Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS – UNISINOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
OS BENS CULTURAIS SOB A ESPADA DE DÂMOCLES: NOVOS RUMOS DA
PROTEÇÃO JURÍDICA INTERNACIONAL AO PATRIMÔNIO CULTURAL NO
CONTEXTO DA GLOBALIZAÇÃO
Patrick Lucca Da Ros
Curso de Mestrado em Direito
Orientador Prof. Dr. Ielbo Marcus Lobo de Souza
São Leopoldo, dezembro de 2005.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
AGRADECIMENTOS
Um trabalho acadêmico não é uma empreitada realizada solitariamente. Não
obstante suas sentenças sejam redigidas no silêncio e na solidão de uma sala de estudos
localizada, se possível, na parte mais isolada da morada do autor, as vozes que ele passa
para o papel são as vozes de seus mestres, de seu orientador e de outras pessoas, com quem
manteve conversas e com o auxílio dos quais chegou a conclusões valiosas, além, é claro,
de sua própria voz. Todas essas pessoas têm um peso direto na “face” final da dissertação.
Este trabalho não teria sido o que é não fosse a orientação atenta e crítica do
Professor orientador, Prof. Dr. Ielbo Marcus Lobo de Souza. A participação do orientador
no processo de pesquisa acabou em muito complementada pelas orientações proferidas
durante duas disciplinas cursadas no Mestrado (Direito Comunitário e Direito e
Globalização), cujos trabalhos finais, com as devidas modificações, podem ser lidos nestas
páginas. A importância do orientador para um trabalho final, reconhecida que é, não requer
maiores digressões, sendo de se lhe destinar um agradecimento especial.
Outras pessoas que contribuíram de forma direta e indireta, pelas lições passadas ao
ministrar as respectivas disciplinas, foram os professores do curso de Mestrado em Direito
da Unisinos: Prof. Dr. Leonel Severo Rocha, Prof. Dr. Rodrigo Stumpf González, Profa.
Dra. Maria Cláudia Crespo Brauner, Prof. Dr. Albano Marcos Bastos Pêpe, Prof. Dr. Lenio
Luiz Streck e Profa. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella, além do Prof. Dr. Ielbo Marcus
Lobo de Souza. O segundo capítulo deste trabalho é uma adaptação do trabalho final da
disciplina ministrada pela Profa. Dra. Maria Cristina Cereser Pezzella, Sistemas Jurídicos
Contemporâneos, da mesma forma que parte da argumentação utilizada em várias partes do
ads:
3
trabalho foi aproveitada do paper redigido durante a disciplina Direitos Humanos,
ministrada pelo Prof. Dr. Rodrigo González. Alguns pressupostos das matrizes sistêmica e
hermenêutica, estudadas com os Professores Doutores Leonel Rocha e Lenio Streck nas
disciplinas de Teoria do Direito e Hermenêutica Jurídica, foram utilizados como pontos de
partida neste trabalho, ainda que não expressamente abordados nestas páginas. Os estudos
da obra de Roland Barthes, realizados durante a disciplina Educação,
transdisciplinariedade e transformação social, ministrada pelo Prof. Albano Pêpe, foram
também bastante úteis em alguns pontos. A esses professores, o autor expressamente
agradece.
Outras pessoas contribuíram também de forma substancial. Melissa Marin leu várias
partes do trabalho de forma isolada, e, em que pese não tenha, devido à falta de tempo, lido
o trabalho final, auxiliou bastante para que ele tenha sido redigido da forma como o foi. A
Profa. Dra. Sandra Regina Martini Vial tornou possível uma viagem de estudos realizada na
Itália, tendo, outrossim, ajudado o mestrando em outros empreendimentos por ele
desenvolvidos. Na Itália, algumas pessoas enriqueceram em muito esta dissertação, seja
pelas conversas travadas sobre o conteúdo estudado e pelas indicações de leituras, seja
através do auxílio ao acesso a materiais nas universidades italianas, seja pelo acolhimento
fraternal: sobretudo a Profa. Dra. Virginia Zambrano e os doutorandos Josué e Letícia
Möller.
