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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária da UFSCar
V592ed
Vettorassi, Andréa.
Espaços divididos e silenciados: um estudo sobre as
relações sociais entre nativos e os “de fora” de uma cidade
do interior paulista / Andréa Vettorassi. -- São Carlos :
UFSCar, 2006.
183 p.
Dissertação (Mestrado) -- Universidade Federal de São
Carlos, 2006.
1. Migração. 2. Conflito social. 3. Relações sociais. 4.
Violência simbólica. I. Título.
CDD: 304.8 (20
a
)
Andréa Vettorassi
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3
Andréa Vettorassi
ESPAÇOS DIVIDIDOS E SILENCIADOS:
Um estudo sobre as relações sociais entre nativos e os “de fora” de
uma cidade do interior paulista
Comissão Julgadora
DISSERTAÇÃO PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE MESTRE
Presidente e Orientadora: Profa. Dra. Maria Aparecida de Moraes Silva
2° Examinador: Prof. Dr. Fernando Antônio Lourenço
3° Examinador: Profa. Dra. Tânia Pellegrini
Membro Suplente: Profa. Dra. Maria da Glória Bonelli
São Carlos
2006
Espaços Divididos e Silenciados
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Dedico este trabalho
Aos meus pais, Silvia e Marco, pela vida sempre bem vivida;
Aos meus avôs, Bima, Laedir (in memorian), Zeza e Oswaldo (in memorian), pela
preservação de nossa história e memória;
Aos meus irmãos, Breno e Tássia, sobretudo pela fraternidade;
Ao Francisco, pela parceria e apoio incondicionais.
Andréa Vettorassi
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Agradecimentos
Ao longo da elaboração e confecção deste trabalho, tive a oportunidade de compartilhá-lo
com inúmeras pessoas, dos mais diversos universos. Talvez muitas destas pessoas e universos
não seriam hoje parte de meu cotidiano se não fosse a escolha deste objeto de pesquisa para o
Mestrado, e é por isto que tive o maior prazer e satisfação em desenvolvê-lo. Ele me
possibilitou tantos contatos, amizades, trocas, alegrias, descobertas! Ele foi muito além das
oportunidades oferecidas pela pesquisa em si, pois capacitou a transformação da minha
maneira de ser, estar e agir no mundo. Por isso as pessoas e instituições citadas abaixo não são
meramente parte dos formais agradecimentos. Todas elas merecem meu mais profundo,
emocionado e respeitoso MUITO OBRIGADA!
À Profa. Dra. Maria Aparecida de Moraes Silva, que com toda sua sabedoria, dedicação e
cumplicidade, já enfrentou inúmeros “estrelos” e “estrelas” por nós, seus orientandos. O que
posso dizer a você neste momento, Moraes, senão que foi muito além da função de
orientadora? Obrigada por ter sido sempre fonte de inspiração;
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo necessário
apoio financeiro;
À Pastoral do Migrante de Guariba, em especial a Ir. Inês, Ir. Fátima e Pe. Garcia, porque são
ativos protagonistas da História aqui contada. Admiro muito todo o trabalho por vocês
realizado, e espero poder sempre apoiá-lo;
Aos homens e mulheres de Guariba, nativos ou “de fora”. Embora alguns estivessem mais à
vontade que outros, de nenhum deles ouvi um taxativo “não”;
Aos funcionários do Fórum da Comarca de Guariba, todos tão prestativos e curiosos com a
chegada da “pesquisadora da UFSCar”! Creio que ainda temos outros trabalhos pela frente!
A Jadir e Carlinhos, que conheci através da Pastoral do Migrante e se tornaram, ao longo
deste trabalho, queridos amigos. É uma satisfação tê-los por perto!
Ao “Laboratório de Memória e Sociedade”, a saber: Fábio Kazuo Ocada, Stela Godoi,
Rodrigo Martins, Adriana Marcela Bogado, Carmen Silvia Andriolli, Claudirene Bandini,
Beatriz Melo e Juliana Bueno. Em meio a trabalhos tão intimistas como os da pós-graduação,
fomos capazes de unir forças, pensamentos e pesquisas tão diversas. Nossa união é, sem
dúvidas, rara!
Espaços Divididos e Silenciados
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Aos Professores Doutores Tânia Pellegrini (UFSCar), João Roberto Martins Filho (UFSCar),
Maria da Glória Bonelli (UFSCar), Fernando Antônio Lourenço (UNICAMP) e Beto Novaes
(UFRJ). Professores como vocês ainda nos fazem crer na pesquisa e na docência;
Às secretárias do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da UFSCar, com particular
carinho à Ana Maria. Nossas conversas me renderam muitos desabafos e risadas!
Ao Centro de Memória da UNICAMP (CMU) e ao Centro de Estudos Rurais e Urbanos da
USP – São Paulo (CERU), por me possibilitarem o aperfeiçoamento e enriquecimento da
pesquisa;
A Dona Therezinha e Seu Euclides, que me ofereceram estada em Guariba ao longo da
pesquisa de campo e se tornaram verdadeiros mediadores de tantas entrevistas. Tudo ficou
mais fácil após esta inesperada ajuda!
Aos tantos amigos e amigas, alguns de longos anos, outros de poucos meses, todos tão
essenciais. Mesmo tendo consciência de que, citando nomes, corro o risco de omitir alguns
muito importantes, ainda assim quero fazê-lo: Dharana Pérola Ricardo Sestini (uma mamãe
linda!), Camila Maria Risso Salles (futura diplomata!), Fernanda Xavier da Silva (amiga
leal!), Juliana e Júnior (compadres!), Marcos Pinheiro (irmãozão!), Joana Miranda Espinosa
(irmãzona!) Aline Prado Atássio, Luciana Rudi, Éder Carvalho, Olga Vasquez, Danilo
Morais, Pedro Floriano Ribeiro... Obrigada!
Ao Coral Multicanto e todos os seus coralistas, aonde venho há três anos não só soltando a
voz, mas também desabafos, ansiedades, cansaço...
À minha querida sogra Léa Silvia Barnabé Ferreira, que muito antes de ser sogra, já era uma
grande amiga! Obrigada pelas comidinhas, conversas, risadas, companhia, carinho... Enfim,
por ter sempre feito eu me sentir em casa;
Ao Breno Vettorassi, que confeccionou mapas no Photoshop, montou banco de dados,
digitalizou arquivos, elaborou um pôster (primeiro colocado no Congresso da Sociedade
Brasileira de Sociologia!), tudo para que o trabalho da “menina dos cabelos de fogo” ficasse
lindo! Coisa de irmão...
Ao meu amor, Francisco Barnabé Ferreira, sempre tão por perto... Nossa parceria, no trabalho
e na vida, ainda tem muita estrada;
Enfim, a toda a minha família, torcedores por minha alegria. Vocês são, afinal, meus
alicerces!
Andréa Vettorassi
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Resumo
Este estudo pretende compreender, sob a perspectiva metodológica da
História Oral e com dados quantitativos, a construção e reprodução das múltiplas
identidades e sociabilidades existentes entre os trabalhadores rurais, de origem mineira e
nordestina, que migram para Guariba, cidade-dormitório de economia sucroalcooleira do
interior de São Paulo. Para tornar possível esta compreensão, foi necessário determinar em
quais contextos estas identidades e sociabilidades são construídas, ou seja, de que forma a
comunidade circundante, com seus pensamentos, memórias e valores, interfere nestas
relações sociais. Percebemos que, entre os dois grupos, existe uma dicotômica e dialética
relação baseada em preconceitos e violência simbólica, como também em uma
estereotipada conexão migrantes – criminalidade, que em Guariba é ainda mais perceptível
devido à Greve dos trabalhadores rurais de 1984. Esta dicotômica relação é viabilizada a
partir de uma ideologia que perpassa todos os grupos sociais de Guariba, e que divide a
cidade entre os que denominamos “nativos” (de descendência européia, moradores do
centro da cidade, representantes da classe média e brancos) e “de fora” (migrantes mineiros
e nordestinos, moradores de bairros periféricos, representantes da classe baixa e negros).
Frente aos estigmas do grupo nativo a que estão submetidos, os “de fora”, por serem um
grupo heterogêneo, têm reações diversas e multifacetadas, que podem ser divididas entre
três subgrupos: os “de fora” migrantes sazonais, os “de fora” migrantes estabelecidos em
Guariba há décadas e os “de fora” pertencentes à segunda e terceira geração de migrantes.
Homens e mulheres que migram anualmente, durante a safra e a entressafra da cana-de-
açúcar, exercem papéis sociais diferentes nas cidades que os recebem e em sua terra natal.
Ao voltarem para as terras de origem, quando bem sucedidos nas lavouras de cana do
interior paulista, recebem uma diferenciação social e cultural a partir de suas novas
identidades e bens materiais. Ainda no “mundo moderno” em que migraram, a relação é
inversa. Os meios de sociabilidade são escassos e tensos, com bases discriminatórias, uma
vez que, para a comunidade nativa, os migrantes são representantes de um mundo
tradicional e indesejado. Os migrantes que vivem na cidade há mais tempo já conseguem
ampliar seus vínculos de sociabilidade, que ganham os espaços dos bairros periféricos em
que moram. No entanto, sabem que existem locais da cidade em que não são bem vindos,
ao mesmo tempo em que rememoram e revivem os locais de suas terras de origem, onde se
sentem verdadeiramente no “lugar da gente”: quanto mais migram, mais ficam no mesmo
lugar. O representante da segunda e terceira geração de migrantes, por sua vez, se
considera (e de fato é) cidadão guaribense, fruto das relações modernas paulistas, e por isto
entende que todos os espaços da cidade são seus por direito. No entanto, por também ser
considerado “de fora”, percebe com facilidade os estigmas a que está submetido, e acaba
mais suscetível às relações de violência, o que nos leva a crer que a violência simbólica do
nativo viabiliza entre este grupo uma violência real. O migrante, enfim, não experimenta
apenas o encontro entre os diferentes, mas vivencia, acima de tudo, as desigualdades e
disparidades sociais das cidades paulistas. A relação que os migrantes têm com a
comunidade circundante mascara um preconceito de cor/raça, como também de classe,
contra este grupo que nunca será “nós”; será sempre “o de fora”.
Palavras-Chave: História Oral; migração; sociabilidade; Guariba; trabalhadores rurais;
violência simbólica; ideologia; identidades sociais.
Espaços Divididos e Silenciados
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Abstract
This study aims at understanding, through the methodological perspective of Oral
history and making use of quantitative data, the construction and reproduction of multiple
identities and sociabilities present among the rural workers natural from the Minas Gerais
state and the Brazilian northeast region, and who have migrated to Guariba, a bedroom
community in the interior of the São Paulo state whose economy is based on the sugarcane
industry. In order to make this understanding possible, it has been necessary to determine
in which contexts these identities and sociabilities are built, that is, how the surrounding
community, with its ideas, thoughts and values, interferes in these social relations. It has
been made clear to us that, between the two groups, there is a dichotomic and dialectic
relation based on prejudice and symbolic violence, as well as a stereotyped connection
between immigrants-criminality, which is clearer in Guariba due to a rural workers strike
in 1984. This dichotomic relation is made possible by an ideology which permeates all the
social groups in Guariba, and which divides the city between those we have called the
“natives” (European descendants, downtown dwellers, middle class and white) and the
“outsiders” (migrants from Minas Gerais and the northeastern states of Brazil, living in the
suburbs, low class and black). When facing the stigma of the native group, the “outsiders”,
being a heterogeneous group, have different and multi-faceted reactions, which can be
subdivided in three groups: the seasonal migrant “outsiders”, the Guariba long-time living
“outsiders” and the “outsiders” who belong to the second and third generations of migrants.
Men and women who migrate yearly, during the sugarcane harvest, play different social
roles in the cities where they are migrate to and their hometowns. When coming back to
their home land, if they have been successful in the sugarcane plantations of the São Paulo
interior, they are entitled to social and cultural differentiation according to their new
identities and wealth. On the other hand, in the “modern world” where they have migrated
to the relation is the opposite. The means of sociability are scarce and tense, with
discriminatory basis, since for the native community the migrants are representatives of a
traditional and undesirable world. The migrants that have lived in the city for more time are
able to widen their sociability bonds, which spread in the suburban neighborhoods where
they live. Nevertheless, they know there are places in the city where they are not welcome,
and at the same time they recollect and revive their home land, where they feel really “at
home”: the more often they migrate, the longer they stay in the same place. The
representatives of the second and third generations of migrants, on the other hand, consider
themselves (and in fact are) Guariba citizens, fruits of the modern relations in the São
Paulo state, and for this reason they believe that all the places in the city belong to them by
rights. However, because they are also considered “outsiders”, they easily notice the
stigmas they are submitted to, and end up being more susceptible to violence relations,
which makes us think that the natives symbolic violence is turned into real violence among
this group. Finally, the migrants not only experiment the reunion of the different, but they
live, above all, the inequalities and social differences of the cities and towns of the São
Paulo state. The relation the migrants have with the surrounding community disguises
color/race as well as social class prejudice against this group, which will never be “us”;
they will always be “outsiders”.
Key words: Oral history; migration; sociability; Guariba; rural workers; symbolic violence;
ideology; social identities.
Andréa Vettorassi
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Sumário
Introdução_____10
CAP. I – Contextualizando Guariba: a cidade das contradições______19
1.1 A Cidade do Café________21
1.2 A Cidade da Cana-de-Açúcar_________24
1.3 A Greve____________________________________29
CAP. II – A Ideologia Nativa____36
2.1 “Assim Guariba ficou, pura cana...”_______39
2.2 “Amizade agora é assim, só quando mora perto...”______44
2.3 Os Lugares da Memória e os Mapas Afetivos_________________58
2.4 A Árvore e o Machado______________________________________________67
CAP. III – Partindo para a Cidade Garantida e Proibida________77
3.1 Migrantes Temporários: sobre a migração de um novo homem simples_____81
3.2 Migrantes Estabelecidos: rememorando a partida e descrevendo a permanência__97
3.3 Representações Sociais dos “De Fora”: as cidades-dormitórios como periferização do
capital____________111
CAP. IV – Galeria de Fotos______119
4.1 Fotografia: escrever com a luz_______120
4.2 Migrantes Temporários_________________124
4.3 Migrantes Estabelecidos______________________139
4.4 Ruas e Casas do Centro da Cidade__________________149
À Guisa de Conclusão___________158
Fontes Consultadas_________________166
Apêndice________________________________173
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
10
Introdução
Andréa Vettorassi
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11
Introdução
A idealização do projeto de mestrado “Espaços Divididos e Silenciados: um
estudo sobre as relações sociais entre nativos e os “de fora” de uma cidade do interior
paulista”, surgiu a partir do desenvolvimento, ao longo de dois anos (período entre agosto de
2001 e agosto de 2003), do projeto “Imigrantes Portugueses e Criminalidade em São Carlos”
1
.
Nesta pesquisa de iniciação científica, as principais fontes de dados foram os processos
criminais do fim do século XIX, ou seja, uma pesquisa fundamentalmente documental, já que
nossos objetivos visavam a um maior entendimento das relações sociais que os imigrantes e
brasileiros mantinham uns com os outros e quais os principais motivos que faziam com que
estes cometessem crimes na época. Os processos criminais se mostraram fontes muito
expressivas para se avaliar sob que condições os imigrantes foram recebidos pela sociedade
brasileira e como, aos poucos e muitas vezes de forma traumática, conquistaram o direito de
usufruir a condição de cidadãos.
Sob a perspectiva de que a criminalidade possui sempre um contexto e um
substrato social, e que portanto merece, muito mais que a simples análise de sua ação, uma
vinculação às condições sociais, econômicas e culturais em que seus autores estão inseridos,
surgiu a idéia de manter o trabalho com a variável criminalidade, porém em um contexto
histórico atual, que é o da vinda dos migrantes sazonais para o corte da cana e colheita da
laranja a cidades paulistas. Baseava-me em velhos estigmas existentes na conexão migração-
criminalidade, e pretendia compreender até que ponto estes têm fundamento empírico. No
entanto, pouco sabia sobre as condições de vida destes homens e mulheres migrantes,
subtraídos das relações sociais, políticas e econômicas do interior paulista e, na maior parte
1
Sob orientação do Prof. Dr. Oswaldo Mário Serra Truzzi, do Dep. de Engenharia de Produção da UFSCar, e
com bolsa PIBIC/CNPq.
Espaços Divididos e Silenciados
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12
das vezes, subsistindo nas periferias pobres de cidades como São Carlos, Ribeirão Preto,
Araraquara e outras de menor porte.
Aos poucos, sob a orientação da Profa. Dra. Maria Ap. de Moraes Silva, que há
mais de trinta anos desenvolve pesquisas sobre os trabalhadores rurais, migrantes ou não, no
interior paulista, fui inserida neste universo, e pude traçar de forma mais cuidadosa meu
objeto de pesquisa, muito mais complexo e multifacetado do que poderia imaginar. O
contexto migratório engloba diversas relações sociais, culturais e econômicas, que não
raramente são ambíguas, contraditórias e conflituosas. Os sujeitos aqui considerados são
homens, mulheres, pobres, camponeses, originários de várias regiões do Brasil, tais como
estados nordestinos e Vale do Jequitinhonha-MG, e que por meio da migração (temporária ou
permanente) deslocam-se para a região de Ribeirão Preto – SP em busca de melhores
condições de vida. São, portanto, um grupo heterogêneo, que constantemente elabora novas
formas de ser, ver e estar no mundo e que reformula suas condutas e valores, ao mesmo tempo
em que busca fortalecer velhos laços familiares para o enfrentamento conjunto da existência.
Uma pesquisa-piloto, realizada em 2003, mostrou ser um método bastante
adequado para que um primeiro contato com o universo empírico fosse feito da melhor forma
possível. Tivemos, para a realização desta, a presença de um “porteiro”, um vínculo entre os
dois extremos, a linha que teceu o primeiro encontro e que estabeleceu os primeiros contatos.
Neste caso, quem abriu estas portas foi a Pastoral do Migrante, que mantém há mais de dez
anos sua sede em Guariba, cidade-dormitório do interior paulista. A Pastoral do Migrante
mantém vínculos com outras instituições, tais como as universidades e seus pesquisadores,
que tenham interesse pela questão migratória e, mais especificamente, pela migração sazonal
e o setor sucroalcooleiro. Guariba foi, assim, escolhida enquanto universo empírico, uma vez
que desde o início reconhecíamos a importância de um “porteiro” para o desenvolvimento da
pesquisa.
Andréa Vettorassi
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Mas Guariba é muito mais que a sede da Pastoral do Migrante. Até mesmo sob
uma perspectiva geográfica, Guariba mostrou-se ideal para uma melhor análise das relações
existentes entre os migrantes e a comunidade circundante, uma vez que sua periferia, onde
vivem os migrantes e seus descendentes, encontra-se na entrada da cidade e é extremamente
visível para os olhos de quem nela entra. Sob uma perspectiva histórica e política, Guariba é
significativa por ter sido palco, em 1984, de uma intensa e violenta greve dos trabalhadores
rurais, que se levantaram contra as precárias condições de vida a que eram submetidos, em um
regime de semi-escravidão. Após esta greve, Guariba passou a ser reconhecida como cidade
violenta e conflituosa, estigmas atribuídos especialmente aos trabalhadores rurais migrantes,
responsáveis pelas reivindicações de 84. Há, portanto, uma interessante relação migração-
criminalidade que vem sendo reproduzida, há pelo menos vinte anos, nas falas e cotidiano dos
moradores da cidade, e que nos pareceu passível de uma análise mais apurada.
Já nestas primeiras visitas a Guariba, observando seus cotidianos, seus espaços
geográficos, como também simbólicos e, especialmente, as relações sociais e culturais
exercidas entre os trabalhadores migrantes e os outros moradores mais antigos da cidade,
percebemos que, sob a máscara de uma cidade reconhecidamente criminosa e violenta,
poderiam existir outros aspectos e elementos em sua figuração social que necessariamente
deveriam ser pesquisados e analisados. Em uma primeira fase da pesquisa, mantínhamos
como principal fonte de dados os processos criminais da comarca de Guariba em que os réus
fossem migrantes, em busca de respostas à relação migração-criminalidade. A análise dos
processos criminais até então era fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, já que
estes são fontes importantes e expressivas, em especial porque são uns dos poucos
documentos impressos que registram a fala de uma maioria pobre, distante do direito à
memória que a palavra escrita proporciona. Porém, muitas dificuldades práticas surgiram
quando buscávamos viabilizar este trabalho. A mais importante delas foi a terceirização do
Espaços Divididos e Silenciados
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serviço de arquivamento de processos (cíveis, criminais, etc.), que acarretou na transferência e
armazenamento de todos os documentos dos municípios do estado de São Paulo para Jundiaí-
SP, dificultando de forma significativa o acesso a eles. Outros problemas são comuns: greves
e mudanças de horário de funcionamento do Fórum, além de transferências dos juízes, que
nem sempre estão disponíveis ou compreendem a importância da pesquisa.
As dificuldades surgiram do ponto de vista prático, mas fundamentalmente do
ponto de vista teórico-metodológico. Antes de serem pesquisados, era necessário
compreender que outros aspectos e elementos da figuração social de Guariba existiam por de
trás de sua fama de violenta e criminosa, perceptíveis logo nos primeiros contatos. Não
obstante, quando ainda não haviam sido transferidos, observamos que os processos criminais,
quando analisados, não respondiam muitos dos nossos questionamentos, como também não
captavam a complexidade encontrada no contexto migratório, em que as relações sociais,
culturais, econômicas e étnicas são ambíguas e diversas. A complexidade destas situações
exigia da pesquisa uma nova postura teórico-metodológica, capaz de compreender a migração
como um processo social, que se renova, e é, portanto, algo vivo e em constante
transformação. Para que isto fosse possível, o uso da metodologia da História Oral –
basicamente entrevistas, depoimentos, histórias de vida, estudos de trajetória e registros
visuais -, tem sido a ferramenta adequada para a compreensão deste universo de pesquisa. Foi
por meio das entrevistas que os laços de interdependência que unem, separam e hierarquizam
os grupos sociais receberam uma interpretação além da ótica do Direito Positivo, existente
nos processos criminais. A História Oral não busca nos depoimentos o que é real ou falso,
mas sim quais as representações do real feitas por um depoente. O passado ganha
interpretação a partir do olhar do presente. À luz de suas contribuições, é que se torna
possível compreender como os indivíduos são coagidos pelas instituições sociais e como
transcendem a esta coação. É pensar na vida social (no subjetivo) como algo muito além de
Andréa Vettorassi
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simples reflexos da sociedade, das instituições pré-existentes. É uma das primeiras vertentes
sociológicas (e aqui podemos também citar o interacionismo simbólico) que pensam na
consciência, na mente e no eu (self) como interações sociais e processos formadores da
conduta humana.
Assim, cada indivíduo, de acordo com a sua subjetividade, adota significados e
referências diferentes aos elementos em sua volta, mas que só surgem a partir de uma
interação entre atores e instituições sociais, ou seja, a partir do Outro, do que está “do lado de
fora”. Fundamentadas nesta metodologia, e impossibilitadas de trabalhar com os processos
criminais, deixamos em segundo plano a variável criminalidade para darmos maior ênfase às
relações existentes entre os guaribenses (“nativos”) e os migrantes (os “de fora”), não raro
permeadas por estigmas, atitudes blasé e violência simbólica, questões que buscamos revelar
neste estudo. Para isto foram entrevistados, em um primeiro momento e informalmente (sem a
utilização de gravador), representantes da comunidade guaribense, como estudantes, policiais
e outros formadores do aparato judiciário (escreventes, advogados e juiz). Em seguida,
saltamos do macro (a cidade) para o micro (o bairro, as casas), quando diversas pensões e
cortiços que alojam migrantes temporários nas periferias guaribenses foram visitados. Destas
visitas, nasceram expressivos e interessantes registros visuais e entrevistas gravadas, além de
uma nova consciência em mim que, embora de forma passiva, compreendo hoje o que
significa ser migrante, pobre, negro e bóia-fria em nosso país.
Voltamos para o macro quando, utilizando o gravador e a câmera fotográfica,
ouvimos antigos moradores do centro de Guariba (comerciantes, funcionários públicos,
aposentados e etc.) e de suas vilas (os migrantes permanentes e seus descendentes,
majoritariamente relacionados aos serviços das usinas de cana-de-açúcar). Neste momento,
achamos conveniente aplicar um novo material de pesquisa, os mapas afetivos. Através de
desenhos de depoentes que figuram sua cidade, seu bairro ou sua casa, buscamos
Espaços Divididos e Silenciados
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compreender como este entrevistado é afetado pelo Outro, e por isto a utilização do mapa
afetivo. Apreendemos, assim, as posições sociais dos depoentes em relação aos seus espaços
geográficos de forma subjetiva: a partir dos seus próprios desenhos e impressões do mundo.
Para que a variável criminalidade não ficasse absolutamente desvinculada às
análises deste estudo, já que está presente de forma muito significativa e espontânea na fala de
homens e mulheres ouvidos ao longo da pesquisa, optamos por um enfoque quantitativo. Com
o objetivo de localizar os processos criminais, quando estes ainda faziam parte da pesquisa,
tivemos acesso a dados quantitativos daqueles que foram arquivados a partir de outubro de
1986. Estes dados estão disponíveis em livros chamados “Registros de Feitos” (com diversos
volumes), e em maio de 1999 passaram a ser arquivados em computador. Os dados de cada
processo são: nome do réu, RG, sexo, cor, estado civil, nacionalidade, naturalidade, data de
nascimento, profissão, nome do pai e da mãe e tipo de crime (código penal). Destes livros,
pudemos elaborar uma rica e detalhada planilha de dados dos processos criminais da década
de 90 em que os réus são migrantes. Com a planilha organizada, pudemos analisar a
porcentagem de processos em que os réus são migrantes em relação ao número total de
processos criminais de Guariba, e os resultados são surpreendentes. Foi uma importante fase
da pesquisa que possibilitou refutar ou provar muitos dos nossos objetivos e hipóteses.
Esta intensa trajetória de pesquisa possibilitou a realização de vinte e três
entrevistas gravadas (e diversas outras informais), sete mapas afetivos, mais de cem fotos que
registram o centro e as vilas guaribenses e o registro de dados quantitativos de pelo menos mil
trezentos e cinqüenta processos criminais, além de diversos diários de campo e consultas a
artigos de jornal referentes ao tema.
No primeiro capítulo, o contexto histórico de Guariba foi recontado,
enfatizando a transição da economia cafeeira para a sucroalcooleira, o surgimento e a criação
dos bairros e vilas periféricas guaribenses, como também destacando importantes aspectos da
Andréa Vettorassi
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Greve de 84, buscando compreender a sua significância na história guaribense e em tudo
aquilo que ela passou a ser após a existência deste importante momento político, histórico e
social.
No segundo capítulo, chamamos a atenção para as falas de homens e mulheres
moradores do centro da cidade, que incorporaram em seus modos de vida uma “ideologia
nativa” que perpassa todas as relações sociais, culturais e econômicas de Guariba. O alto
poder de coesão deste grupo dominante possibilitou a criação, como também a afirmação, de
uma relação nativos/os “de fora” que é parte constituinte da figuração social guaribense.
Ademais, atentamos para as sua memórias, tantas vezes seletivas, e a reprodução de seus
espaços e tempos em seus mapas afetivos. Foi também ao longo deste capítulo que
encontramos o momento oportuno para a apresentação de algumas discussões referentes à
criminalidade da cidade, já que os dados empíricos dos processos criminais denunciam uma
dupla discriminação referente à cidade de Guariba e que muitas vezes surgiu nas falas dos
depoentes nativos: a cidade não é tão violenta quanto as outras cidades e moradores da região
acreditam, como também sua criminalidade não está relacionada aos seus grupos migrantes.
No terceiro capítulo, homens e mulheres migrantes foram ouvidos, com o
intuito de trazer à tona suas inquietações, seus projetos de vida, seus meios de sociabilidade e,
sobretudo, a maneira que lidam com a constante violência simbólica, atitudes blasé e estigmas
a que estão submetidos. São homens e mulheres que, de acordo com suas múltiplas
características e identidades, nem sempre se sentem parte de um único e coeso grupo, como
também preferem evitar os estereótipos advindos do grupo nativo do que enfrentá-los.
Para o quarto capítulo, reservamos as fotos dos migrantes temporários e suas
pensões, dos migrantes estabelecidos e as ruas e casas dos bairros periféricos da cidade, além
das ruas e casas do centro de Guariba. A partir das análises feitas sobre as representações da
Espaços Divididos e Silenciados
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fotografia, este é o momento de reflexão e apreciação dos detalhes existentes nos registros
visuais, que nem sempre se revelam apenas com as palavras escritas.
Por fim, é necessário mencionar que procurei escrever esta dissertação de
modo semelhante ao processo de realização da pesquisa, em que o rigor, sempre presente, não
impediu o “vôo”, os novos questionamentos, o envolvimento entre a pesquisadora e o objeto
de pesquisa. De certa forma, muito da minha identidade se preserva e se recria neste estudo.
Da maneira que ela foi escrita, gostaria que fosse lida.
Andréa Vettorassi
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Contextualizando Guariba: a cidade das contradições
Espaços Divididos e Silenciados
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CAP. I – Contextualizando Guariba: a cidade das contradições
A 50 km de Ribeirão Preto – SP, ilhada por um incontável número de
plantações de cana-de-açúcar, encontra-se Guariba, uma dentre várias outras pequenas
cidades, conhecidas como “cidades-dormitórios”, existentes no interior paulista
2
. Uma
precária rodovia de pista simples, não raro interditada por treminhões que cruzam a pista ou
andam lentamente sobre ela, é o principal acesso à cidade. Há importantes usinas de cana-de-
açúcar em volta de Guariba, como a São Martinho, a Bonfim e a São Carlos. Após morosa
viagem, entramos enfim na pequena cidade que, para um visitante menos atento, em nada
difere de tantas outras.
No entanto, há algo nela que, logo que entramos, nos chama a atenção.
“Guariba tem uma entrada feia, né?”, ouvi de uma moradora quando pela primeira vez entrei
na cidade. Ela referia-se a um de seus bairros periféricos, uma espécie de “cartão de visitas”,
já que se encontra em seu principal acesso. É, afinal, um indesejado cartão de visitas, pois
denuncia aos olhos de quaisquer visitantes uma pobreza relativa, ou seja, uma desigualdade
social, existente na cidade.
Referimo-nos a uma pobreza relativa porque Guariba não é uma cidade pobre,
e sim uma cidade desigual. Após sete ou oito quadras deste primeiro acesso, já estamos no
centro guaribense, que conglomera dos mais variados tamanhos e tipos de lojas de seu
desenvolvido comércio. Há também neste centro uma extensa praça arborizada, sua
prefeitura, a delegacia e o Fórum, além da igreja matriz de traços modernos. Mais ao sul, há
um bairro muito nobre, de grandes e luxuosas casas pertencentes às classes média e alta da
cidade. Carros importados dividem ruas com algumas carroças. Guariba é, assim, um universo
mergulhado em luxo e miséria, em pacato interiorano e correria moderna paulista.
2
Guariba tem em torno de 31.085 habitantes, de acordo com o Censo IBGE (2000).
Andréa Vettorassi
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21
1.1 A Cidade do Café
A oeste do Vale do Rio Mogi Guaçu, por volta do ano de 1870, Guariba era
constituída de poucas e pequenas famílias mineiras, que ocuparam as então sesmarias e ali
implementaram culturas de subsistência e criação de gado. Em torno de 1875, a região
recebeu as primeiras plantações de café. Dez anos depois, numerosos grupos de baianos
chegaram à região para trabalharem no plantio de mais meio milhão de mudas. Nesta área de
poucos habitantes, já em tempos de República (1889), Guariba se consolidou com bases em
uma “economia da terra roxa” (Martins, 1996), de força de trabalho imigrante e mudanças do
capital. Nesse contexto, as relações de trabalho baseavam-se no sistema de colonato, em que,
basicamente, o empregado era cultivador livre em terras pertencentes aos cafeicultores. Neste
contrato estava previsto o cultivo de culturas intercalares ao café, em especial em áreas baixas
e outros tipos de terrenos não apropriados para o cultivo do mesmo. Com este contrato, o
colono tinha a oportunidade de produzir outros gêneros alimentícios que garantiam, na maior
parte das vezes, a subsistência de sua família.
Um surto urbano e comercial, decorrente da inovadora economia cafeeira,
mudou os traços da paisagem local, sobretudo pelas estradas de ferro que chegaram a
Jaboticabal em 5 de maio de 1893 (Martins, 1996: 8). A partir desta data, um expressivo
contingente italiano avançou para as então novas plantações de café, tanto os que recém
desembarcaram no Porto de Santos, como os que estavam insatisfeitos com seus contratos e
condições de trabalho em outras regiões brasileiras. Aos poucos, os primeiros habitantes da
região, de origens mineira e baiana, passaram a compartilhar seus espaços com as levas
italianas, que chegavam em busca de melhorias de condições de vida.
Espaços Divididos e Silenciados
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22
Desta forma, em fins do século XIX, quando o Brasil dominou sem maiores
concorrentes o mercado mundial do café, surge o povoado de Guariba
3
, de trajetória singular.
“A tradicional seqüência: café, patrimônio religioso, surgimento da vila e chegada dos trilhos,
altera-se nessa boca de sertão. Do cafezal surge a estação; dela advém o patrimônio religioso,
a freguesia, o distrito, a futura cidade” (Martins, 1996: 27). Trabalhadores das fazendas
existentes a seu redor (como as fazendas Santa Isabel, Santa Cruz e São Martinho)
participaram da construção e consolidação da cidade, projetando nos espaços urbanos novas
expectativas e modos de vida. Campo e cidade, já nesta época, interagem com intensidade, em
especial porque tal interação é estimulada pela passagem do trem, que liga os dois universos e
leva aos vilarejos os comerciantes e outros profissionais diversos. Em 1895, Guariba era
constituída de 80 casas de moradia, o casarão da Estação, uma capela, uma hospedaria
improvisada que recebia os imigrantes, uma casa comercial e o cemitério local; ultrapassando
seu núcleo urbano, cafezais a perder de vista. As atividades do campo determinavam o
cotidiano do vilarejo, aonde os colonos recém chegados circulavam apenas aos domingos,
para a missa na capela. Além disso, muitas atividades comerciais eram realizadas no interior
das fazendas; poucas eram realizadas nas regiões já urbanizadas.
Guariba consolida-se enquanto cidade em altos e baixos nos preços do café,
tornando-a vulnerável a subseqüentes crises econômicas e sociais em meados de 1890.
Proprietários de café eram impossibilitados de manter a produção com a queda de preços e
não saldavam seus compromissos com os funcionários. Os colonos, insatisfeitos, viviam em
tempos de insegurança e incerteza do pagamento de seus salários. Tais instabilidades
suscitaram em constantes disputas e reações violentas, como tocaias contra os proprietários de
terras, organizadas por homens armados, em busca de “justiça sumária” (Martins, 1996: 34).
Com o intuito de amenizar tais atos violentos existentes no núcleo urbano e em toda a área
3
“Guariba” é o nome destinado a um grupo de primatas da família cebidae, habitantes da Mata Atlântica e
Floresta Amazônica. Sua presença era comum na região e facilmente percebida nas paragens da recém
construída Estação de ferro da Companhia Paulista. Acabou dando nome à estação e, posteriormente, à cidade.
Andréa Vettorassi
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cafeicultora, foi criado em 1897 o Distrito Policial de Guariba. Já na época, desemprego,
subemprego e instabilidade econômica eram variáveis determinantes para o desencadeamento
da violência.
Aos poucos e não raro em meio a novas crises, Guariba recebeu outros
serviços e comércios, como médicos, farmácias, armazéns, um cinema e duas escolas, que
propiciaram, em novembro de 1917, a criação do Município de Guariba, desmembrado de
Jaboticabal. A alta do preço do café, após 1918, possibilitou um prolongado
desenvolvimento
4
, que só foi abatido em 1929. A queda da bolsa de Nova York e a depressão
econômica advinda dela, aliadas a uma oferta excessiva do café suscitada pelo aumento do
plantio na década de 20, afetaram as exportações do produto no Brasil e, conseqüentemente, a
economia guaribense, até então em alta expansão. A monocultura, ou seja, a economia que
vivia absolutamente em função do setor cafeeiro, impediu a criação de soluções imediatas
5
. A
venda das propriedades foi a decisão de boa parte dos fazendeiros, que irremediavelmente
quebraram com a crise. Pequenos lotes das terras foram vendidos para ex-colonos, que
adotaram a policultura e deram início, posteriormente, à cultura da cana-de-açúcar. Era ainda
uma cultura de pequena escala, que produzia mais aguardente que açúcar. Ainda assim, são os
ex-colonos os pioneiros da indústria açucareira na região de Guariba.
A produção de café na cidade cada vez mais passa por um intenso declínio. O
Censo aponta para um encerramento definitivo do período cafeeiro em Guariba em 1950. “A
dissolução do complexo cafeeiro significou a progressiva decomposição da célula cafeeira
autárquica, ou seja, a desagregação do núcleo social das fazendas” (Mendes, 1997: 40). A
diminuição da população rural era inevitável, e a divisão de trabalho entre cidade e campo
4
Em 1922, Guariba já dispunha de iluminação elétrica, rede telefônica e telegráfica. Neste ano é construída a
Santa Casa de Misericórdia. Há também outros importantes serviços, tais como um jornal, médicos, dentistas,
hotéis, cinemas, banda de música, a Sociedade Italiana de Mútuo Socorro, campo de futebol, Caixa de Crédito
Agrícola e escolas estaduais e municipais que atendiam 320 alunos (Martins, 1996: 70).
5
A população de Guariba neste período era em torno de 10.500 habitantes, sendo que apenas 2.100 viviam no
núcleo urbano. A crise adiou algumas obras que seriam feitas na cidade, como a canalização da água e o
calçamento das ruas (Martins, 1996: 115).
Espaços Divididos e Silenciados
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ficou mais perceptível. De acordo com Mendes (1997: 41), algumas atividades secundárias e
terciárias, localizadas no interior das fazendas cafeeiras, desapareceram com o retrocesso da
população rural e transferiram-se para os núcleos urbanos. Com o processo de modernização
agrária no final da década de 60, a “civilização” cafeeira perde definitivamente seu espaço
para a “civilização” da usina. Neste período, “houve uma reestruturação espacial tanto em
relação ao campo como em relação às cidades. Reestruturação não entendida somente a partir
do despovoamento do campo e povoamento das cidades, mas também nos aspectos
econômicos, sociais, políticos e culturais” (Moraes Silva, 1993: 31).
1.2 A Cidade da Cana-de-Açúcar
O primeiro impulso da produção canavieira ocorreu em meados das décadas de
30 e 40, quando entre 1933 e 1937, o preço do açúcar subiu 140%, oferecendo novos
caminhos de investimento. As primeiras fazendas foram a Bonfim e a São Carlos, esta última
utilizando maquinaria trazida de uma velha usina nordestina. Em seguida, foi construída a
usina São Martinho, que é atualmente a segunda maior usina do Brasil, superada apenas pela
usina da Barra
6
. Iniciativas particulares, de ex-colonos e ex-proprietários do café, deram início
a uma profunda alteração histórica e sócio-econômica na região. Em tempos de pós-guerra e
industrialização, a estagnação sofrida por todo o interior paulista ganhou novo ritmo
empreendedor.
A introdução da cultura da cana, aliada à próspera conjuntura nacional da
década de 50, transformou rapidamente a paisagem urbana, que ganhou traços modernos. Em
1975, o Programa Nacional do Álcool (o Próalcool), intensificou a produção das usinas, que
passaram a ocupar mais terras e estimular a vinda de trabalhadores de outras regiões do Brasil
para o corte da cana em Guariba. Há neste momento um duplo processo de apropriação: o
6
A usina São Martinho foi desmembrada de Guariba, em 1959, quando da elevação de Pradópolis a município.
No entanto, é certo que sua produção afeta ainda hoje a economia guaribense.
Andréa Vettorassi
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primeiro afeta os pequenos proprietários de terras circundantes, que perdem seus espaços, já
que a modernização agrária expulsa estes pequenos agricultores do campo. São homens e
mulheres que não raro passam a terceirizar seu trabalho, no corte da cana, em terras que antes
eram suas, e que lhes foram tiradas por simples arrancar de cercas ou, ainda, pela detetização
da cana ao redor que matava qualquer outro tipo de plantação (Mendes, 1997: 63). O segundo
processo de apropriação afeta os “bóias-frias”, tipo de trabalho conveniente porque é um meio
que os proprietários das usinas têm de fugir aos compromissos trabalhistas, uma vez que
trabalhadores diaristas não têm maiores vínculos empregatícios com as fazendas. O bóia-fria
substituiu um sistema de exploração da força de trabalho antes baseado em colonos, parceiros
e arrendatários, nas fazendas de café. O bóia-fria é ainda mais conveniente, pois suas
atividades são sazonais, ou seja, são divididas entre a safra (entre maio e novembro, período
em que a planta está boa para a colheita) e a entressafra da cana (de dezembro a abril). Além
disso, para boa parte dos migrantes, advinda em geral de estados nordestinos e do Vale do
Jequitinhonha – MG, o período de entressafra significa a volta para casa. Ou seja, esta parcela
da população deixa de ser um ônus para a cidade, já que permanece nela apenas no período de
exploração do trabalho.
Mas o quê significa ser “bóia-fria”? A expressão indica que este trabalhador
mora nas periferias das cidades já urbanizadas, mas exerce seu trabalho no campo. Perdedores
na luta pela terra e na luta pelo emprego urbano, os bóias-frias têm sua história de vida
traçada pela busca de emprego e sua identidade definida pela consciência de que são
trabalhadores “sem profissão”, obrigados a aceitar condições de trabalho subumanas
(D’Incao, 1983). Quando migrante, o bóia-fria passa por um processo ainda mais profundo de
redefinição de sua identidade, que é o de desenraizamento, efeito devastador sobre a vida do
migrante, que rompe laços familiares e expressa a miséria e a impossibilidade da
sobrevivência econômica em pequenos lotes agrícolas. A vida nômade o desmoraliza e o
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empobrece. O trabalho contínuo durante a safra exercido pelos migrantes sazonais
corresponde à ruptura com o tempo cíclico camponês existente em seus locais de origem. Em
seu novo tempo cíclico, as estações do ano são substituídas pela safra e a entressafra da cana.
O tempo, redefinido, vira dinheiro e é comprado e vendido (Costa, 1993). O processo de
intensa ruptura só pode ser concertado com o dinheiro, o ganho acima das necessidades
cotidianas, que estimula a vinda destes trabalhadores. Muitos acabam se estabelecendo nas
terras em que migram, constituindo família e jamais voltando para os seus locais de origem.
Em Guariba, existem migrantes que ali chegaram há apenas três meses, outros que também
são migrantes, mas já estão na cidade há mais de 20 anos, e há os que nem migrantes são, e
sim seus descendentes
7
. Isto porque o fluxo migratório em Guariba teve seu ápice em meados
da década de 80 e, embora seja intenso o processo de mecanização na produção de cana-de-
açúcar, que vem diminuindo drasticamente o número de empregos nos últimos dez anos
8
, a
cada ano centenas de trabalhadores chegam à cidade, mesmo sem a certeza de encontrarem
trabalho. Não raro, estes regressam aos seus locais de origem embarcando no próprio ônibus
que os trouxeram. Outros resistem às dificuldades e procuram trabalho para a sobrevivência,
em tempos de diminuição constante da oferta de emprego e aumento do contingente de
excedentes. É perceptível o crescimento demográfico na cidade, acarretado pelas expressivas
transformações urbanas. Em 1980, Guariba tinha 18.893 habitantes. Passou a ter, em 1990,
28.743 (Censo Demográfico IBGE, 1991). Atualmente tem 31.085 habitantes (Censo
Demográfico IBGE, 2000). Certamente este aumento populacional teve reflexos na estrutura
espacial do núcleo urbano.
A urbanização de Guariba envolve, portanto, dois fluxos migratórios distintos.
O primeiro é o fluxo de colonos, parceiros e sitiantes, cujas condições de trabalho foram
7
Informações colhidas a partir do resultado de uma pesquisa de campo realizada no dia 01/05/2003.
8
Muitos trabalhos procuram compreender quais os efeitos desta drástica redução de ofertas de emprego
acarretada pela mecanização do trabalho no campo e por outras transformações nos trabalhos rurais e urbanos.
Para um maior aprofundamento, ver ANTUNES, R. & MORAES SILVA, M. A., (orgs.) O Avesso do Trabalho.
São Paulo. Ed. Expressão Popular, 2004.
Andréa Vettorassi
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suprimidas e que se transformaram em assalariados rurais e habitantes do urbano. O segundo
é o fluxo de migrantes inter-regionais, atraídos pela oferta local de empregos. Há aqui uma
superpopulação relativa, marginalizada e engendrada pela lógica da acumulação capitalista,
mecanização dos processos produtivos, instabilidade e sazonalidade.
Com a expansão do espaço urbano, ilhado em um número cada vez maior de
plantações de cana-de-açúcar, aparecem os primeiros cinturões periféricos de miséria em
Guariba. Na década de 50, há um primeiro cinturão, um transbordamento significativo dos
limites históricos da cidade do café. Nesta década, os primeiros migrantes nordestinos
chegaram à cidade, força de trabalho para a nascente economia canavieira. Guido Garavello,
empreiteiro e proprietário em Guariba, abriu um novo loteamento, o Bairro Alto, mais
conhecido como João-de-Barro, porque a grande maioria de suas casas foi construída pelos
próprios migrantes residentes no loteamento, não da maneira tradicionalmente paulista (ou
seja, “moderna”), mas com lajotas de barro, comum nos estados nordestinos. “O loteamento
oferecia terrenos baratos, exageradamente parcelados e menores que os padrões vigentes. O
objetivo estratégico do loteador era o de evitar a desvalorização da Vila Garavello que
resultaria de uma ocupação dos terrenos adjacentes pelos migrantes nordestinos” (Mendes,
1997: 143). Localizado na principal entrada da cidade, o Bairro Alto é o “cartão de visitas”
mencionado no início do capítulo, representante das desigualdades sociais e econômicas
propiciadas pela modernização das usinas de cana-de-açúcar.
Na década de 60, um segundo cinturão periférico foi a conseqüência de um
deslanche canavieiro na primeira metade da década. O afluxo de migrantes, sitiantes e
parceiros da região, expropriados pela especialização canavieira, tomou grandes proporções e
se estendeu até a década de 70. Neste período, o Bairro Alto e outros ao seu redor, como o Jd.
Monte Alegre, foram totalmente ocupados pelos novos habitantes de Guariba. Estes lotes, que
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já foram considerados favelas pela prefeitura
9
, atualmente (em 2001) receberam asfaltamento
em suas ruas. As poucas casas de barro que ainda existem já não são mais perceptíveis, pois
foram revestidas de argamassa, adequando-se ao “estilo paulista” de construção das casas. De
acordo com os dados por setores censitários do IBGE (2000), 30% dos domicílios do Bairro
Alto e seus arredores (Princesa Isabel, COHAB I, Jd. São Bento, Jd. Hortência e Jd. Monte
Alegre) abrigam de cinco a nove moradores. Em pelo menos seis casas do bairro não há água
canalizada. Em três delas não existe nenhum tipo de banheiro ou sanitário; sete escoam seus
esgotos em fossa rudimentar; 20% dos moradores com cinco anos de idade ou mais são
analfabetos. Estes dados seriam ainda mais agravantes se o Censo incluísse na pesquisa os
migrantes que vivem há menos de um ano na cidade, como também as pensões que os
abrigam. São ao todo 885 pessoas residentes neste complexo, uma média de quatro pessoas
por domicílio. É importante ressaltar que não só estes lotes, localizados na entrada da cidade,
recebem as levas migratórias. A Vila Jordão, do outro lado da cidade, surge também na
década de 60 e é, nos dias de hoje, constituída essencialmente de pensões para migrantes
sazonais. Juntamente com o Bairro Alto e seus arredores, forma um “U” periférico que abraça
todo o centro da cidade.
Na década de 80, um terceiro cinturão periférico foi produto do Próalcool.
Destaca-se pelos seus paradoxos, já que propiciou o surgimento de uma vila operária, um
conjunto habitacional de médio padrão e um loteamento de alto padrão. São as diferentes vias
de expansão do segmento urbano associadas às transformações em curso na economia rural. É
nesta mesma década, mais especificamente em 1984, que Guariba foi palco de um movimento
que mudou drasticamente a cidade e seu papel no estado de São Paulo e em todo o país. A
9
Como é possível perceber no seguinte trecho, retirado do livro que comemora o centenário da cidade e que foi
organizado pela prefeitura: “a imigração nordestina em busca do trabalho nas lavouras de cana trouxe
significativo contingente de famílias despossuídas em busca de moradia, explodindo a formação de uma grande
favela, a Vila João-de-Barro ou Bairro Alto, nome alusivo à moradia de suas modestas casas com paredes de
pau-a-pique, carentes de água, esgoto, luz, alinhamentos de calçadas e sarjetas” (in: Martins, 1996: 198). Outros
trabalhos chamam a atenção para a mesma situação, como o de Moraes Silva (1993).
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29
greve dos trabalhadores rurais de Guariba é, sem dúvidas, um marco histórico e sem
precedentes.
1.3 A Greve
Metade da população de Guariba, em 1984, constituía-se de empregados nos
canaviais, sendo que sua grande maioria era advinda de estados nordestinos e de Minas Gerais
(Martins, 1996: 184). Nesta ocasião, trabalhadores do setor sucroalcooleiro,
espontaneamente
10
, levantaram-se contra as precárias condições de vida a que eram
submetidos, em um regime que poderia ser considerado de semi-escravidão. Na madrugada
do dia 15 de maio de 1984, em torno de 5.000 trabalhadores não subiram nos paus-de-arara
em direção ao campo. No Bairro Alto, começaram as suas manifestações e, aos poucos e em
volumosos grupos, marcharam para o centro da cidade riscando seus facões no asfalto, e
permaneceram na praça da igreja matriz por toda a manhã. Concomitantemente, depredaram o
escritório da Sabesp (Serviço de Abastecimento de Água do Estado de São Paulo), atearam
fogo em seus carros e invadiram um supermercado, de onde levaram diversos produtos
alimentícios e eletrodomésticos. O aumento repentino das contas de água recém entregues
pela Sabesp e os preços abusivos cobrados pelo supermercado, que não mais abria contas para
os trabalhadores rurais, foram as justificativas dadas para estas ações. No entanto, a principal
causa da greve foi a alteração do sistema de colheita da cana, que passou de cinco para sete
ruas, o que tornaria a lida diária ainda mais penosa. Além disso, as condições dos alojamentos
e do transporte eram bastante deficientes, mantendo tensas as relações entre os trabalhadores e
os usineiros e seus empreiteiros. As revoltas e conflitos foram constantes, e houve a
intervenção da Tropa de Choque do governo do Estado de São Paulo, como também de
policiais provenientes de várias cidades vizinhas (Novaes & Alves, 2002a). É o dia de maior
10
Em princípio sem nenhuma intervenção de sindicatos rurais, partidos políticos ou outras instituições.
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violência da greve: a Tropa de Choque foi acionada, a água e a luz do Bairro Alto foram
cortadas, trinta homens foram feridos e um aposentado de sessenta anos, que apenas
observava os acontecimentos de longe, foi morto por uma bala perdida. Já na noite deste dia,
o sistema de corte da cana passa para cinco ruas. No dia 17 do mesmo mês, a greve tem fim,
com um acordo que contemplou quase todas as reivindicações dos trabalhadores.
Em janeiro de 1985, uma nova greve paralisou os trabalhadores de Guariba e
região. Em um momento de entressafra, em que boa parte dos trabalhadores do corte da cana
estava desempregada e, conseqüentemente, instável economicamente, a fome foi um precioso
elemento mobilizador. No entanto, esta segunda paralisação teve um caráter mais orgânico, já
que houve o envolvimento de agentes políticos e de entidades sindicais. No dia 12 de janeiro
de 1985, centenas de policiais militares deram fim aos piquetes de Guariba e região. Enquanto
em Barrinha - SP
11
os desmontes não tiveram choques violentos, em Guariba houve uma
verdadeira “operação de guerra”. Policiais militares foram recebidos a pedradas no Bairro
Alto, ao mesmo tempo em que espancaram todos que estavam nas ruas, inclusive mulheres e
idosos (Novaes & Alves, 2002b).
Pela sua abrangência, relevância e, como não poderia deixar de ser, pelo seu
caráter violento, a greve de Guariba teve repercussão não só nacional, mas mundial. Também
foi objeto de pesquisa de inúmeras dissertações e teses, das mais diversas áreas
12
. Dentre
esses trabalhos, destacamos a dissertação de Mestrado de Barone (1996), que traçou uma
linha que conecta as manifestações de Guariba e o conceito de economia moral, do historiador
inglês E. P. Thompson.
11
Cidade-dormitório localizada a 30 km de Guariba, que também recebe expressivo número de migrantes
anualmente.
12
Foram consultados os seguintes trabalhos: BARONE, L. A. Revolta, Conquista e Solidariedade: a
economia rural dos trabalhadores rurais em três tempos. Dissertação (Mestrado em Sociologia). Unesp –
Araraquara. 1996; DANCINE E. A. Tempo, Memórias e Utopias: cortadores de cana em Guariba e Barrinha.
Dissertação (Mestrado em Antropologia) – PUC, São Paulo. 1989; MAGNOLI, D. Agroindústria e
Urbanização: o caso de Guariba. Dissertação (Mestrado em Geografia). FFCLH, USP, São Paulo. 1990;
PENTEADO, M. A. G. Estratégia da Fome: trabalhadores e trabalhadoras da cana, maio de 1984. Dissertação
(Mestrado em História). Unicamp. 1995 e MENDES A. M. O Conflito Social de Guariba 1984-1985.
Dissertação (Mestrado em História) – Unesp, Franca, 1997.
Andréa Vettorassi
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31
Thompson (1998) descreve uma Inglaterra ainda rural, no séc. XVIII, e que
passa por momentos de transformação e transição de um tipo de sociedade (tradicional e
camponesa) para outra (moderna, pós-iluminismo). Destaca as estratégias de luta e de revolta
dos camponeses, que nem sempre nascem ou se proliferam enquanto grandes revoluções, mas
enquanto pequenas resistências, diluídas no cotidiano. São as micro-revoluções, a revolta
costumeira e dos espaços pequenos, que contradizem as vertentes teóricas marxistas em busca
das grandes e decisivas Revoluções Socialistas. A economia moral é, portanto, a revolta
cotidiana do preço justo, da solidariedade na relação patrão-empregado e de tantas outras
reivindicações do dia-a-dia nas relações trabalhistas.
É certo que a economia moral também está presente na contemporaneidade, e
Barone é o primeiro a relacioná-la com a greve de Guariba. Sua militância o fez perceber que
existia, por parte dos trabalhadores, uma cobrança sobre as lideranças, no sentido delas serem
fortes, paternalistas e mantenedoras de relações clientelistas. Os liderados normalmente
obtinham vantagens, mesmo que não materiais
13
. Isto é parte de um mundo simbólico e de
representações sociais existentes entre os trabalhadores rurais, e Barone, a partir desta
constatação, objetiva perceber o tradicional e a forma com que este interfere no
comportamento político existente em seu universo analítico.
No entanto, como o tradicionalismo das populações camponesas pode ser
mobilizado para uma mudança, muitas vezes de caráter estrutural, como as revoluções de
pequenas e médias proporções (ressaltando a greve de Guariba)? Para responder a esta
pergunta, é necessário revelar que a própria tentativa do camponês médio de se conservar
tradicional é que o torna revolucionário (Wolf. In: Barone, 1996). Não obstante, a greve de
Guariba tem bases em uma economia moral, em um conjunto de idéias tradicionais das
normas e obrigações sociais de cada segmento da sociedade. Códigos que, apesar de não
13
É necessário destacar que Barone não só estudou a greve de Guariba, mas também os assentamentos rurais da
região e a relação dos assentados com lideranças políticas e sindicais.
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32
escritos, orientam estes agentes sociais em suas avaliações e condutas entre si e os outros
estratos sociais, que aqui são entendidos como os proprietários de terras (donos das usinas e
seus empreiteiros), a Prefeitura (representada pela Sabesp) e o comércio local (supermercado).
Barone critica os estudos que pensam a greve de Guariba mais ao nível das relações capital-
trabalho, tão porque as relações trabalhistas na época eram bastante informais, moldadas por
uma grande exploração da força de trabalho
14
. Nos acontecimentos de Guariba, estão
presentes os códigos de re-conhecimento social, baseados em uma economia moral, que
orientam as ações dos trabalhadores (inclusive as ações conflituosas). Destacando que “re-
conhecimento social” é “a (auto) identificação social, bem como explicita um elemento
fundante nas relações sociais tradicionais: a reciprocidade, a obrigatoriedade de retribuição, a
gratidão” (Barone, 1996: 153).
À luz dos fatos empíricos, a economia moral se identifica na reciprocidade
existente entre os trabalhadores rurais no enfrentamento às adversidades materiais. É também
perceptível na revolta destes mesmos agentes sociais diante da negativa por parte da
sociedade em atender seus clamores. Está na identidade adotada pelos grevistas, que não se
reconheceram enquanto tal levando apenas em conta condições econômicas, mas se
perceberam nos espaços em comum de sociabilidade, representados pelas ruas do Bairro Alto.
Está na espontaneidade dos piquetes: “a percepção de que a reciprocidade não mais funciona
e as autoridades não cumprem seu papel de serem generosas para com os pobres só gera mais
indignação e ira moral, combustível da revolta” (Barone, 1996: 55). Outro dado importante é
o de que apenas um incêndio foi registrado em regiões canavieiras: as ações objetivaram a
cidade e sua “economia” pouco solidária. A falta de comida (supermercado) e de água
(Sabesp) rompem com um contrato social implícito, ou pelo menos assim entendido pelos
grevistas. Além disso, é necessário ressaltar as condições de Cláudio Amorim, dono do
14
Os bóias-frias não tinham na época, por exemplo, carteira de trabalho assinada. Para maiores detalhes sobre as
condições de trabalho na época, consultar MORAES SILVA, M, A. Errantes do Fim do Século. São Paulo, Ed.
Unesp, 1999.
Andréa Vettorassi
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33
supermercado saqueado, um migrante mineiro que ascendeu econômica e socialmente após
tornar-se empreiteiro de uma usina de cana (um “gato”, que deriva da palavra “gatuno”, figura
odiada porque se apropria do trabalho dos cortadores de cana). Em 1984, não só era
proprietário do supermercado, como também de diversos outros terrenos localizados mais ao
centro de Guariba (sendo que atualmente existe um bairro na cidade chamado “Vila
Amorim”, uma alusão ao seu nome). Ou seja, alterou de forma drástica sua identidade e re-
conhecimento social, ignorando totalmente suas “raízes”. Em entrevista dada ao Jornal Folha
de São Paulo
15
, Cláudio Amorim rememora o dia em que seu supermercado foi saqueado,
vinte anos após o ocorrido:
“Foi a maior pancada da minha vida. Naquele dia, tinha recebido 600 calças jeans.
Eles levaram tudo [...] A Sabesp também foi destruída, mas ela é uma companhia, eu era sozinho no
negócio [...] Eu não tinha nada a ver com o problema deles. Fechei as portas quando vi aquele monte
de gente se aproximar e acho que foi pior. Quebraram as portas com pedaços de ferro e não fiz nada
para impedir que eles levassem as coisas porque era muita gente” [grifos meus].
Nesta mesma matéria, o então prefeito da cidade, senhor Hermínio de
Laurentiz Netto, manifestou-se da seguinte forma:
“Essa é uma realidade que não gostamos de lembrar. É uma vergonha para a cidade.
Algo bonito terminou em catástrofe, parecia uma guerra civil” [grifos meus].
De fato, nenhum espaço, nenhum lugar na cidade rememora a greve. Nem
mesmo nas escolas guaribenses há algum tipo de discussão ou comentário sobre o assunto
16
.
Passados vinte e um anos, vestígios da greve apenas são encontrados em algumas conversas
entre amigos numa esquina, ou num bar, na praça da igreja matriz, quase que aos sussurros.
Vestígios encontrados em alguma sala de TV, quando a morte violenta de alguém é
televisionada, e isto resgata uma memória abandonada do guaribense que, por poucos
15
Em reportagem que lembra os vinte anos do levante, publicada na Folha Ribeirão, 9 de maio de 2004, página
G1.
16
De acordo com a mesma matéria publicada na Folha Ribeirão. Na época, a secretária da Educação de Guariba
não quis se manifestar sobre a ausência do levante no currículo das escolas (p. G1).
Espaços Divididos e Silenciados
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instantes, revive a famosa e esquecida greve, a para sempre maldita greve que, de acordo com
o comentário popular, dificultou a conquista de emprego do guaribense e estigmatizou a
cidade para sempre.
Os trabalhadores rurais em Guariba, migrantes ou não, também pouco
lembram da manifestação. Timidamente, destacam as melhorias das condições trabalhistas
conquistadas por ela, e nada mais
17
. Por outro lado, sabem que as tais condições de trabalho
deveriam, e poderiam, ser muito melhores, mas paradoxalmente, não se consideram capazes
de organizar uma greve como a de 1984, em que tantas reivindicações foram ouvidas. Talvez
porque a reciprocidade horizontal, que há vinte e um anos atrás, baseada em códigos de re-
conhecimento social e da economia moral, os impulsionou para a greve, esteja abalada e
enfraquecida. O contemporâneo trabalhador rural representa muito mais a racionalidade do
operariado moderno do que outros tipos de racionalidade operacionados por códigos morais e
tradicionais. Isto é ainda mais perceptível na segunda geração de migrantes, que não conviveu
diretamente com o modo de vida camponês de seus pais e que, portanto, não estabeleceu
sociabilidades e interdependências horizontais típicas destes grupos mais tradicionais. A
sociabilidade deste “novo camponês” dificulta a formação de grupos solidários em busca de
melhorias salariais: o medo do desemprego e do estigma que uma greve tem parecem mais
fortes. E a perda de sua identidade tradicional intimida a capacidade do trabalhador rural de
“micro-revolucionar”
18
. Muitas vezes, o “esquecimento”, ou mesmo o silêncio, são formas de
resistência encontradas por estes homens e mulheres (Pollak, 1989).
Após 1984, Guariba passou a ser reconhecida como cidade violenta e
conflituosa. Uma complexa e multifacetada relação entre os “nativos” (guaribenses brancos
17
Dentre as melhorias, destacamos: transporte gratuito até o trabalho; fornecimento de ferramentas pelos
empregadores (facão, luvas e tornozeleiras); pagamento dos dias em que não trabalham por imprevistos (como
chuva); carteira assinada.
18
Ainda assim, “micro-revoluções” estão presentes no setor sucroalcooleiro, em especial em 2005, ano em que
foram registradas mais de 30 greves de pequeno porte organizadas pelos trabalhadores rurais (de acordo com a
Pastoral do Migrante).
Andréa Vettorassi
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moradores do centro e bairros nobres da cidade) e os “de fora” (bóias-frias negros e pardos
moradores do Bairro Alto) ganhou força ímpar. E ser “de fora” significa muito mais que ser
migrante: ser “de fora” significa, como analisaremos no próximo capítulo, não possuir lugar
algum.
Mapa 1 - Expansão da Mancha Urbana da Cidade de Guariba (1939 a 1984)
Fonte: Martins, A. L. Guariba 100 Anos. São Paulo: Prefeitura de Guariba, 1996. Adaptações: VETTORASSI,
BRENO.
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A Ideologia Nativa
Andréa Vettorassi
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CAP. II – A Ideologia Nativa
Cotidianamente, atentamos nossos olhares para pessoas, casas, ruas e demais
objetos que estão ao nosso redor e que, juntos, compõem espaços sociais em comum. Não
obstante, memorizamos e rememoramos os espaços e, a partir destas memórias e
pensamentos, criamos laços que unem ou separam os indivíduos, tecem grupos ou os
hierarquizam, de acordo com a forma que construímos nossas memórias e a força coercitiva
que elas têm. Desta premissa, podemos constatar que a memória tem papel fundamental na
sociedade, que pode ser considerada um conjunto de pensamentos dos grupos que a constitui.
Nossas impressões são tão importantes que, de acordo com a mitologia grega, Cérbero é o cão
que guarda o portal do inferno e que, com cada uma de suas três cabeças, engole a memória, a
existência e o devir daquele que atravessa o portão, o anulando completamente.
Em uma abordagem durkheimiana, a memória coletiva, que é compartilhada e
reproduzida entre os indivíduos que formam uma sociedade, ganha força institucional. A
continuidade e a estabilidade destes pensamentos coletivos são fatos sociais entendidos como
coisas, ou seja, como se tivessem vida própria além das vontades humanas e estão ali para
garantir uma coesão social. Os fatos sociais são coisas porque estão assimilados ao mundo da
realidade natural, na medida em que as suas propriedades, tais como as dos objetos da
natureza, não podem ser imediatamente conhecidas por intuição direta, nem ser modificadas
pela vontade humana, porque são exteriores ao homem em dois sentidos: primeiro, todo
homem nasce numa sociedade já constituída, dotada de uma organização ou estrutura bem
definida, e é esta estrutura que condiciona a personalidade individual. Segundo, os fatos
sociais são exteriores no sentido de que o indivíduo não passa de um elemento da totalidade
de relações que constituem uma sociedade. De acordo com Durkheim (1999), essas relações
não foram criadas por um único indivíduo, sendo antes o fruto das interações múltiplas entre
Espaços Divididos e Silenciados
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todos os indivíduos. Por exemplo, a linguagem, ou ainda o sistema monetário, funcionam
independente do indivíduo.
Pollak (1989), sociólogo austríaco contemporâneo, nos leva a uma perspectiva
mais construtivista, que não lida com os fatos sociais como se estes fossem coisas. Seu
interesse é em analisar como os fatos sociais tornam-se coisas, como e por quem eles são
solidificados e dotados de duração e estabilidade. Com o uso da história oral, privilegia e
analisa os excluídos, os marginalizados e as minorias, ressaltando a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõe à
“memória oficial”, aquela que é reproduzida pelos grupos dominantes.
O dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, são os extremos que
separam uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil de uma memória coletiva
organizada que o Estado, ou uma sociedade majoritária, desejam impor. Quando a memória
coletiva opõe-se à memória oficial, as lembranças são transmitidas no quadro familiar e em
outras redes de sociabilidade afetiva e/ou política. Ou simplesmente essas lembranças não são
ditas, não são reproduzidas ou transmitidas, por uma série de fatores: o constrangimento, o
comprometimento, ou ainda o medo que se sobrepõe às palavras e mantém o silêncio. No
entanto, é importante reconhecer que o “não-dito”, e o que Pollak chama de “inconsciente
coletivo”, não estão estancados. Nem sempre a memória oficial tem credibilidade, tornando-
se precária e frágil. O “não-dito” pode tornar-se, assim que aproveita uma ocasião, uma
contestação ou reivindicação.
Guariba e a sua população estão imbricadas de “não-ditos”. Ainda hoje a greve
e suas conseqüências são um constrangimento para toda a comunidade, seja entre os nativos
ou entre os “de fora”. Mas quem é nativo, quem é de fora e como essas relações são
construídas? Entre lembranças subterrâneas e outras espontaneamente jogadas para fora, à luz
da História Oral, podemos traçar uma linha que identifica e relaciona estes dois extremos e
Andréa Vettorassi
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determina novas di-visões entre as duas pontas. Ou seja, há os nativos, há os “de fora”, mas há
também uma série de sub-grupos que permeiam estas relações e que fazem parte da figuração
social de Guariba (sua malha social que relaciona os diversos grupos), ainda mais tencionada
à formação destes conjuntos por conta de sua greve. Nossas reflexões sociológicas, baseadas
na metodologia da história oral, têm como eixo teórico autores como Bourdieu (e seus
poderes e violências simbólicos), Elias & Scotson (e a relação estabelecidos/outsiders) e ainda
Marx & Engels (e a definição de ideologia). Os diversos tópicos deste capítulo apontam para
possibilidades latentes de abordagem e reflexão. A “sociologia” dos autores citados, suas
reflexões e anseios, remetem às condições e ao cotidiano dos nativos de Guariba, seja no
âmbito de suas identidades pessoais, seja em suas relações com os outros grupos sociais. Este
capítulo se propõe, portanto, em expor estes “sentimentos nativos”
19
.
2.1 “Assim Guariba ficou, pura cana...”
20
Dona Tereza é uma senhora de 92 completos, os quais carrega com muito
orgulho. Embora não caminhe com facilidade, por conta de uma osteoporose avançada, é
extremamente lúcida. Mora sozinha e cuida de sua própria casa. Deixa o portão aberto porque
ele é muito baixinho, e se alguém quisesse invadir sua casa, simplesmente o pularia! Acha
ruim que tantas pessoas construam muros nas casas, porque elas deixaram de ser bonitas
como eram antigamente. Dona Tereza nasceu em Jaboticabal, na fazenda de seus pais, e aos
nove anos mudou-se para a cidade, que tinha apenas quatro ruas, junto com os seus nove
irmãos:
Dona Tereza - Bom... Eu vim pra cá quando meu pai montou uma fazendinha,
próxima daqui. Era negócio da cana, fazer... melado, rapadura, pinga. Depois cresceu tudo a família...
em nove filhos. E foi assim que a gente cresceu. Aí meu pai vendeu a fazenda e se mudou pra cidade
[...] e fomos tocando a vida. Só que Guariba era um miolo. As família que tinha parecia tudo parente.
19
Os nomes dos entrevistados foram modificados para que suas identidades sejam preservadas.
20
Palavras de Dona Tereza, 92 anos.
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40
Se visitava... Vinha um visitar o outro. Então era uma família, uma cidade pequena, mas com
amizade
21
.
Nesta época, a cidade mantinha relações estreitas com o rural, com as fazendas
e plantações existentes ao seu redor, assim como com as pequenas famílias e comunidades
que ali se preservavam. Dona Tereza é branca de olhos azuis, filha de ex-colonos que, assim
que tiveram oportunidade, no início da década de XX, compraram pequenos lotes de terra e
montaram um negócio próprio. Coincidentemente, o “negócio da cana”, como retrata Dona
Tereza, que continua expondo sua infância apontando para os novos aspectos econômicos da
cidade que ela, ao longo da vida, presenciou:
Dona Tereza - Só que então [a cidade] foi aumentando, aumentando... O que tinha
aqui era gado, café... Até se falava do rei do café, né? Depois é que foi plantando cana, que nem meu
pai, pra fazer... essa garapa, pinga, essas coisas... Depois ela foi estendendo e então veio os fazendeiros
fortes, que eram de café, de gado... Aí depois eles foram vendendo tudo isso pra usina, pra plantar
cana... e assim Guariba ficou, pura cana.
Dona Tereza se lembra dos reis do café, fazendeiros fortes e de status entre a
sociedade guaribense, mas que, bruscamente, foram esquecidos e substituídos pelas “usinas”,
que não têm rosto, não têm importância ou status entre a “gente comum”. As mudanças
econômicas suscitaram mudanças sociais e culturais, na medida em que desapareceram com a
figura do “rei do café”, fazendeiros de reconhecimento ímpar em todas as pequenas cidades
paulistas. A usina, enquanto objeto (e não pessoa), transforma as relações hierárquicas da
cidade, que não mais dependem do mundo rural e se estreitam no mundo urbano, que por sua
vez também se altera em muitos aspectos. Entre os mais idosos, lembranças do período de
transição da economia cafeeira para a açucareira permanecem vivas. Carlos, de 69 anos,
branco, que mora no Jardim Boa Vista (bairro nobre da cidade) em uma casa cheia de cercas
21
Depoimento colhido no dia 14 de junho de 2005, na casa da entrevistada.
Andréa Vettorassi
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41
elétricas, é um advogado conhecido e respeitado na cidade e descreve de que forma a Crise de
29 afetou sua família e a cidade:
Carlos - O meu avô, ele teve um grande armazém de pinga desde o começo do século,
eu poderia dizer desde o século XIX. E era grande, era no centro, no ponto melhor da cidade ele tinha
um armazém com onze portas. Ah! E neste armazém trabalhavam os filhos. Meu pai era solteiro, né?
