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Myrt Thânia de Souza Cruz
A Chapada Diamantina e a
convivência com o Semi-Árido:
Ameaça de desarticulação e dissolução de comunidades locais
Doutorado em Ciências Sociais -
Antropologia
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC/SP
São Paulo
2006
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Myrt Thânia de Souza Cruz
A Chapada Diamantina e a
convivência com o Semi-Árido:
Ameaça de desarticulação e dissolução de comunidades locais
Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em
Ciências Sociais, área de concentração: Antropologia sob a orientação da
Professora Doutora Carmen Junqueira.
Doutorado em Ciências Sociais -
Antropologia
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
PUC/SP
São Paulo
2006
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BANCA EXAMINADORA
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R
ESUMO
Esta tese objetiva compreender o processo de ameaça de desarticulação e
dissolução de comunidades do semi-árido da Chapada Diamantina. Foi feito
estudo sistemático tomando como exemplo uma localidade denominada
Cercado, situada no topo da Serra do Cigano, às margens da trilha cavaleira
que dá acesso ao rio São Francisco. O estudo procura reconstruir a história do
processo de povoamento da região, fortemente marcado pelo coronelismo
materializado através dos fenômenos de mandonismo e voto de cabresto.
Junto com seus moradores, recupera narrativas sobre a história da luta pela
existência e manutenção da vida no lugar. De cunho eminentemente oral, as
narrativas foram viabilizadas a partir da memória dos que lá vivem e também
dos que migraram. O processo de reprodução das relações sociais, sob a
égide do mundo da mercadoria, tem trazido sérias conseqüências para as
comunidades rurais da Chapada Diamantina que vivem numa economia agrária
de subsistência, degradando seu modo de vida e, não raro, conduzindo para
sua dissolução. A incessante luta das pessoas em busca da satisfação de suas
necessidades fornece consagração de práticas solidárias que viabilizam a
convivência com a natureza semi-árida, mas não garante a manutenção dos
modos de vida face às transformações decorrentes da modernidade. Frente às
dificuldades impostas pelo processo de desarticulação, a singularidade de suas
vivências os inscreve como agentes históricos ativos na construção de fazeres,
no enraizamento e lida com a terra e na resistência pela manutenção dos
conhecimentos das plantas medicinais, festejos, costumes e religiosidade.
Palavras-chave: Chapada Diamantina, convivência com o Semi-Árido,
desarticulação de comunidades rurais, mandonismo e Psicologia Ambiental.
ABSTARCT
The objective of this thesis is to comprehend the process of disarticulation
threat and dissolution of communities in the semiarid region of the Chapada
Diamatina plateau. A systematic study was made, using as an example an area
denominated Cercado, situated on top of the Serra do Cigano, following the
horse trail that leads to the San Francisco River. The study seeks to reconstruct
the history of the colonization of that region, strongly marked by despotism,
materialized through the phenomena of bossing and coerced votes. From the
local residents, tales of the fight for existence and life maintenance in that
region were retrieved. Eminently verbal, the narratives were based on the
memory of those still in the region and others that have left. The social relations
reproduction process under the shelter of the merchant world has brought
serious consequences to the rural communities of the Chapada Diamantina
plateau which live in a mere subsistence agrarian economy, degrading their
way of life and not rarely leading to their dissolution. The continual struggle of
these people in search of ways to satisfy their needs promotes solidary
practices that make viable to live in the semiarid nature, although this does not
guarantee the preservation of their ways of life in the face of the transformations
generated by modern times. As a consequence of the difficulties imposed by
the disarticulation process, the singularity of their life experience makes them
active historical agents in their settlement, in working the land, in putting
together their tasks and in the resistance to maintain their knowledge about
medicinal plants, folklore costumes and their religiousness.
Key Words: Chapada Diamantina plateau; to live in the semiarid; disarticulation
of rural communities; bossing; environmental psychology.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01
O CENÁRIO DA PESQUISA 16
A ESTRUTURA DA TESE 21
1. O PROCESSO DE POVOAMENTO DO SEMI-ÁRIDO DA BAHIA E A
CONSTRUÇÃO DO MANDONISMO
25
2. A CHAPADA DIAMANTINA 33
2.1.O
EL DOURADO E OS PRIMEIROS DUELOS PELO OURO 34
2.2.O
CICLO DO DIAMANTE 37
2.3. O MANDOMISMO E AS RELAÇÕES DE PODER NA CHAPADA DIAMANTINA 43
2.4. O CORONEL HORÁCIO DE MATOS 54
2.5. A PERSEGUIÇÃO A CARLOS LAMARCA 60
2. EXPERIÊNCIAS DE CONVÍVIO COM O SEMIRIDO 69
1. O BIOMA CAATINGA E O RISCO DA DESERTIFICAÇÃO 76
2. A VIDA NO SEMIRIDO: DO COMBATE AO CONVÍVIO 84
3. APRESENTANDO A COMUNIDADE DO CERCADO 90
3.1. SOBRE A GEOGRAFIA E A HISTÓRIA DO CERCADO 90
3.2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA ORAL: DOS PRIMEIROS HABITANTES AO
FLUXO MIGRATÓRIO DA DÉCADA DE SETENTA 97
3.3. MEMÓRIA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS 100
3. AMEAÇA DE DESARTICULAÇÃO E DISSOLUÇÃO DA
COMUNIDADE DO CERCADO 110
1. SOBRE FORMAS DE TRABALHO, RELAÇÃO COM A TERRA E A PRESENÇA DE MINERADORAS NA ÁREA 111
1.1.
A LIDA NA CASA DE FARINHA: A FORÇA DO EMPREENDIMENTO COLETIVO 114
2. SOBRE RELIGIOSIDADE E SISTEMA DE CRENÇAS 116
2.1.
FEITIÇO E HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO 123
3. SOBRE O MODO DE VIDA, SOCIABILIDADE E CULTURA 126
3.1. MORTE E RITUAIS FÚNEBRES 128
4. REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE DESARTICULAÇÃO E DISSOLUÇÃO DA
COMUNIDADE DO
CERCADO 133
C
ONSIDERAÇÕES FINAIS 156
_______________________________________________________________
BIBLIOGRAFIA 170
1
INTRODUÇÃO
“A alma da terra pressupõe raízes, se não reais, pelo menos afetivas e simbólicas. Ela prende
os indivíduos a traços, a marcas, a habitus, a pontos de ancoragem da memória, de
identificação do cotidiano e a valores socializados”
1
.
abitar localidades rurais das caatingas da Chapada Diamantina tem
significado conviver e lidar com a “liquidez” de tempo/espaço inscrita na
modernidade fluída
2
que se coloca na atualidade. Dentre as diversas marcas
deixadas pelo capitalismo em comunidades tradicionais, salientam-se aquelas
que desarticulam e dissolvem grupos que se tornaram fragilizados, destituindo
sua idéia e sentimento de pertença. As raízes possibilitadas pelo convívio
comunal facilitam laços de sociabilidade, conforme Todorov,
3
e permitem
intercâmbio de valores e saberes, incentivam trocas e reciprocidades, fornecem
as bases necessárias para o processo de construção de subjetividades
forjadas na interface com os outros, além de facilitar as dinâmicas econômicas
do lugar, permitindo a sobrevivência do grupo. Situadas em locais de difícil
acesso, muitas dessas localidades que outrora foram cenário de vida em
abundância, convívio festivo e sobrevivência garantida, foram desaparecendo
nos últimos anos, deixando saudades dos tempos “
do bom viver
4
, rememoradas
por aqueles que estão distantes, migrantes em metrópoles como São Paulo.
Entre ruínas e achados da cultura material, sobrevivem alguns velhos, aqueles
que não puderam migrar, quer por dificuldade de acesso à cidade grande, quer
por não conseguir “
abandonar seu torrão
5
, por possuir forte apego à terra e aos
H
1
Sandra Pesavento. Um Historiador nas Fronteiras: o Brasil de Sérgio Buarque de Holanda.
Belo Horizonte: UFMG, 2005. Página 16.
2
Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. O autor
marca a distinção entre o que denomina de modernidade pesada, onde o território estava na
centralidade das obsessões e conquistas, cuja metáfora plena pode ser obtida através da
fábrica fordista, com a modernidade leve, por isso mesmo fluida. A busca da sociedade atual
reduz a um só objetivo: a instantaneidade, onde
“pessoas com as mãos livres mandam em pessoas com
as mãos atadas”.
Páginas: 137-138.
3
Tzvetan Todorov. A Vida em Comum: ensaio de Antropologia Geral. Campinas, SP: Papirus,
1996.
4
Expressão local, usada para falar de um tempo vivido, rememorado com boas lembranças,
normalmente refere-se a tempo de fartura.
5
Expressão que significa o apego a terra.
2
costumes lá inscritos. Não é muito raro o visitante percorrer trilhas que cortam
serras da Chapada Diamantina e encontrar ruínas de localidades
desaparecidas, algumas se dissiparam ao longo do processo de povoamento
da região, sendo incorporadas às cidades que foram se estabelecendo com o
fluxo da mineração do ouro e diamante. Entretanto, nas áreas de domínios das
caatingas, o processo ocorreu de modo diferenciado, evidenciado nas últimas
duas décadas, através do fluxo migratório para os Estados do Mato Grosso e
São Paulo. Acuados pela fome, aos poucos, foram saindo em busca de
oportunidade de trabalho. Restava para aqueles que ficaram a missão de
continuar lutando pela vida no lugar, procurando a toda sorte manter vivos os
traços fundamentais que os uniam como grupo comunal. Esta luta esbarrava e
ainda esbarra cada vez mais nas dinâmicas impostas pelo capitalismo a grupos
que vivem relativo isolamento geográfico. Com isso, a possibilidade de
manutenção do estilo de vida que outrora fora satisfatório para o grupo parece
uma utopia cada vez mais distante.
Esta tese tem como objetivo central a compreensão do processo de ameaça de
desarticulação e dissolução de comunidades caatingueiras da Chapada
Diamantina. Para tornar vivo este processo, foi feito estudo sistemático
tomando como exemplo uma localidade específica, denominada Cercado,
situada no topo da Serra do Cigano, às margens da trilha cavaleira que dá
acesso ao Rio São Francisco. O estudo procura reconstruir, junto com seus
moradores, narrativas sobre a história da luta pela existência e manutenção da
vida no lugar. De cunho eminentemente oral, as narrativas foram recuperadas
a partir da memória dos que lá vivem e também dos que migraram. Carregadas
de emoção e saudade fornecem a compreensão sob a ótica daqueles que
vivenciaram e ainda vivenciam processos de desarticulação e dissolução de
sua comunidade. A singularidade de suas vivências os inscreve como agentes
históricos ativos na construção de fazeres, na lida com a terra e na resistência
pela manutenção dos festejos, costumes e religiosidade.
3
Esta tese baseia-se, especialmente, nas investigações realizadas entre os
anos 1996 e 2006
6
, período em que realizei os estudos de Iniciação Científica,
Trabalho de Conclusão de Curso e Dissertação de Mestrado. A coleta dos
dados foi feita através de observação e convívio com o campo, entrevistas
abertas, análise de documentos históricos disponíveis nas Igrejas Católicas dos
municípios de Oliveira dos Brejinhos e análise de documentos de domínio
público
7
como jornais antigos e revistas
8
disponibilizadas de seu acervo
pessoal por Carlon Castro Cruz
9
, além de conversas cotidianas
10
.
A noção de pesquisa de campo adere à acepção de campo-tema, conceito
desenvolvido pelo Núcleo de Organizações e Ação Social do Programa de Pós
Graduação em Psicologia Social da PUC/SP, no qual, destacam-se as
seguintes preocupações: a importância da relação entre os envolvidos no
processo de construção da pesquisa – pesquisado e pesquisador; os múltiplos
usos de métodos diferentes dentro da mesma pesquisa; abordagem
6
Como sertaneja e habitante transitória do lugar, sinto-me impelida a estudá-lo, pretendendo
compreender questões que são vivenciadas no nosso cotidiano. Para tanto, em 1996 iniciei
uma trajetória de pesquisas, sempre preocupada em ouvir as pessoas que lá habitam e
construir reflexões suscitadas por esta integração. A primeira pesquisa – Iniciação Científica:
As Representações Sociais dos Sertanejos Sobre o Capitão Lamarca”, objetivando
compreender o imaginário popular a cerca deste personagem que já se tornou um mito no
lugar. Em seguida, o Trabalho de Conclusão do Curso de Psicologia da PUC/SP: “Os Sentidos
da Gravidez e do Parto para as Mulheres da Chapada Diamantina”, estudando como uma
comunidade tradicional que não tem acesso a nenhum serviço básico de saúde, constrói suas
práticas profiláticas durante estas fases da vida das mulheres. E na Dissertação de Mestrado:
Uma História de Alijamento do Povo – Uma Análise psicossocial da Trajetória de Implantação e
Interrupção do Programa Cidades Saudáveis na Chapada Diamantina, estudando as
intervenções feitas por este programa num município da região.
7
O conceito de documento de domínio público é discutido por Peter Spink em: Mary Jane
Spink (org.) Práticas Discursivas e Produção de Sentidos no Cotidiano: aproximações teóricas
e metodológicas. São Paulo: Cortez, 2004. E presta-se a este trabalho na medida em que faz
uma distinção clara entre documentos oficiais, aqueles produzidos pela ideologia dominante
cujo aceso é disponibilizado e categorizado de acordo com certos interesses e documentos de
domínio público, normalmente aqueles cujo acesso é irrestrito ou torna-se irrestrito conforme o
interesse daquele que o produz, como jornais, revistas, folhetos. O objetivo desse tipo de
documento é difundir seu acesso a um público maior.
8
Estas fontes foram consultadas principalmente nas seguintes situações: pesquisa sobre
Horácio de Matos e sobre Carlos Lamarca e sobre a história do município de Oliveira dos
Brejinhos.
9
Desde a década de setenta, Carlon Castro Cruz, morador da região e ativista ecológico,
coleciona materiais diversos sobre a vida nos domínios das caatingas da Chapada Diamantina.
Seu acervo particular é acrescido cotidianamente por material doado por moradores locais que
recorrem a ele como uma espécie de “guardião” da memória registrada do lugar.
10
Os métodos de investigação e coleta de dados lança mão tanto de recursos práticos da
Psicologia Social, minha formação de origem quanto dos já consagrados métodos da
Antropologia como a Etnografia. Este, entretanto, incipiente ainda, dada a questão de a
formação básica ter ocorrido em outra área.
4
construcionista sobre processos sociais e a valorização das práticas
discursivas e formas não ortodoxas de construir as narrativas da pesquisa
11
. O
posicionamento epistemológico está diretamente ligado às implicações ético-
políticas em que o pesquisador não se isenta da responsabilidade decorrente
da sua produção acadêmica; mais que isto, posiciona-se frente às
transformações em curso na sociedade onde está trabalhando. Esta
multiplicidade de acesso ao tema deve-se ao fato de compreender que o
pesquisador não está separado do campo, como se este fosse um “lugar”
específico. A idéia principal é que os pesquisadores não vão a campo, pois já
se encontram nele.
Para a sistematização desse processo complexo, o trabalho lança um olhar
sobre as conseqüências da modernidade em localidades rurais isoladas no
Semi-Árido baiano, no que se refere à perda da “magia do mundo”, como
condição para a inviolabilidade da tradição conforme Weber
12
, ou na rejeição
sacramental como via de eliminação da magia. Entendendo com isso, que não
se trata do desencanto enquanto estado mental das pessoas, mas de um
fenômeno complexo que se maxifica na racionalidade extrema da sociedade
pós-moderna.
O processo de reprodução das relações sociais, sob a égide do capital, tem
trazido sérias conseqüências para as comunidades rurais da Chapada
Diamantina que vivem numa economia agrária de subsistência, degradando
seu modo de vida e, não raro, conduzindo para sua dissolução. A incessante
luta dos sujeitos em busca de satisfação de suas necessidades fornece
consagração de práticas solidárias, cuja efetivação multilateral garante seu
funcionamento, como demonstra Antonio Cândido, possibilita sociabilidade
vicinal que transcende o âmbito familiar, ressoando em outros núcleos
11
Peter Kevin Spink. Pesquisa de campo em Psicologia Social: uma perspectiva pós-
construcionista. Revista Psicologia & Sociedade. Volume 15 nº 2, Porto Alegre jul/dez. 2003.