O Mestrado em Direito de que resulta este trabalho, ademais, foi em parte
financiado com uma bolsa de estudos CAPES-PROSUP, o que redundou em uma alocação
de recursos originariamente destinados a custear o curso na aquisição de livros e de outros
materiais de pesquisa para a redação desta dissertação. Logo, também se deve destinar, à
CAPES, o devido agradecimento.
Por fim, é de se enfatizar que a base de todo e qualquer empreitada é a coragem de a
ela lançar-se. Essa coragem, em muitas oportunidades – como foi neste caso –, tem suas
raízes em uma base familiar e em amizades sólidas. Quem teve a sorte de contar com
ambas só tem a agradecer.
4
RESUMO
Resultando de um longo e paulatino desenvolvimento histórico, o direito
internacional do patrimônio cultural consolidou-se principalmente a partir do século XIX.
Inicialmente voltado a combater as ameaças ao patrimônio cultural durante as guerras,
gradativamente esse ordenamento internacional passou a se ocupar de outros aspectos da
proteção aos bens culturais, como a luta ao tráfico ilícito de bens culturais e a proteção, em
tempos de paz, daqueles bens de excepcional valor universal. As normas jurídicas criadas
nesse contexto, em função disso, visavam a enfrentar os problemas da época em que
concebidas, e o fizeram com relativo sucesso durante um certo tempo, não obstante
existisse uma série de problemas que em um primeiro momento ficaram sem solução.
No entanto, os tempos mudaram principalmente depois do fim da Guerra Fria.
Talvez como nunca antes os bens culturais estejam tão ameaçados como estão na era da
globalização. É certo que as ameaças ao patrimônio cultural não são algo novo, mas
atualmente elas ocorrem de forma diversa e com mais intensidade do que tradicionalmente
ocorreram. A essas novas ameaças ou à intensificação daquelas ameaças antigas, entretanto,
a comunidade internacional tem buscado dar, nos últimos anos, respostas bem específicas e
incisivas. Este trabalho, por conseguinte, objetiva investigar os rumos e os desafios postos à
tutela do patrimônio cultural no âmbito do direito internacional frente às novas nuanças
conferidas ao cenário mundial pelo fenômeno de globalização, analisando o aparato
normativo de que se dispunha anteriormente a esse novo contexto, as novas problemáticas
que se tornaram mais evidentes na última década do séc. XX e as respostas fornecidas pela
comunidade internacional a essa nova realidade.
5
ABSTRACT
As a result of a long and slow historical development, the cultural heritage
international law has consolidated itself mainly from the 19
th
Century. Concerned at the
beginning with fighting threats to the cultural heritage during the wars, international law
started step by step to regulate other aspects of the protection of cultural property, such as
the fight against the illicit traffic of cultural property and the protection, in peacetime, of
properties of outstanding universal value. The legal norms thus created in this context
aimed at facing the problems of the time they were conceived, what had been done with
some success for a certain time, even though there were some problems which remained
unsolved at first.
However, time has changed mainly after the end of the Cold War. Arguably,
cultural property has never been so threatened as it is in this time of globalization. Certainly
threats to cultural property are not something new, but now they occur in a different and
more intensive way. To those new threats or to the intensification of the old ones,
nevertheless, international community is trying to give, in the last years, specific and
incisive answers. Hence, this dissertation aims to research the paths and challenges put
forward to the protection of cultural heritage within the ambit of international law
considering the new nuances assigned to the world scenery by the globalization
phenomenon, analyzing the normative tools available before this new context, the new
problems that became evident in the last decade of the 20
th
Century and the answers given
by international community to this new reality.
