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PEDRO BUCK AVELINO
CONSTITUCIONALISMO:
DEFINIÇÃO E ORIGEM
MESTRADO EM DIREITO
PUC/SP
SÃO PAULO
2007
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PEDRO BUCK AVELINO
CONSTITUCIONALISMO:
DEFINIÇÃO E ORIGEM
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em Direito do Estado – Direito
Constitucional, sob a orientação do Prof. Dr. André
Ramos Tavares.
PUC/SP
SÃO PAULO
2007
4
Banca Examinadora
___________________________________
___________________________________
___________________________________
5
Dedico a presente dissertação ao meu avô, Fernando
Buck.
Agradeço aos co-autores da obra (com a ressalva de
que as falhas são de minha responsabilidade), minha
família: minha mãe, meu pai, Jacques de Oliveira
Germano Jr., minha avó e meus tios, Fernando
Carlos e Maurício.
Agradeço, também, aos meus amigos que,
carinhosamente, leram os originais e deram
preciosos palpites: Carla Osmo, Dimitri Sales,
Mateus Piva e Thiago Alonso.
Agradeço, por fim, ao André e à Beatriz, por me
trazerem, lá do estrangeiro, grande parte da
bibliografia desta dissertação.
6
“As SIR ROGER TWYDEN said in the seventeenth
century, ‘The world, now above 5,500 years old,
hath found means to limit kings, but never yet any
republique.’.” (MCILWAIN, 1977: 138; ênfase
acrescentada).
7
Resumo
O presente trabalho nasceu de uma inquietação do autor com a definição,
recorrente, de que o constitucionalismo seria um mero contraponto às monarquias
absolutistas.
Ciente de que esta concepção é assaz simplista e que sua origem, em
grande parte, se encontra na influência da doutrina francesa sobre os manualistas
brasileiros, o autor pretendeu identificar uma nova conceituação mais precisa do
fenômeno e que pudesse ser justificável ou sustentável em face da origem histórica do
constitucionalismo, que se dá nos Estados Unidos, pós-Independência.
O resultado de sua perquirição foi a definição de constitucionalismo
como uma técnica de limitação do governo que se preocupa, essencialmente, com a
figura do poder legislativo, com a supremacia do Parlamento.
8
Abstract
This paper has its origin in the author’s doubt about the usual definition
of constitutionalism, which tends to identify such phenomenon with the movement
against the absolute monarchies.
Aware that such conception is extremely simple and that its origin lays,
greatly, in the influence that the French doctrine has upon the Brazilian scholars, the
author intended, in this paper, to identify a new definition, one more precise about the
phenomenon and that could be justifiable or sustainable upon the historical origin of the
constitutionalism, which happens in the United States, after de Independence.
The result of his research was the definition of constitutionalism as a
technique that tends to limit the government, but which has a major concern with the
legislature, with the supremacy of the Parliament.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......……………………………………………………………………1
1. Apresentação do problema e da proposta da dissertação de mestrado..................1
2. Metodologia discursiva da presente dissertação.......................................................3
Bibliografia da seção.......................................................................................................5
CAPÍTULO I :NOÇÃO DE CONSTITUCIONALISMO MODERNO.....................7
1. Conceito de Constitucionalismo: dificuldade de precisão........................................7
2. Constitucionalismo antigo e moderno: superação desta classificação..................15
Bibliografia da seção.....................................................................................................19
CAPÍTULO II: CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO....................22
1. Prolegômeno...............................................................................................................22
2. Os três períodos.........................................................................................................22
2.1. O período de 1761.............................................................................................22
2.2. O período da politics of liberty.........................................................................25
2.2.1. Noções iniciais...........................................................................................25
2.2.2. A tirania da democracia e a queda do legislativo......................................29
2.2.3. Leis ex post facto e a abolição dos contratos.............................................37
2.3. 1787-1788: A Convenção de Filadélfia............................................................44
2.3.1. Implicações do período da politics of liberty.............................................44
2.3.2. A concepção política dos Founding Fathers: a aristocracia natural..........47
2.3.2.1. O Senado e a Presidência: o uso do filtering principle...............49
2.3.2.2. A figura do Judiciário.................................................................63
Biblografia da seção.......................................................................................................67
CAPÍTULO III: CRÍTICAS À CONSTITUIÇÃO DE 1787: OS
ANTIFEDERALISTAS.................................................................................................68
1. O “momento mágico”: a santificação dos legisladores iniciais..............................68
2. Os Antifederalistas....................................................................................................71
2.1. A crítica ao filtering principle..........................................................................76
2.2. A crítica ao Judiciário?....................................................................................77
2.3. O debate econômico..........................................................................................78
2.4. Conclusão parcial.............................................................................................83
Bibliografia da seção.....................................................................................................84
CAPÍTULO IV: A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA: BEARD E O “CHOQUE
DE SUA VIDA”.............................................................................................................85
1. BEARD e os semi-deuses de JEFFERSON...................................................................85
2. Os interesses econômicos por detrás do movimento federalista...........................85
3. As críticas a BEARD...................................................................................................96
4. A importância de seu estudo para o constitucionalismo........................................98
Bibliografia da seção.....................................................................................................99
CONCLUSÃO..............................................................................................................100
BIBLIOGRAFIA FINAL............................................................................................103
10
INTRODUÇÃO
1. Apresentação do problema e da proposta da dissertação de mestrado
A origem do fenômeno do constitucionalismo dito moderno, em razão de
uma prática reducionista, é invariavelmente relacionada a ideais antiabsolutistas. Esta é
a tônica nos diversos manuais de Direito Constitucional.
PAULO BONAVIDES, por exemplo, ao tratar da gênese da figura do direito
constitucional, ou diritto costituzionale
1
, precisou que tal é “criação dileta das
ideologias antiabsolutistas” (2004: 37). Trilha esta mesma senda DALMO DE ABREU
DALLARI, ao afirmar que a origem do constitucionalismo pode ser sentida em 1215,
quando se assinou a Magna Carta, aproximando-se de uma concepção de Estado
submetido a um “governo de leis, não de homens” (DALLARI, 2000: 198).
Ou seja, a Constituição – produto dileto do constitucionalismo –
apresentava-se, exatamente, como uma antítese aos Estados absolutistas, despóticos.
Nesse sentido, para que um documento normativo se afigurasse como Constituição, não
bastava que o mesmo estruturasse e organizasse o Estado. Era necessário que tal
documento impossibilitasse, vedasse, ademais, a existência do Estado monárquico
despótico, absolutista. Acrescentou-se, portanto, à noção de Constituição, um elemento
altamente ideológico, de cunho liberal
2
.
Tanto foi assim que, como bem lembra PAULO BONAVIDES, duas
modalidades de Constituição surgiram. Uma dita verdadeira e legítima, por encerrar em
seu bojo o elemento ideológico, a saber, a vedação ao absolutismo. Outra, alcunhada
como sociológica ou fática, por se situar em Estados absolutistas e, desta forma, apenas
organizar a estrutura político-estatal (B
ONAVIDES, 2004: 38).
Este juízo de identidade entre constitucionalismo e contrariedade às
monarquias absolutistas, contudo, pode estar equivocado. E é este equívoco que a
presente monografia de mestrado pretende explorar. A premissa é uma única: havia
diversas outras instituições político-filosóficas capazes de, por si só, se contraporem às
1
Italianismo utilizado em razão de o termo, segundo o autor, ter nascido ao norte da Península italiana.
2
Neste sentido, SCHOCHET (In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 6-7). Sobre o constitucionalismo como
antítese ao Estado absolutista: “Em sua forma moderna, o constitucionalismo foi uma grande vitória do
ataque individualista ao absolutismo europeu.” (S
CHOCHET, In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 7).
11
monarquias absolutistas. O Estado de direito, centrado na figura da lei e na razão
humana, por exemplo, poderia muito bem se afigurar exatamente como o contraponto
necessário às monarquias absolutistas. É dizer, uma concepção Estatal vocacionada à
supremacia do Parlamento, à Assembléia Legislativa, por si só, já seria suficiente para
se suplantar os ideais monárquicos absolutistas.
Nesse sentido, leva-se a crer que o constitucionalismo veio a
contrabalancear outra construção política, quiçá aquela construção que tenha sido
erigida exatamente para cercear os Estados absolutistas.
Qual seria, então, o fundamento do constitucionalismo moderno?
A presente dissertação se preocupará, eminentemente, com esta
indagação. Frise-se, desde o início, que a fonte doutrinária do estudo que ora se inicia é
a norte-americana.
A explicação para isso é simples. O reducionismo a que se mencionou
nos primeiros parágrafos acima é, em grande parte, fruto da influência da doutrina
francesa nos estudos constitucionais brasileiros. Influência esta que busca encetar, no
constitucionalismo, os princípios ideológicos da Revolução Francesa, a qual,
desnecessário dizer, se preocupava, quase que única e exclusivamente, com a sua
própria monarquia absolutista. Percebe-se, por exemplo, a intensidade desta influência
nos seguintes dizeres de DALLARI (2000: 198):
“Com efeito, embora a primeira Constituição escrita tenha sido a do
Estado de Virgínia, de 1776, e a primeira posta em prática tenha sido a
dos Estados Unidos da América, de 1787, foi a francesa, de 1789/1791,
que teve maior repercussão.”
Não deixa de causar estranheza esta afirmação, na medida em que: i) a
Constituição Francesa de 1791
3
teve duração ínfima de 2 anos; ii) no âmbito
constitucional brasileiro, ter sido a Constituição norte-americana uma das mais
influentes, em razão da atuação conhecida de RUI BARBOSA; iii) a Constituição francesa
ter sido influenciada pela própria Constituição americana, assim como as demais
constituições européias. Quanto a este último ponto, MCILWAIN:
“In its modern form, constitutionalism was a major accomplishment of the individualist attack on
European absolutism.”.
3
Importante mencionar, ainda, que a própria Constituição de 1791 foi ironizada pelo britânico ARTHUR
YOUNG. É dele a famosa frase “como se a constituição fosse um pudim que pudesse ser feito de acordo
com uma receita.” (apud K
EOHANE, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 47).
“as if a constitution was a pudding to made by a receipt.”.
12
“Constituições escritas, definindo e limitando governos, desde então, têm
sido a regra geral em quase todo o mundo constitucional. O precedente
disto, primeiramente desenvolvido na américa do norte, foi naturalizado
na França e daí retransmitido para grande parte do continente europeu,
do qual se espalhou, por vontade própria, atualmente, para parte do
oriente.”
4
(1977:14; ênfase acrescentada).
Sobre esta mesma questão, e com muito mais força, HENKIN, o qual,
ademais de lembrar que, muito embora a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e
do Cidadão tenha ajudado a espalhar a idéia de direitos inerentes em todo o mundo, tal
pegou emprestado esta idéia dos instrumentos americanos (In. ROSENFELD, 1994: 39, n.
2), afirma:
“A Constituição dos Estados Unidos tem sido uma inspiração para as
outras. Ela espalhou a idéia de direitos humanos inerentes, e sua carta de
direitos [bill of rights] serviu como uma fonte e um modelo. Os conceitos
dos Estados Unidos de monitoramento e de revisão constitucional foram
amplamente imitados. Acima de tudo, os Estados Unidos estabeleceram
um exemplo de sucesso de ‘cultura’ do constitucionalismo.”
5
(HENKIN,
In. ROSENFELD, 1994: 42-43).
De mais a mais, como se pretende superar um paradigma doutrinário, não
se pode buscar a chave da superação na origem deste mesmo paradigma – francês – que
se almeja suplantar.
2. Metodologia discursiva da presente dissertação
Em regra, aconselha-se, equivocadamente, que a introdução há de ser
escrita, paradoxalmente, em último lugar, posteriormente, inclusive, à conclusão
(NUNES, 1999: 73). A justificativa, para tanto, é que a introdução há de refletir a visão
completa da obra, da monografia, algo que somente poderá ser obtido após o término da
respectiva pesquisa científica.
4
“Written constitutions creating, defining, and limiting governments since then have been the general
rule in almost the whole of the constitutional world. The precedent for these, first developed in North
America, was naturalized in France and form there transmitted to most of the continent of Europe, from
which it has spread in our own day to much of the Orient.”.
5
“The United States Constitution has been an inspiration to others. It spread the idea of inherent human
rights, and its Bill of Rights served as a source and a model. The United States concepts of constitutional
monitoring and constitutional review have been widely imitated. Above all, the United States has set an
example of a successful ‘culture’ of constitutionalism.”.
13
Diz-se que há um paradoxo nesta sugestão em razão de, i) a introdução
pretender lançar, apenas, as premissas iniciais da pesquisa e; ii) em virtude de a boa
técnica de desenvolvimento de monografias aconselhar o não aprofundamento teórico
das questões que serão abordadas (NUNES, 1999: 72).
Na introdução, há que se levantar, apenas, as premissas teóricas da
monografia, levantamento este que deve independer do resultado final. O panorama
geral do estudo há de ser levado em consideração em um outro momento, ao término da
monografia. Nas conclusões. Momento este que, também, se afigurará como o mais
indicado, adequado, para constatar ou não a legitimidade do questionamento inicial.
Na presente dissertação, colocou-se em questionamento o juízo de
identidade que pretensamente há entre constitucionalismo moderno e ideais contrários à
monarquia absolutista. Esta é a premissa inicial da pesquisa científica que se pretende
desenvolver. Se o questionamento ora aventado encontrará fundamentação ao término
do presente estudo, tal é de somenos importância para fins da elaboração da introdução.
Cabe a esta incutir no interlocutor as mesmas indagações e perturbações que
acometeram o autor da monografia. Se a introdução for escrita ao final, corre-se o risco
de as indagações não mais estarem presentes e, com isto, fazer com que a introdução
perca a sua finalidade e seja, de certa forma, um resumo mecânico do que se gastou
páginas e páginas para se escrever.
Diante do que foi dito, tem-se a introdução acima, que apresenta a
premissa inicial e o presente item, em que se desmembra a estrutura imaginada pelo
mestrando para o desenvolvimento de sua pesquisa científica. Adiante-se, contudo, que
este desmembramento poderá sofrer alterações, quando do decorrer da pesquisa.
Imaginou-se o seguinte:
I) Capítulo 1: Noção de Constitucionalismo moderno. Neste tópico, haverá
uma preocupação conceitual com os elementos da presente monografia.
Pretender-se-á conceituar o Constitucionalismo moderno;
II) Capítulo 2: Constitucionalismo Norte-Americano: Neste capítulo,
estudar-se-á a Convenção de Filadélfia, os acontecimentos que suscitaram o
seu acontecimento e, principalmente, os fundamentos teóricos e práticos de
alguns dos dispositivos constitucionais do documento que resultou deste
encontro. Este capítulo será dividido em tantos outros sub-tópicos.
14
III) Capítulo 3: Hamilton e Madison. Aqui, discorrer-se-á sobre o
posicionamento ideológico dos dois principais autores da Constituição norte-
americana e dos Federalist Papers.
IV) Capítulo 4: Charles Beard e sua visão da Constituição de 1787. Capítulo
destinado ao estudo do principal identificador da predisposição elitista dos
constituintes de 1787
V) Capítulo 5: Oposicionistas a Beard. Compilação de críticas a Beard.
VI) Conclusões
Frise-se, aqui, que esta estruturação inicial poderá sofrer as alterações
que o autor reputar necessárias. Para os eventuais interlocutores, recomenda-se a leitura
do índice, de forma a verificar o que foi mantido e/ou alterado.
De mais a mais, espera-se, aqui, deixar plasmadas as intenções iniciais do
autor.
Por fim, ressalta-se, como já foi visto, que quase toda a pesquisa se
debruçará sobre bibliografia norte-americana. Em razão deste peculiar fato, as citações
estrangeiras, traduzidas pelo autor, manterão a redação original em rodapé. Com isto,
ter-se-á assegurado ao interessado o acesso aos originais, de forma que este possa
atestar ou não a veracidade da tradução.
Em virtude de na nota de rodapé quedar a redação original dos textos que
forem traduzidos, aquelas notas que contiveram outras informações que não a redação
original terão, em sua chamada, um asterisco. Sempre que, ao lado da chamada de
rodapé houver um asterisco, constará da nota de rodapé maiores informações.
BIBLIOGRAFIA DA SEÇÃO
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 14ª ed. São Paulo: Malheiros,
2004.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado, 21ª ed. São Paulo:
Malheiros, 2000.
HENKIN, Louis. “A New Birth of Constitutionalism: Genetic Influences and Genetic
Defects”. In. ROSENFELD, Michael (ed.). Constitutionalism, Identity, Difference, and
Legitimacy: theoretical perspectives. Durham: Duke University Press, 1994.
Bibliografia: 39-53.
15
KEOHANE, Nannerl O. “Claude de Seyssel and Sisteenth-Century Constitutionalism in
France”. In. PENNOCK, J. Roland; CHAPMAN, John W (ed.). Constitutionalism,
Nomos XX. New York: New York University Press, 1979. Bibliografia: 47-83.
MCILWAIN, Charles Howard. Constitutionalism: ancient and modern. Ithaca: Cornell
University Press, 1977.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Manual de Monografia Jurídica, 2ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1999.
SCHOCHET, Gordon J. “Introduction: constitutionalism, liberalism, and the study of
politics”. In. PENNOCK, J. Roland; CHAPMAN, John W (ed.). Constitutionalism,
Nomos XX. New York: New York University Press, 1979. Bibliografia: 1-15.
16
CAPÍTULO I
NOÇÃO DE CONSTITUCIONALISMO MODERNO
1. Conceito de constitucionalismo: dificuldade de precisão
Antes que se dê início ao estudo próprio da noção de constitucionalismo
moderno, há que se tentar – ao menos – apontar uma definição relativamente precisa de
constitucionalismo. Adiante-se, desde já, que não é tarefa das mais fáceis, por um sem-
número de motivos, muito embora, conforme bem lembre HENKIN (In. ROSENFELD,
1994: 40), tratemos do assunto como se seu conceito fosse evidente e facilmente
vislumbrável.
A dificuldade da tarefa é apontada, inicialmente, por GREY:
“Constitucionalismo é um destes conceitos, evocativo e persuasivo em
sua conotação, mas ao mesmo tempo nebuloso em seu conteúdo analítico
e descritivo, que, ao mesmo tempo, enriquece e confunde o discurso
político.”
6
(In PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 189).
E tal dificuldade tem como ponto inicial a ausência de obras ou estudos
que pretendam estudar, propriamente, o conceito de constitucionalismo. Conforme bem
lembra SCHOCHET:
“Ao que sei, não há publicado um estudo rigoroso e profundo do
conceito de constitucionalismo; trabalhos sobre o assunto são,
primariamente, históricos ou políticos [referia-se a C
HARLES HOWARD
MCILWAIN e CARL J. FRIEDRICH].”
7
(In PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 9)
Dificulta-se, ainda mais, a tarefa, a existência de diversos conceitos não
consolidados de constitucionalismo (Cf. MATTEUCCI, 1986: 246; TAVARES, 2005: 1),
em que se produz um verdadeira confusão entre diversos institutos. Não por outro
motivo é que a doutrina anglo-saxã, em sua maioria, evita precisar o sentido de
constitucionalismo, preferindo dar-lhe uma conotação mais abrangente, enquanto teoria
6
“Constitutionalism is one of those concepts, evocative and persuasive in its connotations yet cloudy in
its analytic and descriptive content, which at once enrich and confuse political discourse.”.
7
“To my knowledge, no rigorously comprehensive conceptual study of constitutionalism has been
published; work on the subject has been primarily historical and political.”.
17
constitucional. Este é, por exemplo, o posicionamento de ALEXANDER (2005: 1), ao
discorrer acerca do sem-número de questões filosóficas que se refeririam à figura do
constitucionalismo, tal como a questão da legitimidade de uma Constituição; a diferença
entre a Constituição e a norma de reconhecimento de HART ou entre a primeira e as
demais leis; o processo histórico de elaboração de uma determinada constituição
8
* e;
sua interpretação.
Como exemplo de confusão entre institutos, tem-se a identidade entre
constitucionalismo e a própria figura da Constituição (escrita) – seu produto -, como se
fossem uma única e mesma coisa:
“Constitucionalismo é comumente identificado com uma Constituição
escrita, mesmo que nem todos os textos constitucionais estejam atrelados
aos princípios e sirvam aos fins do constitucionalismo.”
9
(HENKIN, In.
ROSENFELD, 1994: 40-41)
MCILWAIN, por exemplo, embora tenha obra específica sobre o assunto,
Constitutionalism: Ancient & Modern, não procura distinguir constitucionalismo de
constituição e, invariavelmente, trata ambos como uma única e mesa coisa
10
*.
Outra polêmica reside na corriqueira definição de constitucionalismo
enquanto governo de leis (MATTEUCCI, 1986: 248). MCILWAIN, por exemplo, incide
nesta definição, ao aventar a polêmica que se instaurava no mundo, em 1939:
“Nunca em sua longa história o princípio do constitucionalismo foi tão
questionado como o é atualmente, nunca ocorreu de o ataque sobre este
ter sido tão determinante ou ameaçador como o é agora. O mundo está
tremendo na balança entre o ordenado processo legal e o processo da
força, que aparenta ser mais rápido e eficiente.” (M
CILWAIN, 1977: 1;
ênfase acrescentada)
11
.
8
Nesse sentido, vide KENYON, Constitutionalism in Revolutionary America (In. PENNOCK, CHAPMAN,
1979: 84 e ss).
9
“Constitutionalism is commonly identified with a written constitution, yet not all constitutional texts are
committed to the principles and serve the ends of constitutionalism.”.
10
A despreocupação conceitual de MCILWAIN também é criticada por SCHOCHET (In. PENNOCK;
C
HAPMAN, 1979: 14-15, notas 10 e 21).
11
“For perhaps never in its long history has the principle of constitutionalism been so questioned as it is
questioned today, never have the attack upon it been so determined or so threatening as it is just now. The
world is trembling in the balance between the orderly procedure of law and the processes of force which
seem so much more quick and effective.”.
18
Percebe-se, para o autor, que o princípio do constitucionalismo está
amplamente relacionado como o ordenado processo legal
12
*. Este posicionamento é por
ele reiterado, mais adiante:
“Todo governo constitucional é, por definição, governo limitado.
Constitucionalismo possui uma qualidade essencial: é uma limitação
legal ao governo; é a antítese à ordem arbitrária; seu oposto é governo
despótico; o governo da vontade em vez do [governo] da lei.
“(…) Mas o mais antigo, mais persistente e duradouro dos elementos
essenciais do verdadeiro constitucionalismo ainda permanence como o
que esteve presente desde o início, a limitação do governo pela lei.
‘Limitações constitucionais’, se não for a parte mais importante do nosso
constitucionalismo, é, indubitavelmente, a mais antiga.” (1977: 21-22;
ênfase acrescentada)
13
.
E assim também o faz CANOTILHO, ao tratar do modelo histórico de
constitucionalismo:
“A ‘soberania do parlamento’ exprimirá também a ideia de que o ‘poder
supremo’ deveria exercer-se através da forma de lei do parlamento. Esta
ideia estará na génese de um princípio básico do constitucionalismo: the
rule of law.” (2002: 56; ênfase acrescentada).
Para GREY, contudo, tal definição de constitucionalismo é uma definição
simplória e inconsistente (1979: 189)
14
*. A inconsistência pode ser explicada pelo
fato de o constitucionalismo, nesse sentido, não se apartar de outros institutos, a saber,
do Estado de Direito, da idéia do rule of law
15
*. Há, portanto, nesta conceituação, uma
12
SIGMUND critica MCILWAIN exatamente por este tratar o fenômeno do constitucionalismo como se fora,
apenas, “um outro nome para o rule of law” (In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 34).
13
“All constitutional government is by definition limited government. (…) constitutionalism has one
essential quality: it is a legal limitation on government; it is the antithesis of arbitrary rule; its opposite is
despotic government; the government of will instead of law.
“(…)“but the most ancient, the most persistent, and the most lasting of the essentials of true
constitutionalism still remains what it has been most from the beginning, the limitation of government by
law. ‘Constitutional limitations’, if not the most important part of our constitutionalism, are beyond doubt
the most ancient.”.
14
Este autor, contudo, adotando um posicionamento extremado de WITTGENSTEIN, rejeita qualquer
tentativa de definição de constitucionalismo: “não há razão para supor que uma análise conceitual
adequada do constitucionalismo produzirá uma definição (...). O foco em definições leva a uma acalorada
disputa verbal ou a uma ordem oficial mascarada como uma descoberta ou análise.” (1979: 190-191).
“there is no reason to suppose that an adequate conceptual analysis of constitutionalism must produce a
definition (…). The focus on definition leads to largely verbal dispute, or to stipulative fiat masquerading
as discovery or analysis.”.
15
SCHOCHET distingue constitucionalismo da idéia de rule of law: “Lutas por liberdades pessoais e pela
fuga de regimes políticos arbitrários foram os elementos mais corriqueiros da história da Europa
Ocidental e da América, desde o século XVI. Os princípios fundamentais de um governo limitado do
19
confusão, um juízo de identidade entre Constitucionalismo, Estado de Direito, rule of
law e Rechtsstaat. A confusão entre constitucionalismo e Estado de direito faz com que,
inclusive, diversos autores reputem a figura da Constituição como essencial para a
definição do próprio Estado de Direito.
Confirmam a veracidade do que foi dito, SUNDFELD (2000: 38) e,
principalmente, BOBBIO, o qual afirma que:
“Por Estado de direito entende-se geralmente um Estado em que os
poderes públicos são regulados por normas gerais (as leis fundamentais
ou constitucionais) e devem ser exercidos no âmbito das leis que o
regulam, salvo o direito do cidadão recorrer a um juiz independente para
fazer com que seja reconhecido e refutado o abuso e o excesso de poder.”
(1990:18; ênfase acrescentada)
Quanto ao juízo de identidade entre constitucionalismo e rule of law,
percebe-se a dificuldade da doutrina em conceituá-los separadamente, na medida em
que esta, por vezes, trata com estranheza eventual tendência em apartá-los. Nesse
sentido é a menção de BENNETT à revolução norte-americana:
“Aos homens da revolução que falavam em constituições estaduais e na
defesa de sua versão federal, este constitucionalismo significava mais do
que rule of law.”
16
(In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 210; ênfase
acrescentada).
Mas, por quê haveria esta confusão entre institutos? A resposta, quiçá,
esteja na finalidade do constitucionalismo (se a definição deste é de difícil obtenção,
talvez seja mais pacífica a delimitação de sua função), a saber, a de assegurar aos
cidadãos o exercício de seus direitos, limitando a intromissão do Estado nestes (Cf.
constitucionalismo e o rule of law (que o governo existe para buscar determinados fins e apenas funciona
propriamente de acordo com regras especificadas) emergiram como os ideais operativos destas lutas.”
(S
CHOCHET, In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 1).
“Struggles for personal freedoms and for escape from arbitrary political rule have been among the
conspicuous features of the history of Western Europe and America since the sixteenth century.
Constitutionalism’s fundamental principles of limited government and the rule of law (that governments
exist only to serve specified ends and properly function only according to specified rules) emerged as the
operative ideals of these struggles.”.
Cumpre mencionar, contudo, que, para o autor, constitucionalismo está a significar, apenas, limitação do
governo – sem qualquer menção a ideais tais como lei natural e ordem cósmica das coisas (S
CHOCHET,
In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 10). Infere-se disto, ao que tudo indica, que, para ele, o rule of law não
traz em seu bojo o intuito de limitar o governo.
16
“And to the men of the Revolution speaking in state constitutionalism meant more than a rule of law.”.
20
MATTEUCCI, 1986: 247-248)
17
*. CANOTILHO parece compartilhar deste ponto de vista,
ao afirmar que:
Constitucionalismo é a teoria (ou ideologia) que ergue o princípio do
governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão
estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste
sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica
específica de limitação do poder com fins garantísticos.” (2002: 51;
ênfase acrescentada)
18
*.
E tal finalidade faz com que haja uma confusão com os demais institutos
que compartilhem desta mesma função, como é o caso do Estado de Direito, do rule of
law. Diante disto, é necessário que se procure identificar um elemento peculiar ao
constitucionalismo, que o aparte dos demais institutos que lhe sejam semelhantes
quanto à finalidade. É esta a preocupação de M
ATTEUCCI e que se faz repetir neste
tópico:
“é preciso definir tipologicamente, com base na história, as diversas
soluções que, na qualidade de meios, têm sido oferecidas para alcançar
tal fim e foram formalizadas mediante conceitos outros que não o de
Constitucionalismo, como o da separação dos poderes, garantia, Estado
de Direito ou Rechtsstaat e Rule of Law. Trata por isso de saber se o
Constitucionalismo hoje, sem negar estas experiências do passado, tem
um significado particular e específico. (MATTEUCCI, 1986: 248; ênfase
acrescentada).
Para MATTEUCCI (1986: 255), não se pode negar a influência do princípio
da primazia da lei
19
* para a definição de constitucionalismo
20
*. Contudo, o que lhe é
17
JOHN DICKINSON (KENYON, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 86-87) parece defender outra finalidade
para o constitucionalismo, a saber, a busca da felicidade. Contudo, este ponto de vista, por assim dizer,
romântico, não se aparta do aqui sugerido, tendo em vista que a limitação do governo, de forma a proteger
os direitos do cidadão, pode, muito bem, ser considerada como condição para a obtenção da felicidade.
18
Diz-se que a origem desta definição está em CARL J. FRIEDRICH, o qual, em sua obra Constitutional
Government and Politics, definiu por constitucionalismo a “técnica de estabelecer e manter limitações
efetivas sobre atos políticos e governamentais.” (apud G
ERMINO, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 21-22).
“technique of establishing and maintaining effective restraints on political and government action.”.
19
Por cautela, considere-se Lei, aqui, tanto a positiva como a dita consuetudinária. Desta feita, não se
pode afastar a Inglaterra deste princípio.
20
Nesse sentido, também, RICHARD KAY, conforme LARRY ALEXANDER (2005: 4): “Constitucionalismo
implementa a primazia da lei [rule of law]: traz a predicabilidade e a segurança para a relação entre
indivíduo e governo, ao definir, previamente, os poderes e limites do governo.”.
“Constitutionalism implements the rule of law: it brings about predictability and security in the relations
of individuals to the government by defining in advance the powers and limits of that government.”
21
peculiar é a sua previsão de formas que assegurassem o controle do poder político e,
concomitantemente, o respeito, por parte dos órgãos públicos, às leis:
“A descoberta e aplicação concreta desses meios [de controle do poder
político e de assegurar o respeito à lei] é própria, pelo contrário, do
Constitucionalismo moderno: deve-se particularmente aos ingleses, em
um século de transição como foi o século XVII, quando as Cortes
judiciárias proclamaram a superioridade das leis fundamentais sobre as
do Parlamento, e aos americanos, em fins do século XVIII, quando
iniciaram a codificação do direito constitucional e instituíram aquela
moderna forma de Governo democrático, sobre o qual ainda vivem.”
(MATTEUCCI, 1986: 255)
Pode-se dizer, então, que o fenômeno do constitucionalismo carreia em
seu bojo os elementos centrais do Estado de direito e do rule of law, mas, distingue-se
destes na medida em que passa a prever formas efetivas de se assegurar o respeito à lei
e, principalmente, passa a superar as falhas do próprio Estado de Direito, o qual se
encontra amplamente centralizado na figura do Parlamento ou das Assembléias Gerais.
Tal falha, na definição precisa de MATTEUCCI (1986: 252), é a seguinte:
“se o Estado de direito é só um modo de exercer o poder, o direito não
constituirá um verdadeiro e eficaz limite a tal poder, mas será apenas o
modo dele se externar, podendo-se chegar, assim, sem paradoxos a uma
forma de despotismo jurídico.”.
Confirma esta falha, muito embora sem a considerar como tanto, SIR
ROBERT FILMER:
“Nunca houve, e nunca poderá ocorrer que pessoas sejam governadas
sem um poder de fazer leis, e todo o poder de fazer leis deve ser
arbitrário: pois fazer leis de acordo com leis é uma contradictio in
adjecto.”
21
(apud SCHOCHET, In. PENNOCK; CHAPMAN, 1979: 12).
Já no âmbito das democracias ou dos governos populares, marcante é a
frase de STORING:
21
“There never was, nor ever can be any people governed without a power of making laws, and every
power of making laws must be arbitrary: for to make a law according to law, is contradiction in adjecto.”.
22
“A facção da Maioria é um perigo particular no governo popular porque
precisamente sobre o governo popular as maiorias podem tiranizar sob a
cobertura da lei.”
22
(1981: 39).
Por fim, sobre o despotismo jurídico, que acarretou na crise de
desconfiança quanto ao Parlamento, bem aponta TAVARES que:
“O abuso praticado pela lei (pelo legislador) foi responsável pela
mudança do modelo ‘legalista’. Esse abuso, em boa parte, decorria do
excesso de leis na regulamentação da vida social, de sua indesejada
intromissão em setores anteriormente ressalvados, do emaranhado e
dispersividade das leis, gerando a insegurança, bem como da falência
qualitativa verificada como constante nas leis.” (2005: 42-43).
O constitucionalismo busca superar o despotismo jurídico por meio de
duas formas (três, esporadicamente). A primeira, principal, é a criação de uma Lei
superior à decorrente do Poder Legislativo, de uma paramount law
23
*, que dará ensejo
às Constituições escritas, detentoras de maior rigidez, estabilidade
24
*. A segunda é a
transferência do foco político do Poder Legislativo para o poder judiciário
25
* (Cf.
MATTEUCCI, 1986: 256), cabendo a este último, ou ao órgão que lhe faça as vezes,
assegurar o respeito à paramount law
26
*. A terceira, não mencionada por MATTEUCCI, e
22
“Majority faction is the particular danger of popular government precisely because under popular
government majorities can tyrannize under the cover of the law.”.
23
Nesse sentido, KAY (In. ALEXANDER (ed.), 2005: 16): “a idéia central, forjada na fundação dos Estados
Unidos, de o poder público controlado pela aplicação de uma lei superior está presente em qualquer lugar
em que diga que há um governo constitucional.”.
“the central idea, forged in the American founding, of public power controlled by enforcement of a
superior law is present everywhere constitutional government is proclaimed.”.
24
Nesse sentido, ALEXANDER, citando posicionamento de KAY: “Constitucionalismo prefere a constância
de um único e privilegiado julgamento sobre poderes, direitos e liberdades, à inconstância das cambiáveis
decisões democráticas.” (2005: 4-5).
“Constitutionalism prefers the constancy of a single privileged judgment about powers, rights, and
liberties to the inconstancy of shifting democratic decisions.”.
O próprio autor citado reza que: “Constitucionalismo é averso ao risco no sentido em que prefere a
desconfortável ação estatal rigidamente limitada à possibilidade de o governo ultrapassar o aceitável ao
lidar com novas circunstâncias e, desta feita, restringir, desnecessariamente, ações privadas.” (K
AY, In.
ALEXANDER (ed.), 2005: 24).
“Constitutionalism is risk-averse in the sense that it prefers the awkwardness of rigidly bound state action
to the possibility that the government will overshoot the mark in dealing with the new circumstances and
thus needlessly restrict private action.”.
A centralidade da estabilidade na concepção de constitucionalismo é repetido por K
AY mais de uma vez
(In. A
LEXANDER (ed), 2005: 27).
25
Obviamente que esta transferência sucitará, nos tempos atuais, o temor do despotismo do judiciário, em
substituição ao despotismo jurídico. Esta questão, contudo, não nos interessa no presente momento e,
tampouco, para os fins do estudo que ora se desenvolve.
26
A aplicação deste elemento de controle, inclusive, à Inglaterra, pode ser percebida na seguinte frase de
J
AMES OTIS: “Se o supremo legislativo se equivoca, ele é informado pelo supremo executivo nas cortes de
justiça do Rei... Isto é um governo, isto é uma constituição.” (apud MCILWAIN, 1977: 10). Ressalte-se,
23
que esteve presente na mente dos framers da Constituição dos EUA, foi a criação de um
Poder Executivo enérgico, capaz de vetar proposições normativas do legislativo, e da
divisão deste poder em dois órgãos (bicameralismo), havendo uma câmara de
representantes (House of Representatives) e o Senado, de maior duração temporal e,
teoricamente, composto de homens mais capazes que o primeiro órgão, o que, portanto,
compensaria a eventual mediocridade da House of Representatives
27
* (Frise-se, aqui,
que esta forma de controle do despotismo jurídico é peculiar da realidade norte-
americana do século XVIII-XIX).
Sinteticamente, então, pode-se conceituar o fenômeno do
constitucionalismo como uma técnica de limitação do governo, igual a tantas outras
existentes, tais como Estado de Direito e rule of law, com a finalidade de assegurar aos
cidadãos o exercício de seus direitos, em face de pretensos governos arbitrários, mas
que se diferencia das demais técnicas, na medida em que insere em sua alçada de
controle, igualmente, a figura da lei (enquanto produto do legislativo). Nesse exato
sentido, tem-se a afirmação de K
AY, ao citar RAZ e os elementos que este autor
vislumbra em um rule of law. Segue a íntegra:
“As vantagens de se lidar com um poder pré-definido são associáveis
àquelas geralmente associadas com o ‘rule of law’. JOSEPH RAZ
identificou um grupo de proposições geralmente associadas a tal idéia:
‘1. Todas as leis devem ser prospectivas, abertas e claras ... 2. Leis
devem ser relativamente estáveis... 3. A elaboração de leis particulares
[particular – no original -, sugere-se, desta feita, leis concretas] ... deve
ser guiada por regras abertas, estáveis, claras e gerais ... 4. A
independência do judiciário deve ser garantida...’
Enquanto uma constituição em vigor não seja indispensável para a
criação de um regime vinculado a tais proposições, a presença de uma
constituição estende tais características ao próprio processo
legislativo.”
28
(KAY, In. ALEXANDER (ed.), 2005: 22; ênfase
acrescentada).
apenas, que esta prática era usual somente no século XVII. No século XVIII, a supremacia do parlamento
passa a ser a regra.
“If the supreme legislative errs, it is informed by the supreme executive in the King’s courts of law…
This is government! This is a constitution.”.
27
Os motivos que ensejaram tais medidas, como, por exemplo, o Parlamento de 7 anos inglês e o período
da ‘politics of liberty’, que acometeu o Estados Unidos de 1776 a 1787, será analisado posteriormente.
28
“The advantages of dealing with predefined power are akin to those more generally associated with the
‘rule of law’. Joseph Raz has identified a cluster of propositions generally associated with that idea:
‘1. All laws should be prospective, open, and clear… 2. Laws should be relatively stable… 3. The making
of particular laws… should be guided by open, stable and clear general rules… 4. The independence of
the judiciary must be guaranteed…’
“While an enacted constitution is not indispensable to the creation of a regime adhering to these
propositions, the presence of such a constitution extends these features to the lawmaking power itself.”.
24
Pode-se avançar, ainda mais, e afirmar que o constitucionalismo tem uma
preocupação específica com um dos elementos do governo, a saber, o Poder
Legislativo
29
*. Este elemento ideológico também pode ser reputado como um fator de
distinção entre constitucionalismo e outras técnicas de limitação do governo.
O Estado de Direito, por exemplo, se preocupava, eminentemente, com o
Poder Executivo, daí dizer que o Estado de direito é a antítese às monarquias absolutas.
O constitucionalismo, por sua vez, se preocupa com o Poder Legislativo, daí dizer que
tal é a antítese ao princípio da supremacia do parlamento. Tanto é assim que já se
chegou a dizer que, no século XVIII, a Inglaterra não possuía qualquer Constituição,
“porquê o povo havia concedido todo o poder ao legislativo, permitindo
que tudo aquilo por ele editado fosse tanto legal como constitucional.”
30
(WOOD, 1972: 267).
2. Constitucionalismo antigo e moderno: superação desta classificação
Uma das principais decorrências da definição acima estabelecida reside
na superação da classificação histórica de constitucionalismo. O estudo do período
paleolítico, jurássico, da antiguidade clássica, da idade média
31
*, somente terá utilidade
em sua tarefa de identificar os elementos institucionais históricos que vieram a compor
o constitucionalismo. A concepção moderna de constitucionalismo, trazida por
M
CILWAIN, e, posteriormente, repetida por diversos autores, inclusive por MATTEUCCI
(1986: 255), perderá sua necessidade, diante da inexistência de um constitucionalismo
antigo. Há, apenas, a figura do constitucionalismo. Não se pode falar, na idade média,
em constitucionalismo, em razão da limitação legal do governo. Este tipo de limitação,
29
Em sentido aparentemente contrário, HENKIN (1994, In. ROSENFELD, 1994: 44, n. 16), o qual afirma
que a supremacia do parlamento já foi o orgulho da ideologia constitucional.
30
“The English certainly had none, for the people had given up all their power to the legislature, allowing
whatever it enacted to be both legal and constitutional.”
31
O pretenso constitucionalismo da idade média se fazia sentir na necessidade de a vontade do princípe
ter de se conformar com a Lex Regia: “Justiniano é uma doutrina absolutista. A de BRACTON parece ser
uma clara vocalização do constitucionalismo. No primeiro, a vontade do príncipe é efetivamente a lei, no
segundo é apenas a promulgação autorizativa, feita pelo rei, daquilo que o magnata declara ser o costume
antigo. (...). Então, diz os textos de B
RACTON, é apenas quando a expressão da vontade do príncipe está
em conformidade com a lex regia que a vontade se tornará uma lei vinculante” (MCILWAIN, 1977: 71-72).
“Justinian’s is a doctrine of practical absolutism; Bracton’s seems to be a clear assertion of
constitutionalism. In the one the prince’s will actually is law, in the other it is only the authoritative
promulgation by the king of what the magnates declare to be the ancient custom. (…). Thus, says our text
25
quer seja por não prever um controle específico do Poder Legislativo, quer seja por não
estipular uma distinção hierárquica entre espécies normativas, há de ser reputado como
uma limitação própria do instituto do Estado de direito ou do rule of law. É uma outra
concepção teorética de limitação governamental, que não a encampada pelo modelo do
constitucionalismo.
Com isto, também, idéias tais como a defendida por CANOTILHO
32
*, que
distingue três modelos estanques de compreensão do constitucionalismo, tal como o
histórico ou britânico, individualista ou francês e o estadualista ou norte-americano,
tornam-se desnecessários e/ou insuficientes. Será reputado como constitucionalismo
todo movimento que tenha tentado limitar o governo, mas mais precisamente o Poder
Legislativo, prevendo-se, ainda, uma distinção hierárquica entre leis fundamentais
(normas constitucionais
33
*) e ordinárias, e formas de se assegurar a manutenção da
hierarquia prevista. Enfim, torna-se contraproducente fazer menção a diferentes
modelos de compreensão do constitucionalismo. Há um único modelo, preliminar e
composto pelos elementos acima mencionados, que, é certo, poderá ser temperado com
outros elementos, aí sim advindos de uma ou outra peculiaridade histórico-regional
34
*.
No que se refere à distinção entre constitucionalismo antigo e moderno,
tal, conforme dito, foi encampada por MCILWAIN. A noção vetusta de
constitucionalismo carreava, em seu bojo, todas as leis, instituições e costumes,
direcionados ao bem comum, que compunham um determinado sistema social e ao qual
havia aquiescido a população. BOLINGBROKE é quem define, pontualmente, esta
concepção vetusta de constitucionalismo
35
*:
“Por Constituição nós queremos dizer, sempre que falamos com
propriedade e exatidão, aquela reunião de leis, instituições e costumes,
derivados de certos princípios fixos da razão, que se direcionam a certos
objetos determinados de bem público, que compõem o sistema geral, de
of Bracton, it is only when an expression of the prince’s will is in conformity with this lex regia that his
will becomes a binding law.”.
32
Segundo ele, “Se o constitucionalismo é uma teoria normativa do governo limitado e das garantias
individuais, parece aceitável a abordagem desta teoria através de modelos” (CANOTILHO, 2002: 55).
Outros autores defendem teorias semelhantes, como é o caso de H
ENKIN (In. ROSENFELD (ed.) 1994: 34)
33
Que podem ser extralegais (e, nesse sentido, não escritas) ou não. Nesse sentido, vide GREY (In.
PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 191-195)
34
Cita-se, aqui, a conjugação entre Constituição e separação de poderes, outra técnica de limitação do
governo, e que é típica do modelo constitucional francês. A idéia de governo misto, típica do modelo dito
britânico, é outro exemplo.
35
Frise-se, aqui, que ele faz menção à figura da Constituição e não, propriamente, ao constitucionalismo.
Trata-se, aqui, da confusão já mencionada entre constitucionalismo e seu dito produto.
26
acordo com o qual a comunidade consentiu em ser governada.”
36
(apud
MCILWAIN, 1977: 3).
Também sobre o assunto, o próprio MCILWAIN:
“De fato, a noção tradicional de constitucionalismo anteriormente ao
século dezoito era o de um grupo de princípios presentes
37
* nas
instituições de uma nação e de nenhuma maneira externa a esta e,
tampouco, lhe era anterior. Um Estado constitucional era aquele que
houvesse preservado uma herança de instituições livres.”
38
(MCILWAIN,
1977: 12; ênfase acrescentada).
Já a concepção moderna de constitucionalismo, ao menos a sua versão
inicial (quiçá rascunho), e que foi idealizada por TOM PAINE, traz a participação ativa do
povo na elaboração do documento constitucional. Outra diferença diz respeito às
conseqüências de um ato governamental que desrespeite o documento constitucional.
Para a antiga versão, tal ato apenas serve para atestar que o governo não é um bom
governo. Para a concepção moderna, tal ato é um ato de “poder sem direito” (Cf.
MCILWAIN, 1977: 3).
Contudo, nos termos do que foi proposto no tópico anterior, este
movimento, ao qual se alcunha de constitucionalismo antigo, não poderá manter este
epíteto, tendo em vista que, embora seja uma forma de limitação do governo e,
inclusive, do próprio Poder Legislativo, tal não traz em seu bojo qualquer previsão de
controle dos atos do governo, que assegure, desta feita, o respeito aos institutos, aos
princípios arraigados no bojo social. Tanto não o traz que o eventual desrespeito a tais
instituições apenas fazem com que o governo seja reputado como um mal governo.
Sobre esta falha, MCILWAIN
39
*:
36
“By Constitution we mean, whenever we speak with property and exactness, that assemblage of laws,
institutions and customs, derived form certain fixed principles of reason, directed to certain fixed objects
of public good, that compose the general system, according to which the community hath agreed to be
governed.”
37
A título de curiosidade, cumpre mencionar que tais princípios, que compunham a noção de fundamental
law, geravam diversos debates quanto ao seu conteúdo. Para o rei da inglaterra, tais princípios eram
aqueles que suportavam suas prerrogativas reais. Para os opositores, é claro, tais princípios eram
compostos pelas exatas limitações à prerrogativa real, tal como a que buscava evitar a criação de tributos
sem a aprovação do parlamento, ou “no taxation without sanction of the parliament” (M
CILWAIN, 1977:
13).
38
“In fact, the traditional notion of constitutionalism before the late eighteenth century was of a set of
principles embodied in the institutions of a nation and neither external to these nor in existence prior to
them. A constitutional state was one that had preserved an inheritance of free institutions.”.
39
Embora o autor identifique esta falha, ele se nega a rechaçar a existência de constitucionalismo nesta
época. O motivo para tanto é simples. O controle efetivo do poder, tal como exercido atualmente, para ele
não é importante para fins da sua definição do constitucionalismo.
27
“Conforme vimos, a fraqueza fundamental de todo o constitucionalismo
medieval está em sua incapacidade de aplicar qualquer penalidade,
exceto por meio da ameaça do exercício de revolução, contra um
príncipe que tenha pisado em cima dos direitos de seus súditos, os quais
seguramente se encontram longe do âmbito de sua legítima
autoridade.”
40
* (1977: 93).
Para o mesmo autor acima, sanções ao descumprimento às leis que
assegurem os direitos dos cidadãos são características próprias da figura do
constitucionalismo moderno (MCILWAIN, 1977: 123).
De mais a mais, pode-se citar, também, a crítica de WOOD à concepção
de BOLINGBROKE de constituição (de constitucionalismo). Para ele, a concepção inglesa
de constituição não se diferenciava de um simples sistema legal:
“Para BLACKSTONE e para o inglês, em geral, não poderia haver qualquer
distinção entre a ‘constituição ou moldura de um governo’ e o ‘sistema
das leis’. Tudo era uma única coisa: todo ato do Parlamento era, em
algum sentido, parte da constituição, e toda a lei, costumeira ou escrita,
era, então, constitucional. ‘A Constituição’, escreveu WILLIAM PALEY,
(...), ‘é uma divisão principal, cabeça, seção, ou título do código das leis
públicas, distinguida das demais apenas pela natureza particular, ou
importância superior do seu assunto, de que trata. Desta feita, os termos
constitucional e inconstitucional significam legal e ilegal.’.”
41
(WOOD,
1972: 261)
Ademais, pode-se afastar o constitucionalismo do exemplo britânico, ao
menos no do século XVIII, tendo em vista a despreocupação da Inglaterra com o poder
do parlamento, conforme bem lembra W
OOD, citando HULME:
“E ainda assim seus ancestrais ingleses, aparentemente, não tomaram
qualquer medida para limitar o poder dos representantes do povo,
provavelmente porque ‘eles nunca imaginaram que o representante
40
“As we have seen, the fundamental weakness of all medieval constitutionalism lay in its failure to
enforce any penalty, except the threat or the exercise of revolutionary force, against a prince who actually
trampled under foot those rights of his subjects which undoubtedly lay beyond the scope of his legitimate
authority”.
Neste exato sentido, S
CHOCHET (In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 2).
41
“For BLACKSTONE and for Englishmen generally there could be no distinction between the ‘constitution
or frame of the government’ and the ‘system of laws’. All were one: every act of Parliament was in a
sense a part of the constitution, and all law, customary and statutory, was thus constitutional. ‘The
constitution’, wrote W
ILLIAM PALEY, (…), ‘is one principal division, head, section, or title of the code of
public laws, distinguished from the rest only by the particular nature, or superior importance of the
subject, of which it treats. Therefore the terms constitutional and unconstitutional, mean legal and
illegal.’.”
28
poderia algum dia possuir um interesse distinto do seu representado, ou
que vantagens pecuniárias poderiam superar, em seu peito, o bem
público.’.”
42
(1972: 266).
Infere-se, a partir do que foi dito, que o que se chama de
constitucionalismo moderno, para os fins desta dissertação, há de ser chamado,
meramente, de constitucionalismo. O adendo moderno é extirpado. Todas as aparições
anteriores, que não traziam presente os elementos elencados no tópico acima se
afiguravam, mais precisamente, como uma outra técnica de limitação do governo. Sobre
o caráter fictício do constitucionalismo dito antigo, S
CHOCHET:
“A habilidade legal dos governos em ignorar as balizas constitucionais
era insuperável; desta feita, a presunção de que o constitucionalismo
existiu, de fato, anteriormente ao período moderno é algo como uma
ficção.”
43
(In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 2-3).
Daí, então, o porquê de se mencionar, neste tópico, a superação da
distinção entre constitucionalismo antigo e clássico. Há um único, apenas, e que se
inicia com o movimento revolucionário norte-americano, mais precisamente com a
Convenção de Filadélfia, e sobre o qual se tratará no tópico vindouro.
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BOBBIO, Norberto. Liberalismo e Democracia, 3a ed. Brasília: Editora Brasiliense,
1990.
42
“And yet their English ancestors had apparently made no provision for limiting the power of the
people’s representatives, probably because ‘they never imagined that the representative could ever
possess an interest distinct from that of his constituent, or that pecuniary advantage could outweight the
public good in his breast.’.”
29
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 5ª ed.
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Bibliografia: 32-43.
43
“The legal ability of governors to ignore constitutional standards was insurmountable, and thus the
presumption that constitutionalism actually existed before the early modern period is something of a
fiction.”.
30
STORING, Herbert J. What the Anti-Federalists Were For: the political thought of the
opponents of the Constitution. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público, 4ª ed. São Paulo: Malheiros,
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TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 5ª ed. São Paulo: Saraiva,
2007.
________. Teoria da Justiça Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2005.
WOOD, Gordon S. The Creation of the American Republic, 1776-1787. New York: The
Norton Library, 1972.
31
CAPÍTULO II
CONSTITUCIONALISMO NORTE-AMERICANO
1. Prolegômeno
O movimento que resultou no constitucionalismo norte-americano, e que
é alcunhado como constitucionalismo revolucionário (cf. KENYON, In. PENNOCK,
CHAPMAN, 1979: 85), divide-se em três períodos.
O primeiro tem início em 1761 e dura até 1775-1776. Pelas datas que
compõem o perído inicial, percebe-se que tal compreende o processo de independência
das treze colônias.
O segundo período, por sua vez, vai de 1776 a 1780 (cf. KENYON, In.
PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 85), ou de 1776 a 1787, caso se prefira alocar neste
segundo momento o período do “politics of liberty” (vide KRAMNIK, In MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 16-28), ou aquele tratado por WOOD em sua obra magna The
Creation of the American Republic.
O derradeiro compreende o lapso temporal entre 1787-88, é dizer, o
momento em que se elaborou e se ratificou a Constituição Federal norte-americana.
Importante ressaltar que, entre o segundo e terceiro período, as concepções políticas são
profundamente distintas (Cf. WOOD, 1972: viii)
Para fins desta dissertação, os dois últimos períodos é que serão objeto de
profundo estudo, principalmente o segundo. Os motivos ficarão evidentes
posteriormente.
2. Os três períodos
2.1. O período de 1761
A importância deste período, para os fins deste estudo, não reside,
cumpre ressaltar de início, na preparação das 13 colônias norte-americanas para a sua
declaração de independência.
Elementos históricos tais como a consciência dos colonos de que a
sociedade inglesa entrava em franca decadência (Cf. W
OOD, 1972: 28-36), ou de que os
32
colonos lutavam pelos princípios “constitucionais” da Inglaterra (Cf. WOOD, 1972: 3-
17), têm pouca importância para o presente estudo.
O que é merecedor de destaque, neste período em específico, é a tomada
de consciência progressiva dos colonos norte-americanos de que a concepção inglesa de
constituição era insatisfatória. O constitucionalismo dito antigo, ao reunir todas as
instituições inglesas, quer leis escritas quer leis costumeiras, findava por se confundir,
simplesmente, com o mero sistema legal geral inglês. Isto fazia com que leis escritas
(statutes), provenientes do parlamento, mesmo que atentatórias aos costumes ingleses,
se encontrassem protegidas no bojo deste “constitucionalismo”. Desnecessário dizer
que, com isto, o parlamento passou a ostentar um efetivo caráter absolutista. Sobre o
assunto, WOOD:
“O parlamento, como os eventos, o debate inglês, e BLACKSTONE
tornaram evidente, não era mais apenas a maior corte dentre as demais,
no país, mas havia, na verdade, se tornado o criador soberano de leis do
reino, cujo poder, ainda que arbitrário e não-razoável, era incontrolável.
O parlamento agora poderia criar novas leis, cuja força vinculante
advinha não de sua justiça intrínseca e de sua conformidade com os
princípios da common law, mas sim do fato de representar a vontade dos
constituintes sociais da nação ou, simplesmente, em razão de sua
autoridade soberana.”
44
(1972: 265).
Os americanos, então, neste período, buscam esboçar – no âmbito
teorético – algumas normas que estariam apartadas das leis provenientes do parlamento.
Em um primeiro momento, tais normas seriam as que representassem os costumes do
povo (Cf. WOOD, 1972: 265-266). Contudo, cientes da segurança que as normas escritas
trazem (Cf. WOOD, 1972: 267), passaram a idealizar documentos escritos, contendo as
normas que representassem os costumes do povo, da commonwealth.
Não se pode, contudo, dizer que o constitucionalismo exsurge,
exatamente, neste momento, embora haja, aqui, um princípio de temor com o Poder
Legislativo. É que a consolidação, concretização, deste temor e, consequentemente, o
nascimento do constitucionalismo, se dará posteriormente, mais precisamente a partir de
1776. Conforme bem lembra WOOD (1972: 268; ênfase acrescentada):
44
“Parliament, as events, the British debates, and Blackstone had made evident, was no longer simply the
highest court among others in the land, but had in truth become the sovereign lawmaker of the realm,
whose power, however arbitrary and unreasonable, was uncontrollable. Parliament could now actually
create new law whose binding force came not from its intrinsic justice and conformity to the principles of
the common law, but from its embodiment of the will of the social constituents of the nation or from
simply its sovereign authority.”
33
“Mas não era ainda claro para muitos o que estas cartas escritas [futuras
constituições] efetivamente representavam ou contra que tipo de poder
político tais eram para ser direcionadas.”
45
.
Importante, portanto, neste período, deixar consignado que havia, na
mente de alguns revolucionários, a consciência de que: (i) o exemplo inglês de
constitucionalismo era deficitário, porquanto inseria, em seu bojo, a figura da lei escrita,
não importando o quão atentatória fosse aos bons costumes e à justiça
46
*; (ii) o
parlamento, pelo menos o inglês, era capaz de cometer mandos e desmandos, e não
apenas o Poder Executivo.
Sem embargo, quanto a (ii), tal tomada da consciência era apenas inicial
e seria, somente, intensificada, a partir da independência dos EUA, em 1776. O Poder
Executivo é que se afigurava como a maior fonte de preocupação, preocupação esta que
inclusive ditou a concepção política dos Estados Unidos, no segundo período do
constitucionalismo revolucionário norte-americano:
“Os americanos sabiam que tinham, dentre eles, diversos potenciais
tiranos; e mesmo que seu governo pudesse, agora, ser eleito
periodicamente pelo povo ou por seus representantes, tão intoxicante e
corruptor era o poder de comandar que o executivo [magistrate] eleito
não era para ser menos temido do que um hereditário. Sua própria
45
“But it was not yet clear to many what these written charters actually represented or against what kind
of political power they were to be directed.”.
46
Importante frisar, aqui, que a concepção de SIR EDWARD COKE, expressa no famoso Bonham’s case
(1610), segundo a qual a lei haveria de estar de acordo com o “direito comum e a equidade natural” (Cf.
W
OOD, 1972: 457), representava, na Inglaterra, uma exceção, e não a regra. A regra passou a ser, no
século XVIII, seguindo a doutrina de S
IR WILLIAM BLACKSTONE, a supremacia do parlamento: “Mas se
o parlamento irá positivamente promulgar uma coisa a ser feita que seja desarrazoada, eu não conheço de
nenhum poder que possa controlá-lo” (B
LACKSTONE, 1979: 91).
“But if the parliament will positively enact a thing to be done which is unreasonable, I know of no power
that can control it.”.
Sobre o controle do poder judiciário sobre as leis, B
LACKSTONE dizia que tal seria subversivo a todo o
governo (1979: 91).
A inaplicabilidade de C
OKE no século de BLACKSTONE é bem mencionada por WOOD (1972: 264). Este
mesmo autor relembra, ademais, a ineficácia de teorias restritivas do poder, tais como da law of nature:
“no último quarto do século XVIII ficou mais claro do que nunca dantes, para a grande maioria dos
ingleses, que tais limitações morais ou provenientes do direito natural ao parlamente eram apenas
teoréticas, desprovidades de qualquer sentido legal e relevante, apenas, quando impingidas na mente dos
legisladores.” (W
OOD, 1972: 260).
“by the last quarter of the eighteenth century it seemed clearer than ever before to most Englishmen that
all such moral and natural law limitations on the Parliament were strictly theoretical, without legal
meaning, and relevant only in so far as they impinged on the minds of the lawmakers.”.
34
experiência colonial e a teoria política dos Whig
47
* os havia ensinado
muito bem onde quedava a fonte do despotismo. ‘O poder executivo’,
disse um Whig de Delaware, ‘é incansável, ambicioso e sempre
almejando o aumento de poder’.”
48
(WOOD, 1972: 135; ênfase
acrescentada).
De qualquer forma, o exemplo inglês de Parlamento, principalmente após
o ato septanual do parlamento, que concedia aos seus membros uma permanência de 7
anos neste cargo, estava presente em muito dos revolucionários americanos. Sobre o
assunto, MCILWAIN já retrata o ressentimento quanto à supremacia do Parlamento em
BOLINGBROKE, teórico amplamente utilizado pelos revolucionários das 13 colônias:
“Quando BOLINGBROKE, em 1733, diz que o Ato Septanual do
Parlamento teria soado monstruoso aos Whigs da Revolução [neste caso,
os Whigs da revolução inglesa, do século XVII], tal foi em reação contra
a arbitrariedade da noção, crescente, da onipotência do parlamento.”
49
(MCILWAIN, 1977: 4).
2.2. O período da politics of liberty
2.2.1. Noções iniciais
Durante toda a luta pela independência, identificava-se, como fonte de
tirania, o Poder Executivo. Era o rei ou quem lhe fizesse as vezes (os governadores, nas
colônias) o agente de todas as intromissões arbitrárias nos direitos do cidadão
50
*. Sendo
assim, passou-se a acreditar que uma forma segura de se evitar qualquer tirania seria a
transferência – abrupta – de prerrogativas governamentais a um outro poder, o Poder
47
O termo Whig, de origem escocesa, vem a significar soro de leite, parte da alimentação dos mais pobres
e indigentes, na Inglaterra. Quando da revolução inglesa, passou-se a alcunhar de whig aqueles que
defendiam a queda do rei e a instauração de um parlamento democrático.
48
“The Americans knew they had among themselves ‘tyrants enough at heart’; and although their
governors would now be elected periodically by the people or their representatives, so intoxicating and
corrupting was the power of ruling that an elected magistrate was actually no less to be dreaded than an
hereditary one. Their own colonial experience and their Whig theory of politics had taught them only to
well where the source of despotism lay. ‘The executive power’, said a Delaware Whig, ‘is ever restless,
ambitious, and ever grasping at encrease of power’.”
49
“When Bolingbroke in 1733 says that the Septennial Act would have seemed ‘monstruous’ to the
Whigs of the Revolution, it is in reaction against the arbitrariness of the growing notion of the
omnipotence of parliament.”
50
Ressalte-se que, neste parágrafo, não se está a contestar o tópico precedente. Já havia, sim, uma
concepção germinal de que o legislativo também poderia cometer abusos. Contudo, tal concepção era
esporádica e estava presente na mente, apenas, de alguns poucos revolucionários. A concretização desta
idéia se dará, apenas, no período tratado neste tópico.
35
Legislativo. WOOD bem discorre sobre a transferência da primazia governamental do
executivo para o legislativo, no século XVIII:
“Por todo o século XVIII, as diversas legislaturas coloniais,
vagarosamente, assumiram muitas das prerrogativas dos governadores
reais, acumulando, gradativamente, pedaços do que, tradicionalmente,
fazia parte do Poder Executivo, de forma que, na metade deste século, a
autoridade do poder legislativo ultrapassasse em muito o da House of
Commons inglesa. (...). Por volta da metade do século dezoito, a maioria
dos colonos estava convencida de que suas assembléias, enquanto a
incorporação de suas liberdades públicas, representavam sua única
proteção contra a tirania do executivo. Tais avanços que foram feitos ou
tentados pelas assembléias sobre as tradicionais autoridades do executivo
e do judiciário não poderiam ser consideradas como usurpações, mas sim
como a única forma em que o bem-estar das pessoas poderia ser
propriamente promovido.”
51
(WOOD, 1972: 154-155; ênfase
acrescentada).
Com a Declaração de Independência, esta concepção vocacionada à
supremacia do legislativo somente ganhou força (Cf. WOOD, 1972: 155). Em
contrapartida, o Poder Executivo se tornou um mero fogo-fátuo, um espectro do que
outrora havia sido, na figura da autoridade real:
“Os americanos, em resumo, fizeram do chefe do Poder Executivo um
novo tipo de criatura, um reflexo pálido de seu ancestral real. Esta
mudança na posição do governador significou a efetiva eliminação da
grande responsabilidade deste poder em administrar a sociedade – uma
marcante e abrupta saída da tradição constitucional inglesa.”
52
(WOOD,
1972: 136).
A este movimento de transferência de protagonismo político do
executivo para o legislativo, que assumia foros de poder supremo, é que se alcunhou de
51
“Throughout the eighteenth century the various colonial legislatures had slowly encroached on many of
the prerogatives of the royal governors, gradually accumulating pieces of what were clearly traditional
magisterial powers, so that by the middle of the century their authority in many areas extended well
beyond that of the British House of Commons. (…) By the middle of the eighteenth century most
colonists were convinced that their assemblies, as the embodiment of their public liberty, represented
their only protection against magisterial tyranny. Such assumptions of traditional gubernatorial and
judicial authority as the assemblies had made or had attempted to make did not seem to be usurpations,
but indeed had come to seem to be the only way in which the people’s welfare could be properly
promoted.”.
52
“The Americans, in short, made of the gubernatorial magistrate a new kind of creature, a very pale
reflection indeed of his regal ancestor. This change in the governor’s position meant the effectual
elimination of the magistracy’s major responsibility for ruling the society – a remarkable and abrupt
departure form the English constitutional tradition.”.
36
politics of liberty
53
*. Nas treze colônias, agora treze Estados, esta transferência era
recorrente, conforme bem lembra KRAMNICK:
“Nas constituições elaboradas a partir de 1776, uma atrás da outra, a
clara expressão da ‘politics of liberty’ era o temor quanto aos
governantes e à autoridade executiva. Em toda constituição estadual, o
ramo legislativo era claramente dominante. Nas constituições de
Pennsylvania e de New Hampshire não havia nenhum governador, e sob
outras oito constituições o governador seria escolhido pela legislatura.
As novas constituições estaduais também limitaram, amplamente, a
autoridade do executivo. Com a exceção de um único estado, Carolina do
Sul, todas as novas constituições estaduais eliminaram, totalmente,
qualquer papel do governador no processo legislativo
54
*. (...). Quase um
século de Inglaterra e retórica da oposição criticando a corrupção real e
da administração está por detrás destas previsões das constituições
estaduais. De fato, todas as constituições de 1776 (novamente com a
exceção da Carolina do Sul) excluíam todo membro do executivo de
fazer parte da legislatura.”
55
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 21).
Por detrás da supremacia do parlamento, havia um outro fundamento,
que não apenas o temor em relação ao Poder Executivo e sua predisposição à tirania.
Este fundamento era a idealização do Poder Legislativo como o ramo mais democrático
53
Cf. KRAMNICK: “A ‘politics of liberty’ nos Estados significou a dominância absoluta da legislatura”
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 21).
“The ‘politics of liberty’ in the states meant the absolute dominance of the legislature.”
54
Acerca desta previsão, WOOD, citando TENNENT, afirma que: “A eleição do governador pela legislatura
não era geralmente visto, em 1776, como um mal, mas sim, como declarou WILLIAM TENNET, da
Carolina do Sul, um ‘benefício’ compelindo ‘o Presidente a pedir conselho da Casa [legislativo] em toda
medida considerada importante.” (1972: 139).
“That election of the governor by the legislature was not generally seen in 1776 as an evil, but rather was
viewed, as William Tennent of South Carolina declared, as a ‘benefit’, compelling ‘the President’s asking
advice of the House on every important measure’.”.
Por muitas vezes, o poder executivo era dividido em diversas pessoas, cuja posse no cargo seria altamente
rotativa, conforme menciona K
ENYON, ao tratar da Constituição de Pennsylvania: “Medo e desconfiança
do poder executivo se tornavam claros pela sua divisão em doze homens, em uma compulsória e
constante rotação de seus membros, cuja intenção era a de prevenir o surgimento da aristocracia e a de
assegurar a este cargo poderes limitados.” (In. P
ENNOCK, CHAPMAN, 1979: 103).
“Fear and distrust of the executive power was expressed by dividing it among twelve men, in the
compulsory and staggered rotation of membership explicitly intended to prevent the growth of
aristocracy, and in assigning it limited powers.”.
55
“In one after another state constitution drafted after 1776 a clear expression of the ‘politics of liberty’
was the fear of rulers and of magistral authority. In every state constitution the legislative branch was
clearly dominant. In the Pennsylvania and New Hampshire constitutions there would, in fact, be no
governor, and under eight other state constitutions the governor was to be chosen by the legislature. The
new state constitutions also severely limited grants of executive authority. With the exception of one
state, South Caroline, all the new state constitutions totally eliminated any role for the governor in the
legislative process. (…) Nearly a century of English country and opposition rhetoric criticizing royal and
ministerial corruption lay behind these state constitutional provisions. Indeed, all the constitutions of
1776 (again with the exception of South Carolina) excluded all government office holders from sitting in
the legislature.”.
37
de um Estado. Nas palavras extremadas de TIMOTHY BLOODWORTH,
“era o único poder democrático” (Cf. MAIN, 1974: 135). Ou seja, o Legislativo – como
o faz até hoje – possuía uma incontestável simbologia democrática. WOOD aponta muito
bem a prevalência parlamentar como uma forma de aproximar a nova concepção
política norte-americana às idealizações – até então utópicas – de democracia:
“As legislaturas americanas, em particular as casas baixas [lower houses]
das assembléias, não mais seriam apenas um adjunto ou um fiscalizador
do Poder Executivo, mas seriam propriamente o governo – uma
transformação revolucionária da autoridade política [que faria com que]
o novo governo fosse ‘muito próximo de um de natureza democrática’,
ainda que ‘um governador e um segundo ramo do legislativo fossem
admitidos’. Não era nem a expansão do sufrágio e tampouco a instituição
de um processo eleitoral dentre os governos, mas a apropriação de tanto
poder pelos representantes do povo nas legislaturas que fazia com que os
novos governos, em 1776, fossem tão semelhantes a democracias.”
56
(WOOD, 1972: 163).
Este pano de fundo democrático esteve mais presente, intensificado, em
algumas Constituições estaduais, como é o caso da Constituição da Pennsylvania
57
*.
Nesta, ademais de se prever a assunção de diversos poderes pelo legislativo, este poder
ainda deveria responder diretamente ao povo, por meio de algumas previsões bem
peculiares. Sobre o assunto, KENYON:
“Sua característica mais marcante era a concentração governamental de
todo o poder em uma legislatura unicameral e a previsão de que o
exercício de tal poder sobre circunstâncias normais seria constantemente
controlado pelo povo. A abertura das sessões legislativas ao público, as
publicações semanais dos procedimentos da legislatura, o requerimento
de que todas as leis [bills] fossem publicadas após a sua última leitura e
de que uma lei [bill] não se tornaria efetiva se não fosse aprovada em
duas sessões sucessivas da legislatura, tudo isto representava uma
tentativa de fazer com que a legislatura não fosse apenas
56
“The American legislatures, in particular the lower houses of the assemblies, were no longer to be
merely adjuncts or checks to magisterial power, but were in fact to be the government – a revolutionary
transformation of political authority that their new government were ‘very much of the democratic kind’,
although ‘a Governor and second branch of legislation are admitted’. It was neither the widespread
suffrage nor the institution of the electoral process throughout the governments but the appropriation of so
much power to the people’s representatives in the legislatures that made the new governments in 1776
seem to be so much like democracies.”.
57
MAIN (1974: 42) corrobora o ponto de vista segundo o qual a Constituição da Pennsylvania seria uma
das mais radicalmente democráticas.
38
responsabilizável [accountable] mas que respondesse quase que
instantaneamente ao povo.”
58
(In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 103).
Ao se tratar deste período, não se pode esquecer de mencionar uma
importante circunstância política, a saber, o fato de os Estados, ex-treze colônias, se
afigurarem como entes políticos soberanos e que estavam unidos, entre si, por um frágil
cordão umbilical, que adotava o nome de Confederação.
A mudança desta circunstância política para uma federação se deve, em
grande parte, às opções realizadas pelos revolucionários neste período agora alcunhado
como ‘politics of liberty’. Foi exatamente o protagonismo do Poder Legislativo e o
amplo caráter ‘democrático’ deste momento que conduziram à realização da Convenção
de Filadélfia de 1787 e ao seu produto mais famoso, a Constituição Federal.
2.2.2. A tirania da democracia e a queda do legislativo
Logo após a Declaração da Independência, o temor quanto a um eventual
poder arbitrário encontrava-se, conforme visto e revisto, concentrado no Poder
Executivo. E, ainda que houvesse um temor inicial quanto ao Poder Legislativo, tal era
relativo, segundo bem lembra WOOD:
“Aqueles que, em 1776, vocalizaram medo quanto à possibilidade de os
corpos de representantes formarem interesses separados dos do povo,
compunham o mais alienado e radical grupo na América. Ainda assim,
tal suspeita e temor era sempre relativa: um Whig radical pode
desconfiar de uma assembléia eleita, em comparação ao próprio povo,
contudo, ele certamente desconfiará mais do executivo.”
59
(1972: 364).
Disto, resultou o protagonismo do Poder Legislativo, o qual passou a
congregar diversos poderes, quer do executivo quer do judiciário. Desnecessário dizer
58
“Its most outstanding characteristics were concentration of governmental power in a unicameral
legislature and provisions that the exercise of that power under normal circumstances should be
constantly monitored by the people. The opening of legislative sessions to the public, the weekly
publications of the legislature’s proceedings, the requirements that all bills be published before their last
reading, and that a bill not become law until enacted in two successive sessions of the legislature, all
represented an attempt to render the legislature not only accountable but almost instantly responsive to the
people.”.
59
“Those in 1776 who voiced fears of the representative bodies’ forming interests separate from those of
the people constituted the most alienated and radical groups in America. Yet such suspicion and jealously
was always relative: a radical Whig might distrust the elected assembly compared to the people
themselves, but he surely distrusted the executive or magistracy more.”.
39
que, neste período, não havia qualquer implementação prática da concepção política da
separação dos poderes:
“Virtualmente, toda a noção tradicional de separação dos poderes foi
abandonada nos estados. A concepção predominante era a de que um
governo livre apenas poderia ser considerado como tal se a legislatura do
povo governasse. De fato, em muitos estados, assumiu-se que o único
controle apropriado sobre a legislatura do povo era o próprio povo.
Então, virtualmente, toda constituição estadual, durante o período do
Articles [articles of the confederation], requeria eleições anuais para a
legislatura.”
60
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 22).
Ainda sobre o assunto, com a precisão que lhe é peculiar, WOOD:
“Ao que parece, como os historiados notaram, os americanos, em 1776,
reconheceram apenas verbalmente o conceito de separação dos poderes,
em sua constituição Revolucionária, uma vez que eles não estavam,
aparentemente, preocupados com a real divisão das funções
departamentais.”
61
(1972: 153-154; ênfase acrescentada).
Tal fato, contudo, ao menos em um primeiro momento, não foi
merecedor de preocupação. Afinal, tinha-se a sempre presente imagem de que era o
executivo e não o legislativo a fonte da tirania. Ademais, acreditava-se, no período de
declaração de independência, que o povo americano era abençoado (Cf. WOOD, 1972:
10-18), apartado ainda das corrupções que haviam acometido os europeus, o que lhes
tornava, portanto, menos suscetíveis a cometer atos que corrompessem a liberdade.
De mais a mais, acreditava-se que o povo era incapaz de cometer tiranias,
conforme bem lembra WOOD, ao retratar o posicionamento dos Whigs de 1776:
“Na concepção política dos Whig, a tirania pelo povo era teoricamente
inconcebível, porque o poder detido pelo povo era liberdade, cujo abuso
poderia [acarretar] apenas em licenciosidade ou anarquia, mas não
60
“Virtually all traditional notions of the separation of powers were abandoned in the states. The ruling
assumption was that a free government was one where the people’s legislature governed. Indeed, in most
states it was assumed that the only appropriate check on the people’s legislature was the people
themselves. Thus, virtually every state constitution during the Articles period required annual elections
for their legislator.”.
61
“It seems, as historians have noted, that Americans in 1776 gave only a verbal recognition to the
concept of separation of powers in their Revolutionary constitution, since they were apparently not
concerned with a real division of departmental functions.”
40
tirania. Como apontou JOHN ADAMS
62
*, indignado, a idéia de a liberdade
pública sendo tirana é ilógica: ‘um despotismo democrático é uma
contradição de termos.”
63
(1972: 62-63)
Contudo, com o passar dos anos, pós-independência, este otimismo
antropológico começou a ser diuturnamente ameaçado. E o grande fator responsável por
esta mudança de concepção foi uma cisão existente no tecido social norte-americano e
que se tornou patente com a independência norte-americana.
Um dos fundamentos ideológicos de todo o movimento revolucionário
era a pretensão de a sociedade norte-americana se tornar democraticamente igualitária.
Contudo a concepção de igualdade dos estamentos da sociedade americana não era
homogênea. Se por um lado, os principais mentores intelectuais da revolução
idealizavam uma sociedade democrática pautada no mérito
64
*, a parcela mais simples
desta comunidade possuía uma visão, por assim dizer, mais populista, niveladora. Com
62
Esta concepção de ADAMS, após a declaração da independência e, durante o período da politics of
liberty, sofreu uma drástica mudança. Tanto foi assim que, no fervilhar da Convenção de Filadélfia, sua
participação foi irrelevante (Cf. W
OOD, 1972: 567-592).
Esta mudança se faz sentir nas seguintes palavras, proferidas por ADAMS, ao vislumbrar um cidadão
comemorando o fechamento de uma Corte de Justiça, em Massachusetts, e o celebrar pelo feito:
“É esse o objeto daquilo que eu vim defendendo [a independência]? Perguntei a mim mesmo. Por muito
tempo caminhei sem uma resposta a esta indagação. São esses os sentimentos destas pessoas e quantas
iguais hão de haver no país? Metade da nação, pelo que sei; pois metade da nação é composta por
devedores. Se não mais, e isto tem sido, em todos os países, o sentimento de todos os devedores. Se o
poder de um país pudesse cair em suas mãos, e há um grande perigo de que isso ocorrerá, qual foi o
propósito de nosso sacrifício de tempo, saúde e tudo o mais? Certamente nós devemos nos resguardar
contra este espírito e princípios, senão nos arrependeremos por nossa conduta.” (apud K
RAMNICK, In.
MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 24).
“Is this the object for which I have been contending? said I to myself. For I rode along without any
answer to this wretch. Are these the sentiments of such a people and how many of them are there in the
country? Half the nation for what I know; for half the nation are debtors, if not more, and these have been,
in all countries, the sentiments of debtors. If the power of the country should get into their hands, and
there is a great danger that it will, to what purpose have we sacrificed our time, health and everything
else? Surely we must guard against this spirit and these principles, or we shall repent of all our conduct.”.
63
“In the Whig conception of politics a tyranny by the people was theoretically inconceivable, because
the power held by the people was liberty, whose abuse could only be licentiousness or anarchy, not
tyranny. As John Adams indignantly pointed out, the idea of the public liberty’s being tyrannical was
illogical: ‘a democratical despotism is a contradiction in terms’.”.
64
Acerca desta idealização, WOOD: “Em um sistema republicano, apenas o talento tem importância. Era,
agora, possível que ‘até mesmo as rédeas do Estado sejam conduzidas pelo filho do homem mais pobre,
caso este tenha as habilidades necessárias para tal cargo’. O ideal, especialmente nas colônias do sul, era a
criação e a manutenção de uma verdadeira aristocracia natural, baseada na virtude, temperança,
independência e devoção ao bem comum.” (1972: 71).
“In a republican system only talent would matter. It was now possible ‘that even the reins of state may be
held by the son of the poorest man, if possessed of abilities equal to the important station’. The ideal,
especially in the southern colonies, was the creation and maintenance of a truly natural aristocracy, based
on virtue, temperance, independence, and devotion to the commonwealth.”.
Falar-se-á sobre a aristocracia natural em um outro tópico.
Contudo, importante ressaltar, com base em M
AIN (1974: 4), que tal preferência dos sulistas pela
aristocracia natural em muito decorre do fato de, nestes Estados, haver uma maior concentração de
riqueza do que nas demais partes do país.
41
isto, havia uma dupla contenda ocorrendo, concomitantemente. Uma entre a colônia e a
metrópole e outra intestina, entre a parcela mais simples da sociedade, pequenos
agricultores e comerciantes, e a aristocracia, composta por grandes fazendeiros e
negociantes (Cf. MAIN, 1974: 21). Esta cisão interna se tornou cristalina com a
Declaração da Independência, uma vez que ambas as parcelas da sociedade perderam o
seu inimigo comum. Sobre o assunto, KRAMNICK:
“Para muitos outros, contudo, a Revolução envolvia aquilo
[independência] e mais, o repúdio em uma América independente das
tradicionais formas coloniais de governo e, mais significativo, o repúdio
às elites tradicionais que haviam dominado a vida política e social na
América colonial. Foi esta perspectiva tardia, niveladora e de ideais mais
democráticos, que dominou após 1776, durante período das primeiras
constituições norte-americanas, [durante] os Artigos da Confederação.
Após 1776, haveria, efetivamente, novos homens, bem humildes, em
muitos casos, que viriam a governar a América.”
65
(In. MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 15).
Nenhum exemplo, em âmbito estadual, era mais cristalino deste
problema interno do que a Pennsylvania. Sobre o tema, KENYON:
“Então, esta colônia apresenta o caso mais claro e forte de apoio à
interpretação popularizada por CARL BECKER de que a Revolução
representava uma contenda não apenas entre dominação nacional ou
imperial, mas entre quem dominaria dentro de casa. No verão de 1776,
os vitoriosos desta última eram os insurgentes, e eles escreveriam uma
Constituição que encorpasse suas opiniões populistas ou
democráticas.”
66
(In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 100).
Acerca do mesmo exemplo, WOOD:
“De fato, ao se julgar apenas a literatura, a Revolução na Pennsylvania se
tornou uma guerra de classes entre os pobres e os ricos, entre as pessoas
comuns e a minoria privilegiada. (...) Quando a estrutura quebradiça em
65
“For many others, however, the Revolution involved that [independency] and more, the repudiation in
an independent America of traditional colonial forms of government and, most significantly, the
repudiation of the traditional elites who had dominated political and social life in colonial America. It was
this latter perspective, a leveling and more democratic ideal, which tended to dominate after 1776, during
the period of America’s first constitution, the Articles of Confederation. After 1776 there would indeed be
new men, quite humble men in many cases, who came to rule in America.”
66
“Thus, this colony presents the strongest and clearest case for supporting the interpretation popularized
by Carl Becker, that the Revolution was a contest not only over home rule versus imperial rule but also
over who should rule at home. In the summer of 1776, the victors in this latter contest were the
insurgents, and they proceeded to write a constitution that embodied their populist or democratic
opinions.”
42
que o poder estava alocado começou a despedaçar, os ressentimentos
acumulados pelos iniciantes [upstarts] excluídos foram fortemente
revelados.”
67
(1972: 85-86).
Não tardou, então, para surgir, entre ambas as partes uma profunda
sensação de ressentimento e desconfiança. Da parte dos recém-alçados ao poder – o
homem comum, a antiga aristocracia os havia destratado, anteriormente, e, assim que
tivesse a oportunidade, voltaria a fazê-lo. Sobre o dito ressentimento populista, WOOD:
“Os antigos governantes, foi-se dito, eram ‘uma minoria de pessoas
ricas’, uns poucos ‘homens de fortuna’, uma ‘aristocratical junto’, que
sempre se esforçou ‘para fazer do comum e da classe média do povo suas
bestas de carga’. Tais aristocratas não derivavam ‘qualquer direito ao
poder de suas riquezas’. A revolução contra a Inglaterra foi feita em
nome do povo. E quem era o povo na América, que não os pequenos
agricultores e mecânicos? Se fosse para eles serem excluídos da política,
em específico na formação de seus governos, então seria melhor para
eles ‘reconhecerem a jurisdição do Parlamento inglês, o qual era
composto integralmente por cavalheiros [Gentlemen]’. (...). O
igualitarismo do republicanismo podia, agora, remediar aquela crescente
mágoa contra os ‘cavalheiros’ [Gentlemen
68
*], os quais, por anos, não
‘se deram ao trabalho de olhar para eles’. ‘Abençoado o estado que
aproxima todos em um mesmo nível’. E os radicais pretendiam manter
tal situação no futuro.”
69
(1972: 86-87).
Da outra parte, para os idealizadores da Revolução, as novas figuras
políticas se assemelhavam aos bárbaros que haviam tomado Roma (Cf. WOOD, 1972:
234). O tipo de homem que havia tomado o poder, após a Revolução, era totalmente
desprovido de condições para exercê-lo:
67
“In fact, to judge solely from the literature the Revolution in Pennsylvania had become a class war
between the poor and the rich, between the common people and the privileged few. (…). When the brittle
structure on which their power rested began to crumble, the accumulated grievances of upstart outsiders
were starkly revealed.”
68
Conforme bem lembra MAIN (1974: 3), este termo era utilizado, nos Estados Unidos, para identificar os
donos de ampla riqueza, principalmente a proveniente de terras.
69
“The former rulers, it was charged, were ‘a minority of rich men’, a few ‘men of fortune, an
aristocratical junto’, who had always strained every nerve ‘to make the common and middle class of
people their beasts of burden’. Such aristocrats derived ‘no right to power from their wealth’. The
Revolution against Britain was on behalf of the people. And who were the people in America, but the
ordinary farmers and mechanics? If they were to be excluded from politics, especially in the formation of
their governments, then it would be better for them ‘to acknowledge the jurisdiction of the British
Parliament, which is composed entirely of Gentlemen’. (…). The egalitarianism of republicanism could
now assuage that rankling bitterness against ‘gentlemen’ who for years had not ‘condescended to look
down at them’. ‘Blessed state which brings all so nearly on a level!’. And the radicals meant to keep it so
in the future.”
43
“A Revolução, atacava-se repetidamente (e a evidência parece dar
substância aos ataques), estava a possibilitar que o governo caísse ‘nas
Mãos daqueles cuja habilidade ou situão de Vida não os legitima para
isto”
70
(WOOD, 1972: 477).
Nesse sentido, MAIN bem retrata a condição dos pequenos agricultores,
em específico nos Estados do Sul:
“O isolamento de muitos dos fazendeiros, sua ausência de educação
formal, e os horizontes limitados de suas experiências, também os
tornaram receosos em submeter suas vantagens locais em benefício do
bem geral.”
71
(MAIN, 1974: 7).
Diante disto, tornou-se claro para os mentores intelectuais da Revolução
que a concepção meritocrática da república que se pretendia instaurar havia quedado no
plano teórico. O sentimento geral era de desilusão, conforme retrata WOOD:
“A ênfase republicana no talento e no mérito, no lugar do clientelismo,
agora aparecia pervertida, quedando identificada, simplesmente, com a
habilidade de reunir votos, o que, então, possibilitava ao mais
desqualificado homem que se arvorasse em pontos de influência, de onde
logo se inclinaria aos maus hábitos.”
72
(1972: 398).
Para os eleitores, para a população em geral, pouco importava a
capacidade intelectual de eventuais candidatos, sua educação e treinamento. Pelo
contrário. Tais qualidades eram vistas como ameaças à recém-instaurada democracia,
pois tais poderiam fazer com que se fosse instaurada uma aristocracia. Evitava-se,
assim, de qualquer maneira, admitir um membro da dita aristocracia, conforme ensina
WOOD, citando BRACKENRIDGE:
“Começou a ficar mais claro do que anteriormente que ‘há um certo
orgulho no homem, o qual o leva a elevar o mais baixo e a abaixar o
mais alto’. O povo está se tornando exultante em ‘seu poder criador
70
“The Revolution, it was repeatedly charged (and the evidence seems to give substance to the charges),
was allowing government to fall ‘into the Hands of those whose ability or situation in Life does not intitle
them to it.’.”.
71
“The isolation of many farmers, their lack of formal education, and the limited horizons of their
experience, also made them unwilling to surrender local advantages for the more general good.”.
72
“The republican emphasis on talent and merit in place of connections and favor now seemed perverted,
becoming identified simply with the ability to garner votes, thus enabling ‘the most unfit men to shove
themselves into stations of influence, where they soon gave away to the unrestrained inclination of bad
habits.’.”.
44
exercido através da transformação de uma pessoa desqualificada em um
senador’.”
73
(1972: 481-482).
Dois fatos servem para bem retratar o que foi dito. O primeiro e mais
marcante – tendo em vista o seu protagonista – foi a derrota de JAMES MADISON para
um taberneiro, em uma eleição para a House of Delegates. Sobre este fato, WOOD, ao
mencionar a vetusta crença dos revolucionários de que a república democrática seria
pautada no mérito:
“Que a derrota de MADISON para a House of Delegates para um antigo
taberneiro, que as esperanças republicanas tenham se provado ilusórias,
não nos afasta da existência deste tipo de esperança em 1776, mas, ao
contrário, serve para explicar, anos após a Independência, o
desencantamento crescente de MADISON e outros Whigs com as
expectativas e premissas da Revolução.”
74
(WOOD, 1972: 122).
O segundo exemplo reside em HUGH HENRY BACKENRIDGE, filho de um
imigrante escocês e carente de recursos, que, ciente das premissas da revolução, passa a
investir em educação, para ascender social e politicamente. Obtém, inicialmente, êxito,
sendo eleito para a Assembléia de Pennsylvania. Porém, nesta, descobre o desnível
intelectual entre os seus membros, sendo, posteriormente, derrotado, em outra eleição,
por um ex-artesão (Cf. WOOD, 1972: 480).
A conseqüência imediata desta nova composição do Poder Legislativo
passa a ser a própria contestação da legitimidade deste. Mais do que isto. Se,
anteriormente, conforme visto, a tirania da democracia era uma contradição entre os
termos, tal se transformou em uma realidade
75
*. O Poder Legislativo, outrora
insularizado de qualquer possível tirania, passa a estar sujeito a eventuais desmandos e
excessos:
73
“It began to seem clearer than it had before that ‘there is a certain pride in man, which leads him to
elevate the low, and pull down the high’. The people were becoming exultant in their ‘creating power
exerted in making a senator of an unqualified person’.”.
74
“That Madison lost the election to the House of Delegates to a former tavern-keeper, that the republican
hopes may have proved illusory, does not detract from the existence of these kinds of hopes in 1776, but
indeed helps to explain in the years after Independence the increasing disenchantment of Madison and
other Whigs with their Revolutionary assumptions and expectations.”.
75
É muito interessante o fato de os opositores à ‘politics of liberty’ fazerem menção ao termo tirania do
povo apenas em trocas de correspondência (Cf. WOOD, 1972: 442).
45
“Tirania, agora, era vista como um abuso de poder por qualquer ramo do
governo, mesmo, e para alguns especialmente, pelos tradicionais
representantes do povo.”
76
(WOOD, 1972: 608).
As palavras de PATRICK HENRY
77
*, acerca da situação em Filadélfia, iam
neste sentido. Para ele, a tirania deste Estado, exercida pelo legislativo, divergia muito
pouco da tirania exercida por GEORGE III, então rei da Inglaterra, quando da
independência das 13 colônias (Cf. KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987:
17). Nessa mesma situação estava WILLIAM BLOUNT, na Carolina do Norte:
“WILLIAM BLOUNT via ‘nosso Governo Republicano como a Mais
intolerável tirania’ e perguntava, ‘Pode um Homem estar seguro em sua
casa quando a Legislatura está atuando?’.”
78
(MAIN, 1974: 34).
Este poder não estava mais, então, protegido contra o fenômeno da
captura, por meio do qual se utiliza uma instituição pública para implementar interesses
privados. Muito pelo contrário, passou a ser vislumbrado, exatamente, como um
instrumento de partidarismo e de interesses privados, que tornavam a legislatura em um
fantoche nas mãos de homens despreocupados com o bem comum (Cf. WOOD, 1972:
369).
No que se refere à não-implementação prática da separação de poderes,
algo que foi ignorado quando da declaração de independência e do advento das
primeiras Constituições estaduais, tal passou a ser clamada, posteriormente. Assim o fez
T
HOMAS JEFFERSON, em 1783 (Cf. WOOD, 1972: 407).
O resultado final, enfim, foi a conclusão, nos anos de 1780, de que não
era mais a Coroa ou eventual chefe do executivo a fonte da tirania, mas a legislatura.
Nesse sentido, o recorrentemente citado W
OOD:
“Em 1780, a inveterada suspeita dos Americanos e seu receio com o
poder político, uma vez concentrada exclusivamente na Coroa e em seus
agentes, foi transferida para as várias legislaturas. Onde, uma vez, o
executivo apareceu como a única fonte da tirania, agora a legislatura,
76
“Tyranny was now seen as the abuse of power by any branch of the government, even, and for some
specially, by the traditional representatives of the people.”
77
Interessante notar que PATRICK HENRY foi um dos mais renomados Antifederalistas. O que é
merecedor de destaque é que muito embora os Antifederalistas fossem contrários à Constituição Federal,
a qual, na verdade, era uma medida, um remédio, contra as mazelas do período da ‘politics of liberty’,
alguns deles também não apoiavam a concepção política deste período.
78
“William Blount viewed ‘our Republican Governments as the Most intolerable of all Tyranny’ and
inquired, ‘Can any Man be safe in his house while the Legislature are setting?’.”
46
através das Constituições estaduais revolucionárias, se tornou a
instituição a ser mais temida.”
79
(1972: 409)
Evidentemente que a concepção do Poder Legislativo como fonte de
tirania não decorre, apenas, da composição populista deste. Não é porque apenas
agricultores ou outros comerciantes e artesãos, sem preparo algum, tinham acesso ao
poder, que se passou a identificar neste ramo do poder um perigo à liberdade. O
principal fato que fez com que o legislativo se tornasse temido foi a série de leis
esdrúxulas que este órgão passou a promulgar:
“A falta de ‘sabedoria e regularidade’ na legislação, disse MADISON, em
1786, era ‘o mal que se reclamava em toda a nossa república’. As leis se
tornaram tantas e tão complicadas que, como um pastor de Vermont
disse, os mesmos meios apontados para preservar a ordem se tornaram a
fonte de irregularidade e confusão.”
80
(WOOD, 1972: 405).
Há, contudo, a menção explícita à natureza dos homens que compunham
o Poder Legislativo, e não, apenas, ao conteúdo das leis, porque há uma relação íntima
de causa e efeito entre ambas.
Desnecessário dizer, por derradeiro, que os novos homens públicos não
acatavam este tipo de crítica, dirigida ao labor legislativo. O ranço da antiga elite
política provinha do simples fato de estes terem sido retirados do âmbito político:
“O problema era que, nas palavras de JOHN LLOYD, ‘Senhores de
propriedade’ frequentemente perderam embates eleitorais para homens
das ‘classes mais baixas’.”
81
(MAIN, 1974: 105).
2.2.3. Leis ex post facto e a abolição de contratos.
Nas palavras de MADISON, em 1788, as legislaturas estaduais estavam
repletas de homens desprovidos de estudo, experiência e princípios. Eram homens, nas
79
“In the 1780’s the Americans’ inveterate suspicion and jealously of political power, once concentrated
almost exclusively on the Crown and its agents, was transferred to the various state legislatures. Where
once the magistracy had seemed to be the sole source of tyranny, now the legislatures through the
Revolutionary state constitutions had become the institutions to be most feared.”.
80
“This lack of ‘wisdom and steadiness’ in legislation, said Madison in 1786, was ‘the grievance
complained of in all our republics’. The laws had become so profuse and complicated that, as one
Vermont minister charged, the very means appointed to preserve order had become the source of
irregularity and confusion.”.
47
fortes palavras de JOHN JAY, cuja sabedoria os havia deixado na escuridão (Cf.
KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 24).
E a principal conseqüência desta composição populista da legislatura se
fez sentir no tipo de leis que se fizeram aprovar. KRAMNICK, ao retratar os opositores
dos Articles of Confederation, bem menciona o conteúdo normativo usualmente emitido
neste período:
“Sua mordida [do populacho que compunha o Poder Legislativo] se fez
sentir na natureza de leis aprovadas pelas legislaturas estaduais, durante
o período do Articles. A preocupação de muitos que repudiavam os
Articles, durante a Convenção Constitucional, não se referia, apenas,
quanto ao imenso poder que as legislaturas estaduais, abstratamente
consideradas, possuíam, mas sim ao conteúdo substantivo da legislação
aprovada por estas poderosas legislaturas, uma vez que tais ameaçavam
interesses econômicos e direitos privados. Seria a natureza distributiva
de grande parte da legislação proveniente das legislaturas estaduais, neste
período, que enraivou os críticos dos Articles.”
82
(KRAMNICK, In.
MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 25).
O conteúdo das leis que ameaçavam os interesses econômicos e os
direitos privados era diverso. Eram leis aprovando a emissão de papel-moeda sem
lastro, normas favorecendo o devedor, e não o credor, e normas redistribuindo terras e
propriedades:
“Em um Estado atrás do outro, os novos homens das legislaturas
aprovaram leis sobre papel-moeda que providenciavam dinheiro barato,
legislação beneficiando devedores, legislação desrespeitando contratos,
leis confiscando propriedades e leis suspendendo os meios habituais de
se recuperar dívidas. (...). Em 1786, sete Estados emitiram papel-moeda
com o qual os devedores eram encorajados a pagar seus credores.”
83
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 25).
81
“The trouble was that, in John Lloyd’s words, ‘Gentlemen of property’ too frequently lost electoral
contests to men from the ‘lower classes’”.
82
“Their bite was felt in the kind of laws passed by the state legislatures during the period of the Articles.
The concern of many who repudiated the Articles at the Constitutional Convention would be not simply
the immense power of state legislatures, abstractly considered, but the substantive content of the
legislation passed by these all powerful legislatures as it threatened vested economic interests and private
rights. It would be the redistributive nature of so much of the legislation coming out of the state
legislatures in this period which enraged the critics of the Articles.”.
83
“In state after state the new men in the legislatures passed paper money acts providing cheap money,
debtor relief legislation, legislation setting aside contracts, laws confiscating property and laws
suspending the ordinary means for recovering debts. (…). In 1786 alone seven states issued paper money
with which debtors were encouraged to pay their creditors.”.
48
O que chamava a atenção não era o caráter esporádico destas leis. Ou
seja, tais não eram frutos de uma legislatura torta, um Poder Legislativo isolado,
corrompido pela qualidade deficitária, porém acidental, de seus membros. Parecia,
naquele momento, que o problema decorria, necessariamente, da concepção política
focada no Poder Legislativo. Nesse diapasão, WOOD:
“O confisco de propriedade, nos esquemas de papel moeda, nas leis mais
benéficas [ao devedor], e os vários meios de se suspender os meios
usuais de se recuperar as dívidas, apesar de sua ‘clara e patente ...
violação de todo e qualquer princípio de justiça’, não eram decretos de
um tirânico e irresponsável magistrado, mas de leis aprovadas pelas
legislaturas, as quais eram, provavelmente, tão iguais e razoavelmente
representativas do povo que qualquer outra legislatura na história.”
84
(1972: 404).
Confirma a veracidade desta afirmação o fato de tais leis serem uma
constante em todos os Estados norte-americanos:
“As leis da Carolina do Norte, em 1780, eram para o Advogado-Geral
JAMES IRIDEEL ‘a mais vil coleção de lixo jamais produzida por um
corpo legislativo’. A legislatura de New York, lembrou o Chanceler
ROBERT LIVINGSTON, estava ‘diariamente cometendo os mais flagrantes
atos de injustiça’.”
85
(WOOD, 1972: 406).
Nesse sentido, também, RIESMAN:
“Os senhores estavam preocupados, em 1786, quando legislaturas em
New Hampshire, Massachusetts, Rhode Island, New York, New Jersey e
Maryland, aprovaram normas sobre papel moeda e quando a legislatura
de Rhode Island aprovou uma norma de força exigindo que todos
aceitassem o papel moeda, de acordo com seu valor de face.”
86
(In.
BEEMAN, BOTEIN, CARTER II (ed.), 1987: 150).
84
“The confiscation of property, the paper money schemes, the tender laws, and the various devices
suspending the ordinary means for the recovery of debts, despite their ‘open and outrageous … violation
of every principle of justice’, were not the decrees of a tyrannical and irresponsible magistracy, but laws
enacted by legislatures which were probably as equally and fairly representative of the people as any
legislatures in history.”.
85
“The North Carolina laws of 1780 were to Attorney-General James Iridell ‘the vilest collection of trash
ever formed by a legislative body’. The New York legislature, remarked Chancellor Robert Livingston,
was ‘daily committing the most flagrant acts of injustice.’.”
86
“Gentlemen were distressed in 1786 when legislatures in New Hampshire, Massachusetts, Rhode
Island, New York, New Jersey, and Maryland passed paper money acts and when the Rhode Island
legislature passed a strict tender or force act requiring everyone to accept paper money at face value.”.
49
O resultado imediato foi a desestabilização da sociedade americana.
Empréstimos eram evitados e, ironicamente, não pelo pretenso devedor, mas
exatamente pelo credor, que temia que, no dia seguinte, o contrato por ele firmado,
fosse legalmente desconsiderado. As leis que, anteriormente, eram reputadas como a
fonte de ordem e estabilidade social, haviam agora se tornado, exatamente, a fonte de
caos e desordem
87
*.
Tais leis, ademais, desencadearam uma onda consumerista, em todas as
ex-colônias. Todos os cidadãos, principalmente os comuns, passaram a consumir a mais
variada sorte de produtos, principalmente produtos de luxo provenientes da Inglaterra,
cientes de que, posteriormente, seriam salvos por atos do Poder Legislativo. Sobre a
situação social do período, RIESMAN:
“Em 1786, ao que parecia, uma revolução social estava a caminho:
pequenos artesãos e fazendeiros estavam comprando de forma pródiga.
Havia constantes reclamações, em jornais, panfletos, acerca das pessoas
comprando chapéus, laços, seda, tecidos finos, lençóis bordados, louça,
rum, chá e madeira, e, particularmente, da ascensão social que parecia
infectar americanos em toda a parte. Parecia, aos nobres, que todos,
agora, queriam aparentar cavalheirismo [ser genteel]. Homens e
mulheres estavam obcecados com suas aparências exteriores e com os
vestidos e maneiras de suas crianças. Era esta ‘coceira cara’, como um
comentador alcunhou, que fomentou a enorme importação de bens da
Inglaterra, e que conduziu gastadores insolventes a exigir papel-
moeda.”
88
(In. BEEMAN, BOTEIN, CARTER II (ed.), 1987: 147).
87
Cf. WOOD, “Paradoxal como parecia, era agora a exata força das leis dos Estados, não a anarquia e a
ausência de lei, que estava viciando a nova república. (…). Fé pública e confiança privada estavam sendo
destruídas por papel moeda e por legislações retroativas. Quem emprestaria dinheiro, perguntava-se, ‘se
uma legislatura onipotente pode desconsiderar contratos outrora ratificados sob a chancela da lei?’.”
(1972: 406).
Paradoxical as it seemed, it was the very force of the laws of the states, not anarchy or the absence of law,
that was vitiating the new republics. (…) Public faith and private confidence were being destroyed by
paper money and ex post facto legislation. Who would lend money, it was repeatedly asked, ‘if an
omnipotent legislature can set aside contracts ratified by the sanction of law?’.”.
88
“By 1786, it seemed, something in the nature of a social upheaval was under way: ordinary artisans and
farmers were reported to be on a stunning shopping free. There were constant complaints, in newspapers,
pamphlets, and journals, about people buying hats, laces, silks, gauze, chintz sheets, china, rum, tea, and
madeira and particularly about the social climbing which seemed to infect Americans everywhere. It
appeared to gentlemen that everyone now wanted to be genteel. Men and women alike seemed obsessed
with their outward appearance and with the dress and demeanor of their children. It was this ‘costly itch’,
as one commentator called the remarkable buying, that fueled the enormous importation of goods from
Britain and that led suddenly insolvent spenders to cry out for paper money.”.
50
Neste mesmo sentido, MAIN, porém, quanto aos pequenos agricultores, e
a pressão destes para medidas legais que lhes fossem benéficas
89
*:
“Uma solução atraente para os problemas financeiros dos agricultores era
o papel-moeda. Ele poderia ser emitido para pagar as despesas do
governo, afastar o déficit público, e reduzir a dificuldade em se pagar
tributos. Dívidas privadas também poderiam ser mais facilmente pagas.
Como um devedor, o agricultor desejava também que o processo judicial
fosse mais favorável a ele. Ele exigia cortes situadas em locais que lhe
fossem mais convenientes, baixos custos judiciais e menores honorários
advocatícios, leis obrigando credores a aceitar propriedade a um valor
‘justo’, a abolição de prisões por dívidas, e leis suspendendo a cobrança
das dívidas.”
90
(1974: 7).
No esteio destes acontecimentos, passou-se a temer que o próximo passo
fosse a redistribuição de propriedades, principalmente por meio do papel-moeda, na
medida em que estes poderiam, a partir de previsão normativa, ter força legal, fazendo
com que todos aceitassem a sua utilização, o seu recebimento. Uma vez mais sobre este
assunto, R
IESMAN:
“A sensação de catástrofe iminente aumentou gradativamente no final de
1786. Membros do Congresso Continental [congresso desprovido de
quaisquer poderes] temiam que, se os eventos fugissem do controle, a
redistribuição de propriedade se tornaria uma realidade e a vida social
que todos conheciam desapareceria. (...). Para WASHINGTON e outros,
exigências por papel-moeda se assemelhavam, em grande parte, com
exigências por leis agrárias. Leis de força [que impunham curso legal ao
papel moeda], que cada vez mais eram aprovadas, promulgadas
juntamente com atos que aprovavam a emissão de papel moeda,
obrigavam as pessoas a trocar sua propriedade por qualquer papel que
proliferasse no mercado. Se as pessoas ordinárias pudessem adquirir
quantidade suficiente de papel e obrigar os mais ricos da sociedade a
aceitar o papel, em troca, sob a penalidade da lei, então eles poderiam, de
fato, forçar uma redistribuição de toda a propriedade. Então, exigências
por papel pareciam possuir uma sinistra implicação niveladora, para a
parte aristocrática da sociedade. A exigência por uma igualdade de
direitos se transformaria, sutilmente, em exigências por igualdade de
propriedade, em abolição dos direitos privados e na redistribuição de
89
Para um estudo sobre a relação entre riqueza e predisposição a normas deste porte, vide MAIN (1974:
21-40).
90
“An attractive solution to the farmer’s financial problems was paper money. It could be issued to pay
the expenses of government, discharge public debts, and reduce the hardship of paying taxes. Private
debts could also be more easily paid. As a debtor, the farmer also hoped that the judicial process might be
made more favorable to him. He demanded the more convenient location of courts, lower court costs and
lawyer fees, laws obliging creditors to accept property at a ‘fair’ value, the abolition of imprisonment for
debt, and laws delaying the recovery of debts.”
51
toda a riqueza? Os aristocratas que se sentavam no Congresso
[Continental] acreditavam que sim.”
91
(In. BEEMAN, BOTEIN, CARTER II
(eds.), 1987: 150-151).
Esta preocupação faz-se sentir na troca de correspondência entre
MADISON e seu pai, na qual tratava de fato – quiçá isolado, a saber, a rebelião de SHAY,
em Massachusetts, como um movimento com provável pretensão sobre a redistribuição
de propriedade
92
*:
“Ele [MADISON] escreveu para o seu pai que enquanto os soldados de
S
HAY
93
* alegavam pretender, apenas, remediar certos abusos da
administração pública ... uma abolição das dívidas, pública e privada, e
uma nova divisão de propriedade parece estar, seguramente, em
contemplação.’.”
94
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987:
28).
Encerrando, aqui, este assunto, ressalta-se que uma das primeiras
medidas dos Founding Fathers da Constituição de 1787, compostos, em sua maioria,
pelos descontentes com as Assembléias estaduais, foi a previsão, nesta Constituição, do
seguinte dispositivo:
91
“The sense of impending doom mounted late in 1786. Members of the Continental Congress worried
that, if events in the states ran out of control, redistribution of property would become a reality and social
life as gentlemen had known it would disappear. (…). To Washington and other gentlemen, demands for
paper money did indeed seem like demands for agrarian laws. Force laws, which were increasingly
passed in tandem with acts to emit paper currency, obliged people to exchange their property for any
paper proffered in the market. If ordinary people could acquire enough paper and oblige the wealthier in
society to accept paper in trade, under penalty of law, they could effectively force redistribution of all
property. Thus, demands for paper seemed to possess sinister, leveling implications that frightened the
genteel part of society. Would demands for equality of rights swiftly be transformed into demands for the
equality of property, the abolition of private rights, and the redistribution of all wealth? Well-to-do
gentlemen who sat in Congress believed so.”.
92
Também nesse sentido, MAIN: “Foi-se reportado que alguns estavam demandando ‘uma igual
distribuição de propriedade’ou ‘aniquilação das dívidas’, enquanto ‘todos eles exclamavam contra a lei e
o governo.’.” (1974: 67).
“It was reported that some were demanding ‘an equal distribution of property’ or ‘the annihilation of
debts’, while ‘all of them exclaimed against law and government’.”
93
Sobre os efeitos desta mesma resolução na classe mais alta, MAIN:
“Um cidadão preocupado alertou que as exigências dos rebeldes, se aceitas, ‘terminariam em uma
abolição das dívidas públicas e privadas e, então, uma redistribuição igualitária de propriedade seria
demandada’.” (1974: 105).
“One worried citizen warned that the rebel demands, if granted, ‘must end in an abolition of all public &
private debts and then an equal distribution of Property may be demanded’.”
94
“He [Madison] wrote to his father that while Shay’s soldiers claimed only to seek remedies for certain
‘abuses in the public administration … an abolition of debts, public and private, and a new division of
property are strongly suggested to be in contemplation.’.”
52
“Artigo I, seção 10. Nenhum Estado deve (...) cunhar Moeda; emitir
Notas de Crédito; fazer qualquer Coisa que não Moeda de ouro e prata
como material para pagamento de dívidas; aprovar qualquer (...), Lei ex
post facto, ou Lei afastando a Obrigação de Contratos (...)”
95
.
Procurava-se, assim, retirar da agenda legislativa toda e qualquer
possibilidade de se restabelecer aquele tipo de legislação que havia ameaçado a
aristocracia e produzido tanta insegurança.
Interessante notar, ademais, que conteúdos espúrios não se faziam
repetir, apenas, na legislação infra-constitucional. As Constituições dos Estados,
também, traziam em seu conteúdo normas que, hodiernamente, afigurar-se-iam como
verdadeiros impropérios.
A Constituição de Pennsylvania – mais uma vez ela – impunha um
juramento religioso, que deveria ser feito por todo candidato a qualquer cargo eletivo.
K
ENYON trata desta exigência, que se repetia em outros Estados:
“Um juramento religioso também era exigido dos candidatos a eleições.
Seria excluída qualquer pessoa sensível quanto à santidade dos
juramentos, que não acreditasse que Jesus Cristo fosse o filho de Deus e
na natureza divina do antigo e do novo testamento. Exigências
semelhantes eram uma constante nas colônias, naquele tempo, e é
apenas uma surpresa leve descobrir tal previsão na Pennsylvania.
Talvez seja significante lembrar que o demos não é sempre libertário.
96
(KENYON, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 100; ênfase acrescentada).
Neste mesmo Estado, o juramento haveria de ser feito, novamente, pelos
eleitos para ocupar a legislatura
97
*. Tal estava a denotar que, apenas, cristãos poderiam
atuar como representantes do povo (Cf. K
ENYON, In PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 101).
95
“Article I, section 10. No States shall (…) coin Money; emit Bills of Credit; make any Thing but gold
and silver Coin a tender in Payment of Debts; pass any (..), ex post facto Law, or Law impairing the
Obligation of Contracts (…).”.
96
“A religious oath was also required of candidates for election. It would have excluded any person
sensitive about the sancity of oaths who did not believe in Jesus Christ as the son of God and in the
divinely inspired nature of the Old and New Testaments. Similar requirements were common in most of
the colonies at the time, and it is only mildly surprising to find this one in Pennsylvania. It is perhaps
significant as a reminder that the demos is not always libertarian.”.
97
Os termos eram: “Eu acredito em um Deus, o criador e governador do universo, o premiador do bom e
punidor do mal. E eu reconheço que as escrituras do antigo e do novo testamento possuem inspiração
divina.” (Apud K
ENYON, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 101).
“I do believe in one God, the creator and governor of the universe, the rewarder of the good and the
punisher of the wicked. And I do acknowledge the Scriptures of the Old and New Testament to be given by
Divine inspiration”.
53
2.3. 1787-1788: a Convenção de Filadélfia
2.3.1. Implicações do período da politics of liberty
O período de 1776 a 1786, com suas rebeliões, leis e legislaturas
esdrúxulas, causou, em muitos, uma nítida sensaçãode que a independência havia
tornado perpétuo o estado de revolução e, ademais, legitimado a desordem civil (Cf.
WOOD, 1972: 362). E, para estes mesmos descrentes, a sensação era de que os efeitos da
desordem se fariam sentir por muito tempo. Este é o sentimento, por exemplo, de
DAVID RAMSAY, um médico formado em Princeton e que representava a Carolina do
Sul no Congresso Continental:
“‘Esta revolução’, disse DAVID RAMSAY a BENJAMIN RUSH, em 1783,
‘introduziu tanta anarquia que se levará quase que um século para
erradicar a licenciosidade do povo.”
98
(WOOD, 1972: 403)
Interessante notar que este período incutiu sentimentos verdadeiramente
opostos. Muitos diziam que este momento se caracterizava por ser anárquico. Este, por
exemplo, é o ponto de vista de KRAMNICK (In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 27)
99
*. Do outro lado, afirmava-se que o período mencionado havia, sim, sido o de uma
tirania, a do legislativo. Esta é a posição de WOOD:
“Verdade, havia exemplos suficientes da licenciosidade do povo: o oeste
de Massachusetts [menção à rebelião de S
HAY] era um vale dos horrores.
Mas a anarquia e a falência do governo, decorrente da primeira, não mais
se afigurava como uma forma precisa de descrever tudo o que estava
acontecendo no período de 1780. Um excesso de poder no povo estava
conduzindo não apenas à licenciosidade, mas a um novo tipo de tirania,
não pelos governantes tradicionais, mas pelo próprio povo – o que JOHN
ADAMS, em 1776, chamou de uma contradição teorética, um despotismo
democrático.”
100
(1972: 404).
98
“‘This revolution’, David Ramsay told Benjamin Rush in 1783, ‘has introduced so much anarchy that it
will take half a century to eradicate the licentiousness of the people’.”
99
Segundo este autor:
“Os britânicos foram excessivos no exercício do governo e da autoridade; agora o povo era excessivo no
exercício da liberdade. A ‘politics of liberty’ levou à injustiça, à perversão e à anarquia.”.
“The British had been excessive in the exercise of government and authority; now the people were
excessive in the exercise of liberty. The ‘politics of liberty’ had led to injustice, wickedness and anarchy.”
100
“True, there were sufficient examples of the people’s licentiousness: western Massachusetts was a
valley of horrors. But anarchy and the breakdown of government that it connoted no longer seemed an
accurate way to describe all of what was happening in the 1780’s. An excess of power in the people was
leading not simply to licentiousness but to a new kind of tyranny, not by the traditional rulers, but by the
54
A contradição está no fato de a anarquia presumir a ausência de poder –
organizado; enquanto a tirania, o excesso. Contudo, se alocarmos cada um dos termos
em seus devidos lugares, tal paradoxo será meramente aparente. A sensação de anarquia
residia no tipo de leis que o legislativo aprovava e que gerava o já mencionado caos e
insegurança. Leis retroativas ou ex post facto, que anulavam contratos ou impunham
força legal ao excessivo papel-moeda emitido pelos Estados, ocasionavam um
verdadeiro sentimento de insegurança jurídica, tal como se não houvesse, mesmo,
legislação regulando as relações sociais.
Já a tirania residia na fonte destas normas, no Poder Legislativo, que
desrespeitava qualquer direito e as demais funções do governo – isto quando não era a
legislatura o único poder previsto no governo. Um caso paradigmático é o de Rhode
Island e sua legislação que pretendia dar força legal ao eventual papel-moeda emitido.
Conforme bem narra RIESMAN:
“quando a questão das leis dando força legal ao papel moeda foi julgada
nas cortes de Rhode Island, em Trevett v. Weeden, apareceu, para os
membros do Congresso Continental, de que a legislatura de Rhode Island
temia o poder das cortes, não confiava nos jurados que haviam sido
apontados pela corte, e, ademais, contestavam o direito fundamental a
um julgamento pelo júri. Contestações populares semelhantes que se
fizeram sentir nas cortes da Pennsylvania convenceram os nacionalistas
de que a ânsia dos devedores por papel-moeda provavelmente
desmoronaria todo o sistema de justiça, baseado em séculos da tradição
inglesa.”
101
(In. BEEMAN, BOTEIN, CARTER II, 1987: 150).
A tirania, enfim, apresentava-se na ausência de quaisquer limites ao
Poder Legislativo, conforme havia concluído MADISON, em 1785 (Cf. WOOD, 1972:
275). Restava, agora, saber como sanar ambos os problemas, principalmente o da tirania
do legislativo, que era a causa de toda a insegurança jurídica e da sensação de anarquia,
na sociedade norte-americana. Para WOOD (1972: 376), a busca deste remédio, desta
people themselves – what John Adams in 1776 had called a theoretical contradiction, , a democratic
despotism.”
101
“when the issue of tender laws was tried in the Rhode Island courts, in Trevett v. Weeden, it appeared
to members of the Continental Congress that the Rhode Island legislature feared the power of the courts,
did not trust the jurors whom the court appointed, and, indeed, objected to the fundamental right of trial
by jury. Similar popular complaints about the courts in Pennsylvania convinced nationalists that the rage
of debtors for paper money was likely to overturn the entire system of justice, based on centuries of
English tradition.”.
55
forma de controlar o Poder Legislativo, foi a questão central da política e do
constitucionalismo do período da Confederação.
A resposta a tal busca encontrava-se presente em uma concepção já
constante (germinalmente – é claro) do primeiro período da revolução norte-americana,
a saber, de que o legislativo também pode cometer abusos; o que, portanto, fazia
necessário e desejável que se criasse uma distinção no próprio bojo normativo, entre
espécies legislativas, de forma que a emanada do Poder Legislativo houvesse que
respeitar aquela que lhe fosse hierarquicamente superior – e que receberia o nome de
Constituição. Sobre o tema, W
OOD:
“Sob a pressão dos eventos de 1760 e 1770, muitos americanos estavam
determinados a providenciar proteção aos direitos fundamentais e foram
de encontro, como seus ancestrais ingleses haviam feito no século XVII
[posicionamento de SIR EDWARD COKE, no Bonham’s case], para uma
definição de constituição como algo distinto de e superior a todo o
governo, incluindo até mesmo os representantes legislativos do povo.”
102
(1972: 266; ênfase acrescentada).
Ressalte-se, apenas, que esta idealização da Constituição como o
ordenamento jurídico superior não foi imediata e, tampouco, transcorreu sem
obstáculos. Muito embora as ex-colônias, em sua íntegra, tivessem constituições, tais,
em nada, se diferenciavam das leis provenientes da legislatura. A lógica era simples.
Não havia como hierarquizar as legislaturas; é dizer, a assembléia responsável pela
elaboração da Constituição dos Estados não possuía maior legitimidade política que as
sucedâneas, responsáveis, apenas, pelos atos legais. O resultado disto é que,
102
“Under the pressure of the events in the 1760’s and seventies, many Americans were determined to
provide for the protection of these fundamental rights and moved, as their English ancestors had in the
seventeenth century, toward a definition of a constitution as something distinct from and superior to the
entire government including even the legislative representatives of the people.”.
Ainda sobre esta questão: “A natureza fundamental da constituição que esteve presente, de forma
dormente, nas suposições de 1776 era agora vitalizada e trazida à baila pela crescente insatisfação com a
atividade legislativa, uma insatisfação que grande parte dos Americanos não havia, ao período da
revolução, realmente antecipado, ainda que muitos estivessem cientes de abusos parlamentares. A lógica
para a aparição de um sentido de constituição enquanto algo ‘sagrado e inviolado’, que ‘nenhuma
legislatura poderia alterar ou emendar’ de qualquer maneira, era tal que os poucos que, cada vez mais,
sentiam a necessidade de limitar as legislaturas não puderam resistir.” (W
OOD, 1972: 276).
“The fundamental nature of a constitution that had been dormantly present in the assumptions of 1776
was now vitalized and drawn out by the growing dissatisfaction with legislative activity, a dissatisfaction
with the fairest Americans at the time of the revolution had not really anticipated, however much they had
been aware of Parliament’s abuses. The logic of the emerging meaning of a constitution as something
‘sacred and inviolate’, which ‘no legislature ought to presume to alter or amend’ in the slightest way, was
such that few who increasingly felt the need to limit their legislatures could resist it.”.
56
invariavelmente, as legislaturas findavam por desrespeitar as suas respectivas
constituições:
“E porque nenhuma legislatura poderia aprovar um ato transcendente do
poder das demais legislaturas, a Constituição era meramente ‘um
estatuto’ com ‘nenhuma autoridade superior que os outros estatutos da
mesma sessão’. Não poderia ser nem ‘perpétua’ e tampouco ‘inalterável
pelas outras legislaturas’. Na verdade, as assembléias que lhe sucediam
continuavam a aprovar leis ‘em contradição ao estatuto do governo’.”
103
(WOOD, 1972: 276).
Porém, após a tomada de consciência desta possibilidade de se instaurar
um documento superior ao governo e, principalmente, ao Poder Legislativo e aos seus
atos, os opositores à ‘politics of liberty’ e àquilo que esta implicava, a supremacia do
parlamento, buscaram exatamente formular uma Carta desta natureza. Este foi o
propósito da Convenção de Filadélfia
104
*.
Frise-se, por fim, que o produto da Convenção alteraria, amplamente, a
concepção política então adotada na Independência:
“Ao mudar o poder dos Estados, onde os novos homens dominavam,
para um novo governo central, a Constituição reverteria o veredicto de
1776 sobre quem governaria a América. Em certo sentido, então, 1787 e
a Constituição representam o triunfo de uma leitura da Revolução
Americana sobre outro – o espírito de 76 enquanto embutidos nos
Artigos da Confederação.”
105
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON,
JAY, 1987: 15).
2.3.2. A concepção política dos Founding Fathers: a aristocracia natural
Acima, já foi visto, à exaustão, que a preocupação central dos
federalistas, responsáveis pela elaboração da Constituição Federal de 1787, estava no
103
“And because no legislature could pass an act transcendent of the power of other legislatures, the
Constitution was merely an ‘ordinance’ with ‘no higher authority than the other ordinances of the same
session.’. It could be neither ‘perpetual’ nor ‘unalterable by other legislatures’. In fact, the succeeding
assemblies had continued to pass acts ‘in contradiction to their ordinance of government’.”
104
Nesse sentido, KAY: “Os elaboradores da Constituição dos Estados Unidos não estavam desatentos ao
poder arbitrário que provinha tanto da legislatura como de qualquer outra fonte.” (In. A
LEXANDER (ed.),
2005: 24).
“The framers of the United States Constitution were no less wary of arbitrary power issuing from a
legislature than form any other source.”
105
“In shifting power from the states, where new men dominated, to a new central government, the
Constitution would reverse the veredict of 1776 on who would rule in America. In a sense, then, 1787 and
the Constitution represent the triumph of one reading of the American Revolution over another – the spirit
of 76 as enshrined in the Articles of Confederation.”.
57
Poder Legislativo. Contudo, não era tanto o Poder Legislativo, abstratamente
considerado, que os consternava, mas sim a composição subjetiva deste. Sabia-se, de
fato, que o Poder Legislativo não apresentava limites, cometia mandos e desmandos.
Mas, a origem deste mal estava presente na qualidade de seus membros. Uma vez que
se alterasse a qualidade destes, o Poder Legislativo não mais seria objeto de
preocupação, não mais aprovaria leis de qualidade duvidosa, que colocassem em xeque
direitos privados.
De certa forma, então, percebe-se que a questão de fundo do problema
estava no tipo de participação popular que a Independência havia ensejado, uma
participação populista, de parca qualidade e, ademais, intensa:
“Para os Federalistas, o grande perigo para o republicanismo não
provinha, como os antigos Whigs haviam imaginado, dos governantes ou
de qualquer minoria distinta da comunidade, mas da intensa participação
do povo no governo.”
106
(WOOD, 1972: 517).
A solução para este problema, a forma de se elidir o perigo que a
concepção presente na Independência havia ocasionado, estava na introdução – agora
prática – da aristocracia natural, no governo. Os Founding Fathers tentariam, agora,
implementar, por meio da Constituição de 1787, o que eles haviam, há muito,
idealizado, uma república meritocrática. Sem embargo, tal tarefa não seria das mais
fáceis, conforme bem lembra WOOD, citando JONATHAN JACKSON, formado em Harvard
e autor da obra Thoughts upon the Political Situation of the United States – o que, de
certa forma, denota sua posição social e inclinação política
107
*:
106
“To the Federalists the greatest dangers to republicanism were flowing not, as the old Whigs had
thought, from the rulers or from any distinctive minority in the community, but from the widespread
participation of the people in the government.”.
107
Estes fatos são indícios de que este personagem poderia compactuar com os ideais dos Federalistas.
Contudo, tais não, necessariamente, nos fazem concluir pela sua predisposição à natural aristocracy, tendo
em vista o exemplo de R
ICHARD HENRY LEE e GEORGE MASON, dois dos mais notáveis antifederalistas, e
que possuíam posição social e intelectual avantajada.
De qualquer forma, pode-se perceber a relação entre preparo intelectual e cultura, na sociedade norte-
americana de então, e o posicionamento político, na formação dos membros da Convenção de Filadélfia,
cuja grande maioria era favorável à noção de aristocracia natural. Nesse sentido, a importante constatação
de K
RAMNICK: “Os delegados que vieram para Filadélfia representavam uma ampla gama de talentos,
especialmente se se considerar o tamanho da América nesta época. Dos 55 delegados, aproximadamente
60% tinha ido à faculdade, com nove de Princeton, quatro de Yale e três de Harvard. A profissão mais
representada era o direito, trinta e quatro dos delegados eram advogados, comerciantes e fazendeiros
vinham em seguida.” (In. M
ADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 30).
“The delegates who came to Philadelphia represented a striking array of talent, especially taking into
consideration the size of America then. Of the fifty-five delegates, nearly 60 percent had attended college,
58
“O problema central que enfrentava a América, disse JACKSON, estava
em trazer a aristocracia natural de volta à ativa e distribuir ‘autoridade a
aqueles, e apenas a aqueles, que, por natureza, educação e boa
disposição, estavam qualificados para o governo’. Era este o problema
que a Constituição Federal haveria que resolver.”
108
(WOOD, 1972: 510).
Antes, contudo, de adentrarmos nos mecanismos utilizados pela
Constituição Federal, importante diferenciar a concepção americana de aristocracia da
inglesa. O elemento divergente pode ser encontrado, de pronto, no epíteto que os
Federalistas utilizavam para adornar sua concepção de aristocracia. Sua aristocracia era
natural, em contrariedade à inglesa, dita artificial. Enquanto a aristocracia inglesa se
pautava em títulos e cargos, usualmente concedidos pela Coroa, como forma de
estabelecer uma relação de suserania e vassalagem, e que destoavam, na sua maioria,
das virtudes dos que ostentavam tais títulos; a aristocracia norte-americana seria pautada
pelas virtudes de cada cidadão. Enfim, a aristocracia natural norte-americana estava
vocacionada ao mérito individual.
Passa-se, agora, às formas utilizadas pelos Fathers para implementar esta
aristocracia.
2.3.2.1. O Senado e a Presidência: o uso do filtering principle
Os membros da Convenção de Filadélfia estavam amplamente
conscientes de que a Constituição a ser elaborada apresentaria como função principal
estabelecer os meios de se escolher os melhores membros, em termos meritocráticos, da
sociedade, e, em segundo lugar, a de assegurar que ambos permanecessem virtuosos –
os termos dos Framers, aliás, eram mais amplos; para eles, todas as Constituições
teriam esta finalidade. Este ponto de vista é colocado, por MADISON, no Federalist
Paper # 57:
“O objetivo de toda constituição política é, ou deve ser, primeiramente,
obter como governantes homens que possuam sabedoria para discernir, e
virtude para buscar, o bem comum da sociedade; e, em segundo lugar,
with nine from Princeton, four from Yale and three from Harvard. The largest profession represented was
the law; thirty-four of the delegates were lawyers. Merchants and planters came next.”.
108
“The central problem facing America, said Jackson, was to bring the natural aristocracy back into use
and to convey ‘authority to those, and those only, who by nature, education, and good dispositions, are
qualified for government.’. It was this problem that the federal Constitution was designed to solve.’.”
59
estabelecer as mais efetivas precauções para que tais [governantes] se
mantenham virtuosos, enquanto continuem a manter o cargo público. A
forma eletiva de se obter tais governantes é a característica da política do
governo republicano.”
109
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 343).
A forma escolhida para se obter a melhor parcela da sociedade foi o
chamado princípio de filtragem (filtering principle), que funcionaria de duas formas. A
primeira e principal seria a superação de pequenos distritos eleitorais por outros, de
maior tamanho. A lógica era simples. Em distritos eleitorais pequenos, a possibilidade
de facciosismo
110
* (captura do representante por interesses privados) e de que o
eventual representante, apenas, se preocupasse com os interesses locais, em detrimento
do bem comum de toda a nação, seria maior. Em distritos eleitorais mais amplos, um
candidato somente seria reconhecido por pretensos eleitores que se encontrassem longe
de sua base eleitoral se tivesse uma boa fama, fosse reconhecidamente um cidadão
virtuoso. Em distritos pequenos, tais características pouco importariam. Relevantes,
neste último caso, são a troca de favores e a coalizão de grupos políticos detentores de
interesses privados.
Sobre o assunto, KRAMNICK:
“A mudança de poder para o centro [para a União] e a criação de uma
legislatura nacional, baseada em amplas e diversas unidades
representativas fariam com que, como MADISON apontava na Convenção
Constitucional em 31 de Maio de 1787, ‘se refinassem as indicações
populares por sucessivas filtragens.’.”
111
(In. MADISON, HAMILTON, JAY,
1987: 41).
E, também, WOOD:
109
“The aim of every political constitution is, or ought to be, first to obtain for rulers men who possess
most wisdom to discern, and most virtue to pursue, the common good of society; and in the next place, to
take the most effectual precautions for keeping them virtuous whilst they continue to hold their public
trust. The elective mode of obtaining rulers is the characteristic policy of republican Government.”.
110
Para um conceito de facção, termo pouco utilizado pela doutrina brasileira, MADISON, no Federalist
paper # 10: “Por facção eu compreendo um número de cidadãos, quer atuando em nome de uma maioria
ou minoria de um grupo, que são unidos e impelidos por um impulso comum de paixão ou interesse,
adverso ao direito de outros cidadãos, ou aos interesses permanentes e comuns da comunidade.”
(M
ADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 123).
“By a faction I understand a number of citizens, whether amounting to a majority or minority of the
whole, who are united and actuated by some common impulse of passion, or of interest, adverse to the
rights of other citizens, or to the permanent and aggregate interests of the community.”
111
“Shifting power to the center and creating a national legislature based on large and diverse
representational units would, as Madison pointed out to the Constitutional Convention on May 31, 1787,
‘refine the popular appointments by successive filtrations.’.”.
60
“A eleição, pelo povo, em grandes distritos [eleitorais] acalmaria a
demagogia e a grosseira busca de votos e tornaria, então, segundo JAMES
WILSON, ‘mais provável que se obtivessem homens de inteligência e
retidão.”
112
(1972: 512).
A elaboração deste princípio se deu, principalmente, no Federalist Paper
#10, por JAMES MADISON.
Percebe-se que a premissa inicial deste dito princípio é a criação de
circunscrições territoriais extensas
113
*, de forma que se evitasse a formação de facções.
Nesse sentido, MADISON:
“Como todo representante será escolhido por um maior número de
cidadãos na grande república do que em uma de menor tamanho, será
mais difícil para os candidatos não merecedores praticarem, com
sucesso, as artes viciadas pelas quais as eleições são usualmente
conduzidas; e o sufrágio do povo sendo mais livre, provavelmente ele
escolherá os homens que possuam os méritos mais atraentes e tenham
suas qualidades mais difundidas e estabelecidas.”
114
(MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 127).
Obviamente que a defesa de circunscrições territoriais extensas não dizia
respeito, meramente, à questão territorial. Em um período de baixa densidade
demográfica, a menção a amplos espaços territoriais estava a significar maior número
de pessoas. Na mente de MADISON, quanto maior fosse o número de pessoas, mais
difícil seria, então, que estes chegassem a um consenso, ainda mais um consenso que
fosse deletério ao bem comum:
“Quanto menor a sociedade, menor a probabilidade de que haverá
partidos e interesses distintos compondo-a; quanto menor o número de
interesses e partidos distintos, mais freqüentemente haverá uma maioria
que comporá um mesmo partido; e quanto menor o número de indivíduos
compondo uma maioria, e menor o espaço territorial em que estejam
situados, mais facilmente ocorrerá, por parte desta maioria, a concertação
112
“Election by the people in large districts would temper demagoguery and crass electioneering and
would thus, said James Wilson, ‘be most likely to obtain men of intelligence and uprightness’.”
113
Importante notar, embora não seja matéria do presente estudo, o que fará com que tal questão não seja
devidamente abordada, que a defesa de M
ADISON pelo princípio em questão vai de encontro com a sua
defesa das repúblicas, enquanto democracias em grandes circunscrições territoriais. MADISON defendia a
superação do modelo Confederativo por um pautado em um Governo centralizado.
114
“as each representative will be chosen by a greater number of citizens in the large than in the small
republic, it will be more difficult for unworthy candidates to practice with success the vicious arts by
which elections are too often carried; and the suffrages of the people being more free, will be more likely
to center on men who possess the most attractive merit and the most diffusive and established characters.”
61
e execução de seus planos de opressão. Amplie a esfera e você passa a
admitir a inserção de uma maior variedade de partidos e interesses; você
torna menos provável que a maioria do todo tenha um motivo comum
para invadir os direitos dos outros cidadãos.”
115
(MADISON, HAMILTON,
JAY, 1987: 127).
Desnecessário dizer que o principal companheiro de MADISON na
empreitada Constitucional, ALEXANDER HAMILTON, também compactuava com este
ponto de vista, como se faz perceber da leitura do Federalist Paper # 27:
“Uma facção turbulenta em um Estado pode, facilmente, se supor capaz
de rivalizar com os amigos do governo neste Estado; mas dificilmente
poderá se imaginar em posição de igualdade aos esforços conjuntos da
União.”
116
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 202).
Outra premissa do princípio em questão diz respeito à sua finalidade e a
sua implicância no tipo de representação a ser exercido no Legislativo. Filtering
principle e mandato imperativo é uma contradição de termos, na medida em que o
primeiro impõe a busca do bem comum geral de toda a nação. Esta é a finalidade de se
ter uma circunscrição territorial e base eleitoral extensa, a saber, evitar-se a imposição
de interesses locais ou regionais aos representantes. Nesse sentido, KRAMNICK:
“Implícita à noção federalista de filtragem, contudo, está a negação de
que o representante é um mero enviado ou servente dos seus
constituintes. Para MADISON, o representante haveria de ser escolhido
por sua habilidade superior em discernir o bem comum e não para ser um
mero emissário de sua cidade ou região, ou dos agricultores ou
mecânicos que o haviam elegido. (...). Os legisladores de M
ADISON, de
‘refinada e ampla visão pública’, buscando ‘o verdadeiro interesse de seu
país’ não pode estar sujeito à revisão anual [do mandato] promovida por
fazendeiros ou pequenos comerciantes locais”
117
(In. MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 46).
115
“The smaller the society, the fewer probably will be the distinct parties and interests composing it; the
fewer the distinct parties and interests, the more frequently will a majority be found of the same party;
and the smaller the number of individuals composing a majority, and the smaller the compass within
which they are placed, the more easily will they concert and execute their plans of oppression. Extend the
sphere and you take in a greater variety of parties and interests; you make it less probable that a majority
of the whole will have a common motive to invade the rights of other citizens.”.
116
“A turbulent faction in a State may easily suppose itself able to contend with the friends to the
government in that State; but it can hardly be so infatuated as to imagine itself a match for combined
efforts of the Union.”.
117
“Implicit in the Federalist notion of filtrarion, however, is a denial of the representative as mere
delegate or servant of his constituents. For Madison the representative was chosen for his superior ability
to discern the public good, not to be a mere spokesman for his town or region, or for the farmers or
mechanics who elected him. (…). Madison’s legislators of ‘refined and enlarged public views’ seeking
62
E, também, STORING:
“A representação não é suficiente, mas é o instrumento básico por meio
do qual o povo não apenas representa como transcende a si próprio.
Como FISHER AMES coloca, ‘a representação do povo é algo mais do que
o povo.’.”
118
(1981: 45).
Por meio deste instrumento, então, pretendia-se evitar que o legislativo
sucumbisse às eventuais pretensões tirânicas – centradas no interesse privado – que
haviam, em um passado recente, ensejado a aprovação de leis com conteúdos egoísticos
e que tanto amedrontaram grande parte dos americanos. É o caso dos atos emitindo
papel-moeda e abolindo o débito. Sobre este assunto traumático, MADISON, uma vez
mais no Federalist Papers # 10:
“Uma febre por papel-moeda, pela abolição das dívidas, por uma divisão
igual de propriedade, ou por qualquer outro projeto impróprio ou
perverso, será menos apto de provir de todo o corpo da União do que de
um membro particular desta, da mesma forma que tal mazela é mais fácil
de afetar uma cidade ou um distrito em particular do que todo o Estado[-
membro].”
119
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 128).
A segunda forma de aplicação do filtering principle se produz no meio
institucional do governo. A filtragem seria utilizada quando da escolha dos membros do
Senado e da Presidência da República. Antes, contudo, de se estudar a utilização do
princípio da filtragem nestes dois órgãos, cumpre destacar o porquê destes exigirem
uma aplicação distinta de filtragem, que não a anteriormente discorrida.
No que se refere ao Senado, a concepção de uma segunda câmara, no
Poder Legislativo, se fazia necessária tendo em vista o fato de, segundo MADISON
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 320), no Federalist Paper # 51, em um governo
republicano, a autoridade legislativa necessariamente predominar. Com isto, para se
remediar este fato – principalmente a presença maciça das camadas mais simples da
‘the true interest of their country’ ought not to be subject to yearly review by local farmers and small-
town tradesmen.”.
118
“Representation is not sufficient, but it is the basic device through which the people not merely re-
presents but transcends itself. As Fisher Ames put it, ‘the representation of the people is something more
than the people.”
119
“A rage for paper money, for an abolition of debts, for an equal division of property, or for any other
improper or wicked project, will be less apt to pervade the whole body of the Union than a particular
63
população na House of Representatives, buscou-se dividir a legislatura em duas casas,
sendo que, em cada uma destas, um diferente modo de eleição seria utilizado.
Mais do que isso. A natureza dos membros de cada uma das casas seria
amplamente diferente. A House of Representatives seria o locus propício para o cidadão
comum. Já o Senado atuaria como receptáculo dos membros mais ilustres da sociedade.
Seria, enfim, a casa da aristocracia e que serviria para amenizar as intemperanças da
primeira casa, dita popular.
O Senado tinha como exemplo a upper house inglesa, a House of Lords.
Contudo, cumpre ressaltar que a natureza da aristocracia em questão seria amplamente
diferente. Enquanto a House of Lords era composta por aristocratas artificiais, que
possuíam tal epíteto apenas em razão de títulos e posses – conforme visto, o Senado
norte-americano, por sua vez, seria composto pela dita aristocracia natural, pautada
pelo mérito, pela sabedoria, pela temperança. Nesse sentido, tem-se WOOD:
“Tais senados, de forma alguma, seriam [compostos por] uma
aristocracia [tipicamente] européia, uma nobreza hereditária
artificialmente protegida pela lei e distinta por títulos. A aristocracia
americana seria uma natural, feita por homens de comprovado mérito,
provenientes, temporariamente, da comunidade. Certamente, eles não
seriam nenhuma House of Lords.”
120
(1972: 237).
Interessante notar, ainda, que a concepção do Senado, enquanto
receptáculo dos representantes mais virtuosos da sociedade não foi uma criação da
Constituição Federal de 1787. Esta noção já estava presente no período da ‘politics of
liberty’:
“Os Revolucionários estavam, geralmente, confiantes de que existia na
comunidade uma ‘parcela Senatorial’, uma elite socialmente natural e
intelectual que, agora que a Coroa tinha partido, encontraria seus devidos
lugares nas upper houses das legislaturas. Estas novas casas secundárias
da legislatura, como sua designação comum de ‘senado’ indicava, seriam
o repositório da clássica honra e sabedoria republicana, em que o talento
superior e a devoção ao bem-comum seriam reconhecidos e premiados
pelo povo. (...). Como notou o jovem A
LEXANDER HAMILTON em suas
member of it, in the same proportion as such a malady is more likely to taint a particular country or
district than an entire State.”.
120
“Such senates were by no means to be a European aristocracy, a hereditary nobility artificially
protected by law and distinguished by titles. The American aristocracy would be a natural one, made up
of men of proven merit, arising temporarily out of the community. Certainly they were to constitute no
House of Lords.”.
64
notas acerca da obra Vidas Paralelas [Lives] de PLUTARCO, ‘o senado era
para a commonwealth o que lastro é para o navio.’.”
121
(WOOD, 1972:
209).
A Constituição de Virgínia deste período, por exemplo, já trazia a
previsão do Senado. E, inclusive, previsões quanto à idade dos seus membros, o tempo
de mandato e seu tamanho, se afiguravam como possíveis indicadores da natureza
distinta desta casa em relação à House of Representatives:
“Havia duas naturezas não-econômicas entre a casa baixa e a superior: os
membros da última tinham que ter, ao menos, vinte e cinco anos de
idade, e o tempo do mandato era de quatro anos, com a previsão de que
um quarto dos seus membros fossem eleitos a cada ano. O tempo do
mandato da casa baixa era de um ano, e ainda que não fosse
especificado, a idade usual da maioria, 21, parece ter sido utilizada
[como critério] tanto para o eleitor como para o representante. Idade,
tempo de mandato e tamanho limitado, então, aparecem como meios
possíveis de se fazer uma casa mais aristocrática do que a outra.”
122
(KENYON, In. PENNOCK, CHAPMAN, 1979: 94; ênfase acrescentada).
Sem embargo, as previsões do Senado, nas Constituições dos Estados,
divergiam da elaborada, agora, pelos membros da Convenção de Filadélfia, conforme
bem lembra KRAMNICK:
“Grande parte dos americanos ainda estava convencida da necessidade
de uma câmara que representasse talento superior e sabedoria, em que os
mais instruídos e contemplativos da sociedade poderiam revisar as ações
mais impulsivas do povo. Nesse sentido, muitos americanos eram como
T
HOMAS JEFFERSON em sua crença tanto pela integridade e pelo bom
senso do homem comum e na existência de uma ‘aristocracia natural’,
como ele a chamava, enquanto oposta à aristocracia artificial, cuja
oposição retórica havia atacado. A última era uma aristocracia criada
pela Coroa, que recebia suas distinções e títulos por conexões e
121
“The Revolutionaries were generally confident that there existed in the community a ‘Senatorial part’,
a natural social and intellectual elite who, now that the Crown was gone, would find their rightful place in
the upper houses of the legislatures. These new second branches of the legislature, as their common
designation of ‘senate’ indicated, were to be the repositories of classical republican honor and wisdom,
where superior talent and devotion to the common good would be recognized and rewarded by the people.
(…). As young Alexander Hamilton noted in his jottings from Plutarch’s Lives, ‘The senate was to the
commonwealth what ballast is to a ship.”.
122
“There were two noneconomic differences between the lower and upper houses: members of the latter
had to be at least twenty-five years old, and the term of office was four years, with provision for one-
fourth of the membership to be elected each year. The term of the lower house was one year, and though
not specified, the usual age of majority, twenty-one, seems to have been assumed for both electors and
representatives. Age, tenure, and limited size thus appear as possible means for making one house more
aristocratic than other.”
65
influência, e não pelo mérito ou talento. Ao mesmo tempo, as
constituições estaduais ainda faziam dos senados distintamente
secundários e consultivos do principal corpo legislativo, as casas baixas.
Igualmente significante é o fato de que, virtualmente, todos os senados
eram eleitos pelo povo, em vez de [seus membros] serem indicados por
um corpo intermediário. Na ‘politics of liberty’, o próprio povo se
assumia capaz de escolher os melhores dentre eles.
123
(In. MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 21; ênfase acrescentada).
Portanto, havia duas diferenças marcantes entre o Senado previsto e
implementado no segundo período do constitucionalismo revolucionário norte-
americano e o contemplado, agora, pela Constituição Federal e pelos Federalistas. A
primeira diferença diz respeito à função do Senado. Se, no primeiro período acima, o
Senado possuía, meramente, uma função secundária, em face da lower house, atuando
mais como um órgão consultivo para este; agora, o Senado teria uma função
fundamental para o exercício do Poder Legislativo. Seria o freio da primeira casa da
legislatura, como bem coloca KRAMNICK:
“Na Convenção Constitucional, MADISON descreveu o Senado no novo
governo nacional como o corpo que agiria com ‘mais temperança, mais
sistematicidade e mais conhecimento que a casa mais popular.”
124
(In.
MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 43).
Mais do que isso, atuaria como um verdadeiro freio aos eventuais
desmandos do populacho e do executivo, na hipótese de este último se amancebar com
o primeiro (Cf. K
RAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 50).
A segunda diferença reside na forma de eleição dos membros desta Casa.
Conforme foi visto, na concepção da ‘politics of liberty’, os seus membros eram eleitos
pelo próprio povo. No terceiro e derradeiro período, conforme apontou K
RAMNICK,
havia um corpo intermediário, responsável pela eleição. Tal corpo, nos termos do artigo
123
“Most Americans were still convinced of the need for a chamber that would represent superior talent
and wisdom, where the more contemplative and learned in the community could revise the more hasty
actions of the people. In this sense many Americans were like Thomas Jefferson in his belief both in the
integrity and good sense of the common men, and in the existence of a ‘natural aristocracy’, as he called
it, as opposed to the artificial aristocracy which opposition rhetoric had attacked. The latter was a crown-
created aristocracy, which received its hobs and positions from connections and influence, not from merit
and talent. All the same, the state constitutions still made the senates distinctly secondary and advisory to
the principal legislative body, the lower houses. Equally significant is that virtually all the senates were
elected by the people at large, rather than appointed by an intermediary body. In the ‘politics of liberty’
the people themselves were assumed capable of picking the best among them.”.
66
1, seção 3, cláusula 1, da Constituição Federal de 1787, seria composto pelas
legislaturas estaduais:
“O Senado dos Estados Unidos deverá ser composto por dois Senadores
de cada Estado, escolhidos pela legislatura respectiva, por seis anos; e
cada Senador deverá ter um voto.”
125
(ênfase acrescentada).
É exatamente esta previsão de um corpo intermediário, de uma eleição
indireta, pelo povo, de seu representante nesta Casa, que se identifica a segunda forma
de aplicação do princípio de filtragem.
Pretende-se, por meio desta previsão, estabelecer uma gradação de
virtude e capacidade eletiva. O povo estaria na base desta pirâmide meritocrática; é
dizer, seria reputado o menos capaz para escolher as pessoas de maior destaque
intelectual e social. Nesse sentido, ficaria a população responsável, apenas, por eleger,
os representantes que comporiam as legislaturas estaduais
126
*.
Quanto a estas legislaturas, a premissa da qual partiam os Fathers era de
que os seus membros – em menor número de que os seus eleitores – seriam mais aptos,
melhor preparados, para identificar e escolher os membros mais distintos da sociedade,
que seriam responsáveis por compor o Senado.
O gérmen inicial deste pensamento encontra-se em MADISON, mais uma
vez no Federalist Paper # 10:
“As duas grandes diferenças entre a democracia e a república são:
primeiro, a delegação do governo, na última, em um pequeno número de
cidadãos eleitos pelo resto; em segundo lugar, pelo maior número de
cidadãos e o maior âmbito do país sobre o qual a última pode abarcar.
“O efeito da primeira diferença é, em um lado, refinar e aumentar as
visões públicas conduzindo-as através de um meio [medium] de um
corpo escolhido de cidadãos, cuja sabedoria possa melhor discernir o
verdadeiro interesse de seu país e cujo patriotismo e amor pela justiça
faça com que seja menos provável que se sacrifique este interesse por
considerações parciais ou temporárias. Sob esta regulação, pode muito
bem acontecer que a voz pública, pronunciada pelos representantes do
povo, seja mais consoante com o bem público do que seria se fosse
124
“At the Constitutional Convention, Madison described the Senate in the new national government as a
body that would act ‘with more coolness, with more system and with more wisdom than the popular
branch’.”.
125
“The Senate of the United States shall be composed of two Senators from each State, chosen by the
legislature thereof, for six years; and each Senator shall have one vote.”.
126
Ressalte-se, aqui, apenas, o fato de tal previsão quanto à forma de eleição dos membros do Senado ter
sido alterada pela Emenda Constitucional n. XVII. Agora, a eleição dos senadores é feita pelo próprio
povo.
67
pronunciada pelo próprio povo, reunido para este propósito”
127
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 126; ênfase acrescentada).
O funcionamento deste princípio é melhor explicado por HAMILTON
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 393), no Federalist Paper # 68, acerca da eleição do
Presidente. Neste, ele defende que um menor número de pessoas, eleitas por seus co-
cidadãos, da massa geral, seria mais capaz de possuir as melhores informações e
discernimento necessário para analisar quem seria o mais apto para exercer tal função.
Este mesmo ponto de vista é, também, esposado por HAMILTON, no Federalist Paper #
64, em que se trata sobre a prerrogativa do Senado e do Presidente da República em sua
competência para dispor sobre tratados:
“Como as assembléias escolhidas para eleger o Presidente, assim como
as legislaturas Estaduais que escolhem os senadores, serão, em geral,
compostas pelos mais iluminados e respeitáveis cidadãos, há razão para
presumir que sua atenção e votos serão dirigidos àqueles homens que se
tornaram os mais reconhecidos por suas habilidades e virtudes, e em
quem as pessoas reconheceram motivos para confiar. A Constituição
manifesta atenção particular a este objeto. (...) Ao excluir homens com
menos de trinta e cinco anos do primeiro cargo [presidencial], e aqueles
como menos de trinta anos do segundo [Senado], ela restringe os
eleitores aos homens que o povo já teve tempo para formar julgamento, e
em relação aos quais o povo não estará tão sujeito a ser enganado como
ocorre com aquelas brilhantes aparições de genialidade e patriotismo,
semelhantes a meteoros efêmeros, que costumam confundir e
impressionar. (...) A inferência que se resulta destas considerações é que
o Presidente e senadores assim escolhidos sempre provirão daquelas
fileiras que melhor entendem nosso interesse nacional, quer seja
considerado em relação aos diversos Estados ou às nações estrangeiras,
sendo os melhores para promover estes interesses, e cuja reputação e
integridade inspira e merece confiança.”
128
(MADISON, HAMILTON, JAY,
1987: 376; ênfase acrescentada).
127
“The two great points of difference between a democracy and a republic are: first, the delegation of the
government, in the latter, to a small number of citizens elected by the rest; secondly, the greater number
of citizens and greater sphere of country over which the latter may be extended.
“The effect of the first difference is, on the one hand, to refine and enlarge the public views by passing
them through the medium of a chosen body of citizens, whose wisdom may best discern the true interest
of their country and whose patriotism and love of justice will be least likely to sacrifice it to temporary or
partial considerations. Under such a regulation it may well happen that the public voice, pronounced by
the representatives of the people, will be more consonant to the public good than if pronounced by the
people themselves, convened for the purpose.”.
128
“As the select assemblies for choosing the President, as well as the State legislatures who appoint the
senators, will in general be composed of the most enlightened and respectable citizens, there is reason to
presume that their attention and their votes will be directed to those men only who have become the most
distinguished by their abilities and virtue, and in whom the people perceive just grounds for confidence.
The Constitution manifests very particular attention to this object. (…). By excluding men under thirty-
five from the first office [President], and those under thirty from the second [Senate], it confines the
68
Quanto à figura do Presidente da República, pode-se perceber, do trecho
acima, que sua indicação se dá, igualmente, por meio do princípio da filtragem. A única
diferença reside no corpo intermediário que será responsável por sua eleição. Enquanto
os membros do Senado são (eram, a bem da verdade) eleitos pelas legislaturas
estaduais, o Presidente será eleito por um grupo de eleitores – colégio eleitoral –
escolhidos da forma que cada Estado preferir. Tal previsão encontra-se no Artigo II,
seção I, cláusula 2, da Constituição Norte-Americana:
“Cada Estado deverá apontar, da Forma que a Legislatura respectiva
dispor, um Número de Eleitores, correspondentes ao Número total de
Senadores e Representantes ao qual cada Estado tenha direito no
Congresso: mas nenhum Senador ou Representante, ou Pessoa exercendo
cargo de confiança ou recebendo vencimentos dos Estados Unidos,
poderá ser apontado como Eleitor.”
129
.
Não é preciso dizer que a figura do Presidente da República também
haveria de se pautar em critérios meritocráticos. Afinal, a busca dos mais aptos é a
premissa inicial do filtering principle. Ressalte-se, ainda, que, para os Federalistas, o
Presidente da República, mais do que ninguém, haveria de ser o membro mais capaz da
sociedade, tendo em vista o papel central que este exerceria na concepção política norte-
americana. Muito embora este assunto não seja a preocupação central do presente
estudo, a figura do Presidente foi escolhida como o principal instrumento de controle da
tirania do parlamento – ao menos na concepção Madisoniana:
“Os livros que JEFFERSON enviou a ele [MADISON] conduziram-no,
inexoravelmente, à conclusão de que a verdadeira liberdade requeria, na
América, um forte executivo e uma legislatura enfraquecida, sob o risco
electors to men of whom the people have had time to form a judgment, and with respect to whom they
will not be liable to be deceived by those brilliant appearances of genius and patriotism which, like
transient meteors, sometimes mislead as well as dazzle. (…). The inference which naturally results from
these considerations is this, that the President and senators so chosen will always be of the number of
those who best understand our national interests, whether considered in relation to the several States or to
foreign nations, who are best able to promote those interests, and whose reputation for integrity inspires
and merits confidence.”.
129
“Each States hall appoint, in such Manner as the Legislature thereof may direct, a Number of Electors,
equal to the whole Number of Senators and Representatives to which the State may be entitled in the
Congress: but no Senator or Representative, or Person holding an Office of Trust or Profit under the
United States, shall be appointed an Elector.”
69
de todo o poder e, então, a tirania quedar na mão do legislativo.”
130
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 34-35).
A sua importância residia, exatamente, na possibilidade de se afigurar
como o freio estabilizador do poder político, como um contrapeso ao legislativo e às
suas leis caóticas. Sua composição unitária lhe concederia a energia necessária para
manter a estabilidade política (Cf. MADISON, no Federalist Paper # 37, In. MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 243-244).
Sinteticamente, então, a importância destas duas instituições do poder
público, na medida em que se afiguravam como potenciais limitadores dos eventuais
desmandos da House of Representatives, fez com que se utilizasse um segundo critério
de eleição de seus membros: uma eleição popular indireta.
Contudo, frise-se que a House of Representatives também não estava
imune ao princípio de filtragem. Nesta Casa, a forma de aplicação deste princípio,
apenas, era diferente. Haveria eleição direta, certamente. Sem embargo, tal eleição se
produziria em uma ampla e extensa base eleitoral, de forma a se evitar o facciosismo e,
concomitantemente, promover a escolha dos cidadãos mais aptos.
Um bom resumo do princípio encontra-se no seguinte excerto de
HAMILTON, no Federalist Paper # 27:
“Várias razões foram sugeridas no curso destes papéis [federalist papers]
para produzir uma probabilidade de que o governo geral [em termos
territoriais] será melhor administrado do que os governos particulares
[concepção confederativa]: a principal destas é que a extensão das
esferas de eleição apresentará uma maior opção, maior latitude de
escolha, ao povo; que através das legislaturas estaduais – que são corpos
escolhidos de homens que deverão eleger os membros do Senado –,
haverá razão para se esperar que a composição deste ramo [do Senado]
será, geralmente, [realizada] com maior cuidado e julgamento; que estas
circunstâncias evocam maior conhecimento e informação nos Conselhos
Nacionais. E que em razão da extensão do país do qual os eleitos serão
provenientes, tais serão menos aptos de serem corrompidos pelo espírito
da facção, e mais afastados [se encontrarão] daquelas predisposições
maléficas ocasionais, ou preconceitos e predisposições ocasionais, que
em sociedades menores freqüentemente contaminam as deliberações
públicas, causam injustiça e opressão sobre uma parte da comunidade, e
estabelecem esquemas que, se em um determinado satisfazem uma
inclinação ou desejo momentâneo, findam por terminar em aflição
130
“The books Jefferson had sent him [Madison] led inexorably to the conclusion that true liberty
required in America a strengthened magistrate and a weakened legislature, lest all power and thus tyranny
be in legislative hands.”.
70
generalizada, insatisfação e desgosto.”
131
(MADISON, HAMILTON, JAY,
1987: 202).
O resultado da aplicação, ou tentativa de aplicação, deste princípio torna
cristalina a concepção política idealizada pelos membros da Convenção de Filadélfia.
Ao contrário do que havia ocorrido na Independência, pretendia-se, agora, afastar o
homem comum da maioria dos cargos políticos. A república idealizada exigia a
participação de pessoas capacitadas, da aristocracia natural, de homens dotados de
sabedoria e virtude, que atuariam com temperança quando da tomada de deliberações.
Não é necessário ir muito longe para se concluir que este posicionamento
suscitou forte oposição. Alguns criticaram, apenas, o princípio da filtragem, sob o
argumento de que a representação não há que se basear em critérios meritocráticos:
“Refutando, diretamente, o modelo de filtragem, [MELANCTON] SMITH
insistia que o sistema representativo não há de buscar ‘talentos
brilhantes’, mas ‘uma igualdade, tais como de residência e interesses,
entre o representante e seu constituinte’. (...) O homem comum terá
pouca chance de eleição, uma vez que será difícil para alguém
‘desprovido de talentos militares, populares, civis ou legais’ ganhar.”
132
(KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 44).
Desenvolvia este mesmo argumento o “Federal Farmer”
133
* RICHARD
HENRY LEE:
“‘É enganar o povo dizer-lhes que são eleitores e que podem escolher
seus legisladores, se eles não podem, de acordo com a natureza das
131
“Various reasons have been suggested in the course of those papers to induce a probability that the
general government will be better administered than the particular governments: the principal of which
are that the extension of the spheres of election will present a greater option, or latitude of choice, to the
people; that through the medium of the State legislatures – who are select bodies of men and who are to
appoint the members of the national Senate – there is a reason to expect that this branch will generally be
composed with peculiar care and judgment; that these circumstances promise greater knowledge and
more comprehensive information in the national councils. And that on account of the extent of the
country from which those, to whose direction they will be committed, will be drawn, they will be less apt
to be tainted by the spirit of faction, and more out of the reach of those occasional ill humors, or
temporary prejudice and propensities, which in smaller societies frequently contaminate the public
deliberations, beget injustice and oppression of a part of the community, and engender schemes which,
though they gratify a momentary inclination or desire, terminate in general distress, dissatisfaction, and
disgust.”.
132
“Directly refuting the filtration model, Smith insisted that a representative system ought not to seek
‘brilliant talents’, but ‘a sameness, as to residence and interests, between the representative and his
constituents.’. (…) Common men would stand little chance of election, for it would be difficult for
anyone not of ‘conspicuous military, popular, civil or legal talents’ to win.”.
133
Federalistas e Antifederalistas utilizavam pseudônimos. HAMILTON, MADISON e JAY, por exemplo,
usavam Publius. RICHARD HENRY LEE, por sua vez, utilizava Federal Farmer.
71
coisas, escolher homens dentre eles e, genuinamente, semelhante a
eles.’.”
134
(Apud STORING, 1981: 17).
Outros, por sua vez, atacavam os defensores da Constituição com um
argumento mais genérico. Os mentores desta e a própria seriam, nitidamente,
antidemocráticos.
E, a bem da verdade, havia razão para críticas desta ordem. Os framers e
posteriores defensores da Constituição estavam dando continuidade a um desejo que
grande parte dos líderes revolucionários, quando da contenda com a Inglaterra, já
tinham em mente, uma concepção de elite governante
135
*.
Tanto era assim que os próprios defensores da Constituição,
posteriormente alcunhados como Federalistas, não conseguiam deixar de defender o
teor elitista de sua concepção política, mesmo sob forte oposição. Nesse sentido, WOOD:
“Ao final, eles [Federalistas] não podiam deixar de defender tais crenças
no elitismo que estava no centro de suas concepções políticas e de seu
programa constitucional. Todos os desejos dos Federalistas em
estabelecer uma forte e respeitável nação no mundo, todo o seu plano de
criar uma florescente economia mercantilista, em resumo, tudo o que os
Federalistas queriam de seu novo governo central, em última análise,
parecia se pautar no pré-requisito da manutenção de uma política
aristocrática.”
136
(1972: 492).
Contudo, mesmo com esta concepção aristocrática de política, a
ideologia política dos Federalistas não deixava de ter seu fundo democrático. Sobre o
assunto, WOOD:
134
“‘It is deceiving a people to tell them they are electors, and can chuse their legislators, if they cannot,
in the nature of things, chuse men from among themselves, and genuinely like themselves.’.”
135
Sobre o posicionamento dos líderes revolucionários, WOOD: “A maioria dos líderes revolucionários se
mantiveram próximos de sua concepção de uma elite governante, presumivelmente baseada no mérito,
mas ainda assim uma elite – a aristocracia natural presente no ideal do século dezoito de senhores
educados. Aqueles que ascendessem socialmente seriam aceitos por esta aristocracia natural apenas se
tivessem assimilado, por educação ou experiência, as atitudes, refinos e estilo [da aristocracia natural].”
(1972: 480).
“Most Revolutionary leaders clung tightly to the concept of a ruling elite, presumably based on merit, but
an elite nonetheless – a natural aristocracy embodied in the eighteenth-century ideal of an educated and
cultivated gentleman. The rising self-made man could be accepted into this natural aristocracy only if he
had assimilated through education or experience its attitudes, refinements, and style.”.
136
“But in the end they could not resist defending those beliefs in elitism that lay at the heart of their
conception of politics and of their constitutional program. All of the Federalists’ desires to establish a
strong and respectable nation in the world, all of their plans to create a flourishing commercial economy,
in short, all of what the Federalists wanted out of the new central government seemed in the final analysis
dependent upon the prerequisite maintenance of aristocratic politics.”.
72
“Os Federalistas, de forma alguma, haviam perdido a fé no povo, ao
menos na habilidade do povo em discernir quem seriam os seus
verdadeiros líderes. A bem da verdade, muitos da elite social da qual
consistia a liderança Federalista estavam confiantes na eleição popular,
caso o critério de representação pudesse ser ampliado o suficiente e o
proselitismo político domado, de forma que a escolha popular não fosse
perturbada por demagogos ambiciosos.”
137
(1972: 518).
Outro exemplo claro desta afirmativa é o posicionamento de JAMES
WINTHROP:
“JAMES WINTHROP, por exemplo, disse que ele preferia uma república
‘democrática’ a uma ‘aristocrática’, e definiam a última como uma em
que o Estado era governado por uma ordem de nobres. Sob este conceito,
um poderia defender a democracia e, também, acreditar no governo por
uma elite, desde que nobres não existissem.”
138
(MAIN, 1974: 169).
De qualquer forma, não se pode negar que, comparativamente ao período
da ‘politics of liberty’, a democracia federalista, que passava a ser instaurada como a
Constituição de 1787, era de natureza irrefutavelmente mais aristocrática que a
praticada entre 1776-1786, sendo possível, aqui, alcunhar a primeira como uma Teoria
Elitista da Democracia:
“Em resumo, eles [os Federalistas] oferecerem ao país uma teoria elitista
da democracia. Eles não se viram repudiando tanto a Revolução como o
governo popular, mas sim o salvando de seus excessos.”
139
(WOOD,
1972: 517).
Em termos finais, a teoria da aristocracia natural, para os Federalistas,
não era contraditória com a democracia. O que lhe era conflitante era a concepção de
aristocracia inglesa, a dita artificial, pautada em títulos.
2.3.2.2. A figura do Judiciário
137
“The Federalists had by no means lost faith in the people, at least in the people’s ability to discern their
true leaders. In fact many of the social elite who comprised the Federalist leadership were confident of
popular election if the constituency could be made broad enough, and crass electioneering be curbed, so
that the people’s choice would be undisturbed by ambitious demagogues.”.
138
“James Winthrop, for example, said that he preferred a ‘democratik’ to an ‘aristocratik’ republic, and
defined the latter as one in which the state was governed by an order of nobles. Under this concept one
could defend democracy and also believe in rule by the elite, as long no nobles existed.”.
139
“In short they offered the country an elitist theory of democracy. They did not see themselves as
repudiating either the Revolution or popular government, but saw themselves as saving both from their
excess.”.
73
Não é exagero dizer que o Judiciário deve sua importância hodierna à
Constituição norte-americana de 1787 (vide LABOULAYE, 1977: 13). É a partir deste
momento que o Judiciário se torna um órgão efetivamente autônomo. Em primeiro
lugar, porque passa a não estar jungido à legislatura; é dizer, o exercício da função
jurisdicional pela legislatura se torna, peremptoriamente, vedado. Na visão dos
membros da Convenção de Filadélfia, que certamente queriam diminuir o poder do
legislativo, os membros deste poder não seriam os mais hábeis para exercer esta função.
Ademais, como estariam sujeitos ao facciosismo, poderiam corromper, também, o
exercício jurisdicional. Este é o ponto de vista de HAMILTON, no Federalist Paper # 81:
“Os membros da legislatura raramente serão escolhidos com base nas
qualificações necessárias para a função de juiz; e, por conta disto, haverá
razão suficiente para se atentar para todas as conseqüências nefastas de
uma informação deficitária; então, em razão da natural propensão destes
corpos [legislatura] ao facciosismo partidário, não haverá menos razão
para se temer que a pestilenta facção possa envenenar as fontes da
Justiça.”
140
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 452).
Os membros do judiciário, ademais, seriam escolhidos de acordo com
certos critérios, tais como probidade e bom-caráter. De certa forma, esperava-se do
membro deste órgão uma qualidade semelhante à exigida para os membros do Senado e
da Presidência. Com isto, a crença, nos termos da Federalist Paper # 83, de autoria de
H
AMILTON, era a de que o Judiciário estaria menos apto a sucumbir à corrupção:
“Pode se supor, razoavelmente, que haveria menor dificuldade em
corromper os membros do júri, restirados da massa pública, do que em
corromper homens escolhidos pelo governo por sua probidade e bom-
caráter.”
141
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1968: 466).
Toda esta idealização do judiciário e de seus membros foi importante
para o processo de atribuição de uma nova função a este, a saber, a de sua atuação como
140
“The members of the legislature will rarely be chosen with a view to those qualifications which fit men
for the stations of judges; and as, on this account, there will be great reason to apprehend all the ill
consequences of defective information, so, on account of the natural propensity of such bodies to party
divisions, there will be no less reason to fear that the pestilential breach of faction may poison the
fountains of justice.”.
141
“it may fairly be supposed that there would be less difficulty in gaining some of the jurors
promiscuously taken from the public mass, than in gaining men who had been chosen by the government
for their probity and good character.”.
74
guardião da Constituição, ou se preferir, usando os termos de HAMILTON, no Federalist
Papers # 78, a de intermediário entre o Poder Legislativo e o Povo:
“É mais racional supor que as cortes foram designadas a ser um corpo
intermediário entre o povo e a legislatura, de forma a, dentre outras
tarefas, manter a última dentro dos limites de sua autoridade. A
interpretação das leis é a peculiar e apropriada atribuição das cortes. Uma
constituição é, de fato, e deve ser considerada pelos juízes, como a lei
fundamental. Então cabe a eles determinar o seu sentido [da
Constituição], bem como o sentido de qualquer ato proveniente do corpo
legislativo. Se, por acaso, houver uma variação irreconciliável entre os
dois, aquele que tiver a obrigação e validade superior há, é claro, de ser
preferido; ou, em outras palavras, a Constituição há de ser preferida à lei,
a intenção do povo à intenção de seus agentes.”
142
(MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 439).
Frise-se, ainda, que não foi, apenas, a idealização de seus membros que
atraiu esta função, mas também o fato de este poder ser reputado o mais fraco entre os
existentes. Era o the least dangerous branch, expressão que se tornou conhecida no
FEDERALIST PAPER # 78, de autoria de HAMILTON.
“Qualquer um que considere atentamente os diferentes departamentos do
poder deve perceber que, em um governo em que tais são separados um
do outro, o judiciário, tendo em vista a natureza de suas funções, será
sempre o menos perigoso aos direitos políticos da Constituição;
porquanto ele será o menos capacitado para perturbar ou ferir tais
direitos. O executivo não apenas dispensa as honras, mas detém a espada
da comunidade. O legislativo não apenas comanda o bolso da nação mas
elabora as regras pelas quais as obrigações e os direitos hão de ser
regulados. O judiciário, ao contrário, não tem qualquer influência sobre a
espada ou [sobre]o bolso; nenhuma direção sobre a força e as riquezas da
sociedade, e não pode tomar nenhuma resolução ativa, qualquer que seja.
Pode ser dito, então, que [o judiciário] não tem nem força nem vontade,
mas apenas julgamento; e em última instância há de depender da ajuda
do braço do executivo mesmo para [dar] eficácia aos seus
julgamentos.”
143
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 437).
142
“It is far more rational to suppose that the courts were designed to be an intermediate body between
the people and the legislature in order, among other things, to keep the latter within the limits assigned to
their authority. The interpretation of the laws is the proper and peculiar province of the courts. A
constitution is, in fact, and must be regarded by the judges as, a fundamental law. It therefore belongs to
them to ascertain its meaning as well as the meaning of any particular act proceeding from the legislative
body. If there should happen to be an irreconcilable variance between the two, that which has the superior
obligation and validity ought, of course, to be preferred; or, in other words, the Constitution ought to be
preferred to the statute, the intention of the people to the intention of their agents.”.
143
“Whoever attentively considers the different departments of power must perceive that, in a
government in which they are separated from each other, the judiciary, from the nature of its functions,
will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution; because it will be least in a
75
Acalentadora que fosse esta afirmação de HAMILTON, tal não retirava a
sua importância no exercício do controle do legislativo. Era, em síntese, o terceiro ramo
a exercer esta função. O primeiro controle seria exercido dentro do próprio legislativo,
pelo Senado. O segundo, pelo Presidente, pelo seu poder de veto. O terceiro, pelo
judiciário, através do controle de constitucionalidade ou judicial review. Caberia ao
judiciário, em última instância, declarar inconstitucional quaisquer leis ex post facto ou
que intentassem reistaurar o tipo normativo usual do período da ‘politics of liberty’ (Cf.
H
AMILTON, no Federalist Paper # 78, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1968: 438).
É importante, ressaltar, apenas, que o Judiciário, neste período, não
apresentava a mesma relevância institucional que possui hodiernamente
144
*. De certa
forma, a ênfase maior dos Federalistas se dava em relação ao próprio Poder Legislativo,
na figura do Senado e da aplicação do filtering principle na House of Representatives, e
ao Poder Executivo, na figura do Presidente. Pode muito bem comprovar este sentir o
simples fato de, nos Federalist Papers, haver mais de 15 artigos para o Legislativo, 11
para o Presidente e, apenas, 6 arigos para o Judiciário
145
*.
Serve, ainda, como apoio a esta conclusão o fato de os Antifederalistas
terem destinado pouca atenção a este instituto, conforme se verá no próximo capítulo.
capacity to annoy or injure them. The executive not only dispenses the honors but holds the sword of the
community. The legislature not only commands the purse but prescribes the rules by which the duties and
rights of every citizen are to be regulated. The judiciary, on the contrary, has no influence over either the
sword or the purse; no direction either of the strength or of the wealth of the society, and can take no
active resolution whatever. It may truly be said to have neither force or will but merely judgment; and
must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for the efficacy of its judgment.”.
144
É que, a bem da verdade, o ato de julgar, pelo judiciário, era visto, ainda, da forma montesquiana, é
dizer, como a mera boca da lei. Não por outro motivo é que H
AMILTON, no Federalist Paper # 78, já
ressaltava que “as cortes devem declarar o sentido da lei” (MADISON, HAMILTON, JAY, 1968: 440).
“The courts must declare the sense of the law”.
145
Em sentido oposto, BEARD:
“A chave de toda a estrutura está, de fato, no sistema providenciado para o controle judicial – a mais
peculiar contribuição à ciência do governo que foi realizada pelo gênio político americano. É dito por
alguns escritores que não era a intenção dos framers da Constituição a realização do controle de
constitucionalidade das leis aprovadas pelo Congresso; mas o ônus da prova está no outro lado, é
incumbência destes que fazem esta afirmação trazer evidências positivas que comprovem que o controle
judicial não era parte do programa de Filadélfia.” (1968: 163).
“The keystone of the whole structure is, in fact, the system provided for judicial control – the most unique
contribution to the science of government which has been made by American political genius. It is
claimed by some recent writers that it was not the intention of the framers of the Constitution to confer
upon the constitutionality of statutes enacted by Congress; but in view of the evidence on the other side, it
is incumbent upon those who make this assertion to bring forward positive evidence to the effect that
judicial control was not a part of the Philadelphia programme.”.
C
ORWIN também concede grande importância ao judiciário, na medida em que afirma que o judicial
review foi “a forma que a democracia americana encontrou para cobrir a sua aposta” (1964: ix).
“American democracy’s way of covering its bet.”.
76
BIBLIOGRAFIA DA SEÇÃO
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WOOD, Gordon S. The Creation of the American Republic, 1776-1787. New York: The
Norton Library, 1972.
77
CAPÍTULO III
CRÍTICAS À CONSTITUIÇÃO DE 1787:
OS ANTIFEDERALISTAS
1. O “momento mágico”: a santificação dos legisladores iniciais
Historicamente, imaginava-se que um eventual documento legal haveria
de ter, como origem, uma pessoa ou grupo reduzido de pessoas
146
*, cuja característica
marcante seria sua maior envergadura moral e intelectual, em face das demais. Como
exemplos clássicos, têm-se: LICURGO, em Esparta, o qual, na elaboração do corpo legal
responsável por adaptar e conceder a esta Cidade-Estado características peculiares e que
lhe tornariam um paradigma histórico, teria sido inspirado diretamente pelo Deus
Apolo; e SÓLON, em Atenas.
Um corpo legal, nesta concepção, seria, em regra, fruto de uma
combinação entre ocasião e pessoas moral e intelectualmente qualificadas. Seria, enfim,
resultado de um ‘momento mágico’, em que fortuna e virtude se encontrariam. No que
se refere à ocasião, tal seria diversa. Poderia ser uma sociedade decadente, mais
maleável a mudanças sociais radicais; uma sociedade ainda em formação, sem os vícios
da demais (esta ocasião, segundo TOM PAINE, estava presente na sociedade norte-
americana e foi por ele utilizada para motivar o movimento de independência norte-
americano); seria, inclusive, a existência de diversas pessoas abrilhantadas em um
mesmo momento histórico
147
*.
A Constituição de 1787 seria fruto, exatamente, deste momento mágico.
Pessoas abrilhantadas reunidas: MADISON, HAMILTON, JAY, WASHINGTON. Condições
propícias para mudanças: a ‘politics of liberty’ e sua corrupção social.
146
A bem da verdade, em regra, normas eram fruto de uma única pessoa. Sobre o assunto, KENYON
acerca da Constituição de Virgínia, anterior à Constituição Americana de 1787:
“A segunda característica a se notar é que a elaboração desta constituição por um corpo coletivo quebrou
a tradição venerável de que um Estado ou uma mudança radical de suas leis somente poderia ser posta em
prática por meio de um único indivíduo – um L
ICURGO, um SÓLON, um príncipe Maquiavélico ou um
legislador Rousseauninano.” (In. P
ENNOCK, CHAPMAN, 1979: 96).
“The second characteristic to note is that the framing of this constitution by a collective body broke the
venerable tradition that the founding of a state or a radical change in its laws could be effected only by a
single individual – a Lycurgus, a Solon, a Machiavellian prince, or a Rousseauian legislator.”.
147
Nesse sentido, vide a obra lúdica de MCDONALD, Enough Wise Men: The Story of Our Constitution.
78
A característica especial dos membros da Convenção de Filadélfia, por
exemplo, foi mencionada por JEFFERSON, segundo KRAMNICK:
“THOMAS JEFFERSON não estava na Convenção, mas, posteriormente, ele
se referiu ao grupo na Filadélfia como ‘uma assembléia de semi-deuses’.
Ele descreveu a própria Constituição como ‘inquestionavelmente a mais
inteligente jamais apresentada pelo homem.’.”
148
(In. MADISON,
HAMILTON, JAY, 1987: 13).
Interessante apontar, ainda, que esta concepção benéfica dos membros da
Convenção de Filadélfia não é fruto de uma leitura romântica realizada por historiadores
ou estudiosos deste período. Tampouco é monopólio dos membros externos a esta
Convenção, como é o caso de THOMAS JEFFERSON, que, na data da elaboração da
Constituição, estava em Paris. Os próprios framers se vislumbravam como legisladores
dotados de maior luminosidade, como se faz notar do Federalist Paper # 38, de autoria
de MADISON:
“Não é irrelevante o fato de que todo exemplo retratado pela história
antiga em que um governo foi estabelecido com deliberação e
consentimento, a tarefa de elaboração deste não ter sido delegado a uma
assembléia de homens, mas tenha sido realizado por um cidadão
individual de sabedoria pré-eminente e de comprovada integridade.”
149
(MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 247).
Esta idealização dos autores de um determinado corpo legal, e, no
presente caso, da Constituição, apresenta um porquê assaz relevante. A identificação de
uma maior capacidade moral e intelectual nos seus autores faz com que o seu próprio
produto também detenha estas mesmas características. Com isto, concede-se a este
último maior legitimidade ou autoridade política, em face daqueles que se encontram
sujeitos ao seu âmbito de incidência. Simplificando, cria-se um sentimento de
deferência e respeito intelectual na sociedade, a qual evitará descumprir as normas, sob
o argumento de que ela própria não poderia elaborar normas melhores.
148
“Thomas Jefferson was not at the Convention, but he later referred to the group in Philadelphia as ‘an
assembly of demigods’. He described the Constitution itself as ‘unquestionably the wisest ever yet
presented to man’.”.
149
“It is not a little remarkable that in every case reported by ancient history in which government has
been established with deliberation and consent, the task of framing it has not been committed to an
assembly of men, but has been performed by some individual citizen of pre-eminent wisdom and
approved integrity.”.
79
Esta era, exatamente, a sensação que cercava a Constituição de 1787,
conforme narra KRAMNICK:
“Parece haver um consenso de que a Constituição foi o produto
inspirado de um congresso Olimpiano de sábias e virtuosas pessoas, de
tipos [de pessoas] que a história nunca havia visto e dificilmente veria
uma vez mais. Pode-se concluir, então, que todos os americanos, em
1787, vendo a Constituição pelo que ela era, o instrumento mais
brilhante de governo jamais criado, devem ter, encarecida e
respeitosamente, aceitado-a, agradecendo pelo presente divino, ainda
que concedido em forma humana em um verão quente e úmido da
Filadélfia.”.
150
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 14; ênfase
acrescentada).
Esta característica das normas, especialmente constitucionais, enquanto
responsáveis por lhes conceder legitimidade é explorada por J
OSEPH RAZ:
“Os autores de uma constituição, especialmente os autores da primeira
constituição de um país, as vezes se tornam símbolos políticos, cujo
respeito que causam nas pessoas unifica um país e faz com que sua
sabedoria seja utilizada como moeda comum do argumento político.”
151
*
(In. ALEXANDER (ed.), 2005: 169).
Desnecessário dizer que, até hoje, os Fathers possuem relevância no
debate constitucional norte-americano, vide a corrente exegética originalista ou
interpretivista, a qual busca interpretar as normas constitucionais de acordo com as
150
“There seems to be a consensus that the Constitution was the inspired product of an Olympian congress
of wise and virtuous men, the likes of which history had never seen before and would seldom see again. It
should follow , then, that all Americans in 1787, seeing the Constitution for what it was, much the most
brilliant instrument of government ever devised, must have thankfully and dutifully accepted it, grateful
for the divine gift, albeit given human shape in a steamy hot Philadelphia summer.”
151
“The authors of a constitution, especially the authors of a country’s first constitution, sometimes
become political symbols, people respect for whom unites a country and appeal to whose wisdom
becomes the common currency of political argument.”.
Aproveitando-se o ensejo, muito embora não seja o objeto desta dissertação, frise-se que, para o autor, a
legitimidade de uma norma provém de três elementos: expertise moral, coordenação (com as
necessidades sociais) e valor simbólico (R
AZ, In. ALEXANDER (ed.), 2005: 167). O primeiro e o último
elemento estão relacionados aos autores da norma legal. Já o elemento intermediário é a correspondência
às necessidades sociais. É este segundo elemento que faz com que o autor rechace a autoridade dos
elaboradores, enquanto elementos de legitimidade, de corpos legais de longa duração, como é o caso da
própria Constituição de 1787:
“Segue que mesmo que novas constituições possam derivar sua autoridade da autoridade dos seus
elaboradores, constituições antigas, se moralmente válidas, devem retirar sua autoridade de outras fontes.
Enquanto na nova lei a autoridade da lei decorre da autoridade de seus elaboradores, a autoridade da
antiga lei deve se pautar em outras fontes.” (In. A
LEXANDER (ed.), 2005: 169).
“It follows that even if new constitutions may derive their authority from the authority of their makers,
old constitutions, if morally valid at all, must derive their authority from other sources. While with new
80
intenções presentes na Convenção de Filadélfia, e que encontrou como maior expoente
o Justice da Suprema Corte, HUGO BLACK.
Contudo, esta situação seria, certamente, bem diferente se, nos Fathers,
não fossem identificadas as virtudes morais que se imaginam presentes e que foram
reforçadas no século XIX (Cf. KRAMNICK, In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 62).
No século XX, muitos autores, como BEARD, criticaram esta mitologia semi-divina que
cercou a elaboração da Constituição
152
*. E o fundamento de tais críticas pode-se
encontrar nos argumentos que foram levantados pelos oposicionistas da Constituição, os
quais receberam a alcunha de Antifederalistas.
Passa-se, então, ao estudo destes.
2. Os Antifederalistas
153
*
No capítulo anterior, expôs-se que a Convenção de Filadélfia e seu fruto
dileto, a Constituição de 1787, exsurgiram como uma tentativa de remediar as mazelas
do período alcunhado como ‘politics of liberty’, que se caracterizava pela prevalência
do parlamento, em face das outras funções do poder político (isto quando havia outros
órgãos responsáveis por exercer estas funções) e pela participação popular intensiva e
ampla, especialmente pela parcela dita mais simples da sociedade.
Tendo em vista o tipo de legislação proveniente do ‘politics of liberty’ –
que extinguia dívidas, aprovava a emissão intensa de papel-moeda –, pode-se imaginar
que havia um consenso quanto aos perigos deste período. Os mentores da Convenção,
inclusive, diziam que o temor e a necessidade de mudanças eram sentimentos
law the authority of the law derives from the authority of its makers, the authority of the old law must rest
on other grounds.”.
152
Este autor será analisado no próximo capítulo.
153
Por honestidade acadêmica, ressalte-se que a visão dos antifederalistas desenvolvida neste tópico é
enormemente influenciada pela visão de J
ACKSON TURNER MAIN, o qual, de certa forma influenciado por
BEARD, concede ao debate Federalistas e Antifederalistas grande ênfase às diferenças econômicas entre
as partes. Este autor, ainda, considera enormemente a questão democrática subjacente ao entrevero.
Importante ressaltar que foi com B
EARD que os Antifederalistas passaram a ser maior objeto de estudo,
por parte de historiadores e de constitucionalistas. Nesse sentido, BEARD é responsável pela superação da
imagem anterior que se tinha deste movimento e que findava por reputar os Antifederalistas como meros
políticos de visão estreita, assaz provinciana (Cf. S
TORING, 1981:3).
Nada obstante este fato, S
TORING critica a visão de BEARD e, em específico, a de MAIN, por ser muito
restrita: “Ainda que importante [a visão de BEARD e seus efeitos], o olhar Beardiano corrigido ainda trai a
percepção original. Ele tende a vislumbrar nos Antifederalistas simples agricultores democráticos. Há
algum fundamento nesta visão, mas a pintura é reduzida e distorcida.” (1981: 4).
“Yet valuable as all of this has been, the corrected Beardian eye betrays still its original squint. It tends to
see simple democratic agrarians among the Anti-Federalists. There is some basis for these views, but the
picture is thin and distorted.”.
81
recorrentes em toda a sociedade. Contudo, conforme bem lembra KRAMNICK, não havia
bem um consenso:
“Os delegados que se reuniram em Filadélfia, no final de maio de 1787,
estavam, nas palavras de MADISON, ‘profunda e unanimemente
impressionados com a crise, a qual havia conduzido o país, quase que em
uma única voz, a fazer um singular e solene experimento para corrigir os
erros de um sistema que havia produzido estas crises’. Este era o
sentimento de uma grande maioria dos delegados, mas, de forma
alguma, havia esta unanimidade acerca dos excessos do ‘politics of
liberty’ no país como um todo.”
154
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987:
28; ênfase acrescentada).
E estes que discordaram, quer seja quanto à existência própria da crise ou
em relação às medidas sugeridas na Constituição, ficaram alcunhados como
Antifederalistas. Quanto ao nome que lhes foi dado, importante ressaltar que não foram,
propriamente, os oposicionistas que o escolheram. Os defensores da Constituição,
intentando já rechaçar as críticas que sofriam e sofreriam com maior intensidade dos
oposicionistas, adotaram o nome de Federalistas, passando a idéia de que defendiam a
manutenção da soberania dos Estados, e taxaram os oposicionistas de Antifederalistas,
como se fossem estes os opositores à soberania dos Estados. Sobre a questão, MAIN:
“Originariamente, a palavra ‘federal’ significava qualquer um que
apoiasse a Confederação. Muitos anos antes que a Constituição fosse
promulgada, os homens que queriam um governo nacional forte, que
mais propriamente poderiam ser chamados de ‘nacionalistas’,
começaram a se apropriar do termo ‘federal’ para eles próprios.”
155
(1974: viii).
Nesse mesmo sentido, STORING, ao tratar do sentimento dos
oposicionistas quanto ao fato:
“Eles [antifederalistas], conforme usualmente clamavam, eram os
verdadeiros federalistas. Alguns deles pensavam que seu nome adequado
154
“The delegates who gathered in Philadelphia in late May 1787 were, in the words of Madison, ‘deeply
and unanimously impressed with the crisis, which had led their country, almost with one voice, to make
so singular and solemn an experiment for correcting the errors of a system by which the crisis had been
produced’. This was the mood of a large majority of the delegates, but there was by no means such
unanimity about the excess of the ‘politics of liberty’ in the country as a whole”.
155
“Originally the word ‘federal’ meant anyone who supported the Confederation. Several years before
the Constitution was promulgated, the men who wanted a strong national government, who might more
properly be called ‘nationalists’, began to appropriate the term ‘federal’ for themselves.’.”
82
havia sido furtado, quando estavam desatentos, como [de fato] foi, pelo
partido pró-Constituição, que recusava a dá-lo de volta.”
156
(1981: 9).
No que se refere ao conteúdo ideológico dos Antifederalistas, não há
como apontar um consenso crítico. Havia uma verdadeira heterogeneidade de opiniões
(Cf. STORING, 1981: 5). Os Antifederalistas simplesmente reuniam todos aqueles que
eram, em algum momento e em algum ponto, contrários à Constituição de 1787. Daí
poder-se inserir, inclusive, neste grupo, oposicionistas mais moderados que apenas
exigiam uma ou outra alteração no corpo do texto, por meio de Emendas
157
*. Como
exemplo da variedade de opiniões críticas à Constituição, tem-se o grupo de
Antifederalistas que criticavam a quebra da estabilidade (!), pela Constituição (uma das
preocupações iniciais dos Federalistas era, exatamente, com a instabilidade política do
‘politics of liberty’):
“É claro que os Antifederalistas concordavam que o povo tem direito a
alterar seus governos; mas insistiam que qualquer revolução (incluindo
aquela que a maioria orgulhosamente havia ajudado a produzir) há de ser
protegida por uma frágil estabilidade política inicial. Eles criticavam os
Federalistas, de forma tipicamente conservadora, por ameaçar sua
preciosa estabilidade.”
158
(STORING, 1981: 8).
Nada obstante este fato, pode-se afirmar que os Antifederalistas eram
compostos por dois grandes grupos, um formado pelos críticos às mudanças
aristocráticas que a Constituição de 1787 pretendia implementar no plano político e;
outro, contrário à pretensão centralizadora desta. No primeiro grupo, concentravam-se
as críticas pautadas pela concepção democrática do período pós-independência. No
segundo grupo, estavam reunidos os mais intelectualmente preparados do
156
They were, they often claimed, the true federalists. Some of them seemed to think that their proper
name had been filched, while their backs were turned, as it were, by the pro-Constitution party, which
refused to give it back;”.
157
Nesse sentido, MAIN:
“Então alguns Antifederalistas – o suficiente – acreditavam que a Constituição era melhor que ‘anarquia e
confusão’, e a promessa de emendas era suficiente para acalmar seus temores [quanto à Constituição, é
claro].” (1974: 256).
“Thus a few Antifederalists – just enough – felt that the Constitution was better than ‘anarchy and
confusion’, and the promise of amendments was enough to quite their fears.”.
158
“Of course the Antifederalists agreed that the people have a right to alter their governments; but
insisted that any revolution (including the one most of them had proudly aided) must be secured by an
initially fragile political stability. They criticized the Federalists, in typical conservative fashion for
threatening this precious stability.”.
83
Antifederalismo (Cf. MAIN, 1974: xi) e que, em vários casos, não compactuavam com o
ideal mais afeito à participação popular que demonstravam os primeiros
159
*:
“Antifederalismo não era uma única, simples, unificação de política de
governo. Era, mais, uma combinação, uma mistura de dois, de certa
maneira, diferentes pontos de vista, os quais eram compostos por dois
diferentes grupos de homem. (...). Então os Antifederalistas incluíam
dois grandes elementos: aqueles que enfatizavam o desejo de um
governo central fraco, e aqueles que encorajavam o controle
democrático. Os democratas, neste período, aceitavam a doutrina do
governo fraco, mas os advogados de um governo fraco nem sempre
acreditavam na democracia.”
160
(MAIN, 1974: x-xi; ênfase
acrescentada).
Sem embargo, em relação a este grupo que se preocupava,
principalmente, com a centralização do poder, é importante ressaltar que muito embora
seus membros também compactuassem com as críticas dos Federalistas ao excesso de
democracia do período da ‘politics of liberty’
161
* (Cf. MAIN, 1974: 132), estes, ainda
assim, eram mais democráticos do que os Federalistas, conforme bem lembra STORING:
159
É o famoso caso de ELBRIDGE GERRY. Sobre o assunto:
“Quando a Convenção teve início, nenhum dos membros deste grupo [dos que viriam a compor os
Antifederalistas] fizeram qualquer objeção às considerações iniciais à proposta; M
ASON e GERRY, na
verdade, se juntaram ao ataque à democracia.” (M
AIN, 1974: 117).
“When the Convention opened not one of this group [de futuros antifederalistas] made any objections to
the initial statements of purpose; Mason and Gerry actually joined in the attack on democracy.”.
160
“Antifederalism was not a single, simple, unified philosophy of government. It was rather a
combination, a mixture of two somewhat different points of view adhered to by two different groups of
men. (…). Thus the Antifederalists included two major elements: those who emphasized the desirability
of a weak central government, and those who encouraged democratic control. The democrats at this time
accepted the doctrine of weak government, but the advocates of weak government did not always believe
in democracy.”.
161
Interessante apontar, aqui, que a exigência do Bill of Rights teve origem nos Antifederalistas,
principalmente naquele segmento que era temeroso com a democracia. Sobre este relevante fato,
S
TORING:
“Em geral, sem embargo, os Anti-Federalistas reconheciam a possibilidade da facção da maioria e a
necessidade de se resguardar desta, mesmo que este perigo ocupasse um lugar não menos claro do seu
catálogo de perigos do que [ocupava] no dos Federalistas. (...). Isto era [o temor com a democracia], uma
das razões que fez com que alguns dos Anti-Federalistas quisessem uma carta de direitos. Então Agrippa
[pseudônimo de um Antifederalista] enfrentou a negativa dos Federalistas quanto à necessidade de uma
carta de direitos em um governo representativo, insistindo no fato de que esta serviria para ‘resguardar a
minoria contra uma usurpação e tirania da maioria.’.” (1981: 39-40).
“In general, however, the Anti-Federalists acknowledged the possibility of majority faction and the need
to guard against it, even though this dangers typically occupied a less conspicuous place in their catalogue
of dangers than in that of the Federalists. (…). This was, indeed, one of the reasons some of the Anti-
Federalists wanted a bill of rights. Thus Agrippa met the Federalist denial that a bill of rights is necessary
in a representative government by insisting that it would serve ‘to secure the minority against the
usurpation and tyranny of the majority.’.”.
84
“Contudo, os Anti-Federalistas eram tipicamente mais democráticos do
que os Federalistas no sentido específico de que eles eram menos
dispostos a vislumbrar nas facções da maioria o maior perigo e mazela
de um governo popular. Eles eram inclinados a pensar, com PATRICK
HENRY, que o dano é usualmente feito pela tirania de governantes do que
pela licenciosidade do povo.”
162
(1981: 40).
De qualquer forma, pode-se dizer que a dissensão principal que envolvia
o debate entre Federalistas e Antifederalistas era uma que envolvia o embate entre
concepção aristocrática e concepção democrática de governo. Nesse sentido, WOOD:
“Nada era mais característico do pensamento Antifederalista do que sua
obsessão com a aristocracia.”
163
(1972: 488).
E, também, KRAMNICK:
“No coração das diferentes suposições ideológicas que dividiam os dois
campos estava o comprometimento dos Federalistas com aquilo que eles
chamavam de governo republicano [vocacionado à aristocracia natural] e
a preferência maior dos Antifederalistas por noções de democracia
participativa.”
164
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987: 40).
O grupo mais democrático dos Antifederalistas criticava amplamente as
propostas da Convenção, na medida em que, na sua concepção, o legislativo,
principalmente a casa baixa (lower house) deveria conduzir toda a política do país, de
preferência sem que lhe fosse colocada qualquer forma de controle e/ou freio (Cf.
MAIN, 1974: 13).
A partir desta idealização de governo, passou-se a apontar nos
Federalistas as suas pretensões aristocráticas, as quais seriam, concomitantemente, anti-
democráticas
165
*:
162
“However, the Anti-Federalists were typically more democratic than the Federalists in the specific
sense that they were less likely to see majority faction as the most dangerous and likely evil of popular
government. They were inclined to think, with Patrick Henry, that harm is more often done by the tyranny
of the rulers than by the licentiousness of the people.”.
163
“Nothing was more characteristic of Antifederalist thinking than this obsession with aristocracy.”.
164
“At the heart of the differing ideological assumptions that divided the two camps were the Federalists’
commitment to what they called republican government and the Anti-Federalists’ much greater
preference for notions of participatory democracy.”.
165
Exemplifica bem este ponto de vista a carta do Antifederalista SAMUEL CHASE:
“Ele escreveu a JOHN LAMB, ‘Eu considero a Constituição como radicalmente falha neste quesito: o
grosso do povo não pode dizer nada a ela. O governo não é um governo do povo. Não é um governo de
representação.” (M
AIN, 1974: 175).
85
“Os Antifederalistas estavam bem atentos para o fato de que, em muitos
dos Estados, muitos homens pretendiam alterar a forma de governo, de
que a maioria deles era muito cética quanto ao julgamento do homem
comum para ter fé em um sistema democrático, a não ser que este
sofresse muitas alterações, e que eles preferiam ou uma aristocracia –
isto é, um governo pelo melhor tipo de pessoas, querendo dizer elas
mesmas – ou (uma pequena minoria) uma monarquia.”
166
(MAIN, 1974:
104).
2.1. A crítica ao filtering principle
Com base na suposição de que os Federalistas teriam pretensões anti-
democráticas, os Antifederalistas passaram a criticar, amplamente, o filtering principle.
Quanto ao uso deste, no âmbito da House of Representatives, conforme já se viu, as
críticas se pautavam na afirmação de que (i) os Estados, com suas circunscrições
territoriais mais reduzidas, seriam mais capazes de fazer com que os representantes, de
fato, representassem os seus constituintes e; (ii) que o critério capacidade intelectual e
virtude não são os pontos centrais da representação, mas sim a semelhança com os seus
constituintes.
No que se refere à segunda forma de aplicação do filtering principle,
interessante notar que as críticas não se dirigiram, igualmente, à sua aplicação na
eleição do Senado e na do Presidente.
A forma de eleição do Presidente, por meio do colégio eleitoral, por
exemplo, não era criticada (Cf. M
AIN, 1974: 140). STORING explica o porquê:
“Muitos Antifederalistas acreditavam que um executivo unitário era
necessário para se obter tanto eficiência e responsabilidade, e
concordavam como o Federal Farmer de que o cargo de Presidente e seu
modo de eleição haviam sido bem concebidos.”
167
(1981: 49).
“he wrote to John Lamb, ‘I consider the Constitution as radically defective in this essential: the bulk of
the people can have nothing to say to it. The government is not a government of the people. It is not a
government of representation.’.”.
166
“The Antifederalists were well aware that there were in all of the states many men who wanted to
change the form of government, that most of them were too skeptical of the common man’s judgment to
have faith in a democratic system unless it was much modified, and that they preferred either an
aristocracy – that is, government by the better sort of people, meaning themselves – or (a small minority)
monarchy.”.
167
“Many Anti-Federalists thought that a unitary executive was necessary, for the sake of both efficiency
and responsibility, and agreed with The Federal Farmer that the office of the President and the mode of
his election were well conceived.”.
86
Já a composição do Senado e a forma de sua eleição eram reputadas
como o “feto da dominação aristocrática” (Cf. STORING, 1981: 49). O principal motivo
para o temor seria a composição de diversas funções por esta câmara. Teria poderes
executivos, como o de celebrar tratados, juntamente com o Presidente e, ademais, o
poder de julgar (impeachment). Isto, sem falar, na possibilidade de desvirtuar o
Presidente e, com isto, fazer com que, ambos, em conluio, se transformassem,
respectivamente, em Rei e na House of Lords:
“Pode-se notar, em conclusão, de que muitos Antifederalistas
contemplavam a possibilidade de uma união de interesses entre o Senado
e o Presidente, concluindo que se isto ocorresse, o resultado seria o
despotismo: um Rei e a House of Lords equivaleriam a uma
oligarquia.”
168
(MAIN, 1974: 142).
2.2. A crítica ao Judiciário?
No capítulo anterior, em seu último tópico, expôs-se que o Judiciário,
muito embora tivesse sido, também, imaginado como uma forma de controle do
legislativo, tal seria, apenas, a terceira forma prevista. É dizer, na mente dos
Federalistas, não seria o Judiciário o principal órgão responsável pelo controle do
legislativo, tal como ocorrer hodiernamente. Na ordem de preferência, haveria o próprio
legislativo, por meio do Senado e do filtering principle, e o Executivo. Depois, o
Judiciário.
Dois fundamentos foram apresentados para justificar esta afirmativa. O
primeiro diz respeito ao número de artigos do The Federalist Papers específicos sobre o
Poder Judiciário: quase que a metade do número de artigos destinados ao legislativo e
ao judiciário. O segundo residiria na pouca atenção dada ao assunto quando da
realização dos debates, nos Estados, para a ratificação da Constituição (Cf. S
TORING,
1981: 50).
Isto não quer dizer que os Antifederalistas, em uníssono, tenham
ignorado a questão, mas sim que poucos atentaram para a relevância do Judiciário.
168
“Is should be noted, in conclusion, that many Antifederalists contemplated the possibility of a union of
interests between the Senate and the President, concluding that if it should occur the result would be
despotism: a King and a House of Lords equaled an oligarchy.”.
87
Sem embargo, os poucos que conseguiram vislumbrar o perigo, já foram
capazes de antecipar grande parte da polêmica atual que cerca a figura do controle de
constitucionalidade:
“O mais visionário deles [dos Antifederalistas], Brutus [provavelmente o
juiz ROBERT YATES, de Nova Yorke], muito precisamente antecipou a
extensão que a Suprema Corte daria aos seus próprios poderes e aos da
legislatura geral, bem como a linha de raciocínio que seria usado. ‘Eu
questiono se o mundo já viu, em qualquer período, uma corte de justiça
investida com poderes tão imensos, e, ainda sim, alocada em uma
situação de tão pouca responsabilidade [democrática, é dizer]’. Brutus
previu, ainda, o controle de constitucionalidade de atos do Congresso e a
conseqüente supremacia e irresponsabilidade do judiciário. ‘Se .... a
legislatura aprovar qualquer lei inconsistente com o sentido que os juízes
têm da Constituição, o poder destes será maior do que o da legislatura.
(...). Os americanos, acostumados a vislumbrar a corte como um freio
aos excessos do legislativo e do executivo, se esqueceram de sua
arbitrariedade inerente. (...). Então, alguns Anti-Federalistas viram o
judiciário como o locus do qual uma aristocracia jurídica irresponsável
poderia gradualmente ou irresistivelmente engolir as partes mais
populares do governo, uma antecipação das preocupações mais recentes
sobre as implicações da racionalidade legal e da burocratização.”
169
(STORING, 1981: 50).
De qualquer forma, esta crítica era ventilada por poucos dos
Antifederalistas e, apenas, por aqueles ditos mais visionários.
2.3. O debate econômico
Por detrás deste embate Federalistas/Aristocracia e
Antifederalistas/Democracia, haveria um outro, nem tão memorável, que se dá entre
Federalistas/homens de posse e Antifederalistas/homems de situação nem tão favorável.
169
“The most farsighted of them, Brutus, very accurately anticipated the breadth with which the Supreme
Court would construe its own powers and those of the general legislature and the line of reasoning that
would be used. ‘I question whether the world ever saw, in any period of it, a court of justice invested with
such immense powers, and yet placed in a situation so little responsible’. Brutus predicted, moreover, the
judicial review of acts of Congress and the consequent supremacy of an irresponsible judiciary. ‘If … the
legislature pass any laws, inconsistent with the sense the judges put upon the constitution, their power is
superior to that of the legislature.’. (…). Americans, accustomed to look to courts as checks on legislative
and executive excesses, had forgotten their inherent arbitrariness. (…). Thus some Anti-Federalists saw
the general judiciary as a locus from which an irresponsible aristocracy of legal skill might gradually or
irresistibly encroach on the more popular parts of government, an anticipation of more recent concerns
about the implications of legal rationality and bureaucratization.”.
88
É bem verdade que, dentre os Antifederalistas, havia homens de
considerável soma de propriedades e riqueza. MASON, GERRY são exemplos claros.
Contudo, conforme bem lembra MAIN:
“Em 1787, Senhores de propriedade providenciaram os Antifederalistas
com seus mais hábeis líderes, mas a maioria [dos Senhores de
propriedade] deram aos Federalistas um apoio vigoroso.”
170
(1974: 4).
Este fator é confirmado, pelo mesmo autor acima, em diversos exemplos.
Um deles é Nova Yorke:
“Quinze de dezenove federalistas (79 por cento), mas apenas vinte e três
de quarenta e seis Antifederalistas (50 por cento) eram advogados,
juízes, ou grandes proprietários de terra. Proporcionalmente ao seus
números, havia duas vezes e meia mais homens de riqueza dentre os
Federalistas do que dentre os Antifederalistas. É significante, ademais,
que aqueles Antifederalistas que finalmente mudaram de lado se
situavam dentre os bem-de-vida [well-to-do], incluindo um mercador,
um grande proprietário de terras e três advogados que também eram
grandes proprietários de terra, enquanto quatro advogados e um grande
proprietário de terra se abstiveram de votar. (...) Dentre os formados em
universidades, os Federalistas ultrapassavam os Antifederalistas, no
ínicio [em] sete a três e, no final, em oito a um. (…) Parece claro que a
grande maioria dos ricos proprietários de terra e mercadores, dentro e
fora da convenção [convenção para aprovar a Constituição], eram
Federalistas e que os Antifederalistas, ainda que derivassem alguns de
seus líderes desta classe, eram, em geral, homens de menores
condições.”
171
(MAIN, 1974: 241-242).
E que pode ser seguido pelos demais Estados. Nesse sentido é a
afirmação de M
AIN:
170
“In 1787, Gentlemen of property provided the Antifederalists with many of their ablest leaders, but the
great majority gave the Federalists vigorous support.”.
171
“Fifteen out of nineteen Federalists (79 per cent) but only twenty-three of forty-six Antifederalists (50
per cent) were lawyers, judges, merchants, or large landowners. Proportionate to their numbers there were
two and a half times as many men of wealth among the Federalists as among the Antifederalists. It is
significant, moreover, that those Antifederalists who finally charged sides were among the more well-to-
do, including one merchant, one large landowner, and three lawyers who were also large landowners,
while four lawyers and a large landowner refrained from voting. (…). Among the college graduates,
Federalists outnumbered Antifederalists at the beginning seven to three and at the end eighth to one. (…).
It seems clear that most of the wealthy landowners and merchants, in and out of the convention, were
Federalists and that the Antifederalists, while drawing some of their leaders from this class, were on the
whole men of lesser means.”.
89
“Se todos os Estados fossem incluídos, então seria seguro dizer que mais
de três quartos da elite econômica era federalista.”
172
(1974: 265, n. 49).
Enfim, pode-se concluir que o desacordo entre Federalistas e
Antifederalistas tinha sua origem, em grande parte, no desnível econômico existente na
sociedade. Membros das profissões mais rentáveis, como mercadores, advogados,
grandes proprietários e donos de escravos compunham o grupo dos Federalistas. Já os
pequenos comerciantes, pequenos agricultores, em suma, o homem comum, formavam
a fileira dos Antifederalistas, salvo por algumas raras exceções, conforme visto.
Obviamente que este desnível também pode ser explicado por uma
eventual diferença intelectual (aliás presumível, pois a ideologia federalista se pautava
na idéia de aristocracia natural e, desta feita, pode-se facilmente concluir que todos
aqueles que possuíam um mínimo de preparo educacional adeririam a esta corrente, sob
a promessa de virem a se beneficiar – não necessariamente em termos de ganho
pessoal). Mas, também não é menos óbvio que, por detrás desta diferença intelectual, há
a questão econômica, como pano de fundo (Cf. MAIN, 1974: 264).
Não por outro motivo é que MAIN (1974: 259) desconsidera questões de
idade (a diferença de idade entre federalista era de três a cinco anos) e de religiosidade
como motivos fundamentais do entrevero e finda por concluir que a questão era, em
grande parte, econômica
173
*. Não propriamente uma questão de classe, mas econômica,
afinal a primeira é fruto da revolução industrial, que ainda estava por vir:
172
“If all the states were included, then it would be safe to say that well over three-fourths of the
economic elite were federalist.”.
173
MAIN, de forma cautelosa, não reduz, simplesmente, o debate, em termos econômicos, mas tampouco
reduz a importância deste fator:
“Toda esta evidência prova que havia uma divisão dentre as classes [classe não no sentido como é
utilizada atualmente]. Contudo, não prova que a luta acerca da ratificação possa ser explicada
exclusivamente em termos de conflito de classe. Havia diversos Estados em que o conceito obviamente
não se aplica. Em Geórgia, tanto os fazendeiros ricos quanto os pequenos agricultores concordaram com a
ratificação. Na Carolina do Norte e na Virgínia, um grande número de grandes fazendeiros eram
Antifederalistas, e no interior do último Estado, duas grandes seções habitadas por pequenos agricultores
favoreceram a ratificação. Maryland não se ajusta à teoria e tampouco Delaware e New Jersey. Delegados
de bastiões de pequenos fazendeiros em Connecticut, New Hampshire, Pennsylvania e mesmo
Massachusetts (partes do condado de Hampshire) eram Federal.” (1974: 266).
“All of this evidence proves that there was a division along lines of class. It does not, however, prove that
the struggle over ratification can be explained exclusively in terms of class conflict. There are several
states in which the concept obviously does not hold. In Georgia both wealthy planters and yeomen
farmers agreed on ratification. In North Carolina and Virginia a large number of planters were
Antifederal, and in the interior of the latter state, two large sections inhabited by small farmers favored
ratification. Maryland does not fit the theory, nor does Delaware and New Jersey. Delegates from small
farmer strongholds in Connecticut, New Hampshire, Pennsylvania, and even Massachusetts (parts of
Hampshire County) were Federal.”.
90
“Não havia nenhuma classe trabalhadora, em nenhum sentido, mas
existia sim um antagonismo entre os grandes proprietários e os pequenos.
É verdade que tais conflitos eram amenizados por uma excepcionalmente
alta mobilidade vertical, mas havia, sem embargo, diferenças econômicas
e sociais significantes, bem reconhecidas naquela época, e que eram
refletidas nas disputas políticas.”
174
(MAIN, 1974: 261-262).
O grande problema de se identificar esta questão econômica no debate
entre federalistas está no novo temor que a camada mais simples da sociedade passa a
nutrir. Se subjacente ao embate democracia e aristocracia estava a questão da
participação política, neste novo embate, há, como pano de fundo, a possível tirania
econômica dos mais ricos sobre os mais pobres. Em outras palavras, o movimento
Federalista não busca mais afastar a população do exercício do poder político, mas sim
dominá-la e explorá-la economicamente. São a dominação e a exploração econômica os
grandes fins dos Federalistas e a nova concepção política, menos democrática, o meio
escolhido para tanto:
“Uma ‘tirania aristocrática’ surgiria, em que (conforme escreveu
TIMOTHY BLOODWORTH) ‘os grandes [em termos econômicos] vão lutar
por poder, honra e riquezas, os pobres se tornaram presas para a avareza,
insolência e opressão’.”
175
(MAIN, 1974: 132-133).
Nesse sentido, a Constituição passa a ser identificada com esta pretensão.
Nada mais natural. Afinal, da mesma forma como a autoridade de um documento pode
decorrer da legitimidade moral de seus autores, conforme visto no item anterior, a
natureza e a finalidade desta última também podem derivar da natureza e das pretensões
de seus autores.
Confirmavam este sentir normas tais como a que pretendia retirar da
alçada dos Estados a possibilidade de emitir papel-moeda
176
*, de emitir leis ex post
174
“There was no working class to any extent, but there did exist an antagonism between small and large
property holders. It is true that such conflicts were tempered by exceptionally high vertical mobility, but
there were nevertheless significant economic and social differences, well recognized at the time, that were
continually reflected in political disputes.”.
175
“An ‘aristocratical tyranny’ would arise, in which (as Timothy Bloodworth wrote) ‘the great will
struggle for power, honor and wealth, the poor become a prey to avarice, insolence and oppression.’.”.
176
Sobre a correlação – cautelosa – entre defensores do papel-moeda e Antifederalistas, MAIN:
“O sentimento de que o papel-moeda era, em certo grau, um fator na existência do Antifederalismo não
há de ser duvidado – os Antifederalistas retiravam [apoio], muito mais do que seus oponentes, das fileiras
dos advogados do papel-moeda; contudo a correlação não é inteiramente completa.” (1974: 269-270).
“That paper money sentiment was in some degree a factor in the existence of Antifederalism is scarcely to
be doubted – the Antifederalists drew more heavily by far than their opponents from the ranks of paper
money advocates; however the correlation is by no means complete.”
91
facto. Isto porque se imaginava que os maiores beneficiados por esta medida e muitas
outras seriam os bem-situados, tendo em vista que estes eram credores e detentores de
títulos de dívida pública.
Sobre esta concepção da Constituição, pelos Antifederalistas,
KRAMNICK:
“Havia JOHN LASING de Nova Yorke, quem denunciou a Constituição
como ‘um monstro de três cabeças, como uma conspiração perversa
jamais inventada nos tempos mais negros contra as liberdades do povo
livre’. Havia A
MOS SINGLETARY de Sutton, Massachusetts, que disse na
convenção de ratificação de seu Estado: ‘Estes advogados, homens de
estudo e homens de dinheiro que falam tão bem, e dão voltas suaves
sobre assuntos, de forma a fazer com que nós, pobre povo iletrado,
engula a pílula, eles pretendem colocar eles mesmos no Congresso. Ele
esperam ser os administradores desta Constituição, e pegar todo o
dinheiro com suas próprias mãos. E eles nos engolirão como [se
fossemos] pequeninos, como o Grande Leviatã, Sr. Presidente, sim,
como a baleia engoliu Jonah.’.”
177
(1987: 14; ênfase acrescentada).
Esta observação, inclusive, foi feita por um estrangeiro presente nos
Estados Unidos, neste momento:
“Em uma conhecida passagem, este ponto foi elaborado pelo
representante francês para os Estados Unidos, LOUIS OTTO, que observou
que o povo estava bem consciente de que um aumento do poder no
governo central significaria ‘uma cobrança regular de tributos, uma
administração rigorosa da justiça, impostos extraordinários sobre a
importação, execuções rigorosas contra os devedores – em resumo, uma
marcada preponderância do homem rico e de grandes proprietários.”
178
(MAIN, 1974: 112; ênfase acrescentada).
177
“There was John Lasing of New York State, who denounced the Constitution as a ‘triple headed
monster, as deep and wicked a conspiracy as ever was invented in the darkest ages against the liberties of
free people’. There was Amos Singletary of Sutton, Massachusetts, who asked at his state’s ratification
convention: ‘These lawyers and men of learning, and moneyed men that talk so finely, and gloss over
matters so smoothly, to make us poor illiterate people swallow down the pill, they expect to get into
Congress, themselves. They expect to be managers of this Constitution, and get all the money into their
own hands. And then they will swallow up us little fellows, like the Great Leviathan, Mr. President, yes,
just as the whale swallowed up Jonah.”.
178
“In a well-known passage, this point was elaborated by the French minister to the United States, Louis
Otto, who observed that the people were aware that an increase of power in the central government would
mean ‘a regular collection of taxes, a strict administration of justice, extraordinary duties on imports,
rigorous executions against debtors – in short, a marked preponderance of rich men and of large
proprietors.”.
92
E, a bem da verdade, as implicações econômicas da Constituição não
eram percebidas apenas pelos Antifederalistas. Os próprios Federalistas tinham plena
consciência de que, de certa forma, a Constituição era um documento econômico (Cf.
MAIN, 1974: 162).
2.4. Conclusão parcial
Em resumo, duas eram as principais – mas não únicas – dissensões entre
os Federalistas e os Antifederalistas: democrática e econômica. De certo modo, tais se
relacionam, como se houvesse um juízo causal entre ambas (nesse sentido, vide o
próximo capítulo sobre BEARD).
E estes elementos do debate somente se tornaram um maior objeto de
estudo com a retomada do interesse pelos Antifederalistas, os quais, tal qual ocorre com
todos os derrotados, haviam sido esquecidos pela história.
Contudo, com o renascimento do interesse por estes importantes
opositores, caiu por terra um relevante mito que cercava os Founding Fathers,
enquanto pessoas desinteressadas, preocupadas ampla e unicamente com o bem-público.
Este fato é de suma importância, inclusive, para teorias que contestam a
legitimidade democrática das Constituições. Se anteriormente a contestação se pautava,
meramente, em critérios temporais (que se refletia na seguinte indagação: “Como pode
um legislador de mais de 200 anos conduzir a minha conduta atual?”
179
*); o acréscimo
de dúvidas à própria envergadura moral dos Federalistas é um tempero extremamente
forte e atraente, e que não se pode desconsiderar.
Sua importância é ainda maior, tendo em vista o possível acréscimo de
uma variável não-democrática à própria concepção de Constitucionalismo.
É marcante a frase de MAIN, acerca da derrota dos Antifederalistas:
“Os Antifederalistas, que perderam sua única grande batalha, estão
esquecidos, enquanto os vitoriosos são lembrados, mão não é certo quem
é mais memorável.”
180
(1974: 281).
179
Atualmente, esta é uma questão bem debatida por diversos doutrinadores. Para uma visão sobre o
assunto, vide WALDRON, Precommitment and Disagreement (In. ALEXANDER (ed.), 2005: 271-300).
180
: “The Antifederalists, who lost their only major battle, are forgotten while the victors are remembered,
but it is not so certain which is the more memorable.”.
93
No capítulo seguinte, estudar-se-á a visão de BEARD, grande responsável
pelo enfoque ao aspecto econômico do embate.
BIBLIOGRAFIA DA SEÇÃO
KENYON, Cecelia M. “Constitutionalism in Revolutionary America”. In. PENNOCK,
J. Roland; CHAPMAN, John W. Constitutionalism, Nomos XX. New York: New York
University Press, 1979. Bibliografia: 84 – 121.
KRAMNIC, Isaac. “Editor’s Introduction”. In. MADISON, James; HAMILTON,
Alexander; JAY, John. The Federalist Papers. London: Penguin, 1987.
MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers.
London: Penguin, 1987.
MAIN, Jackson Turner. The Anti-Federalists: critics of the Constitution 1781-1788.
New York: The Norton Library, 1974.
MCDONALD, Forrest. Enough Wise Men: The Story of Our Constitution. New York:
G.P. Putnam’s Sons, 1970.
RAZ, Joseph. “On the Authority and Interpretation of Constitutions: Some
Preliminaries”. In. ALEXANDER, Larry (ed.). Constitutionalism: Philosophical
Foundations. Cambridge: Cambridge University Press, 1005. Bibliografia: 152 – 193.
STORING, Herbert J. What the Anti-Federalists Were For: the political thought of the
opponents of the Constitution. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.
WALDRON, Jeremy. Precommitment and Disagreement. In. ALEXANDER, Larry
(ed.). Constitutionalism: Philosophical Foundations. Cambridge: Cambridge University
Press, 1005. Bibliografia: 271-300.
WOOD, Gordon S. The Creation of the American Republic, 1776-1787. New York: The
Norton Library, 1972.
94
CAPÍTULO IV
A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA:
BEARD E O “CHOQUE DE SUA VIDA”
1. BEARD e os semi-deuses de JEFFERSON
Aos homens que se reuníram na Convenção de Filadélfia, nenhum epíteto
soa mais louvável do que o de J
EFFERSON. Eram semi-deuses e seu produto, obra divina.
No capítulo anterior, a análise dos Antifederalistas foi suficiente para
demonstrar que a Constituição de 1787 e as propostas nela encampadas, nem de longe,
eram aceitas de maneira pacífica e servil. Houve, sim, contestação e debates acalorados.
As críticas dos Antifederalistas não eram fruto de mentes simples e ignorantes e a
natureza de muitas de suas contestações bem demonstra a desconfiança que os
opositores da Constituição de 1787 tinham em relação às intenções dos Federalistas.
Ninguém foi mais responsável do que CHARLES A. BEARD por ter
chamado a atenção para o tipo de discussão que se instaurou entre os defensores e os
opositores da proposta originada na Convenção de Filadélfia. A bem da verdade,
ninguém foi mais responsável do que BEARD por contestar a envergadura moral dos
membros desta Convenção.
Sobre este autor, KRAMNICK:
“O estudo iconoclasta de BEARD extremeceu a imagem Jeffersoniana dos
framers como ‘semi-deuses’ e iniciou uma verdadeira indústria de
defensores e críticos pós-Beard.”
181
(In. MADISON, HAMILTON, JAY,
1987: 61).
E o artifício utilizado por ele, em sua tarefa, foi o tipo de ênfoque dado
ao debate, à discussão entre Federalistas e Antifederalistas. Um ênfoque eminentmente
econômico.
2. Os interesses econômicos por detrás do movimento federalista
181
“Beard’s iconoclastic study both shook the Jeffersonian image of the framers as ‘demigods’ and set off
a veritable industry of post-Beardian defenders and critics.”.
95
O que fez com que BEARD desse este enfoque ao debate foi a perturbação
inicial quanto às verdadeiras concepções dos Federalistas e dos Antifederalistas:
“Mas durante os anos finais do século XIX, esta visão realística
[econômica] da Constituição esteve, em grande parte, submergida em
discussões abstratas acerca dos direitos dos Estados e da soberania
nacional e em análises discriminatórias, formais e lógicas das opiniões
judiciais. Era admitido, é claro, que havia um conflito árduo acerca da
formação e da adoção da Constituição; mas o embate era usualmente
explicado, quando explicado, por referências ao fato de que alguns
homens desejavam os direitos dos Estados, enquanto outros favoreciam
um governo central forte. (...). Como alguns homens vieram a ter
‘mentes nacionais’ e ‘pensamentos a longo prazo’ e outros se
transformaram em provincianos em suas idéias, [tal] não perturbou o
pensamento de estudiosos que conduziram estudos históricos na virada
do século dezenove.”
182
(BEARD, 1968: vi-vii).
Obviamente não se sabe dizer se foram os estudos de BEARD que o
fizeram concluir por este ênfoque ou se foi uma predisposição do autor que
‘contaminou’ as suas pesquisas históricas (certamente os críticos de BEARD aderem à
última opção). De qualquer forma, a dita descoberta de BEARD fez com que este tivesse,
em suas palavras, o “choque da sua vida”.
E o “choque da sua vida” consistiu na tomada de consciência dos
interesses econômicos por detrás da Convenção de Filadélfia. Segundo ele, os autores
da Constituição, bem como os seus defensores, ganhariam, em muito, com a aprovação
da Constituição. E tal ganho não seria moral e tampouco político, mas sim econômico:
“E para a minha surpresa, eu descobri que muito dos Pais da República
levavam em consideração o conflito sobre interesses econômicos, que
tinham uma certa distribuição regional e seccional.”
183
(BEARD, 1968:
vii).
182
“But during the closing years of the nineteenth century this realistic view of the Constitution had been
largely submerged in abstract discussions of the states’ rights and national sovereignty and in formal,
logical, and discriminative analyses of judicial opinions. It was admitted, of course, that there had been a
bitter conflict over the formation and adoption of the Constitution; but the struggle was usually explained,
if explained at all, by reference to the fact that some men cherished states’ rights and others favored a
strong central government. (…). How some men got to be ‘national-minded’ and ‘straight-thinking’, and
others became narrow and local in their ideas did not disturb the thought of scholars who presided over
historical writing at the turn of the nineteenth century.”.
183
“And to my surprise I found that many Fathers of the Republic regarded the conflict over the economic
interests, which had a certain geographical or sectional distribution.”.
96
A partir daí, sua perquirição pretendeu identificar, em cada um dos
membros da Convenção da Filadélfia, em cada um dos agentes atuantes neste processo,
quais os eventuais interesses econômicos que poderiam ter. Em síntese, a pergunta foi a
seguinte: seriam eles afetados economicamente – positivamente – pelo resultado das
Convenções? (Cf. BEARD, 1968: 73).
Frise-se que, para se chegar à conclusão de que havia interesses
econômicos subjacentes à elaboração da Constituição de 1787, o autor ora comentado
não partiu da leitura dos dispositivos desta e, tampouco, dos comentários então
existentes:
“Em nenhum lugar dos comentários há qualquer evidência do fato de que
as normas de nossa lei fundamental foram criadas para proteger qualquer
classe em seus direitos ou para assegurar a propriedade de um grupo das
pressões de outro.”
184
(BEARD, 1968: 11-12).
Sua pesquisa partiu da leitura da correspondência trocada entre os
Federalistas e Antifederalistas, dos debates ocorridos nas diversas convenções de
ratificação da Constituição, do resultado das convenções, da biografia
185
* dos que
votaram pela e contra a Constituição e, principalmente, da análise de documentos do
Tesouro Nacional. Quanto a esta última fonte, o autor a considera falha, tendo em vista
a grande quantidade de material existente (o que demandaria um trabalho sobre-
humano) e, principalmente, a grande quantidade de material inutilizável – pelo efeito do
tempo – ou que se perdeu. Tal fonte, nada obstante, foi amplamente considerada por
BEARD, especialmente, quanto ao uso de títulos de dívida pública pelos defensores da
Constituição.
Deixando esta digressão metodológica de lado, cumpre ressaltar que
eram quatro os tipos de interesses econômicos por detrás da elaboração da Constituição.
O primeiro dizia respeito aos credores (BEARD, 1968: 31-32) e que eram diretamente
184
“Nowhere in the commentaries is there any evidence of the fact that the rules of our fundamental law
are designed to protect any class in its rights, or secure the property of one group against the assault of
another.”.
185
BEARD encontrou dificuldade em pesquisar a vida econômica dos protagonistas da Constituição de
1787, em biografias existentes. O motivo:
“Infelizmente, os materiais para tal estudo são escassos, porquanto o biógrafo comum usualmente reputa
negligenciável o processo pelo qual seu herói ganhava a sua vida” (B
EARD, 1968: 73-74).
“Unfortunately, the materials for such a study are very scanty, because the average biographer usually
considers as negligible the processes by which his hero gained his livelihood.”.
97
afetados pela emissão de papel-moeda, de normas suspendendo as formas legais de
cobrança da dívida. Sobre o tema, BEARD:
“É inútil saber se foi a ganância dos credores ou a total depravidão dos
devedores (uma questão amplamente tratada naquele tempo) a
responsável por este profundo e amargo antagonismo. É suficiente para o
nosso propósito descobrir sua existência e encontrar seus reflexos na
Constituição. Era do interesse do credor ver a moeda valorizar, de ver
facilitado o processo de assegurar a posse de propriedade hipotecada, e
de manter o rigor da lei em face do devedor que não cumpriu com as
suas obrigações.”
186
(1968: 32).
O segundo, e mais importante, referia-se ao de proprietários de títulos
públicos, emitidos quando da guerra pela Independência, pelo Congresso Continental,
para financiar a guerra, e que, no período da elaboração da Constituição, estavam
altamente desvalorizados. Acreditava-se que, com um governo central forte, o valor
destes títulos sofreriam uma alta valorização. Tal previsão se concretizou e, durante o
processo de ratificação da Constituição, foi alvo de intensa especulação.
O terceiro tipo de interesse residia nos interesses comerciais e mercantis.
Com um governo central forte, responsável pela elaboração de uma legislação uniforme
acerca do comércio e de outras favorecendo os produtos nacionais, por meio de
restrições tarifárias, os comerciantes somente teriam a ganhar.
O derradeiro interesse econômico se referia às propriedades territoriais.
Tais eram, até então, ameaçadas de duas maneiras. Uma, por meio do papel-moeda, na
medida em que se temia que este fosse utilizado para adquirir, juntamente com
legislações impondo a venda da propriedade, as terras dos grandes proprietários. A
segunda, através dos índios, nos territórios do oeste.
Nesse sentido, em específico quanto à segunda ameaça, tal seria evitada
por um governo central forte e seu exército, que traria a devida segurança aos
proprietários de terra, principalmente das regiões em que havia ameaças por parte dos
nativo-americanos.
186
“It is idle to inquire whether the rapacity of the creditors or the total depravity of the debtors (a matter
much discussed at the time) was responsible for this deep and bitter antagonism. It is sufficient for our
purposes to discover its existence and to find its institutional reflex in the Constitution. It was the interest
of the creditors to see the currency appreciate, to facilitate the process for securing possession of forfeited
mortgaged property, and to hold the rigor of the law before the debtor who was untrue to his
obligations.”.
98
E, em síntese, todos estes interesses estavam sendo afetados no período
da ‘politics of liberty’, sem que se houvesse, neste, qualquer possibilidade de resguardá-
los:
“Grandes e importantes grupos de interesses econômicos estavam sendo
adversamente afetados pelo sistema de governo sob os Artigos da
Confederação, em específico, aqueles [referentes] aos títulos públicos,
navegação e manufatura [comércio], empréstimo; em resumo, capital
oposto à terra.
“Os representantes destes importantes interesses tentaram através dos
canais legais regulares assegurar emendas aos Artigos da Confederação
que resguardariam seus direitos no futuro, em particular o dos credores
públicos.
“Tendo falhado em realizar seu grande propósito através dos meios
regulares, os líderes no movimento passaram a trabalhar para resguardar,
por meio de uma rota alternativa, a reunião de uma Convenção para
‘revisar’ os Artigos da Confederação, com a esperança de obter, fora do
sistema legal existente, a adoção de um programa revolucionário.”
187
(BEARD, 1968: 63).
Com base nestes fatos, BEARD chega, inclusive, a contestar o cenário que
havia sido pintado pelos Federalistas, quando da realização da Convenção de Filadélfia,
um cenário, conforme dito, pautado pelo caos e pela insegurança pública e jurídica.
Houve, sim, um exagero, por parte dos defensores da Constituição:
“Pode ser que o ‘período crítico’ não era tão crítico assim; mas um mero
fantasma da imaginação, produzido por maldades induvidosas que
poderia ter sido remediado sem uma revolução política. (...). Não parece
que alguém tenha, efetivamente, investigado quais os fatos precisos que
devem ser estabelecidos para provar que ‘os laços da ordem social
estavam a dissolver’.”
188
(BEARD, 1968: 48).
187
“Large and important groups of economic interests were adversely affected by the system of
government under the Articles of Confederation, namely, those of public securities, shipping and
manufacturing, money at interest; in short, capital as opposed to land.
“The representatives of these important interests attempted through the regular legal channels to secure
amendments to the Articles of Confederation which would safeguard their rights in the future, particularly
those of the public creditors.
“Having failed to realize their great purposes through the regular means, the leaders in the movement set
to work to secure by a circuitous route the assemblying of a Convention to ‘revise’ the Articles of
Confederation with the hope of obtaining, outside of the existing legal framework, the adoption of a
revolutionary programme.”.
188
“It may be that ‘the critical period’ was not such a critical period at all; but a phantom of the
imagination produced by some undoubted evils which could have been remedied without a political
revolution. (…). It does not appear that any one has really inquired just what precise facts must be
established to prove that ‘the bonds of the social order were dissolving.’.”
99
BEARD (1968: 48) chega, inclusive, a reforçar a necessidade de se
verificar a veracidade do péssimo cenário pintado acerca do período da ‘politics of
liberty’, sob o argumento de que parte da história teria sido escrito pelos Federalistas,
pelos vencedores. Portanto, sem a imparcialidade necessária.
Ao realizar o cotejo entre os interesses econômicos em vigor na época e
os membros da Convenção de Filadélfia e defensores da Constituição, o autor conclui
que quase todos eram ou proprietários de terra no oeste, eram grandes credores e, mais
importante, eram detentores de grande quantidade de títulos de dívida pública (v.
B
EARD, 1968: 73-151). Sobre estes últimos, dos 55 membros da Convenção de
Filadélfia, 40 aparecem nos arquivos do Departamento do Tesouro como tendo
realizado, posteriormente, é dizer, após o advento da Constituição de 1787, o resgate
dos valores correspondentes. Ademais, o autor conclui que quase todos os membros
desta provinham da alta sociedade norte-americana:
“Nenhum membro representava, na figura de seu interesse econômico
pessoal, a classe dos agricultores ou dos mecânicos.
“A grande maioria dos membros, ao menos 5/6, eram imediata, direta e
pessoalmente interessados no resultado de seus trabalhos em Filadélfia, e
eram, em maior ou menor medida, beneficiários econômicos da adoção
da Constituição.”
189
(BEARD, 1968: 149).
Disto, o autor (1968: 151) conclui que não se pode considerar os
participantes da Convenção como desinteressados, economicamente, como se
estivessem agindo, apenas, de acordo com princípios abstratos de ciência política.
Muito pelo contrário. Atuavam em prol de seus próprios bolsos.
Nem mesmo a obra Federalist Papers fugiu desta conclusão:
O Federalista, por sua vez, apresenta, de forma relativamente resumida
e sistemática, uma interpretação econômica da Constituição pelos
homens mais aptos, por meio de um conhecimento íntimo dos ideais dos
framers, a expor a ciência política do novo governo. (...). É verdade que
o tom dos escritores é de alguma forma modificado em razão do fato de
que eles estão se dirigindo aos eleitores da Constituição, mas ao mesmo
tempo eles são, por força das circunstâncias, compelidos a convencer um
189
“Not one member represented in his immediate personal economic interest the small farming or the
mechanic classes.
“The overwhelming majority of members, at least five-sixths, were immediately, directly, and personally
interested in the outcome of their labors at Philadelphia, and were to a greater or less extent economic
beneficiaries from the adoption of the Constitution.”.
100
grande grupo de que a segurança e a força se encontram na adoção do
novo sistema.”
190
(BEARD, 1968: 153-154).
E, de fato, há razão em suas palavras. Muitos dos Federalist Papers
sublinham interesses econômicos, principalmente aqueles escritos por HAMILTON e que
se referiam ao comércio. Um exemplo é o Federalist Paper # 11.
De qualquer forma, interessante notar que, muito embora BEARD seja
ácido em sua análise dos interesses econômicos presentes em muitos dos membros da
Convenção de Filadélfia, a intensidade de seus ataques diminue em relação aos
principais expoentes deste movimento. WASHINGTON, MADISON e HAMILTON são
tratados de maneira deferencial.
Quanto ao primeiro, BEARD chega a apontar os interesses econômicos
deste:
“WASHINGTON era também um considerável financiador e sofria com as
operações de papel-moeda da legislatura de Virgínia.”
191
(1968: 145).
Contudo, logo em seguida, ameniza o fato:
“Se alguém no país tinha um motivo para estar desgostoso com as
imbecilidades da Confederação, este era WASHINGTON. Ele havia dado
melhores anos de sua vida para a causa Revolucionária, e havia recusado
qualquer tipo de remuneração pelos seus grandes serviços.”
192
(BEARD,
1968: 145).
Já MADISON não possuía qualquer título público – principal elemento
utilizado na análise de B
EARD:
“Ele não aparece como detentor de títulos públicos; quanto à pequena
quantidade creditada a JAMES MADISON nos livros do Departamento do
190
The Federalist, on the other hand, presents in a relatively brief and systematic form an economic
interpretation of the Constitution by the men best fitted, through an intimate knowledge of the ideals of
the framers, to expound the political science of the new government. (…). It is true that the tone of the
writers is somewhat modified on account of the fact that they are appealing to the voters to ratify the
Constitution, but at the same time they are, by the force of circumstances, compelled to convince large
economic groups that safety and strength lie in the adoption of the new system.”.
191
“Washington was also a considerable money lender and suffered from the paper money operations of
the Virginia legislature.”.
192
“If any one in the country had a just reason for being disgusted with the imbecilities of the
Confederation it was Washington. He had given the best years of life to the Revolutionary cause, and had
refused all remuneration for his great services.”.
101
Tesouro, tal parece ter pertencido ao seu pai, também chamado JAMES
MADISON.”
193
(BEARD, 1968: 125).
De mais a mais, BEARD (1968: 125-126) finda por reforçar o provável
desinteresse de MADISON com a citação de uma carta escrita por este a JEFFERSON, na
qual ele criticava os interesses espúrios por detrás do novo sistema político que havia
criado, principalmente a busca por títulos públicos.
Por fim, em relação a HAMILTON, este, muito embora tenha ocupado o
cargo principal do Departamente do Tesouro, tenha sido reputado o responsável por
criar e desenvolver todo o sistema financeiro nacional e, inclusive, tenha sido
investigado por corrupção
194
*, é inocentado de eventuais interesses econômicos na
elaboração da Constituição:
“A conclusão que se chega desta evidência [poucas provas contra
HAMILTON, a não ser uma carta deste ao seu amigo DUER e que foi
interpretada como um mero alerta entre amigos] é que HAMILTON não
tinha, em 1787, nada mais do que uma pequena quantidade de títulos
públicos que podem ter se valorizado sob o novo sistema; que ele tinha
sim algumas terras no oeste; mas que um extensivo aumento à sua
fortuna pessoal não era levado em consideração por ele. O fato de que ele
morreu pobre é uma evidência disto.”
195
(1968: 114).
Pouco importa, ainda, para BEARD, o fato de HAMILTON se opor ao
governo popular
196
*.
193
“He does not appear to have been a holder of public securities; for the small amounts credited to James
Madison on the books of the Treasury Department seem to have belonged to his father, also named James
Madison.”.
194
Nesse sentido, BEARD:
“Em 1793, HAMILTON foi acusado de violação criminosa das leis, e ficou sob suspeita de ter desviado
dinheiro público. A House of Representatives ficou tão impressionada com as acusações que indicou um
comitê para investigar a conduta do Departamento do Tesouro, particularmente quanto às acusações de
que H
AMILTON utilizou dinheiro público para ‘empréstimos servis, descontos, e acomodações’ para ele e
para seus amigos.” (1968: 104).
In 1793, Hamilton was accused of a criminal violation of the laws, and laid under the suspicion of being a
defaulter. The House of Representatives was so impressed with the charges that it appointed a committee
to investigate the conduct of the Treasury Department, particularly with regard to the charge that
Hamilton had made the public moneys ‘subservient to loans, discounts, and accommodations’ to himself
and friends.”.
195
“The conclusion to be reached from this evidence is that Hamilton did not have in 1787 any more than
a petty amount of public securities which might appreciate under a new system; that he did have some
western land; but that an extensive augmentation of his personal fortune was no consideration with him.
The fact that he died a poor man is conclusive evidence of this fact.”
196
Nas palavras de BEARD: “É verdade que, em particular, ele usualmente expressava seu desprezo pelo
governo popular, [desprezo] que não é mencionado em seus papéis públicos.” (1968: 102-103).
“It is true that in private he often expressed a contempt for popular rule which is absent from his public
papers”.
102
Em resumo, os Federalistas eram compostos, em sua maioria, por pessoas
economicamente interessadas no resultado da Constituição. Os opositores, por sua vez,
como LUTHER MARTIN, se caracterizavam pela ausência destes mesmos interesses.
E, mais importante do que isto, esta tendência se manteve no processo de
ratificação da Constituição de 1787, nos Estados. A oposição era proveniente das
regiões mais agrícolas, das áreas que favoreciam o papel-moeda e outras formas de
evitar o pagamento de débitos contraídos (Cf. BEARD, 1968: 291).
Já os defensores e os alvos dos Federalistas, em sua busca de apoio, eram
os mercadores, financiadores e credores públicos, os quais eram atraídos pela promessa
de segurança econômica (Cf. BEARD, 1968: 294).
Importante destacar, ainda, na análise de BEARD, a escassa participação
popular no processo de ratificação da Constituição de 1787, escassez esta que tinha,
também, fundamento econômico.
Quando da realização da Convenção de Filadélfia, estabeleceu-se que o
processo de ratificação, a forma com que ocorreriam as convenções responsáveis por
esta, seria determinada pelos próprios Estados. O resultado foi que a votação para os
delegados que comporiam as Convenções se pautou em critérios de propriedade.
Somente quem fosse detentor de uma quantidade x de propriedade é que teria direito de
votar:
“Quantas pessoas favorecem a adoção da Constituição?
O primeiro fato a se notar nesta análise é a considerável proporção da
população de homens brancos e adultos que foram impedidos de
participar nas eleições para delegados à ratificação das convenções
estaduais pela prevalecente qualificação [pautada na] propriedade para o
sufrágio. A determinação desta qualificação de sufrágio foi deixada às
legislaturas estaduais; e em geral eles adotaram as restrições de
propriedade já imposta aos eleitores para membros da casa baixa das
legislaturas estaduais.”
197
(1968: 240).
O resultado deste fato foi que:
197
“How many of the people favored the adoption of the Constitution?
“The first fact to be noted in this examination is that a considerable proportion of the adult white male
population was debarred from participating in the elections of delegates to the ratifying state conventions
by the prevailing property qualifications on the suffrage. The determination of these suffrage
qualifications was left to the state legislatures; and in general they adopted the property restrictions
already imposed on voters for members of the lower branch of the state legislatures.”.
103
“Na ratificação da Constituição, quase que ¾ dos homens adultos deixou
de votar acerca da questão, tendo se ausentado da eleição em que os
delegados dos estados foram escolhidos, quer por sua indiferença ou por
não serem alistáveis em face de qualificações pautadas em
propriedade.”
198
(BEARD, 1968: 325).
Nesse sentido, a Constituição deixa de ser, eminentemente, um
documento aristocrático, ainda que naturalmente aristocrático, e passa a ser, pura e
simplesmente, um documento econômico:
“Muito já foi dito para se demonstrar que a Constituição como um
pedaço de legislação abstrata não refletindo qualquer interesse de grupos
e sem reconhecer qualquer antagonismo econômico é inteiramente falso.
Foi um documento econômico elaborado com incrível habilidade por
homens cujos interesses econômicos estavam imediatamente em jogo”
199
(BEARD, 1968: 188).
Mas e quanto ao debate entre aristocracia e democracia? BEARD
reconhece esta faceta da discussão, como se pode perceber dos diversos comentários
trazidos à colação por ele. Sobre JAMES MCHENRY, que participou da Convenção de
Filadélfia:
“Democracia era, em sua opinião, sinônimo de ‘confusão e
licenciosidade’.”
200
(BEARD, 1968: 204)
Sobre OLIVER ELLSWORTH, um famoso Federalista:
“Nenhum membro da Convenção desconfiava mais de qualquer medida
favorecendo a ‘democracia niveladora’ do que OLIVER ELLSWORTH.
Mais tarde, como Chief Justice, ele denunciou, da banca, JEFFERSON e o
partido francês como ‘apóstolos da anarquia. Derramamento de sangue e
ateísmo’. Na Convenção, ele se opôs às eleições populares do Presidente
e favorecia a associação de juízes ao executivo no exercício do poder de
veto sobre atos do Congresso.”
201
(BEARD, 1968: 196).
198
“In the ratification of the Constitution, about three-fourths of the adult males failed to vote on the
question having abstained from the elections at which delegates to the state conventions were chosen,
either on account of their indifference or their disfranchisement by property qualifications.”.
199
“But enough has been said to show that the concept of the Constitution as a piece of abstract
legislation reflecting no group interests and recognizing no economic antagonisms is entirely false. It was
an economic document drawn with superb skill by men whose property interests were immediately at
stake.”.
200
“Democracy was, in his opinion, synonymous with ‘confusion and licentiousness.’.”.
201
“No member of the Convention distrusted anything savoring of ‘levelling democracy’ more than
Oliver Ellsworth. Later as Chief Justice he denounced from the bench Jefferson and the French party as
‘the apostles of anarchy. Bloodshed, and atheism’. In the Convention, he opposed the popular election of
104
Nem mesmo WASHINGTON escapou de suas considerações:
“Ele temia, contudo, o tipo de política praticada em Sociedades
Democráticas que pulularam em sua administração, a via de forma crítica
este governo, como predisposto à rebelião.”
202
(BEARD, 1968: 215).
E, tampouco, HAMILTON, o qual havia escrito o seguinte:
“‘Todas as comunidades se dividem, elas próprias, em poucos e muitos.
Os primeiros são os ricos e bem-nascidos, os outros a massa do povo. A
voz do povo é reconhecida como a voz de Deus; e ainda que esta máxima
tenha sido citada e aceita, não é, propriamente, uma verdade. O povo é
turbulento e inconstante; eles quase não julgam ou determinam direitos.
Dê, então, à primeira classe uma permanente e distinta participação no
governo. Ela irá controlar a instabilidade da segunda [classe], e uma vez
que ela não pode receber qualquer vantagem de uma mudança, ela, desta
feita, manterã para sempre um bom governo. Pode uma assembléia
democrática que anualmente retorna à massa do povo [aqui ele estava
fazendo menção à eleição anual destas assembléias] ser considerada
estável para buscar o bem-comum? Apenas um corpo permanente pode
controlar a imprudência da democracia [H
AMILTON defendia mandatos
vitalícios ou para o Presidente ou para os senadores]...’.”
203
(apud
BEARD, 1968: 199).
Contudo, BEARD, em sua obsessão com a visão econômica do
movimento Constitucionalista, afirmava que o embate entre democracia e aristocracia
era conseqüência daquela dissensão apontada por ele. Este ponto de vista se faz sentir
em seu comentário acerca de HARDING:
“Certamente que este segundo elemento de oposição – aristocracia
versus democracia – introduzido por H
ARDING [em sua análise sobre a
distribuição territorial da votação pela ratificação em Massachusetts] é,
the President and favored associating the judges with the executive in the exercise of a veto power over
acts of Congress.”.
202
“He feared, however, the type of politics represented by the Democratic Societies which sprang up
during his administration, and looked upon criticism of the government as akin to sedition.”.
203
“‘All communities divide themselves into the few and the many. The first are the rich and well born,
the other the mass of the people. The voice of the people has been said to be the voice of God; and
however generally this maxim has been quoted and believed, it is not true in fact. The people are
turbulent and changing; they seldom judge or determine right. Give therefore to the first class a distinct
permanent share in the government. They will check the unsteadiness of the second, and as they cannot
receive any advantage by a change, they therefore will ever maintain a good government. Can a
democratic assembly who annually revolve in the mass of the people, be supposed steadily to pursue the
public good? Nothing but a permanent body can check the imprudence of democracy …’.”.
105
realmente, o primeiro [oposição econômica] sob outras vestes; porquanto
o partido aristocrático era o partido da riqueza com seus apêndices
profissionais; e o partido democrático era o elemento agrário, o qual, por
conta de suas circunstâncias econômicas, não poderia ter aderência de
um grande grupo de profissionais. (...). Mencionar um interesse
democrático apartado de suas fontes econômicas é, então, um trabalho de
supererrogação; e não acrescenta, a bem da verdade, à exposição das
reais forces em trabalho.”
204
(BEARD, 1968: 258).
3. As críticas a BEARD
Não é preciso dizer que o ponto de vista de BEARD suscitou diversas
críticas. Conforme KRAMNICK mencionou, houve uma produção em série de obras
específicas sobre o assunto. Estes são os exemplos de FORREST MCDONALD, em We the
People: The Economic Origins of the Constitution, de ROBERT E. BROWN, em Charles
Beard and the Constitution, e de LEE BENSON, em seu Turner and Beard: American
Historical Writing Reconsidered. Mesmo em trabalhos mais genéricos, havia a menção
a BEARD, como é o caso de STORING (vide o capítulo antecedente ).
As críticas contra ele eram e são diversas. Sua visão era parcial, assaz
marxista. Sua metodologia, falha (muito embora o próprio autor, quase que em todos os
seus capítulos, mencione o fato de que sua pesquisa era, de fato, incompleta). Diz-se
que não havia uma divisão de classes, na época, mas sim uma classe média homogênea.
Enfim, havia uma série de falhas na pesquisa de BEARD, e o resultado foi
a criação de uma cautela acadêmica em torno de sua obra.
A resposta de BEARD foi de certa forma, ácida e irônica. Primeiro,
afirmou que nenhuma obra havia sido tão severamente criticada, mas, ao mesmo tempo,
tão pouco – efetivamente – lida (1968: viii). E, ao que tudo indica, havia veracidade em
sua indignação. Um exemplo claro, que pode ser trazido à baila, é K
RAMNICK,
amplamente citado neste trabalho:
“Há, de fato, algumas falhas fundamentais na análise simplista de
BEARD. Muitos dos principais Anti-Federalistas, por exemplo, estavam
entre os mais ricos homens do país. GEORGE MASON considerava
G
EORGE WASHINGTON como um novo-rico, e JOHN WHINTROP
204
“Of course this second element of opposition – aristocracy versus democracy – introduced by Harding
is really but the first under another guise; for the aristocratic party was the party of wealth with its
professional dependents; and the democratic party was the agrarian element which, by the nature of
economic circumstances, could have no large body of professional adherents. (…). To speak of a
democratic interest apart from its economic sources is therefore a work of supererogation; and it does not
add, in fact, to an exposition of the real forces at work.”
106
(‘Agrippa’) era um herdeiro da mais aristocrática família. Nem RICHARD
LEE e ELBRIDGE GERRY tinham pouco dinheiro. O reverso também é
verdade; pequenos artesões nas maiores cidades eram ardorosos
defensores da Constituição.”
205
(In. MADISON, HAMILTON, JAY, 1987:
61-62).
KRAMNICK parece querer reduzir, de forma simplista, a análise de BEARD
a um embate entre ricos e pobres. Obviamente que eram os mais ricos que, usualmente,
defendiam a Constituição. Contudo, pessoas com pretensões de ascensão econômica e
de riqueza também se encaixavam neste grupo.
Já quanto ao fato de pequenos artesões defenderem a Constituição, a sua
eventual pobreza não implica um desinteresse econômico, por parte destes, no resultado
do novo sistema político. Muito pelo contrário. O novo sistema político, o qual erigiria
altas tarifas para os produtos estrangeiros, incentivaria o comércio e os produtos
internos. Ou seja, atenderia aos interesses econômicos dos pequenos artesões.
Quanto ao fato de muitos opositores, Antifederalistas, serem ricos,
BEARD não desconsidera este fato. Aliás, por vezes, afirma que a própria rejeição à
Constituição poderia também decorrer de interesses econômicos. Ele cita como exemplo
MASON, antifederalista, por assim dizer, bem postado economicamente:
“Embora MASON tenha se recusado a assinar a Constituição, suas razões
foram baseadas em interesses econômicos pessoas, não em qualquer
objeção aos limites sobre as legislaturas democráticas.”
206
(BEARD, 1968:
207).
Ademais, não se pode desconsiderar que BEARD não pretende encetar em
todo e qualquer defensor ou opositor da Constituição a figura do interesse econômico.
Havia, sim, pessoas desinteressadas. Contudo, este fato não reduz a importância da
questão econômica quando da elaboração da Constituição.
De mais a mais, BEARD afirma, em seu prefácio à segunda edição de sua
obra, que sua visão é uma das diversas possíveis e não a única.
205
“There are, indeed, some fundamental flaws in Beard’s simplistic analysis. Many of the leading Anti-
Federalists, for example, were among the wealthiest men in the country. George Mason regarded George
Washington as a parvenu surveyor, and John Winthrop (‘Agrippa’) was a scion of New England’s most
aristocratic family. Nor did Richard Lee and Elbridge Gerry lack great wealth. The reverse is also true;
capital-poor artisans in the major cities were ardent supporters of the Constitution.”.
107
“Eu não a chamei de ‘a’ interpretação econômica, ou a ‘única’
interpretação possível. Tampouco pretendi que esta fosse ‘a história’ da
formação e adoção da Constituição. O leitor foi avisado, de antemão, da
teoria e da ênfase. (...). Eu simplesmente busquei trazer de volta ao
cenário mental da Constituição estas características realistas do conflito
de interesses econômicos, que meus mestres haviam, por alguma razão,
deixado de fora, ou reputado mais como um fator incidental do que
fundamental.”
207
(BEARD, 1968: viii).
De qualquer forma, é certo que o posicionamento de BEARD não pode ser
utilizado sem reflexão (e esta nem parece ser a vontade do autor). Contudo, não se pode,
tampouco, desconsiderá-lo. Fica, aqui, o alerta de MAIN:
“Por um lado, BEARD não mais pode ser aceito sem sérias reservas. Por
outro, BROWN e MCDONALD não destruíram, por inteiro, o seu trabalho,
e tampouco obtiveram sucesso em substituí-lo com um novo ponto de
vista”
208
(1974: 294).
4. A importância de seu estudo para o constitucionalismo
A polêmica suscitada por BEARD produziu uma série de benefícios. A
primeira e quiçá mais importante, e que é citada por STORING, conforme visto no
capítulo referente aos Antifederalistas, foi a sua visão iconoclasta dos Federalistas
(salvo, é claro, por WASHINGTON, MADISON e HAMILTON, aos quais BEARD demonstra
uma inexplicável deferência) e que fez com os Antifederalistas fossem estudados com
outra visão, mais simpática à sua causa.
Outro benefício, e este é alardeado pelo próprio autor, é a demonstração,
aos leitores, de que há interesses econômicos por detrás de toda grande mudança
histórica. Os grandes vetores sociais não são a justiça e o bem geral, mas os interesses
econômicos (Cf. B
EARD, 1968: 17-18). Ter consciência deste fato faz com que a
população, em geral, não seja argila na mão de seus fazedores (BEARD, 1968: xvii).
206
“Although Mason refused to sign the Constitution, his reasons were based on personal economic
interests, not on any objections to its checks on democratic legislatures.”.
207
“I did not call it ‘the’ economic interpretation, or ‘the only’ interpretation possible to thought. Nor did
I pretend that it was ‘the history’ of the formation and adoption of the Constitution. The reader was
warned in advance of the theory and the emphasis. (…). I simply sought to bring back into the mental
picture of the Constitution those realistic features of economic conflict, stress, and strain, which my
masters had, for some reason, left out of it, or thrust far into the background as incidental rather than
fundamental.”.
208
“On the one hand, Beard can no longer be accepted without serious reservations. On the other, Brown
and McDonald have not entirely destroyed the older work, nor have they succeeded in replacing it with a
fresh view.”
108
Para os fins deste estudo, a importância está na demonstração de uma
versão nem tão romanceada da – provável – história da criação de um fenômeno que
marcou a história política do mundo. O constitucionalismo não nasceu para controlar as
monarquias absolutistas (o que já se procura refutar de alfa a ômega, neste trabalho) e,
tampouco, para controlar a legislatura, a tirania do legislativo. A finalidade deste
movimento seria prática: assegurar e promover certos interesses econômicos
209
*. Ponto.
Nesse sentido, o controle do legislativo seria meramente incidental e,
desta feita, a tese central da presente dissertação, estaria ameaçada.
Contudo, ainda que se aceite a premissa de BEARD, não se pode dizer que
o constitucionalismo não se preocupa, eminentemente, com o legislativo. Isto porque foi
o próprio legislativo, conforme visto, que colocou em xeque muitos dos interesses
econômicos aventados por B
EARD. Daí é bem possível concluir que o sistema
constitucional que foi esboçado por MADISON e HAMILTON, sendo que o primeiro se
encontra imunizado das críticas de BEARD, simplesmente atraiu o apoio dos que
detinham interesses econômicos. Ou seja, o constitucionalismo e o seu fruto dileto, a
Constituição de 1787, não seriam o resultado de interesses econômicos, muito embora
estes tenham facilitado a sua aprovação e tenham, de certa forma, sido implementados
através desta.
No esteio deste pensamento, se se aceitar a tese de BEARD, a maior
ameaça será à idealização romântica do constitucionalismo, e não a um dos seus
elementos conceituais.
BIBLIOGRAFIA DA SEÇÃO
BEARD, Charles A. An Economic Interpretation of the Constitution of the United
States, 5
th
printing. New York: The Free Press, 1968.
KRAMNIC, Isaac. “Editor’s Introduction”. In. MADISON, James; HAMILTON,
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MAIN, Jackson Turner. The Anti-Federalists: critics of the Constitution 1781-1788.
New York: The Norton Library, 1974.
209
Se é bem verdade que a ideologia usualmente retratada dos Federalistas, de aristocracia natural, já
sofre fortes críticas por parte dos Antifederalistas, que reputavam tal ideologia como antidemocrática; o
ponto de vista extremado de B
EARD serve para acabar com qualquer dúvida acerca da legitimidade
democrática daquela Constituição. Simplesmente não haveria. Quanto a este último ponto, BEARD (1968:
viii) narra que um escritor socialista, inclusive, utilizou sua obra para sugerir uma nova Constituição.
109
STORING, Herbert J. What the Anti-Federalists Were For: the political thought of the
opponents of the Constitution. Chicago: The University of Chicago Press, 1981.
110
CONCLUSÃO
No corpo da presente dissertação, buscou-se precisar um conceito de
constitucionalismo que fosse peculiar o suficiente para apartá-lo das demais técnicas de
limitação do Estado. Muito embora a lei tenha uma importância supina em sua
definição, tal como ocorre com o Estado de Direito, o rule of law e o Rechtsstaat, o
constitucionalismo finda por inserir, no âmbito de seu controle, a própria figura da lei.
Nesse sentido, o constitucionalismo rompe com um paradigma, esposado
por F
ILMER, segundo o qual o poder de fazer leis seria, naturalmente, arbitrário. Em
outras palavras, o constitucionalismo faz com que a existência de leis sobre leis não seja
mais uma contradição de termos, mas uma realidade necessária à limitação do governo,
mais precisamente uma limitação ao poder legislativo, que ganhava, então, foros de
tirania.
Deste fato, chega-se à conclusão de que o constitucionalismo não vem a
controlar precisamente as monarquias absolutistas, como em regra se defende em
muitos manuais de direito constitucional. Muito pelo contrário. A sua intenção é
controlar exatamente o sistema idealizado para controlar as monarquias, que eram
pautadas por um executivo forte e enérgico. Em outras palavras, o fenômeno estudado
nesta dissertação veio a limitar a supremacia do parlamento.
A própria concepção do sistema do constitucionalismo bem demonstra
esta sua finalidade. A previsão de (i) uma divisão hierárquica no sistema normativo e de
(ii) uma forma de assegurar a higidez desta divisão, em regra pelo judiciário, são
suficientes para demonstrar que a preocupação do constitucionalismo está vocacionada
ao Poder Legislativo.
O estudo do processo histórico da criação da Constituição de 1787, nos
Estados Unidos, data esta que é reputada, na presente monografia, como o marco do
nascimento do constitucionalismo, somente vem a confirmar a tese acima.
Após a Declaração da Independência, instaurou-se a ‘politics of liberty’,
que se caracterizou pela transferência do protagonismo político do Poder Executivo para
o Poder Legislativo, sob a crença de que esta seria a única forma de se evitar a tirania do
executivo (Cf. WOOD, 1972: 154-155). Veja-se bem que este simples fato se afigura
como um importante indício do equívoco da idéia de que o constitucionalismo viria a
controlar as monarquias absolutistas.
111
O resultado desta concepção política, sem embargo, não foi dos mais
louváveis. Sem a existência de qualquer limitação às legislaturas estaduais (a teoria da
separação dos poderes estava presente, apenas, no plano teórico), e tendo em vista o tipo
de homem que as compunha, homens sem experiência política e desprovidos de
educação, tais passaram a aprovar um sem-número de leis de conteúdo duvidoso, e que
pretendiam, apenas, assegurar os interesses particulares dos membros desta.
Neste diapasão, leis que autorizavam a emissão de papel-moeda, que
desconsideravam contratos ou que dificultavam ou suspendiam os meios então
existentes para se fazer cumprir obrigações contratuais se tornaram a matéria preferida
das legislaturas. As implicações foram as piores possíveis: insegurança e caos.
Como conseqüência, passou-se a buscar um remédio para estas mazelas,
que fosse capaz de limitar a legislatura e evitar a emissão das leis acima mencionadas. E
o remédio encontrado pelos membros da Convenção de Filadélfia, que se realizou em
1787, foi a idealização de um sistema político complexo, cuja finalidade precípua seria
a de controlar o legislativo: a Constituição de 1787.
Daí o porquê falar que o constitucionalismo somente surge a partir deste
momento e, principalmente, a partir da experiência norte-americana.
Os instrumentos utilizados para restringir o Poder Legislativo foram,
principalmente, a sua divisão em duas câmeras (o Senado – de composição mais
aristocrática, e a House of Representatives) e a previsão de um Executivo mais ativo e
enérgico. No âmbito destas duas medidas, elaborou-se o filtering principle, cuja
finalidade seria a de lapidar o critério de escolha dos membros da House of
Representatives, do Senado e da Presidência, de forma a assegurar que estes fizessem
parte da dita aristocracia natural.
A busca desta aristocracia natural para ocupar os cargos do governo,
por parte dos idealizadores da Constituição de 1787, fez com que o seu produto tivesse
uma áurea aristocrática, e que para muitos era anti-democrática. De certa forma, esta
‘qualidade’ passou para o próprio fenômeno do constitucionalismo.
A terceira maneira idealizada para restringir as legislaturas e o seu
produto foi a figura do poder judiciário, efetivamente autônomo, e, dotado com a
capacidade de realizar o controle de constitucionalidade, ou judicial review, e, assim,
assegurar a hierarquia das normas constitucionais.
A pretensa natureza aristocrática da Constituição de 1787 foi bem
explorada pelos seus opositores, os Antifederalistas, a ponto de a dissensão
112
aristocracia/democracia poder ser considerada como o verdadeiro pano de fundo da
discórdia entre os Antifederalistas e os Federalistas.
Outros doutrinadores, como BEARD, por sua vez, concederam maior
ênfase ao aspecto econômico do debate e da própria Constituição de 1787. Nesse
sentido, o movimento constitucionalista nada mais seria do que um movimento que
visasse assegurar certos interesses econômicos.
O risco de uma interpretação deste porte para a definição conceitual de
constitucionalismo esposada no Capítulo I não é desprezível. Afinal, esta inferência,
assaz prática, seria capaz de retirar do constitucionalismo a sua preocupação
institucional, que é limitar eminentemente o legislativo. É dizer, sob os auspícios da
teoria de BEARD, como a pretensão dos Federalistas era a de assegurar eventuais
interesses econômicos, preocupações teóricas com o legislativo são meramente
incidentais: naquele momento, o controle do legislativo era necessário para se assegurar
os interesses econômicos dos Federalistas.
De qualquer forma, esta teoria é bastante contestada e, ainda mais, é bem
provável que a adesão de pessoas com interesses econômicos à Constituição de 1787
tenha sido uma conseqüência do sistema que esta previa do que, mais propriamente, a
sua causa.
Frise-se, assim, que o constitucionalismo é uma forma de limitação do
poder, que tem uma preocupação específica com o Poder Legislativo, e que, por conta
disto, apresenta algumas peculiaridades instrumentais que possibilitam o seu controle.
De mais a mais, o exemplo norte-americano, responsável por iniciar este fenômeno e,
também, pela primeira Constituição, faz com que o constitucionalismo e seu produto
tenham prováveis características aristocráticas (ainda que características de uma
pretensa aristocracia natural) ou que seja produto de interesses econômicos.
Certamente que isto faz com que o fenômeno aqui estudado seja menos
democrático e/ou romântico do que aquela visão que pretende identificar o
constitucionalismo como um movimento contrário às monarquias absolutistas.
Uma visão menos romântica, mas, mais apurada, é certo.
113
BIBLIOGRAFIA FINAL
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