12
Max Weber. Economía y Sociedad. Esbozo de sociologia compreensiva. México: Fondo de
Cultura Econômica. 1964.
5
familiares, onde o povoado e roças vizinhas viabilizam trocas que garantem o
funcionamento local. Segundo Antonio Cândido
13
:
“A necessidade de ajuda, imposta pela técnica agrícola e a sua retribuição automática,
determinava a formação de uma rede ampla de relações, ligando uns aos outros os habitantes
do grupo de vizinhança e contribuindo para a sua unidade estrutural e funcional. Este caráter
por assim dizer inevitável da solidariedade aparece talvez mais claramente nas formas
espontâneas de auxílio vicinal coletivo, que constituíram modalidade particular de mutirão
propriamente dito (...)”
Estes mutirões garantem a lida na casa de farinha, nas roças de arroz e no
cultivo e beneficiamento do buriti, garantem, acima de tudo, que práticas lúdico-
religiosas se viabilizem enquanto processo organizativo comunal. Antonio
Cândido, analisando unidades de bairro em localidades paulistas, inscreve o
caipira como sujeito da sua transformação histórica, o que possibilita um olhar
ativo sobre as mudanças no seu modo de vida, além de subsidiar reflexões
sobre as metamorfoses, rupturas e continuidades no contexto do Semi-Árido
brasileiro, cujo esfacelamento dos modos de vida local indica que é necessária
certa cautela na análise deste processo apenas como fruto de uma
adaptabilidade ou ajuste ao meio. A condição decisória do sujeito inscrito na
modernidade fluida não lhe permite escolha, uma vez que esta se encontra
diluída nas novas possibilidades empreendidas pelo capitalismo e na perda do
referencial identitário fornecido pelo grupo comunal.
Temos como premissa que não se trata de estudar somente a transformação
de modelos culturais e valores, substituindo um modelo original por outro
advindo de uma nova condição econômica. Nem de teorizar sobre processos
de aculturação ou deculturação. Trata-se antes, de compreender esta “Gestalt
ambígua
14
”, fruto da busca incessante pela sobrevivência econômica e
psicológica de grupos marginalizados pelo Estado, cuja tradição de outrora,
segurança básica e as garantias econômicas se esvaem frente ao cenário de
incertezas, risco e vulnerabilidades impostas pela sociedade atual. Ficar não é
mais possível, pois não há como sobreviver numa sociedade de economia de
subsistência cuja posse da terra está em poucas mãos. Partir? Não resta
dúvida. Só não se sabe para onde nem para fazer o quê. A desesperança e o
13
Antonio Cândido. Parceiros do Rio Bonito. Estudo sobre o caipira paulista e a transformação
dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria duas cidades, 1971. Páginas: 68 e 69.
14
Pierre Bourdieu. O Desencantamento do Mundo: estruturas econômicas e estruturas
temporais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979.
6
ceticismo confundem-se com a racionalidade do tecnicismo e o cientificismo.
Esta ambigüidade coloca-se como um desafio na distinção da metáfora figura-
fundo, evidenciando o quanto difusa e confusa está esta vivência, tanto para
aqueles que a vivem na pele, como para aqueles que se dispõe a estudá-la. As
lacunas deixadas pela leitura deste fenômeno indicam que faltam peças neste
complexo mosaico teórico-metodológico que se impõe como um desafio ao
pesquisador.
A tensão vivida por populações rurais do Semi-Árido brasileiro, no que se
refere à manutenção do seu modo de vida contrastando com os estilos de vida
empreendidos pelo capitalismo nas principais cidades brasileiras, motivou esta
investigação. O esfacelamento das tradições e a urgência de um sujeito
inserido no mundo do capital impõem que novas lógicas de vida sejam
apreendidas, assim como novos habitus, que o circunscreve numa nova
relação tempo/espaço, desconhecidas por este sujeito. A temporalidade
“pacata”, fornecida pelo ciclo da natureza, agora não mais tem lugar neste
mundo de instantaneidade e descartabilidade. Seu João de Maria de
Romana
15
, cujo processo identitário perfazia sua genealogia, agora padece de
um “não lugar”
16
, que o destitui dessa relação tempo/espaço. Sua história
reverbera pouco, ganha pouco sentido nas novas páginas da modernidade.
Quem é ele afinal, se não pode recorrer à sua inscrição parental nem à sua
inscrição territorial? Conforme Bauman
17
: “o advento da instantaneidade conduz
cultura e a ética humanas a um território não- mapeado e inexplorado, onde a maioria dos
hábitos aprendidos para lidar com os afazeres da vida perdeu sua utilidade e sentido”
.
15
No Sertão Semi-Árido, os nomes oficiais são substituídos pelo nome que carrega a
ancestralidade. No exemplo, seu João é o filho de Maria, filha de Romana. Este nome o
inscreve numa identidade que fora forjada por aqueles que antes dele viveram. Conforme
Ciampa em sua obra A História do Severino e da Severina, o processo de construção da
identidade da pessoa, no contexto sertanejo, vai além daquilo que a pessoa representa. Esta
carrega consigo toda sorte dos seus ancestrais. Se estes foram considerados pela comunidade
como “alguém de bem”, este atributo é transferido para sua pessoa, da mesma forma se seus
familiares “carregam consigo atributos negativos”, estes são transferidos para sua pessoa.
Muitas vezes a identidade se congela em estigma que acaba prejudicando toda a família. A
quebra desse processo é um trabalho penoso e nem sempre factível.
16
Marc Augé. Não-Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas,
SP:Papirus,2003.
17
Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
Página:149.
7
Ao analisar a sociedade argelina entre os anos de 1958 e 1961, Pierre
Bourdieu
18
questionou a transformação das sociedades pré-capitalistas como
resultante de uma “simples combinação lógica entre os modelos importados e os modelos
originais, sendo ao mesmo tempo conseqüência e condição das transformações econômicas”.
Enfatizando com veemência que “as desigualdades diante da economia “racional” e
diante da “racionalidade” econômica, ou então, os ritmos desiguais (segundo os indivíduos e os
grupos) da transformação das atitudes econômicas são fundamentalmente o reflexo das
desigualdades econômicas e sociais”.
Evidenciadas, por exemplo, no modo como a
população do Cercado distribui os excedentes do processo de beneficiamento
da mandioca. Seria ingenuidade imaginar a vida dos grupos que habitam as
caatingas baianas como uma comunidade homogênea, carregada de nostalgia
e ávida pelo retorno às tradições e ao estilo de vida “rústico”. As contradições
estão presentes por toda parte, desde o modo como lidam com as diferentes
“classes sociais” dentro do grupo, nas formas de distribuição das riquezas
produzidas, até no posicionamento dos indivíduos frente ao sistema de crenças
e rituais. Quem tem o direito de cantar loas em dias festivos, quem pode fazer
o discurso na Roda de São Gonçalo, quem tem o privilégio de ser escolhido
mordomo ou procurador da festa de Santa Luzia. Contradições, desmandos,
opressões, submissões fazem parte da vida no lugar tanto quanto os
conhecimentos das plantas medicinais que são socializados, ou a terra que
pode ser beneficiada por todos, ou os instrumentos de trabalho que são de
propriedade privada, mas cujo uso torna-se coletivo. De modo que não se trata
de fazer apologia ou crítica ao modo de vida, mas conhecê-lo para
compreender as facetas do processo de desarticulação e dissolução vivenciado
nos últimos tempos.
Questões como: é possível conciliar aspectos de vida comunal cujas normas
tradicionais impõem certos deveres de trocas solidárias para com o grupo
familiar e comunidade com os imperativos de uma sociedade individualista,
competitiva e híbrida imposta pela sociedade capitalista? É possível diminuir o
hiato entre as diferentes lógicas de desenvolvimento empreendidas pelos
diversos representantes do capital com as lógicas vivenciadas pelas
18
Pierre Bourdieu. O Desencantamento do Mundo: estruturas econômicas e estruturas
temporais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. Páginas: 11 e 12.
8
populações tradicionais? Se do ponto de vista das estatísticas oficiais esta
população é considerada miserável, de que noção de pobreza estamos nos
referindo, uma vez que estilos de vida “rústicos”, próprios da ruralidade
caatingueira são considerados impróprios à convivência humana e comparados
enfaticamente com a gama de possibilidades à disposição do mundo
mercadológico, ao mesmo tempo em que é transformado num produto a ser
vendido para turista? O retorno torna-se fruto de delírios oníricos daqueles que
migraram ou é uma utopia próxima daqueles que se preparam para voltar? É
possível preparar-se para voltar? A comunidade desarticulada, agora, não se
apresenta mais como antes, modifica-se, incorpora novos elementos. O que ela
é agora? Tornou-se diferente, não é um “lócus” do capitalismo urbanizado nem
do capitalismo agrário
19
, não é aquela “comunidade tradicional, fechada”,
organizada em seu tempo/espaço. Modificou-se, adquiriu novos elementos,
perdeu outros tantos e transformou-se: um híbrido, sem rosto, difícil de ser
“categorizado”. O que é afinal? Estas questões impõem desafios, suscitam
investigações. E esta tese não tem a pretensão de respondê-las, mas tem a
proposta de pensar sobre elas como pano de fundo para a compreensão do
aspecto maior que é a investigação de como a população local tem
experienciado este fenômeno em suas vidas, razão pela qual, se propõe ao
exame de três eixos principais que auxiliarão na compreensão do processo de
desarticulação e dissolução da Comunidade do Cercado:
1- Desencantamento do mundo, expressão formulada por Max Weber,
empresta seu complexo sentido que vai muito além do desencanto,
viabilizando a compreensão do processo histórico de esfacelamento de
“sociedades fragilizadas” operacionalizado por Bourdieu
20
em seus
estudos sobre a sociedade argelina:
“o desencantamento do mundo, isto é, o
desaparecimento dos encantos e dos prestígios que propendiam para uma atitude de
submissão e de homenagem para com a natureza, coincide com o prejuízo do esforço
para cativar a duração pela esteriotipização mágico-mítica dos atos técnicos ou rituais
que visavam fazer do desenvolvimento temporal “a imagem nobre da eternidade””.
19
Ricardo Abramovay. Paradigmas do capitalismo Agrário em Questão. São Paulo, Campinas:
HUCITEC e UNICAMP, 1998.
20
Pierre Bourdieu. O Desencantamento do Mundo: estruturas econômicas e estruturas
temporais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979. Página: 46.
9
Nesta “nova realidade” não há espaço para a sacralização da natureza:
os ciclos naturais são rompidos; a seca e as águas enquanto
temporalidades não ressoam sentido numa realidade onde os efeitos da
poluição e devastação da natureza ditam o ritmo da vida, assim como os
“sinais” naturais como previsores são substituídos pela “moça do
tempo”, que diz como será o tempo amanhã. Atos de linguagem, normas
técnicas e ditames comportamentais moldam o modo de ser e existir no
lócus da modernidade. A rusticidade e a estética rural são vendidos
como produtos cujo diferencial exótico confere a sensação da vida no
campo, assim como a própria noção de comunidade,
“a última relíquia das
utopias da boa sociedade de outrora”
, conforme Bauman
21
, apresenta-se
como “um charme”, disponível a poucos que podem arcar com o estilo
pseudo comunal.
2- O fluxo de povoamento e processo histórico do Semi-Árido do Nordeste
Seco do Brasil enquanto elemento que constitui o fenômeno do
mandonismo, evidenciado no sistema coronelista imperante até os dias
atuais dialoga com as formas de ocupação e apropriação dos
quadrantes da Chapada Diamantina, forja práticas de gestão pública,
constrói relações mando/obediência.
3- Convivência com o Semi-Árido e relação com a natureza do frágil
ecossistema caatingueiro. O conceito de coronelismo empreendido por
Victor Nunes Leal
22
mesclado com elementos da modernidade originou
fenômenos como “população refém da saúde”, onde os coronéis são
substituídos por médicos, cuja medicina está a serviço do mondonismo.
Neste cenário é factível pensar que outro modo de desenvolvimento é
possível? Experiências de comunidades locais demonstram que
conciliações são possíveis. Autores como Aziz Ab’Saber, Celso Furtado
e Milton Santos indicam que este pode ser um exercício valioso.
21
Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001. Página
108.
22
Victor Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto: o Município e o regime representativo no
Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
10
Optou-se por utilizar os três eixos de análise dada sua complementaridade e
interconexão, visando, além de compreender o processo de dissolução, refletir
sobre os modos de interação com o Semi-Árido e dimensionar a dinâmica de
vida nas caatingas da Chapada Diamantina, atentando para: a) meios de vida
que garantem a sobrevivência no lugar; b) a compreensão dos costumes,
religiosidade e medicina popular; c) territorialidade e relações com a terra; d)
processos subjetivos que envolvem conflitos e resistência ao sistema de
mando que assola a região.
Os pressupostos teórico-metodológicos dessa investigação baseiam-se na
interconexão do conceito de desencantamento do mundo, de Max Weber com
o conceito de desenraizamento de Tzvetan Todorov, auxiliados pela discussão
do conceito de modernidade líquida trazido por Zygmunt Bauman. Fundamental
também se faz a compreensão do processo histórico de construção do
fenômeno mandonismo presente nos Sertões Secos da Bahia, onde inscreve
os habitantes do Cercado como sujeitos históricos marcados pelo processo de
povoamento destas áreas da Chapada Diamantina, o que remete aos estudos
de Victor Nunes Leal e Raimundo Faoro. Neste ponto, a reconstrução do fluxo
de povoamento marca a inserção destes sujeitos nos territórios imaginários que
cercam a busca pelo ouro e diamante, a escravidão, a luta pela terra e as
batalhas pelo poder e comando entre coronéis rivais. O trabalho da memória, a
partir da discussão feita por Ecléa Bosi,
23
permite dialogar com os diferentes
tempos históricos, onde narrativas orais mesclam-se às narrativas
empreendidas por autores como Capistrano de Abreu, Antonil, Roberto
Simonsen, Victor Nunes Leal, Walfrido Moraes, Manuel Correia de Andrade,
Marco Antonio Villa, Celso Furtado, Teodoro Sampaio, Josué de Castro,
Donald Pierson, indicando que a perpetuação e o enraizamento de práticas de
mando e opressão transcendem a relação tempo/espaço, reverberando nas
subjetividades dos indivíduos fora da Chapada Diamantina.
Num cenário onde as dinâmicas de vida pouco se alteram, a cultura rústica,
assim denominada por Antonio Cândido, como expressão social e cultural do
23
Ecléa Bosi. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras,
2004.
11
universo das culturas tradicionais do homem do campo no Brasil, inscreve-se
como dimensão da relação entre homem e meio natural, o que configura
tempo/espaço na peculiaridade desta própria rusticidade. Antonio Cândido se
refere a um modo de ser que induz ao estreitamento dos laços comunais, em
que a emergência das necessidades intensifica a produção das condições de
existência ao mesmo tempo em que determina a maneira de viver das
pessoas.
“Resulta uma solidariedade estreita que as oposições se obliteram, de tal forma vai o meio se
tornando, cada vez mais, reflexo da ação do homem na dimensão do tempo. De fato, o
desenvolvimento do tempo como duração social incorpora o espaço à história dos grupos e
evidencia os diferentes aspectos da solidariedade de ambos. O espaço se incorpora à
sociedade por meio do trabalho e da técnica, que o transformam sem cessar e o definem, por
assim dizer, a cada etapa da evolução, fazendo com que o mundo sensível (possa ser
concebido) como a atividade sensível total e viva dos indivíduos”.
24
Cabem cuidados para que não se estabeleça dicotomia entre homem e
natureza, entre condições de obtenção da subsistência e processos
organizativos de proteção dos excedentes, assim como urbano/rural como
modo de categorização dos indivíduos dentro da relação espacial. O pano de
fundo que se pretende traçar é aquele onde as dimensões subjetivas da
realidade dialogam, conforme Odair Furtado
25
, com as condições de produção
da comunidade. Ou ainda conforme Antonio Cândido
26
: “a obtenção, para cada
grupo, do equilíbrio entre as necessidades e os recursos do meio depende dos tipos de
organização que desenvolver neste sentido.”