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.....................................................................................................................9
1 CONCEITO E IMPORTÂNCIA DO PATRIMÔNIO CULTURAL ...............................18
1.1 Uma definição de cultura................................................................................................20
1.2 Patrimônio cultural: conceituação e importância ...........................................................29
2 DO DIREITO ROMANO À EUROPA DO SÉC. XIX: ORIGENS DA PROTEÇÃO
JURÍDICA AO PATRIMÔNIO CULTURAL NOS ORDENAMENTOS JURÍDICOS
NACIONAIS ........................................................................................................................61
2.1 Tutela jurídica da cultura no direito romano ..................................................................64
2.1.1 Proteção da cultura romana .......................................................................................66
2.1.2 Patrimônio cultural dos povos não-romanos diante dos romanos .............................77
2.2 Fortalecimento do cristianismo, decadência de Roma e proteção à cultura: patrimônio
cultural na Europa dos séculos V a XIX...............................................................................86
2.2.1 A decadência de Roma e a Idade Média .....................................................................86
2.2.2 O Humanismo do Quattrocento e as obras do Papado ...............................................98
2.2.3 Os séculos XVI a XIX: proteção ao patrimônio cultural durante a Idade Moderna.102
2.2.4 O séc. XIX e a valorização da obra de arte e do monumento histórico: o início da
proteção ao patrimônio cultural nas legislações nacionais...............................................114
3 O NASCIMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL DO PATRIMÔNIO CULTURAL
E A SUA FASE PRÉ-GLOBALIZAÇÃO.........................................................................120
3.1 A atuação da UNESCO no campo dos bens culturais..................................................122
7
3.2 Um direito internacional de proteção ao patrimônio cultural: o surgimento de um
regramento protetivo para os tempos de guerra..................................................................129
3.3 Patrimônio cultural e luta contra o tráfico ilícito de bens culturais no direito
internacional: surgimento do direito internacional dos bens culturais em tempos de paz..164
3.4 Medidas de proteção ao patrimônio cultural em tempos de paz não incidentes sobre o
tráfico ilícito de bens culturais: a Convenção UNESCO para a Proteção do Patrimônio
Cultural e Natural Mundial.................................................................................................190
3.5 Instrumentos de direito internacional dos direitos humanos que protegem direitos
culturais: uma proteção mais genérica................................................................................203
3.6 Outros instrumentos internacionais importantes na salvaguarda do patrimônio cultural
............................................................................................................................................206
3.7 Um direito internacional costumeiro de protão ao patrimônio cultural....................209
4 GLOBALIZAÇÃO, ENFRAQUECIMENTO DO ESTADO E PATRIMÔNIO
CULTURAL: O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL GLOBAL NO SUPRIMENTO DAS
DEFICIÊNCIAS ESTATAIS.............................................................................................215
4.1 Globalização, uma nova realidade mundial..................................................................216
4.2 Enfraquecimento do Estado e patrimônio cultural .......................................................231
4.3 Outros níveis de proteção jurídica do patrimônio cultural: iniciativas supranacionais e
não-governamentais como modo de suprir as deficiências estatais ...................................242
4.3.1 Direito comunitário e salvaguarda ao patrimônio cultural......................................242
4.3.2 Atuações intergovernamentais e não-governamentais na seara internacional: uma
alternativa possível para suprir as debilidades estatais em escala global? ......................261
5 NOVOS DESENVOLVIMENTOS NO DIREITO INTERNACIONAL DO
PATRIMÔNIO CULTURAL DIANTE DA GLOBALIZAÇÃO......................................278
5.1 Desafios do patrimônio cultural imaterial diante da globalização e respostas da
comunidade internacional a esses desafios.........................................................................278
5.1.1 Patrimônio cultural imaterial, cultura de massa global e o perigo de estandardização
............................................................................................................................................278
8
5.1.2 A UNESCO e as iniciativas internacionais de proteção do patrimônio cultural
imaterial .............................................................................................................................294
5.2 Patrimônio cultural material e globalização: algumas ameaças novas e o
aprofundamento das antigas ameaças.................................................................................310
5.2.1 Ressurgimento do nacionalismo, conflitos étnicos e destruição do patrimônio
cultural: conflitos internos, internacionais e mistos e ofensas ao patrimônio cultural na era
da globalização ..................................................................................................................310
5.2.2 Destruição deliberada e intolerante a cargo do fundamentalismo...........................331
5.2.3 Industrialização, urbanização desenfreada, aumento da poluição e desequilíbrio
ambiental ............................................................................................................................341
5.2.4 Turismo predatório....................................................................................................352
5.2.5 Novas tecnologias e arqueologia marinha................................................................364
5.2.6 O mercado negro de bens culturais...........................................................................371
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................408
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...............................................................................417
9
INTRODUÇÃO
Em uma época em que o ser humano parece, mais do que nunca, dominar as
vicissitudes da técnica e avançar sobremaneira no campo da ciência, condicionando e
prolongando cada vez mais sua existência e seus desígnios neste mundo, as marcas que
deixa em seu encalço, traduzidas por suas expressões culturais, encontram-se em uma
encruzilhada como jamais se viu antes. Talvez como nunca em momento anterior o que se
chamará nestas páginas de “patrimônio cultural” – de forma simples, aqueles bens
representativos da cultura de um povo – viu-se tão ameaçado, por motivos variados – que
são, em grande parte, delineados pelo novo contexto mundial trazido pela globalização.