E em 1929 com a quebra e a crise do café, Nova York... então, aqui em Guariba perdeu-se muito do
que tinha. Todo aquele desenvolvimento do começo do século, né? Perdeu-se tudo. E meu avô
também perdeu, pior do que isto, ele perdeu o patrimônio dele. Quer dizer, muitos fazendeiros aqui
não pagaram a conta para ele.
22
É perceptível nas entrevistas que todas as famílias, sejam elas mais antigas ou
recentes na cidade, têm ligação direta ou indireta com a economia rural da região. No caso do
senhor Carlos, sua família de comerciantes foi prejudicada no período de recessão da
economia cafeeira e posterior ascensão da economia açucareira. Em geral, filhos, netos,
sobrinhos ou irmãos das famílias guaribenses trabalham nas usinas de cana-de-açúcar, em
cargos às vezes mais, às vezes menos privilegiados, como é também o caso de Dona Tereza,
que conta a história de seu único filho vivo:
Dona Tereza – [Meu filho] trabalha e mora aqui. Mas sabe que ele está meio doente,
porque ele trabalhou na usina Bonfim, ou melhor, São Martinho, até se aposentar. Ele era mecânico.
Aposentou, ele perdeu a voz. E já levaram ele até pra São Paulo, tudo, e os médicos falam que não tem
cura! Mas dizem que é problema de cabeça e eu falo: se é problema de cabeça, ele não podia dirigir,
né? E ele dirige! Dirige bem, faz compra direitinho... Só que ele não pronuncia direito as palavras.
Conforme o dia, a gente não entende direito o quê ele fala. Se não tivesse trabalhado tanto acho que
não tinha ficado doente, né?
A indignação silenciosa de Dona Tereza não encontra culpados para o
“problema de cabeça” de seu filho, a não ser o fato deste ter trabalhado muito até ficar doente.
Este é o destino de muitos trabalhadores guaribenses, que não têm maiores opções de trabalho
que não as relacionadas ao setor sucroalcooleiro, e acabam submetendo-se a trabalhos
cansativos e degradantes dentro das usinas. Esta ligação é também freqüente no comércio
22
Depoimento colhido no dia 16 de junho de 2005, na casa do entrevistado.
Espaços Divididos e Silenciados
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local, que depende diretamente das safras e entressafras da cana, das usinas e de seus
trabalhadores:
E a senhora acha que a cidade, quando os migrantes estão aqui, durante a safra, a
cidade muda?
Dona Tereza - Ah, muda. O movimento da rua é repleto, não tem dia da semana. O
comércio é grande... O comércio hoje é forte assim com esse povo que vem. Porque de começo não
tinha um comércio tão forte assim, era um movimento fraco.
No depoimento do senhor Vítor e sua filha Leila, de 60 e 43 anos
respectivamente, donos de uma loja na principal rua de comércio da cidade onde consertam
aparelhos eletrônicos, esta dependência fica bastante evidente:
Pra vocês que estão no comércio, deve haver alguma diferença [entre o período de
safra e entressafra da cana]...
Leila – Muita, muita.
Quais são essas diferenças?
Senhor Vítor – Bom, aí... Já aumenta mais as venda, né?
Leila – É, na safra, né?
Senhor Vítor – Isso, na safra, na entressafra fica ruim... Pra vir buscar os aparelhos...
Leila – Na parada, né? Na parada... Fica muita gente desempregada, muita gente não
trabalha... Que é contrato, aí termina o contrato... Fica desempregado até abrir de novo o emprego.
Então, o pessoal fica sem dinheiro...
23
Leila e o senhor Vítor nasceram em Guariba e são descendentes de colonos
italianos. Por isto, se consideram “nativos”, representantes das famílias tradicionais
guaribenses, sendo que a expressão “tradicional”, neste momento, significa ter acompanhado
a história de Guariba e os seus costumes, hábitos, enfim, suas tradições. Neste trecho de suas
entrevistas, estão se referindo aos bóias-frias, que não são exatamente para eles e outros
“nativos” entrevistados, um grupo tradicional da cidade, mesmo que a representem e façam
parte de sua figuração social há décadas. São trabalhadores rurais que perdem seus contratos
trabalhistas no período de entressafra e que, portanto, ficam desempregados e sem condições
de gastar, no comércio, o pouco dinheiro que é economizado para manter as despesas
23
Depoimento colhido no dia 15 de junho de 2005, na loja de comércio dos entrevistados.
Andréa Vettorassi
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domésticas nestes períodos. É importante salientar que estes são os trabalhadores
estabelecidos, que vivem na cidade há mais tempo ou nasceram nela, e não os temporários,
que voltam para suas terras de origem neste período de entressafra, e não raro retornam para
Guariba e outras cidades-dormitórios de São Paulo no ano seguinte. Ambos os grupos (os que
se estabeleceram na cidade e os temporários) são fundamentais para o comércio local, em uma
relação de venda e compra que sustenta parte da economia local. No entanto, o migrante
estabelecido se torna mais indesejado, na medida em que, na entressafra, é incapaz de circular
seu dinheiro no comércio, ao mesmo tempo em que traz despesas públicas para os serviços
locais. Concomitantemente, temporários ou os que estão na cidade há mais tempo são também
indesejados no período da safra porque, em especial quando são pagos, circulam pelas ruas do
centro da cidade e são “vistos”, saem das periferias escondidas (ou ao menos esquecidas) e,
enfim, se relacionam com a comunidade local. É o momento em que os dois grupos se
percebem e se evitam mutuamente
24
, como é perceptível no depoimento de Dona Laura, 77
anos, branca, e de sua filha Carla, 42 anos, branca:
E as senhoras acham que a cidade muda no período de safra?
Carla – Ah, muda assim... a gente vê mais gente transitando, né mãe?
Dona Laura – É.
Carla – A gente anda por aqui e minha mãe fala “nossa, de onde saiu tanta gente?”. É
bastante gente, e em dia de pagamento, então, é um sai e entra... em loja, em certas lojas também.
Quando chega mais próximo do pagamento, você nota uma diferença maior.
E isso, pras senhoras, é bom ou é ruim?
Carla – Pra mim não incomoda em nada. A senhora se incomoda, mãe?
Dona Laura – Pra mim também não. A gente só fica com um pouco de medo, né? Por
que eles passam aqui na frente... vai que esse povo tá assaltando...
Carla – É, a gente fica com medo, né?
25
Dona Laura se mudou com seu marido para Guariba na década de 60, para que
este exercesse sua profissão de médico na cidade. Carla também não nasceu em Guariba, mas
desde muito pequena vive ali e jamais saiu dela. Moram no centro da cidade, e podem ser
consideradas “nativas” porque assim se percebem e interagem com os outros. Ser nativo é,
24
As reações dos “de fora” (migrantes) serão explicitadas no capítulo III.
25
Depoimento colhido no dia 15 de junho de 2005, na casa das entrevistadas.
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afinal, estar à parte de uma tradição que vai muito além de nascer em Guariba. É se perceber
enquanto “de dentro” e se comportar desta forma, expondo na corporalidade, na identidade e
na memória o verdadeiro grupo a que pertence.
2.2 “Amizade agora é assim, só quando mora perto...”
26
“Tradição” é algo que Dona Tereza procura manter porque se sente parte da
história, da cultura e dos hábitos da comunidade guaribense. Ao longo de seus 92 anos,
presenciou transformações, ora bruscas, ora brandas em sua vida, porque nasceu e cresceu em
um tempo em que Guariba era apenas quatro ruas de terra. Relata com intensidade as
mudanças presenciadas no mundo rural, o qual fez diretamente parte na sua infância; logo em
seguida, fala das alterações no mundo urbano:
Dona Tereza - Depois foi estendendo a rede de cana. Aí Guariba ficou dependendo só
da cana. E não tinha muita família que vinha! Como começou a estender a rede de cana, aí começou a
vir uma leva assim de dez, doze... Arrumavam um salão, assim, e ficavam até o corte da cana.
Acabavam de cortar cana e aí vinham embora. Mas aí os primeiros que vieram, uns foram casando,
outros formando uma família aqui... E foi aí que Guariba se estendeu só de gente estranha. E agora é
assim, muito difícil manter uma amizade. Amizade agora é assim, só quando mora perto, assim como
a D. Maria, que eu tenho amizade bastante.
E essas pessoas que a senhora disse que chegaram? Elas vieram de onde?
Dona Tereza - Ah... Devo te falar que a maior parte é tudo nortista! Nesses morro
grande, a maior parte é nortista! Agora não sei dizer de que cidade exatamente eles vêm. Mas eu sei
que é do norte. Inclusive já tem tudo família grande, distribuído aí pela vila...
Espontaneamente, Dona Tereza denuncia a presença de uma “gente estranha”
que, aos poucos, se estabelece na cidade e modifica seus aspectos cotidianos. Para Dona
Tereza, Guariba não é mais uma cidade de amizade, como no início de seu depoimento, mas
sim uma cidade estranha, mesmo que estes “estranhos” estejam em Guariba há mais de trinta
anos. Não obstante, Dona Maria, mencionada no depoimento de Dona Tereza, é sua vizinha e
26
Palavras de Dona Tereza, 92 anos.
Andréa Vettorassi
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mora na cidade há vinte e oito anos. Isto significa que Dona Maria não é propriamente uma
“nativa”, no sentido de ser uma guaribense nata. Porém, ela é nativa para Dona Tereza, e
digna de uma verdadeira amizade, porque é branca e mora no centro da cidade, mesmo que
não more nela há mais tempo que um trabalhador rural nordestino, negro e morador do Bairro
Alto. Neste sentido, chamamos a atenção para um primeiro sub-grupo inerente à relação
dialética nativos e os “de fora”: ser branco e morador do centro da cidade é o suficiente para
ser identificado enquanto nativo, ou, pelo menos, é o suficiente para ser um indivíduo livre de
estigmas.
Quando pensamos na relação dialética nativos/os “de fora”, perceptível em
Guariba, correlacionamos à semelhante relação estabelecidos/outsiders, estudada por Elias &
Scotson (2000). Seus indicadores sociológicos demonstravam que Winston Parva, cidade
inglesa que foi objeto de pesquisa dos autores, tinha aspectos bastante homogêneos, já que
seus moradores não tinham nenhum tipo de diferenças de nacionalidade, ascendência étnica,
cor ou raça e classe social; a única diferença, que hierarquizou e dividiu a cidade em dois
grupos, era a de que um grupo constituía-se de antigos residentes (duas ou três gerações) e o
outro de recém-chegados. Os estabelecidos (antigos moradores) tinham o poder de diminuir e
ridicularizar os outsiders (recém-chegados) porque entre eles havia um alto grau de coesão,
reproduzido e fortificado entre os meios de sociabilidade existentes entre os “iguais”.
Em Guariba, não temos exatamente grupos homogêneos. Nativos e “de fora”
se diferenciam em diversos aspectos: o primeiro grupo é constituído de brancos, o outro de
negros e pardos; o primeiro é morador do centro, o outro do Bairro Alto; o primeiro é de
classe média e classe média alta, o outro é de classe baixa. Todos estes elementos são
resumidos em poucas palavras detentoras de estigmas: “de fora”, estranho, migrante,
nordestino. O curioso é que, justamente este resumido estigma não condiz à realidade, já que
muitos “nativos” não nasceram em Guariba e muitos “de fora” são guaribenses.
Espaços Divididos e Silenciados
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Se os aspectos econômicos, sociais e culturais não são homogêneos em
Guariba, qual é a sua similaridade com a relação dialética de Winston Parva? Os dados
indicam que é justamente o poder de coesão dos “nativos” guaribenses. Quando Dona Tereza
tece laços de amizade com Dona Maria, estabelece com ela um alto potencial de coesão capaz
de estigmatizar, ignorar ou diminuir o Outro, o “de fora”, que nem sempre faz parte de um
grupo coeso. Muitas vezes depende do nativo no seu cotidiano, mesmo que evite tal
dependência
27
.
Os “de fora” são, para os nativos, responsáveis pelas indesejadas
transformações urbanas. Ruas do centro cheias em dia de pagamento é apenas um dos
inconvenientes relatados pelos nativos. Aumento da área urbana de forma desregulada,
periferias sujas à vista de todos, serviços públicos e sociais procurados em demasia e, enfim, a
greve e a violência (que para os nativos é cada vez maior na cidade), são outros tipos de
problemas causados ou agravados pelas levas migratórias. Dona Tereza continua seu
depoimento descrevendo de que forma surgiu e cresceu o Bairro Alto, o primeiro a receber os
trabalhadores rurais migrantes e que, em 1984, foi palco da Greve de Guariba:
E como é que este bairro surgiu?
Dona Tereza - De pessoas que moram no quintal... O pai tem a casa na frente, casa o
filho que não tem terreno, então vão dando os lotes nas casas. Por isso que surgem tudo estes bairros
que estão por aí, entregues... E tem as duas Cohab’s, tem a primeira e a segunda. Mas já tá tudo
povoado aquela parte dali. Mas é tudo gente que veio de fora, não é gente daqui. Família daqui tem
bem pouca, viu? Do tempo que a gente conheceu...
E são pessoas que vieram do norte?
Dona Tereza - É, tudo. A maior parte veio tudo de fora! Então... E gente daqui, tem
muita gente daqui que já se mudou, pra Jaboticabal, pra Ribeirão... Porque acham que aqui não estão
tendo ambiente.
Dona Tereza não foi a única a relatar que o incômodo que os nativos têm com
as levas migratórias é tão grande que foi capaz de expelir “boas” e “tradicionais” famílias em
27
Este ponto será melhor discutido no capítulo III, quando os depoimentos dos migrantes serão analisados.
Andréa Vettorassi
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busca de um “melhor ambiente”. Carla e Dona Laura também destacam esta situação, o que
leva a crer que ela realmente acontece:
Carla - Mas eu sei que [a cidade] mudou bastante. Tem muita gente hoje que a gente
não conhece.
Dona Laura – Ah, é claro. Mudou.
Carla – Muita gente que era antigo morador se mudou de Guariba. Os mais antigos, os
filhos dos mais antigos... que formaram e foram pra outras cidades. Então hoje em dia é mais um... É
um pessoal um pouco estranho, né? Em vista do que era.
Estas famílias nativas lamentam que parte significativa de seu grupo tenha
deixado Guariba, enquanto que os indesejados grupos “de fora” continuem ocupando
expressivamente os bairros mais afastados da cidade. Relacionam a ida de um grupo com a
vinda do outro grupo, como se a emigração dos nativos só ocorresse porque a imigração dos
“de fora” permanece ativa. Esta relação não é necessariamente verdadeira. Como Carla
relatou, muitos “filhos dos mais antigos” se formam e por isto se mudam para outras cidades
da região, como Ribeirão Preto - SP, em busca de melhores condições de emprego, uma vez
que Guariba, como já foi mencionado, tem sua economia exclusivamente baseada no setor
sucroalcooleiro, inclusive seu comércio, totalmente dependente deste setor. Sem indústrias,
universidades ou setores terciários, se estabelecer na cidade sem trabalhar nas usinas ou em
outros serviços relacionados a ela é praticamente impossível. Mas nada disso é mencionado.
Torna-se conveniente culpar o grupo “de fora” por um atraso econômico na cidade
28
que se
agrava ainda mais quando grupos capacitados, que não querem trabalhar no setor
sucroalcooleiro ou dependerem dele, simplesmente migram.
O atraso econômico que a cidade enfrenta é um problema que, de acordo com a
ideologia nativa, justifica-se a partir da intensa imigração nordestina, que requer constante
assistência social e esgota os serviços públicos. Mas há um ponto ainda mais mencionado em
28
De acordo com o IPRS (Índice Paulista de Responsabilidade Social), Guariba está no grupo de municípios de
baixo desenvolvimento econômico e em transição social. O IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano
Municipal) em Guariba é de 0,756, abaixo do estado de São Paulo, que é de 0,814 (o ideal é 1). Dados colhidos
da Folha Ribeirão do dia 9 de maio de 2004, página G1.
Espaços Divididos e Silenciados
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todas as entrevistas com os nativos: a violência, a criminalidade existente na cidade.
Espontaneamente, os nativos mencionam uma Guariba tencionada a uma criminalidade cada
vez mais presente, perceptível em especial a partir de 1984, após o fim da assustadora e
violenta greve dos trabalhadores rurais. De fato, Guariba é reconhecida enquanto cidade
violenta e criminosa não apenas entre seus moradores, mas também entre os moradores das
outras cidades que a circundam e perpetuam estas marcas profundas. O senhor João, que tem
uma carroça e faz transporte de carga, conversou algum tempo comigo em frente ao Fórum de
Guariba, na praça da igreja matriz. Disse que até seus bisavôs já moravam na cidade, que é
muito boa, mas que já foi melhor, porque hoje é muito violenta, e que essa gente que “vem de
fora”, meio “escurinha”, sem emprego e sem cultura, acaba trazendo problemas à cidade. Que
às vezes eles saem das suas terras só para vingar a morte de um colega ou fazer acerto de
contas.
Perguntei sobre a greve. O senhor João contou que estava na rua quando tudo
ocorreu. Quando ouviu o tiroteio, correu “como um tiro” para casa, pois estava há um
quarteirão de distância do aglomerado de grevistas. Algum tempo após a greve, o senhor João
foi com a filha e o genro passear no shopping de Ribeirão Preto - SP. Duas senhoras no
estacionamento viram o carro com a placa de Guariba e uma disse à outra: “Vamos embora
logo que essa gente é de Guariba!”. O senhor João conta esta história rindo, mas em seguida
se entristece com a lembrança tão subterrânea que a nossa conversa trouxe à tona, e fala que o
povo de Guariba sofreu muito, e que até hoje sofre, pois tem dificuldades para trabalhar nas
usinas que não contratam guaribenses, os relacionando à greve. Guariba é, afinal de contas,
uma cidade estigmatizada em todos os aspectos. Sua greve, sua pobreza relativa, sua
economia exclusivamente sucroalcooleira e suas periferias expostas aos olhos visitantes
fazem com que Guariba seja mal vista e mal quista nas cidades circundantes, que em geral
apenas a conhecem pelos seus altos índices de violência, sempre comentados e difundidos.
Andréa Vettorassi
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Sabíamos desde o início da pesquisa que Guariba é uma “cidade violenta”.
Ainda assim, nos surpreendemos com o número de vezes em que a variável criminalidade
surgiu nos depoimentos tanto dos nativos quanto dos “de fora”, na maior parte das vezes sem
a necessidade, por parte da entrevistadora, de inserir o tema ao longo da entrevista. A partir
destas observações, consideramos conveniente pesquisar dados referentes aos processos
criminais da comarca de Guariba, com o intuito de compreender de forma mais nítida os
“conhecidos” índices de criminalidade da cidade. Nesta etapa da pesquisa, os “Registros de
Feitos”, que contém relevantes dados quantitativos dos processos criminais da comarca e que
estão localizados no Fórum de Guariba foram, em um primeiro momento, consultados, para
que então aqueles que continham réus migrantes pudessem ser organizados e arquivados em
um banco de dados construído para a pesquisa
29
. Embora esta fase da pesquisa tenha sempre
alcançado um caráter secundário ao longo do estudo, os dados quantitativos que com ela
foram possíveis levantar (como também as entrevistas realizadas em especial com os
migrantes do Bairro Alto) trouxeram à luz resultados (e questionamentos) quanto à relação
nativos/os “de fora” e os tipos de crime em que os migrantes e seus descendentes estão
envolvidos.
Percebemos com esta pesquisa que o número total de processos criminais da
década de 90 não justifica a fama de violenta que a cidade já recebia na época:
Quadro 1: Número Total de Processos Criminais Ocorridos em Guariba entre os
anos de 1990 e 1998
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
571 790 1194 1011 802 775 500 673 957
Fonte: Registros de Feitos do Fórum de Guariba.
29
Parte do banco de dados encontra-se no apêndice da dissertação.
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No ano de 1990, foram registrados 571 processos criminais, um número baixo
para os padrões de uma cidade com o porte de Guariba
30
. Do total neste ano, apenas 48
processos têm como réus migrantes trabalhadores rurais ou desempregados, um número
muito menor do que o estimado pelos funcionários do Fórum (150 processos por ano
envolvendo migrantes lavradores), o que indica um viés discriminatório. Ou seja, os nativos
encarnam os valores da tradição e da boa sociedade, enquanto os “de fora” estão
rotineiramente relacionados à anomia, delinqüência, violência e desintegração, numa espécie
de “fantasia coletiva” perpetuada pelo alto potencial de coesão dos estabelecidos e, no caso de
Guariba, pelo preconceito de cor e classe que denomina “migrantes” todos aqueles que são
negros e pobres. O gráfico a seguir indica a porcentagem do número total de processos
criminais em que os réus são migrantes em relação ao número total de processos criminais da
comarca de Guariba:
Gráfico 1 - Porcentagem do Número de Processos
Criminais em que os Réus são Migrantes em Guariba
(década de 90)
17,9%
16,3%
17,3%
16,6%
23,8%
17,3%
14,2%
15,9%
15,2%
0,0%
10,0%
20,0%
30,0%
40,0%
50,0%
60,0%
70,0%
80,0%
90,0%
100,0%
1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998
Fonte: Pesquisa de Campo.
Como o gráfico revela, não só a imagem de violenta que a cidade carrega não
tem fundamento empírico, como também a responsabilidade dada aos migrantes para os
30
No mês de julho de 2004, foram registrados na delegacia da cidade 120 termos circunstanciados (crimes de
“menor potencial excessivo”, como xingamentos, por exemplo). Em Monte Alto, cidade com 10.000 habitantes a
mais que Guariba e sua vizinha, foram registrados no mesmo período 174 termos circunstanciados. Destes
termos, poucos se tornam inquéritos e é ainda menor o número dos que se tornam processos criminais.
Andréa Vettorassi
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índices de criminalidade, sejam eles migrantes estabelecidos ou temporários, ainda mais
levando-se em conta que este grupo representa mais da metade do total da população
guaribense (Martins, 1996). A idéia de que Guariba é uma cidade violenta está relacionada à
greve de 1984. Além disso, os dados empíricos demonstram que a conexão migração-
criminalidade é apenas parte da ideologia nativa e de toda violência simbólica reproduzida e
perpetuada por este grupo.
A partir dos dados da pesquisa quantitativa, foi possível determinar o número
total de processos envolvendo migrantes porque as fichas dos réus informam sua naturalidade.
No entanto, não informam a naturalidade dos pais, impossibilitando o acesso aos processos
em que os réus são filhos de migrantes. É provável que, levando em consideração este tipo de
processos, alcancemos o número estimado pelos funcionários do Fórum, que era o de 150
processos por ano envolvendo migrantes. Isto porque, como já foi discutido acima, para os
moradores mais antigos da cidade todos aqueles que são negros, pobres e/ou moradores do
Bairro Alto são também “migrantes”, terminologia usada para mascarar seus preconceitos,
como também para hierarquizar e homogeneizar os grupos sociais. No que tange à
participação da segunda geração dos migrantes nos crimes ocorridos em Guariba, de acordo
com os moradores do Bairro Alto
31
, estes estão mais envolvidos no tráfico de drogas, crime
tipicamente urbano entre os que são verdadeiros “sobrantes” em todo o processo de
mecanização do trabalho rural e que jamais tiveram um modo de vida camponês como o de
seus pais, que passaram boa parte da vida no meio rural dos estados nordestinos.
Segundo Elias & Scotson (2000: 37), as crianças são suscetíveis à humilhação,
já que seus pais e todo seu grupo (sua imagem e valor) constituem uma parte vital de sua
auto-imagem, sua identidade individual e sua auto-avaliação (o mesmo que ocorre com os
descendentes de Guariba). As experiências afetivas e as fantasias dos indivíduos não são
31
Em pesquisa realizada no dia 20 de junho de 2004.
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arbitrárias; têm uma estrutura e dinâmica próprias. Num estágio primitivo da vida (infância),
podem influenciar profundamente a moldagem dos afetos e a conduta em etapas posteriores.
A criança não é só afetada pela experiência dos pais, mas também pelo que os outros pensam
e dizem sobre seus pais. Ou seja, a violência simbólica e os estigmas atribuídos aos migrantes
por uma ideologia nativa podem estar ocasionando uma real violência entre a segunda e a
terceira geração de migrantes, já guaribenses natos, no entanto marginalizados pela sociedade
guaribense “nativa”.
32
A 1ª geração de migrantes, sazonais ou não e com modos de vida tipicamente
camponeses, dificilmente se envolve em crimes urbanos como o tráfico de drogas. O trabalho
contínuo durante a safra da cana exercido por estes migrantes corresponde à ruptura com o
tempo cíclico camponês existente em seus locais de origem. Em seu novo tempo cíclico, as
estações do ano são a safra e a entressafra da cana. O tempo vira dinheiro, e é comprado e
vendido. Neste contexto, o espaço e o tempo em que ocorrem os atos de violência estudados
em uma amostra de processos criminais não estão relacionados com o centro de Guariba e
seus nativos. As relações conflituosas são horizontais e correspondem a crimes entre os
iguais.
Mesmo com baixos índices de violência, dentre os quais os migrantes não são
os maiores responsáveis, Guariba continua invariavelmente sendo vítima de um estigma
existente tanto dentro dos seus limites como fora deles. Em contrapartida, a comunidade
guaribense, a partir de uma memória coletiva (Pollak, 1989) produzida e compartilhada entre
32
No dia 16 de agosto de 2004, morreu em Guariba o lavrador Marcos Roberto de Souza, 22 anos. De acordo
com a polícia civil, esta é a oitava vítima do 1º semestre de 2004 de uma briga de gangues relacionadas ao tráfico
de drogas do Bairro Alto. Guariba, na época, recebeu a quarta colocação no “ranking de homicídios” da região
de Ribeirão Preto, atrás apenas de grandes cidades (Ribeirão Preto, Araraquara e Franca). As oito vítimas eram
bastante jovens, tinham entre 16 e 22 anos (Folha de São Paulo, Caderno Ribeirão, 17 de agosto de 2004, p. C6).
No mesmo período de 2003, apenas um homicídio foi cometido em Guariba, um baixo índice que a cidade vinha
conquistando há pelo menos 10 anos (de acordo com as planilhas do Fórum de Guariba). Em 2005, os índices
novamente caíram, tendo ocorrido ao longo do ano apenas três homicídios (de acordo com a Delegacia de
Polícia de Guariba). É necessário investigar o porquê deste significativo aumento de homicídios no ano de 2004,
como também o que levou estas denominadas “gangues” ao enfrentamento (e até que ponto os migrantes e seus
descendentes estão realmente envolvidos nestes crimes).
Andréa Vettorassi
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seus iguais, determina que seu atraso econômico e sua “alta criminalidade” estão
exclusivamente relacionados aos “de fora”, aos grupos migrantes, verdadeiros estorvos para a
cidade. Perguntei para Dona Tereza por que os antigos moradores não “estão tendo ambiente”
em Guariba, e ela me respondeu:
Dona Tereza: Sei lá, porque acham que esse povo aí não entrosa amizade com a gente,
de verdade. Não é como a gente, que pega amizade, que é sincero, parece tudo meio assustado, não sei
se chegam assustado das terras deles. E a gente acha que eles são meio afastados. E ainda por cima a
maior parte é nortista...
Este trecho torna ainda mais perceptível o alto poder de coesão que o grupo
nativo construiu em prol de sua identidade enquanto igual, bom e amigo e contra a existência
do Outro, que nem ao menos é sincero ou “entrosa amizade”
33
. Conseqüentemente, um grupo
que não é “amigo” ou “bom”, facilmente está relacionado aos males da sociedade, em
especial à criminalidade:
E a senhora acha que Guariba é uma cidade violenta?
Dona Tereza - Ah, aquele bairro lá em cima é! Essa parte nossa aqui, não. Mas esses
morador que mora tudo pra lá... tem semana que mata dois, três! Mas é tudo gente que vem de fora. E
matam assim, em pleno dia! É, aquela parte é violenta, sim. É mais aquela parte ali do João-de-Barro,
não sei se você já andou por lá. Acho que não né?
Assim como Carla e Dona Laura, Dona Tereza ativa seu sentimento de
estranhamento quando percebe os “de fora” nas ruas do centro, no comércio da cidade, ou
recebendo seus salários e fazendo pagamentos:
E quando a safra acaba e eles [os “nortistas”] vão embora? Tem alguma diferença pra
senhora?
Dona Tereza – Tem, tem diferença pro comércio.
Em quê?
Dona Tereza - Porque diminui o movimento deles, né? Então... Quer dizer, geralmente
agora não é tanto porque eles já estão tudo estabilizados aqui, mas até uns quatro, cinco anos atrás
fazia diferença porque diminuía o comércio, né? Mas agora não. Agora a semana inteira na rua da
frente, lá, é movimentada. Aumentou muito o comércio, aqui, com esse povo.
33
Para a definição de identidade, eu (self) e Outro, vide GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida
Cotidiana. Petrópolis, Vozes, 1985. Os conceitos da psicologia social de Goffman são fundamentais para a
compreensão da relação nativos/os “de fora”.
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E isso pra senhora é bom ou é ruim?
Dona Tereza - Ah, pra gente é bom porque a cidade cresce, né? E também, esse povo
mais isolado, assim, fica mais de fora... Não fica por aqui, no centro. Vem, faz compra e vão embora
pra lá. Mas que o centro melhorou, melhorou sim. E abriu muita loja depois disso, viu? De roupa
assim, abriu bastante, sim.
Mas então é melhor que eles venham, façam as compras e vão embora?
Dona Tereza - É, eles fazem a compra e vão embora. Mas tem aqueles que ficam por aí
à noite, que quebram os vidros das casas... Tanto é que tinha casa com muito vidro à mostra, já
taparam com tijolo que é pra não ter perigo de quebrar mais, né?
Este é, afinal, o momento de re-conhecimento e de estranhamento de ambos os
grupos. Mesmo que Dona Tereza saiba a importância que os “de fora” têm para o comércio
local, prefere que estes freqüentem as ruas do centro, consumam, e imediatamente voltem
para as periferias pobres. Caso isto não ocorra, um conflito e/ou um ato de vandalismo são
eminentes. Ou ao menos é o que acredita Dona Tereza que, paradoxalmente, jamais foi vítima
de nenhum caso de violência ou vandalismo na cidade, e deixa o pequeno portão da frente de
sua casa aberto mesmo de madrugada. Dona Tereza nos prova que grupos “de fora”, quando
inseridos nos espaços nativos, são facilmente percebidos e indesejados. Como isto ocorre,
uma vez que em seus rostos não estão estampadas as suas naturalidades? Carla responde:
Carla - Ah, eles são mais morenos, né? Geralmente mais pra cor parda. Nem moreno
muito escuro, nem branco assim, mais da cor parda. Geralmente são assim, magros, mas magros de
um peso bom. Têm uns que têm feição de nordestino, têm outros que não, são normal, [sic] entendeu?
Mas uns chegam, são super simpáticos, não sabem o quê fazer pra te agradar. Mas é o que te falei, é
uma porcentagem que vem de fora e forma as gangues e bagunçam, entendeu?
Nesta fala, é perceptível que, de uma certa forma, rostos podem estampar suas
naturalidades, ou ao menos a que grupo pertencem: ser negro ou pardo é impreterivelmente
ser “de fora”, com todos os estigmas que ser “de fora” em Guariba possui. A palavra
“moreno” é utilizada por Carla para escamotear um forte preconceito racial existente contra o
negro. Assim, há uma qualidade comum (ser negro ou pardo) compartilhada com os “de fora”
que os identifica desta forma; sua corporalidade projeta uma impressão para os nativos que
torna possível uma dialética e discriminatória relação entre os dois grupos. Utilizando-se da
expressão migrante, o nativo mascara um preconceito de cor e de raça muito mais evidente e
Andréa Vettorassi
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forte que o de naturalidade. Munido de seu alto poder de coesão, o nativo atribui ao “de fora”
(migrante e, principalmente, negro ou pardo) todos os males de sua sociedade:
Carla – Ah, aqui é só vidro fechado. Tranca janela, porta, tudo. Antigamente, quando
você podia dormir com as janelas abertas... Antigamente eu quero dizer uns vinte anos atrás... A gente
deixava janela aberta, deixava cadeira lá na área. Ficava no quintal à noite e era normal... Se você
quisesse até dormir com a porta aberta, não tinha problema nenhum. Mas depois que começou esta
migração... foi aí que começou este problema, tá um perigo. Aqui, uma hora, duas horas da tarde, você
já tem que trancar tudo. Que eles não escolhem mais horário pra entrar na sua casa. Tanto faz se é de
dia, de noite... E isso é geral, não é só aqui no centro. Nos outros bairros também. É geral.
Outros moradores destacam os mesmos problemas:
E o senhor acha que os migrantes são mais violentos?
Senhor Vítor - É, não, eu acho que são tudo esses nortista. A gente vê, quem dá tiro lá,
quem morre, é tudo nortista!
Leila – É, é mesmo.
Senhor Vítor – Daqui mesmo, não.
Mas por que será?
Senhor Vítor - Ah, não sei. Mas eu acho que deve ser cultura, viu? Tem muita falta de
educação praqueles lados...
Leila – É, praqueles lados de cima, lá, ainda mais pro sertão, não tem lei, né? Não
tinha lei lá... Então eles mata e pronto, né?
Senhor Vítor – Manda matar...
Leila - Manda matar, né? Que nem no tempo do Lampião. Continua a lenda... Quando
é crime é isso aí, “é morador de tal lugar”. Nunca é morador daqui.
Senhor Vítor – No meu tempo, meu pai deixava a porta aberta da minha casa, não
tinha roubo...
O senhor Vítor se lembra de um tempo em que os moradores de Guariba,
inclusive seu pai, deixavam as portas das casas abertas porque não tinham medo de roubo ou
de nenhum outro tipo de violência. Acredita que os problemas atuais que a cidade enfrenta
podem ser atribuídos à cultura migrante, ou à falta de cultura e educação entre o grupo
migrante, que “manda matar e pronto”. Leila cita o tempo do Lampião, figura nordestina que
sempre determinou e utilizou as suas próprias leis e que, de acordo com a entrevistada, inspira
um comportamento anômico entre os moradores de Guariba advindos de estados nordestinos.
É curioso observar que Leila fala de um criminoso que “nunca é morador daqui”. As
expressões que utiliza evidenciam um sentimento que Leila tem de total não pertencimento do
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grupo “de fora”: o migrante nem ao menos é morador de Guariba, estando absolutamente
desprendido da cultura nativa. A cultura é, portanto, uma nova di-visão entre os dois grupos:
Carla – Bom, eu acho que onde eles moram não deve existir uma lei muito rigorosa.
Porque eles vêm aqui e fazem a lei deles. Que nem eles falam lá em cima... o morro, né? Lá pra cima,
com aquele pessoal lá, se você olhou torto, tá marcado! Você não pode discutir, você não pode
questionar... você não pode fazer nada. Então, primeiro que a maioria não tem a menor cultura, né?
Acho que a cultura faz muita falta, a instrução, né? E depois que eles tão tudo acostumado, porque eles
moravam lá no sertão, onde ainda deve reinar aquele tipo de lei, de coronel, essas coisas, então aqui,
dependendo da pessoa lá em cima, se você falar alguma coisa, você tá marcado. E eles se pegam
mesmo. Sem dó. Então você tem que saber como lidar com esse povo. Não todos, mas uma parte.
Carla cita uma quarta di-visão que marca a relação nativos/os “de fora”, que é
o espaço geográfico. Ela fala de um “morro” onde a violência e a criminalidade estão mais
presentes que em quaisquer outros espaços de Guariba. Este “morro” é o Bairro Alto,
indiscutivelmente o mais conhecido bairro de migrantes da cidade, por uma série de fatores já
apresentados: foi o primeiro bairro que surgiu, na década de 50, para receber os pioneiros
grupos de trabalhadores mineiros e baianos para o corte da cana; foi também o palco da greve
de 84, tendo saído dali os levantes grevistas em direção ao centro da cidade; está localizado na
entrada da cidade, à vista de todos os moradores e visitantes; é o bairro mais populoso de
migrantes, que não só concentra inúmeros “becos”
34
e pensões de migrantes temporários,
como também as casas dos migrantes permanentes e seus filhos, representantes da 2ª geração.
Mas o Bairro Alto não é o único que recebe os migrantes, em especial os
temporários. Estes grupos estão localizados em diversos outros pontos da cidade, como a Vila
Rocca, a Vila Jordão e a Vila Amorim. No entanto, estes bairros nem ao menos são
mencionados pelos entrevistados. Quando questionados sobre a Vila Jordão, alguns nativos
relatam que não existem migrantes neste espaço, sendo que este é o segundo maior bairro de
migrantes da cidade. Talvez por ser um bairro antigo, que também é ocupado por famílias
34
“Becos” são estreitas ruas sem saída, em geral não asfaltadas, que concentram inúmeras casas em minúsculos
e pouco arejados espaços. Essas casinhas compartilham um só banheiro e um portão de entrada, e têm difícil
acesso.
Andréa Vettorassi
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mais antigas e tradicionais de Guariba, não seja compreendido enquanto bairro de migrantes.
O Bairro Alto é, portanto, o mais conhecido e estigmatizado pelas características expostas
acima, como reconhece Carla:
Na Vila Jordão também tem migrante, ou não?
Carla – Ah, tem, essa gente tá espalhada na cidade inteira.
Não é só lá pra cima?
Carla – Não, não. Lá pra cima [Bairro Alto] a gente tá acostumado a falar porque tem,
a maioria dos escopos de migrantes que tem moram tudo pra lá. Então eles vêm, ficam, outros vão
embora, outros ficam tudo solto... mas na cidade inteira, Vila Rocca... Acho que menos aqui mais
perto do centro ou no bairro mais perto do hospital [Jardim Boa Vista], que é um bairro mais nobre,
né? Acho que por ali não deve ter, mas de resto... Essas novas vilas que estão se formando, Paulistano,
Monte Belo... A maioria é tudo do pessoal que veio de fora.
Ser “de fora” é, fundamentalmente, ser migrante, ser negro ou pardo, pobre
economicamente (cortador de cana) e culturalmente (ter baixo nível de escolaridade e/ou estar
relacionado aos valores culturais nordestinos) e ser morador do Bairro Alto. Mas basta ter
uma das características acima para ser rejeitado e estigmatizado pelo grupo nativo, detentor de
uma violência simbólica “que se exerce pelo poder das palavras que negam, oprimem e
destroem psicologicamente o outro” (Zaluar & Leal, 2001: 148). Segundo Bourdieu (1989), a
violência simbólica é operada pelos mandatários do Estado, que possui o monopólio de uma
violência simbólica legítima, o que inclui a Justiça, instituição na maior parte das vezes
inacessível aos migrantes e seus descendentes. No entanto, a sociedade civil também
demonstra sua capacidade de violentar simbolicamente o outro, como fazem os nativos de
Guariba. Nos “de fora” é atribuída a estigmatização do “marginal”, e a tese de que a miséria
sempre gera criminalidade legitima uma violência simbólica multifacetada, que se transpõe
para o mundo da violência real. O nativo utiliza as di-visões acima (de classe, cor/raça,
naturalidade e etc.) para justificar a criminalidade existente na cidade e que é conhecida por
todas as cidades vizinhas de Guariba. Ou seja, os nativos tomam consciência de suas posições
no mundo social quando mantêm relações de força com os “de fora”, quando classificam e
nomeiam o outro de acordo com o seu capital simbólico (Bourdieu, 1989), que nada mais é
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que as diversas propriedades que os agentes constroem para determinarem suas posições nos
espaços sociais e que só é significativo quando conhecido e reconhecido pelos outros agentes.
De acordo com Bourdieu (1989: 140), quando categorizamos o outro (elogiamos,
congratulamos, louvamos, insultamos, criticamos, censuramos ou acusamos), estamos
determinando e reconhecendo nossas próprias posições sociais. Conclui que na verdade temos
uma “inconsciência de classe”, já que as representações dos agentes estão em constante
transformação. Apenas reconhecemos a posição que ocupamos no espaço social na prática,
nas relações sociais que mantemos com os outros grupos sociais e que nunca é estática ou
unilateral. Assim, o nativo transfere para o “de fora” os pontos negativos existentes em sua
comunidade (pobreza, criminalidade, etc.), com o intuito de preservar sua auto identidade
(self); é uma forma de defesa, que se baseia no ataque.
2.3 Os Lugares da Memória e os Mapas Afetivos
Nesta seção objetivamos, não apenas com as falas dos depoentes, mas
utilizando como recurso um novo material de pesquisa que são os mapas afetivos, demonstrar
como se revelam as lembranças dos depoentes nativos e de que forma elas são transportadas
para o papel. No entanto, é necessário destacar que os desenhos (os mapas afetivos) vêm
recebendo inéditas reflexões e abordagens sociológicas
35
, mas já foram amplamente usados
em estudos nas áreas da psicologia, psiquiatria e terapia ocupacional. Destacamos dois
excepcionais trabalhos, que estão correlacionados: os dos psiquiatras Carl Gustav Jung e Nise
da Silveira (2001), que acreditavam que os desenhos e pinturas de seus pacientes
representavam a totalidade de um Self compartilhado. As imagens revelavam o interior dos
35
Teses, dissertações e pesquisas de outras naturezas, relacionados ao LMS (Laboratório de Memória e
Sociedade), coordenado pela Profa. Dra. Maria Ap. de Moraes Silva, vêm aplicando este novo recurso
metodológico em suas pesquisas de campo, à luz da História Oral. Destacamos os seguintes trabalhos:
COVEZZI, M. Lembranças do Porto: um estudo sobre o trabalho e os trabalhadores do porto de Cuiabá (1940-
1970). Tese (Doutorado em Sociologia) – UNESP, Araraquara – SP. 2000 e ANDRIOLLI, C. S. Nas Entrelinhas
da História, Memória e Gênero: lembranças da antiga fazenda Jatahy (1925 - 1959). Dissertação (Mestrado em
Ciências Sociais) UFSCar – São Carlos. 2006.
Andréa Vettorassi
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indivíduos que as produziam, e a análise destas imagens trazia à luz dimensões e mistérios
dos processos do inconsciente.
Sob uma perspectiva sociológica, Halbwachs (1990) e suas reflexões
fortalecem as análises sobre os mapas afetivos, já que, desde o início do século XX, este autor
foi contra a oposição indivíduo/sociedade e passou a analisar intensamente a importância da
memória e seus aspectos nas sociedades modernas. A sociedade, longe de uniformizar os
indivíduos, diferencia-os, pois na medida em que os homens “multiplicam suas relações (...),
cada um deles toma cada vez mais consciência de sua individualidade” (Alexandre. In:
Halbwachs, 1990: 22). Halbwachs entende que a sociologia é a análise da consciência que
temos da sociedade e que existe na sociedade. É pensar como as condições sociais – a
linguagem, as instituições, as tradições, dentre outras – tornam possível a consciência de cada
indivíduo. A sociedade é, essencialmente, consciência, e por isto a memória é
fundamentalmente importante entre os grupos sociais (1990: 21). No foco destas reflexões, os
mapas afetivos são significativos quando revelam as lembranças e os aspectos da vida
cotidiana mais presentes nas memórias daqueles que os construíram, ou seja, sugerem quais
consciências cada indivíduo tem de seu grupo.
Nas falas e desenhos dos depoentes, muitos são os lugares da memória
preservados em suas lembranças. De acordo com Nora (In: Pollak, 1989: 4), lugares da
memória são os patrimônios arquitetônicos, os monumentos e seus estilos, que nos
acompanham por toda a vida. Os lugares da memória são também as tradições e costumes, as
regras de interação, o folclore e a música e até mesmo as tradições culinárias, contanto que
todos estes elementos contenham a vontade de memória entre aqueles que os experimentaram.
Sem a intenção de lembrança, os lugares da memória tornam-se lugares de História, que não
são lembrados pelos indivíduos e identificados pelos seus grupos. Ou seja, os lugares da
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memória são os diferentes pontos de referência que estruturam nossa memória e que se
inserem na memória da coletividade a que pertencemos:
Dona Tereza - Depois que a cidade foi melhorando um pouquinho, foi dando algum
tempo assim, e aí veio o asfalto... Ah, primeiro veio a água encanada! Mas só em uma parte da
cidade... essas vila tudo, não tinha nada! Era só cana. E passava um trem aqui, bem pertinho de casa.
Foi em uma época que construíram aí uma construção e foi então que passou o trem. Agora já faz
trinta anos que tirou o trem, mas passava. O café ia pra Santos todo levado de trem. Agora é só
caminhão, né? Mas ele passava com passageiro, dois carros que iam pra São Paulo, e dois que iam de
retorno.
Como é possível observar, um depoimento não tem sentido sem uma relação
com o grupo do qual o depoente faz parte, pois supõe um acontecimento real vivido em
comum. A memória individual existe, mas situa-se “em uma encruzilhada das malhas de
solidariedades múltiplas dentro das quais estamos engajados” (Duvignaud. In: Halbwachs,
1990: 14). A lembrança é um ponto de referência em meio à variação contínua dos quadros
sociais e da experiência coletiva histórica, em especial dentro de períodos de tensão e crise.
Por isso temos diversas formas de memória e lugares de memória, com diferentes objetivos. O
trem, embora desativado há trinta anos, sem dúvidas é um lugar da memória porque, na
lembrança dos moradores, ainda atravessa a cidade e corta sua principal praça em direção à
cidade de Jaboticabal - SP. É um lugar da memória porque revoluciona Guariba, antes pacata
e ilhada e, depois do trem, com ligação direta à capital:
Quais lembranças da cidade mais marcaram o senhor?
Senhor Vítor - [Silêncio] as que me marcaram mais? [silêncio] O que me marcou mais
foi a saída... a saída da estrada de ferro daqui de Guariba. Isso aí foi o que me marcou mais. Não
deviam ter parado com isso daí. Naquele tempo era muito bom. Pra qualquer outra cidade nós ia de
trem.
Como era de se esperar, os migrantes não estabeleceram espaços de memória
para os nativos. No máximo, os “de fora” têm na memória destes nativos espaços periféricos,
quando são associados à urbanização desregrada dos anos 70 e à posterior violência dos anos
80 e 90. Isto porque, como foi exposto acima, os lugares da memória apenas são preenchidos
Andréa Vettorassi
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com a intenção da lembrança, com a vontade de rememorar aqueles que são considerados os
aspectos bons da cidade e sua história. O senhor Carlos lembra-se da imigração italiana, a
qual é descendente, com particular carinho:
Senhor Carlos - No Centro de Imigração Italiana, era ali que a gente fazia os bailes, as
brincadeiras, o carnaval... [...] Antes a cidade era pequena, e era quase que totalmente dominada pelas
famílias originárias dos imigrantes italianos.
Ressalta a cultura, a música, a culinária, as associações, ou seja, os diversos
lugares da memória construídos e trazidos por este povo. No entanto, fala da migração
nordestina com forte desprezo e termos pejorativos. Ressalta a “cultura do pé no chão”, o que
para ele significa ser “preto, pobre e sujo”. É como se até hoje os migrantes não fizessem
parte do grupo, não fizessem parte da memória coletiva deste grupo (Halbwachs, 1990), a não
ser quando são responsabilizados pelos fatores negativos da cidade.
Os mapas afetivos evidenciam com ainda mais intensidade os lugares da
memória daqueles que os constroem. Para todos os depoentes, pedi que “desenhassem a
cidade”. Quando queriam maiores explicações, esclarecia que eles deveriam desenhar os
pontos que mais os marcavam na cidade. Em frente a eles deixei, à disposição, folhas em
branco e uma caixa de lápis de cor.
O senhor Vítor utilizou apenas o lápis de cor preta e, na folha branca, foi
traçando as principais ruas do comércio da cidade, como a Rua Nove de Julho, a Rui Barbosa
e a Sampaio Vidal. Em seguida, com um único traço marcou a linha do trem. Fez duas
delegacias, onde ela era antigamente (na década de 50) e onde é atualmente, assim como duas
prefeituras, sendo que uma ele apagou quando percebeu o equívoco. Também fez um hotel,
dois cinemas e uma escola que já não mais existem desde a década de 70. Em meio a estas
lembranças passadas, desenhou sua contemporânea loja de eletrodomésticos. Contrastando
tempos e espaços diversos em seu mapa afetivo, o senhor Vítor demonstra que ambos (tempo
e espaço) se apresentam instavelmente quando relacionados à memória. Isto porque o tempo
Espaços Divididos e Silenciados
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não é um meio estável, como uma linha reta e exata, onde se desdobram todos os fenômenos
humanos. Ademais, os espaços contêm, além de físicos, muitos lugares simbólicos, onde as
lembranças mais profundas se recriam constantemente. A partir da instabilidade presente no
tempo e no espaço, é que a memória não segue a cronologia da História porque possui e
evidencia marcas profundamente pessoais (Halbwachs, 1990).
Mapa Afetivo do Senhor Vítor (2005)
O senhor Samuel
36
, 67 anos, branco, funcionário público aposentado, também
desenhou o centro da cidade, e não quis lápis de cor, mas uma caneta esferográfica. Poucos e
tremidos traços representam sua casa, a casa de sua vizinha, um antigo casarão onde eram
feitos os bailes dos colonos italianos e a linha do trem, que termina em sua antiga estação. Em
seu mapa afetivo, há um curioso distanciamento entre o ponto que representa a sua casa e a
periférica Vila Jordão: sua casa está em um extremo do papel e a vila no outro extremo, sendo
que, na realidade, esta distância é de apenas quatro quarteirões. A distância entre a sua casa e
outras casinhas que ele desenhou bem próximas à sua é também de quatro quarteirões,
evidenciando uma desproporcionalidade dos espaços representados. Mais uma vez, os espaços
se apresentam instavelmente, neste caso deixando claro que os indivíduos se caracterizam
essencialmente pelo grau de integração existente no tecido das relações sociais (Halbwachs,
36
O depoimento do senhor Samuel foi colhido no dia 14 de junho de 2005, em sua casa, mas não foi gravado a
pedido do entrevistado.
Andréa Vettorassi
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1990). O senhor Samuel rememorou as experiências vividas e compartilhadas entre aqueles
que ele considera seus vizinhos. Como nunca estabeleceu nenhum grau de integração com os
moradores da Vila Jordão, os “marginalizou” em um extremo do papel, denunciando com os
espaços físicos da memória quais tipos de relações mantém com os diversos grupos sociais de
Guariba.
Mapa Afetivo do Senhor Samuel (2005)
Quando percebeu a curiosidade que tive, em nossa conversa, sobre a greve de
84, o senhor Samuel fez um novo mapa afetivo, o qual representa as ruas do Bairro Alto
tomadas pelas Tropas de Choque que vieram de cidades como Barretos – SP, Ribeirão Preto –
SP e Jaboticabal – SP. Nestes traços, identifica a posição dos grevistas no desenho, que são
homens e mulheres moradores de Guariba. No entanto, o senhor Samuel me pede para
escrever em cima “invasores”, uma impressão dos grevistas que é compartilhada por todo o
grupo nativo. As lembranças são sempre coletivas porque, em realidade, nunca estamos sós.
Espaços Divididos e Silenciados
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Nossas idéias, pensamentos, lembranças e valores sempre têm uma perspectiva, uma relação
com as experiências que obtivemos em contato com os Outros. Somos um eco, nos
identificamos com o pensamento dos outros, como se “já tivéssemos pensado nisso antes”. As
nossas opiniões e sentimentos são muitas vezes a expressão dos acasos que nos colocaram em
relação com grupos diversos ou opostos e as influências que estes têm, separadamente,
exercido sobre nós. Quando cedemos sem resistência a uma sugestão de fora, acreditamos
pensar e sentir livremente. Por isso as lembranças surgem de acordo com os elementos
transmitidos pelas outras pessoas que também viveram aquele momento: “Nossos sentimentos
e nossos pensamentos mais pessoais buscam sua fonte nos meios e nas circunstâncias sociais
definidas” (Halbwachs, 1990: 36). Ademais, é interessante notar que há na lembrança uma
relação com os nossos interesses. Afinal, apenas nos lembramos daquilo que nos interessa
lembrar.
Mapa Afetivo do Senhor Samuel – greve (2005)
O mapa afetivo de Dona Tereza já tem aspectos diversificados. Ele é bastante
colorido e tem árvores e flores. No tempo vivido, que se contrapõe ao tempo concebido pela
Andréa Vettorassi
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História, estão contidas as próprias experiências, definidas pelas marcas pessoais dos
depoentes (Halbwachs, 1990). Nestas marcas, há a distinção de classe social, raça/etnia, etc.
Nos mapas afetivos, uma das marcas mais evidentes foi a referente ao gênero. Ao contrário
dos mapas afetivos masculinos, o desenho de Dona Tereza tem apenas três ruas de terra, ou
seja, não é um mapa aéreo como os do senhor Vítor e do senhor Samuel, sendo mais
introspectivo. Estas três ruas representam o centro da cidade no início do século XX, quando
Dona Tereza era ainda uma criança e vivia na fazenda:
E onde que está a casa da senhora?
Dona Tereza - Ah, mas eu não fiz minha casa, porque eu não tinha casa aqui ainda. Eu
ainda morava com a minha família. Aqui eu desenhei quando eu ainda morava na fazenda, com a
minha família.
Ah, tá. E essas casinhas eram então de quem?
Dona Tereza - Essa aqui era de uma velhinha que morava, essa aqui era outra... E
antigamente isso aqui era de barro, depois de um tempo é que fizeram de tijolo.
Ah, era de barro?
Dona Tereza - De barro!
Aqui no centro?
Dona Tereza - Que centro? Antigamente não tinha centro! [risos]
O “barro” que estigmatiza o Outro não é o mesmo “barro” quando se trata de
seu tradicional grupo nativo no início do século XX. É importante observar que as
representações sociais são cambiantes: interesses e valores mudam segundo as diferentes
“óticas” e “posições” dos sujeitos ao longo de suas trajetórias. Além das casinhas de barro,
Dona Tereza desenha os trilhos do trem, galinhas e hortas, cercas de madeira que representam
as fazendas e a mata ainda nativa na parte de cima da cidade. Esta é, enfim, a Guariba que
Dona Tereza não se esquece.
Espaços Divididos e Silenciados
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Mapa Afetivo de Dona Tereza (2005)
A memória coletiva tem força e duração porque tem por suporte um conjunto
de homens e mulheres. No entanto, estes homens e mulheres são indivíduos, que se lembram
enquanto membros do grupo. Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória
coletiva. “A lembrança aparece pelo efeito de várias séries de pensamentos coletivos em
emaranhadas, e que não podemos atribuí-la exclusivamente a nenhuma dentre elas”
(Halbwachs, 1990: 52).
Andréa Vettorassi
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Enfim, há uma ligação muito estreita entre memória e sentimento de
identidade. Identidade no sentido da imagem de si, para si e para os outros. “Ninguém pode
construir uma imagem de si isenta de mudança, de negociação, de transformação em função
dos outros. [...] Vale dizer que memória e identidade podem perfeitamente ser negociadas, e
não são fenômenos que devam ser compreendidos como essências de uma pessoa ou de um
grupo” (Pollak, 1989: 204). Já que a memória e a identidade são avaliadas pelo Outro e estão
em constante transformação, estas podem ser disputadas em conflitos sociais e intergrupais, e
particularmente conflitos que opõem grupos políticos diversos. Em Guariba, estes grupos
diversos se destacam nos mapas, que só poderiam ser afetivos porque revelam as marcas que
mais afetam e afetaram a vida dos depoentes que os construíram. A memória é seletiva e tem
uma base espacial (Halbwachs, 1990). Ou seja, o tempo rememorado é construído de acordo
com os espaços, que são singulares para cada indivíduo e revelados nos mapas afetivos. A
casa, a rua, o multicolorido ou o monocromático, são as essências imediatas das pessoas e dos
grupos a que elas pertencem.
2.4 A Árvore e o Machado
“A árvore, quando está sendo cortada,
observa com tristeza que o cabo do machado é
de madeira”.
(Provérbio Árabe)
Nas formas de sociabilidade intergrupos, íntimas e familiares, ou mesmo
públicas, como nas esquinas das ruas centrais da cidade, ou no jogo de damas entre os amigos
na praça, é que a coesão se estabelece e a identidade do grupo se preserva. Não obstante, é o
espaço e o momento de ataque ao Outro. Nada que se relacione ao grupo “de fora” pode ser
bom ou vantajoso à sociedade guaribense; muito menos a greve, verdadeira divisora de águas,
que não tem espaço na memória coletiva da cidade e de seus moradores. É, assim, um ponto
Espaços Divididos e Silenciados
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indesejado na história guaribense, não rememorado, não debatido em especial entre as novas
gerações, que nem ao menos a presenciaram e nada sabem sobre ela.
Entre os entrevistados, a greve só foi comentada quando foram questionados
sobre ela. Em geral, as respostas destacam seu caráter violento e justificam todas as denúncias
feitas anteriormente contra o grupo “de fora”, como se quisessem dizer “vejam só como tenho
razão”. Destacamos algumas delas:
E a senhora tem alguma lembrança da época da greve que teve aqui?
Dona Tereza - Da greve? Foi um padre que fez, não é?
Que padre?
Dona Tereza - Eu não me lembro... Acho que era o padre Celso, parece que foi... Não
me lembro direito. Não... eu não me lembro o nome dele. E foi ele que fez a greve aqui. Eu estava em
São Paulo quando aconteceu a greve aqui.
Ah, é? Depois que a senhora ficou sabendo?
Dona Tereza - É, o pessoal daqui ligou lá em São Paulo pra contar o que estava
acontecendo.
Então a senhora não estava aqui, não viu?
Dona Tereza - Não, não vi. Na greve, eles mataram um coitado que estava ali na
esquina, ali perto da Sabesp. Só que eu não estava aqui.
E o quê a senhora achou da greve?
Dona Tereza - Ah, pra falar a verdade eu achei tudo errado porque destrói muita coisa,
né? Até mataram um moço, que tava assistindo ali perto do supermercado do Cláudio Amorim. E
entraram lá dentro, levaram as coisas da lojinha dele. Eu acho que greve não dá camisa pra ninguém,
não.
Dona Tereza tem poucas lembranças da greve e destaca seus pontos negativos,
como a morte de um homem e os saques ao supermercado. Outros depoentes têm lembranças
muito semelhantes:
Eu ouvi falar de uma greve que teve aqui. A senhora já estava aqui?
[Dona Laura não responde e Carla procura ajudá-la na resposta]
Carla – A greve da Sabesp, lembra mãe? Que morreu um moço lá no campo...
[silêncio]
Carla – A greve, mãe!
Dona Laura – Ah, devo saber, mas não lembro, né?
Carla – Uma greve, mãe, que puseram fogo nos canaviais, tudo... Repercutiu até no
mundo inteiro, as imagens tudo... Quebraram a Sabesp na época, o escritório... uma irmã minha
trabalhava na Sabesp nesta época. E puseram fogo, aí veio a tropa de choque... Ih, era por causa de
pagamento, né? Mas é um acontecimento marcado, que marcou a história de Guariba.
E sobre a greve que teve, há alguns anos atrás? O senhor se lembra?
Senhor Vítor – Ah, é, aquela greve de Guariba, dos trabalhador...
Andréa Vettorassi
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Leila – É, foi feia, foi muito feia... Foi em 82?
Senhor Vítor – Foi!
Leila - É, 82! Ou foi 84? [longo silêncio]. É, aquele dia foi horrível.
Senhor Vítor – É, o que teve de tiro! Morreu inclusive um conhecido meu. Sentou ali
na porta do campo, mas só pra assistir o ocorrido. E aquela correria, tudo... Levou um tiro no peito. E
era uma bala perdida. Ah, marcou a cidade, viu? O que vi de gente com enxadão, essas coisas...
Arrebentaram com facão as portas do supermercado do tal do Amorim.
Leila – Puseram fogo numas peruas lá, que tinha, umas Kombi...
Senhor Vítor – É, puseram fogo. Vixe! O que você via de gente passar com
ventilador, com saco de arroz, saco de tudo...
Leila – Ai, credo!
Senhor Vítor – Assaltaram, mas limparam o supermercado mesmo!
Leila – Mas o povo aproveita pra fazer isso, né? Não tem nada a ver o povo ficar
roubando o supermercado, com a greve, né? Eles se aproveitam!
E o quê vocês acham disso? Eles estavam certos de fazer greve?
Senhor Vítor – Tavam nada!
Leila – Pra terem feito do jeito que fez, não! Não precisava ter sido daquele jeito, não!
Senhor Vítor – Isso aí foi um absurdo.
Freqüentemente, a memória em comum passa por um trabalho de
enquadramento, que tem a finalidade de manter a coesão interna e defender as fronteiras
daquilo que um grupo tem em comum (Pollak, 1989). A memória enquadrada, muitas vezes
conscienciosamente, evita certas lembranças e passados, como se uma ferida não estivesse
totalmente cicatrizada e, por um descuido, pudesse ser novamente aberta. Os nativos de
Guariba sabem, mesmo que evitem pensar nisso, que o grupo “de fora” sofre, há décadas, os
desastres de uma pobreza relativa e de estigmas culturais e sociais. Sabem também que a
greve foi, de uma certa forma, a “reviravolta”, o momento que a revolta vinda “de fora”
atingiu diretamente o cotidiano da vida nativa e, enfim, se fez perceber. O grupo nativo quer
que o “de fora” volte para seus locais de origem (que, na ideologia nativa, nunca é Guariba)
ou que, pelo menos, se preserve nas periferias pobres e invisíveis e evite qualquer contato. Por
isso, uma greve é sempre catastrófica, e apenas seus pontos negativos são destacados.
O contato com Severino, um aposentado de 60 anos, foi feito através de seu
filho, um advogado que trabalha em Guariba e que contou que seu pai era policial militar e
esteve na greve de 84. Na época, houve uma suspeita de que da arma dele teria saído o tiro
que matou o metalúrgico aposentado Amaral Vaz Melone durante as manifestações. O próprio
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Severino acreditou nesta possibilidade, uma vez que deu vários tiros para cima durante o
piquete. No entanto, um inquérito policial concluiu na época que não foi da arma dele que o
tiro saiu, já que Severino usava um revólver calibre 38, e o tiro que matou o metalúrgico saiu
de uma pistola. Quando conversamos por telefone, com o objetivo de marcarmos uma
entrevista, descobri que Severino é pernambucano, e na sua entrevista esclareceu que migrou
na década de 60 para trabalhar nas usinas de cana-de-açúcar. Foi taxativo em dizer que não
falaria sobre a greve, pois o passado acabou e não significava mais nada em sua vida e
lembranças. Enfatizei, durante a conversa, a importância da memória e das lembranças, pouco
valorizadas neste primeiro contato. Mas sua entrevista mostra que nem sempre as lembranças
não são dotadas de valorização. Quando pensa em sua mãe e na vida em Pernambuco, o
pensamento voa, e então Severino rememora. “Como é bom lembrar”, disse, e começa seu
depoimento explicando porque migrou para Guariba:
Severino - Eu tinha um irmão que na época trabalhava aqui na usina Bonfim, e isso é
natural, a pessoa, o nordestino, ele ..., sempre..., porque a região que eu nasci é muito desprovida de
indústria, né? E eu, um jovem, ele sempre pensa em um dia ir pra São Paulo porque..., hoje não, mas
antigamente tinha uma visão assim, no nordeste, que São Paulo era um lugar, que, é..., tinha muito
trabalho e que melhorava de vida, né, a gente via as pessoas que vinha daqui pra lá chegava sempre
bem vestido, e me dava a impressão que a pessoa chegava aqui e que melhorava de vida, e então, sabe
como é que é, né? E então, assim como a pessoa sai daqui pra melhorar de vida em outro país, nós
também. Meu irmão estava aqui na usina Bonfim, e eu fiz 18 anos..., não eu fiz 20 anos, até fiz na
estrada, viajando. Mas já faz 40 anos que eu moro aqui.
37
Este é um ponto em comum nas falas dos migrantes, que justificam suas
vindas destas formas: melhoria de vida, ter dinheiro, ter trabalho, poder se vestir melhor.
Severino trabalhou na usina Bonfim por dez anos, como auxiliar de destilaria. Conheceu a sua
atual esposa, que é guaribense, já na década de 70, e com ela montou uma pensão que servia
almoço para os bóias-frias. Foi ascendendo economicamente e, ainda na década de 70, prestou
concurso público para policial militar. Hoje está aposentado, tem três filhos e um grande
carinho por Guariba:
37
Entrevista realizada no dia 28 de março de 2005, na casa do depoente, no centro da cidade.
Andréa Vettorassi
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Severino - Guariba sempre foi uma cidade acolhedora, tá? Aqui tem gente de toda a
parte do Brasil. Principalmente mineiro. E eu gostei... Eu vim com 20 anos, que fiz na estrada, hoje...
Eu tô aposentado, como funcionário público, né? Meus filhos tudo formado, minha esposa tá também
aposentada. Então eu só posso falar bem, muito ótimo. Não tenho nada a falar mal de Guariba.
Falou muito sobre a sua família, sobre a sua cidade de origem e a sua mãe, que
ele procura visitar em Pernambuco todos os anos. Mas, como já havia me alertado, pouco
falou sobre a greve:
Severino - Parece que houve... é, eu não me lembro bem, mas parece que a turma
queria um certo número de ruas... é, a gente houve falar qualquer coisa, né? Mas, atualmente tá tudo
bem.
Como insisti, Severino rememorou, com alguma dificuldade e com o tom de
voz bem mais baixo, outros acontecimentos da greve:
Severino - O pessoal começou bem pacato. Na época eu tava trabalhando à noite e eu
que deflagrei. Aí levei pro conhecimento do meu comandante e... ele tomou as providências.
Neste momento que eles saquearam [o supermercado]?
Severino - Não, porque começou uma cinco horas da manhã o povo fazendo piquete
pra ninguém ir trabalhar. E o negócio foi começar a acontecer lá pra umas dez horas, mais ou menos.
Mas, essa história todo mundo conhece, né?
Marcou muito a cidade, né?
Severino – É, naquela época houve uma marcação, mas hoje o povo esqueceu porque
a cidade melhorou, muita gente boa, bons prefeitos...
Mas o senhor acha que o migrante hoje recebe algum tipo de preconceito, alguma
coisa assim? Por causa dessa greve?
Severino - Não, eu acho que não. Que Guariba hoje não tem preconceito. Então é
outra cidade mesmo.
Nem de grevista e nem de migrante?
Severino - Não, vê lá! Eu acho que não! Eu tenho certeza que a cidade não tem nada...
que aquilo foi um tufão que já passou.
Embora também seja um migrante nordestino, Severino incorporou os valores
nativos e salienta que a greve é “um tufão que já passou”. Não mencionou em nenhum
momento da entrevista a acusação que recebeu de ter matado o metalúrgico aposentado,
mesmo que este fato já tenha sido esclarecido. Aqui o “não-dito” é facilmente percebido, já
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que Severino se silencia diante de um constrangimento imbricado de estigmas (Pollak, 1989).
E fala de uma Guariba hospitaleira, que o acolheu e definiu os rumos de sua vida:
Severino – [...] você veja aqui minha esposa, quando ela era moça, ela não podia nem
ouvir falar de nordestino porque ela tinha medo. Ela achava que nordestino era... ela ouvia falar dos
filhos de Lampião, e não é nada disso. Hoje eu não sofro mais nada disso.
Por estar livre das fortes marcas que um dia já sofreu (mas que procura não se
lembrar), é que Severino se sente hoje parte do grupo nativo e da ideologia que este grupo
possui. Uma ideologia que, baseada em uma definição mais generalizada, pode ser
considerada um conjunto de convicções compartilhadas por um grupo, que tem por finalidade
explicar fenômenos sociais complexos, objetivando simplificar e orientar as escolhas
(políticas, culturais ou sociais) que se apresentam aos indivíduos que pertencem ao
determinado grupo, a uma sociedade (Gould, 1987). De acordo com Stoppino (In: Konder,
2002), este é o significado fraco da ideologia, quando esta apenas designa sistemas de crenças
políticas, conjuntos de idéias e valores que orientam comportamentos coletivos relativos à
ordem pública.
Mas ideologia pode ser muito mais que isso. Ela também tem um significado
forte, que é aquele em que o termo se refere, desde Marx & Engels, a uma distorção do
conhecimento, presente nas condições atuais da divisão social do trabalho. Marx & Engels
(1984) conferiram ao termo uma vinculação à “falsa consciência”: As ideologias são formas
de consciência falsas, que podem estar baseadas em ilusões. Ela é, portanto, um conceito
crítico e negativo.
Ou seja, o conjunto de convicções de um grupo é normalmente constituído de
idéias distorcidas e/ou enganadoras. No entanto, nem sempre a ideologia é em si mesma uma
ilusão. Ela é uma construção teórica distorcida, porém ligada a uma situação histórica
Andréa Vettorassi
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ensejada de distorção. É por isto que a ideologia está necessariamente relacionada às
condições históricas e também, de certa forma, à alienação.
Para compreender melhor o conceito, assim como a sua relação com a
alienação, é necessário descobrir em qual contexto ele foi construído por Marx. Esta idéia
surgiu a partir de discussões acerca do Estado que, embora construído pelos homens,
transpunha para os mesmos muitos sentimentos de estranhamento e conseqüente alienação:
“os próprios criadores [do Estado] tropeçam em mil dificuldades e não se reconhecem,
efetivamente, no que criaram” (Konder, 2002: 31). A partir desta primeira constatação, Marx
revela inúmeras outras situações em que o homem e os objetos criados por ele mantêm
relações alienadas, já que o indivíduo típico da sociedade burguesa não consegue
compreender-se enquanto ser humano universal. Os indivíduos se estranham uns aos outros,
se distanciam uns dos outros e são incapazes de compreenderem uns aos outros como um
conjunto dentro de um quadro histórico.
A ideologia é um dos conceitos fundamentais da filosofia marxiana porque foi
a partir das premissas acima que Marx passou a compreender o proletariado enquanto arma
material da filosofia e a filosofia enquanto arma espiritual do proletariado. Unida ao
movimento operário, a filosofia poderia tornar-se uma alternativa revolucionária à sociedade
hegemonizada pela burguesia. “Pela sua inserção na nova ação histórica transformadora, o
pensamento podia alcançar uma compreensão da realidade que reagiria às distorções
ideológicas e fortaleceria as ações desalienadoras no mundo alienado” (Konder, 2002: 35).
No entanto, o capitalismo altamente desenvolvido e o dinheiro enquanto centro
da dinâmica da sociedade capitalista tornaram-se, cada vez mais, elementos essenciais no
funcionamento de um “mundo invertido”, onde as distorções da ideologia se agravam
enormemente. As sociedades modernas abriram espaço para o fortalecimento de uma
ideologia individualista, que induzia as pessoas a minimizarem a interdependência existente
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entre elas, como se o indivíduo estivesse descontextualizado, fora da história. Ademais, a
distorção ideológica deriva da fragmentação da comunidade humana, do fato de os homens
não atuarem juntos. Sem a coletividade, a atividade do homem torna-se (para o próprio
homem) um poder estranho, como é o Estado, por exemplo. Um dos pressupostos essenciais
dos fenômenos ideológicos é a “convicção de que os seres humanos elaboram até agora falsas
representações a respeito deles mesmos, do que são ou deveriam ser” (Konder, 2002: 39).
A partir das primeiras reflexões acerca da ideologia, desenvolvidas por Marx,
muitos outros pensadores, nas mais diversas áreas, trataram de citar, discutir e ampliar este
mesmo conceito, dotado atualmente de uma gama de significados diferentes. No Brasil,
Roberto Schwarz (In: Konder, 2002: 138) entende que a ideologia hegemônica reflete os
limites dos horizontes burgueses, distorce a realidade, porém acompanha seu movimento e dá
conta de algumas de suas “verdades”. Marilena Chauí (In: Konder, 2002) atenta ao fato de
que, na concepção de Marx, a ideologia está ligada à divisão social do trabalho, à luta de
classes, à separação entre trabalho intelectual e trabalho material. “A ideologia nasce
combinando tarefas de construção do conhecimento com a missão de dissimular as tensões e
divisões que marcam a sociedade em que ela se desenvolve” (Chauí. In: Konder, 2002: 144).
A ideologia incorpora tudo aquilo que já perdeu sua força inaugural e tornou-se algo já
instituído.
Direcionamos nosso olhar à ideologia nativa existente em Guariba, que
compreende que o “de fora” nunca será “nós”, e facilmente correlacionamos à noção de
ideologia de Marx. Isto porque, de um certo ponto de vista, o “de fora” sempre foi “de
dentro”. No primeiro capítulo, vimos que as primeiras famílias existentes na cidade, muito
antes da ascensão da economia cafeeira na região, eram mineiras; no fim do século XIX e
início do século XX, todas as casinhas do centro da cidade eram de barro; já com o avanço da
economia sucroalcooleira, as primeiras máquinas trazidas para as usinas da região vieram do
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nordeste, em especial da Bahia, juntamente com intensa mão-de-obra nordestina; Cláudio
Amorim, Severino e tantos outros migrantes são parte intrínseca da história guaribense (tanto
que já são considerados “nativos” quando transpostos para a relação dicotômica nativos/os
“de fora”); além disso, inúmeras famílias migrantes já se estabeleceram na cidade há anos, e
ali tiveram seus filhos e netos que são, afinal de contas, guaribenses.
Mas a ideologia nativa não reconsidera suas convicções porque inúmeros pré-
conceitos estão em jogo. Como vimos, a classe e a raça/etnia estão fundamentalmente
presentes na relação nativos/os “de fora”. A classe e a raça são os substratos responsáveis
pelas discriminações existentes. No entanto, as nomeações utilizadas pelos nativos camuflam
tais categorias, substituindo-as por “nortista”, “moreno”, “gente de fora” e “gente estranha”,
linguagens carregadas de distorções ideológicas. Trata-se de uma sociedade profundamente
desigual, onde uma linha divisória necessariamente perpassa as categorias raça e classe. Além
disso, alguém precisa ser responsabilizado pelo atraso social e econômico que a cidade
enfrenta, e é conveniente culpar um grupo anacrônico, que nunca fez ou fará parte do tempo e
do espaço guaribenses. Este machado, quando corta a árvore, não se dá conta que seu cabo
foi feito de madeira.
No cotidiano de todos os homens e mulheres, há uma predominância da “lei do
menor esforço” (Konder, 2002). Um sujeito em seu cotidiano tende a se adaptar passivamente
às circunstâncias, adquire e conserva hábitos, tende à imitação e à repetição. As crenças e
convicções são simplificadas e ocupam grande espaço na percepção da realidade. É por isto
que na consciência cotidiana há uma fértil proliferação de preconceitos e de distorções
ideológicas. Não obstante, nem tudo na consciência cotidiana é alienado, nem tudo é
ideologicamente distorcido. “A dimensão ideológica surge quando a ultrageneralização [no
cotidiano] se liga a alguma tendência histórica real, às motivações de algum grupo que pode
Espaços Divididos e Silenciados
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tirar proveito de determinado preconceito porventura embutido na generalização
desmesurada” (Konder, 2002: 240).
Por outro lado, a consciência cotidiana apresenta possibilidades de resistência
aos processos da ideologia. Ela pode questioná-la e conter elementos que contribuam para
estimular a busca de alternativas para o quadro atual constituído. No próximo capítulo,
veremos como os migrantes de Guariba, em seus cotidianos, convivem e resistem aos
processos da ideologia nativa.
Andréa Vettorassi
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Partindo para a Cidade Garantida e Proibida
Espaços Divididos e Silenciados
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CAP. III – Partindo para a Cidade Garantida e Proibida
“O espetáculo não é um conjunto de imagens,
mas uma relação social entre pessoas,
mediada por imagens [...] Tudo o que era
vivido diretamente tornou-se uma
representação”(Debord, 1997: 13-14)
Ser moderno ou parecer moderno é o que muitos de nós almejamos. O mundo
moderno constantemente nos despeja mudanças, contradições e ambigüidades.
Conscientemente ou não, aprendemos a incorporar este turbilhão de novas idéias, novos
valores e representações que diariamente invadem nossas cidades, ruas e janelas.
De acordo com Berman (1986), nossas identidades no mundo moderno são
constituídas a partir da internacionalização da vida cotidiana, como também da fidelidade a
determinados grupos. No entanto, nem sempre a vida moderna é cotidiana, e os grupos pelos
quais nos identificamos são muitas vezes paradoxais. Qual o nosso papel no mundo moderno?
Quem somos em sociedades mediadas por imagens, e não por essências? E, principalmente, o
que é ser moderno em sociedades como a nossa, em que o mundo tradicional ainda é parte
constituinte de nossas identidades, em que o moderno e o global são importados e chegam de
formas heterogêneas?
O encontro de culturas tradicionais e modernas é algo intrigante. As
comunidades, pensamentos e valores que surgem a partir deste hibridismo são muitas vezes
inesperados e surpreendentes, e este encontro é perceptível em Guariba. Como vimos, a
ideologia nativa procura, munida de seu alto poder de coesão, manter o seu modo de vida
“tradicional”, representante da história oficial guaribense e de todos os seus aspectos
positivos. Para isto, desqualifica e acusa o Outro, o “de fora”, responsável por todos os
aspectos negativos dessa mesma história, que atualmente enfrenta problemas sociais e
econômicos. É como se o grupo “de fora” não tivesse seu lugar nem seu tempo na história
oficial guaribense e nos padrões por ela estabelecidos, sendo, portanto, um grupo anacrônico,
Andréa Vettorassi
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inclusive porque, para a ideologia nativa, não se adapta aos “modernos” padrões de vida
paulista. No entanto, certamente não existe na relação nativos/os “de fora” uma disputa
dialética entre o tradicional e o moderno. Estes extremos se relacionam, se misturam e se
confundem todo o tempo: é certo, por exemplo, que as famílias “tradicionais” guaribenses
censuram o que consideram um “tradicional atrasado” existente nos migrantes que vivem na
cidade, chegando até mesmo a dar noções diferentes aos mesmos elementos, como as casinhas
de barro, que recebem diversos significados de acordo com seu tempo e seu espaço na história
da cidade. É tênue a linha que separa os extremos tradicional e moderno, em especial quando
os meios de sociabilidade da cidade são observados, e muitas vezes são representantes de
universos tão singulares.
Buscando compreender de que forma os homens e mulheres migrantes de
Guariba se relacionam entre seus próprios vínculos de sociabilidade, como também entre os
outros grupos que pertencem à figuração social da cidade em um contexto que está, no mesmo
espaço e tempo, relacionado ao moderno e ao tradicional, visitamos, em um primeiro
momento, pensões e becos que abrigam os migrantes temporários, que se estabelecem na
cidade por alguns meses para o trabalho no corte da cana
38
. Estas pensões estão localizadas
em diversos pontos e bairros, mas estão mais concentradas no Bairro Alto. Priorizamos este
bairro e também a Vila Jordão, que se localiza no outro extremo de Guariba
39
. Estes bairros
têm algumas características divergentes, já que o primeiro é exclusivamente composto por
famílias migrantes e seus descendentes, e o segundo, mais próximo ao centro da cidade,
agrupa famílias nativas, e mais recentemente vem recebendo grupos de migrantes temporários
para as pensões que ali foram construídas. Em um segundo momento da pesquisa, visitamos
as casas das famílias migrantes estabelecidos, onde estes vivem com seus filhos e não raro
netos, que nasceram em Guariba. Estas casas estão exclusivamente localizadas no Bairro Alto,
38
Agentes da Pastoral do Migrante me acompanharam nestas visitas, para que o acesso fosse mais fácil.
39
Os bairros estão representados no mapa do primeiro capítulo desta dissertação.
Espaços Divididos e Silenciados
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salvo algumas exceções como a de Severino que, pela ascensão econômica que passou, mora
mais ao centro da cidade.
Os migrantes estabelecidos são, na maior parte das vezes, mineiros e baianos.
O tempo em que estão em Guariba oscila entre dez e quarenta anos. Alguns têm a sua casa
própria, outros vivem em casas alugadas que, em casos como o de Dona Cipriana, comporta
nos fundos alguns quartinhos que servem de pensões para os migrantes temporários. Estes,
por sua vez, raramente são mineiros ou baianos, sendo em sua grande maioria maranhenses ou
piauienses, o que nos leva a crer que as levas migratórias são circulares, jamais foram ou são
estáticas. Os temporários preferem migrar sozinhos, deixando nas terras de origem esposas e
filhos. Organizam-se nas pensões de acordo com suas naturalidades, já que existem as
pensões dos piauienses, as pensões dos maranhenses, e assim por diante. As pensões tornam-
se micro-universos dentro das cidades, pois muitas vezes são o único contato humano desses
trabalhadores fora dos corredores de cana em que trabalham. Alguns, talvez temendo esta
difícil convivência, trazem as suas esposas, que raramente saem das pensões enquanto seus
maridos estão nas lavouras, e apenas mantêm vínculos de sociabilidade entre as outras
mulheres migrantes, as quais dividem espaços em comum dentro das pensões como a cozinha,
o banheiro e o tanque de lavar roupa
40
.
Conversando com estes homens e mulheres migrantes, estabelecidos ou
temporários, compreendemos alguns dos motivos que os fizeram e os fazem migrar, as
transformações sociais que sofrem entre o ir e vir de suas terras de origem e cidades-
dormitórios, e as formas de defesa que encontram para o enfrentamento dos estigmas que
carregam. Pretendemos aqui identificar características do moderno neste universo empírico
mergulhado em um contexto que, ao nosso ver, é absolutamente moderno: o da migração.
Chamamos a atenção para a fala destes migrantes que, em pleno século XXI, em uma pequena
40
Fotos no quarto capítulo ilustram estas formas de sociabilidade.
Andréa Vettorassi
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cidade do interior paulista, continuam reproduzindo relações sociais já previstas por Marx &
Engels (1984, 1998) e Simmel (1987) há pelo menos um século, e que tamm foram
discutidas pelos autores contemporâneos Elias & Scotson (2000), Berman (1986) e Debord
(1997). Esta é a modernidade: contraditória, que muda para não ser necessário mudar; que
nas suas transformações diárias torna possíveis as relações sociais existentes há mais de um
século.
3.1 Migrantes Temporários: sobre a migração de um novo homem simples
“Eu vou partir pra cidade garantida proibida
Arranjar meio de vida, Margarida
Pra você gostar de mim
Essas feridas da vida, Margarida
Essas feridas da vida, amarga vida
Pra você gostar de mim”
(Vital Farias, 1984)
Em uma esquina da Vila Jordão, próxima a bairros mais centrais da cidade,
avistamos já de longe dois trabalhadores rurais que em frente a uma casa conversavam. Esta
casa era a pensão em que viviam com outros oito trabalhadores rurais, todos maranhenses que
possuíam algum vínculo de parentesco. São irmãos, cunhados, tios e sobrinhos trabalhando no
mesmo setor, mas em usinas diferentes, vivendo debaixo do mesmo teto, mas em mundos
distintos, pois cada espaço da casa contém universos particulares a seus moradores. Em uma
primeira visita, Fogoso e Toninho Branco foram entrevistados em frente à pensão, em uma
tarde de segunda-feira, em que não trabalharam porque sofreram acidentes na lida, muito
comuns no trabalho de corte da cana
41
. Visitamos a mesma pensão em um segundo momento,
quase um mês após a primeira visita, e como chegamos à noite, tivemos a oportunidade de
conhecer e conversar com todos os dez trabalhadores que ali viveram ao longo de nove meses.
41
Toninho Branco estava com a mão cortada e Fogoso tinha câimbras e dores no peito. As entrevistas foram
realizadas nos dias 15 de novembro (os trabalhadores rurais não têm licença nos feriados) e 9 de dezembro de
2004. Os entrevistados, neste capítulo, serão citados de acordo com seus apelidos ou primeiro nome.
Espaços Divididos e Silenciados
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Estavam extremamente cansados, em especial porque já era fim de ano e desejavam voltar
para Morro Branco, pequena comunidade no interior do Maranhão. Ainda assim nos abriram
suas portas, expondo seus modos de vida em seus cotidianos, seja através dos cômodos e
objetos pertencentes àquele pequeno universo, seja ainda a partir de seus depoimentos. A
mesma cena se repetiu em outras pensões, que se diferenciavam quanto às suas localizações,
quanto à presença ou não de esposas dos trabalhadores rurais, mas assemelhavam-se em suas
hospitalidades, como também em uma certa desconfiança e curiosidade sempre presentes.
Aspectos importantes puderam ser observados, em especial no que tange aos
diferentes papéis sociais que estes trabalhadores exercem nas cidades que os recebem e em
sua terra natal. O imigrante para a terra que o recebe é também emigrante para a terra natal
que deixa, em uma relação dialética que é parte do cotidiano do migrante temporal, em seu
constante “ir e vir”, em uma verdadeira “migração temporária permanente”
42
. Qual seu papel
social nestes dois mundos tão diferentes, mediados pelo tradicional e pelo moderno?
Berman já citava o caráter moderno dos fluxos migratórios: “O capital se
concentra cada vez mais nas mãos de poucos. Camponeses e artesãos independentes não
podem competir com a produção de massa capitalista e são forçados a abandonar suas terras e
fechar seus estabelecimentos” (1986: 104). Em Guariba, encontramos situações semelhantes.
Quando questionados sobre o porquê de migrarem para o interior paulista, os trabalhadores
maranhenses são idênticos em suas respostas:
“Fogoso”, trabalhador maranhense, negro, 39 anos - Falta de emprego, né. Porque se a
gente tivesse emprego, nós não estaria aqui. Cê tem o serviço mas não tem o dinheiro. É o que faz nós
vim pra cá, é isso aí.
42
Termo da Profa. Dra. Maria Ap. de Moraes Silva, em diversos artigos e palestras.
Andréa Vettorassi
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Fogoso, assim como outros 40.000 migrantes sazonais do interior paulista
(Moraes Silva, 1999a)
43
, trabalha durante nove meses nas lavouras de cana-de-açúcar. Depois,
volta para sua casa, no interior do Maranhão, e ali permanece durante os outros três meses do
ano (a entressafra da cana), onde cuida de sua família e de sua plantação de subsistência, em
geral arroz, mandioca e milho. Embora lavrador nas duas cidades, Fogoso reconhece as
diferenças do seu trabalho:
E qual a sua profissão atualmente?
Fogoso - Rural, rural... Lá [em Morro Branco - MA, cidade de origem] é rural, agora
aqui é quatro anos que corto cana direto, né? Vou pra casa, mas todo ano volto direto. Nós têm tudo lá,
inclusive criação, a gente cria, tem roça, que assim, nós vamos embora agora em novembro pra
dezembro, nós vamos fazer outra lavoura lá, que é uma despesa, né? Aí tá no ponto, a gente deixa lá e
nós vêm pra cá pra fazer outra. Nós faz duas safras no correr do ano. Aqui é a do dinheiro, e a de lá é a
despesa da casa. Nós não pára, continua, né?
Fogoso faz um discernimento entre o trabalho que exerce em sua cidade de
origem e em Guariba, mesmo que os dois trabalhos sejam rurais. Em Morro Branco, não há
monoculturas, e Fogoso trabalha apenas em terras que são suas. Mesmo sendo dois trabalhos
rurais, um representa o modo de vida tradicional e camponês dos migrantes, quando ainda
estão em suas terras de origem. O outro, nas imensas lavouras de cana-de-açúcar, é parte
constituinte do mundo moderno, “paulista”, da mecanização do trabalho rural, como também
do trabalho assalariado, e não apenas de subsistência. O trabalho contínuo durante a safra,
exercido pelos migrantes sazonais, corresponde à ruptura com o tempo cíclico camponês
existente em seus locais de origem. Em seu novo tempo cíclico, as estações do ano são a safra
(maio a novembro) e a entressafra da cana, e o tempo é medido pelo dinheiro, pelas relações
capitalistas (Costa, 1993). Ou seja, existe aí uma relação dialética não só entre os espaços (a
terra de origem e a terra que os recebe), mas também entre o tempo e as identidades, ambos
43
Em 2005, de acordo com Moraes Silva e a Pastoral do Migrante, 210.000 trabalhadores migraram para o corte
de cana e colheita da laranja do interior paulista.
Espaços Divididos e Silenciados
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mediados pelas condições de um mundo que é tradicional (do camponês) e de outro que é
moderno (do assalariado)
44
.
Assim como no trabalho, Fogoso e outros trabalhadores maranhenses de
Guariba percebem seus diferentes papéis sociais nos locais de origem e nos locais que os
acolhem. Ao voltar para as terras de origem, o migrante, quando bem sucedido nas lavouras
de cana do interior paulista, recebe um novo status, uma diferenciação social e cultural.
Destaca-se em seu mundo tradicional quando se apropria do moderno a partir de bens
simbólicos e materiais
45
:
E quando vocês voltam, como é a chegada [em Morro Branco - MA], como as
pessoas da cidade te vêem?
Fogoso - A chegada pra nós é maravilhosa, porque nós vai chegando na nossa terra, é
uma beleza...
E quando dá pra juntar um dinheirinho aqui [em Guariba]...
Fogoso - Então, é aí onde tá o mistério, nós vêm pra cá, a gente chega com um
trocado, né? Dinheiro não, trocado. Aí o pessoal que já tem a vontade de vir, aí vê aquilo ali, é doido
pra vir também. Termina vindo, né? [...]
E por que o senhor acha que eles vêm, que vocês influenciaram os outros a vir?
Fogoso - Ah, às vezes não é nem influenciar, é porque chega com um bom dinheiro,
tem vontade de comprar uma coisa, a gente vai e compra, aí você sabe como é que é, né? [...] Eu
venho também um pouco por causa disso, né? Aí eles acabam vindo.
Então o senhor considera que quando tá no Maranhão é mais bem visto, você é mais
importante lá?
Fogoso - É, você chega daqui, o cara tem outro critério, né? “Olha, o cara chegou
cheio do troco, né?” (risos).
Severino, ao relatar sua história de vida e a necessidade que teve de migrar há
quarenta anos atrás, relembra sentimentos muito semelhantes, o que nos leva a crer que a
decisão de migrar, e o impulso que o dinheiro dá a esta necessidade, já existem em
Pernambuco há décadas:
44
Nos fundos da pensão, Fogoso e os outros moradores plantaram, em um pequeno quintal de terra, alguns pés
de milho. Esta foi talvez a forma que encontraram de manter vínculos com seu modo de vida rural, camponês, a
partir do cultivo de roças de subsistências (vide fotos no quarto capítulo).
45
Quando, por exemplo, voltam de boné, “ray-ban” e celular, bens materiais típicos do modo de vida paulista e,
portanto, do “moderno”.
Andréa Vettorassi
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Porque o senhor me falou que vocês tinham a impressão em Pernambuco, que as
pessoas que voltavam de São Paulo voltavam melhor...
Severino - É. Não sei se é isso. Assim, não voltavam muito rico, mas, assim, voltavam
bastante, é... Com bastante dinheiro, vamos dizer assim. Pra despesa, né? Principalmente na época,
que voltava bastante moço, lá. Assim, chegava aqueles moço, bem arrumado, né? Naquela época a
turma se exibia mais quando voltava, agora, hoje não, hoje é comum as pessoa vim de lá pra cá...
Ainda no “mundo moderno” em que migrou, a relação é inversa. Os aspectos
do cotidiano do migrante não estão absolutamente desprendidos do modo de vida de sua terra
natal (portanto, um modo de vida tradicional e camponês). A relação “vertical” (com os
guaribenses) é tensa, e é por isto que o migrante sazonal torna-se introspectivo, mantendo
apenas no dia-a-dia relações “horizontais” (com o seu próximo e semelhante), seja a partir de
laços de confiança e obrigações mútuas, seja nas brincadeiras ou, ainda, nas relações
conflituosas, de violência, na disputa de território e espaço no trabalho, na verdadeira malha
social construída e reproduzida nos corredores de cana e dentro das cidades-dormitórios:
E como você é visto aqui em Guariba, você tem contato com os guaribenses, com as
pessoas que moram aqui em Guariba? Você vai muito ao centro?
Fogoso - É, acho que o contato aqui é pouco, porque a gente mesmo não sai, né?
Chega do trabalho, às vezes já de noite, cansado, e vai se acomodar. A não ser fazer alguma
comprinha no mercado [...] Às vezes nós dorme dez horas, onze horas, depende de alguma coisa que
tiver passando em alguma televisão aí...
Cioneide, 23 anos, maranhense, esposa de trabalhador rural, parda – Mas sabe que
quando tô por lá [no centro da cidade], sou tratada igual este poste que cê tá vendo aqui na minha
frente!
[...] Mas se é tão cansativo [cortar cana], por que você volta?
Francisco, 19 anos, trabalhador maranhense, negro – Ah, porque “o cara” acha bom o
dinheiro! [E relata sua vida em Morro Branco, que é bom voltar, porque tem seus amigos, já que lá
pode “brincar”, que significa ir às festas, encontrar as meninas, às vezes arranjar uma namorada, etc.].
Lá é mais fácil arranjar namoradas?
Francisco – É. Tudo fica mais fácil lá. Chega lá com dinheiro, né?
E aqui, também?
Francisco – Aqui... Parece que as mulher de Guariba não quer maranhense!..
E pra um moço novo como você, tem coisa legal pra fazer aqui, ou não?
Francisco – Aqui, não (silêncio). Aqui normalmente não tem nada, né? Só do serviço
mesmo pra casa.
Espaços Divididos e Silenciados
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Como é perceptível nestes trechos, o migrante evita o contato com a
comunidade nativa, não só pelo pouco tempo vago que tem, mas também pelo estranhamento
que sente quando está em uma cidade paulista que muito pouco lembra sua terra de origem.
Francisco tem apenas 19 anos, e influenciado pela constante migração de seu pai, Fogoso, há
dois anos preserva o mesmo destino. Por ser jovem, percebe com mais destreza em seu
cotidiano a relação nativos/os “de fora” que em Guariba se estabelece. Procura não sair de
casa em suas horas de folga porque sente, nas relações de gênero, que não é bem vindo na
cidade. Não fumava, mas assim que percebeu que os botecos, localizados em boa parte das
esquinas dos bairros periféricos guaribenses, são seu único meio de sociabilidade, passou a
fumar para ser aceito neste meio. Não obstante, sabe que quando volta para casa “tudo fica
mais fácil”. Observando tais diferenças, decidiu não mais morar com seus pais na pequena
vila de Morro Branco, mas com a sua avó em Codó - MA, uma cidade maior, onde Francisco
tem maiores oportunidades:
E como é que é a casa de sua avó?
Francisco – Ah, ela construiu no ano passado, né? É feito de tijolo, de telha... Quatro
quartos, duas salas, pia dentro de casa, banheiro, tudo que ela construiu. Quando eu cheguei lá, já tava
tudo construído.
E a casa de sua mãe, como é?
Francisco – Cê quer dizer a do meu pai?
É, a do seu pai.
Francisco – É igual, é feita de tijolo também, né? Agora só falta cobrir ela, botar as
porta e passar o piso.
No entanto Fogoso, seu pai, descreve sua casa de forma diferente:
Como é que é a sua [casa]?
Fogoso – Ah, a minha é coberta de palha.
Coberta de palha?
Fogoso – É.
Mas e as paredes?
Fogoso – É tudo parede de taipa.
E tem banheiro?
Fogoso - Não não não não.
Andréa Vettorassi
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Francisco, conhecendo novos modos de vida a partir da migração, procura
desvencilhar-se do aspecto tradicional e camponês do modo de vida do seu pai. Neste
contexto, o trabalhador migra pelo fetiche e status que a mercadoria e o papel moeda
oferecem, desenvolvendo desta forma uma contra-ideologia camponesa. No entanto, quando
percebe a relação nativos/os “de fora” a que está submetido, não se sente parte integrante do
“mundo moderno”, sendo tomado pelo estranhamento e saudade de sua terra natal. Assim, de
acordo com Berman (1986), o migrante vai se integrando (em uma posição de desvantagem) à
sociedade moderna: ser moderno é viver em uma vida de paradoxos e contradições. A
sensibilidade moderna é incongruente, é uma explosão de sentimentos e vontades, como os
sentimentos e vontades do migrante, que não sente ser parte de lugar algum. A atmosfera que
dá origem à sensibilidade moderna é composta por agitação e turbulência, por expansão das
possibilidades de experiência, mas também por destruição das barreiras morais e dos
compromissos pessoais e por uma autodesordem assustadora (Berman, 1986: 18).
Berman, analisando outros aspectos da vida moderna como os expostos acima,
demonstra que as obras de Marx nos revelam muitas características da modernidade, além de
Marx ser o primeiro autor a construir uma visão da vida moderna como um todo. “O
Manifesto expressa algumas das mais profundas percepções da cultura modernista e, ao
mesmo tempo, dramatiza algumas de suas mais profundas contradições internas” (Berman,
1986:103). A concepção da cultura moderna da época, que se expressa no Manifesto, traz à
tona as primeiras discussões acerca de um mercado já mundial e de uma tímida, porém sólida,
globalização dos meios de comunicação. Berman ressalta uma exaltação que Marx faz ao
mundo burguês, ao mesmo tempo em que o critica, sendo Marx também tomado pelas
contradições de um mundo que já era intensamente moderno. O mais intrigante das obras de
Marx é a possibilidade de trazerem à luz, mais de um século depois, relações de trabalho do
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modo de produção capitalista que ainda são vistas na contemporaneidade, tais como a
alienação do trabalho, o fetichismo da mercadoria e o exército industrial de reserva.
Um duplo fetichismo da mercadoria pode ser observado nas relações sociais,
culturais e econômicas dos migrantes de Guariba. Existe uma desvalorização da força de
trabalho do migrante, que é percebido tanto pela comunidade guaribense, quanto pelos modos
de produção capitalista como um todo, como um trabalho desqualificado. Há aí um primeiro
“fetichismo da mercadoria”: voltamos os olhos para o produto final e para todas as
oportunidades que o setor sucroalcooleiro oferecem, como por exemplo, o desenvolvimento
de um comércio já bem consolidado na cidade de Guariba. No entanto, o bóia-fria, quando
percebido, é estigmatizado e indesejado, mesmo sendo mão-de-obra fundamental nas lavouras
de cana-de-açúcar.
Neste contexto, o bóia-fria é vítima de um fetichismo existente nos nativos,
que acham conveniente que este compre no comércio local, mas desejam, ao mesmo tempo,
que o bóia-fria se mantenha invisível nas periferias pobres a que pertence. É a partir desta
ausência de reconhecimento da importância da força de trabalho migrante que a relação
nativos/os “de fora” encontra terreno fértil para ser cultivada. No entanto, o migrante é
também detentor de um segundo “fetichismo da mercadoria”: sente a necessidade de adquirir
o papel moeda e as mercadorias que este oferece, mesmo que para isto seja necessário migrar
e submeter-se ao trabalho maçante e pouco valorizado do setor sucroalcooleiro
46
. “A
aparência fetichista de pura objetividade nas relações espetaculares esconde o seu caráter de
relação entre homens e entre classes: parece que uma segunda natureza domina, com leis
fatais, o meio em que vivemos” (Debord, 1997: 20):
Vocês tinham galinha, então [em Codó, no Maranhão]?
46
Um trabalhador rural, atualmente, corta dez toneladas de cana por dia e ganha, em média, 600 reais por mês
(dados adquiridos a partir das entrevistas com os trabalhadores rurais).
Andréa Vettorassi
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Maria, esposa de trabalhador rural, maranhense, 23 anos, parda – É. A criação mesmo
que tem.
Mas então vocês nunca passaram fome lá no Maranhão?
Maria – Não. Fome não. Graças a Deus que não, né?
Mas faltava dinheiro?
Maria – Ah, dinheiro com certeza que faltava, né? Às vezes eu queria comprar uma
roupa, um remédio pro menino [seu filho] e já não tinha. Tinha que vender um arroz às vezes, né? [...]
Também nunca chegou o dia de dizer assim que meu filho ficou doente e eu não tenho condição de
comprar o remédio. Graças a Deus. Disso eu não posso me reclamar, né? Eu poderia não ter pra
comprar uma roupa, uma sandália... Bom, isso aí eu não tinha mesmo não, mas o menino caía doente,
tava com febre, um caroço, qualquer coisa, já corria logo pro médico particular.
E você considera que a sua situação hoje é melhor ou pior do que antes de vir pra
cá?
Maria – Ah, é melhor.
Por que, Maria?
Maria – Ah, porque lá no Maranhão tem uma vantagem, porque a gente não paga
água, não paga luz e nem aluguel, porque a gente mora na choça
[casa feita de madeira e barro típica
do Maranhão], na fazenda, né? Mas que não é tudo que a gente quer comer que a gente tem, não
tem dinheiro pra comprar uma roupa, uma coisa, né, assim. Então eu acho melhor aqui. Aqui é ruim
assim [...] porque a gente fica muito longe dos parentes da gente. No tempo do frio também é ruim, né,
mas além, outra coisa não.
Maria jamais passou fome, tinha uma roça de subsistência e criação de animais
no Maranhão, e pode, quando necessário, comprar remédios para seu filho. No entanto,
migrou com o marido pelas oportunidades que o dinheiro oferece, porque sonham juntos em
comprar uma casa (e não uma “choça”, que muitas vezes não é vista como casa), além de uma
moto
47
para que o marido possa trabalhar como office-boy. Seu marido volta constantemente
com dores e câimbras, e com alguma freqüência não volta para casa porque da lavoura é
levado imediatamente ao posto de saúde da cidade. No entanto, Maria sente que a migração
valeu a pena, que o casal está investindo no futuro, e que seu marido é bem pago pelo seu
trabalho (ver nota 8). Este é o fetiche da mercadoria de um mundo moderno, em que a
alienação do trabalho e a mais-valia são possíveis porque, uma vez que o trabalhador rural
reclama as condições de seu trabalho, é facilmente substituído por um incontável exército
industrial de reserva, ou seja, por novos migrantes à espera de um trabalho nas lavouras de
cana-de-açúcar, como reconhece a “nativa” Carla:
Carla - Porque na usina é assim. Se você falar “ó, eu vou sair”, tem 500 pra por no seu
lugar. Então eles pagam aquilo que eles querem, porque mão-de-obra tá sobrando. Se fizesse um pacto
com os usineiros “olha paga um salário mais justo porque não tá sobrando gente, tá faltando”, seria
bem melhor, mas...
47
A moto é um dos maiores fetiches entre os trabalhadores rurais, um sonho para a grande maioria deles, como
foi publicado em uma longa matéria da Folha Ribeirão, de 9 de janeiro de 2005 (pp. G1-G5).
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O que o migrante produz é uma força independente, não o constitui. “Com a
acumulação de seus produtos alienados, o tempo e o espaço de seu mundo se tornam
estranhos para ele” (Debord, 1997: 24). Por isto migrar, para estes trabalhadores, é um ato
cotidiano e permanente.
Debord, ao pensar as sociedades modernas como sociedades de espetáculos,
cita a alienação do trabalho, indiscutivelmente presente no mundo moderno. Quanto mais o
homem separa sua vida de seu produto, mais se separa da própria vida para tornar-se apenas o
que produz, apenas o seu produto, sem essência. “O espetáculo é o capital em tal grau de
acumulação que se torna imagem” (Debord, 1997: 25). É também o momento em que a
mercadoria ocupou totalmente, e de forma descomunal, a vida social, as vontades,
perspectivas e projetos dos indivíduos que constituem o mundo moderno:
Você pretende voltar [para Guariba]?
Toninho Branco, 21 anos, trabalhador rural, maranhense, pardo – É, a gente vai ver
no final do ano, quando a gente chegar... Vai ver se volta ou não. Mas não tava mais querendo voltar,
não, aí a gente chega lá, vê os outros vindo pra cá e aí volta de novo. Mas não tava com vontade de vir
mais, não.
É? Quer que seja a última?
Toninho Branco - Ah, eu quero que seja. Eu não sei se é a última, mas eu quero que
seja.
Toninho Branco, ao longo de seu depoimento, demonstra nas suas expressões,
no seu olhar e em tudo o que fala, as saudades que tem de Morro Branco – MA e o desejo
constante de não mais ser necessário migrar. Não guarda aspectos positivos de Guariba,
citando inclusive a violência existente na cidade, que jamais presenciou em sua terra de
origem ou mesmo em Pradópolis – SP, pequena cidade próxima à Guariba onde Toninho
Branco havia migrado no ano anterior:
Toninho Branco – Lá [em Pradópolis - SP] é mais sossegado do que aqui, não tem
muita violência que nem aqui tem. Cê pode sair à noite... Aqui não, aqui pro cara sair...
Ah, é? E você acha muito violento aqui?
Toninho Branco – Eu acho.
Mas quem que tá aprontando esses crimes aí?
Andréa Vettorassi
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Toninho Branco – E quem é que sabe? É, o certo é a gente ficar só. Qualquer coisa pra
gente que pode acontecer lá fora é melhor ficar no barraco da gente, que tá mais sossegado.
É? Aqui no bairro [Vila Jordão] mesmo, tem muita [violência]?
Toninho Branco – Não, nesse aqui, não.
Onde mais tá tendo?
Toninho Branco – Lá pra cima, no João-de-Barro.
Toninho Branco justifica a sua introspecção e a opção de “ficar no barraco da
gente”, sem andar pelos outros bairros, citando a violência que percebe na cidade e a
insegurança que tem diante dela. Não está falando de uma violência simbólica (Bourdieu,
1989), presente entre os nativos e os “de fora” e que é constantemente sentida pelo seu grupo,
mas sim de uma violência real, uma criminalidade que nota em Guariba, ou que ao menos
incorporou da fala dos outros habitantes da cidade. Como no discurso nativo, culpa os
moradores do Bairro Alto (ou João-de-Barro) que, obviamente, representam um grupo que
Toninho Branco não sente fazer parte. Ao contrário dos nativos, munidos de um alto
potencial de coesão tecido entre os meios de sociabilidade, os “de fora” não são coesos, não
são pertencentes a um grupo em comum. Os “de fora” são iguais apenas para a ideologia
nativa, que não os diferencia em suas características. No entanto, para o “de fora” Toninho
Branco, as diferenças são inúmeras: são maranhenses, ou piauienses, ou baianos, ou mineiros;
são migrantes estabelecidos na cidade ou temporários; são moradores da respeitosa Vila
Jordão ou do violento Bairro Alto. São, enfim, múltiplos em suas identidades. A falta de
coesão entre o grupo “de fora” (que nem ao menos sente, em seu cotidiano, que é parte de um
grupo) e a absoluta interação coesa veiculada entre os meios de sociabilidade do grupo nativo,
permitem que o nativo domine o “de fora” e, mais do que isso, tenha forças para impor sua
ideologia, que foi incorporada por Toninho Branco, já que Guariba não é tão violenta quanto
ele acredita, como vimos com a análise dos dados quantitativos.
É necessário ressaltar que a teoria de Elias & Scotson, utilizada para
compreender a relação nativos/os “de fora” presente em Guariba e o potencial de coesão de
seus grupos, apresenta uma rica abordagem de estática e dinâmica como novas categorias
Espaços Divididos e Silenciados
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sociológicas. A relação intra e intergrupos está constantemente em movimento; é um processo
contínuo de renovação, nascimento ou extinção das interações sociais, que permitem que
sempre exista algo vivo e em processo. É possível constatar que a “malha social” que liga os
diversos atores sociais de Guariba jamais foi ou é estática. E que os “de fora” não
necessariamente compartilham das idéias que os nativos fazem deles. No entanto, não têm
poder de coesão e persuasão para minimizar os estigmas que carregam, e nem ao menos se
reconhecem enquanto grupo, num processo contínuo de individualização. Nesta interação, que
pode ser considerada um “jogo”, quem perde são os “de fora”, não inseridos numa identidade
coletiva e coesa, como também não reconhecidos como cidadãos munidos de direitos e
deveres. Tanto Elias & Scotson quanto Simmel (1987) defendiam que o social é um conjunto
de relações. O “todo”, seja ele qual for – a sociedade ou o grupo – é um todo relacional. As
relações nunca são sólidas e petrificadas, a cada instante elas se atualizam, se fortificam ou se
enfraquecem, e é por isto que sempre há algo vivo e em processo nas interações humanas.
Elias & Scotson e Simmel não pensam no “indivíduo”, mas apenas em indivíduo na
sociedade; não pensam em sociedade, mas apenas sociedade no indivíduo. Os indivíduos
fazem a sociedade e a sociedade faz o indivíduo. Portanto, o que realiza a sociedade são as
relações que se estabelecem entre os singulares, as formas menores de interação e relação
entre os homens. É por isto que ambos estudam a interação entre os homens ao nível
micrológico. E é também por isto que os “de fora”, mesmo sendo um grupo anacrônico, sem
tempo ou espaço na história oficial guaribense, são impreterivelmente parte de um todo
relacional, de uma figuração social da cidade.
Reconhecendo a reciprocidade entre indivíduo e sociedade, tanto Elias &
Scotson quanto Simmel não falam de “socialização”, mas de “entrelaçamentos” e
“interdependências” que configuram a sociedade. Esta é o conjunto de relações humanas, é o
entrelaçamento global dos homens, mas não um entrelaçamento harmônico, e sim conflituoso
Andréa Vettorassi
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e hierárquico. Daí parte a idéia de jogo da sociedade, que são os fenômenos de
interdependência que ligam os homens. No jogo, os participantes medem suas forças entre si,
e os “equilíbrios de poder existem por toda parte onde haja uma interdependência funcional
entre os homens”. (Waizbort, 2001: 106). Este é o tecido das relações humanas, que o
conceito de figuração de Elias & Scotson quer exprimir. É uma rede de jogadores
interdependentes, lembrando que nunca se joga sozinho, sempre se joga com.
Simmel e Elias & Scotson estão preocupados com as relações de poder que se
estabelecem intergrupos e intragrupo. A idéia de conflito é absolutamente fundamental para
ambos. “Sendo os seres humanos naturalmente diferentes entre si, eles necessariamente se
relacionam uns com os outros de modo conflituoso” (Waizbort, 2001: 110). O conflito,
portanto, é inerente às relações sociais (isto é, humanas). Sob uma perspectiva singular, como
na relação entre os nativos e os “de fora” em Guariba, a idéia de jogo e conflito permanece a
mesma: há uma interdependência que se tece entre eles, em um verdadeiro jogo. Quando as
relações ficam mais complexas, com mais jogadores e regras sofisticadas, há uma integração
cada vez mais densa, até o limite do jogo da sociedade.
De acordo com Berman (1986), Simmel insinua, mas não chega a desenvolver,
aquilo que estaria mais próximo de uma teoria dialética da modernidade no século XX. Já em
1902, este autor pensava na modernidade, na vida em metrópole, na subjetividade e
objetividade em sociedades que passavam por constantes e profundas transformações, como
por exemplo, os fluxos migratórios das comunidades rurais para os grandes centros urbanos.
Simmel defendia que um dos mais graves problemas da vida moderna era a
falta de autonomia e individualidade, em face às forças sociais, à cultura externa, às técnicas
de vida e outras características do moderno. Desenvolveu uma cadeia de raciocínio que nos
leva a uma relação dialética: a individualidade, no sentido das relações emocionais e íntimas,
é massacrada pela economia monetária e pelo domínio do intelecto. Conseqüentemente,
Espaços Divididos e Silenciados
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desenvolvemos uma impessoalidade com o Outro que nos torna altamente individualistas. “A
intelectualidade, assim, se destina a preservar a vida subjetiva contra o poder avassalador da
vida metropolitana” (Simmel, 1987: 15). A economia monetária e o domínio do intelecto
estão vinculados, deixando para segundo plano o trato, os sentimentos e a consideração com
os homens. Esta é a dialética do moderno: a estrutura moderna é da mais alta impessoalidade,
no entanto promove uma subjetividade altamente pessoal. Daí surge a atitude blasé, que é o
poder que todos nós temos de discriminar o outro, tão presente nas relações sociais de
Guariba.
O dinheiro, de acordo com Simmel, é o mais assustador dos niveladores. A
expressão “quanto?” é a que torna possível uma atitude blasé. As relações quantitativas, nas
sociedades modernas, são cada vez mais importantes que as relações qualitativas. Até mesmo
o tempo passa a ser medido! A pontualidade, calculabilidade e exatidão não transformam e
fazem parte apenas da economia, do dinheiro e do intelecto, mas também do modo de vida
que deixa de ser “para dentro” e passa a ser voltado “para fora” (para o dinheiro, o relógio
como representante do tempo, a moda, a mídia). Por que não reconhecemos na rua nossos
vizinhos de anos? Existe não só indiferença, mas aversão, estranhamento e repulsão mútua.
Este é o estilo metropolitano de vida, e segundo Simmel uma das formas elementares de
socialização. O indivíduo da metrópole tem qualidade e quantidade de liberdade pessoal
nunca jamais vistas, por conta da atitude blasé. “Os conteúdos e formas de vida mais
extensivos e mais gerais estão intimamente ligados aos mais individuais” (Simmel, 1987: 22).
Simmel, ao pensar a vida na metrópole, compara o homem urbano ao homem
camponês. Os fundamentos sensoriais da vida psíquica são diferentes na metrópole (no
moderno), quando em comparação com a vida rural. As impressões, a consciência e o ritmo
na metrópole são diferentes: enquanto em um contexto rural o ritmo de vida é mais habitual e
uniforme, em um contexto urbano os homens protegem-se das transformações do ambiente e
Andréa Vettorassi
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das ameaças, que são constantes. O intelecto é a parte mais adaptável de nossas forças
interiores. Desta forma, o homem urbano reage com a cabeça, e não com o coração. Somos,
de acordo com Debord, “multidões solitárias” nas cidades, e estas são as mais perceptíveis
transformações na vida do migrante (1997: 23).
O relato oral de Martinho, maranhense de Morro Branco, negro, 25 anos e
migrante sazonal porque tem o sonho de comprar uma moto, retrata estes híbridos
sentimentos e modo de vida:
E você já veio pra cá [Guariba] três vezes, né?
Martinho – É, três vezes.
E você sente alguma diferença quando volta [para Morro Branco, sua terra Natal]?
Martinho – É, chega lá, a coisa muda, né? Às vezes uma terra que tava feia, de repente
dão um trato nela [e cita outros aspectos do mundo rural onde sua família tem roça de subsistência e
criação de animais]. Aqui se chama centro, lá é interior. Aqui é cidade, é tudo enlatado, tem telha,
telhado, tem rua. E aqui a gente muda as “feição”.
Então você acha que aqui você vive melhor?
Martinho – Melhor, assim, porque estamos trabalhando, né, mas bom mesmo é tá na
terra da gente...
Mesmo morando na choça?...
Martinho - Ah, é, mesmo morando na choça o bom mesmo é lá! Aqui é cidade, tem
dinheiro, dá pra comprar, pra andar de tênis, mas eu sou pobre e prefiro morar na terra da gente.
(Risos) Porque a gente nasce lá. Porque a gente nunca se esquece da terra que se nasceu [...]; sem
família é a mesma coisa que nada.
E você acha que você mudou muito?
Martinho – Ah, eu não sei se eu mudei, mas lá, a gente sempre pensa que a gente
muda, mas não. Continua o mesmo. Eles [os conterrâneos] acham que mudou, né, mas a gente não
mudou nada.
E em quê eles acham que você mudou?
Martinho – É, porque chegando lá a gente volta mais danado, porque aqui a gente
conversa de todos os assuntos, sobre muita coisa, muita coisa diferente, e aí eles acham que a gente
voltou mais falante. [Acham que a gente volta] cheio dos critério, com a pele mais fina, mais branco...
Tem gente lá que acha que a gente trabalha em escritório, porque tá com a pele mais fina, mas não,
“Ih, gente, o trabalho lá é de roça”. Acham que é trabalho sério, que conseguiu, mas não, é trabalho de
roça, com facão também! (risos).
Martinho, assim como outros trabalhadores maranhenses, não sente que
pertence ao mundo que migra. No entanto, sente que o “moderno”, o “novo”, lhe são
familiares, porque são parte constituinte de sua cultura e terra natal, onde a lógica tradicional
e camponesa já recebe a influência dos símbolos do moderno, seja a partir da migração
existente em Morro Branco há mais de 10 anos (que possibilita o intercâmbio de culturas),
seja a partir das imagens da televisão, meio de entretenimento entre os moradores de Morro
Espaços Divididos e Silenciados
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Branco
48
. Há um espetacular integrado, pois mesmo as regiões periféricas foram atingidas
pelo espetáculo, pelo moderno, pelo capital (Debord, 1997). Há o desejo de pertencimento e
identificação do moderno, mesmo que percebam o estranhamento e a repulsa da comunidade
nativa guaribense (e, portanto, moderna), que os mantêm afastados a partir de atitudes blasé e
das niveladoras perguntas “quanto você vale?” ou ainda “quanto você tem?”. A saudade e o
desejo de regresso estão indiscutivelmente presentes, mas estes querem voltar diferentes,
representantes do moderno através de seus novos pertences, imbricados de valores concretos e
abstratos e, sobretudo, vitoriosos no mundo metropolitano onde o ser e o viver são “para
fora”, ou seja, voltados para as aparências e para o tempo que é calculado, quantitativo,
egoísta. Por isto voltam mais brancos, mais fortes, como se trabalhassem em escritório, com
dinheiro no bolso, “cheio dos critério”, expressões colhidas não apenas no depoimento de
Martinho, mas nos relatos dos outros homens e mulheres maranhenses ouvidos. O “lugar que
não é da gente” também faz parte de sua formação identitária. Ter status na “nossa terra” é ter
incorporado valores e símbolos do moderno. “Parecer moderno, mais do que ser moderno. A
modernidade se apresenta, assim, como a máscara para ser vista. Está mais no âmbito do ser
visto do que no viver” (Martins, 2000: 39, grifos meus). Ou seja, o “viver” do camponês do
interior maranhense que migra sempre será “não moderno”, ainda que sua corporalidade (a
sua aparência) denuncie um hibridismo de culturas. No entanto, sua existência é
indiscutivelmente parte da modernidade, uma vez que, sob uma perspectiva econômica, sua
força de trabalho sustenta o setor sucroalcooleiro e, portanto, o luxo e a riqueza do mais
moderno estado do país. Neste jogo da sociedade (Simmel, 1987 e Elias, 2000), em que se
vive e se aprende a jogar, o trabalhador migrante novamente mais perde do que ganha, mais é
explorado do que explora as oportunidades da modernidade.
48
Em Morro Branco não há água canalizada e nem asfalto nas ruas e estradas de acesso. Porém existe energia
elétrica, e na casa de Fogoso, único morador da cidade que já tem televisão, toda a comunidade se reúne no fim
do dia para assistir à novela das 9h (informações colhidas através das entrevistas).
Andréa Vettorassi
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3.2 Migrantes Estabelecidos: rememorando a partida e descrevendo a
permanência
Robi é um mineiro de 54 anos, e há vinte e dois mora em Guariba. Não
conheceu seu pai, que morreu quando este tinha apenas sete meses de idade. Em Itaobim –
MG viveu os primeiros anos de sua vida, ao lado de sua mãe, que faleceu quando Robi tinha
17 anos. Como também perdeu seus cinco irmãos, Robi, desviando o olhar, diz em seu
depoimento que “só sobrou eu, sozinho, pra morrer”.
Robi é apenas um entre tantos outros milhares de migrantes que fizeram de
Guariba sua morada permanente. A configuração de suas casas e seus modos de vida
diferenciam-se dos pertencentes aos migrantes temporários que, como foi exposto acima,
pouco conhecem de Guariba além dos muros de suas pensões, e estabelecem vínculos de
sociabilidade quase que exclusivamente com os seus iguais, sendo que “iguais”, neste sentido,
são seus conterrâneos moradores da mesma pensão, e não seus vizinhos ou ainda os
moradores de outros bairros da cidade.
Homens e mulheres migrantes temporários, afinal, pertencem ao micro-
universo que não ultrapassa os quartinhos de suas pensões. Migrantes estabelecidos como
Robi, no entanto, expandem seus vínculos de sociabilidade. Em especial nas ruas mais antigas
do Bairro Alto, as famílias migrantes que ali vivem mantêm um real espírito de comunidade,
em que a ajuda, o conhecimento e a amizade são compartilhados:
O senhor é amigo das pessoas do bairro?
Robi, pardo, cortador de cana - Ih, de tudo! De Guariba inteira! Onde é que me
encontra é a mesma coisa. Sei lá, na Vila Amorim, na Cohab I, nos outros lado aí é o mesmo negócio,
aonde for me encontrar...
49
No entanto, quando Robi é questionado se vai muito ao centro, reponde:
49
Entrevista realizada no dia 16 de junho de 2005, na casa do depoente.
Espaços Divididos e Silenciados
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Robi - Não, difícil. Vixe! Passa dez meses sem eu descer lá em baixo. Por aqui, só por
aqui. Ah, eu não tenho tempo, né? Eu não vou em festa lá pra baixo, não vou em lugar nenhum, então
não tenho tempo. E trabalhar menos não adianta não, né? Não tenho nem tempo e nem dinheiro!
Então...
Como fica claro neste trecho, Robi entende que “Guariba inteira” limita-se aos
bairros periféricos que circundam seu Bairro Alto. Evita outros locais da cidade, e mesmo em
dias de pagamento, é seu filho quem busca o dinheiro no centro da cidade. Robi expandiu
seus vínculos de sociabilidade, mas preserva limites quanto aos espaços que se sente à
vontade, e sabe que não foi toda a cidade que se tornou sua morada permanente.
No mapa afetivo que Robi construiu, este sentimento de não-pertencimento
ficou ainda mais evidente. Pedi que desenhasse a cidade, da mesma forma que fiz com os
outros depoentes. Robi pegou um único lápis de cor, dirigiu-se aos fundos de sua casa, onde
cultiva uma horta e algumas árvores frutíferas, e isolado em um banco de madeira, foi
riscando o papel. Alguns minutos depois, voltou com um verdadeiro mapa aéreo, que
representava as ruas do Bairro Alto e de outros bairros anexos, devidamente nomeadas, e a
sua casa em uma delas, assim como o campo de futebol e o posto de polícia do bairro. Assim
como o Bairro Alto não é representado no mapa afetivo dos nativos, no mapa afetivo de Robi
o centro não tem representatividade e não foi rememorado. A cidade é, afinal de contas, seu
bairro exclusivamente, onde Robi viu crescer seus dois filhos, reconstituiu seus laços
familiares e fez bons amigos.
Andréa Vettorassi
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99
Mapa Afetivo de Robi (2005)
As imagens espaciais desempenham um importante papel na memória coletiva.
Um grupo está inserido em uma parte do espaço, e ele a transforma à sua imagem. Ao mesmo
tempo, o grupo está sujeito e se adapta às coisas materiais que a ele resistem (Halbwachs,
1990). Os espaços representados nos mapas afetivos correspondem aos diferentes aspectos da
vida em sociedade, especialmente o que nela há de mais estável.
Neste sentido, nos “lugares da memória” (Nora. In: Pollak, 1989) do grupo
nativo não há espaço para os “de fora” da cidade. Os migrantes sabem disso, em especial os
sazonais, que sentem com ainda mais força que não fazem parte de lugar algum. Seus lugares
de memória são o regresso, a terra de origem. A “volta” é a sua verdadeira identidade. E
mesmo o migrante estabelecido há mais de 30 anos em Guariba, como Robi, tem
necessariamente uma foto de sua terra, ou de seus amigos e parentes conterrâneos, em algum
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canto da casa
50
. Suas memórias são seletivas: nem tudo fica guardado ou registrado. Assim,
“se esquecem” dos preconceitos que já sofreram ou sofrem (e que ainda estão tão vivos nas
lembranças dos sazonais), e procuram lembrar-se dos grupos a que estão associados, que na
maioria das vezes é o seu próprio bairro.
Talvez Robi represente, juntamente com a sua comunidade, o verdadeiro grupo
“de fora”, tão indesejado e estigmatizado pelo grupo nativo. Mas esta relação não é tão
simples: nativos e os “de fora” são apenas os extremos de uma complexa malha social. Robi
sente falta de sua terra natal, e mata essas saudades voltando, quando pode, para Itaobim
MG nas festas de São João
51
. Gostaria que fosse possível voltar a morar em Minas Gerais, e
aponta problemas em Guariba:
E sua situação financeira hoje, depois que veio pra Guariba, é melhor ou é pior?
Robi - Muito melhor, viu? 100% melhor.
E por que?
Robi - Porque o trabalho aqui é diferente e pra saúde é diferente. É bem melhor. Se
tivesse esse trabalho aqui, e o médico que tem aqui, eu não taria aqui, eu tava lá, né? Porque eu pra
trabalhar é direto, todo dia da minha vida. Lá na nossa Minas Gerais tem... tem trabalho, mas só que é
muito pouco. Não tem carteira registrada, não tem ninguém pra botar uma carteira registrada...
ninguém conhece! Pelo menos lá na nossa região isso é difícil demais.
Mas o senhor preferia estar morando lá, se lá tivesse saúde...
Robi - Sim.
Por que?
Robi - Ah, porque eu gosto de lá, né?
Mais do que aqui?
Robi - Mais do que aqui.
E do quê o senhor gosta de lá?
Robi - Lá... é o clima do lugar, né? E lá é onde a gente nasceu, o costume é outro.
Como é o costume lá?
Robi - Dá até nó na língua pra falar... [Robi fica emocionado]. Lá todo mundo... Lá o
que tem é sossegado, ninguém perturba ninguém. Cê tem uma vida sossegada, né? E eu não gosto...
não pego nada dos outros e não gosto que peguem no que é meu também. Nunca eu fui assaltado, mas
eu tenho medo, né?
O senhor tem medo daqui?
Robi - É o jeito. Aqui não é muito sossego.
50
Fotos no quarto capítulo ilustram este costume de Robi.
51
Em frente à sua casa, Robi pendurou algumas bandeirinhas de festa junina que fez com “fézinhas” da mega
sena, já que estávamos no mês de junho. Fotos no próximo capítulo ilustram este costume de Robi.
Andréa Vettorassi
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Robi poderia ser para Toninho Branco, por exemplo, um possível criminoso
porque é morador do Bairro Alto. No entanto, os sentimentos de ambos, como as saudades da
terra natal e o medo da criminalidade, são muito semelhantes. Obviamente, ninguém se
identifica enquanto criminoso e violento, e inevitavelmente culpa o Outro, que não tem cara,
não tem identidade. O nativo culpa o “de fora”, o morador da Vila Jordão culpa o morador do
Bairro Alto, e o morador do Bairro Alto culpa o seu vizinho distante. Não obstante, Robi
relata o que pensa dessas relações:
E o seu bairro? Acha que é mais violento?
Robi - Não. É médio, né? Não é aqui só, né?
O quê o senhor acha que o centro da cidade pensa?
Robi - [silêncio] Ah, o centro da cidade sempre pensa que... as periferias sempre são
mais... às vezes tem gente mais desonesta, né? Não é mesmo? Porque lá dentro, só os quem mais pode,
né? Ali tem os policiais mais próximos, tem os guardas que olham as coisas, né? E uma pessoa pra dar
um toque se acontecer um erro qualquer, né? E pra gente que tá aqui de fora, aqui... a polícia passa,
mas... mas já é meio tarde, né?
E como é que a polícia age aqui?
Robi - Ah, a polícia sempre... a polícia sempre faz uma força, né? É, apavora peão por
aí!
E tem muita gente fazendo coisa ruim, como é que tá?
Robi - Tem uma meninada meio besta por aí, mas não dá nada, não! Eles brigam uns
aos outros mesmo! Num mexe com família de ninguém, não, ué. Eles mesmo que se desentendem com
eles mesmo, né?
Com o senhor nunca aconteceu nada aqui?
Robi - Não, não, vixe! Não tô te falando pra você? Aqui só tenho amizade.
Pelas amizades estabelecidas e pelos costumes paulistas que já foram
incorporados, é que Dona Miúda, esposa de Robi, ao contrário do marido, não pensa mais em
voltar para Minas Gerais e quer ser enterrada em Guariba. No entanto, não está desvinculada
da relação nativos/os “de fora”, e sabe disso:
E as casas [do Bairro Alto] eram diferentes do que são hoje?
Dona Miúda, 50 anos, ex-cortadora de cana, parda - Não, acho que era desse mesmo
jeitinho mesmo, né? Aqui tem uns “rebaixo” daqui que chamam de favela, né? Mas é que eles nunca
viram favela, né? Porque eu já vi, eu quase morei, eu passei, eu fui na casa do meu cunhado, né? Meu
cunhado morava em favela! Aí eu falo “é, aqui cês tratam de favela, né? É porque vocês nunca viu!”.
Nós andamos passando pelas estrada, e aí a gente passava pertinho das favela! Até inclusive eu tenho
uma prima que mora em Ribeirão, ela mora assim de frente pra uma favela. Ela não mora, mas é de
frente. Tipo de tábua, né? Aí eu falo “ah, eles abusa demais do nosso lugarzinho que nós tá escondido
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lá em Guariba!”. Nós não é favela! Eu gosto daqui, eu não quero ir embora mais daqui! E eu não tenho
vontade de voltar pra trás. Pra morar, não, pra passear sim, né, que eu já fui pra lá [Itaobim - MG]
passear bastante vez!
52
Dona Miúda, em seu mapa afetivo, desenhou exatamente este “lugarzinho”
onde ela está literalmente escondida dos estigmas do centro da cidade guaribense. Mais uma
vez, as diferenças de gênero foram observadas, já que seu desenho é altamente introspectivo.
Concomitantemente, percebemos que mapas afetivos, como o de Dona Miúda, podem reter
imagens e aspectos que só têm significado para o indivíduo que o construiu, mesmo que
façam parte de lembranças compartilhadas entre o grupo ao qual pertença. Dona Miúda usou
sua “intuição sensível” para construí-lo, ou seja, um estado de consciência puramente
individual que existe na base de todas as lembranças, mas que não está totalmente
desvinculado do Outro (Halbwachs, 1990: 37). A cidade foi representada pelo pequeno
universo da casa, multicolorida e cheia de flores. Curiosamente, Dona Miúda desenhou dentro
da casa uma lâmpada desproporcional, que nada mais é que aquilo que mais chamou sua
atenção quando migrou para Guariba:
E a senhora, fora o clima, achou outras coisas diferentes na cidade?
Dona Miúda - [longo silêncio]. Ah, diferente né? Diferente... A cidade, o modo do
povo, né? E não tinha ninguém que via um fogão à lenha. Não tem né, era muito difícil de encontrar, e
nós tava tudo acostumado com o fogãozão à lenha! Todo dia... o fogo não se apagava, era direto!
Dependendo da tora de pau que você colocava lá, ficava, amanhecia o dia e o fogo aceso! Nossa,
menina, quando eu cheguei lá, falei “nossa, rapaz, naquele estado não dá pra ficar, não, porque lá é um
foguinho azulzinho de nada num fogãozinho e ali mal esquenta a comida, ali não esquenta a casa, não!
É só a panela e mal, mal!” É só um foguinho deste tamanhinho assim só! Na panela, lá... cê passa
perto tá um gelo assim! Não esquenta nada! E a comida? Parece que nem é cozida não, só esquentada!
52
Entrevista realizada no dia 16 de junho de 2005, na casa da depoente.
Andréa Vettorassi
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Mapa Afetivo de Dona Miúda (2005)
Atualmente, nada mais espanta ou surpreende estes migrantes estabelecidos,
que ao menos em alguns espaços de Guariba, a sentem como a sua morada permanente e por
direito. Não poderia ser diferente, em especial em alguns casos como o do senhor Cícero, de
71 anos, que em 1951 chegou à cidade e nunca mais saiu dela, sendo, portanto, um dos
primeiros migrantes nordestinos a se estabelecer em Guariba. Relembra estes “bons tempos”,
em que migrar não parecia tão difícil:
E o senhor veio pra cortar cana, à procura de trabalho... Por que o senhor veio pra
cá?
Senhor Cícero, cortador de cana aposentado, negro, baiano, 71 anos - À procura de
trabalho, né? Aqui era bom então fiquei. E não me dei mal, não, viu, vou te falar. Naquele tempo era
tudo melhor, graças a Deus. Eu não posso me queixar de São Paulo. Não. [...] Ah, naquele tempo o
pessoal era tudo amigo. Não era como hoje, que tudo é mais difícil. Não, o pessoal se dava tudo muito
bem, graças a Deus. Eu fui bem recebido, não posso me queixar, né? Todo mundo, né?
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53
Entrevista realizada no dia 14 de junho de 2005, na casa do depoente.
Espaços Divididos e Silenciados
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Mas, como não poderia deixar de ser, assegura que a partida foi dolorosa, e
descreve de que forma foi completamente desprendido de sua terra natal:
E como é que o senhor se sentiu quando deixou a Bahia?
Senhor Cícero - É, qualquer um que deixa sua terra, não tem jeito, fica triste, né? Não
tem essa de falar que deixou sua terra natal e tá feliz, né? Depende... Mas como eu tava indo e não
queria voltar, eu graças a Deus... você me entende, né? Eu não voltei!
E o senhor sente falta da sua família?
Senhor Cícero - Ah, isso daí a gente sempre sente, né? Até hoje a gente se lembra, né,
mas... Sempre quando eu falava “ah, eu vou lá”, ficava um doente, ou qualquer outra coisa, então
[longo silêncio]...
O senhor não chegou a ver mais seus pais?
Senhor Cícero - Não, nunca mais. Porque eu não escrevo, pra falar bem da verdade
eles nem sabe onde a gente tá. [...] Eles nem deve tá vivo.
O senhor Cícero pouco se lembra de sua terra natal, mas ainda é capaz de
identificar diferenças nas cidades em que viveu, como os tipos de ruralidade apresentados
entre os dois espaços. Era um tempo em que, em ambos os contextos (Guariba e Olhos
D’água, no interior da Bahia), os limites dos espaços urbanos eram estreitos, e as cidades
eram em quase toda a sua extensão tomadas pelos sítios, fazendas e chácaras. No entanto,
aspectos que parecem similares têm suas diferenças, como pôde observar o senhor Cícero
mais de cinqüenta anos após sua primeira e definitiva partida:
E era muito diferente da Bahia, a cidade?
Senhor Cícero - Ah, acho que tudo era meio parecido, né? Só tinha de diferente
a feira, né? Que lá na Bahia tinha e aqui não tinha. Mas de resto, acho que era parecido. Aqui
era tudo pequenininho, só tinha chácara. Só tinha duas ruas na cidade, né? Era tudo chácara.
Umas casas lá pra baixo, no asilo. Tinha uma casa velha aqui na esquina. Tinha uma outra
aqui em cima. E aqui era mais cafezal, essas coisa tudo.
A feira, ainda rememorada, é representativa de um modo de vida camponês do
interior da Bahia que o senhor Cícero não encontrou no interior de São Paulo, mesmo que
Guariba fosse constituída majoritariamente por sítios, chácaras e fazendas. A feira baiana,
onde alimentos plantados e colhidos em roças de subsistência eram trocados por outros
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produtos, entre vizinhos e parentes, representa um modo de vida rural que, de acordo com o
senhor Cícero, não mais existia em Guariba. No interior paulista, a monocultura cafeeira,
embora em um contexto rural, já representava outros códigos operacionais, muito mais
próximos de um modo de vida moderno que de um modo de vida tradicional, como o vivido
desde então pelo senhor Cícero, que apenas se lembrou deste diferente aspecto, aparentemente
banal, mas que certamente transformou o princípio de seus sentidos e hábitos: sua
consciência, suas formas de socialização, suas impressões e seu ritmo de vida ganharam
traços “modernos” (Simmel, 1987).
O senhor Cícero facilmente percebeu que as regras, culturas e costumes em
que estava inserido eram outros, e procurou habituar-se ao novo contexto e às suas novas
identidades:
E como era aqui [o Bairro Alto]?
Senhor Cícero - Isso aqui foi feito com casas de barro, a maioria era tudo casinha de
barro, uma aqui, outra lá... Eu demorei mais [para construir sua casa própria] porque eu queria levantar
a minha de tijolo, né? Porque eu não queria de barro e não fiz de barro. Então eu demorei um pouco
mais pra levantar isso aqui de tijolo.
E por que o senhor preferiu levantar esta de tijolo?
Senhor Cícero - Ah, porque aí era um serviço bem feito, né? Porque as de barro...
Quem fez as de barro, desmancharam, né? E eu preferi fazer de tijolo pra não ter que desmanchar. Só
que era baixinho. Aos poucos, passados uns anos é que eu suspendia, mas era baixinho.
Mas lá na Bahia era de barro, ou não?
Senhor Cícero - [silêncio] Ah, a nossa casa... É, tinha casa de barro, uns terreno
grande. A nossa casa mesmo, que nós morava, era feita de sapê.
Mas ela ficou em pé, ou ela foi desmanchando também?
Senhor Cícero - Não, aquela ficou em pé! Aquela lá agüenta muitos anos! É que lá era
tudo grandão! Então lá até podia rebocar, do jeito que está essa aqui, que não tinha problema. Barro
acho que agüenta até mais do que tijolo. Porque naquele tempo eles não fazia igual hoje, que é de
concreto.
Mais uma vez, as casas de barro ganharam sentidos diferentes de acordo com o
espaço e o tempo em que existiram. E, neste caso, os diferentes sentidos que o senhor Cícero
atribuiu às casas de barro evidenciam as transformações que a sua identidade sofreu ao longo
do tempo. Concomitantemente, também demonstram as discriminações sofridas pelo “povo
estranho, [...] das casas de barro, fora do lugar” (Moraes Silva, 1993: 43):
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O senhor acha que já foi discriminado aqui na cidade?
Senhor Cícero - [silêncio] Discriminado?
É.
[silêncio. Volto a perguntar]
Se o senhor já sofreu algum tipo de preconceito, por ser morador do bairro...
Senhor Cícero - É, isso aí sempre tem, né? Eu convivia com o pessoal de lá [do centro
da cidade], né, e eles sempre falava: “compra uma casa aqui, seu Cícero, pra quê morar lá?”. Mas pra
mim tá bom. O pessoal sempre fala, né? Quem mora aqui nas vila mais fraca sempre é mais
discriminado, isso aí é coisa dos princípio do mundo e não vai ter fim nunca [risos]!
E por ser baiano?
Senhor Cícero - Não, quanto a isso, não, graças a Deus não. Eu sempre fui pouco
discriminado, graças a Deus, né?
Por reconhecer as discriminações que sofre, em especial por ser morador da
periferia pobre da cidade, o senhor Cícero, como outros migrantes estabelecidos, evita locais
em que perceba com mais intensidade esta discriminação, mesmo que apresente motivos
diversos para não ir ao centro da cidade:
E o senhor vai muito ao centro da cidade?
Senhor Cícero - Ah, eu só vou lá embaixo mesmo quando é preciso.
E quando é preciso, seu Cícero?
Senhor Cícero - Ah, hoje mesmo eu tive que passar no banco, né? Às vezes precisa
pagar alguma coisa...
E por que o senhor não vai mais ao centro?
Senhor Cícero - Ah, a minha mulher é doente. Quando sai um tem que ficar o outro.
Tem vez que nem na igreja eu posso ir [...] Mas eu saía muito, eu jogava baralho, ficava... Ah, eu já
me diverti bastante.
O senhor Chico, vizinho do senhor Cícero, também prefere não freqüentar o
centro da cidade, e justifica sua escolha da seguinte forma:
Senhor Chico, cortador de cana, mineiro, negro, 63 anos - É, lá eu só vou uma vez por
mês, porque tenho que ir pro banco, mas só. De resto, só dentro de casa. Tem dia que eles querem me
levar, mas eu não vou! Que eu tô com o corpo doendo...
É necessário lembrar que o centro de Guariba e seu comércio estão a poucos
quarteirões de distância do Bairro Alto, sendo de fácil acesso até mesmo para quem está a pé.
Certamente não são apenas as dores no corpo que impedem o senhor Chico de ir ao centro da
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cidade, mas também os estigmas e as discriminações que encontra em espaços sociais
ocupados por grupos que se consideram socialmente superiores ao senhor Chico, e que, de
uma certa forma, são também socialmente superiores para o senhor Chico:
E o senhor tem muitos amigos, ou não?
Senhor Chico - Graças a Deus! Graças a Deus é o que eu mais tenho aqui!
Aqui do bairro?
Senhor Chico - É, tudo meus vizinho. Tudo aqui do bairro é gente conhecida, mas lá
no centro eu conheço também!
Quem o senhor conhece lá?
Senhor Chico - Ah, não sei lhe dizer assim por nome. Mas de vista, de vista até que
conheço!
Foi também aos poucos, e de forma traumática e indesejada, que o senhor
Chico sentiu-se enfim parte da figuração social de Guariba e a entendeu como lar (ou, ao
menos, o Bairro Alto enquanto lar). Ao longo da entrevista, o senhor Chico informa que há
dezoito anos mora na cidade, e que nesta ocasião migrou em busca de tratamento médico para
a sua esposa, que tinha problemas cardíacos. Viajou com 120 mil réis no bolso e seis filhos
menores de idade. Instalado em Guariba há um mês, recebeu a notícia do falecimento da sua
esposa:
Então o senhor veio pra Guariba pra tentar tratar da sua senhora?
Senhor Chico - É. Vim pra cá pra tratar dela.
Então o senhor não veio pra cortar cana?
Senhor Chico - Não, eu vim pra tratar dela. Mas depois que ela morreu eu fui
obrigado a ficar aqui, e então eu passei a cortar. Dinheiro eu não tinha. O jeito foi ficar aqui. Os
menino, seis menino pequeno.
No entanto, ao longo da entrevista, Seu Chico esclarece que já conhecia
Guariba, e que há dezoito anos se estabeleceu na cidade:
E quando o senhor chegou aqui, Guariba era muito diferente da sua cidade lá em
Minas?
Senhor Chico – Não, mas quando eu vim aqui, eu já tava acostumado com isso aqui.
Porque eu vinha aqui, mas eu só vinha trabalhar e ia embora, pra poder tratar de roça. Eu vivia mais
era aqui. Eu já era acostumado aqui. Eu trabalhava lá e cá.
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Ah, então o senhor vinha pra cortar cana...
Senhor Chico - É, trabalhava seis meses e ia embora. Aí eu ia cuidar da roça lá.
Mas aí não trazia a sua esposa...
Senhor Chico - Não, não trazia nenhum deles. Eu vinha, trabalhava seis meses e então
ia embora pra mim poder cuidar da roça de lá. Quando aí era janeiro, fevereiro, aí então eu voltava.
Era assim, eu já era acostumado aqui.
E quanto tempo o senhor fez isso, o senhor veio só pra cortar cana e voltar?
Senhor Chico - Ah, filha, foi muito tempo, muito tempo. Aí da última vez que eu vim,
eu não voltei mais.
Ou seja, o senhor Chico apenas sentiu-se cidadão guaribense quando deixou de
ser um migrante sazonal, e passou a morar permanentemente na cidade. Neste sentido, o
senhor Chico não sente que compartilha com o migrante sazonal, morador de pensões e becos,
um mesmo e coeso grupo, as mesmas representações sociais (Elias & Scotson, 2000).
Dona Cipriana, cunhada do senhor Chico, assim como ele, ainda não está
aposentada e corta oito toneladas de cana diariamente em plenos 58 anos de vida. Em seu
mapa afetivo, desenhou a sua casa, de cores vivas e cercada de árvores e flores que na
realidade não existem
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:
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No quarto capítulo há fotos das casas de Dona Cipriana e do casal Robi e Miúda, retratadas em seus mapas
afetivos.
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Mapa Afetivo de Dona Cipriana (2005)
Seu desenho tem traços infantis, como um sol sorridente entre nuvens e uma
borboleta antropomórfica. No entanto, sua vida não tem estes mesmos traços infantis. Dona
Cipriana sustenta uma extensa família, dentre os quais sua mãe de 101 anos e um filho de 13
anos que já é pai. Perdeu duas filhas, uma de 25 anos e outra de 19 que, de acordo com Dona
Cipriana, “morreram de tristeza” cortando cana e deixaram três filhos. Além disso, conta o
profundo desespero que sofreu quando migrou para Guariba há vinte e um anos atrás:
E como é que a senhora se sentiu quando deixou sua cidade?
Dona Cipriana, mineira, negra - Ah, eu pensava nela, só ela [sua cidade, Araçuaí -
MG]. Só queria saber de voltar pra lá. Eu, minha sogra, só chorava. Chorava com vontade de voltar
pra lá, mas não podia. O dinheiro não dava, né? E as duas menina [suas filhas, que já morreram] que
era de menor tava trabalhando, né? Eu falei “o certo é ficar aqui”. Lavei muita roupinha pros outro
aqui, pra ganhar um tostão.
Mas então não foi fácil no começo?
Dona Cipriana - Ah, pra mim não foi fácil, porque nem roupa eu tinha, muié! Dormia
no chão... Me desculpe de ter que falar essas coisa, não sei se quer ouvir...
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Imagina, pode falar!
Dona Cipriana - ... De papelão, filha! [fica emocionada] Dormia no papelão! Tinha
gente que queria até meu filho, meu menino! Esse aí que tá deitado. Queriam tirar de mim, eu falei “eu
não dou, esse menino é meu”. Passo em frente da casa dessa muié até hoje, ainda.
E quais impressões a senhora teve da cidade?
Dona Cipriana - Ah, quando eu cheguei aqui eu queria voltar no outro dia. Pra mim
era tudo estranho, tudo sujo...
De acordo com Halbwachs (1990), a memória é ativa e psíquica, e não restitui
um estado passado em sua total realidade porque seu ponto de apoio são as diferenças. Por
isto a memória relaciona todo o tempo o presente com o futuro. O presente é recontado de
acordo com o momento passado: quanto pior for o tempo passado, melhor será a reconstrução
do tempo presente, e vice-versa. O momento passado revivido por Dona Cipriana é doloroso e
traumático, e por isto o momento presente representado em seu mapa afetivo está cercado de
flores, borboletas e outros elementos caracteristicamente infantis.
Aos poucos, como era de se esperar, Dona Cipriana se conformou e se
acostumou. Teve a oportunidade de voltar para a sua terra natal, mas não quis. Hoje entende
Guariba como seu ponto de chegada, e não mais como um possível ponto de partida:
Então a senhora acha que a sua situação financeira hoje é melhor?
Dona Cipriana - Pra mim é melhor porque eu tô trabalhando, né? Mas eu vejo que,
assim, dá vontade de ter alguma coisa e nós não tem, né? Então nós tem é que ficar quieto. Mas tem
coisa boa aqui, porque todo mundo é bão... Tem gente que chega, traz um arroz, me ajuda. Ajuda ela
[D. Dadá, sua mãe] também, né? Então por isso, pra mim, nem é tão muito ruim assim, que nem lá na
minha terra [...] E eu tenho bastante amigo aqui, porque vem muita gente aqui em casa, né? E eu não
sou de ir em casa dos outro, mas aqui vem bastante gente de fora. Eles gosta da gente, gosta dela [D.
Dadá], gosta de mim. E a gente gosta de muita gente.
Os mapas afetivos, assim como os depoimentos daqueles que os constroem,
recriam o passado e o estado atual de seus cotidianos de acordo com elementos do tempo
presente e das relações que mantêm com os Outros. São reflexos de uma memória
subterrânea, representante de culturas minoritárias e dominadas e que se opõem à “memória
oficial” (Pollak, 1989). São nos espaços e nos lugares por eles representados que a tradição se
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estabelece, pois, embora timidamente e com oscilações e características múltiplas, a tradição e
a coesão são reproduzidas entre os grupos “de fora”. Afinal, nenhuma população se deixa
deslocar sem resistência, sem levar consigo parte do que entende por seu grupo: as relações
existentes entre os espaços e os seres que nele habitam, entre as “pedras e os homens”
(Halbwachs, 1990), não são transpostos e modificados facilmente.
3.3 Representações Sociais dos “De Fora”: as cidades-dormitórios como
periferização do capital
Entre atitudes blasé, violências simbólicas e estigmas, o migrante vai
percebendo, aos poucos, que os laços sociais que separam e hierarquizam os indivíduos
podem também uní-los. Migrantes temporários continuamente sofrem e se fecham em seus
universos particulares e protegidos. Migrantes estabelecidos já sofreram muito, mas aos
poucos fazem de Guariba sua morada, e ultrapassam os limites de seus universos, que ganham
as casas, as ruas e os bairros periféricos que os circundam. Aprenderam que o modo de vida
camponês, que mantinham em suas terras natais, pode também ser reproduzido na “moderna”
cidade paulista, a partir de um espírito comunitário construído entre os iguais. Guariba nada
mais é que diversos círculos, espaços sociais que eventualmente comunicam seus extremos
(Bourdieu, 1989). Espaços sociais que, quando se encontram, se misturam ou se chocam,
compartilham uma repulsa, que não advém apenas do grupo nativo, mas também do grupo
“de fora”. Se o nativo deseja que o “de fora” não vá ao centro (o espaço social nativo), o “de
fora”, por sua vez, evita ir ao centro e prefere manter-se nos espaços sociais que considera seu
por direito, como o Bairro Alto.
Mas e os filhos dos “de fora”? A segunda e a terceira geração dos migrantes já
nasceram em Guariba, e construíram suas identidades a partir dos modos de vida paulistas,
guaribenses. Nem sempre aceitam que existe algum espaço social na cidade que não é seu por
direito, afinal, eles são parte constituinte da mesma, e em alguns casos nunca compartilharam
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ou presenciaram o modo de vida camponês de seus pais e avôs. No entanto, são incorporados
em uma mesma, injusta e contraditória relação dialética: são impreterivelmente os “de fora”,
mesmo que guaribenses natos, porque são negros e pardos, pobres ou moradores do Bairro
Alto. É preciso tomar consciência de que esta “ausência” de identidade entre a segunda e a
terceira geração de migrantes pode ter sérias conseqüências, como a participação deste grupo
em atos violentos e criminosos ocorridos na cidade.
Como foi discutido no segundo capítulo, Elias & Scotson nos chamam a
atenção para as contínuas humilhações que estas crianças e jovens, membros da segunda e
terceira geração de migrantes, estão suscetíveis, já que suas auto-imagens e valores dependem
do que os outros pensam e dizem sobre os seus pais. Concomitantemente, suas identidades
também dependem da maneira como este grupo foi inserido na relação nativos/os “de fora”.
Considerado “de fora” pelo nativo, este grupo sente que é (e de fato é) fruto de relações
sociais, culturais e históricas paulistas, guaribenses.
Guaribenses natos, estas crianças e jovens sentem, com ainda mais força que
seus pais, as discriminações que constantemente sofrem, por serem negros, por serem pobres,
por serem moradores das periferias. E, assim como os nativos, procuram sua auto-identidade
atacando o outro (Bourdieu, 1989). No entanto, já não usam uma violência simbólica, mas
uma violência real, como os furtos, os roubos e o tráfico de drogas. Por serem representantes
de uma auto-identidade anômica, igualmente reagem de forma anômica, e estas reações são
prejudiciais tanto para os nativos quanto para os “de fora”. Alguns migrantes estabelecidos
exprimem a sua opinião a este respeito:
E o senhor considera a cidade violenta?
Senhor Cícero - Ah, isso aí eu considero, né?
Por que?
Senhor Cícero - É, porque você pode ver que hoje em dia tudo quanto é bairrinho tem,
tem um pouco de crime, né? É, porque você vê que em tudo quanto é bairro tem, não é só aqui, né? É
tudo violento. E eu acho, no meu haver, que quando tirou os menor de trabalhar ficou pior, né? Isso
influencia, porque se ele não tem dinheiro, influencia. Se ele vê um andando bem vestido, e ele não
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tem daonde tirar, aí ele parte pra violência. Eu falo homem porque um rapazinho de 14 anos, pra mim
é homem. É igual a menina de 14 anos, ela já tem formas. Então é o que acontece, se eles não tem
daonde tirar, eles vão roubar. Porque com um salário mixo, qual é o pai que pode tratar de três, quatro
filhos e dar conforto pra eles? Ganhando este salário mixo? Não dá, né? Então é donde vem muito a
violência.
E o senhor acha que o Bairro Alto é mais violento?
Senhor Cícero - Não, não acho. Não acho porque lá pra cima tem pior do que aqui
ainda.
Lá pra cima aonde?
Senhor Cícero - Ah, lá pela creche, aí perto da caixa d’água... Lá por aquelas ruas, que
é mais povoado do que aqui, é donde sai mais os crime. Aqui é difícil, saber de alguém que matou
aqui.
O senhor Cícero sugere que o impedimento que jovens filhos de migrantes têm
em adquirir os símbolos da modernidade paulista, a qual são intrinsecamente parte, é um
importante fator para o aumento da violência entre este grupo. Afinal, a corporalidade é parte
fundamental das relações sociais, em especial nas sociedades modernas, onde toda e qualquer
relação social é mediada por imagens (Debord, 1997). Há outro importante fator na fala do
senhor Cícero: a localização da violência. Mais uma vez, a criminalidade é porosa, perpassa
todos os ambientes de Guariba, ao mesmo tempo em que não faz parte de nenhum deles. A
creche e a caixa d’água ficam a três quarteirões da casa do senhor Cícero, e embora já faça
parte do Jardim Monte Alegre, é também considerado “morro” e João-de-Barro, como o
Bairro Alto. O senhor Chico comenta a violência de forma muito semelhante:
Senhor Chico - É, todo esse trecho aqui era muito violento. Mas agora, ultimamente,
graças a Deus tudo isso aí parou, parou. Porque agora tem a igreja, tem a segurança, porque agora
passa sempre a segurança. Tô com 18 anos que moro aqui, e graças a Deus nunca ninguém levou nada
de meu que tenho aqui.
E quando que era mais violento?
Senhor Chico - Ah, essa época eu não sei muito direito. Porque eu não tenho estudo,
não tenho leitura, então é difícil marcar, né, as coisa, mas, desde quando eu cheguei aqui, mas depois
que não é violento mais, não. Quem faz bagunça tá lá, mais pra cima, né? Mas agora parou, faz tempo
que parou.
Mas então foi assim que o senhor chegou, que o senhor percebeu que aqui era meio
violento?
Senhor Chico - É, mas eu não vi direito porque tive que criar tudo essas criança. A
mãe delas morreu e eu tive que criar ainda era muito novo. Mas agora não acontece mais nada, não,
desse lado da vila, não.
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Em outros trechos de ambas as entrevistas, os depoentes sugerem que os
migrantes temporários podem estar contribuindo com a “alta violência” existente na cidade:
Senhor Cícero - Bom, acho que o pessoal que vem aí de fora, eu não acredito... bom,
eu não sei, porque no tempo que eu vim, naquele tempo tinha pouca gente, e tá certo que donde tem
menos gente, você sabe, tem menos [violência]. Mas hoje em dia, eu não vou contra, porque hoje em
dia toda a população tá demais. E acontece que esse pessoal vem bastante de fora e por aqui não
arranja serviço. Tem muitos por aí que já não trabalha. Então cada vez mais a situação fica mais
desgostosa mesmo. Acharam que o governo podia dar um jeito, pra ver se lá mesmo no estado deles
havia um jeito de dar uma cobertura pra um serviço, uma vida melhor pra eles.
E o senhor acha que pelo fato de muitas pessoas virem pra cortar cana, isso pode
trazer violência pra cidade?
Senhor Chico - Ah, cê vê, minha filha, tudo quanto é cidade tá procurando serviço pra
cá! Veja onde é que tá Maranhão, tá aqui! O pessoal, as turma tão tudo vindo pra aqui!
E o senhor acha bom ou ruim?
Senhor Chico - Ah, filha, não sei! Às vez vem morar um monte de família, tudo junta,
vem morar umas três... E logo passa reto. Tem uns aí que passa por aí calado, nem fala oi pra
ninguém. [risos].
Mais uma vez é perceptível que uma identidade comum e coesa não existe
entre migrantes estabelecidos e temporários, já que, embora representantes de um mesmo
grupo “de fora”, são diversos em seus pensamentos, condutas, culturas e valores, e em busca
de defesa pessoal atacam e culpam o outro. Assim também reagem quando procuram não
relembrar a greve de 84, e com seus “não-ditos” (Pollak, 1989) evidenciam os medos, os
estigmas e as discriminações que são constituintes desta manifestação:
E o senhor se lembra da greve que ocorreu na cidade?
Senhor Chico - [incisivo] Não, não.
Não?
Senhor Chico - Não.
O senhor não estava aqui?
Senhor Chico - Não. Às vezes até tava, mas eu não me arrecordo.
O senhor se lembra da greve dos trabalhadores rurais?
Senhor Cícero - [silêncio] Uai, cê sabe que no dia dessa greve, eu tava deitado aqui, ia
trabalhar, tava cansado e tava descansando aí. Na hora que os policial veio aí, sabe que eu nem vi. Que
disse que pediram mesmo pras turma entrar pra dentro e...
[A esposa do senhor Cícero, Dona Fátima, interrompe] Foram tudo entrando, pedindo
pro povo entrar e pra fechar tudo as porta. A gente tava tudo cansado da roça, tava dormindo, pegaram
eles e deram um “couro”! Pegaram uns menino lá embaixo, Nossa Senhora!
Andréa Vettorassi
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Senhor Cícero – É, porque tinha uns que xingavam eles demais, né? E xingavam... É,
essas pessoa que não trabalha, vamo falar a verdade! Porque quem trabalha não vai atrás de bagunça.
Então ninguém trabalhava e xingava demais. Então veio ordem [policial] por isso. Tudo as pessoa que
eles via ele mandava entrar pra dentro. Quem não entrou apanhou! Mas tinha aqueles que eles pegava
dentro de casa, e tinha aqueles que eles pegava e só batia.
Nossa, deve ter sido feia a coisa por aqui...
Senhor Cícero - Eu tava deitado e nem escutei... Só que eu sou uma pessoa assim:
quando eu vejo que tem folia, eu saio fora [risos]. Eu não tava aqui.
Então o senhor não se lembra muito deste fato?
Senhor Cícero - Não, não lembro não.
Mas foi bastante triste?
Senhor Cícero - Eu não sei, eu não vi. Já teve bastante greve por aí, mas eu não vejo
porque eu não participo. Se não é pra nós trabalhar, eu fico em casa. E acabou.
E a senhora tava aqui quando ocorreu a greve?
Dona Cipriana - [Silêncio]
Aquela greve grande que ocorreu há uns vinte anos atrás?
Dona Cipriana - [Silêncio]
Dona Dadá, mãe de Dona Cipriana, aposentada, negra, 101 anos – Ela tava. Tava que
teve um tumulto...
Dona Cipriana – Olha, falam que mataram até gente, mas eu não tava. Inclusive aonde
nós tá trabalhando, teve greve muito forte. Não chegou a machucar ninguém, mas foi muito forte. E
hoje tão fazendo greve e amanhã vão fazer de novo [Cipriana e seu filho estavam em casa porque os
trabalhadores pararam em uma greve. Antes de iniciar a gravação, ela se queixou e disse que esta
greve foi organizada por maranhenses e que não concorda com ela]. Nós devia tá trabalhando.
A senhora falou que tem muito maranhense na greve...
[Silêncio. Dona Cipriana faz cara de desconfiada]
Dona Dadá – São tudo uns rapaz deste tamanho assim [mede, com a mão, um metro
mais ou menos do chão. Os maranhenses realmente têm menor estatura. Neste momento todos riem].
Dona Cipriana – A gente fica muito “resistoso”, né? Cê para em uma greve, depois cê
não pega mais usina nenhuma! Porque a primeira coisa que eles pega é seu nome!
Então a senhora tem medo de greve?
Dona Cipriana - Ah, eu tenho! Eu não mando ninguém fazer e peço pro meu filho não
fazer também. Pra mim eu dava graças a Deus não ter greve! Porque só prejudica os outro no trabalho
pra ganhar o sal!
A greve, como é visto, não é entendida enquanto um direito, uma alternativa
para a melhoria das condições de vida e das relações trabalhistas, mas sim enquanto
potencializadora de discriminações e de perdas de trabalho assalariado. Diante de
possibilidades cada vez mais latentes de desemprego, independente do quanto ganha ou ainda
do quanto é explorado, estar empregado é o suficiente. Nada deve ser reivindicado: é
necessário “agradecer a Deus” pela oportunidade de um trabalho assalariado, praticamente
inexistente nas cidades de origem destes homens e mulheres migrantes. É desta forma que os
modos de produção capitalista garantem a continuidade e estabilidade de seu sistema.
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Rosa Luxemburgo, já no início do século XX, trouxe à luz novas discussões e
interpretações acerca da reprodução do capital, o fazendo de forma a inserir outros elementos
à noção de reprodução do capital de K. Marx, vigente até o momento. De acordo com esta
pensadora, o capital apenas garante os níveis de acumulação almejados quando importa força
de trabalho existente em outras regiões, normalmente de economia pré-capitalista. Ou seja, o
capital não consegue se reproduzir se utilizar apenas a força de trabalho existente nos limites
de seu próprio espaço. Além disso, “o processo de acumulação originária não se refere
somente ao início da era capitalista, mas o acompanha também nas fases de sua reprodução
ampliada” (Moraes Silva, 2005:4).
Um século mais tarde, é possível perceber que Rosa Luxemburgo foi capaz de
apontar para um dos mais importantes elementos existentes na reprodução do capital em
sociedades de economia capitalista avançada, em tempos de um mundo cada vez mais
dicotômico, dividido entre áreas de riqueza e miséria intensas. As desigualdades sociais, a
riqueza de áreas capitalistas em detrimento à pobreza de áreas pré-capitalistas, são
fundamentais para o desenvolvimento e reprodução do capitalismo em si.
No Brasil, não poderia ser diferente. Certamente encontramos as mesmas
relações econômicas apontadas acima. O desenvolvimento econômico do interior de São
Paulo, o mais rico estado do país, é garantido em especial a partir da produção,
comercialização e exportação dos produtos originários da cana-de-açúcar, como o açúcar e o
álcool. Não obstante, a economia açucareira assegura os seus altos índices de reprodução do
capital utilizando-se de mão-de-obra barata, advinda das regiões pobres do país de onde estes
migrantes vieram. Quando estes homens e mulheres se submetem a uma “migração
temporária permanente”, ou ainda quando se estabelecem definitivamente nas terras em que
migram, deixam de ser camponeses em regiões de economia pré-capitalista e tornam-se,
Andréa Vettorassi
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definitivamente, peça fundamental para o avanço da reprodução do capital em áreas de
economia capitalista consolidada.
Quando voltamos os olhos para as tristes condições de vida existentes nos
locais de origem destes migrantes, compreendemos o porquê da crescente e intensa migração
de seus habitantes, como também a relação riqueza/pobreza exposta acima: No Maranhão, por
exemplo, 68,42% dos seus 5,6 milhões de habitantes são de miseráveis que vivem com até R$
80,00 por mês (o maior índice percentual do país); dos 100 municípios mais pobres do país,
83 estão no Maranhão; de cada mil bebês nascidos no Maranhão, 42 morrem antes dos cinco
anos (maior taxa de mortalidade infantil entre os estados brasileiros); 50,3% da população
maranhense não tem acesso à água encanada; 39,8% das casas no Maranhão não possuem
banheiro; 35,2% dos maranhenses com mais de 10 anos são analfabetos
55
.
No entanto, quando optam pela migração, nem sempre estes homens e
mulheres melhoram consideravelmente suas condições de vida. Passam a ser triplamente
marginalizados: economicamente, quando inseridos em um modo de produção capitalista
exploratório, geograficamente, quando habitam as periferias pobres e de precária infra-
estrutura nas cidades que os acolhem, e socialmente, quando fazem parte da injusta relação
nativos/os “de fora”.
Frente aos estigmas do grupo nativo a que estão submetidos, percebemos que
os “de fora”, por serem um grupo heterogêneo, têm reações diversas e multifacetadas, que
podem ser divididas entre três subgrupos: os “de fora” migrantes sazonais, isolados em suas
próprias pensões e becos, os “de fora” migrantes estabelecidos em Guariba há décadas, que
conquistaram as ruas e espaços de seus bairros periféricos, e os “de fora” pertencentes à
segunda e terceira geração de migrantes, que por se considerarem (e serem) cidadãos
55
Fonte: FGV, IBGE e Universidade Federal do Ceará. In: Jornal Correio Popular, Caderno Cidades, p. A4.
Campinas, 16 de outubro de 2005. Agradeço à Profa. Dra. Tânia Pellegrini, que tornou possível o acesso a estes
dados.
Espaços Divididos e Silenciados
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guaribenses, entendem que todos os espaços da cidade são seus por direito, e por isto estão
mais expostos às relações de violência.
Finalizamos este capítulo chamando a atenção para um importante aspecto:
Comumente conhecidos como excluídos, na verdade estes migrantes estão absolutamente
inseridos nos processos de produção capitalista, como também nas relações sociais e culturais
das cidades-dormitórios, onde procuram a sobrevivência. No entanto, em ambos os casos, os
trabalhadores rurais migrantes estão em desvantagem: como já sabia Rosa Luxemburgo há
pelo menos um século, para eles sobraram os serviços pesados e os estigmas, típicos das
nossas sociedades capitalistas.
O próximo capítulo dedica-se à apresentação dos registros visuais produzidos
ao longo do desenvolvimento desta dissertação. Propõe-se também a analisar o papel dos
mesmos na contemporaneidade, em que muitas vezes uma fotografia apresenta reflexões,
análises e discussões inexistentes sem a presença da mesma. Apreciemos, enfim, as
revelações visuais.
Andréa Vettorassi
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119
Galeria de Fotos
Espaços Divididos e Silenciados
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CAP. IV – Galeria de Fotos
4.1 Fotografia: escrever com a luz
De acordo com Susan Sontag (2004), filósofa dedicada às reflexões sobre a
arte de fotografar, a fotografia é um dos mais misteriosos objetos que compõem o ambiente
moderno. Isto porque a foto vai muito além de um pedaço de papel, ou mesmo de uma
manifestação puramente artística: a foto é, essencialmente, uma experiência capturada, o
objeto de uma consciência.
Quem fotografa pode, com o seu ato, apropriar-se daquilo que é fotografado,
porque a imagem fotografada não parece uma manifestação, uma expressão ou interpretação
daquilo que se fotografa, mas sim um pedaço sólido do mundo, algo que, com todos os seus
traços, linhas e cores, realmente fez ou faz parte de uma realidade concreta. Talvez por isso as
imagens fotografadas deixaram muito cedo de ser entendidas enquanto manifestações
artísticas para se tornarem, definitivamente, um registro, um testemunho dos fatos, do tempo
e do espaço.
Para uma reflexão sobre o papel da fotografia nos tempos modernos, é
fundamentalmente importante incluir as categorias tempo e espaço nestas reflexões. A
fotografia mantém uma relação intensa com o tempo: ela o testemunha, ao mesmo tempo em
que o congela. Ela o representa e o denuncia, porque é a mais pura evidência da mortalidade,
da vulnerabilidade e da mutabilidade daquilo que é fotografado. Ou seja, ela retrata as duras
manifestações do tempo, exercidas sobre todas as coisas e pessoas, mas que ficam ainda mais
claras quando essas mesmas coisas e pessoas são fotografadas. Por outro lado, o tempo
também sabe exercer sua força sobre a fotografia, já que, à medida que vai passando, muda a
condição e a carga emocional existente em uma imagem fotográfica. Desta forma, uma
fotografia do século passado traz à tona diferentes sentimentos na contemporaneidade do que
aqueles ocasionados quando ela foi revelada.
Andréa Vettorassi
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121
Com a categoria espaço, a fotografia também estabelece relações profundas.
Afinal, o “enquadramento” de uma foto não é arbitrário. Assim como enquadramos as nossas
memórias e determinamos aquilo que deve ou não ser lembrado (Nora, in: Pollak, 1989),
determinamos também quais espaços devem ser preenchidos pelos ângulos da fotografia,
quais deles são dignos de se tornarem registros, quais deles devem ou não ser rememorados.
Há ainda uma segunda interessante relação estabelecida entre o espaço e a fotografia: Esta
dobra as imagens e os espaços do mundo e passa uma idéia de acessibilidade que muitas
vezes não condiz à realidade. “Ao munir este mundo, já abarrotado, de uma duplicata do
mundo feita de imagens, a fotografia nos faz sentir que o mundo é mais acessível do que é na
realidade” (Sontag, 2004: 34).
Em geral, aquilo que é digno de se fotografar é considerado um evento
justamente por conta das relações que a fotografia exerce com o espaço e o tempo. No
entanto, não é a fotografia em si que identifica e determina o que é ou não um evento, mas
sim a ideologia existente nas entrelinhas daquilo que foi “escrito com a luz”, na photo –
grafia. Sem uma relação com o espaço e com o tempo e, principalmente, sem uma visão
política, a foto perde totalmente seu significado. Desta forma, olhar as fotos a seguir requer
uma preocupação cuidadosa em relacioná-las com o tempo e o espaço em que foram tiradas,
como também com o que a caracterizam enquanto um evento, ou seja, quais revelações
políticas elas podem nos oferecer.
Qual o significado de um portão fechado? Se for o portão de uma pensão de
migrantes temporários no Bairro Alto, pode significar a pobreza existente dentro deles e que
fica invisível para os olhares nativos. Se estiver no centro de Guariba, pode significar uma
“cultura do medo” entre o grupo nativo que, constantemente inseguro, se fecha para as
conseqüências de sua própria violência simbólica (Bourdieu, 1989). Portas enfileiradas são
muito mais que portas: são lares, muitas vezes mais valorizados pelos seus moradores do que
Espaços Divididos e Silenciados
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122
as suas antigas casas de choça. Milhos plantados em um terreno de poucos metros quadrados
não são apenas parte de um “quintal”. Se estão nos fundos de uma pensão de migrantes,
podem significar um resgate a antigos valores culturais e sociais, assim como um porta-
retratos na sala, ou ainda as bandeirinhas representantes da festa junina. Por outro lado, a
televisão, o aparelho de som ao lado da rede de dormir, os óculos escuros e tantos outros
símbolos do moderno, denunciam um não só existente, mas inevitável hibridismo de culturas
daquilo que foi fotografado.
E as cercas de madeira da periferia em comparação com as cercas elétricas dos
bairros nobres? Elas demonstram que não só o tradicional e o moderno se encontram, se
misturam ou se chocam, mas também a riqueza e a miséria intensas. Elas demonstram que a
insegurança, o individualismo e a introspecção são elementos que podem existir e serem
compartilhados tanto entre ricos quanto entre pobres.
Enfim, as fotografias, quando contextualizadas de forma adequada, levando-se
em conta as suas representações políticas e sociais, podem nos revelar fatos e detalhes que
vão muito além das palavras escritas. Não obstante, as fotografias, com seus enquadramentos,
luzes, cores e elementos contidos, podem revelar muito sobre aquele que está fotografando,
quais mensagens e aspectos do mundo real foram por ele escolhidos para o registro visual, o
que, afinal, suas fotografias querem revelar. “A sabedoria suprema da imagem fotográfica é
dizer: ‘Aí está a superfície. Agora, imagine – ou, antes, sinta, intua – o que está além, o que
deve ser a realidade, se ela tem este aspecto’” (Sontag, 2004: 33). Portanto, esta é a Guariba
que visualizamos e que pudemos reter, armazenar. Por ser passível às transformações do
tempo, esta mesma Guariba pode, e talvez deva, transformar-se. No entanto, jamais poderá
deixar de conter os aspectos de seu presente, não porque este foi revelado pela fotografia, mas
porque, certamente, ele será parte intrínseca de seu futuro.
Andréa Vettorassi
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123
Essas são as fotografias: uma associação a vários aspectos e categorias de
nossa sociedade, como a modernidade, o tempo, o espaço, as representações políticas, sociais,
culturais. A fotografia está também associada àquele que a constrói. Não obstante, pode estar
associada àquele que a observa, e esta é uma de suas capacidades mais importantes: Ela
retrata a realidade dos outros para, enfim, retratar a nossa própria realidade, que muitas vezes,
sem ser passível a uma comparação, permanecia oculta.
Espaços Divididos e Silenciados
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4.2 – Migrantes Temporários
56
Figura 1 - Portões das pensões dos migrantes temporários no Bairro Alto, que
permitem que a pobreza existente dentro deles fique invisível para os olhares
nativos: “É, acho que o contato aqui é pouco, porque a gente mesmo não sai, né?
Chega do trabalho, às vezes já de noite, cansado, e vai se acomodar. A não ser
fazer alguma comprinha no mercado...” (Fogoso, maranhense, negro). (2004).
Figura 2 - Pensões de migrantes temporários por dentro, no Bairro Alto (2004).
56
Crédito das fotos: Francisco Barnabé Ferreira (2004) e Andréa Vettorassi (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 3 - Cada porta ilustrada na foto representa um quarto. Em cada quarto
reside uma família de migrantes temporários. O banheiro, a cozinha e a área de
serviço (um tanque de lavar roupas) são coletivos. Atualmente, Guariba recebe
migrantes maranhenses e piauienses, mas já recebeu mineiros, baianos,
paranaenses e pernambucanos (2004).
Figura 4 - “Chuveiro” de um banheiro coletivo, no Bairro Alto (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 5 - A pia da “cozinha” e o tanque de lavar roupas ao lado do banheiro.
Não raro, as pensões que abrigam os migrantes temporários têm condições
degradantes, propícias à disseminação de doenças e com precária estrutura física
(2004).
Figura 6 – Pensão de migrantes temporários na Vila Jordão, onde vivem 10
maranhenses: “Nós faz duas safras no correr do ano. Aqui é a do dinheiro, e a de
lá é a despesa da casa. Nós não pára, continua, né?” (Fogoso). (2004).
Andréa Vettorassi
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Figura 7 – Pequena roça nos fundos da pensão da Vila Jordão, onde os
maranhenses plantaram alguns pés de milho (2004).
Figura 8 – Na mesma pensão, um armário improvisado. Cada morador desta
pensão tem seu próprio varal com as roupas estendidas: “O cara chegou [no
Maranhão] com três conto em quatro meses, cinco meses, até (...) O cabra tá
melhor, né? O cara vem pra não levar a gente porque lá [em São Paulo] é bom
demais. Mas não conhece, né?”
(Fogoso). (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 9 – A rede continua sendo utilizada para dormir. O aparelho de som,
comprado em São Paulo, será levado para o Maranhão. Em meio à
“modernidade” paulista, um forro de lona na pensão guaribense, para segurar a
água que escorre do telhado, denunciando uma pobreza relativa (2004).
Figura 10 – Visão Empreendedora: Fogoso vende refrigerantes para os outros
trabalhadores no corte da cana, que preferem o refrigerante à água por
acreditarem que este dá mais energia por conter açúcar. (2004)
Andréa Vettorassi
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Figura 11 - A Televisão: importante instrumento de vinculação do modo de vida
moderno e um “fetiche” entre os migrantes (2004).
Figura 12 - Ligação Improvisada: estratégias em uma pensão no Bairro Alto que
estava há mais de uma semana sem luz (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 13 – Na mesma pensão a água, que também estava desligada, passa a ser
armazenada em garrafas tipo pet. (2004).
Figura 14 - “Ah, [migrei por] falta de emprego. Nós não tinha casa pra nós
morar” (Lindalva, maranhense). (2004).
Andréa Vettorassi
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Figura 15 - Lindalva relata que a choça (casa de madeira e barro) onde morava
no Maranhão não era “casa”, e que agora ela vive em uma “casa de verdade”, em
Guariba, onde paga aluguel e não tem água e luz (2004).
Figura 16 - E energia elétrica, vocês têm [em Morro Branco]?
Francisco, maranhense, pardo – [demonstrando orgulho] Nóis tem.
E água?...
Francisco – Água, é... aquela dada por Deus, do brejo! (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 17 - Sobre os meios de sociabilidade:
Fogoso - Ah, às vezes nós dorme onze horas, depende de alguma coisa que tiver
passando em alguma televisão aí...
O que o senhor gosta de assistir na TV?
Fogoso – Tudo. Novela, tudo o que pode passar de bom a gente dá uma olhada
nela aí junto! [...] É, nós vamo ver daqui a pouco vai passar a novela aí, então a
gente entra nesse quarto aí e entope. (2004).
Figura 18 - Maranhenses no Crochê: espaço de sociabilidade em comum entre as
mulheres migrantes, que raramente saem das pensões quando seus maridos estão
no corte da cana (2004).
Andréa Vettorassi
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Figura 19 - “Os conterrâneo fica assim tudo orgulhoso da gente, fica tudo curioso
pra saber como que foi, se a gente se deu bem, se a gente se deu mal, se a gente
conseguiu mesmo alguma coisa, se a gente quer voltar de novo, é assim, né?”
Maria de Jesus, maranhense, parda (2004).
Figura 20 – Maranhenses em uma pensão do Bairro Alto, logo após um dia de
trabalho. Usam boné, óculos escuros (nas mãos) e relógio. (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 21 - Fogoso é o único morador de Morro Branco – MA que já tem
televisão em sua casa, que virou espaço de sociabilidade da comunidade. “Então,
é aí onde tá o mistério, nós vêm pra cá, a gente chega com um trocado, né? É,
você chega daqui, o cara tem outro critério, né? ‘Olha, o cara chegou cheio do
troco, né?’ (risos)”. Ainda assim, não voltou para a safra de 2005, e chegou a
mencionar em seu depoimento que este era seu desejo, já que estava muito
cansado com o trabalho no corte da cana e preocupado com as constantes dores
no peito que sentia (2004).
Figura 22 – Toninho Branco e Fogoso, em pensão na Vila Jordão (2004).
Andréa Vettorassi
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Figura 23 - “Ah, aqui é o tal do xote, lá não, é... forró mesmo! O forró daqui eu
não gosto não, eu acho feio demais! [...] Parece que as mulher de Guariba não
quer maranhense!” (Francisco, 19 anos, filho de Fogoso). (2005).
Figura 24 - “Forró Dance” do “DJ” Maluco: os CD’s de Francisco, com o
“verdadeiro forró maranhense”, foram comprados na rodoviária de Ribeirão
Preto (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 25 - “Acho que o povo antigo maranhense tem a mentalidade diferente,
né? Têm outro pensar, eles não querem ficar desgrudados uns dos outros, sabe?
Nem que esteja passando mal, mas querem ficar sempre juntos, né?” (Maria de
Jesus). (2004).
Figura 26 - Acidente de Trabalho: “Ah, eu quero que seja a última volta. Eu não
sei se é a última, mas eu quero que seja” (Toninho Branco). (2004).
Andréa Vettorassi
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Figura 27 – Punho calejado pelo corte da cana-de-açúcar (2004).
Figura 28 - Suplementos alimentares oferecidos pelas Usinas para agüentar a lida
diária (2004).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 29 – Instrumentos de trabalho (2004).
Figura 30 – Maria do Socorro, que estava grávida de quatro meses (2004).
“Nem cidadão nem estrangeiro, nem totalmente do lado do Mesmo, nem
totalmente do lado do Outro, o imigrante situa-se nesse lugar “bastardo”, [...] a
fronteira entre o ser e o não ser social” (Bourdieu. In Sayad, 1998).
Andréa Vettorassi
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139
4.3 Migrantes Estabelecidos
Figura 31 – Rua São José, a mais importante do Bairro Alto, que foi asfaltada em
2001 (2005).
Figura 32 – Travessas do Bairro Alto (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 33 – Bares típicos do Bairro Alto, normalmente o único vínculo de
sociabilidade entre os moradores do bairro (2005).
Figura 34 – Ruas do Bairro Alto, em que diariamente trabalhadores rurais voltam
das lavouras de cana-de-açúcar (2005).
Andréa Vettorassi
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141
Figura 35 – Muro no Jd. Monte Alegre, pichado com as frases “fogo na bomba” e
“paz nunca mais”, denuncia possíveis conflitos existentes nestes espaços. De
acordo com alguns entrevistados, a rua onde este muro está localizado já foi
bastante violenta, e ali algumas “gangues” se formaram e atuaram, como a do
mineiro Aílton, muito conhecido em toda a cidade e que morreu na década de 90
(2004).
Figura 36 – Casa de Dona Cipriana, que foi desenhada por ela em seu mapa
afetivo (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 37 – Árvore que teve destaque no mapa afetivo de Dona Cipriana (2005).
Figura 38 – Filha e neto de Dona Cipriana, membros da segunda e terceira
geração de migrantes (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 39 – Senhor Cícero e sua esposa (2005).
Figura 40 – Senhor Chico em sua casa, no Bairro Alto (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 41 – Casas típicas do Bairro Alto (2005).
Figura 42 – Casa de Robi e Dona Miúda, que foi retratada por Dona Miúda em
seu mapa afetivo (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 43 – Dona Miúda e Robi (2005).
Figura 44 – Nora e neta de Dona Miúda e Robi, pertencentes à segunda e terceira
geração de migrantes (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 45 – Dona Miúda desenhando seu mapa afetivo. Quando percebeu que seu
marido Robi havia desenhado um mapa aéreo, bastante diferente do seu, ficou
envergonhada (achando que seu mapa estava “errado”) e preferiu não continuar
seu desenho (2005).
Figura 46 – Porta-retratos improvisado na sala de Robi e Dona Miúda, com fotos
3x4 de amigos e parentes de Itaobim – MG (2005).
Andréa Vettorassi
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147
Figura 47 – Foto de Itaobim – MG na sala de Robi e Dona Miúda. Na frente
estão seus filhos (2005).
Figura 48 – Curioso colante na sala de Dona Miúda e Robi, com a expressão “eu
amo Guariba”. Dona Miúda – “Eu acho que já me acostumei aqui [Guariba], né,
chegando lá [Itaobim - MG] eu não costumo mais não, né? [...] Aí eu não quero
ficar mais lá. Falei que fico aqui e que quero morrer aqui. Eu acho que eu morro
aqui.” (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figuras 49 e 50 – Bandeirinhas de festa junina que Robi pendurou em seu
quintal. Sobre as festas de São João em Itaobim, Robi relatou: “Nós ia rezar o
terço, depois do terço levantava a bandeira, depois da bandeira ia dançar todo
mundo! Aquele estandarte feito de folha, de mato, assim, da rama do mato, aí
pega, enfia numa chapeia de coqueiro, pega de qualquer ramo verde e põe pra
cima assim, ó, e faz as fogueira bonita! E é bonito lá! Quase todo ano eu ia, só
que faz uns três anos que eu não vou, que eu não fui mais, né? Porque eles não
deixa a gente ir, e a gente ia fugido da Usina, né? Às vez eu pedia pra eles da
Usina, às vez eu ia sem falar... Quando chegava eles chamava a atenção, né? Por
que que eu tinha sumido aqueles 14 dias, 13 dias... aí eu falava “não, eu tinha
uma pessoa minha doente lá em Minas, eu fui...” Mas eu fui foi dançar! [risos] É,
ué! Fui dançar, fui rezar, fui gritar, cantar e dançar! Eles gosta quando eu chego
lá, se eu não for, Deus me livre, é um sentimento!” (2005).
Andréa Vettorassi
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4.4 Ruas e Casas do Centro da Cidade
Figura 51 – Rua Rui Barbosa, a “rua do comércio” no centro da cidade (2005).
Figura 52 – Travessas no centro da cidade (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 53 – Rua Antônio Albino onde, em 1984, trabalhadores rurais entraram
em confronto com a polícia local e a Tropa de Choque do governo da época. À
esquerda estão localizados a Pastoral do Migrante e o campo de futebol onde um
metalúrgico aposentado foi morto por uma bala perdida. À direita está localizada
a praça da igreja matriz (2005).
Figura 54 – Igreja matriz, um dos palcos dos conflitos de 1984 (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 55 – Estádio municipal na Rua Antônio Albino. Nestas escadarias, em
1984, o metalúrgico aposentado Amaral Vaz Melone foi morto por uma bala
perdida (2005).
Figura 56 – Delegacia de Polícia de Guariba (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 57 – Antiga cadeia da cidade, na década de 50. Os dois homens em pé, no
centro, eram prisioneiros. Nas extremidades, em pé, antigos policiais da cidade.
Agachados, curiosos que se divertiam tirando fotos com os prisioneiros (foto
cedida por Seu Vítor).
Figura 58 - Fórum da Comarca de Guariba (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 59 – Principal praça da cidade, que o trem atravessava até 1969 (2005).
Figura 60 – Coreto e chafariz na principal praça da cidade, onde todos os
domingos shows são promovidos e refrigerante e algodão doce são distribuídos
gratuitamente. Membros da segunda e terceira geração de migrantes, de acordo
com as entrevistas, participam assiduamente destes eventos, o que causa
desconforto para os nativos, que em geral, nos finais de semana, viajam para
outras cidades da região, como Ribeirão Preto – SP e Jaboticabal – SP, em busca
de lazer nos shoppings (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 61 – Carroça do senhor João, no centro da cidade, representativa de um
modo de vida tradicional existente também entre os nativos (2005).
Figura 62 – Aposentado nativo, que diariamente leva uma almofada para a praça
principal e ali passa as tardes sentado, conversando com os velhos amigos
(2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 63 – Homens no jogo de damas, na principal praça da cidade. Este é um
dos meios de sociabilidade entre os nativos (2005).
Figura 64 – Casa de Dona Tereza, na Rua Sampaio Vidal, centro da cidade
(2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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Figura 65 – Cacos de vidro em muros de uma casa no centro da cidade (2005).
Figura 66 – Grades altas em casas no centro da cidade (2005).
Andréa Vettorassi
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Figura 67 – Cercas elétricas em uma casa no Jd. Boa Vista, bairro nobre da
cidade (2005).
Figura 68 – Janelas que foram fechadas com concreto no centro da cidade.
“Ah, aqui é só vidro fechado. Tranca janela, porta, tudo. Antigamente, quando você podia
dormir com as janelas abertas... Antigamente eu quero dizer uns vinte anos atrás... A gente
deixava janela aberta, deixava cadeira lá na área. Ficava no quintal à noite e era normal... Se
você quisesse até dormir com a porta aberta, não tinha problema nenhum. Mas depois que
começou esta migração... foi aí que começou este problema, tá um perigo. Aqui, uma hora,
duas horas da tarde, você já tem que trancar tudo. Que eles não escolhem mais horário pra
entrar na sua casa. Tanto faz se é de dia, de noite... E isso é geral, não é só aqui no centro.”
(Depoimento de Carla, branca, nativa). (2005).
Espaços Divididos e Silenciados
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À Guisa de Conclusão
Andréa Vettorassi
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159
À Guisa de Conclusão
Espaços Divididos. Espaços Silenciados. Divididos entre a pobreza e a riqueza,
o desejável e o indesejável, o moderno e o tradicional, os nativos e os “de fora”. Silenciados
entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, as lembranças oficiais e as
lembranças subterrâneas. Estas são as dicotomias encontradas na pequena cidade de Guariba,
que com um pouco mais de cem anos de História, percebe-se assim, significativa
representante da pobreza relativa do interior paulista e das contradições de nosso contexto
social.
Como vimos, em Guariba o campo e a cidade já interagiam com intensidade
em fins do século XIX, com o advento da economia cafeeira que apenas cessou em 1929. As
plantações de café foram rapidamente substituídas pela cultura da cana-de-açúcar, que
também mantém na contemporaneidade a interação campo-cidade, mas a faz de forma muito
particular: o campo já não é mais morada e subsistência, estando absolutamente inserido na
lógica de produção capitalista que envolve donos de terra e empregados.
Neste contexto, os centros urbanos, que sobrevivem do setor sucroalcooleiro,
assistem às profundas transformações econômicas, políticas, culturais e sociais propiciadas
pelos tempos modernos. A migração é, afinal, parte intrínseca desta avassaladora
modernidade, quer do ponto de vista econômico e político, quando possibilita a riqueza de um
espaço em detrimento à pobreza de outros, quer do ponto de vista social e cultural, quando
propicia o encontro e a interação dos mais diversos pensamentos, culturas e valores, que não
raro mesclam o que para uns é tradicional, para outros é absolutamente moderno, e o que para
a comunidade guaribense tornou possível a criação e propagação da relação nativos/os “de
fora”.
Não obstante, é necessário ressaltar que Guariba, a nosso ver, é apenas um
ponto de vista micro de choques culturais e econômicos ocorrentes em todo o mundo
Espaços Divididos e Silenciados
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contemporâneo e moderno. Ela estreita seus laços sociais com a França, por exemplo, que em
setembro de 2005 assistiu aos mais diversos atos de violência desmesurada, resultados das
frustrações inconformadas de jovens migrantes moradores dos subúrbios parisienses, e que
certamente sofrem lá as mesmas incertezas e discriminações existentes no pequeno centro
urbano guaribense: são as guerras cotidianas, que representam os novos valores da
modernidade, valores que globalizam, inclusive, as desigualdades.
A modernidade, há décadas, vem sendo pensada como uma ameaça a todo tipo
de história e tradições, e assim a é para a maior parte dos autores utilizados nesta dissertação.
Marx & Engels (1998), ora exaltando, ora criticando as conseqüências de uma modernidade
embrionária, acusam muitas de suas características perversas, tais como a alienação do
trabalho, a mais-valia, a ideologia (tão fruto dos tempos modernos!) ou ainda o fetichismo da
mercadoria. Assim como Marx & Engels, Guy Debord denuncia com a alma uma “sociedade
espetacular”, e, portanto, surpreendente e enorme em suas proporções. É também a sociedade
das máscaras, das representações, lugar onde as essências são pouco vistas ou valorizadas. É a
“casca”, o que está do lado de fora, o que torna-se realmente significativo.
Georg Simmel, assim como Debord, percebe que nas relações sociais das
grandes metrópoles, todos os aspectos da vida cotidiana permeiam e são constituídas daquilo
que está “para fora”, ou seja, do dinheiro, da moda, da mídia e tudo o mais que possa ser
calculado, quantitativo. Nem sempre simpático aos novos fenômenos da vida moderna, porém
imbricado neste turbilhão de novas idéias e valores, Simmel conclui que não cabe à nossa
efêmera existência acusar ou perdoar as relações sociais modernas, senão compreendê-las
(1987: 28).
Berman, assim como Simmel, faz um balanço positivo da modernidade, já que
não a enxerga como uma ameaça à história e às tradições, mas como uma variedade de
histórias e tradições próprias (1986: 16). De fato, percebemos as novas relações sociais,
Andréa Vettorassi
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161
culturais e econômicas dos homens e mulheres que há décadas vêm migrando para as cidades
do interior paulista. Estas relações são frutos das novas histórias e tradições modernas, e não
devem ser vistas de forma negativa. Não há porquê impedir que estes trabalhadores
“modernizem” seus modos de vida, e isto nem mesmo seria possível. No entanto, esta
modernização do homem do campo que “opta” pela migração é feita com bases exploratórias,
discriminatórias e desiguais.
Por outro lado, é possível crer que a migração e os choques sociais por ela
propiciados são características exclusivas das sociedades modernas? Ao mesmo tempo em que
percebemos que as análises levantadas neste estudo representam condições históricas e sociais
globalizadas, percebemos também que exprimem valores de muitas outras sociedades, bem
mais antigas que a nossa. Na Roma antiga, por exemplo, os habitantes da cidade viam com
maus olhos os homens camponeses, que eram considerados grosseiros e agressivos. As vilas
eram as casas situadas fora do perímetro urbano e habitadas por esses homens do campo. Com
base neste termo, surgiram as palavras vilão e vilania. Da mesma forma que as palavras
estrangeiro e estranho têm, no português, a mesma raiz (Konder, 2002). Os termos da
linguagem, como os aqui representados, põem a nu os valores das sociedades que os criaram.
Eles revelam os desejos e pensamentos subterrâneos, assim como os preconceitos e as
ambigüidades. É por isto que, de acordo com Konder (2002), a linguagem apresenta
manifestações ideológicas, pois não é imune à sua pressão deformadora. Vila, vilão e estranho
foram e são palavras cotidianamente propagadas entre a comunidade guaribense. Além de
tantas outras que marcam os valores da ideologia nativa, tais como morro, moreno, joão-de-
barro, gente que não é daqui, gente de fora. Como reagir aos valores e ideologias refletidos
nas palavras, nos gestos, nas relações?
Certamente esta dissertação não contém muitas soluções para a questão acima.
Quanto mais respostas são encontradas, novos são os questionamentos! Talvez por isto, parte
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
162
do espaço das considerações finais é reservada para “o que ainda está por vir”. Afinal, muitas
são as perguntas sem respostas, e algumas delas devem ser destacadas. Por exemplo,
pesquisas empíricas, como as realizadas por Moraes Silva (1999a), revelam que a dialética
relação entre os moradores mais antigos e os recém-chegados migrantes existe e é facilmente
perceptível em toda e qualquer cidade-dormitório do interior paulista. No entanto, esta mesma
relação é única e peculiar a cada campo social analisado. Em Serrana – SP, por exemplo,
grupos migrantes advindos de Raimundo Nonato, cidade do interior do Piauí, conseguiram
estabelecer entre si um alto poder de coesão, jamais visto entre os grupos migrantes de
Guariba. Conquistaram, entre outros direitos, melhorias em suas moradias e bairros, um
ônibus interurbano que semanalmente sai de Serrana com destino a Raimundo Nonato, e a
eleição de um vereador representante desta comunidade
57
. Certamente, um maior ou menor
grau de coesão entre os grupos migrantes interfere nas relações que estes mantêm com os
outros grupos sociais da cidade. Conseqüentemente, pode interferir nas relações conflituosas,
hierarquizadas e estigmatizadas, existentes entre os dois grupos.
É necessária, portanto, uma análise comparativa entre as diversas cidades do
interior paulista que recebem migrantes, e que procure desvendar até que ponto a variável
coesão transforma a relação nativos/os “de fora” e a vinculação que esta tem com a
criminalidade, por exemplo, outra variável que merece particular cuidado e atenção. É
necessário investigar e compreender, à luz das relações existentes entre nativos e os “de fora”,
o grau de inserção e de relações sócio-econômicas e culturais dos migrantes e seus
descendentes a partir da variável criminalidade, ou seja, a partir da participação destes atores
sociais nos atos criminosos das cidades paulistas. Em Guariba, vimos que a idéia de que o
migrante é o maior responsável por estes atos criminosos não corresponde ao que o
levantamento quantitativo feito a partir dos processos criminais nos sugere. É, portanto,
57
Informações obtidas por agentes da Pastoral do Migrante, em setembro de 2005.
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
163
significativo entender de que forma a relação dialética nativos/os “de fora” está presente nos
processos criminais de Guariba, assim como as relações horizontais (entre os próprios
migrantes e seus descendentes). Ou seja, é possível trazer à tona os diferentes padrões de
conduta existentes nas relações verticais e horizontais, utilizando e analisando os processos
criminais, como tamm os mesclando às entrevistas e outros métodos sugeridos pela História
Oral, para que as análises não se restrinjam à ótica do Direito Positivo. Estes foram, enfim, os
primeiros questionamentos que, muito antes das primeiras pesquisas de campo, buscávamos
desenvolver neste trabalho. Mas como, na maior parte das vezes, é o objeto de pesquisa quem
nos escolhe e nos envolve em uma gama de novas possibilidades, outras perguntas pareciam
mais urgentes, instigantes e até mesmo necessárias, como se o pano de fundo das violências
simbólicas, atrás do palco de violências reais, precisasse ser desdobrado.
Ademais, é necessário destacar aqui a importância do trabalho realizado pela
Pastoral do Migrante de Guariba, não apenas no desenvolvimento desta pesquisa, mas em
todo o contexto político e social em que ela foi escrita. Foi a Pastoral quem recebeu e
divulgou, a partir de 2004, informações sobre casos de mortes de trabalhadores migrantes
empregados no corte da cana em usinas do interior paulista. Foram ao todo onze casos entre
os anos de 2004 e 2005, sendo que seis trabalhadores eram mineiros, dois baianos, dois
maranhenses e um pernambucano. Dois deles residiam em Guariba. As evidências nos
sugerem que estes trabalhadores morreram por “overdose de trabalho”, já que sentiam náuseas
e dores de cabeça durante o trabalho no corte da cana e, ao serem levados ao hospital, já
chegavam mortos. Possivelmente estes incidentes não ocorreram e ocorrem apenas nos dias de
hoje, já que tantos outros, desde a década de 80, vêm “morrendo de tristeza”, como disse em
seu depoimento a trabalhadora rural Cipriana.
Estas denúncias chegaram ao Ministério Público, que apura, através de
audiências públicas, as violações que estas mortes significam aos direitos trabalhistas. A
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
164
Relatoria Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, à Água e à Terra
Rural e a Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho, que integram o projeto
Relatores Nacionais, coordenado pela Plataforma Brasileira de Direitos Humanos,
Econômicos, Sociais e Culturais, com o apoio da ONU realizaram, ao longo do mês de
outubro de 2005, duas missões na região canavieira paulista, com a finalidade de investigar as
circunstâncias e causas das mortes dos cortadores de cana. Frentes de trabalho foram
organizadas, inúmeras reportagens sobre o tema circulam pela mídia e diversos setores da
sociedade estão envolvidos nesta causa. Além disso, o Laboratório de Memória e Sociedade
desenvolveu um artigo que procura discutir as relações de trabalho modernas, como também
as mortes dos trabalhadores rurais migrantes
58
. Neste sentido, esperamos que esta dissertação
vá ao encontro das apurações e das discussões sobre o tema, que não visam apenas
compreender as condições trabalhistas destes homens e mulheres, mas também as condições
de moradia, saúde, lazer... Enfim, expectativa de vida!
A maior parte da população do interior paulista volta seus olhares para os
prédios espelhados e carros importados constituintes das ricas e modernas cidades de São
Paulo como Ribeirão Preto. Poucos tomaram consciência da pobreza relativa e da
desigualdade social que amargamente sustentam tanta riqueza para os olhos. Os homens e
mulheres protagonistas deste estudo nem ao menos conheciam o significado da palavra
“migrar”. Também não compreendem a complexa estrutura social que envolve a migração e,
consequentemente, suas vidas e modos de ser e agir no mundo. É perceptível a dor e a
angústia destas pessoas que têm pés em um chão e coração em outro, ao mesmo tempo em
que não se sentem partes de lugar nenhum. É sabido que a estrutura moderna atual é sólida e
autônoma, porém não precisa basear-se eternamente em relações de exploração, ou ainda em
58
No seguinte artigo: MORAES SILVA, M. A.; VETTORASSI, A.; BUENO, J. ; RIBEIRO, J. ; OCADA, F. K.
; MELLO, B. ; MARTINS, R. C. ; GODOI, S. . “Do Karoshi no Japão à Birola no Brasil: as faces do trabalho no
capitalismo mundializado”. In: Revista Nera - Unesp Presidente Prudente. Presidente Prudente, v. 7, n. 1, 2006.
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
165
atitudes blasé altamente individualistas. Cabe a nós, atores de uma História processual (que se
renova, e é portanto algo vivo e em transformação), mudar, mesmo que a lentos passos, os
rumos desta injusta e contraditória malha social.
Espaços Divididos e Silenciados
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166
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Andréa Vettorassi
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Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
173
Apêndice
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
174
Questionário Biográfico
59
Local onde foi realizada a entrevista__________________________ Ano__________
Entrevistadores:_______________________________________
Nome: ________________________________________________________________
Apelido:_____________________
Data de nascimento:________________________Local:________________________
Estado:__________________
Estado Civil: ( ) Casado ( ) Solteiro ( ) Viúvo ( ) Separado ( ) Desquitado Amasiado ( )
Nível de Escolaridade:_
Analfabeto ( )
Sabe assinar o nome ( )
Primário Completo (1 a 4ª série) ( )
Incompleto ( )
Ginásio Completo (5 a 8ª série) ( )
Incompleto ( )
Colegial Completo ( )
Incompleto ( )
Superior ( )
Obs:_________________________________________________________________
Profissão/Ocupação ____________________________________________________
Quantas pessoas moram na casa?_____________________________
Ocupação / Profissão esposo (a) Especificar esse trabalho.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Ocupação/ Profissão do pai:________________________________________________
Pai era: proprietário de terra
Parceiro
Arrendatário
59
Elaborado pela Profa. Dra. Maria Ap. de Moraes Silva e as alunas Beatriz Medeiros e Andréia Appolinário.
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
175
Posseiro
Assalariado
Outro
Especificar o que
faziam______________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_
Ocupação/ Profissão da mãe:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Ocupação / Profissão esposo (a) Especificar esse trabalho.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________
Sobre os filhos. Números de filhos ______________________
Homens__________________________Mulheres__________________
Filhos M/ F Idade Nível de Escolaridade Ocupação Profissional
Possui Irmãos: ( ) Sim ( ) Não. Quantos: __________
Nome Idade Escolaridade Ocupação Local de residência Estado Civil
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
176
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
__________ ____ __________ ________ ________________ __________
Sua situação financeira hoje é melhor ou pior do que antes de migrar para Guariba? Justifique.
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
_______________________________________________________________
Movimento Migratório :
Em que ano você saiu de sua terra natal?__________________
Quantas vezes migrou antes de chegar à Guariba:_______________
Saiu de _________________ (Terra Natal), para _________________ em ____/____/____.
Você saiu:
1. só.....( )
2. com seus pais ( )
3. com irmãos ( )
4. com parentes ( )
5. com outras pessoas ( )
Obs:____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
Saiu de _________________ (Terra Natal), para _________________ em ____/____/____.
Você saiu:
6. só.....( )
7. com seus pais ( )
8. com irmãos ( )
9. com parentes ( )
10. com outras pessoas ( )
Obs:____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
Saiu de _________________ (Terra Natal), para _________________ em ____/____/____.
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
177
Você saiu:
11. só.....( )
12. com seus pais ( )
13. com irmãos ( )
14. com parentes ( )
15. com outras pessoas ( )
Obs:____________________________________________________________________
____________________________________________________________________
Qual o motivo que levou a sair de sua terra natal?
1. falta de terra ( )
2. Terra ruim/ seca ( )
3. briga/ desentendimentos ( )
4. Falta de emprego ( )
5. Outros__________________( )
Quais?______________________________________________________________________
_______________________________________________________________________
Observações feitas pelos pesquisadores:
___________________________________________________________________________
___________________________________________________________________________
____________________________________________________________
Obs: Tentar refazer, juntamente com o depoente, o mapa migratório:
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
178
Roteiro de Entrevistas – Migrantes
Por quê deixou a sua terra natal?
Como se sentiu ao deixar?
Chegou pela primeira vez em Guariba ou em outra cidade? Quais impressões teve da
cidade? Era muito diferente da terra natal?
Gosta de morar em Guariba? Por quê?
Quais são as formas de divertimento? Vai muito para o centro? Participa de festas ou
outras formas de sociabilidade?
Sobre o trabalho; falar sobre a profissão que exerce.
Quem são seus amigos? Conhece muitas pessoas que nasceram na cidade? Tem
contato com seus vizinhos?
Considera a cidade violenta? Por quê?
Considera seu bairro violento? Por quê?
Acha que a vinda dos migrantes torna a cidade mais violenta? Por quê?
Participou ou já ouviu falar da greve de 84? Fale sobre ela, suas impressões e
lembranças.
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
179
Roteiro de Entrevista - Nativos
Quantos anos tem, de onde é;
Se não é de Guariba, o quê o trouxe para Guariba? Quais as impressões que tem da
cidade, do quê mais gosta em Guariba?
Gosta de Guariba? Considera que seja uma cidade violenta? Por quê?
Como foi/é o seu trabalho em Guariba? Quais anos atuou na cidade? Quais histórias
tem para contar desta época?
O quê mudou na cidade nestes últimos anos? No tempo em que trabalhava era
melhor? Por quê?
Como é a cidade com os migrantes? E quando eles não estão na cidade, existe alguma
diferença na relação com as pessoas, nas ruas, nos meios de sociabilidade?
O que pensa a respeito dos migrantes? E sobre seu trabalho? Considera que eles sejam
violentos?
Quais as impressões que seus colegas têm sobre os migrantes de Guariba?
Sobre a greve de 84. Discorrer livremente sobre ela.
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
180
Tabela 1 - Processos Criminais de 1990 em que os Réus são Migrantes em Guariba
n° Cód. Penal dia/mês/ano Profissão Cor Est. Civil Idade Naturalidade Obs.
4
155 29 agosto, 1989 lavrador parda solteiro 19 Chap. Norte /MG
+ré
us
6 155
24 dezembro,
1989
lavrador
branc
a
solteiro 22 Berilo /MG
+ré
us
16 304e72 28 abril, 1989 empreiteiro
branc
a
casado 70 Ibateguaral /AL
nad
a
17 155 2 outubro, 1989
desempregad
o
preta casado 30 Berilo /MG
+ré
us
19 19lcp 1 outubro, 1989 lavrador preta casado 25 Berilo /MG
nad
a
20 ameaça
15 novembro,
1989
borracheiro
branc
a
solteiro 29 Tangará /PR
nad
a
22 129 4 setembro, 1989
Aj. de
pedreiro
parda
amasiad
o
37 Turmalina /MG
nad
a
23 180 */9/1989
desempregad
o
branc
a
amasiad
o
23 J. G. Minas /MG
nad
a
24 19lcp 11 outubro, 1989 fiscal_turma
branc
a
casado 32 Micaí /MG
nad
a
27 129 23 janeiro, 1990 comerciante
branc
a
casado 36 Berilo /MG
nad
a
48 304cpb
23 novembro,
1989
soldador
branc
a
solteiro 23 Comercinho /MG
nad
a
53 129cp 22 outubro, 1989
Presidente
sindicato
preta
desquita
do
32 Água Boa /MG
nad
a
54 129 5 outubro, 1989 lavrador
branc
a
casado 48 Riachuelo /SE
nad
a
55 129 13 outubro, 1989 frentista
branc
a
casado 30 Capelinha /MG
+1r
éu
56 155 27 junho, 1989 lavrador parda casado 36 Chap. Norte /MG
+ré
us
64 155 21 fevereiro, 1990 lavrador parda solteiro 22 Cristália /MG
nad
a
66
121tent_
hom.
12 dezembro,
1989
lavrador
branc
a
casado 36 Turmalina /MG
nad
a
67
121les_
dolosa
26 novembro,
1989
lavrador
branc
a
solteiro 21 Cristália /MG
+1r
éu
68
les_culp
osa
15 setembro,
1989
lavrador parda casado 40 Chap. Norte /MG
+1r
éu
70 32
27 novembro,
1989 lavrador
branc
a solteiro 19 Cristália /MG
nad
a
84 129 20 janeiro, 1990 pedreiro
branc
a casado 20 Aracaju /SE
nad
a
10
5 129 26 março, 1990
desempregad
o
branc
a solteiro 23 Porecatú /PR
nad
a
11
3 32lcp
30 dezembro,
1989 lavrador
branc
a solteiro 20 Cristália /MG
nad
a
11
4
uso_doc
_falso frentista
branc
a casado 30 Capelinha /MG
nad
a
11
5
uso_doc
_falso lavrador
branc
a solteiro 21 Grão Mogol /MG
nad
a
11
8
uso_doc
_falso borracheiro
branc
a solteiro 19 Biritingal /BA
nad
a
12
1 342cbp 22 fevereiro, 1990 pedreiro
branc
a casado 32 J. G. Minas /MG
nad
a
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
181
12
2
uso_doc
_falso lavrador
branc
a casado 25 Morasseuna /PR
nad
a
12
3
uso_doc
_falso
motorista
branc
a
solteiro 24 Leme do Prado /MG
nad
a
12
5
uso_doc
_falso
não_consta preta casado 53 Capelinha /MG
nad
a
14
7
155 10 fevereiro, 1990 lavrador parda solteiro 22 Cristália /MG
+1r
éu
14
9
19lcp 9 abril, 1990 lavrador preta
amasiad
o
35 Chap. Norte /MG
nad
a
15
9
180 2 fevereiro, 1990 comerciante preta casado 35 Cristália /MG
+1r
éu
16
1
171 12 junho, 1989 comerciante parda solteiro 31 J. G. Minas /MG
+1r
éu
16
2
155 30 janeiro, 1990 lavrador
branc
a
casado 28 Guaxina /MG
nad
a
16
3
121lcp
11 novembro,
1989
lavrador preta
amasiad
o
34 Chap. Norte /MG
+1r
éu
16
5
não_con
sta
lavrador preta casado 29 Braço do Norte /SC
nad
a
16
6
304
19 novembro,
1985
motorista
verme
lha
solteiro 23 Tamaran /PR
nad
a
16
7
não_con
sta
mecânico parda casado 36 Chap. Norte /MG
nad
a
16
8
não_con
sta
lavrador parda casado 32 Chap. Norte /MG
nad
a
16
9
não_con
sta
ambulante
branc
a
casado 44 Mundo Novo /BA
nad
a
17
0
155 14 fevereiro, 1990 lavrador parda solteiro 24 Cristália /MG
+1r
éu
17
9
155 5 fevereiro, 1990 lavrador parda solteiro 22 Cristália /MG
+1r
éu
18
0
155
30 dezembro,
1989
lavrador parda solteiro 24 Cristália /MG
nad
a
18
1
155 não_consta parda solteiro 22 não possui
+ré
us
18
2
não_con
sta
comerciante parda casado 35 Cristália /MG
+1r
éu
19
0
155 24 abril, 1990 comerciante parda casado 31 Berilo /MG
nad
a
20
8
155 4 agosto, 1989 não_consta sem vazio não possui
nad
a
22
4 19lcp
28 dezembro,
1989 lavrador
branc
a
desquita
do 32 Gov. Valadares /MG
nad
a
22
5 19lcp 3 dezembro, 1989 lavrador preta
amasiad
o 33 Chap. Norte /MG
nad
a
22
6 155 6 fevereiro, 1990 não_consta sem vazio não possui
nad
a
23
2
163IIIcb
p 1 junho, 1990 lavrador parda solteiro 20 Campo Mourão /PR
+ré
us
23
3
estupro(
213e214
) 22 abril, 1990 pedreiro preta solteiro 28 Nossa Senhora /BA
nad
a
23
7
136 12 junho, 1990 lavrador sem casado 40 Chap. Norte /MG
nad
a
24
2
21dec_l
ei36888/
41
12 maio, 1990
1/2oficial_ped
reiro
branc
a solteiro 19 Nossa Senhora /BA
nad
a
Espaços Divididos e Silenciados
_______________________________________________________________________________
182
24
6 180 3 janeiro, 1990 não_consta sem vazio não possui
nad
a
24
8
155 8 fevereiro, 1990 lavrador parda solteiro 20 Faxinal /PR
nad
a
25
1
receptac
ao
18 fevereiro, 1990 comerciante parda
amasiad
o
28 Berilo /MG
nad
a
25
4
ap_inde
bita
2 janeiro, 1990 pedreiro parda casado 22 J. Gonçalo /MG
nad
a
29
8
304cpb 18 junho, 1990 comerciante
branc
a
solteiro 32 Cajazeuas /PB
nad
a
31
3
129_1ºi
nc.IeIIIc
p
15 junho, 1990 lavrador parda
amasiad
o 24 Virgem da Lapa /MG
nad
a
31
4
129cp 5 maio, 1990 lavrador
branc
a
casado 35 Minas Novas /MG
nad
a
31
7
129cp32
lcp
3 abril, 1990
Empregado
rural
parda casado 44 Guanabi /BA
nad
a
31
8
32lcp 27 maio, 1990 apontador parda solteiro 18 Alto Paraná /PR
nad
a
31
9
304cp 13 abril, 1990 pedreiro parda solteiro 24 Porecatú /PR
nad
a
32
1 32lcp 16 junho, 1990 serv_lavoura
branc
a solteiro 18
São João do Avaí
/PR
nad
a
32
8 171cpb 27 abril, 1990
empregado
industrial sem vazio 38 não possui
nad
a
34
2
121art1
4IIcp 1 junho, 1990 sagueiro parda casado 31 Berilo /MG
nad
a
34
4 155 5 abril, 1990 vigilante preta casado 45 Ipirá /BA
nad
a
34
8 129cpb 4 abril, 1990 lavrador preta solteiro 35 Livato do Brum /BA
nad
a
36
0 180cpb 11 janeiro, 1990 lavrador parda solteiro 24 Cristália /MG
nad
a
37
2 307cpb 6 abril, 1990 ajudante parda
amasiad
o 21 Jussiape /BA
nad
a
37
5
16da_lei
_6368/7
6 4 setembro, 1990 pedreiro sem solteiro 20 Jasinal /PR
nad
a
38
7
313un_a
lin_"C"lc
p
8 agosto, 1990 lavrador preta solteiro 38 Virgem da Lapa
nad
a
38
9 32lcp 25 agosto, 1990
Op.
Evaporação
branc
a solteiro 21 Nova Esperança /PR
nad
a
39
2 32lcp 27 julho, 1990 lavrador parda solteiro 21 Cristália /MG
nad
a
39
5
129cp_3
2lcp 16 junho, 1990 soldador sem casado 33 Chap. Norte /MG
+1r
éu
39
6 32lcp 2 setembro, 1990 saqueiro
branc
a solteiro 26 Catutama /BA
nad
a
39
7 32lcp 2 setembro, 1990 Op. Em usina
branc
a solteiro 21 Ipuá /BA
nad
a
39
8 32lcp 9 setembro, 1990
limp.
Aquecedor preta solteiro 25 Ipuá /BA
nad
a
39
9
155_4ºi
nc_Ivcp
b 15 julho, 1990 comerciante
branc
a
solteiro 31
João Gonçalves de
Minas /MG
+ré
us
41
3
331cpb
22 setembro,
1990
lavrador sem solteiro 22 Ipuá /BA
+1r
éu
Andréa Vettorassi
_______________________________________________________________________________
183
41
4 19lcp 29 julho, 1990 lavrador parda solteiro 27 Itarabin /MG
+1r
éu
42
3
32lcp 6 setembro, 1990 lavrador
branc
a
amasiad
o
23 Araçuaí /MG
+1r
éu
45
0
342_1ºc
p
26 junho, 1990
desempregad
o
preta
desquita
do
34 Água Boa /MG
nad
a
45
3
129cp 30 agosto, 1990 lavrador parda
amasiad
o
24 Cambí /BA
nad
a
45
8
art16_lei
6368/76
20 outubro, 1990 serv_pedreiro sem solteiro 22 Itaíba /PE
nad
a
46
6
34dec_l
ei3688/4
1
17 setembro,
1990 pedreiro parda solteiro 35 Frei Serafim /MG
nad
a
46
9
147"cap
ut"cc71c
p comerciante parda casado 32 Berilo /MG
nad
a
49
0
129cc6/I
I 9 novembro, 1990 lavrador sem casado Manoel Riba /PR
nad
a
50
0 147cpb 5 junho, 1990 lavrador preta
amasiad
o 22 Chap. Norte /MG
+1r
éu
50
3
121:3ºc
p
17 setembro,
1990
feitor de
lavoura parda casado 45
União dos Palmares
/AL
nad
a
52
5
não_con
sta
26 outubro, 1990 lavrador
branc
a
amasiad
o
26 Água Quente /BA
nad
a
52
8
304cpb 27 abril, 1990 comerciante
branc
a
amasiad
o
29 Calçado /PE
nad
a
52
9
304 19 agosto, 1990 lavrador parda solteiro 22 Garanhuns /PE
nad
a
53
0
não_con
sta
30 novembro,
1990
pintor sem solteiro 51 Poriso Alegre /MG
nad
a
54
9
32lcp 28 outubro, 1990 mon. Ind.
branc
a
solteiro 18 Paulo Afonso /BA
nad
a
55
1
155e171 4 maio, 1990 lavrador
branc
a
solteiro 20 Cianorte /PR
nad
a
55
2
147
15 novembro,
1990
lavrador
branc
a
casado 27 Chap. Norte /MG
nad
a
56
2
214,224,
263e225
10 novembro,
1990
op. Filtro
branc
a
casado 31 Chap. Norte /MG
nad
a
56
4
32lcp 9 novembro, 1990 comerciante preta casado 38 Araçuaí /MG
nad
a
57
0
147cp
17 novembro,
1990
comerciante
branc
a
desquita
do
36 Capelinha /MG
nad
a
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