O estilo de vida em localidades caatingueiras, forjado ao longo do processo
histórico de povoamento da Chapada Diamantina, evidenciou a dizimação de
grupos indígenas ali existentes, explorou o trabalho escravo com negros já
livres, conforme Pires
27
, intensificou a presença de bandeirantes e
exploradores de garimpos de ouro e diamante, varrendo o sertão com
diferentes práticas de violência. A equação resultante desse processo deu
origem a diferentes núcleos de povoamento, cada qual com suas
24
Antonio Cândido. Parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e a transformação
dos seus meios de vida. São Paulo: Livraria duas cidades, 1971. Páginas: 23 e 24.
25
Odair Furtado. Dimensões Subjetivas da Realidade: um estudo de subjetividade social no
Brasil. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Psicologia da
PUC/SP, 1998.
26
Antonio Cândido. Obra citada. Página: 25.
27
Maria de Fátima Novaes Pires. O Crime na Cor. A experiência escrava no Alto Sertão da
Bahia: Rio de Contas e Caetité (1830 a 1888). Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós Graduação em História da PUC/SP, 1999.
12
peculiaridades, diferenciando assim daquela rusticidade discutida por Antonio
Cândido, mas mantendo traços fundamentais que os compatibiliza. Na
construção do processo identitário cada localidade foi se constituindo tendo
como elemento básico o equilíbrio entre o mínimo social e o mínimo vital
disponibilizado pelas atividades de subsistência e processos organizativos que
a mantinham viva: algumas através de atividades açucareiras, outras da
pecuária, ou vivendo da mandioca; algumas do garimpo, da caprinocultura,
dentre outras atividades tais como a criação de animais de pequeno porte ou a
horticultura.
Assim como no processo de construção da identidade do indivíduo, conforme
Ciampa
28
, no qual a atividade imprime no sujeito “a marca” do que ele é nas
pequenas localidades, a atividade produtiva aparece como forma de conferir
identidade a este lugar. Ainda de acordo com Antonio Cândido: “os meios de
subsistência de um grupo não podem ser compreendidos separadamente do conjunto das
“reações culturais”, desenvolvidas sob o estímulo das “necessidades básicas”.
A interação
entre o mínimo vital e o mínimo social confere a possibilidade da inscrição do
grupo no processo identitário, compartilhado pela grande maioria daqueles que
estão dentro, mas que também precisa ressoar para além das fronteiras
territoriais, encontrando nos outros grupos circunvizinhos a legitimação desse
processo. Não se trata de algo mágico que ocorre de uma hora para a outra,
são processos construídos na interface com a subjetividade dos indivíduos,
como sistemas complexos que se articulam e desvinculam-se ao mesmo
tempo. Estes grupos se entrecruzam num emaranhado de conexões possíveis,
segundo o que Eric Wolf
29
denomina de diferentes níveis de relação entre a
comunidade, os grupos intermediários e a nação, segundo processos múltiplos
de conflito e acomodação. Ocorrem com isso, trocas, rivalidades e
antagonismos que vão estabelecendo, gradativamente, modos de operar a
cotidianidade. Os indivíduos se organizam em sistemas de trabalho,
distribuição, socializam crenças, costumes, reorganizam cerimoniais,
intensificam religiosidades e festejos. A vida vai transcorrendo, ganhando
28
Antonio da Costa Ciampa. A Estória do Severino e a História da Severina. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
29
Eric Wolf. Antropologia e Poder. Brasília: Editora da Universidade de Brasília: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora UNICAMP, 2003.
13
elementos resultantes dessas trocas, mantendo outros conforme os processos
organizativos e os arranjos cotidianos. Como todo processo histórico, alimenta-
se da diversidade e das contradições, enquanto os indivíduos constroem e
formulam sentidos sobre si mesmos, sobre suas condições de vida e sua
humanidade. Esta dialogia institui o indivíduo como um sujeito de trocas, que
se constrói no processo de reconhecimento, conforme assinala Todorov
30
:
“Durante a interação entre o eu e os outros, mais do que uma relação se estabelece ao mesmo
tempo: à troca presente juntam-se trocas anteriores, antigas ou recentes, e possíveis trocas
futuras – tudo devidamente refletido no psiquismo da pessoa que deseja o reconhecimento.
Esses encontros anteriores e posteriores, vividos como no tempo condicional ou como numa
fase interrogativa, vêm orquestrar-se e transformar a ação na superfície. Têm como correlato a
multiplicidade interna do ser humano: diversas instâncias estão sempre ativas em cada um de
nós”.
Todorov afirma que “o reconhecimento do nosso ser e confirmação de nosso valor são o
oxigênio da existência”.
Cita Rousseau, Adam Smith e Hegel dentre aqueles que
evidenciaram o valor do reconhecimento como determinante da entrada do
indivíduo na existência especificamente humana. Distingue, pois, o
reconhecimento material do imaterial, produto tanto do nosso consciente
quanto do inconsciente. O reconhecimento também pode ser social na medida
em que há distinção entre as sociedades tradicionais, hierarquizadas e as
democracias modernas. Para ele, a sociedade tradicional favorece o
reconhecimento social ao passo que a sociedade moderna confere a todos os
cidadãos o direito político e jurídico, valorizando a vida privada, afetiva e
familiar. A oposição entre estes sistemas é valiosa na medida em que se reflete
nos sistemas de vida e bonificação das pessoas, imputando-lhes
características que distinguem estilos de vida, valores e modos de ser. Se a
localidade do Cercado, cujo estilo de vida rústico construiu sua existência a
partir da interação com sua história, seu ecossistema, forjando dinâmicas de
vida peculiar que, impelida pela fome, teve suas fronteiras achatadas e seu
território diminuído, como esperar que transformações densas não ocorram no
interior de sua estrutura? Como esperar que permaneça imutável como numa
fotografia? Mas as questões que se colocam não são essas. As
transformações são emergentes e quanto a isso não há o que fazer, pois não
30
Tzvetan Todorov. A Vida em Comum: ensaio de Antropologia Geral. Campinas, SP: Papirus,
1996. Página:126.
14
se trata de galgar a todo custo a imutabilidade num movimento de apego às
tradições em oposição à modernidade.
A questão central é como ocorreu primeiramente a desarticulação da
cotidianidade local, num processo de desenraizamento e destituição de modos
de ser que configuravam a identidade do Cercado para posteriormente,
dissolvê-la enquanto vida comunal que, pouco tempo antes, efervecia de
festividades, rituais, conflitos e perseverança. Este modo rústico em que viviam
continha toda sorte de ingredientes de uma vida plena: nascimentos, disputas,
casamentos, morte, funerais, rezas, orações, festejos, trabalho, construção,
enfim toda a lida que conferia um colorido à vida no lugar. A idéia de pobreza e
miserabilidade não se configurava como algo que era sentido pela população
local. Os imperativos do mundo da mercadoria alargaram as fronteiras do
desejo, imputando nas coisas o qualitativo de felicidade. Se a vida de antes
estava em xeque, a velocidade das transformações sociais acabou
reverberando para além das fronteiras das cidades das caatingas via estradas
asfaltadas que traziam elementos estranhos marcantes ao grupo. O fluxo de
gente e mercadoria também transportava desejos e assim como questiona
Pierre Bourdieu
31
, não se estende exclusivamente à esfera da economia.
Se está fora de dúvida que o desrraigamento da ordem tradicional e a entrada, muitas vezes
brutal, no mundo da economia moderna conduzem e supõem transformações sistemáticas do
habitus, reduzir à sua dimensão psicológica o processo de adaptação à economia moderna
viria a ser tomar o efeito pela causa. De fato, “as transformações caracterológicas exigidas pela
modernização” como as “transações culturais” de que falam os antropólogos são
concretamente efetuadas por agentes particulares inseridos em condições econômicas e
sociais particulares – o que não significa que elas nada devam à lógica das disposições
adquiridas ou dos sistemas culturais em vista”.
A despeito do argumento de Bourdieu, como numa orquestra sem maestro,
este fenômeno oscila da afinação à desafinação simultaneamente, onde um
simples trompete pode pôr a música a perder, ou seja, a elegibilidade de um
elemento em detrimento de outro põe em risco o seu exame. Fruto do processo
colonial que sofreram, os trabalhadores argelinos foram empurrados para um
processo de imigração, sofrendo o que Todorov
32
denomina de
transculturação, ou seja, a aquisição se um novo código sem que o antigo
tenha se perdido. No caso dos moradores das caatingas chapadeiras, por
31
Pierre Bourdieu. Obra anteriormente citada. Páginas: 52 e 53.
32
Tzvetan Todorov. O homem Desenraizado. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999.
15
viverem em movimento de intersecção entre diversos grupos, onde o
isolamento não se configura como ausência de intercâmbio, muito pelo
contrário, as trocas são evidenciadas em diversos níveis da cadeia de
comunidades locais, este processo se complexifica, dificultando o simulacro do
“contato com a cultura moderna capitalista”. Sequer estas localidades podem
ser consideradas como economias pré-capitalistas, strictu senso. A
aproximação cada vez mais dos elementos da modernidade impôs novos
desafios, que “tangeram” para longe, velhos e moços. “A sedução da
mercadoria” expressão desgastada, serve para sublinhar o prelúdio do que
está por vir: a liquidez e fluidez de tempo/espaço, dificultando processos de
adaptabilidade e rearranjos da vida comunal. A velocidade das transformações
sociais indica que os novos valores que devem ser apreendidos não serão
facilmente ancorados, uma vez que quando estes já estiverem sendo exercidos
pela comunidade, já não mais serão válidos, pois sua descartabilidade urge. O
mal-estar no sentido freudiano
33
do termo expressa-se na aventura moderna
do auto-conhecimento, este pensar em si mesmo como num espelho refletido
ao auto-exame, cuja pressão da transformação para a adaptabilidade ao
mundo moderno parece ser um imperativo cada vez mais forte.
O exercício de pensar realidades rurais das caatingas da Chapada Diamantina
impõe desafios ao pesquisador que se vê frente a uma ampla variedade de
teorias voltadas para explicar a condição do “campesinato”. Entretanto, a pouca
bibliografia disponível sobre a região específica, adiciona dificuldades a esta
árdua tarefa. Eleger quais autores e vertentes teóricas que o auxiliarão exige
posicionar-se frente às diferentes ideologias. Essa não é uma tarefa fácil. Ao
contrário, torna-se um desafio que o pesquisador precisa enfrentar com
discernimento. Qualquer escolha trará consigo as condições históricas que
forjaram sua ideologia. Neste sentido, as escolhas aqui feitas tiveram a
intenção de minimizar o hiato entre as diferentes lógicas pensadas pela
academia e as lógicas formuladas pelos atores locais neste exercício de pensar
sobre si mesmo. Isso não garante nada, mas tenta conciliar interesses.
33
Sigmund Freud. O Mal Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
16
O CENÁRIO DA PESQUISA
A pesquisa foi realizada na sub-região das caatingas que faz parte da área
denominada Chapada Diamantina, no Estado da Bahia, compreendendo
povoados e comunidades que fazem parte do município de Oliveira dos
Brejinhos, centrando-se enfaticamente na localidade denominada Cercado,
situada no topo da serra do Cigano, às margens da estrada cavaleira que dá
acesso ao Rio São Francisco. A opção do povoado ou comunidade como
unidade de análise, deve-se ao fato de compreender que estas unidades
menores são apropriadas como legítimas pela população local, uma vez que a
divisão oficial em Unidade Municipal não contempla o sentimento de pertença.
A delimitação geográfica da pesquisa alia motivações de cunho pessoal com a
riqueza de uma área que poderá favorecer estudos sobre dinâmicas humanas
no meio rural, onde impera a diversidade de culturas sertanejas, com a
presença de povos de “culturas tradicionais”
34
, onde a assimetria das relações
sociais impõe-se como fator determinante no sistema de poderes locais, cuja
manifestação mais evidente aparece sob a forma de coronelismo
35
e voto de
cabresto. Do mesmo modo, a diversidade dos ecossistemas da região, permite
estabelecer estudos sobre o viver e habitar no bioma das caatingas, além de
permitir a compreensão das lógicas de ocupação humana em ecossistemas de
transição. O uso e ocupação do espaço total da Chapada Diamantina ao longo
da história tem sido o mais diverso possível: habita-se entre brejos, habita-se
nas caatingas, entre capoeiras e carrascos, entre cerrados, nos morrotes, nas
encostas das serras, nos marimbus, nas áreas de alagadiço, enfim habita-se
em todos os pontos da imensidão desse território.
34
A opção em utilizar o termo “população tradicional” entre aspas sugere a necessidade de
reflexões mais aprofundadas sobre ele, pois o termo traz consigo uma bandeira de luta num
determinado contexto histórico em que os povos em situação de alijamento reivindicam para si
um trato diferenciado no domínio e posse da terra.
35
Victor Nunes Leal, em sua obra Coronelismo, Enxada e Voto, define a complexidade deste
fenômeno denominado coronelismo como sendo ”sobretudo um compromisso, uma troca de
proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente influência social
dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não é possível, pois, compreender o
fenômeno sem referência à nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação das
manifestações de poder privado ainda tão visíveis no interior do Brasil”. Note-se que esta é
uma obra de 1949 e ainda hoje suas discussões permanecem atualizadas no tocante ao
complexo fenômeno do coronelismo, principalmente nos domínios dos sertões secos da Bahia.
17
O Município de Oliveira dos Brejinhos situa-se na região da Chapada
Diamantina, próximo à BR 242 que liga Salvador a Brasília. Emancipou-se de
Brotas de Macaúbas em 30 de agosto de 1933. Segundo dados do IBGE –
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
36
, o município possui área de
3.564 km² e população de 22.024 habitantes, sendo 26,93% de população
urbana e 73,03% de população rural. De acordo com o Tribunal Regional
Eleitoral da Bahia – TER/BA
37
, o município conta com 16.497 eleitores. Da sua
população cerca de 3.500 pessoas com 10 anos ou mais de idade estão sem
instrução ou completaram apenas um ano de estudo.
A comunidade do Cercado faz parte do município de Oliveira dos Brejinhos,
distando cerca de 20 km da sede do município. Situa-se em área montanhosa
no topo do vale da serra do Cigano. Atualmente seu acesso é permitido tanto
por uma estrada de terra que possibilita tráfego de automóveis quanto pela
trilha a partir do distrito do Riacho Frio. Sua população
38
atual é de cerca de
cinqüenta pessoas, distribuídas em nove famílias distintas.
36
Dados retirados do site oficial do IBGE: www.ibge.gov.br e do Censo Demográfico 2000:
resultados preliminares. IBGE, Rio de Janeiro:2000.
37
Dados retirados do site do Tribunal Regional Eleitoral do Estado da Bahia:www.tre-ba.gov.br.
38
Realizei contagem por domicílio.
18
Mapa
39
ilustrando o local onde a pesquisa foi realizada.
39
Fonte: Erivaldo Fagundes Neves. Dimensão histórico-cultural: Chapada Diamantina;
Programa de Desenvolvimento Regional Sustentável. Salvador: Companhia e Ação Regional,
1997.
19
Quando usamos o termo Chapada Diamantina estamos nos referindo a uma
região delimitada geograficamente, portanto, socialmente construída e
historicamente datada. Quem se reconhece como habitante da Chapada
Diamantina são basicamente os moradores dos municípios de Lençóis,
Mucugê, Andaraí e Palmeiras. Para os moradores dos 28 municípios restantes,
há uma grande variedade de autodenominações como: região da caatinga,
região dos bodes, região do feijão, região dos brejos, região da mineração,
região dos garimpos e outras tantas. Há, inclusive, moradores de uma
comunidade pertencente a um município que não reconhece como sede do seu
município a sede oficial, mas a do município vizinho. Portanto chamar todo este
conglomerado de Chapada Diamantina não traduz prontamente o ponto de
vista das populações do lugar, embora geograficamente esses se localizem na
área de domínio da Chapada. No corpo da tese, em muitos momentos referir-
me-ei aos nomes utilizados pela população.