É certo que as ameaças ao patrimônio cultural, como entendido atualmente, não são
algo novo. Em uma prática que remonta à organização social dos indivíduos e aos conflitos
surgidos entre esses arranjos humanos, a Itália de Mussolini saqueou durante a II Guerra
Mundial, entre outros locais, Butrinto (Albânia) e Rhodes (Grécia), levando desses lugares
várias peças pertencentes aos correspondentes patrimônios culturais. Concomitantemente,
em uma prática que se disseminou em toda a Europa em conflito, os italianos viram-se
destituídos de mais de quarenta mil objetos de arte e antigüidades pertencentes a seu
patrimônio cultural que foram levados pelos nazistas, grande parte dos quais jamais
recuperada. Durante aquele mesmo evento bélico, a Abadia de Montecassino, de mais de
dezessete séculos, cujas cercanias eram utilizadas pelas tropas alemãs, acabou sendo quase
que totalmente destruída pelas investidas e pela artilharia dos Aliados. O próprio
holocausto norteava-se por um ideal de limpeza étnica que erradicasse um determinado
grupo social, identificado, sobretudo, por suas manifestações culturais, o que demonstra
10
que era acima de tudo uma iniciativa de perseguição cultural. Milhões de judeus, portadores
desse bem imaterial que é a cultura de seu povo, acabaram trucidados em função disso.
Mais de cinqüenta anos depois, as perdas continuam, em ritmo assustador. Em
2001, a milícia talibã, então governante da maior parte do Afeganistão, promoveu a
implosão de gigantescas estátuas de Buda situadas no Vale de Bamyian, monumentos
históricos estes que demonstravam a milenar rota de influência hindu na Ásia central,
promovendo, outrossim, um surto de destruição iconoclasta deliberada de manifestações
religiosas outras que não aquela dos destruidores. Dois anos depois, a derrubada do regime
do ditador iraquiano Saddam Hussein foi acompanhada, na situação caótica que se
instaurou em seguida, pelos saques às peças das culturas milenares da Mesopotâmia
componentes do acervo do Museu de Bagdá, peças essas que provavelmente se encontrem,
atualmente, em coleções particulares de connoisseurs de arte ou de História ou no mercado
negro internacional de bens culturais; da mesma forma, as necrópoles etruscas são
continuamente saqueadas pelos tombaroli italianos, assim como o são sítios arqueológicos
e tumbas mexicanos, peruanos, guatemaltecos, chineses, cambojanos e tantos outros.
Por outro lado, o não ensino de certas formas dialetais e de línguas as tem
condenado ao ostracismo pelo desuso em velocidade espantosamente rápida nos últimos
anos, assim como o aprofundamento do abismo generacional entre mais idosos e mais
jovens, impulsionado por um refute sistemático pelo que é tradicional, tem determinado o
abandono de manifestações culturais por séculos passadas de pai para filho e assim
mantidas ativas dentro de certos grupos humanos. Como nunca antes, a diversidade cultural
parece tão ameaçada a ponto de se temer que ela soçobre ante uma cultura global unificada.
O que todos esses exemplos – que, infelizmente, são apenas uma pequena parcela
do que se poderia elencar nestas páginas – demonstram é um desrespeito às manifestações
culturais, sobretudo as dos “outros”, que tem como principal causa a submissão da
continuidade dessas manifestações a interesses que não são o da preservação e o da
tolerância: necessidade militar, consolidação de uma identidade cultural única/unívoca,
obtenção de pecúnia na venda de objetos, intolerância religiosa e/ou étnica. Hodiernamente,
11
a rapidez das transformações engendradas mormente em razão da globalização econômica,
decorrente que esta é dos desdobramentos do sistema capitalista de matriz liberal-
individualista, ameaça comprometer seriamente o patrimônio cultural principalmente
naquilo que ele é em essência: uma expressão simbólica de sentidos construídos
intersubjetivamente.
Com efeito, vive-se um momento histórico em que a lógica de mercado investe na
produção de standards culturais mundiais com vistas a estabelecer padrões uniformes de
cultura e de apreço pelos mesmos produtos para erigir um mercado cultural global que os
absorva (leia-se: “que os consuma”), em que a facilidade e a dinamização das
comunicações propicia a negociação de bens culturais em tempo real por meios eletrônicos
e digitais, em que o aumento da miséria em âmbito global impulsiona os saques a sítios
arqueológicos e os furtos a museus e a coleções particulares de bens culturais – não raro
com amparo do crime organizado transnacional –, em que ganha ampla difusão o niilismo
que redunda no abandono da tradição e dos valores caros aos ancestrais, em que vigora uma
indústria do turismo de massa, em que se testemunha um enfraquecimento do Estado como
protetor tradicional do patrimônio cultural e um aprofundamento de um processo de
urbanização desenfreada e de desequilíbrio climático que corrói as estruturas físicas dos
bens de cultura – e que ameaça, pelo aumento do nível dos oceanos, além da continuidade
mesma da vida humana, cidades inteiras com patrimônio cultural riquíssimo, como Veneza.
Em um contexto desses, a continuidade do patrimônio cultural exige mais do que uma
atitude passiva ou indiferente.
Este trabalho, por conseguinte, objetiva investigar os rumos e os desafios postos à
tutela do patrimônio cultural no âmbito do direito internacional frente às novas nuanças
conferidas ao cenário mundial pelo fenômeno de globalização, analisando o aparato
normativo de que se dispunha anteriormente a esse novo contexto, as novas problemáticas
que se tornaram mais evidentes na última década do séc. XX e as respostas fornecidas pela
comunidade internacional a essa nova realidade. Contrariamente a que a uma análise menos
cuidadosa possa parecer, um assunto nesses termos é de grande relevância mesmo para o
Brasil, uma vez que, como se procurará demonstrar, patrimônio cultural não consiste
12
apenas naquelas manifestações culturais que mais em geral vêm à mente quando evocado o
termo – ou seja, monumentos históricos, sítios arqueológicos e obras de arte. Em uma
acepção mais ampla do termo, assumida como mais realística para os escopos deste estudo,
a idéia de patrimônio cultural deve englobar também as manifestações imateriais da cultura,
o que rende países de História humana mais recente, sem tantos testemunhos materiais de
tempos antigos, também culturalmente relevantes. Com isso, esta dissertação busca,
principalmente, contribuir à formação de um debate sobre o patrimônio cultural também
entre os juristas brasileiros, que, salvo gloriosas exceções, pouca atenção lhe devotam.
