (2004, p. 46, grifos da autora), “[...] tem produzido
trabalhos no cotidiano escolar e não sobre o cotidiano escolar”.
Um movimento semelhante ocorre no trabalho de Ramos (1995) que aborda a
alfabetização em escolas da Rede Municipal e Estadual de Ensino da cidade de
Itajaí. Com o objetivo de analisar a forma pela qual é trabalhada a alfabetização nas
pré-escolas públicas municipais e estaduais da região, a pesquisadora analisa as
concepções de pré-escola, de alfabetização, metodologias, práticas de ensino e de
avaliação, por meio de entrevistas semi-estruturadas, tomando como base uma
mostra de professores (dez sujeitos) e verificando suas relações com seus planos de
ensino e com as propostas curriculares das respectivas redes de ensino. Descreve a
metodologia empregada como uma pesquisa de natureza qualitativa com apreciação
analítica e tipológica dos dados. Antes de proceder às análises, Ramos retoma os
pressupostos filosóficos que influenciaram a educação pré-escolar no Brasil,
explicitando as principais contribuições de Comenius, Rousseau, Pestalozzi, Fröbel,
Decroly, Montessori, Claparède, Freinet, chegando a Piaget e aos pesquisadores
que aplicaram sua teoria no campo educacional, como Kamii, Kramer, Ferreiro,
assumindo, assim, os pressupostos da perspectiva psicolingüística como
orientadores de sua análise.
Ao analisar os conteúdos das entrevistas, comparando-os com os planos de ensino e
os documentos pedagógicos oficiais, encontra os seguintes resultados: a
alfabetização na pré-escola é voltada à prontidão para a entrada no primeiro grau; o
trabalho de alfabetização enfatiza sua função compensatória; a formação de
professores é inadequada causando dificuldades no entendimento da proposta
curricular que orienta o trabalho docente; a maneira como a alfabetização é
desenvolvida desconsidera o processo de construção da leitura e da escrita pela
criança; as professoras desconhecem e/ou possuem visões distorcidas desse
processo; e uma necessidade urgente de revisão nos cursos de formação de
professores.
58
Desse modo, podemos dizer que, além de enfatizar os reducionismos das práticas a
partir de concepções previamente delineadas e generalizantes, com base em
análises documentais e em entrevistas (sem a necessária observação do movimento
dos sujeitos no complexo espaço/tempo escolar), o incluídas, ao final do trabalho,
recomendações que propiciam estratégias interdisciplinares a partir de eixos
temáticos (temas geradores), focalizando no professor a responsabilidade pelos
processos de transmissão/aquisição do conhecimento.
É importante lembrar que grande parte da produção acadêmica sobre a educação
infantil desse período, segundo Rocha, Silva Filho e Strenzel (2001), enfatizou os
diagnósticos institucionais sem uma investigação voltada para o interior das escolas
que, mesmo quando considerado, era determinado por resultados que detectavam,
predominantemente, a insuficiência das práticas. Mas, quais eram essas práticas? E
por que eram insuficientes?
Partindo de uma outra demanda, o trabalho de Garuti (1995), por exemplo, focaliza
uma prática educativa numa instituição particular na qual atua como coordenadora
pedagógica, ressaltando as contribuições das interações sociais observadas na
constituição da aprendizagem escolar. Pautada nos pressupostos da “teoria
sociointeracionista de Vigotski”, a pesquisadora procura identificar e analisar as
negociações ocorridas nos momentos de construção da linguagem escrita, nas
interações entre criança-criança e destas com a professora, com o objetivo de
investigar a importância que tais negociações assumem no processo de alfabetização.
A autora caracteriza sua proposta metodológica como um estudo de campo com
enfoque qualitativo descritivo, analítico e processual. Justifica a escolha da instituição
alegando que sua proximidade com essa escola facilita o processo de pesquisa e
descreve a realidade investigada situando seus aspectos físicos e pedagógicos. A
observação dos eventos é auxiliada por filmagens das interações de quatro duplas de
crianças de uma classe de “pré” em diferentes momentos de produções escritas, bem
como os encaminhamentos dessas atividades por parte da professora. São recortados
os momentos discursivos para uma análise transversal, com base em categorias
suscitadas no contexto de produção dos dados e organizadas em oito grupos, sendo
quatro do professor e quatro dos alunos.
59
A análise do material coletado apontou que as interações sociais devem ser
privilegiadas no espaço pedagógico, uma vez que contribuem para a formação do
conhecimento dos alunos. A partir dessa análise, a pesquisadora conclui que as
interações sociais o constitutivas da aprendizagem escolar, na medida em que
possibilitam que o aluno tenha acesso a novas informações, transforme seu
conhecimento e, assim, amplie suas construções cognitivas. Ressalta, ainda, que é
o professor, como detentor da cultura, que tem o papel de contribuir para o avanço
das interações dos alunos, mediante informações fornecidas por meio dos conceitos
abordados, atuando, assim, como mediador nesse processo.
No estudo de Garuti (como no caso de Nogueira), podemos perceber um alto grau de
envolvimento com o contexto da pesquisa. Os episódios filmados são previamente
planejados com a professora e o enquadramento dos dados, na perspectiva de
análise desejada, leva-nos a supor certa artificialidade procedimental. Apontar práticas
bem-sucedidas de alfabetização é de fundamental relevância, entretanto, nesse
estudo, a ênfase no sucesso pode estar implicitamente ligada à posição assumida
pela coordenadora pedagógica. Voltamos, portanto, à questão da neutralidade e das
implicações decorrentes da desconsideração do princípio da relativização bem como
do papel da teoria na análise dos dados. Além disso, poderíamos inferir implicações
ideológicas decorrentes dos interesses que perpassam análises altamente produtivas
na esfera particular.
Outro estudo apontado nessa revisão, que também foi realizado em ambiente
familiar no qual a professora-pesquisadora registra e analisa a própria experiência
pedagógica, é o de Semensato (1992). Abraçando a proposta pedagógica da
instituição, teoricamente fundamentada na Pedagogia de Freinet, a autora busca
descrever a trajetória de um grupo de sujeitos pré-escolares (crianças de classe
média e média alta, na idade de cinco e seis anos) no processo de aquisição da
leitura e da escrita, considerando: a aquisição das primeiras noções sobre a
linguagem escrita, o desenvolvimento de relações leitura-escrita em função de
necessidades no contexto escolar e a interação do professor e do grupo.
A documentação da experiência assume para a autora um caráter de pesquisa
etnográfica realizada em ambiente natural, no qual se busca captar e expressar o
60
movimento do processo com a preocupação de mostrar que a aprendizagem se
de forma inicialmente espontânea, gradual e progressiva, o que leva a professora-
pesquisadora, em seu cotidiano, a conciliar a Pedagogia de Freinet com os
pressupostos da Psicogênese da Língua Escrita, de Ferreiro e Teberosky, para
enfocar que o processo de aquisição da leitura e da escrita acontece “logicamente”
por etapas, evidenciando-se a construção de um conhecimento específico.
Os estudos de Ramos, Garuti e Semensato, no contexto desta revisão de literatura,
reforçam as discussões anteriormente abordadas, ressaltando movimentos teóricos
e/ou metodológicos semelhantes aos apontados em outros trabalhos analisados, o
que justifica a maneira sintetizada como foram tratados. De certa forma, evidenciam
a necessidade de buscarmos percursos investigativos mais condizentes com a
realidade sociocultural da qual emergem os processos educativos
institucionalizados, especialmente os destinados às crianças de seis anos.
De acordo com o objetivo desta revisão de literatura, esses estudos apontam,
principalmente, a necessidade de investimento teórico nas escolas públicas, onde
estudam grande parte das crianças oriundas de camadas populares, reforçando
nosso interesse pelos processos em seu contexto imediato de produção. São nesses
espaços, nos quais as contradições, as implicações ideológicas e os movimentos de
resistência podem ser suscitados e revelados, que encontramos os elementos
reveladores de uma dinâmica social que estraduzida, de diferentes formas, nos
dizeres e fazeres dos sujeitos em situações concretas de interlocução; em
movimentos singulares que se constituem e se transformam cotidianamente nas
relações sociais, históricas, políticas e pedagógicas experimentadas por crianças,
professores, familiares e demais pessoas que vivem a complexa relação de ensinar
e aprender.
Acreditando que tal relação pode ser compreendida a partir de uma perspectiva
teórico-metodológica que possibilite captar os processos que se constituem no dia-a-
dia das práticas educativas, buscamos orientar nosso olhar em campo a partir de
uma abordagem metodológica de caráter qualitativo sócio-histórico, tomando por
base as orientações da Psicologia Histórico-Cultural e da Perspectiva Bakhitniana no
campo da linguagem, nas quais nos deteremos no capítulo que se segue.
61
4 A PRODUÇÃO DE TEXTOS NA ESCOLA: SUBSÍDIOS TEÓRICOS E
METODOLÓGICOS
Nosso objetivo, neste capítulo, é explicitar a perspectiva teórico-metodológica
adotada neste estudo, focalizando conceitos que nos ajudem a avançar na
compreensão do processo de apropriação da linguagem escrita pela criança no
contexto educativo da educação infantil. Esse interesse remete-nos a um modelo
teórico que considere o movimento dos sujeitos no contexto de produção desse
conhecimento, privilegiando as formas especificamente humanas de interagir com o
mundo.
Desse modo, abordaremos, inicialmente, os pressupostos fundadores da Psicologia
Histórico-Cultural, focalizando as elaborações de Vigotski (1999, 2001) sobre a
natureza social e cultural das funções mentais superiores, tomando como base os
conceitos de mediação e de apropriação. Articulados a esses pressupostos,
encontram-se sua concepção de ser humano, de história e a importância da
linguagem na constituição da subjetividade humana.
Em seguida, considerando o texto como unidade fundamental de ensino da
linguagem escrita, explicitaremos as contribuições de Bakhtin (1999, 2001, 2003)
discorrendo acerca do princípio dialógico que orienta a sua concepção de
linguagem, reiterando o caráter social, histórico e cultural nos processos de
produção do conhecimento e trazendo importantes contribuições para o trabalho
com os textos nas salas de aula.
Buscando uma aproximação coerente com as bases teóricas aqui explicitadas,
finalizaremos este capítulo abordando os pressupostos metodológicos que
orientaram a nossa pesquisa. Para tecer essas considerações teórico-
metodológicas, contamos, também, com a colaboração de outros pesquisadores
que, num movimento de compreensão, aplicação e atualização das idéias aqui
defendidas, contribuem para tornar essas correntes de pensamento cada vez mais
vivas e mais próximas da nossa realidade sócio-histórica.
62
4.1 LINGUAGEM E CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE HUMANA
Para iniciar nossas discussões acerca da importância da linguagem no processo de
constituição dos seres humanos, tomaremos as colaborações delineadas por
Vigotski (1999, 2001) e seus colaboradores no campo da Psicologia Histórico-
Cultural. Ao tratar as questões históricas ligadas à crise da Psicologia, Vigotski
explicita a matriz que lhe serve de referência, o materialismo histórico dialético e
afirma que uma nova Psicologia precisava criar seu próprio O Capital, ou seja, “[...]
seus conceitos de classe, de base, valor etc. [...] com os quais possa expressar,
descrever e estudar seu objeto” (1999, p. 393). Nessa matriz teórica, o caráter
histórico confere aos pressupostos de Vigotski um valor inovador, diferenciando-os
das concepções racionalistas e empiristas predominantes na Psicologia.
A questão da história, fundamental no pensamento de Vigotski, é lapidada em nota
de abertura no Manuscrito de 1929.
14
Com base nesse documento, Pino (2000, p.
48) explicita o entendimento de história para Vigotski: “[...] em termos genéricos,
significa ‘uma abordagem dialética geral das coisas’, em sentido estrito, significa a
história humana”. Nessa afirmação, Vigotski reforça uma idéia fundante da
perspectiva histórico-cultural, que coloca a ciência como produto da atividade
humana, na qual “[...] o objeto de conhecimento não é o real em si, tampouco um
mero objeto da razão. Ele é o real transformado pela atividade produtiva do homem,
o que lhe confere um modo humano de existência” (PINO, 2000, p. 50-51).
No contexto desta pesquisa, essa questão é fundamental, pois está relacionada com
o estudo das funções elementares ou naturais e das funções superiores ou culturais,
ou seja, trata-se de revelarmos a natureza das relações sociais e culturais na
constituição das formas superiores de pensamento; no caso deste estudo, as
relações que permeiam o trabalho com a linguagem escrita na educação infantil.
Seguindo as pistas deixadas no Manuscrito, Pino (2000) discute questões sobre o
social e o cultural na perspectiva de Vigotski, oferecendo-nos alguns caminhos para
14
O documento é constituído por um conjunto de idéias originais que faziam parte das preocupações
teóricas do autor. Foi publicado pela primeira vez, em inglês, na revista Soviet Psychology (1989, v.
27, n. 2, p. 53-77).
63
a compreensão desses conceitos. Para Vigotski, o social é um fenômeno anterior ao
cultural, pois é, também, atributo de outras formas de vida. É sob a ação criadora da
espécie humana que o social se transforma em modos de organização e de
produção. Dessa forma,
O social é, ao mesmo tempo, condição e resultado do aparecimento
da cultura. É condição porque sem essa sociabilidade natural a
sociabilidade humana seria historicamente impossível e a emergência
da cultura seria impensável. É, porém, resultado porque as formas
humanas de sociabilidade são produções do homem, portanto obras
culturais (PINO, 2000, p. 53).
Ao inverter a direção na relação do indivíduo-sociedade, Vigotski (2001) aponta
como o meio social age na criança para criar nela as funções superiores de origem e
natureza sociais. Não no sentido da socialização postulada por Piaget, mas no
sentido de mostrar o mecanismo mediador que explica como se a conversão de
funções psicológicas de origem social para o plano pessoal/individual, sem perder de
vista a singularidade da pessoa ou, em outros termos, os modos como a pessoa em
particular se apropria dos resultados do desenvolvimento sócio-histórico. Esse
pressuposto básico da obra de Vigotski pode ser mais bem compreendido a partir da
sua concepção de pessoa humana. O autor explicita no Manuscrito de 1929: Para
s, o homem é uma pessoa social = um agregado de relações sociais encarnadas
num indivíduo”. Assim, a idéia de pessoa social envolve, ao mesmo tempo, a unidade
e a multiplicidade, o sujeito e o objeto, ou seja, um indivíduo social real e concreto cuja
singularidade se constitui como membro de um grupo sociocultural específico.
Vigotski (2001) denomina o processo de conversão para o plano individual das
funções construídas no plano social de internalização. Como esse termo tem
produzido contradições, alguns estudiosos de Vigotski têm discutido essa questão
assinalando a ambigüidade desse termo
em decorrência do seu uso por diferentes
perspectivas teóricas.
Nesse sentido, concordamos que o termo não é adequado,
principalmente se considerarmos o modelo teórico que orienta a perspectiva
histórico-cultural. Para Gontijo (2003), é exatamente o fato de os trabalhos de
Vigotski serem fundados no materialismo histórico e dialético que lhe possibilita
romper com o dualismo presente no idealismo e no materialismo precedente,
buscando, na atividade real e concreta do ser humano, as explicações de como as
funções superiores convertem-se em funções do próprio indivíduo. Aprofundando
64
essa questão, a autora encontra em Leontiev (1978), um dos principais
colaboradores de Vigotski, o termo apropriação e o considera mais coerente para
explicar a conversão da atividade social, que ocorre entre as pessoas (como
categoria interpsíquica), em atividade individual (categoria intrapsíquica).
A apropriação, compreendida por Leontiev (1978) como um processo que possibilita a
conversão das funções elaboradas no plano social para o plano individual, se
caracteriza por ser sempre ativa. Nessa perspectiva, o conceito de apropriação se
contrapõe ao conceito de adaptação, pois não pressupõe uma adequação
das
características da espécie às exigências do meio. As propriedades naturais,
resultantes do desenvolvimento biológico, são condições que possibilitam as
apropriações, sem, contudo, determiná-las. Devido à dinamicidade da prática social
e histórica, a apropriação das formas humanas de comportamento não ocorre de
modo natural, espontâneo, imediato. Esse processo é mediado pela
linguagem usada
por um determinado grupo social. É a linguagem que possibilita a apropriação
progressiva das significações sociais decorrentes das objetivações humanas.
Portanto, as significações, função dos sistemas de signos, existem e se (re)constituem
na relação entre as pessoas. Assim, na interpretação de Gontijo (2001b, p. 57),
A linguagem não é apenas um meio de comunicação entre os
homens. Ao longo do desenvolvimento histórico, ela passa a refletir a
realidade na forma de significações, pois sintetiza/cristaliza as práticas
sociais, sendo, portanto, simultaneamente, objeto de conhecimento e
mediadora do processo de apropriação das prodões humanas.
Nesse sentido, é o processo de apropriação que torna possível a conversão das
funções que são constituídas no plano social para o plano individual. Porém, Pino
(2000) reforça que
o objeto da apropriação é a significação das coisas, não as
coisas em si mesmas. Desse modo, o processo de apropriação é de natureza
semiótica, pois é a emergência da atividade simbólica que constitui o ponto de
passagem do plano natural para o cultural
tanto no desenvolvimento filogenético
como no ontogenético. A apropriação das formas culturais de comportamento
envolve a reconstrução da atividade psicológica por meio de signos. São os signos
(linguagem falada, escrita, gestos, desenhos, etc.) que possibilitam o
desenvolvimento das formas culturais e históricas
nos indivíduos singulares.
65
Denominado por Vigotski como “estímulo de segunda ordem” criado artificialmente
pela humanidade, o signo desempenha a função de estímulo externo numa
operação interna ou, ainda, de
organizador e potencializador das funções mentais
que existem no indivíduo. Essa função do signo diferencia-o do instrumento, pois,
enquanto este traduz a relação direta do organismo com o meio, o signo cria uma
relação indireta e mediada, agindo não sobre as coisas, mas sobre as pessoas. Os
sistemas de sinalização natural constituem a origem e o substrato natural dos
sistemas de signo, pois todo signo pressupõe um elemento que é material, que
serve de sinal. São os signos que possibilitam as formas humanas de
comportamento por meio das significações que ocorrem de forma reversível: tanto
para quem o recebe como para quem o emite. Esse pressuposto possibilita-nos
considerar que “[...] se a mediação técnica permite ao homem transformar (dar uma
‘forma nova’) à natureza da qual ele é parte integrante, é a mediação semiótica que
lhe permite conferir a essa ‘forma nova’ uma significação” (PINO, 2000, p. 58).
Ao apontar a natureza social e simbólica da atividade mental, Vigotski (2001)
assinala que o nas relações sociais
e, portanto, na dinâmica histórica, cultural e
social que as pessoas se constituem mutuamente. Para Vigotski, o outro,
compreendido como as pessoas que fazem parte do mundo humano que habita os
indivíduos particulares, tem um papel fundamental na constituição cultural do ser
humano. Desse modo, o processo de desenvolvimento cultural articula, em termos
filosóficos, três planos: o desenvolvimento em si, para os outros e para si. O primeiro
é constituído na realidade natural e biológica como algo dado; este, no entanto, é
significado pelos outros
na relação social em que está inserido e, por fim, a
significação atribuída pelos outros se torna significativa para o próprio indivíduo.
A significação está na base da
constituição cultural do homem sendo apropriada na
relação com o outro, passando, portanto, a ser objeto mediador no processo de
apropriação. A criaa apropria-se da significão do mundo cultural, produto da
atividade humana, e elabora sua própria hisria. Dessa forma, os resultados do
desenvolvimento histórico são apropriados pelas crianças “[...] por meio da
mediação sígnica que possibilita as relações entre as pessoas e, ao mesmo tempo,
sintetiza, cristaliza as práticas sociais humanas, traduzidas em idéias, valores, saber
fazer, tradições, etc.” (GONTIJO, 2001b, p. 59).
66
Explicitados esses pressupostos, é necessário discutir a importância da linguagem
escrita no processo de constituição histórico-cultural da criança. Do ponto de vista da
Psicologia Histórico-Cultural, como vimos, a linguagem é uma atividade constitutiva
dos seres humanos e, ao mesmo tempo, constitui-se nas relações sociais. Além de
possibilitar a comunicação social, a linguagem tem a função de promover o
pensamento generalizante que permite à criança organizar o real operando com
significados
e com conceitos que se tornam matéria do pensamento.
Assim, no contexto das discussões sobre a relação entre conceitos cotidianos e
científicos, Vigotski (2001) argumenta que o domínio da escrita, como forma de
linguagem, acarreta mudanças no desenvolvimento cultural da criança. Sua
aprendizagem apresenta complicações e difere-se do desenvolvimento da fala em
muitos aspectos: a falta de sonoridade e de entonação, o fato de o interlocutor estar
ausente, a necessidade de recriação, de representação, de substituir palavras por
imagens de palavras. Segundo Vigotski (
2001, p. 312-313),
A escrita é uma fuão específica de linguagem, que difere da fala o
menos como a linguagem interior difere da linguagem exterior pela
estrutura e pelo modo de funcionamento. [...] requer para o seu
transcurso pelo menos um desenvolvimento mínimo de um alto grau de
abstração. Trata-se de uma linguagem sem o seu aspecto musical,
entonacional, expressivo, em suma, sonoro. É uma linguagem de
pensamento, de representão, mas uma linguagem desprovida do traço
mais substancial da fala – o som material.
O autor argumenta que esse momento modifica o conjunto de condições
psicológicas da linguagem falada, pois a criança tem uma nova tarefa: passar do
aspecto concreto da língua para o abstrato, ou de uma função natural para uma
função cultural do pensamento. Isso significa dizer que a criança precisa refletir
sobre as unidades constituintes da linguagem oral e descobrir quais possuem
correspondentes na escrita. Para Vigotski, é justamente esse aspecto que constitui
uma das maiores dificuldades com que se defronta a criança no processo de
apropriação da escrita. Além disso, a situação de escrita requer uma outra
abstração: a do interlocutor, que está ausente, é imaginário.
Nesse caso, é
importante ressaltar que
Vigotski pressupõe a existência de interlocutores, mas
esses interlocutores, nas circunstâncias de produção de textos escritos, estão
presentes apenas na imaginação daquele que escreve.
67
Apesar de pressupor percursos diferenciados para o desenvolvimento da oralidade e
da escrita, ressaltando que o desenvolvimento da escrita não repete o da fala, é
importante lembrar que a análise de Vigotski é elaborada no contexto de seu estudo
sobre o desenvolvimento de conceitos na infância. Assim sendo, é possível pensar
em um processo
que é distinto, que segue trajetórias diferentes, mas que converge
em
diversos momentos, provocando mudanças significativas na criança. Ao analisar
as relões da escrita com o discurso oral, Vigotski considera que o emprego da
linguagem escrita, como simbolismo de segunda ordem, demanda uma relação com
esse tipo de discurso diferente daquela empregada na produção de textos orais:
Na linguagem escrita nós mesmos somos foados a criar a situação, ou
melhor, a representá-la no pensamento. Em certo sentido, o emprego da
linguagem escrita pressupõe uma relação basicamente diversa daquela
observada na linguagem falada, requer um tratamento mais independente,
mais arbitrário e mais livre da situação (VIGOTSKI, 2001, p. 315).
Nesse sentido,
escrever exige uma ação voluntária e consciente: o que escrevo? Por
quê? Para quem? Como? Quando? Em termos pedagógicos, isso implica considerar as
situações e as condições de produção de textos escritos, pois esse conhecimento, de
acordo com Smolka (2003, p. 61), “[...] se processa no jogo das representações sociais,
das trocas simbólicas, dos interesses circunstanciais e políticos; é permeado pelos
usos, pelas funções e pelas experiências sociais de linguagem e de interação verbal”.
Coerente com a abordagem histórico-cultural, essas reflexões de Smolka nos
instigam a assumir que a atividade mental que a criança realiza no processo de
alfabetização é uma atividade discursiva, na qual ela “[...] aprende a ouvir, a
entender o outro pela leitura; aprende a falar, a dizer o que quer pela escrita”
(SMOLKA, 2003, p. 63). Desse modo, atrelada à perspectiva histórico-cultural
emerge uma concepção de linguagem como uma atividade constitutiva do ser
humano, uma atividade que possibilita a instauração do diálogo e o reconhecimento
dos processos sociais e, ao mesmo tempo, singulares, de apropriação e produção
de conhecimentos.
68
4.2 A PERSPECTIVA BAKHTINIANA DE LINGUAGEM
Partindo das contribuições e das fragilidades presentes no pensamento filosófico-
lingüístico de sua época, Bakhtin (1999)
15
evidencia o dualismo presente nas duas
principais correntes, por ele denominadas genericamente de Subjetivismo Idealista e
Objetivismo Abstrato, suscitando importantes aspectos para a compreensão da
natureza constitutiva da linguagem.
Para aprofundar a questão do caráter simbólico da escrita, tomaremos, inicialmente,
as elaborações de Bakhtin sobre a relação dos signos com a consciência humana.
Para o autor, o homem, fora das condições socioeconômicas objetivas, não tem
nenhuma existência. Diz Bakhtin (1999, p. 35): “A consciência individual é um fato
sócio-ideológico”. O seu domínio, portanto, coincide com o domínio dos signos, pois
“[...] um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele reflete e refrata
uma outra” (BAKHTIN, 1999, p. 32). Dessa forma, a realidade psíquica/interior é a do
signo, um fenômeno que resulta das práticas sociais humanas, ou seja, da atividade
do mundo exterior e só pode existir em um terreno interindividual. Nessa perspectiva,
A consciência adquire forma e existência nos signos criados por um
grupo organizado no curso de suas relações sociais. Os signos são o
alimento da consciência individual, a matéria de seu desenvolvimento,
e ela reflete sua lógica e suas leis. A lógica da consciência é a lógica
da comunicação ideológica, da interação semiótica de um grupo
social. Se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e
ideológico, não sobra nada. A imagem, a palavra, o gesto significante,
etc. constituem seu único abrigo. Fora desse material, apenas o
simples ato fisiológico, não esclarecido pela consciência, desprovido
do sentido que os signos lhe conferem (BAKHTIN, 1999, p. 35-36).
A partir dessas ponderões acerca da constituão da consciência humana, Bakhtin
(1999, p. 36) conclui que [...] a realidade dos fenômenos ideogicos é a realidade
objetiva dos signos sociais [...] as leis dessa realidade são as leis da comunicação
semiótica e são diretamente determinadas pelo conjunto das leis sociais e ecomicas”.
O signo existe, portanto, na materialização da comunicão social e seu aspecto
15
Essas discussões foram travadas na Rússia, no período de 1919 a 1929, por um grupo de
intelectuais de diferentes áreas, conhecido como Círculo de Bakhtin. Foram publicadas pela primeira
vez em 1929, na obra intitulada Maksizm i filossófia iaziká. Neste trabalho, tomamos a nona edição
dessa obra.
69
semiótico aparece de forma completa na linguagem. É isso que torna a linguagem (a
palavra) o primeiro meio da consciência individual. A consciência não poderia se
desenvolver sem a palavra, o material semiótico e flexível da vida interior, veiculável
pelo corpo. Ela está presente, de acordo com o autor, em todas os atos de
comunicação, de compreensão e de interpretação.
Bakhtin (1999, p. 38, grifos do autor) lembra-nos, ainda, que “[...] nenhum signo
cultural, quando compreendido e dotado de sentido, permanece isolado: torna-se
parte da unidade da consciência verbalmente constituída”. É essa consciência que
tem o poder de abordar o signo verbalmente, de enunciá-lo. Contudo, a enunciação
é determinada por suas condições reais, pela situação social imediata. Como afirma
Bakhtin (1999, p. 112-113, grifos do autor):
[...] a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos
socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real,
este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao
qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é
função da pessoa desse interlocutor: variará se se tratar de uma
pessoa do mesmo grupo social ou não [...]. Não pode haver
interlocutor abstrato [...]. O mundo interior e a reflexão de cada
indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja
atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações,
apreciações, etc.
Assim, a palavra é, ao mesmo tempo, determinada pela sua procedência e pela sua
direção: “Ela constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte
(BAKHTIN, 1999, p. 113, grifo do autor). Mas, para que ocorra uma atividade mental,
é necessária uma orientação social que oscila entre dois pólos: atividade mental do
eu e atividade mental do nós. A primeira tende à auto-eliminação ao aproximar-se do
seu limite, perdendo, assim, sua dimensão ideológica e consciente, sua
representação verbal. São atividades mentais isoladas que não conseguem
enraizar-se socialmente. A atividade mental do nós, uma atividade consciente e
diferenciada, é a que se firma e se estabiliza na orientação social. Contudo, o grau
de consciência depende da organização da coletividade na qual o indivíduo estrutura
o seu mundo interior. A atividade mental do nós, que se realiza na enunciação, é
submetida a uma orientação social mais complexa, pois está implicada ao contexto
imediato e aos seus interlocutores concretos.
70
Com essas considerações, Bakhtin (1999, p. 118) define o conceito de ideologia do
cotidiano que compreende “[...] a totalidade da atividade mental centrada sobre a
vida cotidiana, assim como a expressão
16
que a ela se liga”. Nesse sentido, confirma
que “[...] não é a atividade mental que organiza a expressão, mas, ao contrário, é a
expressão que organiza a atividade mental, que a modela e determina sua
orientação” (BAKHTIN, 1999, p. 112, grifo do autor).
Consideramos que essas reflexões de Bakhtin o fundamentais, pois possibilitam
situar como centro organizador da enunciação, o exterior, ou seja, o meio social no
qual estamos inseridos. Assim, coloca, juntamente com a função comunicativa da
linguagem, a função expressiva como constitutiva de toda enunciação, atribuindo à
interação verbal a realidade fundamental da língua:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela comunicação monológica
isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo
fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação
ou das enunciações (BAKHTIN, 1999, p. 123, grifo do autor).
Nessa perspectiva, então, a ngua não pode ser concebida como um sistema
fechado e estável de normas nem, tampouco, um sistema determinado pelas leis da
Psicologia individual, mas como “[...] um processo de evolução ininterrupto, que se
realiza através da interação verbal social dos locutores (BAKHTIN, 1999, p.127,
grifos do autor). Esse pressuposto fundamental evidencia que “[...] o centro
organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior:
está situado no meio social que envolve o indivíduo [...]” (BAKHTIN, 1999, p. 121).
Desse modo, a visão de pessoa humana em Bakhtin é revestida por um princípio
dialógico que se define pela alteridade, ou seja, pela impossibilidade de pensar as
pessoas fora das relações com o outro. Ele nos diz que “[...] onde não há palavras não
linguagem e não pode haver relações dialógicas; estas não podem existir entre
objetos ou entre grandezas lógicas [...]. Não são possíveis entre os elementos da
língua” (BAKHTIN, 2003, p. 323). São relações semânticas que, numa perspectiva
16
Por expressão Bakhtin entende que é tudo aquilo que, tendo se formado e determinado de alguma
maneira no psiquismo do indivíduo, exterioriza-se objetivamente para outrem com a ajuda de algum
código de signos exteriores. A expressão, portanto, comporta duas faces: o conteúdo interior e sua
objetivação exterior.
71
abrangente, tomam forma na comunicação verbal (seja na interação face a face,
seja no discurso escrito) entrelaçadas aos outros tipos de comunicação
extralingüísticas de caráter não-verbal. o podem, portanto, ser compreendidas
isoladas das situações concretas de produção, pois a enunciação se realiza no
curso da comunicação verbal, sendo determinada pelos seus limites que se
configuram nas relações entre o verbal e o extraverbal. É por isso que Bakhtin diz
que, sendo social a estrutura da língua, sua criatividade não pode ser compreendida
independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam.
Ao tecer considerações acerca das questões colocadas por Bakhtin sobre a obra de
Dostoiévski, Barros (2001) argumenta que, sendo a vida dialógica por natureza, viver
significa, então, interrogar, escutar, responder, estar de acordo... Enfim, participar de
um diálogo. Apontando o aspecto social da interação verbal, a autora sintetiza em
quatro pontos o princípio do dialogismo entre interlocutores: “[...] a interação entre
locutores é o princípio fundador da linguagem; o sentido depende da relação entre
sujeitos; a intersubjetividade é anterior à subjetividade; dois tipos de sociabilidade:
entre sujeitos e dos sujeitos com o grupo social (BARROS, 2001, p. 28).
Subjacentes a esses princípios, estão colocadas algumas questões fundamentais
como: a) a concepção de sujeito/locutor que pode ser assim compreendida: “[...] os
locutores são seres sociais, construídos ao mesmo tempo pela interação entre eles e
pelas relações com o extralingüístico e a sociedade” (BARROS, 2001, p. 33); b) o
discurso não é individual, porque se constrói de duas maneiras: como uma interação
entre pelo menos dois interlocutores e como um “diálogo entre discursos”; c) o
enunciado é, portanto, um produto da enunciação que se num contexto social,
histórico e cultural, uma vez que
Em cada época, em cada círculo social, em cada micromundo familiar,
de amigos e conhecidos, de colegas, em que o homem cresce e vive,
sempre existem enunciados investidos de autoridade que dão o tom,
como as obras de arte, cncia, jornalismo político, nas quais as pessoas
se baseiam, as quais elas citam, imitam, seguem. Em cada época e em
todos os campos da vida e da atividade, existem determinadas tradições,
expressas e conservadas em vestes verbalizadas: em obras,
enunciados, sentenças, etc. (BAKHTIN, 2003, p. 294).
72
Isso explica, conforme Bakhtin (2003, p. 294), “[...] por que a experiência discursiva
individual de qualquer pessoa forma-se e desenvolve-se em uma interação
constante e contínua com os enunciados individuais dos outros”. Explica, também, o
fato de que, nas ciências humanas, o objeto de estudo é a pessoa humana como ser
histórico, social, expressivo, falante, enfim, produtor de textos.
Nessa perspectiva, o texto é definido como:
a- objeto significante ou de significão, isto é, o texto significa [...];
b- produto da criação ideológica ou de uma enunciação, com tudo
o que está aí subentendido: contexto histórico, social, cultural, etc. Em
outras palavras, o texto não existe fora da sociedade, existe nela e
para ela e não pode ser reduzido à sua materialidade lingüística
(empirismo objetivo) ou dissolvido nos estados psíquicos daqueles
que o produzem ou o interpretam (empirismo subjetivo);
c- dialógico: [...] define-se pelo diálogo entre os interlocutores e
pelo diálogo com outros textos (da situação, da enunciação) e
assim, dialogicamente, constrói-se a significação;
d- único, não reproduzível: [...] não reiterável ou repetível
(BARROS, 2001, p. 24).
O texto, assim caracterizado, mostra-se essencialmente complexo e dialógico. Em
Bakhtin, essa relação dialógica está ligada à questão da autoria e é abordada pelo
autor em seus estudos sobre a obra de Dostoiévski.
A estrutura totalmente nova da imagem do homem é a consciência do
outro, rica em conteúdo e plenivalente, não inserida na moldura que
conclui a realidade, consciência essa que não pode ser concluída por
nada [...], pois o seu sentido não pode ser solucionado ou abolido pela
realidade [...]. Essa consciência do outro não se insere na moldura da
consciência do autor, revela-se de dentro de uma consciência situada
fora e ao lado, com a qual o autor entra em relações dialógicas
(BAKHTIN, 2003, p. 338, grifos do autor).
Para Bakhtin, Dostoiévski é um escritor polifônico por excelência. Nesse sentido,
Barros (2001) explica que a palavra polifonia é empregada para caracterizar certo
tipo de texto no qual podemos perceber as suas relações dialógicas, isto é, as
muitas vozes que atravessam o discurso, diferentemente dos textos monofônicos
que escondem os diálogos que o constituem. Para a autora, são as estratégias
empregadas no diálogo que o caracterizar os textos como polifônicos ou
monofônicos: “Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se,
deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a aparência
73
de um discurso, de uma única voz” (BARROS, 2001, p. 26). Assim, polifonia e
monofonia são efeitos de sentido que dependem dos procedimentos discursivos: nos
textos monofônicos, as vozes são abafadas enquanto nos polifônicos elas se deixam
escutar. O conceito de polifonia proposto por Bakhtin contribui, particularmente, com
a reflexão acerca do pensamento dominante em nossa sociedade e para a
necessidade de desvelarmos as vozes que estão nele estão contidas.
Desse modo, esta visão de texto que incorpora aspectos sociais, culturais e
interacionais à compreensão do processamento cognitivo provocou, conforme Koch
(2003, 2004a), mudanças bastante significativas na concepção de língua, de sujeito
e de texto. Assumindo a importância dessa evolução para os estudos da Lingüística
Textual, a autora aborda os principais pressupostos da concepção sociocognitiva-
interacional explicitando que, nessa perspectiva (que é dialógica), os sujeitos são
concebidos como atores/construtores sociais, sendo o texto o lugar dessa interação.
Segundo a autora,
A produção de linguagem constitui atividade interativa altamente
complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente,
com base nos elementos lingüísticos presentes na superfície textual e
na sua forma de organização, mas que requer não apenas a
mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia), mas a
sua reconstrução e a dos próprios sujeitos no momento da
interação verbal (KOCH, 2004a, p. 33, grifo da autora).
Dentro dessa perspectiva, a investigação do processo de construção de sentidos de
um texto precisa considerar que essa construção se dá na interação texto-sujeitos,
em sua relação com o contexto sociocognitivo, uma vez que, como reforça Koch
(2003), as palavras não têm sentidos fora de seus contextos de uso. Delineando a
noção de contexto sociocognitivo, a autora explica que “[...] para que duas ou mais
pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que seus contextos
cognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes” (KOCH, 2003, p. 23).
Desse modo, o contexto engloba tanto a situação de interação imediata, como a
mediata (entorno sociopolítico-cultural) e a sociocognitiva dos interlocutores.
De acordo com Bakhtin (2003), como os diversos campos da atividade humana
estão ligados ao uso da linguagem, o caráter e as formas desse uso são tão
multiformes quanto os campos da atividade humana e, desse modo, os enunciados
estão totalmente ligados à especificidade dessa atividade por meio de três
74
elementos: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional. É no campo
de utilização, de uso da língua, que os seres humanos elaboram tipos relativamente
estáveis de enunciados, denominados por Bakhtin de gêneros discursivos, que se
manifestam em forma de texto. Então, podemos concluir que é o processo de
interação pela linguagem que introduz o texto na esfera do signo:
Como signo, o texto se realiza no cruzamento de sujeitos discursivos,
não porque suas palavras compõem um dicionário, mas porque
mobiliza significados gerados no evento comunicativo. É no
cruzamento, no enredamento de consciências que nascem as
relações de sentido expressas nas enunciações, onde vamos situar o
dinamismo que leva à composição de tecido-texto resultante da
combinação de discursos-língua ou de gêneros discursivos
(MACHADO, 2001, p. 236).
Como unidade concreta do texto, o enunciado resulta de combinações dos gêneros
discursivos em uso na língua nas diversas esferas da comunicação social e são
distinguidos por Bakhtin (2003) em gêneros primários (voltados para a atividade
humana relacionada com os discursos orais, espontâneos) e gêneros secundários
(aqueles elaborados pela comunicação cultural mais complexa). Bakhtin assim
como Vigotski ao falar sobre as relações entre fala e escrita o pretende firmar
posições contrastantes entre neros primários e secundários, mas, ao contrário,
ressaltar que “[...] a diversidade e a inter-relação entre gêneros discursivos
enriqueceu e tornou muito mais complexa a textualidade tanto a oral quanto a
escrita” (MACHADO, 2001, p. 242).
Schneuwly (2004) também discute essa questão dizendo que os gêneros primários
podem ser concebidos como o nível real com o qual a criança é confrontada nas
práticas cotidianas de linguagem. Com a complexificação dos gêneros secundários
(que não são espontâneos) decorrente das particularidades de seu funcionamento, a
sua apropriação e sua utilização requerem um outro tipo de intervenção. O autor
compara essa relação com o desenvolvimento dos conceitos cotidianos e científicos
em Vigotski, discutindo-a no contexto dos gêneros: inicia pela idéia de que os
neros primários nascem na troca verbal espontânea para confirmar que estão
ligados à experiência pessoal da criança quase indissociável de uma situação real.
Por outro lado, continua Schneuwly, os gêneros secundários introduzem uma ruptura
em pelo menos dois níveis:
75
não estão mais ligados de maneira imediata a uma situação de
comunicação; sua forma é freqüentemente uma construção complexa
de vários gêneros cotidianos que, eles próprios, estão ligados a
situações; resultam de uma disposição relativamente livre de gêneros,
tratados como sendo relativamente independentes do contexto
imediato;
isso significa que sua apropriação não pode se fazer diretamente,
partindo de situações de comunicação; o aprendiz é confrontado com
gêneros numa situação que o está organicamente ligada ao nero,
assim como o gênero, ele próprio, não está mais organicamente ligado
a um contexto preciso imediato. Além disso, essa motivação o
resultou direta e necessariamente da esfera de motivações já dadas do
aprendiz, da esfera de suas experiências pessoais, mas de um mundo
outro que tem motivações mais complexas, por construir, que não o
mais necessariamente pessoais (SCHNEUWLY, 2004, p. 33).
Esse encontro entre as duas gicas, chamadas pelo autor de conflito, contradição,
tensão, revela uma importante fonte do conhecimento que, para Vigotski (2001), é
concebida por zona de desenvolvimento proximal. Schneuwly (2004, p. 34), em
consonância com os pressupostos vigotskianos, nos aponta a seguinte reflexão: “[...]
o novo sistema não anula o precedente, nem o substitui [...] mesmo sendo
profundamente diferente, o novo sistema apóia-se completamente sobre o antigo em
sua elaboração, mas, assim fazendo, transforma-o profundamente”.
Podemos compreender, então, que os gêneros primários são os instrumentos de
criação dos secundários, sendo fundamental pensarmos nessa passagem, pois a
aparição dos gêneros secundários para a criança o pode ser vista como o ponto
de chegada, mas sim o ponto de partida de um longo processo de constituição da
linguagem. Nesse sentido, que implicações decorrem desses pressupostos para o
trabalho com textos na sala de aula? Como a concepção de linguagem aqui
delineada possibilita pensar a criança como sujeito histórico, político e social?
Segundo Dolz e Schneuwly (2004), a escola, em sua missão de ensinar a ler,
escrever e a falar, trabalha, impreterivelmente, com os gêneros, pois toda forma de
comunicação, inclusive a centrada na aprendizagem, se cristaliza em formas de
linguagem específicas. Para os autores, na situão escolar, reside uma particularidade
que pode ser assim compreendida: “[...] um desdobramento que se opera em que o
gênero o é mais instrumento de comunicação somente, mas é, ao mesmo tempo,
objeto de ensino-aprendizagem” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 76, grifo dos autores).
76
Esse desdobramento coloca o aluno num espaço do “como se”, onde a prática de
linguagem é instaurada com fins de aprendizagem.
São distinguidas, pelos autores, três maneiras de abordar o ensino do texto na
escola: as que tomam o gênero como modelos socialmente valorizados, logo, têm
por objetivo o domínio de sua forma lingüística pura; as que vêem a escola como
autêntico lugar de comunicação e as próprias situações escolares são configuradas
como ocasiões de recepção e de produção de textos; as que negam a escola como
lugar de comunicação ao proporem um funcionamento para os gêneros como os das
práticas de linguagem, forçando uma continuidade entre o que é externo e interno à
escola. Os autores criticam essas propostas assumindo que toda introdução de um
gênero na escola é o resultado de uma decisão didática que visa
a objetivos
precisos de aprendizagem, tais como: o domínio do gênero para melhor conhecê-lo,
apreciá-lo, compreendê-lo e produzi-lo dentro e fora da escola e o reconhecimento
da transformação do gênero (passando a gênero para aprender ainda que
permaneça gênero para comunicar) em decorrência da escola, lugar social diferente
daquele que está em sua origem. É preciso, então, assumir que “[...] o gênero
trabalhado na escola é sempre uma variação do gênero de referência, construída
numa dinâmica de ensino-aprendizagem, para funcionar numa instituição cujo
objetivo primeiro é precisamente este” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 81).
Voltando o seu olhar para o trabalho discursivo dos sujeitos, Geraldi (2003) também
discute a inserção do texto nas práticas escolares, apresentando contribuições
fundamentais para o presente estudo. Tomando o trabalho de produção de textos
como unidade de ensino-aprendizagem da língua, o autor expõe as motivações para
a escolha de tal centro:
Considero a produção de textos (orais e escritos) como ponto de
partida (e ponto de chegada) de todo o processo de ensino-
aprendizagem da língua. E isto não apenas por inspiração ideológica
de devolução do direito da palavra às classes desprivilegiadas, para
delas ouvirmos a história, contida e não contada, da grande maioria
que hoje ocupa os bancos escolares. Sobretudo, porque é no texto
que a língua objeto de estudo se revela em sua totalidade quer
enquanto conjunto de formas e de se reaparecimento, quer enquanto
discurso que remete a uma relação intersubjetiva constituída no
próprio processo de enunciação marcada pela temporalidade e suas
dimensões (GERALDI, 2003, p. 135).
77
Segundo o autor, essa configuração não pressupõe um sujeito cujo trabalho com o
texto seria meramente reprodutor nem que, para se constituir como tal, o sujeito
deva criar o novo; mas, um sujeito que, ao articular sua individualidade com a
formação discursiva da qual faz parte, mesmo não tendo consciência dela,
compromete-se com sua palavra, expõe suas idéias, suas experiências, sua forma
de pensar o mundo. Nessa perspectiva, o texto é o lugar onde a língua se realiza,
onde a língua se revela e pode ser compreendida. Para o autor, “[...] um texto é o
produto de uma atividade discursiva onde alguém diz algo a alguém (GERALDI,
2003, p. 98, grifos do autor). Encadeando características que permitem delimitar um
conceito de texto, ele chega à seguinte definição:
[...] um texto é uma seqüência verbal escrita coerente formando um
todo acabado, definitivo e publicado: onde publicado não quer dizer
‘lançado por uma editora’, mas simplesmente dado a público, isto é,
cumprindo sua finalidade de ser lido, o que demanda o outro; a
destinação de um texto é sua leitura pelo outro, imaginário ou real; [...]
um autor isolado, para quem o outro inexista, não produz textos
(GERALDI, 2003, p. 100, grifos do autor).
Assim, reforça Geraldi (2003, p. 102, grifo do autor):
O outro é a medida: é para o outro que se produz o texto. E o outro
não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção de
sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição
necessária para que o texto exista. É porque se sabe do outro que um
texto acabado não é fechado em si mesmo. Seu sentido, por maior
precisão que lhe queira dar seu autor, e ele o sabe, é já na produção
um sentido construído a dois.
Isso exige do autor o fornecimento de pistas para que a produção de sentido se
aproxime de suas intenções. Portanto, como uma atividade complexa, a
compreensão de um texto o é apenas o reconhecimento de um único sentido,
pois, como se constitui na relação, seus elementos sozinhos não produzem sentidos.
Além disso, de se considerar que as estratégias de produção e compreensão de
textos estão relacionadas com as instâncias de uso da linguagem que estão ligadas
a comunidades lingüísticas que não são homogêneas.
A inserção do texto na escola, como objeto de ensino, pressupõe, portanto, que o
professor se reconheça como um interlocutor, um mediador entre o objeto de estudo
e o aluno. É na tensão, no confronto de pontos de vistas, que a sala de aula se torna
78
um lugar de produção de sentidos: “Os percalços da interlocução, os acontecimentos
interativos, passam a comandar a reflexão que fazem, aqui e agora, na sala de aula,
os sujeitos que estudam e aprendem juntos” (GERALDI, 2003, p. 112). A
compreensão, nesse sentido, é uma forma de diálogo, na qual se suscitam as
variáveis sociais, culturais e lingüísticas que dão sentido ao texto.
Desse modo, Geraldi (2003) explica que, para o trabalho de produção de texto na
escola (e não para a escola), é preciso considerar que os sujeitos-aprendizes da
língua tenham o que dizer, tenham também uma razão para dizer o que têm a dizer,
saibam para quem dizer e se constituam como sujeitos desse dizer, imprimindo suas
marcas e escolhendo as estratégias do dizer. Essas condições para o trabalho com
textos na escola, propostas por Geraldi, nos remetem às discussões de Smolka
(2003) que, ao considerar a alfabetização como um processo discursivo, no qual a
escrita pode ser experienciada em suas várias possibilidades, rompe com o
esquema linear e estrito da comunicação pedagógica (quem – ensina o quê – para
quem), propondo uma representação das relações de ensino baseada em
proposições que, aproximadas às propostas por Geraldi, podem ser assim
reconfiguradas: o quê (se tem a dizer), por quê (dizer o que se tem a dizer), para
quem (dizer o que se tem a dizer), como (realizar o que se tem a dizer).
Nesse sentido, a constituição de sentidos no processo de produção de textos (neste
estudo focalizado no trabalho de escritura realizado pela criança), implica, como
oportunamente nos confirma Geraldi, assumir a relação interlocutiva como princípio
básico, como espaço de produção e de constituição de sujeitos. Contudo,
Focalizar a linguagem a partir do processo interlocutivo e com este
olhar pensar o processo educacional exige instaurá-lo sobre a
singularidade dos sujeitos em contínua constituição e sobre a
precariedade da própria temporalidade, que o específico do momento
implica (GERALDI, 2003, p. 5-6).
E isso significa admitir que a língua não está pronta, portanto, pode ser re(construída)
na atividade de linguagem, que os sujeitos se constituem nas relações com os outros
por meio de um trabalho que é social e histórico e as relações não ocorrem fora de um
contexto mais amplo: se tornam possíveis como acontecimentos singulares no
interior e nos limites de uma determinada formação social.
79
Assim, podemos finalizar essas reflexões tomando emprestadas algumas palavras
de Geraldi (2003) para reconstituir um diálogo que, seguramente, nos impulsiona a
partir, nunca esperando só chegar, mas, sobretudo, vivenciar a passagem: o produto
do trabalho de produção oferece à criança e ao professor, interlocutores que se
realizam a cada leitura num processo dialógico cuja trama é tecida por mãos
carregadas de fios (de estratégias de dizer), a constituição dos sentidos que se
concretiza no movimento de esforço do autor e de atitude responsiva do leitor.
O desafio que se coloca, portanto, é de propor, com base no posicionamento teórico
aqui discutido, uma metodologia que possibilite compreender esse movimento
dialógico, descrevendo-o e buscando as suas possíveis relações num processo de
integração do singular com o social, do texto com o seu contexto, focalizando o
particular como instância de uma totalidade que é histórica, social e cultural.
4.3 SOBRE A ABORDAGEM METODOLÓGICA
Tendo em vista o interesse em investigar os eventos mediados pela linguagem
escrita no contexto da educação infantil, adotamos, como proposta metodológica, a
pesquisa qualitativa na modalidade estudo de caso do tipo etnográfico.
Considerando as orientações da Psicologia Histórico-Cultural postulada por Vigotski
(1999, 2001) e seus colaboradores, partimos da premissa de que as funções
mentais superiores são constituídas nas relações sociais, num processo de
mediação com e pela linguagem, compreendendo, dessa forma, que a produção de
conhecimento é um processo social compartilhado, uma relação entre os sujeitos.
De acordo com Freitas (2002), esse tipo de abordagem metodológica apresenta um
enfoque sócio-histórico, uma vez que concebe a aprendizagem como um processo
gerador do desenvolvimento e possibilita maior aproximação com a realidade
pesquisada, por meio de um exercício investigativo que trata o fenômeno social de
forma concreta. Nesse modo de fazer ciência, a concretude do fenômeno é
conservada por meio da arte da descrição e da explicação, numa perspectiva que
apreende o singular como instância de uma totalidade que é social, histórica e cultural.
Esses princípios nos remetem a considerar que, conforme afirma Freitas (2002, p. 28),
80
“[...] trabalhar com a pesquisa qualitativa numa abordagem cio-histórica consiste,
pois, numa preocupação de compreender os eventos investigados, descrevendo-os
e procurando as suas possíveis relações, integrando o individual com o social”.
Nesse sentido, tomando por base a abordagem materialista e dialética, na qual a
experiência humana não é apenas o produto da evolução biológica, mas, também,
do desenvolvimento histórico e cultural, buscamos compreender o fenômeno
estudado a constituição de sentidos no trabalho de escritura nas mediações que
se instauraram em uma classe de educação infantil. Para isso, empreendemos
esforços no sentido de olhar a realidade considerando a sua complexidade, ou seja,
as situações em seu acontecer, em seu processo de transformação e em suas
relações com o contexto social mais amplo.
Essa concepção dialética, histórica e social da produção do conhecimento também
foi abordada por Bakhtin (1999, 2003) em sua discussão acerca da crise filosófica no
campo da linguagem. Ao criticar as posições predominantes nas orientações
lingüísticas de seu tempo, o autor defendeu uma abordagem dialógica na qual a
língua é estudada em sua natureza viva, num processo que articula o contexto e o
meio social organizado. Nessa perspectiva, as ciências humanas, ao contrário das
naturais, centram o foco de atenção nas especificidades humanas, concebendo-as
em seu processo de contínua expressão, criação e recriação. Essa idéia pode ser
mais bem compreendida nos apontamentos de Bakhtin (2003) sobre o problema do
texto na Lingüística, na Filologia e em outras ciências humanas. Nesses
apontamentos, Bakhtin ressalta que o texto é o ponto de partida, a realidade
imediata e única das ciências humanas, uma vez que
[...] o objeto real é o homem social (inserido na sociedade), que fala e
exprime a si mesmo por outros meios. Pode-se encontrar para ele e
para a sua vida [...] algum enfoque além daquele que passa pelos
textos signos criados ou a serem criados por ele? Pode-se observá-lo
e estudá-lo como fenômeno da natureza, como coisa? (BAKHTIN,
2003, p. 319).
Para o autor, a atividade humana, como um texto em potencial, pode ser
compreendida no interior das relações dialógicas de seu tempo, por meio de uma
orientação que focaliza as significações. É na busca dessas significações que a
81
investigação se torna diálogo, pois, “[...] quando estudamos o homem, procuramos e
encontramos signos em toda parte e nos empenhamos em interpretar o seu
significado” (BAKHTIN, 2003, p. 319).
Assim, reconhecendo a importância desses pressupostos para a compreensão dos
processos mediados pela linguagem escrita no contexto da educação infantil,
recorreremos aos sentidos materializados nos textos produto dessa atividade,
buscando olhar a realidade por meio de um desenho metodológico que leva em
conta a relação sujeito-objeto, mas que prioriza as relações comunicativas entre
sujeitos, portanto as relações dialógicas. Nesse contexto epistemológico, estudos
sobre a abordagem qualitativa de pesquisa em educação, como os realizados por
Bogdan e Biklen (1994), Kramer (2002), Sarmento (2003) e André (2004), nos
ajudaram a definir o percurso investigativo apontando contribuições que subsidiaram
nossa inserção no ambiente da instituição educativa infantil, em busca da dialogia
que permeou as práticas de produção de textos na sala de aula pesquisada.
Segundo Bogdan e Biklen (1994) e André (2004), a abordagem qualitativa de
pesquisa teve suas origens no final do século XIX, com os estudos realizados no
campo das ciências sociais que tomaram por base uma concepção idealista-
subjetivista na produção do conhecimento. Contrapondo-se aos princípios da
concepção positivista, a corrente idealista-subjetivista defendida nos estudos dos
fenômenos humanos e sociais, nesse final de século, valorizava a interpretação da
realidade pelo indivíduo, a indução e a atitude indagativa do pesquisador. Devido à
forte tendência em estudos experimentais advindos do campo da Psicologia, o
interesse pela abordagem qualitativa de pesquisa no campo educacional só começou
a ser observado na cada de 1960, com manifestações mais intensas a partir dos
anos de 1970 e 1980. Atualmente, essas manifestações podem ser observadas em
várias modalidades de pesquisa que focalizam a abordagem qualitativa, dentre elas, a
pesquisa de cunho etnográfico, o estudo de caso, a pesquisa participante e a
pesquisa-ação.
Partindo de fundamentos teóricos vinculados à perspectiva fenomenológica com
incursões nas idéias do interacionismo-simbólico, da etnometodologia e da
etnografia, a abordagem qualitativa de pesquisa se assenta em um conjunto de
82
proposições que aponta cinco características fundamentais: a fonte de dados é o
ambiente natural e o investigador é instrumento principal; a descrição densa
acompanhada de fotos, transcrições de entrevistas, notas de campo, documentos,
etc. é um procedimento fundamental para captar toda a riqueza dos dados; o
interesse é pelo processo e não apenas pelos resultados; as abstrações são
elaboradas de forma indutiva; os significados, as interpretações, as diferentes visões
da realidade constituem aspectos vitais para apreender o fenômeno em toda a sua
dimensão (BOGDAN; BIKLEN, 1994).
Voltando também o olhar para os pressupostos teóricos da pesquisa qualitativa,
Sarmento (2003) apresenta as concepções paradigmáticas predominantes nas ciências
sociais e organizacionais. De acordo com o autor, uma investigação cienfica sempre
se realiza em um contexto paradigmático, no interior de um diálogo convergente ou
divergente com a produção do respectivo campo, por meio de escolhas teóricas que
anunciam questões orientadoras, propõem hiteses e apontam caminhos para a
investigação. Nesse sentido, conforme explica o autor, os paradigmas predominantes
nas cncias sociais e organizacionais podem ser configurados em ts dimenes:
positivista, interpretativa e crítica. Essas dimensões apresentam fundamentos
epistemológicos que situam concepções de sujeito, de objeto e das relações entre eles.
No paradigma positivista, preconiza-se uma distinção radical entre sujeito e objeto
de conhecimento e a investigação ocorre predominantemente por meio de
procedimentos quantitativos e experimentais que conduzem a uma orientação
hipotético-dedutiva e ao estabelecimento de regularidades ou leis de caráter
universal. O paradigma interpretativo, defendido pelas correntes sociológicas,
particularmente a do interacionismo simbólico, a fenomenologia e a
etnometodologia, postula que uma interdependência entre o sujeito e o objeto de
conhecimento. Nesse sentido, a realidade social pode ser construída por meio
das interpretações dos diferentes atores sociais, da relação intersubjetiva e a partir
de estratégias qualitativas e participantes que recusam a universalidade da lei
científica e propõem uma ciência não normativa. Procurando avançar em alguns
aspectos, os estudos fundamentados no paradigma crítico se apóiam na articulação
entre os dados sociais e seus aspectos políticos, culturais e ideológicos a fim de
evitar que os resultados sejam gerados num vazio social.
83
Defendendo uma “[...] ligação entre a interpretação das formas de vida e a
desocultação das estruturas de poder” (SARMENTO, 2003, p. 145), o autor propõe
uma perspectiva cruzada, teórica e metodologicamente, desenhando os
pressupostos orientadores de um paradigma pautado no interpretativismo crítico.
Esses pressupostos epistemológicos possibilitam o reconhecimento da ação
educativa como um campo de possibilidades, uma vez que consideram:
a) a singularidade dos processos vividos na dinâmica escolar, acolhendo o
inesperado, o idiossincrático, as manifestações plurais, sem excluí-las de seu
contexto histórico, político e social;
b) a intersubjetividade, que ressalta os sistemas de interpretação gerados na
ação dos atores sociais e na escuta de suas vozes;
c) as interações comunicativas verbais e não-verbais como componente
indissociável do diálogo interpretativo;
d) a reflexividade metodológica que convida ao exercício da auto-observação,
interrogando interpretações e sentidos constituídos com e no processo de
observação.
Assim, em consonância com a perspectiva teórica, esses pressupostos
epistemológicos influenciaram-nos na escolha do estudo de caso do tipo etnográfico,
uma abordagem metodológica qualitativa que, vinculada aos princípios da etnografia
no campo educacional nos permitiu maior aproximação com a dinâmica escolar e
seu contexto social. De acordo com Sarmento (2003), além da descrição e da
análise intensiva, essa abordagem se caracteriza pela dimensão que envolve a
natureza sociocultural do fenômeno.
Uma investigação que assume o formato do estudo de caso, no
quadro de uma perspectiva interpretativa e crítica e que se centra nos
fenômenos simbólicos e culturais das dinâmicas de acção no contexto
organizacional da escola é um estudo de caso etnográfico
(SARMENTO, 2003, p. 152, grifo do autor).
A abordagem do estudo de caso vem sendo usada bastante tempo em diferentes
campos do conhecimento, como a Psicologia, Medicina, Serviço Social,
Administração, Direito, entre outras, inclusive no campo educacional, com
perspectivas metodológicas bem distintas. No campo educacional, a marca de sua
84
origem revela-se constantemente influenciada por pressupostos da etnografia
17
– um
esquema de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estudar a cultura e a
sociedade por meio de um conjunto de técnicas de coleta de dados, valores, hábitos,
crenças, práticas e comportamentos de um determinado grupo social, resultando
num relato escrito (ANDRÉ, 2004).
Com o foco de atenção nos processos educativos institucionalizados, a perspectiva
etnográfica é marcada por procedimentos de coleta de dados bem distintos que se
caracterizam pelo uso de técnicas, como a observação participante, a entrevista
intensiva e a análise de documentos. Contudo, André (2004) salienta que é
necessária uma articulação coerente entre objetivos e tempo, pois a adequação da
etnografia no campo educacional gerou, principalmente nas décadas de 1980/90,
quando a pesquisa do tipo etnográfico ganhou popularidade no meio acadêmico,
muitos equívocos. Segundo a autora, os principais problemas foram decorrentes de
três grandes eixos: o desconhecimento dos princípios básicos da etnografia
especialmente da relativização, da falta de clareza sobre o papel da teoria na
pesquisa e a dificuldade em lidar teórica e metodologicamente com a complexa
questão objetividade/participação.
Quanto ao primeiro aspecto, a autora explica que o desconhecimento do princípio da
relativização
18
pode implicar o enquadramento dos dados numa teoria
predeterminada, com supervalorização dos dados empíricos. O desconhecimento do
papel da teoria pode provocar um divórcio entre o referencial teórico enunciado e o
processo de coleta de dados, uma ausência de diálogo entre o conhecimento produzido
e os aspectos revelados na observação da prática. A outra dificuldade explicitada pela
autora a de lidar teórica e metodologicamente com a complexa questão
objetividade x participação pode trazer confusões entre sujeito e objeto de estudo,
entre opiniões preexistentes e revelações evidenciadas na pesquisa. O desafio
consiste em saber trabalhar o envolvimento e a subjetividade, mantendo o necessário
distanciamento. André (2004) aponta alguns cuidados metodológicos para escapar
17
A introdução da etnografia em educação teve sua emergência na década de 1970. Os precursores
desse movimento foram Stubbs, Delamont, Hamilton, Parlett, King, Jenkins, MacDonald, entre outros.
No Brasil, as pesquisas realizadas pela Fundação Carlos Chagas, pelo Departamento de Educação
da PUC-RJ e seminários da Região Sudeste foram destaques desse movimento.
18
O princípio da relativização foi apresentado por Dauster (1989) como o descentramento da
sociedade do observador, colocando o eixo de referência no universo investigado.
85
dessa confusão: o estranhamento e a triangulação de dados decorrentes de uma
diversidade de fontes de informação, de sujeitos e de diferentes perspectivas de
interpretação dos dados.
Embora implicada por esses desafios, concordamos com André, quando afirma que
as razões para o uso da pesquisa de tipo etnográfico em educação são reveladoras
de uma proposta de investigação que possibilita:
[...] documentar o não documentado, isto é, desvelar os encontros e
desencontros que permeiam o dia-a-dia da prática escolar, descrever
as ações e representações dos seus atores sociais, reconstruir sua
linguagem, suas formas de comunicação e os significados que são
criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico (ANDRÉ,
2004, p. 41).
Assim, por meio desse enfoque investigativo, procuramos observar as interações
que ocorreram no processo
ensino aprendizagem da linguagem escrita na sala de
aula, focalizando a constituição de sentidos no trabalho de escritura em situações
concretas de produção. Para isso, adotamos, durante as observações, uma postura
aberta e flexível,
a fim de estabelecer novas relações a partir das interações
dialógicas
experimentadas pelos sujeitos em torno da linguagem escrita, foco central
desta pesquisa. Considerando essa perspectiva metodológica, passaremos a
descrever o processo de inserção e permanência em campo, bem como as técnicas
utilizadas para a coleta dos dados.
4.3.1 O processo de inserção em campo e de coleta de dados
Conforme levantamento apresentado no APÊNDICE N, o estudo foi realizado
durante o ano letivo de 2005, tendo início no dia 30 de março e sua finalização no
dia 20 de dezembro. Foram 75 dias em campo. Desses, 15 dias foram destinados a
diversas atividades na escola, incluindo os primeiros contatos, a participação em
reuniões de estudo, as entrevistas e as análises de documentos. Durante 60 dias,
estivemos presente em sala de aula, observando e participando do processo ensino
aprendizagem. As observações eram feitas duas a três vezes por semana, de
acordo com a organização das atividades letivas em sala de aula, resultando um
total médio de 200 horas de observação participante.
86
Nossos movimentos iniciais em direção à seleção da escola-campo, com visitas a
algumas unidades indicadas por profissionais que atuavam no Sistema Municipal de
Ensino, partiram de critérios que tiveram como pressuposto fundamental o
atendimento, de maneira geral, a uma população de baixa renda, condição esta em
que se encontra grande parte das crianças que freqüentam a escola pública. Além
disso, buscamos uma instituição que apresentasse, em seu projeto político
pedagógico, ações voltadas para o trabalho com a linguagem escrita no contexto
das práticas sociais. Esses critérios estão relacionados com o fato de considerarmos
que, mesmo vivendo numa sociedade urbanizada, na qual a linguagem escrita se
faz presente em diversas situações de comunicação, o tipo de mediação que ocorre,
durante as experiências com a linguagem escrita, se constitui em indicador
fundamental para o processo ensino aprendizagem.
Ao todo, foram contactadas quatro escolas da Educação Infantil da Rede Municipal
de Ensino de Vitória, que, de certa forma, atendiam aos critérios estabelecidos para
a escolha da instituição. A opção pela Escola 4, conforme explicitado em diário de
campo (p. 11), justifica-se não pelo preenchimento dos critérios delineados, mas,
sobretudo, pela receptividade demonstrada pelos profissionais da instituição e
devido ao fato de a turma indicada apresentar sujeitos com características
socioculturais bastante heterogêneas. Escolhemos uma turma de crianças de seis
anos de idade, em fase de transição para o ensino fundamental, buscando maior
aproximação com os conflitos que, institucionalmente e socialmente, se fazem
presentes nessa etapa da escolarização. Além disso, pudemos observar situações
em que a experiência escolar dos sujeitos se constituiu em fator relevante para a
problemática em foco.
A aproximação com o cotidiano escolar ocorreu por meio de conversas informais,
durante os primeiros contatos com os profissionais da escola. Nesses contatos,
oficializamos a nossa inserção em campo e o processo de coleta de dados por meio
do protocolo de pesquisa que incluiu os documentos dos APÊNDICES A e B. Desse
modo, tivemos a autorização da escola e da professora envolvida no estudo
para
conduzirmos a pesquisa na escola e na sala de aula. Em seguida, participamos de
uma reunião de pais, na qual nos foi permitido expor o interesse pela realização da
pesquisa, os objetivos e as técnicas que seriam utilizadas na observação
87
participante em sala de aula. Tivemos o consentimento de todos os pais das
crianças para que pudessem participar da pesquisa. Essa autorização foi firmada por
meio do protocolo de pesquisa apresentado nos APÊNDICES C e D.
Desse modo, inserimo-nos em campo, aceitando o desafio de fazer parte do
cotidiano escolar, participando das relações sociais que permeavam as práticas
educativas. Desafio que se manifestou, sobretudo, nas limitações decorrentes do
tempo para a realização do estudo e na necessidade de contato mais prolongado
com os sujeitos e seus sistemas de significações culturais. Manifestou-se, também,
no reconhecimento das múltiplas dimensões que envolvem o cotidiano escolar que,
de acordo com André (2004), podem ser configuradas em: institucional ou
organizacional, instrucional ou pedagógica e sociopolítica/cultural.
Considerando, portanto, que o contato direto do pesquisador com a situação
pesquisada é uma característica fundamental da abordagem metodológica adotada,
pois “[...] permite reconstruir os processos e as relações que configuram a
experiência escolar diária” (ANDRÉ, 2004, p. 41), tentamos permanecer o maior
tempo possível em campo. Além disso, procuramos demonstrar interesse pelos
traços e pormenores do cotidiano, pelos acontecimentos importantes, pelos
comportamentos, atitudes e interpretações dos sujeitos. Para lidar
metodologicamente com a complexa relação objetividade/participação, considerando
nosso envolvimento com o estudo e com as pessoas que dele fizeram parte,
recolhemos informações de diferentes fontes: sala de aula, entrevistas
com os
profissionais da instituição educativa, com as crianças e com os familiares,
documentos, materiais pedagógicos e produções textuais das crianças e professoras.
Na sala de aula, utilizamos, como procedimento metodológico fundamental, a
observação participante. Para André (2004, p. 28), “[...] a observação é chamada de
participante porque parte do princípio de que o pesquisador tem sempre um grau de
interação com a situação estudada, afetando-a e sendo por ela afetado”. Por meio
dessacnica, foi possível captar a dinamicidade das relações verbais e não-verbais que
ocorreram em sala de aula, os movimentos dos sujeitos e suas vozes no contexto de
produção do conhecimento sobre a linguagem escrita. Consciente da necessidade
de aferir nosso grau de envolvimento em campo que, ao mesmo tempo em que nos
88
colocava dentro da situação, exigia certo estranhamento, assumimos uma postura
de observadora participante, reconhecendo que nossa entrada na sala de aula
introduziu novas relações sociais.
Desse modo, tomamos alguns cuidados no sentido de evitar que a nossa
observação fosse compreendida como uma espécie de avaliação das práticas,
tentando atuar de forma colaborativa, reconhecendo nossa condição de aprendente
e interagindo com as crianças e com a professora no desenrolar das atividades
diárias. Os primeiros dias em sala de aula causaram, de certo modo, impactos que
influenciaram as situações de ensino aprendizagem. A familiarização com os sujeitos
e com o espaço escolar ocorreu com o tempo, com o envolvimento em tarefas
práticas do cotidiano e nas constantes interlocuções com os sujeitos.
No processo de observação participante em sala de aula, introduzimos,
paulatinamente, diferentes formas de registro. Iniciamos com as anotações em diário
de campo. Nos primeiros dias, tivemos o cuidado de realizar essas anotações fora
do ambiente de pesquisa. Aos poucos, passamos a efetuar os registros na presença
dos sujeitos, tentando, desse modo, captar detalhadamente as situações
observadas em aula. Esse procedimento provocou, logo de início, o interesse das
crianças que, curiosamente, buscavam explicações para as constantes anotações
que realizávamos em sala de aula.
Dizíamos para elas que as anotações eram
importantes, pois nos ajudavam a lembrar o que estava acontecendo na sala de
aula, os trabalhos realizados, as conversas na roda. Em alguns momentos, quando a
criança solicitava, também líamos as anotações dialogando sobre o conteúdo do
texto. Todos os apontamentos pessoais foram organizados cotidianamente em
arquivo do Microsoft Word, configurando-se em um diário de campo com 362
páginas, nas quais foram registradas todas as situações observadas em campo.
Foram descritos 60 eventos ao todo, destacando as interlocuções entre os sujeitos,
suas produções textuais, nossas interpretações, impressões, dúvidas e opiniões.
Outros recursos que utilizamos, ao longo das observações, foram os audiovisuais. O
uso de fotos e de filmagens em nosso estudo também foi acordado com os sujeitos
da pesquisa (com autorização dos familiares) e introduzido de forma planejada.
Primeiramente, trabalhamos com a câmera fotográfica digital, que nos possibilitou
89
registrar os momentos em que as crianças produziam textos. Conforme os
APÊNDICES O e P, dos 60 eventos observados em sala de aula, 50 possuem
registros desse tipo. Nosso corpus de pesquisa contempla cerca de 630 produções
fotográficas, sendo 476 correspondentes aos textos produzidos pelas crianças em
sala de aula, 57 a textos utilizados pelas professoras como recurso didático nas
condições iniciais de produção dos textos
e 97 correspondem às situações de
produção e interlocução entre os sujeitos. Além disso, também dispomos de fotos do
espaço escolar e da sala de aula focalizando os diferentes materiais escritos que
circularam pela escola no decorrer do estudo.
As gravações em audiovisual ocorreram inicialmente com uso de uma câmara
fotográfica digital, instrumento a que as crianças estavam acostumadas, devido ao
fato de termos introduzido esse equipamento, na função fotográfica, em outros
momentos da observação participante em sala de aula. Além disso, as professoras
também tinham o hábito de fotografar e filmar as atividades culturais e festivas
programadas pela escola. As crianças brincavam com a câmara fotográfica posando
para fotos, oferecendo seus textos para serem fotografados, observando as imagens
digitalizadas e comentando os resultados. Desse modo, as microfilmagens também
foram bem recebidas pelas crianças. Embora, em determinados momentos, elas se
sentissem inibidas diante do equipamento, aos poucos foram aprendendo a se
reconhecer no vídeo e a compreender, mediante nossas conversas, a importância
do recurso para o estudo, pois tivemos o cuidado de tecer explicações acerca de seu
uso no contexto da pesquisa. Como o tempo de gravação em uma câmara
fotográfica digital
é curto, foram filmados apenas sete eventos com esse
equipamento, captando interações mais curtas entre os sujeitos.
A entrada da filmadora em VHS ocorreu a partir do segundo semestre letivo. Um
entrave para o uso desse recurso foi a troca de professora nesse período,
provocando uma mudança de planos para a introdução do equipamento em campo,
pois passamos por um processo de aproximação com a professora que estava
assumindo os trabalhos em sala de aula. Contudo, a familiarização com as crianças
e com os processos vividos nesse espaço educativo contribuiu para minimizar a
artificialidade nas interações. Além disso, o envolvimento das crianças e da
professora nas discussões geralmente era muito intenso, reduzindo a inibição em
90
frente à câmera. Assim, a partir do dia 17 de agosto, conseguimos introduzir as
filmagens em VHS, captando um total de 22 eventos, com filmagens mais longas e,
portanto, mais consistentes. Desse modo, conforme o APÊNDICE O, também
compõem o corpus da pesquisa 29 eventos gravados em audiovisual, totalizando 20
horas e 12 minutos de filmagem. Para as transcrições desses eventos, tomamos por
base as normas apresentadas por Fávero, Andrade e Aquino (2003).
Nesse sentido, as técnicas utilizadas na observação participante em sala de aula
permitiram o armazenamento de informações que envolveram a dimensão
instrucional ou pedagógica, ou seja, as situações de ensino com seus elementos
constitutivos (objetivos, conteúdos, atividades, avaliação, materiais utilizados...).
Possibilitaram, também, observar e registrar as situações experimentadas pelos
sujeitos na inter-relação com o ambiente escolar e, particularmente, com a
linguagem escrita em seu contexto imediato de produção.
As entrevistas foram utilizadas com o objetivo de elaborar a caracterização da escola
e dos sujeitos envolvidos, levantando dados sobre os usos da linguagem escrita no
contexto escolar e familiar. Realizamos entrevistas com a diretora, com a pedagoga,
com as professoras, com os familiares e com as crianças envolvidas no estudo, por
meio de roteiros semi-estruturados, conforme APÊNDICES E, H, I, J e L. As formas
de registro se diferenciaram de acordo com as circunstâncias. As respostas foram
registradas, em alguns casos, pelos próprios entrevistados, como os familiares e a
pedagoga, e, em outros, como nas entrevistas com as professoras, os registros
foram feitos em formulário e em gravações em áudio com transcrições.
Além disso, as entrevistas semi-estruturadas também foram utilizadas como um
componente integrante da observação participante para coleta de informações
demandadas pela pesquisa e nas “conversações”
19
cotidianas, a fim de oferecer aos
sujeitos oportunidades para expressarem seus pontos de vista, suas explicações,
suas interpretações. Nesses momentos de conversa com os sujeitos envolvidos no
estudo, tomamos o cuidado de amenizar os efeitos de uma indagação avaliativa,
19
Termo utilizado por Peter Woods (1987) para sugerir uma expressão mais adequada à natureza
aberta, democrática e informal da relação etnográfica. Segundo o autor, nesse processo livre, os
sujeitos podem se manifestar mais naturalmente, sem aprisionarem-se a papéis determinados
(SARMENTO, 2003).
91
introduzindo as entrevistas depois do convívio mais prolongado em campo, quando os
sujeitos já se sentiam mais seguros em relação à nossa postura investigativa.
Nessa modalidade semi-estruturada de entrevista, tivemos oportunidade, ainda, de
formular outras questões a partir das respostas dos sujeitos, recolhendo informações
relevantes para o estudo. Desse modo, pudemos dialogar com os educadores
envolvidos no processo, discutindo as situações que foram observadas em sala de
aula, esclarecendo nosso posicionamento teórico, nossas intenções. Com essa
postura dialógica, aproximamo-nos mais dos sujeitos, planejando outros momentos
para discutirmos os resultados do estudo e outras questões que envolveram as
práticas com a linguagem escrita na instituição.
Uma questão importante e que demandou cuidados especiais foi a entrevista com as
crianças. Além dos aspectos acima citados, tivemos o cuidado de considerar os
interesses e a linguagem da criança evitando que esses momentos se
configurassem em uma tarefa escolar. Considerando as discussões de Sarmento
(2003), buscamos essa interação no contato direto e cotidiano com as crianças, nas
conversas decorrentes de situações vividas em sala de aula e nos próprios textos
por elas produzidos. Kramer (2002), também voltando o olhar para as crianças,
alertou-nos sobre a necessidade de garantir a autorização dos responsáveis e de
considerar sua condição de sujeito, legitimando suas vozes, mesmo quando
protegemos sua identidade. Em nosso estudo, conforme situamos no momento da
inserção em campo, solicitamos autorização da família, por meio de protocolo, para
utilizar as letras iniciais dos nomes das crianças, esclarecendo que o nome da
escola bem como o dos profissionais que nela atuam seriam protegidos.
Ainda, com a intenção de contextualizar o fenômeno
estudado e explicitar suas
vinculações com a dimensão institucional, sociopolítica e cultural, realizamos a
coleta de informações por meio da seleção de documentos e materiais pedagógicos.
Considerando nosso foco de interesse na linguagem escrita, privilegiamos a análise
de documentos que se constituíram em importantes evidências para a
contextualização
e caracterização da instituição e dos sujeitos da pesquisa, como:
as fichas de matrícula, o projeto político-pedagógico e o plano de ação da escola, as
92
diretrizes curriculares municipais, os materiais e textos produzidos pelas crianças e
pelas professoras.
A aproximação com o contexto geral da escola, em seus aspectos administrativo e
pedagógico, foi favorecida ainda pela participação em diversas reuniões de pais, em
encontros de estudo e de planejamento das atividades escolares. Nesses
momentos, procuramos estabelecer contato com o conjunto de protagonistas que
fizeram parte do cotidiano escolar e observar as professoras envolvidas no estudo
em outras situações dialógicas, a fim de identificar aspectos subjacentes ao trabalho
com a linguagem escrita, realizado em sala de aula.
Acreditamos que o uso dessas diferentes técnicas de observação e de coleta de
dados possibilitou a reconstrução das práticas com a linguagem escrita no contexto
pesquisado, desvelando as múltiplas vozes que se presentificaram nos textos
produtos dessas ações, objeto central de nossas análises. Nesse sentido, partindo da
“[...] idéia de que nada é trivial, que tudo tem potencial para construir uma pista que
nos permite estabelecer uma compreensão mais esclarecedora do nosso objeto de
estudo” (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 49), discorreremos acerca do contexto da
pesquisa, caracterizando a instituição escolar, a sala de aula e os sujeitos envolvidos.
4.3.2 A instituição escolar
Para caracterizar a escola, tomamos como referência as anotações
feitas nos
formulários utilizados nas entrevistas com a diretora e com a pedagoga
(APÊNDICES E e L), os documentos recolhidos na escola, como a última versão do
Projeto Político-Pedagógico (1997), o Plano de Trabalho Anual (2005) e as Normas
Gerais de Funcionamento (2004). Além disso, nossas observações em campo
também contribuíram para delinear o perfil da escola pesquisada, o qual passaremos
a descrever, considerando os seguintes aspectos: localização, histórico, espaço
físico, rotina escolar, organização administrativa e pedagógica e o trabalho com a
linguagem escrita no contexto escolar.
93
A escola onde a pesquisa foi realizada faz parte do Sistema Municipal de Ensino de
Vitória, capital do Estado do Espírito Santo. Está situada numa região central e
urbanizada do município, com intensas atividades comerciais, rodoviárias e de fácil
acesso a outras regiões. A comunidade onde a escola está inserida é assistida, na
área da educação, com outras escolas públicas e particulares; na área da saúde,
com hospitais e postos de atendimento. Conta também com vários estabelecimentos
comerciais e de serviços em geral. Como opções de lazer, a comunidade tem
parques municipais, bares, feira de artesanato e manifestações culturais, como a
congada,
20
blocos de carnaval, quadrilha e capoeira, entre outras.
Foi fundada pelo Sistema Municipal, em 1981, para atender aos filhos de militares.
Em 1986, teve seu atendimento ampliado para a comunidade civil. Com a intensa
procura por vagas e após movimento da comunidade, a instituição passou por
reformas que
visaram à ampliação do seu espaço físico. No ano em que a pesquisa
foi realizada, atendia cerca de 400 crianças distribuídas em duas turmas na faixa
etária de dois anos, duas de três anos, quatro de quatro anos, quatro de cinco anos
e quatro de seis anos, em dois turnos de funcionamento, com uma média que
variava de 23 a 25 alunos por turma. A prioridade do atendimento era destinada às
crianças que residiam no bairro onde a escola está localizada, estendendo-se a
outros oito bairros localizados nas proximidades.
O prédio escolar tem dois andares, com oito salas de aula e quatro salas ambientes
(biblioteca, informática, videoteca e sala de artes) funcionando em boas condições.
Além desses, havia espaços destinados ao trabalho administrativo-pedagógico, um
pátio central onde estavam localizados os banheiros, a copa e o refeitório. A área de
lazer compreendia dois parquinhos e um espaço com mesas e bancos de cimento.
Apesar de pequeno, o espaço físico da escola era bem dividido e organizado,
favorecendo a formação de um ambiente educativo que retratava, de certo modo, a
identidade da comunidade escolar.
20
A congada é uma manifestação de religiosidade popular encontrada em quase todo o Brasil. Na
comunidade onde a escola está inserida, a congada foi fundada mais de 45 anos, pela família
Alarico. O dia 25 de dezembro é a data máxima de seus festejos, embora realizasse apresentações
em diversos bairros da cidade durante todo o ano (conforme Projeto Político-Pedagógico da escola,
1997, p. 10).
94
A equipe da escola estava constituída, considerando os dois turnos, por dezoito
professores, duas pedagogas, cinco profissionais de apoio, duas estagiárias para
alunos portadores de necessidades especiais, uma diretora, uma secretária, quatro
merendeiras, três faxineiras. Quanto aos recursos materiais, a escola dispunha de
uma boa quantidade e qualidade de material pedagógico. Além dos jogos, livros de
literatura, fantoches, livros didáticos, CD-ROMs, material de papelaria, a escola
possuía um bom acervo de livros de Arte e produzia, anualmente, blocos de
atividades encadernados, agendas literárias e agendas para comunicação com a
família. Dispunha, também, de recursos audiovisuais, como aparelhos de som,
televisores, vídeos, retroprojetor, computadores com mesas pedagógicas e
computadores para uso administrativo-pedagógico.
Tendo em vista a adequação do espaço disponível na escola ao bem-estar das
crianças, nos momentos de lazer e das refeições, a rotina escolar era marcada por
vários intervalos que ocorriam simultaneamente e de forma bastante organizada. No
turno em que a pesquisa foi realizada, as atividades iniciavam-se às 13h, com a
chegada das crianças que se encaminhavam diretamente para as salas de aula,
organizando-se em rodas de conversa. As 14h, era oferecida a primeira refeição que
consistia num lanche rápido à base de frutas, sucos, biscoitos e leite. Os parquinhos
eram utilizados nos intervalos recreativos (cerca de 45min), que ocorriam em
momentos diferentes para cada faixa etária, assim como a segunda refeição (o
jantar) que era servida no refeitório. Nesses intervalos, e durante as refeições, as
crianças eram acompanhadas pelas professoras e pelo pessoal de apoio. Às
17h30min, encerravam-se as atividades letivas com o acompanhamento das
crianças ao portão da escola.
Buscando concretizar os princípios orientadores do Projeto Político-Pedagógico,
pautados na gestão participativa, a administração da escola procurava envolver
todos os segmentos da comunidade escolar no planejamento e acompanhamento
das ações. Contava com o Conselho de Escola, com a Caixa Escolar e com a
parceria de pais e funcionários no gerenciamento das questões financeiras e
pedagógicas. Para efetivar o trabalho coletivo na escola, foram organizados:
encontros de formação ao longo do ano com o objetivo de atender às demandas
decorrentes do processo ensino aprendizagem; reuniões semanais com os
95
profissionais da escola, reuniões gerais e encontros bimestrais com os pais. Além
disso, foram promovidos diversos eventos culturais envolvendo toda a comunidade
educativa, como as mostras de trabalhos desenvolvidos
pelas crianças e as
atividades comemorativas.
Em relação aos usos da escrita, os espaços, tempos e modos destinados à
circulação de material escrito no ambiente escolar estavam vinculados, mais
especificamente, a duas principais finalidades: expor os trabalhos realizados com e
pelas crianças e comunicar às famílias/comunidade sobre as normas, atividades
letivas, reuniões de pais e outros eventos. Para expor os trabalhos das crianças,
foram disponibilizados todos os espaços azulejados das paredes onde,
constantemente, podiam ser observadas as produções cotidianas das turmas. Havia
também um espaço reservado para as mostras de trabalhos decorrentes dos
projetos institucionais desenvolvidos em sala de aula. A utilização desse espaço
ocorria em forma de rodízio constituindo-se numa mostra permanente de trabalhos
onde podiam ser encontradas informações acerca dos projetos desenvolvidos.
Quanto à utilização de materiais escritos com a finalidade de comunicação, a escola
elaborava cartazes que eram afixados em espaços próximos à entrada, murais com
informações referentes ao trabalho escolar e prestações de contas, bilhetes que
eram enviados para as famílias por meio das agendas, informativos anuais com a
caracterização geral da escola e normas de funcionamento. Além disso, as salas e
demais ambientes escolares eram identificados com placas que informavam o tipo
de atividade predominantemente realizada naqueles locais.
Desse modo, as escritas que circulavam no espaço interno da escola repercutiam os
usos e funções sociais dessa forma de linguagem, servindo para fins de exposição
dos trabalhos das crianças, de orientação e de organização do trabalho escolar.
Como aponta Teberosky (2002), tinham ainda a finalidade de regulação e de
comunicação. A partir das Fotos 1, 2 e 3, podemos observar como os trabalhos das
crianças eram expostos na escola e como os pais eram comunicados sobre as
atividades escolares.
96
Embora a escola dispusesse de uma quantidade e qualidade significativas de
material escrito que circulavam cotidiamente nos diversos ambientes, o contato e
uso que as crianças da turma pesquisada faziam com esses materiais ocorriam, de
maneira geral, sem uma mediação intencional que possibilitasse o reconhecimento
das funções e significados da escrita nessas situações sociais. Durante o período
Foto 1 - Exposição de trabalhos das crianças
Foto 2 - Programação da semana da criança
Foto 3 - Correspondência enviada às famílias
97
em que estivemos observando o processo ensino aprendizagem na sala de aula,
foram poucos os momentos em que as crianças tiveram oportunidade de realizar
visitas mediadas pelas professoras às exposições de trabalhos. Outra evidência
dessa ausência de intencionalidade educativa, em torno dos materiais escritos que
circulavam na escola, também foi observada nas relações com as correspondências
enviadas às famílias, pois geralmente eram coladas nas agendas pela secretária e
entregues às crianças sem uma mediação intencional acerca do conteúdo do texto,
bem como de sua funcionalidade no ambiente escolar.
Ainda em relação aos usos da linguagem escrita no ambiente escolar, é importante
ressaltar que a biblioteca da escola, apesar de estar localizada numa sala pequena,
era muito organizada. Nela havia um bom acervo de livros de literatura infantil
expostos de forma bastante atrativa e cantinhos reservados ao teatro de fantoches,
bandinha de música e à leitura. O espaço destinado à leitura era decorado com um
tapete colorido e almofadas que compunham um ambiente aconchegante, conforme
mostrado nas Fotos 4 e 5.
Entretanto, durante o período em que estivemos na escola, constatamos que esse
espaço destinado à leitura quase não era utilizado. Com relação à turma
pesquisada, cuja sala de aula ficava localizada a poucos metros da biblioteca, não
observamos nenhum movimento em torno da utilização do espaço ou dos recursos
Foto 4 - Estante de livro da biblioteca Foto 5 - Espaço destinado à leitura na biblioteca
98
ali disponibilizados. Os argumentos dos profissionais da escola a respeito da rara
utilização da biblioteca era que o espaço interno era muito pequeno e, além disso, a
escola não dispunha de um profissional responsável pela sua organização,
manutenção e vitalização. Situação parecida também ocorria com o laboratório de
informática e de artes que, apesar de estarem localizados em espaços adequados e
possuírem bons equipamentos, ficavam sob a responsabilidade dos próprios
professores, o que exigia maior experiência e comprometimento na organização das
atividades e, desse modo, também foram pouco utilizados. Assim, a possibilidade de
acesso a esses bens culturais no ambiente escolar ficava sob a responsabilidade
dos profissionais que precisavam se adequar às suas condições de uso para
promover a interação das crianças com as diversas formas de linguagem.
Foi o que ocorreu com a linguagem plástica, uma característica marcante no
ambiente escolar, que podia ser observada nos diversos trabalhos de arte expostos
por toda a escola. Esses trabalhos foram produzidos em projetos desenvolvidos com
as crianças e valorizados em telas, com inscrições contendo informações sobre a
autoria da obra. Essa peculiaridade, decorrente do trabalho com o Ensino da Arte na
escola, também podia ser observada nas capas dos materiais utilizados pelas
crianças, como as agendas e os blocos de atividades. A veiculação sistematizada
dessa forma de linguagem ocorreu a partir do desenvolvimento de projetos
institucionais coordenados por uma professora
21
que acumulou, durante um período,
a função de professora de projetos, efetivando um trabalho em parceria com as
demais professoras da escola.
O trabalho com projetos era uma orientação explicitada no Plano de Ação da Divisão
de Educação Infantil da Secretaria de Educação (2004) que, ao visar ao
fortalecimento da dimensão pedagógica, previa a manutenção do professor de
projetos “[...] na perspectiva de ser mais um elemento articulador das ações geradas
pelos projetos institucionais [...]”.
22
A presença desse profissional na escola foi
mantida até o ano de 2005. A partir de 2006, essa função foi incorporada no plano
de cargos de salário do Sistema Municipal de Educação, como professor
21
Essa professora era profissional efetiva do Sistema de Ensino de Vitória, com graduação em
Administração e especialização em Artes Visuais. No ano em que a pesquisa foi realizada, ela estava
assumindo a direção da escola por meio de eleição direta envolvendo toda a comunidade escolar.
22
O documento não apresentava páginas numeradas. O trecho foi extraído da quarta página.
99
dinamizador, cuja principal área de atuação era o trabalho com a linguagem artística
e corporal como componente importante na formação das crianças. No contexto dos
projetos desenvolvidos na instituição em que a pesquisa foi realizada, essas formas
de linguagem já se constituíam elementos de preocupação da ação pedagógica.
A dimensão pedagógica envolvendo os projetos de trabalho também foi
contemplada no Plano de Trabalho da Escola para o ano de 2005. Nesse plano, os
profissionais da escola definiram como meta principal o reconhecimento do aluno
como ser único e indivisível nos seus aspectos: biológico, social e intelectual
. A partir
desse pressuposto, a escola assumiu a missão de buscar os meios necessários para
o desenvolvimento integral do aluno, a fim de conscientizá-lo de sua condição em
frente ao mundo. Propunha o investimento na participação ativa, criadora e crítica da
criança, “[....] para que o sujeito do conhecimento venha a ser agente transformador
do contexto e de si próprio, no exercício e compreensão da cidadania”.
23
Assim, procurando manter a qualidade do serviço pedagógico, desenvolvendo os
conteúdos básicos da educação infantil, segundo o Referencial Curricular Nacional
para a Educação Infantil (RCNEI), e em consonância com as demandas do sistema
municipal, a escola explicitou, nesse plano de ão, a proposta de trabalho com
projetos pedagógicos, iniciada em 1996, argumentando que esses projetos “[...]
oferecem aos alunos uma aprendizagem significativa e prazerosa, o que torna as
crianças construtoras do próprio conhecimento”.
24
Articulado a esses pressupostos, o trabalho com a linguagem escrita na escola
estava ancorado, conforme depoimento da pedagoga,
25
em entrevista (APÊNDICE
L), na teoria sociointeracionista construtivista, com ênfase na psicogênese da língua
escrita de Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Esses saberes foram instituídos nas
práticas educativas, segundo a pedagoga, a partir de estudos do RCNEI, de cursos
23
O Plano de Trabalho Anual da escola não apresentava suas páginas numeradas. O trecho foi
encontrado na sexta página do documento.
24
Trecho extraído da décima página do Plano de Trabalho Anual da escola para 2005.
25
A pedagoga que orientava a ação pedagógica, no turno em que a pesquisa foi realizada, era
profissional efetiva, com uma trajetória de 28 anos no Sistema Municipal de Vitória. Desses, 15 anos
de trabalho foram dedicados ao Centro de Educação Infantil onde realizamos o estudo.
100
que alguns profissionais da escola realizaram em outros Estados e com as
contribuições do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA).
26
Nesse contexto, a avaliação era vista como um conjunto de ações que promovia a
definição de critérios para planejar situações que possibilitassem avanços no
processo ensino aprendizagem, atendendo às necessidades de cada criança. Desse
modo, com vistas ao planejamento, eram realizados diagnósticos dos níveis de leitura
e de escrita das crianças e de conhecimentos matemáticos, a fim de propor ações que
promovessem avanços na construção dessas capacidades. Os resultados dessas
ações eram compartilhados com os pais em reuniões bimestrais que visavam à
integração família-escola, tendo em vista o desenvolvimento das crianças.
Assim, com base nesse entrelaçamento teórico, a escola tentava efetivar um
trabalho com a linguagem escrita que, de forma geral, ainda tomava por base as
prescrições dos discursos oficiais. Nas orientações advindas desses discursos, a
concepção de ensino aprendizagem da língua escrita fundamentava-se nas idéias
elaboradas por Ferreiro e Teberosky, enfatizando as dimensões psicológica e
lingüística na aquisição dessa forma de linguagem. Essa concepção é ampliada com
a introdução das
práticas sociais de leitura e de escrita na sala de aula, baseadas na
perspectiva do Letramento, conforme situamos na segunda parte deste trabalho. É
nesse contexto teórico que as orientações explicitadas no RCNEI, para orientar as
práticas educativas nessa etapa da escolarização, abordam o trabalho com projetos
em diferentes áreas do conhecimento, inclusive no eixo de trabalho com a linguagem
escrita. Nesse discurso orientador das práticas, o projeto de trabalho é tomado, “[...]
por excelência, como a forma de organização didática mais adequada para se
trabalhar com este eixo, devido à natureza e à diversidade dos conteúdos que ele
oferece e também ao seu caráter interdisciplinar” (RCNEI, 1998, p. 201).
26
O PROFA é um programa de formação de professores implementado e veiculado pelo Ministério da
Educação. Foi formulado pela Secretaria de Educação Fundamental e teve como principal finalidade
instrumentalizar o professor com conhecimentos práticos que favoreçam maior aprofundamento na
epistemologia genética, assegurando a compreensão e aprendizagem do/a aluno/a (PROFA, 2001,
documento de apresentação). Conforme estudo realizado por Rangel (2003), acerca dos processos
de formação continuada de professores da educação infantil no Sistema Municipal de Vitória, o
referido programa de formação foi implementado por esse sistema, no âmbito da educação infantil, a
partir do ano de 2002.
101
O trabalho com projetos, amplamente divulgado no Brasil, particularmente por
Hernandez e Ventura (1992, 1998) e Hernandez (1998), é uma orientação
decorrente de concepções pedagógicas concebidas como inovadoras, progressistas,
sintonizadas com as demandas da sociedade pós-moderna. Preconiza a
aprendizagem significativa por meio da transdisciplinarização curricular e de uma
atitude globalizadora, que oferece ao educando oportunidades de aprender a dar
sentido, a buscar os problemas que envolvem informações complexas
compreendendo sua rede de relações. Vinculado ao emblemático lema do “aprender
a aprender”,
27
o trabalho com projetos pode ser entendido como uma alternativa
atualizada dos ideais escolanovistas e construtivistas, pois incorpora, por meio de
um discurso teórico inovador, posicionamentos valorativos que, segundo Duarte
(2001), concebem a aprendizagem que o indivíduo obtém por si mesmo como
superior àquela que obtém por meio da transmissão de conhecimentos. Esses
posicionamentos enfatizam também a aquisição do método como prioridade
educativa em detrimento da apropriação do conhecimento produzido socialmente.
De acordo com o autor,
É nesse contexto que o lema ‘aprender a aprender’ passa a ser
revigorado nos meios educacionais, pois preconiza que à escola não
caberia a tarefa de transmitir o saber objetivo, mas sim a de preparar
os indivíduos para aprenderem aquilo que deles for exigido pelo
processo de sua adaptação às alienadas e alienantes relações sociais
que presidem o capitalismo contemporâneo (DUARTE, 2001, p. 9).
Desse modo, a veiculação desses discursos no interior da escola, ainda que
servindo apenas como prescrições das práticas, contribui para a configuração da
escola como aparelho ideológico do Estado, uma vez que adota concepções
educativas que reproduzem as relações sociais dominantes. No caso pesquisado,
esse fator foi agravado com a articulação da proposta de trabalho com projetos ao
construtivismo, chamado de sociointeracionismo. Uma abordagem que, embora não
explicitada claramente no RCNEI, pode ser observada no ecletismo teórico
decorrente dos contornos dados à teoria construtivista de Emília Ferreiro, com
aproximações à perspectiva do Letramento e aos pressupostos da Psicologia
Histórico-Cultural.
27
Esse lema foi desdobrado em quatro pilares da educação defendidos no Relatório para a Unesco
da Comissão Internacional sobre a Educação para o culo XXI: aprender a conhecer, aprender a
fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser (DELORS, 1998).
102
Esse é um outro aspecto das propostas inovadoras no campo educacional que
precisa ser pensado, especialmente porque veicula uma aproximação entre as idéias
de Piaget e de Vigotski, que se caracterizam, primeiramente, pelo distanciamento
entre a Psicologia Histórico-Cultural e o universo marxista dialético e, segundo, por
uma associação conceitual contraditória e incoerente do ponto de vista filosófico-
epistemológico. É o que ocorre, por exemplo, com o uso do termo social na
perspectiva histórico-cultural e no construtivismo piagetiano. Duarte (2001) lembra
que esse é o ponto central da crítica de Vigotski a Piaget, uma vez que “[...] à
concepção de social e de socialização, o pensador suíço não superou o enfoque
naturalizante, a-histórico e também não superou o paralelismo entre individual e
social” (DUARTE, 2001, p. 258).
Contudo, esse olhar problematizador acerca dos múltiplos discursos inovadores que
invadem o cotidiano escolar nem sempre está ao alcance dos atores sociais que
coordenam os processos educativos na instituição escolar. Na escola pesquisada,
acreditava-se que a opção teórica explicitada no plano anual e no discurso dos
profissionais poderia contribuir efetivamente com a formação integral das crianças e
com o exercício da cidadania crítica e participativa.
É importante destacar que um movimento de ressignificação das idéias que
orientavam as práticas educativas nos centros de educação infantil da Rede
Municipal de Ensino de Vitória estava despontando no interior da escola em que a
pesquisa foi realizada. Esse movimento ocorreu a partir de discussões advindas de
Fóruns Municipais e Regionais envolvendo os diferentes segmentos de profissionais,
bem como representantes de pais e das crianças. Os encontros, que tiveram início
no ano de 2004, foram promovidos pela Divisão de Educação Infantil tendo em vista
a reformulação da proposta curricular elaborada no período de 1989 a 1992. Essas
discussões foram sistematizadas e publicadas, no ano de 2004 em versão preliminar
e no ano de 2006 em versão final, no documento intitulado A Educação Infantil do
Município de Vitória: um outro olhar.
Dentre os temas privilegiados nesse processo de reestruturação curricular, a
questão da alfabetização também foi contemplada. Segundo o documento, “[...] a
necessidade de reconceitualizar o sentido da alfabetização na Educação Infantil,
103
provocou uma escolha unânime deste tema” (PREFEITURA MUNICIPAL DE
VITÓRIA, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO, GERÊNCIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL,
p. 65, 2006). Além desse aspecto, a necessidade de levar em conta as experiências
vividas pelos diferentes grupos de crianças e pelas professoras foi considerada
fundamental para superar o indiferencialismo pedagógico das práticas e promover o
resgate da história construída.
Esse tema, que no período de realização da pesquisa constava no documento
preliminar, também foi tomado para estudo pelos profissionais da escola, suscitando
discussões que giraram em torno das expectativas do sistema, da escola, dos
familiares, evidenciando que as relações entre educação infantil e ensino fundamental
ainda eram polêmicas e demandavam um esforço coletivo na superação da
dimensão preparatória. Dúvidas sobre se a educação infantil tem que alfabetizar,
como, por quê, para quem ainda permeavam os discursos das professoras.
Em meio aos movimentos de constituição de outros saberes e práticas, os
profissionais da escola davam prosseguimento aos projetos pedagógicos explicitados
no Plano Anual para 2005. Foram definidos três projetos institucionais que deveriam
orientar a prática educativa durante esse ano letivo: o Projeto de Literatura Conto e
Reconto, o Projeto de Artes e o Projeto Sou criança, tenho direitos. No caso da
turma pesquisada, o planejamento das atividades girou em torno de duas principais
temáticas: os direitos das crianças e o trabalho com histórias em quadrinhos.
4.3.3 A sala de aula
Para caracterizar o espaço de trabalho na sala de aula, tomamos por referência os
indicadores escritos no roteiro do APÊNDICE F e as nossas anotações no diário de
campo,
realizadas no decorrer da observação participante em sala de aula.
A classe envolvida no estudo foi uma turma de 23 crianças do Grupo 6, do turno
vespertino. A sala de aula ficava localizada no andar superior do prédio e tinha uma
dimensão espacial de 45m². As paredes, conforme características gerais do prédio,
tinham suas partes inferiores azulejadas e as superiores pintadas num tom de verde
104
claro. Havia duas janelas gradeadas encobertas por frondosas árvores que
ofereciam frescor ao ambiente. A sala era composta pela seguinte mobília: 25 mesas
e cadeiras em tamanho apropriado para crianças nessa faixa etária, mesa e cadeira
da professora, quadro-negro quadriculado, cavalete, estante fixa para livros, mesa
com aparelho de
som, um armário para material pedagógico, que ocupava toda a
parede do fundo da sala, pia com filtro e ao lado ganchos para copos. Num canto da
sala, foram dispostos baús e caixas com jogos e brinquedos variados. Nas Fotos 6
e 7, podemos observar como era o espaço interno da sala de pesquisada.
A organização das carteiras variava constantemente. As crianças trabalhavam em
duplas, em grupos e, às vezes, individualmente. Havia regras de convivência na sala
de aula. Essas regras o estavam registradas por escrito, mas eram discutidas
cotidianamente, em momentos de avaliação das atividades e de acordo com a
turma. Em algumas circunstâncias, especialmente na gestão da primeira professora,
ocorria uma conversa com a criança e a solicitação para que acompanhasse a
atividade afastada do grupo. No contexto das relações pedagógicas em que se
situavam as alternativas de instituir o papel social da criança na sala de aula, as
estratégias de controle da professora se configuravam numa espécie de castigo, uma
vez que fazia calar e inibia qualquer outra tentativa de indisciplina na sala de aula.
A rotina da sala de aula iniciava-se às 13h, com a chegada das crianças que iam ao
bebedouro e ao banheiro. Geralmente, organizavam-se em roda para conversarem e
planejarem as atividades do dia. Às 14h, faziam um breve intervalo para o lanche,
que era servido na própria sala de aula. A seguir, desenvolviam trabalhos até às
16h15min, quando se dirigiam ao pátio recreativo da escola. A segunda refeição da
06
07
Foto 6 - Sala de aula
Foto 7 - Movimentação das crianças na sala de aula
105
turma era servida às 17h, no refeitório, e, logo em seguida, eram encerradas as
atividades na escola.
Os materiais escritos expostos no interior da sala de aula eram livros de literatura
infantil, dicionário, gibis, almanaques, atividades xerocopiadas, cartazes produzidos
em aula, calendário, blocos de atividades. Havia um varal onde eram expostas as
produções das crianças. Havia também vários potes com materiais pedagógicos
etiquetados pelas crianças, um alfabeto de parede (confeccionado de E.V.A.
colorido), um alfabeto pintado em tecido com sacolas, onde eram guardadas fichas
com palavras estudadas e nomes das crianças (chamado de dicionário da turma), e
alfabetos afixados nas mesas das crianças. Esse material era constantemente
utilizado pelas crianças e pela professora que procurava explorá-lo em diversos
momentos: solicitando consultas ao alfabeto, ao dicionário de parede e aos cartazes
produzidos, durante a distribuição dos materiais, na busca por objetos guardados em
potes, no uso do dicionário.
As crianças também utilizavam o material escrito disponível em sala de aula em
momentos em que não ocorria um direcionamento de atividades pela professora.
Nesses momentos, as crianças liam histórias, realizavam atividades nos almanaques
e outras preparadas pela professora e guardadas em uma caixa etiquetada com o
nome “atividades gostosinhas”, como cruzadinhas, caça-palavras, jogo dos sete-
erros, etc. Geralmente esses momentos ocorriam entre uma atividade dirigida e
outra ou no final da tarde, antes da saída para o pátio. Embora se configurassem em
uma estratégia de ocupar as crianças em momentos em que não tinham tarefas a
cumprir, eram nesses momentos que elas faziam suas próprias escolhas e
interagiam mais livremente com os materiais escritos disponibilizados em sala de
aula, provocando diferentes movimentos, por exemplo, a leitura silenciosa no
cantinho da sala ou a interação entre grupos de crianças que se envolviam com as
situações desafiadoras das atividades gostosinhas.
Esses movimentos em torno do material escrito disponível na sala de aula foram
sofrendo transformações, com a entrada da nova professora. Os alfabetos nas
mesas das crianças não resistiram por muito tempo e não foram substituídos. Eles
eram muito consultados durante as produções escritas, particularmente pelas
106
crianças que ainda não identificavam todas as letras, e fez bastante falta para elas,
pois tinham que recorrer ao alfabeto da parede fazendo interrupções mais
prolongadas durante o trabalho de escritura. Os momentos “livres” de leitura e de
realização de atividades nos almanaques continuaram ocorrendo, porém com menos
intensidade. Foram substituídos, geralmente, por atividades que envolviam o
desenho e brincadeiras na sala de aula.
Nesse período, os livros de literatura disponibilizados na estante da sala de aula
foram mais utilizados pelas crianças para realização de atividades na agenda
literária. Esse material (Fotos 8 e 9) consistia num bloco encadernado de atividades
nas quais as crianças escreviam informações sobre os livros escolhidos para leitura
no ambiente familiar. Geralmente, a escolha dos livros ocorria na sexta-feira e a
revisão da atividade era feita na segunda-feira, quando a professora recolhia o
material e conversava com as crianças a respeito dos registros realizados.
28
Podemos notar que as experiências com a escrita no interior da sala de aula eram
significadas nas relações sociais que ali se estabeleciam: na consulta ao alfabeto
para lembrar a forma gráfica do signo, no uso do dicionário da turma para registrar o
nome do colega, na leitura das etiquetas dos potes para localizar o material
28
Os momentos destinados ao trabalho com a agenda literária eram muito valorizados pelos
profissionais da escola. Nesse sentido, uma análise cuidadosa dessa proposta de trabalho seria
interessante, o que ultrapassaria os limites dessa caracterização. Contudo, queremos destacar que,
durante os dias em campo, não observamos movimentos em torno da revitalização desse espaço de
leitura na sala de aula, o que comprometia a escolha do livro reduzindo as possibilidades de interação
com diferentes autores e textos.
Foto 8 - Capa da agenda literária Foto 9 - Página da agenda literária
107
solicitado pela professora, na entrega de materiais pessoais, na apreciação dos
trabalhos produzidos, na consulta ao dicionário para saber o significado das palavras
desconhecidas, na leitura-fruição do livro de história, na interação com os textos que
foram introduzidos durante as atividades diárias.
As formas de interação com os
materiais escritos que circularam no interior da sala de aula poderão ser mais bem
compreendidas na análise das relações dialógicas que foram instauradas durante o
processo ensino aprendizagem, mas as Fotos 10, 11 e 12 podem ilustrar alguns
desses movimentos em torno da linguagem escrita no contexto da sala de aula.
4.3.4 As crianças-sujeitos da pesquisa: relações no ambiente escolar e familiar
Para proceder à caracterização das crianças-sujeitos da nossa pesquisa,
consultamos as tabelas que foram organizadas no APÊNDICE M, a partir das
informações obtidas nas entrevistas com os pais e com as próprias crianças, além
das fichas de matrícula. Esses dados possibilitaram maior aproximação com o
contexto social das crianças, apontando aspectos relacionados com a idade, gênero,
experiência escolar, local de moradia, composição familiar, características
socioeconômicas da família, costumes cotidianos das crianças e suas preferências,
relações com a escola, usos da leitura e da escrita no ambiente familiar. Os índices
percentuais foram calculados tomando por base os 23 sujeitos que participaram do
estudo e nos permitiram a quantificação de aspectos que consideramos de
fundamental relevância para a construção do percurso investigativo. Esses aspectos
se constituíram, no contexto deste estudo, em variantes culturais e sociais que se
presentificaram nas experiências vividas pelos sujeitos em sala de aula, trazendo
implicações para o trabalho com a linguagem escrita.
Fotos 10, 11 e 12 - Interação das crianças com os materiais escritos na sala de aula
108
A turma, conforme situamos, era composta por 23 crianças, sendo seis meninas
(26,09%) e dezessete meninos (73,91%). Os meninos, de maneira geral, eram mais
agitados, apresentavam atitudes agressivas em determinadas circunstâncias,
especialmente quando tinham mais liberdade em sala de aula ou nos momentos em
que as situações de ensino se tornavam menos interessantes. A agressividade se
manifestava em chutes, empurrões, gritos, xingamentos, brincadeiras
desagradáveis, que provocavam conflitos entre as crianças e alterações nas atitudes
das professoras, o que, de certo modo, interferia no processo de produção de
conhecimento. Geralmente, esses conflitos eram resolvidos com uma conversa e
com a reorganização das crianças na roda ou nos grupos de trabalho. Em algumas
situações, conforme explicamos na caracterização da sala de aula, a criança era
convidada a afastar-se do grupo e acompanhar os trabalhos em outro espaço da
sala de aula. Em outras, mais graves, ela era encaminhada à equipe técnica para
uma conversa ou, quando necessário, uma intervenção com a família.
Com relação à idade, 52,17% das crianças iniciaram o ano letivo completando seis
anos, 43,48% completaram sete anos no segundo semestre do ano letivo e apenas
4,35% completaram sete anos no primeiro semestre. Desse modo, tínhamos um
nível de idade equilibrado na sala de aula. Todas as crianças da turma
apresentaram experiência escolar anterior: 47,83% das crianças estudaram sempre
na escola em que a pesquisa foi realizada e 52,17% freqüentaram outra instituição
de educação infantil. O ingresso na educação infantil ocorreu, para esses sujeitos,
em idades diferenciadas: a maioria das crianças da turma (43,48%) iniciou sua vida
escolar aos três anos de idade, 13,04% entraram na educação infantil com menos
de um ano de idade, 4,35% com um ano, 26,09% com dois anos, 13,04% dos
sujeitos ingressaram quando tinham quatro anos de idade, o que representa um
total de apenas três crianças com uma trajetória escolar mais recente.
Quanto ao local de moradia, os sujeitos, em sua totalidade, residiam na Regional de
Maruípe:
29
30,43% residiam no bairro onde está localizada a escola e os demais em
seis outros bairros que estão localizados dentro dessa região. Consideradas essas
29
Para fins administrativos, o município de Vitória foi dividido em sete grandes regionais administrativas. A
Região 4, de Maruípe, é composta por 16 bairros geograficamente próximos. Apresenta 3,6 milhões de
metros quadrados e aproximadamente 56 mil habitantes, conforme informações disponíveis em:
<www.vitoria.es.gov.br>. Acesso em: 3 abr. 2006.
109
condições habitacionais, podemos supor que as crianças tinham acesso constante
aos materiais escritos expostos pela região que, conforme situamos, é bastante
urbanizada, com intensas atividades comerciais, rodoviárias e culturais.
O contexto familiar da turma pesquisada apresentava as seguintes características:
21,74% das crianças moravam apenas com os pais e 39,13% moravam com os pais
e um irmão, caracterizando um total de 60,87% de crianças que constituíam famílias
pouco numerosas, uma tendência comum em nossa sociedade contemporânea.
Constatamos que 13,04% das crianças moravam com os pais, irmão(s) e parentes,
constituindo famílias mais numerosas. Havia também crianças que moravam com
apenas um dos pais e, dessas, 13,04% moravam com um dos pais e parentes e
8,70% com um dos pais, irmãos e parentes. Além disso, 4,35% moravam com os
parentes, não tendo, portanto, a companhia dos pais. Outra característica marcante,
nesse contexto familiar, diz respeito ao número de irmãos. Confirmando a
predominância de famílias pouco numerosas, 60,87% das crianças possuíam
apenas um irmão e 26,08% não tinham nenhum irmão. Apenas 13,05%
apresentaram um total de dois ou mais irmãos.
Quanto às ocupações dos familiares, os dados mostraram que a maior parte das
famílias obtinha sua fonte de renda no trabalho realizado pelos membros do sexo
masculino, pois, dos 23 pais entrevistados, apenas 4,35% disseram estar
desempregados e 13,04% não informaram a ocupação. Com relação às mães, num
total de 23 sujeitos, considerando que apenas 4,35% não informaram a ocupação,
30,43% disseram que eram donas de casa, o que representa um total de sete mães
que não atuavam diretamente no mercado de trabalho. De acordo com a
Classificação Brasileria das Ocupações (BRASIL, 2002), do Ministério do Trabalho e
Emprego, o maior índice das ocupações dos pais (26,08%) incidiu sobre o grupo dos
trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio, em lojas e mercados. Outros
grupos com maior número de ocupações são os trabalhadores de nível médio
(17,39%), os trabalhadores da produção de bens e serviços industriais (17,39%) e os
trabalhadores de serviços administrativos (8,70%). Os outros pais exerciam
atividades em diferentes grupos de trabalhadores, conforme demonstrado na Tabela
9 do APÊNDICE M. O maior índice de ocupação das mães também incidiu sobre o
grupo de trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio em lojas e mercados
110
(21,74%), acompanhado pelos grupos de técnicos em nível médio e de
trabalhadores do setor administrativo com um percentual de 13,04% cada um. Das
mães, 8,70% realizavam atividades que se enquadraram no grupo dos profissionais
das ciências e das artes e 8,70% em outros grupos ocupacionais.
A renda familiar mensal dos sujeitos envolvidos em nosso estudo, declarada na
entrevista realizada com os pais, se caracterizava por índices que giraram em torno
de um salário mínimo (13,04% dos sujeitos), um a dois salários mínimos (21,74%),
dois a três salários mínimos (13,04%), três a quatro salários mínimos (13,04%),
quatro a cinco salários mínimos (4,35%). Esses dados mostraram que 15 crianças
faziam parte de famílias cuja renda mensal estava entre um a cinco salários
mínimos. Considerando o valor do salário mínimo no Brasil e as condições de vida
das populações dos grandes centros urbanos, tínhamos 65,21% da população
pesquisada com uma renda mensal baixa
. Dos 23 pais entrevistados, apenas 8,70%
disseram que possuíam uma renda mensal superior a seis salários mínimos. Os
outros 26,09% não declararam a renda familiar. Nesse contexto econômico, duas
crianças da turma pesquisada (8,70% dos sujeitos) disseram que exerciam
atividades remuneradas para ajudar as famílias. Em conversas com essas crianças,
foi possível identificar que essas atividades estão relacionadas com trabalhos em
feiras livres, cuidados com carros em estacionamentos da via pública e coleta de
materiais recicláveis. Outro aspecto interessante na caracterização das crianças diz
respeito à realização de tarefas domésticas, pois 86,95% das crianças disseram que
realizavam atividades no lar para ajudar os pais, inclusive, em alguns casos,
dividindo responsabilidades com os irmãos e outros membros da família.
O nível de escolarização dos pais pode ser caracterizado com base nos seguintes
índices: 43,47% (dez pais) chegaram a concluir o ensino médio, 21,74% (cinco pais)
não tinham concluído o ensino médio, 13,04% (três pais) tinham o ensino
fundamental completo e 8,70% (dois pais) o ensino fundamental incompleto. Apenas
4,35% (um pai) possuíam o ensino superior completo e 8,70% não informaram. Com
relação ao nível de escolarização das mães, obtivemos os seguintes índices nas
entrevistas: 56,52% (treze mães) possuíam o ensino médio completo, 13,04% (três
mães) o ensino fundamental completo e 21,74% (cinco es) o fundamental
111
incompleto. Também no caso das mães, apenas uma (4,35%) possuía o ensino
superior completo e 4,35% não informaram.
Esses índices, agregados aos outros aspectos que apresentaremos em seguida,
apontaram que a maioria dos familiares possuía um nível de instrução que poderia
promover condições favoráveis de interação com materiais escritos no ambiente
familiar, uma vez que um percentual significativo dos familiares chegou a concluir o
ensino médio ou, pelo menos, o ensino fundamental. Esse aspecto foi abordado no
Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF/2005), realizado pelo Instituto
Paulo Montenegro,
30
em parceria com a Ação Educativa e com o IBOPE Opinião. O
estudo oferece informações sobre as capacidades da população brasileira de 15 a
64 anos de idade em acessar e processar informações escritas nas situações
cotidianas. Os resultados apresentados indicaram que, sem o ensino fundamental
completo, é difícil garantir um nível de leitura básico de alfabetização ao longo da
vida. Com o ensino médio, é possível desenvolver habilidades do nível pleno de
alfabetização, por exemplo, ler textos mais longos, localizar e relacionar
informações, identificar fontes e comparar vários textos. Outro aspecto interessante
nos resultados apresentados pelo INAF (2005) e que também pode ser observado,
no contexto escolar dos familiares das crianças-sujeitos de nosso estudo, é que as
mulheres são maioria no grupo de familiares que chegaram a concluir o ensino médio.
Nessa caracterização, contemplamos, também, aspectos do universo sociocultural
das crianças a fim de buscar informações acerca desses modos de interação fora da
esfera escolar. Segundo os pais, as atividades mais comuns que as crianças
realizavam no ambiente familiar estavam vinculadas ao brincar (56,52%), desenhar
(47,83%), assistir à televisão (30,43%), pintar (26,09%), ler e escrever (17,39%)
dentre outras. Fora do ambiente familiar, as atividades mais citadas pelos pais foram
os passeios a parques, shoppings, praia, etc. (69,57%), as brincadeiras (56,52%) e
atividades na igreja (26,09%). Dentre os programas de dio e televisão preferidos
das crianças estavam as músicas (78,26%), os desenhos animados (78,26%), os
filmes (47,83%), os programas evangélicos (13,94%) e os jogos de futebol (8,70%).
Além desses, as crianças citaram os seriados, as novelas, os programas infantis e
30
Disponível em: < www.ipm.org.br/an.php> . Acesso em: 6 abr. 2006.
112
de auditório, dentre outros. Quanto à diversão preferida das crianças, estavam os
jogos de computador (30,43%), os jogos de videogame (26,09%), o brincar
(26,09%), jogar bola e andar de bicicleta (13,04% cada). Além dessas, as crianças
citaram os passeios à praia, piscina e parque aquático, apontaram nomes de
algumas brincadeiras preferidas, como brincar no pátio, pular corda, brincar de
boneca, cabra-cega, pique-parede, soltar pipa, brincar com o cachorro, skate,
patinete, carrinho bate-bate, internet, dançar balé, desenhar e pintar. Esses dados
apontaram que as crianças envolvidas em nosso estudo, de maneira geral, tinham
acesso a diferentes recursos culturais e conviviam em ambientes que favoreciam
atividades lúdicas e prazerosas.
O brincar também foi a principal atividade citada pelas crianças, ao justificarem sua
opinião sobre a escola. Com exceção de uma criança que disse não gostar da
escola porque tinha que subir a ladeira e também porque tinha moto nesse percurso,
as demais disseram que gostavam da escola por causa dos pátios (43,48%), porque
tinha brinquedos (30,43%), porque era legal (26,09%), tinha computador (17,39%).
Além dessas razões, a professora foi lembrada por 13,04% das crianças. As outras
apresentaram razões diversas, enfocando outras situações que envolvem o brincar.
Um aspecto relevante suscitado nesses dados foi a relação das crianças com o
brincar, enfatizada por grande parte dos sujeitos. De acordo com Leontiev (1998), o
brincar é importante para a criança e se torna um processo predominante em suas
atividades, porque o mundo objetivo do qual ela tem consciência se amplia
continuamente para além de seu ambiente próximo e dos objetos com os quais
consegue operar. Como a criança não pode e não consegue lidar com certos objetos
e atividades do mundo dos adultos, cria as condições para isso por meio da
brincadeira, do jogo simbólico. Nesse sentido, a brincadeira se torna uma atividade
principal, porque permite à criança operar com situações nas quais ocorrem
mudanças significativas em seu desenvolvimento psíquico. Essas mudanças,
segundo Leontiev (1998, p. 122), “[...] preparam o caminho da transição da criança
para um novo e mais elevado nível de conhecimento”. Desse modo, como atividade
simbólica, a brincadeira abre caminhos para outras atividades simbólicas que
permitem a criança alcançar níveis cada vez mais elevados de abstração, como os
que envolvem a apropriação da linguagem escrita.
113
No que diz respeito à interação das crianças com materiais escritos no ambiente
familiar, os dados que dispomos nas tabelas indicaram que:
a) quanto ao tipo de materiais que os familiares possuíam em casa, estavam os
livros (73,91%, ou seja, 17 dos 23 sujeitos disseram possuir esse tipo de
material em casa), as revistas (60,87%), os jornais (52,17%), correspondência
pessoais (21,74%) e apenas 4,35% não informaram;
b) com relação aos títulos de livros, jornais e revistas que circulavam no ambiente
familiar, os pais apontaram os livros de literatura infantil de maneira geral
(56,52%), o jornal A Tribuna (43,48%), a revista Veja (21,74%), o jornal Notícia
Agora (17,39%), os gibis (17,39%), os livros didáticos (17,39%), a revista Isto é
(17,39%), a Bíblia (13,04%), a revista Caras (8,70%) e o jornal A Gazeta
(8,70%). Os demais títulos, como livro de poesias, revistas da Igreja, revistas
Comunhão, Natura, Época, Cláudia, Recreio, Class tiveram uma incidência de
4,35% cada um;
c) de acordo com os pais, os materiais mais utilizados pelas crianças para leitura
em casa eram os livros de literatura infantil, citados por 86,96% dos 23 pais
entrevistados, seguido dos gibis com 34,78% e das revistas também com
34,78% de ocorrência. Os jornais, segundo os pais, também eram utilizados
pelas crianças em casa, num total de 30,43%, e a Bíblia era lida por 13,04% das
crianças. Além desses materiais, os pais apontaram os encartes de
supermercado, os manuais de instrução e cadernos de atividades. Esses dados
também foram observados nas conversas com as próprias crianças. Das 23
crianças, 19 disseram que gostavam de ler (82,61%) e quatro não opinaram
(17,39%). O materiais de leitura mais indicados pelas crianças foram os livros de
histórias (60,86%), revistas (8,70%) e jornais (8,70%).
d) a pessoa da família que mais lia com as crianças em casa era a mãe, sendo
indicada por 73,91% dos sujeitos, seguida do pai (39,13%), do primo(a)
(21,74%), do irmão(ã) (13,04%), do tio(a) (13,04%) e da avó (8,70%). Uma
criança (4,35%) disse que ninguém lia para ela em casa. Segundo as crianças, o
material que os familiares mais utilizavam para leitura com elas em casa eram as
histórias (indicadas por 78,26% das crianças). Apenas uma criança disse que os
pais não liam nada para ela em casa. Essas leituras, de acordo com as crianças,
ocorriam às vezes (39,11%), quando tinha tarefa da escola (13,04%), sempre
114
(8,70%), somente à noite (8,70%), somente nos finais de semana e feriados
(8,70%), todo dia (4,35%), uma vez (4,35%), na hora de dormir (4,35%) e o
informaram (8,70%).
Esses dados compõem um panorama das interações com a linguagem escrita no
ambiente familiar, uma vez que, para captar os níveis dessas interações, seria
necessária uma inserção nesses espaços de convivência, o que acreditamos não se
constituir um fator determinante em nosso estudo. Contudo, os aspectos observados
nas entrevistas foram bastante expressivos, pois nos permitiram uma aproximação
com o contexto familiar das crianças e suas histórias de vida.
A caracterização dos aspectos ligados ao mundo da escrita indicou modos de
interação com essa fonte de conhecimento no contexto familiar das crianças que
também foram suscitados nas pesquisas realizadas pelo INAF (2005). De acordo
com esse estudo, as informações sobre as relações com a escrita no ambiente
familiar também são importantes para compreender as diferenças nas habilidades de
leitura e de escrita da população. Nesse sentido, a pesquisa comprovou que a
existência de materiais escritos nos domicílios e os hábitos de leitura dos pais,
especialmente das mães, influenciam no desempenho dos filhos.
Segundo os dados apresentados sobre as pessoas que mais influenciaram no gosto
pela leitura da população entrevistada pelo INAF, a mãe ou responsável do sexo
feminino foi apontada em primeiro plano. Esse aspecto também foi observado no
contexto familiar das nossas crianças, pois a mãe foi indicada como a pessoa da
família que mais realizava leituras em casa, além de ser a que mais colaborava nas
tarefas escolares (Tabela 34, Apêndice M). Os dados do INAF também revelaram
que o pai influencia no gosto pela leitura. Em nosso estudo, o pai foi citado pelas
crianças tanto na realização das tarefas escolares como nas leituras cotidianas.
Quanto aos tipos de materiais escritos que circulavam no ambiente familiar da turma
pesquisada, observamos que os livros, especialmente de literatura infantil, tiveram
predominância sobre os demais tipos citados. Nesse aspecto, a pesquisa do INAF
apontou que a Bíblia, livros sagrados ou religiosos foram os mais indicados pela
população entrevistada. Em nosso estudo, esse dado também foi revelado, porém
115
com menos intensidade. A ênfase nos materiais de leitura voltados para o público
infantil no contexto familiar pode ser compreendida como uma forma de
incorporação das práticas de leitura da escola, uma vez que, nesse ambiente
educativo, a literatura infantil é predominante.
Para as crianças e seus familiares, a aprendizagem da leitura e da escrita era muito
importante. Ao perguntarmos, nas entrevistas realizadas, por que eles achavam
importante aprender a ler e a escrever, encontramos razões que estavam ligadas a
diferentes significações sociais, mas que constituíam, em seu conjunto, uma visão
pragmatista de aquisição dessa forma de linguagem. Essa visão, segundo Macedo
(2002), é decorrente da incorporação de discursos políticos hegemônicos que
defendem que a alfabetização serve como veículo para a melhoria econômica, o
acesso ao trabalho e o aumento do nível de produtividade. Consolidada no conceito
de alfabetismo funcional, essa concepção de alfabetização tem como principal
finalidade “[...] produzir leitores que atendam aos requisitos básicos de leitura da
sociedade contemporânea” (MACEDO, 2002, p. 94).
Nas razões explicitadas pelas crianças para justificar a importância de aprender a ler
e escrever, 52,17% referiram-se aos usos da linguagem escrita no contexto escolar
com uma preocupação voltada para o ingresso no ensino fundamental e para a
realização de tarefas escolares; 30,43%, aos usos cotidianos da escrita, incluindo
situações prazerosas de leitura; 8,70% demonstraram uma preocupação com o
futuro e 8,70% não souberam responder. Para evidenciar esses resultados,
tomamos algumas respostas das crianças
31
que foram registradas durante as
entrevistas:
32
Ped: porque aí... na primeira série... a gente não vai saber... por isso que eu gosto de
aprender a ler e escrever
Mat: pra quando passar para a primeira série... pra aprender ler e escrever logo... pra quando
a gente ficar adulto aprender ler e escrever muito... muito... senão... quando fica adulto é
estranho... os pais vão reclamar com a escola... o pai e a mãe pode achar estranho que
a escola não está ensinando o filho a ler e escrever
31
A identificação das crianças será feita pelas iniciais dos nomes conforme protocolo de pesquisa.
32
Para transcrição das falas, tomamos como referência as normas apresentadas por Fávero,
Andrade e Aquino (2003).
116
Raf: é por causa que... a gente... quando a gente chegar na primeira série... a professora
não vai ajudar... tem que escrever sozinho
Cris: porque quando a gente vai escrever... a gente se diverte... a gente pode escrever o
que quiser... cartinha pras pessoas sem a mãe descobrir ( ) porque quando a pessoa
vai ler... não fica confundindo a palavra
Mon: porque é legal... eh:::: escrever... aprender a ler... a gente aprende a ler... escrever...
depois ler historinha
Com relação aos pais, a maior ocorrência de respostas (56,52%) incidiu sobre a
projeção para o futuro com vistas à realização individual por meio do crescimento
profissional e da mobilidade social. Os pais demonstraram, também, uma
preocupação com a vida em sociedade e com o exercício da cidadania (39,13%),
com a vida escolar (13,04%), com a auto-estima (8,70%) e com os direitos da
criança (8,70%). Apenas 4,35% não responderam. As amostras que se seguem,
retiradas de questionário escrito,
33
evidenciam os sentidos explicitados pelos pais:
Responsável por Gil: “Com certeza pois sem ler e escrever ele não conseguirar vencer os
obstaculos que ele terá pela sua vida: social, financeira e pessoal uma
profissão digna”.
Responsável por Joa: “Porque estou vendo que ele realmente está aprendendo, e, com isso
terá mais incentivo para frequentar a escola, e com certeza terá um
futuro brilhante”.
Responsável por Pat: “Para que ele cresça profissionalmente, saber viver no meio da
sociedade”.
Responsável por Raf: “Para mais tarde ser alguem na vida e não ser um analfabeto”.
A concepção pragmatista e utilitarista da alfabetização, revelada de forma
significativa nos enunciados dos sujeitos em desdobramentos que compreenderam a
realização individual no âmbito escolar e profissional, é predominante em nossa
sociedade contemporânea. Nesses enunciados, os sujeitos indicaram que a
aprendizagem da leitura e da escrita é importante para efetivar mudanças na
condição social e econômica. Esses sentidos também foram suscitados em estudo
realizado por Gontijo (2002). Segundo a autora, eles “[...] revelam visões
33
O questionário foi enviado para casa e as respostas dos familiares foram transcritas preservando
as suas características textuais.
117
estereotipadas e denotam a ilusão de que a escolarização é suficiente para
modificar a vida das pessoas” (GONTIJO, 2002, p. 50).
Uma análise aprofundada acerca das relações entre alfabetização, escolarização e
desenvolvimento foi apresentada por Graff (1994), em sua discussão sobre o poder
da alfabetização nas sociedades modernas ocidentais. Apontando as contradições e
fragilidades desse discurso progressista, o autor argumenta que a alfabetização
serviu/serve como um novo cimento social que teve como finalidade “[...] integrar a
sociedade e fomentar o progresso pela ligação de homens e mulheres em sua
malha, neles introjetando as diretrizes do comportamento correto” (GRAFF, 1994, p.
70). Desse modo, a educação nas sociedades modernas atende aos interesses
hegemônicos produzindo necessidades individuais que demandam o aprendizado da
leitura e da escrita. Contudo, esse aprendizado, por si só, não é suficiente para
permitir aos indivíduos mudanças em suas condições sociais, uma vez que
Mudança é sinônimo de transformão e, portanto, é um processo
que depende das condições históricas objetivas. É algo que não
surge imediatamente, mas é fruto da luta dos homens contra a
dominação e também de um processo de educação dos homens
(GONTIJO, 2002, p. 50).
4.3.5 As professoras e suas trajetórias de trabalho com a linguagem escrita
Além das crianças, participaram diretamente de nosso estudo as duas professoras
que mediaram o processo ensino aprendizagem na turma pesquisada: uma que
coordenou os trabalhos em sala de aula durante o primeiro semestre de 2005 e a
outra que assumiu a turma no segundo semestre. A troca de professora foi
decorrente de conflitos que foram se constituindo nas relações sociais entre alguns
profissionais que atuavam na escola. Causou impactos iniciais, especialmente no
interior da sala de aula, que foram amenizados com o tempo.
As crianças estavam
acostumadas com uma forma de organização do processo ensino aprendizagem
mais direcionada, com regras constantemente fixadas e cobradas, além de
orientações precisas no encaminhamento das diversas atividades.
118
A forma de condução do trabalho da nova professora da turma se diferenciava muito
nesse sentido. A ausência, particularmente nos primeiros dias, de acordos de
convivência e de encaminhamentos consistentes e claros para a realização das
atividades foi provocadora de reações diversas nas crianças. Elas ficaram mais
agitadas e os conflitos, especialmente entre os meninos, se intensificaram. Além
disso, a rotina na sala de aula também passou por modificações. Foi destinado mais
tempo à roda de conversa, incluindo atividades que envolviam muitas canções e
brincadeiras,
menos atividades direcionadas e mais tempo para brincar antes da saída
para o pátio. Essas mudanças trouxeram outros rumos para a pesquisa, conduzindo
nosso olhar interpretativo em torno do inesperado e das novas situações vivenciadas.
Assim, conhecer a história das professoras, suas trajetórias acadêmicas e
profissionais, seus sistemas de interpretação da realidade e suas práticas com a
linguagem escrita também foi fundamental na constituição desse panorama de
pesquisa. Para reconstruir essas trajetórias, caracterizando as professoras-sujeitos
do presente estudo, tomaremos os dados que foram coletados por meio das
entrevistas, segundo roteiro do APÊNDICE J. Para identificação desses sujeitos,
usamos os termos Professora 1 (Prof.1) para a primeira professora da turma e
Professora 2 (Prof. 2) para a professora que assumiu a turma no segundo semestre.
A Professora 1 tinha entre 30 e 35 anos de idade, uma experiência de mais de dez
anos como professora, atuando com crianças do ensino fundamental e da educação
infantil em instituições públicas e particulares. Trabalhava na escola em que a
pesquisa foi realizada havia nove anos, desde quando ingressou como profissional
efetiva do Sistema Municipal de Ensino de Vitória. Além dessa atividade profissional
exercia outra voltada para a decoração e animação de festas infantis.
Sua formação acadêmica era em nível de pós-graduação, com especialização em
Psicopedagogia. Além disso, a Professora 1 também freqüentou vários cursos de
formação, entre eles, e por ordem de relevância para ela, os cursos de atualização
da Escola Balão Vermelho em Belo Horizonte, curso de Educação Especial no Rio
de Janeiro, cursos de Ensino da Arte e de Informática Educativa pela PMV
(Prefeitura Municipal de Vitória). No momento da coleta dos dados, suas atividades
119
de formação continuada estavam menos intensas com algumas participações em
seminários, congressos ou similares.
No dia da entrevista, a Professora 1 tinha assinatura da Revista Época e do Jornal A
Tribuna, incluindo, em suas leituras mais comuns, a literatura Gospel.
34
Costumava
ler também as revistas Nova Escola, Pátio e Presença Pedagógica. Suas atividades
culturais mais freqüentes estavam diretamente ligadas ao filho, como passeios às
praças, exposições, museus entre outros.
Nos momentos de interação com as famílias e com os profissionais da escola,
percebemos que o trabalho realizado por ela era reconhecido na comunidade
escolar. Isso era decorrente do tempo de atuação na escola e de sua experiência de
sete anos com a turma do pré. Em conversas com a equipe técnica, seu perfil
profissional foi caracterizado pelo trabalho diferenciado que vinha realizando com as
crianças dessa idade. Quando questionada sobre o tempo de atuação nessa fase da
educação infantil, a Professora 1 explicou que essa não havia sido uma opção sua,
pois, quando entrou na escola, em 1995,
Prof. 1: [...] tinha uma turma... que era aquela que ninguém queria... que era o pré... e eu
achei que ia ser ótimo... porque eu já gostava da turma... de trabalhar com essa
idade... só que aí... era outra realidade [...] porque eu saí daquela história... bom... eu
não posso ensinar que o bê” com “a” faz ba”... eu vou ensinar como?... esse
menino vai aprender como?... então eu não tinha formação nenhuma... ahn... o que
eu tinha pra alfabetizar eu já tinha aprendido sozinha... eu não aprendi no Magistério...
eu já tinha aprendido sozinha... mas eu tinha aprendido dentro do método tradicional...
já baseado na forma que eu fui alfabetizada... de ver minha mãe dá aula... minha mãe
era alfabetizadora... ela me ajudou e... aí... quando eu fui pra prefeitura... eu falei
assim... vou fazer o que agora?... que eu não posso ir pro quadro... e explicar como
o juntar as letras pra escrever... eleso tirar isso da onde? (2-11-2005).
Nesse relato, a professora explicitou que a turma do pré era aquela que ninguém
queria”, evidenciando a demanda advinda do sistema de que a alfabetização poderia
ocorrer nas turmas de seis anos. A preocupação com a alfabetização nessa etapa
da escolarização básica poderia ser observada no entrecruzamento de diversos
34
O Gospel (Evangelho, em inglês) é um gênero musical, religioso, baseado no Evangelho.
Caracteriza-se pela ênfase dada ao aspecto vocal das peças musicais. As letras, de cariz religioso
cristão, são combinadas com o tipo de melodia e ritmo dos gêneros musicais blues e jazz. Os
cantores atuais de Gospel incorporaram no estilo elementos de música soul que, na sua origem, não
eram mais que uma forma profana de Gospel. Disponível em: <
pt.wikipedia.org/wiki/Gospel>. Acesso
em: 15 abr. 2005.
120
fatores, como: a introdução dos princípios da psicogênese da língua escrita em
movimentos de formação dos professores do Sistema Municipal, especialmente a
partir do PROFA; o uso de formulários que serviam para registrar índices
quantitativos de avaliação das escritas infantis; a elaboração de relatórios e pastas
de avaliação comprovando o percurso de desenvolvimento da linguagem escrita na
criança e dando visibilidade ao trabalho que era realizado no Centro de Educação
infantil.
No ano em que a pesquisa foi realizada, a escola fazia uso de uma pasta de
avaliação que documentava o percurso de cada criança. De acordo com
informações da pedagoga, até o ano de 2004, a escola recebia da Divisão de
Educação Infantil, da Secretaria de Educação, uma ficha bimestral para as turmas
do pré para registrar os níveis de leitura e de escrita das crianças. Essa ficha foi
cancelada a pedido dos profissionais e substituída por outras formas de registro, de
acordo com as necessidades e demandas da escola. É importante destacar que, no
período em que a Professora 1 entrou na escola, como profissional efetiva do
Sistema Municipal, sua experiência anterior de alfabetização se restringia aos
métodos sintéticos. Foram as novas demandas que a levaram a buscar cursos de
atualização das práticas fora do Estado, concretizando, desse modo, mudanças
significativas no trabalho com a linguagem escrita.
Além disso, para ajudar no planejamento das atividades, a professora também fazia
uso de vários materiais pedagógicos, como livros de Artes, as revistas Recreio, Nova
Escola e Pátio, alguns livros didáticos que lhe serviam para recortar gravuras e
buscar informações acerca das temáticas em estudo. O trabalho com projetos foi
uma característica marcante em seus depoimentos, confirmando sua adesão à
proposta pedagógica explicitada nos documentos orientadores da ão educativa.
Segundo a professora, o trabalho com projetos exigia a consulta em diferentes
fontes de pesquisa, conforme o tema em desenvolvimento e as demandas da turma.
Partindo dessa perspectiva, ela utilizava, em sua prática com a linguagem escrita na
sala de aula, diversos textos. Justificando que a escolha do texto era decorrente da
relevância que ele tinha para o momento, a professora destacou:
121
Prof. 1: parlenda... eh::... jornal... músicas... e livros... né?... de literatura infantil... esse ano
eu estava trabalhando com histórias em quadrinhos... o ano passado eu trabalhei
com as mais belas lendas capixabas do Rodrigo Campanelli... também está muito
associado ao projeto [...] quando eu trabalhei com as brincadeiras... as parlendas
estavam relacionadas às brincadeiras... ao projeto... ( ) eh:: eu me envolvo muito
com o projeto... aí... de acordo com aquele projeto... eu pesquiso determinado tipo
de... de... portador de texto... eu não uso uma variedade muito grande não... eu
percebi isso... o ano passado eu usei muito jornal... esse ano eu já usei menos...
mas teve parlendas... outras coisas que estavam relacionadas (2-11-2005).
O trabalho com projetos também é veiculado pelo PROFA que, segundo a
professora, foi uma atividade de formação importante em sua trajetória de
alfabetizadora. Defendendo o uso de uma diversidade de textos nas práticas de
alfabetização, as orientações explicitadas nesse programa de formação preconizam
que os projetos podem favorecer um trabalho com textos voltado para as práticas
sociais de leitura e de escrita. De acordo com essa perspectiva, para escolher
adequadamente os textos, são necessários alguns critérios de seleção, por exemplo:
[...] a complexidade do texto, o nível de dificuldade da atividade em
relação ao texto escolhido, a familiaridade dos alunos com o tipo de
texto, a adequação do conteúdo à faixa etária e a adequação dos textos
selecionados e da proposta de atividade às necessidades de
aprendizagem (BRASIL/PROFA, Coletânea de textos, módulo 2, p. 10).
Com base nesses critérios, o programa propõe, então, diversas possibilidades de
intervenção nas práticas de alfabetização que se aproximavam das estratégias de
leitura e de escrita utilizadas pela professora na sala de aula. Em seu depoimento
acerca desse programa de formação, a Professora 1 explicou que, embora o tenha
concluído o curso, ele lhe serviu muito, pois, além de possibilitar discussões com as
professoras dasérie, ajudou a ressignificar o trabalho que fazia com filipetas.
O trabalho com filipetas consiste na organização de partes do texto (palavras, frases
ou versos) que o fragmentadas em tiras para que as crianças façam relações
entre o oral e o escrito, dimensão enfatizada nessa abordagem. Essa técnica pode
ser usada, especialmente, com textos recorrentes nas brincadeiras infantis e no
cotidiano das crianças, ou seja, “[...] textos que os alunos sabem de cor [...], em que
a tarefa é descobrir o que está escrito em cada parte, tendo apenas a informação do
que trata o texto [...]” (BRASIL/PROFA, Coletânea de textos, módulo 2, p. 10). Como
122
exemplos, podemos incluir as parlendas e as músicas, citadas pela Professora 1,
adivinhas, trava-línguas, poemas, quadrinhas, etc.
Essas situações são interessantes, segundo explicações oferecidas no programa, pois
favorecem o desenvolvimento de atividades de leitura sem, necessariamente, o aluno
estar alfabetizado. Por meio dessas atividades, “[...] o aluno deve pôr em uso o
conhecimento que possui sobre a escrita e receber informações parciais sobre o
conteúdo que tornem a atividade proposta um desafio compatível com suas
possibilidades” (BRASIL/PROFA, Coletânea de textos, módulo 2, p. 10).
Um exemplo
desse tipo de atividade pode ser encontrado no texto 4 do módulo 2 da unidade 5 do
programa. Assim, considerando o domínio oral dos textos, busca-se estabelecer
relações gráficas propondo sua reorganização. Contudo, a ênfase na dimensão
lingüística pode incorrer no uso do texto como pretexto, uma vez que, nessas
orientações teórico-práticas, não são considerados aspectos que envolvem a relação
dialógica entre autor, leitor e texto, nem tampouco o processo de constituição de
sentidos decorrente das condições de leitura e produção textual significadas na
mediação pedagógica.
Ainda considerando as informações explicitadas pela professora durante a
entrevista, quando questionamos acerca do uso do RCNEI e das diretrizes advindas
do Sistema Municipal, ela informou que esses documentos não serviram de base
para orientar suas práticas com a linguagem escrita na escola. Entretanto, seus
depoimentos agregaram pressupostos que também estão explicitados nesses
documentos. Uma primeira ocorrência que nos possibilitou observar essa demanda
foi a razão explicitada para justificar a importância da aprendizagem da leitura e da
escrita. Para a Professora 1, a aprendizagem da leitura e da escrita era muito
importante. Em seu depoimento acerca dessa questão, ela disse:
Prof. 1: nós vivemos num mundo que... letrado... que as pessoas lêem... se você... eh::: [...]
por que esse período é um período de descoberta... elas tão aguçadas para tudo...
elas tão percebendo que a leitura existe... que a escrita existe... elas querem
descobrir o que que está escrito ali... elas são curiosas... então elas estão abertas...
né?... elas tão abertas pra aprender (2-11-2005).
123
Desse modo, a professora justificou a importância da aprendizagem da leitura e da
escrita apresentando argumentos que se aproximaram das razões apresentadas pelas
crianças e pelos pais, evidenciando, assim, que também incorporou os discursos
ideológicos dominantes da sociedade capitalista em pleno desenvolvimento. A
professora confirmou ainda a vertente construtivista adotada no Sistema Municipal de
Ensino de Vitória e uma das principais implicações dessa adoção a classificação
das crianças de acordo com os níveis de escrita propostos por Emília Ferreiro e Ana
Teberosky, ao explicitar o referencial teórico adotado em seu trabalho:
Prof. 1: durante o começo na... na prefeitura... era Emília Ferreiro... hoje... sou eu ((risos)) sou
eu... entendeu?... eu... eu... faço aquilo que eu sinto que a minha turma precisa... eh:: o
que que atrai... que forma que eles o descobrindo... o que que aquela turma precisa
naquele momento... gosto de classificá-los de acordo com os níveis de escrita da Emília
Ferreiro... porque eu acho que... o que isso seja fundamental... até porque o mais
importanteo é saber em quevel que ele tá... mas é... o que que eu posso fazer com
ele naquele nível... [...] (2-11-2005).
A vertente construtivista de Emília Ferreiro foi, portanto, assumida pela professora,
comprovando sua adesão aos princípios orientadores do trabalho com a linguagem
escrita na educação infantil, explicitados no RCNEI e adotados nos planos de ação do
Sistema Municipal e da instituão pesquisada. Para a Professora 1, os pressupostos da
psicogênese da língua escrita eram importantes, pois lhe permitiam obter informações
acerca das hipóteses das crianças sobre as relações entre o oral e o escrito.
Entretanto, compreendemos que a justificativa de classificar as crianças de acordo
com os níveis de leitura e de escrita, como indicativo para reelaborar as ações
pedagógicas, não possibilita escapar das implicações e dos reducionismos
subjacentes a essas práticas, uma vez que mantem, com outros matizes, uma
perspectiva classificatória na avaliação e focaliza apenas os aspectos
psicolingüísticos no processo de alfabetização.
Considerando sua trajetória de trabalho com a linguagem escrita, a Professora 1
também ressaltou que um dos grandes desafios na alfabetização das crianças nessa
fase são as expectativas das famílias e dos profissionais que atuam no ensino
fundamental, evidenciando o caráter preparatório que permeia a educação das
124
crianças em fase de transição para o ensino fundamental. Em seu depoimento
acerca dessa questão, a professora explicou:
Prof. 1: [...] a falia... ela tá preocupada que as crianças têm que sair escrevendo letra cursiva
porque vai ser cobrado na rie seguinte... então eles começam o pré... com essa
fuão... eh::... tem que ler e sair fazendo letra cursiva... e a gente trabalha tantas outras
coisas... que a letra cursiva é onimo... que pode acontecer... aí... quando eleso para
a primeira rie... eu ouvi isso... ah:: as crianças que m dessa escola o muito
boas... mas eles não escrevem com a letrinha de o... o pprio professor da primeira
série... aí eles vão pra primeira série... acontecem várias coisas [...] (2-11-2005).
Acreditava, ainda, que era preciso avançar no trabalho com as turmas que
antecedem o pré. Seus argumentos, com relação a essa demanda, foram
explicitados em reuniões com toda a equipe na escola e confirmados em nossos
momentos de conversa. A esse respeito, assim se posicionou:
Prof. 1: eu acho que é preciso avançar no trabalho com as turmas que antecedem o pré... a
maioria das professoras fez o PROFA... tem possibilidade de mudar... conversar mais
com as crianças na roda... trabalhar a autonomia das crianças... falta isso... existem
projetos de literatura na escola que tá muito preocupado com a estica do livro... e não
com o momento de prodão das crianças... pra mim é o que é mais importante... eles
chegarem nesse vel de discutir... não é assim que é legal... eu tenho uma idéia
melhor... é isso que eu quero... dar opinião... [...] ele vai produzir um texto... o vai
escrever o texto ‘o Ivo viu a uva’... ele vai escrever um texto baseado nas suas opiniões
sobre determinado assunto... você não vai ter que ficar construindo o texto com ele... ele
tem uma bagagem de discussão [...] (2-11-2005).
Com esse depoimento, a professora situou parte dos conflitos vividos não apenas no
interior da sala de aula, mas também nas relações experimentadas pelos diferentes
sujeitos que atuavam nesse espaço/tempo de produção de saberes, idéias, fazeres.
Deixou entrever, em seu discurso, uma concepção de linguagem que abarcava o
sujeito produtor de textos e não o reprodutor de palavras e frases
descontextualizadas. Essa concepção, embora permeada por uma multiplicidade de
enfoques, também pode ser observada em sua prática pedagógica, durante o período
em que esteve mediando o processo ensino aprendizagem na turma pesquisada.
A Professora 2, cuja idade também estava entre 30 e 31 anos, tinha pouca
experiência no campo educacional. Antes de entrar na escola em que a pesquisa
estava sendo realizada, trabalhava apenas em um centro de educação infantil do
Sistema Municipal de Ensino de Vila Velha, um dos municípios que compõem a
125
Região Metropolitana da Grande Vitória, no qual se efetivou no ano anterior ao da
pesquisa. As outras experiências se restringiram a pequenas substituições em outra
escola pública municipal. Com crianças de seis anos de idade, a Professora 2 ainda
o havia trabalhado, assumindo a turma pesquisada em sistema de contratação
temporária, por indicação da Secretaria Municipal de Educação de Vitória (SEME).
Sua formação acadêmica era o Curso de Habilitação para o Exercício do Magistério,
com Adicional de Ciências. No ano em que a pesquisa estava sendo realizada, a
Professora 2 de participar de atividades de formação continuada em ambos os
sistemas municipais em que atuava, destacando o Curso de Extensão “Alfabetização
e Letramento”,
35
os Seminários de Educação de Vitória e de Vila Velha e o II
Simpósio da Educação Infantil realizado na UFES. Não assinava jornais, revistas
nem periódicos, situando como portadores mais usados em suas leituras a Bíblia,
alguns livros da área de educação que possuía e os jornais disponibilizados nas
escolas. Suas atividades de lazer mais freqüentes estavam circunscritas a
shoppings, cinemas e parques da cidade.
Esses aspectos de sua trajetória profissional mobilizaram a comunidade educativa
que, diante da situação instaurada, teve que se estruturar no sentido de auxiliar a
nova professora da turma em questões mais rotineiras da prática educativa, como a
organização da rotina diária na sala de aula e de ambiente propício ao andamento
das atividades, com reorganização das regras de convivência. Além disso, outro
desafio que se impunha nessa mudança foi o planejamento das atividades
priorizando as temáticas que estavam sendo desenvolvidas com a turma e os
projetos institucionais. Buscando atender a essa necessidade, a equipe técnica
reestruturou o horário de planejamento a fim de possibilitar encontros semanais
entre a Professora 2 e a professora da outra turma de seis anos e intensificou o
acompanhamento das atividades docentes.
35
A Professora 2 destacou que esse curso foi muito importante em sua trajetória profissional,
trazendo contribuições que lhe possilitaram ressiginificar sua prática com a linguagem escrita. O
curso foi ministrado pela Profª Drª Cláudia Maria Mendes Gontijo, em parceria com a Universidade
Federal do Espírito Santo, envolvendo dois centros de educação infantil. Ocorreu no período de
agosto a novembro de 2005, totalizando uma carga horária de 30h/a e teve como principal finalidade
o aprimoramento teórico e metodológico na alfabetização.
126
Toda essa demanda exigiu da Professora 2 uma nova atitude em frente aos desafios
do cotidiano escolar e uma maior proximidade com os sujeitos envolvidos nesse
processo, inclusive para atender às expectativas dos familiares que se colocaram
com maior intensidade. Nesse período, buscamos maior aproximação com a
professora, ajudando-a a refletir acerca das situações vividas durante o processo de
ensino aprendizagem, cooperando nas demandas práticas da sala de aula e na
(re)organização das normas de convivência.
Na opinião da Professora 2, a aprendizagem da leitura e da escrita também era
muito importante, uma vez que
Prof. 2: [...] o mundo cobra isso da gente... a gente tem que ter uma leitura... saber
escrever... pra estar inserido no mercado de trabalho... senão... hoje em dia...
quem não tem uma boa leitura... uma boa... não sabe ler... não sabe escrever...
hoje em dia tudo é concurso... né?... você tem que tá preparado pra tudo... tem que
ter o curso superior... tem que tá preparado... se não tem uma boa leitura... não
sabe escrever fica para trás [...] (19-12-2005).
A concepção utilitarista da alfabetização também se presentificou na fala da
Professora 2. Esse aspecto nos remete a considerar que, embora apresentando
experiências e formações profissionais diferentes, a visão pragmática de
alfabetização pôde ser observada nos discursos das duas professoras, evidenciando
que os mecanismos de veiculação das ideologias dominantes no campo da
alfabetização ocorrem por diferentes esferas de circulação. Partindo de uma ênfase
nas relações econômicas e sociais impostas pelo mercado de trabalho, a razão
explicitada pela Professora 2 revela a dinâmica social em que se instauram as
relações de exclusão e de poder que, provavelmente, também foram
experimentadas por ela em sua trajetória de vida profissional.
Mesmo considerando que a aprendizagem da leitura e da escrita era fundamental
para as crianças, apresentando argumentos que enfocaram uma funcionalidade
pragmática dessa forma de linguagem, a Professora 2 não tinha clareza do trabalho
a ser desenvolvido com as crianças em sala de aula, explicando que não tinha nada
em mente quando assumiu a turma em que a pesquisa estava sendo realizada.
Tomando como justificativa sua pouca experiência no campo educacional, ela
explicou, ainda, que contou com a ajuda de algumas pedagogas para trabalhar com a
127
leitura e a escrita espontânea, afirmando que considerava importante “[...] sempre
pedir pra escrever... mas espontânea... nada de cópia [...]” (PROF. 2, 19-12-2005).
Dentre os materiais que costumava consultar para subsidiar seu trabalho com as
crianças, estavam os livros que traziam relatos de experiência com a Pedagogia de
projetos, livros que abordavam questões relacionadas com a Psicopedagogia e a
Psicomotricidade, a revista Nova Escola e algumas coleções didáticas. Conhecia o
Referencial Curricular para a Educação Infantil, pois participou de grupos de estudo que
tomou por base esse documento, acreditando que ele tamm oferecia importantes
contribuições. Devido à sua curta trajetória no Sistema Público Educacional, não teve
acesso ao Programa de Formação de Professores Alfabetizadores (PROFA) nem
tampouco às diretrizes curriculares do Sistema Municipal.
Embora esses aspectos tenham trazido implicações para o trabalho realizado em
sala de aula, outros fatores contribuíram para a efetivação de uma prática com a
linguagem escrita que tomou por base a unidade textual. Dentre eles, o
compromisso e a participação da professora em diferentes trabalhos de formação,
especialmente no Curso de Extensão Alfabetização e Letramento, cujo tempo foi
mais prolongado e favoreceu a maior aproximação com as práticas, além das
relações que foram se constituindo no interior da escola, inclusive em decorrência de
nossa presença em campo. Ao final do ano, a professora conseguia observar que o
trabalho com textos foi privilegiado em suas práticas, reconhecendo que organizou
atividades em que foram tomados:
Prof. 2: eh:: jornais... recortes de jornais... informativos né?... de
jornais... eh:: mais recorte
de jornal... escrita espontanea né... eh:: poesia... eu trabalhei bastante com poesia
né?... jornais... poesias... eh:::: notícias... eu tava comentando no grupo de estudo...
eh... que eu fiz uma atividade com as crianças do pré... a pré-escola... comentei
sobre as crianças abandonadas né?... que passou no Globo Repórter né?.... que
falou... é isso... notícias... isso [...] trabalhei com histórias infantis diversas né?...
algumas da Eva Furnari né?... e outras histórias infantis... eh:::: histórias em
quadrinhos também que a gente trabalhou... trabalhei bastante coisa com histórias
em quadrinhos... e... como é que fala?... eh:::: contos né... que fala... aquelas
historinhas que eu contei
(19-12-2005).
Para a Professora 2, além dos aspectos delineados, uma outra questão que se
constituiu em desafio para a sua prática foi a cobrança dos pais, observada “[...] na
128
expectativa deles que os filhos saem lendo... escrevendo... pra preparado para a
primeira série [...]” (PROF. 2, 19-12-2005). Além disso, ela também se sentia muito
cobrada pela escola e pelas demandas decorrentes da teoria que orientava o
trabalho com a linguagem escrita nesse contexto escolar.
Prof. 2: [...] eu senti assim... eh:: que eu tinha que dar conta dessa turma até o final do ano...
o trabalho tinha sido começado por outra professora... e... eu não entendia muito
bem... não tava muito por dentro do/da psicogênese da linguagem escrita né?... que
é o nível pré-silábico... silábico... alfabético... então eu tive que sair... eu tive que
fazer uma pesquisa... peguei até umas apostilas que eu tinha... estudei a psicogênese
da língua escrita... porque... eh:::: eu senti que a escola tinha uma grande preocupação
com a criança sair de lá bem... lendo... ou mais ou menos quase chegando ao nível de
ler... escrever... então eu tinha muita preocupação com essa escola... eu tinha que
dar conta disso ( ) foi muito difícil... pra mim foi (19-12-2005).
Essas questões interferiram diretamente no processo ensino aprendizagem da
linguagem escrita na turma pesquisada, configurando-se em diferentes movimentos
que revelaram a complexidade de concepções e enfoques que se entrelaçaram no
cotidiano das práticas educativas.
Desse modo, a caracterização da instituição e dos sujeitos envolvidos em nosso
estudo, assim como o delineamento geral do trabalho com a linguagem escrita na
turma pesquisada nos permitiram o reconhecimento dos aspectos que envolveram
as práticas educativas. Nesse contexto, o desvelamento das condições mediatas de
produção dos textos se constituiu como fator fundamental para captar o processo de
integração do singular com o social, do texto com o seu contexto, do particular como
instância de uma totalidade que é histórica, social e cultural. Essas condições serão
descritas no capítulo que se segue, quando empreenderemos esforços no sentido
de analisar os eventos mediados pela linguagem escrita, buscando a compreensão
do processo de constituição de sentidos no trabalho de escritura realizado pelas
crianças e pelas professoras na dinâmica social que permeia as práticas educativas
no interior da sala de aula.
129
5 O TRABALHO COM TEXTOS NA SALA DE AULA
Delineadas as considerações sobre os princípios teóricos e metodológicos que
orientaram nosso estudo, vamos analisar, neste capítulo, os eventos mediados pela
linguagem escrita no contexto da sala de aula pesquisada. Conforme situamos, essa
sala de aula fazia parte de uma instituição de educação infantil do Sistema Municipal
de Ensino de Vitória. A turma era composta por 23 crianças entre seis e sete anos
de idade. Partindo da perspectiva Histórico-Cultural na Psicologia e da abordagem
bakhtiniana de linguagem, a análise desses eventos teve por objetivo compreender
como se desenvolveram os trabalhos de escritura realizados pelas crianças e pelas
professoras nas práticas educativas investigadas.
Procuramos, nesse sentido, encontrar respostas para as questões que orientaram
nosso olhar investigativo em campo a fim de compreender: como as perspectivas
teóricas que orientavam o trabalho com a linguagem escrita na instituição
investigada foram apropriadas nas práticas de ensino das professoras? Quais
concepções de linguagem e de sujeito estavam subjacentes a essas práticas? Quais
aspectos eram privilegiados no trabalho com textos na sala de aula? As duas
primeiras questões serão discutidas a partir do conjunto de dados analisados neste
capítulo e as respostas à última questão serão buscadas ao longo das análises.
Assim, procuramos reunir neste relatório eventos que consideramos fundamentais
para configurar a dinâmica do trabalho com a linguagem escrita no contexto
focalizado. A opção de tomarmos os eventos como ponto de partida para as análises
se apóia na concepção bakhtiniana de ato/atividade e evento, interpretada por
Sobral (2005). Segundo o autor, o termo evento pode ser definido como [...] o
processo de irrupção de entidades, ou objetos, no plano histórico concreto [...], como
a presentificação, ou apresentação, dos seres à consciência viva, isto é, situada no
concreto” (SOBRAL, 2005, p. 26). Nessa perspectiva, o evento é compreendido
como “[...] um ato abarcador que inclui os vários atos da atividade humana ao longo
desse diálogo permanente que é a vida” (SOBRAL, 2005, p. 27).
130
Aproximando-se dessa concepção, Marcuschi (2003, p. 5)
36
caracteriza o evento
como “[...] uma grandeza sócio-interativa vista sob seu aspecto de realização
contemplando os atores e toda a organização”. Desse modo, exemplifica o autor, a
aula pode ser tomada como um evento e, nesse sentido, os que podem ser
observados são diversos. Em nosso estudo, as situações observadas em sala de
aula foram tomadas como eventos interdiscursivos decorrentes do processo de
ensino aprendizagem escolar, tendo como foco de observação os processos
mediados pela linguagem escrita, mais especificamente, os eventos em que as
crianças eram incentivadas a produzir textos escritos.
Conforme situamos, foram registrados, em nosso corpus de pesquisa, cerca de 60
eventos. Nesses eventos, ocorreram várias situações que envolveram a linguagem
escrita como objeto de ensino aprendizagem. Entretanto, considerando as
finalidades deste estudo, fizemos um levantamento dos eventos observados a fim de
identificar aqueles que objetivaram a “produção de textos”. Esse levantamento pode
ser observado no quadro apresentado no APÊNDICE Q. Nele organizamos todas as
propostas de trabalho e concluímos que, em 18,5% dos 60 eventos (11 eventos)
observados em sala de aula, as atividades de produção privilegiaram o desenho; em
28,5% dos eventos (17 eventos), a linguagem escrita foi tomada em atividades que
enfatizaram o trabalho com o sistema lingüístico (como as relações entre sons e
letras); e em 53% dos eventos (32 eventos), ocorreram situações de produção de
textos escritos. É importante explicar que a predominância de atividades que
envolveram a linguagem escrita é decorrente da nossa presença em campo somente
nos dias destinados
pelas professoras ao trabalho com essa forma de linguagem.
Nos outros dias da semana, eram desenvolvidas atividades que contemplavam
outras áreas de conhecimento, particularmente, a Matemática.
Considerando a diversidade de trabalhos produzidos, optamos por organizar as
situações de escrita observadas em sala de aula tomando como referência os
gêneros textuais trabalhados. Essa categoria foi definida a partir das idéias
desenvolvidas por Bakhtin (2003) sobre os gêneros discursivos.
36
Disponível em: <http://bbs.metalink.com.br/~/coscarelli>. Acesso em: 1º maio 2006.
131
Inseridos no campo de emergência da prosa comunicativa, os estudos sobre os
gêneros discursivos em Bakhtin enfocam a dimensão dialógica das relações
comunicativas. Nessas relações, os gêneros do discurso passam a ser concebidos
nas diversas esferas de uso da linguagem, em sua pluralidade de formas e
manifestações. Salientando a extrema heterogeneidade dos neros do discurso,
Bakhtin afirma:
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque
o inesgotáveis as possibilidades da multiforme atividade humana e
porque em cada grupo dessa atividade é integral o repertório de gênero
dos discursos, que cresce e se diferencia à medida que se desenvolve
e se complexifica determinado campo (BAKHTIN, 2003, p. 262).
Nesse sentido, Bakhtin faz uma distinção entre os gêneros discursivos primários (os
gêneros simples da comunicação cotidiana) e os secundários (os elaborados a partir
de códigos culturais complexos), ressaltando que eles se complementam e se
modificam em decorrência do contexto comunicativo, das circunstâncias de uso da
linguagem. De acordo com o autor, a noção precisa da natureza do enunciado em
geral e das particularidades dos gêneros discursivos é fundamental, uma vez que “[...]
a língua passa a integrar a vida através de enunciados concretos (que a realizam); é
igualmente através de enunciados que a vida entra na língua (BAKHTIN, 2003, p.
265). Com isso, Bakhtin reafirma a importância de se pensar os gêneros como elos
na cadeia de comunicação verbal, como discursos que dinamizam as relações
sociais e culturais entre as pessoas.
Assim, em cada campo da atividade humana existem e são utilizados gêneros que
correspondem às necessidades e condições específicas desse campo. De acordo
com Bakhtin (2003, p. 261),
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e
escritos) concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou
daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as
condições específicas e as finalidades de cada referido campo não
por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela
seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua,
mas, acima de tudo, por sua construção composicional.
O conteúdo temático, o estilo e a construção composicional estão, portanto,
interligados no todo do enunciado que se constitui na perspectiva dialógica da
132
linguagem, como a unidade real da comunicação discursiva, pois, quando nos
expressamos, o fazemos por meio de determinados gêneros do discurso. Assim,
todos os enunciados se assentam em formas relativamente estáveis e típicas do
discurso, constituindo-se em gêneros discursivos. “Eis por que a experiência
discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se desenvolve em uma
interação constante e contínua com os enunciados individuais dos outros”
(BAKHTIN, 2003, p. 294). Concebido como um elo, na cadeia da comunicação
verbal, os limites do enunciado são determinados pela alternância dos sujeitos do
discurso, uma vez que
Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam cada um a si
mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns aos
outros. Esses reflexos mútuos lhes determinam o caráter. Cada
enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os
quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva.
Cada enunciado deve ser visto antes de tudo como uma
r
r
e
e
s
s
p
p
o
o
s
s
t
t
a
a aos
enunciados precedentes de um determinado campo [...]: ela os rejeita,
confirma, completa, baseia-se neles, subentende-os como conhecidos, de
certo modo os leva em conta (BAKHTIN, 2003, p. 297, grifo do autor).
Contudo, ressalta Bakhtin, os enunciados não estão ligados apenas aos elos
precedentes, pois estes também se constroem levando em conta o seu
endereçamento, ou seja, o outro, que pode ser o interlocutor imediato ou o
representante do grupo médio, da coletividade. O dialogismo bakhtiniano, nesse
sentido, redimensiona o gênero como uma manifestação da experiência humana
que não pode ser pensada fora da sua dimensão espaço-temporal e de sua
existência cultural. Desse modo,
O gênero, na teoria do dialogismo, está inserido na cultura, em relação
ao qual se manifesta como memória criativa’ onde estão depositadas
não só as grandes conquistas das civilizações, como também as
descobertas significativas sobre os homens e suas ações no tempo e
no espaço (MACHADO, 2005, p. 159).
Nessa perspectiva, os fenômenos culturais são marcados pela mobilidade
espaço/temporal nas quais as possibilidades discursivas são infinitas e suscetíveis
de transformação, ou seja, se constituem em função das formações interdiscursivas
em determinados contextos e circunstâncias de uso. Assim, os discursos
materializados em forma de textos os gêneros textuais foram tomados em nosso
133
estudo como uma manifestação da cultura humana redimensionada no contexto das
práticas de ensino aprendizagem da linguagem escrita, pois compreendemos que o
trabalho com essa forma de linguagem no contexto escolar também se realiza em
função de escolhas efetuadas dentre as formas estáveis dos enunciados. Conforme
apontam Dolz e Schneuwly (2004, p. 51),
[...] o trabalho escolar, no domínio da produção da linguagem, faz-se
sobre os gêneros, quer se queira ou não. Eles constituem o instrumento
de mediação de toda estratégia de ensino e o material de trabalho,
necessário e inesgotável, para o ensino da textualidade.
Contudo, a circulação dos gêneros discursivos na esfera institucional escolar é
marcada por matizes singulares desse contexto comunicativo. Como materialidade
didática, o gênero se situa em um outro espaço de circulação que o desloca de seu
funcionamento real. Assim, ao tomar o texto como objeto de ensino aprendizagem, a
instituição escolar cristaliza formas específicas de comunicação provocando, de
acordo com Dolz e Schneuwly (2004), um desdobramento nas relações
interdiscursivas que se caracteriza pelo fato de que
O aluno encontra-se, necessariamente, num espaço do ‘como se’, em
que o gênero funda uma prática de linguagem que é,
necessariamente, em parte, fictícia, uma vez que é instaurada com
fins de aprendizagem (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 76).
Decorre daí, então, a necessidade de pensar os discursos concretizados em forma
de texto no contexto enunciativo das comunicações, ou seja, em suas condições
concretas de produção. Isso significa reconhecer que o texto se realiza como uma
prática interdiscursiva que envolve aspectos sociais, históricos e culturais, como
produto do trabalho entre locutores e interlocutores nas situações reais de uso da
língua que definem sua estabilidade e a sua constituição em forma de gênero.
Partindo desses pressupostos, buscamos identificar os gêneros textuais que
circularam na sala de aula, instaurando práticas com a linguagem escrita, por meio do
mapeamento geral das condições de produção dos textos produzidos pelas crianças e
pelas professoras nos dias em que estivemos em campo (conforme APÊNDICE Q).
Esse mapeamento possibilitou a identificação de situações de escrita que tomaram
por base aspectos constitutivos de determinados gêneros textuais. Desse modo, da
134
totalidade dos textos coletados e arquivados em nosso corpus de pesquisa,
encontramos produções que se configuraram em: história em quadrinhos (49 textos),
reescrita a partir de histórias em quadrinhos (68 textos), texto de opinião (108 textos),
relatório (7 textos), lista de palavras (29 textos), reconto (20 textos), relato pessoal (15
textos), bilhete (4 textos), carta de solicitação (10 textos), poema (1 texto).
Podemos observar que uma considerável diferença quantitativa dos textos
correspondentes a cada gênero. Essa diferença se justifica por duas razões:
primeiro pelas condições de produção dos textos que, em determinadas
circunstâncias, ocorria individualmente, em duplas, em pequenos grupos ou ainda se
constituía em uma produção coletiva envolvendo todas as crianças; segundo, devido
à freqüência de situações observadas em que ocorreram tais propostas de
produção, conforme mostra a tabela que se segue.
Situações de escrita observadas em sala de aula
Gênero textual F %
Texto de opinião
História em quadrinhos
Reescrita de histórias em quadrinhos
Relatório
Lista de palavras
Reconto
Relato pessoal
Bilhete
Carta de solicitação
Poema
08
06
06
03
03
02
01
01
01
01
25,00
18,75
18,75
9,38
9,38
6,26
3,12
3,12
3,12
3,12
Total 32 100
Os dados observados na tabela indicam que alguns gêneros textuais tiveram maior
repercussão no trabalho com a linguagem escrita no universo pesquisado, por
exemplo, as histórias em quadrinhos e os textos de opinião. Considerando os
contextos de produção, que serão delineados no decorrer das análises, acreditamos
que a predominância de determinados gêneros ocorreu, particularmente, em função
das demandas institucionais. Conforme situamos na caracterização da instituição, os
profissionais da escola discutiam e definiam projetos de trabalho para serem
desenvolvidos no decorrer do ano letivo, em todas as classes. Nesse sentido, foram
definidos dois grandes projetos que orientaram o processo de ensino aprendizagem
135
na sala de aula pesquisada: o projeto de literatura que envolveu as histórias em
quadrinhos e o projeto que abordou a temática dos direitos das crianças.
Embora tenha ocorrido certa ênfase em determinadas situações de escrita,
consideramos que o trabalho com textos se configurou em uma dimensão relevante
do processo de ensino aprendizagem da linguagem escrita, suscitando importantes
indícios para compreendermos a dinâmica das práticas educativas investigadas.
Reconhecendo, contudo, os limites desta pesquisa, consideramos dois critérios
fundamentais para a organização dos dados a serem analisados: a) a abordagem
intencional e sistemática do gênero, focalizando aqueles que foram tomados como
objeto de estudo no interior da sala de aula; b) a recorrência das propostas de
produção, evidenciando os neros textuais que mais se manifestaram na sala de
aula investigada. A partir desses critérios, privilegiamos nas análises as histórias em
quadrinhos e os textos de opinião.
Assim, voltamos nosso olhar para as condições de produção dos textos buscando
evidenciar: como eram delineadas essas condições? Quais movimentos suscitavam
entre as crianças? Como as crianças respondiam a essas propostas de produção?
Quais aspectos dessa atividade interdiscursiva eram concretizados nos textos-
produto dessa ação? Como as crianças materializavam seus discursos a partir das
propostas enunciadas pelas professoras? O que revelavam em seus textos e como
se constituíam, nessa atividade, sujeitos de idéias, opiniões, saberes, valores,
cultura?
Para proceder às análises das situações de trabalho com a linguagem escrita,
tomamos por base um percurso descritivo-explicativo abordando os seguintes
aspectos:
a) o contexto imediato de produção;
b) os processos que se desenvolveram durante o trabalho de escritura;
c) os textos resultantes do processo de produção.
No delineamento do contexto imediato, contemplaremos a análise das condições de
produção dos textos, focalizando as instruções explicitadas pelas professoras para o
trabalho de escritura. Para a análise dessas condições, tomaremos como referência
136
a proposta apresentada por Geraldi (2003). Ao discorrer sobre o processo de ensino
aprendizagem da língua, o autor explica que, no trabalho de produção de textos na
sala de aula, é essencial que sejam configuradas condições para que:
a) se tenha o que dizer;
b) se tenha uma razão para dizer o que se tem a dizer;
c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer;
d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o que
diz para quem diz [...];
e) se escolham as estratégias para realizar (a), (b), (c) e (d)
(GERALDI, 2003, p. 137).
Considerando, portanto, que esses elementos se constituem em condições
fundamentais para a produção de textos, analisaremos se, como e quando essas
condições foram enunciadas pelas professoras e que efeitos provocaram nas
crianças, buscando descrever e interpretar os movimentos e as relações que se
desenvolveram nos momentos de produção dos textos, tomando por base as
situações de interação verbal que se instauraram durante o trabalho de escritura.
Por fim, tomaremos, para análise, os textos produzidos pelas crianças e pelas
professoras, buscando dar visibilidade às escolhas lingüístico-discursivas e aos
modos de articulação dos enunciados, tendo em vista a constituição de sentidos dos
textos.
5.1 AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
A existência cultural do nero história em quadrinhos (HQ) em nosso meio social é
recente. Embora a história da humanidade tenha sido registrada por recursos
icônicos, desde o remoto tempo das cavernas, a concepção seqüencial das histórias
em quadrinhos e, portanto, a sua reprodução gráfica em grande escala surgiu a
partir do século XIX. Higuchi (1997), em artigo intitulado Super-Homem, Mônica &
Cia publicado no volume 3 da coleção Aprender e ensinar com textos, aponta que
o marco histórico dos quadrinhos no cenário brasileiro ocorreu com as histórias do
personagem “Nhô Quim”, do caricaturista italiano Angelo Agostini (1869). Outra
ocorrência datada nesse período foi a do norte-americano Richard Outcault (1896) e
seu famoso personagem “Yellow Kid”.
137
Como uma nova forma de manifestação cultural, as histórias em quadrinhos foram
reconhecidas no mercado editorial de forma progressiva, sendo, inclusive,
censuradas por apresentarem palavrões, cenas de sexo, valores políticos e
ideológicos contraditórios aos veiculados pela classe dominante. No caso brasileiro,
de acordo com as informações apresentadas por Higuchi (1997),
principalmente na
década de 1960, as histórias em quadrinhos foram incluídas no rol de obras literárias
de grande eficácia no movimento nacionalista com intensos embates no mercado
editorial, devido ao monopólio das obras norte-americanas. Atualmente, além dos
clássicos americanos que tiveram intensa penetração no cenário brasileiro, circulam
entre nós uma variedade de histórias em quadrinhos de autores que se tornaram
muito conhecidos, como Maurício de Souza e Ziraldo.
A divulgação em veículos de comunicação massiva especialmente em jornais a
introdução de diversos estilos e a integração da linguagem verbal ao texto visual
foram aspectos que marcaram as produções contemporâneas das histórias em
quadrinhos. Segundo Mendonça (2005), após a consolidação das histórias em
quadrinhos em jornais, as publicações também passaram a ocorrer em outros
suportes textuais,
37
como os gibis e os almanaques, tipos de revistas dedicadas ao
gênero, em livros, em revistas variadas e até em meios virtuais. Devido às suas
características textuais, as histórias em quadrinhos são facilmente identificáveis.
Contudo, considerando o seu funcionamento discursivo, esse gênero, a exemplo de
outros, também apresenta certa complexidade. Desse modo, que características são
constitutivas das histórias em quadrinhos?
No artigo publicado por Cademartori (2003), intitulado Criança e quadrinhos,
encontramos contribuições interessantes acerca dos aspectos textuais que orientam
a leitura e a produção de histórias em quadrinhos. Segundo a autora, as histórias em
quadrinhos agregam elementos da cultura literária ficcional que acenam para estilos
humorísticos, eróticos e de aventura ancorados em uma tipologia textual que
envolve, predominantemente, aspectos da ordem do narrar por meio de uma
sucessão de imagens fixas e organizadas em seqüência.
37
Neste estudo tomamos o termo suporte textual a partir das idéias explicitadas por Marcuschi (2003,
p. 8), reconhecendo-o como “[...] um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base
ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”. Ou seja, uma superfície na qual se
mostra um texto.
138
Nas histórias em quadrinhos, a seqüência narrativa é delineada em vinhetas que se
sucedem formando tiras de imagens separadas por espaços em branco e/ou por um
traço. Esse enquadramento das imagens permite recortar o espaço/tempo dos
acontecimentos e das ações que é conectado não apenas pela contigüidade das
vinhetas, mas também pelos elementos verbais e visuais que constituem o todo de
sentido do texto. Assim,
Ocorre na história em quadrinhos um intercurso entre códigos. O
verbal remete a unidades que a visão apreende. A imagem sugere o
que o verbal não diz. Entre o visual e o verbal são estabelecidas
interações mediadas por relações lógicas, e são essas relações que,
ao transpor o que é exclusividade de cada código, instituem o plano
da narratividade
(CADEMARTORI, 2003, p. 51).
De acordo com Higuchi (1997), a mensagem lingüística dos quadrinhos compreende
o aspecto narrativo e o diálogo. O aspecto narrativo engloba a descrição do quadro,
da situação, das ões e os marcadores de tempo. Geralmente, esses elementos
são dispostos fora da cena. O diálogo ocorre por meio dos balões incorporando o
texto verbal à imagem. O balão é um elemento das histórias em quadrinhos muito
utilizado e, por isso, se constitui em um traço bastante expressivo desse gênero. Ele
não se reduz ao conteúdo lingüístico, uma vez que apresenta formas, apêndices e
contornos variados que indicam o discurso direto, ou seja, a fala das personagens
em seus diferentes modos: em tom de voz normal, em voz baixa, sussurrada, alta,
gritos, distante, por telefone, pensamentos, lembranças, devaneios. Os balões
também revelam emoções e situações que suscitam raiva, medo, alegria, tristeza,
susto, dor, etc.
Os aspectos lingüísticos também possuem algumas convenções peculiares que
contribuem na prodão de sentidos do texto, por exemplo, o tamanho e a espessura
das letras e as onomatopéias. Nesse caso, os tipos de letras, as onomatopéias e os
balões se transformam em ícones que contribuem na produção de sentidos do texto de
forma indireta. Segundo Cademartori, os aspectos lingüísticos atuam nas histórias
em quadrinhos com a função de diminuir a polissemia da imagem, pois “[...] reduz
seu grau de ambigüidade e identifica elementos narrativos, como perfil das
personagens, relações de tempo e de espaço, evolução da trama” (CADEMARTORI,
2003, p. 49).
139
Quanto ao texto visual, podemos dizer que esse se constitui em recurso discursivo
predominante nas histórias em quadrinhos. Higuchi (1997), tomando as
contribuições de Cagnin, numa publicação de 1975, explica que a linguagem visual
das histórias em quadrinhos inclui sinais de tipo natural, como a nuvem escura, e de
tipo artificial, como os ícones e os símbolos. Os ícones são figurativos, imitativos e
servem para representar o real. Os símbolos não se relacionam diretamente com o
real e sua significação é baseada em acordos. Por exemplo, uma lâmpada acesa
pode se transformar em um símbolo que representa uma boa idéia.
As imagens, de acordo com a abordagem apresentada por Higuchi (1997), podem
ser classificadas, de forma genérica e dependendo do grau de distanciamento da
realidade, como realistas, estilizadas ou caricatas, com gradações e enfoques sutis
que possibilitam entrecruzamentos entre elas. Ainda é importante destacar que as
imagens o apresentadas por meio de diferentes enquadramentos, ou seja, por
diferentes planos pictóricos. Podem aparecer em detalhes ou pormenores, em
primeiro plano ressaltando a cabeça e os ombros das personagens, em plano médio
ou aproximado que produz um pequeno afastamento da figura, em plano americano
mostrando a figura até os joelhos, em plano de conjunto apresentando o corpo
inteiro, em plano geral ou panorâmico englobando todo o cenário, em perspectiva ou
em planos plongé e contre-plongé focalizando as personagens de cima e de baixo.
São esses planos que marcam o ritmo das imagens aproximando, distanciando ou
deslocando personagens e cenários. Essas características marcantes das histórias
em quadrinhos mudam de acordo com o público leitor. No caso das histórias infantis,
o ritmo é mais lento, sem grandes variações de planos, os quadros apresentam
tamanhos mais regulares e a seqüência é mais convencional.
Outro aspecto que caracteriza esse gênero textual é a expressão sintética dos signos
verbais e visuais. Nas histórias em quadrinhos, geralmente são privilegiados traços
característicos das imagens e um mínimo de palavras para as falas do narrador e das
personagens. Em algumas produções, a narrativa acontece no limite de três ou quatro
vinhetas, reduzindo-se a efeitos de narração que se complementam em outras
publicações, constituindo-se em episódios rápidos, como as tiras publicadas em
jornais. A repetição também é um fator característico dos quadrinhos. Por meio da
repetição de personagens, de temas, de cenários, são instauradas relações entre uma
140
história e outra, possibilitando o desenvolvimento e a continuidade das aventuras.
Desse modo, considerando esses elementos típicos, as histórias em quadrinhos
podem ser caracterizadas “[...] como um gênero icônico ou icônico-verbal narrativo cuja
progressão temporal se organiza quadro a quadro” (MENDONÇA, 2005, p. 199-200).
Esses aspectos constitutivos do gênero situam as histórias em quadrinhos no campo
da produção cultural intermidiática atingindo um auditório social caracterizado,
predominantemente, pelo público infanto-juvenil. A familiarização com o universo dos
quadrinhos e suas personagens ocorre, geralmente, antes mesmo de a criança ter
acesso à narrativa impressa por meio da apropriação temática decorrente das
comercializações de roupas, calçados, materiais escolares, ornamentos para festas,
brinquedos e tantos outros itens que circundam o cenário mercadológico infantil.
Além desses fatores, as crianças também desfrutam de imagens veiculadas pela
televisão, especialmente nos desenhos animados que incorporam personagens das
histórias em quadrinhos.
Atualmente, devido à aproximação com o universo infanto-juvenil, as histórias em
quadrinhos têm sido incorporadas com mais intensidade ao contexto escolar. No
caso pesquisado, a entrada das histórias em quadrinhos na sala de aula foi
decorrente de uma escolha feita pela Professora 1, conforme anotações em diário de
campo (6-5-2005, p. 16). Buscando atender à demanda institucional de trabalhar
com a literatura infantil por meio de projetos, a Professora 1 fez opção por esse
nero, porque suas características textuais poderiam aproximar as crianças da
leitura e da escrita de maneira mais prazerosa. Além disso, de acordo com as
justificativas apresentadas pela professora, as histórias em quadrinhos também abrem
diferentes possibilidades de registro, com uso de recursos variados, o que, em sua
opinião, atenderia às necessidades da turma em processo inicial de alfabetização.
Com relação aos usos desse gênero no contexto escolar, Mendonça (2005) alerta
para o fato de que, como as histórias em quadrinhos apresentam semioses distintas,
articuladas por meio de recursos verbais e não-verbais que contribuem para o
processo de constituição de sentidos, tornando-as mais acessíveis às crianças em
fase inicial de apropriação da linguagem escrita, sua entrada no espaço escolar
141
ocorre, em muitos casos, influenciada por essa relativa facilidade, provocando a “[...]
falsa premissa de que ‘ler quadrinhos é muito fácil’ [...]” (MENDONÇA, 2005, p. 202).
De acordo com Marcuschi (2005), o florescimento da cultura impressa e o crescente
processo de industrialização das sociedades modernas provocaram a ampliação e a
complexificação dos gêneros, tanto os orais como os escritos. Sua integração
funcional nas culturas em desenvolvimento evidencia que os gêneros “[...] caracterizam-
se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais do que por
suas peculiaridades lingüísticas e estruturais [...]” (MARCUSCHI, 2005, p. 20). E isso
o quer dizer que podemos desprezar as suas peculiaridades formais, mas que
estas se constituem em função das condições reais da enunciação, o que nos obriga
a reconhecer que, “[...] quando denominamos um gênero textual, não denominamos
uma forma lingüística e sim uma forma de realizar lingüisticamente objetivos
específicos em situações sociais particulares” (MARCUSCHI, 2005, p. 29).
Assim, tendo em vista os aspectos constitutivos do gênero, suas esferas de
circulação e finalidades comunicativas, compreendemos que a sua inserção no
espaço escolar, como objeto de ensino e de aprendizagem, requer, como explicam
Dolz e Schneuwly (2004), uma articulação coerente entre as práticas sociais de
linguagem e as atividades de linguagem dos aprendizes. De acordo com os autores,
“[...] dentre as diversas atividades humanas, a atividade de linguagem funciona como
uma interface entre o sujeito e o meio e responde a um motivo geral de
representação-comunicação” (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 73, grifo dos autores).
Partindo da perspectiva bakhitiniana de linguagem, Dolz e Schneuwly (2004, p. 74,
grifo dos autores), defendem que “[...] é através dos gêneros que as práticas de
linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes”. Entretanto, a definição
de um gênero, como suporte da atividade de linguagem, aponta, necessariamente,
um trabalho que leva em conta seus elementos constitutivos, reconhecidos pelos
autores em três dimensões essenciais:
1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam diveis por meio
dele; 2) os elementos das estruturas comunicativas e semióticas
partilhadas pelos textos reconhecidos como pertencentes ao nero; 3)
as configurações espeficas de unidades de linguagem, traços,
principalmente, da posão enunciativa do enunciador e dos conjuntos
particulares de seqüências textuais e de tipos discursivos que formam
sua estrutura (DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 75).
142
Nessa perspectiva de trabalho com gêneros na sala de aula, entram em cena, então,
as capacidades de linguagem dos sujeitos, pois a produção de um gênero, numa
determinada situação de interação, pressupõe, de acordo com Dolz e Schneuwly
(2004), a capacidade de ação, a mobilização de modelos discursivos e o domínio de
operações lingüístico-discursivas. Considerando as semioses que configuram os
enunciados materializados em forma de histórias em quadrinhos, esses aspectos
também são essenciais para o desenvolvimento das atividades de linguagem no
contexto das práticas educativas institucionalizadas, evidenciando a necessidade de
concilião de estratégias de ensino adequadas, ou seja, “[...] a busca de intervenções
no meio escolar que favoreçam a mudaa e a promoção dos alunos a uma melhor
mestria
38
dos gêneros e das situações de comunicação que lhes correspondem”
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 53).
Desse modo, como foram organizadas as situações de ensino aprendizagem com o
gênero histórias em quadrinhos na sala de aula pesquisada? O trabalho com
quadrinhos teve início no primeiro bimestre do ano letivo, estendendo-se até o final
do ano. Sua circulação, no interior da sala de aula, ocorreu por meio de diferentes
suportes textuais, como gibis, almanaques, jornais e livros. As histórias também foram
apresentadas às crianças em cartazes, em transparências e por meio de cópias
xerografadas. A partir dessas histórias, foram desenvolvidas várias atividades que, de
maneira geral, se configuraram em torno de duas principais demandas: a produção
de histórias em quadrinhos e a reescrita a partir de histórias em quadrinhos.
Passaremos, então, a analisar como se desenvolveram essas práticas de produção
de textos na sala de aula, buscando compreender o processo de constituição de
sentidos que permeou o trabalho dos sujeitos.
5.1.1 A produção de histórias em quadrinhos
Iniciaremos nossas análises considerando os eventos registrados em nosso corpus
de pesquisa em que foram instauradas as situações de produção de histórias em
quadrinhos. Por meio do levantamento realizado e explicitado no Quadro 1,
podemos observar um panorama dessas situações:
38
O termo mestria foi usado inicialmente por Dolz (1994) e remete à idéia de domínio em Vigotski.
143
Evento: data Contexto de produção Proposta de produção
02: 11-5-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Dia das mães
Compor uma história com quatro
quadrinhos, observando começo, meio e
fim
07: 31-5-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Contar (em pequenos grupos) uma história
em três quadrinhos, com começo, meio e
fim, usando balões de fala
20: 19-7-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Contar uma história diferente, usando os
balões de fala pesquisados em aula
23: 4-8-2005
Projeto de literatura:
Fábula O galo e a raposa
Contar a história do galo e da raposa por
meio de quatro quadrinhos, usando balões
de fala
47: 10-11-2005
Projeto de literatura:
Narrativa em versos O
que tem nessa venda?
Compor uma história em quadrinhos, com
quatro cenas, contando uma situação de
compra, com balões e onomatopéias
53: 29-11-2005
Projeto de literatura:
Histórias da Eva Furnari
Produzir uma história em quadrinhos, com
três cenas, no estilo da Eva Furnari
As seis situações observadas, conforme indica esse levantamento, situam-se em um
contexto de produção que teve como ponto de partida o desenvolvimento do projeto
de literatura. Essa abordagem pedagógica também foi articulada a outras situações
que emergiram na sala de aula, como o Dia das Mães e o trabalho com livros de
literatura infantil. De maneira geral, as propostas de produção focalizaram
capacidades discursivas da ordem do narrar, tomando como estratégia de dizer
alguns recursos lingüísticos e icônicos que foram explorados em várias situações na
sala de aula. Essas situações abrangeram, de modo geral, a leitura e a reescrita de
histórias em quadrinhos e a elaboração de cartazes com elementos característicos
do gênero. Iremos situar, no decorrer de nossas análises, alguns desses momentos,
pois se constituíram em condições de produção relevantes para o trabalho de
escritura que tomou como base esse gênero textual.
Nessas situações de trabalho com as histórias em quadrinhos, as professoras
consideraram uma seqüência de ensino que consistiu, de acordo com nossas
observações, numa proposta progressiva de trabalho que privilegiou alguns
aspectos composicionais do gênero. Inicialmente, foram considerados pela
Professora 1 os seguintes aspectos: a seqüência início, meio e fim em narrativas
curtas, título, nome do autor, o uso de balões de fala, a fala do narrador. A
Professora 2, considerando o trabalho que estava sendo desenvolvido pela
Professora 1, deu continuidade ao projeto de literatura privilegiando: a seqüência
Quadro 1 - Situações de produção de histórias em quadrinhos
144
começo, meio e fim, título, autoria, o uso de balões de fala, os traços narrativos, as
onomatopéias e sinais de tipo artificiais, como ícones e símbolos.
Quando iniciamos a observação participante em sala de aula, a Professora 1
havia realizado alguns trabalhos envolvendo as
histórias em quadrinhos. Como era uma prática da
escola valorizar os trabalhados produzidos nos
projetos de literatura com encadernações ou
confecção de livros de histórias da turma, as
produções das crianças estavam sendo guardadas
em envelopes pessoais decorados com desenhos
feitos pelas crianças, como é mostrado na Foto 13.
Sempre que as crianças produziam histórias em
quadrinhos, a Professora 1 conversava com elas a
respeito de suas elaborações.
A primeira vez que observamos uma interação com quadrinhos em sala de aula,
conforme levantamento apresentado, foi no dia 11 de maio de 2005, o segundo dia
de observação participante. Com a intenção de explorar a noção de começo, meio e
fim das histórias em quadrinhos, visando à organização das idéias na produção de
textos, a professora retomou, nesse dia, alguns aspectos que haviam sido
trabalhados nas produções anteriores, como o título, o nome do autor, a organização
das idéias no texto. O registro desse evento encontra-se em nosso diário de campo
(p. 39-45) e foi organizado no dia seguinte à observação, a partir das anotações em
campo e fotos de quatro produções textuais.
Os trabalhos tiveram início na roda de conversa, quando a professora propôs a
leitura da história em quadrinhos produzida pelo escritor Amarildo e publicada no
Jornal A Gazeta,
39
em 8 de maio de 2005. O conteúdo da história foi relacionado
com o Dia das Mães, temática também em foco na sala de aula, a partir da oficina
39
Jornal local de grande circulação no Estado do Espírito Santo, fundado em 11 de setembro de
1928, por Thiers Vellozo. Dentre os projetos de responsabilidade social desenvolvidos por esse jornal,
está o Programa A Gazeta na sala de aula, que teve início no ano de 1995, com o objetivo de difundir
o hábito de leitura entre os jovens. Nesse projeto, são promovidos encontros de capacitação de
professores com distribuição de jornais para serem usados como material didático em escolas da
Rede Municipal e Particular.
Foto 13 - Envelope decorado por Cris
145
de arte realizada com as mães, no dia 6-5-2005. Essa oficina foi organizada pelos
profissionais da escola em homenagem às mães e provocou outras situações de
ensino aprendizagem em sala de aula, com discussões na roda de conversa e
produção de cartaz com nomes das brincadeiras preferidas das mães, apontadas
nos trabalhos produzidos na oficina. Segue imagem da história (Foto 14):
Antes de apresentar o texto para as crianças, a professora fez comentários sobre o
projeto de literatura, retomando com elas as produções anteriores. Fez uma breve
avaliação desses trabalhos, lembrando os elementos que vieram acrescentando nos
textos: título, nome do autor, começo-meio-fim das histórias. Depois explicou que
iriam conhecer outra história em quadrinhos, entregando para as crianças os blocos
de atividades nos quais havia disponibilizado as cópias do texto para leitura.
Solicitou que elas observassem o texto, procurando compreender o que dizia a
história. Nesse instante, Mat leu o nome do autor escrito sobre a tira assim: marido.
A professora perguntou o que o havia levado a proceder à leitura dessa maneira. Ele
explicou que era a letra M” e que terminava com “O”. Ela pediu que lesse
novamente e, com a ajuda dos colegas, concluiu que era Amarildo. Então, ela
perguntou-lhes quem seria Amarildo e as crianças sugeriram que era o autor. A
professora explicou que Amarildo era um escritor capixaba e que sempre escrevia
Foto 14 - História em quadrinhos de Amarildo
Fonte: A GAZETA (8
-
5
-
2005)
146
histórias em quadrinhos para o jornal A Gazeta, mostrando onde estava escrito o
nome do jornal, o local e a data da publicação do texto, refletindo com as crianças
acerca da importância de verificar esses aspectos para saber quando e onde foi
publicado o texto.
Em seguida, pediu às crianças que observassem a cena da primeira vinheta, tentando
imaginar o que a personagem estaria fazendo no ponto de ônibus. Nesse momento,
as crianças começaram a conversar sobre o texto, o que o menino estava segurando
e o que iria fazer com o presente. A professora ouvia as crianças e fazia perguntas
sobre o que estava acontecendo na história, tecendo comentários acerca do conteúdo
do texto. Marc, então, sugeriu que o menino foi encontrar a sua mãe no trabalho,
porque era o Dia das es. A professora explicou às crianças que, ao fazerem a
leitura do texto, estavam recontando a história do jeito deles e, desse modo, ela
também queria contar a sua versão. Ao narrar a história, foi acrescentando outros
elementos ao texto, como nome da personagem principal (escolheu o nome do filho),
o que ele disse para a mãe, o que a mãe falou ao receber o presente, mostrando às
crianças que, embora o texto fosse composto apenas por imagens, eles poderiam
efetuar a leitura, enriquecendo a narrativa com outros elementos.
A partir dessa interação inicial com o texto, a professora explorou a sua composição
em forma de quatro cenas, levantando o seguinte questionamento: “Se a história
tem quatro quadrinhos... qual é o começo... o meio e o fim da história?” As crianças
procuraram resolver a questão conversando entre si e apresentando várias opiniões
na roda. A sugestão de Mat de que “[...] o primeiro quadrinho era o começo da
história... o segundo era o meio... o terceiro era outra parte e o último era o fim” foi
bem recebida pelas crianças e pela professora que concluiu a discussão explicando
que “[...] no meio das histórias... podem acontecer muitas coisas... como numa
novela... por exemplo... por isso é necessário ter mais partes” (anotações em diário
de campo, p. 40).
Notamos que, nessa interação com o texto, a professora apresentou dados sobre o
suporte, a autoria da obra, o que dizia o texto, sua estrutura narrativa (enfocando o
começo, o meio e o fim), iniciando, portanto, um processo de reconhecimento do
texto. Entretanto, o processo de produção de sentidos na leitura não passa apenas
147
pelo reconhecimento dos sentidos do texto, mas, conforme aponta Geraldi (2003),
pela tecedura dos fios que se realiza num processo dialógico com o texto, no qual os
leitores também entrelaçam as suas experiências, as suas idéias e opiniões acerca
do que quis dizer o autor. Perguntas do tipo: por que o menino foi levar o presente
da mãe em seu local de trabalho? O que poderia ser esse presente? Por que a mãe
trabalha? Esse trabalho é legal? É comum vermos mulheres exercendo essa
profissão? Por quê? A sua mãe trabalha fora de casa? Por quê? Qual é a profissão
dela? Você já fez alguma surpresa para a sua mãe? O que aconteceu? Como ela
reagiu? dentre outras, poderiam contribuir com a instauração de um movimento
interlocutivo para além dos reconhecimentos dos sentidos do texto, pois,
É o encontro destes fios que produz a cadeia de leituras construindo os
sentidos de um texto. E como cadeia, os elos de ligação o aqueles
fornecidos pelos fios das estragias escolhidas pela experiência de
prodão do outro (o autor) com o que o leitor se encontra na relão
interlocutiva de leitura. A prodão deste, leitor, é marcada pela
experiência do outro, autor, tal como este, na prodão do texto que se
oferece à leitura, se marcou pelos leitores que, sempre, qualquer texto
demanda. Se assim não fosse, não seria interlocução, encontro, mas
passagem de palavras em paralelas, sem escuta, sem contrapalavras:
reconhecimento ou desconhecimento, sem compreeno (GERALDI,
2003, p. 166-167).
Assim, ao ocupar os espaços em branco deixados pelo autor, o leitor se constitui
como sujeito e, nesse processo, contribui para a concretização dos sentidos do texto
e, conseqüentemente, do trabalho do autor. A leitura, nessa perspectiva, se integra ao
processo de produção, incidindo, de acordo com Geraldi (2003, p. 171), “[...] sobre ‘o
que se tem a dizer’ porque lendo a palavra do outro, posso descobrir nela outras formas
de pensar que, contrapostas às minhas, poderão me levar à constrão de novas
formas, e assim sucessivamente”. Ao nos distanciarmos dessa perspectiva dialógica,
corremos, conforme acentua o autor, o grave risco de tomar o texto como pretexto para
o ensino da língua, como um “[...] meio para estimular operações mentais e não um
meio de, operando mentalmente, produzir conhecimentos [...]” (p.170).
As implicações decorrentes dessa interação inicial com o texto serão evidenciadas a
partir da análise das propostas de trabalho apresentadas pela professora, uma vez
que, dando continuidade ao planejamento do dia, foram desencadeadas duas
atividades de produção textual: a primeira, uma situação de reescrita da história em
148
quadrinhos do Amarildo que será analisada mais adiante; a segunda atividade, a
produção de uma história com quatro quadrinhos, considerando a seqüência
começo, meio e fim. Essa idéia foi novamente retomada pela professora, ao
proceder à proposta de produção com explicações sobre os trabalhos anteriores que
contemplaram criações livres e criações com três cenas.
Desta vez, então, teriam que ampliar essa noção seqüencial produzindo uma história
com quatro quadrinhos e, como estavam conversando sobre o dia das mães, o tema
da história deveria ser esse. Como, em alguns dias antes desse evento, as crianças
haviam participado de uma oficina de artes com as mães produzindo trabalhos com
o tema brincadeira de criança, a professora lembrou ainda que poderiam criar uma
história sobre as mães envolvendo esse mesmo
tema. As crianças ouviram as
explicações da professora, levantando dúvidas sobre a seqüência estipulada. A
professora, então, retomou o exemplo da novela, suscitando burburinhos na sala de
aula e indicações das crianças de outras novelas que estavam sendo exibidas pela
Rede Globo de Televisão. Ao propor o início do trabalho, lembrou, ainda, que
deveriam escrever o título da história e o próprio nome indicando que, desse modo,
se constituíriam autores do texto.
Assim, compreendemos que, nesta proposta, foram consideradas as seguintes
condições de produção:
a) inicialmente, foram definidas as estratégias do dizer: produzir uma história
em quadrinhos composta por quatro vinhetas conforme modelo apresentado;
b) contando o quê: uma história sobre as mães, que foi definida pela professora
em função da temática que orientou as discussões na roda e da oficina sobre
as brincadeiras preferidas das mães;
c) para que dizer: para ver como iriam organizar as idéias numa seqüência com
começo, meio(s) e fim.
Podemos dizer então que, considerando o modelo apresentado, as crianças
deveriam produzir uma história em quatro vinhetas, contando uma situação vivida
com a mãe por meio de imagens sem, necessariamente, utilizar texto verbal, para
ser incluída às demais produções que estavam sendo guardadas no envelope. Mas,
para quem deveriam dizer o que tinham a dizer sobre as mães?
149
Conforme o contexto explicitado, essas condições o se restringiram ao momento
da produção. A idéia de acompanhar a evolução textual das crianças com relação ao
gênero remete a interlocutores que se circunscrevem à esfera escolar,
especialmente a professora, uma vez que o destino das produções seria a
documentação da atividade, tendo em vista o processo evolutivo da criança e o
desenvolvimento do projeto de literatura na sala de aula.
Comprendemos que esse dado, em consonância com a escolha da estratégia de
dizer que, de antemão, já estava definida, configurou uma proposta de produção
textual cuja situação de comunicação apresentou finalidades que se restringiram ao
trabalho escolar, particularmente à avaliação do percurso evolutivo de cada criança,
sem considerar as cincunstâncias sociais de uso dessa forma de linguagem.
Queremos esclarecer, contudo, que destinar a produção textual às pessoas que
estão no espaço escolar não se constitiui por si um problema. A questão que se
revela complicada nessa situação de produção diz respeito à finalidade avaliativa,
uma vez que, nessa perspectiva, se produz, conforme apontam Dolz e Schneuwly
(2004, p. 76, grifos do autor), “[...] uma inversão em que a comunicação desaparece
quase que totalmente em prol da objetivação, e o gênero torna-se uma pura forma
lingüística, cujo domínio é o objetivo [...]”.
Por outro lado, levando em conta as práticas de linguagem inerentes a essa forma
de dizer, podem ser instauradas situações de ensino aprendizagem em que o
gênero, embora passando a funcionar em um lugar diferente daquele que lhe deu
origem, se configure como um meio de dizer o que se tem a dizer e para quem se
tem a dizer.
Vimos que, geralmente, os enunciados que se concretizam em forma do gênero
quadrinhos estão vinculados ao campo do humor, do entretenimento, da aventura e,
a partir desses campos, podem, então, ser definidas, inicialmente, as finalidades que
abarcam a leitura-fruição, a leitura como meio de estar com os outros, de interagir
com o real por meio da ficção, especialmente se considerarmos os interesses das
150
crianças da classe pesquisada.
40
Analisemos, então, a situação de produção
delineada buscando dar visibilidade aos processos que se desenvolveram durante o
trabalho dos sujeitos e aos resultados da atividade, a partir do que conseguimos
captar e registrar em diário de campo, nesse momento inicial de nossa coleta de
dados.
Assim que a professora concluiu as orientações, as crianças puseram-se a realizar o
trabalho em uma folha de papel em branco, suporte oferecido para a concretização
do texto, dividindo-a em quatro partes. Durante o momento de produção dos
quadrinhos, as crianças conversaram bastante, trocando materiais e mostrando seus
trabalhos ainda em fase de produção para os colegas. Após concluírem os
trabalhos, as crianças se aproximaram da professora para apresentar os resultados.
Nesses momentos, a professora procurou ouvir as histórias contadas pelas crianças,
fazendo perguntas do tipo: o que aconteceu aqui nesse quadrinho? O que a
personagem fez? E depois, o que aconteceu? Como foi o final? Por meio dessas
perguntas, a professora ajudou as crianças a compor suas narrativas que, em alguns
casos, somente com os escritos e as imagens não poderiam ser compreendidas,
como podemos observar nos exemplos que se seguem (Fotos 15 e 16):
40
Sabemos, contudo, que as finalidades que estão subjacentes a essa forma de linguagem não se
restringem apenas ao entretenimento, à diversão. Conforme aponta Mendonça (2004), as histórias
em quadrinhos estão ligadas às instâncias do discurso literário e do discurso jornalístico, revelando
uma complexidade lingüística que produz uma verdadeira constelação” de gêneros assemelhados,
como a tira, a caricatura, a charge, o cartum, que também expressam idéias e opiniões voltadas para
o campo da crítica ideológica, política, econômica, esportiva, religiosa, social abrangendo, assim,
outras finalidades discursivas. Além disso, as histórias em quadrinhos também são veiculadas com
função comunicativa didática, como podemos observar em campanhas do tipo educativas.
Foto 15 - Texto de Let (11-5-2005)
151
Nessa amostra dos textos, podemos observar que as idéias materializadas em forma
de imagens pelas crianças não poderiam ser significadas em uma narrativa sem
uma interlocução direta e mediada. Por isso, a professora levou as crianças a
explicarem verbalmente as suas idéias, por meio de questionamentos acerca do que
elas quiseram expressar em cada vinheta. Não foi possível captar as interações
entre a professora e as crianças, uma vez que as crianças também nos procuravam
para mostrar seus trabalhos e contar as suas histórias. Contudo, podemos notar,
nesses trabalhos, a emergência de outros temas, como mostra a produção de Joa
(Foto 16). Ele elaborou sua história com cenas da novela América que estava sendo
exibida pela Rede Globo, no período em que realizamos a pesquisa. A emergência
desse tema também pode ser decorrente do fato de a professora ter citado as
novelas como exemplos de narrativas. Quanto aos recursos usados para a
realização desses trabalhos, observamos a distribuição das cenas em vinhetas
separadas por traços e o uso de recursos icônicos, inclusive nas expressões faciais.
Outro trabalho que apresenta aspectos interessantes foi realizado por Kai (Foto 17).
Kai buscou atender à orientação da professora produzindo uma história com quatro
quadrinhos. Como Let, também não incluiu um título à sua história nem relacionou o
tema brincadeira com a temática do Dia das Mães, conforme orientação da
professora.
Foto 16 - Texto de Joa (11-5-2005)
152
Uma característica desse texto que contribuiu com a constituição de sentidos, sem
necessidade de perguntas diretas sobre o seu conteúdo, foi o enquadramento das
imagens em diferentes planos. Esse enquadramento, conforme pode ser observado,
provocou um efeito de movimento da personagem que, por sua vez, possibilitou um
efeito narrativo interessante que pode ser significado assim: a personagem estava
brincando, quando se aproximou de uma escada que leva à sua casa, parou de
brincar e foi para casa.
Outro aspecto revelado nessa amostra dos textos coletados diz respeito à
organização das vinhetas no suporte oferecido para a produção do trabalho. Nos
exemplos recolhidos, todas as crianças atenderam à orientação da professora para
compor a história em quatro quadrinhos. Joa distribuiu os quadrinhos considerando
o modelo apresentado pela professora o texto do Amarildo. Embora usando o
espaço da folha de chamex de modos diferenciados, Let e Kai apresentaram uma
organização das vinhetas em forma de tiras, um subtipo de histórias em quadrinhos
que as crianças tinham contato por meio dos gibis disponibilizados em sala de aula.
É importante observar que Kai se aproximou um pouco mais da estrutura espacial
dos quadrinhos em forma de tiras, uma vez que reduziu o espaço de atuação na
folha de chamex, um suporte que, nesse contexto, se distanciou das formas fixas
comuns nas quais se materializam as histórias em quadrinhos. Assim, as
diversidades de temas, de modos de utilização dos espaços e de organização das
Foto 17 - Texto de Kai (11-5-2005)
153
idéias são aspectos que ilustram como as crianças se apropriaram dos elementos
destacados pela professora.
Uma produção que também pode ser tomada para ilustrar os diferentes modos de
apropriação, bem como de conhecimentos acerca do gênero, foi o texto produzido
por Cris, uma criança que, nesse período da pesquisa, tinha seis anos e quatro
meses de idade. Cris também não produziu uma história sobre o tema sugerido pela
professora. Escolheu outro tema e produziu uma seqüência narrativa bastante
expressiva, revelando aspectos interessantes para nossa análise. Observemos o
resultado de seu trabalho retratado na Foto 18:
Podemos dizer que essa produção atendeu, de certo modo, às finalidades
explicitadas pela professora por meio da articulação de idéias, numa seqüência
narrativa breve. A resposta à proposta da professora foi a seguinte: Cris produziu
uma história com quatro quadrinhos, conforme orientação da professora, intitulada A
menina e o menino.
Para escrever o título, usou letras do sistema alfabético que
representavam consoantes e vogais, mas, como pode ser verificado, em algumas
situações, houve omissões de letras que representam as vogais. Também fez
tentativas de separar as palavras, ao colocar espaços entre AMNINA EOMNNO.
Embora a escrita do título apresente certa legibilidade decorrente das relações
estabelecidas por Cris entre a fala e a escrita, sua expressividade
também é
garantida na relação com o texto visual.
Foto 18
-
Texto de Cr
is (11
-
5
-
2005)
154
Em sua produção, Cris expôs uma seqüência com um começo: a menina
sozinha de
braços abertos, como se estivesse à espera de alguém e vendo
outra pessoa; com
acontecimentos que se desenvolveram no decorrer da história: a menina encontra
um menino
que, inicialmente, o podia ser visto pelos leitores, que lhe ofereceu
uma flor e, depois, eles
começaram a cantar e a dançar encaminhando para um final
feliz com o beijo, como nos contos de fadas e nas novelas, gêneros que faziam parte
do universo cultural das crianças daquela sala de aula.
A seqüência narrativa elaborada por Cris pode ser significada a partir de alguns
elementos textuais incluídos nas cenas. Ela utilizou, no primeiro quadrinho, um
recurso icônico que imita os pássaros voando. Esse recurso contribuiu com
a
produção de sentidos da cena, remetendo à idéia de que a personagem estava em
um determinado lugar. O fato de estar com os braços abertos reforça, ainda, a idéia
de que ela caminhava em direção de alguém.
No segundo quadrinho, desenhou
outro ícone expressivo, a flor, que remete à idéia do galanteio. Para mostrar como as
personagens estão felizes com o encontro, Cris inclui em sua narrativa símbolos que
representam as notas musicais significando, desse modo, que as personagens estão
cantando, dançando. A repetição, uma característica comum nos quadrinhos,
também pode ser observada no trabalho de Cris: nos desenhos das personagens e
suas vestimentas, em detalhes, como o laço de fita da menina e a gravata do
menino, que garantiram a continuidade da narrativa. Os poucos recursos utilizados
para compor o cenário também contribuíram para garantir a continuidade da
narrativa, marcando a movimentação das personagens em um ambiente que se
modificou durante o percurso narrativo, como pode ser observado nos traços
icônicos que representam o cenário.
Se tomarmos como ponto de partida a análise dos aspectos composicionais, podemos
observar que a resposta de Cris foi bastante interessante, uma vez que, em uma
seência narrativa simples, composta apenas por quatro vinhetas, ela articulou
diferentes recursos visuais compondo uma hisria com começo, meio e fim. Podemos
dizer que, atendendo à proposta de produzir a história em quatro vinhetas, a produção
de Cris foi marcada por algumas características comuns do gênero, constituindo-se em
uma tira curta com predomínio do plano de conjunto, imagens marcadas por traços
caractesticos e repetitivos, incluindo elementos icônicos e mbolos que provocaram
155
um efeito narrativo. Mendonça (2005, p. 198) explica que “[...] as tiras são um subtipo de
HQ; mais curtas (a 4 quadrinhos) e, portanto, de caráter sintético, podem ser
seenciais (‘capítulos’ de narrativas maiores) ou fechadas (um episódio por dia)”.
Contudo, como nos fala Bakhtin, “[...] a enunciação é de natureza social(1999, p.
109, grifo do autor), portanto, “[...] está sempre carregada de um conteúdo ou de um
sentido ideológico ou vivencial [...]” (BAKHTIN, 1999, p. 95, grifo do autor). Assim,
voltando nossas atenções sobre a dimensão socioideológica dessa enunciação,
observamos a emergência de valores que remetem ao campo da produção cultural
voltada para o público infantil. Esses valores podem ser observados a partir do tema
(uma história de amor entre um menino e uma menina) e das imagens das
personagens que se configuraram em modelos valorizados em nossa sociedade: a
menina é loira, de olhos azuis e o menino também tem olhos claros.
Cris, a autora do texto, era uma menina morena, de cabelos cacheados e olhos
pretos, pertencente a uma família pouco numerosa, de classe social baixa, conforme
renda familiar informada em questionário (menos de dois salários mínimos). Gostava
muito de desenhar, ler livros de literatura infantil, do tipo “A Bela e a Fera”, citado por
ela em uma de nossas conversas, assistir a desenhos animados, brincar no
computador e de Barbie, entre outras coisas. As personagens de sua história,
mesmo tomadas como “menino” e “menina”, viveram uma história de amor na qual a
criança foi revestida de comportamentos do mundo dos adultos, evidenciando uma
forma de consolidação do “ser” criança na sociedade capitalista contemporânea.
Conforme explica Perroti (1990), a partir da Idade Média Européia, com a ascensão
da burguesia, ocorreu uma crescente absorção do espaço da liberdade pelo da
necessidade, em outras palavras, uma progressiva fusão entre público e privado em
decorrência dos interesses da classe dominante. Essas mudanças econômicas,
políticas e sociais também provocaram transformações nas formas de conceber e
organizar a infância que passou a conviver em outros espaços especializados
destinados à sua educação, como creches, escolas, internatos, entre outros. Assim,
inserida nesse contexto de instauração da ordem social hegemônica, a criança
também passa a interagir com o mundo a partir de uma produção cultural destinada
ao público infantil que tende a uniformizar, privatizar, as suas experiências de mundo.
156
Em tais circunstâncias, isolada nos espaços privados, ao ver
reduzidas suas possibilidades de experimentar e de expor-se à
diversidade, a infância acha-se pauperizada culturalmente e é nessas
condições que se relaciona com os textos que lhe são propostos nos
espaços institucionais. Com um repertório cultural constituído
basicamente de referências provindas de seu mundo privado, a
criança acaba se relacionando com os textos a partir desse repertório
reduzido, ou seja, a partir de posições e valores ligados a contextos
em que os interesses da vida prevalecem sobre os do mundo
(PERROTTI, 1990, p. 95, grifos do autor).
Atualmente, com o desenvolvimento tecnológico e industrial das sociedades
modernas, assistimos à intensificação dessas formas de privatização cultural.
Veiculadas em esferas sociais do domínio televisivo, jornalístico, publicitário, literário,
etc., as ideologias que sustentam a lógica mercadológica do sistema capitalista vêm
produzindo um movimento em que são instituídos mecanismos de idealizão da
inncia, aproximando-a, progressivamente, do universo dos adultos e da pré-
adolescência. A esse respeito, Araújo (1996) explica que a conceão de criaa, como
protótipo de adulto nas sociedades contemporâneas, é uma conseqüência da
massificação publicitária, que, pelo fato de destinar seus espetáculos e rituais ao
adolescente, ao jovem e ao adulto, cria uma nova categoria de criança. De acordo com
a autora, ao adaptar-se às demandas desse universo cultural massificador, a criança
“[...] reafirma o que a sociedade pensa e espera dela [...]” (ARAÚJO, 1996, p. 89).
Assim, por meio desses mecanismos reguladores, são legitimadas formas de
dominação, contribuindo com a constituição de identidade da criança, o que nos
instiga a pensar nas relações pedagógicas que permeiam as práticas de leitura e de
produção de textos na sala de aula, uma vez que a instituição escolar, nesse
contexto ideológico, se configura em um espaço socialmente constituído cuja
principal finalidade é a formação dos sujeitos. Nesse sentido, por que, diante da
proposta de contar uma história sobre a mãe ou sobre uma experiência vivida com a
mãe, ou ainda sobre o brincar, Cris recorreu a um tema que aborda relações
amorosas do universo dos adultos?
Compreendemos que os resultados apresentados nessa atividade produtiva
evidenciaram a preocupação da professora em organizar uma seqüência didática
para trabalhar com as histórias em quadrinhos, focalizando, inicialmente, a
157
organização de idéias no texto a partir do uso de recursos icônicos, uma estratégia
de ensino que a professora imaginava ser interessante para as crianças nessa fase
da alfabetização. Entretanto, se tomarmos como foco de análise as relações
pedagógicas que, comumente, estão inerentes ao trabalho escolar, podemos dizer
que a professora, em sua tarefa de ensinar, instaurou uma situação de produção
esperando que as crianças respondessem às orientações explicitadas. Contudo,
como pôde ser visto nessa amostra dos trabalhos, as crianças o realizaram a
tarefa conforme o que foi proposto, recorrendo a outras temáticas e sinalizando,
desse modo, que buscaram alternativas para cumprir a tarefa solicitada pela
professora: escrever uma história em quadrinhos.
Recuperando as condições de produção desses textos, podemos dizer que a
escolha do gênero antecedeu os outros elementos que deveriam ser considerados
como condições essenciais para o trabalho com textos, caracterizando uma proposta
de trabalho em que a temática foi tomada como pretexto para ensinar a seqüência
explicitada. Nesse caso, a escolha do gênero (história em quadrinhos) se sobrepôs
ao conteúdo (uma história sobre as mães), às motivações que pode ter ou criar.
Somente não se sobrepôs aos destinatários que gostariam de avaliar os textos das
crianças sem considerar também nenhum desses aspectos, mas a capacidade de a
criança organizar idéias numa seqüência narrativa quadrinizada em quatro vinhetas,
com começo, meio/meio e fim.
Nessa abordagem, portanto, foram focalizados, de forma simplificada, alguns
aspectos composicionais do nero, abstraindo as suas esferas de circulação, as
possíveis finalidades, as necessidades da temática, o conjunto de participantes e a
vontade enunciativa do locutor, que, de acordo com Dolz e Schneuwly (2004), o
dimensões que determinam a escolha de um gênero. Conforme situamos
anteriormente, o esquecimento” dessas dimensões fragiliza o processo de
comunicação reduzindo as possibilidades de aprendizagem da linguagem, uma vez
que esta “[...] se dá, precisamente, no espaço situado entre as práticas e as
atividades de linguagem” (
DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 75).
Nesse sentido, é preciso
reconhecer que,
158
Pelo fato de que o gênero funciona num outro lugar social, diferente
daquele em que foi originado, ele sofre, forçosamente, uma
transformação. Ele o tem mais o mesmo sentido; ele é, principalmente,
sempre [...] nero a aprender, embora permana nero a comunicar
(DOLZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 81).
Ao discorrer sobre as concepções de linguagem que sustentam, de maneira geral, o
ensino da língua na escola, Geraldi (2003, p. 119) enfatiza que a língua pode ser
vista “[...] como instrumento de comunicação, como meio de troca de mensagens
entre as pessoas, ou é ela tomada como objeto de estudo, como um sistema cujos
mecanismos estruturais se procura identificar e descrever [...]”. Com base nessas
abordagens, podem ser suscitados, de acordo com o autor, objetivos distintos que
são tomados para orientar um trabalho voltado para o desenvolvimento de
capacidades de expressão e compreensão de mensagens ou para o conhecimento
do funcionamento do sistema lingüístico. Acreditamos que essas dimensões do
trabalho com a linguagem escrita devem ser entrelaçadas nas práticas de leitura e
de produção de textos, compreendendo que
É exercendo a linguagem que o aluno se preparará para deduzir ele
mesmo a teoria de suas leis. [...] Aprender a respeito da ngua, tomar
consciência dos mecanismos estruturais do sistema lingüístico deve
ser etapa posterior: levar o aluno à consciência da língua só depois de
ter ele a posse da língua (GERALDI, 2003, p. 120).
Nesse sentido, o autor explica que a escolha das estratégias de dizer não pode
ocorrer no abstrato. “[...] Elas são selecionadas ou construídas em função tanto do
que se tem a dizer quanto das razões para dizer a quem se diz [...]” (GERALDI,
2003, p. 164). Entretanto, nesse contexto de produção das histórias em quadrinhos,
observamos que havia certa ênfase na sistematização dos aspectos estruturais do
gênero, conforme pôde e poderá ser constatado nos eventos que se seguem em
que foi evidenciado o uso de balões de fala como aspecto constitutivo do gênero.
A introdução desses elementos como um recurso na produção das histórias em
quadrinhos ocorreu pela primeira vez no dia 31 de maio. Esse evento, de número
07, foi registrado em nosso corpus de pesquisa por meio de anotações em diário de
campo (p. 63-66) com fotografias de algumas interações e dos textos produzidos.
159
Ao iniciar os trabalhos do dia, na roda, a Professora 1 retomou com as crianças o
projeto de literatura com quadrinhos relembrando o que já haviam aprendido e
explicando que iriam aprender “outra coisa” nas histórias. O Gil logo sugeriu que
seriam os balões e a professora confirmou dizendo que existiam vários tipos de
balões. As crianças, então, começaram a apresentar rios exemplos de tipos de
balões dizendo o que significava cada tipo. Esse fato foi interessante e sinaliza que
as crianças gostavam de ler histórias em quadrinhos no seu dia-a-dia. De acordo
com os dados apresentados na caracterização dos sujeitos, os gibis foram citados
como material utilizado nas leituras em ambiente familiar por 34,78% dos 23 sujeitos
entrevistados, ficando atrás apenas dos livros de literatura que, para muitos, também
englobavam os gibis.
Além disso, eram disponibilizados na sala de aula, conforme situamos na
caracterização desse espaço de trabalho, gibis, almanaques, revistas e cartazes
com história em quadrinhos que eram constantemente tomados para leitura pelas
crianças. Lembramos, ainda, que, quando começamos a observação participante em
sala de aula, a professora havia iniciado o trabalho com as histórias em
quadrinhos, o que também pode ter influenciado a indicação de leitura das crianças.
Recorrendo aos materiais disponíveis na sala de aula, a professora, então,
apresentou alguns tipos de balões, explicando às crianças acerca de suas
finalidades nas histórias, permitindo, em seguida, que as crianças folheassem as
revistas para observá-los, conforme podemos verificar no registro fotográfico de
número 19. Nesse momento, embora a professora não tenha tomado as histórias em
quadrinhos disponíveis nos gibis para
leitura nem apontado essa possibilidade,
as crianças interagiram com as histórias
para além da observação dos balões de
fala, uma vez que conversavam sobre o
conteúdo das histórias, sobre as
personagens, sobre as que conheciam ou
não, etc., instaurando, desse modo, outros
espaços de interação com os textos.
Foto 19 - Crianças folheando os gibis (31-7-2005)
160
Depois de conversarem a respeito dos balões de fala observados nos gibis, a
professora apresentou a proposta de produção, que consistiu em um trabalho em
pequenos grupos para a produção de histórias em quadrinhos. O suporte para essas
produções apresentado pela professora consistiu em uma base preparada sobre o
papel cartão com traços coloridos que dividiam as vinhetas e indicavam o local para
o título e o nome dos autores. Foram espalhados seis cartazes na roda para que as
crianças pudessem observar as diferenças entre eles, que não se restringiam à cor
das linhas divisórias dos quadrinhos, mas também ao seu formato. A professora
explicou, então, que, na parte de cima, deveriam escrever o título e contar uma
história diferente, em três cenas, com começo, meio e fim, usando balões de fala.
Reforçou que seria melhor escrever antes de desenhar os balões, para não correrem
o risco de ultrapassar o espaço do balão. A produção ainda foi motivada com a
chegada da pedagoga que elogiou os cartazes, perguntando para que seriam usados.
Ao ouvir as explicações das crianças e da professora, ela se colocou como possível
interlocutora dos textos, dizendo que gostaria de ver os trabalhos depois de prontos.
Assim, após a divisão dos grupos, as crianças dirigiram-se aos seus lugares e
iniciaram o trabalho de produção das histórias em quadrinhos, buscando atender à
seguinte proposta: escrever uma história diferente, em três cenas (com começo,
meio e fim), usando balões de fala, para serem expostas e apreciadas por
interlocutores que faziam parte do contexto escolar. Deveriam produzir a história
interagindo nos grupos, dividindo as tarefas para que todos pudessem participar.
Durante o trabalho de produção, as crianças se movimentaram bastante nos grupos,
discutindo o tema da história, o título, quem iria começar, como seria o começo, o
que viria depois. Após escolherem os temas, as tarefas foram divididas e as crianças
iniciaram a escritura do texto pelos desenhos, incluindo, ao final de cada quadrinho,
os balões com as falas das personagens.
Os resultados dessa atividade foram registrados em nosso corpus de pesquisa por
meio de fotos em câmera digital. Ao todo, foram produzidos seis textos, com
personagens conhecidos das crianças e temas que podem ser observados a partir
dos títulos dos trabalhos: O príncipe e a princesa, Os zoombinis soltando pipa, A
Cinderela e o Homem Aranha, E os Smilingüidos foram no casamento, A Cinderela e
A Bela e a Fera. Em todos os textos, foram incluídos diálogos em balões que
161
ajudaram a compor os sentidos dos textos. Para análise, selecionamos as produções
de três grupos
. Essa escolha pode ser explicada pelo fato de termos captado alguns
movimentos das crianças durante o processo de produção e, ainda, por revelarem
modos particulares de respostas à proposta da professora. Nesse período, ainda
não tínhamos introduzido as gravações e, desse modo, a descrição e análise dessas
interações tomam como ponto de partida as anotações em diário de campo.
O primeiro grupo observado
41
foi composto por Mon, Raf e Ron. A Mon era uma
criança que escrevia de forma convencional e demonstrava envolvimento com
relação às atividades propostas pela professora. Raf e Ron ainda não escreviam
letras que representassem vogais ou consoantes e, no momento da produção da
história, foram orientados por Mon que, em certas circunstâncias, queria monopolizar
as idéias e o trabalho de produção. Foi o que ocorreu, por exemplo, na escolha do
tema: Mon queria fazer uma história com a Cinderela e Ron com o Homem Aranha.
Como não chegavam a um consenso, sugerimos que tentassem juntar as idéias. O
grupo aceitou a sugestão produzindo uma seqüência narrativa que foi concluída
como mostra a Foto 20:
41
A pedido da professora, inserimo-nos em alguns grupos, acompanhando de perto a sua produção.
Foto 20 - Texto produzido por Mon, Raf e Ron (31-7-2005)
162
Nessa produção, as crianças contaram uma história em que as personagens
estavam passeando e brincando quando se encontraram. Os dois beijaram-se
apaixonados e depois foram para casa. A história foi produzida com a colaboração
de todas as crianças do grupo. Mon iniciou o trabalho escrevendo o título A
SINDERELA EOHOMEMARANHA. Em seguida, desenhou a linha rosa que definiu o
chão, a Cinderela com o balão e acrescentou os primeiros elementos que
compuseram o cenário: a árvore, as flores, o sol e a nuvem. O Homem Aranha
soltando pipa, a árvore ao seu lado e os arbustos foram produções de Ron que, com
a ajuda dos colegas, incluiu os demais traços no espaço que indicava o caminho.
Desse modo, deram início à narrativa apresentando o local em que se passava a
história e as personagens.
A introdução dos balões de fala, no primeiro quadrinho, foi feita por Mon. As falas
das personagens OLHA O HOMEMARANHA e OLHA ASINDERELA produziram
o efeito do encontro inesperado cujo sentido foi concretizado no segundo quadrinho
com a aproximação das personagens e o beijo apaixonado revelando que o
encontro foi de natureza amorosa. A fala MINHAPAIXÃO foi escriturada por Ron, a
partir da ajuda da Mon, que indicou todas as letras a serem registradas. A idéia de
escrever essa fala foi dele. Ron sempre produzia enunciados dessa natureza na sala
de aula em momentos de brincadeiras com os colegas e com a professora. A
narrativa se encerra com a instauração de um diálogo entre as personagens, com
expressões sintéticas: VAMOS PARA CASA e BOM, escriturado por Raf,
também com a ajuda de Mon. Podemos observar que, nessa vinheta, o texto icônico
foi significado na relação com o texto verbal reduzindo a polissemia da imagem.
Desse modo, conforme orientações da professora, nessa narrativa quadrinizada,
foram inseridos balões de fala com apêndices que indicaram o discurso direto.
Partindo de impressões globais evidenciadas nessas enunciações, podemos
observar a emergência da atividade mental discursiva por meio da relação que as
crianças desenvolveram com a escrita. Nesse sentido, que conhecimentos sobre o
sistema de escrita alfabético foram revelados nessa produção textual? Podemos
observar que, a partir das contribuições de Mon, foram empregadas letras que
representavam adequadamente os fonemas, inclusive atendendo às convenções
163
ortográficas, exceto na escrita da palavra SINDERELA. Tivemos, também,
separações e aglutinações de palavras de acordo com o fluxo e o ritmo da fala.
Um outro aspecto, que também foi evidenciado em outros dois resultados coletados,
nos chamou a atenção nessa produção. Diz respeito à configuração das
personagens. Conforme descrito, os desenhos das personagens no primeiro
quadrinho foram produzidos por Mon e por Ron. No segundo quadrinho, as imagens
foram realizadas por Mon, que manteve as características físicas da Cinderela,
personagem que foi inaugurada por ela no texto. No entanto, Mon mudou
completamente as características do Homem Aranha delineadas por Ron no primeiro
quadrinho. Outra mudança na configuração das personagens também pode ser
observada no último quadrinho, quando Raf entrou na produção textual criando
imagens com características bem diferentes das anteriores.
A partir desses indícios, podemos supor que o aspecto da regularidade icônica das
personagens, um recurso necessário para constituição de sentidos das histórias em
quadrinhos, não foi contemplado no texto. Isso pode ter ocorrido, porque a
professora não abordou esse aspecto nas suas explicações. Além disso, na
produção coletiva, entram em jogo negociações entre os sujeitos, diferentes
conhecimentos e representações das personagens. Assim, as crianças ocuparam
espaços no texto, imprimindo suas marcas e suas diferentes aprendizagens.
Quanto à escolha do tema, observamos a reincidência de histórias de amor com
personagens do mundo encantado, como pode ser constatado nos títulos de outras
três produções (A Cinderela, O príncipe e a princesa, A Bela e a Fera) que
revelaram modos recorrentes de respostas à proposta apresentada. Acreditamos
que essas escolhas podem ser decorrentes das experiências das crianças com
outros textos que veiculam enunciados dessa natureza, uma vez que, na proposta
de produção, não foi contemplada uma indicação precisa do que dizer, suscitando
temáticas do universo literário infantil predominante no espaço escolar e familiar.
Conforme argumentamos na análise do texto produzido por Cris (11-5-2005), o
universo cultural que permeia a infância também pode ser compreendido como parte
da produção histórica, social e ideológica que orienta a gica do sistema liberal
164
capitalista. A escola, nesse contexto, se configura em um espaçotempo em que as
crianças têm acesso a múltiplos objetos culturais, dentre eles, os livros de literatura
infantil. Como uma instituição responsável por promover à inserção da criança na
sociedade grafocêntrica, a escola tamm encontrou na literatura infantil meios para
mediar a apropriação dos elementos culturais e cienficos produzidos nessa sociedade.
De acordo com Aguiar (2001), Paiva e Maciel (2005), a literatura infantil se configura
em uma modalidade literária tardia, uma vez que só surgiu quando a infância passou
a ser concebida como uma fase fundamental na formação do homem, tornando-se o
centro das atenções da família e da sociedade em geral. Sua origem remonta aos
tempos da tradição oral européia em que foram aproveitados os contos de fadas
com a intenção de instituir os modelos de comportamento da classe burguesa. Como
uma construção histórica, a literatura infantil também repercutiu, em cada época, os
modos distintos de olhar a criança.
Os tempos modernos inauguraram, então, a necessidade de preparar as novas
gerações para a vida em sociedade e a literatura infantil constituiu-se, nesse
contexto, em instrumento pedagógico a serviço das novas demandas educacionais.
Referindo-se às relações entre literatura infantil e escola, Paiva e Maciel (2005, p.
113), salientam que “[...] boa parte das histórias denominadas literatura infantil são
meros produtos voltados para o consumo imediato, especialmente, o consumo
escolar”. A entrada desse artefato cultural na escola pode, desse modo, servir a
interesses imediatistas que contribuem para a consolidação de uma identidade de
criança que desconsidera seu contexto social. Não estamos com isso negando a
importância da experiência estética e cultural no contexto escolar, contudo, a
escolarização da arte, nesse caso a literária, provocou desvios em sua função
estética passando a servir a propósitos educacionais restritos, uma vez que
O feitio dos textos está condicionado, nessa medida, à concepção de
criança que os mesmos têm em vista e que determina a natureza dos
valores a serem repassados. Conservadora ou emancipadora, isto é,
conjunto de lições a serem obedecidas ou proposta instigante a
questionar o leitor, a literatura infantil é, contudo, sempre escrita por
um adulto para uma criança. Tal fato acarreta um prejuízo, do ponto
de vista literário, porque o texto se torna diretivo e unilateral,
mimetizando a postura autoritária, dominadora ou protetora dos mais
velhos em relação aos jovens (AGUIAR, 2001, p. 243).
165
Assim, na ausência de uma indicação explícita do que dizer, as crianças, então,
recriaram discursos por meio da utilização de elementos da cultura ficcional
dominante no contexto escolar, escolhendo esse tipo de conteúdo para realizar a
tarefa definida pela professora, o que reflete a dificuldade das condições de
produção. Considerando o lugar social das crianças no contexto das relações
pedagógicas instauradas, a escolha desse conteúdo pode ser compreendida como
uma saída para fazer o que foi pedido, cumprindo, desse modo, a tarefa de produzir
uma história em quadrinhos com começo, meio e fim, com umtulo e usando balões
de fala.
Nesse sentido, podemos dizer que os enunciados das crianças foram materializados
no formato de histórias em quadrinhos, sem, contudo, constituírem-se como gênero
pertencente ao respectivo domínio discursivo, pois, em consonância com a
perspectiva bakhtiniana de linguagem, os gêneros são eventos lingüísticos que se
definem como atividade sociodiscursiva, compreendendo não apenas os aspectos
formais, mas, sobretudo, sua dimensão comunicativa e funcional que abarca
diferentes fatores, como as esferas de atuação humana, a presença de
interlocutores, meios de circulação. É nessa perspectiva, conforme aponta
Marcuschi (2005, p. 22), “[...] que os gêneros textuais se constituem como ações
sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum
modo”.
Insistimos, portanto, na questão das finalidades discursivas, uma vez que, como os
gêneros são artefatos culturais elaborados historicamente pelos seres humanos,
essa é uma condição fundamental para que se possam escolher as estratégias de
dizer. Nessa perspectiva, concordamos que um gênero não pode ser definido
somente a partir de determinados aspectos estruturais que lhe são inerentes, mas,
sobretudo, em função de suas intencionalidades comunicativas. Afinal, que
finalidades foram instauradas para produção dessas “histórias em quadrinhos”? O
que as crianças tinham a dizer para configurarem a sua produção textual no formato
desse gênero?
Compreendemos que, por meio da linguagem, as crianças podem participar
efetivamente da cultura, instaurando novas formas de olhar o mundo. Contudo, na
166
ausência do que dizer e tendo que atender à demanda de encontrar o que dizer para
dizer em forma de narrativa quadrinizada, as crianças concentraram seus esforços
na reprodução de discursos que reduziram as suas possibilidades de interação como
sujeitos históricos e sociais. Desse modo, a produção textual passa a ser, conforme
explica Geraldi (2003), uma estratégia pedagógica artificial, cuja finalidade se
restringe em preparar o aluno para, num momento posterior, saber usar a língua
como forma de expressão e de comunicação.
Buscando, contudo, dar visibilidade a outros movimentos que se instauraram nessa
situação de produção, tomaremos para análise as produções realizadas por outros
dois grupos de crianças. Recorrendo a personagens conhecidos esses sujeitos
criaram narrativas quadrinizadas utilizando estratégias de dizer interessantes,
aproximando-se das demandas sociocomunicativas dessa forma de linguagem,
particularmente as voltadas para o campo da aventura ficcional. Analisaremos,
inicialmente, o texto produzido por Lua, Pat e Kai (Foto 21).
Foto 21 - Texto produzido por Lua, Pat e Kai (31-7-2005)
167
Nesse grupo, Kai era a única criança que escrevia letras correspondentes a vogais e
consoantes, por isso foi logo assumindo o papel de escritor, contando também com
a participação de Lua e Pat. Desde o início, as três crianças haviam definido que
iriam contar uma história envolvendo os Smilingüidos. Depois de algum tempo
discutindo qual história contar dessas personagens, Kai sugeriu que poderia ser uma
de casamento. Essa sugestão foi acolhida pelos colegas e Kai, dando início ao
trabalho de escritura, escreveu o título do seguinte modo: IOS MINILIGIDO FORO
NO CAZA MENTO (E os Smilingüidos foram ao casamento), demonstrando a
apropriação de alguns aspectos do sistema alfabético de escrita que garantiram a
legibilidade do texto: empregou relações sonoras convencionais, fez tentativas de
segmentação e de coesão usando o plural no artigo OS e no verbo FORO. A forma
como o verbo FORAM foi empregada no texto escrito revela a forma oral dessa
palavra, o que também pode ser observado na omissão do plural em MINILIGIDO
(Smilingüido) e em outras palavras do texto: PASA, COMEÇA. Vejamos, então, o
que as crianças revelaram conhecer sobre o gênero em estudo e como foi o
processo de produção desse texto.
Para contar a história da ida dos Smilingüidos ao casamento, as crianças usaram
balões de fala com apêndices que indicaram os discursos concretizados em forma
de textos sintéticos e usaram o recurso da repetição nas imagens das personagens.
Os planos de imagem predominantes foram o panorâmico e o conjunto. Foram
utilizados poucos elementos icônicos para compor o cenário. Esses elementos
configuraram-se em ícones figurativos que representaram o sol, a ponte, o bolo, os
enfeites da festa e, aparentemente, automóveis, indicando, provavelmente, o meio
de locomoção a ser usado na viagem de volta para casa. Desse modo, revelaram
como se apropriaram dos elementos estruturais de uma história em quadrinhos,
criando uma seqüência narrativa que agregou elementos constitutivos do gênero
produzindo efeitos de sentido que foram significados nas relações entre o texto
icônico e não-icônico.
A produção do primeiro quadrinho foi a mais prolongada, com distribuição das
tarefas e tomada de decisão acerca do que e como desenhar. As crianças
exploraram todo o espaço da vinheta começando pelo desenho das personagens e,
em seguida, do percurso que levava ao local do casamento. Esse percurso se iniciou
168
com uma escada que levava à ponte seguida de um caminho indicado por uma seta
que apontou os noivos. Os balões de fala foram produzidos por último, revelando, na
mesma vinheta, a simultaneidade dos acontecimentos que pode ser assim
compreendida: enquanto as personagens dialogavam se dirigindo ao local do
casamento: VAN MOS PASA NA PONTE (vamos passar na ponte) e DESA O
CAZAMENTO VAI COMESAR (depressa o casamento vai começar), o dirigente
iniciava a cerimônia: VAN MOS COMESA.
Em seguida, os meninos produziram a segunda vinheta, indicando que a cerimônia
havia terminado e as personagens estavam na festa do casamento. Esse
acontecimento foi revelado quando o texto verbal entrou em cena significando o
texto icônico: QE BOLO GOSTOZO (que bolo gostoso). Como se nada mais
houvesse a fazer e tendo que concluir a seqüência narrativa, produziram o último
quadrinho usando a estratégia da volta para casa: VAN MOS INBORA PARA CAZA,
(vamos embora para casa) também suscitada em outras produções. É interessante
notar como as crianças empregaram a preposição PARA de modo convencional,
assim como o verbo COMEÇAR no primeiro quadrinho.
Comentando a relação fala e escrita nas produções quadrinizadas, Mendonça
(2005) toma o contínuo de gêneros textuais proposto por Marcuschi (2000, 2001) e
ressalta que, embora as histórias em quadrinhos se realizem no meio escrito, a
emergência da fala, particularmente a conversa informal, pode ser observada nas
reduções vocabulares e nas interjeições. Nessa produção, podemos observar que as
reduções vocabulares aproximaram o discurso escrito do oral, suscitando uma
situação em que o diálogo produziu o efeito da narratividade.
O outro texto a ser analisado também foi elaborado a partir de personagens
conhecidas das crianças, com a inserção de elementos do seu contexto social.
Como as produções nos grupos ocorreram ao mesmo tempo, não foi possível captar
detalhes da interação entre as crianças desse grupo. Contudo, voltando às nossas
anotações em diário de campo (p. 60), podemos situar alguns aspectos suscitados
no momento da produção.
169
Depois de sugerirem vários temas, as crianças se lembraram do jogo dos Zoombinis,
trabalhado pela professora no laboratório de informática, seis dias antes desse
evento, e, assim, optaram por contar uma história envolvendo essas personagens.
No jogo, as personagens saíam de uma ilha encantada onde viviam em busca de
alimentos, passando por rios obstáculos que precisavam ser superados com a
ajuda das crianças. Partindo dessa idéia, as crianças criaram uma breve seqüência
narrativa em que as personagens viveram uma aventura que se aproximou de
experiências vividas por elas. Essa aventura foi materializada no texto que se segue
(Foto 22), assim intitulado pelas crianças: OS ZUMBINIS SOLTAN DO PIPA (Os
Zoombinis soltando pipa):
Revestindo a produção textual de aspectos que nos remetem ao tema brincar, Gab,
Gil e Jac criaram uma narrativa que pode ser assim significada: os Zoombinis saíram
para brincar de pipa na Pedra dos Olhos:
42
VAMOS SOL TAR PIPA NA PEDRA
DOS OLHOS; VAMOS; VAMOS; VOU PEGAR MINHA PIPA. Chegando ao local,
42
Trata-se de um Parque Municipal que está localizado na região de Maruípe, numa área de proteção
ambiental do Maciço Central e faz divisa com o Parque da Fonte Grande, que juntos compõem a maior
reserva de Mata Atlântica de Vitória. Esse parque abriga um importante monumento natural do
município de Vitória a Pedra dos Dois Olhos, uma característica marcante do monumento que deu
origem ao seu nome. Nesse parque natural, é possível fazer caminhadas por suas trilhas, escaladas e
rappel dentre outras atividades de lazer. Disponível em: <
www.vitoria.es.gov.br>. Acesso em: 9 jun 2006.
Foto 22 - Texto produzido por Gab, Gil e Jac (31-7-2005)
170
divertiram-se bastante: QUE BOM; QUE LEGAL. Finalmente, foram para casa, pois
estava na ORA DE DORMIR (hora de dormir).
Para conferir a essa produção o estilo próprio das histórias em quadrinhos,
constituindo sentidos na interação entre o visual e o verbal, as crianças recorreram a
estratégias interessantes, aproveitando o espaço das vinhetas num movimento que
contribuiu com a constituição de sentidos do texto. Isso pode ser observado
especialmente no primeiro quadrinho. Nessa vinheta, as crianças utilizaram a linha
divisória dos quadrinhos para significar o percurso inclinado que leva à Pedra dos
Dois Olhos, que foi figurativizada no quadrinho seguinte, considerando, inclusive, a
característica que deu origem ao seu nome: os dois olhos de tamanhos diferenciados
exatamente como o são. Para finalizar a aventura, foram desenhadas as casas dos
Zoombinis, com a indicação do texto verbal ORA DE DORMIR, que contribuiu na
produção de sentidos do texto revelando que, como na vida real, a brincadeira tinha
hora para começar e para terminar. Nessa fusão do real com o ficcional, as crianças
deixaram no texto as marcas do seu cotidiano, da sua realidade sociocultural,
evidenciando, portanto, modos de sentir e de pensar essa realidade.
Durante nossas conversas com as crianças, foi possível captar e registrar dados do
universo cultural dos sujeitos, conforme apontamos em sua caracterização. O
brincar, como foi observado, se constituía na atividade preferida das crianças
envolvidas em nosso estudo. De forma mais específica, essa atividade também foi
revelada como na história produzida por Gab, Gil e Jac, em situações que
envolviam passeios, jogos eletrônicos e diversas brincadeiras, entre elas, o brincar
de pipa. Jac, em entrevista registrada, citou o passeio como uma de suas diversões
preferidas e o brincar como a melhor atividade na escola; Gab e Gil apontaram,
nessa mesma entrevista, os jogos de videogame e de computador como uma das
atividades preferidas. Podemos compreender que, ao se posicionarem a partir das
personagens, Gab, Gil e Jac assumiram a autoria do texto, revestindo-o de aspectos
que sinalizaram algumas de suas atividades preferidas. Segundo Smolka (2003, p.
84), “[...] assumindo o papel de escritora, a criança se coloca do ponto de vista
(assume o lugar e o dizer) do personagem, atribuindo [lhe] a palavra [...]”: VOU
PEGAR MINHA PIPA, VAMOS, QUE BOM, QUE LEGAL.
171
Desse modo, a temática do brincar, atividade preferida das crianças, foi tecida com
recursos que envolveram ícones imitativos da realidade: as pipas, a linha que
representa o morro que leva à pedra, a Pedra dos Dois Olhos, as casas; a linha
pontilhada que pode ser compreendida como um símbolo usado para indicar o
caminho a ser trilhado. Além disso, foram usados balões e apêndices que indicaram
as falas das personagens e um traço lingüístico narrativo que marcou a seqüência
temporal na última vinheta. Assim, por meio desses recursos, foram articuladas,
nessa breve narrativa quadrinizada, estratégias de dizer que, de certa forma,
possibilitaram às crianças expor as suas idéias, experiências e interesses próprios.
Nesse sentido, considerando os pressupostos da perspectiva bakhtiniana
de
linguagem e tendo em vista que os sujeitos se constituem como autores/produtores
de discursos, na medida em que interagem com os outros, qual o destino dado a
essas produções? Geraldi (2003), ao discutir a questão da conciliação do texto nas
atividades escolares de ensino da língua, explica que a presença do texto na sala de
aula aponta tanto para o fechamento quanto para a abertura de sentidos. Nesse
contexto, lembra-nos o autor que “[...] um texto é o produto de uma atividade
discursiva onde alguém diz algo para alguém (GERALDI, 2003, p. 98, grifos do
autor). Desse modo, desde a sua gênese, o texto demanda o outro, que pode ser
imaginário ou real, pois
O outro é a medida: é para o outro que se produz o texto. E o outro
não se inscreve no texto apenas no seu processo de produção de
sentidos na leitura. O outro insere-se já na produção, como condição
necessária para que o texto exista (GERALDI, 2003, p. 102).
Vimos que, nessa situação de produção de histórias em quadrinhos, a professora,
em especial, se constituiu o outro da atividade discursiva das crianças. Sendo a
interlocutora imediata e mediadora da produção do conhecimento no contexto da
sala de aula, como se posicionou a professora a partir das respostas materializadas,
em forma de texto, pelas crianças? Que processos interlocutivos provocou? Bem, ao
final da atividade, a professora parabenizou as crianças pelo trabalho e informou que
iria expô-los no corredor de entrada da escola para que outras pessoas pudessem
apreciar as histórias. Solicitou minha ajuda para afixar os cartazes com as histórias
produzidas pelas crianças no corredor central da escola, ao qual todas as pessoas
tinham acesso. A diretora, a pedagoga e as demais profissionais da escola
172
elogiaram as produções tecendo comentários gerais sobre o trabalho realizado pelas
crianças e pela professora. Essas opiniões foram recebidas pelas crianças com
aplausos e comentários de agradecimento.
Depois de um tempo, os trabalhos também foram expostos na sala de aula, sendo
apreciados pelos pais que compareceram à reunião do dia 24 de junho (registrada
em nosso diário de campo, p. 109-113). Dentre os demais assuntos tratados nessa
reunião, foram incluídas orientações sobre o processo de desenvolvimento da
escrita nas crianças da turma pesquisada, tomando como referência os
pressupostos da Psicogênse da ngua escrita de Ferreiro e Teberosky. A
Professora 1 teceu várias explicações sobre os níveis de escrita, apresentando
exemplos e orientações acerca das hipóteses elaboradas pelas crianças. Enfatizou
ainda a importância de valorizar as produções das crianças, reconhecendo suas
capacidades. Em seguida, procedeu à entrega das pastas de avaliação,
evidenciando a evolução das escritas nas crianças a partir de duas atividades de
escrita.
43
Em seu discurso a Professora 1 revelou, portanto, a forte influência das
idéias construtivistas no campo da alfabetização. Conforme explicitado na
caracterização da escola, essas idéias também eram defendidas pelo Sistema
Municipal de Ensino de Vitória e explicitadas nos documentos orientadores das
práticas, como o RCNEI e o PROFA, um dos programas de formação de professores
adotados por esse sistema.
Ainda nessa reunião de pais, a professora mostrou algumas atividades de produção
de textos realizadas na sala de aula, enfatizando a importância de se considerar o
momento de produção dos textos e não apenas a legibilidade ou não da linguagem
escrita. Nesse contexto, foram inseridas as histórias em quadrinhos, das quais a
professora ressaltou o processo de evolução na produção desses textos, tomando o
envelope de uma criança e explicando que, naquele momento, não seria possível
apreciarem esses trabalhos.
E quanto às histórias em quadrinhos expostas na sala de aula? Fixadas em suportes
atrativos (cartazes de papel cartão), as histórias em quadrinhos produzidas pelas
43
Essas atividades, referentes ao 1º e ao 2º bimestres, consistiam em escritas individuais de palavras
e/ou frases seguidas de reescritas.
173
crianças foram tomadas em seu aspecto atrativo, dico, belo, prazeroso,
valorizando, assim, o trabalho realizado na sala de aula. Essas histórias não foram
lidas para os pais, não foram exploradas como textos em que as crianças também
revelavam saberes, idéias, sentimentos, valores ideológicos. Afinal, o que as
crianças disseram nesses textos? Que idéias e valores veicularam? De que
conhecimentos demostravam ter se apropriado?
Nesse contexto de instituição de práticas, saberes e valores, as histórias em
quadrinhos produzidas pelas crianças não se constituíram instrumentos relevantes
de avaliação dos processos vividos, da escuta das suas vozes, dos conhecimentos
que evidenciavam ter se apropriado acerca do nero nem, tampouco, acerca do
sistema de escrita. Não serviam aos propósitos avaliativos, uma vez que, para esses
fins, eram instauradas situações didáticas fundamentadas no discurso científico que
orientava as práticas com a linguagem escrita no contexto pesquisado: a teoria
sobre a Psicogênese da Língua Escrita de Ferreiro e Teberosky.
Sob esse ponto de vista, argumenta Smolka (2003), o estudo de Ferreiro e
Teberosky tem sido apropriado de modo que provoca uma redução no ensino da
língua, caracterizada pela ênfase nas relações entre oralidade e escrita, “[...]
categorizando crianças e turmas de crianças em termos de níveis de hipóteses,
quando o processo de leitura e de escrita abrange outros aspectos e outras
dimensões” (SMOLKA, 2003, p. 63).
Assim, ao discutir sobre a importância de se trabalhar a leitura e a escritura como
prática discursiva, a autora evidencia que é no trabalho de escritura que as crianças
desenvolvem e explicitam modos próprios de organização das normas lingüísticas.
Enquanto produzem textos, as crianças demonstram seus conhecimentos acerca do
sistema de escrita em situações de uso e essas situações precisam ser
consideradas, uma vez que
É dessa/nessa diversidade de interpretações, de organizações e de
formulações possíveis que se pode trabalhar o uso e o funcionamento
das normas. É nesse espaço mesmo que se pode propor mudanças,
trabalhar acordos, estabelecer pactos (SMOLKA, 2003, p. 87).
174
Contudo, o que observamos nas práticas de alfabetização no contexto pesquisado
foi que, de maneira geral, as produções das crianças também não eram tomadas
como indicadores do processo de ensino aprendizagem da linguagem escrita, uma
vez que, para avaliar as escritas produzidas pelas crianças, eram organizadas
situações especialmente destinadas a esse fim, conforme trataremos mais adiante.
A partir dessas situações de produção registradas logo no início de nossa inserção
em campo, passamos a observar, em sala de aula, outros trabalhos orientados para
a apropriação de determinados elementos constitutivos do gênero. Uma dessas
situações ocorreu no dia 19 de julho de 2005 (evento n. 20.1 do diário de campo, p.
131), quando a professora deu continuidade à pesquisa sobre os diferentes tipos de
balões de fala. Esse trabalho consistiu na consulta aos gibis disponíveis em classe,
a fim de identificar tipos diferentes de balões. A atividade foi realizada em duplas
com registros individuais dos tipos de balões encontrados em uma folha de papel
que foi colada no bloco de atividades (Foto 23).
Partindo dessa consulta aos diferentes tipos de balões, a Professora 1 elaborou com
a turma um cartaz que foi afixado na sala de aula para ser consultado pelas crianças
em momentos de produção textual (Foto 24). Essa situação foi observada no dia 20 de
Foto 23 -
Registro dos tipos de balões no
bloco de atividades (19
-
7
-
2005)
Foto 24 - Cartaz com os tipos de balões (20-7-2005)
175
julho de 2005 e registrada em nosso corpus de pesquisa (evento n. 21.1) por meio de
anotações em diário de campo, fotos e filmagens curtas das interações. A proposta
de produção do cartaz foi suscitada em conversa na roda, quando a professora
explicava a importância de usar esses recursos na produção das histórias em
quadrinhos, enfatizando que o registro realizado no bloco de atividades poderia
ajudar na escolha dos tipos de balões e apontando a necessidade de encontrarem
uma forma mais prática de fazer a consulta. Foi Let quem sugeriu a confecção do
cartaz dizendo que poderia fazer numa folha mais larga(Evento 21, 20-7-2006). O
cartaz com os tipos de balões serviu, portanto, a essa finalidade e foi constantemente
consultado pelas crianças em outros momentos de produção textual.
No dia 19 de julho, além da pesquisa aos diversos tipos de balão, a Professora 1
também orientou uma produção de história em quadrinhos. As condições de
produção desses textos foram registradas em diário de campo (p. 131-136). Nesse
evento, foi possível registrar também algumas interações verbais entre as crianças e
a professora ao final das produções. Esse registro foi efetuado por meio de
filmagens curtas em câmera digital, captando, portanto, fragmentos dessas
interlocuções.
Nas orientações para a realização dessa atividade de produção de histórias em
quadrinhos, a Professora 1:
a) sugeriu que as crianças usassem os tipos de balões pesquisados,
escolhendo-os de acordo com a história;
b) informou que deveriam criar histórias diferentes, tomando como tema
situações que ocorrem no dia-a-dia (ela argumentou que não queria histórias
de Cinderela, Super-Homem, etc, pois as crianças insistiam muito nesses
temas e tinham outras coisas para contar);
c) esclareceu que poderiam usar a quantidade de quadrinhos que quisessem;
d) pediu que escrevessem um título para a história, mostrando onde eles são
colocados e indicou que, no último quadrinho, tem a palavra fim;
e) por fim, orientou que escrevessem o conteúdo dos balões antes de desenhá-
los, pois, assim, saberiam qual tipo utilizar e o tamanho adequado ao texto.
176
Nessa proposta, então, as crianças deveriam contar histórias inéditas, histórias
sobre as suas experiências cotidianas. Foi definido o gênero e os elementos que
deveriam conter (balões de diferentes tipos conforme informações coletadas nos
gibis, com quantas vinhetas desejassem, criando um título para a história e
localizando-o no texto conforme o modelo apresentado, marcando o final da história
com a palavra FIM, recurso utilizado nas produções quadrinizadas).
Analisando essa situação de produção podemos notar que, diferentemente da
proposta anterior, nessas orientações, a professora indicou outros elementos que
compõem o nero. Ela pretendeu introduzi-los de forma gradativa, o que nos
parece interessante, especialmente considerando as capacidades lingüístico-
discursivas das crianças.
Entretanto, essa proposta ainda se revelou complicada, se considerarmos a situação
em que ocorreu. Aproximando-se das demandas suscitadas nas demais propostas
analisadas, mais uma vez, podemos notar a ênfase na dimensão composicional.
Não observamos uma tentativa de articular as necessidades de aprendizagem e
uma situação de comunicação em que fossem instauradas as razões para o dizer, a
presença explícita de interlocutores e, também, o que dizer, tendo em vista que o
tema não foi definido. Histórias inéditas sobre coisas do cotidiano ainda não se
constituem, do nosso ponto de vista, uma indicação suficientemente adequada para
abarcar as demandas de trabalho com o gênero em questão, guardando em seu
interior certa fragilidade que pode comprometer o processo de produção dos textos.
Vejamos como as crianças responderam à proposta da professora.
Observando como elas iniciaram o trabalho de produção dos textos, notamos que,
em alguns casos, as crianças começaram logo pelos desenhos, sem um tema
definido de antemão e até mesmo sem a preocupação em produzir uma história em
quadrinhos. Em outras situações, observamos a tentativa de atribuir ao trabalho a
aparência externa de uma história em quadrinhos, por meio da utilização dos
recursos indicados pela professora, como pode ser observado no trabalho realizado
por Nat (Fotos 25 e 26).
177
Nat dividiu a folha em duas partes, definindo, portanto, a quantidade de quadrinhos
de sua história. Deixou, também, um espaço para o nome, como o modelo
apresentado pela professora na situação de produção anterior. Em seguida, iniciou o
desenho de uma personagem no espaço reservado à segunda cena. Buscando
atender às orientações delineadas, incluiu um balão de fala, por meio da consulta,
orientada pela regente, aos tipos pesquisados e registrados no bloco de atividades.
Nesse balão, escreveu PATRÍCIA. Somente depois de concluir a produção dessa
vinheta, Nat passou para o primeiro quadrinho, onde desenhou outra personagem
com inscrições textuais que o possibilitaram a constituição de sentidos do texto
nem tampouco o seu reconhecimento em narrativa quadrinizada. Desse modo, Nat
evidenciou sua preocupação em usar balões de fala, numa tentativa de cumprir as
solicitações da professora, sem, contudo, compreender as funções desse recurso na
produção de sentidos do texto, confirmando que o fato de não ter o que dizer afetou
a produção das crianças.
Em outras situações, houve uma preocupação com o conteúdo do texto. Esse
movimento foi observado em momentos em que algumas crianças iniciaram seus
trabalhos definindo o título do texto, evidenciando a escolha do tema e sua
planificação em vinhetas previamente delimitadas no espaço do papel chamex, como
pode ser constatado no processo de produção realizado por Marc representado por
meio das Fotos 27 e 28.
Foto 26 - Resultado do trabalho de Nat (19-7-2005) Foto 25 - Nat produzindo o texto (19-7-2005)
178
Marc tentou contar em três cenas, conforme outros trabalhos produzidos em sala, o
que aconteceu no dia em que foi pedir ao tio para fazer ginástica. Para contar essa
situação, incluiu tulo, um diálogo na primeira vinheta entre ela e o tio, alguém
dizendo o seu nome e uma casa no último quadrinho. O desenvolvimento nas
produções das histórias em quadrinhos realizadas por Marc foi avaliado pela
professora quando, ao final dessa produção, convidou-a para fazer comparações
entre os trabalhos realizados. Como Marc não conseguia explicar as diferenças
entre a produção atual e uma outra realizada por ela anteriormente (a sua primeira
produção) evidenciando em quais aspectos havia melhorado, a Professora 1 disse:
Prof 1:
44
olha só... essa aqui... ((mostrando a produção anterior))... você colocou rias coisas
sem sentido... essa história ((mostrando a produção atual))... já tem um sentido... tem
bao... mais... já é uma hisria em quadrinhos... essa ((voltando à anterior)) não
tem balão... tem os desenhos... mas o tem uma seência a sua história... um
começo meio e fim igual tem essa aqui... ficou muito legal (Evento 20, 19-7-2005).
Para Marc, a tarefa de avaliar a própria evolução na produção das histórias em
quadrinhos não ficou clara. Afinal, o que a professora queria que fosse observado?
Para que foram produzidas essas histórias? Assim, a professora tomou a palavra
explicando que Marc havia avançado muito no trabalho, uma vez que a produção
anterior não apresentava as características de uma história em quadrinhos e,
portanto, apresentava apenas várias coisas sem sentido.
Essa história, tomada pela
professora para servir de comparação (Foto 29), foi produzida no dia 26-4-2005,
num momento em que ainda não estávamos em campo. A professora, nesse
44
Os enunciados proferidos pela Professora 1 serão identificados com as iniciais Prof. 1 e pela
Professora 2 com as iniciais Prof. 2.
Foto 27 - Marc produzindo o texto (19-7-2005) Foto 28 - Resultado do trabalho de Marc (19-7-2005)
179
momento inicial do trabalho com as histórias em quadrinhos, ainda não havia
introduzido os balões de fala, mas já evidenciava a composição de histórias por meio
da seqüência começo, meio e fim, sem, necessariamente, estipular a quantidade de
vinhetas.
Marc ouviu as observações da professora acerca de sua evolução textual e
respondeu com um sorriso aos comentários dela. Assim que concluiu as
observações sobre os trabalhados realizados por Marc, a professora os guardou no
envelope. Outra situação que revela sobre as relações entre a Professora 1 e as
crianças, após a elaboração da história, pode ser observada na interação instaurada
a partir da leitura do seguinte texto produzido por Lay (Foto 30).
Considerando as pistas apresentadas no texto, a Professora 1 iniciou a conversa com
Lay, dizendo que o seu trabalho também estava muito legal, que tinha balões, vários
quadrinhos. Perguntou a Lay se a personagem da história era a e grávida, o que
foi confirmado com um sorriso. Perguntou também o que estava acontecendo no
Foto 30 - Texto de Lay (19-7-2005)
Foto 29 - Professora 1 comparando as produções de Marc (19-7-2005)
180
último quadrinho, e Lay informou que “ele levantou no berço(LAY, Evento 20, 19-7-
2005). A professora, então, buscando significar o texto produzido por Lay,
apresentou a sua compreensão: “[...] a mãe grávida... o nenem no carrinho... no
berço... e aqui ele ( )... levantando no berço(PROF. 1, Evento 20, 19-7-2005).
Lay voltou a sorrir, mostrando contentamento pelo fato de a professora ter
reconhecido os sentidos da história. Esse reconhecimento foi possível por meio de
pistas que deixaram à mostra as marcas do caminho trilhado por Lay no processo de
produção textual.
Analisando essas pistas, podemos observar que Lay elaborou uma seqüência com
cinco vinhetas utilizando apenas a parte superior da folha de chamex, aproximando-
se, desse modo, da estrutura quadrinizada das histórias do subtipo tira. Usou balões
de fala, com apêndices, expondo uma escrita diferenciada internamente e
externamente, constituída por um repertório de letras com predomínio de
consoantes, sem, contudo, estabelecer relações entre elas e unidades fonêmicas.
Por meio dessa diferenciação no escrito, Lay demonstrou ter se apropriado de um
conhecimento importante, ou seja: para escrever enunciados distintos é necessário
diferenciar a seqüência de letras. Como seu registro escrito não expressava
significações objetivas, a professora recorreu, então, ao texto visual buscando
compreender a história que Lay quis contar. Um outro aspecto importante que
contribuiu para o reconhecimento de sentidos do texto foi o tema escolhido por Lay.
Ao contar uma história sobre o irmão que iria nascer, Lay também ofereceu à
professora, sua interlocutora imediata e que sabia da gravidez da mãe, elementos
que agregaram sentidos ao texto.
Entretanto, esses elementos não suscitaram um movimento dialógico entre autor e
interlocutor, uma vez que a professora se restringiu a identificar os sentidos do texto
sem, no entanto, instaurar um processo de interlocução que possibilitasse passar de
uma compreensão passiva em que o reconhecimento predomina para a
compreensão ativa que, na perspectiva bakhtiniana de linguagem, não exclui a
atitude responsiva ativa do outro.
Em Geraldi (2003), encontramos outras contribuições que nos ajudam a pensar
essas relações. Ao discorrer sobre a perigosa entrada do texto para a sala de aula, o
181
autor explica que a primeira pergunta a se fazer no trabalho com os textos é: “[...]
para que se o que se ?” (p. 168). Tomando, para a situação analisada, esse
questionamento,
nos perguntamos: para que a professora leu os textos das
crianças? Ela se colocou como interlocutora desses textos, buscando dialogar com
as crianças a partir de suas experiências cotidianas? Afinal, para que as crianças
contaram suas histórias em forma de quadrinhos?
Incidindo sobre os aspectos evidenciados nas demais situações analisadas, essas
produções também tiveram um destino certo: servir de comprovação dos processos
evolutivos na apropriação de determinadas características composicionais do gênero
sem considerar, contudo, as demais dimensões que situam o gênero em uma
categoria essencialmente sócio-histórica. Como nos diz Geraldi
(2003, p. 178-179),
Se a língua não é morta, não podemos escapar do fato de que ela se
refere ao mundo, que é por ela e nela que se pode detectar a
construção histórica da cultura, dos sistemas de referências. Querer
em nome de uma suposta neutralidade abandonar qualquer ação
pedagógica que opere com esses sistemas de referências é querer,
na verdade, artificializar o uso da linguagem para ater-se a aspectos
que não envolvem a linguagem como um todo, mas apenas uma de
suas partes.
Desse modo, ignorar ou deixar de ampliar as experiências que as crianças
manifestam por meio da linguagem é, conforme aponta Geraldi (2003), destruir a
dimensão simbólica e social da língua, uma vez que é voltando à própria
experiência, falando dela e sobre ela que as crianças podem ampliar seus sistemas
de referência e constituírem-se sujeitos de idéias, valores, saberes, cultura. Nesse
sentido, concordamos com o autor, quando afirma que é necessário inverter a flecha
de entrada do texto na sala de aula, reconhecendo que este “[...] é conseqüência de
um movimento que articula produção, leitura, retorno à produção [...] revista a partir
das novas categorias que o diálogo, entre professor, alunos e textos, fornece”
(GERALDI, 2003, p. 178). De acordo com o autor:
Se o texto escrito pelo aluno era para ser lido, e se a leitura é mais do
que simples ‘informação’ que se extrai do texto, mas efetivamente
envolve o leitor, não vejo como um professor, leitor dos textos de seus
alunos, possa ignorar tantas perguntas que as informações dadas
pelo texto fazem surgir (GERALDI, 2003, p. 179).
182
Isso implica, portanto, assumir uma relação pedagógica em que a compreensão do
outro e do seu dizer envolve a atitude responsiva, a contrapalavra, que pode ser
instaurada a partir da escuta real e cuidadosa das suas vozes. A compreensão ativa,
reafirmamos, pode se tornar genuína por meio da atitude responsiva. Como uma
forma de diálogo, a compreensão “[...] está para a enunciação assim como uma
réplica está para a outra no diálogo” (BAKHTIN, 1999, p. 132). Assim, para o autor,
“[...] compreender é opor à palavra do locutor uma contrapalavra(p. 132, grifo do
autor). a partir da instauração de uma relação interlocutiva na qual os
participantes podem opor a palavra do outro com a sua contrapalavra, o tema pode
ser apreendido. É nessa relação interlocutiva que
[...] o ouvinte, ao perceber e compreender o significado (lingüístico) do
discurso, ocupa simultaneamente em relação a ele uma ativa posição
responsiva: concorda ou discorda dele (total ou parcialmente),
completa-o, aplica-o, prepara-se para usá-lo, etc. [...] (BAKHTIN,
2003, p. 271).
De acordo com Geraldi (2003), a atitude responsiva ativa pode ser ocupada pela
professora, por meio de perguntas formuladas com base no que as crianças dizem
em seus textos. Essas perguntas podem abrir outras possibilidades de diálogo na
sala de aula e provocar mudanças na forma de conduzir o processo de produção de
textos. Mudanças que podem ocorrer quando a palavra do aluno for tomada
como indicador dos caminhos a serem trilhados e quando a leitura dos textos passar
do simples reconhecimento de informações para um processo de produção dialógica
de sentidos.
Os textos de Marc e Lay foram tomados para ilustrar os processos que se
constituíram nesse movimento de avaliação das produções. Entretanto, observando
os demais textos recolhidos e arquivados em nosso corpus de pesquisa (foram
selecionadas dez produções considerando a variedade na quantidade de vinhetas, o
uso de balões de fala e a legibilidade do texto verbal), optamos por estender a
análise desse evento tomando mais duas produções que podem acrescentar
evidências relevantes para a explicação das situações observadas.
Iniciemos pelo texto produzido por Joa (Foto 31):
183
Recorrendo às nossas anotações em diário de campo (p. 134), encontramos dados
que nos ajudaram a explicar os movimentos de Joa durante o processo de produção
do texto. Antes de iniciar o trabalho, Joa enunciou que iria fazer uma história de
corrida de macacos. Assim, recorreu à idéia de produzir uma história inédita, com
personagens diferentes das apresentadas em outra situações, sem, no entanto,
relacionar essa demanda com uma situação vivida em seu cotidiano. Diante dessa
escolha, iniciou o trabalho ocupando todo o espaço da folha de chamex com traços
verticais. Em seguida, desenhou um macaco em cada parte, inserindo suas falas por
meio de balões. Nessas falas, as personagens, da direita para a esquerda, diziam:
EU VOU GANHA, NÃO, EU QUE VOU, NÃO EU VOU, EU VOU e NÃO VOU.
Quando questionado sobre a forma como havia dividido a folha, Joa explicou que
era a pista de corrida onde cada macaco iria correr e finalizou sua produção
indicando, por meio da linguagem escrita, o local da saída e da chegada. Para ele, a
divisão da página em partes teve outro sentido. Ele não se preocupou com a
seqüência de acontecimentos e montou uma cena em que a divisão da folha em
partes representou o local onde a história estava acontecendo: uma pista de corrida.
Joa produziu, portanto, um texto usando recursos icônicos e não icônicos que
também são utilizados nas histórias em quadrinhos, atendendo, desse modo, aos
aspectos evidenciados pela professora. Esse texto evidencia, portanto, a
necessidade de dialogar com as crianças para compreender as suas intenções e os
sentidos construídos.
Foto 31 - Texto de Joa (19-7-2005)
184
Para finalizar a análise desse evento, observemos o texto produzido por Wes (Foto
32):
Wes iniciou o processo de produção dividindo a folha em quadro partes. No canto
esquerdo, escreveu o título Huck e abaixo do título o seu nome. Iniciou a narrativa,
desenhando as personagens no primeiro quadrinho, ficando em dúvida quanto ao
tipo de balão que deveria usar. Nesse momento, conforme captado em
microgravação em câmera digital, Wes – observando os movimentos de Nat e
ouvindo as orientações da professora:
olha crianças... quem quiser pode fazer
igual à Nat... pode olhar a pesquisa que vocês fizeram para desenhar os balões que
vocês querem usar na história de vocês (PROF. 2, Evento 20, 19-7-2006)
recorreu aos registros sobre os balões de fala efetuados anteriormente e concluiu o
primeiro quadrinho desenhando os contornos do balão com a fala que incluiu dois
apêndices indicando duas falas simultâneas: PARADO AÍ SOCORRO SOCORRO.
Prosseguiu com sua narrativa produzindo as vinhetas que se seguem: no segundo
quadrinho, escreveu a fala LARGAE LA ISOSIVOCEMEPEGA (larga ela isso se
você me pegar); no terceiro, escreveu VOCE VAI SIAREPENDE (você vai se
arrepender). Encerrou a narrativa com uma explicação: IELIS VIVERÃN FELIZES
Foto 32 - Texto de Wes (19-7-2005)
185
PARACENPRE (e eles viveram felizes para sempre). Concluiu sua narrativa,
conforme orientação da professora, escrevendo FIM ao lado da descrição do quadro.
Ao finalizar o trabalho, Wes também foi elogiado pela professora que comparou a
produção atual com as anteriores, evidenciando aspectos de sua evolução na
elaboração das histórias. Quando questionado sobre a escolha do tema, Wes
explicou que gostava de assistir aos filmes do Huck, que era legal, divertido e, no
final, ele sempre salvava todo mundo, como pode ser observado no final feliz que
Wes criou para as personagens de sua história.
Wes também contou a história procedendo à leitura do texto conforme transcrição
45
que segue captada em microfilmagem na fotográfica digital:
Wes: ((com o dedo no primeiro balão de fala)) “pa-ra-do... a-í... ((apontando as sílabas da
palavra)) soCOrro... soCOrro”... ((corre o dedo pelas palavras imitando a fala da
personagem em perigo))... ((passa ao segundo balão)) “lar-ga e-LA... Ela... i-sso se
você me pe-GAR” ((marcando o som final da palavra))... aqui ((indicando que ia ler
no terceiro balão)) “você vai... se a-rrepende”... ((passa ao último balão)) i e-les”... eu
só fiz quatro ((justificando porque a história estava acabando))... “eles vi-ve... vi-
veram... fe-li-zes... pa-ra sem-pri... fim” (Evento 20, 19-7-2006).
Assim, Wes mostrou ter consciência de que, tomando o escrito, poderia realizar a
tarefa de lembrar o conteúdo de sua história se relacionando com a escrita. Indicou
onde estava lendo: apontando os enunciados nos respectivos balões, lançando mão
de expressões explicativas: aí, aqui”, voltando ao texto para dar prosseguimento à
leitura: i e-les”... eu fiz quatro ((justificando por que a história estava
acabando))... “eles vi-ve... vi-veram... fe-li-zes... pa-ra sem-pri... fim”. Usou entoação
para dizer a expressão: “soCOrro... soCOrro” evidenciando que não fez uma leitura
mecânica do texto, mas buscou significá-lo para si e para o outro que o ouvia.
Do ponto de vista da produção cultural das histórias em quadrinhos, Wes suscitou
uma demanda muito comum na criação dessas narrativas, que consiste em trazer as
personagens de filmes de ação para as aventuras quadrinizadas, por exemplo, as
histórias do Super-Homem, do Homem-Aranha, Mulher-Maravilha, dentre outras. De
45
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, foram usadas apenas as iniciais dos nomes dos
sujeitos nas transcrições ou a inicial C para representar a fala conjunta das crianças.
186
acordo com Mendonça (2005), as histórias em quadrinhos, analisadas sob o aspecto
tecnológico, apresentam relações com o cinema e com os desenhos animados e,
nesse sentido, requerem uma seleção dos quadros a serem seqüenciados, o que
demanda maior esforço por parte do produtor e do leitor no preenchimento das
lacunas que possibilitam reconstruir o fluxo narrativo.
Podemos notar, ainda, a emergência de uma heterogeneidade tipológica que,
conforme salienta Marcuschi (2005), é um aspecto constitutivo dos gêneros. Nessa
perspectiva de análise, as histórias em quadrinhos podem apresentar, além das
seqüências narrativas traços lingüísticos predominantes no gênero outras
seqüências que contribuem para a coesão interna dos enunciados, como a
seqüência injuntiva: LARGA ELA e a seqüência descritiva da ação: IELIS VIVERÃN
FELIZES PARACENPRE (e eles viveram felizes para sempre).
Desse modo, podemos concluir que Joa e Wes buscaram responder à proposta de
produzir uma história em quadrinhos com balões de fala, recorrendo a temas
diferentes das produções anteriores, como havia sugerido a professora. Joa
produziu um texto sobre uma corrida de macacos, escolhendo um conteúdo que
realmente ‘”não existe” e Wes recriou uma história de um super-herói conhecido,
aproximando-se das histórias de ação e aventura que são comuns nesse universo
discurso. Embora tenham apresentado conhecimentos interessantes acerca do
gênero, essas duas produções revelam a fragilidade da proposta apresentada pela
Professora 1, uma vez que as crianças tiveram que recorrer a conteúdos diversos,
distanciando-se da demanda de contar experiências cotidianas.
A descrição dessas situações mostra, ainda, que a interação com os resultados
dessa atividade de produção textual foi recorrente, uma vez que a Professora 1, ao
focalizar a estrutura do nero, buscava evidenciar a evolução das crianças na
apropriação de determinados aspectos, desconsiderando a sua dimensão
sociodiscursiva. Essa demanda foi reforçada, quando, ao final da atividade, a
professora reuniu as crianças na roda para conversar a respeito do que aprenderam,
explicando que, com o uso de balões de fala, os textos estavam ficando muito
legais, indicando que a pesquisa” aos tipos de balões poderia ser sempre utilizada
durante as atividades.
187
Com a saída da Professora 1, o trabalho com as histórias em quadrinhos na sala de
aula pesquisada teve continuidade com a entrada da Professora 2 que, ao
considerar as situações de ensino iniciadas pela Professora 1, também planejou
atividades voltadas para a apropriação de alguns aspectos constitutivos do nero.
Essas situações foram observadas em dois momentos. No primeiro deles, dia 12 de
agosto, o trabalho com fábulas introduziu possibilidades de trabalhar com uma
releitura da fábula A cegonha e a raposa, de Maurício de Souza. Essa fábula havia
sido trabalhada pela Professora 1 e, a partir de uma indicação nossa, ela explorou a
versão produzida por Maurício de Souza, publicada em junho de 2000, na Revista n.
57. A história foi apresentada, inicialmente, em retroprojetor, para que as crianças
pudessem dialogar com o texto oralmente. Depois, por meio de cópia impressa, para
que elas fizessem outra leitura, desta vez destacando no texto as falas do narrador,
das personagens e as onomatopéias, de acordo com a legenda produzida
coletivamente, conforme revelado nas Fotos 33 e 34 que se seguem.
Como as crianças demonstraram interesse pelas onomatopéias presentes nessa
história em quadrinhos, a Professora 2 ainda organizou outra situação de trabalho
com esse recurso constitutivo do gênero. A partir da idéia do cartaz com vários tipos
de balões, foi elaborado com as crianças outro cartaz, desta vez com tipos variados
de onomatopéias, para ser afixado na sala de aula e servir de apoio nas situações
de produção de histórias em quadrinhos.
Foto 33 - Parte da história de Maurício de Souza
Fonte: Revista n. 57, junho, 2005
Foto 34 - Legenda elaborada pela turma
188
Essa atividade ocorreu no dia 23 de
agosto de 2005 (Evento 28, p. 193-198
do diário de campo) e contou com a
participação de todas as crianças.
Para a produção do cartaz, a professora
dividiu a turma em grupos que ficaram
responsáveis por consultar, nos gibis
disponíveis na sala de aula, os sons que
deveriam ser representados, de acordo
com listagem registrada no quadro pela
professora. O resultado do trabalho pode
ser observado na Foto 35.
No período em que estivemos em campo, foram observadas, ainda, conforme o
quadro apresentado com levantamento dos eventos, mais três situações de
produção de histórias em quadrinhos no segundo semestre do ano letivo. Essas
situações foram conduzidas pela Professora 2 e tiveram como ponto de partida o
trabalho com livros de literatura infantil, um recurso didático muito utilizado por ela
em sala de aula. Sempre que contava histórias, a Professora 2 solicitava que as
crianças elaborassem desenhos ou escritos focando o que haviam gostado ou
compreendido das histórias. Nesse contexto, também foram inseridas propostas de
produção de histórias em quadrinhos.
A primeira atividade proposta pela Professora 2 ocorreu no início de sua gestão na
sala de aula, no dia 4-8-2005, conforme registro em diário de campo (Evento 23, p.
155-161). Sem um planejamento consistente dos trabalhos a serem realizados, a
Professora 2 levava para a sala de aula alguns livros de literatura infantil e, a partir
da leitura dessas histórias, orientava atividades que focalizavam predominantemente
o desenho.
Foto 35 - Cartaz com tipos de onomatopéias
189
Nesse dia, a professora iniciou os trabalhos na roda cantando, conversando com as
crianças e contando a fábula O galo e a raposa
46
. A conversa sobre a história
transcorreu a partir de questões suscitadas pela professora do tipo: se gostaram da
história, o que haviam compreendido, de quem os animais tinham medo e por quê, o
que é um animal carnívoro, o que a raposa queria com o galo, como o galo reagiu ao
convite da raposa, etc. Após essa conversa com as crianças, fez intervalo para o
lanche. Em seguida, encaminhou uma atividade sobre a história Os três porquinhos,
contada no dia anterior, que consistia no desenho e na escrita dos nomes das
personagens. Somente depois de concluída essa atividade e de um tempo destinado
ao brincar, a professora apresentou a segunda proposta de trabalho do dia,
retomando a história O galo e a raposa e propondo que as crianças a recontassem
por meio de quadrinhos, usando os balões de fala pesquisados e expostos no cartaz
que estava afixado na sala.
As crianças reagiram à proposta de trabalho, estranhando o fato de a nova
professora saber o que estavam estudando. A professora explicou que as pessoas
que trabalhavam na escola sabiam do projeto que estavam desenvolvendo e
contaram o que haviam aprendido. Entretanto, a proposta se apresentou
desafiadora para as crianças, uma vez que teriam que recontar uma história mais
longa na forma de quadrinhos. Questionaram o que deveriam colocar na história, em
quantos quadrinhos deveriam compor a história, se teria que ter começo, meio e fim,
se poderia ser começo, meio, meio e fim, evidenciando os aspectos focalizados pela
Professora 1 nas propostas anteriores de produção dos textos. A Professora 2,
então, retomou a proposta, explicando que poderiam fazer a história com quantos
quadrinhos achassem necessários, escolhendo as partes que mais gostaram da
história. Para ajudar as crianças a se lembrarem da história, retomou o começo,
como se desenvolveu e o seu final.
Diante das condições apresentadas: recontar a fábula do galo e da raposa por meio
de quantos quadrinhos quisesse e usando balões de fala, as crianças iniciaram o
trabalho escrevendo o nome e a data em uma das páginas do bloco de atividades,
suporte oferecido para a produção textual, interagindo entre si, trocando idéias,
opiniões, solicitando ajuda da professora e a nossa também. Prosseguiram
46
A professora tomou uma versão publicada em coletânia didática.
190
delineando as vinhetas uma a uma, inserindo as personagens, pintando as cenas,
conforme podemos observar nos movimentos ilustrados nas Fotos 36 e 37.
Comprendemos que, nessa situação, embora tenha ocorrido a instauração de um
movimento interlocutivo centrado na professora, uma vez que, na proposta, não
foram explicitados outros interlocutores ou razões para produção do texto, havia um
conteúdo a expressar, definido de forma clara pela professora. Os resultados dessa
atividade foram documentados em nosso corpus de pesquisa com uma amostra de
seis produções que revelaram como as crianças organizaram a fábula por meio de
recursos discursivos característicos das narrativas quadrinizadas imprimindo maior
expressividade ao texto. Observemos os aspectos gerais dessas produções
mostrados nas Fotos 38, 39, 40, 41, 42 e 43:
Foto 36 - Processo de elaboração dos quadrinhos
(4
-
8
-
2005)
Foto 39 - Texto de Marc (4-8-2005) Foto 38 - Texto de Cris (4-8-2005)
Foto 37 - Processo de elaboração dos quadrinhos
(4
-
8
-
2005)
191
De maneira geral, essas histórias em quadrinhos foram compostas em três ou quatro
vinhetas, quantidade recorrente em quase todas as produções, distribuídas na
página do bloco de atividades de modos distintos. Algumas crianças ocuparam todo
o espaço da folha dividindo os quadrinhos com traços ora na posição vertical, ora na
Foto 40 - Texto de Joa (4-8-2005) Foto 41 - Texto de Gil (4-8-2005)
Foto 42 - Texto de Wes (4-8-2005) Foto 43 - Texto de Kai (4-8-2005)
192
posição horizontal ou em ambas as posições. Também ocuparam apenas a parte
inferior da página, produzindo os quadrinhos em forma de tira. O fato de as crianças
usarem uma quantidade pequena de quadrinhos pode ser decorrente dos trabalhos
realizados anteriormente. Além disso, parece-nos, também, que as crianças
recorriam a essa quantidade de vinhetas, mesmo quando não era uma orientação da
professora, devido ao fato de ser essa uma proposta de produção bastante
desafiadora para as crianças, confirmando o que nos disse Mendonça (2005) a
respeito da falsa premissa de que, devido à integração de semioses discursivas, a
leitura e a produção de quadrinhos parecem ser relativamente fáceis.
Considerando as condições de produção e as seqüências de ensino organizadas
pelas professoras, compreendemos que o trabalho com as histórias em quadrinhos
na sala de aula pesquisada também foi influenciado por essa premissa, trazendo
implicações para o trabalho dos sujeitos durante o processo de produção das
histórias em quadrinhos. Na amostra dos trabalhos apresentada, temos uma
produção em que o foram agregados balões de fala à narrativa quadrinizada,
embora seja possível notar que houve uma preocupação com a seqüência dos
acontecimentos no texto, o que não observamos em grande parte dos trabalhos
elaborados.
Os demais trabalhos recolhidos são representativos de uma pequena parcela de
textos em que os balões de fala foram tomados como recurso discursivo. Nessas
produções, as crianças incluíram falas que remeteram às situações vividas pelas
personagens na narrativa apresentada pela professora, conferindo sentidos ao texto.
Para produzirem essas falas, usaram letras que representavam adequadamente
determinados fonemas que garantiram a legibilidade do texto. Quanto aos recursos
icônicos, observamos que as crianças empreenderam esforços na configuração das
personagens, inserindo poucos elementos na configuração do cenário.
Tomaremos o trabalho produzido por Joa (Foto 44) para olhar com mais
profundidade a articulação desses recursos na produção de sentidos do texto:
193
Joa escreveu o título da história, fazendo opção de recontá-la por meio de quatro
vinhetas. Iniciou a sua narrativa quadrinizada com a fala do galo dizendo: EU
NÃOTENHOMEDO DARAPOSA (eu não tenho medo da raposa), evidenciando a
coragem dessa personagem em relação aos demais animais da floresta que o
manifestavam esse sentimento. Por meio dessa fala, Joa instaurou a situação inicial
da trama: a conversa entre os animais da floresta sobre o perigo de conviver com a
raposa. Na vinheta que se seguiu, Joa indicou a complicação que ocorreu no
momento em que a raposa convidou o galo para descer da árvore e ele respondeu:
EU VOUFICARAQUI UMPOUCO (eu vou ficar aqui um pouco). A resolução da
problemática ocorreu na terceira vinheta, quando o galo encontrou uma forma de
espantar a raposa dizendo: EUTO VENDO DOSCACHORRO (eu estou vendo dois
cachorros). Na última vinheta, finalizou a narrativa mostrando a personagem
principal enunciando que não teve medo: EU NÃO FIQUEI COMEDO. Nessa
Foto 44 - Texto de Joa em foco (4-8-2005)
194
vinheta, Joa não se preocupou, ou esqueceu, em inserir a fala da personagem em
um balão.
Embora tenha apresentado a história do galo e da raposa em apenas quatro
quadrinhos, compreendemos que Joa conseguiu contemplar os momentos centrais
da história: o começo, a complicação, a resolução e o final. Marcou a sua intenção
em compor a história desse modo, escrevendo em cada quadrinho palavras que
indicaram o percurso de planificação das idéias: COMESO (começo), MENHO,
MENHO (meio, meio) e FIM.
Ao produzir o texto verbal, Joa evidenciou a apropriação do sistema alfabético de
escrita, utilizando letras para representar fonemas, fez uso do til na palavra NÃO,
incluiu escritas que atenderam às convenções sintáticas e ortográficas:
FICAR/FIQUEI, RAPOSA, POUCO, CACHORRO e, em alguns casos, não: TO,
DOSCACHORRO, COMEDO. Outro aspecto interessante foi que, embora Joa tenha
tentado segmentar as palavras no texto, supomos que, em algumas circunstâncias,
deixou de lado esse trabalho em função do pouco espaço disponível nos balões
para o texto escrito.
Quanto aos recursos de natureza icônica, observamos que Joa não se restringiu
apenas ao desenho das personagens centrais. Ele se preocupou com o local onde
estava acontecendo a história e com o tempo. Evidenciou essa preocupação inserindo
nuvens em todos os quadrinhos, a árvore que serviu de abrigo para o galo e outros
animais da floresta. É importante observar, em sua produção, como utilizou os
espaços da vinheta situando a raposa em primeiro plano, o que causou um efeito de
proximidade na cena. Joa produziu um trabalho que se destacou, pois grande parte
das crianças não conseguiu concluir o laborioso trabalho de contar a fábula do galo
e da raposa por meio dos recursos delineados na proposta da professora.
Schneuwly (2004) discute as relações entre gêneros primários e secundários
defendendo a tese de que, por o funcionarem mais num espaçotempo de
imediatez, os gêneros secundários se constituem em instrumentos semióticos
complexos. Como nos diz o autor (2004, p. 26): “[...] a escolha de um gênero, em
função de uma situação definida por um certo número de parâmetros: finalidade,
195
destinatários, conteúdo [...] a elaboração de uma base de orientação para uma
ação discursiva”. Nesse sentido, propõe uma analogia entre a idéia de gêneros
primários e secundários em Bakhtin e a relação pensamento e linguagem em Vigotski
que nos parece interessante para ampliarmos nossa compreensão acerca das
necessidades educativas em torno do trabalho com o gênero na sala de aula.
O autor argumenta que os neros primários podem ser compreendidos por
analogia aos conceitos cotidianos, pois emergem da troca verbal espontânea entre
as pessoais na vida cotidiana. Os secundários, por sua vez, não estão somente
ligados à experiência cotidiana, às situações de comunicação imediatas. Concebidos
no contexto dos conceitos científicos em Vigostski, os gêneros secundários
introduzem uma ruptura importante no desenvolvimento da criança, trazendo
implicações para o processo de ensino aprendizagem.
Ao dialogar com as preposições das correntes psicológicas mais difundidas em sua
época, Vigotski (2001) questiona as explicações que se fundamentam numa
abordagem mecânica, na qual o desenvolvimento dos conceitos científicos na
criança ocorre por vínculos associativos formados pela memória, num processo
simples e universalizante de assimilação. De acordo com o autor, essa teoria
também se mostra inconsistente nas relações pedagógicas, uma vez que o ensino
centrado nessa perspectiva “[...] substitui a apreensão do conhecimento vivo pela
apreensão de esquemas verbais mortos e vazios” (VIGOTSKI, 2001, p. 247).
Buscando compreender e explicar como se desenvolvem os conceitos científicos na
mente de uma criança em processo de aprendizagem escolar, o autor defende que,
embora os conceitos cotidianos e científicos se desenvolvam por meio de processos
que estão interligados e que, portanto, exercem influências tuas, “[...] os conceitos
científicos não se desenvolvem exatamente como os espontâneos [...] o curso de seu
desenvolvimento não repete as mesmas vias de desenvolvimento dos conceitos
espontâneos” (VIGOTSKI, 2001, p. 252). Nesse contexto, entendemos que Vigostski
aponta a importância das condições de ensino e do processo colaborativo para que
ocorra a apropriação dos conceitos científicos ou dos saberes construídos ao longo da
história humana pelas crianças. Assim, em analogia aos conceitos científicos,
196
[...] o aprendiz é confrontado com gêneros numa situação que não
está organicamente ligada ao gênero, assim como o gênero, ele
próprio, não está mais organicamente ligado a um contexto preciso
imediato. Além disso, essa situação não resultou direta e
necessariamente da esfera de motivações já dadas do aprendiz, da
esfera de suas experiências pessoais, mas de um mundo outro que
tem motivações mais complexas, por construir, que não são mais
necessariamente pessoais (SCHNEUWLY, 2004, p. 33).
São essas motivações a construir que se constituem, a nosso ver, em aspectos
fundamentais no trabalho com a leitura e a produção de textos na sala aula. Buscar
motivações para que as crianças pudessem produzir seus textos foi uma
preocupação evidenciada nas práticas da Professora 2. Em suas propostas de
produção de histórias em quadrinhos, ela tentava encontrar as motivações para o
trabalho de escritura na literatura infantil, como mostrado no evento analisado e
como poderemos observar nos dois eventos que se seguem. Contudo, as propostas
apresentavam fragilidades decorrentes da ausência de preparo para a realização do
trabalho.
Analisaremos o evento observado no dia
10 de novembro, que teve como ponto de
partida, para o trabalho de produção
textual, a leitura do livro intitulado O que
tem nesta venda?
47
(Foto 45). Seu
registro, em nosso corpus de pesquisa,
ocorreu por meio de anotações em diário
de campo (evento 47, p. 304-309),
gravações em audiovisual (01h17min),
fotos do livro de literatura e de 17 textos
elaborados pelas crianças.
A professora iniciou o trabalho com o livro de literatura conversando com as crianças
sobre o que fazem com o dinheiro que ganham dos pais. Depois de ouvir as
crianças, ela iniciou a leitura da história, apresentando a capa do livro, o nome da
história, o nome do autor e da coleção a qual pertence. Instigou as crianças a
47
Livro de Elias José, com ilustrações de Rogério Coelho, publicado pela Editora Nova Didática.
Foto 45 - Livro O que tem nesta venda? (Elias José)
197
levantarem hipóteses sobre o que poderia ter naquela venda e, em seguida,
procedeu à leitura do texto fazendo pausas em decorrência da pontuação e da
repetição de palavras nos versos, provocando efeitos de sonoridade que
convidavam as crianças a participarem da leitura. Assim, após tecerem vários
comentários sobre os produtos que a personagem foi comprar na venda, a
professora apresentou às crianças a proposta de trabalho do dia:
Prof. 2: bom... agora... crianças:: agora que vocês já ouviram a história... disseram o que
que vocês compram na venda quando têm dinheiro... descobriram o que que a
menina compra na venda quando ela vai comprar né?... com o dinheiro dela... eu
gostaria que vocês... eh:: fizessem pra mim... uma história em quaDRInhos... em
quaDRInhos (Evento 47, 10-11-2005).
Ao ouvirem a proposta, as crianças manifestaram várias reações negativas
provocando a necessidade de a professora apresentar outros argumentos para
motivá-las, como pode ser observado no trecho que se segue:
C: ((assim que ouviram a proposta da prof)) eh:::: ah não... sim... ah:: não
Gab: NÃO... NÃO... NÃO... NÃO ((falando em tom de voz ritmado e alto))
Prof. 2: Gab... eu NÂO estou pergunTANdo se VOCÊ QUER ou se você NÂO QUER...
((alterando o tom de voz)) eu pergunTEI?... pergunTEI... Gab?
Gab: não
Prof. 2: não pergunTEI... eu esTOU dizendo que voCÊS vão fazer pra mim... uma história em
quaDRInhos... de COmo que vocês vão na venda... o QUE que vocês PEdem... o
QUE que vocês compram... COmo que vocês compram... ((ainda em tom de voz
alterado)) e vocês vão ter que usar os balões que vocês pesquisaram... e tamm... se
vocês quiserem... se tiver como... pode usar também as onomatoias que vocês
pesquisaram (Evento 47, 10-11-2005).
A professora, então, usou de sua autoridade em sala de aula para exigir que as
crianças escrevessem, definindo, desse modo, não somente a forma e o destino do
texto, mas o lugar de quem ensina e o lugar do aluno, que deve cumprir o que lhe foi
determinado. Diante da imposição, as crianças reagiram fazendo perguntas do tipo:
mas... tia... e se eu não estiver falando nada? (MARC, Evento 47, 10-11-2005),
tia... tem que perguntar assim... pai... você tem dinheiro?... aí se ele falar que tem...
você me dá pra comprar isso pai?” (PED, Evento 47, 10-11-2005). Assim, colocada a
exigência de realização da tarefa e, em seguida, dadas as orientações, que foram
completadas pela professora, com a definição do suporte e da quantidade de
198
vinhetas que deveria ser usada para compor a história, as crianças foram
autorizadas a iniciar o trabalho. Começou, então, uma movimentação em sala de
aula. Elas conversavam entre si, solicitavam materiais emprestados (especialmente
régua e lápis de escrever), refaziam suas divisões a partir das explicações da
professora que, somente depois, lembrou que havia se esquecido de um detalhe
importante: pré:: psiu... quem dividiu a folha... eh::quando for fazer a história...
depois tem que lembrar de colocar um tulo na história... tá?... o título que vocês
acharem melhor pra história de vocês (PROF. 2, Evento 47, 10-11-2005). Enquanto
as crianças realizavam o trabalho, algumas conversando em tom de voz baixo e
outras em silêncio, a professora andava pela sala observando, orientando as
crianças individualmente e lembrando:
Prof. 2: oh:: não esqueçam de usar os baLÕes de fala e as onomatopéias se precisar...
tá?... os balões têm que ter e as onomatopéias se precisar... deixa eu pegar o
papel das onomatopéias aqui... para vocês verem aqui... pesquisar... o barulho do
teleFO::ne... vou colocar aqui ((expõe o cartaz))... se... por acaso estiver
chovendo... olha... um MOnte de onomatopéia... ambulância... helicóptero...
chuva... porta... vento... trovão (Evento 47, 10-11-2005).
Como em outras situações observadas, o tempo de produção de cada criança foi
diferente. À medida que terminavam os trabalhos, elas procuraram a professora para
apresentá-los, atendendo, desse modo, à finalidade definida na proposta de
produção. Porém, as crianças não restringiram o destino do texto à professora, pois
se movimentavam pela sala de aula mostrando os trabalhos para os colegas,
contando a história ou partes daquilo que haviam produzido. Podemos compreender
que, ao mostrarem seus trabalhos aos colegas, as crianças buscaram outros
interlocutores para o texto, evidenciando a necessidade de interagir com o outro, de
conversar para o que se produz ter respostas.
A professora, percebendo esse movimento em sala de aula e concluindo que a
tarefa havia sido cumprida, encerrou o trabalho solicitando: pré... agora senta
cada um no seu lugar... quem não acabou pode terminar... tá?... agora senta... Mar...
pro seu lugar... Ped... pro seu lugar... Mat... faz favor pra mim... você e Lua... vocês
vão pegar os envelopes onde coloca as histórias em quadrinhos e entregar... com
cuidado... hein... é o menor(PROF. 2, Evento 47, 10-11-2005), ressaltando, desse
modo, a finalidade da tarefa.
199
Os resultados dessa atividade foram arquivados em nosso corpus de pesquisa
perfazendo um total de 17 textos. A partir de um levantamento geral dessas
produções, foi possível observar que, em cinco trabalhos, os balões de fala o
foram tomados como recurso lingüístico e as onomatopéias foram contempladas
apenas em duas produções. Em três trabalhos, os textos verbais não apresentaram
indícios de legibilidade, entretanto um aspecto que mais nos chamou a atenção foi
que, em apenas seis produções, a seqüência narrativa pôde ser compreendida sem
explicações do autor. Além disso, outros temas também foram suscitados pelas
crianças, como pode ser observado no registro fotográfico 46:
Se considerarmos que o trabalho com as histórias em quadrinhos vinha ocorrendo
desde o começo do ano, que explicações podemos atribuir a esses resultados? O
que as condições de produção desses textos nos revelam? Antes, porém, de
tentarmos responder a essas questões, apresentaremos quatro trabalhos que
evidenciam o que disseram as crianças que buscaram conciliar, na produção textual,
as orientações explicitadas pela professora.
Um desses trabalhos foi produzido por Cris, que contou uma situação em que ela e o
pai foram comprar bala e sorvete, conforme mostrado na Foto 47.
Foto 46 - Texto de Mat (10-11-2005)
200
Cris deu um título ao texto: UM MAVEDA DE BALA (uma venda de bala). Na
primeira vinheta, desenhou o pai da menina dizendo: VILHA (filha) e a menina se
aproximando da venda dizendo: MOSO POFA (moço por favor). Na segunda
vinheta, a menina foi a uma sorveteria, comprou o sorvete e agradeceu: OBIGADO
(abrigado) enquanto o pai a esperava assoviando. Na terceira vinheta, desenhou
apenas um automóvel e, na última, um coração enfeitado com a palavra PAZ.
Conforme orientação da professora, Cris se limitou a usar balões de falas para
reproduzir enunciados comuns entre consumidor e vendedor, como o texto que se
segue (Foto 48) que foi produzido por Lay:
Foto 48 - Texto de Lay (10-11-2005)
Foto 47 - Texto de Cris (10-11-2005)
201
Lay também produziu um texto com quatro cenas, mas não se preocupou em dar um
título. Ela contou uma situação de compra numa padaria. Para isso, desenhou uma
menina se aproximando do balcão e pedindo: MIDADOS PÁOL (me dá dois pães) ao
que o atendente respondeu: DOSIM (dou sim). Em seguida, a desenhou passando
pelo caixa e, depois, indo embora com os pães.
Passemos ao texto de Ped (Foto 49):
Ped elaborou esse texto com a ajuda de dois colegas, Wes e Kai. O que ele disse?
Iniciou o trabalho contando: UM DIA EUF EUFUNA SORVETERIA (um dia eu fui na
sorveteria). Antes, porém, pediu dinheiro ao pai: PAI MIDA UM REAL (pai me um
real) e o pai respondeu: CLARO QUE DOR (claro que dou). Depois de comprar o
sorvete, ele voltou para casa, conforme podemos concluir com a leitura que fizemos
do terceiro e do quarto quadrinhos. Dessa forma, podemos compreender que Ped
elaborou um texto exatamente como a professora pediu: contou uma história com
começo, meio e fim, em que foi à venda comprar guloseimas com o dinheiro que
ganhou do pai e usou balões com falas que indicaram o diálogo
.
Foto 49 - Texto de Ped (10-11-2005)
202
Por fim, apresentaremos o texto de Joa (Foto 50), uma criança que tentou conciliar
todas as demandas dessa produção:
Joa criou uma história em que foi fazer compras, em quatro vendas diferentes,
conforme pode ser observado nos meros indicados em cada uma delas. Na
primeira vinheta, desenhou ele mesmo se aproximando da primeira venda e tocando
uma campainha: DINDOOM. Na segunda vinheta, ele saindo da venda 2,
agradecendo: BRGADO (obrigado) e a pessoa que o atendeu, respondendo: DINADA
(de nada). Em seguida, foi à outra venda, onde também tocou a campainha:
DINDOOM. Encerrou suas compras passando por outra venda e despedindo-se da
pessoa que o atendeu: TIAO (tiau), ao que lhe respondeu: ADEUS.
Como podemos observar nesses trabalhos, as crianças tentaram atender à proposta
da professora contando uma situação em que foram fazer compras com o dinheiro
que ganhavam dos pais, por meio de quatro vinhetas (conforme um dos modelos
apresentados pela professora no quadro), usando balões de fala. A produção de
Cris foi a única, o apenas dessa amostra, mas de toda a turma, que incluiu tulo.
Ped usou um recurso narrativo contando quando (um dia) e onde foi (na sorveteria).
Joa incluiu a onomatopéia DINDOOM em seu texto, respondendo à sugestão da
professora. Ao que parece, Joa apenas usou o recurso buscando atender à
Foto 50 - Produção de Joa (10-11-2005)
203
orientação da professora, uma vez que, normalmente, não se toca campainha para
entrar em vendas.
Esses resultados são elucidativos dos modos como as crianças buscaram articular as
demandas que foram definidas pela professora para a produção dos trabalhos.
Podemos dizer que, na perspectiva da professora, as crianças tinham o que dizer.
Elas ouviram uma história sobre o tema, relataram o que faziam quando ganhavam
dinheiro dos pais. Contudo, isso não foi suficiente para instaurar uma situação de
produção que tomou como estratégia de dizer o gênero quadrinhos. Que motivações
as crianças tinham para contar histórias sobre esse tema? O que elas poderiam dizer
sobre situações dessa natureza, tomando os quadrinhos como estratégia de dizer?
Acreditamos que mais uma vez cumpriram uma tarefa que foi imposta pela
professora sem compreenderem as razões para concretizar a experiência do vivido.
Isso também pode ser observado no modo como as crianças concluíram os
trabalhos. Cris, por exemplo, ocupou o espaço do quarto quadrinho com o coração
no qual escreveu PAZ. É interessante notar que a falta do dizer pode ter levado Cris
a concluir o texto com uma palavra muito utilizada em campanhas realizadas por
organismos governamentais e não-governamentais. Lay, a partir do terceiro
quadrinho, também evidenciou que não tinha mais o que dizer e, por isso, desenhou
o caixa e uma criança (provavelmente ela) sem cuidar dos detalhes da imagem. Ped
também apresentou um movimento de produção parecido, pois contou a situação de
compra em apenas dois quadrinhos e ocupou os espaços com imagens que
aparentemente não agregaram novos sentidos ao texto. Joa tentou articular os
recursos solicitados pela professora, dizendo praticamente a mesma coisa em todas
as vinhetas.
O último evento observado em campo, que suscitou a produção de histórias em
quadrinhos, foi decorrente do trabalho com as histórias da escritora Eva Furnari.
Buscando trabalhar com autores de quadrinhos pouco conhecidos pelas crianças, a
Professora 2 introduziu algumas obras dessa autora. Analisaremos um evento,
observado no dia 29 de novembro de 2005, e registrado em nosso corpus de
pesquisa por meio de anotações em diário de campo (Evento n. 53, p. 332-336),
filmagens e transcrição (cerca de 1h05min) e fotos de todos os textos produzidos.
204
Antes de iniciarmos a descrição desse evento,
é importante explicar que a idéia de trabalhar
com a obra da escritora Eva Furnari foi
decorrente da participação da Professora 2 no
Curso de Extensão Alfabetização e letramento,
quando, em um desses encontros, a
professora conheceu o trabalho da escritora
optando por integrá-lo ao projeto de literatura
com histórias em quadrinhos. O livro
escolhido, intitulado A bruxinha atrapalhada
(Foto 51),
48
consiste numa coletânea de
histórias contadas por meio de recursos
icônicos no formato de quadrinhos.
A partir de Smolka (2003), podemos caracterizar melhor essa produção literária no
formato de histórias em quadrinhos. Ao justificar as razões que a fizeram tomar as
histórias em quadrinhos de Eva Furnari para o trabalho que estava realizando com
crianças na idade pré-escolar, em 1982, a pesquisadora explicou que, nessas
histórias, predominam as seqüências de quadrinhos sem escrita, com elementos
icônicos que sugerem a mágica, a transformação, o nonsense. São esses elementos
que atribuem às narrativas um caráter mítico, fantástico, imaginativo. Além disso, de
acordo com Smolka (2003, p. 81),
Os desenhos têm uma característica atual e estilizada, guardando, no
entanto, arquétipos tradicionais: bruxa ou fada, varinha de condão,
magia... Ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, não abrem
espaços, mas convidam as crianças a se posicionarem como
interlocutoras nas histórias.
As características textuais da obra A bruxinha atrapalhada foram apresentadas, em
linhas gerais, pela Professora 2 na roda de conversa, quando convidou as crianças
48
Esse livro foi publicado pela Editora Globo. A bruxinha atrapalhada é uma das personagens mais
populares da escritora e foi criada para um trabalho que ela desenvolveu no Jornal Folha de São Paulo,
em 1979. Nesse trabalho, que durou cerca de sete anos, Eva Furnari produzia tiras que eram
publicadas semanalmente. Somente depois surgiram as publicações de suas “ilustrações narrativas”
assim nomeadas pela autora, em livros de literatura infantil, com a finalidade de atender às crianças
bem pequenas. Disponível em: <
http://www.avanielmarinho.com.br/infantilevafurnari.htm>. Acesso
em: 25 jun 2006.
Foto 51 - Livro A bruxinha atrapalhada
(Eva Furnari)
205
para conhecerem uma história em quadrinhos diferente das que estavam
trabalhando até então. Antes, porém, de falar sobre a história que seria contada na
roda, a Professora 2 retomou o processo vivido em sala de aula, ajudando as
crianças a se lembrarem das histórias em quadrinhos que dispunham em sala de
aula, dos nomes dos autores dessas histórias, das personagens mais conhecidas e
dos recursos lingüísticos (como balões de fala e onomatopéias) que geralmente o
usados pelos autores para compor os sentidos do texto.
Em seguida, convidou as crianças a conhecerem as histórias da Eva Furnari,
sinalizando algumas possibilidades de interlocução a partir da iconicidade textual,
perguntando quem conhecia a escritora ou lido suas histórias.
49
Em seguida, a
professora apresentou a capa do livro, dialogando com as crianças a respeito do que
a autora poderia contar num livro cujo título era A bruxinha atrapalhada.
50
Prof. 2: A bruxinha atrapalhada... nós vamos ver que as histórias que têm aqui dentro... elas
não tem... né?... algumas coisa que vocês vão ver depois... mas por que será que a Eva
Furnari... colocou o nome dessa história A bruxinha atrapalhada?
C: ((apresentam várias respostas ao mesmo tempo))
Prof. 2: calma... quem quer responder levanta a mão... Mat
Mat: que ela é atrapalhada
Prof. 2: que ela é atrapalhada... mas por que ela é atrapalhada?... Lua
Lua: é porque:: ahn... ela fica ahn:: esqueci
Prof. 2: Jac
Jac: bagunçando
Prof. 2: que ela fica bagunçando... bagunçando o quê?... fala... Mon
Mon: ela faz bagunça
Prof. 2: ela faz bagunça?... por isso que ela é atrapalhada?
49
A vida e a obra da escritora foram apresentadas às crianças em momento posterior (Evento 55, 2-
12-2005), a partir da consulta em texto biográfico que indicamos para a professora.
50
Acreditamos que essa estratégia de leitura utilizada pela Professora 2 foi apropriada no Curso de
Extensão Alfabetização e Letramento que, do nosso ponto de vista, produziu transformações
significativas na prática, como também poderemos verificar em outros eventos. Esse curso foi
ministrado pela Profª. Drª. Cláudia M. M. Gontijo (UFES/PPGE), no segundo semestre do ano letivo
de 2005.
206
Mon: ((confirma))
Marc: porque ela é muito desajeitada
Prof. 2: porque ela é desajeitada... eu vou pedir uma coisa... quem não quiser responder não
levanta a mão... porque na hora que eu chamo... ah:::: não sei... o que adianta?...
fala... Joa
Joa: é porque ela:: eh:: viu uma coisa e... e... eh:: e ela não descobre
Prof. 2: ela vê uma coisa e ela não descobre?... só por isso ela é atrapalhada?
Joa: ((confirma))
Prof. 2: fala... Nat
Nat: é porque tudo que o gato quer fazer ela quer fazer
Prof. 2: vamos ver aqui uma historinha da Eva Furnari oh:::: ((abrindo o livro)) (Evento 53,
29-11-2005).
Assim, a professora instaurou, logo no início da leitura do texto, uma situação em
que as crianças tentaram antecipar as histórias, confirmando as possibilidades de
interagir com o texto a partir dos recursos icônicos. Esse diálogo com o texto foi
mantido durante a leitura das duas histórias (Fotos 52 e 53) que a professora
escolheu para serem contadas nesse dia:
Foto 52 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada
207
Considerando as possibilidades de as crianças anteciparem o conteúdo dos textos
pela leitura do título, a professora manteve esse procedimento inicial despertando a
curiosidade das crianças por meio de perguntas do tipo: por que será que essa
historinha da Eva Furnari se chama O chapéu?; “O passarinhão... por que será que
tem esse nome?(PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005). Essas perguntas provocaram
a participação das crianças na leitura dos textos. Ao serem motivadas a arriscar
suas opiniões, elas recorriam a experiências que não estavam apenas circunscritas
à situação imediata de leitura, como pode ser observado nas respostas de Joa, Ped
e Marc: ela usa um chapéu preto”; não... chapéu de bruxa é roxo”; é um pássaro
grandão” (Evento 53, 29-11-2005).
A professora prosseguiu com a leitura dos textos, fazendo perguntas sobre o que
estava acontecendo em cada cena, sobre os detalhes das imagens e dos recursos
icônicos utilizados pela autora, para que as crianças construíssem oralmente os
sentidos do texto, até concluírem as razões que faziam dessa bruxinha uma bruxinha
atrapalhada. Nas interações, a professora possibilitou a alternância dos sujeitos do
discurso, promovendo condições para a instauração de um movimento que abarcou o
espaço de discursividade no processo de leitura convidando as crianças a
Foto 53 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada
208
participarem da interlocução em diferentes momentos, inclusive ao considerar as
questões suscitadas pelas crianças, como pode ser observado nos enunciados: mas
que coisas que ela transformava? o que ela esqueceu de fazer na hora que ela
transformou o passarinho numa tesoura? por que o passarinho correu atrás dela?
essa história ensina isso?... ali ele queria se vingar da bruxa e correu atrás dela?
vocês acham que se o passarinho / a tesoura... né?... conseguisse pegar a varinha da
bruxa o que ele ia fazer? o gato também? (PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005).
Ao mediar a interlocução com texto, a professora também procurou chamar a
atenção das crianças para as estratégias de dizer da autora, reforçando, desse
modo, os elementos discursivos a serem focalizados na proposta de produção que
decorreria da leitura do texto. Partindo dessa interação com os dois textos de Eva
Furnari, ela apresentou a proposta de trabalho que foi explicitada do seguinte modo:
Prof. 2: vocês viram que a Eva Furnari... como nós contamos nas histórias pra vocês... ela
não utiliza onomatopéias... ela não utiliza balões de fala... mas ela faz uma história numa
seqüência que a gente consegue entender... não é?
C: é... ahn... ahn
Prof. 2: sabe o que vocês vão fazer também?... uma história... em grupo tá?... numa
seqüência... vão ter três partes essa história que vocês vão ter que fazer... e vocês vão ter
que inventar uma parte pra ser o começo... uma parte pra ser o meio da história... uma parte
pra ser o fim... mas tem que ser uma coisa ligando a outra... tá?
Joa: começo meio e fim (Evento 53, 29-11-2005).
Depois dessas explicações, ela dividiu a turma em grupos e, em seguida, tomando o
suporte do texto nas mãos (uma cartolina dividida em três partes), retomou as
orientações para que as crianças trabalhassem de forma cooperativa, compondo
uma história inédita com a bruxinha atrapalhada, ou outra personagem que
desejassem. Então, nessa proposta as crianças deveriam criar uma história, que
poderia ser da bruxinha atrapalhada, em três vinhetas delimitadas na folha de
cartolina pela professora, usando apenas recursos icônicos, no estilo da Eva Furnari,
sem balões de fala ou onomatopéias, compondo uma seqüência de idéias com
começo, meio e fim. Deveriam, também, escrever um título em letras bem grandes
para a história e não esquecer de colocar os nomes dos autores.
209
A partir dessas orientações, as crianças iniciaram os trabalhos, conversando sobre o
tema da história, decidindo sobre o título, dividindo as tarefas nos grupos. De maneira
geral, elas se envolveram na atividade, trabalhando, conforme solicitado pela
professora, de modo cooperativo: umas desenhavam, outras pintavam os desenhos,
outras escreviam os títulos. Ao final, as crianças mostraram os textos para a
professora que solicitou que contassem oralmente as suas histórias. Ao todo, foram
produzidas seis histórias assim intituladas: O palhaço atrapalhado, Urso negro, Os
namorados, A bruxa e a flor, A bruxinha na prainha, Chapeuzinho Vermelho.
Observemos como as crianças concretizaram suas idéias a partir da proposta
apresentada pela professora, considerando dois trabalhos que abarcaram temas
diferentes. O primeiro texto selecionado para análise foi produzido por Kai, Ped, Pat
e Mar. As crianças desse grupo optaram por criar uma história da bruxinha contando
o que aconteceu no dia em que ela foi à praia (Foto 54).
O tema da história foi revelado a partir do título: A BRUXINHA NA PRAINHA, escrito
de forma convencional por Kai, a criança do grupo que dominava a escrita
alfabética. Nesse título, as crianças fizeram uso da rima conferindo ritmo à leitura.
Conforme solicitado pela professora, o título foi escrito com letras bem grandes e
coloridas. As crianças também colocaram seus nomes no trabalho, mas eles foram
apagados pors para preservar a sua identidade.
Foto 54 - Texto produzido por Kai, Ped, Pat e Mar (29-11-2005)
210
Essa história foi narrada oralmente por Ped assim: a bruxinha estava na praia...
eh::: começou a chover... e... depois... apareceu o arco-íris... e... e... ela foi embora
(Evento 53, 19-11-2005). Nessa produção, as crianças ofereceram pistas que
garantiram a seqüência dos acontecimentos no texto. Essas pistas podem ser
observadas a partir dos recursos visuais utilizados pelas crianças para comporem os
sentidos do texto.
Esses recursos consistiram em sinais do tipo natural que marcaram as mudanças
climáticas: tempo ensolarado com nuvens, tempo estável com sol e chuva formando
o arco-íris; ícones imitando os pássaros que se movimentaram no céu reforçando
que ocorriam mudanças climáticas; ícones que imitaram as árvores e a figura da
bruxinha. A movimentação da bruxinha na história também foi figurativizada por meio
de mudanças no ambiente: podemos observar que as crianças desenharam a água,
a areia do mar e o caminho de volta. A repetição também foi um recurso utilizado
nessa história, como pode ser observado no desenho do sol e da própria
personagem que, embora tenha sido desenhada por várias crianças, como mostram
os traços característicos dos desenhos, teve suas características preservadas.
Recursos dessa natureza também foram considerados por Ron, Let, Gil e Iur na
elaboração do texto que se segue (Foto 55) intitulado URSO NEGRO:
Foto 55 - Texto produzido por Ron, Let, Gil e Iur
(29-11-2005)
211
Gil contou que, nesse texto, eles criaram a seguinte história: “eh:::: o urso tava
brincando... de repente... o homem veio e... e... prendeu ele... depois... o homem
soltou o urso porque ele se lembrou da... da... eh:::: infância dele(Evento 53, 19-11-
2005). Para compor essa história, as crianças também lançaram mão de recursos
icônicos bastante interessantes: mantiveram o sol e nuvens em todas as vinhetas, o
urso e o homem com os mesmos aspectos figurativos. A seqüência narrativa foi
instaurada com a personagem urso caminhando pela floresta, sendo aprisionada
pelo homem e, em seguida, libertada. Isso pode ser observado na figurativização da
jaula e do movimento do caçador abrindo-a. O uso dos balões foi justificado pelas
crianças com a explicação de que o homem ficou feliz porque soltou o urso. Esse
recurso, de acordo com Higuchi (1997), pode ser tomado como um ícone simbólico,
uma vez que o representa diretamente a realidade e sua significação é
concretizada a partir de acordos, o que também pode ser observado nas produções
de Eva Furnari. A história produzida por esse grupo de crianças foi uma das mais
expressivas com indicação de uma temática que remete ao campo das relações
socioambientais, sinalizando que a opção por contar histórias tomando temas
diferentes dos propostos também foi recorrente nessa situação.
Além dos textos apresentados, outros resultados também indicaram que, embora nem
sempre tenham recorrido ao tema proposto, de maneira geral, as crianças buscaram
atender às orientações da professora aproximando-se das demandas de produção.
Conforme situamos, essas demandas foram instauradas a partir da leitura do texto
que, nesse contexto, se configurou numa proposta de trabalho, cuja finalidade era a
produção de outros textos. Assim, partindo das produções da escritora Eva Furnari, a
Professora 2 buscou, nessa situação de produção de texto, instaurar condições para
que as crianças pudessem produzir histórias em quadrinhos a partir de um modelo,
estratégia didática que também foi abordada pela Professora 1.
Concordamos com Geraldi (2003), que esclarece que o texto pode ser tomado como
unidade de ensino na sala de aula não somente para interrogá-lo e escutá-lo a partir
de um querer saber mais, ou para a leitura-fruição, mas também para usá-lo na
produção de outros textos. Usar um texto como pretexto para a produção de outros
textos pode se constituir, na perspectiva aqui defendida, em um pretexto legítimo.
Entretanto, no contexto analisado, as possibilidades de legitimação do uso do texto
212
para a produção de outros textos também foram fragilizadas em decorrência das
estratégias de dizer delimitadas pela professora que:
a) circunscreveram o dizer em uma quantidade reduzida de quadrinhos, pois,
segundo a professora: em três partes fica mais cil pra vocês estarem fazendo
a história... com começo meio e fim” (PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005);
b) suscitaram a incerteza na escolha do que dizer: pode... pode ser com a
bruxinha atrapalhada e criar uma história diferente com a bruxinha... bom?
(PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005);
c) reduziram as possilidades da escolha das estratégias do dizer: que vocês
não vão fazer onomatopéias na história... nem vão utilizar balões de fala...
tá?” (PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005);
d) confirmaram que esse trabalho de produção é exigente, demandando um
esforço do sujeito-autor (criança de seis/sete anos) que vai além da simples
tarefa de desenhar: vocês vão ter que inventar uma parte pra ser o começo...
uma parte pra ser o meio da história... uma parte pra ser o fim... mas têm que
ser uma coisa ligando a outra... tá?... vocês vão ter que pensar qual título que
essa história vai ter... porque não adianta também desenhar a história depois
não saber nem o que aconteceu nessa história... vai ter que ter um... título
(PROF. 2, Evento 53, 29-11-2005).
O conjunto de orientações delineado pela Professora 2 evidencia, portanto, a
recorrência de situações de ensino aprendizagem nas quais os elementos mais
substanciais da comunicação-discursiva foram suprimidos do processo de produção
de textos, restringindo e comprometendo a atividade produtiva das crianças. Nessas
circunstâncias, que histórias as crianças poderiam contar? O que tinham a dizer em
suas narrativas quadrinizadas? Para quem deveriam produzir seus textos? Notamos
que as crianças empreenderam esforços no sentido de atender às expectativas
delineadas, produzindo textos que preencheram as condições apontadas. Contudo,
ao preencherem essas condições, as crianças refletiram em seus textos a
artificialidade da proposta de produção, como pode ser observado nas enunciações
das crianças que participaram da produção de outros grupos: a chapeuzinho tava
na casa dela... e a mãe dela mandou ela levar doce para a vovó... eh:::: ela
encontrou o lobo e ela abraçou a vovó e o lobo ficou morto (GAB, Evento 53,
213
29/11/2005); ou ainda: o título é... os namorados... a bruxinha... ela tava andando
de bicicleta... ela achou um namorado e... ela se casou... na festa de casamento
teve bolo” (MAT, Evento 53, 29-11-2005).
Os resultados dessa atividade confirmam, portanto, que as práticas discursivas em
torno da produção de histórias em quadrinhos vivenciadas pelos sujeitos no interior
da sala de aula pesquisada foram recorrentes. Confirmam também que essas
práticas não são neutras ou indiferentes ao contexto mais amplo de produção
desses dizeres, evidenciando que as experiências discursivas das pessoas se
desenvolvem em um processo de interação contínua, pois
[...] Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros
enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de
comunicação discursiva. Cada enunciado deve ser visto antes de tudo
como uma resposta aos enunciados precedentes de um determinado
campo [...]: ela os rejeita, confirma, completa, baseia-se neles,
subentende-os como conhecidos, de certo modo leva em conta [...]
(BAKHTIN, 2003, p. 297, grifo do autor).
Esse pressuposto fundamental nos permite reconhecer que, nessas práticas
específicas de produção de histórias em quadrinhos, as experiências discursivas das
crianças e das professoras não foram configuradas apenas pelo contexto imediato
de instauração dessas práticas. As situações de produção dos textos observadas na
sala de aula pesquisada também traziam as vozes dos discursos pedagógicos que
eram veiculados por meio das propostas de ensino adotadas pela escola, pelo
sistema de ensino da Rede Municipal de Vitória e, em nível mais amplo, pelos
discursos oficiais veiculados no RCNEI e no PROFA.
Ao apontar as implicações decorrentes das propostas de ensino que emergiram no
quadro de reflexões e mudanças sobre o trabalho de produção de textos na década
de 1980, Geraldi (1997) recorre às concepções de sujeito suscitadas a partir da
década de 1960, explicando que, nesse período, duas formas de conceituar o sujeito
se confrontaram: uma na qual o sujeito era a fonte do dizer, portanto um sujeito
pronto, acabado; e a outra que, ao tentar superar essa visão subjetivista, preconizou
o assujeitamento do sujeito às condições sociais e históricas de seu tempo,
concebendo-o como
214
[...] produto do meio, da herança cultural e das ideologias que,
incorporadas ao longo de sua história, fazem do indivíduo desde
sempre sujeito, mero preenchimento de um lugar social reservado
pela estrutura (ideológica) que define o dizível e como exercer o papel
neste lugar social previamente estabelecido (GERALDI, 1997, p. 19).
Essa concepção que situa o sujeito como fruto da sociedade, reduzindo suas
possibidades de intervir criticamente na realidade social, também foi denunciada por
Bakhtin em suas discussões acerca do pensamento filosófico-lingüístico por ele
denominado genericamente de Objetivismo Abstrato.
51
De acordo com o autor, essa
corrente de pensamento parte de uma visão racionalista e mecanicista de mundo que
desconsidera o potencial do sujeito e suas relações com a língua como um fenômeno
puramente histórico. Diz Bakhtin (1999, p. 108):
A língua, como sistema de formas que remetem a uma norma, não
passa de uma abstração, que pode ser demonstrada no plano
teórico e prático do ponto de vista do deciframento de uma língua
morta e do seu ensino. Esse sistema não pode servir de base para a
compreensão e explicação dos fatos lingüísticos enquanto fatos vivos
e em evolução. Ao contrário, ele nos distancia da realidade evolutiva e
viva da língua e de suas funções sociais [...].
A superação dessas concepções de língua e de sujeito no processo de ensino
aprendizagem pressupõe, portanto, o reconhecimento da dimensão sócio-histórica
da linguagem, pois “[...] o centro organizador de toda enunciação, de toda
expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o
indivíduo” (BAKHTIN, 1999, p. 121, grifo do autor).
Nesse contexto, a introdução do texto nas práticas de alfabetização não vem apenas
atender à demanda de formar o cidadão capacitado para utilizar a linguagem oral e
escrita nas sociedades capitalistas contemporâneas sob a justificativa de que a sua
inserção no mercado de trabalho, bem como a sua ascensão educacional e social
dependem das capacidades de comunicação desenvolvidas. Essa perspectiva,
caracterizada por uma visão imediatista e funcionalista de trabalho com textos na
sala de aula, pode produzir desdobramentos que artificializam o processo de
51
Corrente de pensamento que situa o sistema lingüístico como centro organizador dos fatos da língua.
Percebe a língua como um sistema sincrônico, estável, fechado, com leis específicas, que não sofrem
influências ideológicas nem históricas. A primeira expressão desse pensamento ocorreu com Leibniz,
na França, no século XVIII. Sua mais brilhante expressão, contudo, foi decorrente dos estudos
realizados pela Escola de Genebra, cujo principal representante foi Saussure (BAKHTIN, 1999).
215
produção, provocando, conforme observamos nos eventos analisados, o
enfraquecimento da situação de interlocução ou, ainda, a negação da escola como
lugar específico de comunicação no qual o gênero entra naturalmente na sala de
aula.
No caso pesquisado, a entrada do texto na sala de aula era, de maneira geral,
decorrente do trabalho com projetos que visava à integração de objetivos
educacionais e à contextualização das práticas de ensino aprendizagem. Entretanto,
a adoção dessa proposta de trabalho também trazia implicações para as práticas de
alfabetização que, de certa forma, já eram enunciadas no espaçotempo escolar,
como podemos notar na fala da professora:
Prof. 1: existem projetos de literatura na escola que muito preocupado com a estética do
livro... e não com o momento de produção das crianças... pra mim é o que é mais
importante... eles chegarem nesse nível de discutir... “não... Pat... não é assim que é
legal... eu tenho uma idéia melhor”... é isso que eu quero... dar opinião... [...] ele vai
produzir um texto... o vai escrever “o Ivo viu a uva”... ele vai escrever um texto
baseado nas suas opiniões sobre determinado assunto... você não vai ter que ficar
construindo o texto com ele... ele já tem uma bagagem de discussão (trecho da
entrevista realizada em 21-11-2005).
De certo, a abordagem mecanicista de alfabetização foi notadamente superada no
contexto das práticas observadas e a inserção do texto como unidade de ensino,
sem dúvida, repercurtiu em benefícios relevantes para o processo de alfabetização
das crianças, especialmente se considerarmos que elas eram motivadas a
escreverem textos e não letras, sílabas ou palavras descontextualizadas. Nesse
sentido, a proposta da Professora 1 de trabalhar com o gênero história em
quadrinhos, numa turma de crianças de seis/sete anos de idade da educação infantil
- acolhida pela Professora 2 foi instauradora de novas possibilidades de atuação
no interior das relações pedagógicas. Contudo, as condições de produção dos textos
influenciaram na constituição de sujeitos, cujas histórias, crenças e opiniões foram
caladas em função de uma abordagem, cujo foco central girou em torno de
determinados aspectos composicionais sem a necessária articulação com situações
sociais de comunicação.
216
Em consonância com a perspectiva teórica que orienta este estudo, compreendemos
que a constituição de sujeitos deve ser a principal razão para a entrada do texto na
sala de aula, acreditando que,
Ao se propor a produção de textos como a devolução da palavra ao
sujeito, aposta-se no diálogo (que o exclui a pomica e a luta pelos
sentidos) e na possibilidade de recuperar na ‘hisria contida e o
contada elementos indicativos do novo que se imiscuiu nas diferentes
formas de retomar o vivido, de inventar o cotidiano (GERALDI, 1997, p.
20).
O diálogo, portanto, se constitui o ponto de encontro das vozes que habitam a sala
de aula, que, nesse contexto, é concebida como lugar de interação, de produção de
sentidos e de constituição de sujeitos. Nas práticas específicas de produção de
histórias em quadrinhos, observamos que essa dimensão dialógica foi
comprometida. Conforme explicitado no início de nossas análises, o trabalho de
literatura que tomou como ponto de partida o gênero história em quadrinhos foi
provocador de outras propostas de trabalho que analisaremos a seguir.
5.1.2 As atividades de reescrita a partir das histórias em quadrinhos
Passaremos, neste tópico, a apresentar e analisar as situações de trabalho com as
histórias em quadrinhos nas quais as propostas de produção giraram em torno da
reescrita dos textos. Retomando a concepção bakhtiniana de gêneros discursivos,
partimos do pressuposto de que, “como tipos relativamente estáveis”, os gêneros se
constituem como ações sociodiscursivas ligadas a determinados campos da
atividade humana. Como nos fala Bakhtin (2003, p. 266):
Em cada campo existem e são empregados gêneros que
correspondem às condições específicas de dado campo; é a esses
gêneros que correspondem determinados estilos. Uma determinada
função (científica, técnica, publicística, oficial, cotidiana) e determinadas
condições de comunicação discursiva, específicas de cada campo,
geram determinados gêneros, isto é, determinados tipos de enunciados
estilísticos, temáticos e composicionais relativamente estáveis.
Essa concepção bakhtiniana de gêneros reforça a idéia de que os gêneros não se
caracterizam como formas estruturais estáveis, fixas, definidas, sem possibilidades
217
de recriação. Ao contrário, como fenômenos sociohistóricos, os gêneros se
constituem nas relações sociais, em função das necessidades discursivas de
determinadas esferas de comunicação. Nesse sentido, ao denominarmos um gênero
de texto, estamos denominando uma forma de concretizar enunciados em
circunstâncias particulares de interação social. Sua definição, portanto, demanda o
reconhecimento das peculiaridades do enunciado que são decorrentes da instância
de produção discursiva, ou seja, do domínio discursivo no qual emerge. A esse
respeito, Marcuschi (2005, p. 24) esclarece que os domínios discursivos o
abrangem um gênero em particular, mas sim “[...] constituem pticas discursivas dentre
das quais podemos identificar um conjunto de gêneros textuais que, às vezes, lhes são
próprios (em certos casos exclusivos) como práticas ou rotinas comunicativas
institucionalizadas”.
Dessa forma, reconhecemos que a instituição escolar, instância de produção
discursiva na qual circulam um conjunto de gêneros textuais, também legitima
práticas de linguagem em que se desenvolvem e recriam-se determinados gêneros
de textos em decorrência das próprias necessidades educativas. É o que ocorre, por
exemplo, com as atividades de reescrita de textos no contexto escolar. Geralmente,
essas atividades de linguagem são tomadas como uma estratégia de ensino e de
aprendizagem cujas finalidades estão voltadas para o desenvolvimento das
capacidades de textualização. No caso pesquisado, observamos que as situações
de reescrita foram instauradas, predominantemente, por meio da narrativização de
enunciados constituídos em forma de histórias em quadrinhos.
Voltando o seu olhar para a atividade de produção de textos que se materializam em
forma de narrativas, Goulart (2003, p. 87) caracteriza esse tipo textual “[...] pela
constituição de uma unidade de sentido por meio da apresentação de uma série de
ações e eventos, organizados em segmentos textuais menores, relacionados por
elementos de coesão”.
Brandão (2000) também apresenta contribuições que nos ajudam a compreender o
funcionamento textual dos gêneros que se organizam em torno da estrutura
218
narrativa. A partir das tipologias cognitivas propostas por Adam (1991),
52
a autora
discorre acerca da constituição lingüística dos neros discursivos, refletindo sobre
as categorias que estão na base de toda composição textual, reconhecendo que
estas, sozinhas, não dão conta da complexidade interdiscursiva que envolve os
gêneros textuais, mas garantem a sua relativa estabilidade enunciativa. A estrutura
seqüencial narrativa pode ser definida, segundo a autora, “[...] como seqüência de
proposições interligadas que progridem para um fim [...]” (BRANDÃO, 2000, p. 29).
Para tanto, são integrados seis constituintes:
a) pelo menos um ator antropomorfo constante, individual ou coletivo,
que garanta a unidade de ão;
b) transformação de predicados: passagem de um estado para outro [...]
atras de umarie de acontecimentos encadeados [...];
c) suceso mínima de acontecimentos ocorrendo em um tempo t e
depois t + n. [...];
d) um processo em que se constrói uma intriga com a integração dos
fatos em uma ão única, formando um todo constituído pela seleção
e arranjo dos acontecimentos e ações;
e) causalidade narrativa: uma gica singular em que o que vem depois
aparece como tendo sido causado por algo interior [...];
f) um fim sob forma de avaliação final (moral) expcita ou a derivar
(BRANDÃO, 2000, p. 29-30).
Com base nessas características textuais, Brandão apresenta um dispositivo
elementar representado por um esquema que abarca: a situação inicial, a
complicação, as ões, a resolução, a situação final e a avaliação final. De acordo
com a autora, esse dispositivo não se constitui em uma forma estrutural fixa, pois
pode apresentar inúmeras possibilidades de variação.
No contexto pesquisado, as situações de escrita envolvendo o esquema narrativo
verbal também foram recorrentes nas práticas de produção textual. Durante o
período em que estivemos em campo, observamos um total de nove eventos em que
foram instauradas condições de produção de textos cuja base seqüencial
predominante foi a narrativa. Desses eventos, seis se circunscreveram ao trabalho
com as histórias em quadrinhos. Um panorama geral das situações de reescrita das
histórias em quadrinhos pode ser observado no Quadro 2:
52
De acordo com Brandão (2000), Adam, em trabalho intitulado Cadre théorique d’une typologie
séquentielle (1991), propõe cinco tipos de estruturas seqüenciais de base: narração, descrição,
argumentação, explicação e diálogo.
219
Evento: data
Contexto de produção Proposta de produção
02.1:
11-5-2005
Dia das Mães: quadrinhos de
Amarildo
Contar o que aconteceu na história
produzida por Amarildo (em duplas)
21.2:
20-7-2005
Projeto de literatura:
quadrinhos Cadê a Dilly?
Narrar coletivamente o que aconteceu na
história com registro individual
39.2:
29-9-2005
Avaliação das escritas
seguida de reunião de pais
Escrever o que está acontecendo na
história em quadrinhos intitulada
Violência
54:
30-11-2005
O trabalho com quadrinhos:
texto de Maurício de Souza,
sem recursos de fala
Narrar coletivamente a história com a
professora como a escriba do texto
55:
2-12-2005
Diagnóstico das escritas das
crianças para concluir a
documentação na pasta de
avaliação
Escrever uma seqüência narrativa simples,
elaborada coletivamente, a partir da
história em quadrinhos Sol e Lua da Eva
Furnari
59:
13-12-2005
O trabalho com quadrinhos:
texto de Eva Furnari
Montar a seqüência de vinhetas e narrar
a história O elefante (em duplas)
A partir desse quadro-síntese, podemos perceber que, tomando por base o trabalho
com as histórias em quadrinhos, as professoras planejaram situações de escrita nas
quais as crianças deveriam narrar o que estava acontecendo nas histórias. Se, por
um lado, essa abordagem de trabalho com as histórias em quadrinhos reveste-se de
características que evidenciam o caráter pragmático de inserção do texto na sala de
aula, por outro nos remete a considerar que, como um recurso didático, as histórias
em quadrinhos também podem se constituir em um instrumento provocador da
atividade interdiscursiva, ou seja, também podem ser usadas na produção de outros
textos, constituindo-se, nessa perspectiva, em um pretexto que contribui para a
legitimação de diálogos. Nesse sentido, como foram instauradas essas práticas com
a linguagem escrita na sala de aula pesquisada? Quais eram os objetivos das
professoras e quais aspectos privilegiavam?
No caso pesquisado, as situações de reescrita de textos, a partir das histórias em
quadrinhos trabalhadas, indicaram a instauração de propostas que se diferenciaram
em alguns aspectos suscitando possibilidades de análises a partir de três demandas
de trabalho: a reescrita coletiva, a reescrita em duplas e a reescrita individual.
Considerando essas demandas no trabalho de escritura, procederemos às análises
buscando evidenciar como foram delineadas as condições de produção dos textos,
quais movimentos provocaram na sala de aula e como as crianças responderam às
Quadro 2 - Situações de reescrita das histórias em quadrinhos
220
propostas de produção a fim de compreender os processos de constituição de
sentidos que se desenvolveram em torno dessas práticas com a linguagem escrita.
a) A reescrita coletiva de histórias em quadrinhos
As atividades de reescrita coletiva das histórias em quadrinhos ocorreram, durante o
período em que estivemos em campo, a partir de duas propostas de escrita dos
textos: numa primeira modalidade, a elaboração oral do texto foi coletiva e o registro
foi individual; numa segunda modalidade, a elaboração oral foi coletiva e o registro
do texto foi realizado pela professora.
A primeira modalidade de reescrita coletiva de histórias em quadrinhos ocorreu com
a Professora 1, no dia 20 de julho de 2005, e foi captada por meio de registros em
diário de campo (evento 21, p. 137-147), gravações de trechos da produção textual
em
máquina fotográfica digital e fotos dos textos, totalizando uma amostra de dez
trabalhos. O trabalho de reescrita do texto teve início com a leitura da história em
quadrinhos selecionada pela professora, cujo título era Caa Dilly? A história em
quadrinhos tomada para a produção da reescrita foi encontrada na Revista Recreio,
n. 263, de 24-3-2005, conforme Foto 56:
Foto 56 - História em quadrinhos Cadê a Dilly?
Fonte: Revista
Recreio
, n.23, 24
-
3
-
2005
221
A professora iniciou a leitura do texto apresentando o seu suporte e explicando o
contexto da história: uma propaganda promocional na qual o leitor enviava uma
carta com foto descrevendo as características que poderiam fazer dele uma
personagem de histórias em quadrinhos, para concorrer a vários prêmios. Depois da
leitura silenciosa feita pelas crianças que dispunham da cópia do texto, a professora
iniciou a leitura oral por meio de perguntas propondo relações entre recursos verbais
e icônicos para ajudá-las a reconhecerem os sentidos do texto. Um dos momentos
dessa interação com o texto pode ser observado na transcrição do seguinte trecho:
53
Prof. 1: ((se referindo ao antepenúltimo quadrinho da história)) no quadradinho que tá escrito
“algumas horas depois”... é de conversa?
C: não ((em coro))
Prof. 1: quem está falando?
C: a Dilly
Prof. 1: ahn... como sabemos qual personagem está falando?
Gil: lendo
Prof. 1: eh:: mas antes de ler... podemos saber... não é?... o que que mostra que é o
personagem que está falando?
C: ((silenciam))
Gil: tia... eu sei
Prof. 1: fala... Gil
Gil: é a pontinha do balão
Prof. 1: isso... tem vários tipos de pontinhas de balão... e quem falando perto da
pontinha do balão... agora... olha só... gente... no quadradiinho onde esescrito “algumas
horas depois”.... tem pontinha de balão?
Ped: eu sei... tia... tia
Prof 1: fala... Ped
Ped: é a Vanessa
Prof. 1: cadê a setinha?
Joa: não... é a Dilly
53
Lembramos que, para preservar a identidade dos sujeitos, foram usadas apenas as iniciais dos seus
nomes. Para identificar os enunciados proferidos pelas professoras, usamos Prof. 1 ou Prof. 2. Quando as
crianças falavam ao mesmo tempo ou quando não foi possível identificar a criança, usamos a inicial C.
222
Prof. 1: mas... cadê a setinha?
Marc: ah:::: tia... acho que é a monitora
Prof. 1: ((sorri)) monitora ou autora?... é isso... é a autora que explicou o que estava
acontecendo... que passou um tempo... o Wes também fez isso na produção de ontem...
não foi... Wes?
Wes: ahn... ahn
Prof. 1: por isso que é um quadradinho diferente
((câmera off a professora pega a história em quadrinhos produzida por Wes e para a
turma mostrando a parte final em que ele narra que os personagens viveram felizes para
sempre))
Prof. 1: no final da história... ele não usou balão... por quê?
Marc: porque foi o autor
Prof. 1: porque foi o autor... foi ele... o Wes que explicou... isso é... quando o autor quer falar
e não o personagem
Marc: mas... tia... por que não fala assim... o autor está falando?
Prof. 1: nos quadrinhos é assim... tem maneiras de fazer quando é o autor ou o personagem
que fala (Evento 21.2, 20-7-2005).
Nessa interação com o texto mediada pela professora, podemos observar que a
entrada do recurso lingüístico narrativo “algumas horas depois” provocou dúvidas
nas crianças. Elas sabiam que não se tratava da fala de uma personagem. Essa
constatação foi reforçada por Gil, quando lembrou que “é a pontinha do balão” que
mostra que é a personagem que está falando. Contudo, a presença das
personagens se sobressaiu à do narrador, produzindo sentidos que levaram as
crianças a acreditarem que o marcador temporal algumas horas depois” era uma
fala das personagens. É a pergunta insistente da professora “mas... cadê a setinha?
que provoca a resposta de Marc “ah::: tia... acho que é a monitora”, ou seja, a autora
que, nessa situação, foi tomada como a locutora do texto narrativo. A professora
procurou reforçar a apropriação desse aspecto constitutivo do gênero mostrando a
história em quadrinhos do Huck elaborada por Wes no dia anterior e enfatizando que
essa forma de escrever é típica das histórias em quadrinhos. Ao encerrar esse
momento inicial de interação com o texto, a Professora 2 apresentou a proposta de
trabalho, conforme registro da interação a seguir:
223
Prof. 1: agora... nós vamos escrever essa história em quadrinhos em forma de texto... quer
dizer... de outro tipo de texto... presta atenção como vai ser... vocês vão contar o que
aconteceu na história usando apenas palavras... usando as linhas do bloco de atividades...
vai pode colocar balões?
C: não ((em coro))
Prof. 1: vai ter desenho?
C: não ((em coro))
Prof. 1: o que vai ter?
Marc: letras
Prof. 1: quais letras?... de qualquer tipo?
C: ((falam ao mesmo tempo))
Joa: tia... tia
Prof. 1: deixa o Joa falar... o que que você acha... Joa?
Joa: a gente vai escrever as palavras da história
Prof. 1: é isso... nós vamos ler novamente o texto e vamos combinando juntos o que vamos
escrever... tá bom?
C: tá
Prof. 1: primeiro vocês vão colocar o título da história... como é o título?
C: “Cadê a Dilly?((em coro)) (Evento 21.2, 20-7-2005).
E passa a escrever o título no quadro para as crianças copiarem na folha do bloco
de atividades, na qual deveriam realizar o registro escrito do texto. Assim, nessa
proposta, as crianças deveriam escrever a história em quadrinhos por meio de
palavras, primeiro oralmente e, depois, por escrito nas linhas de uma das páginas do
bloco de atividades, elaborando, conforme apontou a professora, “outro tipo de
texto”. A partir dessa indicação, podemos observar uma confusão entre tipo textual e
gênero textual, uma vez que tanto a história em quadrinhos quanto a sua reescrita
apóiam-se na estrutura tipológica narrativa como estratégia de dizer, contudo, com
recursos lingüístico-enunciativos diferentes. Marcuschi (2005) nos ajuda a
compreender essa relação a partir da seguinte distinção:
224
(a) Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de
seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua
composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações
lógicas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca de meia dúzia de
categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção.
(b) Usamos a expressão gênero textual como uma noção
propositalmente vaga para referir os textos materializados que
encontramos em nossa vida diária e que apresentam características
sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais,
estilo e composição característica [...]. Alguns exemplos de gêneros
textuais seriam: telefonema, sero, carta comercial, carta pessoal,
romance, bilhete, reportagem jornalística [...] (MARCUSCHI, 2005, p. 22-
23, grifos do autor).
Sabemos que, numa situação de comunicação, a seleção dos recursos ocorre em
função das finalidades discursivas que determinam, portanto, a escolha do gênero.
Nesse sentido, enquanto a noção de tipo textual se articula em torno de seqüências
lingüísticas típicas, a de gênero pressupõe que se considerem aspectos que
envolvem a ação, a funcionalidade, as esferas de circulação, o que se tem a dizer,
para quem dizer e como dizer. Aspectos que nessa proposta de produção também
não foram conciliados devido à ênfase nos aspectos formais do texto: a tarefa de
produção consistia em reescrever a história usando palavras, ou seja, transformando
o discurso direto dos balões em discurso indireto. Tomando por base a perspectiva
bakhtiniana de linguagem, compreendemos que essa proposta também contribui
para a descaracterização do trabalho de produção de texto. Conforme acentua
Marcuschi (2005, p. 25),
Importante é perceber que os gêneros não são entidades formais,
mas sim entidades comunicativas. Gêneros são formas verbais de
ação social relativamente estáveis realizadas em textos situados em
comunidades de práticas sociais e em domínios discursivos
específicos.
Para que as crianças deveriam, então, reescrever a história em quadrinhos? Com
qual finalidade discursiva? Considerando as condições delineadas, acreditamos que
essa proposta de produção também pode ser configurada numa tarefa escolar, na
qual a principal finalidade era observar como as crianças empregavam seus
conhecimentos sobre a linguagem escrita numa situação de reprodução de texto,
como podemos observar no trecho que se segue:
225
Prof. 1: ((assim que todas as crianças concluíram a escrita do título)) como vamos organizar
o texto sem os quadrinhos?... o que aconteceu no primeiro quadrinho?
Mat: ela tá indo pra escola
Prof. 1: indo ou saindo?
C: saindo ((em coro))
Gil: eu sei... tia... ela deu tiau para o amigo dela e foi para casa
Prof. 1: pode começar assim?
C: não ((em coro))
Prof. 1: então como?
Marc: era uma vez
Prof. 1: vão pensar outra coisa... nós combinamos de não começar as histórias sempre
assim... não foi?
C: ((silenciam))
Joa: ela tá dando tiau
Prof. 1: ela quem?
Gab: a Vanessa
Marc: ah... já sei... tia... tia
Prof. 1: fala... Marc
Marc: éh::... Vanessa estava saindo da escola
Prof. 1: então como vai ficar?
Marc: assim oh:: tia... Vanessa saiu da escola e deu tiau pros amigos... pra ir para casa
Prof. 1: isso... então vamos escrever... pula uma linha tá... Vanessa (Evento 21.2, 20-7-2005).
As interações observadas reforçam que o trabalho de escritura do texto girou em torno
do reconhecimento e da reprodução dos seus sentidos. A professora se preocupou
em imprimir um ritmo ao trabalho focalizando alguns aspectos composicionais da
história em quadrinhos e sua transposição em forma de texto narrativo escrito, como
pode se observado nas perguntas que fazia para orientar a escolha das estratégias de
dizer: “como vamos organizar o texto sem os quadrinhos?; o que aconteceu no
primeiro quadrinho?; quem é a Dilly?; como sabemos que é uma cadela?; como
vamos dizer que é uma cadela?” (Evento 21.2, 20-7-2005).
226
Durante o trabalho de escritura do texto, que foi ditado parte a parte pela professora,
as crianças reagiram de maneiras diferentes. Essas reações podem ser
compreendidas em função das capacidades desenvolvidas pelas crianças a respeito
do sistema alfabético de escrita. Para as crianças que ainda não haviam se
apropriado da escrita alfabética, essa tarefa foi bastante problemática e, desse modo,
para escreverem os enunciados, buscaram a colaboração dos colegas, como pode
ser observado na atitude de Ped e Lua. Além disso, também repetiam as palavras
ditadas em voz alta, procurando estabelecer
no plano verbal as relações entre as
letras e seus respectivos sons, muitas vezes, sem sucesso, devido ao limitado tempo
para efetuar o registro.
Um exemplo de resultado em que as crianças tentaram acompanhar o trabalho de
escritura sem, contudo, garantir a legibilidade do escrito, pode ser observado na
reescrita realizada por Nat, apresentada na Foto 57:
Foto 57 - Registro realizado por Nat (20-7-2005)
227
Nat tentou empreender um ritmo ao trabalho, buscando, a princípio, estabelecer
relações entre as letras e os fonemas, pois estava desenvolvendo essa
capacidade lingüística. Para isso, buscava, nos colegas que demonstravam ter se
apropriado desses conhecimentos, pistas que a ajudassem a concretizar o registro.
As tentativas de colaboração do outro ocorreram em diferentes momentos: quando
Nat reclamava da rapidez com que a professora estava ditando os enunciados: ah::
tia... cê tá falando rápido”; quando consultava o registro do outro copiando as
palavras escritas, como pode ser observado na escrita do nome VANESA que ela
contou com a ajuda do colega que estava ao seu lado; quando ela levantava as suas
dúvidas oralmente, como pode ser observado na escrita da palavra SAIU: i... i... é o
êne mais o /i/?”.
Contudo, foi apenas no registro do primeiro enunciado que Nat tentou escrever letras
correspondentes aos fonemas que compunham as palavras, uma vez que, no
decorrer do trabalho, não conseguiu acompanhar o que estava sendo ditado pela
professora. Desistindo da tarefa, Nat prosseguiu com o registro tentando ocupar todo
o espaço da folha com letras
respeitando a linearidade da escrita e utilizando um
repertório bastante variado. parou de escrever, quando chegou ao final da folha
mesmo depois de a professora ter concluído o texto.
Algumas crianças, como Kai, Marc, Gil, Gab e Joa, se envolveram mais na
construção dos enunciados a serem registrados e os reproduziam em silêncio. Um
exemplo de texto em que as crianças conseguiram registrar todos os enunciados
que compuseram a reescrita da história em quadrinhos é o trabalho de Marc,
mostrado na Foto 58.
Como pode ser visto, ela usou o ponto final, acentuou palavras e segmentou o texto
em palavras conforme lembrado pela professora. Embora tivesse reclamado da
atividade, em vários momentos do trabalho de escritura, escreveu o texto até o final.
228
Considerando as finalidades evidenciadas na proposta de trabalho, ou seja, a
reprodução da seqüência narrativa quadrinizada usando palavras, podemos
observar que a reescrita do texto foi concretizada a partir de uma seqüência de base
narrativa canônica (orientação, complicação e resolução) atendendo, portanto, às
demandas da situação de produção. Contudo, vimos que muitas crianças não
conseguiram acompanhar o trabalho de escritura do texto, buscando outros meios
para cumprir a tarefa, uma vez que ainda não haviam desenvolvido as habilidades
de codificação exigidas para a materialização dos enunciados nas circunstâncias
que foram delineadas pela professora. Mas essa não foi a única nem a principal
implicação dessa proposta de reescrita do texto, uma vez que, em tais
circunstâncias, foram abstraídas as possibilidades de as crianças recontarem a
história com suas próprias palavras, imprimindo suas marcas, suas idéias, seus
interesses e valores ao trabalho de escritura.
Esse movimento foi reincidente nas práticas de reescrita coletiva das histórias em
quadrinhos, como pode ser observado na segunda modalidade de trabalho que
Foto 58 - Registro realizado por Marc (20-7-2005)
229
consistiu na elaboração coletiva do texto, tendo a professora como escriba. Esse
evento ocorreu no dia 30 de novembro de 2005, quando a Professora 2 procurava
introduzir no contexto das práticas com as histórias em quadrinhos outras
produções, cujas características predominantes eram os recursos icônicos. O texto
escolhido para a reescrita coletiva foi produzido por Maurício de Souza e publicado
no Jornal A Gazeta (26-11-2005). Sua apresentação ocorreu do seguinte modo:
Prof. 2: gente... vocês sabiam... que não a Eva Furnari faz historinhas sem usar
palavras?
Gil: eu já vi uma... eu vi uma do Maurício
Prof. 2: do Maurício... Gil?... você já viu?
Gil: ahn... ahn... eu vi uma revistinha da Mônica que não tem... e do Cascão
Prof. 2: que não tem o quê?
Gil: balões de fala
Prof. 2: não tem balões de fala?
Gil: ((diz que não com a cabeça))
C: e onomatopéia?
Gil: não
Prof. 2: nem onomatopéia?... deu pra entender a história?
Gil: ((pensa)) porque ela falando assim... ((põe a mão na cabeça)) eu não sei ((abaixa a
cabeça))
Prof. 2: o Gil falou do Mauricio de Souza... porque ele já viu uma história na revista...
né?... que tinha o desenho e não tinha balões de fala... e o Maurício de Souza também
publica algumas historinhas que ele faz... que ele cria... nos jornais... alguém viu história
do Maurício de Souza no jornal?
Kai: eu
Nat: eu já vi:: na história
Prof. 2: você nunca viu no jornal?
Joa: eu já vi
Mon: eu já
Ped: eu também
Prof. 2: Joa viu... Ped... Mon
230
C: eu também já... eu já... eu já
Prof. 2: olha só... o Maurício de Souza... esse jornal aqui é uma parte do jornal A Gazeta
((tomando um encarte do jornal))... aquele jornal grande... né? A Gazeta... que vem pra
escola... esse aqui... não... esse foi comprado... mas aqui na escola a gente sempre recebe
o jornal A Gazeta
Marc: mas... eu não sabia que o jornal A Gazeta era pequeno
Prof. 2: não... ele é grande... isso aqui vem dentro do jornal A Gazeta... é um encarte... tá?
Marc: eu nunca vi esse daí não... o meu pai compra todo dia
Prof. 2: essa parte aqui... ((folheia o encarte)) tem o nome aqui oh:: Gazetinha... vou mostrar
pra todo mundo
C: ((fazem comentários))
Prof. 2: e nessa parte aqui veio essa tirinha aqui... tá? ((mostra a tirinha))... que é uma parte
do jornal onde o Maurício de Souza
Joa: tia... você tira cópia pra gente?
Prof. 2: calma Joa... vou falar sobre isso aí... tá?... é uma parte do jornal que tem a
história que o Maurício de Souza criou... da Mônica... e daqui a pouco vocês vão ver o que
acontece na história... estou mostrando pra vocês que o Maurício de Souza também cria
histórias onde ele não usa balões de fala... mas tem um recurso aqui que ele usou... quem
sabe o outro recurso que ele usou?
C: onomatopéia ((falam em coro))
Prof. 2: então... o que nós vamos fazer?... o coleguinha sugeriu... Joa?... por que você
não tira uma cópia pra gente?... essa história aqui ((mostrando o jornal))... ela está aqui
((mostrando as cópias)) pra cada um de vocês ver ela... onde vocês vão poder ver o que
que está acontecendo nessa história tá?... o que que vai acontecer nessa história... por que
que a gente consegue entender ela sem ter balões de fala... e depois que a gente ler a
história nós vamos contar ela... mas vocês vão contar ela pra mim... o que que
acontecendo... e eu vou escrever ela no papel tá?... quem vai escrever é quem?
Joa: a professora
Prof. 2: eu que vou escrever... vocês vão dizer pra mim o que esacontecendo... bom?
(Evento 54, 30-11-2005).
Assim, podemos notar que, nessa apresentação inicial do texto, a professora tentou
motivar as crianças para a leitura considerando, de certo modo, as experiências que
traziam acerca dos trabalhos do autor e o suporte no qual foi veiculado. Adiantou,
também, a proposta de trabalho com o texto explicando que o trabalho de escritura
seria realizado por ela com a ajuda das crianças. Depois desse momento inicial na
roda, a professora organizou as crianças em seus lugares e distribuiu as cópias dos
231
textos solicitando que observassem quadro a quadro o que dizia a história em
quadrinhos produzida por Maurício de Souza (Foto 59). Só depois, a professora
iniciou a leitura oral percorrendo as vinhetas uma a uma, convidando as crianças a
falarem o que estava acontecendo e fazendo intervenções para ajudá-las a
reconhecerem os sentidos do texto, para, em
seguida, iniciar
o trabalho de escritura
numa folha de papel cenário que foi afixada no cavalete.
Ao proceder à reescrita do texto, a professora buscou o envolvimento das crianças,
propondo-lhes a escolha de um título para a história. Essa escolha ocorreu a partir
das sugestões apresentadas por algumas crianças e por meio de votos que levou a
professora a concluir que
então o título da nossa historinha vai ser O passeio da
Mônica”. Em seguida, convidou as crianças a iniciarem a seqüência narrativa assim:
agora... eh:: vocês vão levantar a mão quem quiser começar... como que nós
vamos começar a narrar... a escrever essa história no papel?(Evento 54, 30-11-
2005). Então, as crianças foram apresentando opiniões acerca do que estavam
observando nas imagens e a professora foi concretizando os enunciados por meio
de uma seqüência textual de base narrativa.
Foto 59 - História em quadrinhos de Maurício de Souza
Fonte: Jornal
A Gazeta
, de 26
-
11
-
2005
232
Notamos, nas interações, que o processo de negociação de sentidos do texto foi
atravessado por mecanismos de controle que podem ser compreendidos como um
movimento instaurado pela professora tendo em vista as finalidades da atividade
educativa, uma vez que, nessa proposta de reescrita, deveriam ser empreendidos
esforços no sentido de reescrever o texto coletivamente, transformando a linguagem
icônica e complexa dos quadrinhos em linguagem verbal, a ser materializada no
espaço delimitado da folha de papel cenário.
Além disso, a professora deveria conciliar as sugestões apresentadas pelas
crianças, selecionando os recursos adequados para a sua concretização em forma
de enunciados escritos em curto espaço de tempo. Esses fatores podem ter
contribuído para que o conteúdo do texto fosse mais controlado e, assim, em vários
momentos da interação, a Professora 2 impôs sentidos ao texto definindo o que
dizer e a forma de dizer, como podemos observar nas intervenções que fazia diante
das sugestões apresentadas pelas crianças:
Prof. 2: era uma vez?... gente... olha só... mas quando a gente usa “era uma vez”... a gente
contando uma história de FAda... de PRÌncipe... de PRIncesa... isso aqui é uma história
de príncipe e de princesa e de fada?
Prof. 2: não... antes de falar isso... um dia de quê?
Prof. 2: um dia de festa?
Prof. 2: um belo dia?... mas aqui a gente colocou um dia... pensa uma outra palavra que
poderia compLetar aqui oh::?
Prof. 2: um dia de sol?
Prof. 2: um dia do quadro?
Prof. 2: ((escreve “estava”))... poderia ser assim oh:: estava acontecendo uma exposição de
quadros... né?... de pinturas... legal... né?... ficou? (Evento 54, 30-11-2005).
Ao efetuar o registro das palavras selecionadas para dizer o que estavam
observando na história, a professora voltou a atenção das crianças para os aspectos
que envolvem as relações entre sons e letras, levantando perguntas do tipo: como
escreve ‘acontecendo’ gente? ‘Exposição’... como que escreve essa palavra? vocês
acham que é com ésse? ésse i... exposição... e o ção?” (Evento 54, 30-11-2005).
233
Assim, durante todo o processo de reescrita da história em quadrinhos, a Professora
2 foi fazendo intervenções que focalizaram o reconhecimento dos sentidos do texto
e sua concretização por meio de reflexões que envolveram a escolha dos recursos
léxicos e sua configuração escrita, deixando, contudo, de considerar aspectos que
envolvem a conexão e a coesão textual que poderiam potencializar o
desenvolvimento das capacidades de textualização nas crianças, uma
aprendizagem que também é importante no processo de apropriação da linguagem
escrita. As dificuldades da professora em conciliar as demandas no trabalho de
reescrita coletiva da história em quadrinhos podem ser mais bem compreendidas a
partir do resultado desse processo de produção, apresentado na Foto 60:
O resultado desse processo evidencia que o trabalho de reescrita do texto teve
como principal finalidade a reprodução dos sentidos do texto e, nesse processo,
Foto 60 - Reescrita coletiva da história em quadrinhos (30-11-2005)
234
foram desconsideradas dimensões que nos parecem fundamentais. Uma delas,
conforme situamos, diz respeito às capacidades de textualização, conhecimentos
que, considerando a trajetória acadêmica e profissional da Professora 2, delineada
na caracterização dos sujeitos, também foram insuficientes na sua formação. Essa
dimensão do trabalho de produção textual compreende aspectos que pressupõem a
utilização de organizadores verbais e não-verbais, de estabelecimento de ligações
entre as partes das frases, as frases e as partes do texto, de retomadas pronominais e
nominais, bem como as relações entre essas retomadas e o uso dos sinais de
pontuação, dentre outros. Aspectos que foram tomados de forma inadequada em
vários momentos da construção composicional do texto com algumas ocorrências
mais comprometedoras, como as que se presentificaram nos enunciados deste trecho
da narrativa: “Eles viram dois quadros e se lembraram da nica e começaram a
cochichar e rir. A Mônica ficou muito brava, então ela viu um quadro sem pintura e ela
mandou eles olharem e o Cascão e o Cebolinha não entenderam nada”.
Entretanto, considerando a perspectiva teórica que orienta o nosso olhar, o modo de
configuração dessa situação de escrita apresenta outra implicação que diz respeito
às próprias finalidades educativas que estão subjacentes a essa demanda de
trabalho com o texto na sala de aula. Nesse tipo de abordagem, as possibilidades de
construção de significados foram reduzidas ao reconhecimento dos sentidos do texto
reiterando uma proposta centrada na atitude passiva dos sujeitos e na
impossibilidade de narrar a partir de suas próprias experiências discursivas.
A transformação das práticas de ensino da língua, tendo em vista a constituição de
sujeitos, exige muito mais do que a mera reprodução de discursos, exige a
instauração de situações dialógicas nas quais as crianças possam se constituir como
co-autoras de discursos. Como nos fala Geraldi (2003), a escolha do texto, como
ponto de partida e de chegada de todo o processo de ensino e de aprendizagem,
pressupõe a produção de discursos, pois é nesse trabalho que
[...] o sujeito articula, aqui e agora, um ponto de vista sobre o mundo
que, vinculado a uma certa formação discursiva, dela não é decorrência
mecânica, seu trabalho sendo mais do que mera reprodução: se fosse
apenas isso, os discursos seriam idênticos, independentes de quem e
para quem resultam (GERALDI, 2003, p. 137).
235
E isso não significa que a constituição do sujeito se ampare na criação de um novo
discurso do qual ele é a fonte única dos sentidos. A novidade, de acordo com o
autor, consiste no comprometimento do sujeito com a sua palavra, com a formação
discursiva da qual faz parte. Nessa perspectiva, o caráter sócio-histórico da língua
não é desconsiderado, mas ressignificado por meio da instauração de novos
discursos, de novos sentidos que se constituem e se transformam no trabalho dos
sujeitos. Compreendemos que essa dimensão foi abstraída nas propostas de
reescrita coletiva das histórias em quadrinhos reduzindo as possibilidades de as
crianças dialogarem com o texto por meio do entrelaçamento de dizeres e saberes
que vão além da reprodução mecânica e descompromissada de enunciados.
Nesse sentido, as implicações decorrentes dessas práticas de reescrita coletiva de
textos foram minimizadas nas situações em que as crianças foram orientadas a
produzirem os textos em duplas ou individualmente? Que finalidades educativas
estavam subjacentes a essas práticas? Passemos a examinar essas propostas de
reescrita dos textos.
b) A reescrita em duplas de histórias em quadrinhos
Essas situações de reescrita foram observadas duas vezes no período em que
estivemos em campo.
O primeiro evento que tomaremos para análise ocorreu no dia
11 de maio de 2005 (evento n. 02 de nosso diário de campo) e foi coordenado pela
Professora 1. Trata-se do trabalho com o texto do escritor Amarildo, publicado no
jornal A Gazeta, de 8 de maio de 2005, que, conforme situamos no início de nossas
análises, foi introduzido em campo com o objetivo de trabalhar a seqüência começo,
meio/meio e fim, tendo o Dia das Mães como motivação para a sua escolha.
A reescrita dessa história em quadrinhos foi instaurada a partir da conversa inicial na
roda, que, de acordo com nossas análises (p. 19-22), girou em torno do
reconhecimento dos sentidos do texto. Para o trabalho de reescrita do texto, a
Professora 1 organizou a turma em duplas, explicando que deveriam contar a
história produzida por Amarildo do seu jeito”, ocupando as linhas destinadas ao
trabalho de escritura numa das páginas do bloco de atividades, na qual foi colada a
236
cópia do texto. Essa orientação suscitou dúvidas nas crianças, provocando reações
do tipo: pode ser de qualquer jeito? A Professora 2, então, lembrou que haviam
discutido sobre esse problema, explicando que “do seu jeito” significava que era do
melhor jeito possível”, que era necessário se esforçar para o trabalho ficar legal.
Depois da formação das duplas, as crianças deram início ao trabalho de produção
do texto. Em cada dupla de trabalho, a professora procurou incluir uma criança que
havia se apropriado de conhecimentos acerca do caráter alfabético da escrita,
sugerindo que interagissem entre si durante o trabalho de escritura.
Como o registro dessa atividade ocorreu por meio de anotações em diário de campo
longe da presença dos sujeitos,
54
o foi possível efetuar a análise dos detalhes, ou
seja, das interações entre os pares no momento do trabalho de escritura.
Observamos, no entanto, que, de maneira geral, as crianças que produziam seus
textos fazendo tentativas de relacionar o oral com o escrito realizaram a atividade
em silêncio ou falando enquanto escreviam, buscando fazer articulações entre as
letras e seus respectivos sons, sem interagir de forma cooperativa com os colegas
conforme sugeriu a professora.
As crianças que ainda não dominavam o caráter alfabético da escrita demonstraram
atitudes diferenciadas em frente à tarefa solicitada pela professora. Algumas ficaram
aguardando a sua ajuda, outras realizaram a atividade sem evidenciar preocupação
com os significados que deveriam anotar e ainda observamos um grupo de crianças
que buscou apoio nos registros efetuados pelos colegas, copiando-os de forma
mecânica sem, contudo, participarem da elaboração do texto, nem apresentando
idéias ou negociando os sentidos dos enunciados.
Um exemplo de trabalho concretizado dessa maneira foi o de Mar, que copiou o
registro de Marc (Foto 61) sem participar da construção do texto. Mar realizou todo o
registro do texto copiando as letras uma a uma, tentando reproduzir as palavras
grafadas por Marc. Ao observar esses movimentos do colega, Marc fez algumas
interrupções para ajudá-lo na escrita do texto, ditando as letras que compunham as
54
Lembramos que esse evento foi registrado no início de nossa observação participante em sala de
aula, quando ainda não havíamos introduzido a coleta de dados a partir de equipamentos de
audiovisual.
237
palavras, apontando onde e o que deveria copiar. Por meio da ajuda de Marc, que
conseguiu concretizar a pia do texto, cumprindo, desse modo, a tarefa solicitada
pela professora, como podemos observar na Foto 62.
Foto 61 - Reescrita de Marc (11-5-2005)
Foto 62 - Reescrita de Mar (11-5-2005)
238
Marc iniciou o trabalho de reescrita da história em quadrinhos escrevendo um título:
O ME NINO XA MA DO LUCAS. A exemplo da professora, quando ela recontou a
história na roda de conversa, Marc também deu um nome à personagem principal.
Em seguida, Marc escreveu a história tentando dizer o que estava acontecendo em
cada cena, por meio de uma seqüência temporal curta na qual logo foi
desencadeada a ação central da personagem: LUCAS FOI NO PONTO PARA
ESPERAR A SUA MÃE QUE TÁ TRABALHANDO DE ÔNIBUS, seguida da situação
final: LUCAS ENTROU PELA PORTA DE TRÁS ENTREGOU O PRESENTE.
Se considerarmos o conjunto de orientações em que foram instauradas as condições
de produção do texto e levando em conta, ainda, o espaço delimitado para o
trabalho de escritura, podemos dizer que Marc, embora tenha apresentado apenas
alguns dispositivos da seqüência narrativa, encontrou uma solução interessante para
responder à proposta da professora. Ao tentar reproduzir os sentidos da linguagem
icônica quadrinizada, ela fez uso de verbos no tempo passado e de alguns
organizadores textuais que contribuíram para a progressividade temporal das ações.
Contudo, conforme salienta Brandão (2000, p. 29, grifo da autora), “[...] para que
haja narrativa é preciso que esta temporalidade de base seja conduzida por uma
tensão que faz com que uma narrativa caminhe para seu fim, organize-se em função
de uma situação final [...]”.
Na história em quadrinhos produzida por Amarildo, a tensão foi instaurada a partir
dos recursos icônicos que indicam o ar de felicidade do menino em um ponto de
ônibus segurando uma caixa embrulhada para presente. Essa tensão se
complexifica com a sua entrada pela porta de trás, uma cena que sugere que o
menino é um passageiro comum, um sentido que Marc tentou explicitar, sem,
contudo, conseguir articular os recursos lingüísticos necessários para a instauração
da complicação e de sua resolução, o que confirma ainda mais as limitações
pedagógicas dessa situação de produção.
Nesse sentido, compreendemos que as condições de produção do texto fragilizaram
as possibilidades de interação entre os interlocutores por meio da linguagem escrita,
uma vez que a utilização do código escrito foi limitada à codificação de palavras a
partir da reprodução simplificada e impessoal dos sentidos da narrativa
239
quadrinizada. Por mais que as crianças tentassem imprimir suas marcas pessoais e
seus sentidos ao texto, o espaço de diálogo foi definido pelas próprias condições de
produção, como também podemos observar neste outro exemplo (Foto 64) que
tomamos, para ilustrar como as crianças que já haviam desenvolvido determinadas
capacidades de produção textual responderam à proposta da professora:
Esse texto foi produzido por Joa, uma criança que, no decorrer do ano, apresentou
resultados no trabalho de produção textual que se destacaram em relação aos
demais. Joa também escolheu um nome para a personagem, mas, diferentemente
de Marc, acrescentou alguns elementos que enriqueceram a seqüência narrativa,
como o dispositivo de tempo “UM DIA e o tradicional final “VIVERAM FELIZES
Foto 63 - Reescrita de Joa (11-5-2005)
240
PARA SEMPRE”. Essa produção foi realizada, conforme situamos, no início de
nossa observação participante em sala de aula e, nesse período, Joa ainda não
conseguia segmentar o texto em palavras. Contudo, deixou outras pistas que
evidenciaram a apropriação de conhecimentos interessantes acerca da composição
textual: usou organizadores que contribuíram com a coesão: PARA DAR UM
PRESENTE”, PARA A SUA MÃE” E VIVERAM...”; fez uma retomada por anáfora
pronominal que pode ser compreendida como uma característica da oralidade: “UM
DIA O PEDRO ELE TAVA ESPERANDO O ÔNIBUS”; caracterizou o presente: “DE
ANIVERSÁRIO” apontando para outra possibilidade de atribuição de sentidos ao
texto.
O fato de Joa ter concretizado a reescrita do texto por meio dessas operações
discursivas pode ser decorrente da familiaridade com gêneros de textos constituídos
predominantemente por seqüências tipológicas narrativas a que as crianças da
turma pesquisada tinham acesso, tanto no ambiente escolar como no familiar.
Embora Joa tenha demonstrado no texto determinados conhecimentos sobre
elementos da estrutura narrativa, compreendemos que a atividade de reescrita
também se tornou artificial para essa criança, devido às condições de produção do
texto. Nesse contexto, a história em quadrinhos foi tomada como um pretexto para o
exercício das capacidades de codificação e de estruturação de seqüências lógicas.
Uma demanda que também provocou a desvinculação da dimensão sócio-histórica
da linguagem, confirmando a recorrência de experiências com a linguagem escrita
em que foram subtraídas as condições essenciais ao trabalho de produção de
discursos e, portanto, de constituição de sujeitos, uma vez que a criança não foi
incentivada a dialogar com o texto a partir de suas próprias experiências.
O outro evento em que observamos a reescrita em duplas de história em quadrinhos
ocorreu no dia 13 de dezembro de 2005 com a Professora 2. Essa situação de
reescrita foi decorrente do trabalho com as histórias da escritora Eva Furnari
publicadas no livro A Bruxinha Atrapalhada. A história escolhida para o trabalho de
reescrita foi retratada por meio da Foto 64.
241
Essa situação de trabalho com a linguagem escrita foi captada em trinta minutos de
filmagem, com transcrição das interações, registros em diário de campo (evento n. 59,
p. 354-361) e fotos dos 19 textos produzidos. A atividade teve início na roda de
conversa, quando a professora retomou o trabalho que estavam desenvolvendo
acerca das histórias do livro de Eva Furnari, relembrando com as crianças quais
haviam sido lidas em sala de aula e as mágicas atrapalhadas da bruxinha. Em
seguida, foi apresentada a proposta de trabalho do dia, conforme registro a seguir:
Prof. 2: hoje nós vamos conhecer mais uma historinha da Eva Furnari... tá?... que tem
uma coisa... a historinha que vocês vão receber ela não está certinha assim na folha...
vocês vão tá olhando as cenas e tentando organizar... tentando colocar a historinha na
seqüência certa... tá?
Joa: aí depois pode pintar?
Prof. 2: pintar é depois... primeira coisa colocar o nome... a data que o Ron colocou aqui
no quadro e depois a gente vai começar... tá bom?
((câmera em off))
Prof. 2: ((mostra a folha com a proposta de trabalho)) eh:: vocês vão montar a seqüência e
tentar encaixar a seqüência aqui na ordem que vocês acham que é certo ((com as cenas da
história recortadas nas mãos))... primeiro quadrinho... acha o primeiro quadrinho que vocês
acham que a história começa assim... aí vocês vão colocar aqui... tá?
Foto 64 - História de Eva Furnari publicada no livro A bruxinha atrapalhada
242
Marc: como assim?
Prof. 2: eh:: vocês estão em dupla... não estão?
C: tão
Prof. 2: um pode ajudar o outro... tá? ((segue entregando a folha com instruções escritas
para o trabalho))
Prof. 2: Marc lê pra gente o que está escrito aí na folha
Marc: ((lê pausadamente)) “você conheceu Eva Furna::ri e o seu jeito de contar histo::rinha /
histórias... em quadrinhos... agora... monte uma de suas histo::ri::nhas e depois escreva
sobre ela”
Prof. 2: muito bem... Marc... oh:: ( ) a historinha da bruxa atrapalhada... mas agora você vai
montar mais uma historinha da Eva Furnari... depois que a gente montar... nós vamos
escrever sobre essa historinha
Marc: tia... como assim?... você vai dá a folha dela... nós vão ter que fazer a historinha dela?
Prof. 2: na hora de escrever... vos podem estar pensando junto o que aconteceu ((vai buscar
as cenas recortadas para mostrar para as crianças)) aqui na minha mão cada um vai ganhar
essas figurinhas aqui que é a história da Eva Furnari ? ... o que que vocês o fazer?... vocês
vão pegar essa historinha aqui e vão tentar ver qual a seqüência dela aqui nesses quadrinhos...
? ((mostrando os quadrinhos em branco na folha))
Ped: depois nós vamos colar... tia?
Prof. 2: é... depois nós vamos colar... por exemplo... ((se dirige ao quadro)) tem uma
seqüência assim de quadrinhos em branco... não tem? ((desenhando os quadrinhos em
branco no quadro))
Jac: quatro quadrinhos
C: seis
Prof. 2: então... tem uma seqüência de quadrinhos em branco... mas o que que nós vamos
fazer agora com essa folha com esses quadrinhos em branco?
C: colar... desenhar
Prof. 2: nós vamos colar a historinha da Eva Furnari... que tem uma coisa... a historinha
ela aqui recortada em quadrinhos ((mostra os quadrinhos recortados))... que ela não
está na ordem certa... vocês que vão olhar qual a ordem certa o que será que começa
primeiro?
Marc: é legal isso aí ((sorrindo))
Prof. 2: o que será que começa segundo e depois e depois? ... até chegar na seqüência
certa... vocês vão colocar na mesa assim oh:: eu acho que o primeiro é esse... o segundo é
esse depois é esse até o final e depois nós vamos passar colando ajudando vocês a colar...
falô... turminha? ( ) conversa com o coleguinha do lado... será que é desse jeito?... será que
é diferente?... tá bom? ((e prossegue com a entrega do material)) (Evento 59, 13-12-2005).
243
Assim, a partir dessas orientações, a Professora 2 apresentou uma proposta de
produção em que as crianças deveriam, inicialmente, montar as cenas de uma história
produzida pela escritora Eva Furnari para, em seguida, escreverem sobre essa
história. Desse modo, instaurou uma situação em que as crianças poderiam interagir
com as cenas a partir de suas experiências de leitura, fazendo escolhas a respeito da
seqüência dos acontecimentos. A princípio, as crianças não compreenderam a
proposta de trabalho. A professora, então, reformulou as orientações mostrando os
recursos didáticos e como deveriam ser utilizados. As crianças fizeram algumas
perguntas, opinaram e sinalizaram, por meio dos comentários acerca das cenas e das
personagens, que estavam envolvidas com a proposta.
Buscando captar a interação entre os pares, focalizamos a filmadora em duas duplas
de trabalho e conseguimos registrar alguns movimentos interessantes entre as
crianças dessas duplas. A primeira dupla, formada por Marc e Cris, estava localizada
próxima ao equipamento de filmagem. Assim que receberam os quadrinhos, as
crianças iniciaram a organização das vinhetas em silêncio sem interagirem oralmente
entre si. Marc logo tomou o quadrinho com o título e arrumou o restante dos
quadrinhos propondo um final diferente do da versão original. No final proposto por
Marc, a bruxinha terminava assustada com a ponta do canhão em sua direção. Cris
também montou a sua seqüência iniciando pelo título, porém instaurando um final
igual ao da versão original. Assim que observou a seqüência de Cris, Marc reagiu
provocando uma interação que deu início ao processo de negociação de sentidos:
Marc: mas... mas não é assim
Cris: ah... eu... eu acho que é assim
Marc: não é não... ela sempre eh:: se dá mal no final da história
Cris: é... é mesmo ((olhando para a seqüência que havia montado))
Marc: ela... ela é atrapalhada ((tentando convencê-la))
Cris: então tá
Marc: olha aqui oh:: ((aponta para a sua seqüência)) o elefante... ele... ele tava bebendo
água... e... e... ele jogou a água... a bruxinha transformou ne um... um... o que que é isso?
Cris: não sei não
Marc: tia... tia... é o que que é isso?
244
Prof 2: espera aí... Marc ((atendendo outra dupla de crianças))
Cris: ((começa a reorganizar os quadrinhos))
Marc: ((vai ajudando Cris))
Prof 2: ((se aproximando)) fala... Marc
Marc: que que é isso aqui... oh:: ((mostrando o desenho))
Prof 2: isso... isso é um tanque... eh::: daqueles... tanque de guerra
Marc: ahn::::
Cris: tia... tá certo? ((olhando para os quadrinhos organizados sobre a mesa))
Prof 2: ahn:: do jeito de vocês... do jeito que vocês acham que é
Marc: é porque... é porque... ela sempre se dá mal
Prof 2: ah:: sim ((sorrindo))... ela sempre se dá mal... Marc... como assim?
Marc: ah... ela... ela sempre faz a mágica eh::: a mágica nunca dá certo
Prof 2: isso é verdade (Evento 59, 13-12-2005).
Nessa negociação de sentidos, vimos que Marc procurou defender sua versão para
o final da história apresentando argumentos que convenceram Cris a mudar a
seqüência narrativa que havia montado. Para isso, Marc se apoiou em suas
experiências anteriores de leitura da obra A Bruxinha Atrapalhada proporcionada
pela Professora 2. Cris, ainda insegura, perguntou à professora se a seqüência
estava montada na ordem certa e ela sugeriu que não uma ordem certa, que as
crianças poderiam recriar a história. Marc, então, tomou a palavra expondo para a
professora os argumentos que a levaram a montar a seqüência daquele modo,
assumindo o seu dizer e o seu papel de sujeito no processo de constituição de
sentidos do texto: é porque... é porque... ela sempre se male ah... ela... ela
sempre faz a mágica eh::: a mágica nunca dá certo”.
Assim, o fato de a professora oferecer o texto “desmontado”, ou poderíamos dizer,
aberto a mudanças, foi provocador desse processo de negociação de sentidos.
Contudo, isso foi possível, porque as crianças haviam vivenciado outras
experiências de leitura a partir das obras da escritora Eva Furnari. Essas
experiências ofereceram pistas que contribuíram na definição da seqüência narrativa
245
instaurando novos sentidos ao texto e confirmando que, na dinâmica discursiva, a
instauração do novo não emerge de um ato de criação individual, no qual são
abstraídas as relações sociais que o sujeito vivencia a partir das diversas formas de
linguagem. Como nos diz Geraldi (2003, p. 136, grifos do autor):
A novidade, que pode estar no reaparecimento de velhas formas e de
velhos conteúdos, é precisamente o fato de o sujeito comprometer-se
com a sua palavra e de sua articulação individual com a formação
discursiva de que faz parte, mesmo quando dela não está consciente.
Esses elementos da interação nos remetem a considerar que o processo de
produção de sentidos está inevitavelmente vinculado às relações históricas e sociais
dos sujeitos com a linguagem. A língua, portanto, não é um sistema abstrato e
imutável de normas, nem tampouco uma produção exclusiva de quem a enunciou.
Toda enunciação, como nos fala Bakhtin, “[...] é produto da interação entre falantes
e, em termos mais amplos, produto de toda uma situação social em que ela surgiu”
(BAKHTIN, 2001, p. 79).
A outra situação de interação entre os pares em que conseguimos captar o processo
de organização dos quadrinhos foi vivenciada por Kai e Ped:
Kai: ((tenta montar a seqüência dos quadrinhos em silêncio))
Ped: ((observa Kai e tenta interagir com ele)) depois é ( ) Kai... tá jogando água ne::le
Kai: ((ouve Ped e faz uma nova tentativa sem se dar conta do quadrinho com o título))
Ped: assim oh:: Kai ((mostrando como organizou sua seqüência))
Kai: ((balança negativamente a cabeça, recusando a versão do colega))
Ped: ((tenta interferir no trabalho de Kai))
Kai: calma aí... não
Ped: ah:::: ((fazendo expressão de quem não gostou))
Kai: ((continua em silêncio montando sua seqüência sem consultar o colega))
Ped: ((observa os movimentos de Kai e depois faz uma nova tentativa)) aqui oh:: pronto...
montei
Kai: ((fala algo com Ped baixinho))
246
Ped: ô... ti::::a cadê a tia? ... tia... tá certo?
Prof 2: ((se aproxima da dupla)) ( ) tá? ((se afasta))
Ped: Kai... já sei Kai... é essa daqui
Kai: ((não dá atenção ao Ped e continua tentando))
Prof 2: ((circula pela sala atendendo outras duplas, depois volta a se aproximar de Kai e
Ped)) vocês pensaram desse jeito?
Kai: ((balança a cabeça confirmando))
Prof 2: eh::: quando a gente uma história... qual a primeira coisa que a gente na
história?
Ped: é essa ((apontando para o quadrinho com o título))
Prof 2: o nome da história?
Ped: é
Prof 2: o título?
Ped: ahn ahn... então... essa daqui tira daqui ((removendo os quadrinhos)) e aqui... é aqui... oh::
Kai: ((ajuda Ped a rever a seqüência))
Ped: ah:: tia... eu sei oh:: tia... eu sei oh... ((a professora sorri)) aqui está perto da água
aqui óh ( ) aqui ( ) ((prossegue explicando e fazendo a montagem da história sendo
observado pela professora, por Kai e por Gab que se aproxima))
Prof 2: ((dá atenção para outra criança que se aproxima))
Ped: ((volta a contar a história para a professora)) aqui tá jogando... aí ela viu... transformou
ele num... num... tanque de guerra aí... depois... transformou ele de novo nisso aqui ((se
referindo ao último quadrinho em que o tanque de guerra é transformado em tanque com
flores)) (Evento 59, 13-12-2005).
Podemos observar que, a princípio, Kai o queria discutir a seqüência da história
com Ped, tentando resolver a situação sozinho. Mas Ped, insistentemente,
encontrou um meio de chamar a atenção do colega solicitando a colaboração da
professora que convidou as crianças a refletirem sobre como, geralmente, se iniciam
as histórias. A partir dessa indicação, Ped e Kai começaram a trabalhar de maneira
cooperativa, encontrando o quadrinho com o título da história e concluindo a
organização da seqüência de acordo com a versão original, recriando os sentidos do
texto a partir da experiência dialógica com o outro.
247
Assim que todas as duplas montaram as seqüências, colando-as no espaço
indicado, a professora retomou a proposta inicial explicando:
Prof. 2: oh::... agora vocês vão escrever nessas linhas embaixo o que está acontecendo
nessa historinha... tá?... o que que aconteceu?... será que essa bruxinha inventou
alguma coisa?... vocês vão escrever nessas linhas embaixo o que es
acontecendo nessa historinha... em dupla tá?... um ajudando o coleguinha que está
do lado do outro... pode começar... vocês tentem escrever assim... da melhor
maneira que vocês conseguirem... porque depois vocês mesmo vão conseguir ler...
vocês vão ler depois a historinha de vocês... tá bom? pode começar... conversar bem
baixinho com os colegas... tá? (Evento 59, 13-12-2005).
Ao retomar as orientações para o trabalho, a Professora 2 apontou uma possível
finalidade para a atividade discursiva: o uso da escrita como recurso menmônico,
instaurando, portanto, outra motivação para o trabalho de escritura. A partir dessas
orientações, as crianças iniciaram o trabalho de escritura discutindo sobre como
deveriam começar a história e quais letras usariam para grafar as palavras
selecionadas na composição dos enunciados do texto.
Como no evento anterior, algumas crianças também se limitaram a copiar os
enunciados sem interagir na construção composicional do texto, uma vez que a
articulação dessas duas capacidades exigia maior esforço por parte dos sujeitos,
inclusive daqueles que já conseguiam codificar com maior facilidade.
Para ilustrar como as crianças responderam à proposta de reescrita, apresentada
pela professora, tomaremos os textos das duas duplas, em que foi possível
acompanhar partes do trabalho de produção. Esses resultados podem ser
observados nas Fotos 65 e 66:
248
Foto 65 - Reescrita de Marc (13-12-2005)
249
Analisando as estratégias discursivas das crianças no processo de reescrita da
história em quadrinhos, podemos observar que, no texto produzido por Cris e Marc,
a seqüência narrativa foi instaurada a partir de um dispositivo que
configurou em
uma situação inicial: O ELEFANTE ESTAVA TOMANDO ÁGUA; com uma
complicação: E A BRUXINHA CHEGOU E TRANSFORMOU EM REGADOR DE
FLOR; seguida de uma ação: VIROU A PONTA PRA ELA; e de uma avaliação:
PORQUE A MÁGICA NÃO DEU CERTO PORQUE CEATRAPALHOU DINOVO (se
atrapalhou de novo).
Foto 66 - Reescrita de Kai (13-12-2005)
250
Para instaurar essa base discursiva, as crianças selecionaram alguns recursos
lingüísticos que possibilitaram a interligação dos enunciados contribuindo na
instauração do efeito narrativo. Dentre esses recursos, podemos situar os verbos no
passado, os organizadores textuais e/porque, os mecanismos de coesão nominal e,
a, ce (se) referindo-se à bruxinha.
Tomando as contribuições acerca da reflexão lingüística das crianças em processos
de produção do discurso narrativo apresentadas por Goulard (2003), podemos
observar que Marc e Cris também realizaram algumas operações que foram
suscitadas pela autora na análise dos trabalhos que compunham o seu corpus de
pesquisa.
55
No texto produzido por Cris e Marc, podemos observar que no
enunciado E A BRUXINHA CHEGOU E TRANSFORMOU (o elefante) EM
REGADOR DE FLOR (que) VIROU A PONTA PRA ELA, foram realizadas
supressões de palavras deixando lacunas no texto, o que pode ter ocorrido em
detrimento da complexidade da organização sintático-discursiva que envolve a
articulação das informações no texto. Em PORQUE A MÁGICA NÃO DEU CERTO
PORQUE CEATRAPALHOU DINOVO, as crianças, ao buscarem esclarecimentos
para a situação, repetiram o organizador textual porque. Nesse enunciado, podemos
observar que Marc, a partir das experiências discursivas vivenciadas, buscou
imprimir, no trabalho de reescrita, seu ponto de vista acerca da bruxinha (ela era
atrapalhada e suas mágicas não davam certo), introduzindo no texto escrito uma
avaliação que já foi construída.
No texto produzido por Kai e Ped, compreendemos que a seqüência de base
narrativa foi instaurada a partir de uma situação inicial que foi desencadeada com o
marcador temporal: ERA UMA VEZ, seguido da apresentação de um dos
personagens: UM ELEFANTE e a descrição de suas primeiras ações: QUE ESTAVA
BEBENDO ÁGUA E DE POIS ELE JOGO ÁGUA NELE (que estava bebendo água e
depois ele jogou água nele). A narrativa progride com a complicação: E DE POIS A
BRUXINHA TRANSFORMO E TANQUE DE GERRA E DE POIS O TANQUE
GERRA APONTO O NEGOSSO (e depois a bruxinha transformou em tanque de
55
Com o objetivo de analisar a atividade de reflexão sobre a linguagem escrita de dez crianças
produzindo textos durante o processo de alfabetização, a autora tomou 203 textos evidenciando,
dentre esses, 47 produções de base narrativa.
251
guerra e depois o tanque de guerra apontou o negócio). Ao finalizar a trama
narrativa, as crianças disseram que: E DEPOIS TINHA FLO DETRO DO TANQUE
DE GERRA A BRUXINHA FICOU FELIZ (e depois tinha flor dentro do tanque de
guerra a bruxinha ficou feliz).
Para materializar o texto por meio da linguagem escrita, Ped e Kai lançaram mão de
alguns recursos lingüísticos que contribuíram para a progressividade dos
acontecimentos, encaminhando a narrativa para um final feliz. Concretizaram esse
percurso fazendo uso de marcadores temporais (ERA UMA VEZ, DEPOIS); de
organizadores textuais (QUE, E); de verbos no passado (ESTAVA, JOGOU,
TRANSFORMOU, APONTOU, FICOU); de mecanismos de coesão nominal (ELE,
NELE). Podemos observar, também, que as crianças desenvolveram operações
discursivas que foram marcadas por mecanismos de repetição (E DEPOIS) e de
justaposição de orações, como podemos observar no trecho que se segue: E
DEPOIS TINHA FLO DETRO DO TANQUE DE GERRA A BRUXINHA FICOU FELIZ.
De acordo com Goulard (2003), a emergência desses mecanismos discursivos pode
ser observada, de maneira mais evidente, na reprodução de histórias, uma vez que,
nessas atividades, “[...] as crianças precisam coordenar o fluxo de um texto já
planejado globalmente, obedecendo a uma determinada representação sintático-
discursiva, com a execução do mesmo [...]” (GOULARD, 2003, p. 98).
Nesse sentido, considerando a complexidade discursiva das narrativas quadrinizadas,
as atividades de reprodução dos textos tornaram-se ainda mais desafiadoras para as
crianças, pois, conforme aponta Cademartori (2003, p. 51),
Os efeitos de sentido da história em quadrinhos começam a surgir
quando seu recurso predominante – a iconicidade – é transcendido no
ato de leitura que identifica uma estrutura narrativa. Logo, o
fundamental no gibi não é ter dupla natureza sígnica, mas o fato de
que conta, de modo próprio, uma história. A despeito da
preponderância da visualidade, não são quadros o que mostra, mas
uma seqüência narrativa que pode ser lida no momento em que a
criança, entrelaçando os códigos visual e verbal, lograr ultrapassá-los.
No caso pesquisado, a demanda de reprodução de histórias, como foi possível
observar nos eventos delineados, foi muito comum, exigindo um intenso esforço
cognitivo das crianças que foi centralizado nos aspectos estruturais do sistema de
252
escrita. Ao empreenderem esforços no sentido de concretizar as tarefas solicitadas
pelas professoras, as crianças tentaram imprimir em seus trabalhos marcas de sua
trajetória pessoal, porém essas marcas estavam fortemente vinculadas ao vivido no
espaço-tempo escolar, às situações de trabalho que tomaram como ponto de partida
o saber escolarizado. Um saber que foi ressignificado por meio da entrada do texto
na sala de aula, mas que ainda não foi provocador de mudanças nas práticas
discursivas, tendo em vista a constituição de sujeitos por meio do trabalho com a
linguagem escrita. Afinal, que condições foram preenchidas nas propostas de
reescrita das histórias em quadrinhos? O que as crianças tinham a dizer? Que
razões tinham para dizer? Para quem deveriam produzir o texto?
Vejamos um outro exemplo de texto produzido pelas crianças decorrente dessa
situação de trabalho com a linguagem escrita, apresentado na Foto 67:
O ELEFANTE JOGANDO ÁGUA
ELE JOGOU ÁGUA NELE
ELA TRANSFORMOU NUM CANHÃO
ELA PENSOU QUE IA ATIRAR NELA
Raf era uma criança que ainda não havia se apropriado do caráter alfabético da
escrita, mas escrevia adequadamente algumas palavras conhecidas. Também
dispunha de um repertório variado de letras, organizava-as de forma linear e
colocava espaços em branco entre conjunto de letras, demonstrando a sua
percepção dessa característica da escrita. Sua reescrita da história de Eva Furnari
consistiu em sentenças curtas e justapostas, uma abordagem que também foi
recorrente em outros textos.
Foto 67 - Reescrita de Raf (13-12-2005)
253
Tomando uma situação de escrita exemplificada por Geraldi (2003),
compreendemos que essa proposta de trabalho com as histórias em quadrinhos
aproximou-se de uma outra situação muito comum nas classes de alfabetização: a
escrita de textos a partir de gravuras. Nessas situações, conforme analisa o autor, o
que se tem a dizer é uma história suscitada pelas gravuras cuja finalidade discursiva
se circunscreve a mostrar o que se sabe sobre o sistema da língua. Como
conseqüência, são anuladas, nessa demanda de trabalho, tanto as razões para dizer
quanto o que se tem a dizer, o que também foi possível observar nas situações de
reescrita das histórias em quadrinhos observadas em que as vinhetas foram
concebidas como gravuras a serem reproduzidas, uma a uma, por meio da
linguagem escrita, especialmente nas situações em que as crianças ainda não
tinham desenvolvido certas habilidades de textualização, como no resultado
apresentado por Raf.
Nesse sentido, que razões levaram as professoras da turma pesquisada a
focalizarem situações de escrita de base narrativa em torno da reescrita de histórias
em quadrinhos? Por que as crianças não eram motivadas a narrar, por exemplo,
suas experiências cotidianas de vida ou outras histórias que, por sua beleza e
encantamento, merecem se recontadas e ouvidas? Onde e por que ficaram perdidos
ou escondidos esses saberes?
Sabemos que a arte de contar histórias teve sua origem nas antigas culturas orais e
estava fortemente vinculada ao imaginário e à memória coletiva dos povos. Como
toda enunciação humana, sua natureza é social e determinada por um conjunto de
fatores que abarcam o espaço sico e histórico, o auditório social, as finalidades
comunicativas, a vontade discursiva do narrador. De acordo com Guimarães (2000),
as mais brilhantes narrativas populares ocorreram com os camponeses da França,
no século XVIII, entre crianças, homens e mulheres, agricultores e trabalhadores
artesanais, que se reuniam junto às lareiras para escutar histórias, que mais tarde se
tornaram tradições culturais. No Brasil, segundo a autora, a arte de contar histórias
foi herdada da Nigéria a partir das narrativas de pessoas que faziam parte de uma
casta especial. Essas pessoas se deslocavam de tribo em tribo recitando seus alôs,
uma tradição que foi realimentada pela Velha Totonha de José Lins do Rego que, no
cenário brasileiro, mantinha a tradição da narrativa oral se deslocando de engenho a
254
engenho. Guimarães (2003) ainda cita o exemplo da Tia Nastácia de Monteiro
Lobato que, com sua linguagem simples, envolvia as crianças em narrativas que
valorizavam nossas raízes culturais. Nesse contexto social, os contos orais eram
marcados pela interação imediata, pela presença corporal do narrador e do
destinatário que reconstroem os sentidos do texto numa relação verbal que também
é significada por gestos, expressões, mímicas, pausas, entoações. É particularmente
nesses aspectos que a tradição oral se diferencia da escrita, uma vez que nesta a
interação face a face cede o lugar para o discurso mediado.
Uma das contribuições mais relevantes acerca da importância das narrativas
populares foi apresentada por Benjamin (1994).
56
Para o autor, a fonte das
narrativas orais é a experiência que passa de pessoa para pessoa e as melhores
narrativas escritas são aquelas que mais se aproximam das histórias orais contadas
por narradores anônimos. Ao discorrer sobre a figura do narrador, tomando como
referência Nikolai Leskov,
57
Benjamin distingue dois grandes grupos fundamentais
de narradores anônimos que podem ser representados pela figura do camponês
sedentário e do marinheiro comerciante. De acordo com o autor, o narrador
sedentário é aquele que possui um saber comum por meio do qual intercambia suas
experiências de vida, revestindo-as de sugestões práticas, conselhos e
ensinamentos. O marinheiro comerciante, como nos fala Benjamim, é reconhecido
pelo povo como o narrador que vem de longe, que viaja e, portanto, tem muito que
contar. A interpenetração desses grupos de narradores foi possível devido ao
sistema corporativo medieval no qual se intercambiavam o saber das terras distantes
– o saber espacial trazido pelos migrantes, e o saber do passado o saber temporal
recolhido na experiência do trabalhador sedentário.
Assim, a experiência vivida se constituía na fonte do narrador, experiência que,
segundo Benjamim (1994), está em vias de extinção, devido às transformações
sociais, políticas e econômicas de nossa sociedade. O autor argumenta que, em
56
Essas discussões foram publicadas no livro intitulado Magia e técnica, arte e política, cuja primeira
edição data de 1985.
57
Segundo Benjamim (1994), Nikolai Leskov (1831-1895) foi um dos mais brilhantes narradores de
sua época. Tinha grande simpatia pelos camponeses e interesse na orientação religiosa de origem
ortodoxa grega, demonstrando afinidades com Tolstoi e Dostoievski. Seus trabalhos foram
publicados nos países de língua alemã, após a Primeira Guerra Mundial, pelas editoras Musarion,
Georg Müller e C. H. Beck.
255
nome da modernização e do desenvolvimento das forças produtivas, o discurso vivo
e singular da experiência humana foi empobrecido e aos poucos substituído por
outras experiências de caráter global e desmoralizante, como as experiências de
guerra, as experiências econômicas geradas pela inflação e as que envolvem a ética
política. Nesse contexto histórico de transformações sociais, o discurso vivo, que
inicialmente foi remodelado pelo romance de formação, teve sua maior baixa com a
instauração de outra forma de comunicação que não procede da tradição oral: a
informação. Foi a informação que veio consolidar, por meio da imprensa, as ideologias
da classe burguesa, influenciando decisivamente a forma épica do discurso.
Lamentando as implicões decorrentes dessa nova forma de comunicação, Benjamin
(1994, p. 202-203) explica:
Essa forma lapidar mostra claramente que o saber que vem de longe
encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos
próximos. O saber, que vinha de longe do longe espacial das terras
estranhas, ou do longe temporal contido na tradição – dispunha de uma
autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela
experiência. Mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes
de mais nada, ela precisa ser compreensível ‘em si e para si’. Porém,
enquanto esses relatos recorriam freqüentemente ao miraculoso, é
indispensável que a informação seja plausível. Nisso ela é incompatível
com o espírito da narrativa. Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão
da informação é decisivamente responsável por esse declínio.
Essa atualização cotidiana e veloz de informações, que nos coloca a par dos
acontecimentos locais e mundiais sempre acompanhados de explicações que
impõem ao leitor um contexto psicológico, vem expulsando a narrativa viva e
singular de nossas relações sociais, tornando-nos cada vez mais pobres em
histórias surpreendentes, em relatos de experiência vivida.
No contexto escolar, especificamente, as histórias que se apóiam nesse saber que
vem de longe espacial e temporal também sofreram transformações em decorrência
da modernização dos seus diferentes modos de veiculação. Inseridas no campo da
cultura literária ficcional, as histórias populares circulam no espaço-tempo escolar
por meio de diversos gêneros orais e escritos, como os contos, as fábulas, as
lendas, as novelas, os romances, as narrativas de aventura, de enigma, mítica,
dentre outros, cuja tipologia discursiva norteadora circunscreve-se na ordem do
narrar.
256
Entretanto, alguns mecanismos de circulação e modos de apropriação da literatura
infantil, como recurso didático, têm repercutido em sérias implicações para a
constituição da criança como sujeito de direitos, de idéias, de opiniões, de valores,
sujeitos que também têm muitas histórias a contar. Histórias que poderiam tornar a
sala de aula um lugar habitado por muitas e diferentes vozes, lugar dialógico, em
que as experiências das crianças não são minimizadas ou sobrepostas a interesses
de ordem estritamente pedagógica, como ocorre, por exemplo, nas práticas de
avaliação das escritas infantis em que a principal finalidade é a comprovação do
desenvolvimento evolutivo da criança, uma demanda que também foi recorrente na
sala de aula pesquisada, como poderemos observar no tópico que se segue.
c) A reescrita individual de histórias em quadrinhos
Durante o período em que estivemos em campo, observamos diversas situações de
escrita que tiveram como finalidade documentar o percurso evolutivo da criança.
Essa documentação, conforme situamos, era feita por meio de uma avaliação
denominada diagnóstica que
ocorria bimestralmente. Eram preparadas tarefas com
essa finalidade e elas eram arquivadas em pastas individuais para serem
apresentadas aos pais em dias de reunião. Além disso, os profissionais da escola
acreditavam que essa prática avaliativa poderia oferecer elementos para a
estruturação do planejamento docente. Para a avaliação das produções escritas das
crianças, os profissionais da escola utilizavam os processos evolutivos propostos por
Emília Ferreiro e Ana Teberosky (1999) para a construção da escrita.
De maneira geral, as tarefas avaliativas consistiam na produção de palavras e de
frases, dependendo do nível de escrita em que a criança se encontrava. Os
trabalhos propostos eram realizados em duas etapas: num primeiro momento, a
professora ditava palavras ou frases e as crianças as escreviam individualmente. Em
seguida, elas eram desafiadas pela professora a rever as suas escritas, com
proposições para que reescrevessem as palavras ou as frases. Embora, no caso
pesquisado, as crianças tivessem produzido diversos trabalhos, no decorrer do ano,
somente as produções de palavras e frases foram tomadas para apresentar aos
257
pais. Nesse sentido, o principal foco de análise das escritas infantis eram os avanços
no campo conceitual e lingüístico.
Esteban (2002), ao analisar a multiplicidade de vozes existente no diálogo sobre o
processo de avaliação das professoras que participaram do seu estudo,
58
oferece-
nos relevantes contribuições acerca desse movimento de apropriação da teoria
construtivista de Ferreiro e Teberosky. Segundo a pesquisadora, essa vertente da
teoria construtivista foi assumida como um novo parâmetro para classificar as
crianças, mantendo, desse modo, a perspectiva classificatória da avaliação. No
contexto pesquisado pela autora, a produção infantil também não era avaliada em
sua multiplicidade e sua realidade multifacética reduzida aos limites definidos pela
teoria que guiava a ação e pela necessidade de controle do processo. Outro aspecto
apontado pela autora em seu estudo diz respeito à implantação de novas estruturas
de registro utilizadas para documentar o desenvolvimento das crianças. Em nossa
pesquisa, foram as pastas de avaliação individual que serviram a esse propósito,
atendendo, conforme Esteban (2002), ao jogo de visibilidade que coloca os sujeitos
em uma situação constante de vigilância e redefinindo os mecanismos de controle
da aprendizagem. Na análise da autora,
A rede de informações demandada para a demarcação do
c
c
a
a
m
m
p
p
o
o
d
d
e
e
v
v
i
i
g
g
i
i
l
l
â
â
n
n
c
c
i
i
a
a depende da homogeneização das características individuais,
que permite a codificação, criando a possibilidade de classificação,
comparação e identificação dos desviantes. O exame, ou a lógica nele
encarnada, é instrumento desta homogeneidade. Estabelecendo a
n
n
o
o
r
r
m
m
a
a, define os padrões de avaliação e os limites para a constituição
e desenvolvimento da individualidade (ESTEBAN, 2002, p. 110, grifos
da autora).
No decorrer do ano, procuramos dialogar com alguns profissionais da escola a
respeito das implicações decorrentes dessas práticas avaliativas. Contudo,
observamos que nossas observações não provocaram mudanças substanciais no
interior da sala de aula pesquisada, uma vez que, no segundo semestre do ano
letivo, ainda foram instauradas duas situações para diagnosticar e documentar os
níveis de escrita das crianças. Essas situações tomaram, como ponto de partida, o
trabalho com a literatura infantil desenvolvido na sala de aula, particularmente com o
58
Tese de doutorado intitulada La reconstrucción del saber docente sobre a la teoría y la prática de la
evaluación, que apresentou na Universidade de Santiago de Compostela, na Espanha (1997).
258
gênero histórias em quadrinhos. Analisaremos um desses eventos buscando dar
visibilidade aos processos de produção de sentidos que emergiram nessas situações
de trabalho com a linguagem escrita.
O evento escolhido para análise foi observado no dia 29 de setembro de 2005. Seu
registro foi realizado por meio de anotações em diário de campo (evento n. 39, p.
249-258), fotos das produções textuais e gravações em audiovisual com
transcrições. Além de ilustrar o movimento de avaliação das escritas infantis,
enraizado nas práticas com a linguagem escrita na escola pesquisada, esse evento
também foi representativo dos desafios impostos pelo cotidiano escolar ao trabalho
docente da Professora 2 que, apesar de não possuir formação que atendesse a
essa demanda de avaliação das escritas infantis, foi orientada a colocar em prática a
proposta de avaliação, o que nos permitiu verificar uma série de implicações na
constituição de sentidos da alfabetização. O processo de avaliação teve início na
roda de conversa, quando a professora retomou as atividades anteriores explicando:
Prof. 2: eu falei com vocês que hoje a gente vai fazer uma atividade diferente... né?... uma
atividade especial... por que que é atividade especial?
Iur: não sei
Prof. 2: por que quem é que vai ler depois?
C: a tia
Joa: eu
Prof. 2: quem é que vai ler na reunião de pais?
Joa: eu vou ler
Mat: eu
C: a tia... a tia
Joa: a diretora
Marc: os pais e mães
Prof. 2: os pais de vocês vão ver depois essa atividade que vocês estão fazendo... então
crianças... hoje... a semana passada que foi de Matemática... e somente hoje vocês vão
fazer essa atividade... sozinho... tá?... sem deixar o coleguinha olhar... por que cada um vai
ter que fazer o quê?
Ped: o seu
259
Prof. 2: cada um vai fazer o seu... não é?... eh:: se o coleguinha olhar... como vocês fizeram
e copiar... vai ser o coleguinha que fez?
C: não
Prof. 2: não é
Marc: o pai não vai gostar que vai ficar igual
Prof. 2: é... então cada um... psiu... tem gente conversando junto comigo
Marc: eu não vou ver de ninguém
Ped: nem eu
Prof. 2: então... somente hoje... vocês vão ter que fazer sozinho... sem deixar o coleguinha
ajudar... tá bom?
Marc: ajudar?
Prof. 2: é... sem o coleguinha ajudar... sem o coleguinha copiar
Marc: nem as letras?
Joa: nem as letras... tia?
Prof. 2: não... vocês vão fazer sozinho... sem ninguém ajudar... tá bom?
C: ((conversam entre si))
Prof. 2: que vai ser assim... crianças... eu vou chamar um pouco... vocês vão fazer aqui
na frente... na mesa... o restante vai fazer uma outra atividade no fundo... tá? (Evento 39,
29-9-2005).
Assim a professora explicou para as crianças que, naquele dia, fariam uma atividade
especial, que deveria ser realizada sem a colaboração do outro, pois o seu destino
seria a reunião de pais, ou seja, serviria para comprovação dos níveis de escrita e,
desse modo, o diagnóstico deveria ser individual. Explicou, como também ocorreu
em outros momentos de avaliação das escritas, que a turma seria dividida em dois
grupos e, enquanto um grupo estivesse fazendo essa atividade individualmente (as
carteiras estavam organizadas em fileiras), o outro iria trabalhar em grupos nas mesas
que estavam arrumadas no fundo da sala. Antes de iniciar os trabalhos, a professora
procedeu a uma dinâmica de relaxamento convidando as crianças a escutarem uma
música tranqüila, fazendo gestos e movimentos corporais de acordo com o que dizia a
canção. Ao final dessa atividade, a professora concluiu que:então... essa música aí...
é pra nós começarmos nossa tarde bem legal... bem tranqüilo... bom?” (PROF. 2,
260
Evento 39, 29-9-2005) buscando, talvez, amenizar os efeitos punitivos decorrentes
do destino dado à tarefa avaliativa: os pais de vocês vão ver depois essa atividade
que vocês estão fazendo” (PROF. 2, Evento 39, 29-9-2005).
Como a turma faria duas atividades ao mesmo tempo, a professora ainda contou a
história Chapeuzinho Vermelho, conversou sobre ela e, em seguida, propôs que,
enquanto um grupo fizesse a atividade de escrita, o outro grupo poderia ficar
desenhando a parte que achou mais interessante na história. A atividade do
desenho se configurou, então, em uma estratégia para ocupar as crianças durante a
realização do diagnóstico dos níveis de escrita, uma vez que a turma foi dividida em
dois grupos, exigindo da professora maior controle das interações em sala de aula.
O primeiro grupo de crianças foi convidado a ocupar lugares nas carteiras que
estavam enfileiradas. A professora entregou-lhes uma folha com a cópia de uma
história em quadrinhos do Amarildo, intitulada Violência, explicando o que e como
deveriam realizar a atividade:
Prof. 2: olha só... crianças... vocês tão vendo nessa folhinha de vocês... né?... que tem
uma... que tem o que nessa folhinha?
Ped: ( ) um monte de quadrinhos
Prof. 2: quadrinhos... né?... o que que eu quero que vocês façam pra mim... tentem... tentar
tá?... fazer uma lista aqui oh:: ((indica as linhas da folha))... uma lista... vocês sabem o como
que é uma lista... não sabem?... como que é uma lista?
Ped: eh:: monte de:: palavras
Prof. 2: palavras... mas uma ((mostra na folha))
Ped: embaixo da outra ((fazendo gestos com a mão))
Prof. 2: ( ) uma embaixo da outra... olha só... aqui nesses quadrinhos têm várias coisas não
tem?
Ped: tem... tem o (avô) e o bandido
Prof. 2: tem um homem... tem... o que que tá brilhando aqui em cima no céu?
Ped: o sol
Prof 2: sol
Ped: e a lua
Prof. 2: tem lua
261
Ped: estrela
Prof. 2: tem rios objetos aqui nesses quadrinhos... eu quero que vos façam pra mim uma
lista... com os objetos que vos observaram aqui nos quadrinhos ?... por exemplo... eh::
primeiro vos falaram... sol... vai fazendo uma lista pra mim... tá?... de todas as coisas que
vocês estão vendo aqui nesse quadrinho... tá bom?... pode começar (Evento 39, 29-9-2005).
A professora, desse modo, sem instaurar diálogos com o texto, sem provocar novas
possibilidades de interlocução e de produção de sentidos, solicitou apenas que
observassem a história e escrevessem os nomes das coisas que apareciam nos
quadrinhos, registrando-as em forma de lista, configurando uma proposta de
trabalho em que a história em quadrinhos foi reduzida a um conjunto de objetos que
não se relacionavam entre si.
Considerando as condições de produção do trabalho de escritura, podemos
compreender que, nessa proposta, havia interlocutores reais para o texto (os pais),
motivos para escrever (mostrar o que aprenderam sobre o sistema alfabético de
escrita), encaminhamentos para a ação, ou seja, o que e como escrever (os nomes
das coisas que aparecem na história em forma de lista). Além desses fatores, a
organização do espaço e a divisão da turma em dois grupos também podem ser
incluídas nessas condições, pois, nesse movimento físico se instituiu o lugar de
aluno no cumprimento de uma tarefa e, como se não bastasse, o lugar do “forte” ou
do “alfabético” e do fraco” ou do “pré-silábico/silábico”; o lugar do “produtor” de
textos e do produtor” de palavras descontextualizadas. Podemos, então, dizer que,
nesse contexto, ganhou destaque o sujeito escolar esfacelado, determinado por
suas capacidades psicolingüísticas, provocando, conseqüentemente, o
distanciamento do sujeito sócio-histórico.
Como se habituadas com atividades dessa natureza, as crianças executaram a
proposta observando as imagens que compunham a seqüência narrativa numa
tentativa de compreender o que dizia o autor, mas como não lhes foi oferecido
espaço para dialogar oralmente com o texto, iniciaram o trabalho de escritura
apresentando reações distintas. Algumas se imobilizaram diante da tarefa, outras
procuraram apoio nos colegas e na própria professora para realizá-la e as demais
iniciaram imediatamente o trabalho. O resultado dessa atividade avaliativa pode ser
compreendido a partir desta amostra de trabalhos (Fotos 68 e 69):
262
Ped ouviu as orientações da professora, falou que sabia como fazer uma lista de
palavras, mas, ao se encontrar com o texto, fez a opção de contar o que estava
observando nas cenas. Ao final do trabalho, entregou o texto para a professora e, ao
ser questionado acerca da forma, explicou que não havia feito a lista, mas uma
história apontando as cenas e as sentenças registradas. Podemos compreender
que, desse modo, Ped fez tentativas de aproximação com os sentidos do texto,
mostrando que ressignificou a proposta da professora. Foram esses aspectos que
lhe ofereceram possibilidades de recordar o conteúdo do seu texto, quando disse,
apontando cada cena e fazendo relação com o escrito: É sobre isso, depois isso,
depois isso (PED, Evento 39, 29-9-2005). Em seguida, narrou os acontecimentos
fazendo relação entre o texto visual e o verbal.
Perguntamos à Ped se sabia para que havia escrito o texto. Inicialmente, disse não
saber, mas, depois, indicou que era para a professora verificar como estava
escrevendo. Assim, a indicação da professora como interlocutora e a razão para
escrever sugerem que o sentido da atividade para Ped foi o cumprimento de uma
tarefa. Esse sentido foi reforçado em um momento posterior, quando a criança foi
Foto 68 - Texto de Ped (29-9-2005) Foto 69 - Texto de Jac (29-9-2005)
263
convidada a rever o seu escrito, buscando, a partir da interação com a professora,
imprimir-lhe legibilidade.
Jac só começou a escrever a partir da intervenção da professora que solicitou que
observasse os desenhos e dissesse o que tinha neles e, depois, fosse escrevendo.
Ao consultar seu registro para ler, só conseguiu lembrar, consultando os quadrinhos,
o primeiro nome da lista (SOL). Fez tentativas de recordar o restante sem sucesso,
pois ficou indeciso quanto à sua ordem na lista e desistiu. Diferentemente de Ped,
não pôde recorrer à seqüência narrativa quadrinizada para recordar o escrito, devido
ao fato de esta o traduzir o conteúdo do texto. Quando lhe perguntamos se sabia
para que e para quem havia produzido o trabalho, Jac sorriu e disse que não sabia.
Nesse sentido, acreditamos que essa criança não havia se apropriado das razões da
tarefa. Então, se não interlocutores nem razões para escrever, escreveu para
quem e para quê?
Retomando as contribuições de Geraldi (2003), compreendemos que, nessa atividade,
a exemplo das demais situações de reescrita observadas, as crianças também não
tinham o que dizer e o que lhes restava a fazer era apenas ilustrar a gravura com o
verbal. Nessas condições, o trabalho do sujeito é configurado ao mero cumprimento
de uma tarefa escolar, pois,
[...] a razão única que ele pode encontrar para escrever alguma coisa
(já que é preciso escrever... a professora ‘pediu’) é mostrar que sabe
escrever (o que é um contra-senso, afinal está na classe para
aprender a escrever). Assim, tanto a razão para dizer quanto o que
dizer se anulam (GERALDI, 2003, p. 139).
As implicações decorrentes dessa situação de escrita também repercutiram nos
trabalhos realizados pelas crianças do segundo grupo que, nesse contexto
avaliativo, deveriam contar o que dizia cada cena, ou seja, reproduzir a seqüência
narrativa icônica utilizando a linguagem verbal. Assim, para explicar a tarefa, a
Professora 2 apresentou o título, o autor
do texto e propôs perguntas percorrendo o
texto quadro a quadro para ajudar as crianças a reconhecerem os seus sentidos,
como podemos notar nesta interação:
264
Prof. 2: esses primeiros quadrinhos aqui... oh::
Mon: tia... veio um homem... colocou a sementinha... daí depois ele jogou água... depois eh::
nasceu... aí depois ela virou uma flor
Mat: tia... aí depois
Prof. 2: aí depois... o quadrinho debaixo
Mat: aí... aí... ele ficou feliz que nasceu... aí pegou e chutou... depois ele ficou chorando
Prof. 2: quem chutou a flor?
C: um ladrão ((em coro))
Wes: apareceu uma pessoa ruim
Prof. 2: ah:: apareceu uma pessoa ruim... e ela fez o que com a flor?
C: chutou ((em coro))
Marc: esmagou
Prof. 2: quem chegou?
C: o homem ((em coro))
Prof. 2: o homem... né?
Joa: o fazendeiro
Prof. 2: e ele ficou
Gil: triste
Joa: chorou
Prof. 2: bom... o que que vocês vão fazer?... olha bem... presta atenção (Evento 39, 29-9-2005).
Considerando que essa interação inicial com o texto foi suficiente para a
concretização da proposta de escrita, a professora passou a explicitar as orientações
para o trabalho dizendo:
Prof. 2: vocês vão olhar cada quadrinho desse aqui e vão escrever uma frase do que que
acontecendo no quadrinho... primeiro... primeiro... eu quero que vocês... um pouquinho
((faz o contorno dos quadrinhos no quadro))... nós temos aqui em cima quatro quadrinhos?
C: é
Prof. 2: e aqui embaixo nós temos quatro quadrinhos
C: três... três
265
Prof. 2: ah:: certo ((apaga um quadrinho)) embaixo tem três quadrinhos... então vocês
vão pegar o lápis... crianças... e vão fazer assim... enumerar os quadrinhos... colocar
número um... na ordem das cenas... bom?... por exemplo... essa é a primeira cena?... é...
em cima do quadrinho aqui oh:: número um ((enumera o primeiro quadrinho no quadro))
Marc: tia... é pra fazer o que depois?
Prof. 2: aí vocês vão ver a ordem das cenas e vão colocar... tá?
Marc: a frase... é pra escrever uma frase?
Prof. 2: depois que vocês enumera / primeiro vão enumerar os quadrinhos... todo mundo
colocando os números nos quadrinhos... na ordem da cena... tá?... um... dois... três... até
acabar os quadrinhos
C: ((enumeram os quadrinhos))
Prof. 2: pronto... todo mundo já enumerou
C: JÁ ((em coro))... NÃO... NÃO
Prof. 2: vamos esperar o Gil ((aguarda))... bom... vocês enumeraram a ordem do
quadrinho... primeiro... segundo... né?... agora... não tem essas linhas aqui embaixo?
C: tem ((em coro))
Prof. 2: vocês vão pegar / olhar cada quadrinho... pelo número que vocês colocaram
Marc: ah sei... ( )
Prof. 2: e vão escrever uma frase do que vocês estão vendo naquele quadrinho...
entenderam?... por exemplo oh:: o quadrinho número um... ((mostra no quadro)) tem um
monte de linhas aqui... não tem?
Gil: tem
Prof. 2: oh:: tem várias linhas ((desenha as linhas no quadro)) aí aqui oh:: na primeira linha...
eu vou escrever uma frase do primeiro
Vic: quadrinho
Prof. 2: do que acontecendo no primeiro quadrinho... tá?... na linha número dois eu vou
escrever do segundo... depois do terceiro... tá?... fazer uma frase de cada quadrinho que
vocês fizeram... tá... do que que tá acontecendo em cada quadrinho (Evento 39, 29-9-2005).
Essas orientações confirmam, portanto, que, nessa proposta de escrita, o foco
também estava centralizado na dimensão lingüística do processo de alfabetização,
mais especificamente nos aspectos que envolvem as relações entre sons e letras,
pois esses seriam tomados como indicativos do processo evolutivo da criança. Para
tanto, a Professora 2 propôs que as crianças enumerassem os quadrinhos,
escrevendo, em seguida, uma frase para cada uma das cenas, contando o que
266
estavam observando. Essas instruções, porém, o foram atendidas por todas as
crianças da turma que, ao buscarem responder às solicitações da professora,
utilizaram diferentes estratégias para compor os textos escritos. Em alguns casos,
eles se constituíram em uma seqüência narrativa simples, com elementos que
indicaram a progressividade das ações e que nos permitiram identificar dispositivos
lingüísticos que caracterizam a orientação, a complicação e o desfecho, como
podemos notar nos textos produzidos por Mon e Iur (Fotos 70 e 71):
Considerando a dimensão composicional do texto, bem como as suas condições de
produção, podemos dizer que os trabalhos de Mon e de Iur foram os mais
expressivos da turma. Mon procurou narrar os acontecimentos da história,
interligando-os por meio dos organizadores textuais E e que imprimiram ao texto
marcas muito comuns nas narrativas orais das crianças. Além disso, Mon também
Foto 70 - Texto de Mon (29-9-2005)
O HOMEM COLOCOU 5 SEMENTINHAS E
JOGOU ÁGUA E NASCEU AÍ NO OUTRO
DIA NASCEU UMA LINDA FLO
R
ANOITECEU AÍ ENTROU UM LADRÃO E
CHUTOU A
FLOR AÍ NO OUTRO DIA O HOMEM VIU
A FLOR MORTA E ELE CHOROU E FICOU
TRISTE
Foto 71 - Texto de Iur (29-9-2005)
ERA UMA VEZ UM HOMEM PLANTANDO
DEPOIS JOGOU ÁGUA
DEPOIS ELE FICOU OLHANDO
A FLOR E DEPOIS A FLOR
SE ELE TEVE UM CARINHOZINHO
DEPOIS O LADRÃO DERRUBOU A FLOR
DEPOIS O HOMEM FOI VER A FLOR
267
incluiu alguns elementos que situaram o tempo dos acontecimentos: NO OUTRO
DIA e ANOITECEU; descreveu características, estados e sentimentos: LINDA FLOR,
A FLOR MORTA, ELE CHOROU E FICOU TRISTE. Iur também imprimiu algumas
marcas lingüísticas à sua produção que atribuíram um efeito narrativo ao texto, como
os marcadores temporais ERA UMA VEZ e DEPOIS que atuaram como
organizadores textuais interligando os acontecimentos.
nos casos em que as crianças atenderam às orientações da professora, a
instauração da seqüência narrativa foi comprometida e houve, portanto, uma
configuração fragmentada dos enunciados dos textos, o que pode ser constatado a
partir dos resultados evidenciados nas Fotos 72 e 73:
Esses trabalhos foram produzidos por Marc e Joa, duas crianças que também
demonstraram, durante o período em que estivemos em campo, a apropriação de
Foto 72 - Texto de Marc (29-9-2005)
1. ELE ESTÁ JOGANDO SEMENTE
2. ELE ESTÁ MOLHANDO
3. CRESCEU A FLOR
4. A FLOR CRESCEU MAIS
5. HOMEM DISTRUIU A FLOR
6. ELE DISTRUIU A OUTRA PLANTA
7. O DONO CHOROU
Foto 73 - Texto de Joa (29-9-2005)
ELE ESTÁ PLANTANDO
ELE ESTÁ REGANDO
ELE ESTÁ FELIZ
ELE ESTÁ OLHANDO PARA FLOR
ELE ESTÁ PENSANDO
ELE CHUTOU A FLOR
ELE ESTÁ TRISTE
268
capacidades sociocomunicativas bastante interessantes. Contudo, ao concretizarem
seus textos a partir das instruções delineadas pela professora, ou seja, enumerando
as vinhetas e escrevendo frases para dizer o que estava acontecendo em cada
cena, Marc e Joa produziram sentenças isoladas entre si. A partir das contribuições
de Braggio (2002), compreendemos que essa demanda de trabalho com a
linguagem escrita se aproxima de uma visão mecanicista de alfabetização, na qual a
preocupação com o aspecto grafofônico prevalece sobre os demais aspectos da
linguagem, o que se evidencia na fragmentação e na artificialização dos enunciados.
Embora algumas crianças tenham buscado outros meios para concretizar a proposta
da professora apresentando resultados que se aproximaram um pouco mais da
seqüência narrativa, observamos que, em ambos os casos, as respostas foram
determinadas pelas condições em que foi instaurada a atividade de escrita, reduzindo
as possibilidades de interlocução com o texto que, nesse contexto, não foi
selecionado tendo em vista o seu conteúdo, as relações de sentido, mas como um
pretexto para preencher as necessidades de avaliação da escrita.
Assim, compreendemos que as condições delimitadas pela professora modificaram
de forma negativa as potencialidades das crianças, impedindo que elas se
constituíssem, por meio da linguagem escrita, sujeitos de seu próprio discurso. Além
disso, essas práticas contribuíram para a constituição de sentidos que se
desvincularam das funções e das significações sociais dessa forma de linguagem,
reforçando o caráter punitivo e pragmatista da tarefa avaliativa, o que pode ser
constatado nas vozes das crianças que foram convidadas a explicitarem sua
compreensão acerca das razões que motivaram o trabalho de escritura:
Let: porque tinha que escrevê... porque... quando minha mãe vim na reunião... eh:::: ela vai
vê e ela vai me batê
Jon: porque tá aqui oh ((mostrando os quadrinhos))
Cris: porque... porque a tia mandô a gente escrevê... pra gente vê se sabe escrevê direitinho
Wes: para a mamãe o papai... a direto::ra
Mon: porque a professora vai vê
Mar: pra gente sentá aqui na frente... pra fazê a atividade... eh:: pra gente relaxá (Evento 39,
29-9-2005).
269
A análise das respostas das crianças à tarefa nos leva a refletir sobre algumas
questões que envolvem o aprendizado da escrita e as “recentes” descobertas no
campo da alfabetização. Essas descobertas, vinculadas ao campo da Psicologia
Histórico-Cultural, evidenciam que a linguagem escrita é um objeto cultural
produzido historicamente e possível de ser significado nas relações entre as
pessoas. Como produto cultural, resultante de processos de objetivação nos quais
a experiência humana foi se acumulando e se transformando, a linguagem escrita
comporta, portanto, uma ntese da atividade humana. Assim, ao se apropriar da
escrita, a criança está se apropriando da sua história social, das suas funções e
significações socialmente estabelecidas. Nesse sentido, o papel da instituição
escolar é fundamental, uma vez que “[...] a educação escolar é mediadora entre as
crianças e a significação social da escrita, portanto, entre as crianças e o
conhecimento historicamente elaborado” (GONTIJO, 2002, p. 54).
Contudo, nesse contexto das práticas educativas em torno das histórias em
quadrinhos, a compreensão das funções e das significações sociais da linguagem
escrita ficou comprometida, devido à ênfase à sua dimensão lingüística (fonética e
fonológica). No caso específico das atividades de reescrita individual das histórias
em quadrinhos, tanto para as crianças como para a Professora 2, a relação entre os
motivos e o fim do trabalho de escritura produziu o sentido de cumprimento de uma
tarefa, de uma obrigação que, de certo modo, lhes permitiu adequar-se à dinâmica
escolar, atendendo às demandas decorrentes das práticas avaliativas em que
estavam circunscritas essas relações de trabalho com a linguagem escrita.
Mas, se, nas situações de reescrita das histórias em quadrinhos, também não foram
instauradas condições de produção textual que permitissem às crianças dialogarem
com os textos, que possibilidades foram suscitadas nas situações em que as
crianças foram convidadas a dizer suas opiniões acerca dos acontecimentos
vivenciados no contexto escolar? Como suas idéias, valores, saberes foram
requisitados no trabalho que envolveu a produção dos textos de opinião?
Voltaremos, portanto, nosso olhar para as condições de produção desses textos
buscando evidenciar outros processos de constituição de sentidos que permearam o
trabalho de escritura realizado pelas crianças e pelas professoras no contexto da
sala de aula pesquisada.
270
5.2 OS TEXTOS DE OPINIÃO
Diferentemente do trabalho com as histórias em quadrinhos, as propostas de
produção em que as crianças foram motivadas a dizerem suas opiniões acerca de
situações vivenciadas no espaço/tempo escolar não foram sistematizadas a partir de
uma seqüência didática intencionalmente organizada. Elas emergiram do/no
cotidiano das práticas educativas
e tomaram como ponto de partida eixos temáticos
que giraram em torno de projetos desenvolvidos no âmbito escolar, como podemos
observar no Quadro 3:
Evento: data Contexto de produção Proposta de produção
10: 8-6-2005
Fórum da Educação Infantil
na Rede Municipal de Vitória
Dizer do que não gosta na escola, por
meio da escrita e do desenho, para
participar da enquete realizada na escola
11: 9-6-2005 Fórum da Educação Infantil
na Rede Municipal de Vitória
Dizer do que gosta na escola, por meio
da escrita e do desenho, para participar
da enquete realizada na escola
32: 31-8-2005 Projeto institucional sobre os
direitos da criança
Expor opinião sobre o trabalho infantil por
meio da linguagem escrita, numa
elaboração coletiva de idéias, a partir da
leitura de fotos
33: 2-9-2005 Exposição de trabalhos
literários na escola
Escrever um recado para os autores
dizendo o que achou da história
Chapeuzinho Laranja
35.1: 14-9-2005
Projeto institucional sobre os
direitos das crianças
Dizer, usando baes de fala, o que acha
que as criaas das fotos eso pensando
enquanto trabalham
35.2:14-9-2005 Projeto institucional sobre os
direitos da criança
Expor opiniões sobre o trabalho infantil a
partir da foto de uma criança trabalhando,
numa elaboração escrita individual
43: 25-10-2005 Comemorações do dia das
crianças na escola
Escrever sobre o que gostou nas
atividades da semana da criança
realizada na escola
51: 23-11-2005 Projeto institucional: direitos
da criança
Escrever o que pensa a respeito da falta
de moradia
Esse panorama geral mostra que as situações de escrita que giraram em torno dos
textos de opinião foram mais recorrentes a partir do trabalho desenvolvido pela
Professora 2, no segundo semestre do ano letivo. Ao abordar temáticas que
envolviam os direitos das crianças, como o trabalho infantil e a falta de moradia, a
Professora 2 procurava dialogar com elas acerca de seus conhecimentos e opiniões
Quadro 3 - Situações de produção dos textos de opinião
271
sobre o assunto, suscitando situações de produção oral e escrita nas quais as
crianças eram motivadas a dizer o que sabiam/pensavam sobre os temas em questão.
Além desses temas, a Professora 2 também aproveitou algumas situações cotidianas
para propor atividades de escrita cujas condições de produção nos remetem ao
nero texto de opinião. Nesse sentido, queremos esclarecer que, ao definirmos essa
configuração textual, estamos nos referindo ao contexto interlocutivo no qual foram
circunscritas as propostas de produção e não apenas as especificidades
composicionais do gênero, uma vez que, em muitas circunstâncias, os traços da
seqüência argumentativa, base discursiva predominante nos textos de opinião,
configuraram-se a partir de tomadas de posição simples que, de certo modo,
sinalizaram a emergência de posicionamentos enunciativos de caráter argumentativo.
Conforme agrupamento proposto por Dolz e Schneuwly (2004), os gêneros fundados
na ordem do argumentar estão vinculados ao domínio de comunicação que abrange
a discussão de problemas sociais controversos. Em nossas relações cotidianas,
estamos sempre fazendo uso de recursos argumentativos para expor uma opinião,
defender uma idéia, convencer um ou vários interlocutores, provocar mudanças no
comportamento ou na opinião do outro. O locutor, nesse contexto interdiscursivo,
necessita desenvolver as razões que possibilitem justificar o seu ponto de vista,
fazendo antecipações, contra-argumentando, dialogando com o outro. Assim, para
concretizar nossos argumentos, lidamos com capacidades de linguagem que giram
em torno de tomadas de posição, sustentações, refutações e negociações. Essa
demanda enunciativa se complexifica, contudo, em situações de produção textual
escrita em que o interlocutor não está presente para a instauração imediata do
diálogo, exigindo do locutor a escolha e a planificação de estratégias discursivas
argumentativas que
têm se constituído em objeto de estudo de muitos pesquisadores.
De acordo com Koch (2004b, 2004c),
59
a interação pela linguagem ocorre por meio
de objetivos a serem atingidos e, nesse sentido, o uso da linguagem é
essencialmente argumentativo. Diz a autora:
59
As contribuições de Koch acerca da argumentatividade discursiva foram defendidas em sua tese de
doutorado Aspectos da Argumentação em Língua Portuguesa (1981) e publicadas originalmente em
1984. Neste trabalho, tomamos a 9ª edição do livro Argumentação e linguagem publicada em 2004b,
e a 9ª edição do livro A inter-ação pela linguagem, também publicada em 2004c.
272
[...] o ato de argumentar, isto é, de orientar o discurso no sentido de
determinadas conclusões, constitui o ato lingüístico fundamental, pois
a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia, na acepção mais
ampla do termo [...]. Ao produzir um discurso, o homem se apropria da
língua, não com o fim de veicular mensagens, mas, principalmente,
com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-se como
EU e constituindo, ao mesmo tempo, como interlocutor, o outro, que é
por sua vez constitutivo do próprio EU [...] (KOCH, 2004b, p. 17-19).
Contudo, conforme salienta Koch, para se constituir discurso, ou seja, texto, e
produzir os efeitos de sentido desejados, o ato de argumentar precisa obedecer às
condições de progresso e de coerência, uma vez que a tessitura das intenções e
das idéias ocorre por meio da seleção de determinados recursos lingüísticos que
possibiltam indicar a orientação argumentativa dos enunciados. Nesse sentido,
tomando as contribuições da Lingüística Pragmática
60
(especialmente da Teoria
Semântica Argumentativa de Ducrot) e a abordagem bakhtiniana, a autora aponta a
emergência de uma lingüística voltada para o discurso, ocupando-se das
manifestações produzidas por indivíduos concretos, situados em deteminadas
condições históricas e sociais.
Nessa perspectiva, a orientação argumentativa pode ser reconhecida a partir de
mecanismos lingüísticos denominados de marcas lingüísticas da enunciação e de
modalizadores “[...] que têm a função de determinar o modo como aquilo que se diz
é dito” (KOCH, 2004c, p. 29, grifo da autora). Dentre essas marcas, a autora
destaca: os operadores argumentativos, os marcadores de pressuposição, os
indicadores modais e atitudinais, os tempos verbais e os índices de polifonia que,
considerando o nosso interesse pelos processos de constituição de sentidos no
trabalho de produção textual, olharemos mais especificamente.
Segundo Koch (2004c, p. 63, grifos da autora), “[...] o termo polifonia designa o
fenômeno pelo qual, num mesmo texto, se fazem ouvir ‘vozes’ que falam de
perspectivas ou pontos de vista diferentes com os quais o locutor se identifica ou
não”. O texto, nessa perspectiva, é concebido como um objeto heterogêneo, isto é,
um tecido constituído por muitas vozes, um tecido dialógico no qual os discursos se
60
A vertente Pragmática, vista como o estudo da atividade interindividual realizada no discurso,
emergiu a partir do interesse pela linguagem como atividade, pelas ações que se realizam na e pela
linguagem, conforme Koch (2004c).
273
entrecruzam produzindo sentidos. A presença de outras vozes no discursivo
argumentativo pode ser observada, conforme indica a autora, a partir de
determinados mecanismos lingüísticos, como os operadores argumentativos, os
marcadores de pressuposição, as aspas, os verbos no futuro do pretérito como
metáfora temporal, o discurso indireto e a ironia.
Buscando analisar o papel da polifonia duscursiva na construção de sentidos do
gênero resenha crítica, Araújo (2002) também assume os pressupostos da
abordagem bakhtiniana de linguagem, delineando contribuições importantes para o
presente estudo. A autora salienta o princípio da alteridade como definidor do ser
humano e de suas relações com o outro e, desse modo, os discursos são
caracterizados pela multiplicidade de vozes, pelas relações dialógicas que emergem
do/no jogo polifônico da palavra.
Acrescentando a esse quadro teórico as contribuições de Ducrot acerca da teoria da
polifonia, Araújo explica que locutor e enunciador se distinguem em termos
lingüísticos, isto é, “[...] o sujeito que produz o enunciado, aquele que diz eu’ ou o
que origina pontos de vista distintos não são obrigatoriamente o mesmo” (ARAÚJO,
2002, p. 145). Assim, o sujeito responsável pela enunciação incorpora à sua fala
outras vozes, outras falas que, ao entrecruzarem-se no texto, produzem sentidos. É
no discurso indireto livre, conforme aponta Barros (2003, p. 5), que “[...] a polifonia
atinge sua plenitude: as vozes que dialogam e polemizam ‘olham’ de posições
sociais e ideológicas diferentes, e o discurso se constrói no cruzamento dos pontos
de vista”.
Outra contribuição que nos parece interessante destacar foi decorrente dos estudos
realizados por Souza (2003). Partindo de pressupostos ligados à tendência
bakhtiniana, a autora discorre acerca da importância da situação de produção
situando as condições mínimas para argumentar como: a instauração de uma
situação social controversa, a explicitação de finalidades, a existência de posições
contrárias e de um tema que esteja relacionado com os interesses dos locutores.
Salienta ainda que, para a planificação do texto argumentativo, não existe uma
fórmula estável, rígida, pois o texto se desenvolve na interação, em função dos
274
objetivos, das características dos interlocutores, do tema, ou seja, da situação
argumentativa, exigindo a articulação de diversas operações discursivas.
61
Defendendo a inserção de práticas educativas pautadas na dimensão argumentativa
da linguagem desde a fase inicial de apropriação da linguagem escrita, Souza
(2003) analisa que, em decorrência de diversos fatores de ordem econômica,
pedagógica e cultural, os gêneros de caráter literário têm sido mais enfatizados nas
práticas de leitura e de escrita, evidenciando que o trabalho com os gêneros de
textos constituídos sob a base argumentativa tem pouca repercussão nessa fase da
escolarização. Porém, argumenta a autora, o trabalho com o tipo argumentativo é
muito importante e pode contribuir para a formação da consciência crítica na criança,
uma dimensão fundamental do processo de alfabetização, uma vez que a
argumentação se efetiva em torno de valores, de atitudes, de comportamentos e de
avaliações. Nesse sentido, embora as crianças vivenciem desde cedo situações
cotidianas em que são chamadas a justificar comportamentos, expor suas opiniões,
tomar decisões, influenciar o outro, dentre outras capacidades argumentativas, no
contexto das práticas educativas escolares, é necessário que elas tenham
conhecimento da situação argumentativa e dos principais aspectos que constituem
esse tipo de discurso, levando em conta suas capacidades e potencialidades
interdiscursivas.
No caso pesquisado, observamos que a dimensão argumentativa da linguagem foi
instaurada a partir de situações que focalizaram a produção de textos de opinião.
Considerando as propostas desenvolvidas na sala de aula, selecionaremos alguns
eventos para análise, buscando dar visibilidade aos momentos mais relevantes do
trabalho de escritura dos textos a partir dos diferentes temas em que foram
instauradas as propostas de produção: as opiniões sobre a escola, o trabalho
infantil, a falta de moradia, a exposição de trabalhos literários na escola. Além disso,
tomaremos um último evento que também foi revestido por possibilidades de dizer
61
As operações que constituem o discurso argumentativo foram apresentadas por Souza (2003) a
partir das contribuições teóricas e práticas decorrentes dos estudos realizados por Chartrand (1995),
Dolz (1989, 1993, 1995) e Golder (1996). Um apanhado geral dessas contribuições revela que, nesse
universo enunciativo-discursivo, podemos encontrar operações de apoio discursivo, de refutação, de
negociação, de explicação, de justificação, operações de ancoragem autônoma ou conjunta, de
construção dos objetos do discurso, de sustentação dos enunciados, operações que dizem respeito à
polifonia e à implicação do autor, dentre outras.
275
que, com base na dimensão argumentativa, provocou movimentos interessantes dos
sujeitos na sala de aula. Desse modo, em nossas análises, os eventos citados serão
identificados a partir dos temas que lhes deram origem e delineados tendo em vista
as suas condições de produção. Nesse percurso, buscaremos compreender se e
como essas condições de produção possibilitaram a constituição de sentidos no
trabalho de escritura dos textos, focalizando a sua dimensão interdiscursiva.
5.2.1 A escola
Os textos em que as crianças apresentaram opiniões sobre a escola foram
produzidos no primeiro semestre do ano letivo (eventos 10 e 11 de nosso diário de
campo, observados em 8 e 9-6-2005), com a Professora 1, e podem ser
compreendidos como um movimento inicial do trabalho de escritura que tomou como
ponto de partida situações em que as crianças eram motivadas a dizer suas opiniões
acerca de determinados temas. Nessa primeira situação observada em sala de aula,
as crianças foram orientadas pela professora a explicitar suas opiniões sobre o
espaço escolar a partir de enunciados cuja estrutura composicional foi configurada em
frases curtas e simples marcadas pelo uso de sintagmas que indicou a
responsabilidade enunciativa: EU GOSTO DE..., EU NÃO GOSTO DE... Vejamos a
caracterização geral dessa situação de produção textual.
A escola estava se organizando para participar do Fórum Municipal de
Representantes das Crianças, uma das etapas do movimento de reformulação da
Proposta Curricular da Educação Infantil do Sistema Municipal de Ensino de Vitória,
que teve início no ano de 2004. O fórum foi organizado por uma equipe de
profissionais vinculada ao sistema e tinha como principal finalidade a inclusão das
crianças no processo de elaboração do documento intitulado Educação Infantil: um
outro olhar, que abarcaria os princípios orientadores da nova proposta curricular
(PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO,
GERÊNCIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL, 2006).
276
Nesse sentido, estavam sendo coletadas informações acerca do que as crianças
gostavam e do que não gostavam na escola. Essas opiniões deveriam ser
depositadas em caixas que foram decoradas com gravuras e desenhos
especialmente para essa finalidade e dispostas em local de intensa circulação, com
a intenção de convocar a participação de todos na campanha que tinha como eixo
central a escuta das vozes das crianças em prol de melhores condições de trabalho
escolar, conforme podemos observar na Foto 74.
Em sala de aula, a professora falou sobre o fórum e a importância da participação
das crianças. Retomou também outras atividades produzidas a partir do trabalho
sobre o direito à educação que estavam desenvolvendo, lembrando a apreciação da
obra de arte A escola de Velasquez (evento 8, 2-6-2005) e, também, a eleição do
representante da turma para participar do fórum (evento 9, 7-6-2005), trazendo em
sua fala a história do processo vivido em sala de aula.
Conversou também sobre a educação em outros tempos, falando sobre a sua
trajetória escolar e abordando questões sociais e jurídicas sobre o direito à
educação pública de boa qualidade. Nesse momento, as crianças apresentaram
suas opiniões, idéias e conhecimentos acerca do tema, citando exemplos e
contando histórias que envolviam seus familiares. Em seguida, a professora
apresentou as caixas para as crianças observarem o texto visual, fazendo relações
entre as imagens que representavam o gostar e o não gostar, buscando, desse
modo, motivar o trabalho de escritura em que as crianças deveriam firmar suas
opiniões sobre um espaço escolar que não está isolado de um contexto que é
histórico, político e social.
Foto 74 - Espaço escolar destinado à coleta de opiniões
277
A partir dessa interação inicial, a professora propôs que as crianças registrassem, por
meio da escrita e do desenho, suas opiniões sobre a escola. Deveriam começar
desenhando e escrevendo o que não gostavam na escola. Assim, de acordo com o
contexto de produção delineado, nessa proposta de trabalho, a professora motivou as
crianças a produzirem o texto elas tinham o que dizer e tinham razões para dizer.
Definiu, ainda, as estratégias de dizer (teriam que desenhar e escrever), sem, contudo,
esclarecer para as crianças as razões para o uso simultâneo do desenho e da escrita.
Os trabalhos foram produzidos em pequenos grupos e, nesse processo, as crianças
trocaram idéias, informações, apresentaram suas opiniões para os colegas e para a
professora que colaborou no trabalho de escritura dos textos. Para ilustrar o resultado
dessa atividade, fotografamos oito textos que foram selecionados a partir da
observação do processo de produção. Os textos que se seguem (Fotos 75, 76 e 77)
revelam como as crianças, de maneira geral, concretizaram a proposta de produção:
Foto 75 - Texto produzido por Ped (8-6-2005): EU NÃO GOSTO DO ALFABETO
Foto 76 - Texto produzido por Iur (8-6-
2005): EU NÃO GOSTO QUANDO ALGUÉM ME
BELISCA
278
Assim, por meio desses enunciados, as crianças expuseram suas opiniões acerca do
que gostavam ou não gostavam na escola, posicionando-se a partir da marca
prenominal EU, que indica uma relação de implicação. Em seu conjunto, eles
revelaram as preferências e situações vividas pelas crianças na escola o que, de certo
modo, abriu possibilidades para a escuta de suas vozes. É o que também podemos
observar no trabalho produzido por Joa (Foto 78) que, no contexto dessa atividade
interdiscursiva, suscitou aspectos interessantes para a nossa análise.
Vejamos como foi o processo de produção desse texto: Joa iniciou o desenho pela
areia do pátio, fez os brinquedos, as crianças brincando, a parede azulejada, o sol e
as nuvens. Desenhou mais duas crianças (ele e o colega), colocando-as em
Foto 77 - Texto produzido por Pat (9-6-2005): EU GOSTO DO PÁTIO
Foto 78 - Texto produzido por Joa (8-6-2005): EU NÃO GOSTO QUE ALGUÉM JOGUE AREIA EM MIM
279
evidência, com seus respectivos nomes. Em seguida, movimenta a cena com a areia
sendo lançada pelo colega. Ao lado do nome da criança que está jogando areia,
acrescentou a palavra NÃO. No grupo, mais três crianças faziam seus desenhos.
Uma delas havia desenhado o alfabeto, pois é disso que não gostava na escola. A
exemplo de outras crianças do grupo, Joa também resolveu desenhar o alfabeto. Ao
ser questionado sobre o motivo que o levou a escrever o alfabeto, Joa assumiu que
estava copiando do colega e que achava legal, que gostava de fazer o alfabeto. Por
último, e atendendo à solicitação da professora que acompanhou todos os trabalhos,
escreveu sobre o seu desenho, ou seja, usou outra forma de linguagem a escrita –
para dizer do que não gosta na escola: EU NÃO GOSTO QUE ALGUÉM JOGUE
AREIA EM MIM.
Tomando por base o episódio relatado e o texto produzido por essa criança,
levantamos as seguintes questões: por que a linguagem escrita foi usada nessa
atividade? Como as crianças se posicionaram a partir dessa proposta de produção?
Considerando nosso posicionamento teórico, podemos propor algumas
possibilidades de interpretação. A primeira diz respeito ao contexto de produção da
escrita ROG NÃO que foi elaborada pela criança sem intervenção direta da
professora. Essa escrita pode ser compreendida como um movimento de atribuição
de sentidos ao texto visual
. Por meio dele, a criança pode estar constituindo-se
“porta-voz” do grupo, pois denunciou uma situação que é comum no pátio e
escreveu um texto que é falado por outras crianças da turma, revestindo-o de uma
perspectiva polifônica que também pode ser observada a partir dos marcadores de
pressuposição utilizados por Joa e Iur (QUANDO ALGUÉM e QUE ALGUÉM). A
partir desses marcadores, podemos inferir um conteúdo que é compartilhado entre
as crianças e, portanto, que não é de responsabilidade exclusiva dos locutores: tem
colegas que atrapalham a brincadeira no pátio com atitudes desrespeitosas.
Quanto à escrita das letras do alfabeto, podemos interpretar que essa tenha sido
uma resposta ao colega que diz não gostar do alfabeto, ou seja, uma forma de dizer-
lhe que pensa de outro modo, que gosta do alfabeto. Nesse caso, o leitor que está
distante, que não acompanhou a sua produção, poderia compreender que Joa não
gosta do alfabeto, uma vez que sua opinião seria depositada na caixa
correspondente à sua resposta. Contudo, o uso da linguagem escrita ofereceu os
280
elementos que revelaram a opinião central da criança, que foi reforçada com o uso
do balão (uma estratégia de dizer apropriada pela criança a partir do trabalho com as
histórias em quadrinhos), indicando que era ela quem dizia não gostar que joguem
areia. Desse modo, o balão de fala constituiu-se em um recurso que confirmou a
autoria do texto.
Assim, uma provável razão para motivar o uso da escrita nessa atividade pode ser
decorrente da finalidade do texto, ou seja, para que e para quem foi produzido: para
comunicar opiniões sobre a escola para interlocutores distantes, ausentes. Nesse
caso, a linguagem visual, ou seja, o desenho da criança, poderia não favorecer a
compreensão dos sentidos desejados. Entretanto, o uso da escrita foi uma condição
colocada pela professora sem, contudo, esclarecer sobre a sua necessidade, ou
seja, sem explicitar os motivos que a levaram a solicitar e garantir o uso da escrita.
Essa situação também pôde ser observada nos outros textos elaborados pelas
crianças, o que nos instiga a supor que o trabalho de escritura foi realizado, de
maneira geral, para cumprir uma tarefa escolar. As crianças tinham o que dizer,
conheciam as razões para dizer, para quem dizer e como deveriam dizer, mas não
tiveram oportunidade de discutir que o uso da linguagem escrita era necessário à
compreensão dos sentidos do texto.
5.2.2 O trabalho infantil
No contexto da sala de aula pesquisada, a temática do trabalho infantil foi
orientadora de diversas situações de produção de textos, tanto orais quanto escritos
e também de textos não-verbais. Nessas situações, as crianças foram motivadas, a
partir da leitura de outros textos e das interações na roda de conversa, a dizer o que
pensavam acerca dessa problemática que foi suscitada pela Professora 2, tendo em
vista o trabalho que estava sendo realizado sobre os direitos das crianças.
Na tentativa de delinear o contexto de produção do evento que tomaremos para
análise, iremos situar alguns momentos do processo de ensino aprendizagem que
tomou como foco temático o trabalho infantil. Como ponto de partida para o
desenvolvimento do tema, a Professora 2 apresentou às crianças uma canção que
281
contava a história de uma criança que trabalhava (Guto e seu martelo). A partir
dessa canção, a professora perguntou-lhes se conheciam alguma criança que
exercia trabalho remunerado. O grupo, então, começou a citar alguns exemplos do
tipo: eu vi na praia... eh:: tem criança que vende picolé... sorvete; eh::... quando
eu fui no shopping com minha né?... eu... eu vi um menino vendendo jujuba; eu
também... tia... eu e meu pai... eh nós vimos um menino vendendo picolé... tinha um
menino vendendo chocolate; um dia... quando eu tava no ônibus... tinha uma menina
vendendo picolé; eu vi vendendo água de coco na praia; eu vi vendendo bala; eles
ficam ganhando dinheiro pra comprar roupa; eh::... eles... eles vendem coisas pra
ganhar dinheiro... lá perto da minha casa tem gente que vende coisa (trechos
retirados da transcrição do evento 27, 17-8-2005).
Em meio a esses exemplos, as crianças também relataram suas experiências de
trabalho no contexto familiar dizendo: eu trabalho com minha vó... eu ajudo lavar
vasilha... roupa; eu também ajudo minha mãe lavar vasilha; eu ajudo também... eu
arrumo ca::sa (trechos retirados da transcrição do evento 27, 17-8-2005). A
professora, então, conversou a respeito das diferenças entre esses modos de
trabalho explicando que, em alguns casos, as crianças são obrigadas a exercer
atividades remuneradas para sobreviverem e, em outros, como no contexto das
relações familiares, o trabalho é uma forma de ajuda que não atrapalha as outras
atividades da criança, como estudar e brincar.
A partir dessa discussão inicial, a professora
apresentou situações em que as crianças são
levadas a exercer atividades perigosas, que
prejudicam não somente os estudos como
também colocam em risco a própria vida. Para
isso, tomou o livro intitulado Serafina e a criança
que trabalha (AZEVEDO; HUZAK; PORTO,
1999), conversando sobre as várias situações
que envolvem o trabalho infantil apresentadas
nesse livro (Foto 79).
Foto 79 - Livro Serafina e a criança que trabalha
(AZEVEDO; HUZAK; PORTO,
1999)
282
Dentre os diversos exemplos apresentados, alguns chamaram mais a atenção das
crianças, como a situação do carvoeiro, a do sisal, do canavial, da criança que
pulverizava a plantação. Esses exemplos provocaram reações de espanto e
indignação nas crianças, como podemos observar na interação que se segue:
Prof. 2: criança trabalhando né?... olha só... nessa gravura aqui oh:: ((mostrando a foto da
página seguinte)) o que que tá acontecendo aqui?
Gil: tá tirando cana
Prof. 2: olha... criança tirando
C: cana ((em coro))
Gil: nossa... que perigo
Prof. 2: isso mesmo... é um trabalho muito perigoso... não é para criança (Evento 27, 17-8-
2005).
Nesse mesmo dia, as crianças assistiram, ainda, a um vídeo do programa Alô
vídeo escola da TV Futura, que apresenta uma série de histórias de crianças que
trabalham e sofrem maus-tratos. No dia 24-8-2005 (evento 29), a professora voltou a
discutir essa temática levando para a sala de aula a música intitulada Criança o
trabalha, de Paulo TATIT e Arnaldo ANTUNES, que foi lida e cantada pelas crianças
e pela professora, suscitando outras possibilidades de interação com o texto, como a
produção de imagens ilustrativas, de poema e a apresentação de uma dança como
culminância do projeto institucional sobre os direitos das crianças.
O diálogo com esses diferentes textos contribuiu para o desenvolvimento de várias
atividades nas quais as crianças foram motivadas a dizerem/expressarem idéias,
opiniões, sentimentos acerca da problemática do trabalho infantil por meio do
desenho e da linguagem escrita. Na tentativa de ilustrar como as crianças se
posicionaram em situações de produção escrita suscitadas a partir das questões que
envolvem essa problemática, tomaremos para análise o evento 32 (31-8-2005, p.
214-219, diário de campo), que foi registrado em nosso corpus de pesquisa por meio
de transcrição das interações captadas em equipamento de audiovisual e fotos dos
textos produzidos.
283
Antes de iniciar as atividades do dia, a professora retomou a história do processo
vivido a partir da temática em questão, convidando as crianças a observarem outras
imagens de crianças trabalhando. Essas imagens foram trazidas pelas crianças e pela
professora e reproduzidas para o trabalho em sala de aula. Depois de ouvir as opiniões
das crianças, a professora apresentou a proposta de produção que consistiu em:
Prof. 2: ( ) nós vamos pegar essas gravuras que os coleguinhas trouxeram mais algumas
gravuras que eu consegui pra vocês / umas cópias umas xérox... e nós vamos fazer
uma atividade... como?... nós vamos sentar em grupos tá?... grupo de quatro tá?... e
nós vamos olhar algumas gravuras e vamos tentar escrever... os coleguinhas que
conseguem escrever... passar pro papel o que vocês estão observando... o que
vocês estão pensando sobre a cena e... e essas frases que vocês escreverem nós
vamos montar um cartaz coletivamente depois aqui na roda tá?... pra gente colocar
embaixo tá?... pra outras pessoas da escola saberem o que vocês pensam sobre
isso (Evento 27, 17-8-2005).
A princípio, as crianças demonstraram não ter compreendido a proposta da
professora, pois logo perguntaram como assim... tia?” (MARC, Evento 27, 17-8-
2005), “tia... é pra escrever o quê?” (GIL, Evento 27, 17-8-2005). A professora tentou
explicar novamente, contudo, diante do burburinho que se formou na sala de aula,
optou por organizar os grupos de trabalho, solicitando que as crianças observassem
e conversassem sobre as imagens. Em seguida, retomou as orientações:
Prof. 2: o que que vai acontecer agora?... já que vocês observaram a gravura que tá no
grupo de vocês... falaram o que vocês viram nessa folhinha para os outros grupos
saberem o que vocês viram... vocês agora... vão pegar uma tirinha de papel... o
grupo tá?... dessa aqui oh ((mostra para as crianças))... vendo?... uma pra cada
grupo... e... e... um coleguinha do grupo... mas todo mundo vai pensar junto tá? ... e
um coleguinha que vocês vão escolher do grupo vai escrever o que que voCÊS do
grupo estão pensando dessa cena que estão vendo aí
Marc: ah... escrever o que que a gente tá vendo aí?
Prof. 2: por exemplo... vamos supor que aqui nesse grupo é o Raf que vai escrever... é uma
suposição tá?... não tô dizendo que vai ser ele...voces quatro juntos... vão pensar
o que que vocês observaram nas cenas e vão passar pro papel aqui tá?... alguém do
grupo vai escrever... vocês vão escolher quem consegue escrever tá?... então uma
pessoa do grupo escreve mais todo mundo do grupo vai pensar junto... o que vocês
observaram na cena que voces pegaram ( ) tá? (Evento 27, 17-8-2005).
Nessa proposta, então, foram instauradas condições em que as crianças tinham o
que dizer: o que estavam observando e pensando sobre o trabalho infantil retratado
nas imagens; para quê: para exporem num cartaz; para quem: para interlocutores
284
que circulam no espaço escolar; como: discutindo no grupo e registrando as idéias
por escrito a partir do trabalho de um escriba escolhido no próprio grupo. Com a
intenção de captar os movimentos dos sujeitos durante o processo de produção do
texto, focalizamos a filmadora em um dos grupos de trabalho. Esse grupo era
composto por quatro meninos (Gil, Joa, Igo e Kai) e o processo de produção textual
teve início a partir da intervenção da professora:
Prof. 2: ((se aproxima para orientar o grupo)) vocês vão pensar primeiro... o coleguinha vai
ter uma idéia... o outro vai dar uma idéia... aí vocês vão trocando idéias... até pensar no que
vai escrever... ((espalha as folhas com as gravuras sobre a mesa)) ( ) vocês vão conversar
primeiro depois colocar aqui no papel tá?
Kai: eh:: um homem com ( ) ((observando uma das imagens))
Igo: dois homens
Joa: a menina tá batendo o martelo
Kai: ( ) trabalhando com lajota ( )
Gil: que lajota?
Kai/Joa: ((sorrindo))
Gil: eh:: criança trabalhan::do no lixo
Joa: criança trabalhando sobre... o martelo
Kai: não ((balançando o dedo negativamente))
Gil: como?... como... Kai?
Joa: tia... tia ((vai chamar a professora))
Prof. 2: o que que vocês estão pensando?
Gil: a menina tá trabalhando
Prof. 2: eu sei que a menina tá trabalhando... mas o que que vocês pensam sobre isso?
Igo: a menina martelando
Prof. 2: eu sei que a menina tá martelando... todo mundo vai ver a gravura e vendo que a
menina tá trabalhando
Joa: ah:: a menina construindo casa
Prof. 2: o que que vocês acham disso?
Gil: é perigoso
285
Prof. 2: você acha perigoso?... e você... Kai?
Kai: eh::: a menina vai bater o martelo no dedo
Prof. 2: você acha que a menina pode bater o martelo no dedo?
Kai: ((afirma com a cabeça))
Prof. 2: e você Igo?
Igo: ((silencia))
Joa: o menino ( ) pode cortar o dedo com isso daqui ((mostrando a outra imagem))
Prof. 2: é isso que eu quero que vocês façam... que vocês pensem o que vocês acham disso
aqui... se é certo... se é errado... o que vocês acham que poderia fazer com a criança que
está aí trabalhando? ( )
Gil: ( ) eh:: criança não pode trabalhar porque é muito perigoso ((olhando para a
professora))
Joa: é ((se prepara para escrever))
Prof. 2: é um pensamento legal?... vocês concordam?
Kai: ((afirma que sim balançando a cabeça))
Igo: eu gostei da idéia do Gil
Prof. 2: eu também acho que é um pensamento legal
Joa: ((começa a escrever))
Podemos observar que, quando iniciaram a interação com as imagens, as crianças
passaram por um processo de reconhecimento do texto visual. A mediação da
professora, insistindo que expusessem as suas opiniões sobre o que estavam
observando (mas o que que vocês pensam sobre isso? o que vocês acham que
poderia fazer com a criança que está trabalhando?), instaurou outras
possiblidades de interação com o texto. Ao responderem às perguntas da
professora, as crianças se posicionaram dizendo: é perigoso (Gil); éh::: a menina vai
bater o martelo no dedo (Kai); o menino pode cortar o dedo com isso daqui (Joa), o
que suscitou um movimento de negociação do dizer por meio da escrita com a
sugestão apresentada por Gil: criança não pode trabalhar porque é muito perigoso.
A partir dessa opinião, que foi acolhida pelo grupo e autorizada pela professora (eu
também acho que é um pensamento legal), as crianças deram início ao trabalho de
286
escritura buscando acrescentar outras idéias ao texto. Essas idéias também foram
apresentadas por Gil: agora eu vou falar a outra idéia... ahn:: olha o que eu queria
falar... em vez de criança trabalhar ela devia brincarque, ao final da escritura dessa
parte do texto ainda acrescentou: “e se divertir na escola
(Evento 27, 17-8-2005). As
sugestões de Gil foram acordadas no grupo e, em seguida, escritas por Joa, com a
ajuda dos colegas. O resultado desse trabalho pode ser observado na Foto 80:
Considerando a natureza argumentativa do texto de opinião, tentaremos evidenciar
as suas marcas lingüísticas, buscando analisar os efeitos de sentidos gerados pela
diversidade de vozes que se presentificou nesse enunciado. Podemos observar que
o posicionamento das crianças não foi marcado no texto por recursos prenominais,
mas por argumentos mais genéricos que produziram um efeito discursivo
distanciado, sem a instauração de elementos que configurassem, de forma direta, a
responsabilidade enunciativa. Nesse caso, as crianças se colocaram a partir das
vozes de um auditório social comum que foi introduzido nesse enunciado por meio
das discussões apresentadas pela professora e pelos diferentes textos tomados
como condição desencadeadora do dizer.
A partir das contribuições apresentadas por Koch (2004b, 2004c), podemos afirmar
que, no primeiro enunciado (CRIANÇA NÃO PODE TRABALHAR), está subtendido
um conteúdo crianças que trabalham que é compartilhado por locutores e
Foto 80 - Texto produzido por Gil, Joa, Igo e Kai (31-8-
2005): CRIANÇA NÃO PODE TRABALHAR
PORQUE É MUITO PERI
GOSO EM VEZ DE TRABALHAR TEM QUE BRINCAR E SE DIVERTIR
NA ESCOLA
287
interlocutores desse texto que, nesse sentido, se reveste de outras vozes, vozes
com as quais os locutores se identificam: eles também concordam que criança não
pode trabalhar. Essa identificação pode ser constatada com a introdução de
argumentos que são encadeados com operadores argumentativos (PORQUE,
INVÉS, E) que se orientam para uma mesma direção: CRIANÇA TEM QUE
BRINCAR. O último argumento (E SE DIVERTIR NA ESCOLA), que foi adicionado
por Gil ao final do trabalho de escritura, pode ser compreendido como um elemento
que fortalece a direção argumentativa, no sentido de firmar que, inclusive/até
mesmo/também na escola a criança tem que brincar. Com esse argumento, Gil pode
estar se posicionando a partir das experiências que vivenciava no centro de
educação infantil assumindo um ponto de vista contrário aos discursos hegemônicos
veiculados em nossa sociedade, ou seja, que lugar de criança é na escola
estudando, cumprindo o seu papel de aluno.
A idéia que circula em nosso meio social de que, ao invés de trabalhar, a criança
tem que estudar, foi evidenciada em outras situações de produção textual que
tomaram como ponto de partida os direitos das crianças. Uma dessas situações, que
também foi motivada por meio da observação de imagens de crianças trabalhando,
foi observada no dia 14-9-2005 (evento 35, p. 230-240, diário de campo) e consistiu
em uma produção na qual as crianças deveriam discutir (em duplas) e expor, por
meio da linguagem escrita, suas opiniões acerca do que pensavam sobre a situação
apresentada na imagem para ser apresentada para os colegas e para a professora.
Foram registradas dezoito produções em nosso corpus de pesquisa.
O trabalho que se segue (Foto 81) ilustra os argumentos apresentados por grande
parte das crianças e evidencia, em sua dimensão lingüístico-discursiva, estratégias
de dizer interessantes para as crianças nessa fase da alfabetização. Foi produzido
por Mon, uma criança que havia se apropriado do
caráter alfabético da escrita e
que, nesse período de nossa observação participante em sala de aula,
materializava suas idéias e opiniões pela linguagem escrita com bastante autonomia.
Observemos o que Mon disse em seu texto, quais recursos lingüísticos selecionou e
como os articulou para concretizar o seu dizer.
288
Mon inicia o texto com a forma prenominal EU implicando-se de forma direta com o
enunciado: EU ACHO QUE ELA ESTÁ TRABALHANDO NO SISAL e assumindo o
seu posicionamento em frente a essa situação: EU NÃO GOSTO DE VER CRIANÇA
TRABALHAR. Em seguida, justifica a sua opinião usando o operador explicativo
PORQUE, para argumentar que ELES TEM QUE ESTUDAR. Com esse argumento,
Mon revestiu seu discurso de outras vozes enunciativas, baseando-se em valores
aceitos socialmente, falando a partir do outro e para o outro que, nesse contexto, era
a professora a interlocutora imediata do texto e que, em tais circunstâncias, pode
ter influenciado o seu dizer.
Podemos ainda compreender que Mon não está, nesse enunciado, referindo-se a
todas as crianças. Ela situa que são ELES, ou seja, aqueles meninos e meninas
pobres, que estão trabalhando e não têm o direito à educação garantido. Nesse
sentido, aproxima-se do discurso dominante que situa o lugar da criança pobre em
Foto 81 - Texto produzido por Mon (14-9-2005)
289
nossa sociedade. Criança não pode trabalhar, mas, como também não pode ficar na
rua, tem que se ocupar com uma atividade que lhe é determinada socialmente: a
atividade escolar. O efeito de polifonia é marcado, então, por um indicador modal
que está implícito (ELES DEVEM ESTUDAR) que, nesse caso, produziu um
conteúdo que não é de responsabilidade exclusiva do locutor, mas de outras vozes
que se entrecruzaram nesse enunciado.
5.2.3 O direito à moradia
Esse tema também foi abordado em sala de aula pela Professora 2, a partir do
projeto institucional sobre os direitos das crianças. Como condição desencadeadora
do dizer, a professora tomou o poema Sem casa, da escritora Roseana Murray. A
exploração do texto foi planejada a partir de uma proposta didática discutida no
Curso de Extensão Alfabetização e Letramento (UFES/PPGE), em que a Professora
2 estava participando nessa fase de nossa pesquisa. O processo de leitura e de
produção dos textos foi registrado em nosso corpus de pesquisa por meio de
anotações em diário de campo (evento 51, 23-11-2005, p. 319-329), de transcrição
das interações captadas em equipamento de audiovisual e de fotos dos textos
produzidos pelas crianças. Passemos à descrição do evento.
Após a rotina inicial, a professora convidou as crianças para conversarem sobre um
tema que estavam estudando: os direitos das crianças. Pediu que lembrassem quais
direitos haviam discutido em aula e elas foram tecendo comentários sobre o direito
de brincar, de estudar, que criança não deve trabalhar, que precisamos respeitar as
diferenças. A professora explicou que as pessoas também têm outros direitos que
precisam ser respeitados, como o direito a ter uma família, ter alimentação, uma
casa para morar. Nessa interação, ela foi ouvindo os exemplos das crianças e
problematizando as situações abordadas, trazendo para a roda de conversa as
experiências e opiniões das crianças acerca das questões suscitadas:
Gab: eu vi um pobre comendo lixo com a mão
Ron: eu acho que ele tava com fome
290
Gab: eu acho que ele pediu alguém e não deu
Marc: ele cata comida do lixo ( ) ele cata comida do lixo pra comida... porque quando ele
fica catando a comida do lixo... quando a pessoa sobra
Mat: tem um homem em casa / perto de casa... ele mora na rua assim onde eu moro...
sempre quando ele vai descer... fica ali pegando lixo... botando as coisas nos lixo
Joa: porque ele não tem nada e fica pegando lixo
Gab: porque eles são pobres
Kai: eu vi... quando eu tava indo lá no Carrefour... eu vi um homem dormindo lá na rua
Ped: quando eu e meu pai fomos / comprar pão... a gente viu um homem dormindo
eh:::: perto do:: eh:::: onde compra pão
Mat: segunda-feira quando não tinha aula... aí... eu fui pra praia com meu pai e meu irmão...
aí... quando eu fui almoçar no restaurante... aí... tinha um cara no orelhão assim...
dormindo... tinha um cara do prédio que deu uma cachaça a ele... de tanto ele fica
bêbado... ele acabou dormindo na rua... ele não sabia onde era a casa dele nem sabia onde
que era lugar nenhum ( ) ele dormiu na rua
Joa: porque não tem dinheiro
Kai: não tem nem casa (Evento 51, 23-11-2005).
A partir das situações apresentadas pelas crianças na roda de conversa, a
professora explicitou que, naquele dia, iriam conhecer uma poesia que falava sobre
o direito à moradia. Convidou as crianças para sentarem nas carteiras que estavam
organizadas em duplas e se dirigiu ao quadro para dar início à segunda etapa do
trabalho: a exploração inicial do texto. Começou pelo título, perguntando para as
crianças sobre o que poderia falar aquela poesia. As opiniões das crianças giraram
em torno de pessoas que não têm casa, que não têm onde morar, que fogem de
casa e ficam perdidas, de pessoas que são pobres.
Em seguida, a professora discorreu sobre a vida da autora: onde morava, o que
gostava de fazer, por que gostava de escrever poesias para crianças. Apresentou o
livro (capa e página na qual foi escrita a poesia) explicando que a autora tinha outros
livros, mas que naquele havia poesias sobre casas. As crianças, nesse momento,
ouviram a professora silenciosamente, evidenciando seu interesse pela vida dos
autores e confirmando que essa dimensão do trabalho com textos se constitui em
um aspecto fundamental no processo de alfabetização, uma vez que amplia as
possibilidades de interação.
291
Dando continuidade ao trabalho, a professora apresentou o cartaz com o poema
(Foto 82), procedendo à leitura oral e fazendo perguntas que provocaram a
participação das crianças no reconhecimento dos sentidos do texto, como podemos
observar no recorte da interação que se segue:
Prof. 2: olha gente... ela disse que “tem
gente que NÃO tem casa... mora ao LÉU...
debaixo da ponte”... vocês concordam com
ela?
C: sim... sim... concordam
Prof. 2: por que concordam?... quem quer
falar?
Joa: porque ela viu ( )
Prof. 2: você acha que ela falou isso porque ela
viu?... ela viu alguém dormindo debaixo da
ponte?
Joa: ahn... ahn
Prof. 2: ela disse aqui também na poesia dela
que “tem gente que mora ao léu debaixo da
ponte no céu a lua espia esse MONte de gente
na rua como se fosse paPEL”... por que que
ela falou esse pedaço assim?
Mon: porque ela viu as pessoas todas jogadas
no meio da rua igual papel
Ped: tia... eh:::: ela viu uma criança eh:::: jogada
na rua... sem pai sem mãe
Iur: ( ) tem criança que não tem pai nem mãe aí... aí... então como que nasceu?
Ped: ele... ele... nasceu de uma família... aí... quando ele foi h:::: fazer alguma coisa...
quando a mãe falou não sai ele saiu e se perdeu agora ele não sabe onde é que ele tá?
Prof. 2: ahn... você acha que muitas pessoas moram na rua porque eles saem de casa?
Cris: também... a mãe e o pai poderia até ter morrido... aí... ele perdeu a família
Ron: eh:::: eu já vi criança no meio da rua... éh:::: a mãe pediu pra não sair de casa... ele
foi lá saiu de casa e se perdeu
[...]
Prof. 2: vou fazer uma pergunta... quem é que vocês acham que tem que cuidar / que tem
que garantir pra que as pessoas tenham casa pra morar e não fiquem na rua? ((as crianças
levantam a mão))... fala... Ped
Foto 82 - Cartaz com o poema Sem casa
292
Ped: eh:::: os pais
Marc: os pais... que eles trabalham
Prof. 2: mas vocês não acham que tem pessoas no nosso país que são responsáveis para
cuidar também?
Marc: tem
Prof. 2: quem?
Marc: o João Coser ele disse que ia cuidar das pessoas pobres... ele o cuidando... ele
tem que dá dinheiro
Prof. 2: acha que os governantes do nosso país eles tem que cumprir que / garantir que
as pessoas tenham casa pra morar?
Marc: ahn ahn... João Coser ele deu na televisão... ele falou que ia dar casa pros pobre ele
não fez isso
Prof. 2: pois é:::: gente olha só... se os nossos governantes ( ) fizessem um projeto
garantindo que todas as pessoas tivessem casa pra morar... vocês acham que eles
conseguiriam?... nosso país é pobre ou rico?
Marc: rico e pobre
Ped: MEnos rico e MAis pobre
Prof. 2: nosso país é rico... não é?... a gente exporta a gente vende monte de coisas pra
outros países... eles poderiam garantir... não é?
Marc: poderia... tia... tia... você concorda que tem que dá dinheiro pras pessoas?
C: SIM... NÃO... NÃO
Prof. 2: gente... olha só... Marc perguntou pra mim se eu concordo que tem que dar dinheiro
para as pessoas... eu acho... Marc... que o direito que o governo / que tem campanha
que tem política direto... deveria garantir que todas as pessoas deveriam ter casa pra
morar... deveriam ter emprego né?... pra elas mesmo poder ter o próprio dinheiro delas o
próprio sustento delas e poder viver como cidadãs dignas né?... ter uma casa... também tem
pessoas que gostam de ajudar o outro... dinheiro... mas isso não é o suficiente (Evento
51, 23-11-2005).
Com essa fala, a professora encerrou a interação oral na busca da compreensão
dos sentidos do texto. Nesse processo, ela procurou encaminhar a discussão para a
questão política e social que envolve a problemática da moradia. Contudo, conforme
foi possível observar, as crianças centralizavam seus argumentos em situações mais
imediatas, deixando por entrever, em suas opiniões, as vozes dos adultos com quem
conviviam em seu ambiente familiar. Em alguns momentos, também foi possível
notar que a professora deixou de ampliar o diálogo com o texto a partir de questões
293
suscitadas pelas crianças como: por quê, na opinião de Ped, nosso país é menos
rico e mais pobre, ou, ainda, por que alguns concordam ou o concordam em dar
dinheiro para as pessoas. Essa interação inicial com o texto repercurtiu no dizer das
crianças, conforme resultados que evidenciaremos mais adiante.
Em seguida, a professora passou a explorar a dimensão composicional do texto e
alguns aspectos que envolvem o sistema lingüístico, como a sua estrutura em forma
de versos, a quantidade e o tamanho desses versos, se rimavam ou não, a
organização das palavras no texto, destacando os espaços entre elas, a
identificação de algumas palavras que se repetiram várias vezes nos versos. Esses
aspectos foram enfatizados no texto reproduzido em cartaz e acompanhados pelas
crianças em cópias que foram entregues pela professora. Nessas cópias, estava
explicitada a proposta de produção textual que, tomando como eixo central o tema
tratado no poema, abria outras possibilidades de interação a partir do discurso
argumentativo escrito. Essa proposta foi explicada pela professora da seguinte forma:
Prof. 2: vocês falaram um MON::te de coisas legais ((repetindo o que disseram))... a
Roseana Murray também falou... então... ela acha que as pessoas TÊM que ter onde morar...
agora... eu quero saber POR QUE que vocês acham... o QUE que CAda um de vocês acham
que MUitas pessoas NÃO m onde morar?... mas vocês não vão falar não... vocês o
escrever pra mim tá?... vocês vão ter que escrever pra mim POR QUE que vocês acham que
as pessoas o têm onde morar... vocês falaram um monte de coisas legais não falaram?...
agora vocês vão escrever pra mim... bom?... aqui embaixo oh ((se referindo à questão na
folha de atividade))... tá perguntando assim... “por que você acha que muitas pessoas não têm
casa pra morar?” “não tem onde morar”? ((lê a pergunta acompanhada pelas crianças))...
agora vocês vão escrever porque tá?... pode começar (Evento 51, 23-11-2005).
As reações das crianças, diante da proposta de escrita apresentada pela professora,
foram diversas: algumas iniciaram o trabalho de escritura em silêncio, outras se
movimentaram pela sala em busca de material e da ajuda dos colegas. Havia
também um grupo de crianças que ficou aguardando a colaboração da professora
que, durante todo o processo de produção dos textos, foi passando de carteira em
carteira a fim de ajudar no trabalho de escritura. Ao final da atividade, a professora
convidou as crianças a se organizarem na roda de conversa sugerindo que lessem
para os colegas e para ela as suas opiniões sobre a questão levantada: Por que
você acha que muitas pessoas não m onde morar? As crianças, a partir da
mediação da professora, foram apresentando as suas respostas, comparando-as
com as dos colegas, explicando por que pensavam deste ou daquele modo. Em
294
alguns casos, quando as crianças não conseguiram recorrer ao escrito para lembrar,
a professora colaborou na leitura do texto ou propôs perguntas para que elas se
posicionassem oralmente.
Analisando as 20 produções textuais registradas em nosso corpus de pesquisa,
podemos notar que as razões apresentadas pelas crianças para justificar o problema
da falta de moradia estavam revestidas de sentidos que foram constituídos nas
relações interpessoais que se estabeleceram no momento da interação com o
poema que foi tomado para incentivar o trabalho de escritura. Os textos que se
seguem (Fotos 83, 84, 85 e 86) foram tomados para exemplificar o que as crianças
disseram e como articularam o dizer por meio do discurso argumentativo:
Foto 83 - Texto de Gab (23-11-2005): PORQUE FICAM
BÊBADOS E PORQUE A MÃE
MORRE A FAMÍLIA MORRE E FICA POBRE
Foto 85 - Texto de Kai (23-11-
2005): PORQUE ELES NÃO TEM DINHEIRO PARA
COMPRAR UMA CASA E PARA COMPRAR COMIDA
Foto 84 - Texto de Mon (23-11-
2005): PORQUE ELES OU ELAS SÃO POBRES E
TAMBÉM NÃO TÊM CASA E TAMBÉM NÃO M ROUPA TAMBÉM O TÊM
COMIDA NÃO TÊM PÃO E TAMBÉM NÃO TÊM FRUTAS
295
A partir desses exemplos, podemos perceber que as razões apontadas pelas
crianças para justificar o problema da falta de moradia estavam circunscritas a
problemas sociais que fazem parte do seu universo interdiscursivo: porque falta
dinheiro, porque são pobres, porque saem de casa e se perdem, porque ficam
bêbados, porque os pais morrem. Nesse sentido, sem a pretensão de fazer uma
análise aprofundada, tentaremos buscar, nos enunciados das crianças, as marcas
do discurso social, ou seja, das vozes que deixaram por entrever o espaço do outro
na constituição de sentidos dos textos a partir de alguns aspectos que indicaram a
direção argumentativa.
Tomando os mecanismos propostos por Ducrot e apresentados por Koch (2004c),
observamos que determinados tipos de operadores argumentativos foram
recorrentes nos textos das crianças. Dentre eles, temos a presença do operador
PORQUE que introduziu as justificativas das crianças e dos operadores E e
TAMBÉM que somaram argumentos a favor de uma mesma direção, de um mesmo
sentido. Uma evidência bem marcante desse tipo de marcador pode ser observada
no texto de Mon: PORQUE ELES OU ELAS SÃO POBRES E TAMBÉM NÃO M
CASA E TAMBÉM NÃO TÊM ROUPA TAMBÉM NÃO TÊM COMIDA NÃO TÊM PÃO
E TAMBÉM NÃO M FRUTAS. O operador MAS, que, de acordo com Koch, é o
operador argumentativo por excelência, foi tomado por Gil. Em seu enunciado, o
MAS produziu um efeito de suspense, contrapondo-se ao argumento central que foi
orientado para uma conclusão contrária: PORQUE A MÃE DIZ PARA NÃO SAIR
MAS ELE SAI E ELE SE PERDE E NÃO SABE ONDE MORA E SE PERDE.
Outra marca lingüística que produziu efeitos de sentidos no texto, deixando por
entrever a presença de outras vozes, pode ser notada no texto de Gab: o verbo
FICAR que, nesse caso, indicou mudança de estado. Essa marca é reconhecida
Foto 86 - Texto de Gil (23-11-
2005): PORQUE A MÃE DIZ PARA NÃO SAIR MAS ELE
SAI E ELE SE PERDE E NÃO SABE ONDE MORA E SE PERDE
296
como marcador de pressuposição, ou seja, um indicativo de conteúdo que está
pressuposto no texto. Assim, ao argumentar que as pessoas não têm onde morar,
PORQUE FICAM BÊBADOS E PORQUE A MÃE MORRE A FAMÍLIA MORRE E FICA
POBRE,
Gab estaria dizendo que, se não bebessem, se a família estivesse viva, eles
teriam onde morar. Assim, como nos diz Barros (2003, p. 3-4, grifos da autora),
[...] o sujeito deixa de ser o centro da interlocução que passa a estar
não mais no eu nem no tu, mas no espaço criado entre ambos, ou
seja o texto [...] tecido polifonicamente por fios dialógicos de vozes
que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras.
Podemos compreender, então, que as crianças incorporaram às suas vozes outras
vozes que estão apoiadas em valores, opiniões e regras estabelecidas socialmente.
Ao incorporarem essas vozes, elas se afastaram do discurso, atribuindo ao outro as
ações, razões e responsabilidades enunciativas: ELES E ELAS SÃO POBRES,
ELES NÃO M DINHEIRO, A MÃE DIZ, A FAMÍLIA MORRE. Nesse sentido, o
trabalho do sujeito é um processo de recriação, não apenas das palavras da língua,
mas, fundamentalmente, das palavras do outro. Segundo Bakhtin (
2003, p. 294-295)
:
[...] nosso discurso [...] é pleno de palavras dos outros, de um grau
vário de alteridade ou de assimilabilidade, de um grau vário de
aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros trazem
consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos,
reelaboramos, e reacentuamos.
É nesse sentido que podemos reafirmar que “[...] o sujeito perde o papel de centro e
é substituído por diferentes (ainda que duas) vozes sociais, que fazem dele um
sujeito histórico e ideológico” (BARROS, 2003, p. 3) evidenciando, desse modo, o
papel do outro na constituição de sentidos do texto e que toda palavra, a despeito
das constantes afirmações de Bakhtin, traz consigo a voz do outro e, portanto, é
social por natureza.
5.2.4 A história Chapeuzinho Laranja
Conforme situamos na caracterização da instituição, durante todo o ano letivo, foram
expostos, na escola, em forma de rodízio, os resultados dos trabalhos com a literatura
infantil, que eram desenvolvidos pelas crianças e pelas professoras nas salas de aula.
Esse evento, observado em 2-9-2005 e registrado em nossos arquivos por meio de
297
anotações em diário de campo (p. 220-227), gravações em equipamento de
audiovisual e fotos dos trabalhos produzidos, foi decorrente desse movimento
institucional. O convite para visitar a exposição dos trabalhos realizados pelo Grupo IV
se fazia presente de diferentes modos e em vários espaços chamando a atenção das
crianças desde a entrada da escola, como pode ser observado nas Fotos 87 e 88.
Na turma pesquisada, a motivação para visitar a exposição de trabalhos do Grupo IV
também foi instaurada por meio da visita da professora e das crianças de uma
dessas turmas com a entrega de convite (Foto 89) que dizia: O GRUPO IV A e B
CONVIDA PARA VISITAR O NOSSO BOSQUE E OUVIR E LER A HISTÓRIA DA
CHAPEUZINHO LARANJA.
Foto 88 - Exposição de trabalhos do Grupo IV Foto 87 - Corredor de entrada da escola
Foto 89 - Convite do Grupo IV
298
Aceitando o convite para visitar a exposição de trabalhos, a Professora 2 organizou
a turma fazendo acordos de como deveriam se comportar durante a visitação, o que
deveriam observar, que histórias poderiam conhecer. Depois de observarem os
trabalhos, a professora chamou a atenção
das crianças para uma das histórias que
estavam expostas, perguntando se
gostariam de saber o que as crianças do
Grupo IV contaram nela, o que logo foi aceito
pela turma. Tratava-se da história intitulada
Chapeuzinho Laranja, que foi escrita e
ilustrada em cartazes bastante atrativos que
estavam afixados no local da exposição
(conforme Foto 90). Essa história consistia
em um novo conto pós-final feliz, em que as
crianças brincavam com as personagens das
histórias conhecidas, recriando-as de forma
divertida.
Após a leitura do texto e de uma conversa acerca do que dizia a história, o que
aconteceu com as personagens, por que a Chapeuzinho Vermelho virou
Chapeuzinho Laranja, como foi o final, se as crianças haviam gostado e por quê, a
professora motivou as crianças a pensarem em como poderiam dizer para os
autores suas opiniões sobre a história:
Prof. 2: gente... oh:: vocês gostaram da história né?... eu também achei tão legal essa
história tão boni::ta... como que o grupo quatro fez uma história diferente né?... fez uns
desenhos lindos uns cartazes diferentes... eu fiquei pensando... será que o grupo quatro
gostaria de saber se vocês gostaram da história deles?
C: gostariam ((em coro))
Prof. 2: o que que vocês acham se nós falássemos pro Grupo quatro... para os dois Grupo
quatro... o que nós achamos da história deles?
C: legal... legal
Prof. 2: vocês acham legal?
Gil: mas não dá para todo mundo falar... tem que escolher uma
Foto 90 - Parte da história Chapeuzinho Laranja
299
Prof. 2: você acha que só uma pessoa que tem que falar?
Gil: ((balança a cabeça afirmativamente))
Prof. 2: mas... Gil e será que todo mundo não quer falar também o que achou?... o que que
vocês acharam?... por exemplo... levanta a mão quem quer falar alguma coisa?
C: ((se manifestam levantando a mão))
Prof. 2: Ped... o que que você achou?
Ped: legal
Prof. 2: você achou legal essa história?... Vic
Vic: os desenhos
Prof. 2: você achou bonito os desenhos? ... Lai
Lai: eu adorei porque tá lindo
Prof. 2: tá lindo... não tá?... Nat
Nat: eu adorei porque tá bem bonito
Prof. 2: tá bonito... Mat
Mat: eu também porque tá bem bonito
Cris: eu achei lindo... eles sabem desenhar bem mais do que a gente
Prof. 2: ah:: não... os desenhos de vocês também são lindos tá... Jon
Jon: eu achei charmoso
Prof. 2: você achou charmoso?... o príncipe ou a chapeuzinho laranja?
Jon: os dois
Prof. 2: os dois... fala... Ron
Ron: eu achei os dois muito lindos
Vic: faz um cartaz pra eles... tia
Prof. 2: ahn... um cartaz pra eles?
Ped: tia... tia... e cartãozinho pra eles também
Prof. 2: cartõezinhos?... cartõezinhos com o quê?
Ped: eh:: falando da história
Prof. 2: falando o que a gente achou... o que a gente gostou?
Ped: é... é
300
C: ((falam ao mesmo tempo))
Prof. 2: eh:: eu gostei da idéia de vocês de nós fazermos uns cartõezinhos dizendo pra eles
o que nós achamos... o que vocês acham?
C: legal... legal ((conversam entre si))
Nat: a gente pode desenhar?
Prof. 2: podemos também... então... vamos subir de dois em dois
((câmera off - na sala de aula a professora retoma a proposta de trabalho))
Prof. 2: na hora que a gente for falar a nossa opinião nós podemos falar POR QUE achou
legal... POR QUE que a gente achou bonito... POR QUE que nós achamos lindo né?... se a
gente colocar só legal... eles vão entender muito?
C: NÃ::o
Prof. 2: não... né?... tem que falar que ficou legal porque:::: ... né?... então olha só... primeira
coisa... ((toma uma folha de papel cenário)) nós vamos fazer um cartaz ( ) pra levar pra eles
verem que nós gostamos... que nós podemos escrever o que aqui pra eles? ((referindo-
se ao título do cartaz)) (Evento 33, 2-9-2005).
Considerando as contribuições de Schneuwly (2004), podemos observar que, nessa
situação de produção textual, foi instaurada uma base de orientação para a ação
discursiva. Havia uma finalidade discursiva, interlocutores explícitos e um conteúdo a
dizer: expor para as crianças do Grupo IV suas opiniões sobre a história que haviam
produzido. A partir dessas condições fundamentais, foi negociada a escolha da
forma de dizer, ou seja, as crianças iriam expor as suas opiniões em cartões que
seriam afixados em um cartaz, que, nesse contexto, configuraram-se em suportes
para os textos de opinião.
Logo que decidiram qual título ficaria melhor para o cartaz (O QUE ACHAMOS DA
HISTÓRIA CHAPEUZINHO LARANJA), a professora propôs que iniciassem o
trabalho de escritura lembrando mais uma vez que deveriam escrever a opinião
sobre a história explicando o porquê e que, em seguida, poderiam enfeitar os
cartões com desenhos. As crianças iniciaram a produção textual pronunciando em
voz alta os sons das letras, interagindo entre si em busca de informações para
efetuarem os registros, solicitando a cooperação da professora que buscou atender
às demandas da produção escrita orientando as crianças individualmente. Ao final
do trabalho, as crianças colaram os cartões no cartaz (Foto 91) que foi entregue
301
pessoalmente para a turma do Grupo IV do turno vespertino. No momento da
entrega, a Professora 2 explicou por que e como haviam produzido o cartaz e
algumas crianças leram seus textos para os colegas e para a professora do Grupo
IV que agradeceu dizendo que iria colocá-lo no local da exposição para que as
outras pessoas da escola também pudessem ler a opinião deles.
Para ilustrar como as crianças se posicionaram nessa situação de trabalho com a
linguagem escrita, selecionamos alguns dos trabalhos mais expressivos
considerando a proposta apresentada pela professora, conforme registros
fotográficos de números 92, 93, 94 e 95.
Foto 91 -
Cartaz com as opinões das crianças sobre a história
Chapeuzinho Laranja
302
Tomando para análise as estratégias de dizer utilizadas pelas crianças, observamos
que os posicionamentos pessoais foram marcados por meio do recurso prenominal EU,
seguido de verbos que indicaram a orientação argumentativa: ACHEI, ADOREI. As
justificativas foram delineadas por meio do organizador PORQUE, introduzido a partir
das orientações da professora, com exceção do texto de Gil, no qual o uso do porquê
está subtendido. Dentre as razões apresentadas nesses textos ilustrativos, podemos
notar que foram evidenciados aspectos relacionados com o conteúdo e a forma como
foi produzida a história Chapeuzinho Laranja, uma vez que a linguagem visual
contribuiu na constituição de sentidos do texto, chamando a atenção das crianças.
Outro dado interessante nesses textos de opinião diz respeito ao modo de implicar
os interlocutores: VOCÊS CAPRICHARAM NO DESENHO; VOCÊS DESENHARAM
Foto 92 - Texto de Joa (2-9-
2005): EU ACHEI
MUITO BONITA PORQUE O CAÇADOR
VIROU PRÍNCIPE
Foto 93 - Texto de Pat (2-9-2005): EU
ACHEI
LEGAL PORQUE A CHAPEUZINHO LARANJA
CASOU
Foto 95 - Texto de Gil (2-9-
2005): EU ADOREI A
SUA HISTÓRIA DA CHAPEUZINHO LARANJA
VOCÊS DESENHARAM MUITO BEM
Foto 94 - Texto de Vic (2-9-
2005): EU ADOREI
PORQUE VOCÊS CAPRIC
HARAM NO
DESENHO
303
MUITO BEM. De acordo com Souza (2003), esse fato pode ser considerado
relevante e evidencia que as crianças sabem que estão escrevendo para alguém,
que estão assumindo posicionamentos em relação aos seus interlocutores. Nessa
situação de comunicação, então, essa condição para o trabalho de produção textual
foi preenchida e se constituiu em um parâmetro fundamental na constituição de
sentidos dos textos.
Ao discorrer sobre a importância da definição de interlocutores no trabalho de
produção de textos na sala de aula, Geraldi (2003, p. 162, grifo do autor) acrescenta
que “[...] um texto destina-se a outro, seu leitor provável, para o qual (os quais) está-
se produzindo o que se produz”. Esse aspecto fundamental no trabalho de produção
de textos nos leva a refletir sobre uma das peculiaridades constitutivas do enunciado
da comunicação discursiva apresentada por Bakhtin (2003, p. 289), qual seja, “[...] a
relação do enunciado com o próprio falante (autor do enunciado) e com outros
participantes da comunicação discursiva”. Sabemos que, como um elo na corrente
da comunicação discursiva, o enunciado está ligado tanto aos elos precedentes
quanto aos subseqüentes. Portanto, o direcionamento a alguém é uma peculiaridade
constitutiva do discurso sem o qual não poderia haver enunciado, mas palavras,
frases, orações que seriam impessoais, de ninguém para ninguém, como nos diz
Bakhtin. Nessa perspectiva, a escolha do gênero, dos procedimentos
composicionais e dos meios lingüísticos ocorre, também, sob a influência do outro,
daquele para o qual eu destino o meu discurso, uma vez que,
Ao construir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por
outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce,
por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado [...]. Ao falar,
sempre levo em conta o fundo aperceptível da percepção do meu
discurso pelo destinatário: até que ponto ele está a par da situação,
dispõe de conhecimentos especiais de um dado campo cultural da
comunicação; levo em conta as suas concepções e convicções, os
seus preconceitos (do meu ponto de vista), as suas simpatias e
antipatias tudo isso irá determinar a ativa compreensão responsiva
do meu enunciado por ele (BAKHTIN, 2003, p. 302).
A possibilidade de interlocução com o outro também foi motivadora do dizer das
crianças em uma outra situação de produção textual observada na sala de aula. A
partir dessa demanda, foram instauradas finalidades discursivas que influenciaram a
escolha da forma de dizer, conforme análise que se segue.
304
5.2.5 Um dia de cão
62
Para finalizar nossas análises, tomaremos esta situação de produção textual que foi
observada em 9-11-2005 (evento 46, p. 293-303 do diário de campo). As interações
suscitadas, durante o processo de ensino aprendizagem, foram captadas por meio
de filmagens e fotos dos textos, perfazendo um total de dez produções realizadas
em duplas. O trabalho de escritura foi desencadeado pelas crianças a partir de uma
situação que vinha ocorrendo alguns dias e que foi instauradora de várias
discussões na sala de aula. Elas estavam indignadas com a situação do cachorro da
vizinha, uma funcionária da escola, que ficava preso numa corrente, embaixo da
mangueira e, quando chovia ficava sujo, molhado e aparentemente muito triste. Ao
observarem o fato, recorreram à professora relatando e mostrando-lhe o que estava
acontecendo. Aproveitando essa situação e buscando atender à solicitação das
crianças para resolverem o problema do cachorro, a professora propôs que as
crianças escrevessem uma carta para a dona a fim de convencê-la a cuidar melhor
do animal.
A proposta de produção do texto teve início na roda de conversa, quando a
professora perguntou quem tinha animal de estimação e como cuidava dele,
contando, em seguida, o caso de um rapaz que não sabia cuidar do seu animal de
estimação. Ao tecerem comentários acerca de suas experiências com os animais de
estimação e da história contada pela professora, uma das crianças, Nat, lembrou a
situação do cachorro da vizinha dizendo que podiam fazer alguma coisa para ajudá-
lo. A princípio, nem todas as crianças demonstraram interesse em produzir a carta
sugerida pela professora, mas, assim que ela explicou que poderiam escrever
juntos, um ajudando o outro e que, depois, poderiam entregá-la para a dona do
cachorro, as crianças apresentaram-se mais receptivas à proposta e, desse modo,
deram início ao processo de produção do texto. Antes, porém, a professora lembrou
o que seria necessário conter numa carta, ajudando as crianças a escreverem a data
e o nome do destinatário. Vejamos um trecho da interação em que foi instaurada
essa proposta de produção:
62
Esse evento foi assim nomeado pela Professora 2 em relato de experiência apresentado no
encontro de formação continuada do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, ES. A professora
disponibilizou o texto para compor dados de nossa pesquisa.
305
Prof. 2: como nós combinamos ali na roda... vocês vão escrever uma carta... pra convercer
a dona do cachorrinho aqui do lado... de que ela precisa cuidar do cachorro dela...
comida... tirar da chuva... dizendo eh:: por que / o que que vocês acham que ela poderia
fazer pro cachorrinho não ficar ali... na chuva... vocês podem dizer como é que ele estava
Iur: ele estava com frio
Prof. 2: éh:: como que ela poderia cuidar do cachorrinho... vocês podem sugerir pra ela
Marc: pode perguntar o nome dela
Prof. 2: quem é que sabe o nome dela?
Lai: Ros
Prof. 2: é Ros o nome dela... Lai?... como é que você sabe?
Lai: sabendo ((sorri))
Prof. 2: então... gente... o nome da dona do cachorro é Ros... ela trabalha aqui na escola
Mon: eu sei quem é ela
Kai: eu também
Gil: como a gente vai levar?
Prof. 2: como vocês vão lá levar?... olha só... a Ros ((em tom de voz baixo)) trabalha aqui na
escola à tarde... então vai ficar fácil pra gente entregar a carta pra ela... não vai?
C: vai ((em coro))
Prof. 2: então... se ela trabalha aqui na escola... a gente vai fazer a carta... depois a gente
entrega pra ela
C: êh::::
Prof. 2: olha só crianças... quem quer falar como que a gente escreve uma carta?
C: ((silenciam))
Prof. 2: ninguém sabe?
Mat: Ros
Prof. 2: oh:: uma carta tem que ter
Marc: nome... data
Prof. 2: nome... tem que ter a data... local... eu vou dar a vocês a folha... um pouquinho
que eu vou... explicar primeiro ((distribui uma folha para cada dupla))
Prof. 2: como é o nome do lugar que a gente mora?... tem que ter o local de onde a gente
está escrevendo... que lugar de onde a gente escreve e a data do dia que que a gente
escrevendo... como é o nome do lugar que a gente mora?
306
C: Vitória
Prof. 2: então... vocês podem colocar assim oh:: ((escrevendo no quadro)) Vitória...
vírgula..
essa vírgula aqui oh:: é pra separar o local da data... tá?... qual a data de hoje? ((escreve no
quadro o nome do local e a data enquanto as crianças copiam))
Wes: tia... é pra escrever o nome dela agora?
Prof. 2: como que a gente poderia começar essa carta?
C: Ros
Prof. 2: então escrevam o nome dela
C: Ros... erre... erre... dois erre
Gab: é um erre
Prof. 2: gente... espera um pouquinho... quando a gente vai escrever uma carta pra uma
pessoa... quando a pessoa é mais velha que a gente né?... vocês são crianças... não são?...
ela é mais velha que vocês... vocês vão ter que falar como?
Iur: senho::ra
Prof. 2: senhora... Iur... então vamos escrever assim senho::ra Ros... tá? (Evento 46, 9-
11-2005).
Depois de mediar o processo inicial de produção do texto, ajudando as crianças a
escreverem o nome do local, a data e o nome do destinatário, a Professora 2 sugeriu
que iniciassem o trabalho de escritura do texto acompanhando de perto algumas
duplas. As crianças se movimentaram bastante durante o processo de produção,
trocando idéias, discutindo acerca do que e como escrever, refazendo algumas
partes do texto e, finalmente, ilustrando-o, conforme acordado.
Ao final da atividade, a professora solicitou que as crianças lessem as cartas para os
colegas e, em seguida, combinaram como fariam para entregá-las. Depois de várias
sugestões, ficou decidido que entregariam pessoalmente. Assim, a dona do cachorro
foi convidada a comparecer na sala de aula. Logo que recebeu as cartas, ouvindo os
argumentos das crianças, ela explicou por que o animal ficava preso no quintal,
comprometendo-se a resolver aquela situação. Antes de se despedir da turma,
agradeceu às crianças dizendo que iria ler as cartas para o marido e que as
guardaria com muito carinho.
307
Nessa situação de produção, então, as crianças tinham o que dizer, para quem dizer
e razões explícitas para dizer o que tinham a dizer. Quanto às estratégias do dizer,
observamos que a professora se preocupou com alguns aspectos composicionais do
gênero carta, explicando também em que se diferencia de um bilhete
63
e como
deveriam tecer os argumentos para convencer a interlocutora explicando as razões
para cuidar melhor do cachorro. Essas condições de produção suscitaram novas
possibilidades de interação com o outro na sala de aula, possibilidades que também
foram reconhecidas e valorizadas pela Professora 2 ao tecer considerações sobre o
trabalho realizado:
Prof. 2: Esta atividade, assim como outras similares desenvolvidas na sala, nos dão a
oportunidade de deixar as crianças expressarem suas falas de modo espontâneo
64
participando dos fatos ocorridos em seu meio social e sendo valorizadas como
cidadãos que são, questionando, reivindicando, opinando, tendo direito de dizer o
que pensam, mesmo sendo ainda uma criança (trecho extraído do relato de
experiência, s/d).
Ao refletir acerca de sua prática, a Professora 2 reconheceu a importância de
promovermos experiências discursivas em que as crianças pudessem constituir-se
sujeitos de seus próprios discursos. Compreendemos que, nesse sentido, a
professora também estava constituindo-se sujeito do discurso pedagógico, pois
voltava o seu olhar para os processos vividos em sala, buscando entender as
relações dialógicas que neles estavam sendo experimentadas. Esse movimento de
reflexão sobre a prática também ocorreu em outros momentos do processo de
ensino aprendizagem e repercutia as vozes que estavam sendo compartilhadas no
Curso de Extensão Alfabetização e Letramento do qual a professora estava
participando e que tomava como ponto de partida a concepção bakhtiniana de
linguagem. No dialógo entre a teoria e a prática, a Professora 2 buscava imprimir um
outro olhar para o processo de produção de textos na sala de aula, evidenciando
modos singulares de apropriação dos conhecimentos veiculados no curso e
instaurando novas possibilidades de constituição de sentidos no trabalho de
escritura das crianças.
63
No dia anterior a esse evento (8-11-2005), as crianças haviam produzido junto com a professora,
um bilhete para informar aos pais dos acordos sobre o dia do brinquedo na escola.
64
Embora esse termo remeta a uma abordagem subjetivista de linguagem, compreendemos que,
nesse contexto interlocutivo, podemos atribuir-lhe um cunho de singularidade, de possibilidade de
colocar-se como sujeito do discurso.
308
Assim, procurando evidenciar como as crianças concretizaram seus argumentos
tendo em vista as finalidades discursivas que estavam circunscritas a essa situação
de produção, selecionamos quatro textos para análise, apresentados por meio das
Fotos 96, 97, 98 e 99. Para a escolha dos textos, tomamos por base a recorrência
de operações discursivas que marcaram a base argumentativa.
O texto produzido por Nat e Lay:
SENHORA ROS
65
TRATA O CACHORRO BEM CUIDA MUITO BEM SENÃO FICA MALTRATADO
ELE FICA FICA FEINHO E TAMBÉM DÁ COMIDA PRA ELE
65
Para preservar a identidade da funcionária, omitimos o seu nome.
Foto 96 - Texto de Nat e Lay (9-11-2005)
309
O texto de Iur e Vic:
SENHORA ROS
PORQUE VOCÊ NÃO BOTA O CACHORRO DO LADO DE DENTRO DA CASA
PORQUE ESTAVA CHOVENDO PORQUE ELE ESTAVA NA CHUVA A GENTE TÁ
PEDINDO PRA NÃO NUNCA MAIS
Foto 97 - Texto de Iur e Vic (9-11-2005)
310
O texto de Kai e Ped:
SENHORA ROS
CUIDA DO SEU CACHORRO PORQUE ELE VAI MORRER NA CHUVA
DÁ COMIDA DÁ ÁGUA PARA ELE
Foto 98 - Texto de Kai e Ped (9-11-2005)
311
O texto produzido por Cris e Wes:
SENHORA ROS
TRATA BEM DO CACHORRO EU JÁ VI ELE NA CHUVA
TIRA O CACHORRINHO DA CHUVA SENÃO ELE MORRE
VOCÊ TAMBÉM CUIDA MAIS DAS GALINHAS
Foto 99 - Texto de Cris e Wes (9-11-2005)
312
Nessa amostra de trabalhos, podemos perceber alguns aspectos bastante
interessantes do ponto de vista da perspectiva que adotamos, pois, para convencer
a dona do cachorro, as crianças lançaram mão de vários argumentos, tentando
articulá-los, de maneira geral, a partir de determinados operadores textuais que
contribuíram para a progressão temática do discurso e indicaram a direção
argumentativa. Examinemos alguns desses aspectos.
O porquê foi um dos operadores utilizados pelas crianças, como podemos observar
nos textos produzidos por Iur/Vic e por Kai/Ped. A partir desse operador, elas
introduziram explicações do tipo: PORQUE ESTAVA CHOVENDO, PORQUE ELE
ESTAVA NA CHUVA, PORQUE ELE VAI MORRER NA CHUVA explicitando,
portanto, o problema que deu origem à situação de comunicação. No caso do texto
produzido por Iur e Vic, podemos perceber a repetição do organizador porquê que
pode ser compreendida como uma tentativa de sustentação argumentativa. Por
outro lado, a repetição também pode estar associada à dificuldade de organização
dos enunciados, uma vez que as crianças estão lidando com operações discursivas
bastante complexas, o que também se evidencia na omissão de palavras em A
GENTE PEDINDO PRA NÃO NUNCA MAIS. Nesse enunciado produzido por Iur
e Vic, podemos notar que a expressão a gente, usada para se referir a nós (eu +
colega), evidencia uma forma de implicação que pode ser compreendida como uma
estratégia para reforçar os argumentos. Em TRATA BEM DO CACHORRO EU VI
ELE NA CHUVA (Cris e Wes), podemos observar que o organizador porquê foi
omitido sem, contudo, trazer implicações para a constituição de sentido do
enunciado. Por meio do argumento EU VI ELE NA CHUVA, as crianças
justificaram o posicionamento inicial, comprometendo-se com a verdade enunciada.
O senão foi outra marca enunciativa evidenciada nessas produções que pode ser
compreendida como uma tentativa das crianças de sustentarem o seu ponto de vista
a partir de contra-argumentos: CUIDA MUITO BEM SENÃO FICA MALTRATADO
(Nat e Lay); TIRA O CACHORRINHO DA CHUVA SENÃO ELE MORRE (Cris e
Wes). Esse operador argumentativo atuou, nesse contexto interlocutivo, como um
argumento alternativo que somou a favor da mesma direção, fazendo-se ouvir uma
outra voz que diz que o cachorro não estava sendo bem cuidado.
313
O uso dos operadores e/também por Nat e Lay (E TAMBÉM COMIDA PRA ELE)
e por Cris e Wes (VOCÊ TAMBÉM CUIDA MAIS DAS GALINHAS) reforça que as
crianças buscaram agregar argumentos em função da finalidade discursiva
(convencer a interlocutora a cuidar melhor dos animais). É possível observar ainda
que, em alguns casos, as crianças articularam seus argumentos sem fazer uso de
organizadores textuais, evidenciando, mais uma vez, as dificuldades subjacentes à
complexidade do dizer por meio da linguagem escrita nessa fase do processo de
alfabetização e a necessidade de uma mediação progressiva e qualificada, inclusive
no que diz respeito à dimensão argumentativa da linguagem por meio da qual as
crianças interagem oralmente em suas relações cotidianas.
Considerando ainda as contribuições delineadas por Souza (2003), examinaremos
outro aspecto da dimensão interdiscursiva que se presentificou nos enunciados das
crianças, buscando evidenciar o papel do interlocutor na constituição de sentidos
dos textos a partir das formas pronominais senhora/você. Esses mecanismos
enunciativos sinalizam que as crianças produziram seus argumentos tendo em vista
a implicação da interlocutora, desde a expressão inicial SENHORA ROS, que foi
instaurada a partir da mediação da professora. O caráter formal, contudo, o foi
mantido no decorrer do discurso, uma vez que, em alguns casos, as crianças
passaram a interagir com a interlocutora usando o pronome você: PORQUE VOCÊ
NÃO BOTA O CACHORRO DO LADO DE DENTRO DA CASA (Iur e Vic); VOCÊ
TAMBÉM CUIDA MAIS DAS GALINHAS (Cris e Wes).
Na interpretação de Souza (2003), essa manifestação lingüística pode ser
compreendida, a partir da perspectiva bakhtiniana, como uma forma de
carnavalização discursiva, uma vez que uma mistura de formas de tratamento
que pode ser decorrente da tentativa de interagir livremente com o interlocutor,
independente da relação social e dos papéis que locutores e interlocutores ocupam
nessa relação. De acordo com Barros (2003), determinados procedimentos de
carnavalização discursiva operam, no plano textual, uma releitura do mundo:
“Reformula-se o mundo pelo discurso, vê-se a realidade sob novos prismas, refaz-se
o real” (BARROS, 2003, p. 7), mantendo-se, desse modo, a polifonia interna das
vozes que dialogam no texto. Assim, podemos compreender que o uso do recurso
314
pronominal você indica um posicionamento que está implícito, e que, portanto, é
provocador dessa forma de interação.
De acordo com Bakhtin, como unidades da comunicação discursiva, os enunciados
se constituem na relação social entre os participantes. Nesse contexto discursivo, o
tema, o querer dizer e as razões para dizer, ou seja, as finalidades discursivas
determinam a escolha da forma de dizer. Para o autor,
A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de
um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela
especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por
considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta
da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus
participantes, etc. A intenção discursiva do falante, com toda a sua
individualidade e subjetividade, é em seguida aplicada e adaptada ao
gênero escolhido, constitui-se e desenvolve-se em uma determinada
forma de gênero (BAKHTIN, 2003, p. 282, grifos do autor).
Esses parâmetros definem, portanto, a escolha do gênero e confirmam que não é o
gênero que determina o tema ou o querer dizer dos falantes, mas sim as
circunstâncias sociocomunicativas, o que implica considerar as motivações para o
dizer e o papel do outro na produção de sentidos do texto.
Foi, portanto, a instauração de uma situação de comunicação com intencionalidade
explícita, destino compartilhado pelos locutores e um conteúdo a dizer que contribui
na constituição de sentidos dos textos abrindo possibilidades de interação com o
outro a partir do discurso argumentativo. Nesse sentido, compreendemos que, nessa
situação de produção, assim como nas demais situações que tomaram por base o
discurso argumentativo, as condições de produção influenciaram positivamente no
querer dizer das crianças e na seleção dos meios para concretização desse dizer, ou
seja, na escolha do gênero. Analisando os textos produzidos pelas crianças,
encontramos marcas que revelaram suas idéias, opiniões, saberes, valores e os
diferentes modos de compreensão da realidade e de apropriação do discurso social.
Assim, podemos dizer que, no contexto interlocutivo que tomou por base o discurso
argumentativo, as crianças tinham o que dizer e buscaram os meios para concretizar
esse dizer, tendo em vista as finalidades comunicativas suscitadas na dinâmica da
sala de aula.
315
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ainda que consciente do inacabamento do trabalho realizado, chegamos ao
momento de instaurar, como nos fala Bakhtin (2003), o dixix conclusivo, ao momento
de finalizar, mesmo provisoriamente, os enunciados que aqui proferimos, os fios que
aqui tecemos, concebidos, nesse contexto interlocutivo, como partes do processo de
produção, como movimentos da autoria em busca do ponto de chegada. Mas,
sabemos, o chegamos só, chegamos com o outro, com as múltiplas vozes que
foram entrelaçadas nesse tecido polifônico e para o outro, interlocutores que
buscam, como nós, intercambiar experiências, saberes e dizeres, mantendo viva a
esfera interdiscursiva que nos move: a Educação.
Por meio do entrelaçamento de vozes, de discursos e de práticas, procuramos
compreender como se desenvolveram os processos de constituição de sentidos e de
sujeitos que permearam o trabalho com a linguagem escrita numa turma de crianças
entre seis e sete anos de idade, em um Centro de Educação Infantil do Sistema
Municipal de Ensino de Vitória, ES. Para isso, trilhamos alguns caminhos a partir de
um repertório de possibilidades que se descortinou em cada um dos 75 dias que
permanecemos em campo. Nesse período, inserimo-nos no cotidiano das práticas
escolares, na tentativa de interagir com os diferentes sujeitos, buscando captar a
singularidade dos processos vividos e as suas relações com o meio social
organizado.
Ao adentrar no interior das práticas com a linguagem escrita, deparamo-nos com os
desafios inerentes ao complexo universo de significações que atravessaram nosso
olhar investigativo. Desafios que nos convidaram ao constante exercício da auto-
observação, da busca pela compreensão das relações verbais e não-verbais que
foram se constituindo no interior da sala de aula pesquisada. Concebida em sua
estrutura brida e polifônica, a sala de aula se configurou, na perspectiva teórico-
metodológica aqui defendida, em um espaço privilegiado para a escuta das múltiplas
vozes: vozes do discurso pedagógico instituído, vozes das professoras e dos demais
profissionais que atuavam na escola, das crianças e de seus familiares; vozes que
316
entraram nesse espaçotempo de interlocução a partir de diferentes lugares,
enfoques, concepções, experiências, histórias de vida.
Diante dessa multiplicidade de saberes e de
possibilidades de reflexão que se
presentificaram no decorrer da pesquisa, voltamos nosso olhar para as relações que
se circunscreveram ao trabalho com a linguagem escrita, buscando dar visibilidade
às práticas que foram recorrentes na sala de aula. Conforme evidenciado em nossas
análises, essas práticas tomaram, de maneira geral, o texto como unidade de ensino
aprendizagem da língua, o que representa, em nosso ponto de vista, um avanço
significativo no trabalho com a linguagem escrita no contexto escolar, especialmente
no âmbito da educação infantil. Assim, a partir de uma trajetória metodológica
configurada em estudo de caso do tipo etnográfico que permitiu a integração dos
dados, captados por meio de diferentes instrumentos e técnicas de pesquisa,
definimos as duas principais categorias de análise: o trabalho com as histórias em
quadrinhos e com os textos de opinião.
Acreditamos que as discussões aqui apresentadas, embora implicadas pelo caráter
de complexidade e de provisoriedade inerente ao contexto das relações
pedagógicas, possibilitaram entrever aspectos fundamentais para a compreensão
dos processos de constituição de sentidos e de sujeitos no trabalho com a
linguagem escrita, tendo em vista as condições de produção dos textos e os
movimentos que provocaram entre os sujeitos. Movimentos revestidos de olhares,
expressões, dúvidas, murmurinhos, alvoroços, perguntas, respostas; revestidos de
vozes que se calavam, que se posicionavam, que repetiam, que criavam e
(re)criavam saberes. Movimentos que também foram constitutivos do dizer, que
também instauraram sentidos ao processo de produção.
Assim, por meio de um percurso analítico que focalizou as condições de produção
dos textos, os processos que se desenvolveram durante o trabalho de escritura e os
resultados dessa atividade interdiscursiva, apontamos alguns dos principais desafios
que revestiram a entrada do texto na sala de aula pesquisada. Focalizando nosso
olhar nas condições de produção dos textos, observamos que, no trabalho com as
histórias em quadrinhos, de maneira geral, o dizer das crianças foi influenciado pela
inversão provocada nas propostas de produção; uma inversão que situou as
317
estratégias do dizer como ponto de partida, abstraindo da atividade de produção
textual as dimensões sociocomunicativas fundamentais no trabalho com os gêneros
discursivos, pois, conforme explica Schneuwly (2004, p. 25), “[...] a escolha de um
gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto de
participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor”.
A não consideração desses aspectos, que o essenciais para o trabalho de
produção de textos na sala de aula, reduziu, em grande parte das situações
observadas, as possibilidades de constituição de sentidos e de interação com o
outro por meio do texto escrito. Em determinadas circunstâncias, como no caso da
reescrita das narrativas quadrinizadas, essas implicações foram agravadas devido à
ênfase à dimensão psicolingüística. A preocupação com a avaliação das escritas
infantis, com a classificação dos níveis evolutivos da escrita na criança e com a
comprovação desses processos, influenciou a produção de sentidos dos textos,
comprometendo as possibilidades de diálogo e de constituição de sujeitos
produtores de discursos. Nesse contexto interlocutivo, o trabalho que poderia ser de
produção se circunscreveu ao exercício da reprodução de enunciados ou, fazendo
nossas as palavras de Geraldi (2003), ao mero cumprimento de tarefas escolares.
Essas práticas, conforme evidenciado nas falas dos sujeitos que integravam o
universo escolar e familiar das crianças, ainda foram atravessadas por significações
de caráter ideológico que contribuíram para acentuar a visão propedêutica de
educação infantil, revestindo o processo de alfabetização de uma abordagem de
cunho pragmatista e funcionalista.
As implicações decorrentes do trabalho com as histórias em quadrinhos foram
minimizadas no trabalho com os textos de opinião, uma vez que, nas circunstâncias
em que foram instauradas essas propostas de produção, as crianças tinham o que
dizer, tinham razões para dizer e interlocutores para os textos que produziam. A
partir dessas condições, foram definidas, então, as estratégias do dizer que,
conforme pudemos observar, suscitaram novas possibilidades de interação com o
outro por meio da escrita. Essas possibilidades foram evidenciadas, em nossas
análises, quando procuramos pontuar as marcas discursivas que as crianças
deixaram por entrever em seus argumentos, marcas que foram revestidas de
aspectos polifônicos que sinalizaram a presença das vozes do discurso social,
318
presentificados de forma singular nos resultados da atividade produtiva. Essas
situações de produção, conforme situamos, emergiram, na sala de aula, a partir de
necessidades reais das relações entre sujeitos no espaço escolar e de temáticas
que os envolviam nas discussões. Elas foram incorporadas ao trabalho com a
linguagem escrita, provocando mudanças no modo como as crianças se apropriaram
dos conhecimentos que envolvem essa forma de linguagem, possibilitando, assim,
que assumissem posicionamentos, explicitassem suas idéias e opiniões acerca dos
temas abordados.
Contudo, compreendemos que as situações de produção dos textos de opinião
emergiram na sala de aula aleatoriamente, sem uma ão objetiva orientada para
fins educativos conscientes, o contribuindo, efetivamente, para a instauração de
práticas sistemáticas voltadas para o trabalho constitutivo das crianças como
sujeitos do discurso. Embora a Professora 2, em especial, tenha demonstrado
compreender a importância da instauração de condições de produção textual
propícias para o dizer, essas práticas não foram configuradas em uma linha
condutora do trabalho com a linguagem escrita na sala de aula.
Considerando o total dos eventos observados, as situações em que as crianças
foram chamadas a participar e se posicionar, por meio da linguagem escrita, de
assuntos de interesse coletivo foram evidenciadas poucas vezes na sala de aula.
Conforme levantamento apresentado no início de nossas análises (APÊNDICE Q),
dos 60 eventos observados, 32 corresponderam a situações de trabalho com textos.
Nessas situações, a escuta efetiva das vozes das crianças se circunscreveu,
basicamente, às propostas de base argumentativa que, no caso pesquisado, foram
recorrentes em cerca de nove eventos. Nos demais textos produzidos, como foi
possível observar no trabalho com as histórias em quadrinhos, a atividade
interdiscursiva foi influenciada pelas propostas de escrita que circunscreveram, de
modo geral, o dizer das crianças aos aspectos formais da língua.
Nesse sentido, acreditamos que os dados suscitados nessas situações de produção
ainda não o suficientes para que se concretizem mudanças significativas nas
práticas de produção de textos no contexto da educação infantil e na constituição da
criança como sujeito. A complexidade desse processo exige que o trabalho
319
educativo seja pensado de forma intencional, organizada e sistemática. Do ponto de
vista da Psicologia Histórico-Cultural, a apropriação das formas humanas de
comportamento não ocorre de forma natural e espontânea, mas, sim, a partir da
mediação qualificada do outro mais experiente. Para que as crianças se apropriem
da linguagem escrita e suas diferentes formas de manifestação sociocultural, é
fundamental, portanto, que sejam instauradas, de forma intencional, condições
essenciais para o trabalho de escritura dos textos, ou seja, que elas tenham o que
dizer, tenham motivações para dizer, tenham destinatários para os textos que
produzem e, a partir desses elementos, escolham as estratégias do dizer imprimindo
no produto da atividade interdiscursiva suas marcas, valores, opiniões, saberes,
idéias, suas histórias de vida.
O espaço da sala de aula, como observamos em nossas análises, é um espaço
povoado por muitas vozes, vozes que se presentificaram de diferentes modos, que
circularam de várias maneiras nesse espaço de interlocução. Contudo, como nos
lembra Goulart (2005, 147), “[...] as palavras não costumam pedir licença para
entrar, mas podem ser ouvidas ou não”. E a professora, como mediadora autorizada
no espaço escolar, pode instituir outras formas de interação que possibilitem o
diálogo no interior das relações pedagógicas, que provoquem a participação das
crianças, reconhecendo as suas potencialidades e seus modos próprios de
apropriação dos saberes. Assim, compreendemos que
O papel da escola é dar continuidade ao diálogo que as crianças
fazem com a realidade, de várias formas, [...] ampliando as suas redes
de conhecimento, alargando as suas sensibilidades, respondendo a
algumas perguntas e criando outras [...]. O texto não parte somente da
sala de aula: o texto entra na classe primeiramente nas vozes dos
alunos, da professora, deixando à mostra seus conhecimentos, suas
origens (GOULART, 2005, p. 147-148).
Nesse encontro de várias vozes, é preciso, então, levar em conta a história de vida
dos sujeitos, suas experiências de leitura e de escrita, suas experiências de mundo.
Com Bakhtin e Vigostski, aprendemos que, como uma atividade constitutiva dos
seres humanos, a linguagem se constitui nas relações sociais, nas interações que
ocorrem entre as pessoas. A alfabetização, nesse contexto, precisa ser pensada
como uma prática sociocultural em que se desenvolve, dentre outras capacidades, a
de produção de textos orais e escritos (GONTIJO, 2004).
320
Adotar a produção de textos como eixo do trabalho educativo na educação infantil
implica, desse modo, reconhecer a criança como sujeito político, histórico e cultural,
possibilitando que exerça aqui e agora o direito de defender suas opiniões, falar sobre
sua vida, escrevê-la, etc. Nesse sentido, aproximando-nos das idéias de Araújo
(2005), ao criticar as visões de criança como alguém que ensaia no presente para
exercer a sua cidadania a posteriori, pensamos que
É necessário construir outras bases de reconhecimento e participação
da criança como ente político para além das regras culturais de uma
matriz hierárquica e autoritária que confere a universilidade da lei e
dos direitos um privilégio de determinados grupos sociais. [...] A
sociabilidade e a vida pública são construídas na e pela pluralidade
humana e nesta pluralidade a participação da criança é objetivada
através do modo particular como expressam suas opiniões e desejos,
como representam a realidade, como criam, transgridem e
(re)significam regras, como lidam com os conflitos, como se
organizam em diferentes espaços e tempos etc. (ARAÚJO, 2005, p.
111-112-113).
Nessa perspectiva, conforme defende Gontijo (2004), o trabalho com a produção de
textos na sala de aula configura-se numa dimensão essencial do processo de
alfabetização, uma vez que, por meio dele, as crianças podem se constituir sujeitos
no espaçotempo vivo de interação com o outro, passando do reconhecimento ao
conhecimento, da reprodução à produção de saberes. É nesse espaço
interdiscursivo, como nos faz lembrar Geraldi (2003), que podemos ouvir e dialogar
com os sujeitos cujas vozes foram caladas, esquecidas, deixadas às margens dos
processos civilizadores de nossa sociedade.
Nesse sentido, quais mudanças precisam ser efetuadas para que o texto seja
tomado efetivamente na sala de aula? Para que as crianças possam constituir-se
sujeitos de idéias, saberes, cultura, posicionando-se, de acordo com as suas
capacidades, no aqui e no agora? Não temos respostas definitivas para essa
questão, mas podemos, a partir das discussões que foram suscitadas no presente
estudo, delinear algumas contribuições no sentido de pensar a instauração de outros
rumos para o trabalho com o texto nas classes de alfabetização.
A primeira diz respeito ao redimensionamento das concepções de linguagem e de
sujeitos que se constituem nas salas de aula e que podem ser revisitadas a partir
das proposições de Bakhtin (1999). Ao submeter as correntes lingüístico-filosóficas
321
de seu tempo a uma crítica epistemológica, o autor mostrou que essas correntes
criaram uma barreira à compreensão da natureza da linguagem, rejeitando a
constituição social dos fenômenos lingüísticos. Na perspectiva bakhtiniana de
linguagem, que é fundamentalmente social, a língua “[...] vive e evolui historicamente
na comunicação verbal concreta, não no sistema abstrato das formas da língua nem
no psiquismo individual dos falantes(BAKHTIN, 1999, p. 124, grifo do autor). Essa
concepção de linguagem interfere, decisivamente, nas visões predominantes de
sujeito, uma vez que este passa a ser concebido não como um ser assujeitado às
condições de seu tempo ou determinado pela estrutura social nem, tampouco, um
sujeito pronto, acabado, fonte exclusiva de seu dizer, mas como sujeito sócio-
histórico que se constitui nas relações sociais.
Essas formas de conceber o sujeito e a linguagem remetem a considerar a sala de
aula como espaço dialógico habitado por sujeitos sócio-históricos; como lugar de
interação verbal em que são confrontados diferentes saberes, em que a repetição e
a criação são dimensões interdependentes e constitutivas do trabalho de produção.
Desse modo, compreendemos que mudanças significativas nas práticas de produção
de textos, tendo em vista o reconhecimento das crianças e dos professores como
sujeitos, precisam ser iniciadas a partir do redimensionamento dessas concepções,
admitindo, conforme acentua Geraldi (2003, p. 6-7, grifos do autor):
a) que a língua (no sentido sociolingüístico do termo) não está de
antemão pronta, dada como um sistema de que o sujeito se apropria
para usá-la segundo suas necessidades específicas do momento de
interação, mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de
linguagem, a cada vez a (re)constrói;
b) que os sujeitos se constituem como tais à medida que interagem
com os outros, sua consciência e seu conhecimento de mundo
resultam como ‘produto’ deste mesmo processo. Neste sentido, o
sujeito é social que a linguagem não é o trabalho de um artesão,
mas trabalho social e histórico seu e dos outros e é para os outros e
com os outros que ela se constitui. Também não há um sujeito dado,
pronto, que entra na interação, mas um sujeito se completando e se
construindo nas suas falas;
c) que as interações não se dão fora de um contexto social e histórico
mais amplo; na verdade, elas se tornam possíveis enquanto
acontecimentos singulares, no interior e nos limites de uma
determinada formação social, sofrendo as interferências, os
controles e as seleções impostas por esta. Também não são, em
relação a estas condições, inocentes. São produtivas e históricas e
como tais, acontecendo no interior e nos limites do social, constroem
por sua vez limites novos.
322
A adoção do texto como objeto de ensino aprendizagem requer, também, que
pensemos em mudanças de ordem prática, mudanças provocadoras de novos
olhares e possibilidades no trabalho com os gêneros do discurso em contexto
escolar. Essas mudanças demandam, fundamentalmente, a instauração de
situações comunicativas (reais ou fictícias) que permitam integrar as condições
essenciais para que a produção de textos realmente se efetive nas salas de aula ou,
em outras palavras, para que o enunciado seja tomado como unidade de
comunicação discursiva. A conciliação dessas condições passa, todavia, pelo
reconhecimento das dimensões constitutivas do nero (aspecto composicional,
conteúdo, estilo) que, de acordo com Bakhtin (2003), abarcam peculiaridades
discursivas que se entrelaçam na constituição dos sentidos dos enunciados: a
alternância dos sujeitos do discurso, a conclusibilidade específica do enunciado que
é determinada pela exauribilidade do objeto e do sentido, pela vontade de discurso
do falante, pelas formas típicas composicionais do gênero do acabamento e a
relação do enunciado com o próprio falante e com os outros participantes da
comunicação discursiva. São essas dimensões que configuram o todo do enunciado
concreto, estabelecendo elos entre a língua e as atividades humanas, entre as
diferentes formas de manifestação pela linguagem e a vida.
Entretanto, saber articular as demandas teórico-práticas que envolvem o trabalho
com a leitura e com a produção de textos o é tarefa fácil, pois envolve o
conhecimento de pressupostos teórico-práticos que possibilitem o
redimensionamento na forma de trabalhar a linguagem. Além disso, os desafios
colocados para os professores e as suas condições de trabalho têm aprofundado as
complexidades inerentes aos processos de formação.
Nesse sentido,
compreendemos que mudanças efetivas nas práticas de
alfabetização poderão ocorrer a partir de propostas de formação que considerem o
diálogo, a história dos sujeitos e seus sistemas de significações como princípios
essenciais na produção dos saberes e fazeres docentes. Pensar a formação nessa
perspectiva implica romper com os modelos predominantes que circunscrevem as
propostas de formação às iniciativas privadas, aos pacotes de treinamento, aos
cursos a distância e aos mecanismos de certificação, buscando a implementação de
políticas de formação com ações ajustadas aos interesses dos profissionais em
323
educação, às condições de trabalho docente e às demandas emergentes no
cotidiano das práticas educativas.
Movimentos em direção a essa perspectiva de formação têm sido registrados a
partir de diferentes olhares e enfoques teóricos, inclusive no âmbito da educação
infantil do Sistema Municipal de Ensino de Vitória, ES, conforme apontou Rangel
(2003) em estudo exploratório documental, realizado a partir de entrevistas com 230
professores, análise dos Planos de ão dos Centros Municipais de Educação e
grupo focal. O desejo de mudanças nas propostas de formação dos profissionais
que trabalham na educação infantil do Sistema Municipal de Vitória também foi
explicitado na nova proposta curricular. Considerando a necessidade de conceber o
professor “[...] como alguém que pensa seu trabalho e sobre o seu trabalho”
(PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO,
GERÊNCIA DE EDUCAÇÃO INFANTIL, 2006, p. 46), a proposta apresentada prevê
que a formação continuada precisa ocorrer de maneira articulada, em espaços
singulares e no interior das práticas coletivas, tendo em vista a melhoria das
condições de trabalho.
Essas proposições evidenciam, portanto, a necessidade de repensar as práticas de
formação de professores. No que se refere ao campo da linguagem, mais
especificamente aos processos educativos vinculados à alfabetização e à
apropriação da linguagem escrita, compreendemos, de acordo com as questões
suscitadas em nosso estudo, que ainda temos um longo caminho a percorrer, ainda
temos muitas histórias a revelar, muitos saberes a compartilhar. Como nos diz
Bakhtin (2003, p. 410, grifo do autor),
Não existe a primeira nem a última palavra, e não limites para o
contexto dialógico (este se estende ao passado sem limites e ao
futuro sem limites). Nem os sentidos do passado, isto é, nascidos no
diálogo dos séculos passados, podem ser estáveis (concluídos,
acabados de uma vez por todas): eles sempre irão mudar (renovando-
se) no processo de desenvolvimento subseqüente, futuro do diálogo.
Em qualquer momento do desenvolvimento do diálogo existem
massas imensas e ilimitadas de sentidos esquecidos, mas em
determinados momentos do sucessivo desenvolvimento do dialógo,
em seu curso, tais sentidos serão relembrados e reviverão em forma
renovada (em novo contexto). Não existe nada absolutamente morto:
cada sentido terá sua festa de renovação. Questão do grande tempo.
324
7 REFERÊNCIAS
ABAURRE, Maria Bernadete Marques; FIAD, Raquel Salek; MAYRINK-SABINSON,
Maria Laura Trindade. Cenas de aquisição da escrita: o sujeito e o trabalho com o
texto. São Paulo: Mercado das Letras, 2002.
AGUIAR, Vera Teixeira. Leitura literária e escola. In: EVENGELISTA, Aracy M.;
BRANDÃO, Heliana M. B.; MACHADO, Maria Zélia V. Escolarização da leitura
literária. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. p. 235-255.
ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Etnografia da prática escolar. 11. ed. São
Paulo: Papirus, 2004.
ARAÚJO, Antonia Dilamar. Uma análise da polifonia discursiva em resenhas críticas
acadêmicas. In: MEURER, José Luiz; MOTTA-ROTH, Désirée. Gêneros textuais e
práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. São Paulo: EDUSC,
2003. p. 141-158.
ARAÚJO, Vânia Carvalho de. Criança: do reino da necessidade ao reino da
liberdade. Espírito Santo: Edufes, 1996.
______. Ética e estética: tecendo um olhar a partir da criança. Cadernos de
Pesquisa em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Centro
Pedagógico, Programa de Pós-Graduação em Educação, Vitória: PPGE, v. 10, n. 19,
p. 107-120, dez. 2005.
AZENHA, Maria da Graça. Imagens e letras: Ferreiro e Luria duas teorias
psicogenéticas. São Paulo: Ática, 1995.
BAKHTIN, Mikhail Mikhailovith. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas
fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. 9. ed. São Paulo:
Hucitec, 1999.
______. O freudismo. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2001.
______. Estética da criação verbal. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do
discurso. In: FARACO, Carlos Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de
(Org.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Editora da UFPR, 2001. p. 21-41.
______. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de;
FIORIN, José Luiz (Org.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade: em torno de
Bakhtin. 2. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. p. 1-9.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
325
BOGDAN, Roberto C; BIKLEN, Sari Knopp. Investigação qualitativa em educação.
Portugal: Porto Editora, 1994.
BRAGGIO, Silvia Lucia Bigonjal. Leitura e alfabetização: da concepção mecanicista
à sociopsicolingüística. 2. reimp. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
BRANDÃO, Helena Nagamine. Texto, neros do discurso e ensino. In: BRANDÃO,
Helena Nagamine (Org.). Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel,
discurso político, divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2000. p. 17-45.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação
Fundamental. Referencial Curricular para a Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF,
1998.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Programa
de Formação de Professores Alfabetizadores. Brasília: MEC/SEF, 2001.
BRASIL. Minisrio do Trabalho e Emprego. Classificação Brasileria das Ocupões.
Brasília: MTE, 2002. Disponível em: <www.mtecbo.gov.br>. Acesso em: 2 abr. 2006.
BUJES, Maria Isabel Edelweiss. Infância e maquinarias. Rio de Janeiro: DP&A,
2002.
CADEMARTORI, Ligia. Criança e quadrinhos. In: JACOBY, Sissa (Org). A criança e
a produção cultural: do brinquedo à literatura. Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.
p. 45-61.
CERISARA, Ana Beatriz. A produção acadêmica na área da educação infantil com
base na análise de pareceres sobre o referencial curricular nacional da educação
infantil. In: FARIA, Ana Lúcia Goulard; PALHARES, Marina Silveira (Org.).
Educação Infantil pós-LDB: rumos e desafios. São Paulo: Autores Associados,
2003. p. 19-50.
DUARTE, Newton. Vigotski e o aprender a aprender”: crítica às apropriações
neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 2. ed. São Paulo: Autores
Associados, 2001.
ESTEBAN, Maria Teresa. O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e
fracasso escolar. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
FÁVERO, Leonor Lopes; ANDRADE, Maria Lúcia da Cunha V. de Oliveira; AQUINO,
Zilda Gaspar Oliveira. Oralidade e escrita: perspectiva para o ensino de língua
materna. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2003.
FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Ed.
comemorativa dos 20 anos de publicação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
FREITAS, Maria Teresa de Assunção. A abordagem sócio-histórica como
orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Autores
Associados, n. 116, p. 21-39, jul. 2002.
326
GARUTI, Silvana Aparecida. Interações criaa-criança e criaa-adulto: negociões
na construção da linguagem escrita. 1995. 152 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia
da Educação) – Pontifícia Universidade Calica de São Paulo, São Paulo, 1995.
GERALDI, João Wanderley. Da redação à produção de textos. In: GERALDI, João
Wanderley; CITELLI, Beatriz (Org.). Aprender e ensinar com textos de alunos.
São Paulo: Cortez, 1997. p.17-23.
______. Portos de passagem. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
GONTIJO, Cláudia Maria Mendes. O conceito de apropriação na perspectiva
histórico-cultural. Periódico do Mestrado em Educação da UCBD. Série Estudos,
Campo Grande, MS, n. 12, p. 45-56, jul./dez., 2001b.
______. O processo de alfabetização: novas contribuições. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
______. Alfabetização: a criança e a linguagem escrita. Campinas: São Paulo,
Autores Associados, 2003.
______. Alfabetização e a questão do letramento. 2004. (inédito)
GOULARD, Cecília. A produção de textos escritos narrativos, descritivos e
argumentativos na alfabetização: evidências do sujeito na/da linguagem. In: VAL,
Maria da Graça Costa; ROCHA, Gladys (Org.). Reflexões sobre práticas escolares
de produção de texto: o sujeito-autor. Belo Horizonte: Autêntica, CEALE, FaE,
UFMG, 2003. p. 85-107.
______. Histórias de crianças, linguagens e educação infantil. Cadernos de
Pesquisa em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Centro
Pedagógico, Programa de Pós-Graduação em Educação. Vitória: PPGE, v. 10, n. 19,
p. 139-157, dez. 2005.
GRAFF, H. J. Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o
presente da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
GUIMARÃES, Maria Flora. O conto popular. In: BRANDÃO, Helena Nagamine
(Org.). Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso político,
divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2000. p. 85-117.
HERNÁNDEZ, Fernando. Transgressão e mudança na educação: os projetos de
trabalho. Porto Alegre: ArtMed, 1998.
HERNÁNDEZ, Fernando; VENTURA, M. A organização de currículo por projetos
de trabalho: o conhecimento é um caleidoscópio. 2. ed. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1998.
HIGUCHI, Kazuko Kojima. Super-Homem, Mônica & Cia. In: CITELLI, Adilson Odair
(Org.). Aprender e ensinar com textos não escolares. 2. reimp. São Paulo: Cortez,
1997. p. 125-154.
327
INSTITUTO NACIONAL DE ALFABETISMO FUNCIONAL. Indicador Nacional
de Alfabetismo Funcional. São Paulo: Instituto Paulo Montenegro, 2005.
Disponível em: <
www.ipm.org.br/an.php>. Acesso em: 6 abr. 2006.
KLEIMAN, Angela B. (Org.). Os significados do letramento. 6. reimp. São Paulo:
Mercado das Letras, 1995.
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
______. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2004a.
______. Argumentação e linguagem. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2004b.
______. A inter-ação pela linguagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2004c
.
KRAMER, Sonia. Autoria e autorização: questões éticas na pesquisa com crianças.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Autores Associados, n. 116, p. 41-59, jul. 2002.
KUHLMANN, Moysés Jr. Educando a Infância Brasileira. In: LOPES, Eliane Marta
Teixeira; FILHO, Luciano Mendes Faria; VEIGA, Cynthia Greive (Org.). 500 Anos de
Educação no Brasil. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 469-496.
LEONTIEV, Aléxis N. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Livros Horizonte,
1978.
LEONTIEV, Aléxis N. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In:
VIGOTSKI, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Aléxis N.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 6. ed. São Paulo: Ícone, 1998. p.
119-142.
LURIA, Alexander Romanovich. O desenvolvimento da escrita na criança. In:
VIGOTSKI, Lev Semenovich; LURIA, Alexander Romanovich; LEONTIEV, Aléxis N.
Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 6. ed. São Paulo: Ícone, 1998. p.
143-189.
MACEDO, Donaldo. Alfabetização, linguagem e ideologia. In: FREIRE, Paulo;
MACEDO, Donaldo.
Alfabetização: leitura do mundo leitura da palavra. 3. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 89-107.
MACHADO, Irene A. Os gêneros e a ciência dialógica do texto. In: FARACO, Carlos
Alberto; TEZZA, Cristóvão; CASTRO, Gilberto de (Org.). Diálogos com Bakhtin.
Curitiba: Editora da UFPR, 2001. p. 225-271.
______. Gêneros discursivos. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São
Paulo: Contexto, 2005. p. 151-166.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização.
São Paulo: Cortez, 2001.
328
MARCUSCHI, Luiz Antônio. A questão do suporte dos gêneros textuais.
UFPE/CNPq: 2003. Disponível em:
http://bbs.metalink.com.br/~lcoscarelli. Acesso em:
1º maio 2006.
______. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: DIONÍSIO, Angela Paiva;
MACHADO, Ana Raquel; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Org.). neros textuais &
ensino. 4. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. p. 19-36.
MARINHO, Marildes. O discurso da ciência e da divulgação em orientações
curriculares de ngua Portuguesa. Revista Brasileira de Educação, São Paulo:
Autores Associados, n. 24, p. 126-139, set./out./nov./dez. 2003.
MENDONÇA, Márcia Rodrigues de Souza. Um gênero quadro a quadro: a história
em quadrinhos. In: DIONÍSIO, Angela Paiva; MACHADO, Ana Raquel; BEZERRA,
Maria Auxiliadora (Org.). Gêneros textuais & ensino. 4. ed. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2005. p. 194-207.
NOGUEIRA, Ana Lúcia Horta. A atividade pedagógica e a apropriação da escrita.
1991. 92 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Estadual de
Campinas, Faculdade de Educação, São Paulo, 1991.
PAIVA, Aparecida; MACIEL, Francisca. Discursos da paixão: a leitura literária no
processo de formação do professor das séries iniciais. In: PAIVA, Aparecida et al.
(Org.). Leituras literárias: discursos transitivos. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica,
2005. p. 111-126.
PASSOS, Selma das Graças Diniz. A prática da alfabetização na pré-escola
particular e na pré-escola pública. 1995. 310 f. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1995.
PERROTTI, Edmir. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990.
PINO, Angel. O social e o cultural na obra de Lev S. Vigotski. Educação &
Sociedade, Campinas: Cedes, n. 71, p. 45-78, 2000.
PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA. Secretaria de Educação. Projeto político-
pedagógico da escola. Vitória, 1997.
PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA. Secretaria de Educação. Divisão de
Educação Infantil. Plano de ação. Vitória, 2004.
PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA. Secretaria de Educação. Plano de
trabalho anual da escola. Vitória, 2005.
PREFEITURA MUNICIPAL DE VITÓRIA. Secretaria de Educação. Gerência de
Educação Infantil. Educação infantil: um outro olhar. Vitória-ES: Multiplicidade, 2006.
RAMOS, Ana Luiza ximo. Alfabetização na pré-escola: aprecião analítica e
contribuições para a construção de um caminho interdisciplinar. 1995. 141 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1995.
329
RANGEL, Iguatemi Santos. A formação continuada de professores da educação
infantil no Sistema Municipal de Ensino de Vitória: um confronto entre as
propostas oficiais e a opinião dos professores. 2003. 179 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2003.
ROCHA, Eloísa Acires Candal; SILVA FILHO, João Josué da; STRENZEL, Giandréa
Reuss. Educação infantil: série estado do conhecimento. Brasília-DF:
MEC/Inep/Comped, 2001.
ROSSLER, João Henrique. Construtivismo e alienação: as origens do poder de
atração do ideário construtivista. In: DUARTE, Newton (Org.). Sobre o
construtivismo. São Paulo: Autores Associados, 2000. p. 3-22.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Estudo de caso etnográfico em educação. In: ZAGO,
Nadir; CARVALHO, Marília Pinto de; VILELA, Rita Amélia Teixeira. Itinerários de
pesquisa: perspectivas qualitativas em sociologia da educação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003. p. 137-179.
SCHNEUWLY. Bernard; DOLZ, Joaquim e Colaboradores. ROJO, Roxane.
CORDEIRO, Glaís Sales (Org.). Gêneros orais e escritos na escola. o Paulo:
Mercado das Letras, 2004.
SEMENSATO, Dirce. Anive: uma primeira feição de palavra escrita: um estudo de
evolução da escrita de crianças pré-escolares. 1992. 128 f. Dissertação (Mestrado
em Educação) – Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 1992.
SMOLKA, Ana Luiza Bustamante. A criança na fase inicial da escrita: a
alfabetização como processo discursivo. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2003.
SOARES, Magda Becker; MACIEL, Francisca. Alfabetização: série estado do
conhecimento. Brasília: MEC/Inep/Comped, 2000.
SOBRAL, Adail. Ato/atividade e evento. In: BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave.
São Paulo: Contexto, 2005. p. 11-36.
SOUZA, Luzinete Vasconcelos de. As proezas das crianças em textos de
opinião. Campinas, São Paulo: Mercado das Letras, 2003.
TEBEROSKY, Ana. Para que aprender a escrever? In: TEBEROSKY, Ana;
TOLCHINSKY, Liliana. Além da alfabetização. 4. ed. São Paulo: Ática, 2002. p. 19-34.
TERZI, Sylvia Bueno. A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios
iletrados. In: KLEIMAN, Angela B. (Org.). Os significados do letramento. São
Paulo: Mercado das Letras, 1995. p. 91-117.
TFOUNI, Leda Verdini. Letramento e alfabetização. 6. ed. São Paulo, Cortez, 2004.
VIGOTSKI, Lev Semenovich. Teoria e método em Psicologia. 2. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
______. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins
Fontes, 2001.
330
ANDICES
331
APÊNDICE A – PROTOCOLO DE PESQUISA
Vitória (ES), abril de 2005.
Ao CMEI: ___________________________________________________________
A/C:________________________________________________________________
Apresento a síntese do projeto de pesquisa intitulado “O TRABALHO COM A
LINGUAGEM ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL”, orientado pela Prof.ª Drª
Cláudia Maria Mendes Gontijo, no curso de Mestrado em Educação/UFES, tendo
como linha de pesquisa Educação e Linguagens, com o objetivo de estabelecer
parceria com essa unidade de ensino, para desenvolvimento deste trabalho. Essa
escola foi selecionada com base na sua localização, uma vez que favorece o
atendimento a populações de baixa renda e por apresentar, em seu projeto político-
pedagógico, uma proposta de ensino-aprendizagem da linguagem escrita pautada
no trabalho com textos.
Perfil do pesquisador
Dados pessoais
Nome: Maristela Gatti Piffer
Endereço: Rua Norbertino Bahiense, nº 9, quadra 34, Manoel Plaza, Serra - ES
Telefone: 3318-0520 e 9973-4438 CEP: 29 160 424
Idade: 38 anos Naturalidade: Colatina Estado civil: casada
Local de trabalho: Prefeitura Municipal de Vitória Cargo: Professor pedagógico
Experiência profissional
Atuo como pedagoga desde 2002, no Sistema Municipal de Vitória. Nesse período,
trabalhei com turmas do ensino fundamental, tanto de crianças como de jovens e
adultos, em três instituições de ensino do referido sistema. Em experiências
anteriores de 1987 a 2001 atuei na função de pedagoga e de professora com
crianças da educação infantil e de a séries do ensino fundamental, de redes
públicas e particulares do município de Colatina.
332
Interesse de pesquisa
Meu interesse em estudar as práticas com a linguagem escrita na educação infantil
tem origem nas minhas experiências de trabalho, principalmente aquelas ligadas à
atuação direta com as crianças e professores nessa fase de escolarização. Assim,
buscando entender melhor como ocorrem os processos de constituição de sentidos
e de sujeitos no trabalho com a linguagem escrita em turmas de alfabetização, é que
proponho a observação das práticas no interior de uma sala de aula dessa
instituição de educação.
Síntese do projeto de pesquisa
Título: O trabalho com a linguagem escrita na educação infantil
Objetivo da pesquisa: Investigar os eventos mediados pela linguagem escrita
analisando se e como o processo ensino aprendizagem tem possibilitado a
constituição de sentidos por meio do trabalho de escritura.
Público-alvo: Uma turma de seis anos (alunos, professores, familiares dos alunos e
funcionários do corpo técnico-pedagógico).
Requisitos para seleção da turma: Interesse da professora regente pela pesquisa.
Metodologia: Estudo de caso do tipo etnográfico
Coleta de dados:
Será realizada durante o ano de 2005, por meio de entrevistas com os
sujeitos, observação participante, fotos, filmagens e análise de documentos.
A inserção do pesquisador no espaço escolar ocorrerá de forma gradativa,
com o objetivo de familiarizar-se com os sujeitos e não causar transtornos na
rotina da escola. Nesse processo, o investigador também estará à disposição
para desenvolver atividades colaborativas que auxiliem o professor no
trabalho pedagógico ou em outras atividades da escola.
Todos os procedimentos envolvendo a coleta de dados serão previamente
planejados e acordados com a professora e com as crianças.
Será solicitada autorização dos responsáveis para a participação das
crianças-sujeitos na pesquisa.
333
APÊNDICE B – CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO I
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos profissionais (sujeitos da
pesquisa) do CMEI ( ) , unidade da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES, o projeto
de pesquisa O TRABALHO COM A LINGUAGEM ESCRITA NA EDUCÃO
INFANTIL”, de autoria da mestranda Maristela Gatti Piffer, como recomendação para
a realização do Mestrado em Educação, do Programa de Pós-Graduação em
Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo .
O objetivo da pesquisa é analisar o processo ensino aprendizagem da linguagem
escrita e sua relação na constituição de sentidos, por meio do trabalho de escritura.
Como instrumentos de pesquisa, serão utilizados formulários para análise de
documentos, para realização de entrevistas e observação participante em sala de
aula com gravações em vídeo e registros em diário de campo. Os dados terão
tratamento ético, com garantia de proteção dos nomes dos sujeitos e autorização da
participação das crianças pelas famílias. O trabalho será realizado a partir de
negociações com os sujeitos, no decorrer do estudo. Os dados/resultados da
pesquisa serão apresentados no texto da dissertação e poderão ser utilizados para
publicação. Por isso, solicito sua autorização por meio da assinatura deste Termo de
Consentimento:
Vitória, maio de 2005.
MARISTELA GATTI PIFFER
Nome do profissional Função Assinatura Telefone
Professora
Pedagoga
Diretora
334
APÊNDICE C – CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO II
Em cumprimento ao protocolo de pesquisa, apresento aos pais/responsáveis das
crianças/sujeitos do “grupo 6” do CMEI ( ), unidade da Rede Municipal de Ensino
de Vitória-ES, o projeto de pesquisa “O TRABALHO COM A LINGUAGEM ESCRITA
NA EDUCAÇÃO INFANTIL”, de autoria da mestranda Maristela Gatti Piffer, como
recomendação para a realização do Mestrado em Educação, do Programa de Pós-
Graduação em Educação, da Universidade Federal do Espírito Santo.
O objetivo do estudo é analisar o processo ensino aprendizagem da linguagem
escrita e a constituição de sentidos por meio do trabalho de escritura realizado pelas
crianças. Desse modo, a pesquisa será desenvolvida na sala de aula por meio da
observação participante com gravações em deo, entrevistas e registros em diário
de campo. Para garantir o tratamento ético dos dados, o nome da escola se
mantido em sigilo, serão utilizadas apenas as iniciais dos nomes das crianças e as
filmagens serão efetuadas sem comprometimento da ação educativa, preservando,
sobretudo, a integridade do grupo. Os dados/resultados da pesquisa serão
apresentados na dissertação e poderão ser utilizados para publicação. Por isso,
solicitamos sua autorização, por meio da assinatura deste Termo de Consentimento:
Eu, _______________________________________________, responsável pelo
aluno(a) ___________________________________________, do CMEI ( ),
autorizo sua participação
no projeto de pesquisa “O TRABALHO COM A
LINGUAGEM ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL” de autoria da mestranda
Maristela Gatti Piffer – PPGE/UFES, concordando com os procedimentos acima
apresentados.
Assinatura:____________________________________RG:___________________
Telefone:________________________________________ Data: ____________________
335
APÊNDICE D – CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIMENTO III
Em cumprimento ao protocolo da pesquisa “O TRABALHO COM A LINGUAGEM
ESCRITA NA EDUCAÇÃO INFANTIL”, de Maristela Gatti Piffer – mestranda na linha
de pesquisa Educação e Linguagens, do Centro de Educação da Universidade
Federal do Espírito Santo realizada no ano de 2005, na instituição de Educação
Infantil ( ), da Rede Municipal de Ensino de Vitória-ES, e dando continuidade ao
tratamento ético dos dados, solicito a autorização dos pais ou responsáveis dos
alunos envolvidos no estudo para utilização de imagens obtidas por meio de
fotografias e filmagens na produção do relatório de pesquisa. Essas imagens serão
utilizadas para fins estritamente científicos ligados a esta pesquisa.
Atenciosamente,
Maristela Gatti Piffer
Eu, _______________________________, responsável pelo(a) aluno(a)
___________________________________, autorizo a utilização das imagens do
meu filho (a) na produção da pesquisa “O trabalho com a linguagem escrita na
educação infantil”, realizada por Maristela Gatti Piffer, no ano de 2005, no CMEI ( ),
da Prefeitura Municipal de Vitória.
Assinatura do(a) responsável:____________________________________________
RG: _________________________________ Data: _________________________
Telefone: ___________________________________________________________
336
APÊNDICE E – FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
66
1. Nome da escola: ___________________________________________________
2. Fundação: ________________________________________________________
3. Endereço: ________________________________________________________
4. Dados da comunidade: ______________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
5. Bairros de origem dos alunos: _________________________________________
___________________________________________________________________
6. Aspecto físico
a) Número de sala de aula: _____________________________________________
b) Condições das salas de aula: _________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
c) Possui biblioteca? ________ Condições de funcionamento: __________________
___________________________________________________________________
d) Possui sala ambiente? _____ Quais? ___________________________________
___________________________________________________________________
e) Possui sala de professores, sala de direção, coordenação pedagógica,
secretaria?___________________________________________________________
___________________________________________________________________
f) Possui refeitório? ___________________________________________________
g) Possui área livre? Parquinho? Como são utilizados? _______________________
___________________________________________________________________
7. Organização das turmas
a) Média de alunos por turma: __________________________________________
b) Número de alunos por turno: Matutino: ___________ Vespertino: __________
c) Número de turmas por turno: Matutino: ___________ Vespertino: ___________
66
Os formulários apresentados nos Apêndices E, F, G, I e J foram elaborados com base na tese de
doutorado de GONTIJO, Cláudia Maria Mendes: O processo de apropriação da linguagem escrita em
crianças na fase inicial de alfabetização. São Paulo, Universidade Federal de Campinas, Faculdade
de Educação, 2001.
337
d) Organização das turmas: Matutino Vespertino
0 a 2 anos: _______ ________
3 anos: _______ ________
4 anos: _______ ________
5 anos: _______ ________
6 anos: _______ ________
8. Recursos humanos
a) Número de professores por turno: Matutino: __________ Vespertino: __________
b) Composição do corpo técnico-administrativo: _____________________________
c) Faxineiras e merendeiras: ____________________________________________
d) Pessoal de apoio: ___________________________________________________
9. Recursos materiais
a) Tipo de material pedagógico existente na escola: __________________________
b) Recursos audiovisuais: ______________________________________________
10. Rotina escolar:
a) A chegada das crianças na escola: _____________________________________
b) O recreio: _________________________________________________________
c) O momento da saída: ________________________________________________
d) Outras atividades: __________________________________________________
e) Eventos: __________________________________________________________
11. Usos da escrita no ambiente escolar
a) Espaços destinados à circulação de material escrito: _______________________
___________________________________________________________________
b) Como são utilizados esses espaços: ____________________________________
12. Histórico da escola:
338
APÊNDICE F – FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DA SALA DE AULA
1. Aspecto físico
a) Dimensão espacial: _________________________________________________
b) Mobília: __________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
c) Há ambientes específicos na sala de aula? Quais? ________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
d) Materiais escritos expostos: __________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
2. A turma
a) Número de alunos: Meninas: _______________ Meninos: _________________
b) Forma de organização da turma: _______________________________________
___________________________________________________________________
c) Números de crianças ingressantes este ano: _____________________________
3. Sobre a organização do trabalho coletivo:
a) Há regras para orientar o trabalho e a organização diária? __________________
c) São explicitadas? Como? ____________________________________________
___________________________________________________________________
d) São cobradas? Como? ______________________________________________
___________________________________________________________________
4. Rotina diária:
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
339
APÊNDICE G FORMULÁRIO PARA CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS
(DADOS DA SECRETARIA)
1. Nome da criança: ___________________________________________________
2. Endereço completo: _________________________________________________
3. Dados pessoais:
a) Data de nascimento: ___________ b) Sexo: ________ c) Idade (meses): ______
d) Algum problema de saúde? Qual? ______________________________________
4. Dados da vida escolar:
a) Já estudou? ( ) Sim ( ) Não
b) Onde e quanto tempo: _______________________________________________
5. Dados familiares:
a) Pessoas que moram com a criança: ____________________________________
b) Pai: ______________________________________________________________
Profissão: _________________________Trabalho atual: ___________________
Renda mensal: _____________________Grau de instrução: ________________
c) Mãe: _____________________________________________________________
Profissão: _________________________ Trabalho atual: __________________
Renda mensal: _____________________Grau de instrução: ________________
d) Responsável: ______________________________________________________
Profissão: _________________________ Trabalho atual: __________________
Renda mensal: _____________________Grau de instrução: ________________
e) Número de irmãos:
Nenhum irmão ( )
Um irmão ( )
Dois irmãos ( )
Três irmãos ( )
Mais de três irmãos ( )
340
APÊNDICE H – ROTEIRO DA CONVERSA COM AS CRIANÇAS
1. Nome: ____________________________________________________________
2. Pais: _____________________________________________________________
3. Irmãos: ___________________________________________________________
4. Pessoas que moram com a criança:_____________________________________
5. Programas favoritos:
Rádio: ______________________________________________________________
TV: ________________________________________________________________
Outro(s): ____________________________________________________________
6. Diversão preferida da criança: _________________________________________
7. Ajuda em cada? Como? ______________________________________________
8. Trabalha fora de casa? Onde? Quantas horas? É uma atividade remunerada?
___________________________________________________________________
9. Gosta de ler? __________ O quê? _____________________________________
___________________________________________________________________
10. Gosta de escrever? __________ Quando você escreve?___________________
___________________________________________________________________
11. As pessoas da família fazem uso da leitura em casa? Que tipo de material?
___________________________________________________________________
12. Quem lê para a criança em casa? _____________________________________
O quê? __________________________________________________________
Quando? ________________________________________________________
13. Quem ajuda nas tarefas da escola? ____________________________________
14. Já estudou em outra escola? _______ Qual? ____________________________
341
15. Gosta desta escola? _________ Por quê? ______________________________
___________________________________________________________________
16. Qual atividade mais gosta de fazer na escola? ___________________________
___________________________________________________________________
17. Qual não gosta? ___________________________________________________
Por quê? _________________________________________________________
18. Você acha importante aprender a ler e escrever? Por quê?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
19. Outros dados suscitados durante a conversa:
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
342
APÊNDICE I – QUESTIONÁRIO PARA AS FAMÍLIAS
Vitória, 24 de junho de 2005.
Senhores pais ou responsáveis,
Para complementar dados da pesquisa sobre o processo ensino aprendizagem da linguagem escrita
que estamos realizando na turma de seu filho(a), solicitamos sua colaboração com o preenchimento
deste questionário. Agradecemos seu apoio e colocamo-nos à disposição para quaisquer dúvidas.
Maristela Gatti Piffer
1. Aluno(a): _______________________________________ Nascimento: ________
2. Endereço completo: _________________________________________________
___________________________________________________________________
3. Nome do pai:__________________
_____________________________________
Série ou grau que concluiu na escola: ____________ Profissão: ________________
4. Nome da mãe: _____________________________________________________
Série ou grau que concluiu na escola: ___________ Profissão: _________________
5. Outro responsável: __________________________________________________
Série ou grau que concluiu na escola: _____________ Profissão: _______________
6. Renda mensal da família: _____________________________________________
7. Tem irmãos: _________________ Quantos? _____________________________
8. Quais são as pessoas que moram com a criança?
___________________________________________________________________
9. Desde que idade a criança freqüenta a educação infantil? ___________________
10. Já estudou em outra escola? Qual? ____________________________________
11. Atividades mais comuns que a criança realiza:
a) em casa: __________________________________________________________
b) fora do ambiente familiar: _____________________________________________
343
12. Que tipos de materiais escritos são usados em casa:
( ) Jornais. Quais: __________________________________________________
( ) Revistas. Quais: _________________________________________________
( ) Livros. Quais: ____________________________________________________
( ) Correspondências pessoais. De que tipos: _____________________________
Outros tipos: _________________________________________________________
13. Quando necessita usar a escrita nas tarefas de casa ou no dia-a-dia, a criança:
( ) geralmente escreve sozinha
( ) às vezes solicita ajuda de outra pessoa
( ) sempre solicita ajuda de outra pessoa
( ) não faz uso da escrita
14. Que tipo de material é utilizado pela criança (ou por outra pessoa que lê para
ela) para leitura no ambiente familiar?
( ) Livros de literatura infantil.
( ) Gibis.
( ) Revistas.
( ) Jornais.
( ) Manuais de instrução.
( ) Nenhum material.
( ) Outros: _________________________________________________________
15. Para você, é importante que seu filho(a) aprenda a ler e escrever? Por quê?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
16. Em sua opinião, qual a fase escolar mais propícia para o aprendizado da
escrita? Por quê? _____________________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
344
APÊNDICE J – ROTEIRO DA ENTREVISTA COM AS PROFESSORAS
1. Sexo: masculino ( ) feminino ( )
2. Idade:
até 25 anos ( )
entre 26 e 30 anos ( )
entre 31 e 35 anos ( )
entre 36 e 40 anos ( )
mais de 40 anos ( )
3. Você trabalha em:
uma só escola ( )
duas escolas ( )
três escolas ou mais ( )
outra situação: _______________________________________________________
4. Nesta escola você é:
profissional efetivo ( )
profissional contratado ( )
profissional com designação temporária ( )
outra situação funcional: _______________________________________________
5. Há quanto tempo trabalha nesta escola? ________________________________
6. Além de trabalhar nesta escola, você exerce outra atividade profissional? Qual?
___________________________________________________________________
7. Sua formação acadêmica está em nível:
( ) médio
( ) licenciatura curta
( ) licenciatura plena
( ) pós-graduação/aperfeiçoamento (menos de 360 horas)
( ) pós-graduação/especialização (360 horas ou mais)
( ) mestrado/doutorado
345
8. Sua experiência como professor(a):
( ) abaixo de 2 anos
( ) entre 2 e 5 anos
( ) entre 5 e 7 anos
( ) entre 7 e 10 anos
( ) acima de 10 anos
9. Sua experiência profissional foi adquirida:
( ) na docência na educação infantil
( ) na docência em nível fundamental (1ª a 4ª séries)
( ) na docência em nível fundamental (5ª a 8ª séries)
( ) na docência em nível médio
( ) na docência em nível superior
( ) em funções técnicas de ensino
10. Participou e/ou participa de cursos que tenham contribuído com sua formação?
Cite três cursos, por ordem de relevância, indicando a carga horária correspondente:
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
11. É vinculado(a) a sindicato? ______________ Qual (is)? ____________________
12. Assina jornais, revistas, periódicos? __________ Quais? ___________________
13. Participa de congressos, seminários ou encontros similares?
( ) Sempre.
( ) Às vezes.
( ) Nunca.
14. Suas atividades culturais mais freqüentes: ______________________________
15. Suas leituras mais comuns: __________________________________________
___________________________________________________________________
346
16. Há quanto tempo exerce atividade docente na etapa conclusiva da educação
infantil? É uma opção sua? Por quê? _____________________________________
___________________________________________________________________
17. Para você, é importante que as crianças aprendam a ler e escrever? Por quê?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
18. Em qual referencial teórico (e métodos) você se apóia para efetivar o trabalho
com a linguagem escrita na sala de aula?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
19. Quais materiais teórico-práticos você consulta para orientar esse trabalho?
( ) Livros. Citar os mais consultados: ____________________________________
( ) Revistas. Quais? _________________________________________________
( ) Livros didáticos. Quais os preferidos? _________________________________
( ) Referencial Curricular Nacional.
( ) Material do PROFA.
( ) Diretrizes Municipais.
( ) Projeto da escola.
Outros: _____________________________________________________________
20. Quais gêneros textuais são mais utilizados por você no trabalho com a
linguagem escrita na sala de aula? Por quê? _______________________________
___________________________________________________________________
21. Para você, quais os maiores desafios na alfabetização de crianças nessa fase da
escolarização? _______________________________________________________
___________________________________________________________________
22. Você acredita que é possível avançar em alguns aspectos? Quais? Como?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
347
APÊNDICE L – ROTEIRO DA ENTREVISTA COM A PEDAGOGA
1. Sexo: masculino ( ) feminino ( )
2. Idade:
Até 25 anos ( )
entre 26 e 30 anos ( )
entre 31 e 35 anos ( )
entre 36 e 40 anos ( )
mais de 40 anos ( )
3. Você trabalha em:
uma só escola ( )
duas escolas ( )
três escolas ou mais ( )
outra situação: _______________________________________________________
4. Nesta escola você é:
profissional efetivo ( )
profissional contratado ( )
profissional com designação temporária ( )
outra situação funcional: _______________________________________________
5. Há quanto tempo trabalha nesta escola? _________________________________
E no Sistema Municipal de Ensino de Vitória? _______________________________
6. Além de trabalhar nesta escola, você exerce outra atividade profissional? Qual?
___________________________________________________________________
7. Sua formação acadêmica está em nível:
( ) licenciatura curta
( ) licenciatura plena
( ) pós-graduação/aperfeiçoamento (menos de 360 horas)
( ) pós-graduação/especialização (360 horas ou mais)
( ) mestrado/doutorado
348
8. Sua experiência como pedagoga(a):
( ) abaixo de 2 anos
( ) entre 2 e 5 anos
( ) entre 5 e 7 anos
( ) entre 7 e 10 anos
( ) acima de 10 anos
9. Sua experiência profissional foi adquirida:
( ) na docência na educação infantil
( ) na docência em nível fundamental (1ª a 4ª séries)
( ) na docência em nível fundamental (5ª a 8ª séries)
( ) na docência em nível médio
( ) na docência em nível superior
( ) em funções técnicas de ensino
10. Participou e/ou participa de cursos que tenham contribuído com sua formação?
Cite três cursos, por ordem de relevância, indicando a carga horária correspondente:
___________________________________________________________________
11. É vinculado(a) a sindicato? ______________ Qual (is)? ____________________
12. Assina jornais, revistas, periódicos? __________ Quais? ___________________
13. Participa de congressos, seminários ou encontros similares?
( ) Sempre. ( ) Às vezes. ( ) Nunca.
14. Explique como faz o acompanhamento do trabalho docente na escola.
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
15. Sobre o plano de ação/projeto político-pedagógico da escola:
a) Como foi elaborado? Quando? ____________________________________________
b) Quais os principais aspectos nele contemplados? _____________________________
c) Contempla objetivos/estratégias para o trabalho com a linguagem escrita? __________
d) Como avalia sua efetivão no ano letivo de 2005? ____________________________
349
16. Sobre o trabalho com a linguagem escrita:
a) Para você, é importante que as crianças aprendam a ler e escrever? Por quê?
___________________________________________________________________
b) Em qual referencial teórico (e/ou métodos) a escola tem se apoiado para subsidiar
o trabalho com a linguagem escrita na sala de aula?
___________________________________________________________________
c) Quais materiais teórico-práticos os profissionais da escola têm utilizado?
( ) Livros. Citar os mais consultados: ____________________________________
( ) Revistas. Quais? _________________________________________________
( ) Livros didáticos. Quais os preferidos? _________________________________
( ) Referencial Curricular Nacional. Por quê? ______________________________
( ) PROFA. Em quais aspectos contribui? ________________________________
( ) Diretrizes Municipais.
( ) Projeto da escola.
Outros:______________________________________________________________
e) Como o Departamento de Educação Infantil tem orientado o trabalho com a
linguagem escrita na escola? Quais iniciativas foram tomadas nesse sentido?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
f) Com relação à dimensão avaliativa, têm ocorrido, por parte do departamento de
EI, movimentos de controle do processo ensino aprendizagem da língua escrita no
interior da escola? Como? ______________________________________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
g) De onde se originam as práticas de avaliação da aprendizagem da linguagem
escrita efetivadas pela escola, por exemplo, a aplicação de atividades destinadas a
analisar o nível de escrita nas crianças em produções individuais seguidas de
reescrita? ___________________________________________________________
___________________________________________________________________
350
h) Que objetivos orientam essas práticas avaliativas na escola? ________________
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
i) Observa implicações decorrentes desses movimentos de avaliação na
alfabetização das crianças? _____________________________________________
___________________________________________________________________
j) Como você avalia a participação das famílias no processo de apropriação da
linguagem escrita? ____________________________________________________
___________________________________________________________________
l) Que espaços/tempos e materiais educativos são destinados ao trabalho com a
linguagem escrita na escola? Como são utilizados?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
m) Em sua avaliação, como tem ocorrido o uso da biblioteca na escola?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
n) Para você, quais os maiores desafios na alfabetização de crianças nessa fase da
escolarização?_______________________________________________________
___________________________________________________________________
o) Você acredita que é possível avançar em alguns aspectos? Quais? Como?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
351
APÊNDICE M – CARACTERIZAÇÃO DAS CRIANÇAS
Nas tabelas que se seguem, estão organizadas as informações coletadas por meio
dos APÊNDICES G, H e I destinados à caracterização das crianças envolvidas no
estudo. Essas tabelas apresentam a frequência (F) e o respectivo percentual.
Tabela 1 – Distribuição das crianças segundo a idade
Idade F %
Abaixo de 6 anos
6 anos completos
7 anos (1º semestre/2005)
7 anos (2ª semestre/2005)
8 anos completos
00
12
01
10
00
0,00
52,17
4,35
43,48
0,00
Total 23 100
Tabela 2 – Distribuição das crianças segundo o sexo
Sexo F %
Feminino
Masculino
06
17
26,09
73,91
Total 23 100
Tabela 3 – Distribuição das crianças quanto à experiência escolar anterior
Escolaridade anterior F %
Sim
Não
23
00
100
0,00
Total 23 100
352
Tabela 4 Distribuição das crianças conforme a idade em que começaram a
freqüentar instituições de educação infantil (EI)
Idade de ingresso na EI F %
Menos de 1 ano
1 ano
2 anos
3 anos
4 anos
5 anos
6 anos
Acima de 6 anos
03
01
06
10
03
00
00
00
13,04
4,35
26,09
43,48
13,04
0,00
0,00
0,00
Total 23 100
Tabela 5 – Distribuição das crianças de acordo com a instituição de origem
Instituição escolar anterior F %
Sempre estudou na escola em que
a pesquisa foi realizada
Já estudou em outra escola
11
12
47,83
52,17
Total 23 100
Tabela 6 – Distribuição das crianças conforme o bairro em que residiam
Bairro F %
Maruípe
Santa Marta
São Cristóvão
Tabuazeiro
Bairro da Penha
Itararé
Joana D’árc
07
06
04
02
02
01
01
30,43
26,08
17,39
8,70
8,70
4,35
4,35
Total 23 100
353
Tabela 7 – Distribuição das crianças conforme as pessoas que moram em sua casa
Pessoas que moram com a
criança
F %
Os pais
Pais e um(a) irmão(ã)
Pais, irmãos e parentes
Um dos pais, irmãos e parentes
Um dos pais e parentes
Parentes
05
09
03
02
03
01
21,74
39,13
13,04
8,70
13,04
4,35
Total 23 100
Tabela 8 – Distribuição das crianças de acordo com o número de irmãos
Número de irmãos F %
Um irmão
Dois irmãos
Mais de dois irmãos
Nenhum irmão
14
02
01
06
60,87
8,70
4,35
26,08
Total 23 100
Tabela 9 – Distribuição das crianças de acordo com ocupação do pai
Ocupação do pai F %
GG0: Forças Armadas, policiais e bombeiros militares
GG1: Membros superiores do Poder Público, dirigentes de
organização de interesse público e de empresa e gerentes
GG2: Profissionais das ciências e das artes
GG3: Técnicos de nível médio
GG4: Trabalhadores de serviços administrativos
GG5: Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio
em lojas e mercados
GG6: Trabalhadores agropecuários, florestais, da caça e da pesca
GG7: Trabalhadores da produção de bens e serviços
industriais (sistemas de produção discretos)
GG8: Trabalhadores da produção de bens e serviços
industriais (sistemas de produção contínuos)
GG9: Trabalhadores de manutenção e reparação
Desempregado
Não informou
01
01
01
04
02
06
00
03
01
00
01
03
4,35
4,35
4,35
17,39
8,70
26,08
0,00
13,04
4,35
0,00
4,35
13,04
Total 23 100
Obs.: As ocupações dos pais foram organizadas tomando por base os Grandes Grupos
(GG) da Classificação Brasileria das Ocupações (BRASIL, 2002) do Ministério do Trabalho e
Emprego. Disponível em: <www.mtecbo.gov.br>. Acesso em: 2 abr. 2006.
354
Tabela 10 – Distribuição das crianças conforme ocupação da mãe
Ocupação da mãe F %
GG0: Forças Armadas, policiais e bombeiros militares
GG1: Membros superiores do Poder Público, dirigentes de
organização de interesse público e de empresa e gerentes
GG2: Profissionais das ciências e das artes
GG3: Técnicos de nível médio
GG4: Trabalhadores de serviços administrativos
GG5: Trabalhadores dos serviços, vendedores do comércio
em lojas e mercados
GG6: Trabalhadores agropecuários, florestais, da caça e da
pesca
GG7: Trabalhadores da produção de bens e serviços
industriais (sistemas de produção discretos)
GG8: Trabalhadores da produção de bens e serviços
industriais (sistemas de produção contínuos)
GG9: Trabalhadores de manutenção e reparação
Não classificada (do lar)
Não informou
00
01
02
03
03
05
00
00
00
01
07
01
0,00
4,35
8,70
13,04
13,04
21,74
0,00
0,00
0,00
4,35
30,43
4,35
Total 23 100
Obs.: As ocupações das mães foram organizadas tomando por base os Grandes Grupos
(GG) da Classificação Brasileria das Ocupações (BRASIL, 2002) do Ministério do Trabalho e
Emprego. Disponível em: <
www.mtecbo.gov.br>. Acesso em: 2 abr. 2006.
Tabela 11 – Distribuição das crianças de acordo com o nível de escolarização do pai
Escolarização do pai F %
Ensino fundamental completo
Ensino fundamental incompleto
Ensino médio completo
Ensino médio incompleto
Ensino superior
Ensino superior incompleto
Nunca estudou
Não informou
03
02
10
05
01
00
00
02
13,04
8,70
43,47
21,74
4,35
0,00
0,00
8,70
Total 23 100
Tabela 12 Distribuição das crianças de acordo com o nível de escolarização da
mãe (continua)
Escolarização do pai F %
Ensino fundamental completo
Ensino fundamental incompleto
03
05
13,04
21,74
355
Ensino médio completo
Ensino médio incompleto
Ensino superior
Ensino superior incompleto
Nunca estudou
Não informou
13
00
01
00
00
01
56,52
0,00
4,35
0,00
0,00
4,35
Total 23 100
Tabela 13 – Distribuição das crianças conforme a renda familiar declarada em
questionário enviado para as famílias
Renda familiar F %
Um salário mínimo
Um a dois salários mínimos
Dois a três salários mínimos
Três a quatro salários mínimos
Quatro a cindo salários mínimos
Cinco a seis salários mínimos
Mais de seis salários mínimos
Não informou
03
05
03
03
01
00
02
06
13,04
21,74
13,04
13,04
4,35
0,00
8,70
26,09
Total 23 100
Tabela 14 Distribuição das crianças de acordo com o exercício de algum tipo de
atividade remunerada
Atividade remunerada F %
Não exercem trabalho
remunerado
Exercem trabalho remunerado
21
02
91,30
8,70
Total 23 100
Tabela 15 – Distribuição das crianças quanto à realização de tarefas domésticas
Realização de tarefas domésticas F %
Disseram que sim
Disseram que não
Não responderam
20
01
02
86,95
4,35
8,70
Total 23 100
356
Tabela 16 Distribuição das crianças conforme atividades mais comuns que
realizam em casa, segundo os pais
Atividades que realizam em casa F %
Brincar
Desenhar
Assistir à televisão
Pintar
Escrever
Ler
Estudar / fazer tarefas de escola
Jogar futebol
Jogar videogame
Cortar panos / revistas / papel
Ajudar o pai
Usar o computador
Assistir a DVD
Recortar e colar
palavras/gravuras
Andar de bicicleta
Não informou
13
11
07
06
04
04
02
02
02
01
01
01
01
01
01
01
56,52
47,83
30,43
26,09
17,39
17,39
8,70
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque os pais citaram diferentes
atividades que as crianças realizam em casa. O percentual foi calculado tendo por base 23
sujeitos que participaram do estudo.
Tabela 17 Distribuição das crianças conforme atividades mais comuns que
realizam fora do ambiente familiar, segundo os pais
Atividades fora do ambiente
familiar
F %
Passeios (parques, shoppings,
praia, restaurantes, livrarias,
viagens)
Brincadeiras
Atividades na igreja
Aula de inglês
Aula de pintura
Visitas a familiares
Não faz atividades
Não informou
16
13
06
01
01
01
01
01
69,57
56,52
26,09
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque os pais citaram diferentes
atividades que as crianças realizam fora do ambiente familiar. O percentual foi calculado
tendo por base 23 sujeitos que participaram do estudo.
357
Tabela 18 – Distribuição das crianças segundo os programas de rádio e de televisão
favoritos
Programas de rádio e televisão
favoritos
F %
Músicas
Desenhos animados
Filmes
Programas evangélicos
Jogo de futebol
Seriado Power Rangers
Novelas
TV Xuxa
Ronald Mac Donald
Roda-roda
Histórias em CD
Notícias
Entrevista esportiva do pai
18
18
11
05
03
02
01
01
01
01
01
01
01
78,26
78,26
47,83
21,74
13,04
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque as crianças citaram mais
de um programa favorito. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos que
participaram da entrevista.
Tabela 19 – Distribuição das crianças quanto à diversão preferida (continua)
Diversões preferidas das crianças F %
Jogos de computador
Jogos de videogame
Brincar
Jogar bola
Andar de bicicleta
Praia
Piscina
Passear
Brincar no parquinho da escola
Carrinho bate-bate
Parque aquático
Pular corda
Desenhar e pintar
Dançar balé
Brincar de boneca
Brincar de cabra-cega
Brincar com o cachorro
Brincar de pique-parede
Skate
Patinete
07
06
06
03
03
02
02
02
02
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
30,43
26,09
26,09
13,04
13,04
8,70
8,70
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
358
Soltar pipa
Andar de moto com a prima
Tomar banho na banheira
Internet
01
01
01
01
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque as crianças citaram mais
de uma diversão preferida. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos que
participaram da entrevista.
Tabela 20 – Distribuição das crianças conforme opinião sobre a escola
Opinião sobre a escola F %
Disseram que gostam da escola
Disseram que não gostam da
escola
22
01
95,65
4,35
Total 23 100
Tabela 21 Distribuição das crianças de acordo com as razões para gostar da
escola
Por que gostam da escola F %
Por causa dos pátios
Tem brinquedos
É legal
Tem computador/informática
Por causa da professora
Tem um monte de coisas
Tem jogos
Tem biblioteca
Tem atividades legais
Tem mais alunos para brincar
Tem vídeo
Gosta de se maquiar
Gosta de desenhar
Aprendeu muitas coisas
A patroa da mãe que matriculou
Tem mais recreio do que aula
Não respondeu
10
07
06
04
03
02
02
02
02
02
01
01
01
01
01
01
01
43,48
30,43
26,09
17,39
13,04
8,70
8,70
8,70
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de um razão. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos que participaram
da entrevista.
359
Tabela 22 – Distribuição das crianças segundo atividades preferidas na escola
Atividades preferidas na escola F %
Brincar
Desenhar
Todas
Computador
Cruzadinha
Pintar
Ler
Dever de casa
Atividade “gostosinha”
Almanacão
Números
Estudar
08
04
03
02
02
02
02
02
01
01
01
01
34,78
17,39
13,04
8,70
8,70
8,70
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de uma atividade preferida na escola. O percentual foi calculado tendo por base os 23
sujeitos que participaram da entrevista.
Tabela 23 Distribuição das crianças segundo atividades que não gostam de fazer na escola
Não gostam de fazer na escola F %
Não tem nenhuma
Atividades difíceis
Cruzadinha
Escrever
Quando jogam areia
Brigar
Ler
Leite no lanche
Desenhar coisas feias
Quando rabiscam o dever
Brincar com colegas grandes
Quando a professora briga
Não opinaram
04
03
03
03
03
03
02
01
01
01
01
01
01
17,39
13,04
13,04
13,04
13,04
13,04
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs. Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de uma atividade que não gostam de fazer na escola. O percentual foi calculado tendo
por base os 23 sujeitos que participaram da entrevista.
Tabela 24 – Distribuição das crianças quanto ao gosto pela leitura
Gostam de ler F %
Sim
Não
Não opinaram
19
00
04
82,61
0,00
17,39
Total 23 100
360
Tabela 25 Distribuição das crianças de acordo com os materiais preferidos nas
leituras
As crianças gostam de ler F %
Livros de histórias
Revistas
Jornais
Coletânia da igreja
Palavra do Senhor
Músicas
Piadas
Histórias do Smilinguido
Histórias da Mônica
Histórias do Mágico de Oz
Placas
Aquilo que escreve
Matemática
Inglês e japonês
Caderno da prima
Um monte de coisas
Não informou
14
02
02
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
01
03
60,86
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
13,04
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de um material utlizado para leitura. O percentual foi calculado tendo por base os 23
sujeitos que participaram da entrevista.
Tabela 26 Distribuição das crianças de acordo com os materiais que os pais
observam que as crianças utilizam para leitura no ambiente familiar
Materiais que as crianças usam
para ler segundo os pais
F %
Literatura infantil
Gibis
Revistas
Jornais
Bíblia
Encartes de supermercado
Manuais de instrução
Caderno de atividades
Não informou
20
08
08
07
03
01
01
01
01
86,96
34,78
34,78
30,43
13,04
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque alguns pais citaram mais
de um material utlizado para leitura. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos
queparticiparam do estudo.
361
Tabela 27 Distribuição das crianças conforme os familiares que costumam ler
para/com elas em casa, segundo as próprias crianças
Familiares que lêem para/com a
criança
F %
Mãe
Pai
Primo(a)
Irmão(a)
Tio(a)
Avó
Ninguém
17
09
05
03
03
02
01
73,91
39,13
21,74
13,04
13,04
8,70
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de uma pessoa da família que realiza leituras para ela. O percentual foi calculado
tendo por base os 23 sujeitos que participaram da entrevista.
Tabela 28 Distribuição das crianças de acordo com os materiais que os familiares
usam quando fazem leitura para/com elas, segundo as próprias crianças
O que os familiares lêem para as
crianças
F %
Histórias
Atividades escolares
Revistas
Coisas no computador
Jornal
Revistinhas
Correspondências da escola
Jogos
Coisas que não sabe ler
Não lêem nada
18
02
02
01
01
01
01
01
01
01
78,26
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças citaram
mais de uma fonte de leitura. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos que
participaram da entrevista.
Tabela 29 Distribuição das crianças de acordo com a periodicidade da leitura que
os familiares fazem para/com ela, segundo as próprias crianças (continua)
Periodicidade da leitura para/com
a criança em casa
F %
Às vezes
Quando tem tarefa
Sempre
À noite
09
03
02
02
39,11
13,04
8,70
8,70
362
Nos finais de semana e feriados
Todo dia
Na hora de dormir
Só uma vez
Não informou
02
01
01
01
02
8,70
4,35
4,35
4,35
8,70
Total 23 100
Tabela 30 – Distribuição das crianças quanto ao gosto pela escrita
Gostam de escrever F %
Sim
Não
Mais ou menos
Não opinaram
20
02
01
00
86,95
8,70
4,35
0,00
Total 23 100
Tabela 31 Distribuição das crianças sobre quando e em que lugar fazem uso da
escrita
Quando e onde escrevem F %
Na escola
Em casa
Todo dia
No computador
Quando escreve carta, música,
recado, convite
Não informou
11
11
03
02
01
02
47,83
47,83
13,04
8,70
4,35
8,70
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças disseram
que escrevem em diferentes situações. O percentual foi calculado tendo por base os 23
sujeitos que participaram da entrevista.
Tabela 32 Distribuição das crianças por tipo de materiais escritos que possuíam
em casa, segundo os pais
Tipo de material escrito F %
Livros
Revistas
Jornais
Correspondências pessoais
Não informou
17
14
12
05
01
73,91
60,87
52,17
21,74
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque os familiares informaram
mais de um tipo de material escrito. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos
que participaram do estudo.
363
Tabela 33 – Distribuição das crianças conforme os títulos de livros, revistas e jornais
que circulam no ambiente familiar, citados pelos pais
Títulos de livros, revistas e jornais F %
Livros de literatura infantil
Jornal A tribuna
Revista Veja
Jornal Notícia Agora
Gibis
Livros didáticos
Revista Isto é
Bíblia
Revista Caras
Jornal A Gazeta
Revista da Igreja
Revista Comunhão
Livro de poesias
Revista Natura
Revista Época
Revista Cláudia
Revista Recreio
Revista Class
Não informou
13
10
05
04
04
04
04
03
02
02
01
01
01
01
01
01
01
01
02
56,52
43,48
21,74
17,39
17,39
17,39
17,39
13,04
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
8,70
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque os familiares informaram
diversos títulos. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos que participaram do
estudo.
Tabela 34 Distribuição das crianças de acordo com os familiares que colaboram
na realização das tarefas escolares, segundo as próprias crianças
Familiares que colaboram nas
tarefas de casa
F %
A mãe
O pai
A avó
O irmão / a irmã
A tia
A prima
Várias pessoas
Realiza as tarefas sem ajuda
Não respondeu
13
07
02
02
01
01
01
02
01
56,52
30,43
8,70
8,70
4,35
4,35
4,35
8,70
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque algumas crianças
informaram mais de um familiar. O percentual foi calculado tendo por base os 23 sujeitos
que participaram da entrevista.
364
Tabela 35 – Distribuição das crianças de acordo com o grau de autonomia no uso da
escrita em casa, conforme opinião dos pais
Quando necessita usar a escrita
em casa, a criança:
F %
Às vezes solicita ajuda de outra
pessoa
Sempre solicita ajuda de outra
pessoa
Geralmente escreve sozinha
Não faz uso da escrita
Não respondeu
09
08
04
00
02
39,13
34,78
17,39
0,00
8,70
Total 23 100
Tabela 36 Distribuição das crianças de acordo com a importância atribuída ao
aprender a ler e a escrever
Aprender a ler e a escrever para
as crianças
F %
É importante
Não é importante
23
00
100
0,00
Total 23 100
Tabela 37 Distribuição das crianças de acordo com as razões explicitadas para
justificar a importância de aprender a ler e escrever
Razões apresentadas pelas
crianças
F %
Referentes aos usos da
linguagem escrita no contexto
escolar com uma preocupação
voltada para o ingresso no ensino
fundamental e para a realização
de tarefas escolares
Referentes aos usos cotidianos
da escrita, incluindo situações
prazerosas de leitura
Referentes a uma preocupação
com o futuro
Não souberam responder
12
07
02
02
52,17
30,43
8,70
8,70
Obs.: O percentual foi calculado com base nas 23 crianças que participaram da entrevista.
365
Tabela 38 Distribuição das crianças conforme respostas apresentadas pelos pais
quanto à importância de aprender a ler e escrever
Aprender a ler e a escrever para
os pais
F %
É importante
Não é importante
Não respondeu
22
00
01
95,65
0,00
4,35
Total 23 100
Tabela 39 – Distribuição das crianças conforme as razões atribuídas pelos pais para
a importância do aprender a ler e escrever
Razões oferecidas pelos pais F %
Projão para o futuro /
crescimento profissional
Vida em sociedade / exercício da
cidadania
Vida escolar
Auto-estima
Direito da criança
Não respondeu
13
09
03
02
02
01
56,52
39,13
13,04
8,70
8,70
4,35
Obs.: Esta tabela não apresenta o total de cem por cento porque alguns pais explicitaram
mais de uma razão para a importância de aprender a ler e escrever. O percentual foi
calculado com base nos 23 sujeitos envolvidos no estudo.
Tabela 40 Opinião dos pais sobre a fase mais propícia para o aprendizado da
escrita
Melhor fase para a criança
aprender a escrever
F %
No pré/alfabetização
Desde o berçário
No jardim de infância
Na 1ª série
Do pré a 1ª série
Do pré até se formar
Não existe fase
Não informou
15
02
01
01
01
01
01
01
65,20
8,70
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
4,35
Total 23 100
Obs.: Percentual calculado tendo por base os 23 sujeitos que participaram do estudo.
366
APÊNDICE N – LEVANTAMENTO DOS DIAS EM CAMPO
Mês
Dias de observação participante em
sala de aula
Dias em que foram
realizadas outras
atividades em campo
Total
Março
30 01 dia
Abril
07, 08, 13, 14, 25, 26 06 dias
Maio
09, 11, 17, 18, 24, 25, 31
03, 06, 19
10 dias
Junho
02, 07, 08, 09, 14, 22, 23, 24, 29, 30
06
11 dias
Julho
12, 13, 19, 20
-
04 dias
Agosto
03, 04, 09, 10, 12, 17, 23, 24, 25,
30, 31
15
12 dias
Setembro
02, 06, 14, 16, 20, 27, 29
-
07 dias
Outubro
07, 11, 14, 25
-
04 dias
Novembro
01, 08, 09, 10, 16, 18, 22, 23, 25,
29, 30
18
12 dias
Dezembro
02, 06, 09, 12, 13
19, 20
08 dias
TOTAL 60 dias 15 dias
75 dias
Quadro 1 – Levantamento dos dias em campo
367
APÊNDICE O – TÉCNICAS DE OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
Forma de registro
Evento Data
Diário de
campo
Fotos Audiovisual
(fotográfica)
Audiovisual
(VHS)
01 9-5-2005 X
02 11-5-2005 X X
03 17-5-2005 X X
04 18-5-2005 X
05 24-5-2005 X X
06 25-5-2005 X
07 31-5-2005 X X
08 2-6-2005 X X
09 7-6-2005 X X
10 8-6-2005 X X
11 9-6-2005 X X
12 14-6-2005 X X X
13 22-6-2005 X X
14 23-6-2005 X
15 24-6-2005 X
16 29-6-2005 X X
17 30-6-2005 X X X
18 12-72005 X X
19 13-7-2005 X X
20 19-7-2005 X X X
21 20-7-2005 X X X
22 3-8-2005 X X
23 4-8-2005 X X
24 9-8-2005 X X
25 10-8-2005 X X
26 12-8-2005 X X
27 17-8-2005 X X X
28 23-8-2005 X X X
29 24-8-2005 X X X
30 25-8-2005 X X X
31 30-8-2005 X X X
32 31-8-2005 X X X
33 2-9-2005 X X X
34 6-9-2005 X X X
35 14-9-2005 X X X
36 16-9-2005 X X X
37 20-9-2005 X X X
38 27-9-2005 X X
39 29-9-2005 X X X
40 07-10-2005 X X
41 11-10-2005 X X X
42 14-10-2005 X X X
43 25-10-2005 X X X
44 1-11-2005 X X X
45 8-11-2005 X X X
46 9-11-2005 X X X
47 10-11-2005 X X X
48 16-11-2005 X X
49 18-11-2005 X X
50 22-11-2005 X X
51 23-11-2005 X X X
52 25-11-2005 X
53 29-11-2005 X X X
54 31-11-2005 X X X
55 2-12-2005 X X X
56 6-12-2005 X X X
57 9-12-2005 X
58 12-12-2005 X
59 13-12-2005 X X X
60 14-12-2005 X
TOTAL 60 50 07 22
Quadro 2 – Técnicas de observação participante
368
APÊNDICE P – FOTOS QUE COMPÕEM O CORPUS DA PESQUISA
Natureza das fotos
Evento: Data
Textos das
crianças
Textos usados
em aula
Movimentos dos
sujeitos
Total
02: 11-5-2005 10 10
03: 17-5-2005 01 01
05: 24-5-2005 03 03
07: 31-5-2005 06 06
08: 2-6-2005 03 03 06
09: 7-6-2005 04 04
10: 8-6-2005 04 04
11: 9-6-2005 04 01 05
12: 14-6-2005 09 08 17
13: 22-6-2005 10 02 03 15
16: 29-6-2005 01 01
17: 30-6-2005 05 05
18: 12-7-2005 07 07
19: 13-7-2005 05 01 06
20: 19-7-2005 18 16 34
21: 20-7-2005 09 02 09 20
22: 3-8-2005 09 09
23: 4-8-2005 06 16 22
24: 9-8-2005 12 12
25: 10-8-2005 16 06 22
26: 12-8-2005 01 01 02
27: 17-8-2005 09 09
28: 23-8-2005 17 06 05 28
29: 24-8-2005 02 07 09
30: 25-8-2005 06 01 02 09
31: 30-8-2005 11 02 13
32: 31-8-2005 05 02 07
33: 2-9-2005 20 15 02 37
34: 6-9-2005 02 02
35: 14-9-2005 53 53
36: 16-9-2005 01 01
37: 20-9-2005 14 14
38: 27-9-2005 11 11
39: 29-9-2005 19 19
40: 7-10-2005 07 07
41: 11-10-2005 09 09
42: 14-10-2005 06 06
43: 25-10-2005 21 21
44: 1-11-2005 15 06 21
45: 8-11-2005 04 04
46: 9-11-2005 11 04 15
47: 10-11-2005 18 18
48: 16-11-2005 02 02
49: 18-11-2005 01 01
50: 22-11-2005 12 04 16
51: 23-11-2005 20 01 21
53: 29-11-2005 06 03 09
54: 31-11-2005 01 01 02
55: 2-12-2005 19 03 01 23
56: 6-12-2005 08 01 09
59: 13-12-2005 20 03 23
Total 476 57 97 630
Quadro 3 – Fotos que compõem o corpus da pesquisa
369
APÊNDICE Q – EVENTOS OBSERVADOS EM SALA DE AULA
SITUAÇÕES DE PRODUÇÃO ESCRITA
Gêneros
textuais
Evento: data Contexto de produção Proposta de produção
02.2:
11-5-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Dia das mães
Compor uma história com
quatro quadrinhos,
observando começo, meio e
fim
07:
31-5-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Contar uma história em três
quadrinhos, com começo,
meio e fim, usando balões de
fala
20:
19-7-2005
Projeto de literatura:
História em quadrinhos
Contar uma história diferente,
usando os balões de fala
pesquisados em aula
23.2:
4-8-2005
Projeto de literatura:
Fábula O galo e a
raposa
Contar a história do galo e da
raposa por meio de quatro
quadrinhos, usando balões de
fala
47:
10-11-2005
Projeto de literatura
Narrativa em versos: O
que tem nessa venda?
Compor uma história em
quadrinhos, com quatro cenas,
contando uma situação de
compra
Histórias em
quadrinhos
53:
29-11-2005
Projeto de literatura:
Histórias da Eva
Furnari
Produzir uma história em
quadrinhos, com três cenas, no
estilo da Eva Furnari
02.1:
11-5-2005
Dia das Mães:
quadrinhos de Amarildo
(A Gazeta, 08/05/2005)
Contar o que aconteceu na
história produzida por
Amarildo
21.2:
20-7-2005
Projeto de literatura:
Quadrinhos Cadê a
Dilly?
Narrar coletivamente o que
aconteceu na história com
registro individual
39.2:
29-9-2005
Avaliação das escritas
seguida de reunião de
pais
Escrever o que está
acontecendo na história em
quadrinhos intitulada Violência
54:
30-11-2005
O trabalho com
quadrinhos: texto de
Maurício de Souza,
sem recursos de fala.
Narrar coletivamente a história
com a professora como a
escriba do texto.
55:
2-12-2005
Diagnóstico das
escritas das crianças
Escrever uma seência
narrativa simples, elaborada
coletivamente, a partir do texto
Sol e Lua (Eva Furnari)
Reescrita a
partir de
quadrinhos
59:
13-12-2005
O trabalho com
quadrinhos: Eva
Furnari
Montar a seqüência de
vinhetas e narrar a história O
elefante (em duplas)
370
10:
8-6-2005
Fórum da Educação
Infantil na Rede
Municipal de Vitória
Dizer do que não gosta na
escola, por meio da escrita, e
do desenho para participar da
enquete realizada na escola
11:
9-6-2005
Fórum da Educação
Infantil na Rede
Municipal de Vitória
Dizer do que gosta na escola,
por meio da escrita, e do
desenho para participar da
enquete realizada na escola
32:
31-8-2005
Projeto institucional
sobre os direitos da
criança
Expor opinião sobre o trabalho
infantil por meio da linguagem
escrita, numa elaboração
coletiva de idéias, a partir da
leitura de fotos
33:
2-9-2005
Exposição de trabalhos
literários na escola
Escrever um recado para os
autores dizendo o que
acharam da história
Chapeuzinho Laranja
35.1:
14-9-2005
Projeto institucional
sobre os direitos da
criança
Dizer, usando baes de fala, o
que acham que as criaas das
fotos eso pensando enquanto
trabalham
35.2:
14-9-2005
Projeto institucional
sobre os direitos da
criança
Expor opiniões sobre o
trabalho infantil a partir da foto
de uma criança trabalhando,
numa elaboração escrita
individual
43:
25-10-2005
Comemorações do dia
das crianças na escola
Escrever sobre o que
gostaram nas atividades da
semana da criança realizada
na escola
Texto de
opinião
51:
23-11-2005
Projeto institucional:
direitos da criança
Escrever o que pensa sobre a
falta de moradia
09:
7-6-2005
Fórum da Educação
Infantil na Rede
Municipal de Vitória
Comunicar, por meio de
relatório elaborado
coletivamente com registros
individuais das crianças, como
foi a escolha do representante
da turma para participar do
fórum
16:
296-2005
Visita de estudos ao
Centro de Educação
Ambiental da
Companhia Sidergica
de Tubarão
Contar para a mãe e para as
pessoas que não conhecem o
local como foi a visita de
estudos, usando a linguagem
escrita (em duplas)
Relatórios
17.2:
30-6-2005
Visita de estudos ao
Parque Botânico da
Companhia Vale do
Rio Doce
Relatar como foi a visita de
estudos ao parque botânico,
primeiro com a professora
sendo a escriba e depois
digitando o texto
371
04:
18-5-2005
Projeto institucional
Direitos das crianças: o
direito de brincar
Escrever uma lista com os
nomes de brincadeiras ditados
pela professora
35.3 e 36:
14-9-2005
16-9-2005
Falta de material para
as crianças realizarem
os trabalhos em sala
de aula
Listar os materiais que estão
faltando no estojo para
encaminhar à pedagoga,
primeiro individualmente e
depois com levantamento feito
pela professora
Lista de
palavras
41:
11-10-2005
Dia das crianças:
relatos na roda de
conversa
Escrever uma lista com os
nomes dos brinquedos que
irão ganhar no dia das
crianças
03:
17-5-2005
Projeto institucional Os
direitos da criança:
direito de brincar
Recontar o que aconteceu nas
cenas, criando um final para a
história: O menino e seu
barquinho
Reconto
25:
10-8-2005
Entrada do gênero
fábula com a chegada
da nova professora
Criar um final diferente para a
fábula A raposa e a cegonha
Relato
Pessoal
44:
1-11-2005
Relatos na roda a partir
da hisria Luli, a foca
Narrar um momento legal
vivido em família
Poema
29:
24-8-2005
Projeto institucional
Direitos das crianças:
música Criança não
trabalha
Criar um poema com as
coisas que as crianças
gostariam que tivessem na
música, usando rimas, tendo a
professora como escriba do
texto
Carta de
solicitação
46:
9-11-2005
Problema observado
pelas crianças com o
cachorro da vizinha,
uma funcionária que
trabalha na escola
Escrever uma carta (em
duplas) para a dona do
cachorro convencendo-a a
cuidar melhor do mesmo
Bilhete
45:
8-11-2005
Acordos para trazer
brinquedo para a
escola
Elaborar, coletivamente, um
bilhete para os pais
informando-os sobre o dia do
brinquedo na escola
OUTRAS SITUAÇÕES OBSERVADAS
Atividades que
focalizaram o
desenho
08:
2-6-2005
Projeto institucional Os
direitos da criança:
direito de estudar
Dizer o que achou da obra
A escola (Velasquez) e
fazer um desenho
comparando a escola
retratada na obra a própria
escola
372
06:
25-5-2005
Aula no laboratório de
informática
Desenhar a história dos
Zoombines, um jogo em
CD rom
13.1:
22-6-2005
Preparação para a visita
ao Parque da Vale
Desenhar as coisas que
acham que têm no
parque
17.1:
30-6-2005
Visita ao Parque
Botânico da Companhia
Vale do Rio Doce
Desenhar as coisas que
observou no parque para
comparar com o que
produziu antes da visita
22:
3-8-2005
Primeiro dia de aula com
a nova professora
Desenhar os
personagens da história
Os três porquinhos
24:
9-8-2005
Entrada do gênero
fábula na sala de aula
Desenhar um final
diferente para a história
27: 17/08/05 Projeto institucional Os
direitos da criança:
trabalho infantil
Expor opinião sobre o
trabalho infantil por meio
do desenho – uso parcial
da escrita
31:
30-8-2005
Produção do poema
Criança tem direito de
brincar
Desenhar as coisas
citadas no poema
34:
6-9-2005
Exposição de trabalhos
lierários na escola:
história O bebê de
Cinderela
Contar o que gostou na
história por meio do
desenho
37:
20-9-2005
Projeto institucional
Direitos da criança: a
nossa escola
Desenhar a professora
cujo nome deu origem
ao nome da escola
38.2:
27-9-2005
Trabalho infantil: música
Criança não trabalha
Desenhar crianças
trabalhando e crianças
dando trabalho
01:
9-5-2005
Oficina realizada com os
familiares: brincadeira
de criança
Escrever coletivamente
os nomes das
brincadeiras desenhadas
pelos pais
05:
24-5-2005
Festa Junina:
preparação para a
dança Caiu no laço
Copiar a estrofe da
música observando os
espaços entre palavras
12:
14-6-2005
Diagnóstico dos níveis
de escrita das crianças
Trabalho com a sica
Be-a-bá: projeto direitos
das crianças
Escrever palavras da
música escolhidas pelas
crianças e ditadas pela
professora ou frases
elaboradas com palavras
da música
Atividades
destinadas ao
trabalho com o
sistema
lingüístico
13.2:
22-6-2005
Avaliação das escritas
das crianças com a
música Be-a-bá
Reescrita das palavras e
frases produzidas no dia
14-6 para apresentar na
reunião de pais
373
18:
12-7-2005
Visita ao Parque da Vale
Digitar uma parte do
texto produzido no dia
30-6-2005 sobre a visita
de estudo
19:
13-7-2005
Visita ao Parque da Vale
Corrigir a parte do texto
digitada observando o
espaço entre as palavras
21.1:
20-7-2005
Projeto de literatura:
histórias em quadrinhos
Montar um cartaz com os
tipos de baes
encontrados nas
revistinhas
23.1:
4-8-2005
História Os três
porquinhos contada no
primeiro dia da nova
professora
Pintar e caçar letras dos
nomes dos personagens
ou desenhá-los e
escrever seus nomes
26:
12-8-2005
Projeto de literatura:
histórias em quadrinhos
Produzir coletivamente
uma legenda para
destacar na história as
onomatopéias, narração
e fala das personagens
28:
23-8-2005
- Projeto de literatura:
histórias em quadrinhos
Montar um cartaz com
as onomatopéias
produzidas pelas
crianças
30:
25-8-2005
- Projeto institucional
Direitos das crianças
Produzir coletivamente
uma legenda para
marcar no poema
Criança não trabalha as
coisas de que gostam e
não gostam
38.1:
27-9-2005
- Exploração das
relações grafia-som com
palavras da música
Criança não trabalha
Encontrar no texto as
palavras indicadas
observando número de
letras, letra inicial e final
39.1:
29-9-2005
- Avaliação dos níveis
de escrita das crianças
para reunião de pais
Escrever uma lista de
palavras das coisas que
aparecem na história em
quadrinhos Violência
42:
14-10-2005
- Avaliação das escritas
seguida de reunião de
pais
Reescrever, com ajuda
da professora, o texto
produzido sobre os
quadrinhos Violência
48:
16-11-2005
- Uso da apostila Preencher cruzadinha
50:
22-11-2005
- Trabalho com a narrativa
em versos O que tem
nessa venda?
Criar novas rimas para o
poema, completando o
texto lacunado
56:
6-12-2005
Diagnóstico das escritas
das crianças
Reescrever a história Sol
e Lua
Quadro 4 – Eventos observados em sala de aula
374
APÊNDICE R: LEVANTAMENTO DAS TRANSCRIÇÕES EFETUADAS
Evento Data Tempo
12: Diagnóstico II - Música “Be-a-bá” 14-6-05 3’10
17: Relatório da visita ao Parque Botânico da Vale do Rio Doce 30-6-05 6’45
20: Produção de quadrinhos usando tipos de baes pesquisados 19-7-05 4’25
21.1: Cartaz com tipos de balões 20-7-05 2’45
21.2: História em quadrinhos: “Cadê a Dilly” 20-7-05 7’55
27: Trabalho infantil: o que diz a Serafina 17-8-05 6’48
28: Onomatopéias 23-8-05 56’30
29: Poema “Criança tem direito de brincar” 24-8-05 2: 04’00
30: Leitura do poema “Criança não trabalha” 25-8-05 12’25
32: Opiniões sobre o trabalho infantil a partir de imagens 31-8-05 49’54
33: Visita à exposição de trabalhos do grupo quatro 2-9-05 43’42
35.1: Colocando-se no lugar das crianças que trabalham 14-9-05 1: 04’00
35.2: Minha opinião sobre o trabalho infantil 14-9-05 14’20
35.3: Lista de material escolar 14-9-05 10’10
36: Levantamento do material escolar solicitado pelas crianças 16-9-05 3’21
39: Diagnóstico III - “Violência” 29-9-05 1: 30’00
41: Dia das crianças – lista de brinquedos 11-10-05 1: 10’45
42: Reescrita do texto “Violência” 14-10-05 1: 39’00
43: Semana da criança na escola 25-10-05 32’04
44: Momentos em família 1-11-05 2’18
45: Brinquedo na sala de aula 8-11-05 29’14
46: “Um dia de cão” 9-11-05 1: 20’45
47: “O que tem nessa venda” 10-11-05 1: 17’00
51: O direito à moradia – Poema “Sem casa” 23-11-05 1: 43’21
53: Quadrinhos de Eva Furnari 29-11-05 1: 05’44
54: “O passeio da Mônica” 30-11-05 59’00
55: Quadrinhos de Eva Furnari – “Sol e Lua” 2-12-05 28’00
56: Quadrinhos de Eva Furnari Reescrita do texto “Sol e Lua 6-12-05 35’00
59: Quadrinhos de Eva Furnari – “O elefante” 13-12-05 29’49
TOTAL: 29 EVENTOS
Quadro 5 – Eventos em que foram efetuadas transcrições
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo