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MARCIA ELEANE BRAGHINI DEUS DEU
AS RELAÇÕES ENTRE PROFESSORES
DOS CICLOS I E II DO ENSINO FUNDAMENTAL
SÃO PAULO – SP
2007
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MARCIA ELEANE BRAGHINI DEUS DEU
AS RELAÇÕES ENTRE PROFESSORES
DOS CICLOS I E II DO ENSINO FUNDAMENTAL
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de
Estudos Pós-graduados em Educação: História, Política,
Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob orientação da Prof ª. Drª. Luciana Giovanni.
SÃO PAULO – SP
2007
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3
BANCA EXAMINADORA:
……………………………………………..……………
Profª. Drª. Luciana Maria Giovanni (Orientadora)
...........................................................................................
Profª. Drª. Paula Vicentini Perin
..................................................................................
Profª. Drª. Ana Maria Falsarella
4
Dedico esta dissertação a todos que
fazem parte da Escola Monteiro
Lobato, seus professores,
funcionários, alunos e pais, que
colaboram fortemente na construção de
minha identidade profissional.
E ao meu neto Gabriel, aluno da
geração futura
.
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus por me permitir cumprir esta tarefa.
Ao grande amor da minha vida, Cabral, companheiro amoroso e atencioso, meu
maior incentivador.
Aos meus filhos Luís Carlos, Marcella e Marianna, típicos exemplos de alunos da
geração atual, que com seu carinho e muita paciência me apoiaram nesta caminhada.
Um agradecimento particular ao meu irmão Sergio Braghini e também à minha
cunhada Katya Braghini, presentes ao meu lado, incentivando-me, ensinando-me e
colaborando com idéias e sugestões – à mestre Katya, maior responsável por meu ingresso no
curso de mestrado, meus agradecimentos.
Meu reconhecimento aos educadores que fizeram parte de minha vida escolar, e
também, àqueles que há muito tempo fazem parte de minha vida profissional, em especial à
Claudia Paschoal Tutia, à Renata Paschoal Rozin, à Rosemeri Oliveira, que há quase duas
décadas, no dia-a-dia, ajudam-me a crescer como pessoa e como educadora. Também gostaria
de homenagear, em especial, a psicopedagoga Ana Fátima Cardoso Damadi. O tempo nos
distanciou, mas as marcas deixadas por sua competência profissional e por sua amizade
perduram até hoje.
Agradeço a todos os professores do Programa de Educação: História, Política,
Sociedade da PUCSP, em especial os professores Odair Sass, José Geraldo Silva Bueno,
Maria Rita de Almeida Toledo, Paula Perin Vicentini, Marcos Cezar de Freitas e Maria
das Mercês F. Sampaio, que me ajudaram a desconstruir e reconstruir minha identidade
como profissional da educação.
Às professoras doutoras Ana Maria Falsarella e Paula Vicentini Perin pelas
contribuições e sugestões oferecidas durante o meu exame de qualificação.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) por ter
me proporcionado bolsa de mestrado que me permitiu concluir o curso.
E, por fim, mas não menos importante, à Profª. Drª. Luciana Maria Giovanni, por
sua competência profissional, dedicação e paciência ao me orientar e ajudar a realizar este
sonho.
6
DEUS DEU, Marcia Eleane Braghini. 2007. As relações entre professores dos ciclos I e II do
ensino fundamental. Dissertação (Mestrado em Educação: História, Política, Sociedade). São
Paulo: PUCSP.
RESUMO
Este estudo procura responder a seguinte pergunta: Que elementos caracterizam as relações
entre os professores dos dois ciclos do ensino fundamental, na visão desses mesmos
professores, e de que maneira tal relacionamento interfere na construção de suas
identidades? O objetivo da pesquisa consiste em investigar as percepções que professores dos
dois segmentos do ensino fundamental têm de si mesmos e uns dos outros, do papel que
desempenham na escola, das relações que estabelecem entre si. Norteia este estudo a hipótese
de que as visões/ percepções que os professores de um ciclo do ensino fundamental têm dos
professores do outro ciclo deste nível de ensino contribuem para o afastamento ou para a
aproximação entre eles, com conseqüências na visão que expressam sobre o trabalho
educativo realizado nos dois ciclos. Fornecem referencial teórico para o estudo autores
como: J. Gimeno Sacristán, (conceito de prática/ ação pedagógica); A. Pérez Gómez e L.
Brunet (cultura, cultura escolar e cultura docente); M. Tardif, A. Hargreaves, M. Apple e
outros (profissionalização, saberes e trabalho docente); C. Dubar (construção de identidade) e
P. Berger e T. Luckmann (interiorização da realidade e formação da identidade). Trata-se de
pesquisa de natureza qualitativa, do tipo analítico descritiva da percepção dos professores
a respeito das relações que mantêm entre si e de seu próprio trabalho, por meio da utilização
de dinâmicas com características de Grupo Focal, realizadas em encontros com 40 professores
de Ensino Fundamental (Ciclos I e II) de duas escolas públicas estaduais de um município da
região da Grande São Paulo, reunidos em três grupos. Os encontros foram gravados em áudio
e vídeo e os dados obtidos foram transcritos e organizados em quadros síntese de
depoimentos, cujas análises procuram os elementos capazes de elucidar como os professores
vêem a si mesmos; como vêem uns aos outros e ao trabalho que realizam; o que dizem das
relações que se estabelecem entre eles e que papel atribuem à escola e ao sistema escolar.
Palavras-chaves: Identidade profissional docente
Profissionalização docente
Cultura escolar e cultura docente
Ensino Fundamental – Ciclos I e II
7
DEUS DEU, Marcia Eleane Braghini. 2007. The relationships between teachers of the
Primary School from 1
st
to 4
th
and from 5
th
to 8
th
grades. Dissertation (Master’s degree in
Education: History, Politics, Society). São Paulo: PUCSP.
ABSTRACT
This study answers the following question: What are the elements which characterize the
relationships among the teachers of both cycles of the primary school (1
st
to 4
th
grades and 5
th
to 8
th
grades), in those teachers’ view, and how does this relationship interfere in the
construction of their identities? The objective of the research consists of investigating the
perceptions that teachers from both segments of the primary school have about themselves
and about each other, about the role they perform at school, and the relationships they
establish amongst themselves. The study has the hypothesis that the views/ perceptions that
the primary school teachers from one cycle (1
st
to 4
th
grades) have about the teachers from the
other cycle (5
th
to 8
th
grades) contribute to the remoteness or the approach among them, with
consequences in their view on the educational work accomplished in both cycles. Some
authors supply theoretical reference for the study, such as: J. Gimeno Sacristán, (concept of
practice/ pedagogical action); A. Pérez Gómez and L. Brunet (culture, school culture and
educational culture); M. Tardif, A. Hargreaves, M. Apple and others (professionalization,
knowledges and educational work); C. Dubar (identity construction) and P. Berger and T.
Luckmann (reality interiorization and identity formation). It is a research of qualitative
nature, analytical descriptive of the teachers’ perception regarding the relationships
amongst themselves and about their own work, by means of dynamics with characteristics of
Focus Group, accomplished in meetings with 40 Primary School teachers (from both cycles)
of two state public schools at a municipal district of the area of São Paulo, gathered in three
groups. The meetings were recorded in audio and video and the data obtained were
transcribed, organized in synthesis charts of depositions, whose analyses seek the elements
capable to elucidate how the teachers see themselves; how they see each other and the work
they accomplish; what they say about the relationships among them and which role they
attribute to the school and the school system.
Keywords: Teacher’s professional identity;
Educational professionalization;
School culture and educational culture;
Primary School – from 1
st
to 4
th
grades and from 5
th
to 8
th
grades.
8
SUMÁRIO
Dedicatória................................................................................................................................. p. 04
Agradecimentos......................................................................................................................... p. 05
Resumo...................................................................................................................................... p. 06
Abstract...................................................................................................................................... p. 07
Relação de Anexos................................................................................................................... p. 09
Relação de Quadros................................................................................................................. p. 09
Introdução................................................................................................................................ p. 11
Parte I: Referencial teórico – elementos para compreensão da identidade profissional
docente.........................................................................................................................
p. 16
1.1 A identidade profissional docente e sua relação com o saber e o fazer
pedagógico: uma contribuição de P. Berger & T. Luckmann, G. Sacristán, C.
Dubar e M. Tardif & D. Raymond................................................
p. 16
1.2 As relações entre cultura escolar, cultura docente e identidade profissional
docente segundo Pérez Gómez e Luc Brunet........................................................
p. 26
1.3 Profissionalização, proletarização e intensificação do trabalho docente e suas
implicações para a identidade profissional docente segundo Nóvoa, Apple,
Hargreaves, Tardif e outros......................................................................
p. 32
Parte II: Estudos realizados sobre o assunto........................................................................ p. 66
Parte III: O Ensino Fundamental e seus professores no Brasil ........................................ p. 102
3.1 A Legislação do Ensino Fundamental e da formação docente e algumas
estratégias do Estado para “melhorar” a educação básica no Brasil...................
p. 102
Parte IV: A pesquisa realizada – As relações entre professores dos ciclos I e II do
Ensino Fundamental...............................................................................................
p. 117
4.1 Estudo Preliminar ..............................................................................................
p. 117
4.2 Caracterização das escolas e professores alvos do estudo.................................
p. 124
4.3 Descrição dos Encontros....................................................................................
p. 134
4.3.1 Os encontros e as manifestações dos professores....................................
p. 136
Considerações Finais................................................................................................................ p. 181
Referências Bibliográficas....................................................................................................... p. 184
Anexos ...................................................................................................................................... p. 188
9
RELAÇÃO DE ANEXOS
Anexo 1: Relato dos encontros do Estudo Preliminar................................................. p. 189
Anexo 2: Questionário de caracterização do professor............................................... p. 192
Anexo 3: Texto de apoio............................................................................................. p. 193
Anexo 4: Ficha de apoio à caracterização da escola................................................... p. 195
RELAÇÃO DE QUADROS
Quadro 1: O Ensino Fundamental de 9 anos.................................................................. p. 112
Quadro 2: Caracterização dos Professores..................................................................... p. 133
10
[...] A vida me fez assim.
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu, caçador de mim.
[...] Nada a temer senão o correr da luta.
Nada a fazer senão escrever o medo
Abrir o peito a força, numa procura.
Fugir as armadilhas da mata escura.
Luis Carlos Sá e Sergio Magrão
Música: Eu, Caçador de Mim.
11
INTRODUÇÃO
Em minha trajetória como coordenadora pedagógica, uma pergunta sempre me
instigou: como o relacionamento entre professores se integra no fazer pedagógico de cada
um deles? A vivência do dia-a-dia da profissão ao longo dos últimos anos permitiu-me
observar dois aspectos específicos do cotidiano escolar: de um lado, salta aos olhos a riqueza
de recursos humanos presentes na escola, com uma equipe de profissionais com formação em
nível superior nos mais diversos campos de conhecimento – o que confere à escola um grande
potencial para um trabalho educativo articulado e bem sucedido; de outro lado,
recorrentemente, pode-se testemunhar na escola conversas entre os professores nos
corredores, durante o recreio, ou durante o cafezinho, que giram em torno de problemas e/ou
generalidades a respeito do cotidiano pessoal, familiar e social, dificuldades da profissão,
problemas dos e com os “alunos-problemas” ou os “incluídos”, erros e acertos do próprio
trabalho e do trabalho de outros professores, parceiros de docência na escola. Tais
observações, gradativamente, levaram-me a supor que a visão que os professores têm sobre si
mesmos, sobre seu próprio trabalho e, especialmente, sobre o trabalho dos demais
profissionais da escola parece interferir nas relações entre os professores no dia-a-dia escolar,
imprimindo nelas marcas específicas, com conseqüências para o trabalho educativo realizado
pela escola.
Para a elaboração deste Projeto, tais observações fazem emergir algumas questões:
- Como os professores de Ciclos I e II do Ensino Fundamental vêem a si mesmos, aos seus
pares e ao trabalho que realizam na unidade escolar em que atuam?
- Que avaliações fazem uns dos outros e como as expressam?
- A que aspectos estão relacionadas tais avaliações/ visões / percepções?
- Quais são as convergências e divergências entre essas percepções?
- O que dizem sobre as relações que se estabelecem entre eles?
- Que papel atribuem às instituições escolares, sua cultura e “clima” de trabalho reinante,
nesse relacionamento e no trabalho realizado pela equipe de profissionais?
Responder a essas perguntas pode contribuir para a compreensão de um aspecto
importante do trabalho e da formação de professores em geral e dos professores do ensino
fundamental em particular: o desenvolvimento da identidade profissional docente – aspecto
vital, segundo G. Sacristán (1999), para a configuração do trabalho pedagógico na escola.
12
Em pesquisa bibliográfica realizada até julho de 2005 (no Banco de teses e
dissertações da FCL/UNESP/Araraquara, FEUSP, PUCSP, UNICAMP; sites bibliográficos
como Dédalus, Sciello, Portal INEP/MEC, CD-ROM de compêndios de Anais da Endipe e
Anped) foi possível constatar que este tema tem sido pouco explorado nas pesquisas
educacionais, especificamente na perspectiva do relacionamento entre os professores dos dois
ciclos do Ensino Fundamental.
Identificar possíveis interferências dessas relações no trabalho e na identidade desses
professores pode ser um caminho promissor para o processo de reconhecimento do interior
das instituições de ensino, a partir de uma parte dos indivíduos/ profissionais que nelas atuam
– os professores. Como afirma G. Sacristán (1999): “[...] a crise do sistema educativo tem
relação com a perda de consciência sobre seu sentido” (p.11). E quando falamos em
consciência e sentido, estamos falando de indivíduo, ou seja, o “sujeito agente da educação”,
parafraseando o autor.
É preciso “decodificar a realidade social da escola”, afirma Pérez Gómez (2001) –
uma realidade social imbuída de uma cultura escolar que se caracteriza pela: organização
comportamental dos alunos e dos professores; pela forma como os alunos e professores se
agrupam; pela hierarquia escolar; pela avaliação dos docentes e do trabalho que realizam;
pelos ritos e costumes; pelo currículo; pelas expectativas da comunidade social, pelas
habilidades dos agentes envolvidos; pelas relações entre os docentes; e, finalmente, pelas
relações entre professores e alunos. Todos estes aspectos condicionam e pressionam, segundo
Pérez Gómez (2001, p.150), o comportamento de todos os agentes envolvidos no trabalho
escolar. Nesse sentido, pesquisar as relações entre os professores pode contribuir para a
compreensão da cultura escolar e para a decodificação de sua realidade social.
Considerar se as medidas legais que estão em vigor contribuem ou não para uma
articulação entre os vários níveis do ensino básico pode se tornar mera especulação. O fato é
que esta hierarquização – formal ou informal – existe. As diferenças ultrapassam a questão da
formação dos professores – sejam eles de Educação Infantil, ou dos quatro anos iniciais do
Ensino Fundamental, sejam eles dos quatro anos finais do Ensino Fundamental, ou do Ensino
Médio. Tais diferenças podem ser identificadas na política salarial destinada a esses
professores, no status que cada um desfruta no âmbito da comunidade escolar – pais, alunos,
diretores, coordenadores – e na sociedade. Esta pesquisa parte do pressuposto de que a
hierarquia presente nessa relação está imbuída de percepções que precisam ser apreendidas,
de forma que outros caminhos possam ser traçados na formação e na atuação dos professores,
em busca de um ensino básico unificado.
13
Neste estudo, abordamos a relação entre os professores de Ciclo I – sobre os quais, em
minhas experiências em escolas particulares, já ouvi alguns profissionais da área se referirem
como o os professores do ensino fundamental menor e os professores de Ciclo II – referidos
como professores do ensino fundamental maior. Esta forma de nomeá-los, por si só, já parece
indicar o caráter desigual e as relações de poder presentes entre os profissionais desses dois
Ciclos.
Neste estudo, especificamente, o grupo de professores do Ciclo I é visto pelo grupo de
professores do Ciclo II como “figuras maternais”, com formação pouco consistente e que, por
conta disso, não conseguem preparar o aluno para “enfrentar” o Ciclo II do Ensino
Fundamental. Em contrapartida, os professores do Ciclo II são vistos pelo grupo de
professores do Ciclo I como profissionais “resistentes ao trabalho deste grupo, com
formação pedagógica pouco consistente, ou seja, para os professores do Ciclo I, os
professores do Ciclo II “...não entendem de didática, não têm conhecimento das teorias da
aprendizagem e ainda se colocam como superiores no processo educativo do ensino
fundamental”.
Ora, se o ensino fundamental é único, por que existe esta hierarquização entre os dois
ciclos? Desde a história da formação profissional docente esses dois grupos de professores
vêm sendo tratados de forma diferenciada e comveis diferentes de exigências para o acesso
ao diploma. A própria estrutura escolar separa os grupos em dois segmentos de ensino, seja
em turnos ou prédios diferentes, seja em reuniões e encontros pedagógicos isolados, seja no
piso salarial diferente. Além de todos esses fatores que parecem fortalecer essa relação
hierárquica, que outros aspectos estão envolvidos na visão que um grupo expressa sobre o
outro?
Nas contribuições teóricas de autores como Pérez Gómez (2001), G. Sacristán (1999),
L. Brunet (1995), M. Tardif & D. Raymond (2000), M. Tardif e C. Lessard (2005), A. Nóvoa
(1986, 1995 e 1998), M. Apple K. e Teitelbaun (1991), A.Hargreaves (1998a, 1998b e 2002),
C. Dubar (1997), P. Berger & T. Luckman (2000), encontramos elementos que trazem pistas
para a compreensão das relações entre a visão que os professores dos dois ciclos têm a
respeito do trabalho realizado pelos profissionais do outro ciclo de ensino e a identidade
profissional que constroem, entre a organização e o significado atribuído às suas próprias
ações na escola em que atuam.
Conhecendo e compreendendo como tais visões são partilhadas e tornam-se senso
comum dentro e fora da escola, comparando-as e desvelando-as, podemos encontrar os pontos
de tensão e os obstáculos da prática educativa destes dois grupos, permitindo compreender os
14
fatores internos à escola, que levam este nível de ensino a se consolidar, na prática, em dois
níveis distintos e estanques.
Assim, a questão central que esta investigação pretende responder é: Quais são, na
visão dos professores dos Ciclos I e II do Ensino Fundamental, as relações que se
estabelecem entre os profissionais que atuam nesses dois segmentos e as possíveis
interferências dessas relações na identidade e atuação profissional destes professores?
Este estudo tem como objetivo investigar as visões/ percepções que professores do
Ciclo I (1ª a 4ª séries) e do Ciclo II (5ª a 8ª séries) do Ensino Fundamental
1
têm de si mesmos
e uns dos outros, do papel que desempenham na escola e das relações que estabelecem entre
si. O estudo está norteado pela hipótese de que as visões/ percepções que os professores de
um ciclo do ensino fundamental têm dos professores do outro ciclo deste nível de ensino
contribuem para o afastamento ou para a aproximação entre eles, com conseqüências na visão
que expressam sobre o trabalho educativo realizado nos dois ciclos.
Trata-se de um estudo de natureza qualitativa do tipo analítico-descritiva das visões
expressas por professores de ciclos I e II do Ensino Fundamental de duas escolas públicas
estaduais de um município da região da Grande São Paulo.
A partir de um estudo preliminar desenvolvido por meio de encontros e discussões
temáticas com grupos de professores dos dois ciclos do Ensino Fundamental em uma escola
particular localizada na região da Grande São Paulo (ver Anexo 1), promovemos outros
encontros (ver Descrição dos Encontros, item 4.3.) em duas escolas públicas estaduais.
Nesses encontros, foram realizadas dinâmicas com características do chamado Grupo Focal.
Conforme Gatti (2005), grupo focal é uma técnica de pesquisa que consiste no levantamento
de dados em pesquisas em grupo, por meio de discussões e debates, enfocando um tema
específico.
Os instrumentos utilizados nesses encontros incluíram um questionário (Anexo 2)
para delineamento do perfil profissional dos professores, solicitando aos respondentes
informações que permitiram identificar: sexo, idade, formação, tempo de carreira, e um texto
de apoio (Anexo 4), utilizado para “disparar” as discussões e permitir a coleta de informações
necessárias. Os encontros foram gravados em áudio e vídeo com o consentimento dos
profissionais presentes.
1
Apesar da mudança de nomenclatura (de “a 4ª/ 5ª aséries do ensino de 1º grau” para “ciclos I e II do
ensino fundamental”) estabelecida a partir da Lei federal n. 9394/96, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional no dia-a-dia das escolas os profissionais, alunos e pais continuam a utilizar a expressão
séries”, razão pela qual mantivemos, neste trabalho, as duas formas de referência a esses dois momentos do
ensino fundamental.
15
Os dados obtidos foram alvo de procedimentos específicos, que incluíram: transcrição
literal, mapeamento das principais idéias expressas, organização em quadros-síntese, análise,
apresentação e relato dos resultados, tomando por base os conceitos teóricos expressos pelos
diferentes autores já mencionados, bem como o objetivo, a hipótese e as questões norteadoras
da pesquisa.
Para apresentação da trajetória da pesquisa e seus resultados, esta dissertação está
organizada em quatro partes. A primeira parte destina-se à apresentação dos referenciais
teóricos que nortearam o estudo. Na segunda parte são descritos os estudos já realizados
sobre o assunto. A terceira parte faz um recuo na história da legislação brasileira sobre a
escola básica e a formação de seus profissionais docentes. Na quarta parte são apresentados
e analisados os dados coletados. Finalmente, encerram a Dissertação algumas Considerações
Finais, as Referências Bibliográficas e os Anexos.
16
PARTE I
REFERENCIAL TÉORICO – ELEMENTOS PARA COMPREENSÃO
DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DOCENTE
As questões levantadas até aqui remetem-nos a vários conceitos que podem contribuir
para a compreensão do processo de construção da identidade profissional docente. Entre eles,
destacam-se: Construção de Identidade; Identidade Profissional; Identidade Profissional
Docente; Ação Pedagógica; Fazer Pedagógico; Saberes docentes; Cultura escolar; Cultura
docente e Profissionalização docente.
1.1 A identidade profissional docente e sua relação com o saber e o fazer pedagógico:
uma contribuição de P. Berger & T. Luckmann, G. Sacristán, C. Dubar e M. Tardif &
D. Raymond
Como nosso objeto de estudo está relacionado à vida cotidiana do professor e às
relações que ele vive no interior da escola, cabe aqui procurar entender essa realidade. Para
tanto, buscamos em Berger & Luckmann (2000)
2
a teoria da construção social da realidade
3
.
Tais autores afirmam que precisamos considerar o interior da realidade da vida cotidiana,
analisando o conhecimento que dirige esta vida, isto é, as objetivações dos processos de
relações entre os indivíduos e entre os indivíduos e o mundo que os cerca, e suas
significações.
Segundo os autores, cada indivíduo interpreta a vida cotidiana a sua maneira, dando
um sentido único a ela, configurando-a em um mundo coerente para si mesmo. Em outras
palavras, as objetivações são subjetivas, ou seja, únicas, individuais, pessoais, e é a partir
delas que se constrói o mundo intersubjetivo do senso comum, isto é, o mundo que se passa
entre sujeitos diversos. É este mundo intersubjetivo que nos interessa para esse estudo.
A realidade cotidiana já aparece objetivada para o indivíduo, ou seja, quando ele nasce
ela já está lá. Nesta realidade, os fenômenos são pré-arranjados em padrões que se impõem ao
indivíduo, aparentemente sem dependerem da apreensão por parte dele. Desta forma, na rotina
2
Vale lembrar aqui que o original dessa obra: The social construction of reality data de 1966 e a primeira edição
brasileira de 1973.
3
Os autores definem realidade como os fenômenos que reconhecemos existir, independente do nosso desejo.
17
da vida cotidiana, o conhecimento do senso comum se torna o conhecimento do indivíduo. A
realidade da vida diária se apresenta ao indivíduo como um mundo intersubjetivo, ou seja, um
mundo que ele divide, compartilha com outros indivíduos, de forma que há uma contínua
correspondência entre os seus significados pessoais e os dos outros. O senso comum refere-se
aos conhecimentos que são partilhados com os demais indivíduos na vida diária. Neste
sentido, em nosso estudo, pesquisamos as visões/ percepções que os professores de um Ciclo
do Ensino Fundamental têm de si mesmos e dos outros professores do outro Ciclo e que são
partilhadas.
Na interação social da vida cotidiana, o indivíduo partilha com outros indivíduos a
realidade dessa vida. O primeiro modelo deste “partilhar” ocorre com o que os autores
chamam de face a face, do qual se derivam as demais formas que orientam essa partilha. Uma
característica dessa relação face a face é a flexibilidade, isto é, frente à demonstração da
subjetividade alheia, o que é padrão na rotina diária tende a resistir. Por exemplo, a interação
face a face entre os indivíduos é modelada por tipificações recíprocas, quer dizer, um
indivíduo está suscetível às interferências de outros indivíduos com relação a essa tipificação.
São recíprocas porque as tipificações dos outros também sofrem interferências. As “minhas”
tipificações entram em sucessivas negociações com as tipificações dos outros. Segundo
Berger & Luckmann (2000, p.51), o caráter direto ou indireto dessas experiências é aspecto
importante na interação com o outro. À medida que o indivíduo se afasta do outro, as
tipificações da interação social tornam-se, progressivamente, anônimas. Nesse sentido, a
realidade social da vida cotidiana é “apreendida num contínuo de tipificações”. A estrutura
social é o total destas tipificações e dos padrões de interação recorrentes estabelecidos por
meio delas
4
.
Além disso, segundos os autores, situações face a face podem permitir que o indivíduo
tenha acesso à subjetividade do outro. Os sinais – gestos, movimentos corporais padronizados,
símbolos gráficos, enfim, as formas de comunicação – são sempre objetivações acessíveis que
expressam as intenções subjetivas do momento.
No que tange às formas de comunicação, Berger & Luckmann (2000) destacam a
importância da linguagem nas relações humanas. É através da linguagem que as objetivações
comuns da vida cotidiana são mantidas, de tal forma que as experiências podem ser passadas
4
Outras tipificações que podem fazer parte da realidade da vida cotidiana, por vezes até de forma significativa,
são as tipificações de antepassados ou de sucessores. Por exemplo, muitos indivíduos sacrificam suas vidas por
aquilo que os seus antecessores deixaram como herança, ou ainda, pensando em seus sucessores. Estas
“tipificações” colaboram na construção da identidade pessoal e profissional dos indivíduos.
18
de uma geração para outra. É por meio da linguagem que um indivíduo transmite a outros
indivíduos o que é importante no conhecimento da vida cotidiana, de forma que esse
conhecimento é distribuído socialmente. Em outras palavras, a função da linguagem e do
universo simbólico que ela expressa é ampliar a compreensão e o sentido da realidade, de uma
maneira consistente e coerente com a realidade subjetiva dos indivíduos. É nesse sentido que
ouvimos o que os professores dizem sobre outros professores.
Berger & Luckmann (2000) afirmam que: “[...] sendo a sociedade uma realidade ao
mesmo tempo objetiva e subjetiva [...]” (p. 173), precisamos entender cada uma delas. Na
construção da sociedade como realidade objetiva, os autores afirmam que há dois momentos
essenciais: a institucionalização e a legitimação.
As relações entre o organismo biológico do homem e sua atividade social dão origem
à institucionalização. O homem é um ser social, de forma que, em seu processo de formação,
ele se inter-relaciona com o ambiente. Neste sentido, não podemos compreender
adequadamente o indivíduo como ser único, à parte do contexto social no qual ele se formou,
pois homem e sociedade se entrelaçam. Isto é, por sua própria constituição biológica, o
homem se embrenha em diversas atividades na sociedade, a fim de tornar-se social. Portanto,
o ser humano não pode ser entendido longe do contexto social em que está inserido. A própria
instabilidade inerente ao organismo humano faz com que o homem construa a estabilidade do
ambiente social para ele mesmo, dando origem às institucionalizações.
Seja qual for a atividade humana, ela está sujeita ao hábito. O hábito facilita a
estabilidade e evita que o indivíduo se esforce em tarefas criativas e inovadoras,
transformando as ações humanas em padrões de conduta estáveis. É essa sedimentação dos
hábitos que dá origem à institucionalização, isto é, estabiliza a sociedade. Os hábitos passam a
controlar os impulsos, de maneira que as tensões entre as relações sociais tendem a
desaparecer. Os hábitos, então, são compartilhados, tornando-se um padrão. Esta
reciprocidade de ações gera a institucionalização. O que está instituído exerce um papel de
controle social sobre os indivíduos, isto é, controla suas ações, organizando padrões de
conduta para a sociedade.
O conhecimento institucionalizado precisa ser transmitido, através da linguagem, de
uma geração para outra, revelando a integração de universos simbólicos compartilhados
socialmente. E quando a geração mais nova “recebe” o conhecimento institucionalizado, é
necessário o estabelecimento de sanções, reforçando o controle social da instituição. Este
conhecimento é então confirmado pelas experiências e sistematizado como verdade objetiva,
de forma a se tornar uma realidade subjetiva, moldando o indivíduo.
19
O processo de institucionalização exige, ainda, sedimentação e tradição. A
sedimentação da intersubjetividade acontece quando vários indivíduos compartilham as
experiências que os levaram ao conhecimento da realidade. Quando a sedimentação é
objetivada através da linguagem, por exemplo, há uma sedimentação social, isto é, a
linguagem torna acessível a ação coletiva do conhecimento. Assim, forma-se um depósito de
sedimentações coletivas e as experiências sedimentadas na memória são reconhecidas como
entidades memoráveis. Não podemos esquecer que estas experiências fazem parte da
construção da identidade pessoal e profissional do indivíduo, por isso o que está sedimentado
e tradicionalmente marcado nas visões/ percepções que os professores dos dois Ciclos do
Ensino Fundamental têm da relação que se estabelece entre eles é importante em nosso
estudo.
Vejamos como o conhecimento da realidade se torna um conhecimento objetivado. Os
significados objetivados daquilo que foi institucionalizado, isto é, das instituições, são
concebidos e transmitidos como conhecimento, de acordo com as necessidades das
instituições. Na verdade, a instituição precisa se justificar, legitimar-se perante uma
coletividade, de forma que o indivíduo chega a perder a noção da origem desta instituição.
Berger & Luckmann (2000) afirmam que neste processo de legitimação os “[...] significados
institucionais devem ser impressos poderosa e inesquecivelmente na consciência do
indivíduo” (p.98). Tal conhecimento institucionalizado não se impõe para os diferentes
indivíduos de forma unificada. A relação dialética entre o conhecimento e sua base social faz
surgir subgrupos de significados específicos que, dentro do contexto social maior; “[...] alguns
tipos são designados como transmissores, outros, como receptores do ‘conhecimento’
tradicional. [...]” (p.99). Portanto, parece-nos importante compreender o que está sendo
“transmitido” e o que está sendo “recebido” nas relações entre os professores do Ensino
Fundamental.
Nessa relação com o conhecimento objetivado, a tipificação dos papéis
desempenhados pelo indivíduo nas instituições dá origem às ordens institucionais, o que
equivale a uma distribuição social de conhecimentos. Os papéis que os indivíduos assumem
nesse processo se entrelaçam de tal maneira que é possível analisar a relação entre
conhecimento e papéis, do ponto de vista institucional e do ponto de vista daquilo que o
indivíduo pensa.
Por isso, é relevante abordar nas pesquisas sobre e com professores o que está
objetivado e o que é subjetivo nas visões/ percepções que os professores do Ensino
Fundamental têm da relação que se estabelece entre eles.
20
Finalmente, Berger & Luckmann (2000) se referem à extensão da institucionalização e
aos modos de institucionalização, pois a sociedade precisa desse processo para se constituir.
Quanto mais importantes instituições da estrutura social forem compartilhadas, maior será o
âmbito da institucionalização. O que ocorre é que a relação entre o conhecimento e a sua
essência social se dá de forma dialética. Tanto um quanto outro são fatores de mudança social.
Tais mudanças se diferenciam de acordo com a necessidade de legitimação das instituições. A
maneira pela qual a ordem institucional é objetivada é uma questão de reificação. O que os
autores querem dizer é que o comportamento institucionalizado se mostra como realidade
objetiva, externa à vontade do indivíduo, ou seja, se reifica. A reificação é o extremo no
processo de objetivação, pois o indivíduo perde a noção de que a realidade objetiva é uma
realização do ser humano. Assim, os papéis podem ser reificados da mesma forma que as
instituições.
Também no processo de objetivação, segundo Berger & Luckmann (2000), podemos
encontrar a legitimação. Os universos simbólicos se originam no processo de objetivação e
deles dependem a legitimação da ordem instituída. Para os autores, a legitimação torna a
ordem institucional inteligível, dando a ela uma validade cognitiva e normatizando, de forma
digna, o conhecimento subjetivado. A legitimação “fala” para um indivíduo “porque” ele deve
realizar uma determinada ação e não outra, revelando os valores neste processo.
Além da relação com os valores, a legitimação também implica conhecimento.
Quando as objetivações de uma ordem institucional específica precisam ser transmitidas de
uma geração para outra, surge a necessidade de explicar e justificar à nova geração o que
constitui a “tradição institucional” – esta também constituída como instrumento legitimador.
Este é o processo da legitimação
5
; “[...] É preciso primeiro haver ‘conhecimento’ dos papéis
que definem tanto as ações ‘certas’ quanto as ‘erradas’, no interior da estrutura [...]” (Berger
& Luckmann, 2000, p.128).
Os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais se originam no
universo simbólico. Aqui está o eixo central da teoria de Berger & Luckmann, pois é dentro
5
O primeiro nível de legitimação se traduz pelas afirmações tradicionais mais simples, do tipo “Isto se faz
assim!”, ou, “Não faça isso, porque...!”, e se caracteriza como um nível pré-teórico, num sistema de objetivações
lingüísticas. O próximo nível de legitimação se caracteriza como um nível de teoria rudimentar, onde podemos
encontrar as “lições de moral”, “lendas”, “provérbios”, isto é, abrange o universo simbólico. Este nível se
caracteriza por proposições teóricas rudimentares. O terceiro nível são legitimações transmitidas pelos
“especialistas” que tornam a aplicação prática em “teoria pura”, fazendo sentido em um universo maior. São as
teorias explícitas de uma ordem institucional. O último nível da legitimação é constituído pelos universos
simbólicos. É um nível de legitimação em que as experiências de outras esferas da realidade se integram e são
incorporadas a este mundo, alcançando o universo do conhecimento.
21
deste universo simbólico que encontramos a sociedade histórica e a biografia do indivíduo,
isto é, as objetivações sociais constroem o universo simbólico, mas pela sua capacidade de
atribuírem significados, permitem que o indivíduo, como ser único, perceba-se dentro dele. É
dessa forma que o nível de legitimação alcança sua realização.
Em resumo, o universo simbólico organiza de forma coerente a posição que cada
indivíduo ocupa no contexto social, os papéis que desempenham, a identidade de cada um e as
relações que constituem a vida cotidiana. Assim, pensar nos papéis que os professores do
Ensino Fundamental assumem dentro do contexto escolar, na sua identidade pessoal e
profissional e nas visões que expressam sobre as relações que estabelecem entre si são pontos
centrais para nossa pesquisa. Pois, é assim que o universo simbólico se cristaliza, passando
pelo processo de objetivação, sedimentação e acumulação de conhecimentos.
Na construção da sociedade como realidade subjetiva, Berger & Luckmann (2000) nos
apontam o modo como esta realidade é reificada e assumida pelos indivíduos, implicando
num processo de socialização. Segundo os autores, há dois processos distintos de
socialização: a primária e a secundária. Entender estes processos é importante, pois eles
colaboram na construção da identidade do indivíduo.
A sociedade existe como realidade objetiva e como realidade subjetiva e caracteriza-se
por um processo dialético entre exteriorização – objetivação – interiorização. Isto é, o
indivíduo simultaneamente exterioriza seu “eu” no mundo social e interioriza o mundo social
como realidade objetiva. Isto é, a realidade é reificada e assumida pelos indivíduos. Quando
nasce, o indivíduo não é da sociedade, ele se torna social, por meio de um processo sucessivo
de interiorização da realidade ao longo do tempo, ou seja, ele se socializa, passando pelos
processos de socialização primária e secundária.
A socialização primária tem seu lugar nos primeiros anos de vida do indivíduo, e vai
servir de base para a compreensão do mundo e do sistema social, aquele com o qual se
relaciona. Envolve a interpretação dos papéis sociais e as atitudes do “outro”. Quando o outro
é cristalizado na consciência do “eu”, acontece uma relação simétrica entre a realidade
objetiva e a realidade subjetiva. Em outras palavras, o indivíduo passa a ocupar um espaço
social concreto em função dele mesmo e das relações que estabelece com o outro, produzindo
uma identificação própria, uma identidade; ele está pronto para a socialização secundária.
A socialização secundária ocorre quando o indivíduo interioriza mundos diferentes,
tendo acesso ao conhecimento de uma realidade complexa e segmentada, de acordo com o
papel que ele assume e sua posição na sociedade. Para que a socialização secundária se
mantenha de forma consistente, pressupõem-se procedimentos conceituais que vão integrar os
22
diferentes conhecimentos. Isto é, cada conhecimento precisa de um meio e processo
adequados para serem interiorizados.
A conservação e a transformação da realidade subjetiva são processos que se
complementam. Por conta desta socialização não ser completa, os conteúdos não
interiorizados tornam-se uma ameaça à realidade subjetiva. Ou seja, a socialização primária
deixa vulnerável o que havia sido interiorizado anteriormente. Assim, a sociedade desenvolve
mecanismos de manutenção da realidade – a legitimação. Um destes mecanismos é a rotina
diária que afirma o conhecimento da vida cotidiana. Por exemplo, na conversa cotidiana, as
objetivações de um idioma se tornam objetivações da consciência individual. Desta forma, a
realidade subjetiva depende sempre de uma estrutura específica e razoável para se manter.
Nos momentos de crise, a realidade precisa estar explícita, mostrar-se de maneira intensiva;
para tanto, a sociedade utiliza procedimentos, como por exemplo, o rito funerário.
Segundo Berger & Luckmann (2000), estar em sociedade requer um contínuo processo
de modificação da realidade subjetiva. As alterações exigem que o indivíduo se re-socialize,
buscando uma identificação afetiva com seu novo “mundo”. Por ser diferente da socialização
primária, este momento de re-socialização é mais difícil, porque o indivíduo tem que enfrentar
a desconstrução e desintegração da realidade subjetiva. O sucesso deste processo requer
condições sociais e conceituais muito fortes, além de novos significados com os quais os
indivíduos possam se identificar, e ainda, um novo aparato legitimador. Um bom exemplo
deste processo é quando um indivíduo muda de prática religiosa.
Há, portanto, profundas relações entre o processo de interiorização e a estrutura social.
Analisar psicológica e socialmente o fenômeno da interiorização, segundo Berger &
Luckmann (2000), requer uma compreensão sociológica maior dos aspectos estruturais destes
fenômenos. Quando se estabelece um alto grau de simetria entre realidade objetiva e realidade
subjetiva, a socialização é favorável, pois a identidade subjetiva escolhida torna-se objetiva na
consciência do indivíduo como seu “eu” real. Trata-se de um processo intimamente
relacionado com o contexto sócio-estrutural, no qual se estabelecem as relações e a
distribuição social do conhecimento. As teorias sobre a identidade pessoal e social dos
indivíduos tentam explicar tais relações.
A identidade é um elemento importante da realidade objetiva. Ela é formada através
do processo social e transforma este processo dentro de uma realidade objetiva que ainda é
percebida pelo indivíduo como externo a ele. Isto é, surge uma relação dialética entre o
indivíduo e a sociedade.
23
A atividade social é a base da institucionalização, que dá origem à construção social
da realidade. A realidade social, então, age para influenciar a atividade humana. “[...] Na
dialética entre a natureza e o mundo socialmente construído, o organismo humano se
transforma [...].” Assim, “[...] o homem produz a realidade e com isso se produz a si mesmo”
(Berger & Luckmann, 2000, p.241).
Concluímos, assim, que a teoria de Berger & Luckmann pode nos ajudar a entender
como as visões/ percepções que os professores têm uns dos outros são formadas, de que
maneira os comportamentos são forjados e, conseqüentemente, como as práticas são
consolidadas e o que está por trás disto tudo: o universo simbólico.
Se Berger & Luckmann (2000) ajudam-nos a entender a importância do papel que os
universos simbólicos têm na legitimação das identidades que se constroem num processo
social dialético entre realidade subjetiva e realidade objetiva, a teoria de Claude Dubar (1997)
permite-nos ampliar a compreensão desse processo dialético ao propor a articulação entre os
processos identitários, os quais nomeia como processo biográfico e processo relacional. Os
resultados dessa articulação são relativamente estáveis, mas encontram-se em processo
contínuo de evolução.
O processo biográfico caracteriza o que o autor denomina a identidade para si e evoca
os chamados atos de pertença. Desta maneira, a identidade do indivíduo é composta daquilo
que ele constrói para si e do que os outros nele vêem. Trata-se, segundo o autor, de um
processo ativo na trajetória social vivida. A importância subjetiva deste processo é muito
grande para o indivíduo. É “[...] a história que contam daquilo que são” (Dubar, 1997, p. 107),
indicando uma identidade social real.
A identidade para o outro, caracterizada pelo processo relacional, expressa o que os
outros acham que o indivíduo é e está condicionada ao reconhecimento de um grupo, de uma
classe ou de uma categoria. Este processo corrobora uma identidade virtual, portanto, é uma
identidade mais próxima de algo modelado e construído pelas imagens que o grupo tem do
indivíduo, do que sua identidade real.
Segundo Dubar, estes dois processos identitários estão em freqüente conflito,
revelando estratégias que objetivam reduzir o conflito, que é a preservação das identidades.
Segundo ele, tais estratégias identitárias podem assumir duas formas:
[...] transações “externas” ao indivíduo e os outros significativos que visam
acomodar a identidade para si à identidade para o outro (transação chamada
objetiva), ou a de transações “internas” ao indivíduo, entre a necessidade de
salvaguardar uma parte das suas identificações anteriores (identidades
herdadas) e o desejo de construir para si novas identidades no futuro
24
(identidades visadas) procurando assimilar a identidade-para-outro à
identidade-para-si. (Dubar, 1997, p. 107-108.)
Aproximando a teoria de Dubar de nosso objeto de estudo é possível supor que a
forma como um professor é visto por outro professor, isto é, as visões/ percepções que
expressam um sobre o outro podem ser “acomodadas” em seu processo biográfico, ou tal
acomodação pode se dar pela própria necessidade do professor tentar defender sua identidade
pré-definida e aquela nova identidade que deseja construir. Assim, ele assimila a visão/
percepção do outro à sua identidade.
Dubar (1997) afirma que a articulação entre estas duas transações é a chave central do
processo de construção das identidades sociais, pois é uma articulação entre sistemas ativos
que “[...] propõem identidades virtuais e as trajetórias vividas no interior das quais se forjam
as identidades ‘reais’ a que aderem os indivíduos [...]” (p.108). Trata-se, portanto, de uma
transação complexa e repleta de tensões, pois está sempre sujeita às tipificações
das
identidades herdadas nas trajetórias individuais.
Outros exemplos da articulação entre a identidade-para-si e a identidade-para-outro
podem ser revelados nas políticas de formação e atualização profissional e no reconhecimento
da profissão, pois é quando está atuando, trabalhando, que o indivíduo se depara com o
desafio identitário. É no espaço escolar que os professores estabelecem as relações identitárias
mais conflituosas, pois têm que lidar com o processo relacional e o processo biográfico, de
forma paralela e contínua. Assim, é possível supor que tais relações interfiram na ação
pedagógica desses profissionais.
A esse respeito, cumpre ressaltar que, segundo G. Sacristán (1999), quando
descrevemos uma ação, é importante lembrar que ela é praticada por um indivíduo, que tem
uma história e está inserido num contexto. Há que se refletir e questionar, portanto, por que
este indivíduo age dessa maneira, pratica a ação desta ou daquela forma, e ainda, questionar
quais outros indivíduos estão envolvidos nesta ação.
“Agimos de acordo com o que somos e naquilo que fazemos é possível identificar o
que somos” (G. Sacristán, 1999, p.31). Ou seja, as ações expressam a singularidade do eu. É
por meio das ações que o indivíduo se constrói como pessoa una. Assim, “o professor age
como pessoa e suas ações profissionais o constituem” (G. Sacristán, 1999, p.31). Segundo o
autor, por trás da ação do professor está seu corpo, sua inteligência, seus sentimentos, suas
aspirações, suas maneiras de compreender o mundo.
A complexidade de se compreender a ação humana reside no fato de as ações serem
orientadas por finalidades, sejam elas metas, desejos ou finalidades impostas por valores
25
externos à individualidade. O professor, ao se manifestar, tem suas ações revestidas dessas
finalidades internas ou externas. Entender e sobrepor estes dois planos, segundo Gimeno
Sacristán, é importante para entender a forma como o profissional docente se manifesta, pois
muitas vezes as ações são de interesse pessoal e não temos consciência dos valores que neles
estão enraizados.
Para nos aproximarmos do “sentido da ação”, temos que nos aproximar dos
propósitos, motivos e desejos que explicam as ações na sua estrutura, ou seja, são eles que
orientam, dão coerência à vida das pessoas, proporcionam sentido à própria identidade. Desta
forma, entender a ação do professor e, conseqüentemente, sua identidade profissional, pode
contribuir para a compreensão das relações entre os professores e suas implicações sobre o
trabalho pedagógico realizado na escola.
Assim, ações constroem identidade; implicam intenções, prioridades, motivos e
satisfações. Por este motivo é importante entender as maneiras como os professores sentem o
ensino. Pesquisar, por exemplo, se há satisfação pessoal pelo que produzem, se há dedicação,
e se expressam o desejo de melhorar cada vez mais o próprio trabalho pode colaborar para a
apreensão das imagens que o professor faz de si mesmo e de outros professores.
Mas esta ação pedagógica está relacionada ao saber do professor. Para Tardif &
Raymond (2000), os saberes profissionais do professor são empregados na sua rotina diária e
abrangem não só uma diversidade grande de objetos, problemas e questões relacionados à sua
prática profissional, como também sua personalidade, seus talentos, suas motivações, suas
aspirações, os conhecimentos que compartilha com outros agentes educativos (pais, alunos) e,
ainda, aqueles conhecimentos compartilhados na integração com os demais profissionais e na
participação da rotina diária da escola, além daqueles que se referem aos diferentes elementos
envolvidos no trabalho pedagógico (material didático, planejamentos, etc).
Tal definição, originada no plano social, relaciona o saber profissional com os espaços
nos quais os professores se formam e atuam, evidenciando suas origens e as maneiras como se
integram no seu trabalho.
Para compreendermos essa origem social dos saberes docentes é importante não
negligenciarmos as dimensões temporais do saber profissional. Em outras palavras, o saber
pedagógico do professor está registrado, tanto na sua história de sua vida, quanto na
construção de sua carreira profissional. O que fica evidente na tipologia dos saberes docentes,
apresentada por Tardif & Raymond (2000), são os vestígios da socialização primária e escolar
do professor, conforme vimos com Berger & Luckmann (2000).
26
Uma boa parte do que os professores sabem sobre o ensino, sobre os papéis do
professor e sobre como ensinar provém de sua própria história de vida, principalmente de sua
socialização enquanto alunos. Há um conhecimento prévio repleto de crenças, de
representações e de certezas sobre a prática do professor que se cristaliza através do tempo de
tal forma que nem se abala, nem se modifica quando da formação profissional.
É a esse saber pedagógico que nos referimos, ao pesquisar as visões/ percepções que
os professores dos Ciclos I e II do Ensino Fundamental têm a respeito uns dos outros e do
trabalho que realizam.
Sendo assim, o saber pedagógico do professor exige conhecimento de vida, saberes
personalizados e competências que dependem de sua personalidade, de seu próprio saber-
fazer, e que têm suas origens na socialização primária e secundária, principalmente na
socialização escolar, enquanto estudante e, depois, como profissional, durante sua carreira.
1.2 As relações entre cultura escolar, cultura docente e identidade profissional docente
segundo Pérez Gómez e Luc Brunet
O termo cultura escolar já foi estudado por diversos autores, sob múltiplos pontos de
vista. Valer-nos-emos aqui do conceito de cultura escolar de Perez Gómez (2001), que retoma
em sua pesquisa diversos estudiosos do conceito de cultura, pondo em destaque a idéia de
cultura como resultado das interações humanas.
Ao estudar fenômenos culturais, o autor alerta que não podemos considerá-los “[...]
como entidades isoladas [...], é preciso situá-los dentro do conflito das relações sociais nas
quais adquirem significação” (Pérez Gómez, 2001, p.15). Tal processo é crucial para a
interpretação dos assuntos humanos em geral e, em particular, para a compreensão dos
fenômenos de socialização e educação escolar.
Para Pérez Gómez (2001), cultura é o:
[...] conjunto de significados, expectativas e comportamentos compartilhados
por um determinado grupo social, o qual facilita e ordena, limita e potencia
os intercâmbios sociais, as produções simbólicas e materiais e as realizações
individuais e coletivas dentro de um marco espacial e temporal determinado.
[...] é o resultado da construção social, contingente às condições materiais,
sociais e espirituais que dominam um espaço e um tempo. Expressa-se em
significados, valores, sentimentos, costumes, rituais, instituições e objetos,
sentimentos (materiais e simbólicos) que circundam a vida individual e
coletiva da comunidade. [...] (Pérez Gómez, 2001, p.17.)
27
Tal definição reforça a importância de buscarmos em Pérez Gómez o suporte teórico
para compreender a dimensão mais ampla, na qual as relações entre os professores estão
inseridas.
Mas a escola, assim como qualquer instituição social, “[...] desenvolve e reproduz sua
própria cultura” – uma cultura escolar, definida pelo autor como o “[...] conjunto de
significados e comportamentos que a escola gera como instituição social, as tradições,
costumes, rotinas e rituais e as inércias que a escola estimula e se esforça em conservar e
reproduzir” (Pérez Gómez, 2001, p.160).
Ou seja, é o sentido humano que torna a escola específica e peculiar. Brunet (1995)
retrata bem este sentido humano ao escrever sobre o papel do clima de trabalho
6
no
funcionamento de uma escola. Para este autor, “são os autores no interior de um sistema que
fazem da organização aquilo que ela é [...]” (Brunet, 1995, p.125), e a percepção que o
indivíduo tem age como “[...] um filtro que serve para interpretar a realidade e os
componentes da organização” (Brunet, 1995, p.126). Dessa forma, o clima organizacional
assume as seguintes características:
a) diferenciam uma dada organização, podendo considerar-se que cada escola
é susceptível de possuir uma personalidade própria, um clima específico; b)
resultam dos comportamentos e das políticas dos membros da organização
especialmente da direção, uma vez que o clima é causado pelas variáveis
físicas (estrutura) e humanas (processo); c) são percepcionadas pelos
membros da organização; d) servem de referência para interpretar uma
situação, pois os indivíduos respondem às solicitações do meio ambiente de
acordo com a sua percepção do clima; e) funcionam como um campo de
força destinado a dirigir as atividades, na medida em que o clima determina
os comportamentos organizacionais. (Brunet, 1995, p.126).
Três variáveis determinam o clima em um ambiente organizacional, agindo como
“catalizadoras dos comportamentos observados nos atores de uma organização” (Brunet,
1995, p. 128): a estrutura (características físicas da organização: dimensão, níveis
hierárquicos, descrição de tarefas, medidas de controle, dimensão dos setores, nível de
centralização, programa escolar); o processo organizacional (os recursos humanos na sua
forma de gestão, comunicação e resolução de conflitos; o estatuto de relações de poder; o
projeto educativo) e as variáveis comportamentais, o que engloba o comportamento
individual (personalidade, atitudes, capacidade) e coletivo (coesão do grupo, estrutura,
6
Brunet (1995) encontrou três definições distintas sobre clima. A definição que traduz melhor a maneira como
os trabalhadores vivem o clima em um ambiente profissional é a definição de autores como Campbell e Steers
28
normas, papéis). Segundo Brunet (1995), esta última variável desempenha um papel crucial
na produção do clima, num fenômeno cíclico. Por exemplo, a direção de uma escola pode
elevar o nível de controle sobre as atividades dos professores, pois eles podem não estar
atingindo as expectativas e isso pode provocar uma modificação na percepção do clima. Quer
dizer, a maneira como um ator responde a uma determinada situação altera o clima. Dessa
forma, “[...] o clima organizacional reporta-se às percepções dos atores escolares em relação
às práticas existentes numa dada organização” (Brunet, 1995, p. 128).
Quando combinadas – estrutura, processo organizacional e comportamentos dos atores
– estas variáveis configuram as dimensões do clima. Para Brunet (1995, p.129), não há um
consenso entre os estudiosos sobre clima organizacional quanto à quantidade de dimensões. O
que se pode afirmar é que na maior parte dos instrumentos que medem o clima consta as
seguintes dimensões comuns: autonomia individual (responsabilidade, independência, rigidez
das normas organizacionais, nível de poder de decisão); grau de estrutura imposto pelo cargo
que o indivíduo assume (objetivos e metas estabelecidos pela direção); tipo de recompensas,
promoção e ascensão profissional); consideração, calor e apoio (estímulo e motivação vindos
da direção).
Partindo dessas dimensões, Brunet (1995) categoriza clima em dois pólos: clima
aberto, onde o ambiente de trabalho é participativo e o indivíduo é reconhecido e valorizado
pelo seu potencial, e clima fechado, onde o ambiente de trabalho é rígido, autocrático e
constrangedor; o indivíduo que trabalha nesse ambiente não é ouvido nem considerado.
O autor assinala os estudos de R. Likert
7
que traça diferentes tipos de climas na
organização, a partir de oito dimensões, estabelecendo uma escala contínua que vai de um
sistema fechado (muito autoritário: não há confiança nos trabalhadores, o ambiente é
permeado de temores, punições e ameaças, as decisões são estabelecidas sempre e
exclusivamente pelo responsável, as necessidades individuais são resolvidas no plano
psicológico) até um sistema aberto (muito participativo: confiança nos trabalhadores, decisões
compartilhadas, recompensas, união de todos no alcance dos objetivos).
Os efeitos de um clima organizacional (seja ele aberto ou fechado) podem interferir
nos resultados tanto individuais como os de grupo e os da organização. De acordo com Brunet
(1995), quando o clima organizacional é participativo e aberto às mudanças, o indivíduo tem
consciência de que vai poder utilizar novos conhecimentos e de que o clima lhe proporciona
(em estudos publicados, respectivamente, em 1970 e 1977, segundo referências de Brunet), em que predomina a
percepção do indivíduo, a maneira como ele percebe o que está ao seu redor.
29
isso e o apóia no que ele necessita. Numa escola de clima aberto, o professor pode sentir-se
motivado e se empenhar em sua atualização, formação e aperfeiçoamento. Em um ambiente
fechado, o professor pode se tornar passivo, suas iniciativas podem ser vistas como algo
suspeito. Mesmo que aptidões, capacidades e personalidade interfiram no rendimento do
indivíduo, o nível de satisfação influencia nas relações interpessoais, na coesão do grupo de
trabalho e no grau de envolvimento do indivíduo na tarefa.
Pérez Gómez (2001) também se refere às relações interpessoais ao afirmar que a
cultura docente está impregnada de valores:
[...] se especifica nos métodos que se utilizam na classe, na qualidade, no
sentido e na orientação das relações interpessoais, na definição de papéis e
funções que desempenham, nos modos de gestão, nas estruturas de
participação e nos processos de tomada de decisões. Tudo isso compõe uma
estrutura de poder, um equilíbrio de interesses sempre parcial e provisório, e,
ainda que possamos distinguir tendências majoritárias que influem na cultura
docente durante um longo período de tempo, é verdade que a significação
concreta de tais aspectos comuns se especifica pelas características das
peculiares interações que definem cada contexto escolar. (Pérez Gómez,
2001, p.164.)
Direta ou indiretamente, a cultura docente dá forma à comunicação em cada sala de
aula e em cada escola. “[...] A qualidade educativa dos processos escolares reside na natureza
dos processos de comunicação que ali se favorecem, induzem ou condicionam” (Pérez
Gómez, 2001, p.165).
A cultura docente se diferencia pela sua forma e seu conteúdo. Enquanto forma, a
cultura docente está relacionada aos “[...] padrões característicos que manifestam as relações e
os modos de interação entre docentes; definem as condições concretas em que se desenvolve
o trabalho dos docentes, especialmente o modo como se articulam suas relações com o resto
dos colegas” (Hargreaves, apud Pérez Gómez, 2001, p.166). O conteúdo da cultura docente
refere-se aos “[...] valores, crenças, atitudes, hábitos e os pressupostos compartilhados por um
grupo de docentes ou por uma comunidade mais ampla [...] está relacionado de modo
fundamental com o conceito de educação [...]” (Pérez Gómez, 2001, p.166). Seus
componentes são:
[...] o currículo, os processos de ensino-aprendizagem, o sentido e os modos
de avaliação, a função da escola, a organização institucional, os próprios
papéis docentes, os processos de socialização dentro e fora da escola, o
desenvolvimento do indivíduo, o sentido e a evolução da sociedade.
7
Brunet (1995) se refere a: LIKERT, R. New patterns of management. New York: McGraw-Hill, 1961;
LIKERT, R. The human organization. New York: McGraw-Hill, 1967.
30
[...] (O conteúdo) está relacionado com a específica função social que a
escola adquire em cada época e em cada contexto, e sua regulação política e
administrativa, assim como o conhecimento pedagógico acumulado na
tradição teórica e prática deste âmbito acadêmico e profissional [...].(Pérez
Gómez, 2001, p.166.)
Pérez Gómez afirma que há algumas características que definem a cultura docente:
“[...] isolamento do docente e autonomia profissional; colegialidade burocrática e cultura de
colaboração; saturação de tarefas de responsabilidade profissional; ansiedade profissional e
caráter flexível e criativo da função docente” (Pérez Gómez, 2001, p.167). Por ser de interesse
para este estudo, vamos refletir sobre o “isolamento do docente e autonomia profissional”.
A cultura do docente vincula a defesa da autonomia e da independência profissional ao
isolamento, distância, falta de cooperação. Dissemina-se, dessa forma, a concepção segundo a
qual a sala de aula é o espaço onde o professor é “o dono e senhor soberano”.
Segundo Pérez Gómez (2001), o isolamento do professor provoca passividade,
reprodução conservadora, aceitação acrítica da cultura social, que dominam e reforçam o
pensamento prático e acrítico adquirido ao longo de seu percurso como aluno e profissional. E
por quê? Porque não há contraste, comunicação de experiências, possibilidades, idéias, trocas,
enfim, não há apoio afetivo próximo. E, ainda, o isolamento não estimula a criatividade e a
busca de alternativas originais; impede a colaboração, o enriquecimento mútuo; estimula a
competitividade, impedindo “a colaboração saudável” e levando o professor a adaptar-se à
rotina escolar sem refletir sobre ela. Segundo o autor, é “[...] a colaboração que respeita a
independência, e que permite enfrentar as resistências da instituição para melhorar a prática”
(Pérez Gómez, 2001, p. 169).
Segundo o autor, o isolamento pode estimular a balcanização das relações entre os
professores, ou seja, a fragmentação escolar: a divisão dos espaços e das áreas de
conhecimento leva a uma visão fragmentada do trabalho a ser realizado na escola – cada
grupo de professores na sua área de conhecimento se isola dos outros grupos, impedindo uma
identidade coletiva (cada indivíduo se identifica somente com seu subgrupo). Isso faz com
que a defesa dos interesses de cada grupo seja embasada num discurso de orientação e
compromisso político em defesa da promoção de seu subgrupo, aumentando a
competitividade e prejudicando o desenvolvimento cooperativo num projeto comum,
prejudicando, ainda, o acompanhamento do crescimento dos alunos, bem como uma
comunicação fluente com eles e com os colegas de trabalho (Pérez Gómez, 2001, p.170).
Tudo isso, na verdade, reforça valores relacionados com o individualismo “em torno
de uma concepção de aprendizagem como um fenômeno individual” (p.170). Estimula-se a
31
aprendizagem e o crescimento individual, criando na sala e na escola um ambiente
competitivo e nada solidário – “o êxito acadêmico de cada um parece exigir o fracasso dos
demais colegas”. Para Pérez Gomes (2001), este isolamento e estímulo ao trabalho individual
escondem “[...] os padrões de uma cultura uniforme que implica um modo de pensar e atuar
nitidamente obtuso e homogêneo” (p.170).
Para o autor, a cultura docente tal como está caracterizada leva ao conservadorismo. A
cultura escolar que é burocrática, conservadora e pragmática impõe sobre os indivíduos –
professores e alunos que nela vivem – “[...] uma maneira de pensar, sentir e atuar [...] que
sufoca as tentativas individuais de inovação como as possibilidades de crítica teórica” (Pérez
Gómez, 2001, p.179-180).
Para seu próprio desenvolvimento profissional, o professor deve conceber sua prática
como um processo permanente de aprendizagem, experimentação, comunicação e reflexão
compartilhada. (Pérez Gómez, 2001, p.180).
Estamos falando do crescimento profissional do professor. De acordo com Pérez
Gómez (2001), a transformação da escola – tão necessária nos dias de hoje – só se dará pelo
crescimento da qualidade do ensino. Qualidade esta que está intrinsecamente ligada a
mudanças no trabalho do professor, à sua melhoria e desenvolvimento profissional –
mudanças tão necessárias quanto a transformação da escola. Conhecimento teórico e
autonomia profissional são dois elementos que se complementam e são necessários na
configuração da identidade profissional docente. Nas palavras do autor:
[...] um corpo de conhecimentos teóricos sobre o objeto de estudo e
intervenção, em permanente evolução, considerado como conjunto provisório
e parcial de hipóteses de trabalho e uma relativa autonomia no trabalho [...] O
profissional reclama autonomia para o desenvolvimento de sua atividade,
porque se considera depositário privilegiado e não-exclusivo, de um
conhecimento especializado e específico que legitima a melhor racionalidade
de seus diagnósticos e suas práticas. Por outro lado, a contrapartida da
responsabilidade exclusiva que assume diante da sociedade, pela qualidade
de seu trabalho, com o grupo de estudantes a ele recomendados
não pode ser
outra senão o exercício autônomo de sua prática. (Pérez Gómez, 2001, p.
184.)
Para entender estes elementos é importante, primeiramente, considerar a natureza do
conhecimento especializado. Trata-se de um conhecimento que, segundo Pérez Gómez (2001,
p.185), “[...] proporciona aos práticos o sentimento próprio e o reconhecimento alheio de
pertencer a um grupo profissional, legitimado social e epistemologicamente para intervir com
certa autonomia e responsabilidade neste campo específico”. Para o autor, é inegável que o
32
alcance deste conhecimento requer “[...] condições materiais, sociais e escolares”, tanto para a
formação do professor quanto para o exercício de sua atividade docente. Tais condições estão
ligadas, atualmente, ao processo descrito por autores como Antonio Nóvoa (1986, 1998), A.
Hargreaves (1998a. e 1998b.), Tardif & Lessard (2005), entre outros, em estudos nos quais
explicitam os processos de intensificação, proletarização e profissionalização do trabalho
docente.
1.3 Profissionalização, proletarização e intensificação do trabalho docente e suas
implicações para a identidade profissional docente segundo Nóvoa, Apple, Hargreaves,
Tardif e outros
A profissionalização do professor, ao longo da história da profissão, deu-se através de
um processo, segundo o qual a criação de instituições de formação profissional, a relação que
se estabeleceu entre o saber e o saber-fazer, bem como o desenvolvimento das associações
profissionais docentes adquirem importância crucial. Historicamente, este processo se reveste
de conflitos e ambigüidades que nos remetem a um outro processo: o da desvalorização do
trabalho docente. As questões da proletarização e da intensificação do trabalho docente
tornam-se centrais nessa discussão e contribuem para uma maior compreensão de como a
identidade profissional docente vem se construindo ao longo do tempo.
O estudo de Rodrigues (1997), que analisa as perspectivas de interpretação para as
profissões no campo da sociologia e o de Nóvoa (1998), sobre a constituição da profissão
docente na Europa, contribuem para a compreensão do processo de construção do conceito de
profissionalização ao longo da história da sociologia.
O conceito de profissionalização, até a década de 1960, era baseado em ocupações
isoladas (as profissões liberais dominavam) e nas estruturas dessas ocupações. Segundo
Nóvoa (1998), com o trabalho de Harold Wilesnky (publicado em 1964) - The
profissionalization of everyone? – o conceito de profissionalização passa a ter como base uma
seqüência de etapas ou eventos que são seguidos pelos grupos ocupacionais até chegarem ao
estágio de profissão (de uma atividade amadora a uma atividade de tempo integral; fixação de
um controle sobre a formação profissional; criação de associação profissional; proteção legal
e definição de um código de ética).
Para Nóvoa (1998):
33
A definição de uma profissão é o eixo sobre o reconhecimento e o prestígio
acordado pela sociedade que, ao utilizar seu poder de classificação e
categorização do mundo, vai outorgar a um grupo profissional o controle (e o
monopólio) de um certo domínio do trabalho, ao mesmo tempo em que,
confiando um mandato para definir as regras as quais deve obedecer, o
exercício de uma atividade. (p.149).
Rodrigues (1997) afirma que após passar por um período caracterizado “pela
emergência de uma pluralidade de orientações paradigmáticas e metodológicas” (p. 4), entre
as décadas de 1970 e 1980, a sociologia das profissões na década de 1990 é considerada em
uma dimensão histórica (o tempo), em uma dimensão local (diferentes profissões em uma
mesma formação social) e em uma dimensão internacional (as mesmas profissões em
diferentes países).
O conceito de Wilensky, segundo Rodrigues (1997), apesar de ser mais citado na
literatura da sociologia das profissões, não é um conceito estável. A idéia de
profissionalização como um processo banalizou-se e também foi utilizado sem rigor e sem
maiores discussões, servindo para designar diversas situações.
De acordo com Rodrigues (1997), na Europa do final da década de 1980, vários
estudos foram desenvolvidos sobre profissionalização, buscando substituir a perspectiva
estática por uma perspectiva dinâmica, trazendo a este conceito uma abordagem processual,
colocando as questões históricas como ponto central
8
:
O que muitos dos estudos históricos permitem observar e concluir é que as
formas de organização profissional resultam de processos históricos
contingentes, quase sempre envolvendo processos de negociação e conflito,
diferentes agentes, segmentos, etc, assumindo particular relevo a diversidade
interna e a estratificação do próprio grupo ocupacional; por outro lado, sob a
capa do profissionalismo esconde-se uma grande variedade de ideologias
ocupacionais [...] (Rodrigues, 1997, p. 107.)
No final da década de 1990, ao discutir o processo de profissionalização do magistério
em Portugal em uma perspectiva histórica, Nóvoa (1998) critica as teorias funcionalistas e
argumenta que a profissionalização docente não se deu em uma “história natural”, mas por
meio de vários processos. O autor defende, ainda, que no final de século XX as profissões já
eram pesquisadas através de uma sociologia que interrogava seu papel social e político,
deixando de lado “a ideologia da neutralidade social e do caráter antiburocrático das
profissões” (Nóvoa, 1998, p.149). Ou seja, as profissões já estavam sendo estudadas dentro
8
Destacam-se, segundo Rodrigues (1997), os estudos de Andrew Abbott (The order of professionalization: an
empirical analysis, publicado em 1991).
34
das relações de poder e de estratégias de produção e reprodução social, possibilitando, dessa
maneira, sua análise crítica e, conseqüentemente, uma compreensão maior dos pontos mais
importantes que estão por trás das diversas formas de organização profissional e, mais ainda,
situando estes pontos historicamente. Dessa maneira, a profissão é encarada como um
conjunto de meios que possibilitam seu controle, uma forma de controle político do trabalho,
adquirido ao longo de seu processo histórico. Nóvoa (1998) lembra ainda que “[...] os
conceitos de profissão e de profissionalização não têm os mesmos sentidos nas diferentes
regiões do mundo e que seu uso é até fortemente influenciado pelo universo anglo-americano”
(p. 150). No entanto, a palavra profissão já faz parte dos discursos no campo educacional, e a
expressão profissionalização é utilizada para colaborar no entendimento dos processos que
buscam promover o status do professor, o que envolve, segundo Nóvoa (1998), a “[...]
organização dos saberes especializados, a reivindicação de uma maior autonomia profissional,
a definição de regras éticas e deontológicas, a melhoria dos níveis salariais, etc [...] (e) para
compreender a reorganização dos dispositivos de controle e de regulação da profissão
docente” (p.150)
9
.
Os professores se constituíram como profissionais do ensino em um processo que se
organizou a partir da evolução do estatuto social e econômico dos professores e as relações
com outros grupos sociais. Um processo que, segundo Nóvoa (1986), se deu em duas
dimensões: pela construção de um corpo de conhecimentos e técnicas específicas da profissão
docente e pela organização de um conjunto de normas e valores que vão orientar o exercício
da profissão; e, em quatro etapas: 1) ocupação principal da atividade docente: por volta do
final do século XVIII, na maior parte dos países europeus, o estado cria condições para que a
profissão de ensinar fosse uma atividade de tempo integral e meio de subsistência; 2) a licença
para o exercício do professor instituída pelo Estado, dando à atividade profissional docente
um suporte legal, o que pressupõe o estabelecimento de regras; o professor então se afirma
como profissional com dependência do Estado
10
; 3) a criação de instituições específicas para a
9
A análise de Nóvoa (1998) alcança uma dimensão histórica, intrinsecamente relacionada com as questões de
poder/ saber no interior de um grupo profissional e nas relações com o Estado e a sociedade. Isto implica voltar a
atenção sobre o papel que o Estado cumpre nos diferentes processos de profissionalização. Para tanto, Nóvoa
cita Magali Larson (1988 – The Rise of Profissionalism: A Sociological Analysis) ao lembrar que as profissões
constituem a ligação material entre Estado e o desenvolvimento de um certo número de conhecimentos
especializados dentro da sociedade civil.
10
Rodrigues (1997) afirma que há um consenso entre diversos autores (mesmo que suas teses se apresentem
diferentes) que, para compreendermos as profissões nas sociedades contemporâneas, é preciso compreender as
relações entre os professores e o Estado. Ela cita Martin Lawn que considera o “poder” que o Estado exerce de
maneira sutil um fator emblemático na construção da identidade profissional docente.
35
formação profissional docente
11
, com um currículo específico – conhecimento instrumental –
controlado pelo Estado; 4) a constituição de associações profissionais de professores
12
.
As instituições de formação e as associações colaboram também na definição de um
conjunto de normas e valores que rege a prática profissional e as relações estabelecidas entre
os profissionais da área. As “normas e valores dos professores se definem primeiramente
frente a uma dimensão social (a escola e seu papel no progresso) e em seguida a uma
responsabilidade pedagógica (as crianças e seus direitos enquanto estudantes)” (Nóvoa, 1998,
p.162). Partindo dessas duas dimensões, dá-se início à ética da profissão docente e as
conseqüências relacionadas à sua regulação.
Outro aspecto fundamental ao analisarmos as várias dimensões e etapas do processo
de profissionalização docente é a compreensão do processo evolutivo da imagem social e do
estatuto profissional dos professores.
A questão do prestígio da profissão docente nos remete a outro aspecto, ao da imagem
social e estatuto econômico dos professores. Nóvoa (1998) afirma que “a segunda metade do
século XIX é uma época chave para compreender a ambigüidade da posição dos professores,
e também o aperfeiçoamento de seu estatuto sócio-econômico” (p. 162), pois é nessa época
que as Escolas Normais e universidades de formação de professores são criadas, e há um
amplo desenvolvimento do modelo escolar, além da crença na educação como fator de
progresso e desenvolvimento do país, o que faz do acesso à profissão docente um desejo de
diferentes camadas sociais, e da carreira docente, um caminho de ascensão. Tornar-se
professor significava escapar de uma imagem de proletário, de artesão. É dessa maneira que
os professores primários, com relação ao seu saber, sentem-se superiores, mesmo recebendo
pouca remuneração.
Já os professores secundários, de origem social mais abastada, até a metade do século
XX, fazem parte da elite. A diferença na formação universitária, nos salários e nas teias de
11
Segundo Nóvoa (1998), é preciso considerar como a profissão docente se organiza como um corpo de saberes
e de saber-fazer, analisando o processo evolutivo das instituições de formação docente e o papel que
desempenham na produção dos saberes profissionais. Para o autor, a fase mais importante do processo de
profissionalização é quando as instituições de formação do professor são criadas, em um movimento
embrenhado pelos próprios professores e o Estado. Aqueles acreditavam que as instituições de formação de
professores implicariam em uma melhoria de seu estatuto profissional, e o Estado via nelas um instrumento de
controle sobre o corpo docente.
12
Segundo Nóvoa (1998), a constituição de associações profissionais consolida um corpo profissional único, e
isso não se faz sem conflitos e enfrentamentos éticos, ideológicos e políticos. De acordo com Vicentini (2005), o
movimento de organização dos professores em prol de melhorias no seu estatuto profissional se deu de maneiras
diferentes em cada estado (cada um com uma situação sócio-econômica própria), estabelecendo um processo de
profissionalização do grupo de professores configurado de diversas maneiras.
36
relações sociais, culturais e políticas, já favoreciam uma distância visível entre os professores
primários e secundários.
Enfim, Nóvoa (1998) chama a atenção para um processo de profissionalização que se
constrói externamente. A história da profissão docente está intimamente ligada ao espaço que
seus membros ocupam nas relações de produção e aos papéis que eles representam na
conservação de uma ordem social
13
.
Sob outro prisma, Nóvoa (1998) cita Philippe Perrenoud, que afirma que a imagem
pública docente é um desafio não só para os próprios professores, como também para as
organizações que os formam e os empregam. Em outras palavras, as instituições de formação
docente e as empregadoras influenciam na imagem pública do professor, na medida em que
seu prestígio, seu rendimento e seu poder estão dependentes do prestígio do professor.
Do início dos sistemas de ensino do Estado ao final do Antigo Regime, quando se
consolida a escola de massas, isto é, até os anos 1920/1930, Nóvoa (1998) afirma que temos o
primeiro ciclo de profissionalização dos docentes. O fim de um ciclo histórico na organização
e no desenvolvimento da profissão docente é marcado pela consolidação da escola de massas,
a consolidação do estatuto dos professores e o estabelecimento de uma certa imagem
profissional.
Os estudos de Nóvoa (1998) revelam um desenvolvimento no processo de
profissionalização docente quando seu corpo profissional se compõe de maneira relativamente
estável e se consolida frente a um certo número de regras no que concerne à formação, ao
exercício e à atividade profissional em si. Um desenvolvimento que se dá também com lutas e
13
Outra questão importante na análise do processo evolutivo da imagem social e do estatuto econômico dos
professores é a feminização deste grupo profissional. Nóvoa (1998) questiona os estudos que indicam que a
profissão docente é desvalorizada porque a maioria de seus membros é constituída de mulheres, isto é, os estudos
vêem este processo de feminização de maneira negativa, como se as mulheres fossem um “obstáculo” à melhoria
da imagem e estatuto profissional docente. Para o autor, essa questão é muito mais complexa. Ele afirma que
para uma apreensão real do processo de feminização docente e sua contribuição positiva na definição dessa
profissão, é necessário buscarmos ferramentas conceituais mais sofisticadas. Além disso, em uma perspectiva
histórica, a feminização do corpo docente torna-se importante no processo de profissionalização desta atividade.
A feminização se revela um elemento importante no processo de construção da identidade profissional docente.
Da mesma maneira, por razões políticas, sociais e culturais, os professores foram apartados, gradativamente, do
cenário público. Os discursos de sacerdócio, missão e vocação da profissão, nos anos 1930, revalidam o
retraimento docente. “[...] se tem a impressão que o silêncio vai cair sobre eles e aprisioná-los no interior dos
espaços escolares. [...] O ofício do professor se acomoda a uma identidade feminina e isto se arrasta numa
imagem, de preferência, privada” (Nóvoa, 1998, p.165). Paralelamente, observa-se que, principalmente os
professores primários (na maioria, mulheres) tornam-se objetos de controle, incidindo sobremaneira nas questões
de profissionalização. Por volta da metade do século XX, quando as mulheres são maioria no corpo docente
primário e já ocupam de maneira significativa o ensino secundário, a imagem feminina da profissão docente se
estabelece de maneira definitiva.
37
contradições e no qual o processo de desprofissionalização/ proletarização também está
presente e indo de encontro aos aspectos de afirmação profissional dos professores.
Proletarização e intensificação do trabalho docente
Proletarização e ambigüidade da profissão docente
Na história da profissionalização docente, os professores se constituíram como corpo
profissional dentro de um processo ambíguo, no qual as lógicas de desvalorização e de
controle autoritário da profissão pelo Estado se misturam com elementos de afirmação
profissional. Nóvoa (1998) cita Martin Lawn e Jenny Ozga
14
, que definem este processo como
desprofissionalização ou proletarização. Um processo caracterizado pela:
[...] separação entre concepções e suas implantações, o que origina uma tutela
dos experientes sobre os professores; a estandartização das tarefas, o que
provoca uma definição técnica e instrumental dos professores; a redução das
remunerações, o que origina a desvalorização de seu estatuto sócio-
econômico; a intensificação das exigências com relação à atividade escolar
cotidiana, o que transforma mais difícil a aproximação reflexiva das práticas
pedagógicas. (Nóvoa, 1998, p. 167).
O processo de proletarização resulta na desqualificação do profissional e na
fragilidade de sua autonomia no ambiente de trabalho, rompe com as relações entre
empregados e empregadores, promove a queda das habilidades específicas à atividade e
amplia o controle burocrático.
Tardif & Lessard (2005), em outra perspectiva de análise da profissão docente, ao
abordarem a questão da autonomia profissional afirmam que [...] os professores sempre
foram um corpo de executantes, que como tal, nunca participou da seleção da cultura escolar e
da definição dos saberes necessários para a formação dos alunos [...]” (p. 78). A tarefa de
executar é característica da economia capitalista da sociedade, em que “[...] a posição dos
14
Segundo Nóvoa (1998), Ozga e Lawn (em artigo publicado em 1991), ao discutirem perspectivas de análise da
proletarização docente, criticam a definição de proletarização de Braverman (1974) que a conceituava como um
“[...] processo que resulta quando o trabalhador é privado da capacidade para ao mesmo tempo planejar e
executar o trabalho, isto é, a separação entre concepção e execução, e a divisão da execução em partes separadas,
controláveis e simples” (p. 142). Os autores defendem que, ao observamos o processo de proletarização, temos
que o fazer em uma perspectiva histórica. Quando iniciam a carreira, os professores fazem parte de um
determinado contexto histórico já estabelecido
.
38
trabalhadores se define globalmente pela ausência de controle sobre o processo de trabalho,
seus conteúdos e seu desenvolvimento [...]” (p.78-79).
De acordo com Nóvoa (1998), a autonomia profissional do professor, em outras
palavras, a regulação interna ou externa da profissão docente, é uma questão que está no
centro do processo de proletarização.
Para Nóvoa (1998), a racionalização e a privatização do ensino são dois momentos de
um mesmo processo de controle externo da profissão docente. Eles fazem parte de uma
agenda política que tende a definir os professores por critérios de racionalização técnica, os
quais reforçam as imagens entre teoria e a prática e a ambigüidade de suas relações no saber.
Enquanto os especialistas da educação discursam sobre a autonomia, as capacidades de auto-
reflexão ou qualificações acadêmicas e científicas dos professores, as reformas no sistema
educacional tentavam legitimar uma descentralização que levaria a um maior domínio sobre a
atividade docente. No entanto, com o objetivo de aprimorar a qualidade e a eficácia dos
sistemas de ensino, as políticas educativas apelam aos mais experientes, pois estes impõem
procedimentos rígidos de avaliação e de controle dos conteúdos, dos processos e dos
resultados do trabalho escolar. Segundo Nóvoa, os professores tornam-se profissionais
conformistas com tal situação, realizando suas atividades apenas seguindo orientações
técnicas, colocando em risco sua autonomia profissional
15
.
As políticas neoliberais que instituíram novas normas ao trabalho docente e as “leis do
mercado” que reconfiguram o espaço educacional definem a privatização do ensino.
Estratégias empresariais e de gestão do professor passam a substituir os mecanismos
administrativos ou burocráticos do ensino. A descentralização consagra estratégias políticas
baseadas em controles muito próximos da atividade docente, tanto dirigidos às autoridades
locais, como através de uma lógica de prestação de contas aos “clientes”. A autonomia
15
Apple & Teitelbaun (1991) afirmam que a categoria docente está perdendo o controle de sua atividade. As
transformações que vêm ocorrendo no ensino estão exercendo uma grande influência sobre “como” os
professores realizam sua atividade e a “quem” caberá avaliá-los. São mudanças nas estruturas que controlam a
atividade docente e que, de maneira significativa, implicarão na formação crítica dos alunos, além de
contribuírem no processo de proletarização do professor mais intenso. O professor tem até mesmo a idéia de que
as tarefas que lhe são impostas, e as responsabilidades que lhe recaem e que promovem seu desânimo
profissional estão mais relacionadas a problemas psicológicos individuais do que aos aspectos de alienação do
contexto social, cultural e econômico, que interferem em
sua tarefa docente. Uma alienação que traz como
conseqüência docentes “executores” de idéias, planejamentos e propostas de uma ideologia dominante. A
necessidade que o professor “assalariado” tem de se adequar ao sistema organizacional para não perder o seu
emprego, a falta de experiência que o material curricular “pré-empacotado” acarreta, de acordo com os autores,
limita as tentativas de se rebater tal situação. Retomaremos essa questão com Gimeno Sacristán (1998), mais
adiante.
39
docente implica em uma auto-regulação, não só individual, como coletiva, abrangendo
critérios engendrados no exterior desta atividade profissional.
Racionalização e privatização, neste sentido, demonstram claramente as tendências
contraditórias nas relações entre Estado e professores: enquanto o discurso coloca a atividade
docente como “missão de prestígio”, instauram-se controles estatais e científicos rígidos que
desvalorizam a competência docente.
Apple & Teitelbaun (1991), ao discutirem estas questões nos Estados Unidos, também
falam sobre o processo de trabalho docente e a racionalização pela qual essa profissão vem
passando, enfatizando os mecanismos de controle e as mudanças nas novas políticas. Cada
vez mais surgem especialistas para pensarem e planejarem o que os professores vão executar.
As conseqüências disso são várias, mas duas chamam a atenção dos autores: 1) a divisão entre
concepção e execução de maneira que o professor deixa de ter a visão completa do processo
de seu trabalho e perde o controle desde o planejamento até sobre sua própria atividade; 2) a
perda desse controle tem como conseqüência a desqualificação do profissional docente. As
habilidades de planejamento e controle da própria atividade vão se atrofiando, facilitando e
ampliando as tarefas dos especialistas e dirigentes. “Um princípio emerge aqui: [...] a falta de
uso leva à perda” (Apple & Teitelbaun, 1991, p. 65).
No Brasil, também os exemplos são claros. Há exames nacionais de avaliação nos
vários níveis de ensino. Avaliações que, ao cabo de sua análise, segundo Apple & Teitelbaun
(1991), vão se constituir em relatórios que desprezam elementos importantes do processo,
pois são “[...] avaliações [...] simplistas de problemas educacionais (ou soluções simplistas
[...]), relatórios que demonstram o crescente poder das ideologias conservadoras em nosso
discurso público” (p. 66). Apesar de serem realizados como forma de “controlar a qualidade
do ensino”, são instrumentos “reducionistas” e “pouco reflexivos”. Neste processo, os
professores são pressionados a “prepararem” seus alunos para tais avaliações, revelando que
por trás disso há um processo de intervenção estatal no ensino e no currículo.
Nóvoa (1998) afirma que, no final do século XX, os professores são vistos de maneira
ambígua: profissionais de pouca competência e pouco qualificados, mas que são a esperança
de transformação social e cultural. E neste cenário, a identidade profissional docente vai se
construindo num contexto de um “jogo de poderes e contra-poderes” entre o real e o ideal,
que obriga a uma nova definição da profissão docente.
A ambigüidade da profissão docente também é retratada por Fernandes Enguita (1991)
ao abordar profissionalização e proletarização docente nos Estados Unidos. Para este autor, a
profissão docente é carregada de heterogeneidade – há diferenças entre os professores dos
40
diversos níveis de ensino, do ensino privado e público, que remetem a questões diversas,
complexas e amplas.
Fernandes Enguita (1991) afirma que a profissionalização é mais do que um processo,
sendo uma forma de politização. O autor faz uso do termo profissionalização e proletarização
em uma perspectiva marxista:
O termo “profissionalização” não se emprega [...] como sinônimo de
qualificação, mas como expressão de uma posição social e ocupacional, da
inserção em um tipo determinado de relações sociais de produção e de
processo de trabalho. No mesmo sentido, [...] o termo “proletarização” [...]
deve se entender livre de conotações superficiais que o associam
unilateralmente ao trabalho fabril. (Fernandes Enguita, 1991, p. 41)
O termo proletário é definido por Fernandes Enguita (1991) para aquele trabalhador
que vende sua força de trabalho, ao invés de fazê-lo pelo resultado de seu trabalho. É aquele
trabalhador que produz muito mais do que recebe e que não tem controle sobre os meios, os
objetivos e o processo de seu trabalho. Os professores não podem ser comparados aos
operários de uma fábrica, por exemplo, mas Fernandes Enguita descreve alguns exemplos que
demonstram que a categoria docente está num processo de proletarização: a maioria dos
docentes é assalariada; a autonomia profissional é parcial e restrita – “[...] o docente tem
perdido progressivamente a capacidade de decidir qual será o resultado de seu trabalho [...]”
(Fernandes Enguita, 1991, p. 48). Enfim, há características de classe operária, mas que podem
ser compartilhadas com características de grupos profissionais. É possível ver a proletarização
da categoria docente pelo “[...] seu crescimento numérico, a expansão e concentração das
empresas privadas do setor, a tendência ao corte dos gastos sociais, a lógica controladora da
Administração pública e a repercussão de seus salários sobre os custos da força de trabalho
adulta” (Fernandes Enguita, 1991, p. 49).
Por outro lado, há fatores que atuam na profissionalização da categoria docente,
lutando contra sua proletarização. O que importa, segundo Fernandes Enguita, é que há uma
especificidade na profissão docente que não pode ser desconsiderada:
[...] a categoria dos docentes se move mais ou menos em um lugar
intermediário e contraditório entre os dois pólos da organização do trabalho e
da posição do trabalhador, isto é, no lugar das semiprofissões. Os docentes
estão submetidos à autoridade de organizações burocráticas, sejam públicas
ou privadas, recebem salários [...] baixos e perderam praticamente toda
capacidade de determinar os fins de seu trabalho. (Fernandes Enguita, 1991,
p. 49.)
41
Tardif & Lessard (2005) também defendem a especificidade da profissão docente.
Para eles a docência é “[...] uma atividade em que o trabalhador se dedica ao seu ‘objeto’ de
trabalho, que é justamente um outro ser humano, no modo fundamental da interação humana
(p. 08). É um trabalho essencialmente interativo, uma atividade profissional de características
peculiares, distinguindo-se, até mesmo, de outras atividades profissionais com seres humanos.
“[...] Enquanto trabalho interativo, a docência possui características peculiares que permitem
distingui-la de outras formas de ‘trabalho humano’ [...], sobretudo as formas hoje dominantes
que são o trabalho com objetos materiais e a técnica, bem como o trabalho com o
conhecimento e a informação [...]” (Tardif & Lessard, 2005, p. 9).
Os aspectos levantados sobre a proletarização da profissão docente supõem, de
maneira implícita, que o professor não necessita de uma formação muito aprofundada, na
medida em que ele vai apenas executar o que outros pensam e, conseqüentemente, sua
remuneração pode ser menor.
Nos dias atuais, são visíveis os interesses e métodos empresariais que dominam não
apenas o discurso econômico, como também dentro das escolas. Uma ideologia marcada por
aspectos capitalistas tem adentrado as escolas pela porta do currículo: “[...] Uma ética do
lucro e do ganho privado está não apenas deslegitimando uma visão educacional mais
progressista” (Apple & Teitelbaun, 1991, p. 71).
A intensificação do trabalho docente
Fullan & Hargreaves (2000) reconhecem que a “[...] imposição de prioridades
curriculares nacionais e regionais, bem como esquemas de reconhecimento e testagem para
monitorar e avaliar professores e alunos” (p. 17) ocasiona, entre vários fatores, uma
sobrecarga no trabalho do professor.
Esta sobrecarga é definida por Apple (1995) como uma intensificação da atividade
profissional docente, quando se degradam os privilégios que a tarefa profissional traz ao
trabalhador. O autor afirma que a intensificação:
[...] tem vários sintomas, do trivial ao mais complexo – desde não ter tempo
sequer para ir ao banheiro, tomar uma xícara de café, até ter uma falta total de
tempo para conservar-se em dia com sua área. Podemos ver a intensificação
atuando mais visivelmente no trabalho mental. No sentimento crônico de
excesso de trabalho, o qual tem aumentado ao longo do tempo. (Apple, 1995,
p. 39)
42
Os efeitos da intensificação podem ser muitos. Apple (1995) destaca: a crescente
dependência do profissional de situações formuladas previamente, o que promove ainda mais
a subordinação a regras burocráticas; a deterioração da sociabilidade, na medida em que os
momentos de lazer se perdem – o que promove ainda mais o isolamento; a busca de soluções
para os problemas mais imediatos sobrepondo momentos de especialização, formação
contínua, pesquisa, etc, isto é, a desqualificação mental, que acarreta uma dependência ainda
maior dos “especialistas em educação”. Tais aspectos influenciam diretamente na qualidade
do ensino.
Para Tardif & Lessard (2005), a atividade docente tem ainda uma característica
peculiar: o objeto de trabalho do professor – o aluno – é um objeto social, isto é, [...] vive
em diversos mundos socializados: família, quarteirão, grupos de jovens, atividades de lazer,
etc [...]” (p. 67), de maneira que este objeto escapa das mãos do professor. Tal característica já
indica que o professor não é o único responsável pelo sucesso ou fracasso escolar do aluno,
pois ele não tem controle total sobre ele. Na verdade, para que o professor atinja seu objetivo,
ele precisa que o aluno participe do processo, o que a pedagogia chama de motivação.
[...] Os alunos vão à escola porque são obrigados: uma das tarefas mais
difíceis e constantes dos docentes é transformar [...] obrigação social em
interesse subjetivo. Todos os docentes o afirmam: nada é mais difícil do que
ensinar a alunos que não querem aprender, alunos que recusam, não o
professor, mas a escola em geral e ter que estar aí. (Tardif & Lessard, 2005,
p. 68.)
Segundo Tardif e Lessard (2005), essa é uma das questões que mais contribuem para a
fatiga do profissional docente, que se vê, cotidianamente, obrigado a lidar com a “motivação”
do seu objeto de trabalho – o aluno: “[...] Alguns vivenciam isso como um ‘sentimento de
impotência’ para ajudar os alunos, enquanto outros vêem nisso um desafio constante e
positivo para sua própria ação [...]” (p. 68).
Outro fenômeno fundamental que colabora no stress do profissional docente é o fato
de que ele lida com coletividade humana. Este é um dos aspectos que lhe diferencia de outros
profissionais de relações humanas, como o médico, o advogado, o psicólogo. Contudo, a
profissão docente também é uma profissão isolada. O professor se isola diante do coletivo de
alunos, o que traz algumas conseqüências. De acordo com os autores, o isolamento contribui
para uma autonomia do trabalhador, no entanto, concomitantemente, torna-se um peso
significativo, pois o docente se vê sozinho em sua atividade profissional.
[...] Trabalhando em solidão e de maneira perfeitamente visível diante de um
público de alunos, o professor nunca pode furtar-se ao olhar dos alunos, o
43
que pode ocasionar certa vulnerabilidade, visto que, como dizia um professor
ginasial [...] ‘não se pode esconder nada diante dos alunos’, nem mesmo suas
dificuldades e emoções. (Tardif & Lessard, 2005, p. 69.)
Os alunos são, também, seres sociais que se definem, em parte, “[...] por sua situação
socioeconômica, seus valores, suas crenças, seus interesses, etc [...]” (Tardif & Lessard, 2005,
p.70), de maneira que o docente também deve ajustar sua atividade levando em conta tais
características de seus alunos. E ainda, os alunos são seres humanos, “[...] dotados de
liberdade, de autonomia e, portanto, de poder, ou seja, da capacidade de agir sobre o mundo e
sobre as outras pessoas a fim de modificá-las e adaptá-las a seus projetos, necessidades e
desejos [...]” (Tardif & Lessard, 2005, p.70). O que também caracteriza o trabalho docente
como uma atividade de grande visibilidade: “[...] o professor é visto e olhado pelo seu objeto
de trabalho [...]” (Tardif & Lessard, 2005, p.70) que, não podemos esquecer, é um “coletivo”.
Nesse coletivo, cada aluno tem sua importância e o professor deve se ocupar igualmente de
cada um deles; no entanto, cada aluno é único, tem suas necessidades e expectativas
particulares.
Em outras palavras, o professor trabalha com e sobre seres humanos. Seres que se
caracterizam por possuírem características psicológicas e físicas que precisam ser respeitadas
e, portanto, implicam que o docente conheça-as e as respeite, ajustando-as à sua atividade
profissional.
Muitos professores, segundo Tardif & Lessard (2005), optaram por sua profissão por
conta desse relacionamento, a fim de ajudar crianças e/ou jovens. Uma relação marcada
também pela disparidade entre idades, expectativas e responsabilidades. O professor se vê
como responsável pelos seus alunos. “[...] essa responsabilidade está no âmago de sua tarefa e
cada professor precisa lhe dar sentido” (Tardif & Lessard, 2005, p.70). Um sentido que, de
acordo com os autores, se expressa em questionamentos dos professores, tais como: Onde
termina minha tarefa? O que posso fazer para ajudar e apoiar meus alunos?Até onde posso
ir?Devo lutar contra a ação dos pais?Posso me opor às crenças religiosas de algumas
famílias? Como devo reagir diante do uso de drogas e as relações sexuais de meus jovens
alunos? São indagações que podem desembocar sentimentos de culpa e sofrimento, ou
provocar “[...] uma couraça de indiferença e de racionalização diante da impotência para
ajudar alguns alunos” (Tardif & Lessard, 2005, p. 71).
44
Para completar, a sala de aula tem características específicas. Tardif & Lessard (2005)
relembram as características estabelecidas por W. Doyle
16
:
[...] a classe comporta as seguintes características: nelas são produzidas
tarefas e acontecimentos múltiplos e simultâneos, que se desenvolvem de
acordo com certa imediatez e certa rapidez; têm um pouco de previsibilidade;
são visíveis, ou seja, públicos; enfim se desenvolvem de acordo com uma
certa trama temporal, histórica, que remete às suas conseqüências sobre os
acontecimentos e as tarefas futuras na classe. (Apud Tardif & Lessard, 2005,
p. 72)
Tardif e Lessard (2005) acrescentam mais duas características: a interatividade
(professor e alunos interagem uns em função dos outros) e a dimensão simbólica e
interpretativa que os acontecimentos e as tarefas trazem consigo.
[...] numa sala de aula acontecem interações significativas (e não apenas
comportamentos físicos ou processos de tratamento da informação); essas
interações procedem de significações e interpretações elaboradas
constantemente pelos atores para compreender a ação dos outros e torná-los
compreensíveis aos outros. (Tardif & Lessard, 2005, p. 72)
As dimensões de multiplicidade, simultaneidade, imediatez, rapidez, visibilidade,
imprevisibilidade e historicidade, para os autores, estão presentes no trabalho do professor
com seus alunos, por ser um trabalho interativo e significativo. Isto é, por trabalhar com “[...]
um coletivo humano segundo modalidades de interações e de significações que o docente se
confronta com outras dimensões fundamentais da complexidade de sua tarefa” (Tardif &
Lessard, 2005, p.72).
A organização escolar também tem características específicas:
[...] A cultura escolar impõe à vasta maioria dos alunos, como cultura escrita,
codificada, formalizada, uma verdadeira ruptura em relação ao seu universo
cotidiano. A escola moderna é um ambiente cultural e socialmente separado
do universo ambiental, um ambiente formal regido por exigências que têm
muito pouco a ver, geralmente, com a realidade familiar e social. (Tardif &
Lessard, 2005, p. 73.)
Uma das tarefas do professor é “[...] condicionar os alunos a esta cultura estranha,
fazer com que eles a interiorizem e acabem por conhecê-la, ou mesmo reconhecer-se nela”
(Tardif & Lessard, 2005, p.74)
17
. Há uma dualidade de funções: a instrução e a moralização,
o que confere à escola um papel de agente moral e de instrutora, revelando que a atividade
docente não é apenas uma profissão para a instrução, é também uma “profissão moral”.
16
Tardif & Lessard (2005) se referem a: DOYLE, W. 1986. Classroom organization and management. In:
WITTROCK, M.C. 1986. Handbook of Research on Teaching. Nova York: MacMillan.
45
[...] a realização dessa dupla função (moralização e instrução) se resolve, em
princípio, graças ao tempo escolar, ou seja, por um contato freqüente e
prolongado dos alunos com a escola, e isso com uma duração cada vez maior.
[...]. Graças à longa duração [...] a maioria das crianças acaba se socializando
e assimilando, individualmente falando, as normas e conhecimentos que
estão na base da vida em sociedade. (Tardif & Lessard, 2005, p. 75)
Mas se o tempo é um aliado do professor neste aspecto, por outro lado, ele se torna um
vilão. A estrutura temporal da organização escolar é um exemplo do quanto se exige do
professor.
O tempo escolar é constituído, inicialmente, por um continuum objetivo,
mensurável, quantificável, administrável. Mas, em seguida, ele é repartido,
planejado, ritmado de acordo com avaliações, ciclos regulares, repetitivos.
Essa estruturação temporal [...] puxa constantemente para frente, obrigando-
os (os professores) a seguir esse coletivo e abstrato que não depende nem da
rapidez nem da lentidão do aprendizado dos alunos. Essa temporalidade
reproduz em grande escala o universo do mundo do trabalho, cadenciado
como um relógio; ela arranca as crianças da indolência e da acronia das
brincadeiras para mergulhá-las num mundo onde tudo é medido, contado e
calculado abstralmente: tal dia, tal hora, elas deverão aprender tal coisa,
numa duração predeterminada e sobre o que serão avaliadas mais tarde, às
vezes muito depois. Esse tempo escolar, portanto, é o tempo “sério”,
“importante”, com conseqüências graves para o futuro: os atrasos, as faltas,
as ausências, os descuidos, se acumulam e passam a contar, constituindo
fatores de fracasso ou de sucesso, enfim, de diferenciação escolar e, mais
tarde, social. (Tardif & Lessard, 2005, p. 75 e 76)
Para Tardif e Lessard (2005), o tempo escolar não é uniforme. É um tempo formador e
forçado, quer dizer, impõe normas gerais sem considerar as especificidades individuais e é um
tempo social e administrativo imposto aos alunos. Nesse sentido, uma das tarefas essenciais
dos professores é garantir que os alunos estejam em contínua atividade. “[...] não ter mais o
que dizer ou fazer, quando ainda sobra tempo à disposição, é um dos pavores básicos dos
professores, e o temor que isso gera é, geralmente, muito importante no início de sua carreira”
(Tardif & Lessard, 2005, p. 76).
Os autores afirmam, também, que o tempo escolar possui uma forte dimensão
histórica, pois, o que acontece no início da vida escolar do aluno pode ter influência ao longo
de seu percurso. Aliás, esta é uma das maiores dificuldades que precisa ser superada: o tempo
escolar e o tempo da aprendizagem do aluno, que não se ajustam no mesmo “relógio”.
Enquanto o tempo individual de cada aluno é variável, o tempo escolar segue ritmos coletivos
e institucionais, gerando no professor conflitos na sua tarefa de ensinar.
O trabalho docente comporta uma estrutura básica que, por sua vez, comporta duas
variáveis gerais: o tempo de ensino e o número de alunos por turma. “[...] (Essas variáveis)
17
Retomaremos essa questão mais adiante, com Gimeno Sacristán (1998).
46
constituem os parâmetros básicos a partir dos quais se estimam os custos da educação e se
avalia a carga de trabalho dos professores. Estima-se também que elas têm efeitos sobre a
educação dada às crianças, efeitos que nem sempre são simples, diretos e lineares” (Tardif &
Lessard, 2005, p.115).
Assim, segundo esses autores, o âmago da tarefa docente é o tempo que o professor
dedica aos seus alunos.
A pesquisa realizada por Tardif e Lessard (2005) demonstra que a carga de trabalho
dos professores brasileiros é mais pesada que a dos professores de países como Suécia,
México, Japão, Portugal, Coréia, Espanha, França, etc
18
. No ensino educacional brasileiro,
nos níveis primário e secundário, em média, são: 40 semanas anuais; 200 dias letivos; 800
horas anuais, sendo que em outros países, estes números são menores.
Outra dimensão do tempo escolar é estar sob as exigências de fatores que não possuem
relação com a aprendizagem, como exigência social, financeira, sindical, religiosa, etc.
Mesmo quando finaliza suas tarefas, o professor não pára de trabalhar, o término de suas
atividades depende de outras exigências burocráticas, sindicais, profissionais, etc (Tardif &
Lessard, 2005, p.76).
O tempo escolar pode ser considerado um tempo afetivo – “[...] o trabalho transcende,
[...] ao tempo contável, invade a noite adentro, os fins de semana [...]” (Tardif & Lessard,
2005, p.77) –, um tempo dos apaixonados pelo ensino ou dos desiludidos, que trabalham
apenas para cumprir seu horário, aguardando a aposentadoria, um tempo sem graça, sem
interesse.
Outro aspecto que intensifica o trabalho do professor, de acordo com Tardif & Lessard
(2005), está relacionado aos fins e meios da escola. A organização escolar tem fins amplos,
ambiciosos e heterogêneos, e utiliza meios ambíguos e imprecisos para alcançar estes meios.
“[...] a escola, desde seu surgimento, tem-se dedicado a alcançar finalidades bastante
ambiciosas: difundir as Luzes graças à alfabetização, promover uma nova ética social, formar
cidadãos esclarecidos, melhorar o destino das classes trabalhadoras, formar pessoas
equilibradas, etc [...]” (p. 77). Finalidades que, mesmo passíveis de discussão, são
relativamente claras. No entanto, os meios com os quais se pretendem atingi-las são muito
diversificados e variáveis. Além disso, são os professores que devem tornar concretas tais
finalidades, muitas vezes por meios limitados e sem nunca poderem verificar se as atingiram.
18
Tardif & Lessard (2005) realizaram uma pesquisa detalhada sobre a organização do tempo do trabalho
docente em diversos países (p. 116 – 124).
47
A heterogeneidade e ambigüidade dos fins da escola podem ser expressas, segundo
Tardif & Lessard (2005), quando se pretende atingir, por exemplo: “[...] bem-estar de todos e
garantir às diferenças; favorecer o sucesso da maioria dos alunos, valorizando ao mesmo
tempo os alunos mais dotados; funcionar segundo um princípio de igualdade e cooperação
entre todos os alunos e estimular, ao mesmo tempo, a competição, etc [...]” (p. 78).
Finalidades que podem ser conciliadas no discurso educativo, mas que na realidade contam
com recursos limitados e tempo estabelecido. Não passa de mais um problema que é “[...]
repassado às mãos dos professores que deverão escolher por si mesmos os fins, em função de
seus recursos, suas crenças, valores, etc. [...]” (Tardif & Lessard, 2005, p. 78). Um exemplo
dado pelos autores é a decisão que os professores tomam frente ao tempo que devem dedicar
aos alunos que passam por dificuldades de aprendizagem. Dessa forma, são os professores
que selecionam e adaptam os objetivos escolares.
Vimos que a profissão docente é permeada de tensões, dilemas e conflitos
diariamente: “[...] ensinar é atuar ao mesmo tempo com grupos e com indivíduos, é perseguir
fins imprecisos e, ao mesmo tempo, educar e instruir, etc” (Tardif & Lessard, 2005, p.79). E
são os professores, na sua atividade diária, que precisam dar conta de resolvê-los.
As condições de trabalho do professor também devem ser consideradas ao retratarmos
a intensificação de sua tarefa. Tardif & Lessard (2005) chamam de “condições de trabalho
dos professores aquelas que permitem caracterizar algumas dimensões quantitativas do
ensino: “[...] o tempo de trabalho diário, semanal, anual, o número de horas de presença
obrigatória em classe, o número de alunos por classe, os salários dos professores, etc” (p.
111). Variáveis que, normalmente, são utilizadas para contabilizar, avaliar e remunerar o
trabalho docente e que, ao mesmo tempo, são recursos utilizados pelos diversos agentes
escolares para chegar aos seus fins.
Como visto, a atividade docente é definida por regras administrativas, que, no entanto,
dependem da atividade responsável e autônoma dos professores e do envolvimento deles em
sua profissão, um envolvimento principalmente no plano afetivo.
[...] alguns professores fazem exata e unicamente o que é previsto pelas
normas oficiais da organização escolar, ao passo que outros se engajam a
fundo num trabalho que chega a tomar um tempo considerável, até mesmo
invadindo sua vida particular, as noites, os fins de semana, sem falar das
atividades de duração mais longa, como cursos de aperfeiçoamento, de
formação específica, atividades para-escolares ou sindicais, das associações
profissionais, dos clubes esportivos para jovens, etc (Tardif & Lessard, 2005,
p. 113.)
48
Essa complexa noção de “carga de trabalho” nos leva a fenômenos variados. De
acordo com Tardif & Lessard (2005), os fatores principais que devemos considerar ao
determinar a carga de trabalho dos professores são: de natureza material e ambiental (local de
trabalho, recursos materiais disponíveis ou não disponíveis, recursos financeiros suficientes
ou insuficientes, etc); de natureza social (comunidade onde se localiza a escola, a situação
social, econômica e cultural de seus alunos e seus familiares
19
); de natureza humana (número
de alunos por turma
20
, a diversidade dos alunos, a presença de alunos com necessidades
especiais, a idade dos alunos, etc); de natureza organizacional (tempo de trabalho, quantidade
de matérias a lecionar, vínculo empregatício, eventos e atividades realizadas em finais de
semana, etc); de natureza burocrática (obrigações e formalidades a serem cumpridas); de
natureza pessoal (a maneira como os professores enfrentam todos os demais fatores e as
estratégias que criam para assumir ou evitar tais fenômenos).
Neste último aspecto devemos considerar as especificidades individuais do professor
(sua idade; há quanto tempo está na profissão; qual a sua experiência profissional; como ele se
vê como professor; de que maneira ele encara sua missão, etc). O fato de que o corpo docente,
na sua maioria, é formado por mulheres leva-nos a considerar ainda que a professora tem
dupla jornada (em casa e na escola).
Tais fatores atuam de maneira simultânea, originando uma carga de trabalho ao
professor, permeada de complexidade, diversidade e tensões. Um trabalho que muitas vezes
não é visível, exigindo do professor esforço mental, afetivo, emocional, etc. Tardif & Lessard
(2005) falam em “carga mental”, originada não só pelas exigências objetivas de sua tarefa,
como também pelas estratégias que os professores adotam para lidar com tais exigências.
Outro fator que sobrecarrega mentalmente o professor está relacionado à carga
informal de sua atividade. O fato de o professor pensar em seus alunos no final de semana ou
nos problemas disciplinares que ele precisa enfrentar são alguns exemplos. Segundo os
autores, a ausência de pesquisas quantitativas sobre este aspecto revela a resistência dos
próprios professores em enquadrar sua autonomia profissional a uma mensuração quantitativa
precisa de seu trabalho; “[...] trata-se de um comportamento básico que orienta toda a relação
com a profissão e a relação com o tempo contável” (p. 133).
19
A relação entre professor e alunos é marcada pela complexidade e variedade, e é constituída de tensões e
dilemas importantes, para os quais fatores ambientais como a pobreza e a violência são determinantes. Nesse
sentido, há de se considerar o contexto social mais amplo, pois este contexto pode modificar o teor das
atividades docentes.
20
Quanto menor o número de alunos na turma, mais tempo o professor tem para se dedicar a eles. E ainda, de
acordo com a pesquisa de Tardif & Lessard (2005), os professores do primário passam mais tempo em sala de
49
Os professores se embrenham em tarefas diversificadas, além das aulas. O dar aulas
implica prepará-las, planejá-las – mesmo que apenas mentalmente – corrigir atividades,
elaborar relatórios de avaliação
21
, preencher documentos escolares, etc. Tarefas, na maioria
das vezes, realizadas aos finais de semana, à noite, ou mesmo no período de férias. Um
trabalho que “[...] se justifica por razões diversas, sobretudo para a adaptação constante do
ensino para torná-lo mais interessante e mais pertinente” (Tardif & Lessard, 2005, p. 136).
As atividades “para-escolares”, o estudo para aperfeiçoamento, o auxílio profissional
mútuo (ajuda profissional e apoio a professores novos, supervisão de estagiários), mesmo
quando informais, são também fatores que influenciam na carga de trabalho do professor.
O que é preciso considerar nestas atividades é seu caráter obrigatório ou facultativo.
Tardif & Lessard (2005) realizaram um estudo sobre a organização da atividade docente e as
relações que os professores estabelecem com os diversos componentes de sua tarefa. A
pesquisa revelou que as tarefas docentes são bem diversificadas, no entanto, o que é mais
importante gira em torno de sua relação com os alunos, que são as atividades obrigatórias e
que têm uma duração fixada pela convenção. O estudo realizado permitiu também a
constatação de que a carga quantitativa de trabalho docente não aumentou efetivamente, mas
sim que há uma deterioração de qualidade da atividade docente:
[...] Os professores investem muito, emocionalmente falando, em seu
trabalho: trata-se de um trabalho emocional “consumidor” de uma boa dose
de energia afetiva, e decorrente da natureza interpessoal das relações
professor/ alunos. [...] dificilmente os professores podem ensinar se os alunos
não “gostarem” deles ou, pelo menos, não os respeitarem. Desse modo,
suscitar esse sentimento dos alunos é uma parte importante do trabalho.
Além disso, [...] entre os homens, a emoção com relação aos alunos é
freqüentemente mediatizada pela matéria ensinada, enquanto para as
mulheres ela leva mais imediatamente sobre a pessoa dos alunos, sobre o que
eles são, mais que sobre o que podem aprender. [...] a dimensão de “relação
de ajuda” [...] mais vezes predicado das mulheres [...], sobretudo, no ensino
primário assumido majoritariamente por mulheres. (Tardif & Lessard, 2005,
p. 159)
Ensinar, nos dias atuais, é uma tarefa permeada de expectativas e obrigações
complexas: os problemas sociais e comportamentais que o professor tem que resolver
concomitantemente à tarefa de ensinar, tais como: o atendimento às crianças especiais na sala
de aula (estabelecido por lei); o aumento do número de alunos por sala (que resulta não
apenas em problemas disciplinares e em fadiga do professor, como também dificulta o
aula que os professores dos demais ciclos. O que permite supor que, quanto maior a turma, maior a carga de
trabalho do professor.
21
Segundo Tardif & Lessard (2005), o processo de avaliação é uma das tarefas mais difíceis do trabalho docente,
pois envolve o confronto entre sua complexidade e as condições de julgamento profissional dos professores.
50
atendimento aos alunos); a comunidade de alunos cada vez mais heterogênea (que traz para
dentro da sala de aula as instabilidades de sua vida social e econômica e faz crescer a pressão
dos pais, dirigentes e da comunidade frente ao trabalho do professor); por fim, as inovações e
tentativas de colaborar com a tarefa do professor frente à multiplicidade de problemas que
enfrenta (que, por vezes, sobrecarrega-o de mais tarefas a serem executadas, numa situação
em que “(...) a solução passa a ser problema”) (Fullan & Hargreaves, 2000, p. 19).
Segundo Tardif & Lessard (2005), os próprios projetos de reformas tornam-se parte
dos obstáculos. Projetos que são de “natureza irrealista e até utópica”, e que levam os autores
a questionarem se, por vezes, na prática docente não acontecem, é porque nascem fora dessa
prática, constituindo-se em projetos abstratos da atividade docente.
E neste turbilhão de propostas inovadoras e reformas que surgem no cotidiano
docente,
[...] os professores se sentem pouco valorizados [...] sua profissão sofreu uma
perda de prestígio; a avaliação agravou-se, provocando uma diminuição de
sua autonomia, a formação profissional é deficiente, dispersiva, pouco
relacionada ao exercício concreto do serviço; a participação à vida dos
estabelecimentos fica reduzida, a pesquisa fica aquém do projeto de
edificação de uma base de conhecimento profissional, etc. [...] muitos
professores permanecem amarrados a práticas e métodos tradicionais de
ensino, enquanto os estabelecimentos escolares são, muitas vezes, refratários
às reformas, seja por inércia e costume, seja simplesmente porque não
recebem recursos financeiros, materiais e temporais necessários para levá-las
adiante. (Tardif & Lessard, 2005, p. 27.)
Em suma, as organizações escolares e o trabalho docente, da forma como estão
estruturados, não se colocam numa posição de facilitadores da profissionalização do trabalho
do professor:
[...] fechados em suas classes, os professores não têm nenhum controle sobre
o que acontece fora delas; eles privilegiam, conseqüentemente, práticas
marcadas pelo individualismo, ausência de colegialidade, o recurso à
experiência pessoal como critério de competência. [...] longe de se estar
profissionalizando constata-se que esses diferentes fatos levam no fundo toda
a questão da proletarização do trabalho ou, ao menos, da transformação de
grupos de professores em equipes de executivos que não têm nenhum vínculo
com as decisões que os afetam. (Tardif & Lessard, 2005, p. 27).
Tardif & Lessard (2005) defendem que a questão da profissionalização docente deve
estar ligada ao trabalho docente, à prática cotidiana do professor, pois é a profissionalização
que colocará de maneira concreta o problema do poder na organização do trabalho docente.
Entendendo este poder profissional docente como um certo controle de seu próprio campo de
51
trabalho, o acesso a ele por meio de uma formação superior, uma certa autonomia sobre a
execução de tarefas e sobre os saberes necessários à sua realização.
O currículo escolar e suas influências na profissionalização docente: algumas idéias de J.
Gimeno Sacristán
Outro elemento que influencia o processo de profissionalização docente é o currículo
escolar – instrumento complexo e globalizador da instituição escolar – segundo Gimeno
Sacristán (1998). Segundo o autor, o currículo escolar não é um instrumento neutro e merece
consideração nos estudos sobre educação. Para apreendermos esta questão, é importante
situarmos o conceito de currículo como instrumento político e social, e algumas considerações
que cercam este conceito, principalmente na sociedade em que vivemos – uma sociedade de
avanços acelerados e instrumentos de propagação de conhecimento cada vez mais modernos e
acessíveis.
De acordo com Gimeno Sacristán (1998), na escolaridade obrigatória o currículo
reflete um projeto educativo globalizador, o qual “[...] agrupa diversas facetas da cultura, do
desenvolvimento pessoal e social, das necessidades vitais dos indivíduos para seu
desempenho em sociedade, aptidões e habilidades [...]” (p. 55). O autor entende que os
conteúdos escolares devem ser compreendidos além de um conjunto de conhecimentos. Para
ele, erroneamente, muitas vezes os conteúdos são considerados os elementos derivados das
disciplinas. Nos primeiros anos de escolarização, o currículo deve ser entendido de maneira
mais totalizadora, pois faz parte de um projeto educativo complexo, no qual os objetivos da
escolarização são refletidos: “[...] na escolaridade obrigatória o currículo tende a recolher de
forma explícita a função socializadora total que tem a educação [...]” (Gimeno Sacristán,
1998, p. 55). O caráter globalizador do currículo também se expressa nas finalidades da escola
enquanto instituição que vem assumindo o caráter de educadora integral, isto é, uma
instituição que assumiu o papel de educar tanto quanto a família e outras instituições. Nesta
instituição, o currículo assume também um caráter globalizador. Ao assumir este caráter
global, assume também uma transformação de “[...] todas as relações pedagógicas, dos
códigos do currículo, do profissionalismo dos professores e dos poderes de controles destes e
da instituição, sobre os alunos [...]” (Gimeno Sacristán, 1998, p. 56). Eis aqui o eixo central
dos estudos deste autor para nossa pesquisa.
52
O sistema educativo é ordenado por leis e regulações administrativas básicas, que
aspiram uma educação cada vez mais globalizadora e instalam uma mentalidade de “atenção
total ao aluno”, numa pretensão de desenvolver atitudes, hábitos, ensinar ética, moral, etc, nos
mesmos padrões dos conteúdos. Um exemplo disso no sistema educacional brasileiro pode ser
encontrado nos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais). Neste contexto, a regulação
administrativa da escola é, na verdade, um controle técnico, isto é, a escola é submetida a
agentes exteriores que regulam o currículo e a forma como ele deve ser desenvolvido. Gimeno
Sacristán (1998) levanta questões que merecem reflexão: que implicações essas interferências
– controle de cidadãos – têm na formação dos indivíduos? Quem dita as regras? Para quem?
Com qual finalidade?
Numa sociedade que se desenvolve tão rapidamente como a nossa, o conhecimento e
os meios para difundi-lo tornam-se um problema a ser enfrentado. Como alcançar um
consenso pedagógico e social e estabelecer um currículo cultural básico para todos, num
sistema educativo que ainda privilegia o “academicismo”? Este é um debate que deve transpor
– devido à sua importância para os indivíduos (principalmente para aqueles que não têm a
oportunidade dessa cultura fora da escola) – os interesses do corpo docente e dos que
administram a educação. Vivemos em uma sociedade cuja cultura é marcada pela diversidade
e pluralidade; entrar num consenso não é tarefa fácil.
Quando o projeto educativo se ancora no desenvolvimento total, o currículo se amplia
para um ramo que vai além do desenvolvimento do intelecto. Portanto, a definição desse
conteúdo cultural passa não apenas por decisões administrativas sobre os conteúdos, como
também sobre as condições de sua realização. Disso depende a realidade dessa nova cultura.
Segundo Gimeno Sacristán (1998) o que se deve considerar ao pensar em currículo é
que ele é base da formação cultural comum a todos os cidadãos, independentemente de sua
origem social e suas projeções de futuro. É nesse sentido que um currículo deve abranger as
diversas facetas de cultura, e não só a cultura acadêmica. Deve-se considerar que os alunos
são diferentes, com habilidades e culturas diferentes, para superar e enfrentar o currículo que
a escola estabelece.
Quando pensamos que tal tarefa é difícil e complexa, estamos dando o valor aos
debates e discursos que se fazem necessários. Tais debates, nos níveis de escolaridade
obrigatória, encontram um consenso sobre as habilidades e conhecimentos básicos a estes
níveis. Por ser inicial, este nível parece oferecer um currículo igual para todos; aparentemente
algo desejável e natural, mesmo que os alunos tenham perspectivas diferentes de sucesso
53
escolar
22
. Nos anos seguintes da escolarização, este debate se complica, pois as diferenças
individuais entre os alunos são mais aparentes. A partir do Ensino Médio, por exemplo, o
debate sobre currículo se embrenha num território em que as atitudes dos alunos e as
expectativas das famílias são consideradas. O ensino profissionalizante se diferencia do
ensino acadêmico e se tornam dois níveis de ensino de significados sociais bem distintos, que
segregam alunos em grupos diferentes ou sistemas de educação diferentes.
O debate sobre currículo e conteúdos é um problema primordialmente político e
social. Alguns exemplos da complexidade desse debate são encontrados na imagem que se
tem de um currículo que “desprivilegia as disciplinas acadêmicas valoradas” no campo de
ensino, é a imagem de uma “degradação da qualidade do ensino”. Um ensino de “boa
qualidade”, para os mais favorecidos, é aquele que levará o aluno para o ensino superior de
qualidade, isto é, que o prepara para o vestibular, atingindo as expectativas mais altas,
enquanto um currículo que tira essa possibilidade é visto como desqualificado.
Gimeno Sacristán (1998) nos chama a atenção para os reflexos engendrados nesse
processo, em que a responsabilidade da escolaridade obrigatória acaba por refletir, de alguma
maneira, na composição do currículo. Repercute não só na organização da escola, como
também “[...] no professorado, nos mecanismos de controle, nas relações entre as instituições
e os pais, e na própria indefinição sobre qual é o conhecimento e os procedimentos mais
seguros que possam ordenar tudo isso [...] e dominá-lo com alguma segurança” (Gimeno
Sacristán, 1998, p.67).
Neste contexto, o professor se submete a uma pressão social e institucional cada vez
maior sobre seu trabalho, tendo que responder a ela com sua capacitação profissional. E, na
medida em que objetivos tão diversos, complexos e conflituosos são formalizados exigindo
procedimentos tão diversos quanto, revela-se a impotência de um conhecimento que apenas
entende e governa as práticas pedagógicas. Nesse sentido, Gimeno Sacristán nos ajuda a
pensar na imagem que o professor tem de si mesmo frente às propostas curriculares que lhe
são impostas.
É preciso rever o valor que um saber tem, e outro não, quando se propõe uma reforma
curricular e quando se amplia o ensino obrigatório na pretensão de melhorar a qualidade do
22
Gimeno Sacristán (1998) defende que, se não há como o currículo se tornar objeto de total “igualização”, que
ele seja um elemento de “compensação”. Estaríamos, dessa forma, dando uma educação compreensiva, em que o
currículo básico realizado seria igual para todos e que esforços se fariam também na formação de um corpo
docente, adaptando metodologias e a organização escolar, de maneira que todos os alunos tenham um mínimo de
rendimento.
54
ensino. Nas mudanças que se propõem, os referenciais e os esquemas já existentes são os que
continuam a ditar as regras.
Pedem para a instituição escolar e para os professores cada vez mais funções
que desenvolverão sob os esquemas que historicamente se estabeleceram
para cumprir outras finalidades relacionadas com outras formas de entender o
conteúdo e o sentido da cultura.
[...]
A tendência para a ampliação de conteúdos no ensino é uma resposta
inevitável para o desenvolvimento da educação obrigatória, refletida no
currículo como instrumento de socialização. Ampliação de finalidades e
conteúdos que pode se chocar com o desdobramento social para com
métodos e aspectos considerados “seguros” no ambiente de revisão que os
sistemas educativos dos países desenvolvidos estão vivendo como
conseqüência da pressão eficientista na educação, numa fase econômica
menos expansiva, que estimula os reflexos conservadores da sociedade e dos
responsáveis políticos, reduzindo-se o otimismo próprio das fases de
crescimento acelerado. (Gimeno Sacristán, 1998, p.70)
Estamos vivendo em uma época em que os sistemas educativos estão sendo revistos
devido à pressão por uma educação eficiente. Uma educação que deve atender a esta
sociedade, em que a economia se encontra numa fase de menor expansão. Isso estimula o
conservadorismo da sociedade, e principalmente dos responsáveis políticos, a buscar as
respostas nos aspectos considerados “seguros” nos períodos de crescimento econômico
acelerado.
A escola, pelas suas próprias condições, reflete de maneira lenta as finalidades de um
currículo novo e ampliado – como conseqüência das mudanças sociais e econômicas. Isso
repercute em contradições produzidas pela própria escola. Um exemplo disso são as
atividades justapostas e confrontadas a outras que já dominam o currículo, como um estudo de
meio que oferece uma aprendizagem interessante, mas que não se desvincula de um ensino
tradicional. Os professores têm que se equilibrar entre as idéias renovadoras e o tradicional.
“A abertura para o mundo exterior se faz, em muitos casos, através de brechas sem relação
com o ensino das áreas ou disciplinas distribuídas de forma mais tradicional, o que supõe uma
recuperação do ‘novo’ dentro do velho molde” (Gimeno Sacristán, 1998, p.71).
O aluno aprende mais fora da escola que dentro dela. Segundo Gimeno Sacristán
(1998) essa é uma peculiaridade decisiva da cultura e da sociedade atual, que influencia na
forma como conteúdos e métodos dessa cultura se distribuem nos currículos escolares. A
evolução dos meios de transmissão da cultura aumenta as possibilidades de que os cidadãos
tomem contato com ela pelos mais diversos canais à margem dos canais escolares:
55
Ao lado da cultura e dos meios para entrar em contato com ela, possibilitados
pelos currículos escolares, existem muitas outras possibilidades de
comunicação cultural. Hoje, o cidadão médio certamente tem mais
informação sobre o universo, a ciência e a tecnologia, as culturas de outros
povos, a literatura, a música, os idiomas, etc., graças às revistas de
divulgação científica, aos fascículos, aos meios de comunicação, às visitas a
museus, às experiências e educação extra-escolares, às viagens, etc., do que
pelas aprendizagens escolares. (Gimeno Sacristán, 1998, p.71)
A distância entre a aprendizagem de vida do aluno e a aprendizagem da escola,
segundo Gimeno Sacristán (1998), é lamentável. É uma distância marcada por uma seleção de
conteúdos e por uma ritualização de procedimentos “esclerosados na atualidade”. Quanto
mais atrativa e pungente for a cultura externa à escola, maior será a distância e, quanto maior
essa distância, mais atrativa será a experiência cultural fora da escola.
Vivemos em uma sociedade em que a informação está mais acessível e disponível a
qualquer indivíduo. Mesmo que consideremos a questão de “quem controla essa informação”,
que serve como mecanismos de controle e poder das mentalidades pensantes, dos quais todos
os indivíduos recebem influências, é indiscutível que há uma democratização de saberes.
[...] a divulgação do conhecimento pelos mais variados sistemas é um
instrumento de controle democrático nas sociedades modernas. No campo
científico e tecnológico, as conseqüências são evidentes. A consciência
ecológica, a luta contra a militarização da ciência e da investigação, expressa
por distintos movimentos sociais são conseqüências de uma democratização
do saber científico que advertem contra determinados usos dos mesmos.
(Gimeno Sacristán, 1998, p.72)
Esta primazia do poder da informação incide de maneira significativa sobre os
currículos escolares. A escola está sendo desvalorizada à medida que novas tecnologias de
recursos de comunicação cultural surgem nas sociedades. Quando outros mecanismos e
instrumentos se desenvolvem socialmente para comunicar e difundir a cultura, a escola perde
o poder no seu papel central de agente cultural. Isso supõe que precisa haver um equilíbrio de
“poderes culturizadores entre as fontes de formação e informação que o currículo escolar e
[...] o currículo extra-escolar desempenham” (Gimeno Sacristán, 1998, p. 73). Trata-se de
uma mudança no valor das funções que a escolarização adquire, tornando mais claro até
mesmo as funções de seu currículo oculto. “O valor cultural da escola se relativiza mais se
consideramos o poder desigual de atração que têm os métodos escolares e os meios pelos
quais se apresenta ao cidadão esse outro currículo cultural exterior” (Gimeno Sacristán, 1998,
p.73).
56
Nesta perspectiva, escola e currículo estão inseridos em um “nicho cultural” amplo,
que repercute diretamente no aluno que deve (e pode) aproveitar. Isto implica numa mudança
considerável da escola: das fontes de informação, dos conteúdos que ela oferece aos seus
alunos, seus métodos, mecanismos de controle e melhoria de seus recursos.
O currículo é uma cultura organizada por certos critérios que a escola distribui. É uma
seleção de características organizadas de forma peculiar que são apropriadas ao nível
educativo pelo grupo de alunos. Estes conteúdos são planejados exatamente para formar um
currículo escolar, dando-lhe um formato conseqüente da tecnificação pedagógica do qual têm
sido objeto.
Os componentes essenciais do currículo são os conteúdos, os códigos e as práticas que
explicam o currículo. Estes componentes podem atuar no nível implícito ou explícito, e os
códigos dão forma “pedagógica” aos conteúdos. Estes códigos modelam a prática quando
“atuam” sobre professores e alunos (Gimeno Sacristán, 1998, p.75). A forma que o currículo
assume é um instrumento de poder na configuração da “profissionalidade” do professor, que
tem de distribuí-lo. Enquanto os conteúdos dos currículos afetam aos alunos como seus
destinatários, as formas curriculares afetam diretamente os professores. Vejamos como a
forma curricular que está posta hoje contribui para a desvalorização do professor.
O currículo está sob um conjunto de princípios que “ordenam a seleção, a organização
e os métodos para a transmissão”. Este conjunto de princípios torna-se um “código que
condiciona a forma do currículo antes mesmo de sua realização” (Gimeno Sacristán, 1998,
p.75). Há dois contextos no currículo, o da realização e o da formalização, e é neste último
que seu sentido é adquirido e sua operatividade é demonstrada e influencia diretamente no
processo de profissionalização docente.
Antes mesmo de ser realizado, o currículo é condicionado na sua formulação por um
código. Este código é formado pela seleção, organização e método para transmissão. Esta
seleção, organização e métodos são um conjunto de princípios sobre o qual o currículo está
ancorado. O código é entendido também como um elemento ou uma idéia qualquer que
interfere na seleção dos componentes do currículo, sua ordenação, sua seqüência, os
procedimentos e sua apresentação a alunos e professores. De acordo com Gimeno Sacristán
(1998), tais códigos se originam de
[...] opções políticas e sociais (separação da cultural intelectual da manual,
por exemplo), de concepções epistemológicas (o valor de método científico
na prática da aprendizagem das ciências ou da “nova história” no ensino), de
princípios psicológicos ou pedagógicos (o sentido educativo da experiência
acima dos conteúdos abstratos elaborados, a importância da aprendizagem
57
por descoberta, o valor expressivo da linguagem, etc.) e outros mais.
(Gimeno Sacristán, 1998, p.76)
Alguns desses códigos considerados relevantes por Gimeno Sacristán (1998) são: o
código da especialização do currículo, o código organizativo do currículo, o código de
separação de funções e o código metodológico.
No código de especialização, o currículo está ancorado em formatos. É a partir do
formato curricular, isto é, da forma como os elementos que compõem o currículo se
organizam, que as práticas se dão, o que o torna muito importante na configuração do
currículo. Em outras palavras, esta forma passa a fazer parte do que será transmitido.
Podemos identificar, como exemplo dessas formas, no ensino de 1ª a 4ª séries do Ensino
Fundamental, as áreas de Ciências, que têm uma forma diferente no currículo do Ensino
Médio, em que estas áreas assumem as cadeiras de Biologia, Saúde, Física, Química. É a
partir dessa organização que os materiais são elaborados e que os conteúdos são
desenvolvidos por professores, profissionais da educação que devem ter uma formação
específica, de especialidade, o que remete à competência deste professor.
Os componentes do currículo e até mesmo o formato do currículo, isto é, a maneira
como ele se organiza, são muito influentes. Como código influente, este formato “condiciona
a experiência que os alunos podem obter dele” (Gimeno Sacristán, 1998, p.76). Valendo-se de
Bernstein (1980), Gimeno Sacristán (1998) afirma que o currículo se distingue em dois tipos
básicos, partindo da relação que os diversos conteúdos formam e mantém entre si. Uma
relação estabelecida muitas vezes de barreiras/ fronteiras que isolam esses conteúdos e
formas, independentemente do status de seu campo de conhecimento.
1. O currículo collection, formado por componentes que se diferenciam explicitamente e
se justapõem. Neste currículo, os conteúdos surgem de forma clara, bem delimitados,
com fronteiras bem visíveis e que se diferenciam nitidamente. Segundo Gimeno
Sacristán (1998), este tipo de currículo tem o formato de mosaico. Nele, o domínio das
chaves do conhecimento despreza as fases finais das cadeiras especializadas. As
primeiras etapas e as etapas intermediárias são etapas de objetivos propedêuticos, isto
é, preparam para as fases finais, elas são organizadas para isso. Gimeno Sacristán
(1998) faz uma crítica a essa perspectiva: num ensino obrigatório, o currículo deve ser
organizado de maneira que os conteúdos tenham um sentido em si mesmo, é aí que
está o sentido da cultura. É nessa perspectiva que surge uma tensão entre o princípio
58
que ordena os conteúdos com base num currículo integrado e os conteúdos com base
num currículo justaposto.
2. O outro tipo de currículo é o integrado. Este currículo é formado por componentes que
se relacionam abertamente uns com os outros. É comum, por exemplo, nos cursos de
Educação Infantil e bem mais aceito nos quatro primeiros anos do Ensino
Fundamental. Nestes níveis de ensino o currículo, por vezes, organiza-se por áreas,
com fronteiras não muito delimitadas entre as disciplinas, mesmo quando essas
disciplinas se justapõem.
No ensino secundário, esta relação estabelece um sentido de luta entre os códigos que
ordenam que “[...] ganham uma certa virulência, em algumas ocasiões, no professorado, que
tem de distribuí-los, que é o primeiro depositário e reprodutor de legado de uma tradição
curricular baseada na separação de disciplinas (Gimeno Sacristán, 1998, p.77)”. O professor é
quem distribuirá o currículo, que se torna o principal instrumento de manutenção e
reprodução da tradição do currículo mosaico. São os professores que mantêm entre si os
obstáculos, isto é, a lógica das matérias e dos especialistas. Nestas fronteiras entre os tipos de
conhecimento, estabelece-se um sentido de grupo de maneira que são os próprios professores
que devem se esforçar para se comunicarem entre si neste grupo, se quiserem projeto
educativo mais coerente para os alunos. Em decorrência, firma-se uma identidade profissional
com força. Um exemplo disso está nos grupos docentes de universidade e do ensino
secundário, ao redor de suas respectivas especialidades. Gimeno Sacristán (1998) afirma que
no ensino primário este sentimento de grupo é caracterizado por uma coletividade, não há um
sentido de pertença de uma única parcela educativa: “[...] Poder-se-ia dizer que o professor de
educação infantil ou primária centra mais seu autoconceito profissional em um período de
escolaridade do que no conteúdo da mesma, enquanto no ensino de 2º grau e superior ocorre o
contrário” (p.77).
Gimeno Sacristán (1998) afirma que o currículo mosaico, por sua organização,
promove diminuição do poder dos professores sobre o conteúdo que transmitem. Já o
currículo integrado permite ao professor mais liberdade na organização dos conteúdos que
transmite, isso por conta de que a lógica da organização integrada não é a lógica de disciplinas
delimitadas e os respectivos especialistas. Nessa perspectiva, a questão da profissionalidade
pode ter um outro sentido, mesmo que seja no nível teórico, já que, como afirma Gimeno
Sacristán (1998), na prática, os professores não possuem poderes tão significativos pela sua
59
própria condição de formação e trabalho, que não possibilita autonomia no campo do
currículo.
No currículo integrado, quando o professor é o único que distribui e trabalha os
conteúdos com um mesmo grupo de alunos, isso permite que o professor trabalhe de maneira
mais abrangente os diversos conteúdos, e até num período de tempo maior. O status e
prestígio desse professor estão na formação de um profissional que tem competência para
trabalhar com crianças menores. No entanto, o professor especialista possui um status
diferente, seu prestígio esta no próprio fato de ser especialista de um conhecimento.
Outra maneira de integração do currículo está apoiada no grupo de professores que
precisam relacionar-se uns com os outros. Na escola esta relação não é fácil, se considerarmos
que os professores adotam estilos profissionais individuais, o que dificulta a estruturação de
equipes docentes. Gimeno Sacristán (1998) afirma que esta integração do currículo pode ser
facilitada por uma integração maior entre os professores, realizada através de “projetos
curriculares” que provocam a integração. Nos projetos curriculares, os professores precisam
unir suas competências e até elaborar materiais que depois serão utilizados individualmente.
Nessa perspectiva, a integração do currículo está ancorada fora da prática.
Para Gimeno Sacristán (1998), essa idéia de princípios colaborativos, de projeto,
alcança o objetivo de integração curricular mais rapidamente do que buscar soluções que
envolvam mudanças radicais na formação de professores, por exemplo. “O projeto curricular
integrado parte da necessidade de colaboração entre profissionais diversos e entre especialista
das parcelas que nele se integram” (p.78).
Na perspectiva de Gimeno Sacristán (1998), a forma que o currículo assume é
elemento de formação importante dos professores. A superioridade do currículo justaposto
influi na profissionalização docente e, por conseqüência, na prática pedagógica docente,
tornando visíveis os efeitos desse tipo de currículo mosaico. Tais efeitos estão relacionados
com o modo como o professor direciona “a experiência do aluno através do condicionamento”
de sua atividade (p.78). Para o autor, essa tradição da especialidade é fruto da progressiva
“taylorização do currículo”, que dividiu cada pessoa na sua função. Esta “especialização dos
conhecimentos” contribuiu na desprofissionalização docente, na medida em que o docente
especialista perdeu outras competências profissionais, por exemplo, a “capacidade de inter-
relacionar conhecimentos diversos para que tenham um sentido coerente para o aluno que os
recebe” (p.79).
Gimeno Sacristán (1998) defende uma “reprofissionalização” docente a partir de uma
nova competência: a de colaboração entre docentes de uma equipe. Para o autor, é preciso
60
buscar um contrapeso para minimizar os efeitos da “especialização curricular” na cultura e
educação dos alunos, e fortalecer o corpo docente na sua estrutura organizativa que, por ela
própria, é condição para esse equilíbrio, o que torna essa tarefa mais difícil. No final das
contas, o que ocorre é que o projeto educativo vai se tornando algo incoerente para os alunos,
à medida que ele vai progredindo no processo de escolarização.
Este currículo mosaico está tão “naturalizado” na escola, que qualquer mudança mais
profunda nesse formato esbarra em fortes resistências. O sistema curricular está imerso em
um campo de disciplinas e em um grupo de especialistas, ambos inseridos num contexto
histórico que determinou (e vem determinando) a identidade profissional, os direitos
trabalhistas, as estruturas da organização escolar, entre outros aspectos que caracterizam o
profissional e sua respectiva especialidade.
Na reestruturação dos professores, a formação profissional tem papel fundamental. Os
professores precisam estar preparados para transmitir uma cultura mutável e para assumir
papéis mais polivalentes. O currículo mosaico, pela sua justaposição, dificulta esta
reestruturação, pela própria “evolução do saber e pela desigual demanda de um tipo ou outro
de formação profissional, o declínio do ensino de uns idiomas a favor de outros, etc., são
exemplos dessa situação” (Gimeno Sacristán, 1998, p.79).
Para Gimeno Sacristán (1998), os professores especialistas por vezes dificultam a
inserção de conteúdos novos, não previstos nos seus campos. É uma mentalidade configurada
pelo código curricular mosaico. Muitos projetos de interesse dos alunos, que poderiam ser
colocados em prática de maneira que os conteúdos e as disciplinas se relacionassem entre si,
integrando as diversas faces da cultura, deixam de ser colocados em prática, em nome de um
currículo tradicional.
Vimos, então, que a forma como o currículo se apresenta, os códigos que estão
subentendidos, a seleção e organização dos conteúdos repercutem de maneira direta e decisiva
na aprendizagem dos alunos e, de maneira indireta, na profissionalização docente.
No currículo organizado em áreas, há um único professor para um grupo de alunos,
possibilitando a flexibilização do espaço na sua organização, distribuição de tempo,
diversidade de tarefas acadêmicas, etc. No currículo especializado, vários professores
intervêm num mesmo grupo de alunos. No currículo organizado em áreas, com um único
professor, reduzem-se os estilos pedagógicos, os esquemas de relações pessoais e as
estratégias de controle, isso “incide sobre os alunos em mensagens não tão contraditórias” e
processos de adaptação mais simples para eles. Isso permite ao professor individualizar o
ensino de maneira a facilitar o aprendizado do aluno. Na realidade do sistema educacional
61
brasileiro, nas séries iniciais do Ensino Fundamental, o fato de um único professor trabalhar
todas as disciplinas faz com que, teoricamente, a flexibilização da organização do currículo
seja maior. No entanto, é comum vermos dentro das salas de aula de primeiras e segundas
séries, horários de aulas revelando uma forma curricular mosaico. Algumas escolas privadas,
já pensando em preparar o aluno para o ingresso no Ciclo II do Ensino Fundamental, propõem
que as terceiras e quartas séries tenham dois professores, além dos professores especialistas de
Língua Estrangeira, Arte e Educação Física.
O código organizativo refere-se ao currículo relacionado em função da especificidade
do sistema escolar, como por exemplo: o currículo ordenado por meio de ciclos. Em uma
unidade com vários cursos, o tempo é maior para o aluno atingir os objetivos da
aprendizagem de conteúdos, e podem ser dispostos de forma linear. Esta forma curricular
adapta-se melhor ao aluno, tolera mais a diversidade e possibilita uma integração maior entre
os diversos conteúdos.
Já na organização de um currículo em séries/ anos, o professor deve atingir objetivos
propostos sem respeitar o ritmo do aluno:
A organização curricular por níveis anuais, sobretudo quando é sancionada
pela avaliação, deve atribuir conteúdos, objetivos, habilidades, etc. a esses
períodos de tempo, o que nem sempre é fácil, compartimentando o tempo de
aprendizagem nos alunos e dando aos professores o motivo para que se
especializem em momentos muito delimitados da escolaridade e, por isso
mesmo, num momento do processo evolutivo dos alunos. A norma de
rendimentos anuais seqüenciados obriga mais à acomodação do ritmo de
progresso dos alunos, à seqüência estabelecida na periodização temporal do
currículo. É uma forma de oferecer espaços mais delimitados para o domínio
de conteúdos também mais detalhados, instalando uma idéia de
“normalidade” no progresso do aluno que é preciso comprovar com mais
freqüência, com menos tolerância para com a diversidade de ritmos de
progressos nos alunos. (Gimeno Sacristán, 1998, p. 81-82)
Para Gimeno Sacristán (1998), a forma como o currículo está organizado influi na
função dos professores. No código de separação de funções, os professores se dividem em
funções e entre outros profissionais, o que leva a “uma perda de unidade no trabalho docente e
obscurece competências profissionais e conhecimentos a eles relacionados”. Quando o
professor deixa de exercer uma competência prática, há um esvaziamento dos “esquemas de
racionalização, as análises e as propostas inerentes” a essa competência, o que leva ao
desaparecimento dos esquemas teóricos relacionados a essas práticas, contribuindo para um
crescente distanciamento entre os professores e currículos. Em outras palavras, há uma
62
redução da competência profissional docente, influenciando de forma muito nítida no seu
processo de profissionalização.
Os currículos são decididos fora dos muros escolares e independem da vontade dos
professores, desde sua elaboração até a concretização em materiais didáticos, o que faz do
currículo um objeto de consumo dos professores. Os professores recebem a “experiência
profissional” de quem decide o currículo. Tais decisões são elaborações externas ao professor,
que antecedem ao seu trabalho. E ainda, exercem importante “socialização profissional” sobre
o professor, pois nessas elaborações anteriores:
[...] transmitem mensagens explícitas e ocultas sobre a relação de conteúdos,
formas de organizá-los, de apresentá-los aos alunos, elaborá-los através de
meios diversos, relacioná-los com a cultura própria do aluno, integrá-los com
outros conteúdos, etc. Transmite-se o modus operandi metodológico, uma
forma particular de entender a identidade profissional, um espaço mais ou
menos amplo para o exercício da autonomia, dentro do qual se exerce e se
desenvolve a profissionalidade. (Gimeno Sacristán, 1998, p. 82)
O uso que o professor faz do currículo ajuda na compreensão do trabalho docente em
cada etapa da escolarização. Muitas dessas “elaborações exteriores à prática do currículo” são
feitas porque se acredita que o professor não está preparado para fazê-lo. Quando o professor
se distancia da elaboração do currículo, esvaziam-se suas habilidades, levando-o a um papel
de mero executor, o que reflete na sua própria dificuldade em sair do “modelo proposto”. A
imagem do professor fica prejudicada assim, pois há uma crença de que ele não é capaz de
elaborar seus próprios materiais e organizar sua própria prática. “[...] a imagem do professor
capaz de elaborar seus próprios materiais, organizador de sua própria prática, é uma imagem
libertadora profissionalmente, que exige uma determinada capacitação profissional” (Gimeno
Sacristán, 1998, p. 83).
O currículo fragmentado/ mosaico tem como conseqüência um professor especialista.
De maneira implícita, este currículo encobre um código de comportamentos que leva à
divisão de funções educativas, parcelando as competências do ensino de outras competências
educativas para com os mesmos alunos: ensinar e dar atenção ao aluno. Este é um desafio a
ser superado, o professor perdeu em profissionalismo ao estabelecer essas duas funções.
Vimos então que, para Gimeno Sacristán (1998), os códigos metodológicos são como
a “projeção que determinados princípios e idéias sobre a educação, desenvolvimento,
aprendizagem e os métodos de ensino” têm na elaboração do currículo, bem como de que
maneira o currículo influi no status, na imagem, na formação e na tarefa profissional dos
63
professores, isto é, no processo de profissionalização docente – com repercussões sobre a
visão que desenvolvem sobre si mesmos e sobre seus pares.
*
Neste capítulo assinalamos a contribuição teórica de autores que nos ajudam a
compreender nosso problema de pesquisa.
Vimos que Berger & Luckmann (2000) contribuem para o entendimento da realidade
da vida cotidiana do professor, considerando seu interior, examinando o conhecimento que
dirige a vida deste professor e que é partilhado com os demais professores, tornando-se um
conhecimento do senso comum. Os autores nos revelam de que maneira os processos de
socialização interferem nas experiências que o professor constrói e colaboram na construção
de sua identidade pessoal e profissional, moldando-o como indivíduo. Uma identidade
inserida num universo simbólico que é constituído socialmente, mas que precisa ser
desvelado, pois o professor não se percebe dentro dele. É este universo simbólico que
organiza sua posição no contexto social, o papel que desempenha, sua identidade e as relações
que permeiam sua vida profissional e pessoal, e que nos interessa particularmente nessa
pesquisa.
Claude Dubar (1997) amplia a compreensão da construção da identidade profissional e
como se articulam a identidade que o professor constrói de si mesmo com a identidade que o
outro constrói dele. E é no interior da escola que estas relações identitárias acontecem com
maior intensidade. Continuamente, o professor precisa lidar com os conflitos que estas
relações estabelecem, o que supõe uma interferência em sua ação pedagógica.
É neste sentido que trouxemos Gimeno Sacristán (1999), que nos auxilia na
compreensão das implicações da ação pedagógica do professor na construção de sua
identidade profissional. Esta ação pedagógica está relacionada com o saber que o professor
adquire ao longo do processo de construção de sua identidade. Tardif & Raymond (2000)
iluminam a compreensão deste processo ao nos mostrar que o saber docente tem sua origem
na socialização primária e secundária (veja Berger & Luckmann, 2000), passa pela
socialização escolar e, em seguida, pela formação profissional inicial e durante sua carreira.
Ao trazermos os conceitos de cultura, cultura escolar e cultura docente de Pérez
Gómez (2001), estamos ampliando o entendimento da origem das institucionalizações
referidas em Berger & Luckmann (2000). Ao conceituar cultura de maneira mais variada,
dinâmica e maleável, o autor ajuda-nos a entender o professor inserido em um contexto
64
cultural maior, contribuindo na compreensão dos fenômenos de socialização do professor, isto
é, na compreensão das relações entre os professores. Com seus estudos sobre cultura escolar e
cultura docente, o autor nos auxilia ainda na percepção do professor enquanto indivíduo,
pertencente a um grupo profissional específico. Nessa relação, o autor permite-nos entender a
construção da identidade profissional docente e a importância da autonomia profissional e do
conhecimento especializado neste processo de construção, dois aspectos intrinsecamente
relacionados ao sentimento de pertença a um grupo profissional, o que nos leva ao processo
de profissionalização docente.
O levantamento histórico do conceito de profissionalização e deste processo na
profissão docente colabora na compreensão de como a imagem do professor foi se
construindo ao longo do tempo (e como alguns aspectos ainda permanecem nos dias de hoje),
e do status adquirido. As contribuições de Nóvoa (1998) e Vicentini (2001) ajudam-nos a
entender a relação que os professores estabelecem com os diversos saberes do campo
educacional, e como isso influencia no processo de profissionalização docente. Seus estudos
iluminam a percepção do processo de desvalorização da competência profissional, que
autores como Apple (1991, 1995), Tardif & Lessard (2005), Hargreaves (1998a, 1998b,
2002), entre outros, trazem nos estudos sobre a proletarização e a intensificação do trabalho
docente e as relações destes processos na construção da identidade profissional docente. O
exame dos autores mencionados neste item permite perceber o quanto é complexo o processo
de valorização da profissão. As implicações e todos os fatores envolvidos precisam ser
discutidos à exaustão.
Se na história do processo de profissionalização docente, as instituições de formação
têm um peso crucial, há de se rever e discutir o que está acontecendo nelas: como tem
acontecido a formação acadêmica dos professores? Parafraseando Nóvoa (1998), é necessário
adotar outros modelos profissionais, capazes de implantar parcerias entre o acadêmico e o
prático, isto é, entre as instituições de ensino superior e as escolas, buscando consolidar
espaços de colaboração e, como diria o autor, de “alternância”. A questão principal esta além
da redução da capacidade intelectual da formação docente ou na instauração de
procedimentos que colocam o professor dentro da escola, preparando-o para a atividade
profissional. Trata-se de possibilitar a colaboração entre escolas e universidades, a fim de
promover uma formação que dê conta dos atuais desafios da profissão docente.
O desejável também é uma reestruturação da formação contínua. Ela precisa estar mais
integrada, em diferentes níveis, nos diversos conceitos: “contexto organizacional, natureza do
65
papel profissional, competência profissional, saber profissional, natureza da aprendizagem
profissional, currículo e pedagogia” (Nóvoa, 1998).
O que se reconhece é que, nem as escolas, nem as universidades suprem as
necessidades de uma formação docente de maneira isolada. Por este motivo, a cooperação se
torna importante. Tal processo, segundo Nóvoa, implica na instituição de outras funções
profissionais e na valorização dos espaços de prática e reflexão sobre a prática docente. O
autor afirma que a prática docente numa concepção reflexiva da profissão se constrói ligando
reflexão, isto é, a produção de uma consciência crítica com uma ação qualificada. “A
configuração de uma nova profissionalidade docente passa por três investimentos que foram
tradicionalmente ausentes na formação dos professores: a pessoa do professor, a organização
escolar e a profissão enquanto coletividade” (Nóvoa, 1998, p.171). São três desafios que,
segundo o autor, com as novas realidades da formação docente, principalmente a formação
contínua, não podem ser ignorados.
Os professores devem se conscientizar de que sua profissão cada vez mais se
desvaloriza, à medida que se estabelecem sistemas de controle de sua tarefa, de fora para
dentro das salas de aula. É preciso que haja uma conscientização para se chegar a uma reação
que ultrapasse os discursos ideológicos e demagogos de associações e sindicatos. Segundo
Apple & Teitelbaun (1991), isso só será possível se a categoria se unir: “A ação organizada é
seguramente melhor que balançar nossas cabeças, em desânimo para expressar quão difícil é
ensinar, tendo em vista essas condições” (Apple & Teitelbaun, 1991, p. 71).
Hargreaves (2002) afirma que uma das soluções para o professor enfrentar as
dificuldades da profissão está nas “Escolas Colaborativas”, escolas que mantém uma cultura
de colaboração, de ajuda mútua e trabalho em conjunto. Os professores de “Escolas
Colaborativas” se unem para estabelecerem as prioridades e buscarem inovações, têm maior
clareza nas propostas de mudanças em prol de objetivos comuns a todos, buscam soluções
mais criativas para se adaptarem às reformas e exigências que vêm de fora para dentro da
escola, e ainda mais coragem e assertividade para reagir ao processo de proletarização e
intensificação de seu trabalho. São escolas que estabelecem parâmetros realistas e otimistas e
onde os professores mantêm níveis elevados de comprometimento, não confundindo
dedicação com perfeccionismo. Mesmo não tendo argumentos para confirmar as idéias de
Hargreaves (2002), é certo que a colaboração entre os professores pode contribuir para uma
integração maior entre os professores de diversos níveis, diminuir o isolamento e permitir que
uma nova identidade profissional se construa.
66
E para contribuir com essa discussão, apresentamos as idéias de Gimeno Sacristán
(1998) sobre currículo, cultura e códigos, revelando de que maneira influenciam no processo
de profissionalização do professor.
PARTE II
ESTUDOS REALIZADOS SOBRE O ASSUNTO
As questões levantadas até aqui remetem-nos a vários conceitos já estudados que
podem contribuir em nossa pesquisa. Entre eles, destacam-se: Identidade Profissional
Docente; Cultura escolar; Cultura docente; Ação Pedagógica; Intensificação e
Proletarização do trabalho docente.
Em uma pesquisa bibliográfica realizada até o mês de julho de 2005 em sites
bibliográficos como Sciello, Dédalus, Portal INEP/ MEC, CD-ROM de compêndios de Anais
da Endipe e Anped, Portal da CAPES, e em Banco de teses e dissertações da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUCSP), encontramos 65 teses relacionadas com os
referenciais teóricos aqui descritos. Partindo de palavras-chaves como: profissão docente e
construção da identidade profissional docente, no âmbito da educação básica, e intensificação
e proletarização do trabalho docente, buscamos teses e dissertações defendidas desde o ano
2000. O gráfico apresentado a seguir demonstra os resultados obtidos em dados quantitativos.
67
19
10
20
8
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FORMAÇAO INICIAL FORMAÇAO CONTIÍNUA COTIDIANO (Implicaçoes
Sócio-culturais)
FAZER PEDAGÓGICO MUNDO DO TRA BALHO /
PROLETARIZAÇÃO
CONSTRUÇAO DA
IDENTIDADE
Construção da Identidade Profissional Docente
As colunas representam as pesquisas que envolvem o tema da construção da
identidade profissional docente. Cada coluna representa um tema, a saber: construção da
identidade profissional docente versus formação inicial docente; construção da identidade
profissional docente versus formação contínua de docentes; construção da identidade
profissional docente versus o cotidiano docente com suas implicações culturais e sociais;
construção da identidade profissional docente versus o fazer pedagógico docente; construção
da identidade profissional docente versus o mundo do trabalho/ proletarização.
Podemos observar que a construção da identidade profissional docente vem sendo
tema de interesse em muitas pesquisas nos últimos cinco anos. O que é significativo nesta
pesquisa bibliográfica inicial é o fato do tema a ser explorado em nosso estudo – a relação
entre os professores dos dois Ciclos do Ensino Fundamental - ser inexistente.
68
Vale a pena, neste momento, pôr em destaque algumas dessas pesquisas, e outras,
anteriores ao ano de 2000, que podem contribuir em nosso estudo. Vejamos.
Dias-da-Silva (1997), em seu estudo sobre a prática pedagógica de professores na 5ª
série do Ensino Fundamental (primeira série do Ciclo II) em duas escolas públicas do
município de Araraquara, estado de São Paulo, captou algumas crenças e valores que regem a
cultura escolar e sustentam o “saber-fazer” do professor. Sua pesquisa revelou, por exemplo,
que os professores do Ciclo II do Ensino Fundamental utilizam com menor freqüência
materiais de apoio didático como ilustrações, gravuras ou CDs, em substituição ao livro
didático.
Se, por um lado, devemos esperar que a escola disponha desses materiais
para uso de alunos e professores, por outro, é estranho que os próprios
professores – como profissionais – não possuam qualquer material de
trabalho pessoal (como ocorre com as professoras “primárias”...). Ainda que
se reconheça a pauperização profissional do magistério impede que o
professor – pessoalmente – invista dinheiro em slides ou em fitas de vídeo,
incomoda perceber que materiais simples (e até imprescindíveis) não fazem
parte do acervo pessoal dos professores “secundários”. (Dias-da-Silva, 1997,
p. 54)
Alguns depoimentos aqui descritos confirmam que as aulas dos professores de 5ª série
se voltam, na sua maioria, em atividades orais e gráficas, e pouco exploram materiais
ilustrativos, lúdicos ou que evoquem uma situação mais próxima da realidade dos alunos.
Outro aspecto verificado por Dias-da-Silva (1997) está relacionado à afetividade do
professor para com o aluno. Um dos momentos observados pela autora era o “passeio” do
professor pela classe, percorrendo as carteiras e voltando sua atenção para a individualidade
do aluno: “Precisa melhorar essa letra, hein!”, “Vamos melhorar esse caderno” (p.55).
Uma das raras oportunidades do aluno receber uma atenção individual do professor.
No que se refere às características do “saber-fazer do professor de 5ª série”, Dia-da-
Silva (1997) aponta alguns aspectos que merecem ser destacados.
No cotidiano das aulas, o caderno é um dos meios em que professor e aluno se
relacionam. Dias-da-Silva observou que os professores da 5ª série, apesar de sempre
utilizarem o caderno (por vezes até mais que os livros didáticos) para realizarem exercícios e
cópias, raramente se preocupam em olhar os cadernos de seus alunos. Mesmo que o caderno
seja objeto de controle de qualidade e nota, para o professor, ele não tem tempo para ler,
corrigir, verificar atentamente o que o aluno está produzindo. As próprias correções, com
muita freqüência, acontecem na lousa e o aluno copia o “certo” em seu caderno.
69
O saber e a experiência do aluno são ignorados sem a menor preocupação. É como se
aquilo que foi aprendido até a 4ª série, isto é, no Ciclo I do Ensino Fundamental, não
merecesse ser considerado:
Uma cena presenciada na aula de matemática [...]; o garoto pergunta sobre a
divisão e a professora diz que “isso vocês ainda não viram...” O garoto
retruca que sim, que já sabe! E ela simplesmente responde: “Mas não vimos
este ano, né? Até agora só vimos adição, subtração e multiplicação...”.
(Dias-da-Silva, 1997, p. 58)
A autora cita vários exemplos revelando que, na concepção do professor de 5ª série, a
possibilidade de o aluno ser fonte de conhecimento, um sujeito detentor de saberes e
experiências ímpares, é praticamente nula. Até mesmo a “troca” entre alunos não é
importante, pelo contrário, o aluno é sempre alertado de que deve fazer sozinho, não pode
conversar com o outro, etc
23
.
Outra perspectiva que não é considerada é a de interdisciplinaridade. Dias-da-Silva
(1997) constatou que os professores da 5ª série não se esforçam em saber o que os professores
das demais disciplinas estão trabalhando, que assuntos os alunos estão aprendendo nas outras
aulas, etc. Mesmo quando o livro didático sugere uma relação com outros assuntos e
disciplinas, o professor não explora de maneira aprofundada: “Será que a formação recebida
nas licenciaturas (sempre tão ‘específicas’) permitiu a formação intelectual abrangente desse
professor?” (Dias-da-Silva, 1997, p. 60).
A questão da afetividade reaparece quando Dias-da-Silva (1997) descreve o momento
da “chamada”. Considerada pela autora um momento de interação individual e afetiva nas
aulas do Ciclo I do Ensino Fundamental, a chamada na 5ª série se dá pelo professor chamando
pelo número e não pelo nome do aluno (muitas vezes em tom de voz autoritário e em ritmo
acelerado), e com o objetivo de disciplinar a turma, uma “[...] forma indireta de dizer: Fiquem
quietos (agora) que a aula já começou...” (p. 67).
A indisciplina dos alunos é algo que muito incomoda os professores da 5ª série. Dias-
da-Silva (1997) chega a apontar que a organização didática dessa série está associada ao
comportamento “indisciplinado” dos alunos, um comportamento “típico” de alunos da 5ª
série:
23
Juarez Dayrell (2006) afirma que a socialização que ocorre no cotidiano da escola não é potencializada no
espaço escolar, contribuindo para uma distância ainda maior entre o conhecimento individual do aluno e o
conhecimento escolar.
70
[...] as “perguntas cretinas” ou os “resquícios da 1ª a 4ª ...”. Trata-se da
“avalanche” de questões que as crianças formulam no início de uma
atividade, ou perante uma proposta de trabalho. As infalíveis “É para
escrever a lápis ou a tinta?”, “A senhora vai ditar?”, “Quantas linhas pulam?”
[...]. (Dias-da-Silva, 1997, p. 67)
É visível a falta de tolerância dos professores com tais atitudes dos alunos, encaradas
pelos docentes como conseqüências de um ciclo escolar anterior “paternalista”. Essa visão
pode ser revelada na forma como os professores identificam os alunos: na 4ª série eles são
crianças; na 5ª série, são alunos. Dias-da-Silva (1997) colheu alguns depoimentos de alunos
que refletem a percepção e o desconforto deles com relação a essa situação:
Na 4ª série, a professora era mais boa (sic). Na 5ª os professores só sabe
(sic) xingar a gente sem fazer nada.
O professor da 4ª é muito mais atencioso, eles brincam, conversam com a
gente e os da 5ª série não, eles são mais sérios e não conversam com a gente.
Os outros professores beijava (sic) nós, na 5ª as professoras em vez de dar
um beijo elas dão um berro, um puxão de orelha ou senão um pisão no pé ou
um puxão de cabelo ou senão um puxão no braço. (Dias da Silva, 1997,
p.77.)
Sabemos bem que os professores de 5ª a 8ª série assumem que seu papel não é o de
“tomar conta de crianças”: “Não sou detetive pra descobrir quem fez, não sou delegado pra
resolver briga, não sou parente, nem mãe pra dar educação. Assim não é possível! Sou
professora! Eu estou aqui pra ensinar [...]” (Dias-da-Silva, 1997, p. 79). E de preferência,
ensinar apenas o que lhe é de direito na série em questão. “Aluno que não tem base, não pode
ir para a 5ª série”, é expressão comum entre os professores desta série. “[...] não se tem
‘tempo’ para (re)ensinar tabuada (de novo), não se ‘tem tempo’ para (re)ensinar ortografia ou
princípios básicos de redação... O programa é imenso e precisa ser cumprido...” (Dias-da-
Silva, 1997, p. 93).
Este nível de exigência que se estabelece pressupõe que os professores do Ciclo I do
Ensino Fundamental não dão conta de suas tarefas e ainda, muitas vezes o que é ensinado por
eles impede uma aprendizagem “adequada” na 5ª série. “Tem muita coisa que era melhor que
eles não tivessem ensinado, porque agora são dois trabalhos: fazer o aluno esquecer o que
aprendeu errado, e aprender do jeito certo” (Dias-da-Silva, 1997, p. 103). É inegável que
para este professor da 5ª série, os professores de 1ª a 4ª série são “incompetentes”. E a
professora da 4ª série “entra” nesse jogo com facilidade: “Estuda direitinho, porque senão,
quando chegar na 5ª, você não vão acompanhar...” (Dias-da-Silva, 1997, p. 103).
71
E como fica a relação entre estes professores? Dias-da-Silva observou que estas
questões até aparecem nos encontros pedagógicos, no entanto, não são discutidas, apenas
mencionadas como algo que o professor deve se reajustar e pronto. O relato a seguir, de uma
reunião pedagógica, revela que este é um assunto que “incomoda”:
É a transição é fogo!
O tratamento é que é diferente, não é a questão de ser bom professor ou
mau...
As crianças estranham barbaridade! Porque o tratamento é diferenciado
mesmo, mas não é culpa de vocês...
[...]
É uma questão de enfoque, dos objetivos da 1ª até a 4ª série, e da 5ª a 8ª!
Porque o aluno chega na 5ª série, ele tá acostumado com um tipo de
atividade que tem da 1ª a 4ª, que tem mais a ver com recreação, esta coisa...
Então ele chega pra mim e diz” Vamos brincar de quê, tia?’, Que brincar o
quê!... Acho o enfoque da 1ª a 4ª recreacionista, disse uma PIII. (professora
do Ciclo II do Ensino Fundamental). (Dias-da-Silva, p. 1997, p. 103.)
A reação de uma professora do Ciclo I do Ensino Fundamental é imediata. Em tom
irônico, ela rebate:
É... agora nós vamos entrar na ginástica dura, né? Não é pra julgar que o
que a gente faz é recreação e só. Vocês também não se preocupam com o
contrário! (Várias professoras fazem sinal com as mãos e/ou sobrancelhas,
outra dizem “Deixa pra lá...”) Por que vocês não pegam então esse gancho e
começa assim – um pouco de recreação e entrosar com a dureza da 5ª série?
(Vários falam)... Se não dá pra ir direto da recreação para os exercícios,
faça adaptação...
Calma gente! Vamos fazer o ofício”, conta a diretora. (Dias-da-Silva, 1997,
p. 114)
Este relato revela que a situação é real e perceptível, mas até mesmo quem dirige o
grupo nega qualquer tentativa de confronto, o que poderia levar a mudanças nesta realidade.
Quando a sugestão de se integrar mais a 4ª com a 5ª série é colocada, é motivo de risos, como
se fosse algo inviável, impossível. Dias-da-Silva (1997) aponta que as interações que
acontecem estão mais próximas de relações e afinidades pessoais do que profissionais. A
troca pedagógica, realmente, fica de lado. A própria escola, da maneira como está organizada,
não permite uma “vontade” dos professores em refletirem e se aprofundarem em soluções
para este conflito.
Quando se obriga o professor a trabalhar em quatro escolas diferentes,
quando se condiciona o cumprimento de um programa intermitente em
períodos rígidos de 50’, quando (ilegalmente!) se espreme 40 crianças num
espaço limitante e impeditivo, quando se nega salário e material de trabalho
e, sobretudo, quando se nega tempo e condições para que o pedagógico tenha
papel nuclear no cotidiano de seus professores, a escola cumpre seu papel
72
mais algoz de reproduzir a “mesmice pedagógica” (Dias-da-Silva, 1997,
p.121.)
Na pesquisa de Truzzi (2001), os conflitos levantados por Dias-da-Silva (1997) são
reafirmados:
Tomamos aqui algumas falas das professoras de 5ª série a respeito da
competência acadêmica dos alunos [...]
Eu acho que a maioria deles tem, pelo menos, que sabe ler e escrever.
Alguma falha no cérebro é que não é! Porque eles assimilam a matéria, mas
fica difícil ele escrever a palavra correta, [...] (Professora de História).
Eles vêm sem base... Tem muita coisa que deixa a gente doente! Escrever
casa com z, coisa desse tipo! Isso só pode ser falta de base na alfabetização!
[...] Falta de base não só na escrita, mas na leitura, [...] (Professora de
Língua Portuguesa) (Truzzi, 2001, p.13).
Os professores do Ciclo I do Ensino Fundamental, na opinião dessas professoras, não
alfabetizaram seus alunos, em outras palavras, não foram competentes. Uma opinião que
também é emitida por professores das séries mais avançadas do Ciclo I: “Eu acho que eles já
deveriam vir sabendo ler e escrever! [...] Eu acho que desde a 1ª série a criança já tinha que
vir... Vem uma criança mal alfabetizada! [...]. (Professora de Português da 4ª série)” (Truzzi,
2001, p. 13).
O professor de 5ª a 8ª série sente-se incomodado com a situação deste aluno que saiu
mal preparado da 1ª a 4ª série, pois não se sente preparado para lidar com as dificuldades de
alfabetização. “[...] para os professores secundários, talvez o erro do aluno represente, muitas
vezes, um dilema, porque simboliza o reflexo da sua incapacidade ou impotência, da sua não
realização profissional” (Truzzi, 2001, p. 52).
Sabemos que vários são os fatores que levam o professor de 5ª a 8ª série a não dar
conta do processo de leitura e escrita do aluno, mas o principal está na formação deste
profissional. “Formação e experiência profissional raramente permitem que o professor
conheça profundamente o processo de ensino e aprendizagem da leitura e escrita e de
alfabetização” (Truzzi, 2001, p.56). Este seria mais um motivo para que professores de Ciclo I
e Ciclo II do Ensino Fundamental desenvolvam um trabalho integrado e que permitam a troca
de experiências e saberes.
Truzzi (2001) revela também que a questão da afetividade é mais fortemente presente
nas relações de professores e alunos do Ciclo I do Ensino Fundamental:
A gente se sente responsável com relação a ajudar o aluno a progredir. Eu,
professora primária, me sinto responsável pelo aluno. Trabalho pelo
crescimento dele [...] Eu me sinto responsável, então me preocupo. Quando
ele erra, eu procuro mil e uma alternativas de tentar ajudá-lo. [...] O
73
envolvimento afetivo é muito forte para eu abandonar. [...] O aluno é um ser
humano. Ele está aí. Tenho que tentar ajudar. [...] (Professora [...] da 4ª
série). (Truzzi, 2001, p. 71)
O envolvimento do professor é tanto que ultrapassa os “muros” da escola. “[...] Já
levei em janeiro aluno com o meu carro porque se fosse depender da mãe, a mãe não levava
na recuperação... (professora da 4ª série)” (Truzzi, 2001, p. 72).
Os professores do Ciclo I do Ensino Fundamental também criticam os professores do
Ciclo II. Criticam a maneira como os professores desenvolvem seu trabalho, o perfil
profissional, o fato de não respeitarem o universo da criança e não se preocuparem em realizar
um trabalho a partir do que o aluno já sabe, e ainda, o fato deles não estabelecerem um
relacionamento mais afetivo com os alunos. Truzzi (2001) afirma que os professores do Ciclo
I do Ensino Fundamental vêem a afetividade para com o aluno um compromisso profissional.
[...] O professor de 5ª a 8ª série não se envolve, ele é frio! Ele não respeita o
universo da criança! [...] Eles não fazem um trabalho como a gente aqui na
1ª a 4ª, que é um trabalho de base. Eles só querem resultado! A gente está
trabalhando com o aluno verificando o processo dele dia-a-dia. O professor
de 5ª não. [...] Eu acho que os professores de 5ª série em diante se
consideram muito auto-suficientes. Eles não precisam aprender mais nada,
porque eles dominam a prática. Eles precisam se tornar mais humildes e
procurar entender mais o universo da criança. Trabalhar com aquilo que ela
traz, com os conhecimentos que ela já traz. [...] Eles têm que se conscientizar
que o papel deles também é de dar continuidade ao processo, [...]. O
professor de 5ª série não pode fazer uma lavagem cerebral no aluno e
começar tudo de novo, como se a criança não soubesse nada. [...]
(Professora [...], 4ª série). (Truzzi, 2001, p. 98)
Os professores do Ciclo II do Ensino Fundamental acreditam que os professores dos
níveis anteriores exigem pouco dos alunos. Os professores do Ciclo I acreditam que os
professores dos níveis posteriores exigem demais. E nesse confronto de opiniões, os próprios
professores percebem que o problema está posto, mas não se buscam soluções:
Sabe por que está nesse pé? Porque um lava as mãos e joga a culpa no
outro. O dia que cada um assumir o seu papel, o professor de 1ª a 4ª assumir
o papel dele, educador de 1ª a 4ª, ou de 5ª a 8ª ninguém ficará jogando um
pro outro. Porque está um jogo de empurra-empurra. [...] (Professora [...],
Geografia, 5ª série) (Truzzi, 2001, p. 125)
Monteiro (2002) analisou biografias e autobiografias de professores, com o objetivo de
compreender a autoformação destes profissionais como um processo de formação que abrange
não só a construção da identidade profissional, como a identidade pessoal. Apoiada em
teóricos como Berger & Luckmann, Michel Apple, Gimeno Sacristán, Antonio Nóvoa e
74
Maurice Tardif, entre outros, Monteiro (2002) estabelece uma relação com a construção da
identidade profissional docente e o contexto social em que ele está inserido e com as
experiências vividas.
A pesquisa de Monteiro (2002) constatou, entre vários outros pontos, que a identidade
profissional docente se constrói num processo de construção e reconstrução. E nesse processo,
a valorização da prática-teoria desenvolvida pelo profissional é decisiva. Quando os
professores narraram suas experiências de vida pessoal e profissional, tomaram consciência
não só de sua autoformação, como também do conhecimento que construíram ao longo de
suas trajetórias e de como suas identidades foram se forjando de maneira instável, repleta de
mudanças. Nesse processo, a pesquisadora confirma que as vidas pessoal e profissional se
entrelaçam e provocam mudanças recíprocas, e que as relações sociais compartilhadas deixam
marcas na construção da identidade. Isso supõe que a mobilização de situações onde os
professores possam interagir e dialogar com professores de diversas áreas e níveis e outros
atores do segmento educacional, trocando idéias, saberes, experiências e reflexões sobre suas
práticas, contribuem na autoformação profissional e na formação do outro.
Os estudos de Fontana (2000) podem contribuir na apreensão destas questões que
envolvem a construção da identidade profissional docente. A autora relata vivências iniciais
de uma professora do ciclo I do Ensino Fundamental:
[...] sua primeira experiência como professora de uma terceira série da escola
fundamental.
[...] repleta de “boas intenções”, “olhar crítico” e quase nenhum saber fazer.
[...]
Não estou gostando da professora que eu estou sendo.
[...]
A coordenadora tem reclamado que eu não tenho controle da classe. As
crianças falam muito, brincam, riem, fazem barulho ao saírem da sala. Ela
até me sugeriu que voltasse à universidade para fazer alguma disciplina da
área de didática ou metodologia. Estou me sentindo incompetente. Comecei
a ser chata com as crianças. Tenho escrito muita coisa na lousa, tenho
exigido silêncio. Até sermão eu tenho passado! Eu não gosto disso! Eu não
acredito que seja uma boa forma para trabalhar com elas, para estar com
elas, todos os dias, durante quatro horas. Como vai ficar nossa relação? [...]
(Fontana, 2000, p. 108-109)
Um simples relato que pode nos ajudar a pensar como o professor, empolgado no
início de sua carreira, vai se “esvaziando” de seu significado do trabalho docente, sentindo-se
incompetente de não dar conta deste “jogo perverso” de controle de tempo e de ações que
permeiam a sala de aula, que vai “expropriando o ser profissional”. (Fontana, 2000, p.110). E,
ainda, como a escola deixa de se posicionar num papel de ajudar este professor.
75
O professor se isola na sua “angústia”, na sua “frustração” e é engolido pelo cotidiano
do seu trabalho: “É difícil, muito difícil ser professora. É difícil, muito difícil estar na escola,
trabalhar na escola, decidir permanecer na escola, acreditar na escola, sem perder de vista
nossas concepções e valores” (Fontana, 2000, p. 117).
Borba (2001), ao investigar a prática da avaliação escolar de professores do Ciclo I do
Ensino Fundamental, discute o conceito de identidade numa perspectiva dialética entre a vida
pessoal e profissional destes professores. A autora pôde constatar que as professoras, sujeitos
de sua pesquisa, na sua prática cotidiana já constroem sua profissionalidade, o que supõe que
a imagem de professor como uma profissão de doação, vocação e amor, tenha sido superada.
Destacamos aqui algumas considerações de Borba (2001) referentes às formas
identitárias dos professores do Ciclo I do Ensino Fundamental. A autora afirma que a
construção da identidade profissional destes professores se dá num processo em que se
articulam questões de orientação estratégica e as posições que ocupam no espaço escolar,
resultando em uma trajetória social incorporada através de situações vividas, e presentes nas
relações que ultrapassam o ambiente escolar. Essas relações são importantes para que a
professora se reconheça como profissional e contribuem intensamente na produção de seus
desejos, necessidades e saberes. Em outras palavras, a identidade profissional vai se
constituindo em um movimento dialético entre a vida pessoal e a vida profissional.
Reafirmando as teorias de Ozga e Nóvoa, sobre as relações entre Estado e a
construção da identidade profissional docente, Borba afirma que, por vezes, são essas relações
que os professores estabelecem, dos esquemas e valores da profissão docente. Num primeiro
momento, é isto que fará o professor sentir-se reconhecido no grupo profissional o qual
pertence. Em outros momentos, a vida pessoal perpassa a vida profissional e leva o professor
a rever suas necessidades e práticas. E nesse ir e vir entre o pessoal e o profissional, o
professor busca um sentido para sua vida pessoal e profissional, num movimento em que as
discussões, negociações e a flexibilidade estão presentes.
No entanto, segundo Borba (2001), o professor está numa posição desvantajosa, na
medida em que as questões políticas presentes nas escolas, mesmo que de forma sutil, não
colaboram num processo de discussão da profissão e suas especificidades:
Há uma rede instituída de poder e resistências que se expressa na linguagem
informativa, episódica e prescritiva dos agentes envolvidos na administração
da escola. Esses representantes enfatizam, na comunicação, esquemas
preestabelecidos pelo Estado, pela cultura da rotina e pelo papel destinado a
cada um dos envolvidos no espaço escolar. (Borba, 2001, p.187-188)
76
Num movimento ambíguo, o professor é reconhecido por cumprir as tarefas e
exigências da escola, que muitas vezes o obriga ao individualismo, ao mesmo tempo em que
busca e valoriza a solidariedade e afetividade no relacionamento com seus colegas; enquanto
as decisões centram-se no sistema organizacional da escola, o professor busca negociar e se
aliar com este sistema, principalmente quando se depara com conflitos; enquanto a escola
estabelece objetivos, muitas vezes distantes da realidade de sua comunidade, o professor
investe em uma prática e reflexão cooperativas.
Neste contexto de controvérsias, em que o professor vai construindo sua identidade e
revelando o quão complexo e diversificado é este processo, Borba (2001), em sua pesquisa,
estabelece duas formas identitárias que permeiam o ambiente escolar: o professor se articula
entre um professor prático ou artesanal e um funcionário do Estado; o professor se articula
entre um interventor de sua prática e um construtor de sua autonomia.
A primeira forma identitária caracteriza aquele professor como detentor de uma prática
estabelecida na experiência vivida no interior da sala de aula e busca aprimorá-la através de
maior conhecimento técnico e racional, negando ou pouco se preocupando com um
pensamento mais amplo de tomadas de decisões. É o professor que está sempre disposto a
executar o que lhe colocam e a descobrir novas técnicas para cumprir cada vez mais este
papel, que valoriza e estabelece relações afetivas com a autoridade instituída, que as idéias
novas são uma ameaça para ele e que sustenta as normas oficiais. Borba (2001) afirma que
este professor busca, na realidade, uma estabilidade profissional.
A segunda forma identitária estabelecida por Borba (2001) acontece no momento da
ruptura da primeira. O professor estabelece uma relação entre sua identidade profissional e
sua prática. Ele ingressa em um processo de questionar-se a si mesmo – sua imagem pessoal e
profissional, suas capacidades, seus desejos não realizados. Busca estratégias e um maior
conhecimento que possa contribuir numa prática consciente e estabelecer relações de trocas
profissionais, caso o grupo não colabore com ele nesta tentativa, ele se isola de maneira
consciente. Sua relação com a autoridade instituída torna-se um desafio e motivos de
questionamentos que justifiquem as normas que são impostas sem negociação. É aquele
professor que procura, com mais freqüência, as oportunidades na profissão.
Tais formas identitárias, alerta Borba (2001), não podem ser vistas como algo fechado
ou categorias de classificação dos professores do Ciclo I do Ensino Fundamental ou qualquer
outro nível. Cada uma dessas formas identitárias implica “uma relação com o espaço social e
local e se constitui em meta-espaço possível para a escola repensar seu espaço [...], que
integre as pessoas com novos sentidos no coletivo da profissão docente” (p.190).
77
Lopes & Ribeiro (2000 e 2004), ao estudarem sobre a construção de identidades
profissionais em professores do 1º CB em Portugal (corresponde, no Brasil, aos professores
das primeiras séries do ensino fundamental), não só identificaram como se dá esta construção,
como também, contribuíram na construção da identidade profissional dos professores sujeitos
de sua pesquisa.
Estabelecendo uma relação com os referenciais teóricos de Antonio Nóvoa e Claude
Dubar, entre outros, Lopes & Ribeiro (2000 e 2004) partiram da premissa que a crise de
identidade profissional do professor está associada a uma atividade essencialmente
tradicional, que não se renovou ao longo dos anos, mesmo quando o professor desejava (e
ainda deseja) mudanças. Comparando os professores de Portugal com os professores de outros
países, a autora concluiu que a crise entre os professores de Portugal era mais intensa, tendo
como questões centrais o impacto racional que acontece devido às relações entre os
professores e as mudanças, e o impacto pessoal que acontece devido às relações entre os
professores e seus alunos.
Buscando suporte na teoria de Claude Dubar, Lopes & Ribeiro (2000 e 2004) afirmam
que na formação da identidade o grupo profissional em determinado momento deixa de ser a
referência, assumindo este papel os espaços sociais onde as relações concretas acontecem, isto
é, os contextos de trabalho. É quando as identidades profissionais são definidas como
identidades sociais, quando os saberes profissionais assumem importância na lógica do
reconhecimento.
O estudo de Lopes & Ribeiro (2000 e 2004) estabeleceu relações entre o processo de
profissionalização docente e a identidade do professor. Os autores afirmam que:
A tradução do esquema do processo de profissionalização da atividade docente fazer-
se-ia [...] pela re-significação das dimensões do seu núcleo e pela redefinição da sua
periferia em função da nova dinâmica comunicacional que a noção de construção de
identidades profissionais considera necessária à formação de novas identidades sociais
para a “mudança real” [...] (Lopes & Ribeiro, 2000, p. 49).
A partir destas dimensões da estrutura da identidade do professor e da dinâmica
relacional ou comunicacional dos espaços profissionais, Lopes & Ribeiro (2000 e 2004)
basearam-se nos três tempos da modernidade. A primeira fase do processo de construção de
identidade do professor primário, quando da lógica da integração, teve como principal fonte
de socialização a escola de massas da primeira modernidade. Nessa época, o papel da escola
era a moralização do saber e não a instrução. “[...] O saber recebe traduções diferentes de
acordo com a classe social ou o nível de ensino: nas classes menos favorecidas e no ensino
78
primário ele é moralizado nos seus conteúdos e nos modos de lhe aceder” (Lopes & Ribeiro,
2000, p. 49). O professor primário era uma profissão moralmente saturada, segundo os
autores, o que presumia uma subordinação desse professor à produção/ reprodução da
sociedade. Tudo isso contribuiu para um profissional de saber mínimo e de salários baixos.
Nas palavras de Lopes & Ribeiro (2000), a identidade profissional do professor
primário constituiu-se através de seu papel tradicional de “transmissor de conhecimentos e
disciplinador de comportamentos” (p.50). No passado, o professor tinha sua identidade
profissional assegurada pela identidade grupal. Em outras palavras, a simples identificação do
professor com o grupo (sentimento de coletividade) já permitia que os sentimentos de
autovalorização pessoal se estabelecessem.
A questão da feminização da profissão docente também é retratada no estudo de Lopes
& Ribeiro (2000), que colocam este processo como um dilema na construção da identidade
profissional do professor: “A feminização da profissão, que se acompanhou do discurso do
maternalismo [...] pareceu-nos antes dever ser vista como uma ‘representação inacabada da
modernidade’ e, portanto, como uma potencialidade para pensar o futuro” (Lopes & Ribeiro,
2000, p. 51). Nesse primeiro tempo, a construção da identidade profissional docente se deu na
perspectiva do controle social, revelada na dependência do professor à política estatal.
O professor primário na segunda fase passa por uma crise de identidade. Novas
pedagogias surgem (Escola Nova) e revelam uma criança diferente do aluno do passado. As
inovações geram a crise na identidade profissional docente que atinge mais o seu
individualismo (antes escondido pelo tradicionalismo) do que a escola; a organização da
escola se mantém clássica. A crise de identidade profissional se traduz numa crise de sua
identidade pessoal. Numa tentativa de sobreviver à crise, defender-se, a identidade pessoal
constrói uma imagem idealizada de si mesma... “[...] a sensação de mal-estar não os vai mais
abandonar” (p.52). No centro dessa crise estão as relações dos professores com as mudanças –
que originam um sentimento negativo de desvalorização – e as relações dos professores com
as crianças – que originam sentimentos positivos, representados pelo “amor às crianças”. É
nesta ambigüidade de sentimentos que o professor do futuro se apresentará.
Lopes & Rodrigues (2000 e 2004) afirmam que a construção de novas identidades
profissionais docentes implica na identificação das finalidades da educação primária e seus
futuros mais prováveis; “[...] capazes de gerar acomodações mobilizadoras contra as
assimilações paralizantes provocadas pela crise” (Lopes & Rodrigues, 2000, p.53). A
principal condição para novas identidades profissionais docentes serem construídas, a
construção de novas normas de trabalho serão espelhadas em novas relações sociais. Pois são
79
as relações sociais que permitem ações coordenadas entre os professores. Ao considerarmos
os objetivos da escola primária, a identidade profissional docente compartilhada poderia
recuperar a dimensão social do discurso pedagógico dos professores. Um discurso que está
ausente na segunda fase da modernidade de acordo com Lopes & Rodrigues (2000 e 2004).
No tempo da esperança, as novas relações sociais dependem da “[...] resignificação da
dimensão das normas e valores do núcleo da estrutura da identidade dos professores” (Lopes
& Rodrigues, 2000, p.53). É nessa dimensão que se encontra também o maior dilema
profissional docente – o do amor e do controle disciplinador. O “amor à criança” é central
para o professor estabelecer uma imagem positiva de si mesmo. Este aspecto não pode ser
negado, e sim, repensado “numa nova epistemologia”.
Tendo-se em conta que a história de opressão e subordinação dos professores
teve na racionalidade dominante o seu meio fundamental de atuação e que a
essa racionalidade subjaz também uma ideologia masculina dominante [...],
colocando-nos numa postura de esperança, [...] a favor de uma epistemologia
“feminina”, enquanto epistemologia do contato do concreto, capaz de dar
dignidade às sensibilidades e saberes inerentes ao “cuidar de crianças”.
(Lopes & Rodrigues, 2000, p. 54)
Essa nova epistemologia – feminina – permite a consolidação de novas relações não só
entre as dimensões centrais da profissão, como também de novas relações entre as identidades
individual e coletiva. O amor seria valorizado como ética, e a experiência, como fonte de
conhecimento. Um novo ambiente, onde novas relações surgiriam num clima de festa e
alegria e não de burocracia, de acordo com Lopes & Rodrigues (2000 e 2004). Para eles, seria
um regresso do prazer e do desejo no trabalho, tornando-o não só mais produtivo e eficiente,
mas também mais permeado de novas relações de trabalho.
Nesta perspectiva, Lopes & Rodrigues (2000 e 2004) propõem a desconstrução do
eixo central da primeira modernidade “[...] optar mais pelo ‘amor’ que pelo ‘controle’ seria
optar pela realização das promessas mais generosas da modernidade [...], também resignificar
a própria emancipação” (Lopes & Rodrigues, 2000, p.54). A profissão docente emancipada
implica na elucidação dos objetivos da educação, na organização da instrução pública e na
formação profissional dos docentes.
Segundo Lopes & Rodrigues (2000 e 2004), o ensino primário, antes sobrecarregado
pela responsabilidade da (re)produção social e dependente fortemente do exterior, com a
expansão da obrigatoriedade escolar, teve os apelos e o peso do exterior suavizados. Dessa
forma, as práticas que o configuravam também mudaram. Por outro lado, acarretou numa
despreocupação política, educativa e até mesmo científica. Para os autores, esse “abandono”
80
pode ser revelado no nível de ensino que, externamente, é pleno de possibilidades de
transformação, mas que, no seu interior, as “vontades” não sobrepujam as “incapacidades”.
A formação inicial e contínua dos professores também dá mostras deste “abandono”.
No grupo de formação contínua, os professores primários são minoria no que diz respeito aos
professores formadores. Lopes & Rodrigues (2000 e 2004) observam que os professores
primários são vistos como “[...] tradicionalmente subordinados na hierarquia dos docentes”
(Lopes & Rodrigues, 2000, p.56). No grupo de formação inicial, a flexibilidade que faz parte
da realidade, “[...] destruiu uma especificidade que o ensino primário, por razões de
identidade, só pode manter, mas agora, com novas significações: a especificidade de lançar
bases das relações com o saber e com outros, típicas de uma sociedade nova” (Lopes &
Rodrigues, 2000, p. 56).
O discurso pedagógico dos professores primários deve se apoiar numa dimensão social
nova, fundada em novas relações. E é esta dimensão que dá especificidade e sentido a este
discurso. A formação inicial dos professores deve assumir um novo papel, o de um processo
de formação que seja intimamente ligado à construção de novas identidades profissionais
docentes, eixo central para a profissionalização do professor. “Profundamente esquecida nos
últimos anos, esta formação surge-nos como fundamental enquanto configuradora de uma
outra identidade profissional de base, nas suas componentes pessoal e coletiva, obviando ao
caráter quase sempre demasiado tardio de algumas soluções” (Lopes & Rodrigues, 2000, p.
56).
A questão colocada por Lopes & Rodrigues (2004) resume-se em tentar identificar os
conteúdos e as dimensões da formação inicial que possam contribuir na construção de uma
identidade profissional capaz de promover uma mudança social real. O eixo central de tais
dimensões é o discurso pedagógico dos professores, como já citado pelos autores.
E por falar em formação inicial, o estudo de Vieira (2002) permite que reflitamos
sobre a importância que o trabalho docente tem na formação de cidadãos e da necessidade de
um ensino escolar de melhor qualidade. A autora teve como sujeitos de sua pesquisa alunos
do curso de Pedagogia de uma universidade pública estadual do Ceará. Seu objetivo foi o de
possibilitar a estes alunos um início à prática de pesquisa em educação, implementado a
pesquisa como prática formativa. Os dados obtidos acerca do perfil dos sujeitos da pesquisa
de Vieira podem contribuir para nosso estudo. Destacaremos alguns dados que podem ser de
relevância para este estudo.
Quanto ao gênero, a maioria é formada por mulheres, principalmente no nível do
ensino fundamental, mesmo com o ingresso progressivo de professores do sexo masculino;
81
quanto ao ciclo de vida profissional, a maior parte dos professores do ensino fundamental é
jovem, tem até 35 anos, e tem entre cinco e dez anos de exercício do magistério. Este dado
revela aspectos que merecem ser destacados.
Os estudos citados por Vieira (2002) sobre o ciclo de vida profissional indicam que, na
fase de ingresso na carreira (os dois ou três primeiros anos), o professor vive num estado
ambivalente entre o entusiasmo e o choque da realidade, quando se confronta com a
complexidade de sua tarefa. Quando o professor supera essa fase, inicia-se uma nova etapa, a
de comprometimento definitivo, um período em que ele busca a estabilização, com uma
tomada maior de responsabilidade. É nesta fase em que se encontrava a maioria dos
professores sujeitos de sua pesquisa.
Com relação à formação dos professores pesquisados por Vieira (2002), a maior parte
dos professores do ensino fundamental era portadora de diploma universitário. Um dado que
pode parecer contraditório quando colocado ao lado do quesito faixa salarial. Enquanto os
professores de ensino médio pesquisados ganham mais de dez salários mínimos (dados do
INEP – Instituto Nacional de Pesquisa – de 1999), os professores do ensino fundamental
afirmaram receber entre um e três salários mínimos.
Tendo como referencial teórico Antonio Nóvoa, entre outros, Vieira (2002) analisou
os aspectos mais marcantes das experiências de vida que deixaram marcas significativas na
formação cultural (valores, crenças, hábitos, ambiente familiar, origem social, influências
marcantes) dos professores, sujeitos de sua pesquisa. Os depoimentos revelam que o
magistério sempre foi uma atividade de significado prazeroso, na medida em que muitos
professores declaravam “brincar de ser professor” quando crianças. (Neste momento,
podemos relembrar a teoria de Berger & Luckmann sobre a socialização primária e
secundária). Outra influência percebida foi a formação religiosa, citada pelos professores que
buscaram o magistério pelos princípios de honestidade, respeito e bondade, inerentes a essa
profissão, revelando um rigor moral em sua trajetória profissional.
A questão sobre a origem social dos professores vem sendo muita pesquisada na
sociologia. Na pesquisa de Vieira (2002), a maioria dos professores pesquisados afirmou
serem oriundos da classe média, influenciando de maneira significativa na construção da
imagem da profissão: “A estrutura macroeconômica de nossa sociedade, a dificuldade de
trânsito entre as classes sociais, a desigualdade tácita e cominada entre as classes faz com que
uma categoria profissional esteja vinculada fortemente à classe social” (Odelis, Ramos, 1999,
p. 347, Apud Vieira, 2002, p. 44).
82
Os relatos destes professores pesquisados, oriundos de família com pouca instrução,
revelaram também o quanto a educação escolar é valorizada, sendo vista como instrumento de
ascensão social e chave na promoção de mudanças na sociedade.
Ao declararem as influências recebidas, os professores pesquisados revelaram o poder
(favorável ou desfavorável) da família e amigos que, muitas vezes, serviu de inspiração e de
ajuda ao optarem pela profissão docente, e até mesmo no incentivo a hábitos como o da
leitura. No entanto, “[...] apesar do hábito da leitura ter sido apontado com mais freqüência do
que os outros, o porcentual de professores que fizeram referência parece pouco representativo
para um coletivo de educadores” (Vieira, 2002, p. 54).
A pesquisa de Vieira (2002) possibilitou, ainda, o surgimento de pistas a respeito do
que motivou os professores a fazerem a escolha pela profissão e a imagem que tinham dela. A
autora classificou as motivações segundo alguns critérios, a saber: influências familiares,
vocação, necessidade de sobrevivência, e outros. A vocação é apontada como a principal
motivação de escolha da profissão docente, no estudo da autora. Em igual número de
respostas, os professores entrevistados afirmaram que em algum momento da carreira
pensaram em mudar de atividade profissional. No entanto, é o gosto pela atividade docente
que faz com que se mantenham onde estão; parece que o prazer desencadeado na época da
socialização primária permanece. Outro dado que aparece com muita freqüência nas pesquisas
apontadas por Vieira diz respeito à falta de coerência na relação professor/ aluno e a
sobrecarga quantitativa da atividade docente.
Estes fatores podem ser responsáveis pela chamada “síndrome de burnout”:
[...] “atitudes e condutas negativas com relação aos usuários, clientes e
organização e trabalho; é assim, uma experiência subjetiva, envolvendo
atitudes e sentimentos que vêm acarretar problemas de ordem prática e
emocional ao trabalhador e à organização” [...]. [...] seria, então, uma
“desistência de quem ainda está lá. Encalacrado em uma situação de trabalho
que não pode suportar, mas que também não pode desistir” [...]. (Vieira,
2002, p. 67-68)
A questão da desvalorização da profissão é a imagem mais contundente na pesquisa
realizada por Vieira (2002), quando relata como os professores são percebidos pelos outros.
Uma imagem que é reforçada pelos próprios professores, segundo a autora: “[...] muita desta
imagem ainda faz parte do modo como o professor se vê a si próprio apesar da realidade
mostrando outra coisa” (Vieira, 2002, p.70). A ambigüidade já relatada por Nóvoa e outros
autores, com relação à imagem do professor como responsável pelas mudanças na sociedade e
de baixo status social, é reforçada na pesquisa de Vieira (2002).
83
A análise permitiu identificar que este é um campo pleno de contradições. De
um lado, estão motivações que parecem inspirar positivamente o trabalho
docente. De outro, imagens e fatos que operam na direção inversa – baixos
salários se articulam e visões negativas acerca da profissão. Neste terreno
movediço se constrói a auto-imagem do professor. Por assentar-se em base
frágil, seu pleno desenvolvimento parece ameaçado. Os efeitos de tal situação
se projetam para outras esferas do ser professor, a exemplo da formação [...]
(Vieira, 2002, p. 72.)
Outro aspecto da pesquisa de Vieira (2002) está relacionado à imagem que o professor
tem de sua própria formação profissional, as reflexões sobre sua formação inicial, a instituição
em que estudaram e as experiências vividas neste período e sobre a formação contínua. Com
relação à formação inicial, vários professores entrevistados apontam o estágio como uma
experiência importante neste período e os professores formadores como influenciadores
positivos. A questão do estágio nos remete à questão da relação entre teoria e prática, surgida
nos resultados de Vieira (2002) como um “dilema” para os professores.
Chama a atenção da autora a ausência de livros na formação dos professores como
referencias à construção de sua identidade profissional, “[...] as marcas importantes são
aquelas deixadas pelas pessoas, em particular, os bons professores, independentemente da
precariedade do contexto onde exerçam sua atuação” (Vieira, 2002, p. 80). Esta questão nos
leva à precariedade dos cursos de formação, sejam eles iniciais ou contínuos. Os últimos,
vistos pelos professores entrevistados como treinamento e/ou capacitação, não têm sentido ou
importância para seu crescimento profissional.
E como o professor se sente com relação ao seu ambiente de trabalho e até mesmo
com relação ao salário que recebem é o próximo quesito que destacamos na pesquisa de
Vieira (2002). Neste aspecto, a autora buscou coletar dados sobre a participação política dos
professores entrevistados e sua visão sobre o trabalho em escolas públicas e privadas,
investigando o que é diferente e o que é similar.
A maior parte dos professores entrevistados revelou sentir-se bem no ambiente de
trabalho, principalmente por conta das relações que estabelecem com os outros professores da
escola, um relacionamento que, segundo eles, é repleto de harmonia, cordialidade, respeito e
colaboração; e promove crescimento e fortalecimento das ações que a escola desenvolve.
Na voz de alguns entrevistados, os colegas de trabalho e os alunos são
considerados uma ‘segunda família’. Vale destacar que afirmações desta
natureza só foram encontradas entre os professores de ensino fundamental,
subnível de ensino no qual os professores têm maior contato com os alunos e,
em geral, passam mais tempo numa mesma escola. Entre os professores de
84
ensino médio está bem mais definido o papel do profissional da educação,
claramente distinto do papel de familiares. (Vieira, 2002, p. 111)
Apesar deste resultado, surge um número significativo de professores que colocam
restrições à equipe em que atuam. O isolamento já descrito aqui por Nóvoa, Tardif & Lessard
e Hargreaves (1998a, 1998b) é apontado nos resultados colhidos por Vieira (2002): pouco
contato entre os colegas da equipe, falta de tempo, descompromisso de alguns professores,
estrutura física insatisfatória e inadequada, rivalidade e concorrência; estes foram alguns dos
itens citados. Há ainda a falta de recursos e condições inapropriadas de funcionamento.
Mesmo com tantos aspectos negativos, um sentimento de apatia e conformismo se
instala entre os professores. Muitos chegam à conclusão de que o que recebem é o suficiente
para sobreviverem. Mesmo quando comprovada a diferença salarial entre professores de
mesma formação e atuando em mesmas séries e horários, o sentimento de injustiça não
sobrepuja o sentimento de conformismo. Tal comportamento pode ser reflexo da baixa
participação política que abate esta profissão. Alguns professores alegam não participarem
politicamente devido à falta de tempo, falta de estímulo ou de crença nos resultados de uma
atuação política. A falta de informação e a presença marcante de preconceitos também foram
registrados por Vieira (2002):
[...] professores receiam envolver-se com política, demonstrando um sentido
prático de sobrevivência profissional. Acreditam que sua participação em
movimentos desta natureza pode, de alguma forma, comprometê-los.
[...]
Alguns entrevistados demonstraram não ter clareza se ensinar é um ato
político, ou não. (Vieira, 2002, p. 125.)
Como último quesito, os trabalhos realizados em escolas, públicas ou privadas, são
marcados por diferenças em suas instalações físicas, na disponibilidade de recursos didáticos,
na atenção dada aos pais, no controle da atividade docente e no salário, no interesse e no
comprometimento dos alunos.
A pesquisa de Vieira (2002), enfim, contribui no desvelamento do “ser” professor:
“[...] um novo perfil parece estar emergindo” (p. 142). Há de se refletir sobre uma política de
formação profissional inicial e contínua.
É este novo perfil que Kuenzer (1999) retrata em seus estudos. A autora se propõe a
pesquisar as novas políticas de formação de professores frente às mudanças que acontecem no
mundo do trabalho e nas políticas educacionais destas últimas décadas. Os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs) e os Referenciais Curriculares Nacionais (RCNs),
estabelecidos pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) do Ensino Brasileiro de 1996, adotam uma
85
concepção de educação e escola que orientará os processos de formação dos professores na
virada do século. Para a autora, novas demandas de educação surgiram, revelando a
necessidade de uma nova pedagogia. Antes, a pedagogia que dominava era aquela
estabelecida organicamente a partir de tendências técnicas do trabalho e tinha como finalidade
a produção de resultados:
[...] ora se centrava nos conteúdos, ora nas atividades, sem nunca contemplar
uma relação entre aluno e conhecimento que verdadeiramente integrasse
conteúdo e método, de modo a propiciar o domínio intelectual das práticas
sociais e produtivas. Em decorrência, a seleção e organização dos conteúdos
sempre tiveram por base uma concepção [...] de conhecimento rigorosamente
formalizada, liberal e fragmentada, em que cada objeto correspondia a uma
especialidade, a qual ao construir seu próprio campo, se automatizava,
desvinculando-se das demais e perdendo também o vínculo com as relações
sociais e produtivas (Kuenzer, 1999, p. 5)
Bem, esta pedagogia não exigia muito do professor, pois a habilidade cognitiva que
deveria ser desenvolvida no aluno, a que seria indispensável à participação no trabalho e na
vida social da época, era a memorização, o que implicava no disciplinamento do aluno. Para
tanto, para ser professor bastava alguma escolaridade, um curso de treinamento profissional e
muita experiência, em outras palavras, a pedagogia que bastaria seria aquela que “objetivasse
a uniformidade de respostas para procedimentos padronizados”. Para Kuenzer (1999), este
modelo definiu um professor de pouco conhecimento acadêmico, que teria como principal
tarefa compreender e transmitir o conteúdo escolar, e saber manter o respeito e a disciplina na
sala de aula. Esta falta de especificidade contribuiu para a falta de identidade do professor.
Segundo Kuenzer (1999), as mudanças que atingiram nas últimas décadas os diversos
setores da vida social passaram a exigir um maior desenvolvimento das habilidades cognitivas
e comportamentais também do professor:
[...] análise, síntese, estabelecimentos de relações, rapidez de respostas e
criatividade em face de situações desconhecidas, comunicação clara e
precisa, interpretação e uso de diferentes formas de linguagem, capacidade
para trabalhar em grupo, gerenciar processos, eleger prioridades, criticar
respostas, avaliar procedimentos, resistir a pressões, enfrentar mudanças
permanentes, aliar raciocínio lógico formal à intuição criadora, estudar
continuamente, [...] (Kuenzer, 1999, p. 6)
Enfim, estamos falando de um professor que não só tenha domínio de conteúdo, como
também de conhecimento metodológico e das diversas maneiras de trabalho intelectual
multidisciplinar. O que implica numa formação profissional, seja ela inicial ou continuada,
rigorosa, e que atinja níveis cada vez mais complexos. Em outras palavras, o professor
86
necessita de uma nova competência científica-técnológica, e esta, aliada a uma competência
ética que responda ao compromisso político de qualidade de vida social e produtiva. O que
significa que o professor deve ser capaz de:
“[...] compreender historicamente os processos de formação humana
em suas articulações com a vida social e produtiva, as teorias e os
processos pedagógicos, de modo a ser capaz de produzir
conhecimento em educação e intervir de modo competente nos
processos pedagógicos amplos e específicos, institucionais e não
institucionais com base em uma determinada concepção de
realidade” (Kuenzer, 1999, p.7).
Este novo paradigma contribuiria na construção de uma identidade profissional
docente mais positiva, já que o professor interviria de maneira intencional e sistematizada nos
processos pedagógicos produzindo um saber escolar partindo da transformação do
conhecimento social e histórico; selecionaria e organizaria os conteúdos e os trabalharia numa
metodologia adequada a cada um deles; construiria novas formas organização e gestão dos
sistemas educativos e, ainda, participaria da construção de projetos coletivos no setor
educacional, comprometidos com o desejo dos alunos. Desta maneira, o profissional docente
teria uma formação específica, o que não a tornaria uma profissão banalizada.
Esta “nova” formação profissional é a resposta ao surgimento de um “novo” professor.
Seria uma formação que permitiria ao professor se apropriar de diversas formas de leitura e
interpretação da realidade e estabelecer a interlocução com especialistas. Os campos de
conhecimento a serem desenvolvidos nessa formação devem contemplar as ciências da
filosofia, história, sociologia e economia, de maneira que o professor “[...] produza categorias
de análise que permitam a elaboração de uma síntese peculiar, que tomem como eixo os
processos educativos [...] (e) principalmente a intervenção na realidade” (Kuenzer, 1999, p.8).
Uma formação que considere outras formas de organização, em que as relações entre o
homem e o conhecimento se dêem através de atividades intelectuais que exijam o
desenvolvimento de competências cognitivas desenvolvidas a partir de interações
significativas entre o professor que está se formando e o conhecimento. De tal maneira que a
construção de novos conhecimentos passe por uma nova metodologia e por conteúdos
inseridos num contexto sócio-histórico e científico. A formação profissional docente deve ter
como princípio as leituras de realidade e os conhecimentos dos saberes tácitos e as
experiências dos alunos, partindo da seleção de conteúdos e da organização de situações de
aprendizagem onde as interações entre o aluno e o conhecimento se estabeleçam a fim de que
os professores que estão se formando saiam do senso comum e cheguem a um comportamento
87
científico, que forme o profissional para não somente dar conta dos conteúdos específicos de
sua área, mas que principalmente, tenha conhecimento das diversas formas de aprendizagem
em cada etapa do desenvolvimento humano, da diversidade de organização dos processos de
aprendizagem e da metodologia adequada a cada conteúdo proposto. Os desafios desse novo
professor ainda serão os mesmos: salários baixos, recursos precários, deficiências cognitivas e
culturais de seus alunos cada vez mais intensas (devido à sua própria origem). Tudo isso
exigirá um esforço ainda maior de competência e criatividade.
As políticas atuais de formação profissional docente, segundo Kuenzer (1999), não só
não contemplam todos estes aspectos, como não tornam viável a construção de uma
identidade do professor como um cientista da educação. A formação como se dá nos dias de
hoje, aligeirada e superficial, colabora na construção de uma identidade profissional de um
professor que apenas cumpre tarefas. Os princípios gerais que asseguram “[...] a cada
instituição formadora, ‘flexibilidade’ para definir as propostas que atendam às novas
demandas do mercado local e regional, e às especificidades institucionais e do aluno [...]
(Kuenzer, 1999, p. 15)”, são traduzidos pela autora como uma autonomia em que cada curso
percorre seu caminho de maneira a atender uma formação flexível que exige não mais que
uma base generalizada e inespecífica e que não acompanham as mudanças científico-
tecnológicas atuais, muitas vezes atreladas às condições de mercado, isto é, às condições de
custo baixo. A não regulação do Estado, ou seja, a privatização continuará estabelecendo as
regras de ingresso ao rol das profissões nobres no mercado de trabalho, como por exemplo, o
que acontece com os que se formam no curso de Direito que, para exercerem sua profissão,
devem passar por exame específico e eliminatório. A igualdade de oportunidade de formação
dá lugar aos atributos individuais, diferenciados pelas trajetórias e o poder econômico de cada
um, transformando-se assim, no que Kuenzer (1999) chama de um grande shopping: quem
tem mais tempo e dinheiro compra mais qualificação e, assim, consegue melhores
oportunidades de emprego; ficam os professores sobrantes.
Ao Estado cabe apenas estabelecer uma nota ao produto final (os exames nacionais são
um exemplo desse “controle”), controlando a qualidade de formação profissional através de
critérios relativos apenas aos resultados quantitativos (instalações, número de livros,
qualificação dos professores, número de produções bibliográficas e técnicas, número de
alunos formados, etc), revelando uma concepção economicista, de produtividade. Para
Kuenzer (1999), este modelo é elitista e se adequa às demandas de um trabalho flexível na
sociedade globalizada em que vivemos atualmente. Não há interesse em oferecer aos
88
professores uma educação científico-tecnológica e sócio-histórica continuada, pois esta tem
custos altos para aqueles que serão os professores sobrantes.
Sobre a carreira do professor, a pesquisa de Chakur (2002) permitiu identificar três
níveis hierárquicos na aquisição da profissionalidade docente. Em cada um destes níveis o
professor estabelece reações para compensar os conflitos vividos. Numa perspectiva
piagetiana, a autora buscou na prática pedagógica, na reflexão e autonomia do professor, e na
sua identidade profissional, em paralelo com seu ciclo de vida profissional, uma abordagem
inovadora acerca da profissionalização docente.
Em sua pesquisa, a autora contrapõe as referências à profissionalidade docente que
têm como modelos de formação e atuação do professor os da racionalidade técnica e prática.
No primeiro, concebe-se o professor como técnico-especialista e a prática
pedagógica como intervenção tecnológica, caso em que o professor deve
formar-se no domínio dos conteúdos específicos de que vai tratar
(componente científico-cultural da formação) e em competências e
habilidades de atuação prática (componente psicopedagógico), para que seja
capaz de solucionar problemas práticos recorrendo a normas e técnicas
derivadas do conhecimento científico.
No modelo da racionalidade prática, são utilizadas expressões tais como
prático reflexivo, investigador, profissional clínico para definir a figura do
professor. A prática é concebida como processo de investigação na ação,
núcleo da formação docente e lugar da produção do saber, enquanto a
formação se torna desenvolvimento profissional. (Chakur, 2002, p. 151)
Três construções teóricas de Piaget fundamentam o estudo da profissionalidade,
segundo Chakur (2002): a teoria da equilibração das estruturas cognitivas, a teoria da
tomada de consciência e a teoria do desenvolvimento moral. Na primeira, encontramos
noções a cerca de abstração reflexiva e níveis de desenvolvimento e maneiras diferentes de
reações frente aos conflitos – as reações compensatórias. Na segunda, são as diferenças entre
o fazer e o compreender e seus mecanismo de regulação que são enfatizadas.
No estudo sobre Piaget, Chakur (2002) destaca que o sistema cognitivo tem seu
equilíbrio por conta dos processos de assimilação e acomodação.
Para desenvolver-se, um esquema (ou estrutura) deve ser ativado; um
esquema tem necessidade de "alimentos" para que funcione. Em situações de
intercâmbio com o meio, na medida em que o esquema de assimilação é
posto em funcionamento, o sujeito fatalmente se depara com novos objetos e
situações que oferecem obstáculos à assimilação e provocam desajustes no
esquema em atividade. São desajustes que necessitam ser compensados para
que haja reequilíbrio. Ocorre que o reequilíbrio tem sempre um elemento de
novidade, ou se produz em novas bases (reequilíbrio localizado ou
reequilibrações estruturais de conjunto): o esquema pode, assim, diferenciar-
se para melhor ajustar-se à situação (acomodação), ou se combinar com
outros (assimilação recíproca) para dar conta do objeto ou situação
inicialmente inassimilável.
89
Para que as perturbações interpostas pela realidade ao equilíbrio alcançado
possam ser integradas à estrutura cognitiva, o sujeito recorre a certas reações
compensatórias, formas de reagir ao elemento perturbador de modo que
compense seus efeitos e reaver o equilíbrio perdido. (Chakur, 2002, p. 155)
A autora retoma as três formas de compensação apontadas por Piaget, que vão de um
caráter mais elementar ao mais avançado. A do tipo a, quando o indivíduo se depara com uma
situação de desequilíbrio e ele tenta simplesmente anulá-la, negligenciá-la ou afastá-la,
provocando modificações na ação original. Num segundo tipo de conduta, a do tipo b, o
indivíduo busca modificar a ação de forma a ajustá-la à situação de desequilíbrio. De maneira
que, "o que era perturbador, torna-se variação no interior de uma estrutura reorganizada,
graças às relações novas que unem o elemento incorporado àqueles que já estavam
organizados" (Piaget, 1975, p.72, Apud Chakur, 2002, p. 157). Já numa outra conduta, que
Piaget denomina a do tipo g, todas as variações possíveis são antecipadas, pois o fator
perturbador se integrará ao sistema cognitivo, de forma que o fator perturbador deixa de sê-lo
para se inserir no sistema cognitivo.
A análise de Chakur (2002) levou às seguintes conclusões: 1) os professores reagem a
situações perturbadoras de maneira semelhante às formas compensatórias que Piaget propõe;
2) a construção da profissionalidade docente, nos seus três eixos – prática pedagógica,
autonomia e identidade profissional – acontece em níveis de equilíbrio que se distinguem um
do outro: nível I, da profissionalidade fragmentada; nível II, da profissionalidade localizada;
nível III, profissionalidade refletida. A autora reforça que estes níveis não obedecem a um
critério de idade cronológica, nem a composição de estilos de aprendizagem e ensino.
Vejamos o primeiro nível. Neste nível há um desvio de identidade e a prática é
automatizada, isto é, cristaliza-se na rotina diária. Tal prática é revelada pelo automatismo,
pois é resistente às mudanças e nela são aplicados os mesmos esquemas de atuação (com
freqüência, aqueles caracterizados por práticas tradicionais de ensino) a diferentes situações,
diferentes classes de alunos e contextos.
As soluções para lidar com problemas relacionados à gestão de classe
(condutas tidas como inadequadas, por exemplo) são predominantemente
heterônomas, repressivas e descomprometidas com a aprendizagem do aluno:
o professor pode lançar mão, simplesmente, de medidas repressivas, ou
delegar a outrem sua função de gestor da classe, omitindo-se da
responsabilidade que lhe é própria como agente educativo. (Chakur, 2002, p.
163)
90
A identidade profissional docente não tem fronteiras e mostra-se fragmentada. Tal
afirmação, segundo Chakur (2002), pode ser revelada quando o professor aceita ou se mostra
conivente com os desvios de sua função, quando o nível de consciência de seu papel
profissional é baixo, ou quando se omite de sua responsabilidade. A profissionalidade neste
primeiro nível não demonstra sentimento de coletividade. O professor não revela necessidade
de partilhar aspectos da profissão docente (conhecimentos, procedimentos, valores, normas
reguladoras). Frente aos conflitos, os professores reagem de forma a garantir a harmonia,
muitas vezes negando, afastando ou deformando as situações perturbadoras.
Enfim, de acordo com Chakur (2002), é um nível em que o professor demonstra uma
consciência elementar ou periférica, suas ações são guiadas por uma regulação automatizada
e suas reflexões operam de forma simples, representando apenas a situação perturbadora. O
grau de consciência é parcial, sem ligações ou relações mais abrangentes.
Com esse grau de consciência, torna-se difícil ao professor compreender a
própria prática, o potencial dos alunos e a relação pedagógica que com eles
mantém, bem como as relações com colegas e com outros agentes escolares e
as próprias funções que lhe cabem como profissional do ensino. (Chakur,
2002, p. 165)
No nível II, a profissionalidade docente está localizada num patamar de semi-identidade.
Nesta etapa, o professor apresenta uma mobilidade na sua prática:
É uma prática que se apóia em centrações alternadas em diferentes elementos
do contexto e em análises das situações problemáticas – análises pontuais ou
muito genéricas – o que resulta em ambigüidades nos julgamentos e nas
decisões. É freqüente, também, nos depoimentos desse nível, a busca de
razões da dificuldade ou problema levantado, o que mostra que os esquemas
interpretativos da situação não estão muito cristalizados. (Chakur, 2002,
p.166)
A gestão da classe é marcada por medidas de repreensão e não repreensão e na gestão
do planejamento pedagógico predominam as soluções que não implicam em mudanças
significativas; soluções acomodadoras, no entender de Chakur (2002).
Ao invés da simples submissão e conformismo com a situação e das
centrações que ocorrem no nível I, o professor lança-se à busca de
informações, de razões e fatores não imediatamente aparentes que possam
dar conta do problema. Nas soluções de compromisso, abala-se o esquema
interpretativo familiar de que o professor dispõe e que deve ser modificado
para que possa ajustar-se à situação. (Chakur, 2002, p.166-167)
91
Há uma certa compreensão e tomada de consciência, e o conhecimento e os esquemas,
até então cristalizados, começam a se modificar.
O início de descentração torna-se especialmente significativo quando se trata
de conflitos que envolvem relações interpessoais. Nesse caso, o conflito
como tal já é considerado, mas às custas de centrações alternadas em
elementos ou fatores distintos. O professor busca, então, justificar, às vezes
de modo forçado e rudimentar, as ações e atitudes de um e de outro dos
protagonistas envolvidos no conflito. (Chakur, 2002, p.167)
O nível III é marcado por um exercício profissional refletido, uma autonomia
responsável do professor. Sua identidade profissional está consolidada. A prática pedagógica
ainda é flexível, mas agora adequada à matéria e ao ritmo do aluno, experimentando os
diversos materiais didáticos de forma mais criteriosa, etc. A rigidez e o automatismo e as
experimentações cegas já não aparecem. Na gestão da classe e da matéria, as soluções
heterônomas também não. Predominam-se as soluções investigativas e a busca de alternativas
inovadoras no lugar de medidas repressivas, sempre considerando as especificidades dos
alunos. O que é central nesse nível é a reflexão frente às situações perturbadoras, aliada a um
comprometimento do professor com os alunos e à responsabilidade pelo seu próprio papel e
trabalho, ou seja, a tomada de consciência.
Em situações de possível confronto interpessoal, o conflito na verdade deixa
de existir, desde que é assimilado a uma visão integrada da situação, na qual
se salientam não apenas o direito do outro, como também o direito e a
legitimidade da ação profissional. Não se notam, portanto, reações de
negação, afastamento ou de evitar o conflito, presentes em níveis anteriores.
(Chakur, 2002, p.171)
A fragmentação de identidade profissional não aparece, o professor não demonstra
mais desvio de função, percebendo-se membro de um coletivo profissional e adotando
atitudes de cooperação e consciência do papel de profissionais do ensino. “As soluções
tornam-se, então, políticas e cooperativas” (Chakur, 2002, p. 172).
A autora conclui que uma mudança da prática profissional do professor implica na:
[...] sensibilização com relação aos fatores perturbadores centrais do
equilíbrio atingido, que nem sempreo percebidos, e sensibilização do
professor à própria mudança. O professor pode perceber o conflito, sem que
seja sensível à mudança, e pode sensibilizar-se a mudar, mas sem que saiba
como fazê-lo. (Chakur, 2002, p. 172)
Chakur (2002) retoma a questão do pensamento prático dos professores, que pode ser
aprendido através de reflexões na e sobre a ação, e a importância da troca de experiências e
92
saberes entre ele. No entanto, ela chama a atenção para dois aspectos: a indagação na ação e
interação entre pares:
Por um lado, quando o professor permanece na reflexão na e sobre a ação,
isso resulta apenas na construção de teorias em ação personalizadas e sobre
situações singulares, com pouca possibilidade de generalização. Por outro, se
o caráter público dos conhecimentos próprios do ensino permanecer
dependente de trocas casuais entre professores, tendo por base apenas suas
experiências individuais e as trocas informais, o repertório resultante não
comportará a validade necessária à sua transmissão. É necessário que o
"público" seja cientificamente validado e organizado de modo sistematizado
em teorias da ação (e não teorias em ação) – tarefa que cabe à pesquisa
científica. (Chakur, 2002, p.173)
As maiores dificuldades para o desenvolvimento pleno da profissionalidade refletida –
considerando-a como um processo coletivo inserido num contexto social e escolar – são as
mudanças nas exigências sociais, as imposições burocráticas-administrativas e a
desvalorização do professor. Chakur (2002) chama a atenção para os “discursos” que colocam
o professor como um reflexivo de sua prática, mas que não consideram o contexto dessa
prática.
Deve ser lembrado que as margens de autonomia dos professores estão
delimitadas por diretrizes políticas e pela realidade histórica e ideológica,
condicionadoras da profissionalidade. Seria muito mais conveniente levantar
a voz contra certa prática nefasta de instituir, periodicamente, pacotes
educacionais raramente bem-vindos e sem qualquer continuidade e, às vezes,
sem nexo também. (Chakur, 2002, p. 173)
Neste processo, segundo Chakur (2002), a universidade tem um papel crucial: o de
fornecer uma formação inicial e continuada que dê conta de sensibilizar os professores para o
contexto e os problemas do ensino.
A formação inicial docente foi analisada por Scheibe & Aguiar (1999), ao
pesquisarem o curso de pedagogia no Ensino Superior brasileiro. No estudo, as autoras
destacam o processo de afirmação da identidade do profissional da educação e como a
docência se constrói neste processo.
No final da década de 1970, a questão da base comum nacional nos cursos de
formação em pedagogia foi o centro de discussões entre especialistas e órgãos educacionais.
Tendo como suporte a identidade profissional docente, os educadores debatiam os cursos de
formação docente e suas implicações.
Em 1983, no Encontro Nacional para a "Reformulação dos Cursos de Preparação de
Recursos Humanos para a Educação", realizado em Belo Horizonte, foram estabelecidas
93
metas que, retomadas em 1994, durante a 36
a
Reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência), explicitavam a importância de se estabelecer uma base comum
nacional nos cursos de formação docente.
[...] A base comum seria a garantia de uma prática comum nacional a todos
os educadores, qualquer que seja o conteúdo específico de sua área de
atuação. Assim concebida, ela supõe que, ao longo de todo o processo de
formação, isto é, durante todo o curso, em todas as disciplinas pedagógicas, e
principalmente nas de conteúdo específico, busque-se estimular a capacidade
questionadora da informação recebida e a sua crítica. Esta base comum deve
contemplar estudos comuns a todas as licenciaturas, objetivando formar o
hábito da reflexão sobre as questões educacionais no contexto mais amplo da
sociedade brasileira e a capacidade crítica do educador, em face da realidade
em que vai atuar. (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 228)
Considerada uma diretriz no que se refere à formação básica do docente, sua
concretização se daria pela definição de um corpo de conhecimento fundamental. “[...] Essa
concepção básica de formação do educador deve traduzir uma visão de homem situado
historicamente, uma concepção de educador comprometido com a realidade do seu tempo e
com o projeto de uma sociedade justa e democrática” (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 229).
Os diversos cursos de licenciatura devem ter uma base comum que se preocupe com o
“compromisso político do educador”, a formação de uma consciência crítica. Para tanto, esta
base comum é formada por um corpo de conhecimentos fundamentais, que insira o educador
em um processo reflexivo e crítico das ciências filosóficas, sociológicas, políticas e
psicológicas, e que tenha como referência o contexto brasileiro no que se refere aos setores
socioeconômico e político. A base comum nos cursos de formação docente tem que ter como
princípio a “transformação da sociedade brasileira”, entendida como um “instrumento de luta”
norteador da reformulação que deve acontecer nos cursos de formação docente. Nessa época,
a idéia era a de que não seria possível reformular os cursos de pedagogia, sem também
reformular as licenciaturas, e tal reformulação só se daria se o sistema educacional sofresse
profundas mudanças.
Na final da década de 1990, após a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB – 9394/96), as lutas por uma nova configuração dos cursos de formação
docente tomam um outro rumo. A introdução, na legislação, dos Institutos Superiores de
Educação (ISE) permite as mudanças que, até então, “não tinham sido possíveis”.
a) Curso Normal Superior, para licenciatura de profissionais em educação
infantil e de professores para os anos iniciais do ensino fundamental; b)
cursos de licenciatura destinados à formação de docentes dos anos finais do
ensino fundamental e do ensino médio; c) programas de formação
continuada, destinados à atualização de profissionais da educação básica nos
diversos níveis. (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 229)
94
Na opinião de Scheibe & Aguiar (1999), as novas condições e a nova formatação dos
cursos de licenciatura e pedagogia implicaram na qualidade da formação dos profissionais da
educação:
No caso do curso de pedagogia, rompe-se, na prática, com a visão orgânica
da formação docente que vinha sendo construída no país nas últimas décadas.
Acentua-se, por imposição legislativa, a dicotomia entre a formação para
atuar na educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental e a
destinada às séries finais desse nível de ensino e do ensino médio. Impõe-se
tal dicotomia no interior do locus de formação dos profissionais da educação,
além de se atribuir aos institutos a prerrogativa da formação dos professores
no setor privado [...]. (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 229-230)
Scheibe & Aguiar (1999) afirmam que os cursos de licenciaturas também passam pelo
mesmo processo:
[...] interrompem-se as experiências de formação de professores
compartilhadas pelos institutos e faculdades de educação em curso no país, e
forçam-se as instituições de ensino superior privadas a criar os Institutos
Superiores de Educação, caso optem por oferecer cursos de licenciatura. Essa
medida também cerceia as experiências e as novas propostas de cursos de
licenciaturas que estão sendo conduzidas por aquelas instituições privadas
que têm compromisso com a qualidade da formação e com a cidadania dos
estudantes. (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 230)
Mais uma vez, na história da educação brasileira, as influências dos setores políticos e
econômicos interferem na qualidade do ensino. A oferta de cursos de licenciatura em prazos
curtos promove uma formação aligeirada e superficial e insere estes cursos de formação no
“nicho econômico” da sociedade capitalista em que vivemos. Os “prejuízos acadêmicos” que
a geração futura de alunos da escola básica sofrerá serão muitos:
Provavelmente, [...], pouco adiantará a oferta de melhores cursos pelas
universidades públicas, em especial pelas federais, com tempo suficiente para
uma formação qualificada, tendo em vista que os estudantes não resistirão ao
fato de que seus colegas poderão diplomar-se até mesmo na metade do
tempo, em cursos semelhantes, com a possibilidade de ingresso mais cedo no
disputado mercado de trabalho. (Scheibe & Aguiar, 1999, p.231)
O esvaziamento e a redução da procura por estes cursos podem constituir fatores
determinantes para que as universidades públicas retirem estes cursos de seu quadro. O
resultado final pode ser um prejuízo enorme à formação técnico-científica dos profissionais da
educação.
Confirmando-se tal hipótese, disso resultará o rebaixamento da qualificação
dos docentes da educação básica, alijados de centros importantes de produção
dos conhecimentos científico-tecnológicos, situação certamente não
evidenciada nas estatísticas que o governo poderá apresentar aos credores
internacionais. (Scheibe & Aguiar, 1999, p. 231)
95
Que professor queremos formar nesta sociedade contemporânea? Está é a pergunta
que Libâneo & Pimenta (1999) fazem ao também analisar este novo quadro na formação
profissional docente.
Na sociedade contemporânea, as rápidas transformações no mundo do
trabalho, o avanço tecnológico configurando a sociedade virtual e os meios
de informação e comunicação incidem com bastante força na escola,
aumentando os desafios para torná-la uma conquista democrática efetiva.
Não é tarefa simples nem para poucos. Transformar as escolas em suas
práticas e culturas tradicionais e burocráticas – as quais, por meio da retenção
e da evasão, acentuam a exclusão social – em escolas que eduquem as
crianças e os jovens, propiciando-lhes um desenvolvimento cultural,
científico e tecnológico que lhes assegure condições para fazerem frente às
exigências do mundo contemporâneo, exige esforço do coletivo da escola –
professores, funcionários, diretores e pais de alunos –, dos sindicatos, dos
governantes e de outros grupos sociais organizados.
Não se ignora que esse desafio precisa ser prioritariamente enfrentado no
campo das políticas públicas. Todavia, não é menos certo que os professores
são profissionais essenciais na construção dessa nova escola.
(Libâneo &
Pimenta, 1999, p. 259-260)
Investir no desenvolvimento profissional dos professores, isto é, na sua formação
inicial e contínua, nas suas condições de trabalho, em pesquisas e experiências que sejam
inovadoras, na valorização profissional do docente, segundo Libâneo & Pimenta (1999), é
importante. É um investimento que deve estar articulado a um “processo de valorização
identitária e profissional dos professores”:
Identidade que é epistemológica, ou seja, que reconhece a docência como um
campo de conhecimentos específicos configurados em quatro grandes
conjuntos, a saber: conteúdos das diversas áreas do saber e do ensino, ou seja,
das ciências humanas e naturais, da cultura e das artes; conteúdos didático-
pedagógicos (diretamente relacionados ao campo da prática profissional);
conteúdos relacionados a saberes pedagógicos mais amplos (do campo
teórico da prática educacional) e conteúdos ligados à explicitação do sentido
da existência humana (individual, sensibilidade pessoal e social). E
identidade que é profissional. Ou seja, a docência constituiu um campo
específico de intervenção profissional na prática social – não é qualquer um
que pode ser professor. (Libâneo & Pimenta, 1999, p. 260)
Esta é uma visão progressista que não permite a entrada de uma concepção em que o
professor é visto como um mero executor de tarefas. Nessa perspectiva, o professor tem poder
de decisão sobre suas práticas, revê as teorias que permeiam essas práticas, produz
conhecimento a partir de suas teorias e práticas, o que pressupõe um professor que tenha
conhecimentos teóricos e críticos sobre a realidade a qual sua escola, seus alunos e sua
própria prática estão inseridos. Este seria um caminho, segundo Libâneo & Pimenta (1999),
de valorização do trabalho docente, quando em sua formação, os professores sejam dotados de
96
“[...] perspectivas de análise que os ajudem a compreender os contextos históricos, sociais,
culturais, organizacionais nos quais se dá sua atividade docente” (p. 261).
O papel do professor nessa sociedade contemporânea é de suma importância, pois ele:
[...] é um profissional humano que: ajuda o desenvolvimento pessoal/
intersubjetivo do aluno; um facilitador do acesso do aluno ao conhecimento
(informador informado); um ser de cultura que domina de forma profunda
sua área de especialidade (científica e pedagógica/ educacional) e seus
aportes para compreender o mundo; um analista crítico da sociedade,
portanto, que nela intervém com sua atividade profissional; um membro de
uma comunidade de profissionais, portanto, científica (que produz
conhecimento sobre sua área) e social. (Libâneo & Pimenta, 1999, p.262)
Libâneo & Pimenta (1999) reafirmam nessa perspectiva a importância da formação
profissional do professor e o papel que ela assume na sua construção da identidade
profissional.
A análise de Andrade (2003) também contribui para os estudos identitários da
profissão docente. A autora analisou os trabalhos de conclusão de um curso de educadores da
rede municipal do Rio de Janeiro, cujos participantes haviam participado de outro curso de
extensão numa universidade pública, sobre alfabetização e letramento, momento que
propiciou discussões sobre possíveis trajetórias profissionais de formação docente e sobre as
próprias trajetórias dos participantes. Os textos apresentados continham relatos sobre as
escolas e instituições formadoras, leituras que realizaram e suas práticas; num discurso
reflexivo, subjetivo, original e crítico de acordo com a autora. Ao comparar os textos dos
professores regentes de sala com os textos dos educadores não regentes (coordenadores,
supervisores), observou-se uma falta de subjetividade destes últimos, distanciando-os da
identidade docente. Já os professores regentes colocaram a questão da sua formação em uma
dimensão processual, uma trajetória profissional, revelando sua identidade docente.
Andrade (2003) identifica dois aspectos no surgimento da identidade docente para
estes professores: (1) o professor situa sua profissão como parte de sua vida, intrinsecamente
afinada com suas outras identidades sociais, revelado em depoimentos do tipo: “[...] Graças a
Deus sinto-me realizada como pessoa, como mãe, como esposa e como profissional da
educação – Professora! [...] Este curso foi o ponto-chave de minha mudança não só como
profissional da área de educação, mas como cidadã e pessoa humana” (Andrade, 2003, p.
1308); (2) o fazer pedagógico se relaciona com as situações que envolvem os alunos, uma
tarefa que vai além da tarefa docente:
97
[...] Cada vez mais estamos acumulando funções que muitas vezes não
estamos preparadas para resolver. Para minhas crianças, com certeza, sou
muito mais do que uma professora, sou uma pessoa que se preocupa com
eles (em alguns casos a única!), nem que seja para dar uma bronca (...) e
isto é uma responsabilidade muito grande. (Andrade, 2003, p. 1308)
O primeiro aspecto revela uma necessidade dos professores de se apresentarem de um
ponto de vista de “fora para dentro”; já no segundo aspecto, o professor se revela de “dentro
para fora”. Parece que o “ser professora” está intrinsecamente relacionado com uma
dificuldade em “sê-lo plenamente”, há uma fragilidade e inconsistência nesses discursos. A
conclusão da autora é que a identidade profissional docente se constitui como uma identidade
social.
Esta dificuldade em “ser plenamente” professor pode ser justificada pelo que Sousa
(2003) aponta como um “desenraizamento da categoria profissional”. Seu estudo sobre a
trajetória de uma associação de professores em uma cooperativa de prestação de serviços
permitiu à autora apontar essa sensação de “desenraizamento da categoria profissional” e o
“peso” que as mudanças ocorridas no mundo do trabalho exercem na construção da identidade
profissional docente. Uma identidade que busca, nos interesses das relações de mercado, os
traços que o permitam se inserir no grupo profissional o qual pertence. Os dados obtidos pela
autora demonstraram que o compromisso com a educação e com o desenvolvimento da
profissionalidade está presente, assim como uma insegurança pelas imposições cada vez mais
crescentes da sociedade, como, por exemplo: aperfeiçoamento, qualificação, melhoria do
ensino, etc. Souza (2003) afirma que a instabilidade e precariedade presentes no mercado
profissional atual, para estes professores que atuam na rede privada, repercutem numa
“angústia” de saber que hoje estão empregados e amanhã podem não estar mais.
Para nossos estudos, vale a pena destacar os estudos de Abdalla (2006) sobre a forma
como o professor constrói seu conhecimento profissional. A autora partiu do pressuposto de
que a profissionalização do professor, isto é, sua formação e as transformações das maneiras
de ser e estar na profissão docente implicam na compreensão do conhecimento prático do
professor, na relação que o professor estabelece com este conhecimento e na articulação
direta e interativa com a escola” (Abdalla, 2006, p. 1), ou seja, na compreensão sobre o
trabalho docente.
Tendo como suporte teórico Henri Lefebvre e Selma Garrido Pimenta, Abdalla (2006)
aponta três fontes de conhecimento do professor: 1) referente à maneira como o professor
enxerga sua própria prática como professor e como aluno – os “saberes da experiência”; 2) o
conhecimento que o professor tem do que ensina – os “saberes científicos”; 3) o que o
98
professor inclina-se para conhecer para dar conta de entender o processo de ensino e
aprendizagem – os “saberes pedagógicos”. De acordo com a autora, quando o professor entra
em contato com a prática real no interior da sala de aula, estas fontes tomam formas que
direcionam a ação e a reflexão da organização de seu ensino, em outras palavras, são estas
formas que possibilitarão o encontro do professor com o que será ensinado e com os alunos.
A primeira forma é denominada o “conhecimento das intenções”. Esta forma “[...] se
configura pelas propostas de encaminhamento, pelas intenções, pelos objetivos que são
explicitados pelo professor, para que os alunos possam trabalhar junto com ele na
(re)construção de seus conhecimentos. (Abdalla, 2006, p. 5). Uma segunda forma configura-
se no modo como o professor desenvolve aquilo que ele está propondo, é o “conhecimento
estratégico”: o professor estabelece relações com sua vida (seus projetos e experiências) a
partir da construção de saberes junto aos alunos. A terceira forma relaciona-se com o
conhecimento que o aluno troca com professor e outros alunos, de forma mais detalhada, é o
“conhecimento de casos”:
[...] representaria uma aproximação com o conhecimento da prática, ou seja,
um modo de fazer a releitura das experiências do cotidiano via investigação
da prática. Ou seja, as condições e os materiais de criação do professor e de
seus alunos seriam privilegiados, dando, assim, menos importância aos
conhecimentos teóricos e à aplicação das receitas e modelos didáticos.
(Abdalla, 2006, p. 5-6)
Abdalla (2006) chama atenção para as categorias que essas formas de conhecimento
assumem
.
1. das finalidades sociais e educativas (para que conhecer/ ensinar/
aprender?); 2. do conhecimento do currículo e da matéria de ensino (o que
conhecer / ensinar / aprender?); 3. do conhecimento dos alunos (como
trabalhar com as relações interpessoais – aspectos cognoscitivos e sócio-
emocionais?); 4. do conhecimento pedagógico (teorias e práticas que possam
auxiliar o professor nas diferentes situações didáticas e a enfrentar as
questões metodológicas do dia-a-dia de ser e estar na profissão professor); e
5. do conhecimento do contexto (onde? quando? Em que espaço social
desenvolvemos o ato educativo?). (Abdalla, 2006, p. 6)
Sejam as fontes, as formas ou as categorias do conhecimento, são elas que articulam a
teoria e a prática que o professor desenvolve com seu trabalho; um trabalho que só tem
significado no espaço escolar.
O espaço escolar, na pesquisa de Abdalla (2006), assume um papel central, na medida
em que é na escola que a profissionalização docente se constrói, onde o professor aprende a
ser professor. A autora delimita quatro pontos que indicam a escola como espaço de
99
construção da produção docente: 1) “a gestão escolar”; 2) “o projeto político-pedagógico”; 3 -
“a organização e articulação do currículo”; 4) “o compromisso da Escola com o
desenvolvimento profissional do professor” (Abdalla, 2006, p. 7).
De acordo com os estudos de Abdalla (2006), é a gestão escolar que torna “vivo” o
projeto político-pedagógico da escola, é ela quem organiza e cria as condições necessárias
para as mudanças que são propostas. Isto implica na criação de oportunidades para que todos
da equipe escolar construam e reconstruam seus saberes, de maneira que os professores
sintam-se valorizados profissionalmente, reconheçam-se e atuem como profissionais.
O que dá vida a esta gestão democrática é exatamente o projeto político-pedagógico da
escola, todo trabalho realizado na escola é organizado e conduzido por ele. Os professores
buscam coletiva e continuamente conhecer a escola por dentro: suas necessidades, suas
expectativas, seus problemas. De acordo com os dados de Abdalla (2006), o envolvimento do
professor com o projeto pedagógico da escola está relacionado com a organização e a
articulação do currículo, ou com seu desenvolvimento profissional dentro da escola.
É nesse processo (e no interior da escola) que os professores se constroem e se
reconstroem como profissionais docentes. Nesse sentido, as oportunidades de crescimento
profissional promovidas dentro da escola são pontos chave nesse desenvolvimento. Os
estudos de Abdalla (2006) revelaram que a escola não tem clareza do significado da formação
e desenvolvimento profissional de seus professores, mesmo com todas estas inovações que
hoje estão presentes no seu interior, como os horários de encontros coletivos (HTPCs), a
elaboração do projeto político-pedagógico, os Programas de Educação Continuada (PECs),
etc. Vejamos alguns trechos relatados pela autora, de entrevistas com professores:
O projeto pedagógico, para funcionar, tem que se mover em toda uma
discussão, mas a praticidade disso necessita, também, de uma participação
da própria direção. [...]
Eu tive um problema muito sério no ano passado e retrasado com a escola
pública em que eu dava aula, que era justamente a incapacidade de estar
trabalhando coletivamente com os outros professores [...] porque não era
possível fazer um projeto sério, efetivamente, porque é aquele velho discurso,
“tudo é uma droga” e o “Estado está sabotando”, “o que eles querem é
passar todo mundo”, etc. Que existe até um fundo de verdade, mas se a gente
ficar parado nisso, não anda e não faz nada. A coisa está posta, a gente tem
que dar um jeito de trabalhar com o que se tem. E, nessa semana que passou,
já nesse novo colégio, eu senti uma abertura muito maior, e acho que vai ser
muito produtivo, porque os professores mesmos já estavam se organizando
na HTPC, para estar discutindo, estar trabalhando, trocando experiências,
trazendo coisas novas, discutindo autores [...]. (Abdalla, 2006, p. 10)
Abdalla (2006) afirma que as escolas que mantêm um trabalho de formação contínua
de seus professores, que investem na gestão e implementação de um projeto político-
100
pedagógico e na organização e articulação do currículo, contam com uma equipe permanente
e comprometida com um ensino de qualidade. As escolas não têm dado a devida importância
ao fato de que há muito a aprender com seus professores. Para tanto, é necessário enfrentar
três grandes desafios:
O primeiro diz respeito à hegemonia da racionalidade técnica, fazendo com
que a organização da escola assuma uma tendência/ perspectiva cada vez
mais técnico-racional, imprimindo um rastro autoritário em sua estrutura,
independente dos discursos ideologicamente democráticos. O segundo deriva
dos efeitos das múltiplas e contínuas reformas educativas que precisam ser
compreendidas não só ao nível do conteúdo, mas do seu próprio ritmo,
sobretudo quando as questões são educacionais (Fernandes Enguita, 1998,
p.21). O terceiro desafio relaciona-se às dificuldades que a Escola (o seu
corpo diretivo) tem para compreender o que significa desenvolver
profissionalmente seus professores. (Abdalla, 2006, p. 10-11)
As escolas precisam aprender a lidar com a autonomia dos profissionais que a
compõem, reconhecer as necessidades e perspectivas de sua equipe. Precisam também adotar
uma postura mais flexível ao lidar com as particularidades do contexto educacional. E ainda, as
escolas necessitam valorizar e propiciar momentos para os professores conversarem e trocarem
experiências com outros professores.
Ao considerar a escola como espaço de construção da profissionalização docente,
Abdalla (2006) coloca a escola como um lugar onde os professores constroem o sentido da
sua profissão e o ser e estar na profissão docente. Em sua pesquisa, a autora distinguiu quatro
modalidades em que o professor estabeleceu uma relação “sobre” e “para” o ensino, com suas
práticas: o ensino como ciência: quando o professor aplica diretamente seus conhecimentos
sobre a matéria (por exemplo, aula expositiva); o ensino como um roteiro de habilidades:
quando o professor distribui tarefas simples aos alunos, sem considerar a possibilidades deles
construírem seus conhecimentos; o ensino como uma arte (bricolage): quando o professor
propõe atividades estéticas, com finalidades que se definem durante a sua realização. Segundo
Abdalla (2006), estes momentos repercutem em pontos positivos e negativos:
O lado positivo é que os alunos se encantavam com as brincadeiras, as
dramatizações, o lado lúdico do professor e se envolviam na aula. Entretanto,
algumas vezes estas improvisações, mesmo que reguladas, ignoraram, porque
não passaram por um processo de planejamento e de registro, o componente
mais fundamental do ensino que é o de fazer o outro aprender. (Abdalla,
2006, p. 12)
A quarta modalidade é o ensino como atividade ética e política: quando o professor
provocou momentos pedagógicos de inquietação (aos seus alunos e a si mesmo), promovendo
101
atividades de reflexão e discussão envolvendo questões éticas e políticas. Tais questões
privilegiaram aspectos de aprendizagem significativos.
A partir dos resultados de seu estudo, Abdalla (2006) afirma que foi possível
compreender um pouco mais sobre a profissão docente:
a) O professor possui uma representação mental da realidade, seja parcial ou
global, e ela é fruto de uma construção ativa. Esta construção se faz,
principalmente, quando o professor precisa explicar a relação entre o seu
pensamento e a sua ação;
b) O estudo de caso e as histórias de vida apontaram que os professores
assumem diferentes comportamentos, dependendo do contexto em que
mobilizam seus pensamentos e ações;
c) O contexto de trabalho – a escola e a sala de aula – produzem efeitos nos
processos cognitivos dos professores, durante as diferentes fases (pré-ativa;
interativa; pós-ativa), em que articulam a relação entre o pensamento e a
ação;
d) Os professores constroem os seus conhecimentos profissionais,
conhecimentos de ordem prática, quando buscam conexões entre o
pensamento e a ação. Entretanto, a compreensão deste conhecimento prático
vai depender também da maneira como o professor compreende o seu lugar
no contexto de trabalho. A prática deste conhecimento - do e sobre o ensino -
é gerado na e pela ação, tendo como base, portanto, o espaço social no qual o
professor exerce sua profissão. (Abdalla, 2006, p. 13.)
Um ponto que merece ser destacado, segundo Abdalla (2006), é o “conhecimento
prático” do professor que não pode ser reduzido ao “como” ele dá aulas, mas sim, entendido
como: “[...] um campo de conhecimentos que compreende os saberes epistemológicos, os
pedagógicos (didáticos), o da experiência e aqueles que permitem o campo das possibilidades,
na perspectiva de renovar o espaço político-social da sala de aula e da escola” (Abdalla, 2006,
p. 13).
A autora identificou a reconstrução de três eixos que definem a cultura profissional da
escola, relacionados ao conhecimento prático do professor: 1) a estrutura, pois o professor
atua em um campo de poder, que está estruturado em relações de poder. As aulas são
estruturadas pelo professor em três níveis, de acordo com seu conhecimento: na imposição de
regras (os alunos tinham ciência do que fazer, como fazer, de acordo com as regras que o
professor lhes impunha, dando sentido às suas ações); nas imagens (representações, formas
lúdicas de expressão, dramatizações. O professor organizava seu conhecimento – valores,
crenças, necessidades – com base na relação com seus alunos e a escola); na estrutura
organizativa de sala de aula (nas diversas etapas das ações docentes – planejamento,
implementação e avaliação); 2) a prática: as experiências do professor (o conhecimento de si
mesmo, de seu meio, da matéria que ensina, da organização e articulação curricular da escola,
da gestão da escola e de seu projeto político-pedagógico); 3) o habitus: “[...] o professor
102
orienta a sua prática e estrutura suas aulas mobilizando um capital de saberes, de saber-fazer
e de saber-ser que [...] não se estagna, pelo contrário, cresce constantemente, acompanhando
a experiência e, sobretudo, a reflexão sobre a experiência” (Abdalla, 2006, p. 14).
Segundo a autora, o professor está em um crescente contínuo na orientação de sua
prática, modificando-a.
*
Uma vez apresentadas as pesquisas, cumpre-nos, agora, o exame da legislação
específica sobre o ensino fundamental e sobre a formação de professores para atuar nesse
momento da escolaridade.
PARTE III
O ENSINO FUNDAMENTAL E SEUS PROFESSORES NO BRASIL
103
3.1 A Legislação do Ensino Fundamental e da formação docente e algumas estratégias
do Estado para “melhorar” a educação básica no Brasil
A compreensão da legislação do ensino fundamental contribui para um maior
entendimento deste nível de ensino e as “rupturas” existentes entre os dois ciclos.
No Brasil, a obrigatoriedade do ensino sempre esteve restrita ao antigo “curso
primário” – as primeiras quatro séries (Lei 4024/61) até o início dos anos 1970, com a
reforma 5692/71. Após este primeiro nível de escolaridade, o aluno poderia ingressar no
ensino secundário, constituído de dois ciclos: o ginásio e o colégio (que se subdividia em
cursos diferentes: o Científico, o Clássico, o Curso Normal ou Ensino Técnico). O primeiro
era finalizado em quatro anos. Para o ingresso no ginásio, previa-se a realização obrigatória
do “Exame de Admissão ao Ginásio”, pois o número de vagas oferecidas era muito menor que
o número de alunos diplomados no primário. Elaborado pelo sistema escolar, o exame de
admissão era estruturado de forma a “selecionar” os melhores alunos em Língua Portuguesa e
Matemática. O exame era tão difícil que começaram a surgir os “cursinhos preparatórios” ou
“cursos preparatórios para o exame de admissão ao ginásio”, promovidos por instituições
particulares, destinados para uma clientela de nível econômico médio e superior. Segundo
Dias-da-Silva (1997), por volta da metade dos anos 1960, o número de crianças que
ingressava no ciclo ginasial não chegava a 40% dos concluintes do ensino primário.
Foi somente com a legislação de 1971 – a Reforma do Ensino de 1º e 2º graus (Lei
Federal nº 5692/71) – que a obrigatoriedade de ensino passou a ser dos 7 aos 14 anos, com a
criação do Ensino de Primeiro Grau integrado de oito séries anuais (unindo os antigos cursos
– primário e ginásio).
Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2002), a Lei nº 5692/71 tinha como objetivo
“assegurar a ampliação da oferta do ensino fundamental”, pois isso garantiria formação e
qualificação mínima aos futuros trabalhadores, aqueles que ingressariam num mundo
profissional pouco exigente e, ao mesmo tempo, e também possibilitar a formação de uma
mão de obra mais qualificada. Esta mão de obra serviria à administração pública e à indústria
em seus mais altos escalões, o que favoreceria o processo de importação no país.
Esta nova lei não só excluiu o diploma do curso primário e o exame de admissão,
como também reformulou as normas de avaliação do aluno, trazendo para a escola uma
sistematização de planejamento pedagógico. Nessa época, os orientadores pedagógicos
tornaram-se mais freqüentes dentro da escola.
104
De acordo com Dias-da-Silva (1997), as mudanças que se seguiram no ensino
brasileiro buscavam uma nova perspectiva para a escola básica – “[...] a visão bacharelesca e
enciclopédica da escola secundária, que visava à formação das elites brasileiras em busca do
curso superior, deveria ser superada” (p. 17). Se, por um lado, essa reforma era referenciada
como positiva, por outro lado, era estigmatizada pelos professores secundários, que
enxergavam nessa reforma um prejuízo à qualidade da educação, já que alunos que não
seriam aprovados num exame de seleção ingressariam no ensino secundário. Estudos citados
por Dias-da-Silva (1997) revelam que muitos professores chegavam a estabelecer, por eles
mesmos, critérios para admitir alunos na 5ª série do então novo curso de 1º grau. Tal fato já
revelava a própria inabilidade dos professores que, até então, só recebiam “bons alunos” para
dar suas aulas e, de uma hora para outra, tiveram que lidar com alunos em diferentes níveis de
competência e dificuldades.
A esse respeito, mais uma reflexão cabe aqui: até que ponto, hoje, nas falas dos
professores dos ciclos I e II do Ensino Fundamental, estes mesmos argumentos ainda são
encontrados?
Mas mesmo com a Lei 5692/71, que determinava o 1º grau como um ensino único,
integrado, a estrutura, os professores, o próprio trabalho pedagógico realizado, ainda
caracterizavam um ensino dividido em duas fases.
Shiroma, Moraes e Evangelista (2002, p.39) afirmam que a Lei 5692/71 não garantiu
qualidade do ensino, pois privilegiou somente aspectos quantitativos. Não se previu
intervenções claras na organização da escola ou investimentos pesados para se implantar a lei
em todo o território nacional e muito menos se promoveu uma discussão ampla entre os
diversos agentes educativos. Nas palavras das autoras, “o governo limitou-se a ampliar o
clientelismo e a formular projetos de gabinete”.
A forte iniciativa ao ensino privado abriu espaço para que o ensino se tornasse um
negócio lucrativo. As facilidades, os incentivos, os subsídios fiscais e até mesmo a
transferência de recursos públicos favoreceram o capital privado e contribuíram, juntamente
com o desperdício, a corrupção, a burocracia e a centralização administrativa exacerbada, para
que os recursos não chegassem às escolas públicas.
Em 1980, já com o regime militar enfraquecido, mas ainda em vigor, cresceu a
contradição entre o poder centralizador do governo federal e as intenções de descentralização.
O governo, então, resolveu atuar diretamente junto aos municípios, favorecendo o
clientelismo e distanciando ainda mais as redes estaduais das redes municipais, o que
105
comprometeu, de forma crescente, um planejamento articulado no sistema educacional
brasileiro.
Diante de um quadro político e econômico frustrante e da derrota do Movimento das
“Diretas Já”, em 1985, inicia-se um novo momento histórico no Brasil, a “Nova República”.
Segundo Shiroma, Moraes e Evangelista (2002), uma época de ambigüidades e incoerência,
em que o conservadorismo se conciliou com a transição para a democracia. A educação, nessa
época, manteve o modelo do regime militar. Um dos vestígios dessa manutenção foi a criação
da UNDIME (União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação) e o incentivo ao
processo de municipalização do ensino de 1º grau. Sob a tutela do MEC, a UNDIME se
transformou em um espaço de interesses contraditórios, entre municípios e governo federal. A
proposta de descentralização do governo federal era apenas aparente, de maneira que o
município permaneceria monitorado e sob a tutela do governo federal e seus interesses
eleitorais. Essa política distanciou, ainda mais, Estado de municípios, favorecendo a
desintegração entre ambos e empobrecendo as escolas municipais.
A crise econômica iniciada em 1979, quando Bancos Internacionais cortaram os
créditos para o Brasil por conta das taxas de juros elevadas e da recessão nos Estados Unidos,
mesmo com os pacotes econômicos em 1986 (entre os quais o “Plano Cruzado”), retorna em
1987 com danos maiores.
O movimento crítico que reivindicava mudança no sistema de educação brasileiro,
desde meados de 1970, aumentava. Associações científicas e sindicais da área educacional e
partidos de oposição faziam estudos diagnósticos, denunciavam e elaboravam propostas e
reivindicações, concebendo a educação pública e gratuita como dever do Estado e direito
público, visando o desenvolvimento de um aluno crítico e a erradicação do analfabetismo.
Surgiam, então, propostas que englobavam, entre outras finalidades, a melhoria da qualidade
na educação, valorização e qualificação dos agentes educacionais, democratização da gestão e
defesa do financiamento da educação pública.
Em 1987, iniciam-se as discussões relacionadas com o projeto de uma nova Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Mas somente nove anos depois a Lei 9.394/96 foi
aprovada, por meio de “expedientes” que distorceram as discussões e intenções que a
originaram:
[...] Nos descaminhos da tramitação do projeto, sobressai-se a carta posta na
mesa, em maio de 1992, pelo Governo Collor. O senador Darcy Ribeiro
(PDT-RJ) apresentou texto próprio no Senado, atropelando as negociações
inconclusas na Câmara dos Deputados. Em 1993, o projeto da Câmara, agora
sob a relatoria do deputado Cid Sabóia (PMDB-CE), foi enviado ao Senado.
106
A eleição de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, [...] trouxera nova
composição de forças ao Congresso Nacional e a aliança entre PSDB e PFL
indicava uma nova ofensiva conservadora. Em 1995, Darcy Ribeiro
apresentou novo substitutivo, já resultante dos acordos que vinham
realizando com o governo FHC e seu ministro da educação, Paulo Renato
Costa Souza. Voltando à Câmara dos Deputados, o substitutivo de Ribeiro,
agora relatado por José Jorge (PFL-PE), foi sancionado pelo presidente, sem
qualquer veto. [...] fato assemelhado só ocorreu com a Lei 5692/71, durante o
governo Médici, sob cujo autoritarismo a oposição estava inteiramente
silenciada. (Shiroma, Moraes e Evangelista 2002, p.50-51)
A Lei nº 9.394/96 trouxe os ideais do novo século que se aproximava. No entanto, seu
projeto não se desvencilhou das mesmices das décadas anteriores: “[...] a forma como foi
aprovada não impede e nem obriga o Estado a realizar alterações substantivas na educação”
(Shiroma, Moraes e Evangelista, 2002, p. 51).
Indo mais além, o governo, na busca de uma ressignificação da lei, implementa ações
que, na verdade, expressam intenções não declaradas:
[...] capacitação dos professores foi traduzida como profissionalização;
participação da sociedade civil como articulação com empresários e ONGs;
descentralização como desconcentração da responsabilidade do Estado;
autonomia como liberdade de captação de recursos; igualdade como
eqüidade; cidadania crítica como cidadania produtiva; formação do cidadão
como adequação ao mercado e, finalmente, o aluno foi transformado em
consumidor. (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2002
, p.52)
Enfim, a Lei 9.394/96, construída num consenso entre intelectuais, empresários,
centrais de trabalhadores e o Estado, ultrapassa as reivindicações da educação para, na
verdade, se estabelecer como uma lei educacional que prepara o cidadão para produzir nesta
sociedade capitalista em que vivemos, revestida apenas de uma nova definição para o ensino
básico. Para um maior entendimento desta afirmação, é importante compreendermos as
influências que o Banco Mundial (BM) tem no sistema educacional brasileiro.
O BM, nos últimos anos, segundo Torres (1996)
24
, tornou-se a principal agência de
assistência técnica no setor educacional para os países em desenvolvimento
25
, sendo também
fonte e referencial de pesquisa mundial. Suas idéias não se apresentam de maneira isolada,
24
A referência adotada pela autora neste trabalho sobre o Banco Mundial é um documento produzido pelo
Banco Mundial de política educativa datado de 1995 – A World Bank Sector Review (Prioridades e Estratégias
para a Educação: Estudo Setorial do Banco Mundial), ao qual ela denomina BM/95. O referido texto é uma
síntese dos principais estudos publicados pelo Banco Mundial sobre a educação, cujo objetivo é colaborar com
os responsáveis pelo sistema de educação, encarregados do destino dos recursos públicos neste setor.
25
Torres (1996) mantém o termo utilizado pelo Banco Mundial – “países em desenvolvimento” ou “mundo em
desenvolvimento” – referindo-se aos países que constituem o “Terceiro Mundo”, também citados de países
subdesenvolvidos” ou “o Sul” nos seus documentos. Os termos “países de baixa e média renda” também são utilizados para
substituir a expressão “países em desenvolvimento”.
107
fazendo parte de uma proposta em que ideologia e estratégias se articulam, com a finalidade
de “melhorar o acesso, a eqüidade e a qualidade dos sistemas escolares” (Torres, 1996,
p.126), principalmente do primeiro ciclo do ensino fundamental nos países em
desenvolvimento. Tais idéias se revelam num “pacote” de medidas abrangendo “das
macropolíticas até a sala de aula”, medidas estas que não consideram a diversidade e
especificidade de cada país. De acordo com Torres (1996), as medidas propostas pelo BM
foram estratégias pensadas e elaboradas a partir da realidade dos países da África Sub-
Saariana, uma das regiões mais pobres do mundo, com o menor indicador educativo. E o que
o BM propõe como “melhoria da qualidade de educação” tem produzido um efeito
indesejado:
[...] está em boa medida reforçando as tendências predominantes no sistema
escolar e na ideologia que o sustenta, ou seja, as condições objetivas e
subjetivas que contribuem para produzir ineficiência, má qualidade e
desigualdade no sistema escolar. Isso se deve não somente à natureza e
conteúdo das propostas em si, mas também aos contextos, condições de
recepção, negociação e aplicação de tais políticas concretamente nos países,
em um momento bastante definido como o que estão vivendo os países e os
sistemas educativos no mundo. (Torres, 1996, p. 127)
Para Torres (1996, p.127), os países, ao receberem o “pacote”, gerenciam-no de
acordo com sua realidade e possibilidades e ainda, ao ser colocado em prática, há “desvios”
da proposta original. Isto porque em cada país o “pacote” único do BM é moldado e aplicado
de forma diferente, devido à própria maneira que este órgão conduz o processo,
independentemente da diversidade de cada país.
Para o BM, os países em desenvolvimento não sabem gerenciar as despesas em
educação, centralizando suas ações em assuntos “banais” como a valorização do professor ou
as reformas curriculares, por exemplo. Para este órgão interessa o acesso à escola de primeiro
grau (o mínimo é suficiente), a eqüidade, ou seja, o direito igual aos pobres, às minorias
étnicas, e às meninas; a qualidade, que, para este órgão, é um problema generalizado dos
países em desenvolvimento; e a redução da distância entre a reforma educativa e a reforma
das estruturas econômicas. Os interesses do BM recaem no fortalecimento de uma sociedade
capitalista, onde não há aspirações em eliminar a pobreza, apenas, como diz Torres, “aliviá-
la”, desenvolvendo-se o mínimo necessário na proposta de educação básica.
108
A educação básica, isto é, a educação primária e secundária inferior, na concepção do
BM, “[...] deveria ser prioritária dentre as despesas públicas em educação naqueles países que
ainda não conseguiram uma matrícula quase universal
26
nestes níveis” (Torres, 1996, p. 132).
Mas qual a concepção de educação básica para o BM? Segundo Torres, no documento
A World Bank Sector Review (1995), a educação básica compreende a educação de primeiro
grau e a educação secundária “[...] estimando-se que a aquisição de ‘o conhecimento, as
habilidades e as atitudes essenciais para funcionar de maneira efetiva na sociedade’ se dá no
equipamento escolar e requer aproximadamente oito anos de instrução” (1996, p. 132). Em
outras palavras, para o BM, o âmbito educativo não comporta a família ou outros contextos
sociais, ficando de fora das propostas políticas. Para a autora, tal concepção não condiz com a
concepção de educação básica determinada na Conferência Mundial sobre Educação para
Todos (Jomtien, 1990), cujo patrocínio e organização foi do próprio Banco Mundial:
[...] educação básica inclui igualmente crianças, jovens e adultos, iniciando-
se com o nascimento e se estendendo pela vida toda, não se limitando à
educação escolar nem à escola de primeiro grau, nem tampouco a um
determinado número de anos ou níveis de estudo, mas que se define por sua
capacidade de satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem de cada
pessoa. (Torres, 1996, p. 133)
O BM recomenda medidas financeiras e administrativas para que possam alcançar a
autonomia das instituições escolares, no entanto, não contempla medidas específicas
relacionadas à “qualificação e profissionalização dos recursos humanos”, de acordo com
Torres (1996, p.136), medidas indispensáveis para se alcançar a autonomia da instituição
escolar.
Torres (1996) afirma ainda que, para o BM, a participação de ONGs no setor
educativo como outro elemento de descentralização, assim como o setor privado, deve ser
incentivada, independentemente de seus fins serem lucrativos ou filantrópicos. Desta forma, a
concorrência que se instala torna-se um “mecanismo chave da qualidade”, no setor educativo.
(Torres, 1996, p. 137). Este é o maior desafio de toda política educativa, pois a questão da
qualidade localiza-se nos resultados” que são demonstrados pelo rendimento escolar, isto é,
pelos índices de aprovação. A crítica da autora neste aspecto é que não se questiona “a
validade, o sentido e os métodos de ensino”. A qualidade, para o BM, pode ser resultado da
presença de fatores que elevam a produção: (1º) bibliotecas; (2º) tempo de instrução escolar,
isto é, o prolongamento do ano escolar, a flexibilização e adequação dos horários e até a
26
O BM não especifica o que é universal, ou quanto é “uma matrícula quase universal”. Podemos dizer que este é um item
109
atribuição de (3º) tarefas de casa; (4º) oferta de livros didáticos, pois estes colaboram na
promoção do currículo, além de compensarem o nível de formação do professores, que é
baixo; e mais, quem deve produzir e distribuir estes livros didáticos é o setor privado, pois
têm condições de capacitar os professores na sua utilização; (5º) conhecimentos do
professor, que precisam ser melhorados, portanto devem-se privilegiar sua formação inicial, a
capacitação em serviço, estimulando, inclusive, as modalidades à distância. Demais fatores,
como: experiência do professor, laboratórios, salários do professor e tamanho das classes são
desestimulados. As despesas com infra-estrutura são consideradas prescindíveis no alcance
dos resultados acadêmicos desejados pelo BM.
Torres (1996) afirma que a questão da melhoria da qualidade do ensino é um
paradigma. O que o BM propõe para a educação é baseado em uma lógica capitalista, de
forma que a educação vai se definir e constituir a partir da relação custo-benefício e a taxa de
retorno, assim como é a partir deste eixo central que os investimentos serão estabelecidos.
Esta visão ‘estreita’ da educação, que relaciona a ‘qualidade da educação’ com o rendimento
escolar revela uma concepção tradicional e bancária da educação.
Em seu pacote de medidas, o BM não contempla o professor e nem a pedagogia, tão
essenciais quando desejamos um processo educativo de qualidade. Para a autora, o discurso
dos que opinam e decidem sobre a educação reflete a falta de conhecimento e a inexperiência
no campo educacional.
O BM é um órgão constituído por desconhecedores da realidade do ensino, que não
sabem diferenciar nem mesmo ensino de aprendizagem, entendem currículo como um
conjunto de conteúdos e reduzem estes às disciplinas. Estes são apenas alguns exemplos, entre
outros citados por Torres (1996), para demonstrar a falta de experiência e conhecimento de
quem influencia de maneira significativa a educação nos países em desenvolvimento. Como a
própria autora afirma, um “banco” mundial que não é representante neutro da racionalidade
científica e da eficiência técnica. Portanto, há de se analisar os efeitos de suas políticas, suas
estratégias, seus projetos. Estudos da década de 1990 indicam que as ações propostas pelo
BM não têm surtido o efeito desejado pelos países em desenvolvimento (não o efeito desejado
pelo próprio BM).
Foi a partir da Conferência Mundial sobre Educação para Todos realizada em
Jomtien, em 1990, que as diretrizes políticas para o ensino brasileiro foram elaboradas,
quando o Brasil, juntamente com os outros países
27
, assumiu o compromisso de uma
que deixa margem para interpretações diferentes em cada país.
27
Bangladesh, China, Egito, Índia, Indonésia, México, Nigéria e Paquistão.
110
“Educação para Todos” e assinou um documento reforçando que a educação é primordial para
se resolver o problema da pobreza de um país e se elevar a economia. Na linha de pensamento
do BM, o documento reforçou a necessidade de se investir no ensino básico, pois é esta
educação que garante a redução da pobreza, já que é ela que contribui na produtividade dos
trabalhadores pobres, além de colaborar no desenvolvimento de atitudes favoráveis ao
desenvolvimento da economia e da sociedade. Para tanto, um projeto foi proposto, através do
qual se propagou a idéia de que:
[...] educação deveria se preocupar com a necessidade básica de
aprendizagem (NEBA) de crianças, jovens e adultos [...]: 1) a sobrevivência;
2) o desenvolvimento pleno de suas capacidades; 3) uma vida e um trabalho
dignos; 4) uma participação plena no desenvolvimento; 5) a melhoria da
qualidade de vida; 6) a tomada de decisões informadas; e 7) a possibilidade
de continuar aprendendo. (Shiroma, Moraes e Evangelista, 2002, p.58)
Para atingir tais necessidades, cada país procuraria os meios apropriados, considerando
suas especificidades culturais e sociais e estabeleceria prazos para atingir suas metas. Foi
então que, em 1993, elaborou-se o Plano Decenal de Educação para Todos.
Ao propor o debate do Plano Decenal de Educação para Todos 1993/2003,
nas escolas brasileiras, faço-o, primordialmente, como um Ministro da
Educação e do Desporto que já foi professor na educação básica,
conhecendo, portanto, as dificuldades e obstáculos que professores e
dirigentes escolares enfrentam cotidianamente em busca da mais importante
meta do país, que é a universalização do ensino fundamental com qualidade.
(MEC, 1994)
É com estas palavras que o Ministro Murílio de Avellar Hingel (em maio de 1994)
inicia a primeira edição do Plano Decenal para as escolas, colocando-se como participante do
grupo de educadores e da luta pela melhoria do ensino no Brasil. E complementa: “O Plano
Decenal foi concebido e elaborado para ser um instrumento-guia na luta pela recuperação da
Educação Básica do País” (grifo meu). Tal colocação revela que o Ensino Básico brasileiro se
mostrava “doente”, e é nesta perspectiva que ele convida “[...] a União, os Estados e
Municípios, as escolas, os professores e dirigentes escolares, as famílias e a sociedade civil”
para integrarem-se em um esforço compartilhado na tarefa de recuperar a educação. Segundo
o Ministro Hingel, o Plano Decenal propõe metas claras, que objetivam a valorização e
reconhecimento público do magistério.
Em 1993, representantes dos governos federal, estaduais e municipais, e órgãos
representativos do setor educacional se reuniram e firmaram o Compromisso Nacional de
111
Educação para Todos, no qual foram estabelecidas as diretrizes que norteariam as políticas
educacionais nos próximos anos. São estes compromissos, assumidos pelo governo brasileiro,
que o Plano Decenal de Educação para Todos expressa.
As estratégias propostas pelo Plano Decenal, que levam à universalização do ensino
fundamental e à erradicação do analfabetismo, baseiam seus objetivos nas recomendações e
acordos firmados com órgãos internacionais, que se firmam como “sabedores” da “solução”
dos problemas brasileiros. As ações propostas na concretização dos programas de formação
de professores existentes atualmente, assim como os Parâmetros Curriculares Nacionais para
o ensino básico e os Referenciais Curriculares Nacionais para educação infantil concretizam
alguns exemplos. Basta ler nas suas linhas e entrelinhas as intenções e os acordos firmados na
Conferência Mundial sobre Educação para Todos. Um encontro que resultou no discurso da
educação sob a ótica da “salvação” dos problemas econômicos e sociais dos países em
desenvolvimento.
Para que o país volte a se desenvolver, impõe-se um profundo ajuste
econômico e financeiro, que torne possível novo modo de inserção na ordem
econômica internacional. Para tanto, serão necessárias profundas
transformações estruturais, desconcentração espacial da economia e uma
vigorosa redistribuição de renda e de riqueza. [...] Serão necessários novos
critérios de planejamento educativo e de relações entre escola e sociedade,
capazes de gerar oportunidades educacionais mais amplas e diferenciadas
para os vários segmentos da população. (MEC, 1994, p. 21)
Propõe-se ainda que a educação deva ser promovida em prol do desenvolvimento de
uma sociedade democrática pelas relações de paz que dela fazem parte:
[...] no plano político [...] fazem-se novas exigências à educação. [...] Trata-se
não só de educação para a democracia, mas também do estabelecimento de
ambiente de relações educativas democráticas, voltadas para a participação
societária, para o engajamento nas distintas estruturas de representação e para
o exercício dos direitos da cidadania. (MEC, 1994, p. 21)
É apostando na educação que o Plano Decenal se expressa, em consonância com os
debates da Conferência de Jomtien. Ignora-se que as próprias dívidas contraídas junto aos
órgãos internacionais levaram a esta situação, “fecha-se os olhos” para os reais objetivos de
nossos credores, que é o desenvolvimento às custas de indivíduos que produzem mais e pouco
pensam, às custas de uma padronização do ensino para indivíduos diferentes no seu capital
cultural, social e econômico. Acatam-se orientações, sugestões, ordens e acordos de tal forma
que a sociedade incorpora o discurso como seu próprio e o reveste de ideais e otimismo.
112
É neste cenário que a nova LDB – 9.394/96 – firma-se com mudanças no sistema
educacional. O Ensino de Primeiro Grau passa a ser denominado Ensino Fundamental e pode
assumir outras formas de organização que não só a seriada. O artigo 23 sugere:
A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais,
ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com
base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de
organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o
recomendar.
O cerne desta proposta está nos altos índices de reprovação e evasão escolar. Segundo
Almeida (2006), a escola em ciclos pode ser vista como uma escola democrática, porque ela
permite outras formas de organização do tempo e dos conteúdos escolares, de maneira que
atenda às necessidades e ao ritmo de aprendizagem dos alunos. A proposta dos ciclos é não
reprovar o aluno a cada ano escolar, mas estabelecer objetivos e metas a cada dois ou três
anos escolares.
No seu artigo 21, a Lei nº 9394/96 estabelece a composição da educação escolar em
educação básica, (formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e
educação superior. A duração do ensino fundamental é estabelecida pelo artigo 32, que dita a
duração mínima de 8 anos.
As mudanças que aconteceram devido a essa nova legislação, a partir de 1997,
implicaram numa reorganização do Ensino Fundamental:
[...] o desmembramento/ separação de escolas (prédios, professores e alunos),
incluindo a proposta de criação de salas-ambientes para o trabalho das
diferentes disciplinas até a efetivação de um sistema centralizado de
avaliação do rendimento escolar (SARESP
28
) e a implantação do regime de
progressão continuada, com seus projetos associados voltados à recuperação
e reforço escolar, como a criação de classes de aceleração para o primeiro
ciclo e o projeto "Escola nas Férias", entre outros. (Dias-da-Silva e
Lourecentti, 2002, p. 22)
As mudanças geraram impactos não só nos professores, como também nos alunos e
suas famílias, que tinham que buscar uma escola diferente para os irmãos, por exemplo.
Uma mudança, também ocorrida em decorrência dessa nova LDB, refere-se à
possibilidade de ingresso da criança de 6 anos no Ensino Fundamental, o que só foi
concretizado em 16 de maio de 2005, quando o atual Presidente do Brasil, Luís Inácio Lula da
28
Sistema de Avaliação de Rendimento Escola do Estado de São Paulo, elaborado para verificar a aprendizagem
dos Ciclos I e II – alunos de 4ª e 8ª séries da rede estadual, estabelecido pela Resolução SE-SP nº 14/02, de
05/02/2002.
113
Silva, sancionou a Lei nº 11.114, que estabelece o Ensino Fundamental com duração de 9
anos, caracterizado da seguinte maneira:
Quadro 1: O Ensino Fundamental de 9 anos
ETAPA DO ENSINO
BÁSICO
FAIXA ETÁRIA PREVISTA DURAÇÃO
Educação Infantil
(Até 5 anos de idade)
Creche
Pré-escola
0 a 3 anos de idade
4 e 5 anos de idade
3 anos
2 anos
Ensino Fundamental
(dos 6 aos 14 anos)
Anos iniciais
Anos Finais
De 6 a 10 anos de idade
De 11 a 14 anos de idade
5 anos
4 anos
Total 14 anos
A proposta do Ensino Fundamental de 9 anos não é algo novo. Em 9 de janeiro de
2001 foi promulgada a Lei nº 10.172, que “estabelece o Plano Nacional de Educação”. No que
se refere aos objetivos e metas do Ensino Fundamental, esta lei já propunha a ampliação deste
ensino para 9 anos, tendo o ingresso da criança de 6 anos como obrigatório, “à medida que for
sendo universalizado o atendimento na faixa etária de 7 a 14 anos”. O objetivo assinalado por
esta lei é o de “oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período de escolarização
obrigatória e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças
prossigam nos estudos alcançando maior nível de escolaridade”. Um parecer do Conselho
Nacional de Educação – CNE/CEB 06/2005 – estabelece que os sistemas de ensino e as
escolas devem formular uma proposta pedagógica nova que seja adequada à faixa etária de 6
anos – mais uma mudança que vem sendo questionada nos corredores das universidades, nas
salas dos professores de escolas, nas conversas informais entre pais de crianças dessa idade,
enfim, por aqueles que, na maioria das vezes, não são nem consultados, quanto mais
preparados para enfrentar os obstáculos de tais transformações.
Na cidade das escolas que são objetos de estudo dessa pesquisa, segundo a
coordenadora responsável pelo ensino de 1ª a 4ª séries na Secretaria Municipal, já está em
andamento um projeto estabelecendo diretrizes pedagógicas para o Ensino Fundamental de 9
anos. Enquanto isso, escolas e professores “aguardam” o que está por vir.
114
A formação dos professores
Diante de tantas mudanças, o professor se tornou um personagem à margem. Seu lugar
é destaque apenas como um profissional de pouca competência e habilidade para colocar em
prática aquilo que estava sendo proposto, muitas vezes visto até como o causador do fracasso
escolar. Essa era a imagem do professor já no final de década de 1990.
Uma reforma nos cursos de formação profissional docente se tornou necessária. O
professor deveria passar por uma formação profissional que o levasse a desenvolver o “saber
fazer”. Para Shiroma, Moraes e Evangelista (2002), tal pensamento e estratégia de
(re)profissionalização do professor deslegitimou saberes teóricos e práticos. “[...] buscando
retirar do mestre a identidade construída ao longo da história de seu ofício, esvazia-a de seu
sentido original e em seu lugar procura constituir uma outra mentalidade, competitiva e
individualista por excelência” (p.99).
Os cursos de formação profissional docente (Habilitação para o Magistério – no
âmbito do Ensino Médio, Pedagogia e as Licenciaturas para os diferentes componentes
curriculares do Ensino Fundamental e Médio) foram taxados de inadequados. No seu lugar
surgiram os chamados Institutos Superiores de Educação, vistos como locais ideais para
promover uma formação docente que daria conta dos “avanços” em educação. A Lei
9.394/96, em seu artigo 62, afirma que o futuro professor de educação infantil e das séries
iniciais do ensino fundamental não deve somente ter uma formação em nível médio, mas
preferencialmente em nível superior (embora admitida a formação em nível médio):
[...] a formação dos docentes para atuar na educação básica far-se-á em nível
superior, em curso de licenciatura, de graduação plena, em universidade e
institutos superiores de educação, admitida como formação mínima para o
exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do
ensino fundamental, e oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
(Brasil, 1996) (grifo meu.)
As discussões, os embates e as discordâncias entre os diversos segmentos do nível
superior de formação docente têm sido vários, desde então. A Lei 9.394/96 indica que o curso
de Pedagogia não prepara o professor e sim o especialista, contradizendo orientações da
Associação Nacional de Formação dos Profissionais da Educação (ANFOPE). As propostas
do Conselho Nacional de Educação (CNE) também não refletiam questões que já haviam sido
discutidas pelos diversos segmentos e se aproximavam do projeto governamental.
115
Sem dar ouvidos ao que se passava, o governo impõe o Decreto nº 3.276, ditando que:
“a formação em nível superior de professores para a atuação multidisciplinar destinada ao
magistério na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental far-se-á
exclusivamente em cursos normais superiores”. O curso de Pedagogia, então, deixaria de
formar o professor de Educação Infantil e Ciclo I do Ensino Fundamental, para formar
professores de Ciclo II do Ensino Fundamental, administradores, inspetores, supervisores,
diretores e orientadores pedagógicos ou especialistas em educação.
Tal decreto desencadeou manifestações de indignação e repúdio pelas universidades,
especialistas, etc. As autoras citam um artigo na Folha de São Paulo, de 5 de fevereiro de
2000, em que pró-reitores da USP, UNICAMP e UNESP e o ministro da Educação – Paulo
Renato Souza – defendem seus pontos de vista:
[...] Os pró-reitores julgaram abusivo atribuir a exclusividade dessa formação
tão fundamental a cursos normais superiores, uma instituição ainda
inexistente. Se se procura aprimorar a formação docente, por que impedir a
universidade, instituição que vem construindo sólida tradição na área, de
oferecê-la? O ministro afirma inicialmente que se pretendeu retirar do curso
de pedagogia uma de suas funções, ou seja, a de formar professores,
mantendo a de formar o especialista. Para o ministro, o decreto evidencia o
interesse do governo: melhorar a formação docente “em benefício das
crianças”. Além disso, “teve como objetivo marcar a posição do governo com
relação ao que pensamos sobre a formação de professores, cuja qualidade é
uma das nossas principais bandeiras”. (p. 102-103)
E em agosto de 2000, um decreto substitui a palavra exclusivamente por
preferencialmente, permitindo que não só os Institutos formassem os professores das séries
iniciais, mas desencadeando uma série de discussões e transformações curriculares no Curso
de Pedagogia, de forma que, em abril de 2006, o Ministério da Educação e Cultura
homologou Novas Diretrizes Curriculares para o Curso de Pedagogia.
Longe de representarem o final das discussões, estas diretrizes vêm sendo discutidas e
debatidas por associações, especialistas, dirigentes e acadêmicos e a expectativa geral é a de
que a formação profissional dos professores para o magistério Ensino Fundamental deixe de
ser um aspecto de diferenciação hierárquica entre os professores dos dois ciclos e torne-se um
aspecto importante no processo de valorização da profissão.
Na verdade, o impacto dessas mudanças será sentido em alguns anos. Até lá, o que
temos em nossas escolas são, na sua maioria, professores de Ciclo I formados em Magistério
e/ou Pedagogia e professores do Ciclo II formados nas licenciaturas das diversas disciplinas.
A esse respeito, vale ressaltar aqui o estudo de Anne-Marie Chartier (1998) que traça
considerações interessantes acerca da formação do profissional docente na França. Ao serem
116
criados os Institutos Universitários de Formação de Mestres (IUFMs), foram reagrupadas as
Escolas Normais (ENI) – formadoras dos professores primários – e os Centros Pedagógicos
(CRP) – formadores dos professores secundários. Antes dos IUFMs, os professores do
secundário não passavam por uma formação específica, eles eram selecionados por concursos,
de acordo com seu nível de conhecimento. Com o advento dos Institutos, os professores
primários formados pelos IUFMs deram um outro valor à profissão. Contudo, os professores
do secundário se viram em um processo de desvalorização, ao serem colocados no mesmo
patamar que os professores primários. Para aqueles, a formação dos IUFMs nivela por baixo a
formação dos “verdadeiros” professores, trocando a formação de alto nível das diferentes
disciplinas por “quimeras pedagogísticas” (p.50). Por outro lado, os professores primários
formados antes da criação dos IUFMs contestavam o contrário, ou seja, que a formação
poderia se tornar excessivamente teórica. Segundo Anne-Marie Chartier (1998, p.51), cada
grupo viu tais mudanças somente pelos aspectos de perda com relação à organização anterior.
Os professores do secundário, temendo ser “primarizados” num enquadramento pedagógico, e
os professores do primário, temendo que a nova formação privilegiasse aspectos do curso
secundário. Do ponto de vista da cultura escolar e cultura docente, a autora destaca a distância
entre os dois segmentos de ensino, fortemente enraizados em suas tradições.
Em entrevista concedida à Revista Brasileira de Educação de 1996, Dubet (1997)
discorre sobre a primarização do ensino secundário. Nessa entrevista, o autor revela suas
experiências como professor de História e Geografia em um colégio de periferia na cidade de
Bordeaux, na França, durante um ano em uma sala de aula que corresponderia à 6ª série do
Ensino Fundamental no Brasil.
Sociólogo e estudioso da juventude marginalizada, Dubet enfrentou o desafio de ser
professor para vivenciar os dilemas e dificuldades da profissão. Vivenciar as experiências de
sala de aula como professor era um desafio a ser encarado.
Embora seu ingresso na escola tenha sido tranqüilo (foi bem aceito pelos outros
professores), entrar na sala de aula como professor de adolescentes foi seu maior desafio.
Em seu relato, Dubet (1997) confirma as teorias que colocam a profissão docente
como um processo em contínua construção. No entanto, como o próprio autor afirma, falar
sobre a dificuldade de ser professor não é algo confortável, principalmente se o professor que
estiver tendo dificuldades for um novato na escola ou na profissão.
E neste processo contínuo em tornar-se professor, a formação profissional não pode
ser vista como uma aprendizagem de ferramentas. Segundo Dubet (1997), não basta propor
mudanças nas ferramentas pedagógicas (nos métodos, por exemplo), sem que se busque a
117
mudança da própria postura do professor, o que envolve uma complexa desconstrução e
reconstrução da identidade profissional. E não é em um curso de formação aligeirado e
inconsistente que isso se dará – reiterando a necessidade de novas bases para a formação dos
professores sejam eles do “ensino primário ou do secundário”.
PARTE IV
118
A PESQUISA REALIZADA – AS RELAÇÕES ENTRE PROFESSORES
DOS CICLOS I E II DO ENSINO FUNDAMENTAL
4.1 Estudo preliminar
As observações que venho realizando das relações entre professores do Ensino
Fundamental I e II levaram-me a supor que a visão que os professores têm de si mesmos, seu
trabalho e o trabalho dos colegas de escola parece interferir nessas relações, imprimindo nelas
marcas específicas. Registros de ações de formação continuada que venho desenvolvendo
com tais professores reúnem indicações fortes de que o grupo de professores do Ensino
Fundamental I é visto pelo grupo de professores do Ensino Fundamental II como “figuras
maternais”, com pouca formação, o que os impede de preparar o aluno para a etapa seguinte.
Em contrapartida, os professores do Ensino Fundamental II são vistos pelo grupo de
professores do Ensino Fundamental I como profissionais “distantes e resistentes”, que “não
entendem de didática, só pensam nos conteúdos e se julgam superiores”.
É fato que existe uma hierarquia entre estes dois níveis de ensino (diferentemente
percebida pelos professores), cujas diferenças ultrapassam a formação e podem ser
identificadas na política salarial, no status de cada um na comunidade escolar e na sociedade
em geral e nas exigências para o acesso ao diploma, ingresso na profissão e participação na
própria estrutura escolar, que os separa em turnos ou prédios diferentes, em reuniões e
encontros pedagógicos isolados.
Este estudo centra a busca de respostas no interior da comunidade escolar e na forma
como sua organização e seu funcionamento vão, pouco a pouco, construindo as bases sobre as
quais se assentam as diferentes visões que os professores desenvolvem uns em relação aos
outros.
Um estudo preliminar, em 2005, com 5 professoras do ciclo I e 7 professores(as) do
ciclo II, de uma escola particular em um município da Grande São Paulo, foi realizado com a
intenção de caracterizar as visões/ percepções que tais professores constroem uns sobre os
outros, identificando sinais de possíveis interferências dessas visões/ percepções nas relações
entre eles e suas conseqüências sobre a identidade profissional que desenvolvem.
119
Dinâmicas com características de grupo focal
29
, tal como descrito por Gatti (2005)
constituíram as bases metodológicas para a realização do estudo. A técnica consiste,
basicamente, no levantamento de dados a partir de discussões/ debates em grupos enfocando
um tema específico.
A opção por esta técnica se deu pelas possibilidades que ela traz:
O trabalho com grupos focais permite compreender processos de construção
da realidade por determinados grupos sociais, compreender práticas
cotidianas, ações e reações a fatos e eventos, comportamentos e atitudes,
constituindo-se uma técnica importante para o conhecimento das
representações, percepções, crenças, hábitos, valores, restrições,
preconceitos, linguagens e simbologias prevalentes no trato de uma questão
por pessoas que partilham alguns traços em comum, relevantes para o estudo
do problema visado. [...] além de ajudar na obtenção de perspectivas
diferentes sobre uma mesma questão, permite também a compreensão de
idéias partilhadas por pessoas no dia-a-dia e dos modos pelos quais os
indivíduos são influenciados pelos outros. (Gatti, 2005)
São relatados, a seguir, em forma de síntese narrativa, resultados de observações e
registros cursivos de 2 encontros com os professores, buscando-se indícios dos elementos que
conformam as relações estabelecidas entre os dois grupos de professores do Ensino
Fundamental.
Vejamos.
Este estudo preliminar apoiou-se nos conceitos de: interiorização social e identidade
pessoal e profissional de Berger & Luckmann (2000); construção da identidade de Dubar
(1997); cultura escolar e cultura do professor de Pérez Gómez (2001); construção dos saberes
docentes e profissionalização de Tardif & Raymond (2002) e Tardif & Lessard (2005).
Para entendermos a realidade cotidiana precisamos entender como ela se constrói.
Considerar o seu interior, o conhecimento que a dirige e a realidade social em que se insere.
Para Berger & Luckmann (2000) trata-se de compreender as objetivações dos processos de
relações entre os indivíduos, entre eles e o mundo que os cerca e suas significações. Esses
autores afirmam que a realidade já aparece objetivada para o indivíduo. Os fenômenos são
pré-arranjados em padrões que se impõem ao indivíduo, aparentemente sem depender da
apreensão por parte dele. Desta forma, no dia-a-dia, o senso comum se torna o conhecimento
29
A primeira menção da técnica do grupo focal em pesquisas data de 1920. Mas somente em 1950 R. Merton a
utilizou para estudar as reações das pessoas à propaganda de guerra. Entre os anos de 1970 e 1980, os grupos de
discussões eram comuns em pesquisa de comunicação. Somente no final de década de 1980 que esta técnica foi
difundida como técnica de pesquisa no campo das ciências sociais. Ver a respeito: POWELL, R. A.; SINGLE, H.
M. Focus groups. International Journal of Quality in Health Care, v. 8, n. 5, p. 499-504, 1996 e KTZINGER,
JENNY. The methodology of focus groups: the importance of interaction between research participants.
Sociology of Health and Illness, v. 16, n. 1, 1994.
120
do indivíduo e o mais freqüentemente partilhado com os demais. A vida diária se apresenta ao
indivíduo como um mundo intersubjetivo, em uma contínua correspondência entre os seus
significados pessoais e os dos outros (o estudo apresentado aqui procurou indícios dos
conhecimentos que permeiam as relações entre os professores do Ensino Fundamental I e II).
A teoria de Dubar (1997) permite ampliar a compreensão desse processo. De acordo
com este autor, a identidade do indivíduo é composta daquilo que ele constrói para si e do que
os outros nele vêem. A identidade para o outro, expressa pelo que os outros acham que o
indivíduo é, está condicionada ao reconhecimento de um grupo, de uma classe ou de uma
categoria. Este processo corrobora uma identidade virtual, mais próxima de algo modelado e
construído pelas imagens que o grupo tem do indivíduo, do que sua identidade real. Assim, é
possível supor que a forma como um professor é visto por outro professor pode ser
“acomodada” em seu processo biográfico e que tal acomodação se dá pela própria
necessidade do professor tentar defender sua identidade pré-definida e a que deseja construir.
Ele assimila a representação do outro à sua identidade (tais relações podem ajudar a entender
os conflitos presentes na identidade profissional dos professores, a partir da percepção que
expressam sobre elas).
Tardif & Lessard (2005) afirmam que a identidade profissional dos professores é
fortemente caracterizada pelo tipo de atividade que realizam. Seu trabalho se dá,
essencialmente, sobre e com seres humanos, fonte inevitável de tensões e de toda a
complexidade da realidade em que operam, constroem conhecimentos e estruturam sua
identidade profissional.
Para Tardif & Raymond (2002), o tempo constitui elemento fundamental na
construção dos saberes “... mobilizados e empregados na prática cotidiana, saberes esses que
dela se originam e que servem para dar sentido às situações de trabalho que lhes são próprias”
(p. 209). Dubar afirma que trabalhar não é somente transformar um objeto ou situação em
uma outra coisa, mas é também “transformar a si mesmo em e pelo trabalho”:
[...] pode-se dizer que o trabalho modifica a identidade do trabalhador, pois
trabalhar não é somente fazer alguma coisa, mas fazer alguma coisa de si
mesmo, consigo mesmo (...) Se uma pessoa ensina durante trinta anos, ela
não faz simplesmente alguma coisa, ela faz também alguma coisa de si
mesma: sua identidade carrega as marcas de sua própria atividade, e uma boa
parte de sua existência é caracterizada por sua atuação profissional. Em
suma, com o passar do tempo, ela tornou-se aos seus próprios olhos e aos
olhos dos outros um professor, com sua cultura, seu éthos, suas idéias, suas
funções, seus interesses. (Tardif & Raymond, 2002, p. 211 e ss)
121
Para compreensão desse conjunto singular de situações que conformam a identidade
dos professores, este estudo apóia-se, ainda, na interpretação culturalista da escola proposta
por Pérez Gómez (2001). Para esse autor, a cultura escolar constitui um “cruzamento de
culturas”, expresso em rotinas e práticas que impregnam as relações entre professores, alunos
e toda a comunidade escolar, provocando tensões, aberturas, restrições e contrastes na
construção de significados e identidades (p. 12).
Na escola, muitas vezes os professores expressam suas visões sobre “o outro”: alunos,
pais, colegas e superiores. Tais momentos raramente são sistemáticos e intencionais. Eles
ocorrem ocasional e espontaneamente e dificilmente tornam-se alvos de registro, discussões e
análises.
As 2 reuniões conduzidas com o grupo de professores alvos deste estudo foram
intencionalmente construídas, propostas e aceitas pelo grupo, tomando como foco de
discussão e análise a percepção de cada um sobre as relações que mantêm entre si, o trabalho
que realizam e as condições em que o fazem. Os resultados forneceram pistas para a
identificação dos elementos que conformam as relações entre eles e a identidade profissional
que desenvolvem como membros de uma equipe escolar. O relato a seguir, extraído do
caderno de registros e observações, traz algumas dessas pistas ou indícios encontrados.
1º Encontro
[...] Era o primeiro dia de retorno das férias de julho – o
replanejamento das atividades do segundo semestre de 2005. A idéia
foi reunir os professores para uma integração e sensibilização sobre a
importância de um trabalho em equipe. O encontro iniciou com uma
conversa informal, regada a um delicioso café da manhã. Em seguida,
com todos sentados em círculo, deu-se início a uma dinâmica que se
desenvolveu da seguinte maneira: apresentei uma caixa embrulhada
para presente verbalizando que a havia ganhado e que gostaria de
repassá-la para alguém do grupo. Justificando minha escolha, passei
a caixa à coordenadora pedagógica, que deveria passar para outra
pessoa, justificando igualmente sua escolha. A pessoa que recebeu a
caixa, dando seguimento à dinâmica, passou para outro membro do
grupo e assim a caixa percorreu toda a sala, passando pelas mãos de
cada um dos profissionais presentes. A última pessoa a receber a
caixa foi uma professora de inglês que atua nos dois ciclos de ensino
fundamental nessa escola, e uma das recém chegadas (menos de um
ano) na equipe. Prontamente, antes de abrir a caixa, verbalizou que
dividiria seu conteúdo com toda a equipe, não importando o que
tivesse dentro. Ao abrir a caixa a professora se deparou com vários
bombons. A maioria dos bombons tinha presa à sua embalagem a
palavra “problema”. A caixa foi, então, passada de “mão em mão”
para que cada um escolhesse um bombom.
122
A partir daí muitas reações foram observadas. Um professor escolhe rapidamente seu
bombom, não se dando conta ou não se importando com a palavra “problema”. Alguns
professores evitam bombom com a palavra “problema”. Outros escolhem os “bombons sem
problema”. Ao final sobram algumas unidades na caixa (com e sem a palavra “problema”).
Como nem todos tinham um “bombom-problema”, os próprios professores consideraram que
a caixa deveria “rodar” novamente para que todos tivessem pelo menos um “problema” em
mãos.
Ao serem perguntados como se sentiam e quais problemas eles teriam em mãos,
naquele momento, para expressar ao grupo, os primeiros a se manifestarem são os do Ensino
Fundamental II. O professor de História, constrangido, verbaliza seu maior problema no
momento: a falta de dinheiro. A professora de Ciências aponta problema de planejamento:
colocar em prática a horta com os alunos da 5ª série... Para o professor de Matemática, o
maior problema está em despertar nos alunos a vontade de aprender.
A partir dessa referência a “problemas com os alunos”, todos os demais professores
tomam a palavra, expondo problemas ou fazendo comentários, concordando, discordando,
complementando as falas dos colegas. As falas dos professores expressaram, em resumo, que
os alunos chegam dos quatro anos do Ensino Fundamental I sem nenhuma “capacidade de
abstração” e com um nível de leitura, escrita e compreensão de texto muito abaixo do esperado.
Com essa perspectiva, os professores do Ensino Fundamental II verbalizam suas
dificuldades e, ao mesmo tempo, indagam dos professores do Ciclo I as razões de tal situação
e os problemas específicos da primeira etapa da escolaridade. As respostas dos professores do
Ciclo I (quase sempre em tom de defesa do próprio trabalho e, algumas vezes, também dos
alunos) acabam por sentenciar: “... professores de Ciclo II desconhecem Didática e
Psicologia”.
Apenas um ponto em comum se destaca nos depoimentos de todo o grupo:
necessidade de maior integração: “Precisamos fazer mais o intercâmbio entre os dois níveis,
não só no campo da ação, como também no campo das idéias”.
Há que se destacar aqui que as professoras do Ensino Fundamental I só se manifestam
após incentivo da pesquisadora e em resposta aos professores do Ciclo II. Demonstrando certa
irritação, vão afirmando discordar das posições dos colegas do Ciclo II em relação aos
problemas dos alunos”.
Assim, gradativamente, todos encontram espaço para falar. O principal resultado deste
1º Encontro foi: a identificação, pelo grupo, de que o maior problema é que os dois ciclos do
123
Ensino Fundamental não “falam a mesma língua”. O aluno se sente perdido na passagem de
um nível para outro porque, nós, professores, estamos perdidos!
Tal conclusão desdobra-se, ao longo dos registros, em outras constatações:
9 Os professores do Ciclo I trabalham no campo da prática, do concreto (referência às suas
estratégias de ensino) “... em boa parte do cotidiano escolar, se voltam para atividades
que envolvem o concreto, a experimentação, a manipulação, o jogo, a brincadeira com o
objetivo de fazer com que os alunos aprendam o conteúdo que está sendo ensinado”;
9 Os professores do Ciclo II trabalham no campo das idéias, da abstração (referência às
características de seu trabalho): “os alunos não são mais crianças, há muito conteúdo a
ser ensinado, não há tempo para brincadeiras, o tempo de aula com os alunos é muito
curto”.
2º Encontro
Já ao final do 1º. Encontro, algumas professoras do Ensino Fundamental I, longe dos
colegas do Ciclo II, afirmam sentirem-se “injustamente criticadas” e, por isso mesmo,
dispostas a “participar mais no próximo encontro”. Mas também no 2º. Encontro, os
primeiros a falarem são os professores do Ciclo II, com o professor de História tomando a
palavra: “Pensei muito após o encontro passado e fiquei preocupado... será que as
professoras do nível I nos interpretaram mal?”.
Um a um, os professores do Ensino Fundamental II vão afirmando, de diferentes
maneiras, que não pretendem criticar o trabalho das colegas do Ciclo I e que, ao contrário,
acreditam ter “muito a aprender com elas”:
Sabemos que vocês têm mais formação pedagógica e que podem nos ajudar
a entrar no campo da prática e do concreto...”.
“Não queremos que os professores do nível I pensem que estamos apontando
falhas”.
“... queremos dar continuidade ao trabalho da 4ª série”.
“Também no nosso processo há problemas... falta no nosso trabalho a idéia
de como concretizar os conteúdos para os alunos”.
Ao longo de todo o 2º Encontro duas perguntas e uma constatação foram os focos do
processo de discussão e reflexão:
124
Como nós estamos educando nossos alunos?
O que queremos deles?
Temos dificuldades em passar para nossos alunos o que queremos deles!
Uma professora da 4ª série verbaliza a ansiedade e o conflito do grupo do Ciclo I:
Até onde preparar os alunos para a 5ª série? Como saber se não estamos exigindo demais
ou de menos?” – e, neste momento, revelam-se os conflitos de identidade profissional pelos
quais passam os professores de ambos os grupos.
A posição de todos a esse respeito é expressa por uma professora do Ensino
Fundamental I: “Precisamos primeiro lidar com nossas diferenças, para depois mudar tudo
isso... entender o que sabemos, o que não sabemos, os alunos que não aprendem... não vai
ser fácil... nossos conhecimentos são poucos e muito fragmentados”.
Nos dois encontros é possível observar que os professores percebem os fatores que
interferem em sua atividade profissional: desde a situação de desvalorização atual dos
professores, a cobrança da sociedade para a melhoria da qualidade da educação (erroneamente
dirigida somente a eles, professores, sem atentar para as políticas de fragilização da formação
e das condições salariais e de trabalho), passando pelo empobrecimento da formação inicial e
distância em relação à realidade futura do professor e pelas diferenças de formação dos
professores dos dois ciclos, até chegar à dificuldade de saber o que compete a cada um em
cada etapa desse momento da escolaridade básica.
Assim, a construção de uma confusa identidade profissional começa a se explicitar.
Questões não respondidas ou respondidas de forma desigual e, às vezes, contraditórias
são postas em destaque pelos diferentes profissionais. Todas essas questões são relacionadas
ao trabalho docente cotidiano a ser realizado por cada um. No exame das opiniões expressas
pelos professores nos dois encontros, é possível observar alguns aspectos dessa realidade: as
professoras do Ensino Fundamental I resistem a expressar o que pensam e sentem na presença
de seus colegas de trabalho do Ciclo II. Estes também parecem se sentir pouco confortáveis
para expressar as dificuldades que detectam nos alunos e que consideram impeditivas para o
seu trabalho nos anos finais do Ensino Fundamental. A hipótese sobre a razão desses
desconfortos – expressa pelos próprios professores – pode estar, segundo eles, no que
denominam de “a questão da formação”. Professores de ambos os ciclos se colocam em
caminhos às vezes opostos, às vezes paralelos” em relação à atividade de sala de aula e
identificam em seus trabalhos o que denominam conhecimento prático e conhecimento
teórico.
125
A tensão expressa por esse grupo de profissionais manifesta-se, ainda, em uma difusa
condição de inferioridade” em relação a outras profissões consideradas “aparentemente,
menos confusas” (médicos, dentistas, engenheiros, advogados). Para Tardif (2005, p.50) o
status atribuído pelos próprios profissionais docentes à profissão que exercem corresponde à
identidade do trabalhador na organização em que trabalha e na sociedade – “... o status do
profissional docente parece por demais fragilizado e como que sacudido por expectativas,
necessidades, pressões antagônicas”.
*
Este estudo preliminar permitiu-nos refletir sobre os diferentes fatores envolvidos nas
relações entre os professores do Ensino Fundamental I e II. Tais fatores fazem parte da cultura
docente e nos remetem a uma reflexão mais ampla.
Nesse sentido, a contribuição deste estudo pode estar exatamente na identificação dos
elementos que levam os dois grupos de professores ao distanciamento e ao desconhecimento
de suas conseqüências na construção da identidade profissional docente e, por conseguinte,
em sua atuação pedagógica.
4.2 Caracterização das escolas e professores alvos do estudo
As escolas estão localizadas em um município da Grande São Paulo em que o ensino
não foi municipalizado, o que levou à seleção de duas escolas públicas estaduais: uma escola
de Ensino Fundamental II – que denominaremos Escola A e uma escola de Ensino
Fundamental I e II, em que os professores dos dois Ciclos do Ensino Fundamental trabalham
no mesmo prédio – que denominaremos Escola B.
Com base em questionário construído e testado especificamente para obter dados de
caracterização das escolas (Anexo 4), que foi preenchido juntamente com as diretoras de cada
escola, obtivemos informações que permitiram traçar um perfil geral de cada uma das
instituições.
Vejamos.
126
Escola A
É uma escola pública estadual localizada num bairro residencial pobre de uma cidade
da Grande São Paulo. Foi fundada em 1976 e atualmente possui uma imagem positiva junto à
comunidade; a procura de vagas para a 5ª série do Ensino Fundamental é bastante disputada.
Sua comunidade, considerada “de periferia”, é composta de famílias classificadas pelo
Plano Político-pedagógico da Escola como pertencentes às classes média e média baixa.
Segundo a Diretora, alguns alunos perceptivelmente vivem na miséria. Em um extremo, há
pais de nível superior como contadores e advogados e, em outro, pais analfabetos.
A Diretora observa que os alunos do período da manhã e da noite, que são maiores de
14 anos, vestem tênis de marca e roupas mais novas. Já os alunos do período da noite, os mais
novos e que por isso não trabalham ou ajudam no custo da casa, apresentam vestimentas mais
simples e “surradas”; alguns vão à escola comchinelos de borracha”.
Esta escola há mais ou menos quatro anos (quando esta diretora assumiu) era
considerada perigosa devido ao tráfico e à violência presentes. A situação mudou, segundo a
Diretora, por conta de um programa do governo intitulado “Parceiros do Futuro”, atualmente
denominado “Escola da Família”.
Atualmente a escola mantém 1.213 alunos matriculados, divididos em três turnos de
quatro horas e meia cada, sendo: 455 alunos entre 7ª e 8ª séries do Ensino Fundamental e as
classes de Ensino Médio, no período da manhã; 406 alunos entre 5ª, 6ª e 7ª séries do Ensino
Fundamental, no período da tarde; e 352 alunos entre a 8ª série do Ensino Fundamental e
classes de Ensino Médio, no período noturno.
Há em média 40 alunos por sala no período da manhã; 35 alunos no período da tarde;
e 37 alunos no período da noite.
Há 67 professores que atuam nessa escola, sendo: 27 professores efetivos, 25 OFAs
(Ocupantes de Função Atividade), 2 professores afastados, 4 readaptados, 1 estável e 8
eventuais (3 no período da manhã, 3 no período da tarde e 2 no período da noite).
O prédio é de alvenaria e foi construído para fins escolares, sem acesso para
deficientes físicos. Conta com 35 salas de aula em estado que a diretora considera “regular”.
As paredes são pintadas anualmente, segundo a diretora, mas é comum ver rabiscos, desenhos
e escritos em várias delas. Duas salas de aula têm aparelho de TV e vídeo e a pretensão da
direção é que cada sala venha a ter estes aparelhos. Há outros aparelhos na escola, disponíveis
127
aos professores (como aparelho de DVD, aparelho de CD e Home Theater), no entanto, os
professores pouco os utilizam – segundo a Diretora em decorrência de: falta de tempo, falta
de habilidade para manusear os aparelhos, desinteresse.
As carteiras escolares são dispostas em fileiras em todas as salas de aula. Observa-se
que são móveis relativamente modernos (mesas e cadeiras), mas que há alguns que estão
danificados. De acordo com a Diretora, os próprios alunos danificam o mobiliário. Em
algumas salas há armários, mas a condição deles é péssima. A iluminação e a ventilação de
todos os ambientes são adequadas.
Em todos os momentos que estive na escola observei que a limpeza é bem precária. A
Diretora informou que a escola estava, desde o início do ano, sem profissionais específicos
para tal tarefa. Quem estava executando a limpeza de toda escola era o responsável pela
manutenção. Somente no início do mês de setembro de 2006 duas funcionárias foram
contratadas.
Todas as salas são consideradas “salas ambientes”. Os professores, nas suas
disciplinas, são responsáveis pelas salas de aula e os alunos, de acordo com o rodízio de aulas
(50 minutos a 120 minutos), deslocam-se para as salas. No entanto, observa-se que as salas
não têm uma decoração ou materiais específicos das disciplinas, a aparência é de uma sala de
aula comum. O currículo adotado corresponde ao denominado estilo mosaico (ver a respeito:
Gimeno Sacristán, 1998)
30
.
A biblioteca está localizada no pátio, entre os banheiros, em um espaço pequeno que
não comporta mais do que 25 alunos. Uma professora reajustada é responsável pelo ambiente,
que é utilizado com freqüência pelos alunos, espontaneamente, ou levados pelos professores
para fazerem pesquisas e trabalhos.
O laboratório de Informática possui 10 computadores atualizados e em bom estado.
Alguns professores levam seus alunos para desenvolverem atividades pedagógicas, mas seu
uso maior é pelos alunos de 5ª e 6ª séries do Ensino Fundamental com dificuldades de
alfabetização, participantes de um projeto realizado em parceria com a Diretoria de Ensino. É
muito utilizado também aos finais de semana no projeto “Escola da Família”.
A quadra de esportes é coberta e utilizada nas aulas de Educação Física e na “Escola
da Família”.
30
Segundo Gimeno Sacristán (1998), este tipo de currículo que tem o formato de mosaico, também denominado
currículo collection, é formado por componentes que se diferenciam explicitamente e se justapõem. Neste
currículo os conteúdos surgem de forma clara, bem delimitados, com fronteiras bem visíveis e que se
diferenciam nitidamente.
128
Na hora do intervalo, os alunos ficam em um pátio coberto, no centro da escola.
Observa-se que não há bancos para sentarem.
O estado dos banheiros é regular. É comum o mau cheiro, a sujeira e a falta de papel
higiênico. Dois pontos foram levantados pela direção da escola: as torneiras dos banheiros são
as mais baratas do mercado, de plástico, pois os alunos roubam com freqüência. O papel
higiênico tem que ser controlado até mesmo nos banheiros dos professores e funcionários,
devido aos sumiços e desperdício.
A Sala dos Professores também foi alvo de comentários da diretora. Localizada ao
lado da Sala da Diretoria e quase em frente à Sala da Coordenação Pedagógica, “está sempre
bagunçada”, segundo a diretora: “Nem mesmo os armários novos comprados há menos de 2
anos são conservados”. Há uma mesa grande ao centro, cadeiras e armários individuais.
Aliás, secretaria, direção e coordenação têm móveis novos e modernos. Mas é
importante destacar que a Coordenadora fica numa sala pequena (menos de 6 metros
quadrados), pouco ventilada e ainda divide o espaço com uma mesa, uma cadeira, dois
armários e vários materiais de papelaria e livros.
Na entrevista com a Diretora, alguns comentários merecem destaque. Vejamos:
¾ Sobre inclusão: a escola já recebeu alunos com deficiência auditiva e visual, mas
os professores têm dificuldade em trabalhar com eles, “... tanto é que os únicos que
estudavam na escola evadiram”. Quando a Diretora solicitou à Diretoria de Ensino
local um treinamento para seus professores, ouviu de uma Supervisora de Ensino
que não “via necessidade”, pois “a mãe não foi preparada para dar conta do filho
deficiente e dá”;
¾ Sobre a não autonomia da direção com relação aos professores: a Diretora se
queixa da falta de autonomia para agir com os professores, da burocracia lenta e
complexa caso precise tirar um professor da escola e de como sua imagem fica
prejudicada nessas situações, pois há um sentimento inadequado de “coleguismo
coletivo”. A Diretora informou que, em 2002, só havia 5 professores efetivos.
Atualmente são 95% de professores efetivos no quadro, no entanto, segundo a
Diretora, ao invés de melhorar, este relacionamento só piorou: “professores
efetivos faltam mais e não há envolvimento”;
¾ Sobre as faltas dos professores: por serem muitas, o Estado passou a oferecer um
bônus ao professor que não falta como um incentivo, mas, segundo a Diretora, esse
129
“incentivo” vai ser retirado e, com isto, ela teme que as faltas aumentem ainda
mais;
¾ Sobre a Associação de Pais e Mestres (APM): poucos pais participam, a maioria é
composta de professores que, segundo a Diretora, “dificultam e boicotam o
trabalho da direção” – o que permite supor a existência de dificuldades de
relacionamento entre a escola e os pais ou a comunidade;
¾ Sobre a relação entre professores: a organização e disposição dos espaços
possibilitam a comunicação entre os professores, no entanto, há somente 2
reuniões com a participação de todos os membros da equipe, no início de cada
semestre. A Diretora já tentou agendar outras reuniões, mas sempre, segundo ela,
esbarra no problema dos professores trabalharem em outras escolas”. Os
HTPCs, como já comentado anteriormente, são realizados uma vez por semana,
em pequenos grupos de professores, de acordo com os dias em que estão na escola
dando aula. Normalmente são dirigidos pela Coordenadora Pedagógica. A escola
mantém registros descritivos desses encontros
31
. Para a Diretora, que raramente
está presente nesses encontros, os professores aproveitam estes momentos para
meterem o pau nos alunos que têm dificuldades de aprendizagem”, ou seja, para
ela, “sempre o que prevalece é o lado negativo dos alunos”;
¾ Sobre Disciplina: Segundo a Diretora, a indisciplina em sala de aula é comum,
principalmente entre os alunos maiores. Os alunos do Ensino Médio, que estudam
à noite e trabalham durante o dia todo, têm poucas expectativas de futuro
32
. Eles
chegam cansados, desmotivados, têm dificuldade para acompanhar, as aulas não os
motivam, os professores não os estimulam, assim, a indisciplina se torna
corriqueira. Em cada sala de aula há um livro de ocorrências, no qual constam
advertências dadas oralmente por escrito pela coordenação ou direção. Casos
extremos são encaminhados para o Conselho Tutelar. A Diretora afirma ser difícil
trabalhar as questões disciplinares com as famílias. Segundo ela, é comum ouvir
deles que o filho “está nas mãos de Deus”;
31
Observando as atas dos HTPCs, constatei que os registros são feitos após a reunião, em um Livro Ata, e que os
professores o assinam posteriormente.
32
A opinião da Diretora é a de que o governo, ao propor projetos como “Jovem Cidadão” e “Aprendiz”, faz com
que o aluno deixe o trabalho em primeiro plano e o estudo em segundo plano. Sua afirmação nos remete aos
referenciais teóricos deste estudo, especialmente no que diz respeito às relações entre cultura e cultura escolar.
130
¾ Sobre a Coordenação Pedagógica: ao assumir o cargo, a Coordenadora
Pedagógica só tinha a formação inicial em licenciatura em Educação Física
33
. A
pedido da direção, ela fez uma complementação em Pedagogia há pouco tempo.
Ao questionar a direção sobre qual o maior problema que a escola vem enfrentando
atualmente, rapidamente ela respondeu que é a falta de preparo do professor. Segundo ela, os
professores saem da faculdade pouco preparados para enfrentar salas de aula com mais de 40
alunos. Ela nota que os professores “fazem de tudo para saírem da sala de aula”, é como se
na sala de aula estivessem “sufocados”. Sempre que a direção propõe algo novo, os
professores mostram-se resistentes. Segundo a Diretora, a escola dispõe de bons recursos
materiais, em quantidade suficiente e são oferecidas aos professores oportunidades de
formação continuada: “o Estado promove cursos e mais cursos, mas o professor não muda
sua metodologia e sua postura em sala de aula”.
Cabe acrescentar, no entanto, que como ela já foi diretora de escola particular por mais
de 15 anos antes de ingressar no Estado, os professores costumam dizer que “ela quer
transformar esta escola pública numa escola particular”.
Da mesma forma, questionei qual o aspecto mais positivo da escola que ela destacaria.
Sua resposta demorou mais que a primeira. Ela mesma verbalizou o quão difícil era buscar
algo positivo. Por fim, referiu-se ao fato de que os professores possuem um forte sentimento
de solidariedade quando se trata de ajudar algum aluno muito necessitado de alimentos ou
roupas: “Eles se unem, dão cesta básica, por exemplo”. Mas logo ela lembra que quando há
um problema ou uma dificuldade profissional de algum colega do grupo, não há uma união do
grupo: “se acontece algo desse tipo, o problema é meu”.
Escola B
A escola B atende alunos de 1ª a 8ª série do Ensino Fundamental, Ensino Médio e
Alfabetização de jovens e adultos
34
. É uma Escola pública estadual, localizada em bairro
33
Nas escolas estaduais de São Paulo, não há obrigatoriedade legal da formação em Pedagogia para assumir a
função de Coordenador Pedagógico. Aliás, a própria Pedagogia não tem esse registro legal. A diretora afirma
que há muitos coordenadores na cidade em que atua, com licenciatura em Educação Física, por exemplo. Sua
opinião é que isto ocorre devido à demanda desses profissionais que é maior que o número de aulas disponíveis.
131
periférico de uma cidade da Grande São Paulo, rodeada de casas residenciais, comércio e
indústrias que variam de pequeno à grande porte. Segundo a Diretora, algumas dessas
indústrias colaboram com projetos da escola, com o objetivo de beneficiar a escola e a
comunidade que atende. Segundo a diretora, é o corpo docente que busca o auxílio de
comerciantes e empresas da região quando idealiza algum evento ou projeto específico.
A região é habitada por população carente e não dispõe de infra-estrutura e serviços
básicos adequados. Os alunos são, na sua maioria, moradores de um conjunto habitacional
conhecido no país por episódios de violência. Próximo a este conjunto há uma outra escola
estadual, mas as famílias preferem buscar a Escola B. Segundo a diretora, esta preferência se
deve, de um lado, ao fato de que, nesta escola, os alunos podem estudar da 1ª série do Ensino
Fundamental até o Ensino Médio e, de outro lado, à sua estrutura física mais adequada e
aconchegante”.
Fundada em 1958, a escola foi construída inicialmente para atender a alunos de 1ª a 4ª
séries do Ensino Fundamental, o que a difere de outras escolas públicas da região pela sua
estrutura física. São 13 salas de aula, sendo que 10 ficam ao redor de um pátio descoberto
onde os alunos ficam na hora do intervalo (no início de cada ano letivo os professores
escolhem qual sala desejam). As demais salas estão localizadas em um pequeno prédio anexo,
sendo que uma delas é a Sala de Vídeo que foi adaptada para receber os alunos para essa
atividade específica. É neste pátio também que ficam a Sala dos Professores, a cozinha, a
cantina, a Sala da Coordenação Pedagógica e a Diretoria. No entanto, a Diretora permanece o
tempo trabalhando em uma mesa localizada na Secretaria Geral, segundo ela, por motivo de
segurança, em decorrência de um arrombamento na escola há alguns meses. Nessa época, os
computadores do Laboratório de Informática (localizado no prédio anexo) foram roubados.
Após alguns meses, uma indústria grande da região patrocinou grades de proteção e alarmes e
doou outros equipamentos. Contudo, segundo a Diretora, são aparelhos antigos e que estão
em estado precário. Nos finais de semana há voluntários que buscam organizar e modernizar
as máquinas, mas o avanço é lento. Tais voluntários fazem parte de um programa do governo
estadual denominado “Escola da Juventude”, em que monitores atendem por volta de 50
adolescentes e jovens (alunos e outras crianças da comunidade), solucionando dúvidas em
História, Geografia, Português, Matemática, Física e Química.
Na entrada da escola, ao lado esquerdo, há um bonito e grande jardim, e do lado
direito um estacionamento à frente da casa da caseira. A entrada e saída dos alunos
34
A escola está localizada em uma cidade em que o ensino não foi municipalizado, de maneira que o Estado
ainda é responsável pelo ensino de 1ª a 4ª séries do Ensino Fundamental.
132
inicialmente se davam por um portão pequeno, na frente da escola, ao lado de um jardim. A
pedido da direção, uma reforma nos fundos foi feita para que os alunos pudessem ter acesso à
escola por um portão bem maior. Há pequenas quadras de esportes descobertas, organizadas e
reformadas pelos próprios professores de Educação Física que também as mantêm em ordem.
Há ainda uma biblioteca (localizada no prédio anexo) organizada por uma professora
readaptada, que é utilizada pelos alunos de acordo com os seus planejamentos.
Na Sala dos Professores há uma mesa grande, cadeiras e armários individuais.
A escola conta com retroprojetor, vídeo, TV, DVD e antena parabólica que, segundo a
Diretora, são pouco utilizados pelos professores, em geral por falta de tempo e pela
dificuldade em controlar a indisciplina dos alunos.
São 75 professores, sendo: 18 do Ciclo I do Ensino Fundamental (4 OFAs e 14
efetivos) e 54 do Ciclo II do Ensino Fundamental e Ensino Médio (16 OFAs e 38 efetivos).
Há ainda 03 professores que estão afastados.
A escola tem 1733 alunos matriculados distribuídos nos períodos da manhã, tarde e
noite: 662 alunos de 1ª a 4ª séries; 342 alunos de 5ª a 8ª séries; 274 alunos de Ensino Médio e
455 alunos da EJA. No período da manhã estudam os alunos de 1ª, 2ª e 3ª séries do Ensino
Fundamental, no período da tarde os alunos de 4ª a 8ª séries do Ensino Fundamental e no
período da noite, os de Ensino Médio e EJA. Dessa forma, a integração entre os professores
do Ensino Fundamental fica prejudicada.
Vale destacar que, em relação ao Ensino Fundamental II, a escola organiza, no período
da tarde, 10 turmas de 5ª e 6ª séries e apenas 3 turmas de 8ª série (não há turmas de 7ª série,
como explicaremos a seguir).
No ano de 2004 não foram criadas turmas de 5ª séries do Ensino Fundamental, por
orientação da própria Secretaria Estadual da Educação. Segundo a Diretora, os alunos que
encerraram o Ciclo I foram encaminhados para outra escola. Isto ocorreu devido à grande
procura de vaga para a 1ª série do Ensino Fundamental I, que tem uma imagem muito positiva
perante a comunidade, por conta do tratamento que é dispensado aos alunos, principalmente
àqueles com problemas disciplinares. Nas palavras da diretora: “os professores não maltratam
as crianças; os pais são sempre bem atendidos; a família é chamada várias vezes, sempre que
necessário; encaminhamos as crianças para médicos e psicólogos nos postos de saúde ou
para a universidade (cita o nome de uma universidade localizada num município próximo); o
ano passado (2005) tinha uma professora formada em Psicologia que até conversava com os
alunos; alguns são encaminhados ao conselho tutelar”.
133
Por este motivo não há turmas de 7ª séries neste ano de 2006, e em 2007 não haverá
turmas de 8ª séries e provavelmente também não haverá novamente as turmas de 5ª séries. A
diretora afirma que escola pretende ficar somente com o Ciclo I, pois os alunos de 5ª a 8ª
séries são um “problema”, “... eles depredam, picham, estragam os trabalhos dos alunos de 1ª
a 4ª séries e, além disso, o prédio é “mais apropriado para alunos menores”. Segundo a
Diretora, isso só não aconteceu ainda devido à presença de professores que são efetivos na
escola, mas que “sempre que há possibilidade deles pedirem remoção, eles são lembrados de
que há possibilidade de redução de número de aulas”.
Questionada sobre qual o maior problema que a escola enfrenta atualmente, ela
responde que são as faltas e atrasos dos professores.
Quanto ao aspecto mais positivo, a diretora afirma que os professores e funcionários
são muito unidos em prol das melhorias da escolaclaro que tem aqueles que destoam, mas
a maioria é muito preocupada. Já passei por duas, três escolas diferentes e vejo que este
grupo é muito preocupado, desde a oficial da escola (inspetora de alunos)”. A comunidade ao
redor, segundo a Diretora, também colabora muito: há locadora de vídeo que empresta filmes;
bazar que faz cópias de material sem cobrar.
Caracterização dos professores
Com base nos dados obtidos por meio dos questionários preenchidos pelos professores
(Anexo 2) e das informações obtidas com as diretoras, coordenadoras e com os próprios
professores das escolas, elaboramos o Quadro 2, a seguir, que expressa o perfil dos
professores(as) investigados(as).
134
Quadro 2: Caracterização dos Professores
ESCOLA A ESCOLA B
Número de Professores
DADOS
Número de Professores
do Ciclo II
Ciclo I Ciclo II
Interior Estado de SP 4 4 4
Capital 2 6 5
Local de
Nascimento
Outro Estado 3 2 4
Feminino 7 13 9
Sexo
Masculino 2 - 2
Até 25 anos - - -
De 26 a 35 anos 5 3 4
De 36 a 45 anos 4 4 5
De 46 a 55 anos - 3 4
Mais de 55 anos - 1 -
Idade
Não informou - 1 -
Pós–Graduação Lato
Sensu
2 Educ. Física 1 Proc. de
Ensino Apdg
1 Psicoped; 1Matem.;
1Artes; 1 Química
Licenciatura Matemática 3; Letras 3;
Ciências Biológicas 1;
Educação Física 2
1 Educação
Artística*
Letras 4; História 2;
Ciências Biológicas 1;
Matemática 3; Artes;
Química 1; Estudos
Sociais/Geografia 1;
Pedagogia 11** 4
Magistério/Curso Normal - 8 1
Formação
Outros 1 Secretariado; 1
Espanhol; 1 Adm. Empr.
- 1 (COPED?), 1
Psicologia
Menos de 1 ano - 1 -
De 1 a 5 anos 3 1 1
De 6 a 10 anos 3 - 4
De 10 a 20 anos 3 7 4
Tempo no
exercício
docente
Mais de 20 anos - 3 4
Menos de 1 ano 2 4 2
De 1 a 5 anos 4 6 11
De 6 a 10 anos 2 2 -
De 10 a 20 anos - - -
Mais de 20 anos - - -
Tempo de
atuação nessa
escola
Não informou 1 - -
Estadual 2 1 3
Municipal 1 5 2
Atuação em
outras
escolas
Particular 1 - 2
* Esta professora atua nos dois Ciclos do Ensino Fundamental.
** Desses 11 professores, 8 cursaram Magistério.
Contrapondo os dados sobre os professores alvos dessa pesquisa, com o perfil dos
professores brasileiros
35
, podemos observar semelhanças em diversos aspectos: no
predomínio do sexo feminino, principalmente no Ciclo I do Ensino Fundamental; na faixa
35
Dados extraídos do livro O perfil dos professores brasileiros, editado em maio de 2004, a partir de pesquisa
realizada em âmbito nacional em parceria pelo MEC e UNESCO.
135
etária entre 36 e 45 anos; na obtenção de um curso superior de formação; no exercício docente
em mais de uma escola. Vimos uma pequena diferença no tempo de exercício da profissão
que, na maioria do nosso grupo de professores, é de 10 a 20 anos e, na pesquisa nacional o
que predomina é o tempo de 6 a 10 anos de atuação no magistério.
4.3 Descrição dos Encontros
Foram promovidos encontros com os professores das duas escolas estaduais já
descritas: a Escola A, de Ciclo II Ensino Fundamental (5ª a 8ª séries) e Ensino Médio e a
Escola B, de Ciclos I e II de Ensino Fundamental (1ª a 8ª séries) e Ensino Médio.
Foram 5 encontros ocorridos entre o final do mês de maio/ 2006 e início de agosto/
2006, nos horários de HTPC, sendo: 2 encontros entre professores de 5ª a 8ª séries na Escola
A, 2 encontros entre professores de 1ª a 4ª séries na Escola B e 1 encontro entre professores
de 5ª a 8ª séries na Escola B.
Em todos os encontros foi proposta uma dinâmica com características do grupo focal
(Gatti, 2005), em que se apresentou um texto dividido em duas partes (Anexo 3), cujas idéias
provocaram/ desencadearam a discussão dos seguintes assuntos:
¾ Conflitos entre professores recém-formados e professores mais experientes em
relação aos sentimentos de motivação/ desmotivação para a atividade docente;
¾ A questão do aluno que chega na 5ª série do Ensino Fundamental com dificuldades
de alfabetização;
¾ Conflitos entre os professores de Ensino Fundamental – os de 1ª a 4ª séries e os de
5ª a 8ª séries;
¾ Sentimentos dos professores frente ao desconhecimento do trabalho realizado
pelos professores do outro ciclo.
Participaram dos encontros 13 professores de Ciclo II da Escola A e 27 professores de
Ciclos I e II (12 professores que atuam em classes de 1ª a 4ª séries, 13 que atuam de 5ª a 8ª
séries e 2 que atuam nos dois ciclos), além de 1 Coordenadora Pedagógica da Escola B,
totalizando 40 professores. Deste total, foram registradas manifestações de 36 professores e
da coordenadora pedagógica.
O primeiro encontro aconteceu na Escola A, no dia 25 de maio de 2006, com os
professores de 5ª a 8ª séries.
136
O segundo encontro aconteceu na Escola B, no dia 19 de junho de 2006, com
professores de 1ª a 4ª séries, com os mesmos procedimentos utilizados no primeiro encontro
da Escola A. No entanto, o segundo grupo teve que ser incentivado a falar por mais de uma
vez. Várias hipóteses foram levantadas, na tentativa de entender os motivos que levaram este
grupo a participar menos que os professores da Escola A. A presença da Coordenadora
Pedagógica os inibiu? Esta é uma hipótese válida, pois no encontro seguinte realizado nesta
escola, sem a presença da coordenação, os professores manifestaram-se mais. Uma outra
hipótese foi a de que, como o Texto 1 criticava o professor de Ciclo I, isto pode ter
incomodado as professoras, a ponto de não quererem discutir o assunto. Com base nessas
hipóteses elaboramos uma continuação do Texto 1, em que as prováveis expectativas dos
professores de Ciclo I fossem contempladas, e novos encontros com os mesmos professores
foram agendados.
Os dois primeiros encontros foram gravados em áudio com a autorização dos
professores. No entanto, o tom de voz baixo de alguns professores e a ânsia de falarem fez
com que suas vozes se cruzassem, muitas vezes impossibilitando a identificação de todas as
falas. Por este motivo, os encontros seguintes foram filmados, também com a autorização dos
professores, o que possibilitou registrar também a postura e expressões dos professores.
O terceiro encontro se deu novamente na Escola A, com os professores de 5ª a 8ª
séries, com alguns que já haviam participado do primeiro encontro e outros professores
participantes pela primeira vez. A fala pausada, tranqüila, e uma menor ansiedade do grupo
em falar, associados ao fato deste encontro ter sido gravado em vídeo, possibilitaram uma
maior identificação das manifestações.
O quarto encontro se deu na Escola B, agora sem a presença da Coordenadora
Pedagógica que, por motivo de saúde, não pôde comparecer. Participaram deste encontro os
professores de 1ª a 4ª séries e os dois professores que atuam nos dois ciclos desta escola. A
discussão ocorreu de maneira mais ativa que no primeiro encontro. Apesar de alguns
professores se expressarem de forma mais agitada e rápida, com a filmagem, as falas foram
mais claramente percebidas.
Realizou-se, ainda, mais um encontro – o quinto – com os professore de 5ª a 8ª séries
dessa mesma escola – a Escola B. Este encontro foi filmado e, apesar de alguns professores se
manifestarem em tom de voz baixo, a fala pausada e tranqüila possibilitou uma identificação
mais clara do que eles falaram.
É importante destacar que as ambas as escolas permitiram que os encontros se dessem
nos horários de HTPC – Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo (realizados em dias
137
diferentes da semana, nos intervalos dos períodos de aula – entre 12 horas e 13 horas e entre
18 horas e 19 horas – com a presença dos professores, variando de acordo com as aulas do
dia). Essas reuniões acontecem de forma a permitir que os professores que trabalham no
período que antecede a reunião possam sair mais cedo e os professores que trabalham no
período posterior à reunião possam chegar mais tarde. Em suma, os encontros de HTPC não
acontecem com todos os professores da escola (mesmo que sejam do mesmo Ciclo) e muitas
vezes o professor participa deles por menos de uma hora.
4.3.1 Os encontros e as manifestações dos professores
Como os professores vêem a si mesmos?
Berger & Luckmann (2000) ajudam-nos a entender como o professor, ao interpretar
sua vida cotidiana e lhe imprimir um sentido único que dê coerência a si mesmo, constrói o
mundo intersubjetivo do senso comum. A partir das tipificações
36
na interação social
estabelecida entre os professores, eles falaram a respeito de si mesmos e dos outros
professores e nos permitiram conhecer um pouco sobre os conhecimentos que permeiam as
relações entre os professores do Ensino Fundamental.
Assim como no estudo preliminar, observamos que os professores do Ciclo II se
expressam com mais iniciativa, enquanto os professores do Ciclo I precisam ser estimulados,
indagados, provocados para que expressem suas opiniões e sentimentos. Em ambos os grupos,
no entanto, percebemos a necessidade que os professores têm de serem ouvidos nas suas
queixas, ansiedades e dificuldades.
Várias são as falas dos professores
37
, principalmente dos professores do Ciclo II, que
parecem indicar o quanto eles não se sentem motivados no dia-a-dia da profissão, ou como, ao
longo da carreira, eles vão perdendo o “pique”, ou ainda, como sentimentos de frustração,
desânimo e acomodação, tomam conta da atividade profissional e de que maneira estes
sentimentos são percebidos entre eles e interferem em seu rendimento e crescimento
profissional. Vejamos alguns exemplos:
36
Tipificações são os papéis desempenhados pelo indivíduo nas instituições. Os papéis que os indivíduos
assumem na relação com o conhecimento objetivado se entrelaçam de tal maneira que é possível analisar a
relação entre conhecimento e papéis, do ponto de vista institucional e do ponto de vista daquilo que o indivíduo
pensa.
138
Gisele
38
: Nossa, eu comecei em 1992 com um gás que eu não tenho nem um vigésimo do que eu tinha
39
, uns
vinte avos do que eu tinha. (Profª do Ciclo II)
Micaela: Assim eu não sei, estou há pouco tempo, estou há 3 anos no Estado[...] eu não sei se está valendo a
pena, eu acho assim, eu tô há pouco tempo, eu não desisto, eu continuo tentando, lutando - “não, eu vou
conseguir” - mas eu não tenho mais aquele ânimo que quando eu comecei, não tenho, são 3 anos só e eu não
tenho mais, eu acho muito desgastante, muito [...] eu queria tanto explicar, mostrar, eu trago coisas diferentes,
mas a sala, eu tenho algumas salas que eu me sinto muito bem, eu falo: “Nossa essas eu queria, eu quero ficar
com eles pra sempre, porque eu adoro”. Agora, é uma sala, as outras, você, sabe, é aquela coisa desgastante,
cansativa, você entra, ninguém quer saber de nada, ninguém faz nada. Meu Deus, por que que eu estudei tanto,
eu quero continuar estudando pra não sei, [...] pra quê que eu vou, tanto estudo, me mato, faço isso, faço aquilo
e ninguém faz nada. [...].(Profª do Ciclo II)
Helena: Eu fiquei sabendo de muita gente recém-formada que passou no concurso, começou a dar aula, já
exonerou, já saiu fora, entrou em fevereiro, em abril não estava mais. (Profª do Ciclo II)
Pauline: Porque quem não precisa do dinheiro. (Profª do Ciclo II)
Helena: Vai fazer outra coisa.
Pauline: Não güenta o que agente guenta aqui. Eu mesma, eu güento a indisciplina, a falta de [...] respeito,
porque eu preciso do dinheiro [...] porque se eu não precisasse, se eu tivesse uma outra coisa para fazer, se eu
fosse jovem [...] não tivesse na beira dos 40, fosse jovem, pudesse mudar de ramo, pudesse fazer uma outra
faculdade, se eu morasse com meus pais, por exemplo, e não tivesse as despesas que eu tenho e pudesse pagar
uma outra faculdade, eu ficaria aqui só para pagar essa outra faculdade e mudar de ramo... Não guentava o que
a gente guenta não...
Leda: [...] porque se nós não estamos motivados a aprender, como vamos estar motivados a ensinar. (Profª do
Ciclo II)
Cátia: [...] a motivação do professor, acho que conta muito, o professor que é motivado, que busca, que na
verdade, que ele tem assim, o seu objetivo maior, é o aluno. O que é principal para nossa vida profissional
(olha para o grupo). E no momento que você perder o interesse por este aluno Ah, ele não sabe, ele não
aprendeu lá, não vai ser eu que vou resolver o problema dele! aí fica difícil, fica difícil pra você caminhar, pra
sua própria auto-estima, pra sua valorização e pior, muito pior ainda, para o próprio aluno que ele não vai
conseguir nada, nada, nada. E aí entram muitas coisas, né, o professor, muitos professores, principalmente no
Estado - nós somos bem realistas referente a isso – Tá no Estado, acabou! Não quer saber de nada, aparecem
cursos Ah, eu não faço mais nada, eu não quero me especializar em mais nada, eu não quero aprender mais
nada, o que eu sei dá pra isso daí. Pra ensinar este povo? Pra que eu quero mais? – E a gente ouve muito isso,
gente. E olha que soa penosamente dentro de nossos ouvidos uma coisa dessas. Porque eu acho que é você
mesmo se desvalorizando, você mesmo não buscando o aprender. E uma coisa muito séria, que nós temos que ter
consciência, é que nós estamos lidando com seres humanos. Que é mutável, né, todos os dias nós mudamos, todos
os seres humanos mudam, e nós temos uma grande responsabilidade frente a isso e frente à aprendizagem de um
ser humano. Eu acho muito complicado esta questão. (Profª do Ciclo II)
Lídia: [...] a nossa grande discussão diariamente em sala de professor, em HTPC, o que que é? – O que eu faço
com tal sala? Gente, o que eu faço com tal aluno? – e a gente fica nessa busca constante, nessa coisa que dói,
que arde e que você fica agoniada o tempo todo, né? (Profª do Ciclo II)
Leoni: [...] Eu tenho amigas que fez faculdade comigo, entrou na sala de aula uma vez e não querem nunca mais
isso para a vida delas: “Entrei um dia, dei uma aula, fui embora e não quero mais isso pra minha vida. Isso
não é vida de uma pessoa (ela ri) [...]. (Profª do Ciclo II)
37
Cada quadro corresponde a momentos/ encontros diferentes.
38
Os nomes são fictícios a fim de se preservar a imagem dos professores.
39
Alguns trechos foram colocados em negrito para reforçar a ilustração do que está sendo comentado.
139
Tereza: [...] em 20 anos de magistério, eu me sinto uma cobaia do sistema de educação [...]. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada
40
: [...] você sai do magistério com o maior gás, mas você não tem o respaldo aqui fora,
então você acaba, vai deixando... (Profª do Ciclo I)
Pauline: [...] é triste! Você fica com a criança de 5ª a 8ª serie, até o 3º ano (do Ensino Médio) e ele sai daqui
analfabeto. (Profª do Ciclo II)
Queuzia: [...] as pesquisas [...] que mostram o Brasil em último lugar... é vergonhoso a gente vê uma
reportagem, e todas as reportagens que a gente vê sobre educação, sai em VEJA (revista semanal), sai em jornal,
é sempre desqualificando a educação no Brasil, e como os professores se sentem? Eu me sinto uma... sei lá...
uma incapaz, uma... [...] a gente se esforça, dá o melhor, e o resultado é esse? A gente [...] parece que tô
dando murro em ponta de faca. [...] Eu sou uma professora, como este Mário (referindo-se ao texto) que a gente
está descrevendo agora. Vim da minha faculdade, vim cheia de ilusão, cheia de expectativa pra dá aula, e
quando você chega aqui você vê que (dá de ombros) que é... (procura palavras para se expressar, uma professora
a ajuda) outra realidade. (Profª do Ciclo I)
Paloma: [...] isso tudo leva o desânimo ao professor, por mais boa vontade que nós tenhamos, quando a gente
se depara, a gente luta, luta, luta e às vezes, ou na maioria das vezes a gente acaba derrotado [...]. (Profª do
Ciclo II)
Os professores lidam com alunos que, pela natureza própria da faixa etária – crianças e
adolescentes – “escapam-lhes de suas mãos quando não estão motivados para aprender”.
Este é um dos maiores fatores de fadiga do profissional docente, que tem que lidar com isso
continuamente na sua rotina diária. Segundo Tardif & Lessard (2005), os professores podem
fazer dessa dificuldade um desafio de sua profissão ou podem sentir-se impotentes frente a
esta situação e, para lidarem com a culpa e o sofrimento que este sentimento provoca,
expressam indiferença e racionalização Este é o sentimento mais presente nos pensamentos
expressos pelos professores do Ciclo II: a impotência frente às dificuldades da atividade
profissional (alunos que não aprendem, alunos indisciplinados, falta de recursos materiais,
etc).
Inseridos em um processo de desvalorização da atividade profissional e de falta de
apoio, os professores sentem-se desamparados e vêem sua autoridade ser contestada e
ameaçada, intensificando ainda mais seus sentimentos de frustração e desmotivação em
relação ao exercício docente. Numa das discussões promovidas, uma professora citou como
exemplo um problema disciplinar em que o aluno a enfrentou – ao que outros professores
desabafam:
Pauline: [...] Aconteceu comigo isso hoje [...] fechei a porta (da sala de aula) uma leva da 7ª série ficou para
fora. O menino bateu na porta e falou assim:
“- Oh! Eu vou na delegacia de ensino denunciar a senhora, porque a senhora não pode me deixar pro lado de
40
Alguns dados de identificação ficaram prejudicados pela própria dinâmica da atividade e tipo de gravação
(áudio).
140
fora!. Porque eu vou denunciar você, porque você não pode fazer isso comigo!
- Então hoje você vai, porque se eu tenho hora para trabalhar, vocês também têm que ter hora para entrar na
sala de aula”.( Profª do Ciclo II)
Deusiane: Este menino ele tem razão, sabe por quê? Porque a sociedade inteira está contra nós. (Profª do Ciclo
II)
Pauline: Mas nós não temos mais respaldo nenhum, entendeu.
Deusiane: [...] Veio mãe de aluno falar [???]
41
, que professor aqui do (fala o nome da escola) só vinha pelo
salário, era vagabundo. Na frente da diretora.
Vários professores falam ao mesmo tempo. Uma fala se sobressai:
De forma irônica Pauline complementa: Então você deve ser mesmo, porque você só vem aqui para ganhar
dinheiro, então.
Lídia: Eu acho que nós sabemos, mais do que ninguém, que nós ficamos muitas vezes de mãos atadas, sem
poder dar conta do recado. (Profª do Ciclo II)
Alguns professores chegam a afirmar ter medo dos alunos:
Profª não identificada: [...] e não é só perante a figura do professor, do profissional, até do patrimônio em si da
escola em questão escola, eles (os alunos) demonstram a agressividade deles, demarcam o território deles,
vamos dizer assim. E o que acontece, eu venho do serviço à noite e se você for levar isso numa questão de
chamar mais a atenção ou tomar uma outra atitude, você pode até receber ameaça como eu já recebi de aluno 3ª
série [...] ameaça, ameaça mesmo! Não foi uma ameacinha pequenininha não, foi grande. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: Acaba até morrendo em sala de aula. (Profª do Ciclo I)
Outros responsabilizam o Estatuto da Criança e do Adolescente pela falta de segurança
na escola. Vejamos as falas de alguns professores do Ciclo I:
Profª não identificada: Na minha opinião, eu acho que o estatuto, ele vem querer algumas coisas, mas ele não
cobra.
Outra profª não identificada: O ECA, né? (referindo-se ao Estatuto da Criança e do Adolescente)
Uma outra profª não identificada: Só os privilégios.
E a professora anterior continua: privilégios, agora, a cobrança... em cima do profissional, o aluno em si,
tá todo... com respaldo total [...]
Em certo momento, a referência que a professora Deusiane faz é interessante, pois ela
compara a “educação” com a “segurança” no Estado de São Paulo, referindo-se a episódios
recentes de conflitos entre bandidos e policiais por todo o Estado. Sua afirmação sugere que,
assim como a “polícia em relação aos bandidos”, os professores estão “mal equipados” e
41
O registro [???] corresponde a trechos ininteligíveis na gravação, na maioria das vezes devido a muitos
141
“impotentes” frente aos alunos que o enfrentam em salas de aula. Tal depoimento revela o
cruzamento da cultura e cultura escolar, já apontada por Pérez Gómez (2001).
Deusiane: [...]Agora, [???] com esse ocorrido que houve em São Paulo, lá da polícia, eu fico me perguntando,
comenta-se de leis brandas para os assassinos né, a polícia tá [???] até pouco tempo, falava-se que os policiais
eram piores do que os bandidos, não se reconhecia quem era quem, todo mundo com medo, porque [???] aí a
polícia vem se defende: ‘nós não podemos fazer nada porque se a gente faz isso (a professora faz um gesto com
os dedos que corresponde à uma quantidade pequena) nós somos punidos’. Então, quer dizer, polícia mal
equipada, certo? Bandidos bem mais equipados que eles e eles sabem que o policial vai sofrer as
conseqüências se agir. Agora eu pergunto: será que não tem nenhuma semelhança entre a segurança e a
educação? (Profª do Ciclo II)
A realidade da vida cotidiana, segundo Berger & Luckmann (2000) é reconhecida pelo
sujeito em dois setores: a realidade da rotina diária e a realidade que precisa ter seus
problemas resolvidos por meio de experiências que não fazem parte do seu cotidiano, o que o
faz buscar uma nova realidade, sem deixar de lado a realidade conhecida. Nessa mesma
tentativa de resolver os problemas da sua realidade cotidiana, os professores buscam integrar
a realidade considerada problemática com a realidade não problemática. Nesta realidade da
vida cotidiana, os professores sentem-se frustrados com o fracasso dos alunos, sofrem por não
conseguirem lidar com as dificuldades deles e se isentam deste processo, atribuindo à família,
ao sistema educacional e à sociedade a culpa por este processo. Vejamos como expressam
esse sentimento:
Profª não identificada: A culpa não é nossa, será que esse aluno tem família, será que o pai tem pouco
esclarecimento, vê que o filho não tá aprendendo nada, não vai atrás de seus direitos, não vai lá ver o que o
governo ta fazendo. Nós não temos culpa que o governo tem um sistema que só reprova na 4ª série, a criança
não aprende na 1ª tem que passar para 2ª série, o professor não dá conta, tem que passar para 3ª série, não deu
conta, e ele é reprovado na 4ª. Num ano só, ele tem que fazer quatro anos, que nem bobo, né, vendo os outros
aprendê e ele não aprendeu por que foi jogado.
[...] Muitas vezes a gente chama o pai aqui, quando você vai vê, coitado do pai, infelizmente, não tem nem ... não
ignorância, mas... Ele acha bonito saber que o filho não saiba e passe - “Você acha que meu filho não vai
passar? Tem que passar” – ele não concorda que amanhã ou depois ele vai precisar. Antigamente não, a única
coisa que as pessoas podiam deixar pros seus filhos é a educação, agora nem isso. E o pai ainda acha que a
criança vem aqui aprender a ler e escrever e a educação que devia trazer de casa – obrigado, dá licença, por
favor, nem isso... então tem que rever tudo isso, né, [???] precisa vê o pai e a mãe pra vê como é que é. (Profª do
Ciclo I)
Profª não identificada: [...] Aí o problema cai no sistema, não cai no professor [...]. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: [...] Eu acho que não é por conta desse sistema, nem por conta de proposta pedagógica,
de nada. O problema é mais profundo e é mais antigo, é uma questão social, porque o aluno vem pra cá, ele
não quer aprender. Você vira tiroleza, você pode mudar de método, de material, mas quando ele não quer
aprender, não há Cristo que faça ele aprender... entendeu? ... Então eu acho que é muita coisa envolvida, é muita
coisa... (Profª do Ciclo I)
professores falarem ao mesmo tempo.
142
Gisele: [...] Eles (os alunos) vêm para escola sem noções nenhuma de nada, então chega aqui, nós vamos ter
que ensinar para ele a importância do estudo, mas ele não vê importância. (Profª do Ciclo II)
Tereza: [...] não é por falta de vontade, de batalhar, de criar e inventar uma aula diversificada não. A própria
sociedade inibe o conhecimento da criança [...]. (Profª do Ciclo I).
Helena: É um problema social, gente! (Profª do Ciclo II)
Deusiane: Exatamente, é o professor que está sem valor. Nós somos o efeito, onde está a causa? [...]. (Profª do
Ciclo II)
Tereza: [...] em 20 anos de magistério, eu me sinto uma cobaia do sistema de educação, que antes de ser um
sistema de educação é um sistema político, e politicamente pensando, quanto mais tosco for o povo, mais fácil de
ser manipulado. Economicamente, é muito mais fácil tirar da educação do que dar também, e aí, existem fundos
de dinheiro que de repente fazem com que ‘x’ diretora da escola pensa em mudar toda característica da escola
por cauda do FUNDEB (Fundo de Desenvolvimento do Ensino Básico). Então, a questão pedagógica mesmo, ela
fica de lado, não é interessante a criança estar aprendendo. [...] nós professores, já perdemos muito, desde a
Rose Neubauer quando inventou esse plano de progressão que o aluno passa sem saber, né, progressão
continuada, progressão parcial, e aí, pode ser que ele tenha sido um pouco mal interpretado ou muito mal
usado. [...] E hoje em dia, que interesse eles têm, [...] em estudar, se o governo oferece cem reais por mês e
estimula o jovem a trabalhar [???] de 20, 25 anos de idade? [...]. (Profª do Ciclo I)
Lídia: [...] muitas vezes, nós não sabemos o que fazer e nós não temos o que fazer diante da família. Quando a
gente conhece a família, conhece o pai e a mãe, e o histórico dessa criança, porque isso conta muito, você pensa:
“Pô, eu não tenho capacidade, não está nas minhas mãos.
[...][???] olha só! Quais são os nossos alunos problemas? Vocês sabem muito bem, trabalhando com 5ª e 6ª aqui,
e os pais deles? Não é mais problema? Eles são piores. Quando a gente vê o pai, você fala: “- Agora eu estou
entendendo porque o meu aluno é desta maneira, né?” (Profª do Ciclo II)
Gerson: [...] a palavra chave [...] aí, é família. A família não acompanha o aluno como no passado. A
frustração do Mário (referindo-se ao texto) é exatamente essa. Quem está fora da escola e tem mais de 28, 30
anos, sonha, imagina, mas aí, com a escola do passado. Só que nós temos uma outra realidade: onde a família
não interage com o aluno e a escola, basta ver, eu queria que você viesse aqui gravar, e ver uma reunião de
pais, às vezes você tem por sala 6 pais, a sala de 40, 45 alunos. Então toda essa questão da educação que deveria
ser dada em casa volta para o professor. Então professor ensina o conteúdo e educa o aluno, sendo que no
passado era uma função dos pais. (Profª do Ciclo II)
Leoni: Eu acho que não é só idade, é uma questão de vontade. A gente estava até comentando a respeito isso,
que depois de uma certa série eles perdem totalmente o interesse, a vontade. Então, eles vêm à escola
simplesmente pra brincar, pra conversar com o amigo, então, perdem essa vontade que eles têm no primeiro
ano, de aprender, de conhecer, de escrever, de querer saber de tudo. (Profª do Ciclo II)
Gisele: Eu fui conscientizada da importância do estudo dentro da minha casa. Meu pai era peão de fábrica... se
aposentou como peão de fábrica. Então ele falava para nós: “Eu sou peão, se vocês não querem ser peão como
eu vocês vão ter que estudar, têm que respeitar as pessoas, têm que isso, têm que aquilo”, dentro da minha casa.
Eles vêm para escola sem noções nenhuma de nada, então chega aqui, s vamos ter que ensinar para ele a
importância do estudo, mas ele não vê importância. (Profª do Ciclo II)
Celina: [...] tem a questão também do pai, da ajuda, meu filho entrou alfabetizado, mas eu também ajudei,
[...]. (Profª do Ciclo II)
Petrolina: [...] a culpa é do governo do Estado de São Paulo, [???] aí tem a questão da progressão continuada.
(Profª do Ciclo II)
Ana Margarethe começa a falar antes da professora Petrolina terminar: Eu penso que são várias questões que
deixaram este aluno passar até a 5ª a 8ª série sem saber ler e escrever, e que na maioria das vezes a culpa é do
professor, eu discordo disso, porque não foi o professor que inventou a progressão continuada, não foi o
143
professor que inventou a psicogênese da linguagem escrita aonde esperava-se o tempo do aluno, aí foi feito um
monte de coisas, um monte de mudanças, que falava não pode isso, não pode aquilo, não pode corrigir, não
pode mais aquilo, não pode aquilo outro. Vamos deixar o aluno, vamos através do construtivismo levar o aluno a
construir este conhecimento. O que aconteceu, não preparou este professor direito, não deu recursos para esse
professor direito, ele caiu de gaiato, ele ficou duas décadas patinando no gelo, e caindo e levantando e as
crianças foram cobaias de toda essa brincadeira, tá? Então essa geração que a gente tem agora, de analfabetos
funcionais é decorrente dessa grande invenção... do Estado. (Profª do Ciclos I e II)
Queuzia: [..] Então eu acho que... eu não sei se eu... eu pelo menos acho que é um problema de todos, não só do
sistema, acho que é um problema de todo mundo, que os professores não controlam, é um problema do sistema
também, é um problema social [???] realmente não dá pra se pensar em trabalhar como se trabalhava
antigamente, as mães não ficam em casa... então, quem vai cobrar da família isso? Ou a mãe trabalha pra pôr
comida ou ela fica em casa olhando tarefa do filho. Se o filho não comer, ele não estuda, ela tem que trabalhar.
Quem é que vai poder criticar a mulher que trabalha o dia inteiro, que chega cansada em casa e, realmente, ela
não sabe nem ler e escrever, como que ela vai querer ensinar, ver o caderno do filho. Então, eu acho que é um
problema de políticas públicas, são questões sociais [...] (Profª do Ciclo I).
Gerson: Na verdade [???] inverteu os valores, esse é o problema. Eu, como professor de geografia na 7ª, 8ª
série, eu não tenho tempo para parar, na verdade, o meu conteúdo para mostrar pro aluno que ele não pode
pegar uma bala e jogar o papel aqui na frente ou do lado dele, quando o cesto está ali (aponta para o canto). Eu
digo isso sempre para meus pais, que é no máximo até a 6ª série. [???] qual pai faz isso? Não olha nem o
caderno do filho. Então, não é uma questão só de sala de aula, tem outros fatores. O que nós mais ouvimos é
que a escola está péssima, não é a escola que está ssima, é a sociedade que está péssima, não é? E esses
fatores acabam se voltando aqui na escola. Então fica difícil, é uma situação complexa, mesmo... (Prof. do Ciclo
II)
Profª não identificada: [...] Aquela educação primária que vinha da família não vem mais. (Profª do Ciclo I)
Ao serem questionados sobre como se sentem sendo professores, as reações dos
professores expressam sentimentos de frustração e desmotivação que conflitam com
sentimentos positivos como orgulho, esperança e prazer pela própria especificidade da
profissão docente que, segundo Tardif & Lessard (2005), relaciona-se à dedicação
profissional a outro ser humano. Os professores aqui investigados chegam a criticar os
colegas que se isentam de responsabilidade ou se acomodam com a situação. Tais aspectos
são também descritos por Nóvoa (1998) e Fernandes Enguita (1991) como parte da
ambigüidade da profissão docente.
Vejamos alguns exemplos de depoimentos coletados:
Lídia: [...] A gente fica, todos nós ficamos muitos frustrados, mas dentro de nós, eu vejo assim, na grande parte
do grupo, existe uma busca para uma melhora. Vamos sentar, vamos fazer um projeto, e às vezes, até a parte de
coordenação e de direção, a gente tenta buscar soluções para os nossos alunos.[...]
[...] a nossa grande discussão diariamente em sala de professor, em HTPC, o que que é? – O que eu faço com tal
sala? Gente, o que eu faço com tal aluno? – e a gente fica nessa busca constante [...] eu não concordo,[...] é o
professor se isentar da sua responsabilidade de educador. (Profª do Ciclo II)
Marcos Rogério: Olha, eu gosto da profissão, apesar de quando a gente mexe com material humano a gente tem
várias situações, cada dia uma situação nova, às vezes com a mesma pessoa, você se surpreende. Mas eu acho
que você fazendo a sua parte, dá para levar a profissão legal, dá pra gente conseguir bastante coisa, mas tem
que ter um pouco de persistência, muita paciência, dedicação, e nem sempre é possível em função da correria.
A gente tem que acabar arrumando dois cargos pra poder levar a vida, mas enfim, profissionalmente eu acho
144
legal, eu gosto do que eu faço. (Prof. do Ciclo II)
Evandro: [...] até que ponto uma discussão como esta, se não está sendo conveniente para os professores ficar
empurrando o problema de todos, mas se realmente o que faz a escola é os professores, porque que tem que
aceitar às vezes algumas coisas que é imposto pela direção. [...] a gente sabe que, quem é observador, ele
simplesmente ele age, e às vezes ninguém precisa ficar sabendo. Ele age, e nada acontece com ele, às vezes,
quando você não sabe, você vai ter que correr atrás de seus direitos como é normal para qualquer cidadão. Mas,
se realmente você sabe, e quer fazer a coisa certa, geralmente precisa o diretor falar, não, porque que o
professor geralmente não tem essa autonomia pra tomar uma posição, não – “Olha! Nós vamos começar a
fazer isso!” [???] O que pode acontecer se caso se tomasse uma posição muito drástica? O que poderia
acontecer?
[...] Eu acho que pra mim ainda tá legal porque eu sinto que ainda estou contribuindo, né, para a formação
dele (do aluno) e é uma troca constantemente, tanto eu como os alunos, eu não tenho muita dificuldade então
isso que, minha auto-estima fica equilibrada. Eu não tenho muita dificuldade em sala de aula e isso que me
motiva um pouco mais, apesar que eu estou fazendo um outro curso (Fisioterapia), possivelmente eu posso deixar
a área, mas é uma coisa que eu não tenho dificuldade. [...] Então, não sei o que vai acontecer num futuro
próximo, mas eu ainda me sinto realizado. (Prof. do Ciclo II)
Lídia: Bom, eu não trocaria de profissão de forma alguma. Já passei por algumas outras e não pretendo.
Apesar de viver numa montanha russa [...] eu acho muito gratificante, quando em uma conversa, ou numa
explicação, eu vejo que eu consegui passar algo, e às vezes nem dentro da própria disciplina, mas, muitas
vezes, a gente faz o papel de amigo, de pai, de mãe, de psicólogo, e a gente ver o resultado positivo nisso tudo,
eu acho que isso não tem preço, não tem preço, e são poucas as profissões que te dá este prazer, que faz com que
você se sinta realmente feliz e contribuindo para o crescimento do ser humano, então, pra mim, eu, é isso, eu
não quero outra coisa. (Profª do Ciclo II)
Berenice: Eu estou satisfeita com a minha profissão, gosto do que eu faço, eu sei que falta muita coisa, falta
muito apoio, falta mudar, falta muita coisa, falta melhorar muita coisa. Eu acho que ser professor hoje é um
desafio e tem que ser por amor, se não tiver amor (balança a cabeça como se não há jeito) não vai, mas eu estou
feliz. É legal a gente encontrar nosso aluno, com o tempo, e ele falar: “Olha professora, hoje eu estou cursando
a faculdade e você fez parte desse momento que eu estou vivendo agora”. [...] isso pra gente é um presente, você
parar e, ontem mesmo eu encontrei um aluno, que ele está jogando no São Paulo,[...] temos um outro que é
goleiro do Palmeiras, e eles falam: “Nossa professora, você e alguns professores estão na nossa vida, isso que é
gratificante”. (Profª do Ciclo II)
Leoni: [...] na nossa profissão eu acho que tem muitos esses altos e baixos, [...] tem dias que você consegue
sair feliz: Nossa, consegui passar meu conteúdo, hoje eu estou realizada. Tem dia que, no entanto, é o inverso,
então é o que realmente alguém aqui falou, se você não gostar, você não fica. [...] o que importa é o que a
gente está fazendo, o que a gente pode estar fazendo por eles, e não o restante ... acaba caindo no que o
Gerson falou: dois cargos, três cargos, final de semana, onde dá pra se manter a gente vai tentando. (Profª do
Ciclo II)
Micaela: Assim eu não sei, estou há pouco tempo, estou há 3 anos no Estado e essa idéia que eu tinha de ser
professora, desde pequenininha, de matemática, era meu sonho, eu não sei se está valendo a pena, eu acho
assim, eu tô há pouco tempo, eu não desisto, eu continuo, tentando, lutando -não, eu vou conseguir” - [...]
eu tenho algumas salas que eu me sinto muito bem, eu falo: “Nossa essas eu queria, eu quero ficar com eles
pra sempre, porque eu adoro”. Agora, é uma sala, as outras, você, sabe, é aquela coisa desgastante, cansativa,
você entra ninguém quer saber de nada, ninguém faz nada. Meu Deus, por que que eu estudei tanto, eu quero
continuar estudando pra não sei, é o que a (cita o nome da professora 14), falou, pra que que eu vou, tanto
estudo, me mato, faço isso, faço aquilo e ninguém faz nada. 15 dias que eles tiveram de férias, você pergunta
uma coisa que você passou na prova, ninguém responde, ninguém sabe, uma avaliação [???] ninguém responde,
ninguém sabe mais nada. Eu acho isso muito difícil, muito frustrante, eu não sei se vou continuar nessa
profissão até a hora que eu vou me aposentar, porque ainda falta muito tempo, sinceramente, não sei. (Profª do
Ciclo II)
Priscila: [...] eu tenho 20 anos de magistério, sou a-pai-xo-na-da, cada vez, cada ano, me apaixono cada vez
mais pela educação. Já tive assim a oportunidade de passar por um monte de segmentos, né, inclusive Ensino
Médio, ciclo II, secretaria, formação de professor, já passei por várias coisas, mas eu adoro minha sala de aula,
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adoro dá aula, adoro, sou apaixonada, então, cada vez mais, cada dia que passa, eu me convenço que eu acho
que esse daí é meu caminho, que é isso que eu quero, é isso que eu quero, que eu consigo fazer alguma coisa
por esse mundo, sabe... lógico que a gente fica estressada, o salário, as coisas, a gente reclama, mas ... isso aí
é uma coisa tão poderosa que a gente tem em mãos... (Profª do Ciclo I)
Maria Eduarda: [...] Não adiantou fazer faculdade, tô aqui há 27 anos. [...] eu adquiri um monte de
problema de doença, que eu não tinha, inclusive uma rinite que não sara de jeito nenhum, por causa do giz...
colesterol, triglicério, [...] problema nos tendão, tô precisando operar todos tubo do carpo [...] eu quero ir pra
Justiça [...] todo ano eu fico de olho no concurso... vou prestar agora Oficial de Promotoria, desde de 2003 eu tô
esperando esse concurso. (Profª do Ciclo I)
Queuzia: [...] me desculpe, mas morrer professora não dá não. (Profª do Ciclo I)
Assim como na fala acima, o sentimento de “saudosismo dos tempos de aluno” se
manifesta também em depoimentos de outros professores:
Micaela: [...] Apesar que na minha sala de 5ª série [...] não tenho nenhum problema tão grande! As 5ª séries que
eu peguei nessa escola são ótimas. (Profª do Ciclo II)
Um outro professor do Ciclo II complementa: São do nosso tempo!
Profª não identificada: [...] Eu não queria uma mudança radical, eu acho que tem algumas coisas do
tradicional que funciona bem. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: Nós fomos educados com a Caminho Suave. ( Profª do Ciclo II)
A socialização primária está presente nas falas dos professores dos dois Ciclos do
Ensino Fundamental. Formação e experiência profissional não deram conta de ajudá-los a
desconstruir e desintegrar a realidade subjetiva, de maneira que uma re-socialização
acontecesse e eles buscassem uma nova identificação afetiva com um novo “mundo” (Berger
& Luckmann, 2000). Os professores ficam presos na sua própria história de vida escolar
(como aluno), de maneira que as crenças e certezas sobre como um professor deve ser e fazer
cristalizam-se através do tempo, acomodando-os (Tardif & Raymond, 2002).
O depoimento de uma professora do Ciclo I parece sinalizar o reconhecimento desta
acomodação e chega a criticá-la. Vale a pena ler na sua íntegra:
Priscila: [...] Eu acho que o professor hoje, ele tem que ter esse olhar, né, pra educação, dentro do contexto
social que a gente vive hoje. Então, naquela época se vivia um outro momento histórico, político, ‘tarara’, então
tinha toda uma educação, né, que se queria, com aqueles objetivos, né. E, hoje em dia, eu acho que tá diferente,
tem um contexto bem diferente, um contexto social bem diferente da realidade de nossos alunos e... lógico, a
educação, eu acho assim, não dá para comparar, mas acho que hoje em dia se tem mais abertura pra se buscar
um conhecimento, pra se construir esse conhecimento. O professor, muitas vezes, ele se perde no meio do
caminho, principalmente aqueles que já vêm de uma outra jornada, né, de um tempo atrás aí, vai se acomodando
no meio do caminho, pensa que... parô... tá lá (gesticula com os braços, sinalizando para trás). Então aqui tá essa
bagunça toda... lá atrás tava melhor né? A gente escuta muito isso dos colegas, que antigamente era melhor, mas
não vê o hoje, agora, o movimento da própria história, que vai modificando as pessoas, que vai modificando a
sociedade, que vai modificando tudo, então assim, os professores se sentem solitários, o sistema ajuda a reprimir
né? Então, mas eu acho assim que falta um pouco de ter um olhar diferenciado né? pra esta educação[...]
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Eu particularmente tenho uma tese em relação às crianças que não aprendem a ler... eu acho que é uma questão
de metodologia, né, e assim, tenho 18 anos no trabalho de alfabetização e todo este tempo, desde a época do CB
(Ciclo Básico) tudo, que não ... que acontecia as coisas ... no segundo ano do ciclo, né, que começava os
problemas de repetição, e que dá na mesma, também, eu acho que a questão não é promover sem saber ou reter
sem saber, porque eu acho que o problema acontece da mesma forma, ou o aluno retido sem saber ou o aluno em
continuidade vai sem saber também, então o problema vai continuar só a diferença é que ele vai ficar retido, vai
evadi porque vai ficar 10 anos na 1ª série, não vai aprender e vai se evadir, essa é a única diferença [...].
[...] eu acho que hoje em dia não se aprende só com lousa e giz, a criança pode aprender muito mais lá fora do
que lá dentro dos muros de uma escola, né? Então eu acho que a função do professor hoje, como sempre foi, é
uma função assim, muito de você tá fazendo esse aluno perceber... assim o que é importante pra ele, o que é
importante... [...] eu acho que hoje em dia não tem mais esse negócio, antigamente a prova era um modo de
repressão, de fazer o aluno se voltar ao estudo, o interesse ao estudo, hoje em dia não é mais. E daí... não acho
que é culpa do sistema, sabe, não acho que é culpa do sistema, porque mesmo se tivesse o aluno ia falar: “Eu
não quero, tô fora!”, ele tem essa opção de falar: “Tô fora! Ah, vai dá prova, vai dá nota? Não quero mais!”, e
vai seguir outra vida. (Profª do Ciclo I)
Às pressões social e institucional que o professor sente sobre seu trabalho, ele
responde com sua capacitação profissional. O professor percebe que a educação atual
estabelece objetivos múltiplos, complexos e até conflituosos, e que sua formação profissional
– inicial e/ou contínua – não corresponde a esta complexidade – Gimeno Sacristán (1998)
também aponta isso. Eles se vêem mal preparados tecnicamente para lidar com as
dificuldades da atividade profissional, criticam os cursos de aperfeiçoamento e atualização
que lhes são oferecidos, reclamam da falta de apoio frente às mudanças no sistema
educacional “impostas” pelo governo, da falta de recursos materiais, etc:
Priscila: [...] o próprio sistema não favorece, estruturalmente, o trabalho do professor alfabetizador, sabe, e
estes cursos que são oferecidos pela Secretaria não correspondem a.... para sanar este problema porque não é
este curso de 15 anos atrás, que só muda de nome, porque antigamente era a Telma Vaz que fazia formação com
os professores, tudo, há 15 anos atrás, 15, agora, ainda este ano, né, nós tamos em 2006, muda só o nome –
Letra e Viva, Teia do Saber, “papapa papapa”... e o problema continua, [???], sabe, não é essa questão. Eu
acho que tinha de ter um investimento no professor alfabetizador, sabe, tinha que ter uma maior valorização, não
tem assim um olhar né, pra criança... a gente que trabalha com alfabetização há muito tempo, a gente sabe que o
aluno, logo que o aluno entra, na primeira semana que a gente tem contato, a gente já sabe qual a dificuldade
desse aluno, o que a gente não tem é respaldo para tudo isso.
[...] Eu tô falando do respaldo para o professor alfabetizador... aí quando vai estourar a bomba, vai estourar lá
na 5ª série, na 4ª série e aí vai dizer que a culpa é do professor de 1ª e 2ª série que não fez nada.... aí fica aquele
jogo de empurra, mas se tivesse um olhar voltado ao grupo de alfabetizadores, né, pra sanar essas dificuldades
logo na 1ª série... [???] auto-estima ... lógico que ele vai chegar lá com 12, 13 anos sem saber ler e escrever,
lógico que a auto-estima dele vai lá embaixo... Não adianta, então é 1ª série, é alfabetização, não se dá valor,
não se tem um acompanhamento, esses cursos são muito mal estruturados, para quem quer, para quem tem um
pouquinho de boa vontade de ir fora do horário, pra vê... (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: Eu acho que a gente não aprendeu nada até hoje, com esses cursos aí. Quando eu
comecei em 1979, você imagina né, quantas coisas já mudou... (Profª do Ciclo I)
A professora Priscila, do Ciclo I, revela que os cursos de aperfeiçoamento e
atualização profissional possibilitados pela Secretaria da Educação não mudam a prática do
professor em sala de aula. Tal aspecto também foi apontado pela diretora da Escola A (que
147
não tem o Ciclo I). No entanto, os professores do Ciclo II não fazem menções a esses cursos.
Podemos supor que, para estes professores, tais cursos não são relevantes no processo?
Ana Margarethe começa a falar antes da professora Petrolina terminar: Eu penso que são várias questões que
deixaram este aluno passar até a 5ª a 8ª série sem saber ler e escrever, e que na maioria das vezes a culpa é do
professor, eu discordo disso, porque não foi o professor que inventou a progressão continuada, não foi o
professor que inventou a psicogênese da linguagem escrita aonde esperava-se o tempo do aluno, aí foi feito um
monte de coisas, um monte de mudanças, que falava não pode isso, não pode aquilo, não pode corrigir, não
pode mais aquilo, não pode aquilo outro. Vamos deixar o aluno, vamos através do construtivismo levar o aluno a
construir este conhecimento. O que aconteceu, não preparou este professor direito, não deu recursos para esse
professor direito, ele caiu de gaiato, ele ficou duas décadas patinando no gelo, e caindo e levantando e as
crianças foram cobaias de toda essa brincadeira, tá? Então essa geração que a gente tem agora, de analfabetos
funcionais é decorrente dessa grande invenção... do Estado. (Profª dos Ciclos I e II)
Profª não identificada: [...] muito do processo de muito aluno na sala [???] é muita criança, com muita
dificuldade pra um profissional somente dá conta. Eu acho que tinha [???] especialista. Não formam super-
pedagogos, psicólogos, nem médicos .... nem nada... (Sua fala se confunde com a de uma outra professora) [???]
sem contar que nós temos um mínimo de material pra trabalhar, [???] não é nem humano, sabe, físicos: xerox,
material, livros diversificados. (Profª do Ciclo I)
Os depoimentos anteriores revelam que o professor se sente “responsável” pelo seu
aluno. Por trabalhar com seres humanos que têm características psicológicas e físicas que
precisam ser respeitadas, o professor continuamente se vê numa posição que ultrapassa a
tarefa de ensinar. Tardif & Lessard (2005) afirmam que este é um dos muitos aspectos que
contribuem para uma fadiga mental do professor. Discutiremos isso nas páginas seguintes.
Como os professores vêem os outros professores?
A identidade do professor também se constrói a partir de sua identidade social real
(Dubar, 1997), isto é, daquilo que os outros vêem nele. No seu cotidiano de relações
profissionais, a maneira como o professor é reconhecido no seu grupo/ classe/ categoria
corrobora na construção de uma identidade virtual (Dubar, 1997), distante de sua identidade
real. E no conflito entre as identidades real e virtual, o professor pode acomodar as visões/
percepções que os outros têm dele, à sua identidade.
O texto trabalhado com os professores, cujo conteúdo “disparou” as discussões,
levanta a questão das visões/ percepções que professores de um Ciclo do Ensino Fundamental
têm dos professores do outro Ciclo. Os dados obtidos trazem elementos que permitem
perceber como a questão da formação e da atualização profissional em oportunidades de
formação continuada e do próprio reconhecimento da profissão faz parte desse desafio
identitário dos professores.
148
Logo no início da discussão, os professores do Ciclo II expressaram suas
concordâncias com relação às críticas que um professor fazia ao trabalho dos professores do
Ciclo I:
Helena: É bem isso aí mesmo. (Profª Ciclo II)
Vários professores falam ao mesmo tempo. A voz de um deles se sobressai.
Pauline: Os nossos comentários também são estes - referindo-se ao comentário citado no texto. (Profª do Ciclo
II)
Gerson: Na verdade, o Mário é mais um frustrado como nós. (Prof. do Ciclo II)
Pergunto ao grupo se todos dão aula de 5ª a 8ª e Ensino Médio. Com a afirmação de todos, eu questiono: A
realidade do Mário é algo distante ou próxima?
Ainda timidamente, alguns respondem que é uma realidade próxima.
Questiono novamente: O que vocês mais se identificaram com o Mário?
Lilian: A frustração. (Profª do Ciclo II)
Walquiria: A indignação dele em saber que os alunos chegaram até esta série (referindo-se à 5ª série do
Ensino Fundamental) e não sabem ler, não sabem interpretar e querer saber o que foi feito até este período.
(Profª do Ciclo II)
Para os professores do Ciclo II, pela experiência que têm com alunos de 5ª a 8ª séries e
Ensino Médio, comparando-os com os alunos mais novos, acham que estes são mais fáceis de
se trabalhar. Eles acreditam que professores do Ciclo I não enfrentam as mesmas dificuldades
em relação a comportamentos dos alunos, especialmente as dificuldades que eles percebem
nas séries finais do Ensino Fundamental. É o que sugerem, por exemplo, os seguintes
depoimentos:
Pauline: O aluno da 5ª série... (Professora do Ciclo II)
Outra professora não identificada complementa: Ele abaixa a bola mais rápido...”
E Pauline continua: O aluno da 5ª série, por ele ser mais novo, não ter tanta malandragem ainda de vida como
do ensino médio, ele nem sabe direito, entendeu? Que o aluno do ensino médio ele já [???] tem todas essas leis
aí de cor e salteado na cabeça é mais fácil nós controlarmos, exigirmos algum tipo de comportamento tanto,
relacionado à disciplina quanto à matéria mesmo, atitude de fazer e tal, dos menores.
Eu volto a interferir e pergunto: Trabalhar com alunos de 5ª série é... Não consigo terminar de formular a
pergunta, as respostas chegam rápido:
Pauline: É mais fácil fazer com que eles prestem mais atenção, desenvolvam as atividades, entendeu?
Acontece? Tem alguns casos? Tem, mas não é tão assim gritante como no ensino médio já, onde [???] os alunos
já têm aquela malandragem. Então eu acho que na 1ª série e na 2ª daria para trabalhar melhor. Agora eles
chegam mesmo, analfabetos.
Celina: [...] de 1ª a 4ª eu acho que é até melhor pela idade que eles têm. (Profª do Ciclo II)
149
Eu pergunto por que ela diz que é melhor.
Ela responde: Para eles assimilarem, não é melhor? Estão todos juntos (faz gestos com os braços sinalizando um
conjunto; parece-me que ela está falando de homogeneidade). Entram na 1ª série, a maioria não entra sabendo
nem ler e escrever, na escola do Estado. É até mais fácil para o professor, agora chega para nós sem saber ler e
escrever, nós não sabemos alfabetizar, e o que ocorre, aí você tem 40 alunos numa sala de aula, 6 ou 8 alunos
sem essa dificuldade e é até constrangedor para eles, você querer alfabetizá-los, então eu acho que quando eles
entram na 1ª série, na 1ª a 4ª, até na questão da idade, é melhor para eles aprenderam.
Leoni: Eu acho que não é só idade, é uma questão de vontade. A gente estava até comentando a respeito isso,
que depois de uma certa série eles perdem totalmente o interesse, a vontade. Então, eles vêm à escola
simplesmente pra brincar, pra conversar com o amigo, então, perdem essa vontade que eles têm no primeiro ano,
de aprender, de conhecer, de escrever, de querer saber de tudo. (Profª do Ciclo II)
Profª não identificada: [...] quando ele (o aluno) vai para a 5ª série, ele tem um comportamento diferente, ele tá
se achando grande, maior, assim, então, ele acha que ele já é um hominho na verdade. E é mais nos meninos
que nas meninas, então ele começa a dar outro tipo de trabalho. Aonde a família não tem o suporte para segurar
e educar essa criança. É o que nós percebemos bastante na 5ª série. (Profª do Ciclo II)
Gisele: Eu, pelo contato que eu tenho, que eu tive assim, elas acham que dá aula de 5ª a 8ª é muito mais fácil,
que é mamata o que a gente faz. E particularmente, eu tenho na cabeça que de 1ª a 4ª série elas trabalham, têm
dificuldade também, mas não é que nem a gente não, porque o que a gente enfrenta aqui por coisas mal feitas
que elas começam da 1ª série e a gente acaba pagando. (Profª do Ciclo II)
Coordenadora Pedagógico do Ensino Médio: [...] porque na teoria tudo é muito fácil, mas na prática se torna
muito difícil, [...] ainda mais quando ele (o aluno) vai para a 5ª série, ele tem um comportamento diferente, ele
tá se achando grande, maior assim, então, ele acha que ele já é um hominho, na verdade. E é mais nos
meninos que nas meninas, então ele começa a dar outro tipo de trabalho [...].
Tal visão é compartilhada também por uma professora do Ciclo I:
Priscila: [...] não tem como também este professor (do Ciclo II), sabe, já com estes meninos lá na frente, de 12,
13, 14 anos, dar conta de uma problemática de alfabetização, que se fosse dado já a devida atenção lá com o
aluno, lá, com 7 anos, na 1ª série, sabe, que .... então, um acompanhamento pedagógico, um trabalho
sistematizado com aquele aluno com dificuldade... tem problema familiar, tem, lógico que tem, vai ter pai que
não escreve, lógico![...] (Profª do Ciclo I)
Na opinião dos professores do Ciclo II, os professores do Ciclo I têm uma formação
profissional que não é “suficiente”. Para aqueles, o Curso de Magistério é algo “pequeno,
insuficiente, desatualizado”.
Gisele: É que muita professora de 1ª a 4ª séries é um pessoal... Antes de completar a frase a professora sinaliza
estar incomodada de falar mal de outros professores. (Profª do Ciclo II)
Pauline: É complicado falar mal dos amigos, mas... (Profª do Ciclo II)
Gisele continua: ...um pessoal muito antigo, que não fizeram uma Pedagogia, por exemplo, tão com aquela
historinha do, como é que chama?, do..., ô meu Deus, do Normal, como é que chama? Magistério! E eu acho que
as coisas mudaram e acabou não acompanhando, entendeu? Eu acho que às vezes faltam recursos para elas
disso. (Chamou minha atenção o fato desta professora não lembrar o nome do Curso Magistério, já que ela fez
primeiro este curso e só depois cursou a Licenciatura).
Micaela: “A escola que eu conheço, que é (cita o nome de uma escola estadual situada em um município da
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Grande São Paulo) e que a (cita o nome de uma professora do Ciclo II) também conhece, eles assim, com os
professores... primeiro, são professores que não têm só Magistério, pelo contato que eu tenho, são sempre que...
não é uma escola de periferia, é uma escola de centro, e a minoria lá só tem o Magistério, 1 ou 2 professores no
máximo, a maioria lá já tem o superior, já tem vários cursos que a prefeitura oferece, eles fazem, meu pai mesmo
levava as professoras no sábado pra fazer curso, desta escola... assim, é completamente diferente o aprendizado,
eles não têm o que falar do professor de 5ª a porque o aluno chega como a gente quer que chegue. É o que
eu queria, um aluno meu chegasse na 5ª série, é o que eles fazem lá. Ele chega na 5ª série do jeito que tem que
chegar, com toda uma base perfeita.[...] (Profª do Ciclo II)
Petrolina: Mas não resolve nada ficar só indignado, se a gente não partir para fazer alguma coisa, eles vão sair
como a professora aqui (aponta o texto) falou, até a 8ª sem saber ler nem escrever. Não adianta culpar o
professor de 1ª a 4ª, ele também é vítima como nós e pior ainda ele dá aula de todas as matérias, me preocupa
até, às vezes, saber a formação dos professores de 1ª a 4ª. Não adianta culpar, entendeu, a culpa é do sistema.
Pergunto a ela o que quis dizer com relação à formação do professor de 1ª a 4ª. Pedi que explicasse suas
preocupações.
Ela então responde: A formação de professor de Magistério, eu não sei como que anda. Antigamente nós
tínhamos professores bem formados. Hoje em dia eu não sei como está a formação de 1ª a 4ª.
As professoras Ana Margarethe e Marilda falam ao mesmo tempo. A fala da professora Ana Margarethe se
sobressai: [...] não é que eram bem formados, é que antigamente a formação era ... passamos 50 anos com a
repetição, memorização, que era ... uma receita pronta. Aí na hora que o professor tem que adaptar, tem que
interpretar, tem que fazer uma dinâmica em sala de aula e ele não tá preparado para isso, ele foi formado para
memorizar, repetir e copiar e aí, esse professor, ele não vai dar conta? Não vai. A formação aí é falha porque o
professor se formou há 20 anos atrás, é claro que ele vai demorar para tentar entender porque o aluno vai
conversar ao invés de copiar vinte vezes a palavra que ele e errou..(Profª dos Ciclos I e II)
O professor Evandro, por exemplo, afirma que um trabalho pedagógico que “flui” no
Ciclo I é uma exceção:
Evandro: Eu particularmente, antes de vir pra essa escola sempre trabalhei de 1ª a 4ª série, e toda regras têm as
suas exceções e, eu conheço professores que realmente o trabalho fluía dentro da sala de aula porque ele teria
que tá participando comigo nas aulas de Educação Física. (Prof. do Ciclo II)
Contrariamente, professoras que fizeram a Habilitação para o Magistério no âmbito do
Ensino Médio e depois fizeram licenciatura defendem aquele curso e criticam os cursos
superiores que negligenciam a formação profissional docente:
Ana Margarethe: Eu penso assim, quando eu fiz Magistério, eu fiz o projeto CEFAM que na época era projeto,
era uma outra... .(Profª dos Ciclos I e II)
Marilda completa: Formação.(Profª do Ciclo II)
Ana Margarethe:: ... forma de se pensar sobre educação, aí eu terminei o CEFAM e entrei numa faculdade,
pública também, e pensei que seria a mesma coisa, que daria seqüência ao que eu pensava, aí tudo que a gente
tinha construído de conhecimento lá caiu por terra, porque aí eu entrei na repetição, na memorização, na cópia,
entendeu. Aí eu falei: “- Pôxa vida, meu Deus, quatro anos que eu fiz de CEFAM caiu por terra”. Foi bobeira,
porque eu cheguei na faculdade, primeiro tive que fazer uma prova para... vestibular, classificatória, quantitativa
e não qualitativa, aí você vai, entra na faculdade e você tem que fazer coisas que não têm significado, não tinha
objetivo. Aí, eu acho que educação [...] o ensino superior não acompanhou esses avanços da área de educação,
151
esse pensamento sobre educação, de construir conhecimento. Então, eu vejo assim, essa diferença. Mas, eu
passei pelos dois processos, talvez algumas pessoas, a maioria das pessoas só passaram pela faculdade, até hoje
eu vejo, as meninas que estão fazendo faculdade, as estagiárias da escola, onde eu dou aula, na prefeitura, elas
fazem assim, trabalhos de quantidade e não de qualidade. (Profª dos Ciclos I e II)
Eu questiono se ela está falando de Pedagogia, do professor de 1ª a 4ª, ou do professor que faz licenciatura, e ela
responde que está falando de ambos e continua sua fala: Eles estão fazendo uma formação [???], e aí você fala:
“- Pôxa, e aí? O que vai sair desse cara que está saindo da faculdade agora?” Ele não vai conseguir
acompanhar o que tá se pensando sobre educação, os avanços que tiveram sobre educação, não vai pensar nos
equívocos que tiveram em educação, né, e não vai melhorar e aí fica incompatível.
Tereza: [...] a nível de formação, o Magistério, ele me ajudou muito mais a ser professora que a Pedagogia em
si (neste momento ouve-se uma professora dizendo que é verdade e outras professoras balançando a cabeça pra
frente, sinalizando concordância com o que ela está falando), porque era só assim:“Qual a linha de pensamento
de educador que você defende? Em qual você se aceita, se encaixa melhor?” E mesmo a faculdade de Artes que
eu fiz agora, eu pensei; “Puxa! Eu observo alguns colegas dando aula que dão de mil a zero nesses professores
da faculdade.” ... não é bonito o aprender de hoje, o aprender de hoje, a formação de hoje, ela é muito paga,
paga, então se você paga, vai, e se você paga, vai e não faz também, porque existem cursos presenciais, e tudo
bem, aí é a capacidade, o domínio de cada um, o cognitivo de cada um... mas mudou muito mesmo [...] (Profª do
Ciclo I).
Os professores do Ciclo I também questionam a qualidade dos cursos de formação
profissional docente:
Ivonete: (Referindo-se aos professores do Ciclo II, respondendo ao sonho deste professor em receber um aluno
pronto) [...] é o que eles aprendem na faculdade [???] a universidade ainda tá muito (gesticula com as mãos
sinalizando atrás). (Profª do Ciclo I)
Priscila complementa: A formação do profissional de educação. (Profª do Ciclo I)
Eu pergunto se elas estão falando da formação do professor de 5ª a 8ª séries e elas respondem que é a formação
do professor em geral.
Priscila: [...] O professor sai de uma universidade, sabe, sem ter o mínimo de noção de que é teoria com a
prática (com os braços erguidos, faz um movimento com eles sinalizando que teoria e prática estão distantes), o
que significa essa junção (junta os braços). Então, teoria é uma coisa, prática é outra. Teoria, eu vou ler, vê tudo
bonito, mas a prática vai encontrar uma realidade cruel. E aí? Aí não sabe trazer essa teoria pra prática, aí a
formação do professor fica... (sua expressão é de algo ruim). (Profª do Ciclo I)
Pergunto, dirigindo-me ao grupo, se eles percebem diferença na formação do curso de Magistério e Pedagogia, e
a formação do professor de 5ª a 8ª séries, até mesmo quando falam sobre a questão da distância entre teoria e
prática.
Priscila responde: Eu não vejo diferença. Só que o professor lá da área, ele é formado pra trabalhar aquilo e
sempre, até já vem da universidade com aquela... com aquela.... com aquele pensamento quadradinho...(Profª
do Ciclo I)
Ivonete complementa: Conteudista. (Profª do Ciclo I)
Priscila continua: ... conteudista, só de trabalhar ali a área dele, de não ver o todo, de não ver esse aluno por
inteiro, vê o aluno sempre do pescoço pra cima, sabe, e mesmo o professor de Educação Física, [???] que
trabalha mais o corpo, é só o corpo, o aluno não tem a cabeça, fica essa coisa fragmentada, né, então eu não
vejo diferença nenhuma desse professor de ‘coiso’... a única diferença é assim, com o professor que vai atuar no
Ensino Fundamental do Ciclo I, de 1ª a 4ª, ele vai trabalhar mais com aquele aluno, ele vai ter mais contato,
vai trabalhar com todas disciplinas, ‘tatata’ ‘tatata’, e aquele outro é específico, né? (Profª do Ciclo I) (Sua fala
é incoerente, pois mesmo afirmando que não vê diferenças na formação dos professores, ela aponta várias)
152
Alguns professores do Ciclo II tentam defender os professores do Ciclo I:
Lídia: Sabe por que gente, eu acho que para nós de 5ª até Ensino Médio, é muito, eu acho que para nós é mais
cômodo, é fácil para eu dizer o seguinte: “A culpa não é minha, este aluno já veio assim de lá!” Então, eu
acabo me isentando um pouquinho deste problema, desta culpa e a partir daí eu não tenho muito o que fazer,
eu não sou especialista em alfabetizar, não sei o quê, não sei o quê.[...] (Profª do Ciclo II)
Coordenadora Pedagógica do Ensino Médio: A gente percebe também que quando há algum problema a ser
resolvido, buscam-se culpados pela situação, entendeu. Então, você fala assim: “- É o professor de 1ª a 4ª” . O
professor de 1ª a 4ª fala:” - Não, os culpados são vocês porque o aluno não era assim”. Sempre se procura um
culpado e nunca resolveu o problema que realmente existe, né, porque na teoria tudo é muito fácil, mas na
prática se torna muito difícil [...].
Deusiane: É o efeito... isso é o efeito. A causa é seguinte. Eu sei que eu já tive meu filho, o B., ele foi, coitado do
moleque, ele pertenceu a essa coisa: como que se põe numa sala de aula 40 alunos? (Profª do Ciclo II)
Alguma profª não identificada complementa: Para alfabetizar. (Profª do Ciclo II)
E Deusiane continua: Para um cristão alfabetizar, [???].
Vários professores falam ao mesmo tempo. Dentre as várias falas, foi possível destacar somente algumas, no
entanto, sem possibilidade de identificar algumas professoras:
- É impossível!
- Nós fomos educados com a Caminho Suave.
Pauline: Mas gente, na minha época já tinha 40 alunos na sala!
- Na minha época não!
- Só que as crianças tinham mais medo.
- Nós tínhamos uma estrutura familiar, hoje eles não têm.
- Eu não culpo os professores de 1ª a 4ª gente, porque, olha, para alfabetizar 40 alunos é humanamente
impossível.[...]
Há também professores do Ciclo II que dizem conhecer o trabalho do professor do
Ciclo I, tendo suas opiniões positivas em relação ao trabalho deste. Mesmo assim, há também
depoimentos, apresentados a seguir, que fazem referência pejorativa aos professores do Ciclo
I, chamando-os de “pessoalzinho de 1ª a 4ª”, ou ainda, reforçando que “eles não dão conta do
trabalho” e que são professores “
desatualizados e acomodados na sua formação profissional
inicial”:
Profª não identificada: Mas é difícil, porque eu peguei uma 5ª série [???] foi 2002, e foi lá no (cita nome de uma
escola) porque o [???] era de 1ª a 4ª e depois passou, e eu entrei justamente no ano que, o primeiro ano que
estava [???] voltando, retornando o ensino fundamental. Então nós ficamos com as turmas de ensino fundamental
5ª série, 5ª e 6ª, né, e turmas de 1ª a 4ª. s tínhamos um contato com o [???] pessoalzinho de 1ª a 4ª. Eu peguei
uma 5ª série maravilhosa! Mas o trabalho das professoras [???] era maravilhoso, [???] a gente percebia o
153
trabalho delas [???]. (Profª do Ciclo II)
Lídia: [...] professores de 1ª a 4ª, eu vejo sim, sempre vi dessa maneira, porque desde quando a gente entra, [...]
existe este preconceito: professor especialista, ele é mais qualificado do que o professor de 1ª a 4ª né, eu não
concordo, mas é uma realidade. Eu não concordo, porque que eu não concordo. Eu não tinha essa idéia até
algum certo tempo. Quando eu comecei a trabalhar numa escola (particular) onde eu conheci o trabalho de 1ª
a 4ª, aí a coisa mudou. Porque gente, aqui entra uma discussão (e aponta para o texto), é engraçado, porque na
verdade nós esperamos que o aluno venha pronto mesmo para nós, que ele venha já totalmente alfabetizado,
lendo, escrevendo, sabendo fazer as contas todas, sem o menor problema. E a gente não consegue enxergar a
dificuldade que este professor tem. E são muitas dificuldades, muitas dificuldades, e eles vivem né, mais ou
menos entre a cruz e a espada. Por quê? Porque é uma cobrança da própria escola, é uma cobrança dos pais,
né, dos próprios colegas e às vezes eles não dão conta mesmo, não dão conta. (Profª do Ciclo II)
Evandro: Eu particularmente, antes de vir pra essa escola, sempre trabalhei de 1ª a 4ª série, e toda regras têm
as suas exceções, e eu conheço professores que realmente o trabalho fluía dentro da sala de aula porque ele
teria que tá participando comigo nas aulas de educação física. E o meu trabalho era muito paralelo àquele que
ele estava fazendo. Mas tem professores que realmente tinha essa dificuldade, até pelos problemas de alunos que
vinham com problemas de alfabetização [???] 1ª e 2ª série [???] se o professor pegasse na 3ª série esse aluno, que
já viesse com problemas, ele estava com dificuldades, mas mesmo assim ele conseguia progredir com esse aluno
um pouco. [...]E tem professor que realmente, lá eu via, que realmente tinha muita atividade, maneira de se
trabalhar, muitas técnicas, né, e tem professor que infelizmente não foi procurar se atualizar, não foi ainda
buscar uma outra alternativa, que é voltar a estudar, voltar e fazer uma outra faculdade e só tem Magistério. É
lógico que tem professores que só têm magistério e que são muito bons, só que tem outros que têm dificuldade
e esse aluno, ele vem defasado, realmente em todos os sentidos. Tem professor que ainda está colocando
métodos sobre o aluno que não se usa mais. E isso era discutido na escola. Então, a gente também, eu estou
falando isso porque na disciplina de Educação Física a gente tentava fazer com que este aluno também, na
medida do possível, tentava ajudar na alfabetização, dentro das aulas de Educação Física, a gente tinha algumas
aulas que direcionavam para isso, na aprendizagem né, para fazer com que este aluno, também em sala de aula,
tivesse um aproveitamento melhor, não só em quadra, mas também em sala de aula. Em escrita, em leitura, a
gente tentava chegar o mais próximo possível, porque o professor, ele precisava disso. [...] (Prof. do Ciclo II)
Ao serem questionados sobre o que os professores do Ciclo I pensam em relação a
eles, professores do Ciclo II respondem:
Marcos Rogério: [...] o grupo de 1ª a 4ª também deveria estar aberto para sentar e conversar, mas nem sempre
é fácil enfrentar o problema, porque realmente, a impressão que dá é que eles, a visão que eles têm da gente, é
que a gente joga toda a culpa neles.
Pesquisadora: Você acredita que eles pensam isso?
Marcos Rogério responde: Eu acredito que sim, que eles têm uma certa resistência em abrir isso. Inclusive já
houve comentários que a diretora da outra escola (referindo-se a uma escola de 1ª a 4ª séries da qual os alunos
que chegam na 5ª série têm muitas dificuldades na alfabetização) que não falou não sei o quê, que o professor
não sei o quê, e acabou no fala, fala e ninguém falou [..] (Prof. do Ciclo II)
Os professores do Ciclo I, por sua vez, sentem-se incomodados com as críticas citadas
no texto por professores do Ciclo II, e se defendem. Vejam o relato da discussão
desencadeada ao término da leitura do texto inicial:
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Ouve-se um som onomatopaico de indignação.
Uma profª não identificada fala de forma irônica: Não faz nada!
Outra profª não identificada: É ruim, hein?
Pesquisadora: “O que vocês têm a dizer sobre isso?”
Vários falam ao mesmo tempo.
Uma profª não identificada se sobressai: A culpa não é nossa [...]. A gente faz um trabalho, tenta resgatar o
que este aluno [???] e mesmo assim, claro, que a alfabetização é até a 8ª série [???] é contínua, então os
professores de 5ª a 8ª série teriam que dar continuidade, coisa que não acontece. É mais fácil criticar o outro do
que ajudar, pensar, saber o porquê daquilo [...]
Priscila: Eu acho que foi um tempo muito curto para ele já se decepcionar, logo de cara, com dois meses, né, ...
e tá com dois meses dando aula, com toda motivação que ele tinha anteriormente, chegar com dois meses
desiludido e fazer uma indagação dessa... que os professores de 1ª a 4ª série estão fazendo? Então, eu acho
assim uma incoerência do próprio texto, né, tá colocando essa situação pra começar, né, e depois, em
contrapartida, o contraponto aí, a outra professora, a Denise, já com longos anos, 15 anos, também ter uma
resposta dessa, então o que que ela fez, né, na própria formação dela, né, durante 15 anos ela ficou na mesma,
ou seja, ela chegou, talvez motivada como o Mário, em dois meses se decepcionou e ficou aí na decepção, não
procurou nada que justificasse... o fracasso desse aluno na escola, né... (Profª do Ciclo I)
Denise: Eu acho que essa preocupação [...] do professor de 1ª a 4ª estimular, criar um aluno crítico, não
acontece de 5ª a 8ª, por isso que eles querem o aluno pronto, pra poder aplicar o que era aplicado naquela
educação (faz um gesto com o braço, sinalizando que é uma educação do passado). (Profª do Ciclo I)
A pesquisadora pergunta aos professores do Ciclo I se eles acreditam que os professores do Ciclo II têm
conhecimento das dificuldades que eles passam com relação aos alunos.
Profª não identificada: É que eles não percebem isso também, [???] é uma questão social, é o que tô dizendo,
por que volta de [???] onde nós estamos nessa escola, com que crianças nós lidamos, tudo bem, criança é
criança em qualquer lugar, e todas têm condições de aprender, acontece que elas não têm uma noção de limites
do que... do mínimo. E a gente tem que estar lidando com isso também. [...] (Profª do Ciclo I)
Tereza: Eu acho que se eles (professores do Ciclo II) fossem um pouquinho carinhosos, seria melhor. Se eles
pudessem ensinar um pouquinho de 1ª a 4ª, depois um pouquinho de 5ª a 8ª e Ensino Médio, seria melhor
também, porque, como ela disse (referindo-se à professora do texto), não é fácil alfabetizar, né? Escola que a
lousa tá esburacada, que o giz não escreve, que você tem que ensinar o aluno aprender a aprender.. (Profª do
Ciclo I).
Para os professores do Ciclo I, o professor do Ciclo II “parou no tempo” e evoca um
saudosismo, sonhando com um aluno ideal, “pronto”:
Tereza: [...] O professor de 5ª a 8ª, ele tem uma visão muito... assim... ele sonha, ele quer o aluno pronto, ele
que o aluno acabado... só que, de uns anos pra cá, isto tá quase impossível de acontecer, quase impossível.
(Profª do Ciclo I)
Priscila: [...] o professor (do Ciclo II) sonha sempre com aquele aluno ideal, porque ele está preso lá atrás, na
questão de, como era, ele tem um parâmetro de comparação lá atrás. (Profª do Ciclo I)
Tal visão é igualmente reforçada por uma professora do Ciclo II:
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Lídia: [...] na verdade nós esperamos que o aluno venha pronto mesmo para nós, que ele venha já totalmente
alfabetizado, lendo, escrevendo, sabendo fazer as contas todas, sem o menor problema.[...] (Profª do Ciclo II)
Alguns depoimentos revelam que há expectativas de receber um “aluno pronto” em
outros níveis educacionais:
Ana Margarethe: Eu trabalho em outra escola, de 1ª a 4ª, e estava emprestada numa escola do infantil e foi aí
que percebeu-se a diferença, quer dizer, do infantil para o fundamental, de 1ª a 4ª, também tinha essa
cobrança, porque na hora de chegar na 1ª série, falavam: - Pô, o que que essas crianças ficaram fazendo três
anos, que não sabem cortar, não sabem fazer isso, não sabem [???], entendeu? Aí, o grupo gestor da escola
começou a perceber: - Peraí, então, o que é que a gente pode trabalhar junto, né, para tentar remediar essas
coisas ou até sanar algumas questões. Foi aí que a escola também percebeu qual era o papel também da
Educação Infantil.(Profª dos Ciclos I e II)
A pesquisadora pergunta se ela está falando de uma escola particular, municipal ou estadual. Ela responde que é
municipal. Peço que ela me esclareça a questão do “emprestada”. Ela explica que as aulas estavam acontecendo
em uma escola de Educação Infantil porque a escola deles estava sendo construída.
[...] Na escola em que trabalho de manhã, as crianças de 4 a 6 anos, eles comem com garfo e faca, ... eles se
servem, tudo bonitinho, a hora que eles passam para a 1ª série, eles comem de colher e quem serve é a
merendeira. E aí, o cara conquistou em saber se servir, na autonomia de poder comer o que ele qué na hora em
que ele qué e depois sei lá, vem alguém né, um mês depois, dois meses depois e coloca no prato dele o que ele
não qué e ele é obrigado a comer de colher. Jogou no lixo todo o trabalho que a gente fez. (Profª dos Ciclos I e
II)
Evandro: Eu vou falar uma coisa, uma experiência própria minha, a pré-escola, ela dá o início da alfabetização,
que hoje a prefeitura [....], alguns professores reclamam que tá saindo de lá praticamente sem nenhum tipo de
estrutura, porque aí seria uma continuidade do Estado, né. A criança sai da pré-escola, ela já tem uma base. Eu
falo isso porque em escola particular, na pré-escola, a criança sai praticamente alfabetizada.
[...]
Mas eu também acho também que no Ensino Médio, professores do Ensino Médio, também, às vezes, eles
reclamam que o aluno não vem com a bagagem de conhecimento de 5ª a 8ª. O texto é real, mas também se você
for colocar pro Ensino Médio, tem professores que reclamam: Este aluno não aprendeu nada de 5ª a 8ª, ele não
tem [???] conhecimento, porque ele não sabe fazer isso (aponta para algo na carteira escolar), então não é só de 1ª
a 4ª série, é de 5ª a 8ª também. (Prof. do Ciclo II)
Finalmente, resta mencionar depoimentos que revelam que os professores do Ciclo I
também defendem os professores do Ciclo II, solidarizando-se com suas dificuldades:
Queuzia: Eu acho que a gente tem que tomar muito cuidado quando a gente vai... da mesma maneira que o
professor de 5ª a 8ª (neste momento ela olha para a professora do lado, que é professora de 5ª a 8ª e que não se
manifestou durante todo o encontro) ele vai criticar o aluno de 1ª a 4ª que não tá pronto, eu acho que a gente
tem que tomar muito cuidado quando a gente vai criticar o professor de 5ª a 8ª, porque eu acho que a gente tem
que pensar que ele entra numa sala de aula, ele tem 50 minutos de aula, tirando para fazer chamada, são 10
minutos, sobra pra ele 40 minutos, tirando o tempo que ele vai chamar a atenção do aluno, quanto tempo sobrou
pra ele realmente dar aula. É uma troca constante, é complicado você também cobrar para quem alfabetiza. [...]
(Profª do Ciclo I)
156
Como os professores vêem o trabalho que realizam?
As ações profissionais do professor fazem parte de sua identidade (G. Sacristán,
1999). Os dados obtidos parecem sugerir que alguns professores estão insatisfeitos com a
atividade profissional que realizam, o que pode resultar em situações nas quais os professores
tendem a se dedicar pouco e não se esforçar objetivamente para melhorar seu trabalho,
terminando por gerar as condições para a construção de uma identidade profissional negativa.
A atividade docente para os professores dos dois Ciclos do Ensino Fundamental é
desgastante, é uma “montanha-russa”, pois vai além da educação acadêmica, envolvendo um
trabalho que, na concepção deles, seria “da família”. Segundo o depoimento dos professores
investigados, a atividade docente é difícil “porque os pais se omitem
42
.
Trechos dessa discussão destacados abaixo revelam, além da equivocada reafirmação
do chamado “mito de omissão parental”, também a dificuldade e falta de preparo do professor
do Ciclo II em retomar o processo de alfabetização, a crítica ao que denomina de
metodologias modernas” e ao sistema educacional, como promotores do fracasso do aluno e
a constatação da percepção de como a atividade docente é dificultada também pelo excesso de
alunos em sala de aula e pela perda de autoridade do professor:
Pauline: Porque você não tem que ensinar o aluno só o conteúdo, você tem que ensinar tudo para ele. Ele não
sabe sentar, ele não sabe conversar, ele não sabe comer, ele não sabe pedir uma licença, ele não sabe se
comportar... socialmente. (Profª do Ciclo II)
Gisele: Agente tá fazendo um trabalho que os pais teriam que fazer, antes de chegar na escola todos os dias,
né? (Profª do Ciclo II)
Vários professores falam ao mesmo tempo.
Gisele: Eles chegam aqui sem limite.
Outra profª não identificada confirma: Os alunos chegam aqui sem limites. (professora do Ciclo II)
Gisele: Eles fazem o que eles querem. [...]. Eles vêm para escola sem noções nenhuma de nada, então chega
aqui, nós vamos ter que ensinar para ele a importância do estudo, mas ele não vê importância. (Profª do Ciclo
II)
Pauline termina sua fala: A nossa comunidade não vê importância no estudo. (Profª do Ciclo II)
Gerson: [...] toda essa questão da educação que deveria ser dada em casa, volta para o professor. Então
professor ensina o conteúdo e educa o aluno, sendo que no passado era uma função dos pais. [...]
Na verdade [???] inverteu os valores, esse é o problema. Eu, como professor de geografia na 7ª, 8ª série, eu não
tenho tempo para parar, na verdade, o meu conteúdo para mostrar ‘pro’ aluno que ele não pode pegar uma bala
42
Para maiores informações ver “mito da omissão parental” em: LAHIRE, B., 1997. Sucesso escolar nos meios
populares. As razões do improvável. São Paulo: Artes Médicas.
157
e jogar o papel aqui na frente ou do lado dele, quando o cesto está ali (aponta para o canto). Eu digo isso
sempre para meus pais que é no máximo até a 6ª série. [???] Qual pai faz isso? Não olha nem o caderno do
filho. Então, não é uma questão só de sala de aula, tem outros fatores. O que nós mais ouvimos é que a escola
está péssima, não é a escola que está péssima, é a sociedade que está péssima, não é? E esses fatores acabam se
voltando aqui na escola. Então fica difícil [...]. (Prof. do Ciclo II)
Coordenadora Pedagógico do Ensino Médio: [...] a família não tem o suporte para segurar e educar essa
criança. É o que nós percebemos bastante na 5ª série.
Deusiane: [...] Eu sei que eu já tive meu filho, o B., ele foi, coitado do moleque, ele pertenceu a essa coisa: como
que se põe numa sala de aula 40 alunos? (Profª do Ciclo II)
Alguma profª não identificada complementa: Para alfabetizar. (Profª do Ciclo II)
E Deusiane continua: Para um cristão alfabetizar [???].(Profª do Ciclo II)
Vários professores do Ciclo II falam ao mesmo tempo. Dentre as várias falas, foi possível destacar somente
algumas, no entanto, sem possibilidade de identificar algumas professoras:
- É impossível!
- Nós fomos educados com a “Caminho Suave”.
Pauline: Mas gente, na minha época já tinha 40 alunos na sala! (Profª do Ciclo II)
- Na minha época não!
- Só que as crianças tinham mais medo.
- Nós tínhamos uma estrutura familiar, hoje eles não têm.
- Eu não culpo os professores de 1ª a 4ª gente, porque, olha, para alfabetizar 40 alunos é humanamente
impossível.
Profª não identificada: A culpa não é nossa, será que esse aluno tem família, será que o pai tem pouco
esclarecimento, vê que o filho não tá aprendendo nada, não vai atrás de seus direitos, não vai lá ver o que o
governo tá fazendo? Nós não temos culpa que o governo tem um sistema que só reprova na 4ª série, a criança
não aprende na 1ª tem que passar para 2ª série, o professor não dá conta, tem que passar para 3ª série, não deu
conta, e ele é reprovado na 4ª. Num ano só, ele tem que fazer quatro anos, que nem bobo, né, vendo os outros
aprendê e ele não aprendeu por que foi jogado. (Profª do Ciclo I)
Ouve-se uma outra professora complementando: Por causa do sistema, ninguém tem culpa.
E a professora anterior continua: A gente faz um trabalho, tenta resgatar o que este aluno [???] e mesmo assim
[...]. Muitas vezes a gente chama o pai aqui, quando você vai vê, coitado do pai, infelizmente, não tem nem...
não ignorância, mas... Ele acha bonito, saber que o filho não saiba e passe, e o filho do vizinho pode passar
que [???] - você acha que meu filho não vai passar? Tem que passar! – ele não concorda que amanhã ou depois
ele vai precisar. Antigamente não, a única coisa que as pessoas podiam deixar pros seus filhos é a educação,
agora nem isso. E o pai ainda acha que a criança vem aqui aprender a ler e escrever e a educação que devia
trazer de casa – obrigado, dá licença, por favor, nem isso... então tem que rever tudo isso, né, [???] precisa vê o
pai e a mãe pra vê como é que é...
Profª não identificada: a gente segue o sistema.... (silêncio) a gente não pode ir contra o governo... (Profª do
Ciclo I)
Eu pergunto que sistema é esse.
Ela responde: É o Ministério da Educação, a tal da progressão continuada. (Profª do Ciclo I)
158
(silêncio)
Profª não identificada: [...] eles (os alunos) vão sendo aprovados automaticamente, né, tendo dificuldades ou
não, e são reprovados na 4ª série.
Pergunto se o índice de reprovação na 4ª série deles é grande.
Após algum silêncio, alguns respondem apenas com um não.
Uma professora fala: Não muito. (silêncio.)
O número de alunos em sala de aula está intrinsecamente ligado à atividade do
professor, afinal o âmago de sua tarefa é o tempo que ele dedica a seus alunos (Tardif &
Lessard, 2005). É o professor, na sua autonomia em sala de aula, que estabelece o tempo que
terá com cada aluno (os que têm dificuldade de aprendizagem, os que aprendem com
facilidade) de forma que, na sua rotina diária, ele vai selecionando e adaptando este tempo de
acordo com as necessidades de seus alunos e as exigências pedagógicas. Essa idéia se
confirma quando se são examinados alguns depoimentos expressos pelos professores
investigados:
Profª não identificada: [...] muito aluno na sala [???] é muita criança, com muita dificuldade pra um
profissional somente dá conta [...] (Profª do Ciclo I)
Pauline: [...] Olha, eu tenho que dar aula para a maioria, a maioria não acompanha. Então a minoria que
[???] daria para você forçar a um pouquinho mais a matéria com ele [???] [...] (Profª de Ciclo II).
Ao serem questionados se eles acham que têm muitos alunos na sala de aula, vários professores respondem, ao
mesmo tempo, que sim. A pesquisadora pergunta qual o número ideal de alunos para eles – ao que várias
professoras respondem:
Uma profª não identificada responde: 25 é o ideal pra trabalhar... principalmente na 1ª série... pra trabalhar
mesmo! (Profª de Ciclo II).
Outra profª não identificada fala junto: tem sala de aula [???] de 1ª a 4ª [???] que tem 37 alunos, outra com
40, cada um num estágio, [???] agora como você vai fazer um atendimento individualizado com aquele aluno?
Quando você atende este, aquele tá indisciplinado, começa as bagunça. Olha, gente, eu já tentei de tudo e acho
que todos colegas aqui também, é a mesma situação em todas as salas. (Profª de Ciclo II).
E outra: É aluno que sai, bate a porta, faz o que quer, volta... sabe... (Profª de Ciclo II).
A professora anterior continua: ... nossa, é um horror... ontem [???] um aluno na sala, ele sai, não pede
licença, [???] no meu tempo pedia licença pra tudo...[...] (Profª de Ciclo II).
Deusiane: [...] A questão é que nós temos 50 minutos com 43, 44 alunos, e o nosso tempo é consumido pelos
que se interessam. O meu tempo é consumido pelos melhores alunos. (Profª de Ciclo II).
Profª não identificada: É, porque eles querem, eles são os interessados e a gente não tem tempo para
trabalhar com aqueles que [???]. (Profª de Ciclo II)
Deusiane: E eu [???] ficar naquela da estatística. 5% serão bons profissionais, eu vou naqueles. Se aqueles 5%
daqueles 40 e tanto alunos for pra frente eu já ganhei meu dia... Eu invisto em cima daquele. Não dá tempo,
gente! Enquanto eu vou alfabetizar um menino, ficar dizendo que um “a” é daquele jeito... Eu não posso,
159
gente! (Profª de Ciclo II).
Gisele: Mas, espera aí, eu não posso fazer isso – porque é o [???] que ela falou - eu tenho que ver uma média da
sala, eu não posso trabalhar com aqueles 5 numa sala de 40. (Profª de Ciclo II).
Pauline: A gente trabalha com a maioria. (Profª de Ciclo II).
Gisele: [???] Porque a gente sabe que a coisa virou. Na época que a gente estudava eram 5 que davam
problemas, que tinha mais dificuldades e 35 que caminhava. Hoje a coisa mudou, é 5 que vai por eles coitados e
os outros 35 têm problemas. Eu acabo que tendo que dar mais atenção aos 35 senão, meu, como é que fica
meu diário, depois o povo come em cima da gente, caem matando em cima da gente porque[...] (Profª Ciclo II).
Os depoimentos anteriores nos remetem ao trabalho pedagógico do professor, tema
que será discutido nas páginas seguintes. Neste momento, vale a pena destacar aqui os
depoimentos acerca deste trabalho pedagógico e como os professores do Ciclo II afirmam que
“alfabetizar” é tarefa que eles desconhecem e é exclusiva do professor do Ciclo I –
depoimentos que, certamente, reafirmam os resultados obtidos nos estudos de Dias-da-Silva
(1997) e Truzzi (2001):
Profª não identificada: Gente, e olha, e não adianta a gente quere alfabetizá-los na 5ª série. Eu tive a
experiência na outra escola o ano passado, o que nós fizemos, nós tínhamos cinco 5ª séries com um problema
enorme de alfabetização. Então nos reunimos e resolvermos separar os alunos de problemas de alfabetização
mesmo. Deixaram numa turma só. Ficaram 15 alunos (ouve-se risos dos demais professores). Era torturante.
Você ia tentar alfabetizar, eles falavam: “Professora, mas isso aí a gente já aprendeu!” – não sabiam ler e
escrever – mas, “Professora, isso a gente já fez, na 3ª série, na 2ª série”.
Pauline: Eles não assumem que eles não sabem. (Profª do Ciclo II)
Professora não identificada: A gente tinha que trabalhar com eles de uma maneira que [???] alfabetização, mas
dentro do conteúdo de 5ª série. E, infelizmente nós não estamos preparados. (Profª do Ciclo II)
Pauline: É, nós não sabemos alfabetizar. (Profª do Ciclo II)
Ouvem-se comentários concordantes complementares.
Professora não identificada: Nós não estamos preparados. Então, foi assim, nós conseguimos ficar, o que, um
bimestre com eles assim, de uma forma insustentável.[...] (Profª do Ciclo II)
Gisele: [...] eu vou falar aquele negócio que o povo acha podre: eu sei que fiz Magistério, tudo, mas eu não vou
alfabetizar não, não sou paga para isso! Eu prestei um concurso [???] pela Secretaria da Educação para
trabalhar com Geografia, agora se ele quer que eu alfabetizo, ele que pague esta parte aí... (Ouve-se alguns
comentário de defesa e que se misturam com sua fala). Eu até ajudo, sabe. (Profª do Ciclo II)
Gerson: O texto fala desse conflito entre o ciclo básico e o fundamental e é interessante porque na verdade, deve
haver uma continuidade, né? Todos aqui sabem que os alunos têm que ser alfabetizados até a 8ª série, só que
na prática não é o que acontece, porque se ele vem alfabetizado do ciclo básico, não haverá uma continuidade
no fundamental.[...]. (Prof. do Ciclo II)
Os professores do Ciclo I, por sua vez, afirmam que os professores do Ciclo II devem
dar continuidade ao trabalho de alfabetização dos alunos:
160
Profª não identificada: [...] claro que a alfabetização é até a 8ª série [???] é contínua, então os professores
de 5ª a 8ª série teriam que dar continuidade, coisa que não acontece. [...] (Profª do Ciclo I)
Os depoimentos destacados até aqui revelam a multiplicidade da tarefa do professor na
sua rotina diária. E para dar conta de sua atividade profissional, segundo Tardif & Lessard
(2005), o professor por vezes se vê envolvido numa carga de trabalho que ultrapassa o tempo-
espaço da escola. O envolvimento do professor com tarefas (cotidianas, não visíveis) como
planejar aulas, elaborar atividades, corrigir atividades dos alunos, participar de cursos, etc,
muitas vezes lhe sobrecarrega. No entanto, no depoimento dos professores, o que mais exige
do professor é sua relação diária com os alunos:
Lídia: E assim, a motivação do professor, acho que conta muito, o professor que é motivado, que busca, que na
verdade, que ele tem assim, o seu objetivo maior, é o aluno. O que é principal para nossa vida profissional (olha
para o grupo). E no momento que você perder o interesse por este aluno “Ah, ele não sabe, ele não aprendeu
lá, não vai ser eu que vou resolver o problema dele!” aí fica difícil, fica difícil pra você caminhar, pra sua
própria auto-estima, pra sua valorização e pior, muito pior ainda, para o próprio aluno, que ele não vai
conseguir nada, nada, nada. E aí entram muitas coisas, né, o professor, muitos professores, principalmente no
Estado - nós somos bem realistas referente a isso – “Tá no Estado, acabou!”- Não quer saber de nada, aparecem
cursos - “Ah, eu não faço mais nada, eu não quero me especializar em mais nada, eu não quero aprender mais
nada, o que eu sei dá pra isso daí. Pra ensinar este povo? Pra que eu quero mais?” – E a gente ouve muito isso,
gente. E olha que soa penosamente dentro de nossos ouvidos uma coisa dessas. Porque eu acho que é você
mesmo se desvalorizando, você mesmo não buscando o aprender. E uma coisa muito séria, que nós temos que
ter consciência, é que nós estamos lidando com seres humanos. Que é mutável, né, todos os dias nós mudamos,
todos os seres humanos mudam, e nós temos uma grande responsabilidade frente a isso e frente à
aprendizagem de um ser humano. Eu acho muito complicado esta questão. (Profª do Ciclo II)
Leoni: [???] é o que a Lidia falou, querendo ou não, tem razão, porque se nós não estamos motivados a
aprender, como vamos estar motivados a ensinar? (Profª do Ciclo II)
Estar motivado e comprometido com a atividade profissional, atualizar-se, preocupar-
se em crescer profissionalmente é imprescindível na opinião dessa professora.
Os depoimentos que mostramos até aqui reforçam como a relação entre professor e
aluno é marcada pela complexidade e variedade, constituída de tensões e conflitos, em que
fatores sociais como pobreza e violência são determinantes. Tardif & Lessard (2005)
afirmam: a inclusão de alunos especiais; o número de alunos em sala de aula que dificulta o
atendimento ao aluno e resulta em maiores problemas disciplinares que estressam o professor;
a falta de base com que os alunos chegam; a pressão que escola, dirigentes, comunidade, pais,
enfim, a sociedade impõe; até mesmo as inovações e projetos de reforma que são impostos
numa embalagem de colaboradores dos professores que mais os sobrecarrega de tarefas a
serem executadas, fazem parte de um processo que desgasta o professor. Os depoimentos
reafirmam isto e ainda estabelecem um referencial aos professores de que eles são incapazes.
Profª não identificada: Tem crianças que têm problemas mentais, muitas que não têm condições de professora
161
nenhuma pra alfabetizar, entendeu? Se não tem como rotular, tem criança aqui que é deficiente e não é
classificada como deficiente... não é isso? (olha para o grupo). São pequenas deficiências e não têm classificação
[???] fica na sala o professor tem que ficar alfabetizando com um monte de crianças, mais o deficiente [???]
(vários professoras falam ao mesmo tempo) quando não é agressivo, tudo bem, mas tem aqueles agressivos que
atrapalham, indisciplinados,... (Profª do Ciclo I)
Outra professora completa: ... tira a atenção do outro. (Profª do Ciclo I)
Os depoimentos que seguem revelam como professoras, no seu papel de mãe, esperam
que as famílias de seus alunos “façam como elas” e colaborem na educação de seus filhos/
alunos. Um processo imbuído de solidariedade e afetividade para com o colega, mas também
um exemplo de que estas professoras não acreditam no trabalho realizado pelos professores
do Ciclo I:
Deusiane: Eu sou um exemplo, [???] eu saía da minha casa, “Eu vou falar com a professora sobre meu filho”.
Por que eu acompanho, acompanho [???] você sabe [???]. Eu chegava lá na porta, batia, deixava eu entrar tal,
eu conversava com ela, cumprimentava, olhava meu filho, conversava um pouquinho, e ia embora. Eu não
perguntava, não exigia, não falava absolutamente nada, nada. O que eu fazia? Eu pedia um caderno de um
aluno, uma menina que eu sabia que ia bem, acompanhava a matéria no caderno da menina e dava aula pro meu
filho em casa. (Profª do Ciclo II)
Celina: [...] tem a questão também do pai, da ajuda, meu filho entrou alfabetizado, mas eu também ajudei, e é
diferente, né? (Profª do Ciclo II)
Os projetos de reforma no sistema educacional, e o turbilhão de propostas e idéias
inovadoras tornam-se parte dos obstáculos que os professores precisam enfrentar. Na verdade,
os professores tentam se equilibrar entre idéias renovadoras e o tradicional (Gimeno Sacristán,
1998). Parece que a contestação, nesse sentido, é uma forma dos professores reagirem ao que
lhes impõem. Os depoimentos dos professores investigados sugerem isso:
Pauline: Então, mas como você também vai exigir a mesma coisa dos nossos? Como que uma mãe vai exigir que
a gente pegue pesado com ele se a maioria da sala não acompanha? Então, quando uma mãe vier exigir de mim,
eu vou falar isso: Olha, eu tenho que dar aula para a maioria, a maioria não acompanha. Então a minoria que
[???] daria para você forçar a um pouquinho mais a matéria com ele [???] Eu não vou dar aula para duas
camadas, mesmo porque diz que é antipedagógico, não é? (Nota-se uma certa ironia). Tem que dar uma
atividade para todos. (Profª do Ciclo II)
Uma profª não identificada complementa: Senão você exclui. (Profª do Ciclo II)
(Durante essa fala, outros professores fazem comentários de concordância com a professora, alguns se misturam
na gravação de tal maneira que algumas falas não são entendidas).
Paloma: [...] Nós não temos na verdade a quem recorrer, né, porque é uma coisa que vem pronta e tudo que às
vezes nós mostramos nos mostram ao contrário [...] (Profª do Ciclo II).
Para uma professora do Ciclo II, a criança deve chegar à escola com “vontade de
aprender”, “de querer saber tudo”, não cabe aos professores tal tarefa!
162
Leoni: Eu acho que não é só idade, é uma questão de vontade. A gente estava até comentando a respeito isso,
que depois de uma certa série eles perdem totalmente o interesse, a vontade. Então, eles vêm à escola
simplesmente pra brincar, pra conversar com o amigo, então, perdem essa vontade que eles têm no primeiro
ano, de aprender, de conhecer, de escrever, de querer saber de tudo. (Profª do Ciclo II)
A tarefa docente, segundo alguns depoimentos de professores do Ciclo II, é “passar
todo o conteúdo programado”, “cumprir o planejamento” e quando o aluno “se interessa
fica mais fácil:
Micaela: Eu tenho alunos aqui que vêm de uma escola (estadual e próxima) chamada (cita o nome da escola),
que vieram neste esquema, sabe assim, toda uma revisão completa, que têm essa base. Eu sei que tem um, dois,
que têm dificuldades, isso é normal, eu sei que a professora não vai fazer milagre, mas assim, eles sabem tudo,
eles falam assim: “Ah, professora, isso aqui eu lembro, eu já aprendi!”. Se estou dando uma revisão, passei a
matéria do primeiro e segundo bimestre, foi muito rápido, porque fluiu, passava e saía, eles faziam, eles
buscavam – “Se eu fizer assim a resposta é essa?” – pensamentos que os outros alunos que vêm dessa escola
(cita o nome da escola considerada por eles como um problema) não chegam nem perto.
[...] eu trago coisas diferentes, mas a sala, eu tenho algumas salas que eu me sinto muito bem, eu falo: “Nossa
essas eu queria, eu quero ficar com eles pra sempre, porque eu adoro”. Agora, é uma sala, as outras, você, sabe,
é aquela coisa desgastante, cansativa, você entra ninguém quer saber de nada, ninguém faz nada. [...] me mato,
faço isso, faço aquilo e ninguém faz nada. 15 dias que eles (os alunos) tiveram de férias, você pergunta uma
coisa que você passou na prova, ninguém responde, ninguém sabe, uma avaliação [???] ninguém responde,
ninguém sabe mais nada. Eu acho isso muito difícil [...] (Profª do Ciclo II)
Marielza: [...] eu tive, nós tivemos, lembra do (cita o nome de uma escola estadual) que a 5ª A que a gente teve,
era uma 5ª A que o (cita novamente o nome da escola) era de 1ª a 4ª. Aí mudou, e ficaram alguns, ficou uns 2, 3
anos, ainda até eliminar 1ª a 4ª pra ficar só ensino de fundamental II em diante. Eu tive uma 5ª série ma-ra-vi-
lho-sa, que era 4ª lá, de uma outra professora, era de lá, os professores de lá eram muito bons. Era uma 5ª série
maravilhosa, uma 5ª série que a gente tinha 2, 3 casos de alunos pré-alfabetizados, só! Para você ter uma idéia,
a gente que é da mesma área (olha para outro professor), eu consegui um livro completo, eu encerrei com eles,
desde, tudo, inclusive geometria, completo, ainda eu fiz revisão no final de ano. Mas era assim, você passava
atividade para eles, era coisa rápida, eles vinham com o caderno: “Professora, tá aqui” e era um atrás do
outro, sabe, era uma 5ª série maravilhosa. Eu tenho curiosidade de saber como eles estão hoje, porque foi a
melhor 5ª série que eu tive [...]. (Profª do Ciclo II)
Fullan & Hargreaves (2000) afirmam que a profissão docente é afetiva e intelectual e
muitos professores não estabelecem uma relação com a intelectualidade na resolução de seus
problemas da rotina diária, tornam-se “mártires morais” pelo apego a afetividade.
Contraditoriamente às reclamações de que “muitas vezes têm que fazer o papel dos pais...” e
de que têm de “ensinar bons modos”, há professores que colocam como “prazer da profissão”
contribuir para a “formação do aluno”:
Evandro: [...] eu sinto que ainda estou contribuindo, né, para a formação dele e é uma troca constantemente,
tanto eu como os alunos [...] (Prof. do Ciclo II)
Lídia: [...] eu acho muito gratificante, quando em uma conversa, ou numa explicação, eu vejo que eu
consegui passar algo, e às vezes nem dentro da própria disciplina, mas, muitas vezes, a gente faz o papel de
amigo, de pai, de mãe, de psicólogo, e a gente ver o resultado positivo nisso tudo, [...] são poucas as profissões
163
que te dá este prazer, que faz com que você se sinta realmente feliz e contribuindo para o crescimento do ser
humano [...]. (Profª do Ciclo II)
Do mesmo modo, há também os que comparam seu trabalho educativo a um “trabalho
empresarial”, em que “a produção é mais importante pela sua quantidade” e em suas tarefas
o que prevalece são atividades burocráticas”. Tais depoimentos expressam, claramente, o
chamado processo de “intensificação da atividade docente”, descrito por Fullan & Hargreaves
(2000) e Apple (1995).
Segundo esses autores, trata-se de atividades estabelecidas, na maioria das vezes, por
idéias e projetos de reforma no sistema educacional que não verdade testam e monitoram
alunos e professores, impondo a estes últimos uma sobrecarga de trabalho. Os efeitos dessa
intensificação são muitos: degradação de privilégios que vão do mais trivial como não ter
tempo para ir ao banheiro, até não ter tempo para se aperfeiçoar na profissão; o professor
torna-se mais dependente de situações previamente formuladas por outros especialistas
ampliando sua subordinação a regras burocráticas; intensifica-se seu isolamento e promove
sua “desqualificação mental”, já que o professor deixa de buscar as soluções para seus
problemas em nível intelectual, o que intensifica sua dependência de outros especialistas.
Vejamos como os professores investigados se referem a esse processo:
Evandro: [...] esta reflexão que você tá fazendo com todos nós (dirigindo-se à pesquisadora), a gente teve uma
reflexão antes de terminar, de entrar em recesso, eu coloquei também para a diretora que essas reflexões teriam
que colocar numa situação em que a gente busque soluções. Não é só uma hora como essa que a gente vai achar.
[...] para buscar realmente as soluções pros problemas que cada escola tá passando... Mas a preocupação não é
só dar aulas, parar... na minha maneira de ver isso está virando produção, a gente está dentro de uma empresa
que fica só na produção. Tem que estar cumprindo os dias letivos [...]
Eu acho que as escolas tinham que ter autonomia da parte da direção para ter estes momentos! Mas é para agir,
não simplesmente parar para fazer a reflexão! Tentar ver [???] porque nós temos nossos problemas aqui na
escola, com alunos, [???] só que é difícil para ser resolvido, porque ao mesmo tempo que se discute no HTPC, ao
mesmo tempo começa aquela correria: é prova, é projeto, é isto e aquilo, e as coisas não começam a
caminhar. (Prof. do Ciclo II)
Berenice: Resumindo Evandro, o que acontece, às vezes, a gente tem que resolver um monte de problemas, às
vezes paramos para falar sobre aquele problema, aí fica resolvido que será tomado atitude, aí o tempo passa, aí
vêm outros problemas e aqueles que ficaram para trás e tudo [???] (Profª do Ciclo II)
Leoni: [...] dois cargos, três cargos, final de semana, onde dá pra se manter a gente vai tentando. (Profª do Ciclo
II)
Gerson: Quer dizer, não se constrói conhecimento, só se reproduz [...] (Prof. do Ciclo II).
A subordinação já aparece a exemplo dos depoimentos a seguir e os problemas são
ignorados em nome da hierarquia. Ao questionar o grupo de professores sobre a diretoria de
164
ensino saber sobre as dificuldades dos alunos que chegam de outra escola, uma professora
responde:
Lídia: Você já parou pra pensar o problema que vai ser entre direções? Não estou afirmando, mas é uma
suposição muito séria! Porque você já parou pra pensar o conflito que pode haver? (Profª do Ciclo II)
Marcos Rogério: Você mexe, aí você não está mexendo com o individual, você está mexendo com a escola e você
tem que respeitar a hierarquia. Tem algumas atitudes que são de competência de quem está no cargo,
entendeu? Então é essa pessoa que deveria tomar a iniciativa de estar promovendo um encontro, chamar o
pessoal pra conversa, porque... existe o problema? Existe. Então vamos sentar, e vamos ver o que está
acontecendo. (Professora do Ciclo II)
A questão da metodologia de ensino também é expressa por outros professores:
Priscila: [...]Eu particularmente tenho uma tese em relação às crianças que não aprendem a ler... eu
acho que é uma questão de metodologia [...].
[...] um acompanhamento pedagógico, um trabalho sistematizado com aquele aluno com dificuldade...
tem problema familiar?... tem, lógico que tem, vai ter pai que não escreve, lógico... (uma outra
professora a interrompe dizendo que é um problema do sistema) (Profª do Ciclo I)
No entanto, a esse respeito parece ser muito mais enfatizada a percepção do próprio
trabalho como uma atividade profissional que “não é valorizada” e na qual “nem recursos
materiais mínimos se tem”:
Professora não identificada: [...] nós temos um mínimo de material pra trabalhar, [???] não é nem humano,
sabe, físicos, xerox, material, livros diversificados... (Profª do Ciclo I)
Tereza: [...]Escola que a lousa tá esburacada, que o giz não escreve [...] (Profª do Ciclo I)
Queuzia: [..] realmente não tem lousa que preste, não tem giz [...]. Muitas vezes o professor acaba tirando do
próprio bolso, de um salário que já é mínimo, pra poder dá um recurso pro aluno, trazer algum jogo, pra tentar
fazer uma aula diversificada. (Profª do Ciclo I)
Vale observar aqui que os depoimentos dos professores do Ciclo II não mencionam a
falta de materiais para realização de seu trabalho em sala de aula, nem reclamam de materiais
indisponíveis. Dias-da-Silva (1997) já apontava tal aspecto em sua pesquisa: professores de 5ª
série do Ensino Fundamental pouco exploram materiais ilustrativos ou lúdicos,
desenvolvendo atividades, na sua maioria, orais e gráficas. O que suscita algumas indagações,
ainda que não objetivo desta pesquisa respondê-las: Para eles, material não é um problema?
Eles não o utilizam, ou o utilizam com menor freqüência? Acostumaram-se a não considerar
isso importante? Limitam-se ao livro didático? De que forma isso pode estar ligado à
organização das licenciaturas nas quais se formam esses profissionais?
165
O que os professores dizem das relações que se estabelecem entre eles?
Os dados obtidos permitiram-nos constatar que não há uma integração entre os
professores dos dois ciclos do Ensino Fundamental. São raros os que se conhecem e
conversam entre si. E quando a escola, por iniciativa da direção, possibilita uma integração,
mesmo que mínima, o fato de um conhecer um pouco mais o trabalho do outro já faz com que
a visão que um tem do outro e do trabalho pedagógico realizado pelo outro seja mais positiva.
No entanto, conhecer o trabalho do outro não está relacionado com o fato dos
professores estarem em uma única unidade escolar, mas sim, relacionado com o as
possibilidades ou não que estes grupos de professores têm para conversarem, trocarem idéias,
etc – o que depende da direção da escola ou de uma liderança dos grupos. Os depoimentos
obtidos sugerem que professores parecem estar habituados a fazer parte de grupos distintos; as
tensões entre os grupos parecem já estar institucionalizadas, de maneira que os professores do
Ciclo I e os professores do Ciclo II têm suas ações organizadas pelos padrões de conduta
estabelecidos entre eles. Os professores mais novos na carreira sentem-se tão desmotivados
quanto os mais experientes, mesmo não conhecendo o trabalho, a formação e o pensamento
do outro profissional de forma mais aprofundada. Suas visões e percepções uns dos outros
parecem já estar sedimentadas.
Ao serem questionados sobre o contato que têm com os professores do outro Ciclo,
eles respondem:
Pauline: [...] Na verdade [...] não há um entrosamento, reuniões assim, abertas, não há. (Profª do Ciclo II)
Pesquisadora: Vocês têm contato com as professora de 1ª a 4ª? Vocês conversam? Vocês trocam experiências?
Antes do término da pergunta alguns professores se manifestam.
Marilda: A gente tem a 4ª série à tarde. O ano passado, eu em especial conversava muito com elas, este ano eu
converso bastante com as duas..(Profª do Ciclo II)
Inicia-se um diálogo entre a Marilda e a coordenadora pedagógica que, até o momento, não havia se manifestado.
Como elas falam praticamente juntas, é difícil identificar o diálogo completo. O que a coordenadora disse
relaciona-se com o fato de que essas professoras com as quais a professora 6 conversa são professoras novas, e as
professoras mais antigas, que acompanham o aluno desde a 1ª série, estão no período da manhã e não há contato.
Paloma: Na minha opinião, não é só na escola pública, porque eu também trabalho na escola particular (no
setor administrativo). Eu acho que esse quesito da discussão sobre o [???] do aluno, de 1ª a 4ª série e 5ª a 8ª
série, eu acho que tem déficit tanto aqui quanto na escola particular, porque não há este tipo de discussão, de
como é desenvolvido o trabalho de 1ª a 4ª, parece que são duas coisas que andam paralelamente. Tem o
166
desenvolvimento de 5ª a 8ª e tem o desenvolvimento de 1ª a 4ª, a reunião de 1ª a 4ª é feita num dia, a de 5ª a
8ª..., não há um... (Profª do Ciclo II)
A coordenadora pedagógica do Ensino Médio complementa: Entrosamento.
Durante esta fala observa-se um diálogo paralelo entre duas professoras que pouco se manifestaram.
Paloma continua: Isso não é tão um círculo, que um depende do outro. Parece que são... (faz gestos com as
mãos que sinalizam separação e busca palavras para se expressar).
Alguma professora complementa: Duas esferas.
Paloma: Isso, duas esferas e não há união dessas duas esferas. Eu acho que se acontecesse isso, talvez, né, nós
poderíamos ter, obter outro resultado. Até porque, aqui a gente tem de 1ª a 4ª, mas a maioria das escolas
públicas hoje são divididas, então, quebra-se um elo e, vai para outra unidade, com novos professores, nova
vida, né? Aqui eles ainda têm o privilégio de continuar, então, de vez em quando vem um professor ou não, na
minha escola particular, eles lá têm de 1ª a 8ª série, eles conhecem, mas assim, não têm um contato direto com
o professor de 5ª a 8ª, eu acho que isso daí poderia tá mudando na escola, [???].
Pergunto se alguém mais gostaria de comentar o que a professora Paloma falou.
Após algum silêncio, a coordenadora pedagógica do Ensino Médio se manifesta: A gente percebe também que
quando há algum problema a ser resolvido, buscam-se culpados pela situação, entendeu? Então, você fala
assim: - É o professor de 1ª a 4ª . O professor de 1ª a 4ª fala: - Não, os culpados são vocês porque o aluno não
era assim. Sempre se procura um culpado e nunca resolveu o problema que realmente existe [...]
Gerson: O texto (de apoio) fala desse conflito entre o ciclo básico e o fundamental e é interessante porque, na
verdade, deve haver uma continuidade, né. Todos aqui sabem que os alunos têm que ser alfabetizados até a 8ª
série, só que na prática não é o que acontece, porque se ele vem alfabetizado do ciclo básico, não haverá uma
continuidade no fundamental. Sem considerar o fato que as escolas do Estado são todas da mesma rede, mas são
completamente diferentes, e às vezes, em uma escola você tem três escolas que são os três períodos: manhã,
tarde e noite, aí, [???] tem o conflito. (Prof. do Ciclo II)
A pesquisadora questiona porque isto acontece.
Mariângela: Ao tratamento que é dado. (Profª do Ciclo II)
Pesquisadora: Você diz tratamento dado a quem?
Mariângela: Aos determinados turnos.
A pesquisadora pergunta se ela está falando da atenção que é dada aos turnos.
Ela sinaliza com a cabeça que sim.
Pesquisadora (olhando para o grupo): Vocês acham que existe esta diferença de atenção aos diferentes turnos?
Percebe-se um certo receio do grupo em se manifestar, eles apenas sinalizam com a cabeça que sim, mas de forma
tímida.
Pesquisadora: Alguém aqui trabalha em mais de uma escola?
Vários professores levantam a mão.
Pesquisadora: E como é que é isso? É assim em todas as escolas? Que experiência vocês têm?
Mariângela: Eu trabalhei muitos anos numa escola que só existia isso, exatamente como aqui, aliás, pior ainda,
a direção nunca ia à noite, nunca, e a noite começou a ficar diferente, ela só ficava à tarde, de manhã, era bolo,
chocolate, de noite era só porrada em cima dos professores. (Alguns professores riem e não é possível identificar
o final de sua fala)
167
Ana Margarethe: Eu acho que é uma questão de gestão, sim, né. Eu trabalho em outra escola, de 1ª a 4ª e
estava emprestada numa escola do infantil e foi aí que percebeu-se a diferença, quer dizer, do infantil para o
fundamental, de 1ª a 4ª , também tinha essa cobrança, porque na hora de chegar na 1ª série, falavam: “- Pô, o
que que essas crianças ficaram fazendo três anos, que não sabem cortar, não sabem fazer isso, não sabem
[???]” - entendeu, aí, o grupo gestor da escola começou a perceber: “- Peraí, então, o que é que a gente pode
trabalhar junto, né, para tentar remediar essas coisas ou até sanar algumas questões”. Foi aí que a escola
também percebeu qual era o papel também da Educação Infantil. .(Profª dos Ciclos I e II)
A pesquisadora pergunta se ela está falando de uma escola particular, municipal ou estadual. Ela responde que é
municipal e explica que as aulas estavam acontecendo numa escola de Educação Infantil porque a escola deles (de
Ciclo I) estava sendo construída.
Há que se lembrar aqui também que, em outras oportunidades, foi observado que
realmente os professores de 5ª a 8ª séries são um “estorvo” para a direção. Em um dos
primeiros encontros do HTPC, antes de iniciar a discussão com os professores de 1ª a 4ª séries
da Escola B, a Diretora conversava com o grupo sobre a proximidade da Feira Cultural e fazia
comentários sobre a “não participação e não colaboração” dos professores de 5ª a 8ª séries
em eventos coletivos anteriores como a Festa Junina, deixando claro que não poderia “contar
com tais professores. Os professores de 5ª a 8ª séries, por sua vez, em conversa informal na
sala dos professores, mostraram-se insatisfeitos com a coordenação e direção, tanto no que se
refere à falta de autoridade com os alunos indisciplinados, quanto na atuação pedagógica com
os professores. Em conversa com a Coordenadora Pedagógica do Ensino Fundamental da
Escola B, constatou-se que ela não participa dos HTPCs devido ao horário em que acontecem
(final do período da tarde, início do período da noite). Nesses horários é a Coordenadora do
Ensino Médio quem participa desses encontros. Outro fator emblemático pode ser destacado
na entrevista com a diretora, que informou sua intenção de “eliminar” as classes de 5ª a 8ª
séries e de Ensino Médio da escola.
Ao expressarem seu descontentamento com o tratamento que é dado aos professores
dos diferentes turnos e ciclos, os professores nos remetem ao clima organizacional em que
vivem.
Vimos em Brunet (1995) que as variáveis catalizadoras dos comportamentos dos
professores (estrutura, processo organizacional e variáveis comportamentais), da forma como
estão expressas e foram observadas nessa pesquisa, indicam que o clima organizacional da
escola em que estão inseridos não se traduz de forma positiva. A escola, na sua caracterização
física, nas suas dimensões hierárquicas, no nível de centralização, na forma como é gerida, na
falta de comunicação entre os professores até de um mesmo Ciclo, nos conflitos que não são
resolvidos, nos comportamentos dos professores e demais agentes da escola, no
comportamento do grupo como coletivo escolar, supõe que o clima organizacional
168
estabelecido reforça a passividade e acomodação dos professores frente ao seu próprio
crescimento profissional. E sem o crescimento profissional dos professores, não há,
evidentemente, condições para mudanças qualitativas e melhorias no processo educacional.
A experiência dos professores investigados em escolas nas quais funcionam os dois
Ciclos do Ensino Fundamental leva-os a opiniões diversas sobre a integração entre os
professores. Uma professora do Ciclo II, ao ser questionada sobre o fato da escola ter alunos
dos dois Ciclos, afirma:
A pesquisadora fala sobre o fato de a escola ter alunos de 1ª a 8ª e pergunta: Vocês percebem diferenças do aluno
que sai da 4ª série daqui, ou que vem de outra escola, para a 5ª série?
Nota-se o professor fazendo gestos como que buscando palavras para se expressar.
Marilda: A diferença que eu acho que a gente sente é assim, quando o aluno já tá aqui, por exemplo, você tem
dificuldade com tal aluno, você já tem, ali mais fácil, assim, para perguntar ali: Como que ele era de 1ª a 4ª?;
Como era a evolução dele? Igual a gente tem aqui caso de inclusão: Como era o ano passado? Como é que você
fazia pra trabalhar com ela? Então o acesso é mais fácil pra gente. (Profª do Ciclo II)
Outros professores acreditam que não há integração mesmo com os professores na
mesma escola:
Pesquisadora: Alguns de vocês, no primeiro encontro, verbalizaram que trabalham aqui há muito tempo, houve
uma época em que existia de 1ª a 4ª junto com 5ª a 8ª? Vocês percebem diferenças?
Berenice: “Não sei, porque assim em relação ao convívio é meio complicado. Existem sempre as duas coisas,
então não dá para dizer que isso não existia. Então não dá para dizer que a culpa é de 1ª a 4ª, é do fundamental,
e a gente nunca chegava num acordo.( Profª do Ciclo II)
Uma profª não identificada do Ciclo II interrompe: “Existem diferenças sim, muitas diferenças.”
Vários professores falam, às vezes, em diálogos paralelos, em tom de voz baixo, dificultando a identificação das
falas. As falas se voltavam à questão dos pais e a não interação deles com a aprendizagem do aluno.
Alguns acreditam que em tais escolas possa haver uma integração maior, pois “um
pode conhecer melhor o trabalho do outro”:
Paloma: Isso, duas esferas e não há união dessas duas esferas. Eu acho que se acontecesse isso, talvez, né, nós
poderíamos ter, obter, outro resultado. Até porque, aqui a gente tem de 1ª a 4ª, mas a maioria das escolas
públicas hoje são divididas, então, quebra-se um elo e, vai para outra unidade, com novos professores nova
vida, né. Aqui eles ainda têm o privilégio de continuar, então, de vez em quando vem um professor ou não, na
minha escola particular, eles, lá têm de 1ª a 8ª série, eles conhecem, mas assim, não têm um contato direto com
o professor de 5ª a 8ª, eu acho que isso daí poderia tá mudando na escola, [???].(Profª do Ciclo II)
Micaela: A escola que eu conheço, que é (cita o nome de uma escola estadual de um município da Grande São
Paulo) e que a Helena também conhece, eles assim, com os professores... primeiro, são professores que não têm
só Magistério, pelo contato que eu tenho, são sempre que... não é uma escola de periferia, é uma escola de
centro, e a minoria lá só tem o Magistério, 1 ou 2 professores no máximo, a maioria lá já tem o superior, já tem
169
vários cursos que a prefeitura oferece, eles fazem, meu pai mesmo levava as professoras no sábado pra fazer
curso, desta escola... assim, é completamente diferente o aprendizado, eles não têm o que falar do professor de 5ª
a 8ª porque o aluno chega como a gente quer que chegue. É o que eu queria, um aluno meu chegasse na 5ª série,
é o que eles fazem lá. Ele chega na 5ª série do jeito que tem que chegar, com toda uma base perfeita. Eu tenho
alunos aqui que vêm de uma escola (estadual e próxima) chamada (cita o nome da escola), que vieram neste
esquema, sabe assim, toda uma revisão completa, que têm essa base. Eu sei que tem um, dois, que têm
dificuldades, isso é normal, eu sei que a professora não vai fazer milagre, mas assim, eles sabem tudo, eles falam
assim: “Ah, professora, isso aqui eu lembro, eu já aprendi!”. Se estou dando uma revisão, passei a matéria do
primeiro e segundo bimestre, foi muito rápido, porque fluiu, passava e saía, eles faziam, eles buscavam – “Se eu
fizer assim a resposta é essa?” – pensamentos que os outros alunos que vêm dessa escola (cita o nome da escola
considerada por eles como um problema) não chegam nem perto. (Profª do Ciclo II)
[...]
Marcos Rogério: [???] essas escolas [...] são elas mesmas que preparam os alunos para o ensino fundamental,
ou seja, quem vem de 1ª a 4ª continua na mesma escola de 5ª a 8ª, essa [???] você faz um grupo, o grupo que dá
aula de 1ª a 4ª convive com o grupo que dá aula de 5ª a 8ª, é a mesma escola, eles vão começar lá na 1ª e vão
sair de lá na 8ª. (Prof. do Ciclo II)
A pesquisadora pergunta a ele se em uma escola com os dois ciclos a integração entre os professores seria mais
viável.
Marcos Rogério: Eu acho que facilita sim, porque você tem uma integração que aqui a gente não tem, porque
aqui começa no ciclo II. (Prof. do Ciclo II)
Marielza: Mas eu tive, nós tivemos, lembra do (cita o nome de uma escola estadual) que a 5ª A que a gente teve,
era uma 5ª A que o (cita novamente o nome da escola) era de 1ª a 4ª. Aí mudou, e ficaram alguns, ficou uns 2, 3
anos ainda, até eliminar 1ª a 4ª pra ficar só ensino de fundamental II em diante. Eu tive uma 5ª série ma-ra-vi-
lho-sa, que era 4ª lá, de uma outra professora, era de lá, os professores de lá eram muito bons. Era uma 5ª
série maravilhosa, uma 5ª série que a gente tinha 2, 3 casos de alunos pré-alfabetizados, só! (Profª do Ciclo II)
A escola citada pela Profª Micaela no depoimento anterior foi motivo de debate nos
encontros. Os professores do Ciclo II se queixam que os alunos que vêm dessa escola estadual
que só tem o Ciclo I ingressam na 5ª série do Ensino Fundamental com muitas dificuldades de
alfabetização. Os professores chegam a expressar que desejam conhecer os professores desta
escola e o trabalho pedagógico realizado por eles. No ano de 2005, os professores falaram em
reunião de pais, em tom de reclamação e crítica, referindo-se às dificuldades dos alunos dessa
escola. Segundo os professores, a diretora dessa escola a que se referiram ficou sabendo e
veio até a esta escola “tirar satisfação” (em seus depoimentos a esse respeito, a palavra ética
foi citada várias vezes). Apesar disso, e dos apelos da diretora da escola em que esta pesquisa
foi realizada para que parassem de “falar mal da escola de onde os alunos chegam para a 5ª
série”, eles dizem: “falamos mesmo mal dessa escola, porque os alunos não saem de lá
alfabetizados”. Vejamos tais depoimentos mais detalhadamente:
Pauline: [???] a 5ª série daqui, eu não dou aula pra 5ª este ano, mas dá para diferenciar os alunos (Profª do
Ciclo II).
Gisele: É da escola que vem. Eu tive o desprazer de pegar três turmas que vêm desse (cita um nome de uma
170
escola). Foram as três piores.
[...]
Gisele: Do (cita o nome da escola), pelo amor de Deus, o que é que aquilo, eu me pergunto. E não é só este
ano não, é todos os anos. Alguma coisa [???].
Lídia: Eu gostaria de conhecer porque eu fico preocupada com esta escola (referindo-se à escola que não
prepara o aluno para a 5ª série). Eu sempre falo umas besteiras, e eu não posso nem falar agora porque está
filmando. (Os demais professores riem e vários falam ao mesmo tempo). Ela olha para a câmera, pede para dar
um ‘stop’ e fala: Não, sabe o que eu falo, eu falo assim: “Gente, deveria ser jogado uma bomba nesta escola”. É
porque você não tem noção da maneira como os alunos vêm de lá! E a gente fica: “Mas não dá para entender
(e olha para o grupo, como que pedindo aceitação) Eu estou falando besteira? (Profª do Ciclo II)
Celina: Embora não são todos. (Profª do Ciclo II)
Vários professores falam ao mesmo tempo, uns defendendo que não são todos, outros dizendo que é a maioria.
Deusiane que chegou já durante a discussão verbaliza que tem um aluno que é de lá, e é ótimo. Lídia rebate que é
só um aluno e alguém complementa que é um aluno numa sala de 35 alunos.
Lídia se sobressai na discussão: Então, vamos falar sobre a 6ª C e a 6ª B, que vieram de lá? Então assim, eu
questiono mesmo o trabalho dessa escola, eu questiono. Eu gostaria de saber o que acontece nessa escola,
porque não é possível, não é possível, tantos alunos, numa sala com 40 alunos e a gente tem ali, 2, 3 alunos,
que tem um rendimento. Alguma coisa tá errada! (Profª do Ciclo II)
Evandro: Mas o que a Lídia falou, aí é que tá, esta reflexão que você tá fazendo com todos nós (dirigindo-se à
pesquisadora), a gente teve uma reflexão antes de terminar, de entrar em recesso, eu coloquei também para a
diretora que essas reflexões teriam que colocar numa situação em que a gente busque soluções. Não é só uma
hora como essa que a gente vai achar. Se realmente [???] para buscar realmente as soluções pros problemas que
cada escola tá passando... [...] Se parar a escola lá, e parar a escola aqui, não pode, o que que vai justificar na
delegacia de ensino, que a escola está parando uma semana, mas é uma semana que a gente vai ganhar muito.
Porque de repente a dia, se ela tiver perante os professores, perante a escola e saber o que está acontecendo,
a visão dela começa a ser outra! (Prof.do Ciclo II)
Lídia concorda: Com certeza, porque eu preciso entender, gente! Eu estou desde o ano passado falando que eu
preciso entender o que acontece nesta escola, porque olha! (Profª do Ciclo II)
Evandro continua: Eu acho que as escolas tinham que ter autonomia da parte da direção para ter estes
momentos! Mas é para agir, não simplesmente parar para fazer a reflexão! Tentar ver [...] (Prof. do Ciclo II)
Lídia: [...]Por isso que eu gostaria de poder entender essa escola, de acompanhar um pouco o trabalho
dela.Porque eu fico me questionando mesmo, porque eu nunca vi nada igual na minha vida, desde que eu dou
aula, eu nunca vi nada igual, e olha que eu já trabalhei em periferia, sempre em periferia, eu nunca vi.
O tempo é sempre considerado um “vilão” para os professores. A estrutura temporal
da organização escolar é um dos aspectos que mais exige atenção dos professores. Os
professores sentem necessidade de se expressarem, de serem ouvidos, de conversarem entre
si, de falarem sobre suas dificuldades, seus medos e anseios, para resolverem os problemas e
conflitos que lhes afligem. De maneira explícita e implícita, isto aparece nos depoimentos dos
dois grupos. Um professor do Ciclo II, um pouco antes do encerramento do segundo encontro,
precisando sair para dar aula no período que se iniciava, propõe que encontros como aquele
aconteçam com mais tempo, isto é, que tais encontros sejam realizados em horário de aula e
que a direção estabeleça a suspensão de aulas ou organize atividades que substituam as aulas
para que os professores possam ser liberados para que os encontros ocorram. As poucas vezes
171
que se reúnem os professores de um mesmo Ciclo, como no HTPC, por exemplo, são
momentos que, para eles, poderiam ser melhor aproveitados. Aliás, em conversa informal
com os professores de 5ª a 8ª séries na sala dos professores, sobre nossos encontros
acontecerem durante o HTPC e sobre a preocupação de atrapalhar este momento, eles
transparecem, inclusive de forma irônica, que com certeza não havia motivos para tal
preocupação, dando a entender que é um momento de pouca importância. Vejamos:
Queuzia: [...] professor de 5ª a 8ª, [...] ele entra numa sala de aula, ele tem 50 minutos de aula, tirando para
fazer chamada, são 10 minutos, sobra pra ele 40 minutos, tirando o tempo que ele vai chamar a atenção do
aluno, quanto tempo sobrou pra ele realmente dar aula?.[...] (Profª do Ciclo I)
Lídia: [...] nossa grande discussão diariamente em sala de professor, em HTPC, o que que é? – O que eu faço
com tal sala? Gente, o que eu faço com tal aluno? – e a gente fica nessa busca constante, nessa coisa que dói,
que arde e que você fica agoniada o tempo todo, né. (Profª do Ciclo II)
Evandro: [...] porque nós temos nossos problemas aqui na escola, com alunos, [???] que é difícil para ser
resolvido, porque ao mesmo tempo que se discute no HTPC, ao mesmo tempo começa aquela correria: é prova,
é projeto, é isto e aquilo, e as coisas não começam a caminhar. (Prof. do Ciclo II)
Berenice: [...] o que acontece, às vezes, a gente tem que resolver um monte de problemas, às vezes paramos
para falar sobre aquele problema, aí fica resolvido que será tomado atitude, aí o tempo passa, aí vem outros
problemas e aqueles que ficaram para trás [...] (Profª do Ciclo II)
Vimos como os professores estão inseridos em processos de intensificação e de
proletarização do trabalho docente. Já discutimos sobre a autonomia relativa do professor que
vem se tornando mero executor de tarefas, excluído das decisões que se referem à sua própria
atividade profissional, e sobre o aumento do número de especialistas que surgem com
reformas e “fórmulas mágicas”, impondo tarefas cada vez mais burocráticas e estabelecendo
mecanismos de controle e de avaliação das atividades docentes. A conseqüência desse
processo, para o professor, é a perda do controle da sua própria atividade profissional,
inserindo-o em um processo de desqualificação da própria profissão docente (ver a respeito
em: Nóvoa, 1998; Fernandes Enguita, 1991; Tardif & Lessard, 2005; Apple & Teitelbaun,
1991; Apple, 1995; Fullan & Hargreaves, 2000).
Não há tempo sequer para integração entres os professores de um mesmo ciclo. Com
isso, o trabalho docente cai no isolamento, uma das características da cultura docente
igualmente apontada por autores como Pérez Gómez (2001) e Tardif & Lessard (2005).
Vejamos como se expressam os professores investigados:
Gerson: [...] sem contar a falta de tempo, porque trabalha nesta escola, em outra escola, em outra escola,
então você fala bom dia, boa tarde e tchau.
[...] você não conversa, muito difícil, enquanto ela está saindo (aponta para a professora Ana Margarethe) eu
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estou chegando na escola, ela vai para a prefeitura, eu estou chegando na escola, eu já vim de outra escola etc,
é difícil. (Prof. do Ciclo II).
A profª Mariângela fala junto, e o que se identifica da sua fala é algo sobre encontrar outro professor e nem saber
que ele trabalha na mesma escola que você.
Gerson continua: o aluno que foi na 3ª e 4ª série dela (aponta para uma profª), e agora é meu aluno na 5ª e na
série, mas nós nem conversamos sobre ele, não dá tempo. (Prof. do Ciclo II).
Ana Margarethe: [...] quem nem, eu aqui dô aula de Artes, nessa escola. Às vezes, um colega meu passa na
frente da minha sala e vê aquela bagunça, mas é aquela bagunça organizada, eles tão tentando se entender. E aí
falam: “- Pôxa, essa professora não é uma boa professora porque é uma bagunça”[...].( Profª do Ciclo II)
Paloma: Às vezes, não é só falta de integração de 1ª a 4ª e 5ª a 8ª, às vezes é da mesma sala. A gente pode dar
aula na mesma sala, só que só tem duas aulas por semana, quatro aulas por semana, (toca o sinal de entrada
dos alunos do período noturno) nessa escola, então, eu não tenho tempo de chegar e, [...] como que é, às vezes
professores que dão aula na mesma sala não têm tempo de se comunicar, porque quem tem poucas aulas, cada
hora numa escola, então, essa comunicação, a gente só vai ter quando? Num dia de uma reunião de conselho,
alguma data [???], mas a gente tem outras coisas a ser desenvolvidas. Então, é como ele falou, ‘n’ fatores. Eu
acho que o principal é isso, é a falta de tempo que nós temos. (Profª do Ciclo II)
Diante do isolamento, pela ausência de contrastes, de troca de experiências, de
possibilidades, idéias, etc, os professores se colocam numa postura de passividade, ou de
reprodução conservadora e de aceitação acrítica da cultura social que domina a escola. O
isolamento estimula a competitividade e impede o enriquecimento mútuo contribuindo para
que o professor adapte-se à rotina escolar sem a reflexão que tal rotina exige. Tais aspectos
fazem parte da cultura escolar apontada por Pérez Gómez (2001) – como instituição social. A
escola gera e estimula tradições, costumes, rotinas, rituais e inércias, e se esforça em
conservá-los e reproduzi-los.
Os depoimentos dos professores investigados revelam que esta cultura está tão
fortemente enraizada, que alguns professores do Ciclo II acreditam que a integração entre os
professores dos dois ciclos do Ensino Fundamental seja algo difícil ou inviável
:
Marcos Rogério: [...] o grupo de 1ª a 4ª também deveria estar aberto para sentar e conversar, mas nem sempre
é fácil enfrentar o problema, porque realmente, a impressão que dá é que eles, a visão que eles têm da gente, é
que a gente joga toda a culpa neles. (Prof. do Ciclo II)
Pesquisadora: Vocês acreditam que eles pensam isso?
Evandro responde: Eu acredito que sim, que eles têm uma certa resistência em abrir isso. Inclusive já houve
comentários que a diretora da outra escola falou não sei o quê, que o professor não sei o quê, e acabou no fala,
fala e ninguém falou. Vamos sentar e fazer uma reunião, expor os problemas de um, expor os problemas de
outro, pra ver se a gente pode estar fazendo alguma coisa em conjunto pra tá mudando essa situação. (Prof. do
Ciclo II)
Pesquisadora: Você está me dizendo então que falta esta integração?
Ele responde que falta e Lídia complementa: E foi pedido isso, né Marcos Rogério, acho que foi no ano passado,
a gente pediu para a direção, para a coordenação, pra gente conhecer, pra gente saber, talvez eles viessem
173
aqui, os professores, para nos ajudar, porque nós estávamos de mãos atadas e...[...] (Profª do Ciclo II)
Berenice interrompe a fala da professora 14: Apesar desses problemas que nós temos, não é só questão dessa
escola. Quem passou por outras escolas sabe que o problema é muito mais grave do que a gente está... (Profª do
Ciclo II)
Antes de ela terminar sua fala, Lídia e Marcos Rogério se manifestam. E os três falam ao mesmo tempo.
A fala de Lídia se sobressai: [???] mas é a nossa realidade, é o que estamos encontrando, é o que temos em
nossas mãos, E assim, se repetiu, né? Pelo menos o grupo do ano passado e o grupo deste ano, o ano passado
aconteceu isso e este ano a mesma coisa. (Profª do Ciclo II)
Gerson: Eu penso mais um pouco além, eu vejo [???] que é uma questão de mentalidade. O PEB I tem uma
mentalidade diferente do PEB II. Chego a dizer que é como água e óleo. (ouve-se um burburinho do grupo,
alguns parecem discordar dele e alguém fala algo que ele responde como sendo uma exceção. (O burburinho
continua até que sua fala sobressai) [???] metodologia diferente, forma de raciocínio e pensamentos
completamente diferentes. Então falta interdisciplinaridade, esse é o problema, né,[...] (Prof. do Ciclo II)
A pesquisadora retoma a fala sobre os professores não se misturarem, pois são água e óleo’ e questiona o grupo
com relação à integração entre os professores dos dois ciclos, perguntando a eles se acreditam nesta possibilidade,
ou seria mais uma proposta que não daria resultado.
Gerson: Mais uma utopia. O nome desta instituição é unidade escolar, só que, na prática, só o escolar, porque
unidade... (sua expressão é de que não funciona como uma unidade), fica uma lacuna, [...] pelos vários motivos
que foram colocados aqui: a questão de tempo, mal assalariado, tem dois, três empregos. Esta integração é
complexa [...]. (Professor do Ciclo II)
Lílian: As próprias reuniões pedagógicas existem muitas diferenças de tema, às vezes é ao mesmo tempo é um
tema, mas acaba divergindo, não tem jeito. O papo de 1ª a 4ª, o assunto, acaba sendo diferente do de 5ª a 8ª.
(Profª do Ciclo II)
Pesquisadora: Porque vocês acham que tem essa diferença?
Vários professores falam ao mesmo tempo. A pesquisadora tenta organizar o debate retomando a fala de Gerson,
que diz que os professores de 1ª a 4ª e 5ª a 8ª são como “água e óleo”, e a fala da Ana Margarethe, que disse que
não é bem assim, que ela dá aula nos dois níveis.
Ana Margarethe fala: Eu penso assim, quando eu fiz Magistério, eu fiz o projeto CEFAM que na época era
projeto, era uma outra... (Profª dos Ciclos I e II)
Marilda completa: A formação. (Profª do Ciclo II)
A questão da formação profissional diferenciada aparece também na discussão dos
professores do Ciclo I que não vêem possibilidade de integração. Nas diversas vezes em que
foram questionados sobre a integração entre os professores dos dois ciclos, os professores do
Ciclo I mudavam de assunto, ignoravam a pergunta ou ficavam em silêncio, revelando que
este é um problema da vida cotidiana, não integrado a ela. Esta é uma outra forma, segundo
Berger & Luckmann (2000) dos indivíduos resolverem os problemas da realidade da rotina
diária: não os integrando à sua realidade não problemática.
174
Pesquisadora: Vocês têm contato com os professores de 5ª a 8ª série? O que eles falam e pensam sobre o
trabalho de 1ª a 4ª? (Enquanto pergunto, uma professora, que não se manifestou em nenhum momento, se retira
da sala). (Prof. do Ciclo I)
Denise, que vem ouvindo atentamente a discussão, se pronuncia: Eu acho que essa preocupação que a Priscila
falou do professor de 1ª a 4ª, estimular, criar um aluno crítico, não acontece de 5ª a 8ª, por isso que eles
querem o aluno pronto, pra poder aplicar o que era aplicado naquela educação. (faz um gesto com o braço,
sinalizando que é uma educação do passado). (Prof. do Ciclo I)
Ivonete: [???] é o que eles aprendem na faculdade [???] a universidade ainda tá muito (gesticula com as mãos
sinalizando atrás)... (Prof. do Ciclo I)
Priscila: ... a formação do profissional de educação... (Prof. do Ciclo I)
Frente às dificuldades da própria atividade docente, esses professores se conformam,
reforçando a falta de autonomia e o não engajamento em um movimento político para que esta
situação se reverta – aspecto tão importante em seu processo de profissionalização e
valorização (Nóvoa, 1998). Em nenhuma das discussões, ouviu-se qualquer menção dos
professores em relação a se engajarem em movimentos políticos, associarem-se, unirem-se,
em prol da melhoria de suas condições de trabalho. Os discursos políticos que aparecem
revelam o conhecimento que os professores têm acerca dos aspectos políticos e sociais que
permeiam sua atividade docente, no entanto, em seus depoimentos, não surgem práticas
relacionadas:
Evandro: Se realmente [???] para buscar realmente as soluções pros problemas que cada escola tá passando...
Mas, a preocupação não é só dar aulas, parar... na minha maneira de ver isso está virando produção, a gente
está dentro de uma empresa que fica só na produção. (Prof. do Ciclo II)
Priscila: [...] Eu acho que o professor hoje, ele tem que ter esse olhar, né, pra educação, dentro do contexto
social que a gente vive hoje. [...] hoje em dia, eu acho que tá diferente, tem um contexto bem diferente, um
contexto social bem diferente da realidade de nossos alunos [...].então aqui tá essa bagunça toda... lá atrás tava
melhor né a gente escuta muito isso dos colegas, que antigamente era melhor, mas não vê o hoje, agora, o
movimento da própria história, que vai modificando as pessoas, que vai modificando a sociedade, que vai
modificando tudo, então assim, os professores se sentem solitários, o sistema ajuda a reprimir né então mas eu
acho assim que falta um pouco de ter um olhar diferenciado né pra esta educação porque o professor sonha
sempre com aquele aluno ideal, porque ele está preso lá atrás, na questão de como era, ele tem um parâmetro de
comparação lá atrás. (Prof. do Ciclo I)
Que papel os professores atribuem à escola e ao sistema escolar?
O aluno aprende mais fora da escola do que dentro dela (Gimeno Sacristán, 1998). Os
alunos não se interessam pela escola porque o que acontece fora dos muros escolares é mais
atrativo e pungente. A escola vem perdendo seu poder de fonte de informação e formação e os
professores, mesmo que se dêem conta disso, não sabem o que fazer a respeito. Em seus
175
depoimentos, os professores investigados revelam acreditar que “não cabe à escola ensinar
ao aluno a importância do estudo”:
Gisele: [...] Eu fui conscientizada da importância do estudo dentro da minha casa. Meu pai era peão de
fábrica... se aposentou como peão de fábrica. Então ele falava para nós: “Eu sou peão, se vocês não querem ser
peão como eu vocês vão ter que estudar, têm que respeitar as pessoas, têm que isso, têm que aquilo”, dentro da
minha casa. Eles vêm para escola sem noções nenhuma de nada, então chega aqui, nós vamos ter que ensinar
para ele a importância do estudo, mas ele não vê importância.(Profª do Ciclo II)
Segundo uma professora de Ciclo II, a escola não sabe “promover no aluno a vontade
de aprender, de conhecer, etc”. Segundo esta professora, “a escola acaba se tornando
somente um lugar para brincar e conversar com amigos”:
Leoni: [...] depois de uma certa série eles perdem totalmente o interesse, a vontade. Então, eles vêm à escola
simplesmente pra brincar, pra conversar com o amigo, então, perdem essa vontade que eles têm no primeiro ano,
de aprender, de conhecer, de escrever, de querer saber de tudo. (Profª de Ciclo II)
Para os professores desse grupo, a escola e o ensino dos tempos antigos eram
melhores. Vejamos alguns de seus depoimentos a esse respeito:
- Nós fomos educados com a Caminho Suave.
- Mas gente, na minha época já tinha 40 alunos na sala!
- Na minha época não!
- Só que as crianças tinham mais medo.
- Nós tínhamos uma estrutura familiar, hoje eles não têm.
A fragmentação do currículo também contribui para estabelecer fronteiras que isolam
os conteúdos e suas formas, mantendo a lógica das matérias e dos especialistas (Gimeno
Sacristán, 1998). Os depoimentos coletados entre os professores reiteram isso:
Gisele: [...] eu vou falar aquele negócio que o povo acha podre: eu sei que fiz Magistério, tudo, mas eu não vou
alfabetizar não, não sou paga para isso! Eu prestei um concurso [???] pela Secretaria da Educação para
trabalhar com Geografia, agora se ele quer que eu alfabetizo ele que pague esta parte aí... (Ouve-se alguns
comentários de defesa e que se misturam com sua fala. A professora tenta minimizá-los). Eu até ajudo, sabe.
(Profª de Ciclo II)
Gerson: O texto (referindo-se ao texto de apoio) fala desse conflito entre o ciclo básico e o fundamental e é
interessante porque, na verdade, deve haver uma continuidade, né. Todos aqui sabem que os alunos têm que ser
alfabetizados até a 8ª série, só que na prática não é o que acontece, porque se ele vem alfabetizado do ciclo
básico, não haverá uma continuidade no fundamental. Sem considerar o fato que as escolas do estado são todas
da mesma rede, mas são completamente diferentes [...] (Prof. do Ciclo II)
176
Da maneira como se organiza, o currículo estabelecido pelo sistema educacional
encobre um código de comportamentos que leva à divisão de funções educativas: ensinar e
dar atenção aos alunos são competências educativas diferentes (Gimeno Sacristán, 1998).
Também a esse respeito os depoimentos são sugestivos:
Pauline: [...] Olha, eu tenho que dar aula para a maioria, a maioria não acompanha. Então a minoria que [???]
daria para você forçar a um pouquinho mais a matéria com ele [???] Eu não vou dar aula para duas camadas,
mesmo porque diz que é antipedagógico, não é? (Nota-se uma certa ironia). Tem que dar uma atividade para
todos. (Profª de Ciclo II)
Uma profª não identificada complementa: Senão você exclui. (Profª de Ciclo II)
Gerson: Na verdade [???] inverteu os valores, esse é o problema. Eu, como professor de geografia na 7ª, 8ª
série, [...] eu não tenho tempo para parar, na verdade, o meu conteúdo para mostrar pro aluno que ele não
pode pegar uma bala e jogar o papel aqui na frente ou do lado dele, quando o cesto está ali [...]. (Prof. do Ciclo
II)
O sistema educacional brasileiro estabelece um currículo de caráter global, de maneira
que as relações pedagógicas, a forma com que este currículo se estabelece, o profissionalismo
docente, o controle sobre alunos, são parte do sistema que influencia professores e escolas. Os
professores não acreditam nesse sistema educacional que está posto. Muitos atribuem a ele o
fracasso escolar do aluno:
Helena: [???] é triste! Você fica com a criança de 5ª a 8ª serie, até o 3º ano e ele sai daqui analfabeto. (Profª de
Ciclo II)
Gisele: É a progressão continuada. (Profª de Ciclo II)
Profª não identificada: [...] o governo tem um sistema que só reprova na 4ª série, a criança não aprende na 1ª
tem que passar para 2ª série, o professor não dá conta, tem que passar para 3ª série, não deu conta, e ele é
reprovado na 4ª. Num ano só, ele tem que fazer quatro anos, que nem bobo, né, vendo os outros aprendê e ele
não aprendeu porque foi jogado. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: [...] o problema cai no sistema, não cai no professor. (Profª do Ciclo I)
Petrolina: [???] a culpa é do governo do Estado de São Paulo, [???] aí tem a questão da progressão
continuada. (Profª do Ciclo II).
Ana Margarethe começa a falar antes da professora Petrolina terminar: [..] não foi o professor que inventou a
progressão continuada, não foi o professor que inventou a psicogênese da linguagem escrita aonde esperava-
se o tempo do aluno, aí foi feito um monte de coisas, um monte de mudanças, que falava não pode isso, não pode
aquilo, não pode corrigir, não pode mais aquilo, não pode aquilo outro – “Vamos deixar o aluno, vamos através
do construtivismo levar o aluno a construir este conhecimento”- o que aconteceu, não preparou este professor
direito, não deu recursos para esse professor direito, ele caiu de gaiato, ele ficou duas décadas patinando no
gelo, e caindo e levantando e as crianças foram cobaias de toda essa brincadeira, tá. Então essa geração que a
gente tem agora, de analfabetos funcionais é decorrente dessa grande invenção, do Estado. (Profª dos Ciclos I
e II).
177
Paloma: [...] Nós não temos na verdade a quem recorrer, né, porque é uma coisa que vem pronta e tudo que às
vezes nós mostramos nos mostram ao contrário [...] (Profª do Ciclo II).
Profª não identificada: [...] a gente segue o sistema, a gente não pode ir contra o governo... É o Ministério da
Educação, a tal da progressão continuada [...] eles (os alunos) vão sendo aprovados automaticamente, né, tendo
dificuldades ou não, e são reprovados na 4ª série. (Profª do Ciclo I)
Profª não identificada: [...] Eu acho que o governo – o governo seria a Secretaria da Educação, mas o governo
que, né, manda em si – eu acho que tinha que ter uma mudança bem radical mesmo, eu acho... (silêncio), do
jeito que tá, a postura... eu acho que tá difícil. (Profª do Ciclo I)
Tereza: [...] o sistema de educação, [...] antes de ser um sistema de educação é um sistema político, e
politicamente pensando, quanto mais tosco for o povo, mais fácil de ser manipulado. Economicamente, é muito
mais fácil tirar da educação do que dar também, e aí, existem de fundos de dinheiro que de repente fazem com
que ‘x’ diretora da escola pensa em mudar toda característica da escola por cauda do FUNDEB (Fundo de
Desenvolvimento do Ensino Básico). Então, a questão pedagógica mesmo, ela fica de lado, não é interessante a
criança estar aprendendo, porque nós professores, já perdemos muito, desde a Rose Neubauer quando inventou
esse plano de progressão que o aluno passa sem saber, né, progressão continuada, progressão parcial, e aí, pode
ser que ele tenha sido um pouco mal interpretado ou muito mal usado. O que acontece é que a única arma que os
professores tinham, nessa época eu me lembro bem, eu respondia pelo cargo, pela função de vice-diretora, eu
ouvi muitos professores, com o tempo que eu tenho hoje de Estado, falarem: “O que vai ser daqui pra frente?”
Porque já não tinha mais o domínio do aluno que, poderia ser ameaçado a estudar, não teria mais nenhum
interesse. E hoje em dia, que interesse eles têm, [...] em estudar, se o governo oferece cem reais por mês e
estimula o jovem a trabalhar [???] de 20, 25 anos de idade.[...] (Profª do Ciclo I)
Gerson: [...] não se constrói conhecimento, só se reproduz [...] (prof. do Ciclo II)
Alguns chegam a sugerir que o sistema de rodízio de professores do Ciclo I é um dos
aspectos que contribuem para o fracasso do aluno.
Evandro: [...]E tem professor que realmente, ele tem, ele se identifica com os alunos de 1ª a 4ª série, só que
aquela turma que ele começou a progredir, no próximo ano ele já não fica com a mesma sala. Então, o trabalho,
às vezes, ele fica perdido porque o mesmo professor, ele nunca tem a mesma metodologia, o mesmo método de
se trabalhar em sala de aula, ele muda totalmente a forma de se trabalhar, e tem aluno que não consegue
pegar o que o professor realmente, a forma do professor trabalhar [...] (Prof. do Ciclo II)
Priscila: [...] Uma vez [...] na outra escola, nós fizemos uma experiência piloto [...] me escolheram pra ficar
com a mesma turma de 1ª a 4ª série, pra ver o ensino [...] a criançada de 1ª série não são escolhidas, e
selecionadas, e você recebe no escuro, né, você não sabe quem é bom, quem é ruim, quem que tá com
dificuldade, quem é isso, aquilo, [???] você recebe tudo né, já diferente na 2ª série você tem a referência da 1ª
série, aí você olha, esse aluno é assim, esse vai, esse não vai, Na 1ª série não, você não tem a referência
nenhuma, que aluno que é bom, que aluno que é ruim, então tá, aí eu consegui ficar com o aluno da 1ª série, eu
não consegui ficar até a 4ª, fiquei até 3ª série. Mas já na 2ª série, eu não tinha... tinha cem por cento
alfabetizado, e não era porque eu não tinha aluno... eu tinha só aluno bom. [...] (Profª do Ciclo I)
À exceção, uma professora do Ciclo I expressa sua visão política e social da educação.
Priscila: [...] eu acho que hoje em dia não se aprende só com lousa e giz, a criança pode aprender muito mais lá
fora do que lá dentro dos muros de uma escola, né. Então eu acho que a função do professor hoje, como sempre
foi, é [...] tá fazendo esse aluno perceber né assim [...] o que é importante pra ele, o que é importante, você fala
da prova, tudo, (seu olhar se divide entre a professora Tereza e a pesquisadora) eu acho que hoje em dia não tem
mais esse negócio, antigamente a prova era um modo de repressão, de fazer o aluno se voltar ao estudo, o
interesse ao estudo, hoje em dia não é mais. E daí, não acho que é culpa do sistema, sabe, não acho que é culpa
do sistema, porque mesmo se tivesse o aluno ia falar: “Eu não quero, tô fora!”, ele tem essa opção de falar: “Tô
fora! Ah, vai dá prova, vai dá nota? Não quero mais!”, e vai seguir outra vida. Então, eu acho que hoje em dia é
178
diferente, a gente tem que trabalhar no sentido de conquistar esses aluno, de fazer ele perceber a importância do
conhecimento, como o conhecimento ... (gagueja, buscando palavras para se expressar) uma parte da sociedade
usa como meio de (gagueja novamente) domínio, o saber é uma forma de domínio, então o aluno tem que buscar
esse conhecimento, pra ele poder desenvolver, ele tá assim (gagueja buscando palavras), atuando nessa sociedade
de uma forma libertadora e transformadora [...] (Profª do Ciclo I)
É importante lembrar que esta professora – Priscila – chegou a se aposentar, prestou
concurso novamente para não deixar de dar aulas, está trabalhando há um ano na escola em
que esta pesquisa foi realizada e participou ativamente dos dois encontros, muitas vezes
criticando ou contestando seus colegas. Durante seus depoimentos, observou-se o grupo
ouvindo atentamente a todos, embora parecesse haver um certo desconforto entre eles.
Minhas observações sugerem que os professores evitavam discutir com esta professora. Berger
& Luckmann (2000) nos apontaram que os hábitos passam a controlar os impulsos de maneira que as
tensões tendem a desaparecer.
Na verdade, na escola pública paulista de hoje, o que impera, segundo o depoimento
dos professores, é o “saudosismo de um ensino tradicional e conteudista”. A “boa escola
ainda é (ou deveria ser) aquela que “permite ao professor desenvolver seu planejamento,
ensinando todo o conteúdo programado” e de forma “exigente e controladora”. Vejamos:
Micaela: Eu tenho alunos aqui que vêm de uma escola (estadual e próxima) chamada (cita o nome da escola),
que vieram neste esquema, sabe assim, toda uma revisão completa, que têm essa base. Eu sei que tem um, dois,
que têm dificuldades, isso é normal, eu sei que a professora não vai fazer milagre, mas assim, eles sabem tudo,
eles falam assim: “Ah, professora, isso aqui eu lembro, eu já aprendi!”. Se estou dando uma revisão, passei a
matéria do primeiro e segundo bimestre, foi muito rápido, porque fluiu, passava e saía, eles faziam, eles
buscavam – “Se eu fizer assim a resposta é essa?” – pensamentos que os outros alunos que vêm dessa escola
(cita o nome da escola considerada por eles como um problema) não chegam nem perto.
[...] eu trago coisas diferentes, mas a sala, eu tenho algumas salas que eu me sinto muito bem, eu falo: “Nossa,
essas eu queria, eu quero ficar com eles pra sempre, porque eu adoro”. Agora, é uma sala, as outras, você, sabe,
é aquela coisa desgastante, cansativa, você entra, ninguém quer saber de nada, ninguém faz nada. [...] me mato,
faço isso, faço aquilo e ninguém faz nada. 15 dias que eles (os alunos) tiveram de férias, você pergunta uma
coisa que você passou na prova, ninguém responde, ninguém sabe, uma avaliação [???] ninguém responde,
ninguém sabe mais nada. Eu acho isso muito difícil [...] (Profª do Ciclo II)
Pauline: O aluno da 5ª série, por ele ser mais novo, não ter tanta malandragem ainda de vida como do ensino
médio, ele nem sabe direito, entendeu? Que o aluno do ensino médio ele já [???] tem todas essas leis aí de cor e
salteado na cabeça é mais fácil nós controlarmos, exigirmos algum tipo de comportamento tanto,
relacionado à disciplina quanto à matéria mesmo, atitude de fazer e tal, dos menores. (Profª do Ciclo II)
Sueli: [...] por mais libertador que seja, por mais democrática que seja, existe um objetivo específico de nosso
Estado, [???] dentro do Sistema Educacional. E por mais que sejamos abertos, vamos ter sempre uma meta. E
é essa meta que nós vamos ter que atingir. De 1ª a 4ª existe uma, de 5ª a 8ª existe uma, no Ensino Médio existe...
(Profª do Ciclo I)
Marielza: [...] Eu tive uma 5ª série ma-ra-vi-lho-sa, [...] uma 5ª série que a gente tinha 2, 3 casos de alunos
pré-alfabetizados, só! Eu consegui um livro completo, eu encerrei com eles, desde, tudo, inclusive geometria,
completo, ainda eu fiz revisão no final de ano. Mas era assim, você passava atividade para eles, era coisa
rápida, eles vinham com o caderno: “Professora, tá aqui”- e era um atrás do outro, sabe, era uma 5ª série
maravilhosa. Eu tenho curiosidade de saber como eles estão hoje, porque foi a melhor 5ª série que eu tive [...,
Eu nem acreditava que eu estava tendo uma 5ª série do Estado. (Profª do Ciclo II)
179
O depoimento da professora Marielza nos remete à visão que o professor tem da
escola estadual. Outros professores expressam diferenças entre o sistema educacional público
e privado:
Lídia: [???] professores de 1ª a 4ª, eu vejo sim, sempre vi dessa maneira, porque desde quando a gente entra,
mas existe este preconceito: professor especialista, ele é mais qualificado do que o professor de 1ª a 4ª né, eu não
concordo, mas é uma realidade. Eu não concordo, porque que eu não concordo. Eu não tinha essa idéia até
algum certo tempo. Quando eu comecei a trabalhar numa escola (particular) onde eu conheci o trabalho de 1ª
a 4ª, aí a coisa mudou
[...] muitos professores, principalmente no Estado - nós somos bem realistas referente a isso – “Tá no Estado,
acabou!- Não quer saber de nada, aparecem cursos “Ah, eu não faço mais nada, eu não quero me
especializar em mais nada, eu não quero aprender mais nada, o que eu sei dá pra isso daí. Pra ensinar este
povo? Pra que eu quero mais?” – E a gente ouve muito isso, gente. (Profª do Ciclo II)
Celina: [...] (Os alunos) Entram na 1ª série, a maioria não entra sabendo nem ler e escrever, na escola do
Estado [...].(Profª do Ciclo II)
Lawn (2000) afirma que o Estado exerce um poder na construção da identidade
profissional docente. Vimos como, sutilmente, o sistema educacional vai se incorporando e
interferindo no trabalho do professor, nas relações entre eles, na sua postura, etc.
Acredito que dois depoimentos podem ser considerados emblemáticos em todo o
trabalho de pesquisa realizado e que sintetizam tudo o que foi discutido: o depoimento da
professora Queuzia e o da professora Sueli que se manifestou apenas uma vez durante toda a
discussão, mas que resume de forma concisa “a esperança” do trabalho docente. Vejamos os
depoimentos na íntegra:
Queuzia: Eu acho que a gente tem que tomar muito cuidado quando a gente vai... da mesma maneira que o
professor de 5ª a 8ª (neste momento ela olha para a professora do lado, que é professora de 5ª a 8ª e que não se
manifestou durante todo o encontro) ele vai criticar o aluno de 1ª a 4ª que não tá pronto, eu acho que a gente tem
que tomar muito cuidado quando a gente vai criticar o professor de 5ª a 8ª, porque eu acho que a gente tem que
pensar que ele entra numa sala de aula, ele tem 50 minutos de aula, tirando para fazer chamada, são 10 minutos,
sobra pra ele 40 minutos, tirando o tempo que ele vai chamar a atenção do aluno, quanto tempo sobrou pra ele
realmente dar aula. É uma troca constante, é complicado você também cobrar para quem alfabetiza. Eu acho
que a questão que a (cita o nome da professora 4) falou e que a ... (aponta a professora 12 e pergunta ao grupo o
nome dela) falou também tem a ver. Mas eu penso da seguinte forma: eu acho que o tradicional, a prova, no
certo hoje. Só que o que tá posto hoje também, o construtivismo, também não dá certo. E a gente vê isso nas
pesquisas educacionais, que o Brasil tá sempre em último lugar, dos países de terceiro mundo. Então o
tradicional não dá certo? A prova, a repressão não dá certo? Não dá certo. Mas a progressão continuada, o
construtivismo, também não tá dando certo. Eu acho que o que tem de ser feito é pensar novos caminhos. E, não
adianta o governo chegar e impor alguma coisa sem vê aqui na sala de aula o que acontece. Essa questão da
lousa, realmente não tem lousa que preste, não tem giz, quanto mais os recursos necessários pra você aplicar o
construtivismo dentro da sala de aula. Muitas vezes o professor acaba tirando do próprio bolso, de um salário
que já é mínimo, pra poder dá um recurso pro aluno, trazer algum jogo, pra tentar fazer uma aula diversificada.
Então eu acho que... eu não sei se eu... eu pelo menos acho que é um problema de todos, não só do sistema, acho
que é um problema de todo mundo, que os professores não controlam, é um problema do sistema também, é um
problema social [???] realmente não dá pra se pensar em trabalhar como se trabalhava antigamente, as mães
180
não ficam em casa... então, quem vai cobrar da família isso? Ou a mãe trabalha pra pôr comida ou ela fica em
casa olhando tarefa do filho. Se o filho não comer, ele não estuda, ela tem que trabalhar. Quem é que vai poder
criticar a mulher que trabalha o dia inteiro, que chega cansada em casa e. realmente, ela não sabe nem ler e
escrever, como que ela vai querer ensinar? Ver o caderno do filho? Então, eu acho que é um problema de
políticas públicas, são questões sociais e que o trabalho pedagógico tem que ser voltado pensando nisso, mas
procurar alternativas, porque eu acho que o construtivismo e a progressão continuada não dá certo e a prova
disso são as estatísticas, é o SARESB que sai, é as pesquisas dentro de outros países que mostram o Brasil em
último lugar... é vergonhoso a gente vê uma reportagem, e todas as reportagens que a gente vê sobre educação,
sai em VEJA (revista semanal), sai em jornal, é sempre desqualificando a educação no Brasil, e como os
professores se sentem? Eu me sinto uma... sei lá... uma incapaz, uma... [???] a gente se esforça, dá o melhor, e o
resultado é esse? A gente [???] parece que tô dando murro em ponta de faca. Eu sou uma professora, como este
Mário (referindo-se ao texto) que a gente está descrevendo agora. Vim da minha faculdade, vim cheia de ilusão,
cheia de expectativa pra dá aula, e quando você chega aqui você vê que (dá de ombros) ... que é... (procura
palavras para se expressar; uma professora diz: ... (outra realidade)... é outra realidade. Aí, o que acontece, chega
no concurso público, a gente sabe tudo o que tem que responder, chega lá, primeiro lugar a gente pega, a gente
sabe tudo na teoria, mas na prática é coisa que a gente não acredita. A gente vai prestar o concurso, escreve um
monte de coisa que a gente não acredita. A gente só escreve porque a gente tem que passar no concurso [???].
(Profª do Ciclo I)
Sueli: Eu concordo assim em parte com todos, né (olha para o grupo). Na verdade, eu acredito que o professor de
1ª a 4ª, 5ª a 8ª e Ensino Médio, eles vivem momentos de angústia, eles estão angustiados, motivos diferentes,
talvez os mesmos (sua expressão é de interrogação) não sei, depende. De 1ª a 4ª tem o seu objetivo a atingir, sua
meta, seu alvo, 5ª a 8ª também, Então, por mais libertador que seja, por mais democrática que seja, existe um
objetivo específico de nosso Estado, [???] dentro do Sistema Educacional. E por mais que sejamos abertos,
vamos ter sempre uma meta. E é essa meta que nós vamos ter que atingir. De 1ª a 4ª existe uma, de 5ª a 8ª existe
uma, no Ensino Médio existe... E no momento, talvez essa angústia maior seja exatamente no que temos de nos
[???]. A sociedade mudou como a Priscila falou. Antigamente era bom? Não sei se antigamente... que
antigamente? Hoje é melhor? Depende que lado é melhor. Porque antigamente existiam coisas boas que não
existem mais hoje. Mas hoje existem muitas coisas maravilhosas, e é nestas coisas que eu vou me espelhar. (Profª
do Ciclo I)
*
Diversos conceitos foram suscitados na análise realizada até aqui e apresentados algumas
vezes separadamente para fins de organização, no entanto, são conceitos indissociáveis.
Examinando as respostas das questões 1, 2, 3 e 4, podemos finalmente responder: a que
aspectos estão relacionados estas questões?
Nóvoa (1195) afirma que as organizações escolares se constituem em três grandes
áreas: a estrutura física da escola (sua dimensão, seus recurso materiais, número de turmas,
organização dos espaços, etc); estrutura administrativa (gestão, direção, inspeção tomada de
decisão, corpo docente, relação com as autoridades locais, etc); estrutura social (relação entre
os alunos, professores e funcionários, responsabilização e participação dos pais, democracia
interna, clima social, etc). O autor afirma ainda que “as escolas constituem uma
territorialidade espacial e cultural, onde se exprime o jogo dos atores educativos internos e
externos”. As respostas às questões anteriores, em que aparecem os diversos aspectos
relacionados à organização escolar, revelam como os professores estão envolvidos nesse
“jogo”.
181
Segundo Pérez Gomes (2001), “a escola desenvolve e reproduz sua própria cultura”, a
cultura escolar, que pode ser desvelada nas propostas e idéias renovadoras que surgem no
sistema educacional, mas que não a afetam. As queixas trazidas pelos professores nos
encontros promovidos traduzem como a organização escolar no seu tempo (cotidiano escolar)
e espaço (estrutura física) se consolida, de que maneira os significados e os comportamentos
gerados pela e na escola, suas tradições, costumes, etc, estão enraizados no seu cotidiano.
Mas é o sentido humano que faz da escola um espaço específico e peculiar. Nele se
compõe a cultura docente, segundo Pérez Gómez (2001). Impregnada de valores, a cultura
docente está relacionada com o modo como os professores interagem, com a maneira como
desenvolvem seu trabalho, com os valores, crenças, hábitos, atitudes no ambiente escolar.
As características apontadas por Pérez Gómez (2001), que ajudam a definir a cultura
docente, aparecem nos diversos depoimentos: burocratização do ensino, intensificação de
tarefas sob a responsabilidade do professor, ansiedade profissional, isolamento, distância,
falta de integração e interação com os demais professores, sejam eles do mesmo ciclo ou não,
entre outros aspectos que estão relacionados diretamente ao processo de profissionalização
docente e que revelam como a profissão docente está num processo de desprofissionalização,
constituindo-se como uma profissão desvalorizada pelos próprios professores.
Os depoimentos revelam que aos professores falta preparo e amparo técnico para lidar
com as especificidades da profissão. Seu saber e fazer pedagógico se amparam num ensino
tradicional e conteudista. Mostram-se dependentes dos chamados ”super-pedagogos”,
“psicólogos” e outros especialistas. Não acreditam no poder do saber para resolverem os
problemas e conflitos de sua rotina diária. Reconhecem as falhas de sua formação inicial e
contínua e que, muitas vezes, realizam seu trabalho com base na intuição ou em metodologias
ultrapassadas e descontextualizadas da realidade do aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
“ESCOLA NÃO MOTIVA E PERDE ALUNOS”. Esta foi a manchete da Folha de
São Paulo do dia 7 de janeiro de 2007 sobre estudo desenvolvido pelo INEP (Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais). Partindo de uma Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílio do IBGE, três conclusões se sobressaem no estudo:
182
1. Três em cada quatro jovens entre 15 e 17 anos não completaram o ensino
fundamental, sendo que 68% desses jovens não chegaram a ingressar no Ciclo II;
2. A gravidez precoce em meninas adolescentes diminui a probabilidade de elas
estudarem. São 28,8% de mães jovens que não freqüentam escola contra 1,6%
estudando;
3. Vários motivos apontados pelos jovens os levaram a saírem da escola: falta de
transporte, falta de vaga na escola, falta de dinheiro para se manter, doença, etc.
Mas o que mais aparece nas estatísticas é a falta de vontade de estudar (40,4%),
seguida da necessidade de trabalhar (17,1%).
Este é apenas um exemplo ilustrativo do que está ocorrendo no sistema educacional
brasileiro. A reportagem destaca que a escola não é atraente para os jovens e não faz sentido
em suas vidas, levando-o ao abandonar a “carteira escolar”. E mais uma vez os professores
“levam toda culpa” pelo fracasso do sistema educacional.
Um depoimento de uma jovem entrevistada nessa pesquisa é revelador: “os
professores eram muito chatos”. Podemos supor que estes professores “chatos” são os
mesmos professores que, em nosso estudo, referiram-se a esse mesmo aluno: “desinteressado,
desmotivado, que se torna indisciplinado, rebelde e até agressivo” em relação aos
professores, à escola, ao sistema educacional; um aluno que não colabora para que o professor
dê aquela aula planejada e estruturada em cima dos conteúdos a serem cumpridos no livro
didático, parte de um currículo fragmentado e estanque; um aluno que não tem uma família
que o incentive e o encoraje a estudar. São aspectos da cultura docente, imbuídos de valores,
crenças, atitudes, hábitos e pressupostos institucionalizados.
Retomando a definição de cultura de Pérez Gómez (2001, p. 17), podemos refletir: que
significados, expectativas e comportamentos estão sendo compartilhados por estes alunos,
suas famílias, a comunidade, a sociedade? A escola não tem sentido para o jovem porque ele
não projeta seu futuro por meio dela. E seus pais, muitas vezes declarados culpados pelo fato
de não desenvolverem em seus filhos o “gosto” pelo estudo e pelo aprender, também
passaram por isso, pois a escola não lhes deu garantia de melhoria de vida, não lhes garantiu o
“futuro prometido”.
Reportagens como a que foi citada fortalecem a baixa auto-estima do professor,
contribuindo com o processo de sua desvalorização profissional.
E como o professor reage a tudo isso?
183
Vimos como boa parte dos professores se isenta de qualquer responsabilidade e como
se desconecta dos processos de discussão política de sua profissão, acomodando-se a uma
formação profissional que não lhe deu sustentação para lidar com as dificuldades e conflitos
de sua tarefa diária. Alguns assumem o papel de vítima da sociedade e, assim, vão se
identificando com a imagem de “profissionais socialmente desvalorizados”.
Engolidos pela cultura escolar, conformam-se e conformam uma escola cada vez mais
distante da realidade dos alunos.
Isolados em seu mundo – a sala de aula –, os professores se relacionam cada vez
menos com seus pares que atuam no mesmo ciclo do Ensino Fundamental ou em outro,
dificultando uma identidade coletiva – tão fundamental no processo de valorização de sua
profissão.
Perdem o controle do que acontece ao seu redor e se distanciam cada vez mais das
decisões que, posteriormente, recairão sobre eles mesmos e seu cotidiano profissional,
intensificando seu trabalho, tornando-se meros executores de decisões tomadas sempre por
outros profissionais, em outras instâncias do sistema escolar.
Finalmente, cabe lembrar que não é possível encerrar estas considerações sem
acrescentar um aspecto central contido nos dados apresentados: a identidade coletiva, aquela
em que cada indivíduo se identifica somente com seu subgrupo, mostra-se claramente
prejudicada. Poucos são os que mencionam interesse ou tentativas de resolução para seus
problemas de forma coletiva. Em nosso corpo teórico vimos como o engajamento dos
professores em associações profissionais docentes, entre outros aspectos, é importante no
processo de profissionalização docente, no entanto, em momento algum isso é mencionado
nos encontros.
Ausentes do controle não só dos alunos, como do processo de seu próprio trabalho
(desde seu conteúdo até o seu desenvolvimento), os professores não se dão conta de como
estão se embrenhando, cada vez mais, em um processo de desvalorização profissional.
Quase todos se eximem de qualquer responsabilidade pelo fracasso do aluno. Como
diz a professora Deusiane, os professores são o “efeito” neste processo, e a causa, na maior
parte dos depoimentos, está “fora dos muros escolares”:
Deusiane: [...] é o professor que está sem valor. Nós somos o efeito, onde está a causa? [...].
Os professores não estão conscientes de que a transformação da escola está
intimamente ligada às mudanças no seu próprio trabalho e nas condições postas para seu
184
desenvolvimento profissional – o que nos remete aos conceitos de conhecimento
especializado e à autonomia do professor frente a este conhecimento que, segundo Pérez
Gómez (2001), são indispensáveis e complementares na configuração da identidade
profissional do professor.
Este é outro aspecto muito presente nos depoimentos. Os professores se vêem como
cobaias” de um sistema educacional que lhes é imposto. Eles se sentem insatisfeitos,
desanimados, desvalorizados, desmotivados, agoniados, ameaçados, sofrem com as
dificuldades da profissão, o fracasso do aluno, o desamparo. E atribuem tudo isso aos fatores
sociais, econômicos e culturais da sociedade.
Mostram-se perdidos, sem saber o que fazer ou que caminho trilhar. No entanto,
gostam da profissão, sentem-se orgulhosos de poder “contribuir com a formação dos alunos”.
Estão imbuídos de “esperança”.
Tardif & Lessard (2005) atribuem esses sentimentos positivos ao fato de que, pela
própria especificidade da profissão – interação com outras pessoas (alunos, outros professores
e agentes educativo, pais, etc) – os professores investem seu tempo, pensam, dão sentido e
significado aos seus atos e vivenciam sua função como uma experiência “pessoal”. Nesse
sentido, o professor se reconhece muito mais pelas relações humanas com seus alunos e
colegas de trabalho do que pelas ações profissionais que realiza.
No entanto, o ser humano se torna aquilo que ele faz. Esta é uma visão sociológica de
que o trabalho modifica, de maneira significativa, a identidade do trabalhador. É neste sentido
que o saber e o fazer pedagógico do professor – e, evidentemente, as condições para realizá-
lostornam-se importantes no processo de construção identitária do professor.
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188
189
ANEXOS
ANEXO 1
RELATO DOS ENCONTROS DO ESTUDO PRELIMINAR
Os professores, quando têm oportunidade, expressam seus medos e ansiedades. Dirigindo uma
reunião com professores dos dois ciclos do ensino fundamental (1ª a 4ª série e 5ª a 8ª série), de uma
escola particular na região de Diadema, município de São Paulo, tive a oportunidade de vivenciar uma
discussão calorosa e que pode ser uma referência para este estudo. Era o primeiro dia de retorno das
férias de julho – o replanejamento das atividades do segundo semestre de 2005. A idéia foi reunir os
professores para uma integração e sensibilização sobre a importância de um trabalho em equipe. O
encontro iniciou-se com uma conversa informal regada de um delicioso café da manhã, em seguida
sentados em círculo, deu-se inicio à reunião com uma dinâmica que se desenvolveu da seguinte
maneira: apresentei uma caixa de presente verbalizando que havia ganhado e que gostaria de repassá-
la para alguém do grupo. Justificando minha escolha, passei o embrulho à coordenadora pedagógica,
190
que deveria passar para outra pessoa, justificando sua escolha. A pessoa que recebeu a caixa, dando
seguimento à dinâmica, passou para outro membro do grupo e assim a caixa percorreu toda a sala
passando pelas mãos de todos. A última pessoa a receber a caixa foi uma professora de inglês que atua
nos dois ciclos de ensino fundamental nessa escola. Prontamente, antes de abrir a caixa, verbalizou
que dividiria seu conteúdo com toda a equipe, não importando o que tivesse dentro. Ao abrir a caixa se
deparou com vários bombons, sendo que a maioria tinha preso em sua embalagem a palavra
“problema”. A caixa então foi passada de mão em mão para que cada um escolhesse um bombom. A
partir daí, muitas reações foram observadas: houve professor que escolheu rapidamente seu bombom
não se importando se havia a palavra “problema” junto a ele; outros professores demoraram a
escolher, pois queriam um determinado tipo de bombom que não tivesse a palavra “problema”; houve
professor que pegou bombom sem a palavra “problema”. Após todos pegarem pelo menos um
bombom, sobraram algumas unidades na caixa (algumas com a palavra “problema”, outras não). A
professora que havia ganhado a caixa por último observou no grupo quem não tinha pegado o
bombom com a palavra problema e passou a caixa novamente para que estes pegassem um bombom
“problema”. Os bombons que restaram foram gentilmente distribuídos aos professores que, em sua
opinião, eram admiráveis.
Como orientadora da dinâmica, perguntei aos professores qual foi o sentimento que se aflorou
ao terem que escolher ou abrir mão do bombom preferido que continha a palavra “problema”em sua
embalagem. Após todos se colocarem, indaguei o grupo sobre que problemas eles poderiam ter em
mãos naquele momento e que gostariam de expressar para o grupo. Os primeiros professores a se
manifestarem foram os do segundo ciclo do ensino fundamental, todos com cursos de licenciatura. O
professor de História, mostrando-se muito constrangido, verbalizou que seu maior problema naquele
momento era a falta de dinheiro. Em seguida, a professora de Ciências disse que, naquele momento, o
problema que estava sendo vivenciado por ela relacionava-se com seu planejamento: colocar em
prática a horta com os alunos da quinta série, algo que não aconteceu no primeiro semestre. O
professor de Matemática (a saber, este professor havia participado de um seminário sobre o tema
educação e avaliação’ há uma semana, patrocinado pela escola em questão) verbalizou que seu maior
problema era despertar em seus alunos a vontade de aprender. A partir dessa colocação, o professor
que tinha iniciado com a colocação sobre a questão individual financeira concordou e, a partir desse
momento, todos os professores do segundo ciclo do ensino fundamental foram concordando e
complementando suas falas, expressando, em resumo, que os alunos chegam do primeiro ciclo do
ensino fundamental em um nível de leitura, escrita e interpretação abaixo de suas expectativas; que os
alunos tinham dificuldades em “abstrair”. “Não estamos falando de conteúdos”, disse o professor de
História, e complementa: “O conteúdo não é o fim, ele é o meio, a ferramenta para construir o
conhecimento”. Enfim, os professores de 5ª a 8ª séries concordaram que o trabalho dos professores do
primeiro ciclo do ensino fundamental tinha sua valia, que questões relacionadas à didática e psicologia
lhes faltavam e, portanto, faz-se necessária uma maior integração entre os professores dos dois ciclos:
Precisamos fazer mais o intercâmbio entre os dois ciclos, não só no campo da ação, como também
no campo das idéias”.
Os professores do primeiro ciclo do ensino fundamental somente se manifestaram após um
incentivo da orientadora deste encontro. A professora da segunda série, formada em Magistério e
Pedagogia, foi a primeira a se expressar. Seu tom de voz demonstrava uma certa irritação com as
colocações dos professores licenciados, discordando totalmente das afirmações que eles haviam feito.
Mais uma vez, como orientadora do grupo, indaguei às demais professoras do primeiro ciclo do ensino
fundamental se elas concordavam ou não com as colocações até aqui feitas. Uma a uma, elas foram se
manifestando, e até questionando os professores do segundo ciclo, para entenderem melhor o que eles
estavam colocando.
O tempo passou e nem os próprios professores perceberam que aquela discussão já durava
quase três horas. Num clima amistoso e respeitoso, gradativamente, todos foram se expressando,
desabafando e procurando entender o que se passava. A conclusão do grupo foi a de que “o maior
problema” que estava enfrentando é que os dois ciclos do ensino fundamental não estavam “falando a
mesma língua”: “O aluno se sente perdido na passagem de um ciclo para outro”, e isto porque “nós,
professores, estamos perdidos... o que será dos alunos?”. Enquanto os professores do primeiro ciclo
do ensino fundamental estavam no “campo da prática/ do concreto” (os termos “prática” e “concreto”,
neste contexto, referem-se às estratégias de ensino utilizadas pelos professores do primeiro ciclo do
191
ensino fundamental que, em boa parte do cotidiano escolar, voltam-se para atividades que envolvem o
concreto, a experimentação, a manipulação, e até mesmo o jogo, a brincadeira, com o objetivo dos
alunos apreenderem o conteúdo que está sendo ensinado), os professores do segundo ciclo
trabalhavam no “campo das idéias/ da abstração”. E de forma unânime, naquele momento,
constataram que todos têm muito a aprender uns com os outros, de forma que este ensino fundamental
se torne único, onde os dois ciclos trabalhem tanto no “campo da prática/ do concreto” como no
campo das idéias/ da abstração”. Solicitaram que a escola promovesse mais encontros como estes,
específicos e dirigidos, relacionados com as questões levantadas. E mais ainda, que o curso de
educação infantil também participasse desse encontro.
Aproveitando “o calor” do momento, foi agendado um encontro para o dia seguinte, no
horário em que as professoras de educação infantil pudessem participar. Naquele dia, no período da
tarde, as professoras da educação infantil foram avisadas do encontro e as professoras do primeiro
ciclo do ensino fundamental que haviam participado da discussão inicial puderam se colocar ainda
mais sobre o assunto. Agora, sem a participação dos professores do segundo ciclo, notou-se que elas
se expressavam de forma menos receosa, verbalizando inclusive que, em alguns momentos, sentiram-
se mal com as colocações dos professores do segundo ciclo, como se eles tivessem criticando o
trabalho delas. Como orientadora do grupo, verbalizei que, no encontro do dia seguinte, elas deveriam
expressar com clareza tais sentimentos.
No encontro do dia seguinte, os primeiros professores a se manifestarem novamente foram os
do segundo ciclo. E de forma inesperada, a primeira colocação foi exatamente a que era preciso ser
ouvida pelas professoras do primeiro ciclo: o professor de História verbalizou que pensou muito após
o encontro do dia anterior e que ficou preocupado que as professoras do primeiro ciclo tivessem lhe
interpretado mal. Um a um, os professores licenciados foram se colocando, deixando claro que em
nenhum momento estavam criticando o trabalho dos outros professores e, muito pelo contrário, tinham
muito a aprender com os professores de 1ª a 4ª série, que tiveram uma formação maior em didática e
que poderiam ajudá-los a entrar no “campo da prática/ do concreto”: “Não queremos que os
professores de 1ª a 4ª série vejam como ‘falhas’ em seu trabalho... queremos dar continuidade ao
trabalho da 4ª série”; “Nós identificamos falhas também em nosso processo” – diz um professor de 5ª
a 8ª série, e complementa: “Falta-me a idéia de como concretizar para meus alunos”. Os professores
de 5ª a 8ª série ainda reafirmaram que a preocupação era: “como nós estamos educando nossos
alunos?”; “O que queremos deles?”; “Temos dificuldades em passar para nossos alunos o que
queremos deles!”. Uma das professoras da 4ª série verbalizou sua ansiedade em muitas vezes se
deparar com o conflito: “até onde eu preparo meus alunos para a 5ª série? Mas não estarei exigindo
demais, afinal, eles ainda estão na 4ª série...”.
Após essas colocações, a discussão correu de forma clara e espontânea. Somente em alguns
momentos houve a necessidade de incentivar as professoras dos níveis iniciais da educação infantil a
expressarem sua opinião a respeito do assunto. Uma professora de alfabetização expressa sua opinião:
Precisamos primeiro nós lidarmos com nossas diferenças, para depois lidarmos com tudo isso!”;
Nós temos a prática, vocês têm o conhecimento”. E uma professora de 1ª a 4ª série complementa: “E
nossos conhecimentos são fragmentados”. Em suma, os assuntos abordados no encontro anterior
foram reforçados e complementados: desde a situação de desvalorização atual dos professores, a
cobrança excessiva da sociedade para a melhoria da qualidade da educação, a formação inicial falha e
descontextualizada da realidade diária do professor, as diferenças na formação dos professores dos
dois ciclos do ensino fundamental até a construção da identidade profissional de cada um deles, enfim,
aspectos que estão intrinsecamente relacionados à prática profissional docente.
Dando continuidade ao encontro, propus ao grupo a leitura e discussão dos artigos da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação em nosso país, relacionados às finalidades, princípios e objetivos da
educação infantil e ensino fundamental. Questões foram levantadas e sensibilizei os professores para
que interpretassem o sentido maior das expressões ali utilizadas. Este momento ajudou os professores
a entenderem o atual sistema educacional brasileiro, em que bases ele se fundamenta e os princípios
que o regem, pelo menos no que diz respeito à legislação.
A conclusão do grupo pode ser revelada pelos depoimentos finais de dois professores. O
primeiro, de uma professora formada pelo Magistério e Pedagogia, que trabalha em uma escola
municipal de educação infantil, e que nesta escola é professora da 4ª série do ensino fundamental:
Conhecer dói!”. O outro depoimento, do professor de História, licenciado, que atua nesta escola no
192
segundo ciclo do ensino fundamental e no ensino médio em outro estabelecimento de ensino: “Parece
que não há jeito de mudarmos o sistema” – demonstrando um desalento em seu tom de voz; “O aluno
não tem claro o porquê ele está na escola... a questão está relacionada com o próprio sistema
educacional brasileiro que está falido, e que não propicia ao aluno o prazer de estudar... O que nós
professores queremos é exatamente ir contra esta lei que só prioriza resultados e reproduz a
desigualdade...”. Sentimentos de frustração e desmotivação se conflitam com a vontade de mudar o
rumo desse sistema.
ANEXO 2
QUESTIONÁRIO DE CARACTERIZAÇÃO DO PROFESSOR
DADOS PESSOAIS
Local de nascimento: Cidade Estado______
Sexo ___________________ Idade _____________________
Há quanto tempo dá aulas? ___________________________________________________
DADOS PROFISSIONAIS
Formação Profissional:
( ) Magistério
Nome da Instituição_____________________________________________________
Cidade/Estado _________________________________________________________
193
Ano de Conclusão ________
( ) Superior Curso _________________________________________________________
Nome da Instituição_____________________________________________________
Cidade/Estado _________________________________________________________
Ano de Conclusão ________
( ) Outro Curso __________________________________________________________
Nome da Instituição_____________________________________________________
Cidade/Estado _________________________________________________________
Ano de Conclusão ________
Há quanto tempo leciona nessa escola? __________________________________________
Disciplinas que ministra nessa escola: ___________________________________________
Série(s) e Período em que leciona nessa escola:
1ª. ( ) 2ª. ( ) 3ª. ( ) 4ª. ( )
5ª. ( ) 6ª. ( ) 7ª. ( ) 8ª. ( )
Manhã ( ) Tarde ( ) Noite ( )
Trabalha em outra escola? ( ) não
( ) sim estadual ( ) municipal ( ) particular ( )
Em que período e série(s)? __________________________________________________
ANEXO 3
TEXTO DE APOIO
Mário é um professor recém-formado que trabalha há pouco tempo em sala de aula. Suas
experiências anteriores restringiam-se ao ambiente administrativo de uma firma de representação
comercial, trabalho este tido por Mário apenas como um meio de pagar os custos adicionais de seus
estudos universitários (transporte, livros, alimentação), já que havia conseguido bolsa de estudos
integral numa conceituada universidade.
Já formado, Mário estava ansioso pela sala de aula, um sonho que fora semeado em sua alma
nas aulas do ensino médio: “Ah! Que saudades das aulas de História do professor Humberto”.
Humberto e seu jeito de “ser professor” seduzira Mário.
Curioso e motivado, Mário foi um dos alunos mais aplicados na disciplina de Metodologia e
Prática de Ensino, estava sempre procurando aprender sobre “como daria suas aulas”.
Como professor substituto de uma escola estadual, assume as aulas de História das turmas de
5ª e 6ª séries. Sempre ouviu falar das dificuldades da profissão docente e os desafios da escola pública,
no entanto, estava tão motivado para entrar em sala de aula que nada seria maior que isso.
194
Sua empolgação se apaga já no segundo mês de aula. Na hora do intervalo, na sala dos
professores, desabafa com uma de suas colegas:
“Estes alunos não sabem interpretar, nem mesmo ler os textos históricos, e olha que eu já busquei
os textos mais fáceis!
As técnicas que aprendi, tenho a certeza, são as melhores...
Minhas aulas não estão dando o resultado que eu esperava...
Estes alunos mal sabem escrever!”
Denise, professora de Ciências há mais de 15 anos e há 5 anos nesta escola, responde:
“Meu caro amigo, isto não muda... Os alunos chegam sempre assim na 5ª série, sem saber ler e
escrever direito e muitos vão sair da 8ª série do mesmo jeito; não se iluda, você não vai conseguir
dar mais nada, além de aulas expositivas...”
Mário, indignado, questiona:
“Mas o que estes alunos estão aprendendo antes de chegar na 5ª série? O que estão fazendo
estes professores de 1ª a 4ª séries?”
(Continuação do texto...)
Vitória, uma professora eventual que no outro período trabalha numa escola municipal com
alunos de 3ª série só pensava:
(“Esses professores que se dizem especialistas sempre se acham mais importante do que nós.
Daqui a pouco vão nos chamar de professorinhas”).
Remoendo-se em seus pensamentos, Vitória desiste de ficar quieta e, irritada, dispara em defesa
das professoras de 1ª a 4ª série:
“Epa! As coisas não são bem assim! E o que vocês, professores de 5ª a 8ª série fazem com
esses alunos? Por que vocês acham que os alunos têm que chegar “prontos” e “acabados”
para que vocês simplesmente sigam em frente?
Mário, constrangido, tenta se explicar:
“Não é bem assim... como é mesmo seu nome?
“Vitória...”
“Pois então, Vitória, veja bem, não estou querendo desmerecer o trabalho de 1ª a 4ª série. Na
verdade, eu nem conheço esse trabalho.”
Vitória, irritada, dispara:
“Exatamente por não conhecer este trabalho, você deveria pensar duas vezes antes de falar
dele. Nós, professores de 1ª a 4ª série, temos até mais dificuldades que vocês. Ou você pensa
que alfabetizar uma criança numa sala com mais de 35 alunos é fácil?”
Karine, a professora que leciona Geografia para os alunos de 5ª e 6ª séries e que também tem
experiência no magistério de 1ª a 4ª séries entra na discussão:
“Não é bem assim, na verdade ninguém conhece o trabalho de ninguém nas escolas...
ninguém tem tempo... e um não tem paciência para ouvir o outro falar sobre o próprio
195
trabalho... na verdade, no Ciclo II os professores precisam sim que os alunos já saibam pelo
menos ler, escrever e fazer contas para poder fazer o próprio trabalho... mas o que ninguém
sabe é como tem sido difícil para as professoras do Ciclo I conseguirem fazer os alunos
vencerem todas as etapas do processo de aprendizagem da leitura e da escrita... elas
conseguem perceber os progressos dos alunos (muitas vezes lento e gradativo), elas sabem
que não podem (nem devem) reter esses alunos... só que esse processo pára depois da 4ª.
série... ninguém faz mais nada para ajudar o aluno nesse domínio...”
Mário, chateado com a discussão, respira fundo e antes de se colocar novamente, a diretora
entra na sala dos professores e começa a falar sobre a Feira de Ciências que acontecerá nos próximos
meses.
_________________________
Agora, depois de ler a discussão entre Mário, Denise, Vitória e Karine, você, como professor,
expresse sua opinião sobre esse assunto.
Perguntas de apoio:
1. Quais os sentimentos de Mário, Denise, Vitória e Karine? O que eles expressam?
2. Que diferenças podem ser percebidas na forma como Mário, Denise, Vitória e Karine percebem a situação?
4. Como os professores de 5ª a 8ª séries percebem o trabalho realizado pelos professores de 1ª a 4ª séries?
5. Como vocês acham que os professores de 5ª a 8ª série imaginam o que os professores de 1ª a 4ª séries
percebem ou pensam sobre o trabalho dos professores que atuam no Ciclo II?
6. Como vocês, professores, se sentem diante dessas questões?
7. Como vocês imaginam que os professores de 1ª a 4ª série se sentem ou pensam a esse respeito?
ANEXO 4
FICHA DE APOIO À CARACTERIZAÇÃO DA ESCOLA
1. Dados de Identificação:
1.1.Nome da Escola: ________________________________________________________
1.2. Rede ( ) privada ( ) estadual ( ) municipal
1.3. Localização: ___________________________________________________________
1.4. Perfil sócio-econômico da comunidade ao redor: ______________________________
1.5. Ano de Fundação: ________
2. Perfil dos Alunos:
196
2.1. Perfil sócio-econômico dos alunos: _________________________________________
2.2. Perfil sócio-econômico da comunidade ao redor: ______________________________
2.3. Índice de desempenho dos alunos segundo dados da própria escola: _______________
2.4. Índice de desempenho dos alunos segundo dados do último SARESP: _____________
3. Cursos e Professores:
HORÁRIOS
NÚMERO
DE PROFESSORES
CURSO
Entrada Intervalo Saída
NÚMERO
DE
ALUNOS
Efetivos Contratados Outros
4. Caracterização física da escola:
4.1. Prédio de ( ) alvenaria ( ) madeira ( ) outro ___________
( ) adaptado ( ) construído para fins escolares
4.2. Número de salas de aula na escola: ______
4.3. Descrição geral das condições das salas de aula (ventilação, iluminação, piso, paredes) e do
mobiliário existente (disposição e uso).
4.4. Como é a limpeza, asseio e decoração das salas de aula?
4.5. SALAS
AMBIENTES
EQUIPAMEN-
TOS
DISPONÍVEIS
CONDIÇÕES
GERAIS:
ventilação,
iluminação,
paredes, piso...
LOCALIZA-
ÇÃO
USO DOS
PROFESSO-
RES
USO
DOS
ALUNOS
BIBLIOTECA
LABORATÓRIO
DE CIÊNCIAS
FÍSICA E
BIOLOGIA
LABORATÓRIO
DE
INFORMÁTICA
SALA DE TV E
VÍDEO
AUDITÓRIO
QUADRA DE
ESPORTES
197
4.6. Há outros ambientes de aprendizagem para uso dos alunos?
4.7. Como é a limpeza, asseio e decoração destes espaços de aprendizagem?
4.9. Há outros espaços comuns?
4.10. Como é a limpeza, asseio e decoração desses espaços?
4.11. Há acesso para deficientes físicos? ________________________________________
4.12. Anexar croqui da planta da escola.
5. Materiais disponíveis:
5.1. Quais os materiais e equipamentos áudios-visuais a disposição do professor? Em que condições
estão? Como estão disponibilizados?
5.2. Quais os materiais e equipamentos áudios-visuais a disposição dos alunos? Em que condições
estão? Como estão disponibilizados?
6. Relação dos agentes com os espaços:
6.1. A organização da escola possibilita a integração, troca de experiências e comunicação entre os
professores?
6.2. Qual é a sala utilizada para os encontros pedagógicos?
6.3. Quais os espaços ocupados pelos alunos na hora do intervalo?
6.4. Quais os espaços ocupados pelos professores quando ele não está em sala de aula (intervalo, aula
vaga, entradas antecipadas, etc.)?
4.8. OUTROS
AMBIENTES
MOBILIÁRIO
(disposição e uso)
CONDIÇÕES GERAIS:
ventilação, iluminação,
paredes, piso...
LOCALIZAÇÃO
REFEITÓRIO
PÁTIO
SANITÁRIOS DE
ALUNOS
SANITÁRIOS DE
PROFESSORES
SALA DE
PROFESSORES
DIREÇÃO
COORDENAÇÃO
198
7. A escola versus os agentes:
7.1. Qual a imagem/ reputação da escola perante:
7.1.1. alunos:
7.1.2. professores:
7.1.3. pais:
7.1.4. comunidade:
7.2. A que pontos essa imagem/ reputação se referem?
7.3. Como a escola lida com os problemas indisciplinares? Há um livro de ocorrências?
7.4. Que dizem os registros sobre as faltas e atrasos dos professores?
8. Qual o maior problema que a escola enfrenta atualmente?
9. Qual o aspecto mais positivo da escola atualmente?
10. A escola promove encontros de nível pedagógico (ou outros) com o grupo de professores?
Que tipo de encontros e com que freqüência eles acontecem? Quem costuma dirigir estes
encontros? Quais os objetivos desses encontros? Há registros desses encontros? Como se
caracterizam tais registros?
11. Que outros aspectos foram observados?
Fontes utilizadas:
( ) Projeto Político Pedagógico ( ) Plano Escolar - Ano _____
( ) Site da Secretaria Estadual da Educação
( ) Entrevista com a equipe técnica-pedagógica
( ) Conversas informais com Alunos ( ) Pais ( ) Funcionários ( )
Observação direta ( ) ( ) Outros ______________________________
Esta pesquisa foi realizada no período de ____ /_____ / ______ a _____/_____/ ______
Nome e função de quem forneceu as informações: _________________________________
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