Uma pesquisa nesse sentido pode ser bastante útil, sobretudo porque traz a lume
uma discussão que, como salientado, recebe pouca atenção no Brasil. Como, outrossim, um
estudo tal goza de um foco sobremaneira atual, ele tem o condão de contribuir a um debate
que se faz imperativo com a máxima urgência. De fato, sendo a tutela dos bens culturais em
uma sociedade que muda rapidamente uma “corrida contra o tempo”, pois as delongas
somente acarretam perdas crescentes, e em virtude de que esse conjunto de bens, consoante
espera-se que fique claro nas laudas que seguem, é importante para os seres humanos –
consistindo mesmo em motivo para que pessoas matem ou morram –, portando, por
conseguinte, sentido às suas vidas, existe uma razão manifesta em se debater os problemas
de sua preservação também no direito. De qualquer forma, no primeiro capítulo tentar-se-á
demonstrar razões suficientes a que o patrimônio cultural seja destinatário de uma
salvaguarda jurídica.
A metodologia empregada para a redação do trabalho foi precipuamente a pesquisa
bibliográfica, com especial dedicação à leitura e à análise crítica de livros e de artigos
redigidos principalmente por autores de longa data dedicados à temática objeto de estudo.
Devido à exigüidade do material publicado no Brasil, a maior parte das referências que se
encontram nestas páginas são de obras publicadas alhures, mormente em língua inglesa e
italiana. Em função disso, o exame da realidade sobretudo européia – como se poderá
perceber da leitura do texto – não consiste em opção deliberada; o fato é que a maioria dos
estudos disponíveis trata dessa realidade. Além do mais, o enfoque europeu acabou por
condicionar, na esfera internacional, muitos dos princípios-guia da tutela dos bens culturais
13
e a sua aplicação – para tanto, basta lembrar que a Lista do Patrimônio da Humanidade
estipulada pela Convenção UNESCO para a Proteção do Patrimônio Cultural e Natural
Mundial, um dos instrumentos mais eficazes de tutela e seguramente o mais famoso dentre
eles, contém, em sua maioria, bens europeus. Apesar disso, os aspectos errôneos
decorrentes desse eurocentrismo serão oportunamente criticados, a começar pela sua
acepção monumentalista de patrimônio cultural, sendo que se envidará esforços, dentro do
possível, para situar a questão em um nível mais global.
Outro aspecto relativo à bibliografia consultada e às noções desenvolvidas nestas
páginas diz respeito a um enfoque maior e uma problematização mais acentuada em relação
aos bens culturais materiais. Isso, também, não se tratou de uma escolha, e sim de uma
conseqüência do fato de que, ao que se pôde verificar no transcurso da pesquisa, a maciça
maioria dos estudos dedicados a essa temática cinge-se a esse aspecto, olvidando-se quase
que completamente dos bens culturais imateriais. Ao que foi possível constatar, inexistem,
até o momento, trabalhos mais extensos dedicados especificamente, do ponto de vista
jurídico, a ambas nuances. Mesmo a atuação da UNESCO no que tange aos bens
intangíveis, segundo se poderá verificar, é recente. Logo, sendo exígua a bibliografia a
respeito da proteção jurídica internacional aos bens culturais imateriais, a decorrência
lógica é que, neste estudo, não obstante não se pretenda privilegiar um aspecto sobre o
outro, como deverá ficar mais evidente no primeiro capítulo, uma maior atenção àquele
legado físico é intransponível, ao menos para os escopos ora propostos, dado que em
relação a ele já se dedicou um debate mais aprofundado e que a tutela dos bens intangíveis
ainda é disciplina que engatinha.
Dentro da questão metodológica, faz-se mister salientar, ainda, que a este trabalho,
em que pese ele consista no resultado de um Mestrado em Direito, não bastam somente as
definições jurídicas. Isso provavelmente restará manifesto na leitura. Lidar com patrimônio
cultural importa flertar necessariamente com outras áreas do conhecimento, tais como a
semiótica, a antropologia, a sociologia e a arquitetura, apenas para citar algumas das áreas
mais diretamente envolvidas. Além disso, sabendo-se que quando se fala em direito
internacional não estão implicados tão-somente fenômenos estritamente jurídicos, mas
14
também fenômenos ligados às relações internacionais e à política, esse caráter inter e
transdisciplinar deve ser reputado como pano de fundo da análise que será traçada nestas
páginas. Por certo isso pode acarretar com que conceitos caros a essas outras áreas sejam
empregados de forma inexata, sobretudo se houver uma diferença entre a definição técnica
de um termo e o seu emprego no português formal correntemente utilizado. É um risco,
entretanto, que é necessário correr, dado que uma discussão crítica acerca de vários
aspectos dos bens culturais precisa buscar elementos em várias outras searas do
conhecimento, conforme já acenado. Isso também pode acarretar em que esta dissertação
fuja um pouco ao que é usual em outros trabalhos finais do curso de Mestrado em direito,
talvez causando certa estranheza. Para tornar mais factível e assimilável a leitura – e
mesmo para deixá-la mais interessante e aprazível –, a esses aportes de outras disciplinas
buscou-se agregar exemplos práticos e reais do que se verifica na praxis da proteção ao
patrimônio cultural.
De qualquer modo, a despeito de que instrumentos normativos serão examinados no
percurso traçado, a tônica deste trabalho não deverá ser a que usualmente se verifica em
empreendimentos com temática similar a esta, ou seja, a condução do escopo proposto se
pautará por uma tentativa de ir além de uma análise estritamente positivista, e que, pelo
contrário, tenha como característica o criticismo imprescindível a que haja uma melhor lida
com o tema em questão.
Por outro lado, além da pesquisa bibliográfica – que teve como palco não apenas a
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), mas também a Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), no Brasil, e a Università degli Studi di Salerno, a Università degli Studi di
Lecce, a Università degli Studi di Bari e a Università degli Studi di Padova, na Itália, além
da Universidad del Salvador, em Buenos Aires, na Argentina –, ao resultado final foi
indispensável, em pontos específicos que ulteriormente acabaram sendo utilizados na
dissertação com as devidas mudanças de enfoque, as discussões e pesquisas realizadas em
diversas das disciplinas cursadas durante o Mestrado. Algumas visitas realizadas in loco em
sítios arqueológicos, monumentos e museus na Itália e no Brasil, além do contato com
15
pessoas que trabalham nesses locais, permitiram a realização de alguns comentários
baseados sobretudo em observações empíricas. Essas observações, não obstantes suas
manifestas limitações, são bastante úteis como ponto de referência. Por fim, foram
utilizados documentos cujo acesso deu-se através da World Wide Web, sempre, entretanto,
de páginas eletrônicas de instituições confiáveis (especialmente organizações internacionais
e universidades norte-americanas).
Este trabalho divide-se em cinco capítulos, que poderiam ser separados em duas
partes distintas. Inicialmente, em um esforço que englobará os três primeiros capítulos,
procurar-se-á lançar as bases para o debate que se desenvolverá no que se poderia definir
como segunda parte do trabalho. Nesses tópicos, serão abordados os aspectos pertinentes à
tutela do patrimônio cultural antes da globalização.
Evidentemente, é difícil delimitar uma data específica para o “início” da
globalização, principalmente caso ela for entendida como um processo que foi
paulatinamente se aprofundando. Logo, a escolha de uma data para demarcar seu começo é
arbitrária, sendo realizada por conveniência acadêmica e para facilitar o desenvolvimento
da temática que se propôs estudar neste trabalho, porém deve, concomitantemente, ter uma
razão de ser. Para os fins perseguidos nesta exposição, tomar-se-á como termo separador
das duas “fases” cuja análise visa-se a realizar aqui o fim da Guerra Fria, cujo marco será
entendido como sendo o biênio 1989-1990, sobretudo porque, de acordo com o que será
demonstrado, há dois momentos normativos relativos especificamente aos bens culturais
bem distintos no âmbito da comunidade internacional: o primeiro deles sobretudo entre a
década de 1950 e de 1970 e o segundo deles a partir da década de 1990. Uma divisão
nesses moldes justifica também um exame separado desses dois momentos, separação essa
que possibilita uma melhor análise dos momentos históricos distintos em que cada uma
dessas fases se desenvolveu.
O primeiro capítulo buscará traçar algumas diretrizes conceituais que nortearão o
desenvolvimento dos demais. Assim, tratará da discussão acerca do conceito de cultura, de
sua relação com a questão da diversidade cultural e com a conceituação de bens culturais.
16
Essas idéias servirão como sentido de base para as discussões travadas nos capítulos
subseqüentes, além de que servirão como guias à argumentação que for, então, conduzida.
O segundo capítulo terá como fio condutor uma explanação da tutela conferida pelo
direito a diversos aspectos do patrimônio cultural quando essa noção e um direito
internacional do patrimônio cultural sequer existiam, tomando como termo inicial a
estruturação do direito enquanto sistema razoavelmente bem definido e de certa forma
secularizado (momento identificado como sendo a instituição de um direito romano) e
como termo final o período imediatamente anterior ao surgimento de uma preocupação
internacional mais voltada à causa da tutela do patrimônio cultural (ou seja, o séc. XIX).
O terceiro capítulo, por sua vez, debruçar-se-á sobre a formação de um direito
internacional voltado especificamente à causa do patrimônio cultural no que se poderia
reputar como uma primeira fase, ocorrida pré-globalização. Nesse ponto, será examinado o
aparato jurídico com o qual a comunidade internacional viu-se diante da intensificação das
mudanças rapidamente ocorridas em nível global e que rapidamente mostrou-se incompleto
diante dos desafios novos surgidos com a globalização e não tão novos que com ela se
intensificaram. Nesse item, de qualquer forma, esses instrumentos jurídicos serão
analisados criticamente, já se adiantando alguns de seus problemas que se fariam ainda
mais evidentes com a globalização.
No segundo momento do trabalho, que se inicia a partir do quarto capítulo, visar-se-
á a examinar o estado da arte da proteção ao patrimônio cultural ante a globalização,
indicando as principais celeumas pertinentes e as respostas da comunidade internacional a
elas já conferidas. Para tanto, esse ulterior foco de discussão divide-se em dois capítulos.
O primeiro capítulo da segunda parte e quarto capítulo do trabalho abordará a
questão da globalização e do enfraquecimento do Estado. Nesse ponto será analisada a
globalização em si e as mudanças por ela trazidas, de forma genérica, à realidade mundial,
sobretudo no que toca aos bens culturais. O enfraquecimento do Estado e a sua decorrente
debilidade na salvaguarda do patrimônio cultural serão abordados nesse momento, além da
17
possibilidade de que antigas competências estatais venham a ser supridas por atores da
sociedade civil global – cuja acepção será também estudada no quarto capítulo.
O quinto capítulo voltar-se-á sobre problemas específicos que o patrimônio cultural
em suas nuances materiais e imateriais enfrenta, explicitando os instrumentos jurídicos que
surgiram como reação a essas celeumas, enfocando, sobretudo, os pontos positivos e
negativos de cada um deles. Esse capítulo, de maior extensão em relação aos demais, por
conseguinte, abordará algumas ameaças específicas aos bens culturais que surgiram ou que
se aprofundaram no contexto da globalização. Para tanto, partirá de casos específicos, que
demonstrem as afirmações feitas no curso da argumentação.
Pretende-se, com as idéias e ilações expostas nesses cinco capítulos, cumprir os
objetivos delineados para esta empreitada, não se visando, de forma alguma, a exaurir o
debate, e sim apenas a ele contribuir e a fomentá-lo em âmbito brasileiro. Tenciona-se que
esses cinco capítulos sirvam a demonstrar a tese de fundo que subjaz a esta dissertação: a
de que, a despeito de que historicamente os bens culturais estiveram seriamente ameaçados,
nunca isso se deu da forma com que ocorre na era da globalização. Independentemente da
concordância ou não do eventual leitor com as idéias que serão enunciadas neste trabalho,
se este servir a, ao menos, contribuir para que a temática se coloque como destinatária de
maiores reflexões dos juristas brasileiros, terá engendrado passo importante.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo