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ALVARO LUIZ TRAVASSOS DE AZEVEDO GONZAGA
A JUSTIÇA EM PLATÃO E A FILOSOFIA DO DIREITO
MESTRADO EM DIREITO
PUC/ SÃO PAULO
2007
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ALVARO LUIZ TRAVASSOS DE AZEVEDO GONZAGA
A JUSTIÇA EM PLATÃO E A FILOSOFIA DO DIREITO.
Dissertação apresentada à Banca
examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para
obtenção do título de MESTRE em
Filosofia do Direito, sob a orientação
do Prof. Dr. Cláudio De Cicco.
PUC/ SÃO PAULO
2007
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BANCA EXAMINADORA
_____________________________
_____________________________
_____________________________
i
Agradeço,
Aos meus pais, aqueles que até hoje me
ensinam as virtudes de um homem e
compreendem, com paciência, meus
desafios.
Aos meus amigos, que me impulsionam
ou me criticam nos momentos certos,
especialmente a Viviane de Macedo
Pepice, Ygor Colalto Valério, Fabio
Cornagliotti de Morais, Maria Elisa Reis,
Magali Gallello, Carlos Henrique Habe e
Luis Aurélio Spósito, pessoas que nunca
mediram esforços para me ajudar.
Aos mestres Cláudio De Cicco,
orientador, professor e amigo, que com
muita franqueza me orientou nesse
trabalho; a Márcio Pugliesi por me
ajudar, em suas aulas, a ampliar meu
quadro referencial filosófico; a Marco
Antônio de Ávila Zingano, professor da
Universidade de São Paulo que, na
graduação em Filosofia, me iniciou
academicamente; e a Sergio Gomes da
Silva, professor da OBORÉ, pelo senso
prático da teoria que estudamos na
academia.
A Nathaly, companheira que com
franqueza, paciência e dedicação me
ajudou a concluir este trabalho.
ii
RESUMO
O presente trabalho predispõe-se a estudar a
mudança da doutrina platônica, dos Diálogos Jovens para os Diálogos Médios,
no que diz respeito à Teoria das Virtudes Cardinais (Justiça, Temperança,
Coragem e Sabedoria). Analisaremos a unicidade das virtudes na obra
Protágoras, bem como a possibilidade de sua separabilidade na obra A
República. Ainda em A República, será estudado como se constrói a Justiça na
cidade ideal platônica. Por fim, abordaremos a possibilidade do conflito da alma
com a acrasia.
Palavras Chaves: Justiça, Teoria da Justiça, Platão, Sócrates, Virtudes,
Protágoras, República, Unidade das Virtudes.
iii
ABSTRACT
The present work intends to study the change in the
platonic doctrine from the Young Dialogues to the Average Dialogues,
concerning the Theory of the Cardinal Virtues (Justice, Moderation, Courage
and Wisdom). We will analyze the unicity of the Virtues in Protagoras, as well
as the possibility of their dissociation in The Republic. Still in The Republic, we
shall explore how Justice is constructed in the idealistic platonic city. Finally, we
will approach the possibility of the conflict between the soul and the acrasia.
Key Words: Justice, Theory of Justice, Plato, Socrates, Virtues, Protagoras,
Republic, Unicity of the Virtues.
iv
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 01
PARTE I – REFERENCIAL TEÓRICO 03
2 PLATÃO EM SEU TEMPO 03
2.1 Biografia de Platão 03
2.2 Contexto Histórico de Platão no Estado Grego 08
2.2.1 O período pré-Homérico 10
2.2.2 O período Homérico 11
2.2.3 O período Arcaico 13
2.2.4 O período Clássico 18
2.3 Obras de Platão e suas Fases 23
2.3.1 Primeira: Fase Socrática ou Diálogos Jovens 24
2.3.2 Segunda: Fase Média ou Início da Doutrina das Idéias 28
2.3.3 Terceira Fase: Platão tardio 31
3 ALGUNS MITOS DA ANTIGÜIDADE E SUA IMPORTÂNCIA PARA A
COMPREENSÃO DOS IDEAIS PLATÔNICOS 34
3.1 O Mito das Cinco Idades 35
3.1.1 Idade de Ouro 36
3.1.2 Idade de Prata 37
3.1.3 Idade de Bronze 38
3.1.4 Idade dos Heróis 38
3.1.5 Idade de Ferro 39
3.2 O Mito da Caverna 42
3.3 O Mito de Prometeu e Epitemeu 44
3.4 O Mito de Giges 47
3.5 O Mito de Er 49
v
PARTE II – DESENVOLVIMENTO 52
4 A JUSTIÇA PLATÔNICA NA FASE SOCRÁTICA 52
4.1 Protágoras – Tese da Unidade das Virtudes 52
4.1.1 Separabilidade, Unidade ou Bicondicionalidade das Virtudes
56
4.1.2 Os quatro argumentos sobre a Unidade das Virtudes 59
4.1.2.1 Primeiro Argumento: Piedade e Justiça 60
4.1.2.2 Segundo Argumento: Sabedoria e Temperança 62
4.1.2.3 Terceiro Argumento: Coragem e Sabedoria 65
4.1.2.4 Quarto Argumento: Coragem e Sabedoria 67
4.1.3 Os Equívocos de Sócrates na Teoria da Unidade das Virtudes
72
5 A JUSTIÇA PLATÔNICA EM A REPÚBLICA, OU NA FASE PLATÔNICA
74
5.1 Sócrates desce ao Pireu (a katábasis)76
5.2 A República Platônica 81
5.2.1 A Justiça na Cidade 83
5.2.1.1 A Quarta Virtude: a Justiça 90
5.2.2 Da cidade para o Indivíduo 92
5.2.2.1 As Virtudes, as partes da alma e a acrasia 94
5.2.3 As Virtudes próprias do Jurista 97
6 CONCLUSÃO 99
6.1 Biografia de Platão e Contexto Histórico 99
6.2 Diálogos Platônicos 99
6.3 As Virtudes Cardinais e sua separabilidade 100
6.4 A Justiça em A República 101
6.5 Considerações Finais 102
7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 103
1
1 INTRODUÇÃO
Este estudo apresenta uma análise da mudança da
doutrina platônica sobre a Justiça e as virtudes nos Diálogos Jovens e Médios,
considerando basicamente as obras Protágoras e A República, ambas de Platão.
No segundo capítulo, serão enfatizados o contexto
histórico, a biografia platônica e a estrutura das obras de Platão, com o propósito
de melhor compreender o pensamento do filósofo inserido em seu meio e a partir
da interação com as pessoas que passaram por sua vida. Ainda nesse capítulo,
estudaremos a divisão proposta por alguns comentadores da obra platônica, o que
dará subsídios e possibilitará mostrar as mudanças de postura e as evoluções
doutrinárias e conceituais nos próximos capítulos.
O terceiro capítulo será dedicado à apresentação e à
análise de alguns mitos da Antigüidade, tais como o Mito das Cinco Idades e o
Mito da Caverna, já que a obra platônica dedica um grande espaço a mitos já
conhecidos, ou ainda a novos mitos. Esse capítulo é importante para que se possa
compreender melhor o desenvolvimento deste trabalho, uma vez que diversos
mitos são contados ou invocados para alegoricamente explicar determinado
pensamento.
2
No quarto capítulo, apresentaremos como a Justiça é
vista por Platão nos Diálogos Jovens, especialmente em Protágoras. Estudaremos
as Quatro Virtudes cardinais e a teoria intelectualista da Unidade das Virtudes na
doutrina platônica socrática, ou seja, estudaremos se as quatro Virtudes Cardinais
(Justiça, Coragem, Sabedoria e Temperança) existem de forma independente ou
se poderão ser consideradas apenas em conjunto.
O quinto capítulo consiste na análise dos primeiros
livros da obra A República. Nesta obra, Platão abandona sua teoria intelectualista
da Unidade das Virtudes, acreditando na possibilidade da existência das virtudes
separadamente. Desenvolve sua nova teoria, a da tripartição da alma, a partir da
análise do conceito de Justiça na polis e no indivíduo.
Por fim, apresentaremos algumas conclusões a que
pudemos chegar neste trabalho, no sentido de identificar os caminhos e
compreender a mudança e o processo de maturidade na filosofia de Platão, ao
abandonar sua teoria intelectualista da Unidade das Virtudes para apresentar a
teoria da Tripartição da Alma.
3
PARTE I – REFERENCIAL TEÓRICO
2 PLATÃO EM SEU TEMPO
2.1 Biografia de Platão
Platão nasceu em 7 de maio de 427 a.C.
1
, segundo
Diógenes Laércio, em Atenas ou em Egina. Faleceu em 348-7 a.C. Tais datas são
dotadas de grande significado uma vez que Platão nasceu no ano seguinte ao da
morte de Péricles e faleceu dez anos antes da batalha da Queronéia, a qual
permitiu a Filipe da Macedônia a conquista do mundo grego.
O célebre nome Platão é, na verdade, um apelido que
surgiu por conta de possuir ombros muito largos. O nome que seus pais lhe deram
foi Arístócles. Naquele tempo, as pessoas se apresentavam com seu
patronímico
2
, ou seja, apresentavam-se utilizando como referência inicialmente
1
WATANABE, Ligia Araújo. Platão por mitos e hipóteses. São Paulo: Moderna, 2006. p. 18. Para
Watanabe, não é possível dar precisão ao ano, quanto mais à data exata de seu nascimento. Os
gregos não contavam os anos como nós o fazemos, apenas numerando-os abstratamente. Os
anos tinham, na verdade, nomes de pessoas. Era costume atribuir ao ano, por exemplo, o nome do
arconte principal (era o título dos membros de uma assembléia de nobres da Atenas antiga, que se
reuniam no arcontado), denominado, por isso, arconte epônimo. Um grego então diria: “Platão
nasceu no arcontado de Animías”, quando nós, a bem da verdade – e se saltarmos as complexas
etapas do procedimento de datação – cientificamente poderíamos apenas dizer: “Platão deve ter
nascido no ano de 427 a.C.”
2
Tal termo significa “relativo a pai”. No entanto, não seria demais dizermos que a pátria ou pátrio
significa “dizer respeito aos pais” (pai e mãe) e pátria (terra de nascimento dos meus pais).
4
seu nome, seguido de sua pátria, sua localidade mais específica na polis, sua
filiação e seu apelido: “Arístócles de Atenas, filho de Aríston e de Perictione, do
demo de Colutés, conhecido como Platão”.
Filho de Aríston e Perictione, Platão pertencia a uma
tradicional família de Atenas e estava ligado, pelo lado materno, a grandes
personalidades do meio político. Sua genitora descendia do grande legislador
Sólon, era irmã de Carmides e prima de Crítias, dois dos trinta tiranos que
dominaram Atenas durante algum tempo. Teve dois irmãos mais velhos, Adimanto
e Gláucon, e uma irmã, Potone, que foi mãe de seu discípulo e sucessor, Seusipo.
Segundo narra O Parmênides, teve ainda um irmão, por parte de mãe, Antífon,
filho de Pirilampes e Perictione. Talvez seja possível atribuir o desapreço de
Platão pelos políticos de seu tempo ao convívio e, conseqüentemente, ao
conhecimento dos bastidores políticos, adquirido desde criança.
Fato que marcou a juventude de Platão foi ter
conhecido seu maior mestre, Sócrates
3
. Na época da oligarquia dos trinta tiranos,
os governantes tentaram fazer Sócrates cúmplice na execução de Leon de
Salamina, cujos bens desejavam confiscar. Sócrates recusou-se a participar da
3
WATANABE, Ligia Araújo. op. cit., p. 34: “Platão aparece na vida de seu mestre Sócrates
primeiramente sob a forma de sonho. Tendo Sócrates sonhado com um cisne e tendo Platão se
apresentado no dia seguinte a ele para ouvir as palestras deste já então famoso filósofo, Sócrates
concluiu que o cisne de seu sonho era seu novo discípulo. O cisne representava para os gregos de
então um atributo simbólico do deus Apolo, um sinal do caráter apolíneo de seu discípulo Platão.
Ser apolíneo significava ser amante da ordem, da beleza tranqüila e da razão paciente e calculista
– imagem que por muito tempo foi conferida a todo o Classicismo e à arte clássica grega, em
particular -, em oposição ao caráter dionisíaco, do deus Dioniso, deus da embriaguez e da des-
5
indigna trama perdendo, deste modo, a simpatia que tinha dos tiranos. Mais tarde,
em 399 a.C., Sócrates foi acusado pelo regime democrático de Atenas de ter
corrompido a juventude, por difundir idéias contrárias à religião tradicional, tendo
sido condenado a morrer bebendo cicuta. Em vão foram as tentativas de Platão e
de alguns companheiros de se apresentarem como fiadores do mestre.
Frente à injustiça que Sócrates havia sofrido, Platão
aprofundou sua descrença na democracia como a melhor forma de governo. Para
Platão, o mais sábio e mais justo de todos os homens não poderia ter sido tratado
daquele modo, o que o fez crer que não poderia haver um partido político que um
homem pudesse integrar sem abrir mão de seus princípios éticos.
Após a morte do grande mestre, o núcleo de estudos
liderado por Sócrates ficou disperso. Nesse momento, Platão retirou-se para
Mégara, com outros colegas e ali conheceu Euclides, que já havia pertencido ao
grupo socrático, mas agora se dedicava a uma escola filosófica que mais tarde
fundaria, vinculando o socratismo e o eleatismo
4
. A seguir, foi ao sul da Itália
(Magna Grécia), onde conviveu com Arquitas de Tarento. O famoso matemático e
político pitagórico deu-lhe um exemplo vivo de sábio governante, apontado por
Platão em sua obra A República como sendo a solução ideal para os problemas
políticos.
razão, e ao caráter barroco das artes, em particular, que é, no entanto, tão grego e tão clássico
quanto o caráter apolíneo”.
4
MORA, J. Ferrater. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001. p. 809, Tomo II: “Dentre os
pré socráticos, são chamados de eleatas Xenofonte de Colofonte, Parmênides de Eléia, Zenão de
6
Em continuidade, Platão realizou sua primeira viagem
para a Sicília, quando, em Siracusa, ligou-se a Díon, sobrinho do tirano Dionísio, o
velho. Conquistando a amizade e a inteira confiança de Díon, apresentou,
reiteradamente, propostas para interferir com o seu pensamento político na forma
de governar em Siracusa, sem obter sucesso no seu intento. Visitou ainda o norte
da África. Em Cirene, inteirou-se das pesquisas matemáticas desenvolvidas por
Teodoro, particularmente daquelas referentes aos irracionais. Os irracionais
matemáticos foram inspiração para a doutrina platônica, pois representariam a
justa medida que nenhuma linguagem consegue exaurir.
Em suas viagens, Platão dispôs de boa parte de seu
patrimônio
5
. Sabe-se que foi com o dinheiro ofertado por Díon, que comprou, em
387 a.C., perto do ginásio de Academo, um pequeno jardim. Ali edificou uma
capela dedicada às Musas, construiu pórticos e estabeleceu um lugar de reunião
que se transformou na sua célebre Escola, capitaneada pelo fundador até seus
últimos dias
6
. Esse acontecimento, acentuam os comentadores e historiadores da
Filosofia, é de extrema importância para a história do pensamento ocidental.
Platão foi o primeiro dirigente de uma instituição permanente de investigação
científica e filosófica, voltada para a pesquisa original e concebida como
conjugação de esforços de um grupo que vê o conhecimento como algo vivo e
Eléia e Melisso de Samos [...] Característica dos eleatas era, com efeito, a afirmação da unidade
do que existe.”
5
No testamento que fez ao filho do seu irmão Adimanto, verifica-se que o filósofo dispunha de
modesta fortuna.
6
A academia, de nível superior, com vários professores, subsistiu, até 529
d.C., quando foi
fechada, após nove séculos de atividade, pelo imperador Justino, objetivando fortalecer o
Cristianismo em Constantinopla.
7
dinâmico e não, como na maioria das academias, inclusive as atuais, como sendo
um corpo de doutrinas a serem simplesmente resguardadas e transmitidas.
Na mesma época, também em Atenas, Isócrates dirigia
outra instituição de ensino que se fundava em valores totalmente opostos aos de
Platão. Nessa escola, seguidora da linha sofista, ensinava-se aos aspirantes à
vida pública os recursos retóricos. Não se realizava nela o estudo de ciência
abstrata; o escopo desta escola era fornecer munições para que o mancebo
pudesse defender seus pontos de vista de forma persuasiva
7
.
Por cerca de vinte anos, Platão dedicou-se ao ensino e
à formulação teórica em sua Academia. Entretanto, um fato novo interrompeu
essas atividades: em 367 a.C. morreu o tirano de Siracusa, Dionísio I, sucedido
por Dionísio II. Díon chama novamente Platão a Siracusa. Afirma-se que o jovem
Dionísio é simpático às idéias políticas do filósofo. Aceitou então o convite de
Díon, partindo para Siracusa.
Parecia esse o momento propício para reformar a vida
política da cidade. Como a polis era governada por apenas um indivíduo, favorável
às suas idéias, bastaria convencê-lo para que tudo se encaminhasse da maneira
almejada, ou seja, conforme seus entendimentos acerca da organização social da
7
Para o quadro político que se estabelecia naquele momento, podemos dizer que, em curto prazo,
a instrução de futuros homens públicos estaria garantida pela instituição de Isócrates, que
ensinava os conhecimentos ideais para a satisfação imediata de entraves de situações concretas.
Porém em longo prazo, e pensando em alimentar o espírito, conforme Platão, a política não se
8
República. Todavia, sua empreitada não teve o sucesso esperado. Platão não
conseguiu mudar as disposições de Dionísio II, que se indispôs com Díon, fato
que implicou o exílio do filósofo
8
. Diante das dificuldades circunstanciais, Platão
voltou para Atenas e confinou-se em seu papel puramente filosófico.
Platão, exemplo raro da grandeza humana, morreu aos
80 anos em uma festa realizada em Atenas. Durante a festa, se afastou para um
canto e dormiu. Quando foram acordá-lo pela manhã, já estava morto. Uma
multidão acompanhou seu sepultamento.
2.2 Contexto Histórico de Platão no Estado Grego
O conhecimento do contexto histórico de Atenas se faz
imprescindível para a compreensão deste trabalho. Entendemos que a
compreensão do pensamento grego, principalmente o Platônico, se faz de forma
conjugada com a interpretação da História. Sem compreendermos o processo de
construção da democracia ateniense, ou desconhecendo-se quem eram os trinta
tiranos, ou, ainda, sem identificar o contexto em que se deu a positivação das leis
em Atenas, teremos certa dificuldade ou deficiência para formar o quadro de
referência para interpretar o pensamento platônico.
limita apenas a pratica insegura e circunstancial, a investigação deve ser mais ampla e deve
buscar os fundamentos da conduta humana.
9
Tradicionalmente, a cronologia da História da Grécia
Antiga é divida em cinco períodos distintos: (i) Período pré-Homérico (do século
XX a.C. ao século XII a.C.), quando houve a formação da cultura creto-micênica e
a imigração de povos indo-europeus; (ii) Período Homérico (do século XII a.C. ao
século VIII a.C.), cuja ênfase é a evolução política da Grécia, com a fixação dos
povos indo-europeus e as subseqüentes divisões sociais em genos
9
, logo depois
em fratrias
10
, em tribos
11
, daí em demos
12
e, por fim, a formação das cidades-
estados
13
; (iii) Período Arcaico (do século VIII a.C. ao século VI a.C.), ocasião em
que a polis firmou-se, a partir das profundas transformações na sociedade
ocasionadas pela privatização de terras e pela dissolução da comunidade
gentílica, destacando-se Atenas e Esparta como as duas principais polis com
organização política e social sólida; (iv) Período Clássico (do século V a.C. ao
século IV a.C.), correspondente ao apogeu grego, época na qual viveram Sócrates
e Platão; (v) Período Helenístico (do século IV a.C. ao século III a.C.),
caracterizado pela fusão da cultura grega com a oriental.
8
Em 392 a.C., Díon derruba Dionísio, o tirano do poder, mas também é assassinado. O exílio de
Platão o livrou de ser vendido como escravo por não pagar suas dívidas. É, talvez, uma lenda,
para frisar a desgraça do filósofo.
9
Famílias coletivas constituídas por um grande número de pessoas sob a liderança de um
patriarca. Eram pequenas organizações sociais e econômicas na qual seu chefe supremo era o
pater.
10
Para enfrentar um inimigo comum, alguns genos se uniram e formaram as fratrias
11
Reunião de fratrias, comandadas pelo filobasileu, o supremo comandante do exército.
12
União de várias tribos; povo, povoado.
13
Com a crise da sociedade, alterou-se a estrutura interna das genos. Os mais próximos do pater
tinham as melhores terras, eram os eupátridas, (ou bem-nascidos, em grego). Com a segunda
diáspora, a sociedade começou-se a dividir e, com tal instabilidade, várias tribos se uniram em
comunidades independentes que deram origem às cidades-estados ou polis.
10
Passaremos a analisar, em apertada síntese, alguns
pontos dos momentos históricos citados acima.
2.2.1 O período pré-Homérico
Homero, poeta grego do século VI a.C., autor dos
poemas Ilíada e Odisséia, é usado como ponto de referência para a subdivisão da
história grega, já que em seus versos, retratou o modo de vida dos primitivos
helenos.
O período pré-Homérico caracteriza-se pela
coexistência de duas culturas mais ou menos hegemônicas que dominavam o que
mais tarde seria a Grécia Antiga.
A civilização cretense (ou minóica) foi a primeira
civilização com estruturas sociais, política, culturais e econômicas complexas da
região
14
. Teve início na ilha de Creta, no mar Egeu caracterizava-se como uma
sociedade matriarcal.
14
Até hoje parte dessa civilização permanece em mistério absoluto, pois ainda não se decifrou por
completo o alfabeto cretense, que é dividido pelos historiadores e lingüistas em linear A e linear B.
Mesmo com a tradução completa do alfabeto linear A, existem enormes dificuldades para a
compreensão dessa civilização, pois segundo os historiadores, esse alfabeto registrava apenas
mercadorias, trocas comerciais e estoques de armazéns, sem possibilitar o entendimento de
muitos aspectos da cultura e da política da sociedade cretense. Mesmo assim como é possível
constatar que essa civilização mantinha trocas comerciais intensas com os mais diversos povos do
mundo, pressupõe-se ao menos que eles constituíam uma sociedade avançada tanto do ponto de
vista tecnológico como do econômico.
11
Entre os anos 2000 a.C. e 1700 a.C,, os primeiros
povos indo-europeus denominados aqueus imigraram para o sul da península
balcânica, onde fundaram a cidade de Micenas, berço de uma nova civilização
que, ao conquistar Creta, fundiu sua cultura própria com a cultura minóica,,
resultando na cultura creto-micênica, que predominou na Grécia até o século XII
a.C.
Entre 1700 a.C. e 1400 a.C., com uma nova onda de
imigrações indo-européias, chegaram à Península os povos eólicos e jônicos. Em
1200 a.C., ocorreu a última e mais devastadora imigração indo-européia, a dos
dóricos, que eclipsou a civilização creto-micênica, levando à primeira diáspora
grega, quando os habitantes do continente migraram para as ilhas do mar Egeu e
para a Ásia menor, lançando a Grécia num período de grave crise, identificado
como o período Homérico.
2.2.2 O período Homérico
A partir do fim do período pré-Homérico, a civilização
grega passou para o estágio das comunidades gentílicas, caracterizadas pela
associação de indivíduos através dos laços consangüíneos. Por volta do século
VIII a.C., aumentou a complexidade relativa à formação dessas comunidades, em
função de novas associações entre os genos, resultando em grupos como fratrias,
12
tribos e demos, que mais tarde deram origem às cidades-estado. Esse processo
foi acompanhado pelo fortalecimento da distinção entre classes sociais.
Sendo os genos associações fundamentalmente
familiares, os grupos mais próximos às origens do clã, ou seja, os grupos
associados aos mais velhos, chamados de pater tiveram privilégios na distribuição
de riquezas, entre essas, a terra. Esses grupos privilegiados acabariam gerando
no futuro as aristocracias das cidades-estado e são denominados eupátridas
(bem-nascidos, em grego). Os que participaram de uma distribuição mediana de
riquezas foram chamados de georgóis (agricultores) e os que ficaram
completamente desprovidos de riqueza material foram chamados de thetas
(marginais)
15
.
Os grupos desprovidos de bens migraram para regiões
fora da Grécia, notadamente para a ilha da Sicília, o sul da península itálica e
algumas regiões mediterrâneas do sul da atual França. Esse processo ficou
conhecido como a segunda diáspora grega.
Como conseqüência, verifica-se a fundação de cidades-
estado gregas fora da Grécia, como a cidade de Siracusa, na Sicília, de Nápoles,
no sul da Itália, e de Marselha, no sul da França. Tal fator, mais tarde, aliado à
futura expansão comercial das cidades na Grécia, levou a cultura grega a
15
Entendemos que essa forma de organizar a sociedade levaria aos conflitos sociais geradores da
democracia ateniense.
13
influenciar os povos dessas regiões, como os etruscos e os romanos, além de
contribuir para a própria expansão das cidades gregas. Esses movimentos, que
duraram até o século VIII a.C., conduziram ao período Arcaico.
2.2.3 O período Arcaico
Os processos descritos anteriormente levaram à
concentração de terras, ao desenvolvimento do comércio exterior e a diferenças
sociais muito mais profundas do que antes, provocando conflitos sociais bem mais
intensos do que nos períodos anteriores.
Com o fortalecimento de certos grupos sociais, a
maioria das cidades-estado da Grécia foi dominada política e economicamente por
esses grupos, formando assim oligarquias. Algumas cidades-estado se
transformaram em democracias, enquanto outras se mantiveram oligárquicas.
Serão citados aqui os dois exemplos mais conhecidos – e talvez os mais
importantes – desses modelos políticos: Esparta e Atenas.
Esparta era uma cidade-estado situada na península
do Peloponeso, cercada por montanhas que faziam sua defesa natural e
conquistou toda a região de seu entorno. Sua estrutura social dividia-se
rigidamente em três classes sociais: os espartanos, descendentes dos
conquistadores dórios, eram os únicos a ter cidadania, posse de terras e
monopólio do poder militar, religioso e político; os periecos, descendentes dos
14
povos que foram submetidos ao domínio dos dórios, dedicavam-se ao comércio e
ao artesanato; e, por fim, os hilotas, eram considerados propriedade do Estado,
portanto servos, que representavam a maior parte da população e da mão-de-obra
do trabalho agrícola.
O poder em Esparta era controlado por uma diarquia, ou
seja, por dois reis com funções religiosas e militares. O comando maior era
exercido pelo Eforato, composto por cinco membros eleitos anualmente, que
dirigiam o Estado; pela Gerúsia, composta por vinte e oito homens maiores de
sessenta anos, que controlavam a atividade dos monarcas e atuavam no campo
legislativo, e, por fim, existia a Apela, composta por todos os espartanos maiores
de trinta anos, com funções eletivas e legislativas.
Todo esse sistema foi criado para perpetuar o modo de
vida espartano, extremamente oligárquico e militarizado. Para controlar os hilotas
pela força e dar continuidade às conquistas militares, os espartanos orientavam a
educação do cidadão para a obediência absoluta à autoridade e para a habilidade
física, essencial no meio militarizado.
Atenas, situada na Ática, teve a ocupação realizada
pelos aqueus, depois pelos eólios e principalmente pelos jônicos, mas não foi
invadida pelos dórios, já que se localizava numa região montanhosa e próxima ao
mar. Atenas não foi deixada de lado pelas transformações que ocorreram no
15
Período Homérico, tendo passado também pelo processo de fortalecimento de
alguns grupos sociais.
A monarquia foi mantida durante muito tempo em
Atenas até que os aristocratas, já fortalecidos, destituíram a monarquia e a
substituíram pelo Arcontado, formado por nove arcontes, com mandatos anuais,
que detinham tanto funções religiosas e militares como funções judiciais. Foi
estabelecido também o Areópago, composto pelos eupátridas, que deviam
controlar a atuação dos arcontes. Dessa forma, foi consolidado o período
oligárquico em Atenas.
A sociedade ateniense era então divida entre os
eupátridas (já mencionados); os demiurgos (thetas que permaneceram na polis
durante a segunda diáspora e a colonização de alguns lugares do mediterrâneo,
ou georgóis que perderam suas terras), dedicavam-se ao artesanato e ao
comércio; e os escravos, prisioneiros de guerra ou de endividamento que se
tornaram progressivamente a base de toda a produção agrícola e atuaram em
todos os ofícios em Atenas.
Essa estrutura social gerou uma série de significativos
conflitos e tensões sociais, principalmente entre eupátridas, comerciantes do litoral
e demiurgos. Os eupátridas pretendiam manter-se no poder; os comerciantes do
litoral, por sua vez, intensionavam participar do poder, ao passo que os
demiurgos, que enfrentavam péssimas condições de vida e eram escravizados
16
muitas vezes pelos eupátridas, sem direitos políticos, visavam a transformações
radicais na sociedade ateniense.
A luta de classes e o crescimento do comércio e da
polis foram fatores que engendraram uma série de reformas, reflexo dessa
profunda divisão social. Um dos reformistas foi Drácon, que em 621 a.C. modificou
a tradição oral das leis do Estado, convertendo-as para a escrita. Mesmo assim,
as leis mantinham as estruturas de poder vigentes e não propunham nenhum tipo
de reforma.
Após Drácon, em 594
a.C, outro legislador teve um
pouco mais de ousadia. Sólon eliminou a escravização por dívidas e dividiu os
privilégios sociais censitariamente. Sendo assim, a riqueza do indivíduo
determinaria sua posição social
16
, o que favoreceu os comerciantes do litoral e
desagradou os eupátridas, que perderam seu monopólio. Sólon fundou a Bulé,
que tinha quatrocentos membros, representantes das quatro tribos da Ática; a
Eclésia, uma assembléia popular que aprovava as medidas da Bulé; e o Helieu,
um tribunal de justiça aberto aos cidadãos.
As reformas políticas de Sólon tornaram o contexto
político ateniense ainda mais tenso. As mudanças possibilitaram o aparecimento
dos tiranos. O primeiro tirano de Atenas foi Pisístrato, que governou Atenas entre
17
561 a.C. e 527 a.C. e realizou inúmeras obras públicas, gerando emprego para as
camadas menos favorecidas de modo a conter os ânimos. Pisístrato foi sucedido
pelos seus filhos Hiparco e Hípias, que não conseguiram manter a situação
política estável, até que uma revolta liderada por Clístenes ganhou espaço e
permitiu-lhe assumir o poder da polis.
Clístenes dividiu Atenas em dez tribos, eliminando a
subdivisão anterior das quatro tribos, acabando de vez com o papel político
tradicional das famílias (genos e fratrias) e retirando o controle político da mão dos
eupátridas. A Bulé foi reorganizada para comportar quinhentos membros
(cinqüenta de cada tribo), os quais se revezariam no governo da polis. Ao
Arcondato foi acrescentado mais um membro, passando então a dez membros,
sendo um representante para cada tribo. Por fim, a Eclésia, com seis mil
representantes de todas as classes, passou a ter maiores poderes decisórios e de
regulamentação dos outros órgãos públicos, votando as propostas da Bulé, além
de poder votar o ostracismo.
Vale ressaltar que a democracia de Clístenes, apesar
de ter permitido o avanço econômico e político de Atenas, criando uma importante
oposição a Esparta (obscurecida durante muito tempo pela guerra com os persas),
era excludente. Apenas homens, adultos e filhos de pai e mãe atenienses
poderiam ter qualquer tipo de direito político, o que importava em uma parcela
16
Para Platão, em A República, como veremos no capítulo IV desse trabalho, isso seria reprovável,
uma vez que as virtudes dos homens determinariam se estes seriam de bronze, de prata ou de
18
mínima da população, deixando de fora os estrangeiros (metecos), mulheres e
escravos.
2.2.4 O período Clássico
Enquanto Atenas fortalecia sua estrutura democrática,
os persas avançavam em direção ao oeste. Sob o comando do imperador Dario I,
chegaram à Ásia Menor, onde atacaram Mileto, Efeso e as ilhas de Samos e
Lesbos. Após algum tempo de submissão, as regiões atacadas rebelaram-se.
Atenas bem que tentou, mas seus esforços no sentido de coibir essa insurreição
foram insuficientes, possibilitando que os persas destruíssem Mileto e iniciassem
seu avanço sobre a Grécia. Assim têm início as Guerras Médicas.
A situação beligerante da Grécia contra os persas
culminou na união militar das polis gregas, denominada Confederação de Delos.
Tal confederação consistia na coligação das cidades-estados, sendo que cada
uma deveria contribuir com navios ou dinheiro, direcionados à ilha de Delos.
Quase a totalidade dos Estados gregos do mar Egeu aliou-se, comandados por
Atenas, que assumiu a ofensiva contra os persas e libertou algumas províncias da
Ásia Menor, vencendo a decisiva batalha do rio Eurimedom, em 468 a.C..
ouro.
19
Em 449 a.C, foi assinada a Paz de Calias ou Paz de
Címon, por meio da qual os persas comprometiam-se a abandonar o mar Egeu.
Deste modo, o Mediterrâneo Oriental ficou aberto à frota ateniense, que, sem
nenhum tipo de rivalidade, iniciou sua expansão comercial. Paralelamente a isso,
as cidades gregas encontravam-se militarmente fortalecidas.
O período compreendido entre os anos de 461 a.C. e
429 a.C. é considerado a Idade de Ouro de Atenas, quando a cidade viveu o seu
auge econômico, político, militar e cultural. Atenas foi governada, nesse período,
por Péricles, e nesses trinta anos tornou-se a cidade mais importante da Grécia,
graças às reformas implantadas tanto no nível cultural como no nível político,
voltadas ao aperfeiçoamento da democracia.
Péricles, embora aristocrata de nascença, deu
amplitude à democracia ateniense, permitiu o ingresso e a participação política de
parcelas da população antes excluídas. Atenienses de baixa renda, envolvidos no
trabalho para garantir a sobrevivência, não podiam dedicar-se à participação
política. Péricles retirou uma série de restrições à cidadania, embora os cidadãos
ainda constituíssem uma minoria
17
. Destacam-se como dados populacionais
relevantes da época:
17
Essa democracia está muito distante dos moldes democráticos que temos na atualidade. Essa
democracia ateniense era uma forma de oligarquia, uma vez que somente os cidadãos (as
mulheres, crianças e metecos não eram considerados cidadãos) usufruíam dos privilégios da
igualdade perante a lei e do direito de falar nos debates da Assembléia.
20
“Alguns dados sobre o período clássico ajudam-nos a ter
uma idéia material da vida. Segundo Cook (1971:131),
Atenas, por volta de 480 a.C., contava com 30.000 cidadãos
(homens adultos livres), 90.000 mulheres e crianças, bem
menos residentes estrangeiros e escravos, num total
aproximado de 150.000 habitantes. Já em 430 a.C. a figura
se altera: São 40.000 cidadãos (homens adultos livres),
120.000 mulheres e crianças, 20.000 estrangeiros
residentes e 60.000 escravos, numa população total girando
em torno de 250.000 habitantes. [...]”
18
“A mortalidade em Atenas apresentava-se mais ou menos
assim: de cada 100 adultos com 20 anos, 70 viviam até os
30, 25 viviam até os 60, 7 viviam até os 80. Morria-se, pois,
relativamente cedo, seja pelas condições de saúde seja por
causa das guerras. O casamento ocorria na média entre os
30 e 40 anos para os homens (portanto após o serviço
militar ou outras tarefas), e para as mulheres aos 20. A
mortalidade feminina era agravada pelo parto, que ainda
representava risco de vida em muitas ocasiões
19
Com o passar dos anos, o predomínio de Atenas na
Confederação de Delos transformou-se em imperialista: havia interferência
18
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História.2 ed. São Paulo: Max Limonad. p. 33.
21
ateniense na política e sociedade dos demais Estados aliados. Após pressões, o
tesouro de Delos foi transferido para Atenas. Alguns Estados membros quiseram
se retirar, entretanto Atenas obrigou-os a permanecer por meio da força,
transformando-os de aliados em inimigos que lhe pagavam tributos
20
.
Assim, o desenvolvimento e a manutenção da
democracia ateniense dependiam do imperialismo, dos tributos cobrados das
outras polis, da prata extraída das minas do Láurio, além do intenso comércio. Ou
seja, a democracia ateniense e o crescimento de Atenas foram possíveis
principalmente porque escravos ou outras polis contribuíram em demasia.
As cidades-estados que se opunham ao expansionismo
ateniense e viam o perigo econômico e político que Atenas poderia representar
criaram, lideradas por Esparta, a Confederação do Peloponeso.
Com a criação da Liga do Peloponeso, em 431 a.C.,
Atenas e Esparta entraram em conflito direto por conta de uma disputa comercial
entre Atenas e Corinto, aliada de Esparta. Esparta tinha grande poderio terrestre,
enquanto Atenas tinha força naval. De início, Esparta obteve vantagem, arrasou
os campos Atiço e obrigou seus habitantes a se refugiarem dentro das muralhas
atenienses. A superpopulação ajudou a propagar uma epidemia que atingiu,
19
Ibidem, p. 33-34.
20
Péricles tinha uma postura democrática em relação a Atenas, mas Atenas tinha uma relação
tirânica com os outros Estados.
22
inclusive, Péricles. A partir daí, procedeu-se uma guerra de desgaste: durante dez
anos os conflitos se estenderam sem que houvesse vitórias ou derrotas decisivas.
Em 421 a.C. foi assinada a Paz de Nícias, rompida por
Atenas sete anos depois. Reiniciada as lutas, estas só se encerraram com a
vitória espartana na Batalha de Egos Potamos (404 a.C.). Atenas teve que
renunciar seu império, entregando seus navios e demolindo suas fortificações.
Com isso, tem início o período de hegemonia
Espartana, com a ascensão dos governos oligárquicos e o fim da democracia
ateniense. O sistema democrático até então vigente em Atenas foi substituído pela
tirania liderada por trinta aristocráticos (governo dos Trinta Tiranos). Deste modo,
a democracia ateniense sucumbiu a Atenas, na Guerra do Peloponeso.
O domínio espartano durou pouco tempo, uma vez que
Tebas, localizada no estreito de Corinto, crescia rapidamente como potência
militar da Grécia. Tebas se opôs a Esparta e, com a tática militar dos generais
Epaminondas e Pelópidas, os tebanos venceram a batalha de Leutras (371 a.C.) e
iniciaram sua supremacia, que também foi de curta duração.
Os domínios sucessivos entre as cidades-estados
gregas enfraqueciam toda a Grécia, de modo a torná-las alvo fácil para o avanço
de outra potência. E foi isso que aconteceu com o avanço da Macedônia, liderada
23
por Felipe II (359 a.C. a 336 a.C.), que acabou com a hegemonia grega,
inaugurando o período helenístico.
Sendo assim, o período Clássico, época em que Platão
viveu, é visto como a fase do apogeu ateniense e grego. O Século de Ouro teve
em Péricles a grande figura imperialista-militar, que liderou Atenas para sua
ascensão política (com a democracia), militar (com o exército) e cultural (com a
filosofia).
Desta breve exposição histórica, para concluir, vale
transcrever aqui os ensinamentos do Professor Luiz Carlos de Azevedo sobre o
legado grego para o Direito:
“Ainda que nem sempre se possa encontrar nas fontes do
Direito Grego aquela objetividade e método que o Direito
Romano proporcionaria, verifica-se quão expressiva foi a
contribuição do primeiro para os fundamentos da ciência
política e das instituições de Direito Público, particularmente
no tocante às idéias concernentes à forma tripartida do
governo e ao ideal democrático.”
21
2.3 Obras de Platão e suas Fases
24
A maior parte dos comentadores de Platão divide seus
diálogos em três fases, são elas: Fase Socrática ou Diálogos Jovens; Fase Média
e a terceira e última fase na qual se apresenta um Platão tardio. O ponto de
partida para essa divisão é a Teoria das Idéias, que analisaremos mais à frente.
2.3.1 Primeira: Fase Socrática ou Diálogos Jovens
As obras da Fase Socrática, que tem em Sócrates a
figura central, caracterizam o início da escrita dos primeiros diálogos platônicos.
As idéias apresentadas nessas obras são distantes das idéias que Platão
defendeu e que imortalizaram seu pensamento ao longo do tempo.
Os diálogos dessa fase giram em torno de questões
morais. Sua forma é a refutativa ou elêntica:
“Desde jovem, (Sócrates) caminhava pelas ruas de Atenas
espalhando dúvidas, instaurando a incerteza, perguntando e
reperguntando, implantava a força revolucionária do
negativo (apophatikón), a irônica força que destruindo
21
AZEVEDO, Luiz Carlos de. Introdução à História do Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais,
25
germinava sempre o novo
22
. Mostrava que essas
representações eram apenas opinião (doxá), e não ciência
(epistême)”
23
.
O método de prova socrático é habitualmente o
indutivo, valendo-se do sistema que denominou de maiêutica ou o parto:
“Assim se justifica a técnica socrática de investigação
filosófica a que Platão chamava sua ‘maiêutica’. Sócrates,
segundo ele, pretendia ter herdado esta arte da profissão de
sua mãe, parteira. Ora, dizia ele, de acordo com o costume
religioso, só as mulheres que não podem mais parir é que
podem fazer partos, quer dizer, conforme o caso, conduzir o
parto a bom termo suavizando as dores, ou fazer abortar. A
arte maiêutica tem as mesmas atribuições gerais. A
diferença é que se aplica aos homens e não às mulheres, e
é às almas que auxilia no trabalho de parto não aos
corpos”.
24
Os diálogos que podem enquadrar-se na fase socrática
consistem em
25
:
2005.p. 51.
22
BENOIT, Hector. Sócrates, o nascimento da razão negativa. São Paulo: Moderna, 2006. p. 08.
23
Ibidem, p. 09.
24
WOLFF, Francis. Sócrates. 4 ed. São Paulo: Brasiliense, 1987., pp. 54-55.
25
WATANABE, Lygia Araújo. op. cit., p. 108. Como assevera a autora: “não se deve sequer tentar
resumir uma obra clássica, qualquer que seja, porque estaremos sempre arriscados a perder sua
essência” Deste modo, assim como a autora comenta, não faremos um resumo, mas sim uma
26
I. Apologia de Sócrates obra na qual Platão tenta reproduzir a defesa feita
pelo próprio Sócrates diante da Assembléia que o condenou;
II. Críton ou Do Dever – nessa obra Críton procura Sócrates no seu penúltimo
dia de vida e tenta encontrar algum traço do julgamento injusto, entretanto,
Sócrates alega sua “missão divina”;
III. Íon ou Da Ilíada – obra na qual Platão faz Sócrates criticar, na verdade, a
própria poesia homérica, sobretudo a Ilíada, e a poesia em geral, por tratar
de todas as coisas e não ter um terreno que lhe seja próprio;
IV. Hípias Menor ou Do Falso – Sócrates escolhe comparar Aquiles e Ulisses
(heróis da Ilíada e da Odisséia). Diz que Aquiles é direto e sincero, incapaz
de enganar alguém, por seu turno, Ulisses é matreiro, gosta da intriga e de
mentir de acordo com seus propósitos. A questão é: quem deles é melhor,
o que faz o bem ou o que faz o mal voluntariamente? Embora aporético
26
,
conclui que é melhor fazer o mal ou mentir voluntariamente do que
involuntariamente, pois ao menos se tem conhecimento do mal que se
causa;
rememoração de alguns pontos de discussão de cada diálogo. Para rememorar as obras,
oferecerão subsídios os comentários de Watanabe e as obras de Platão.
26
BENOIT, Hector. op. cit., p. 14. O momento inicial desse movimento do negativo é exatamente
esse engendramento da dúvida (em grego, a-poria, ou seja, “ausência de passagem”).
27
V. Laquês ou Do valor Platão exprime as suas idéias sobre a educação dos
jovens. As personagens Lisímaco e Malésias, pais de dois jovens,
procuram os generais Nícias e Laquês, debatem a hoplomaquia (combate
com armas), habitualmente ensinada aos jovens pelos sofistas. Sócrates
intervém para mostrar que tudo aquilo que participa da areté é o que vale a
pena;
VI. Êutifron ou Da piedade – Êutifron encontra Sócrates a caminho do tribunal
para defender-se das acusações dos democratas. Sócrates descreve as
acusações de Meleto quanto a desrespeitar os deuses de Atenas e sua
impiedade com a religião. A conversa é interrompida abruptamente, quando
Êutifron, com pressa, diz que deve ir, sem que se dê continuidade à
discussão;
VII. Cármides ou Da prudência – na época do diálogo, Cármides, com 17 anos,
dialoga com Sócrates sobre a temperança (sophrosýne). Cármides seria
futuramente um dos trinta tiranos;
VIII. Protágoras ou Os sofistas
27
– considerada uma das mais belas obras de
Platão, consiste em um diálogo entre Sócrates e Protágoras. O tema gira
em torno de questões como a justiça e a separabilidade ou unidade das
virtudes cardinais, quais sejam: Justiça, Coragem, Temperança, Sabedoria
e Piedade;
28
IX. A República ou Da justiça – Livro I – Discute-se se o Livro I é ou não
separado dos outros nove que compõem A República. Alguns autores
afirmam que ele forma uma unidade em si mesmo e que teria o título de
Trasímaco. Essa discussão se baseia na semelhança de estilo com os
diálogos socráticos, e que teria sido escrito antes da primeira viagem de
Platão à Sicília. Além disso, Sócrates discute com Trasímaco apresentando
sua postura refutativa. Assim como Protágoras, tal obra será analisada em
mais detalhes nos próximos capítulos.
2.3.2 Segunda: Fase Média ou Início da Doutrina das Idéias
Diferente do que ocorre na Primeira Fase, Sócrates não
se apresenta mais refutativo ou elêntico. Nas obras desta fase, Sócrates
apresenta-se como porta voz da doutrina de Platão, que se caracteriza por uma
exposição da Doutrina das Idéias. Embora os textos se conservem sob a forma de
diálogos, Sócrates expõe as idéias platônicas sem nenhuma intervenção
substancial dos que dialogam com ele; normalmente seus interlocutores
promovem intervenções sem conteúdo, são construções com função apenas de
incentivar o desenvolvimento das idéias expostas: “Muito bem Sócrates”,
“Continue”, “Está indo muito bem”. Tais intervenções poderiam ser suprimidas e o
texto poderia ser lido sob a forma de um monólogo.
27
Esta obra será analisada em mais detalhes no capítulo 4.
29
Os diálogos que podem ser considerados pertencentes
a esta fase consistem em:
I. Hipias Maior ou Do belo – o sofista Hipias parece assumir as teses do
orador Isócrates contra Platão. Tal obra assume um papel muito importante
na Estética, no que se refere à discussão sobre o ‘belo’;
II. Eutidemo ou Da erística – trata-se de um diálogo sobre os usos e abusos
da lógica, em tom cômico. Em um sutil jogo de teses adotadas e logo
destruídas pela argumentação, o diálogo torna-se uma verdadeira
demonstração do vazio da dialética sofista em face da dialética filosófica;
III. Lysis ou Da amizade – Sócrates, Hipótales, Lísis, Menexeno e Ctesipo
discutem sobre o conceito de ‘amigo’, inspirados pela admiração diante da
beleza e destreza de Lísis (que tinha 12 anos e seria um futuro atleta
ateniense). Quando são interrompidos pelos escravos que cuidam das
crianças, Sócrates reconhece que a amizade não cabe em nenhuma das
definições propostas e que seria preciso retomar a discussão;
IV. Mênon ou Da virtude – nesse diálogo, o jovem aristocrata Mênon quer
saber de Sócrates como se adquire uma virtude, ou se ela desponta
naturalmente no homem;
V. Menexeno ou Da oração fúnebre – o jovem Menexeno agita-se com a
expectativa da escolha de um orador para fazer a oração fúnebre em
30
Atenas
28
. Sócrates critica veementemente tais rituais. Para Sócrates, é
nesse momento que os mortos são adulados como alguém que
provavelmente jamais foram;
VI. Fedro ou Da beleza – nessa obra Sócrates nitidamente é porta voz dos
pensamentos platônicos. Ensina a Fedro, a partir de um poema de Lísis,
que a beleza é o elemento mais passível de recordação, configurando o
móvel que aguça o desejo de conhecer, este que é o desejo de tornar
presentes as verdades e as idéias com que se conviveu antes do
nascimento;
VII. Fédon ou Da imortalidade – nessa obra Sócrates dialoga com alguns de
seus discípulos no seu último dia de vida. Platão estava muito doente e não
pôde comparecer, mas Fédon rememora o momento em conversa com
Equecrátes. Em seus últimos momentos de vida, Sócrates conversa com
seus alunos sobre a imortalidade da alma;
VIII. O Banquete ou Do amor – um belo diálogo, se não o mais, no qual Agatão
comemora sua vitória em um concurso de tragédias e desafia seus
convidados a comporem um elogio ao amor. Depois de Fedro, Pausânias,
Erixímaco, Aristófanes e do próprio Agatão, Sócrates expõe o discurso que
28
Ritual no qual Atenas prepara-se para os funerais de seus mortos de batalha. Nesses rituais os
oradores elogiam os mortos.
31
aprendera com Diotima
29
. É por meio desse diálogo que podemos
compreender o amor ideal ou platônico;
IX. Górgias ou Da retórica – diálogo no qual se busca definir a arte retórica e a
capacidade de ensinar a persuadir todos os ouvintes nas assembléias;
X. A República ou Da justiça – Livro II ao X – embora tenha sido escrito sob a
forma de diálogo, o texto muito se assemelha a um monólogo, tendo em
vista a inexistência de intervenções dos demais falantes que possam
interferir nas elaborações de Sócrates. Trata-se apenas de falas ocasionais,
sem semântica de conteúdo, do tipo: “Muito bem, Sócrates”, “Prossiga”,
“Isso mesmo, Sócrates”;
As obras Parmênides e Teeteto, são obras transitórias,
entre a segunda e a terceira fase.
2.3.3 Terceira Fase: Platão tardio
Diversas foram as criticas à Doutrina das Idéias, tais
como a impossibilidade de atingir ou conhecer o inteligível. Assim, Platão, em uma
29
Segundo Diotima (que podia ser uma criação de Platão, ou o próprio rosto de Sócrates), deve o
amor ser um grande gênio. Em 203a Sócrates pergunta quem é o pai e a mãe do Amor. Para
responder, Diotima discorre sobre o caráter intermediário de Eros (201e-202d), o fato do Amor ser
um gênio (202d-203a), o nascimento do amor (203a-c), sua natureza (203c-204a).
32
postura honesta e madura, questiona e investiga a Teoria das Idéias. Para tanto,
aplica-se ao estudo de coisas novas e simples.
Os diálogos compreendidos nesta fase são:
I. O Sofista ou Do ser – Platão alega a necessidade de cometer o parricídio.
Nega o conceito de Parmênides de que tudo é, e o não-ser não existe.
Platão defende a participação do não-ser no ser. Há um diálogo íntimo,
nascido espontaneamente a que chama de pensamento. Tal diálogo íntimo
se realiza afinal como opinião. Existe um outro diálogo que nasce das
sensações, produzindo a imaginação, que é a opinião falsa; são simulacros,
imitações grosseiras (não-ser);
II. O Político – Sócrates, Teodoro e o Estrangeiro analisaram a dificuldade das
leis diante da intenção de seu alcance, isto é, de valerem para todos; por
seu turno, a política não parece ser uma ciência ao alcance de todos;
III. Filebo ou Do prazer – esse diálogo inicia-se com a conversa já em
andamento e termina interrompido. Sócrates afirma que a tese hedonista na
qual o prazer está acima de tudo, inclusive da razão, deve comportar um
misto de prazer e sabedoria, desde que a inteligência detenha a primazia,
que é a primazia da beleza, da verdade e da medida;
33
IV. Time – a história astronômica do mundo, a alma mobilizadora do mundo, o
jogo de espelhos entre o macrocosmo e o microcosmo, entre a alma
cósmica e a alma humana, são alguns dos diversos temas abordados
nessa obra;
V. Crítias ou Da Atlândida – seqüência direta de Timeu, este diálogo narra
trechos dos eventos que levaram à destruição dos atlantes e da cidade de
Atlântida. Trata-se de um diálogo inacabado, mas anterior ao último
diálogo, qual seja, As Leis;
VI. As Leis ou Da legislação – última obra, escrita em doze livros, consiste em
um diálogo entre anciãos. Não tem o tom pedagógico de A República,
tratará da função educativa das leis para os futuros governantes.
34
3 ALGUNS MITOS DA ANTIGÜIDADE E SUA IMPORTÂNCIA PARA
A COMPREENSÃO DOS IDEAIS PLATÔNICOS
“Mitos são narrativas repassadas de geração para geração e
que explicam os principais acontecimentos da vida por meio
do sobrenatural. Mais do que isso, são histórias que, em
conjunto, explicam e justificam a existência humana. Antes
de existirem ciência, religião, filosofia e literatura, a mitologia
sozinha exercia todas essas funções (...) Os mitos são,
portanto, a base da cultura e a ferramenta mais importante
de coesão social, já que estabelecem relações de poder e
detalham códigos de conduta ética”.
30
A História da Filosofia Antiga é repleta de mitos que
explicam alegoricamente algumas idéias. As obras platônicas utilizam-nos, seja
para explicar idéias ou introduzir questões. A maioria dos mitos é de uso direto,
como é o caso do Mito da Caverna ou o de Giges, mas outros são indiretos, como
o Mito das Cinco Idades, para elucidar a estruturação da sociedade ideal.
Entendemos importante expor alguns dos mitos que
serão utilizados nas obras, para que possamos compreendê-los mais à frente
quando forem citados.
35
3.1 O Mito das Cinco Idades
“Pela primeira vez na literatura ocidental um poeta se ocupa
poeticamente em estabelecer, pela verdade do mito, os
fundamentos da condição humana. Isso é feito dentro do rigor
de uma lógica própria do texto, em que, com a palavra
concedida pelas Musas, ele explica como a condição humana
é fruto de uma complexa rede de ambigüidades, que acaba
por torná-la fundamentalmente ambígua.”
31
No poema de Hesíodo, Os Trabalhos e os dias, insere-
se o mito das Cinco Idades. Os ensinamentos sobre a Justiça ali contidos não são
apenas para Perses, irmão do autor, são também para os incumbidos de
administrá-la, sejam os juízes ou os homens comuns que se preocupam com esse
problema.
Robert Aubreton, assim interpreta o mito em questão:
O mito das cinco idades não é, em Hesíodo, uma simples
narração, mas tem caráter didático, pois nos mostra como
30
Super Interessante Especial. O Livro das Mitologias. São Paulo; outubro de 2006, n. 231- A,
p.07.
31
LAFER, Mary de Camargo Neves. In:HESÍODO. Os Trabalhos e os Dias. Tradução por ___, São
Paulo: Iluminuras, 1989. p. 89.
36
reconquistar a felicidade de uma nova Idade de Ouro, pelos
caminhos da dike
32
.”
Entre os versos 109 a 202, Hesíodo assim divide as
cinco idades ou gerações em seu poema:
3.1.1 Idade de Ouro (versos 109 a 126)
“Eram do tempo de Cronos, quando no céu este reinava;
como deuses viviam, tendo despreocupado coração,
apartados, longe de penas e misérias; nem temível
velhice lhes pesava, sempre iguais nos pés e nas mãos,
alegravam-se em festins, os males todos afastados,
morriam como por sono tomados; todos os bens eram
para eles.
33
Considerada a primeira raça, era semelhante aos
deuses. Existia uma vida constante de prazeres. Aqueles que ali viviam estavam
em perfeita harmonia não havendo cansaço, doença ou dor. Nessa Época havia o
domínio da diké. Entretanto, após longos anos de felicidade, a morte vinha como
um suave adormecer.
32
AUBRETON, Robert. Introdução a Hesíodo. apud DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento
Jurídico e da Filosofia do Direito. 3 ed. reformulada. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 15.
33
HESIODO, Os Trabalhos e os dias. Tradução por Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 1989. p. 31.
37
No fim foram todos destruídos como punição pelos
terríveis erros do titã Cronos.
3.1.2 Idade de Prata (versos 127 a 142)
“Então uma segunda raça bem inferior criaram,
argêntea, os que detêm olímpia morada;
à áurea, nem por talhe nem por espírito, semelhante.
34
Nessa Época, houve o início da perda da diké e o início
do predomínio da hybris (desmedida ou inflação egóica). As pessoas que lá viviam
eram fracas e tolas. Eram incapazes de administrar suas próprias questões,
quanto mais ajudar os outros. Levaram cerca de cem anos para iniciar a fase
adulta. Não conseguiam distinguir o bem do mal e tinham a vida cheia de dor e
tristeza. Sem disposição para trabalhar, não amavam uns aos outros. Viviam do
que tomavam pela força e era comum se matarem. Não obedeciam aos deuses
nem ofereciam sacrifícios.
34
Ibidem, p. 31.
38
Sentindo-se insultado pela arrogância desses homens
que nessa Época viviam, Zeus liquidou-os. “Zeus Cronida encolerizado os
escondeu porque honra não davam aos ditosos deuses que o Olimpo detém.
35
3.1.3 Idade de Bronze (versos 143 a 155)
“E Zeus Pai, terceira, outra raça de homens mortais.
36
”.
Dizimada a geração da Idade de Prata, Zeus criou a
terceira geração, conhecida como Idade de Bronze. A característica marcante era
o predomínio absoluto da hybris em face da diké.
Composta por homens muito altos, destemidos, fortes,
guerreiros e moldados em bronze, que possuíam armas do mesmo material. Os
homens ainda não haviam descoberto como trabalhar o ferro. Não cultivavam a
terra, viviam da caça e da coleta. Com o tempo, começaram a ficar arrogantes,
vaidosos e orgulhosos. Uniram-se para tomar o monte Olimpo. Ao ousarem invadir
o local sagrado, provocaram a fúria de Zeus, que novamente exterminou os
homens, pondo fim a essa Idade.
35
Ibidem, p. 32.
36
Ibidem, p. 33.
39
3.1.4 Idade dos Heróis (versos 156 a 173)
“Zeus Cronida fez mais justa e mais corajosa,
raça divina de homens heróis e são chamados
semideuses, geração anterior à nossa terra sem fim.
37
Última Geração da idade mítica, é a tentativa de
retomar a diké em face da hybris.
A quarta geração veio ao mundo com Hércules, Teseu,
Orfeu, Jasão, Aquiles, Agamêmnon e todo o exército de heróis da mitologia grega.
Os atos corajosos originaram o nome da geração: Idade Heróica. Mais justos e
nobres do que a geração anterior, recebiam freqüentemente a visita dos deuses
do Olimpo, que se misturavam entre eles compartilhando suas alegrias e tristezas.
Muitos heróis e nobres eram filhos de algum deus e estes os protegiam. Grandes
cidades floresceram neste período: Atenas, Esparta, Creta, Micenas, Maratona
Corinto, entre outras.
O fim da geração ocorreu basicamente em combates.
Muitos tombaram nas sete portas de Tebas, lutando pelas riquezas do rei Édipo, e
muitos morreram na batalha que se travou durante dez anos nos muros de Tróia.
37
Ibidem, p. 34.
40
Por conta das virtudes, quando todos morreram, Zeus
os enviou para a Terra dos Bem-Aventurados.
3.1.5 Idade de Ferro (versos 174 a 202)
“Pois agora é a raça de ferro e nunca durante o dia
cessarão de labutar e penar e nem à noite de se
destruir; e árduas angústias os deuses lhes darão.
38
Para essa geração, Zeus gerou a partir da terra a
abundância do ferro, ainda presente em nossos dias. A vida para os homens que
lá viviam era difícil. O trabalho era a forma de sobreviverem. Submetidos a
problemas e provas de toda sorte, nem os deuses parecem amá-los, uma vez que
retiraram-se para o Olimpo. Distribuíram algumas alegrias, entretanto, o mal
sempre excedia o bem e obscurecia a vida dos homens.
Vernant
39
subdivide essa idade em duas, a saber: a
Primeira Idade de Ferro, que era ruim, e a Segunda Idade de Ferro, que era pior
ainda. A partir desse pensamento, podemos afirmar que a hybris impera com
maior força nessa passagem.
38
Ibidem, p. 35.
39
VERNANT, Jean Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. São Paulo: Difel/EDUSP, 1973. p.
11-70.
41
A Quinta Geração vive com a lembrança da que a
precedeu. A era mítica deixou uma rica herança cultural para os seus sucessores.
Suas histórias ainda foram contadas por Homero, Sófocles, Hesíodo, Eurípedes,
Ésquilo e tantos outros.
Na análise dessas idades, acreditamos mais acertada a
posição do comentador Jean Pierre Vernant
40
, que entende haver uma ciclotimia
entre essas idades. A passagem da Idade do Ouro para a Idade da Prata foi uma
passagem do superior para o inferior (dos deuses para os demônios); por seu
turno, a passagem da Idade de Bronze para a Idade dos Heróis foi uma passagem
do inferior para o superior (dos habitantes de Hades para os heróis); e, por fim, a
Idade de Ferro, quando passa da primeira para a segunda fase, representa mais
uma passagem do superior para o inferior
41
.
Com a narrativa desse mito é possível observar que há
um retrocesso, que, embora não contínuo, coloca o homem em uma situação
muito delicada, qual seja, o império da hybris e o desaparecimento da diké. Mas
como retomar os tempos da Idade de Ouro, do predomínio da diké? O Professor
Claudio De Cicco propõe uma solução:
40
LAFER, Mary de Camargo Neves. op. cit., p. 77: “[...] West e Vernant, que fazem abordagens
muito distintas desse texto. O primeiro analisa o episódio dentro de um contexto amplo da literatura
antiga e vê esse mito como um historiador de diversas fases da humanidade; já o segundo
preocupa-se com o conjunto do poema, com as funções sociais aí abordadas, faz uma análise
estrutural desse episódio [...]”.
41
VERNANT, Jean Pierre. Mito e Pensamento entre os Gregos. São Paulo: Difel/EDUSP, 1973. p.
11-70.
42
“Para a reconquista do Paradise Lost, a volta à diké é a
única solução. Com efeito, a Idade de Ferro trouxe uma
recrudescência da brutalidade, e, de certo, a humanidade
decaiu mais um degrau, passando da violência de viseira
erguida, da Idade de Bronze, para uma violência disfarçada
e dissimulada, falaciosa e enganadora. Só há um caminho
de recuperação: a prática da justiça.
42
(grifo nosso).
A busca que os homens devem empreender da Idade
de Ferro para a Idade de Ouro deve ser incessante. Para nós, essa busca muito
se assemelha com a proposta da cidade justa e a divisão social tratada nos Livros
III a V de A República. Como veremos mais à frente, Platão busca dividir a cidade
e os cidadãos conforme suas habilidades e, conseqüentemente, implantando uma
cidade justa na qual teremos o predomínio da diké.
Será nos homens de ouro que encontraremos a
sabedoria e, com isso, estes que possuem os conteúdos verdadeiros deverão
ensinar aos demais para que a cidade viva no signo da diké.
3.2 O Mito da Caverna
42
DE CICCO, Cláudio. op.cit., p.17.
43
O Livro VII da obra A República pode ser divido em 4
partes. A primeira (514 - 521a) o Mito da Caverna; a segunda (517- 521b) a
interpretação do mito; a terceira parte (521 - 531b) trata sobre qual cultura
científica deve ter o filósofo; e, por fim, na quarta parte (531 até o final do livro) são
apresentados os caminhos da dialética. Nossa pretensão aqui é analisar a
primeira parte deste livro.
Platão pede a Glauco para imaginar homens vivendo
em uma caverna na qual a entrada é grande. Esses homens são prisioneiros e
vivem com grilhões no pescoço e nas pernas. Dentro da caverna existem objetos
que são exibidos atrás dos homens presos. A projeção destes objetos é feita no
fundo da caverna. Como os homens habitantes da caverna não se volvem
espontaneamente, convivem apenas com as projeções e não com os objetos
propriamente considerados.
Entretanto, se os homens virarem seus rostos, deverão
sair da caverna, sendo que está saída é muito árdua, para ver a luz do sol, que
consiste na verdade. Mas para atingir a verdade nessa luz, devem se acostumar
antes com a luz da lua para futuramente habituar-se à luz do sol e então
compreender a inteira verdade, e assim também refletir sobre o bem. Nesse
sentido, o trabalho para atingir a verdade é árduo.
Importante ressaltar que as pessoas presas na caverna
não quebram por si só os grilhões que as prendem. Elas são libertas, forçadas a
44
se levantar e a virar o pescoço. O ato de virar o pescoço não é gratuito no texto
platônico. Representa uma conversão mental, pois libertos não teriam mais seus
olhos voltados ao mundo sensível, das aparências, mas sim ao mundo inteligível,
ao mundo das idéias. Além disso, o Mito da Caverna não compreende a libertação
de todos os homens; apenas aqueles que têm um natural filosófico conseguem
sair da caverna.
Após a contemplação da verdade, o homem deve voltar
para dentro da caverna para explicar aos demais que as projeções, vistas por
eles, são falsas, e que a verdade esta lá fora. Ou seja, deve aquele que saiu voltar
para alertar os outros do engodo no qual estão envolvidos.
43
Em uma análise comparativa à idéia do Livro VI de A
República, podemos dizer que a projeção do objeto no fundo da caverna seria a
imagem; o homem agrilhoado estaria posicionado entre as imagens, os animais e
artefatos; o objeto projetado seria a linha de divisão que consiste na clareza; os
objetos matemáticos fazem parte do caminho a ser seguido para sair da caverna;
o sol representa as idéias, a intelecção.
O Mito da Caverna demonstra bem a doutrina das
idéias platônicas. O bem reside em algo inteligível que os homens devem buscar
para que possam viver da forma correta. A sabedoria e o bem existirão apenas
43
Aqui é feita uma clara referência à morte de Sócrates, pois para Platão Sócrates saiu da caverna
e tentou voltar para apresentar a verdade a todos, entretanto o condenaram à pena de morte.
45
naqueles que volveram seus rostos e saíram da caverna; são estes os que
possuem o natural filosófico.
3.3 O Mito de Prometeu e Epimeteu
Na obra Protágoras, o personagem que dá nome à obra
narra o mito de Prometeu. No parágrafo 320-c, Protágoras conta sobre um tempo
em que só havia deuses e não existiam criaturas mortais. Quando o Destino
determinou o momento para que as criaturas mortais fossem criadas, os deuses
plasmaram-se nas entranhas da terra, utilizando-se de uma mistura de ferro e de
fogo, no momento certo de tirá-los da terra para a luz.
Prometeu e Epitemeu foram incumbidos de conferir as
qualidades adequadas para cada criatura. Entretanto, Epitemeu pediu a Prometeu
que deixasse a seu cargo a distribuição das qualidades, cabendo a Prometeu a
revisão final das distribuições. Epitemeu distribuiu as qualidades entre os seres de
acordo com o critério da compensação: os mais velozes seriam fracos; aos fortes
seria atribuída lentidão; aos pequenos conferiam-se asas para fugirem com
destreza; os grandes achavam proteção em suas próprias dimensões. Além do
critério da compensação adotou um critério segundo o qual todos os seres se
alimentariam de fontes diversas, objetivando a manutenção da preservação.
46
Após a distribuição das qualidades consoante os
critérios acima mencionados, a preservação das espécies estava quase garantida.
Faltava apenas protegê-las igualmente das intempéries das quatro estações dos
deuses; e foi o que Epitemeu fez: protegeu essas criaturas nas mesmas
proporções mas com recursos diferentes; para alguns animais dava casco, para
outros, pêlos, para outros ainda, pele grossa.
Quando sua tarefa estava praticamente concluída,
percebeu que apenas a geração do homem não havia sido dotada de nenhuma
qualidade. Com os animais providos do necessário para serem levados da terra
para a luz e a geração dos homens despida de qualidades, Prometeu, a fim de
assegurar a salvação dos homens, roubou de Hefesto e de Atena a sabedoria das
artes juntamente com o fogo e deu aos homens.
Por penetrar na morada de Atena e Hefeso e ter
roubado o fogo pertencente aos deuses, Prometeu foi severamente castigado.
44
Afirma Protágoras que o homem, com o conhecimento
e o fogo, tinha as condições necessárias para ser levado da terra para a luz. Por
serem dotados de conhecimento, diferentemente dos animais, tinham consciência
da existência dos deuses e, deste modo, rapidamente levantaram altares e
44
PUGLIESI, Márcio. Mitologia Greco-Romana. São Paulo: Madras, 2005. p. 109-110: “Júpiter,
ainda desejoso de punir Prometeu, ordenou a Mercúrio que o conduzisse ao monte Cáucaso e que
lá o acorrentasse. Assim, foi feito, e o deus ordenou a uma águia, filha de Títfon e de Equidna, que
devorasse eternamente o fígado do demiurgo dos homens.
47
fabricaram imagens de deuses; começaram também a coordenar palavras e sons,
confeccionar vestuário, calçados e leitos.
Entretanto, como asseverou Protágoras a Sócrates, no
parágrafo 321-d, o homem não possuía a sabedoria política que se encontrava
sob os poderes de Zeus. Por viverem os homens dispersos, eram dizimados pelos
animais, que possuíam condições de defesa superiores. Nesse contexto
predatório, no qual os homens, desorganizados, necessitavam de uma
organização política, Zeus interfere e ordena, em 322- b, que Hermes leve “aos
homens o pudor e a justiça como princípio ordenador das cidades e laço de
aproximação entre os homens”
45
. Indagado por Hermes sobre o modo de
distribuição da justiça e do pudor, conta Protágoras que Zeus afirma
categoricamente que a distribuição deve ser equânime para todos os homens,
pois as cidades não subsistirão “se o pudor e a justiça forem privilégios de poucos
como se dá com as demais artes” e assevera que “todo homem incapaz de pudor
e de justiça sofrerá a pena capital, por ser considerado flagelo da sociedade”
46
.
3.4 O Mito de Giges
45
PLATÃO, Protágoras. Coleção Diálogos. Tradução por Carlos Alberto Nunes. UFPA, 2002. p. 58.
46
Ibidem, p. 58.
48
Descrito pela mitologia grega e exposto em A República
por Glauco, de 359d a 360d, o mito de Giges
47
pode ser resumido da seguinte
forma: Giges era um pastor a serviço do rei da Lídia. Por conta de um grande
temporal que acompanhou um tremor de terra, o solo se abriu, formando-se uma
fenda no lugar em que ele levara para pastar o seu rebanho. Ao deparar-se com o
ocorrido, entrou na abertura e viu, entre outras maravilhas, um cavalo de bronze,
oco e com portas em seus flancos. Ao abrir uma dessas portas, Giges viu o
esqueleto de um gigante, inteiramente despido, com um anel de ouro à vista, em
uma das mãos. Giges retirou o anel e retornou.
Na reunião habitual em que os pastores apresentavam
ao rei o relatório mensal do estado dos rebanhos, Giges compareceu com o anel
no dedo. Sentado entre os demais presentes, virou a pedra do anel para a palma
da mão. Imediatamente se tornou invisível, sem que deixasse de ouvir e ver todos
os que ali estavam, entretanto. A pedra do anel, quando volvida para fora, tornava-
o visível novamente.
Valendo-se desse recurso, trabalhou para ser um dos
mensageiros do rei. Quando chegou à corte, seduziu a rainha e, com a sua ajuda,
matou o rei, apoderou-se do trono e casou-se com ela, assumindo o poder.
47
Para abordar esse mito, utilizamo-nos das referências em A República, Glauco, 359d a 360d, e
também em PUGLIESI, Márcio. op.cit., p. 251-252.
49
Glauco assevera que na hipótese de haver dois anéis
iguais, sendo um deles usado pelo homem justo e o outro pelo injusto, ninguém,
absolutamente, segundo o que tudo indica, revelaria resistência para conservar-se
fiel à justiça.
Ao narrar o Mito de Giges, Glauco demonstra acreditar
que ninguém é justo por livre iniciativa, mas por coação. Este mito é exposto no
Livro II de A República, sendo rebatido no Livro X com o Mito de Er, que
demonstra a impossibilidade de corromper os deuses e ensina a necessidade de
praticar a justiça.
3.5 O Mito de Er
Disposto no Livro X de A República, de 614b a 621b, o
Mito de Er, Platão demonstra que é preciso praticar a justiça para fortalecer a
alma, sob pena de, caso não praticarmos na vida atos justos, sermos castigados
pelos deuses futuramente.
Er, filho de Armênio, morreu em combate. No décimo
dia, quando recolheram os corpos em começo de putrefação, o corpo de Er
50
encontrava-se em perfeito estado. Ao ser colocado na pira
48
, Er reviveu e contou o
que viu no outro mundo. Disse que quando sua alma saiu do corpo, partiu em
companhia de muitas outras pessoas e foram parar em um lugar maravilhoso com
duas fendas na terra e duas fendas no céu, ambas contíguas. Entre essas duas
fendas, estavam sentados alguns juízes que anunciavam a sentença. Os justos
deveriam caminhar para a direita, rumo ao céu, com suas sentenças estampadas
no peito, os injustos encaminhavam-se para a esquerda, ladeira abaixo, sendo
que, também, levavam nas costas o relato de quanto haviam praticado.
Quando Er se aproximou dos juízes, estes lhe disseram
que ele havia sido escolhido como mensageiro para os homens e lhe
recomendaram ouvir e observar tudo que se passasse à sua volta.
Er notou que as almas, depois de julgadas, dirigiam-se
para uma das aberturas do céu ou da terra. Das outras duas fendas saíam de
contínuo novas almas. As que vinham da terra apareciam exaustas e
empoeiradas, as que vinham do céu estavam limpas e alegres.
Em levas ininterruptas, todas as almas pareciam chegar
de uma longa viagem. Se reuniam no prado, onde acampavam como num festival;
as que se conheciam, cumprimentavam-se. Tanto os que estavam no céu como
os que estavam na terra perguntavam o que havia se passado nos distintos
48
A pira era uma fogueira onde se queimavam os cadáveres, também era chamada de pira
funerária.
51
lugares onde não estavam. Os relatos recíprocos davam conta de que na terra as
almas que lá estavam sofriam muito, lágrimas e gemidos davam o tom dos relatos.
Por seu turno, no céu as almas relatavam suas vivências celestes, de inconcebível
beleza.
Pelas faltas cometidas, as almas eram castigadas, por
ordem e individualmente. A punição equivalia ao décuplo do crime cometido.
Deste modo, quem fosse criminoso de muitas mortes ou houvesse traído cidades
ou exércitos e os reduzisse a escravidão, ou fosse cúmplice de alguma malfeitoria
do mesmo gênero, por cada crime sofreria dez vezes mais. Por outro lado, os que
só espalharam benefícios e viveram de forma justa, eram recompensados na
mesma proporção. Entre os principais tiranos que passaram pela história antiga,
Er narra que a maioria não se encontrava nem no céu nem no inferno.
O mito de Er, disposto no último livro de A República,
mostra que é necessário ser justo para não ser punido. Esse mito refutará o
posicionamento de Glauco em relação ao Mito de Giges. Para Platão não seria
possível comprar os deuses a fim de que ignorassem os atos injustos praticados
em vida; além disso, aqueles que não seguirem o caminho certo serão punidos em
vidas futuras.
52
PARTE II - DESENVOLVIMENTO
4 A JUSTIÇA PLATÔNICA NA FASE SOCRÁTICA
Os primeiros diálogos platônicos, conhecidos como
Diálogos Jovens, normalmente se apresentam como a exposição da doutrina
socrática de modo refutativo ou elêntico.
O diálogo que será analisado neste capítulo,
Protágoras, apresenta a Teoria da Justiça à luz do pensamento socrático da
Unidade das Virtudes. Para a Filosofia do Direito, esta problemática é da maior
importância, pois há muito se abandonou a idéia de reduzir a lógica jurídica ao
formalismo, abrindo-se espaço para outras virtudes exigíveis do julgador.
4.1 Protágoras - Tese da Unidade das Virtudes
Considerada uma das mais belas obras de Platão,
Protágoras ou Dos Sofistas, é um diálogo entre Sócrates e Protágoras que busca
responder algumas das indagações postas por aquele. O tema gira em torno de
53
questões como a Justiça e a separabilidade ou unidade das Virtudes Cardinais,
quais sejam: Justiça, Coragem, Temperança, Sabedoria e Piedade (Prudência)
49
.
Sócrates relata a um amigo o diálogo que teve com
Protágoras: Hipócrates entra na casa de Sócrates e informa da chegada de
Protágoras à cidade de Atenas. Sócrates escuta Hipócrates enaltecer Protágoras
como sendo um orador eloqüente.
Antes de partirem para encontrar Protágoras, Sócrates
faz uma crítica aos sofistas. Afirma a Hipócrates que se deve oferecer dinheiro
àqueles que são peritos em algo. Assevera que os escultores ou os poetas são
peritos em alguma arte, seja em esculpir ou em grafar uma poesia. Entretanto,
questiona a Hipócrates: em que arte o sofista Protágoras é perito? Nesse
momento Hipócrates afirma: “na arte de ensinar a falar bem”
50
.
Sócrates insiste e questiona sobre o que entende o
sofista por ‘ensinar a falar bem’. Nesse momento, Hipócrates não sabe dizer sobre
que matéria Protágoras transmite ensinamentos aos seus discípulos. Sócrates
adverte então a que perigo Hipócrates irá expor sua alma, ou seja, entregá-la a
alguém que ao certo não sabemos que matéria transmite, correndo o risco ainda
de enfraquecer sua alma.
49
Nos Diálogos da Juventude, as virtudes são em número de cinco (saber, justiça, coragem,
temperança e piedade) como veremos em Protágoras. Entretanto, nos diálogos de transição, as
virtudes de excelência são apenas quatro, uma vez que a Piedade passa a não ser considerada
uma virtude distinta da Justiça, mas sim uma extensão desta.
54
Em 313c, Sócrates apresenta sua definição referente
aos sofistas: são mercadores, ou traficantes de virtualhas para alimentar a alma,
sendo que devemos alimentar nossa alma de conhecimento verdadeiro e não de
mercadorias ignoradas de sua utilidade.
Sócrates e Hipócrates prosseguem rumo à visita a
Protágoras, que se encontrava na casa de Cálias, filho de Hipônico. Estavam
presentes, além de Sócrates, Protágoras, Hipócrates e o anfitrião Cálias: Pródico,
Hípias, Crítias e Alcebíades.
O diálogo inicia-se com a indagação socrática sobre o
que Protágoras ensinaria ao jovem Hipócrates. Vale-se da mesma indagação feita
a Hipócrates no parágrafo 312 d-1, qual seja aquele que tiver aulas contigo voltará
para casa com um progresso em que matéria, a respeito de quê? Protágoras
responde que ensinará ao jovem mancebo a virtude da arte da política e a
formação de bons cidadãos. Nesse momento, Sócrates afirma que a virtude não
pode ser ensinada.
Para retrucar esse argumento, ou seja, para demonstrar
que as virtudes podem ser ensinadas, Protágoras explica o Mito de Prometeu e
Epimeteu, referido no capítulo anterior. Esse mito busca demonstrar que a virtude
pode ser ensinada.
50
PLATÃO. Protágoras. op.cit. p. 47.
55
Sócrates elogia a bela oratória de Protágoras quanto à
exposição do mito de Prometeu e Epitemeu. A partir dessa exposição, Sócrates
afirma que as virtudes são as seguintes: Justiça, Coragem, Temperança, Piedade
e Sabedoria
51
. Indaga a Protágoras se a virtude é completa, constituindo partes
dela a Justiça, a Temperança, a Coragem, a Piedade e a Sabedoria, ou se todas
essas qualidades são apenas nomes diferentes de uma única unidade. Pergunta,
deste modo, se as virtudes são separáveis ou se estas devem sempre ser vistas
como um todo indivisível.
Protágoras acredita que as virtudes podem coexistir,
mas que podem também apresentar-se dissociadas. Sócrates não comunga desta
idéia e acredita que todas as virtudes cardinais são indissociáveis; para isso
fundamenta-se em quatro argumentos a fim de unir tais virtudes e mostrar que só
é possível concebê-las em unidade.
Analisaremos a seguir o posicionamento e os
comentários sobre a unidade ou a separabilidade das virtudes. Na seqüência,
estudaremos os quatro argumentos que sustentam a Teoria da Unidade das
Virtudes.
56
4.1.1 Separabilidade, unidade ou bicondicionalidade das virtudes
Protágoras defende a idéia da separabilidade das
virtudes
52
. Para ele, as virtudes podem ser separadas sendo distintas, ou seja,
consistem em espécies do gênero. A metáfora do rosto expressa no parágrafo
330-b define bem a idéia de separabilidade. O rosto consiste na espécie (Virtude)
e suas partes, nariz, boca, orelha, consistem nos gêneros (justiça, coragem,
temperança, piedade e sabedoria). Assim, Protágoras entende que um homem
pode ser corajoso e injusto, ou justo e intemperante.
Sócrates posiciona-se contrário à idéia da
separabilidade das virtudes. Acredita que um homem virtuoso é aquele que tem
todas as virtudes. Destacam-se, para esse entendimento, duas interpretações
possíveis: a tese da bicondicionalidade ou da reciprocidade e a tese da unidade
ou da identidade.
A reciprocidade ou bicondicionalidade, defendida por
diversos comentadores, como Vlastos
53
, consiste na distinção das virtudes, porém
na condição de que todas ou nenhuma coexistam necessariamente. Em outras
palavras, as virtudes são distintas, mas quem tem uma, tem todas. A forma
51
Platão jamais argumentou por que são apenas essas as virtudes cardinais e não outras.
52
O filósofo que defendeu a separabilidade das virtudes, historicamente, foi Górgias.
57
simbólica resumida seria: V(C=J=P=T=S), ou seja, necessariamente a classe dos
corajosos é coextensiva à classe dos justos, que, por sua vez, é coextensiva à dos
piedosos e assim sucessivamente.
Vlastos defende a tese da bicondicionalidade em
Platão, pois acredita que todas as virtudes são interpredicáveis, ou seja, se B está
na proposição ou condição de substantivo precedente e A está para um dos
adjetivos cognatos, então B é A, isto é A é predicado de B. Por exemplo: A justiça
é temperante; a justiça é corajosa; a justiça é sabia e a justiça é justa
54
.
O mesmo autor utiliza como fundamento da tese da
bicondicionalidade as predicações paulinas
55
, que, em linhas gerais, equivalem a
considerar que as virtudes são nomes ou termos sinônimos donde podemos inferir
que “todas as pessoas justas são moderadas” ou “todas as pessoas justas são
sábias”.
Vlastos foi alvo de muitas críticas, como as de
Ferejohn
56
, que considerava seu raciocínio equivocado, uma vez que a
argumentação fundamenta a tese da unidade das virtudes e não da reciprocidade
das mesmas, como intentou o autor. Ao pretender demonstrar que todas as
virtudes são nomes de uma singular coisa, conclui que os termos são sinônimos e
53
VLASTOS, G. Platonics Studies. Princenton: Princeton University Press, 1973.
54
Ibidem, p. 233-235.
55
O termo “paulinas” refere-se à Epístola de São Paulo aos Corintos.
58
com isso podem ser intermutáveis. Se as virtudes forem intermutáveis, ou seja, se
puderem ser substituídas uma pela outra sem prejuízo em uma sentença,
teríamos a unidade e não mais a bicondicionalidade.
Ao revés da bicondicionalidade, a tese da unidade ou
da identidade significa que as virtudes (justiça, coragem, temperança, piedade e
sabedoria) são nomes diferentes para uma mesma coisa, qual seja a ‘virtude’.
Assim, chamar um homem de justo significa chamá-lo de virtuoso ou de sábio. A
assertiva, na forma simbólica resumida, corresponde a: V=J=T=S=C=P.
No parágrafo 329d, em Protágoras, Sócrates vale-se da
metáfora da barra de ouro: duas barras podem diferir no tamanho, mas não no
todo. Assim, como a piedade é parte menor da justiça e toda conduta piedosa é
justa, nem toda conduta justa será piedosa.
Em síntese: a tese da reciprocidade admite que as
virtudes são distintas, mas quem possui uma possui todas; a tese da unidade
assume que as virtudes têm nomes distintos para significar a mesma coisa. Deste
modo, podemos concluir que a tese da unidade implica a reciprocidade,
entretanto, a reciprocidade não implica a unidade.
56
FEREJOHN, M. T. The Unity of Virtue of Objects of Socratic Inquiry. Nova York e Londres:
Garland Publishing, 1995, p. 5.
59
Nosso entendimento é no sentido da mesótes entre as
teses da unidade e da bicondicionalidade. Como será demonstrado no Quarto
Argumento dos Diálogos Jovens platônicos a seguir, o todo da Virtude está no
conhecimento, uma vez que cada virtude é distinta da outra, mas todas possuem o
mesmo logos, ou seja, todas se referem a um particular modo de conhecimento do
bem e do mal, assim existindo somente um conceito para os diversos nomes das
virtudes, o fio condutor chamado conhecimento/sabedoria. Neste sentido, “as
virtudes em termos de definição são consideradas partes distintas de um todo
somente unidas pelo saber do bem e do mal”
57
.
Com o posicionamento de Protágoras no sentido da
separabilidade das virtudes, Sócrates posiciona-se para rebater essa idéia,
apresentando, para tanto, quatro argumentos a fim de provar a unicidade das
mesmas.
4.1.2 Os quatro argumentos sobre a Unidade das Virtudes
Este tópico tem como objetivo expor os quatro
argumentos apresentados por Sócrates, em Protágoras, quando buscava unir as
Virtudes Cardinais sob a premissa básica de que aquele que possui uma das
virtudes, possui todas. Primeiro Sócrates iguala a Piedade à Justiça,
57
DEVEREUX, D.T. The Unity of Virtues in Plato’s Protágoras and Laches. In: The Philosophical
Review: v. 101, nº 4, out./1992. p. 776 - 788.
60
posteriormente à Sabedoria, depois à Temperança e por fim a Sabedoria à
Coragem.
4.1.2.1 Primeiro Argumento: Piedade e Justiça
O primeiro argumento, desenvolvido entre os
parágrafos 330b-7 a 332a-1, tem por base provar que a Justiça e a Piedade
consistem em uma coisa só.
Sócrates questiona Protágoras se a Justiça é uma
coisa, ou se ela não é nada, Protágoras concorda que é alguma coisa. A mesma
resposta dá para a Piedade, ou seja, que a Piedade também é uma coisa.
Posteriormente, afirma que a justiça equivale a ser justo
e a piedade equivale a ser pio. Deste argumento Protágoras não discorda. A partir
dessas premissas, Sócrates começa o seguinte raciocínio:
Considerando que as virtudes são distintas, é possível afirmar:
(I) A justiça não é piedade
Assim:
(II) A justiça é não piedade
61
Por conseqüência:
(III) A justiça é ímpia e, portanto, a piedade é injusta.
Analisando o argumento proposto por Sócrates,
identifica-se uma questão: não é possível afirmar negando o predicado de uma
coisa quando forem de diferentes as categorias predicado e coisa. Seria o mesmo
que fazer a seguinte ilação:
(I) O número 2 não é redondo
(II) Portanto o número 2 é não redondo
(III) O número 2 é quadrado
Note-se, neste caso que categorialmente, o número 2 é
diferente da qualidade redondo, portanto não podemos afirmar negando seu
predicado. Assim, a tese de que Justiça e Piedade são termos unívocos pode ser
rebatida pelo argumento esposado acima.
Outro argumento sobre a falácia proposta por Sócrates
que podemos levantar é o seguinte: o argumento apresenta uma contradição, e
não uma contrariedade, os termos ’não justo’ ou ’não piedoso’ não significam
necessariamente ‘injustos’ ou ‘impiedosos’, respectivamente, podem ser
intermediários da ‘justiça’ ou da ‘injustiça’, da ‘piedade’ e da ‘impiedade’.
62
Os termos ’não justo’ e ‘não piedoso’ representam uma
contradição com a idéia de ‘justiça’ ou ‘piedade’, especialmente porque o contexto
trata da disposição de caráter, ou seja, uma pessoa justa não pode ser ao mesmo
tempo não justa ou injusta, e uma pessoa piedosa não pode ser ao mesmo tempo
não piedosa ou ímpia.
Por outro lado, podemos conceber que o termo ’não
justo’ significa necessariamente ‘injusto’ ou o termo ’não piedoso’ significa
necessariamente ‘ímpio’? Acreditamos que não, pois podemos vislumbrar atos
não justos que transitem no intermédio da justiça e da injustiça, ou ainda atos não
piedosos, que estejam no intermédio entre o piedoso e o impiedoso. Vale dizer
que nos Diálogos da Juventude, principalmente em Protágoras, Sócrates não leva
em consideração as possibilidades dos significados intermediários, uma vez que
intenciona convencer Protágoras que há correspondência entre Piedade e Justiça.
Entretanto, Protágoras não se valeu de nenhum
argumento para rebater a tese socrática. A contragosto, aceitou que a Justiça
comporta alguma semelhança com a Piedade e solicitou a Sócrates que
prosseguisse para o próximo argumento.
4.1.2.2 Segundo Argumento: Sabedoria e Temperança
63
O segundo argumento está contido entre os parágrafos
332-a a 333-b, por meio do qual Sócrates se propõe a provar que a Sabedoria é
igual à Temperança ou Moderação.
Sócrates seleciona uma série de termos que tenham
um termo contrário, por exemplo: velocidade e lentidão; força e debilidade; belo e
feio; bem e mal; agudo e grave
58
. Apresenta como opostos a sabedoria e a
temperança: insensatez e intemperança, respectivamente.
A partir dessa idéia, usa um antigo argumento grego e
faz a seguinte afirmação, em 332 c, com a qual Protágoras concorda: “Cada
contrário, portanto, só tem um contrário, não muitos”.
59
58
ARISTÓTELES. Tópicos. Coleção Os Pensadores. Tradução por Leonel Vallando e Gerd
Bornhein. São Paulo: Nova Cultura., 1983. p. 16. Os exemplos que envolvem ‘grave’ e ‘agudo’;
‘belo’ e ‘feio’ são rebatidos por Aristóteles no Livro I de Tópicos, ao dizer: “por exemplo, o contrário
de "agudo", tratando-se de uma nota, é "grave"; e, tratando-se de um ângulo sólido, é "obtuso". É
evidente, pois, que o contrário de "agudo" tem vários significados, e, assim sendo, o mesmo
acontece com "agudo", pois, correspondendo a cada um dos termos acima, o significado do seu
contrário será diferente. Com efeito, "agudo" não será a mesma coisa quando contrário a grave e
quando contrário a "obtuso", embora "agudo" seja o contrário de ambos. E também (grave,
pesado) no caso de uma nota tem como contrário "agudo", mas no caso de uma massa sólida,
"leve", de modo que é usado em várias acepções, já que isso acontece também com o seu
contrário. E, do mesmo modo, "belo" aplicado a uma pintura tem como contrário "feio", mas,
aplicado a uma casa, "arruinada"; portanto, "belo" é também um termo ambíguo.”
59
PLATÃO. Protágoras, op. cit., p. 71.
64
Concordando com a afirmação acima, Sócrates
empenha seu argumento em provar que tanto a Temperança quanto a Sabedoria
contêm o mesmo oposto: a ignorância e, portanto, são a mesma coisa e possuem
o mesmo significado. Em resumo o argumento seria este:
Termo:
(I) sabedoria
(II) temperança
Oposto:
ignorância
ignorância
Portanto:
(III) Sabedoria = Temperança
uma vez que seus opostos são iguais
Entretanto, o argumento torna-se falho quando é
utilizada a oposição entre dois sentidos diferentes, ao se referir à exemplificação
da ‘loucura’ ou ‘insensatez’, opondo-se à ‘moderação’ e ao mesmo tempo à
‘sabedoria’. Tal tipo de falácia é chamada de “falácia de equivocação”.
Sendo assim, se cada termo tem um contrário, pode-se
afirmar que a sabedoria é o contrário da intemperança e que é igual à idéia
65
positiva deste último termo. E o contrário se aplica neste caso, ou seja, ‘sabedoria’
é igual a ‘temperança’ e ‘insensatez’ é igual a ‘intemperança’.
Sócrates pergunta então qual das duas proposições
deve ser rejeitada: a de que todo contrário tem apenas um contrário, ou que a
temperança é diferente da sabedoria.
Protágoras deveria retrucar a primeira proposição, qual
seja, que todo o contrário tem apenas um contrário, uma vez que não é absoluto
que todo termo tem apenas um contrário
60
.
Entretanto, ao invés de discordar da primeira afirmação,
Protágoras aceita a idéia de Sócrates e não a rebate. Desse modo, resta a
Protágoras centrar-se em sua última expectativa, ou seja, que Sócrates não prove
que a Coragem se enquadra na tese da unicidade.
4.1.2.3 Terceiro Argumento: Coragem e Sabedoria
60
ARISTÓTELES, Tópicos. op. cit., p. 16. No Livro I – 15 de Tópicos, Aristóteles justifica bem essa
não existência de apenas um contrário para todo termo: “No tocante ao número de sentidos que
um termo comporta, não devemos limitar-nos a tratar daqueles termos que possuem diferentes
sentidos, mas também esforçar-nos por defini-los; por exemplo, não devemos dizer apenas que a
justiça e a coragem são chamadas "bens" num sentido e o que favorece o vigor e o que favorece a
saúde são assim chamados em outro sentido, mas também que as primeiras recebem essa
denominação em virtude de uma qualidade intrínseca que possuem em si mesmas e os segundos
porque produzem um certo resultado e não por possuírem em si mesmos alguma qualidade
intrínseca. E de modo análogo nos demais casos.”
66
Após um longo discurso de Protágoras, Sócrates
introduz o terceiro argumento, cujo intuito, frustrado, era provar que a Coragem é
igual à Sabedoria. Protágoras perceberá a falha do argumento, o que fará com
que Sócrates introduza o quarto argumento para validar o terceiro e provar a
Protágoras que a Coragem é de fato igual à Sabedoria.
Nos parágrafos 350a a 351a, o terceiro argumento parte
de uma indagação feita a Protágoras sobre quem é o homem mais corajoso:
aquele que se atira em um poço com conhecimento, ou o que o faz sem
conhecimento. Protágoras acredita que o mais corajoso é aquele que executa a
ação com conhecimento
61
.
Com a afirmação de Protágoras, de que corajoso é o
homem que se atira com conhecimento, Sócrates depreende a primeira premissa:
todo homem corajoso é audaz, e, conseqüentemente, a segunda premissa afirma
que todo homem conhecedor é audaz. Sócrates introduz, então, uma terceira
premissa que Protágoras não havia dito, qual seja: todo audaz é corajoso e, com
efeito, a quarta premissa afirma que todo não conhecedor não é audaz.
Sinteticamente:
(I) Todo homem corajoso é audaz.
(II) Todo homem conhecedor é audaz.
61
Na obra Laques, 193-c, a opinião de Laques é contrária a de Protágoras.
67
(III) Todo audaz (arrojado) é corajoso.
(IV) Todo não conhecedor não é arrojado.
Nesse momento, Protágoras intervém: “Porém não fui
perguntado se os homens arrojados são corajosos”
62
, ou seja, Protágoras não foi
perguntado sobre a assertiva (III). É aí que reside o erro da afirmação socrática
63
,
e argutamente Protágoras o percebe, dizendo-o a Sócrates, que não aparenta
estar muito afetado e parte então para o quarto argumento.
4.1.2.4 Quarto Argumento: Coragem e Sabedoria
Sócrates se vê obrigado a iniciar um novo argumento
para provar a unidade das virtudes, tendo em vista que o terceiro argumento fora
desarmado por Protágoras.
Em 351b, Sócrates propõe uma tese hedonista,
associando o bem ao prazer e o mal à dor. Para fazer valer essa tese, analisará
uma opinião do senso comum. Afirma em 352d que muitas pessoas alegam saber
o que é o melhor a ser feito, mas dizem que fizeram as coisas de outro modo por
62
PLATÃO. Protágoras. op.cit., p. 93.
63
O fato de todo corajoso ser audaz não significa que todo audaz é corajoso (essa assertiva não
foi demonstrada).
68
serem vencidas pelo prazer. A opinião do senso comum, mencionada por Platão,
pode ser ilustrada pela seguinte proposição:
Fulano sabe que X é bom e que pode fazer X, mas faz Y porque é
vencido pelo prazer
64
Para igualar o bem ao prazer, Sócrates não considera
apenas o prazer e a dor circunstancial, discutindo a igualdade entre bem e prazer
quando estamos nos referindo a prazeres futuros. Para exemplificar isso, Platão
recorre a prazeres momentâneos que levam a doenças no futuro, como deixar-se
dominar pelos prazeres da comida, da bebida e do amor (353 c,d). Da mesma
forma, argumenta que coisas dolorosas momentaneamente, como exercícios
físicos e tratamento médico, são a garantia de prazeres futuros (354 a).
Em 354b-c, Sócrates associa o bem não ao prazer
imediato, que pode causar um mal, mas sim ao prazer final, futuro. Da mesma
forma, associa o mal não à dor de uma ação momentânea, mas sim à dor final
futura. Protágoras assente a esta ligação entre bem e prazer.
Através das conexões entre bem e prazer, e entre mal e
dor, Platão permitirá a formulação da proposição que ilustra a opinião do senso
64
Como veremos, em A República esta proposição se revelará como um típico caso de acrasia.
Porém, o Platão de Protágoras não admite a acrasia, buscando desenvolver um raciocínio em
torno desta proposição, que pode ser ilustrado através da substituição de “bom” por “prazeroso”, e
de “mau” por “desagradável”.
69
comum apenas com as palavras bem e mal, ou apenas com as palavras prazer e
dor, tornando a opinião do senso comum contraditória.
Proposição do senso comum:
Fulano sabe que X é bom e que pode fazer X, mas faz Y porque é
vencido pelo prazer.”
Proposição com as alterações:
Fulano sabe que X é prazeroso, mas faz Y porque é vencido pelo
prazer.”
Fulano sabe que X é bom, mas faz Y porque é vencido pelo o que é
bom.”
Apresentada a conexão entre bem e prazer, mal e dor,
é necessário investigar a questão de que as pessoas fazem coisas prejudiciais
por serem vencidas pelo prazer, sob este novo enfoque. A solução está
justamente na diferenciação realizada entre prazer momentâneo e prazer
futuro.
Como exemplo, tomamos o homem que pratica coisas
desagradáveis por ter sido vencido por coisas agradáveis. Associando as
palavras ’momentâneo’ e ’futuro’ a ’agradável’ e ’desagradável’, temos as
seguintes proposições:
70
I – “Fulano praticou coisas ‘momentaneamente’ desagradáveis por ter
sido vencido por coisas ’futuramente’ agradáveis.”
Para ilustrar o assunto, Platão vale-se de uma
formulação que considera uma balança na qual são pesadas coisas agradáveis e
desagradáveis. No caso acima, as coisas futuramente agradáveis, ou seja, o
cálculo relacionado a prazeres e dores foi bem realizado.
Em uma segunda proposição, temos que:
II – “Fulano praticou coisas ‘futuramente’ desagradáveis, por ter sido
vencido por coisas ‘momentaneamente’ agradáveis.”
Neste caso, o momentaneamente agradável
ocasionará no futuro coisas desagradáveis. O homem em questão não pesou as
coisas corretamente na balança, não realizando corretamente o cálculo dos
prazeres e das dores.
Prazeres e dores podem variar em relação à
proximidade e à intensidade. Exemplificando, posso agir para atingir um prazer
próximo mas pouco intenso e não alcançar, por conta disso, um prazer mais
distante porém mais intenso.
71
Sob esse aspecto, Platão sugere outra questão, qual
seja, como fazer o cálculo de prazeres e dores corretamente. A resposta está em
356 e, em que Platão alega que o bom cálculo depende de uma espécie de
conhecimento, o conhecimento das medidas.
O bem agir fica associado a uma medição dos prazeres:
com base em certa ciência pode-se agir bem ou agir mal. Platão intelectualiza o
modo de agir, pois para agir bem é necessário um bom cálculo entre prazeres e
dores.
Em 357d, Platão afirma que a origem do cálculo errado
entre prazeres e dores é a ignorância. Ninguém busca aquilo que considera um
mal, a não ser que tenha uma opinião falsa (358c). Ninguém erra ou faz mal,
voluntariamente, por querer, mas apenas por ignorância, por não saber realizar
corretamente o cálculo dos prazeres, não vislumbrando com clareza as dores
futuras que serão conseqüências de prazeres momentâneos.
Desse modo, Platão intelectualiza até mesmo a
Coragem. As demais virtudes também são albergadas por esse conhecimento. A
partir do conhecimento, o homem possui todas as virtudes, pois sabe realizar bem
o cálculo para suas ações.
No caso da Coragem, por exemplo, os corajosos são
aqueles que fogem das coisas terríveis (que causam dor) para buscar as coisas
72
confiáveis (que causam prazeres, ou permitem prazeres futuros). A diferença entre
corajosos e covardes está no cálculo. Enquanto os corajosos têm ciência e fogem
do que devem fugir, buscando o que devem buscar, os covardes fogem do que
deveriam buscar e buscam aquilo de que deveriam fugir. Em 360d, Platão afirma
que a coragem é a sabedoria das coisas que inspiram temor e das que não
inspiram.
65
4.1.3 Os Equívocos de Sócrates na Teoria da Unidade das Virtudes
Como vimos no primeiro argumento, Sócrates induziu
Protágoras a erro, pois existem falha argumentativas às quais Protágoras não se
ateve.
No que diz respeito ao primeiro argumento, o termo
’não justo’ ou ’não piedoso’ representa uma contradição em relação a ‘justiça’ ou
‘piedade’; além disso, não é possível negar o predicado de uma coisa quando
pertencerem a diferentes categorias a coisa e o predicado.
No segundo argumento a falha reside em que a
afirmação de que todo o contrário tem apenas um contrário não é absoluta;, a
65
Em Laques conseguiríamos ligar a Justiça e a Piedade à Sabedoria, à Coragem e à
Temperança, pois é nessa obra que são unidas as virtudes Justiça e Sabedoria, concluindo-se que
a Coragem é uma ciência moral dos males e bens passados, presentes e futuros.
73
despeito disso, Protágoras aceitou o argumento sem questioná-lo e prosseguiu o
diálogo.
O terceiro argumento teve seu erro desmascarado por
Protágoras ao afirmar que não fora indagado se os homens arrojados são
corajosos.
Por fim, o quarto argumento tem como preço a
negação do conflito interno, conforme demonstrado no anteriormente.
Considerando todas as questões e problemas relativos
à Teoria da Unidade das Virtudes, Platão revisita as idéias iniciais e dá forma ao
seu pensamento ao apresentar uma nova Teoria na obra A República, objeto de
estudo do próximo capítulo.
74
5 JUSTIÇA PLATÔNICA EM A REPÚBLICA OU NA FASE PLATÔNICA
Com mais de dez anos da fundação da Academia,
Platão leva ao conhecimento público A REPÚBLICA ou Sobre a Justiça. Dividida
em dez livros, dos quais a maioria pertence à época dos Diálogos Médios. O
filósofo terminou A República em 375 ou 374 a.C.
Diferente das elaborações da Primeira Fase, à exceção
do Livro I, Sócrates não é apresentado mais sob a forma refutativa ou
elêntica,mas como porta voz da doutrina platônica sobre a Justiça.
Nessa obra, como veremos, Platão abandona quase
por completo sua teoria intelectualista da Unidade das Virtudes, defendida em
Protágoras. Defende agora a teoria que ficou conhecida como A Tripartição da
Alma. A nova teoria aceita a acrasia ou o conflito interno. Platão formula o que
entende como a cidade ideal e, conseqüentemente, justa.
Alguns aspectos interessantes devem ser destacados
sobre esta obra, tais como o papel da mulher e a organização da família na cidade
ideal platônica. No início do Livro V, há uma discussão sobre o papel da mulher,
que não seria vista como alguém que não mereça espaço nessa sociedade justa.
Platão não leva em consideração a questão do gênero humano, mas sim a
natureza e, bem por isso, a mulher poderia exercer qualquer função na cidade
75
platônica, seja produtora, guardiã ou sábia (433d-e). Este aspecto é relevante,
pois todos deveriam participar da vida pública, tanto na esfera política como
militar, motivo inclusive pelo qual Platão admirava Esparta
66
. A participação
feminina nas classes superiores proporcionaria uma integração plena e uma
perspectiva de unificação da cidade, superando as oposições entre homens e
mulheres
67
.
Em 457d, nesse novo modelo social as mulheres não
teriam esposos, seriam comuns a todos os homens. Conseqüentemente, os filhos
seriam comuns a todos também. A paternidade da prole poderia ser reconhecida
pela faixa etária, de modo que todos os indivíduos com a mesma idade seriam
filhos de um determinado pai. Ainda assim, as relações incestuosas deveriam ser
evitadas. Em 459a, Platão propõe a procriação da comunidade de modo
eugenético, ou seja, deveriam ser promovidas festas para que casais se
relacionassem sexualmente. Visando à formação dos pares, nessas festas seriam
realizados sorteios, sutilmente manipulados pelos governantes para que as
qualidades naturais de cada um se encontrassem. Essa seleção não seria
baseada na raça, mas sim na intelectualidade e na moral de cada indivíduo.
Aquele que desrespeitasse os sorteios deveria ser punido, pois estaria sendo
injusto com a cidade.
66
Essa igualdade entre homens e mulheres, defendida por Platão há séculos atrás efetivou-se no
Brasil em 1988 com a Constituição Federal, que no inciso I do artigo 5º inciso dispõe sobre o
princípio da isonomia, um dos direitos fundamentais.
67
VEGETTI, N. Guida allá lettura della Repubblica di Platone. Roma: Laterza, 1999. p. 67.
76
5.1 Sócrates desce ao Pireu (a katábasis)
O Livro I é considerado pela maioria dos comentadores
uma obra independente, cujo título seria Trasímaco. Acredita-se que foi elaborado
durante a juventude de Platão e deveria pertencer ao período de escritos
socráticos ou Diálogos Jovens platônicos
68
, pois nesse livro Sócrates ainda se
apresenta refutativo e o diálogo finda com uma aporia. Não obstante, o Livro I foi
incorporado em A República, integrando sua totalidade.
O diálogo tem início com uma descrição da descida de
Sócrates ao Pireu, onde se realizava uma festa em homenagem à Deusa Bendis
da Trácia
69
, que era reverenciada por Céfalo e sua família. Céfalo era um rico
meteco
70
que vivia com seus filhos Polemarco e Lysias. Durante a festa, Sócrates
desce ao Pireu e sua descida (katábasis) é muito significativa, pois se entende
como a representação de um momento de amadurecimento filosófico, sem
conhecimento prévio, seu saber será colocado à prova na casa de Céfalo.
Sócrates e Céfalo iniciam a conversa acerca da vida, da
riqueza e de alguns posicionamentos morais de Céfalo, que defende a felicidade
como algo que não depende da infinidade de desejos que possam se realizar, mas
68
NUNES, Carlos Alberto. In: A República. Op.cit., Introdução, p.3.
69
Bendis é a deusa da Lua na Trácia e oferece vidência, magia e proteção àqueles que a
procuram.
77
depende da paz que a mente adquire com a Temperança e a Justiça. Tanto
Sócrates como Céfalo não aceitam a injustiça e a impiedade, mas ambos
desconhecem o que seja a Justiça em si. Com a visão de um comerciante, Céfalo
propõe uma concepção comum de justiça, reduzindo-a a máximas e a
complacência por temor a castigos divinos.
Polemarco, filho de Céfalo, retoma a discussão
invocando o Poeta Simônides, em 331e, para citar uma concepção de justiça que
se consubstancia em: “Por ser justo, respondeu, dar a cada um o que lhe é
devido, máxima que se me afigura bem enunciada”
71
. Sócrates assevera que a
frase é vaga, pois pressupõe uma justiça sem um objeto específico, ao contrário
da medicina, que tem por objeto as doenças do corpo, ou a cozinha, que tem por
objeto específico os temperos para a formação de pratos saborosos. Sob esse
aspecto, não haveria como definir a Justiça sem definir seu lugar ou o seu
objeto
72
.
Então Polemarco diz que a especificidade da Justiça é
fazer o bem, favorecendo os amigos e prejudicando os inimigos. Essa concepção
taliônica não foi aceita por Sócrates, pois se assim o fosse, implicaria a
possibilidade de que uma pessoa justa utilizasse tanto a justiça quanto a injustiça
70
ANNAS, J. Introduction a la République de Platon. Paris: Puf, 1994. p. 28. Por ser meteco,
apesar de suas riquezas, Céfalo vivia na Grécia sem poder exercer os direitos de um cidadão
comum, tais como participar politicamente na cidade.
71
Ressalte-se que esta será a noção de Direito para os romanos: a arte de dar a cada um o que
deve ser seu.
72
Sócrates desenvolve o mesmo sistema de raciocínio em Protágoras para expor sua concepção
relativa aos sofistas.
78
para realizar seus fins, o que é contraditório, e não pode ser aceito por Sócrates,
para quem o agir dessa maneira é tirânico. É estabelecida uma conexão entre
justiça e melhoria das pessoas. Não é próprio do homem justo fazer o mal. O
homem justo deve praticar ações que melhorem as pessoas. Prejudicar os
inimigos não irá melhorá-los sendo, portanto, injusto.
Após o diálogo entre Polemarco e Sócrates, tem início o
diálogo mais importante desse livro, o de Sócrates e Trasímaco, que havia sido
repreendido pelos seus colegas para que não interrompesse o diálogo anterior.
Segundo Sócrates, Trasímaco avançou nos dois como se fosse um animal de
rapina e começou sua argumentação a fim de dilacerar o argumento e o método
socrático (336b).
A primeira definição de Trasímaco para a justiça,
exposta em 338c, corresponde a: “justo não é mais nem menos do que a
vantagem do mais forte
73
.” Porém, a vantagem do mais forte é também pautada
em outra proposição de Trasímaco que seria a de que o mais forte é aquele que
governa e promulga leis. Por conseguinte, as leis promulgadas devem estar de
acordo com os interesses do governante, e conseqüentemente, o justo é o que é
sancionado pela lei, devendo os transgressores ser punidos. Para Trasímaco, as
leis tiranas são justas em uma tirania, as leis democráticas são justas em uma
73
Em Górgias, 483c-e e 484a-c, Cálicles defende a idéia de que a natureza criou fortes e fracos e
que os fortes devem governar e os fracos devem sucumbir.
79
democracia, pois atendem ao interesse de quem governa. Deste modo, o mais
forte é quem governa e os mais fracos são os governados.
A partir de Trasímaco, como exposto acima, é possível
concluir que é correto tirar vantagem em qualquer coisa. Esse desejo irrefreável
em tirar vantagem de toda sorte, indistintamente, pode ser chamado de pleonexia,
que significa a oposição à justiça. Um poder tirânico tem por marca exagerar nas
medidas e, conseqüentemente, não tem como escopo o bem dos mais fortes e
dos mais fracos, mas baliza-se na injustiça de auferir vantagens para o mais forte
em demasia.
Posição semelhante à de Trasímaco tomaram,
historicamente, todos os pensadores que baseiam a aplicação da justiça no uso
do poder. Exemplificamos com o Positivismo Jurídico da Escola da Exegese ou de
Hobbes, que considera o justo tudo o que está de acordo com a vontade do
legislador, detentor do poder para legislar e para julgar. Deste modo, a justiça
nada mais é do que a aplicação da lei, independendo do governo que a
estabeleça. Assim, justo é quem segue a lei, e injusto é quem não a segue. Esse
niilismo moral remete à idéia da obrigação moral não ter uma real existência,
sendo mero produto da mente humana.
80
Em 342a-e, Sócrates critica o posicionamento de
Trasímaco e começa a discursar sobre a arte
74
e seu objeto, afirmando que o
indivíduo que exerce verdadeiramente sua arte não a utiliza em causa própria. A
arte deve se concentrar no aperfeiçoamento do objeto, e não na vantagem que se
deve tirar dele. Após vários exemplos, conclui que o justo não deve buscar seu
próprio interesse.
Em 343d, Trasímaco faz as seguintes afirmações: “por
toda parte o homem justo perde do injusto” e “nunca viste na dissolução da
sociedade levar o justo nenhuma vantagem sobre o injusto, porém sempre o
inverso.” Serão sobre essas afirmações que Sócrates irá se concentrar em 349b e
350c, alegando que não é interesse do homem justo tirar vantagens de seu
semelhante. Somente um incompetente, sem domínio da arte, poderia se tornar
injusto e enganar alguém. Assim, injusto é o ignorante, que não reconhece a justa
medida a que se deve ater, e deste modo, produz conflitos, divisões de grupos e
incapacidade para a cooperação.
Mais adiante, Sócrates começa a defender que a justiça
é uma virtude, entretanto, a discussão termina em aporia, pois quando Sócrates
começa a buscar uma definição para justiça, o eixo do diálogo toma outro rumo.
Em 353b, Sócrates afirma que cada coisa tem uma função
75
e que cada coisa
74
Essa arte nada mais é do que a virtude do objeto, a função que um objeto tem.
75
Para Aristóteles, a função do homem é agir com razão.
81
exerce melhor essa função que todas as outras
76
. Trasímaco e Sócrates discutem
se a justiça é um vício ou virtude, ignorância ou sabedoria. Ao final do Livro I,
estabelece-se um silêncio e Trasímaco retira-se do diálogo e passa à condição de
ouvinte desse momento em diante.
5.2 A República Platônica
A partir do Livro II, há uma mudança de método. O
método refutativo socrático dá lugar ao discurso mais fluente, no qual a
personagem Sócrates é porta-voz da teoria platônica. Trasímaco, antes combativo
e debatedor, assume um papel de espectador, passivo, aberto a aprendizagens
com Sócrates. A postura de Trasímaco é fundamental para o projeto de cidade
ideal platônica
77
.
A teoria platônica empenhada por Sócrates baseia-se
na tripartição da alma, pois só desse modo é possível aceitar a idéia da acrasia ou
a fraqueza da vontade
78
.
No começo do Livro II Glauco, apoiado por Adimanto, e
inconformado com a aparente vitória de Sócrates, obtida com o silêncio de
76
Esse raciocínio é bastante relevante para fundamentar sua teoria da organização social.
77
Como veremos, é fundamental que todos queiram aprender com o filósofo, deixando-se
persuadir por ele.
82
Trasímaco, pergunta ao mestre, em 357b-d, em qual das três alternativas se
encontra a justiça: a) bens que almejamos possuir por eles próprios e não por
suas conseqüências, a exemplo alegrias, prazeres inocentes; b) bens que
almejamos tanto por sua essência como por suas conseqüências, por exemplo,
conhecimento, saúde; c) bens que não desejamos tanto por si, mas pelas
conseqüências, por exemplo: vantagens monetárias ou de qualquer natureza que
nos possam proporcionar. Sócrates opina pela segunda proposição, entretanto,
Glauco adverte que a maioria não concebe essa via, a maioria seguiria a terceira
opção. Sócrates discorda, pois a justiça não pode ser vista como conseqüência de
algo, deve ser concebida como um bem em si.
Glauco, ainda inconformado com o silêncio de
Trasímaco, continua advogando a idéia de que a justiça não é um bem em si.
Conta o mito de Giges, exposto no capítulo 3 deste trabalho, cuja essência nos
revela que Giges levou a cabo atos pérfidos em razão da posse de um anel
mágico que o tornava invisível perante o olhar dos seus semelhantes, donde é
extraída a seguinte conclusão, em 360d: “ninguém é justo por livre iniciativa, mas
por coação”. Quando questionado sobre como resolveria o caráter injusto com os
deuses, Glauco responde que não haveria problema em uma outra vida, já que,
com a posse de muitas riquezas, bastava pagar aos deuses e tudo estaria
resolvido
79
.
78
. Esse conflito do homem, que não era possível nos Diálogos Jovens, como vimos em
Protágoras, agora é aceito em A República.
79
O Mito de Er, já analisado neste trabalho, contrapõe-se ao mito de Giges, pois o cometimento de
atos injustos acarretaria penalização.
83
Após o elogio que Glauco fez à injustiça, Adimanto, seu
irmão, não satisfeito reforçou a idéia, em 366d, de que “ninguém é
voluntariamente justo”, salvo se for dotado de uma capacidade divina que faça
com que se sinta “aversão à injustiça ou se tenha tornado esclarecido pelo
conhecimento”.
5.2.1 A Justiça na Cidade
É a partir dessas ilações, de Trasímaco, de Glauco e de
Adimanto, que Sócrates deverá argumentar e apresentar sua doutrina sobre a
Justiça. Entretanto, o início da defesa se dá de maneira indireta, pois o que havia
sido proposto era a definição da justiça e sua manifestação na alma do indivíduo.
Sócrates não fala do indivíduo, começa a descrever o
que seria a cidade justa, ou seja, parte da justiça no domínio maior (cidade) para
depois encontrá-la no domínio menor (homem), de acordo com 369a. Para tanto
traça um perfil da sociedade elementar a partir da situação econômica de seu
tempo e das condições para que uma sociedade possa existir.
84
Os raciocínios hipotéticos
80
utilizados partem de um
tempo imaginário no qual um indivíduo solicita o auxílio de outro para executar um
determinado empreendimento, e posteriormente solicita outro, e outro. Por serem
várias as necessidades de cada um, vários indivíduos se reúnem no mesmo local,
para reciprocamente se auxiliarem, deste modo são constituídas as cidades.
Em 369d, Sócrates começa a descrever as
necessidades básicas que encontrarão os que acabaram de se agrupar em uma
sociedade. A primeira necessidade maior é a alimentação, a segunda refere-se à
moradia, a terceira são as vestes e coisas semelhantes. A partir dessas
necessidades, faz-se mister nessa cidade a presença de um lavrador, um
pedreiro, um tecelão e até mesmo um sapateiro e mais alguns artesãos para
outras necessidades do corpo.
Considerando o desempenho de cada um desses
indivíduos, conclui-se, em 370b, que “nascemos com disposições diferentes, cada
um com mais jeito para determinado trabalho”. Com isso, o trabalho mais próximo
da perfeição será melhor desenvolvido com a aplicação do indivíduo a apenas
uma atividade
81
e não a várias.
80
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso Sobre a Origem da Desigualdade. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. p. 234. Diversos foram os pensadores que buscaram a situação originária da
espécie humana, Rousseau foi um deles com seus raciocínios hipotéticos condicionais.
81
Retoma o argumento de 353 – b, exposto na página 80 deste trabalho.
85
Acrescenta-se a essa pequena cidade carpinteiros,
ferreiros e muitos outros profissionais, a fim de que existam instrumentos
disponíveis e que possibilitem o funcionamento da cidade.
Desse modo, a cidade aumenta de tamanho e não pode
mais ser considerada pequena. Com o crescimento torna-se imprescindível a
criação de uma moeda, bem como o estabelecimento de relações com cidades
vizinhas, a fim de melhorar a economia da cidade. O comércio deve ser atribuído
aos comerciantes, considerados “indivíduos fracos fisicamente e incapazes de
qualquer outra ocupação” (371d).
Em 372c, Glauco interrompe o discurso de Sócrates e
questiona se nessa cidade as pessoas vivem apenas de pão seco. É nesse
momento que Sócrates introduz a idéia de luxo ou das cidades fartas; cita em
373b os artistas, os pintores, as camareiras e os padeiros.
O luxo gera a necessidade de que se proteja o
patrimônio, bem como de que se expandam as propriedades e territórios, a fim de
que os luxos existam a contento. Como só é possível exercer a atividade que lhe
seja peculiar, não serão os próprios cidadãos que cuidarão disso.
Portanto, a recém criada classe dos produtores não
poderá exercer esse labor. É necessário criar uma nova classe que exerça a arte
da competição bélica, surgem assim os guardiões. Há então uma sociedade
86
estruturada com produtores e guardiões, sendo que um não é mais importante que
o outro e todos são necessários.
Sócrates põe-se a imaginar do que precisam os
guardiões e conclui que devem ter um bom treinamento e a parte da alma
conhecida como thimós, que consistiria na tolerância, na gentileza com os
cidadãos (mansos com os familiares) e corajosos (agressivos com o inimigo).
Nesse momento, Sócrates entra em aporia, pois não sabe como encontrar alguém
gentil e corajoso ao mesmo tempo (375c). É em 375e que encontra poria para
esta dúvida: apresenta como saída procurar guardiões com as características de
um cão que é dócil com a família e bruto com os inimigos.
Sobre a educação dos guardiões, Sócrates afirma que
se deve atuar em dois pontos, nesta ordem: (i) formação cultural; (ii) formação do
corpo.
A formação cultural deve ser praticada por meio da
música que alimenta a alma e deve subtender discursos, que, Segundo Sócrates,
poderão ser verdadeiros ou mentirosos e devem ser vigiados.
Deve-se começar pelos discursos mentirosos, pois
estes contêm algo de verdadeiro, e se desde crianças balizarem-se nessas
histórias, entenderão como deverão agir. Em 377c, Sócrates estabelece a
87
censura, asseverando que todos os escritores de fábula devem ser vigiados, para
possibilitar aceitar as boas e rejeitar as ruins.
Assim, no Livro II de A República, Sócrates apresenta
como devem se organizar dois estamentos da sociedade, os produtores e os
guardiões, sendo que os produtores devem produzir objetos e alimentos
necessários para a sociedade e os guardiões devem agir com gentileza com
familiares e brutalidade com inimigos.
O Livro III prossegue com a apresentação dos
guardiões e a organização da cidade ideal.
Em 389b, afirma-se que é licito aos dirigentes da cidade
mentir, seja para enganar os inimigos ou os próprios cidadãos, caso essa medida
traga vantagem à comunidade. Vale frisar que somente aos governantes é
possibilitada a mentira. Aos demais habitantes é proibido mentir, tendo em vista
que não têm bom cálculo e a sabedoria sobre seus atos
82
-
83
.
82
Veremos mais a frente que são os filósofos que possuem esse bom cálculo, uma vez que se
balizam pela razão.
83
Atualmente, embora o Brasil não adote a forma de governo proposta por Platão, o expediente da
mentira pode ser encontrado sob a forma mais branda da omissão, em nossa atual Carta Política.
O artigo 5º, inciso XXXIII, garante o direito de informação, mas esta pode ser omitida caso exista a
necessidade do sigilo imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado. Transcrevemos:
XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular,
ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da
sociedade e do Estado” (grifo nosso).
88
Em 392 começa a discorrer sobre as artes e assevera
que o guardião, em sua educação, deve ser guiado pelos ensinamentos
adequados, à luz de sua função nas cidades. Além disso, não deverá ser guiado
pelos discursos de quem não saiba o que seria bom para a cidade, por exemplo,
os poetas ou os atores
84
.
Em 395b, Sócrates reduz a natureza humana a valor
ínfimo, pois afirma que esta é cunhada em moedas de baixo valor. Por conta
disso, e para manter a ordem na polis, é necessário que os guardiões se
dediquem inteiramente à liberdade da cidade. Para que a proteção seja efetiva, os
governantes devem dispor aos guardiões, desde sua infância
85
, o que eles
deverão imitar; desse modo, as crianças se tornarão corajosas e temperantes nos
moldes dos que governam e que impõem os conteúdos dos conhecimentos
verdadeiros.
Vale ressaltar que, em 407d, Sócrates delineia uma
idéia favorável à eugenia, na qual “não valia a pena tratar de quem se revelava
incapaz de viver o tempo fixado pela natureza, o que não seria de proveito nem
para ele nem para a comunidade”.
84
No livro X é feita uma crítica aos poetas e aos artistas, que produzem falsos conteúdos
baseados em opiniões falsas.
85
No livro IV, em 425a, Sócrates afirma que os jogos e brincadeiras de crianças podem ser
censurados.
89
Em 412b, considerando a sociedade composta por
produtores e guardiões, Sócrates é questionado acerca de quem deve mandar e
quem deve obedecer. A partir desse parágrafo até o final do Livro III, Sócrates
apresenta quem seriam os verdadeiros guardiões da cidade, aqueles que
possuem conhecimento verdadeiro.
Os filósofos seriam os sábios e que deveriam governar
a cidade. No Livro IV, em 429a, Sócrates assevera que são poucos os que
pertenceriam a essa classe, sendo os únicos que detêm o conhecimento
denominado Sabedoria
86
.
Diante do exposto, a cidade comporta três classes
sociais:
(I) Produtores (artesãos, agricultores);
(II) Guardiões (soldados, guardas);
(III) Governantes (filósofos).
Sócrates, em 415a-b, aproxima essas classes a
qualidades de metais como o ouro (governantes); prata (guardiões) e bronze ou
ferro (produtores). A comparação remete ao Mito das Cinco Idades, de Hesíodo,
abordado no capítulo 3.
90
No Livro IV, em 427d, Sócrates retoma as quatro
Virtudes Cardinais estudadas nos Diálogos Jovens platônicos: Sabedoria,
Coragem, Temperança e Justiça. Em 429a-d, as classes da cidade são
relacionadas cada uma com uma virtude cardinal:
(I) os produtores estão ligados à Temperança;
(II) os guardiões estão ligados à Coragem;
(III) os governantes estão ligados à Sabedoria.
Por serem três classes, apenas três virtudes, das quatro
cardinais, foram relacionadas. A virtude excetuada foi a Justiça. Sobre essa
questão passaremos a discorrer.
5.2.1.1 A Quarta virtude: A Justiça
Para Platão, os produtores são temperantes, os
guardiões são temperantes e corajosos e os governantes são temperantes,
corajosos e sábios. Verifica-se, portanto, que o filósofo abandonou a Teoria da
Unidade das Virtudes, filiando-se a idéia de que as mesmas podem ser
dissociadas e que é possível um indivíduo ser dotado de apenas uma ou de
algumas delas.
86
O Sábio, ou o Filósofo, referido no Livro IX, já nasce com o natural filosófico.
91
Em 432-b a 435-a, a justiça é aplicada na cidade. Como
já dissemos, Sócrates acredita que cada indivíduo só poderá exercer, na cidade,
uma única ocupação, aquela para a qual se encontre naturalmente habilitado.
Sendo assim, a justiça reside em cada um cuidar do que lhe diz respeito. Cada
indivíduo deve zelar por suas atribuições, pois deste modo a cidade encontrará a
justiça. A justiça é algo que deve ser partilhado por todos, vale dizer, produtores,
guardiões e sábios deverão ser justos. Esse é um dos motivos que nos leva a crer
que a cidade e a alma foram divididas em três partes e não quatro.
Se a justiça reina quando cada indivíduo exerce suas
respectivas funções, podemos inferir que existe apenas uma classe que aglutina
as quatro Virtudes Cardinais, vista nos Diálogos Jovens platônicos: os filósofos,
que são temperantes, corajosos, sábios e justos. O modo pelo qual os filósofos
exercerão a justiça será diferente dos demais; o que fará com que eles sejam e
ajam com justiça é o conhecimento ou sabedoria; essa função da alma, a
sabedoria, existe fortemente apenas nestes indivíduos. Sendo assim, o
conhecimento trará, racionalmente, o caminho para a justiça, que não é uma
função da alma, mas que deve residir em todas as funções, seja pelo
conhecimento ou pela opinião.
92
Nessa cidade justa os produtores, os guardiões e os
sábios deverão agir conforme seus papéis sociais
87
. Entretanto, caso algum
indivíduo queira, por qualquer motivo, exercer função diversa daquela para qual é
apto, haverá então elementos para uma cidade injusta. A título de exemplo, um
produtor não deve querer ser um guardião, pois não tem capacidade para sê-lo,
mas caso isso aconteça essa cidade será injusta. Por outro lado, um guardião ou
um sábio têm condições de serem produtores, mas não devem ser, pois se isso
acontecer estes não exerceram na plenitude suas capacidades e,
conseqüentemente, serão injustos.
Mas o que fará com que homens de bronze aceitem sua
classificação e homens de prata não queiram ser de ouro? A resposta para esse
questionamento está na Justiça. Os guardiões e os produtores aceitarão essa
divisão social, pois são justos. Além disso, foram educados pelos sábios desde
crianças, como vimos, com um sistema dirigido a adequá-los às necessidades
dessa cidade justa. Bem por isso Platão acredita que se deva controlar ou
expulsar uma companhia de atores ou poetas que queiram fornecer conteúdos
morais diversos dos que são ensinados para os cidadãos
88
.
87
Conforme veremos mais a frente as duas primeiras classes agem motivadas por opiniões
verdadeiras, enquanto a última age com conhecimento, sabedoria.
88
Entretanto, é possível encontrar um ponto de fuga para essa teoria platônica. Pode haver
cidadãos injustos que não se convençam das idéias expostas pelos sábios. A titulo de exemplo,
podemos citar a própria bibliografia platônica. Na obra Górgias, Cálicles, inconformado com as
idéias expostas, se retira do diálogo e não retorna mais. Nesse caso, Platão não apresenta
nenhuma saída na obra A República, mas entendemos que o faça em As Leis, pois confere às leis
o caráter educativo em seus preâmbulos, explicando o porquê de agir conforme a lei, bem como o
caráter retributivo, com a aplicação de pena aos desobedientes. Sob esse raciocínio, aquele que
for injusto e não quiser exercer sua função deverá ser penalizado para que exista a manutenção da
justiça.
93
Sócrates havia asseverado, em 369a, que a justiça
poderia ser investigada primeiro na cidade e posteriormente poderia ser analisada
no indivíduo. Dos Livros II ao IV dedicou-se a essa análise. Concluiu que, em uma
cidade ideal, cada indivíduo deve ter uma habilidade específica a ser utilizada em
benefício da cidade, e que deve haver três classes sociais na cidade: produtores,
guardiões e sábios. Além disso, para cada tipo de indivíduo existe uma virtude
característica, temperança, coragem ou sabedoria. Deste modo, aqueles que
agirem em consonância com suas funções possibilitarão uma cidade justa, uma
vez que a justiça consiste em fazer as coisas que lhe são próprias.
5.2.2 Da Cidade para o Indivíduo
No Livro V, a teoria moral, fundada nos Diálogos
Jovens, a Unidade das Virtudes, será modificada com a Tripartição da Alma, que
tem como base cognitiva a opinião verdadeira e o saber.
Em 478a-e, Platão faz uma distinção entre o
conhecimento e a opinião. Afirma que o conhecimento tem como base a verdade e
a opinião funda-se no que é e não é verdadeiro. Deste modo, a opinião é o meio
termo entre o não ser (ignorância) e o conhecimento (sabedoria). Essa posição
intermediária demonstra que a opinião pode ser falível, ao contrário do
94
conhecimento, mas como os que detêm conhecimento irão governar, os
governados terão apenas opiniões verdadeiras.
No Livro VI Platão, prossegue discutindo sobre opinião
e saber. Em 485b, enaltece os filósofos e diz que estes amam a verdade e, por
isso, são os únicos capazes de revelar alguma coisa sobre a essência eterna, uma
vez que desejam apreender toda a substância. São temperantes de tal maneira
que odeiam a riqueza, caso contrário seriam equiparados a qualquer pessoa do
senso comum. O filósofo é corajoso no sentido de não temer a morte; ama a
justiça e concentra as quatro Virtudes Cardinais, por conta de sua sabedoria. Em
478a, Sócrates alega que todas as qualidades e virtudes enumeradas estão
articuladas umas às outras, de tal modo que o filósofo executa-as com
simplicidade, graça e elegância.
É necessário que exista uma relação entre o
conhecimento e o que é verdadeiro. O conhecimento tem um conteúdo do sistema
ideal, esta é uma peculiaridade de A República, em que todo processo de
construção de um modelo ético e político se dá pela oposição entre saber e
opinião.
Embora em Timeu essa idéia seja melhor exposta, é
possível considerar que o conhecimento (que é sempre ligado à verdade) e a
opinião (que pode ser verdadeira ou falsa) estão ligados a uma parte da alma.
95
A sabedoria possui um conhecimento verdadeiro e,
deste modo, sempre caminha para o que é verdadeiro ou certo. Os corajosos, na
maioria das vezes, possuem opiniões verdadeiras e habitualmente caminham,
assim como a sabedoria, para o verdadeiro. Por outro lado, os temperantes, se
fossem guiados por suas opiniões, na maioria das vezes caminhariam para
opiniões falsas. Entretanto, como os corajosos e os temperantes se guiam pelo
conhecimento do sábio, suas opiniões serão sempre verdadeiras.
5.2.2.1 As Virtudes, as Partes da Alma e a Acrasia
A cada Virtude Cardinal, Platão irá ligar um tipo de
motivação, ou parte da alma. Os temperantes (produtores) estão ligados com a
parte da alma conhecida como a epitimia ou apetite; os corajosos (guardiões)
estão ligados com o thimós, ou parte iraciva da alma; os sábios estão ligados pelo
logos, ou a parte racional da alma. Esquematicamente, pode-se representar o
exposto da seguinte forma:
(i) Produtores ----------- temperança ----------- epitimia;
(ii) os guardiões ----------- coragem ------------ thimós;
(iii) os governantes -----------sabedoria -------- logos.
96
Modernamente, o ideal do Estado de Direito demonstra
essa organização necessária, na qual a força é subordinada à sabedoria e à Lei,
ou seja o logos deve governar tanto o thimós como a epitimia.
Considerando essa mudança de posicionamento, com o
aceite da acrasia, Platão busca apresentar uma Teoria da Ação mais potente em
A República, que não será mais alterada substancialmente, após a exposição
nessa obra.
A Teoria da Ação apresentada em Protágoras era
fortemente intelectualista, pois se defendia que a ação humana era baseada
exclusivamente em elementos cognitivos. Exemplificando, se creio que o objeto “x”
representa o que é melhor e tenho condições de, através da ação, alcançar o
objeto “x”, necessariamente irei agir tendendo para a conquista do objeto “x”.
Dessa forma, o fenômeno da acrasia, ou seja, o conflito interno de desejos, não é
considerado na Teoria da Ação em Protágoras.
Platão percebe que é importante considerar a acrasia
na Teoria da Ação e, para conseguir a integração desse fenômeno, modificará
radicalmente sua Teoria, propondo uma alma tripartite.
Em 439c, trabalha com o exemplo de um conflito da
alma relacionado com a bebida. O indivíduo sabe que não deve beber, mas quer
beber; sendo assim, seu logos não quer beber, mas sua epitimia (apetite) quer
97
que beba. Outro exemplo apresentado por Platão seria o de Leôncio: ao saber que
do outro lado de um muro existiam corpos jogados um sobre o outro tem desejo
de vê-los (epitimia), mas tem pudor e não quer vê-los (thimós).
Um exemplo contemporâneo seria uma mulher que
queira comer chocolate: racionalmente sabe que não deve comê-lo (logos), mas
impulsivamente quer comê-lo (epitimia), então, por um momento tem a crença que
comer aquele derivado de cacau é certo.
Para Platão, nesse momento, não importa se a pessoa
bebe ou não, vê os corpos ou não, o que importa é que a partir dessa idéia surge
a possibilidade de se encontrar conflitos morais
89
. Esse princípio foi
posteriormente denominado por Aristóteles de “Princípio da não Contradição”, ou
seja, posso ter vontades diferentes, mas não na mesma função: não posso saber
e não saber, ter o impulso e o não impulso, minhas motivações devem ser
diferentes.
Quanto ao filósofo, segundo Platão, este deve sempre
se guiar pela razão ou logos, afirma isso, pois acredita que aquele que tem
conhecimento, por ser tão grandioso, jamais deixaria que partes não tão fortes de
sua alma prevalecessem. A título de exemplo, um sábio jamais beberia sabendo
89
Nessa exposição, Platão não direciona sua filosofia para o resultado que será alcançado, mas
claramente quer que o conhecimento, ou no mínimo a opinião verdadeira, prevaleça.
98
que isso lhe faria mal e racionalmente não valesse a pena. Como discutiremos no
tópico abaixo, o jurista também deve se balizar pela razão.
Com a Teoria da Tripartição da Alma, Platão abandona
a tese reducionista. Agora acredita que a harmonia entre o thimós, a epitimia e
seu fio condutor, o logos, traria a Justiça. Sendo assim, a alma é harmônica por
causa da Justiça.
5.2.3 As Virtudes próprias do Jurista
Em que pese Platão acreditar que os reis devem ser os
filósofos, entendemos que os juristas devem possuir não apenas uma, nem duas,
mas todas as Virtudes Cardinais para que o Direito seja pleno. Assim como para
os filósofos, a sabedoria deve guiá-los para que sejam justos com o conhecimento
verdadeiro.
O juiz como julgador, deve ter o conhecimento técnico
do Direito (sabedoria); deve ser temperante, sabendo o momento certo para
exercer seu labor, não podendo, por exemplo, exercê-lo inebriado ou tomado pela
ira; além disso, deve ser corajoso e deixar que a venda da Justiça faça recair sua
espada em qualquer pessoa independente de seu histórico, sua posição social ou
status econômico.
99
O membro do Ministério Público, via de regra, carrega
na denominação de seu próprio cargo uma das virtudes, Promotor de Justiça. A
exemplo, podemos citar uma das cenas mais idealizadas dessa carreira que seria
o Tribunal do Júri. Nesse momento, o Promotor deve ser temperante para que
possa conquistar os jurados, corajoso, pois fica frente a frente com o réu
denunciado, e ainda sábio, pois deverá apresentar uma tese concatenada a fim de
convencer os jurados para que nesse momento seja efetivada a Justiça.
Não menos importante hierarquicamente, o advogado
deve também, não só a exemplo do que prevê a legislação federal brasileira no
que se refere ao Código de Ética e Disciplina, no Título I Capítulo I, agir à luz das
Virtudes Cardinais já expostas. Deve ser corajoso para patrocinar uma demanda
jurídica; deve ser temperante para tomar a medida processual correta e, acima de
tudo, sábio para que possa operar a legislação a fim de buscar a Justiça a favor
de seu patrocinado.
100
6 CONCLUSÃO
Visando a encaminhar nossas últimas considerações
neste estudo da forma mais elucidativa possível, subdividimos este capítulo em
tópicos de acordo com a seqüência expositiva ao longo do trabalho, destacando
seus aspectos mais relevantes.
6.1 Biografia de Platão e Contexto Histórico
Sócrates foi o grande mestre de Platão, sendo que este
balizou seu pensamento e suas obras em muitos diálogos (Diálogos Jovens).
Frente à injustiça que Sócrates havia sofrido, tendo sido
condenado a beber cicuta, Platão aprofunda sua descrença de que a democracia
possa ser a melhor forma de se governar.
6.2 Diálogos Platônicos
Os Diálogos Platônicos, divididos por alguns
comentadores em três partes - Jovens, Médios e os da Maturidade - demonstram
uma transição evolutiva no pensamento platônico.
Platão abandona a postura refutativa socrática para
apresentar a célebre Teoria das Idéias, exposta nos Diálogos Médios, inclusive
101
bem evidenciada no Mito da Caverna, analisado nesse trabalho. Apesar deste
mito ter um caráter biográfico (a morte de Sócrates), apresenta a Doutrina das
Idéias no sentido da busca do bem.
6.3 As Virtudes Cardinais e sua separabilidade
Nos Diálogos Jovens, como também em Protágoras,
Sócrates apresenta as quatro Virtudes Cardinais: Temperança, Coragem,
Sabedoria e Justiça.
Ao contrário do que advoga Protágoras, Sócrates
acredita que as Virtudes Cardinais são inseparáveis. Acredita que um homem
virtuoso é aquele que tem todas as virtudes simultaneamente. Sobre essa idéia
distendem-se duas interpretações, a tese da bicondicionalidade ou da
reciprocidade e a tese da unidade ou da identidade. A tese da reciprocidade
entende que as Virtudes são distintas, mas quem possui uma possui todas. A tese
da unidade entende que as virtudes têm nomes distintos para a mesma coisa.
Ainda nos Diálogos Jovens, Sócrates demonstra como
tais virtudes são inseparáveis: a Justiça liga-se à Piedade; a Sabedoria à
Temperança; a Coragem à Sabedoria, que liga todas as virtudes em uma só.
102
6.4 A Justiça em A República
Nos Diálogos Médios Platão muda sua postura, o que é
perceptível quando a forma elêntica ou refutativa de Sócrates dá lugar a um
Sócrates porta-voz de Platão no que tange a Teoria da Justiça.
Na obra A República ou Da Justiça, Platão não se vale
mais do fenômeno moral das virtudes, percebe o fracasso desta idéia e começa a
pensar o fenômeno moral através da tripartição da alma.
Antes de analisar e apresentar a tripartição da alma,
Platão apresenta a Justiça na cidade ideal. A cidade platônica é dividida em três
grupos: os produtores, os guardiões e os sábios. Os produtores ligam-se à virtude
cardinal conhecida como Temperança, os guardiões ligam-se à Coragem e os
sábios ligam-se à Sabedoria. A última virtude cardinal, a Justiça, está presente em
todos aqueles que cuidarem das suas atribuições especificamente, pois, conforme
Sócrates, a justiça reside em cada um cuidar do que lhe diz respeito.
Nessa obra Platão divide a alma em três partes: o
racional (logos), o impulso (thimós), e o apetite (epitimia), sendo que as duas
últimas constituem o irracional. Apenas os sábios possuem conhecimento ou
sabedoria. Deste modo, são eles que devem bem governar a cidade platônica; os
sábios devem guiar aqueles que não se orientam pela razão, para que tenham
opiniões verdadeiras.
103
6.5 Considerações Finais
Com a Teoria da Tripartição da Alma, apresentada nos
Diálogos Médios e defendida até sua última obra, Platão abandona a tese
reducionista da inseparabilidade das virtudes para alcançar a Justiça.
A partir de A República, Platão acredita que a harmonia
entre thimós, epitimia e logos é que trarão a Justiça. Nesse sentido, a alma a
cidade e o homem serão harmônicos em função da Justiça, devendo não só os
reis filósofos como os juristas possuírem as quatro Virtudes.
104
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