A Chapada Diamantina deste trabalho não é aquela vista em belos cartões
postais, dos casarios de Lençóis, saudada pelos turistas, em busca do tão
aclamado turismo ecológico. Nem tampouco aquela povoada pelo burburinho
de turistas indo e vindo com seus possantes Land Rovers, mochilas verdes e
botas de cano alto. A Chapada Diamantina apresentada aqui não é famosa;
quando veiculada em mídias, costuma ser representada pelas cenas de
miséria, seca, pobreza, desmando e outros adjetivos que reforçam a idéia de
ser um lugar impróprio para a vida humana. Ao contrário das representações
construídas por mídias, escritores e formadores de opinião, este trabalho
pretende mostrar um pouco das caatingas da Chapada Diamantina, um lugar
por onde a vida flui. E por ser um lugar de fluxo da vida, contém miséria,
abundância, seca, brejos, riqueza, escassez, nascimento, morte, continuidade,
rupturas, enfim, um lugar de complexidades, povoado por contradições como
um outro qualquer.
Historicamente esse tem sido um território dominado por desigualdades e
abuso de poder, no qual a tensão entre o exercício discriminatório do mando, a
exploração econômica e modos de resistência impulsionam transformações na
natureza das relações sociais. É preciso conhecer os diversos pontos dessa
20
tensão, os principais nós e desafios, partindo da relação que estabelecem com
o território, passando pelas questões que tangem ao poder, como
consentimento, reconhecimento e recusa. E mais ainda, ampliar para além da
fronteira do tangível, e buscar reflexões nas dimensões subjetivas da realidade
que transitam entre a parte ideal do real.
Foram percorridas as seguintes fases para delimitação do estudo na sub-área
das caatingas:
1) Foi feito um levantamento bibliográfico sobre a região da Chapada
Diamantina;
2) Visita a todos os municípios que compõem a região (vide mapa página
18), com o objetivo de conhecer melhor a problemática humana
subjacente à vida no lugar. Partiu-se de observações mais genéricas
para se chegar à delimitação do problema de pesquisa.
3) Num terceiro momento, já com a escolha da área das caatingas como
prioridade de pesquisa, optou-se por realizar explorações de campo,
através de contato com as comunidades rurais, os povoados e a sede
dos municípios.
4) Retorno à região para compreender o processo de transição política
entre o último mandato e os atuais governantes.
5) Recorte dos municípios de Brotas de Macaúbas e Oliveira dos Brejinhos
como área de investigação, através de pesquisa nas sedes dos
municípios e visita a povoados, distritos e comunidades.
6) Após constatar a problemática da desarticulação e dissolução de muitas
dessas localidades, optou-se por fazer este recorte de pesquisa, o que
levou à escolha de uma dessas localidades como exemplo prático para
o exame e análise. A escolha do Cercado pautou-se no fato da
localidade conviver mais enfaticamente com este dilema, o que a torna
importante no exercício de pesquisa.
7) Convívio intenso com a localidade do Cercado, unidade menor de
análise da pesquisa. Além de entrevistar seus moradores, partimos em
busca daqueles que saíram de lá, encontrando-os na cidade de Oliveira
dos Brejinhos e na cidade de São Paulo.
21
A ESTRUTURA DA TESE
A tese está divida em três capítulos, introdução, considerações finais,
bibliografia e anexos.
O capítulo 1 intitulado O Processo de Povoamento da região da Chapada
Diamantina e a construção do mandonismo - procurou estabelecer um
panorama do fluxo de povoamento do Nordeste Seco do Brasil, detendo-se
enfaticamente às áreas que compreendem a Chapada Diamantina, Sertão da
Bahia, pormenorizando a unidade municipal com o objetivo se chegar a
apreensão dos processos históricos que subjazem o fenômeno do
mandonismo, constitutiva desta área do território brasileiro. Através de
levantamento bibliográfico, discute a perversa estrutura fundiária do Nordeste
Seco, bem como as homéricas lutas entre coronéis rivais no processo de
disputa de terras e estabelecimento do mando/obediência. Procura trazer à
tona os temas violência, poder e resistência como configuração de um território
forjado no processo da expansão pecuária e exploração das lavras de ouro e
diamante. A narrativa procura transmitir o colorido e matizes que compõem o
imaginário da Chapada Diamantina, oscilando entre descrições da geografia,
cujo ecossistema complexo e frágil faz deste espaço um dos locais mais
visitados por turistas no Brasil e os pormenores do seu fluxo de ocupação e
apropriação, com descrições de consagrados historiadores brasileiros, como
Frei Vicente do Salvador, Antonil, Capistrano de Abreu, Teodoro Sampaio e
Walfrido Moraes, dentre outros.
A versão da História do lugar aqui narrada, procurou privilegiar fontes orais e
documentais produzidas pelos próprios moradores do lugar, de modo que,
quando o recorte é feito para as caatingas, o foco é dado a essas fontes,
envolvendo-as em conexões com as versões contidas em documentos de
domínio público e documentos oficiais. O material foi colhido em folhetos
produzidos pelos moradores
40
e também através da narrativa oral. Houve
também uma consulta à Enciclopédia dos Municípios Brasileiros
41
.
40
Folhetos produzidos a partir da pesquisa feita por ocasião do Fórum Faz Cidadão do
Governo do Estado da Bahia. Folhetos de propaganda do município feitos tanto pela Prefeitura
22
O Capítulo 2 – Experiências de convívio com o Semi-Árido – articula novas
formas de enfrentamento da problemática do convívio com a natureza semi-
árida, que acabam por intensificar os dilemas antigos: fome, seca, poder e
resistência com saberes tradicionais que historicamente foram responsáveis
pela manutenção dos agrupamentos organizados. Estabelece discussão sob a
égide da convivência com o Semi-Árido como forma de contraposição às
correntes de pensamento que definem a semi-aridez brasileira como inóspita à
vida humana. Traz o exemplo da comunidade do Cercado, apresentando-a em
termos de sua história e da geografia chapadeira do vale da serra do Cigano,
ilustrando as diversas riquezas da Chapada Diamantina. O vetor teórico
fundamental deste capítulo centra-se no trabalho coordenado pelo Professor
Aziz Nacib Ab’Saber
42
junto ao Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo que resultou no Dossiê Nordeste Seco e no
trabalho desenvolvido pela equipe da Universidade Federal de Pernambuco,
Ecologia e Conservação da Caatinga
43
.
O capítulo também procura estabelecer discussão sobre como as diferentes
lógicas de desenvolvimento empreendidas por diferentes atores sociais e
instituições não convergem para as lógicas dos atores locais, intensificando o
hiato entre as políticas governamentais (e não governamentais) e os interesses
da população local. Muito mais do que desperdiçar recursos públicos, a falta de
sinergia dessas ações proporciona o sentimento de impotência, descrédito e
desesperança, dificultando a aplicação de ações que poderiam ser efetivas e
úteis ao povo do lugar. Nesta atmosfera há espaço para se pensar em modos
alternativos de enfrentamento desses problemas? A proposta é lançar um olhar
crítico e esperançoso, tendo como base a discussão de modos de
do Município de Oliveira dos Brejinhos quanto por Carlon Castro Cruz. Alguns deles estão
disponíveis nos anexos da tese.
41
Juradyr Pires Ferreira. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Rio de Janeiro: Instituto de
Geografia e Estatística, 1957. Esta obra traz estudos sobre a história dos municípios do Brasil.
Trata-se da História do ponto de vista oficial. No caso dos municípios estudados na pesquisa, a
obra acrescentou informações como: data de emancipação, responsáveis pelo
empreendimento e outros dados relevantes.
42
Aziz Nacib Ab´Saber. Em: Dossiê Nordeste Seco. Sertões e Sertanejos: uma geografia
humana sofrida. Estudos Avançados. Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos
Avançados. vol.13, Número 36 – maio/agosto de 1999.
43
Inara R. Leal, Marcelo Tabarelli e José Maria Cardoso da Silva (editores). Ecologia e
Conservação da Caatinga. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2003.
23
solidariedade entre os povos das caatingas, através das diferentes micro-
estruturas de poder presentes nas micro-organizações de base comunitária,
que poderão de alguma forma se pôr frente aos poderes imperantes dentro e
fora das caatingas.
O Capítulo 3 – Ameaça de desarticulação e dissolução da localidade do
Cercado - apresenta o Cercado enquanto localidade cuja cotidianidade sofre a
ameaça de desagregação das práticas cotidianas que sustentam seu
sentimento de pertença e configuram seu processo identitário. O
desencantamento do mundo como baliza da tensão entre a economia racional
e a manutenção das tradições, da religiosidade e da fraternidade são
fenômenos já observados por Weber nos tempos da Grécia clássica. Com o
advento do capitalismo esta tensão só veio a se intensificar, encontrando na
modernidade atual um lócus apropriado à desarticulação e dissolução destas
localidades. A modernidade fluída de Bauman é muito mais do que o alicerce
dessas novas relações sociais e, assim como a qualidade dos líquidos e dos
gases, a fluidez torna-se amorfa que não fixa o espaço nem prende o tempo,
cuja mobilidade a faz impregnar-se por todos os lugares, ao mesmo tempo em
que sua inconstância permanece incógnita e imprevisível. A resultante disso é
a ausência de rumo que esta localidade tomará. Sem dúvida, o hibridismo está
posto, segundo a definição de Canclini
44
, como “processos socioculturais nos quais
estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar
novas estruturas, objetos e práticas”
. Ao trazer o Cercado como experiência, procura
estudar as diversas dimensões da sua territorialidade; do território imaginário
ao território de luta, cuja recuperação da história do lugar fornece um rico
trabalho da memória de seus moradores, tanto daqueles que lá permanecem
quanto daqueles que migraram. Os eventos discutidos são corriqueiros,
mostrando as diversas conexões de como a vida segue seu passo: desde o
nascimento com suas festividades, a figura da parteira e das práticas
profiláticas que garantem a continuidade do grupo, até os rituais fúnebres,
passando pela lida cotidiana, a divisão do trabalho, festividades, diversão,
rezas, mandingas, feitiços.
44
Nestor Garcia Canclini. Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. Página: 19.
24
Convencionou-se destacar em itálico, tamanho 10 as falas e os diálogos das
pessoas envolvidas. Em itálico, tamanho 12 estão as expressões em outros
idiomas. As citações literais de autores estão em letra reduzida: arial, tamanho 10.
E as referências das obras encontram-se nas notas de rodapé da própria
página.
25
1. O PROCESSO DE POVOAMENTO DA REGIÃO DA CHAPADA
DIAMANTINA E A CONSTRUÇÃO DO MANDONISMO
1. PERCORRENDO OS CAMINHOS INICIAIS: DOS BANDEIRANTES ÀS TRILHAS DE
TROPEIROS
ara dar conta da expansão e ocupação do imenso território do Brasil, D.
João III dividiu as terras da Colônia em latifúndios, as Capitanias
Hereditárias. A divisão oficial tinha como objetivo sistematizar uma prática que,
segundo Capistrano de Abreu
45
, já existia, pois aqui já habitavam capitães-
mores nomeados para as Capitanias do Brasil. A estes capitães foi dado o
direito à propriedade da terra e do que tinha dentro dela, além de hierarquia
suficiente para dominar e subjugar colonos, índios e escravos que dela faziam
parte.
P
Estas grandes extensões territoriais que foram doadas aos detentores de poder
seguem criando práticas de ocupação e apropriação das terras do Brasil,
gerando ao longo do processo uma aristocracia rural detentora de grandes
propriedades, cujos domínios extrapolam fronteiras e territórios, imprimindo
relações de mando/obediência àqueles desprovidos de propriedades. Neste
cenário, surgem como unidades produtoras duas instituições fundamentais: a
sesmaria e o engenho. As Sesmarias, em caráter de doação, foram destinadas
às famílias que tivessem recursos para ocupá-las e povoá-las.
Por ordem da corte portuguesa, em 1548, o governador geral da colônia
brasileira ordenou incursão sertão adentro, com o objetivo de chegar ao Rio
São Francisco. A expedição comandada por Francisco Bruza de Spinoza,
acompanhado pelo jesuíta Aspicuelta Navarro, subiu o Jequitinhonha e chegou
às cabeceiras dos rios Pardo e das Velhas, alcançando, mais adiante, o São
Francisco, onde encontrou indígenas na margem direita, com os quais
45
João Capistrano de Abreu. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1975.
26
manteve relações amistosas, e na margem esquerda, indígenas de
comportamento hostil. O objetivo da missão ia além da exploração, buscando o
aprisionamento de indígenas como forma de suprir mão de obra escrava.
Dessa expedição não se tem registros de grandes avanços.
Em 1561, Vasco Rodrigues de Caldas partiu de Salvador, subindo o rio
Paraguaçu, chegando à Chapada Diamantina. Logo após, João Coelho de
Souza segue a mesma rota, passando pelo atual município de Rui Barbosa
chegando até o rio Utinga, de onde segue primeiramente para Morro de
Chapéu e depois Jacobina. Seu objetivo era a busca pelo ouro. Lá encontra
vestígios do metal. Entretanto não consegue explorá-lo, pois morre em
seguida. Seu irmão, Gabriel Soares de Souza, de posse dos mapas e
documentos produzidos pelo primeiro, consegue financiamento de Felipe II, rei
da Espanha e Portugal, e parte em busca do ouro. Alcança o São Francisco,
mas morre na missão.
Entre os anos de 1595 até 1604, Belchior Dias Moreira percorreu diversos
tributários do São Francisco como Verde de Baixo e Paramirim, passando pelo
que hoje é o município de Macaúbas, na Chapada Diamantina, desembocando
próximo à Paratinga, no Rio São Francisco. Ao retornar, narrou que encontrara
várias jazidas e tesouros. Conta-se que o aventureiro levou para o túmulo os
segredos de onde estariam as jazidas. Restou, entretanto, no imaginário da
população de Salvador, a idéia de que a Chapada Diamantina escondia
tesouros valiosos, imagem que até hoje é mantida. Durante muito tempo houve
exploração diamantífera e aurífera na região e, mesmo atualmente, de tempos
em tempos, alguém encontra uma pepita, um diamante ou um bojo de cristal de
rocha puro. A missão comandada por Belchior Dias Moreira notificou a
presença de ouro, embora não tivesse realizado explorações, foi o início do
reconhecimento do lugar como área apropriada para a pecuária. Ao retornar, é
agraciado com imensas glebas de terras. Inicia-se um processo de dizimação
das populações indígenas das margens do Rio São Francisco, sendo que
alguns grupos foram aprisionados como escravos.
27
Em 1590, Cristóvão de Barros penetra pelo que é hoje Sergipe até o Baixo São
Francisco, abrindo caminho para os futuros povoadores. Toda a margem do
São Francisco era habitada por grupos indígenas. Grande parte deles
resistiram à ocupação de suas terras, lutando contra os invasores, como é o
caso dos Cariri, na área do sub-médio, os Pimenteiras e os Rodelas.
Por volta de 1560, onde hoje é a Praia do Forte, estabelecia-se a família Garcia
D’Avila, responsável pela chamada Casa da Torre, localizada na região de
Mata de São João, proprietária de imensas terras no litoral, onde prosperou a
lavoura canavieira e que penetrou nos sertões secos, pelo Rio São Francisco e
expandiu até o Maranhão. Garcia D’Avila veio trazido por Tomé de Souza em
1549, logo em seguida, devido à amizade que com ele mantinha, foi agraciado
com imensas terras, lá instalando dez currais para criação de gado. Seus
descendentes povoaram os domínios do Alto Sertão da Bahia. Em 1663, na
margem oriental da bacia do São Francisco, Antonio Guedes de Brito, construiu
o império da Casa da Ponte, associando-se às terras de Bernardo Vieira
Ravasco, limitando suas propriedades com as da Casa da Torre. De acordo
com Antonil
46
, Antonio Guedes de Brito, residente em Morro do Chapéu, na
Bahia, de onde partiu com 200 homens, combatendo em breve espaço de
tempo os indígenas da área, fundando a atual cidade de Itaberaba e
empurrando os limites de suas propriedades rio acima, dominou faixas de
terras que se estendiam desde o Morro do Chapéu na Bahia até a cabeceira do
Rio das Velhas em Minas Gerais
47
.
De acordo com Pierson
48
:
“os currais formados por homens que se deslocavam de Salvador e de Olinda e Recife, ao
Norte, e, mais tarde, de São Paulo, no Sul, vieram a ser núcleos básicos em torno dos quais se
desenvolveram povoados na área do São Francisco. As estradas de bois a que também deram
origem, tornaram-se vias de transporte e comunicação ao longo das quais outros povoados
com freqüência apareciam”.
46
André João Antonil. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo:
Melhoramentos, 1938.
47
Manuel Novaes. Memórias do São Francisco. Brasília: CODEVASF, 1989.
48
Donald Pierson. O Homem do São Francisco. Rio de Janeiro: Superintendência do Vale do
São Francisco - SUVALE, 1972. Tomo III. Página:183.
28
Durante os séculos XVI e XVII, as chamadas entradas baianas buscavam
encontrar metais e pedras preciosas. Muitas delas partiram de Salvador em
direção à região central da Bahia. Algumas sequer retornavam, pois seus
participantes eram mortos em combate e ciladas ou acometidos por doenças.
Muitos combates foram travados com índios e, posteriormente, com
aventureiros e proprietários de terras da região. As duas entradas mais
importantes foram as chefiadas por Belchior Dias Moreira e Gabriel Soares de
Souza. Este partiu das margens do Jaguaripe, subiu em direção ao norte até
Jacobina, onde encontrou ouro e prata. Após alguns anos, Belchior Dias
Moreira seguiu seus caminhos, chegando ao que hoje denominamos região da
Chapada Diamantina
49
.
Os descendentes de Garcia D’Avila vieram a possuir quase metade das terras
do São Francisco e, segundo Capistrano de Abreu
50
, constituíam o maior
latifúndio jamais possuído no Brasil, ou seja, 10% do atual território brasileiro,
somando uma área de cerca de 800.000 km². De acordo com Antonil
51
, este
império incluía uma faixa de duzentas e sessenta léguas pelo Rio São
Francisco acima, à mão direita indo para o sul, e entre o São Francisco e o
Parnaíba, ao norte, mais oitenta léguas, sendo que o Velho Chico
52
, como é
carinhosamente conhecido, torna-se o centro do Império da Casa da Torre. Os
D’Avilas promoveram três expedições armadas sertão adentro, guerreando
contra os índios e obtendo, em recompensa, grandes sesmarias, onde
expandiriam seus rebanhos.
A ocupação propriamente dita dos Sertões semi-áridos da Bahia deu-se de
forma lenta, descoordenada, a partir de três frentes principais: uma saindo de
Salvador – Cachoeira; outra advinda da parte Sul, via São Francisco e outra do
Norte do mesmo rio. Deu-se de forma mais sistemática a partir do século XVII,
justificada pelas grandes distâncias da faixa litorânea e motivada
49
Josildete Gomes. Povoamento da Chapada Diamantina. Em: Anais do Congresso de História
da Bahia, 2. Salvador, 1952.
50
João Capistrano de Abreu. Caminhos Antigos e Povoamento do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora Civilização Brasileira, 1975.
51
André João Antonil. Cultura e Opulência no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1982.
52
Rio São Francisco.
29
principalmente pela expansão das atividades pecuárias na região, pelo Rio São
Francisco. O início de exploração aurífera e, num segundo momento, a
exploração das lavras de diamante e as missões de catequese realizadas pela
igreja católica, sob a responsabilidade dos padres franciscanos, estimularam a
penetração e permanência na região. O fluxo de povoamento da Chapada
Diamantina deu-se pelo Rio São Francisco numa série de incursões, por
tentativa e erro, na intenção de dominar o gigante rio. As incursões se
depararam com índios arredios que entraram em conflito com os forasteiros
que buscavam tomar suas terras e aprisioná-los.
De acordo com Pierson
53
, após dominar os Maracás, em 1673, em expedição
comandada pelo bandeirante paulista Estevam Ribeiro Baião Parente, por
ordem do Governador da Província, iniciou-se a distribuição de terras na faixa
situada a leste da Chapada Diamantina, desde Maracás até a serra do Orobó.
Também foram distribuídas enormes faixas de terra entre os rios Paraguaçu e
de Contas. No final do século XVII toda a bacia do Paraguaçu já tinha sido
distribuída a proprietários privados, inclusive importantes faixas de terra que
compreendiam Lençóis e Palmeiras.
Em princípios do século XVIII, homens que se dirigiam para oeste partindo de
Salvador, seguindo o Paraguaçu até suas cabeceiras e daí subindo o
Paramirim, tributário do São Francisco até leste, usavam um desses caminhos
de gado que, segundo Antonil, passava por Cachoeira ou pelas suas
proximidades, por uma Aldeia conhecida por Santo Antônio, por João Amaro,
Tranqueira do Rio de Contas, e seguiam o Paramirim até o ponto onde este
tributário atinge o São Francisco; e então seguindo o próprio São Francisco,
para o Sul, atingiam o tributário Verde Grande, na fronteira da Bahia com Minas
Gerais via Bom Jardim (hoje Ibotirama), Urubu (hoje Paratinga), Bom Jesus da
Lapa e Malhada, áreas que se avizinham das caatingas da sub-região que hoje
é chamada de Brotas de Macaúbas.
53
Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Rio de Janeiro: Superintendência do
Vale do São Francisco. Tomo I., 1972.
30
O mapa a seguir destaca o espaço geográfico da bacia do Rio São Francisco,
principal centro de comunicação entre as diversas localidades povoadas do
Nordeste Brasileiro, servindo inclusive de escoamento da produção açucareira,
agropecuária e mineradora da região da Chapada Diamantina.
31
Mapa retirado da Tese de Pós-Doutorado de José Vieira Camelo Filho, apresentada ao
Departamento de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP, 2005,
intitulada: Rio São Francisco: problemas e soluções: uma questão de políticas públicas. Página
48.
32
E foi percorrendo essas trilhas do gado, abrindo picadas e estradas que os
primeiros bandeirantes chegaram às terras que hoje são chamadas de
Chapada Diamantina. Essas trilhas que inicialmente guiavam gado, num
período posterior, trafegavam riquezas como ouro, diamante e outras pedras
preciosas. O fluxo de ocupação da Chapada Diamantina deu-se de forma
desarticulada, em diversas frentes, via Rio São Francisco, rio de Contas, rio
Paraguaçu, tendo os mais diversos objetivos motivadores, como a criação de
gado, a escravização de índios, a exploração de ouro e, num período posterior,
a exploração diamantífera. Os conflitos eram presentes nos diversos grupos e
missões, rivalizando por riquezas, por animais, pela captura de indígenas e
pela posse de terras.
Muito próximas às áreas de engenho de cana-de-açúcar, estas terras foram
sendo povoadas por pessoas advindas dos engenhos, que não mais viam
nessa atividade a possibilidade de enriquecimento. Com os incentivos e
políticas derivadas para a pecuária, os herdeiros das capitanias hereditárias
que cobriam a região seca vislumbravam a possibilidade de exploração destas
terras. Começam a se estabelecer as primeiras famílias, agora não mais com a
intenção de serem passantes, constroem núcleos de propriedades, das quais
surgirão “sub-núcleos” de pequenos proprietários, normalmente trabalhadores
desses primeiros. Num segundo momento, trarão levas de trabalhadores,
agora os agregados, e posteriormente os meeiros.
Surgem aí os primeiros núcleos de povoamento da região. Sabe-se entretanto,
que embora pertença à região denominada Chapada Diamantina, seus
diversos quadrantes, as sub-regiões tiveram diferentes processos de
povoamento. Conforme o mapa da página 27 destaca-se a área que pertenceu
ao ciclo do diamante, sendo os municípios de Lençóis, Mucugê, Palmeiras e
Andaraí, núcleos regionais urbanos cujo status de cidade deu-se ainda no
século XIX. Para os municípios das áreas de domínios das caatingas, a
ocupação propriamente dita ocorreu posteriormente tendo, inclusive, seu
processo de emancipação na primeira metade do século XX.
33
2. A CHAPADA DIAMANTINA
O recorte geográfico desse estudo abrange a área das caatingas da Chapada
Diamantina, sertões secos da Bahia. A Chapada Diamantina é a maior região
geográfica do Estado da Bahia e marca o centro desse estado, abarcando uma
área do Médio São Francisco, conforme o mapa. Dista cerca de 450
quilômetros de Salvador, atingindo uma área de aproximadamente 370 km de
comprimento por 228 km de largura. É composta por 33 municípios, sendo que
cerca de 70% da população é predominantemente rural.
Trata-se de região montanhosa, ocupando cerca de ¾ da superfície do Estado
da Bahia.” É um desdobramento da Cordilheira do Espinhaço e dela ramificam as serras das
Almas, da Tromba, do Sincorá, do Assuruá, em vários segmentos menores, concentrando nas
nascentes dos rios de Contas e Paramirim as maiores altitudes da Bahia e do Nordeste do
Brasil.”
54
A Chapada Diamantina tem solos rasos e arenosos ou rochosos, com
possibilidade de abrigar pedras semi-preciosas.
Há grande variedade de rios temporários, sendo os mais importantes os rios
Paraguaçu, Contas e Paramirim. Seu nome origina-se das explorações de
diamantes, no final do século XIX e início do século XX. Seu relevo serrano é
composto de vários morros: do Pai Inácio, do Camelo, Serra do Roncador,
Serra da Mangabeira e Pico das Almas, dentre outros. Possui também grande
variedade de cachoeiras, cascatas e corredeiras, como: cachoeira da Fumaça,
do Ramalho, do Bom Sossego, Donana, Roncador, Livramento.
Avizinhando a Chapada Diamantina, o Rio São Francisco marca decisivamente
a vida nos municípios da região. Embora não passe no centro histórico da
Chapada, o rio beneficia toda a área que compreende desde o município de
Bom Jesus da Lapa até Xique-Xique, o que lhe confere importância na escala
54
Erivaldo Fagundes Neves. Dimensão histórico-cultural: Chapada Diamantina; Programa de
Desenvolvimento Regional Sustentável. Salvador: Companhia de Desenvolvimento e Ação
Regional, 1997. Página.47.
34
econômica e religiosa da região. O que no passado servia como meio de
transporte fundamental para a Região, transformou-se em importante fonte de
renda para a população dos pequenos municípios que acabam espalhando
pela região os produtos e recursos retirados do rio. No que tange à
religiosidade, o padroeiro de grande parte da Chapada Diamantina é o Bom
Jesus da Lapa
55
, cujo santuário situa-se em uma caverna às margens do rio.
Todos os municípios possuem seu próprio padroeiro, do mesmo modo que
algumas comunidades e povoados.
2.1. O EL DOURADO E OS PRIMEIROS DUELOS PELO OURO
O processo de colonização da Chapada Diamantina se consolida a partir do
advento do ciclo da mineração. De acordo com Accioli,
56
em 1701 a Coroa
Portuguesa já detinha documentação comprobatória sobre as descobertas de
ouro na região de Itapicuru, em Jacobina. Nesta ocasião, o Brasil estava
descobrindo seu potencial minerador, sendo que Minas Gerais representava a
região com maior presença de ouro e pedras preciosas. Temendo que o frágil
povoamento do interior do Brasil se esfacelasse, a Coroa ordenou a suspensão
da exploração de ouro na Bahia e no Espírito Santo.
O êxodo da população brasileira para Minas Gerais assustava a Coroa, uma
vez que a cultura do fumo e da cana de açúcar na faixa litorânea do Nordeste,
encontrava-se em declínio. Muitos se aventuravam em busca de riquezas e
outros simplesmente partiam em busca da sobrevivência. Foi em busca de
riquezas que partiu o bandeirante paulista Sebastião Raposo em direção ao
Sertão da Bahia. Desceu pelo rio de Contas e chegou onde hoje é Brumado.
Lá nasce, por volta de 1718, a sede da primeira Freguesia do Sertão de Cima.
Neste mesmo tempo, foram descobertas pepitas de ouro, rio abaixo, onde se
55
A grande maioria dos fiéis da região, que visitam o santuário de Bom Jesus da Lapa, o fazem
utilizando-se da BR 242, via Ibotirama. Organizam-se em excussões específicas para esse fim.
As viagens são realizadas em caminhões, ônibus e caminhonetes que se enfeitam para cumprir
esse objetivo. Numa viagem que dura em torno de seis horas, os romeiros seguem cantando
músicas do Bom Jesus, fazendo suas orações. Utiliza-se trajes próprios, com o uso de chapéus
de palha, lenço no pescoço ou na cabeça e muitos rosários e fitas do Bom Jesus.
56
Ignácio Accioli. Annaes do Archivo Publico do Estado da Bahia. Salvador, Imprensa Official
do Estado, 1917.
35
instalou um núcleo de povoamento, dando origem ao atual município de
Livramento.
A proibição da exploração do ouro pela Coroa Portuguesa não acabou com a
ação mineradora em Jacobina. Surgem então, os primeiros garimpos
clandestinos na região. Temendo perder o controle social da área, o Marquês
de Angeja solicita, em abril de 1718, a El-Rei, a liberação da mineração em
Jacobina, bem como sua transformação em Vila.
57
Carta Régia de 1720, libera
a extração de ouro nessa área, mas estende a proibição para a região de rio de
Contas. D. Vasco Fernandes Cezar Menezes, Conde de Sabugosa, encarrega
o sertanista baiano, Pedro Barbosa Leal, de fundar vilas em Jacobina e Rio de
Contas.
Neste ínterim, começam a surgir desordens, conflitos e mortes por conta do
ouro. As autoridades da época dão início à construção de estradas que ligavam
os centros de mineração, temendo as emboscadas nas áreas despovoadas.
Vilas são aos poucos construídas, atraindo interessados de diversos cantos do
Brasil, especialmente de Salvador. Em 1726 são criadas casas de fundição em
Jacobina e em Rio de Contas para trabalhar o ouro encontrado na região.
Entretanto, por volta de 1729, com a descoberta de diamantes na região de
Minas Gerais, muitos garimpeiros deslocaram-se para lá, abalando o então
frágil povoamento existente. Aqueles que ficaram, continuam trabalhando e
obtêm relativo sucesso, atraindo novos interessados.
Com localização geográfica estratégica, Minas de Rio de Contas, transformou-
se numa espécie de capital regional, pois avizinhando o Rio São Francisco,
servia de ponte entre Salvador e a produção mineradora de Minas Gerais e
Goiás
58
.
57
Ignácio Accioli. Annaes do Archivo Publico do Estado da Bahia. Salvador, Imprensa Official
do Estado, 1917.
58
Roberto Simonsen. História Econômica do Brasil. São Paulo: Biblioteca Pedagógica
Brasileira, 1937.
36
A atividade mineradora e a pecuária extensiva foram as principais responsáveis
pelo processo de povoamento na região da Chapada Diamantina. A pecuária
se sustentou concomitante à mineração, uma dependendo da outra, mas
também, uma rivalizando e conflitando com a outra. O criatório de gado foi
responsável pela fixação do homem no lugar, uma vez que as descobertas de
jazidas de ouro eram sazonais, muitas vezes se exaurindo logo em pouco
tempo. A importância da descoberta do ouro na região propiciou o surgimento
de uma malha importante de estradas, sendo que muitas delas confluíam para
o São Francisco, por onde era escoada parte da produção. Muitos municípios
foram desmembrados a partir da constituição dos núcleos de povoamento de
Jacobina e Minas de Rio de Contas. Por exemplo, Caetité tornou-se ponto
estratégico para o fluxo de povoamento, pois se situava à beira de importantes
estradas da região.
Concomitante à atividade do ouro, surgem descobertas importantes de jazidas
de diamante, o que acaba atraindo mais interessados. E assim, o ciclo do ouro
segue, tornando ricos alguns e trazendo a destruição e morte para muitos.
Conflitos de toda ordem surgem ao mesmo tempo em que a esperança da
riqueza se expande. Acontecem duelos, vendetas, cobrança de sangue,
desgovernos, brigas pela posse da terra, matança e perseguição concomitante
ao estabelecimento de núcleos familiares, construção de vilas, de povoados.
O Condado da Ponte, de domínio de Antonio Guedes de Brito já havia se
firmado na região, estabelecendo seus imensos currais de gado. A pecuária já
estava no local, o que por um lado facilitava o fluxo de povoamento, pois se
consumia a carne, o couro e os produtos derivados do leite; mas por outro lado,
instaurava conflitos pela posse da terra, roubo de animais, posse de mulher e
de escravos. A supremacia do Condado da Ponte mantinha relativo controle
social, mas os conflitos eram presentes em toda a região, mesmo porque se
tratava de imensas terras despovoadas, de solo montanhoso, com elevados
picos e montes, de subsolo cavernoso, o que dificultava a localização daqueles
que cometiam crimes e delitos.
37
No início do século XX, as jazidas de ouro na região começam a dar sinais de
exaustão. A região sentiu o impacto da perda, mas novas descobertas de
diamante ainda estavam em franco desbravamento. As atividades mineradoras
com o ouro continuavam agora na região da Serra do Assuruá, onde hoje se
localizam os municípios de Gentio do Ouro e Santo Inácio.
2.2. O CICLO DO DIAMANTE
De acordo com Accioli
59
, em 1732, a Coroa já tinha conhecimento da
descoberta de diamantes em Jacobina. Mas por conta da desvalorização do
produto no mercado internacional, resolveu proibir sua lavra. A única lavra que
estava autorizada a funcionar era a da região de Diamantina, em Minas Gerais.
Entretanto, sabe-se que apesar da proibição, os garimpos clandestinos
estavam funcionando.
“De início, as notícias do achado de algumas pedras translúcidas, aqui e alhures, sobretudo no
Tijuco, hoje cidade de Diamantina, foram-se acentuando, não faltando quem enviasse notícias
à Coroa, em amostras das preciosas gemas, na esperança de recompensas reais. E a Corte de
D. João V, que enxergava, lê logo, naquelas novas fontes de riquezas dos gerais brasileiros, a
continuidade da manutenção do seu fastígio e da sua inoperância, logo após as festas de júbilo
que soube levar a efeito e a celebração de te-déuns em Lisboa e em todo o reino, pelo evento,
começa a estabelecer providências para a aplicação, nas minas, de uma série de leis
profundamente rigorosas e restritivas, que vão da Portaria de 2 de dezembro de 1729, que
declarou nulas as datas doadas em terras diamantíferas, até o Regime da Real Extração, que
teria vigência, como teve efetivamente, até 1832, quando foi definitivamente decretada a
liberdade de exploração”
60
.
Os representantes da Coroa tentavam a todo custo fazer valer a proibição,
conforme relata Walfrido Moraes. Se a Coroa mantinha em segredo suas
descobertas, o mesmo não ocorria com os garimpeiros interessados em vender
suas pedras. A Coroa tinha seus interesses e os defendia através de seus
representantes legais, o que acabava por criar uma série de conflitos em torno
da mineração diamantífera.
Por volta de 1839, um explorador descobriu diamantes em Tamanduá, área de
Gentio do Ouro. Não demorou muito e foram descobertas na Serra do Assuruá,
em Santo Inácio, novas jazidas. Pouco depois, descobriram-se mais diamantes
59
Ignácio Accioli. Annaes do Archivo Publico do Estado da Bahia. Salvador, Imprensa Official do
Estado, 1917.
60
Walfrido Moraes. Jagunços e Heróis, a civilização do diamante nas lavras da Bahia. Bahia:
Imprensa Gráfica da Bahia/Assembléia Legislativa, 1997. Página142.
38
em Morro do Chapéu. Mas o melhor estava por vir. Encontraram aquele que
viria a ser um dos mais ricos locais mineradores na região, na Chapada Velha,
serra das Aroeiras. Seu reinado se estendeu até por volta de 1844 quando
descobriram diamantes em Mucugê. Esse sim, viria a mudar o padrão de
qualidade das pedras até então encontradas. Se antes, mesmo com pedras
pequenas, a cobiça era muito grande, agora maior ainda se tornou quando
foram encontradas pedras abundantes, de boa qualidade e de peso superior.
Os conflitos se acirravam cada vez mais. Subornos, punições, revoltas,
levantes, crimes de toda natureza configuravam a dinâmica ocupacional da
Chapada Diamantina. A corrida ao ouro e ao diamante estava posta. Aquele
que estivesse disposto a lutar venceria numa terra onde somente os
batalhadores sobrevivem.
A notícia das riquezas se espalhava como um rastilho de pólvora, Brasil
adentro. Pessoas saíam de Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo e Salvador
para se aventurarem nas serras e grotões da Chapada. Segundo Waldrido
Moraes
61
, há quem atribua a Spix e Von Martius a primeira colheita de belos
diamantes nas vertentes da serra do Sincorá, quando de sua viagem pelo
interior da Província da Bahia lá pelo ano de 1822. Entretanto, os naturalistas
somente comunicam o fato à Coroa em seus relatórios. O que pode ter ocorrido
na região é a presença de atividades mineradoras clandestinas espalhadas
pelas serras. Aproveitando-se das informações cedidas pelos naturalistas, o
latifundiário Sargento-Mor Francisco José da Rocha Medrado, cercou-se dos
dispositivos legais da época para assim se apropriar da maior parte das terras
onde existia potencial diamantífero.
A corrida para a região não tinha precedentes na história. Leitos de rio,
corredeiras, brejos, encostas, serras, morros, todos os cantos começavam a
ser ocupados por homens, mulheres e crianças em busca de ouro e diamante.
Remexiam os quatro cantos com seus instrumentos de garimpagem. Muitos
vinham até da região do Tijuco em Minas Gerais, na esperança de enriquecer.
61
Walfrido Moraes. Jagunços e Heróis, a civilização do diamante nas lavras da Bahia. Bahia:
Imprensa Gráfica da Bahia/Assembléia Legislativa, 1997.
39
“Eram bons e maus. Decentes e malfeitores. Idealistas, imaginando uma vida melhor e mais
afortunada, e criminosos profissionais...”
62
Walfrido Moraes
63
narra o seguinte episódio: “Ao que se conta – e Gonçalo de Ataíde
Pereira
64
, historiador e cronista honestíssimo o confirma – viajando para Andaraí, a fim de
efetuar compra de farinha ou estabelecer contatos com roceiros que a esse tempo já ali
existiam, deparou aquele negociante com o córrego que passa em Santa Isabel e vem
desembocar no rio Combucas, reconhecendo mais ou menos o mesmo cascalho que estava
acostumado a ver em Chapada Velha. Com a experiência que já possuía fez algumas
tentativas , a princípio infrutíferas; mas, com alguma perseverança e com informações que
colheu no local onde deu começo à experiência, tentou novamente unido a alguns auxiliares
que mandou vir, e então aconteceu que seu afilhado de nome Cristiano Nascimento encontrou,
na primeira lavagem que fez, dois diamantes de fina água, pesando um mais ou menos quatro
quilates e o outro pouco mais de um quilate. Estavam eles – acrescenta adiante o historiador –
senhores e possuidores de riquezas imensas e combinados em não dar conhecimento da
descoberta a ninguém. O segredo da descoberta, entretanto, não pôde ser guardado por muito
tempo. José do Prado – mais conhecido por Cazuzinha do Prado – voltou ao local da
descoberta com os seus companheiros, tendo intensificado os trabalhos de extração. Tirando
seis oitavas de diamantes grossos, um dos companheiros de Cazuzinha do Prado (Pedro
Antonio da Cruz, vulgarmente conhecido por Pedro Ferreiro) foi vende-las na Chapada Velha.
Ali chegando, despertou suspeitas num capangueiro, que o denunciou como provável
assassino de algum comprador ou negociante de Minas, de viagem para a Bahia. Para se
defender, Pedro Ferreiro foi obrigado a revelar o lugar da descoberta dos diamantes “que
produziriam verdadeiro alarme na Chapada Velha””.
Não tardou a aparecer gente de todos os cantos para explorar as novas
riquezas. Esse e outros episódios foram responsáveis pelo surgimento de
vários núcleos de povoamento na região. Pautados eminentemente na
atividade mineradora, as famílias moravam muitas vezes em grutas, cavernas
ou barracas. Somente após se fixarem por alguns anos na região é que
começavam a construir suas casas.
Inicialmente na área de Mucugê, a atividade mineradora acaba se expandindo
por toda a região, atingindo o Vale do Rio de Contas, nas vilas de Barra da
Estiva, Caetité, Rio de Contas, Xique-Xique de Igatu, Andaraí e Lençóis até
alcançar Morro do Chapéu.
Graças à descoberta de diamante em abundância nos leitos dos rios Lençóis e
São José, a cidade de Lençóis passa a ser o principal ponto de
desenvolvimento da Chapada Diamantina, onde ficou conhecida como a
62
Walfrido Moraes. Jagunços e Heróis, a civilização do diamante nas lavras da Bahia. Bahia:
Imprensa Gráfica da Bahia/Assembléia Legislativa, 1997. Página: 34.
63
Walfrido Moraes, 1997. Páginas: 33 e 34.
64
Gonçalo de Ataíde Pereira. Memória Histórica e Descritiva do Município de São José do
Paraguaçu, 1909, Bahia. Citado por Walfrido Moraes.
40
Capital das Lavras. O apogeu foi tanto que o governo francês instalou seu
Consulado por lá. Cogitou-se também da transferência da capital da Província
para Lençóis.
A presença de estrangeiros era grande, principalmente de franceses. Inicia-se,
então, a era de glória com a construção de casarios altos em estilo colonial. As
ruas e praças ganham colorido de cidade. As marcas da urbanidade estão
presentes no sistema de iluminação e abastecimento. Lençóis se coloca como
um importante centro comercial e político. As novidades chegam de Salvador e
do Rio de Janeiro. Porcelanas, sedas importadas e perfumes são trazidos por
comerciantes, os mascates, que enfeitam as praças e os lugarejos. Vários
estudiosos para lá se dirigem: são poetas, escritores, geólogos, naturalistas
que observam, registram, retratam e pesquisam a região. Uma importante
malha de estradas opera ao lado das facilidades das embarcações fluviais via
Rio São Francisco, Paraguaçu e Rio de Contas. A ferrovia está a todo vapor,
escoando riquezas em direção à Europa. Enfim, a efervescência vigora em
Lençóis que se destaca como o mais importante centro urbano do Estado da
Bahia.
De acordo com Camelo Filho
65
, foi a partir da lei de 1852 que se deu início à
navegação ferroviária no Brasil, tornando-se um grande negócio,
principalmente para a iniciativa privada. Serviu prioritariamente para expandir
os negócios agropecuários ligados à exportação e também para garantir a
ocupação do território brasileiro.
“Depois, muitos outros produtos passaram também a
ser transportados pelas estradas de ferro Recife ao São Francisco, com seu primeiro trecho
entregue ao tráfego em 1858, e a Bahia ao São Francisco, inaugurada em 1860; ambas
transportavam açúcar, café, fumo, algodão, cereais e passageiros”.
O autor enfatiza que
mesmo sendo consideradas estratégias, as primeiras estradas de ferro do
Nordeste (Recife e Bahia ao São Francisco) tiveram seus prolongamentos
estacionados por treze anos.
65
José Vieira Camelo Filho. A Implantação e Consolidação das Estradas de Ferro no Nordeste
Brasileiro. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Economia Política da
UNICAMP, 2000. Página: 231.
41
“Era a Estrada de Ferro Central da Bahia que perfazia a direção Leste-Oeste da Província, com
o ponto inicial no Recôncavo, na cidade de Cachoeira e São Félix, e deveria estabelecer
ligação com o Rio de Janeiro através da Estrada de Ferro Dom Pedro II. O encontro entre estas
estradas estava previsto para ocorrer em Monte Azul-MG. A ferrovia Central da Bahia só
chegou ao seu ponto final em 1950; ou seja, 84 anos após a sua concessão, feita em 1866
pelo Imperador Dom Pedro II. As estradas de ferro de Baturité e Central da Bahia
atravessariam uma parte significativa do interior brasileiro, embora nunca ultrapassassem uma
distância superior a 700 km da faixa litorânea.”
66
Embora percorrendo um trecho relativamente curto, a ferrovia que atendia o
trajeto São Francisco a Bahia transportava parte das riquezas produzidas nos
garimpos da Chapada Diamantina até os principais pontos comerciais e rotas
de exportação para os países europeus. As pedras preciosas, para chegarem
até a ferrovia, percorriam um longo caminho nos lombos de mulas, jegues e
burros, através de caminhos, carreiros e trilhas até desembocarem no Rio de
Contas, seguindo para o São Francisco. Posteriormente, utilizavam-se do
transporte de animais para chegar à estação de embarque ferroviário. A rota
deixada pelo trânsito de riquezas, pessoas e animais possibilitava a ocupação
de pessoas interessadas em oferecer hospedagem, vender provisões,
instalando-se por ali pequenos comerciantes que também se ocupavam de
estabelecer roças de subsistência. O fluxo de vida da região dependia das
riquezas produzidas e comercializadas em Lençóis que se consagrou como a
capital das lavras diamantinas.
Entretanto, esse legado estava com seus dias contados. O ouro entrava em
franca decadência e o diamante, em função das descobertas de jazidas
extraordinárias na África do Sul, colocava em sério risco o que fora construído.
Famílias poderosas, fazendeiros, homens influentes temiam perder poder,
prestígio e dinheiro. Foi quando então surge um francês, de nome A.
Chibaribere que começa a comprar pedras de carbonato. Essas pedras eram
usadas na fabricação de brocas para perfurar rocha no início dos trabalhos no
Canal do Panamá (1880).
Como um dos poucos locais onde havia sido encontrado esse tipo de rocha, a
Bahia passa a ser fonte de referência, mais especificamente na região de
66
José Vieira Camelo Filho. Obra citada anteriormente.Página 232.
42
Lençóis. O chamado diamante negro começa a ganhar preço e assim a região
volta a se recuperar.
Entretanto, a era do carbonato não se estende por muito tempo. Paralela à
atividade de mineração, a população segue fazendo roças para a produção de
subsistência, criando animais de pequeno porte, como galinha, porco e cabra.
As atividades econômicas começam a se diversificar, principalmente após a
desagregação do latifúndio da família Guedes de Brito. O Condado da Ponte
começa a ruir e suas propriedades passam a ser vendidas, apropriadas e
ocupadas. A pecuária extensiva também entra em declínio. Surge com isso, a
policultura, como o algodão, cana-de-açúcar, café e feijão. A crise assolava a
região, a fome ameaçava a vida de muitos. Era necessário diversificar a
produção de alimentos.
Por volta do final do século XIX, intensificou-se a produção de toucinho, carne
seca, requeijão, queijo de cabra, leite, rapadura, farinha e açúcar. Muitas
pessoas que não conseguiam sobreviver do garimpo passaram a se dedicar à
agricultura e atividades artesanais. A agricultura de pequena escala e a criação
de animais de pequeno porte acabou “salvando” o sertão seco. A forma como
cultivavam e ainda cultivam os alimentos, dispensando o uso da refrigeração,
representa, segundo Josué de Castro
67
, a garantia de potencial calórico e
protéico necessário para uma dieta satisfatória. O modo como conservam a
carne, o queijo em forma de requeijão, os beijus, rapadura, aguardente, açúcar
mascavo, toucinho e outros alimentos, garante o transporte seguro, sem risco
de putrefação, permitindo o armazenamento por um período razoável de
tempo.
Outros se dedicaram ao artesanato, presente em Lençóis, Rio de Contas e
Mucugê, principalmente o artesanato feito de pedras e palha. Marvin Harris
68
realizou um estudo por volta de 1951 em Rio de Contas, constatando que esta
cidade tinha como principal atividade econômica o artesanato. Com a presença
67
Josué de Castro. Geografia da Fome – o dilema Brasileiro: pão ou aço.Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001.
68
Marvin Harris. Town and Country in Brazil. New Yok, Columbia University Press, 1956.
43
de vários ourives e artesãos que trabalhavam com metais, couro e barro, a
cidade foi se transformando num importante pólo produtor de celas, estribos,
bruacas, facas, facões, cutelos, tachos de cobres, panelas e outros.
No final do século XIX começam a se diversificar também as atividades
mineradoras. Se antes o interesse se restringia ao ouro, diamante e carbonato,
agora o cristal de rocha, o quartzo, começa a atrair as atenções. Essa atividade
vai se consolidar, no entanto, somente após a Segunda Guerra Mundial. Os
municípios de Brotas de Macaúbas, Oliveira dos Brejinhos e Boquira aos
poucos vão se tornando pontos importantes no garimpo de pedras semi-
preciosas. Com a raridade de pedras preciosas, as semi-preciosas começam a
ganhar preço no mercado. Num período recente, descobriu-se a potencialidade
da região para o mármore azul de modo que atualmente a garimpagem e a
mineração ainda se encontram presentes nos domínios da Chapada
Diamantina.
2.3. O MANDOMISMO E AS RELAÇÕES DE PODER NA CHAPADA DIAMANTINA
Como vimos, a Chapada Diamantina teve seu fluxo ocupacional fortemente
marcado pelas explosões das descobertas de ouro, diamante, carbonato,
quartzo e outras pedras semi-preciosas. Suas terras que inicialmente foram
doadas em sistema de sesmarias para a família dos Garcia D’Avila,
posteriormente sofreram partições seguindo uma lógica de desigualdade e
antagonismos. A enorme diferença social entre seus habitantes esteve
presente desde o início do fluxo de povoamento.
O ouro e o diamante deixaram poucos ricos e muitos famintos, aleijados e
órfãos. O antagonismo inicial entre os Condados rivais, a Casa da Ponte e a
Casa da Torre, se estenderam para suas famílias, agregados, meeiros,
empregados e escravos, fecundando relações assimétricas e desiguais, o
estopim necessário para pequenas revoltas, levantes e duelos.
Motivados pela rivalidade inicial dos dois grupos dominantes da Chapada
Diamantina, de um lado, aqueles provenientes do Planalto Central, da Serra
44
Geral e do Vale do São Francisco, formados por boiadeiros, lavradores,
pequenos exploradores e foragidos da justiça, do outro lado, os representantes
dos interesses da aristocracia, normalmente portugueses ou ricos comerciantes
que migraram para a região com seu aparato formado por escravos e
empregados, entraram em conflito, registrando a primeira revolta de que se tem
notícia na região. A popularmente chamada de “Guerra do Mata-Maroto”,
ocorrida em 1831 em Rio de Contas, culminou por ocasião da renúncia de D.
Pedro I e prosseguiu até 1840 quando D. Pedro II assume o poder. Nesse meio
tempo, ocorrem vários levantes, a ponto do Governo da Província realizar
intervenção na cidade.
De acordo com Walfrido Moraes, por volta de 1861, por ocasião das eleições
em Lençóis para o Senado Estadual e Conselho Municipal, ocorreu disputa
violenta entre os chamados “serranos”, cujo controle estava em mãos do
mineiro, Coronel Felisberto Augusto de Sá e os “baianos”, chefiados pelo
coronel Antonio Gomes Calmon, da área do recôncavo baiano. Criaram-se os
primeiros partidos políticos:
“..que refletem, no seu bojo, as desconfianças naturais das correntes humanas que se
encontraram na Chapada em busca de riqueza, mas que são originalmente de regiões
ecológicas diferentes: o serrano, constituído de todos aqueles elementos procedentes do
Planalto Central Brasileiro, do Sertão Alto, de Caetité, de Riacho de Santana, de Monte Alto e
de muitas outras zonas da chapada ou do Rio São Francisco...; e o baiano...constituído de
elementos que subiram o Paraguaçu, oriundos de Cachoeira de São Félix, Feira de Santana,
Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Salvador e outros pontos. O choque das tendências é
terrível. Toda aquela gente que veio de cima, cuja atividade mineira já vinha constituindo um
meio de vida tradicional, considera-se, por extensão, com prerrogativas absolutas naqueles
novos domínios, e encara a gente que veio do litoral como adventícia, como estrangeira, dir-se-
ia melhor, como intrusa. É a repulsão natural.”
69
Os coronéis do sertão seco ganharam poder com o novo cenário político
colocado pela República. Após a Proclamação da República e Abolição da
Escravatura, os novos governantes, agora eleitos, se viam obrigados a pedir
favores eleitorais aos coronéis em troca de votos. Estes, por sua vez,
barganhavam poder econômico e político. Com o posto e patente da Guarda
Nacional, os coronéis se viam e eram vistos como detentores de grande poder.
A Guarda Nacional “chapadeira” era organizada em companhias locais e
69
Walfrido Moraes. Jagunços e Heróis, a civilização do diamante nas lavras da Bahia. Bahia:
Imprensa Gráfica da Bahia/Assembléia Legislativa, 1997. Página 43.
45
batalhões municipais. Dentre os coronéis de maior visibilidade, destacam-se:
Coronel Francisco José da Rocha Medrado; Coronel Antônio de Souza
Spínola; Coronel Antonio Goés Calmon; Coronel Reginaldo Landulfo; dentre
outros.
De acordo com Barbosa Lima Sobrinho
70
: “A Guarda Nacional, criada em 1831, para
substituição das milícias e ordenanças do período colonial, estabelecera uma hierarquia, em
que a patente de Coronel correspondia a um comando municipal ou regional, por sua vez
dependente do prestígio econômico ou social de seu titular, que raramente deixaria de figurar
entre os proprietários rurais. De começo a patente coincidia com um comando efetivo ou uma
direção, que a Regência reconhecia, para a defesa das instituições. Mas, pouco a pouco, as
patentes passaram a ser avaliadas em dinheiro e concedidas a quem se dispusesse a pagar o
preço exigido ou estipulado pelo poder público, o que não chegava a alterar coisa alguma,
quando essa faculdade de comprar a patente não deixava de corresponder a um poder
econômico, que estava na origem das investiduras anteriores”.
Divididos entre as responsabilidades e ônus do cargo e os benefícios
proporcionados por ele, os coronéis da Chapada Diamantina instauraram seu
domínio, alargando pela força suas terras, usurpando gado e nascentes de
água daqueles que não tinham tal poder. Para Victor Nunes Leal
71
, o fenômeno
coronelismo envolve um complexo de características da política municipal,
resultante da superposição de formas desenvolvidas do regime representativo
a uma estrutura econômica e social inadequada, manifestação do poder
privado. O que denota “um compromisso, uma troca de proveitos entre o poder público,
progressivamente fortalecido, e a decadente influência social dos chefes locais, notadamente
dos senhores de terras.”
O coronelismo é um fenômeno marcadamente importante
para a compreensão dos modos de vida na Chapada Diamantina. “Desse
compromisso fundamental resulta as características secundárias do sistema ‘coronelista’, como
sejam, entre outras, o mandonismo, o filhotismo, o falseamento do voto, a desorganização dos
serviços públicos locais”.
72
O federalismo implantado pela República deu lugar ao crescimento desse
fenômeno em germinação desde a implantação da estrutura de distribuição das
terras do Brasil. As bases da governança republicana eram legitimadas na
esfera estadual, tendo como coadjuvantes as oligarquias locais, cujos coronéis
70
Barbosa Lima Sobrinho. No prefácio da obra: Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o
regime representativo, no Brasil. De autoria de Victor Nunes Leal. São Paulo: Alfa-Omega,
1975. Página13.
71
Victor Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo, no
Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. Página 40.
72
Victor Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto: o município e o regime representativo, no
Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. Páginas: 40 e 41.
46
eram seus principais representantes. Em 1898, após a implementação da
política dos Estados, feita por Campos Sales, os embates políticos entre os
representantes do Estado e os representantes das oligarquias locais acabou
por fortalecer o papel dos coronéis que, através de barganhas e conchavos,
“costuravam” os cenários políticos da Primeira República. Estes conchavos e
barganhas passaram a ser parte integrante da vida política nacional e na esfera
estadual, ganhava “ares de batalhas e insurgências”. Haja vista o episódio que
culminou com a prisão no estado da Bahia de vários coronéis insurgentes.
Neste trabalho interessa discutir a dimensão relacional de como o mandonismo
se estabelece como uma das principais características das relações de poder
na Chapada Diamantina. O conceito weberiano de dominação parece fornecer
elementos para a reflexão do sistema coronelista, entendendo que a relação
mando/obediência dar-se-á numa via de mão dupla. Para Weber
73
, “a dominação,
ou seja, a probabilidade de encontrar obediência a um determinado mandato, pode fundar-se
em diversos motivos de submissão. Pode depender diretamente de uma constelação de
interesses, ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenientes por parte
daquele que obedece. Pode também depender de mero “costume”, do hábito cego de um
comportamento inveterado. Ou pode fundar-se, finalmente, no puro afeto, na mera inclinação
pessoal do súdito. Não obstante, a dominação costuma apoiar-se internamente em bases
jurídicas, nas quais se funda a sua “legitimidade”, e o abalo dessa crença na legitimidade
costuma acarretar conseqüências de grande alcance. Em forma totalmente pura, as “bases de
legitimidade” da dominação são somente três, cada uma das quais se acha entrelaçada – no
tipo puro – com uma estrutura sociológica fundamentalmente diversa do quadro e dos meios
administrativos”
. Da dominação legal sustentada pelo autor como um ato de
obediência burocrática até a dominação tradicional, que decorre da crença na
santidade das ordenações e dos poderes senhoriais de há muito existentes,
surgem espaços para outras formas de dominação. Para Weber, seu tipo mais
genuíno é o da dominação patriarcal. Obedece-se à pessoa em virtude de sua
dignidade própria, santificada pela tradição: por fidelidade. O conteúdo das
ordens está fixado pela tradição, cuja violação desconsiderada por parte do
senhor poria em perigo a legitimidade do seu próprio domínio. Este tipo de
dominação pode estar associado à dominação carismática, fruto da devoção
afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes sobrenaturais (carisma) e,
73
Max Weber. Sociologia. São Paulo: Editora Ática, 2004. Página:128.
47
particularmente: a faculdades mágicas, revelações ou heroísmo, poder
intelectual ou de oratória.
Max Weber entende por poder “a oportunidade existente dentro de uma relação social
que permite a alguém impor a sua própria vontade mesmo contra a resistência e
independentemente da base na qual esta oportunidade se fundamenta”
74
. Para o autor o
termo é sociologicamente amorfo e polissêmico. Já o conceito de dominação
exige maior precisão e demanda a obediência, ou seja, torna-se relacional na
medida em que depende daquele que manda e daquele que obedece.
Foucault
75
contrapõe-se a essa idéia weberiana de poder, assumindo que não
se pode falar em poder sem atrelá-lo ao conhecimento como condição de
indissociabilidade do seu exercício pleno. A visão foucaultiana de poder traz a
lógica relacional como ponto principal no processo de efetivação do poder.
Para ele, o poder só se torna aparente quando exercido. Quanto mais
conhecimento você adquire, maior será o seu poder e vice-versa. São
dimensões inseparáveis que coadunam para o exercício efetivo do poder.
Neste sentido, o poder não é uma via de mão única, mas construído na
relação. O reconhecimento do poder torna legítimo seu exercício na medida em
que a própria noção de indivíduo para o autor refere-se a um sujeito
historicamente produzido, construído por meio de elementos correlatos de
poder e conhecimento. Entretanto, esta não é uma tarefa que se restringe ao
nível da consciência. A intersecção entre os níveis das escolhas do consciente
e o fenômeno inconsciente está presente no reconhecimento daquele que
exerce o poder da mesma forma que está presente naquele submisso aos
processos de poder.
Uma somatória de dimensões complexas corrobora práticas cotidianas que
atualizam o sistema coronelista no dia a dia. Elementos novos são agregados
ao velho sistema, permanecendo lógicas de aprisionamento do povo aos
ditames e vontades daqueles que detêm o poder e o conhecimento. Mas longe
de ser uma relação maniqueísta, dicotômica, as dimensões do mando foram
constituídas a partir da estrutura de distribuição das terras do Brasil, passando
74
Max Weber. Conceitos Básicos de Sociologia. São Paulo: Centauro, 2005. Página 75.
75
Michel Foucault. A Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
48
pelos poderes conferidos à Guarda Nacional, que deliberadamente compravam
suas patentes, estreitando ainda mais a hierarquia social e econômica já
agravada pelo sistema de latifúndio em vigor nas terras da Chapada
Diamantina. As intersecções entre os mandatários do regime de terras e os
mandatários do regime político eram intensas uma vez que se tratavam dos
mesmos personagens, atuando na esfera econômica, burocrática e política: os
coronéis, personagens que reuniam as características do dominador descritas
por Max Weber. Na prática, todos os mecanismos de controle social estavam
nas mãos do representante do sistema coronelista. Os cargos de delegados,
subdelegados e inspetores de quarteirão eram designados pelos coronéis que
através de conchavos, alianças e barganhas desenhavam o cenário político
nos sertões secos da Bahia. Essa lógica permaneceu atuante durante o século
XX, sendo gradativamente atualizada, ganhando sofisticações e elementos da
modernidade, rarificando práticas ilegais como o crime de mando, por exemplo,
mas mantendo essencialmente o regime que a sustenta: a apropriação privada
dos bens públicos por parte de uma elite rural que historicamente tem usurpado
aquilo que é destinado ao povo.
Os embates políticos com coronéis rivais eram travados com violência, usando
de estratégias com jagunços, tocaias, armadilhas e perseguições. A morte era
iminente: usava-se de facas, facões, armas de fogo e combate homem a
homem. O objetivo era a obtenção do poder, tanto econômico, quanto político e
se estendia desde cargos políticos para privilegiar familiares e protegidos até o
poder de nomear altos funcionários da Justiça, de Bancos, de repartições
públicas que controlavam as terras, principalmente.
Em plena decadência da mineração, dois coronéis rivais, duas famílias, duas
facções lutam pelo domínio da região. De um lado os “pinguelas”, liberais, do
outro, “os mandiocas”, conservadores, dentre outras alcunhas. E assim, a
Chapada Diamantina vai sendo colonizada com a marca do bipartidarismo, da
dicotomia fortemente marcada pela violência. Os duelos são partes
constitutivas do modo de ocupação do território chapadeiro. Os duelos mais
famosos se referem às figuras dos coronéis Horário de Matos e Militão
Rodrigues, que guerrearam por terra, poder e riqueza. Coronéis de outras
49
cidades também duelavam, sendo que o destaque ocupado por Horácio de
Matos no imaginário local é grande. O coronelismo figura-se como um sistema
político da história do Brasil, sendo que o mandonismo é uma característica
importante desse sistema, ao lado de outras como o clientelismo e o filhotismo.
O fenômeno mando/obediência dá-se de forma assimétrica, corroborada pelas
práticas de gestão pública que traduzem na apropriação privada dos bens e
recursos públicos, bem como no usufruto da máquina estatal para manutenção
da rede de privilégios que sustenta essas práticas de poder.
Na região de Oliveira dos Brejinhos, Boquira e Paratinga, duelavam Capitão
Custódio e seu sobrinho, o também Coronel, Chico Teixeira. Os principais
motivos dos duelos eram disputas por terra, por mulher e por rezes. Quando da
vitória de um coronel, os jagunços do coronel perdedor passavam então a
compor a tropa do coronel vencedor. Restava um ou outro jagunço de
confiança, fiel, cuja lealdade, muitas vezes era cobrada com a vida. O coronel
derrotado formava sua nova tropa, agora composta por jagunços inexperientes
e em busca de trabalho.
Os duelos eram marcados por mortes de ambos os lados. O que se iniciava
com o confronto entre os dois coronéis, se estendia por toda a tropa. Quando
algum jagunço cometia algo que desagradava o coronel, este então o
castigava. Os castigos mais comuns iam desde fazer o jagunço comer pimenta,
colocar pimenta nos seus olhos, até chicotear-lhe em pelo vivo. Conta-se, em
Oliveira dos Brejinhos, que o Coronel Chico Teixeira era tão valente que fazia o
sino da Igreja tocar com o zunido da bala. Todas as manhãs e tardes, ele
passava em frente à Igreja e disparava sua arma contra o sino para ouvir as
badaladas das seis da manhã e das seis da tarde, quando então o padre ia
celebrar a missa.
Após a abolição da escravatura, os ex-escravos juntaram-se á famílias de
trabalhadores que possuíam pequenas porções de terra. Sem o amparo dos
seus senhores são obrigados a trabalhar para qualquer um que lhes dê em
troca alimento e moradia. Originou-se daí uma forte dependência em relação
ao proprietário da terra, resultando na constituição de parcela significativa da
50
população em estado de miséria na região. Os homens partiam para fazendas
em busca de trabalho, enquanto as mulheres e as crianças ficavam nas
pequenas comunidades, plantando nas roças ao redor das casas. Surgem com
isso inúmeros capangas, à disposição dos proprietários de terras que, muitas
vezes se utilizavam dos serviços dos capangas como pagamento por morarem
em suas propriedades. Serviços esses os mais variados, dependendo das
ordens do coronel e/ou proprietário de terras, sendo os mais comuns os
serviços de segurança privada; aplicação de “corretivos” que consistia em
castigos para aqueles que desafiavam as ordens do coronel ou, em casos
extremos, o crime de encomenda, em que o coronel encomendava a morte de
um inimigo seu.
Geralmente, as duas famílias de Senhores, que tinham rivalidades anteriores,
estenderam esta rivalidade para seus colonos e ex- escravos. A rivalidade tem,
provavelmente, uma forte raiz na política atual que impera nos municípios,
onde prevalecem os mesmos núcleos familiares. Da época da escravatura, do
coronelato, até os dias atuais, o que se observa é um bipartidarismo
mascarado com os nomes dos partidos oficiais, mas que na realidade obedece
à lógica antiga. Atualmente temos de um lado, “os corinas”
76
, partido apoiado
por Antônio Carlos Magalhães, a ARENA I e de outro lado, “os rabudos”,
partido de oposição, a ARENA II e, ocasionalmente o MDB, também chamado
de Manda Brasa.
As práticas cotidianas reforçam e sofisticam estas características, encontrando,
por exemplo, na manipulação das urnas eletrônicas uma forma de
76
“corina” e “rabudo” são nomes utilizados para designar os dois lados que tradicionalmente
disputam as eleições no município de Oliveira dos Brejinhos. As pessoas não se referem aos
partidos políticos. Para elas, alguém só pode ser “rabudo” ou “corina”. Se pertence a esse ou
àquele partido oficial, pouco importa. Essas facções duelam em busca do poder, na segunda
metade do século XX até a década de 1980, onde havia a predominância da ARENA e MDB,
ou mais enfaticamente, a ARENA I e a ARENA II.
Até por volta da década de 80, as pessoas não migravam de facção, ou seja, ela nascia
“rabudo”, morria “rabudo”. Possuía uma espécie de “lealdade” na família: nenhum membro
ousava violar esse princípio, pois a penalidade poderia ser grande. Após a eleição de Fernando
Collor de Mello, essa situação sofreu transformação, pois ambos os lados resolveram apoiar
Collor. Havia na época uma rejeição muito grande ao Partido dos Trabalhadores e em especial
à figura de Luiz Inácio Lula da Silva. A partir de então, esse bipartidarismo torna-se frágil e o
fluxo migratório de facção torna-se mais complexo. Ocorre daí, a intensificação do processo de
compra de votos e a “lealdade” parece dar lugar “àquele que melhor pagar pelo seu voto”.
A respeito dessa dinâmica, o capítulo 3 tece considerações.
51
perpetuação. Por ocasião das eleições de 2002, muitos moradores do Cercado
externaram suas preocupações e medos ilustrados no seguinte depoimento:
“Se antes eles já sabiam em quem a gente ia votar, agora com essa maquininha é que eles
ficam sabendo mesmo. A gente aperta aquele botão e na hora eles sabem em quem a gente
votou”.
77
Episódios como a queima do Cartório de Oliveira dos Brejinhos na década de
setenta, assim como a destruição de “provas” incriminando velhos “caciques”
da política local exemplificam como as dinâmicas internas corroboram a
manutenção das relações de poder sob a égide dos “coronéis”. Esses coronéis
proliferam “crias” por vários distritos, povoados e localidades sob a forma de
“cabo eleitoral”, muitos acabam se elegendo vereador ou se tornando uma
importante força política no nível das microestruturas de poder. Dessas micro-
esferas estabelecem conexões que se estendem para além das fronteiras do
município, culminando com apoio e conchavos que garantem a permanência
dos aliados no poder, tanto em nível da micro-região, em nível Estadual e
Federal. Essas conexões são necessárias para a sustentação do regime
coronelista como um sistema onde o mandonismo se materializa através de
consagradas formas estabelecidas ao longo da história regional, mas
principalmente através da sofisticação e modificação dessas velhas práticas
que são atualizadas conforme os usos que se fazem delas.
Uma das atualizações mais recorrentes nos domínios da Chapada Diamantina
é o caso da “população refém da saúde”, termo que denomina uma modalidade
de coronelismo que está relacionada ao exercício discriminatório da medicina.
Muitos filhos desses coronéis foram estudar medicina e retornaram para seus
municípios onde exercem função de médico com o aparato público disponível
nos postos de saúde ou hospitais públicos. Entretanto, o acesso ao
atendimento público só é garantido àqueles partidários do “coronel”, “pai” do
médico. Esse jovem médico começa a ser preparado para a vida pública,
através da popularização dos seus feitos: “salvou fulano que chegou entre a vida e a
morte”! “ Ah! Se não fosse o Doutor, minha filha tinha morrido!” “Como posso votar contra o
Doutor se é ele quem salva a nossa vida quando estamos entre a vida e a morte”.
77
F.L.S. depoimento de um morador do Cercado.
52
Essas falas são comuns em muitos municípios da Chapada Diamantina e
reforçam o exercício discriminatório do mando. Tanto para os médicos que
mantêm clínicas particulares que atendem pelo SUS – Sistema Único de
Saúde, quanto os médicos que trabalham em postos de saúde e hospitais
municipais acabam reproduzindo práticas discriminatórias, onde se privilegiam
os aliados políticos. Os inimigos políticos não são atendidos com a mesma
prontidão e quando o são, normalmente isso é feito como forma de persuadi-
los a “virar contra”, passando a ser um aliado. A qualidade do atendimento está
diretamente relacionada à pertença partidária, ou seja, para que lado o
paciente vota. Se votar nos partidários do médico, terá seu atendimento
garantido. Caso contrário sofrerá sanções, como demora no atendimento ou
mesmo falta de atendimento. De modo que no interior do bipartidarismo
chapadeiro, o lado perdedor se enfraquece cada vez mais e, num espaço de
dois ou três mandatos consecutivos, começa a perder aliados, permanecendo
apenas “os apaixonados”, os velhos “coronéis”, matrizes dos fundadores. A
cada nova conquista, a depender do grau de importância política e social
daquele que “virou”, fazem-se comemorações, festas e soltam-se fogos.
Atualmente as heranças do coronelismo se materializam através de várias
práticas cotidianas. A dominação tradicional se reproduz em cima do atual
cenário sócio-político da região, adaptando-se aos dinamismos da atualidade,
mas mantendo o cerne de sua essência, a dominação senhorial e política
exercida e legitimada através da figura do “homem bom e poderoso que a
todos ajuda”. Suas características de generosidade, anteparo e proteção
servem de “mediação” para o acesso às instituições formais do poder público
através dos seus serviços essenciais como saúde, educação e transporte. Esta
relação garante o acesso à burocracia que insere o sujeito no sistema de
usufruto dos serviços básicos e nos benefícios possibilitados pelos programas
sociais dos governos Federal e Estadual, além de facilitar os processos da
aposentadoria rural.
No interior de pequenas localidades chapadeiras, há grande proximidade entre
a população e os representantes do poder, possibilitando a legitimação do
53
mandonismo. A tendência de enfraquecimento das suas relações se intensifica
quando estas se burocratizam em estruturas profissionais da administração
pública. A ausência de práticas profissionais de gestão pública possibilita a
manutenção do sistema coronelista, uma vez que dá margem a desvios.
Quando há profissionalismo na administração pública a tendência é que estas
relações se complexifiquem ganhando outros contornos, dificultando as
práticas coronelistas. A impessoalidade fornecida pela profissionalização da
gestão pública enfraquece ou modifica antigas práticas.
Embora enfraquecidas e com contornos diferentes, as diversas expressões do
coronelismo estão ainda presentes na complexa rede de inserção das pessoas
junto aos direitos básicos garantidos pela Constituição Brasileira. Na região,
estes direitos são transformados em privilégios na medida em que se inicia o
processo de negociação do acesso a eles. Uma série de agentes responsáveis
pela sua distribuição cria logística peculiar que coloca o “coronel, homem bom
que a todos ajuda” no epicentro da distribuição, deixando os “contras” fora da
rede de beneficiados. Os benefícios são direcionados aos partidários daqueles
que estão frente ao poder, como por exemplo, ter o direito de usar o sistema de
ambulâncias para transportar pessoas doentes para Salvador ou Seabra; ter as
despesas pagas por ocasião de uma festa de casamento; ter passagens pagas
para São Paulo por ocasião de tratamento médico ou visita a parentes doentes;
ter a possibilidade de enviar um filho para estudar em Salvador; poder concluir
a reforma da casa, dentre outros.
Acentuadas pelo relativo isolamento da geografia chapadeira, as dinâmicas
sócio-políticas da região inscrevem este “novo ator – o médico” como o
signatário de um processo de mandonismo cuja efetivação se materializa em
práticas como o exercício discriminatório da medicina como forma de aprisionar
a população a um sistema de mando/obediência, além de dificultar o acesso
aos bens e serviços públicos que, em mãos de poucos, condiciona seu usufruto
ao voto não só seu, mas a lealdade da família como um todo. Os acordos
exigem reciprocidade: o uso do serviço público está atrelado à lealdade do
voto. Este complexo sistema explicitado por Victor Nunes Leal em sua referida
obra demonstra as intersecções entre os vários atores envolvidos desde o nível
54
das microestruturas de poder até o nível da macroesfera Federal, materializado
a partir da unidade do município.
Após ter seu trabalho consolidado ao longo de quatro, cinco anos, lança-se o
jovem médico na candidatura ao cargo de prefeito. Poucos se interessam pelo
cargo de vereador, mas como a medicina está se popularizando, não há
prefeituras para todos os aspirantes, então o cargo de Secretário da Saúde
ainda permanece atraente. O jovem médico assume a prefeitura e como
normalmente entende pouco de gestão pública, permanece no cargo
figurativamente, sendo que a gestão dos recursos públicos fica nas mãos dos
“velhos coronéis”, responsáveis pela sua estadia no cargo de prefeito. O rateio
e distribuição dos cargos de confiança também permanecem nas mãos dos
“velhos coronéis”. Em alguns municípios já houve insurgências, criando
intensas batalhas, onde a “quebra de braço” pendeu para o lado dos velhos
caciques. Como resultante, fragmenta-se o município num novo
bipartidarismo, modificando as alianças e conchavos, mas permanecendo a
dicotomia entre duas facções: “a favor” e “contra”. Podem-se mudar até os
apelidos, mas o sistema permanece o mesmo.
O que parece não mudar é a fascinação que o povo nutre por “grandes
figuras”, coronéis lendários, como Horário de Matos, Militão Rodrigues Coelho
e Francisco Teixeira, dentre outros. O imaginário local enaltece ao mesmo
tempo em que teme estas figuras, perpetuando sua existência para além das
fronteiras da modernidade, reverberando nas narrativas de feitos heróicos que
ainda hoje povoam a “ boca da noite” das casas chapadeiras.
2.4. O CORONEL HORÁCIO DE MATOS
78
Em 1882, no distrito de Chapada Velha, no município de Brotas de Macaúbas,
nasce um menino de nome Horário, filho de Quintiliano Pereira de Matos e
78
Foram consultadas as seguintes obras: Walfrido Moraes. Jagunços e Heróis, a civilização do
diamante nas lavras da Bahia. Bahia: Imprensa Gráfica da Bahia/Assembléia Legislativa, 1997.
Juvenal Neves. Vilarejo – A Vila de Bom Sossego: verdadeira história da Chapada Diamantina.
Salvador, Governo do Estado da Bahia, 2001. Claudionor de Oliveira Queirós. O Sertão que eu
conheci. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1982.
55
Hermínia de Queirós Matos. Desde pequeno, Horácio se destacava dos demais
meninos, seu comportamento pacifista rompia com os costumes agressivos de
brigas e duelos aos quais os varões estavam acostumados. Não pôde
freqüentar a escola e ainda rapazote resolve migrar para Morro do Chapéu,
onde se estabelece como um modesto comerciante. Faz amizade com um
chefe político local e este lhe confere o título de Tenente-Coronel das Brigadas
da Guarda Nacional. Cai nas graças desse importante político e ganha assim
certo prestígio.
Sua família, no entanto, ficou estabelecida na Chapada Velha, de onde recebe,
certo dia, um chamado de extrema urgência de seu tio Clementino. Temendo o
que estava por vir, apressa-se a chegar ao local. Chegando lá, vê que seu tio
está nas últimas e deseja passar seu legado de chefe supremo da tribo dos
Matos para Horácio. Após tecer considerações e recomendações, faz uma
retrospectiva das injustiças, perseguições e violências pelas quais a família
tinha passado, ressaltando os feitos heróicos dos antepassados. Entrega
então, em suas mãos, o bastão de sua tribo, contendo o Código de Honra
79
da
família:
“Não humilhar ninguém – mas também nunca se deixar humilhar, por quem quer que seja”;
“Não roubar, jamais, sejam quais forem as circunstâncias – nem permitir que alguém roube e
fique impune”;
“Ser leal com os amigos e parentes, protegendo-os sempre”;
“Ser leal com os inimigos, respeitando-os em tempo de paz e enfrentando-os em tempo de
guerra”;
“Não provocar nem agredir – mas se for ofendido, colocar a honra acima de tudo, e reagir na
melhor extensão da palavra, porque de nada adianta a vida sem dignidade”.
Num gesto de afirmação do legado patriarcal, Clementino pede a todos os
demais sobrinhos, primos e afilhados que formem um círculo em torno de sua
cama. Pede então, que Horácio, de posse de uma palmatória, aplique meia
dúzia de bolos em cada um, para que saibam que de agora em diante devem-
lhe obediência.
79
Walfrido Moraes. Obra citada. Página: 58.
56
Horácio volta a residir na Chapada Velha a fim de assumir o poder da família
Matos. Na cidade vizinha, Barra do Mendes, o poder está em mãos do Coronel
Militão Rodrigues Coelho. As duas cidades se rivalizam, a ponto de as pessoas
não se falarem, não estabelecerem nenhum intercâmbio comercial,
alimentando um ódio crescente, cada vez maior. Horácio então resolve entrar
em diálogo com o Coronel Militão para pôr fim à rivalidade. Durante algum
tempo a rivalidade ficou suspensa. Parentes que não se viam há anos voltaram
a se encontrar, pessoas passaram a circular de uma cidade para a outra,
tornando visível o clima de troca. Entretanto, a paz reina por pouco tempo.
Com a morte do Coronel José João de Oliveira, chefe político de Brotas, Militão
entende que deveria ocupar seu posto.
Os ânimos acirram-se, pois Militão é temido por seus desmandos e violência.
As principais lideranças locais temem que ele tome o poder para si, utilizando-
se de expedientes desonestos. A revolta toma conta de Brotas. Horácio de
Matos se oferece para ser o negociador, o pacificador nesse processo político,
visando à desistência da candidatura de Militão. Vai então sozinho ao seu
encontro no povoado do Pega. Todos temem pela sua vida. Horácio consegue,
com sucesso, dissuadir o Coronel desta empreitada. Ao retornar para Brotas,
consagra-se como um importante negociador.
A Chapada ganha tempos de paz que é interrompida na noite de 4 de
dezembro de 1914, com o assassinato de um dos irmãos mais velhos de
Horácio. Os mandantes dos crimes eram chefes locais e coronéis. Os
assassinos fogem e são protegidos pelo Coronel Manuel Fabrício de Oliveira. A
Justiça local, em vão, os intima, para prestar depoimentos. Em todas as
ocasiões, zombam do Oficial de Justiça. Na última tentativa, rasgam com
zombaria a notificação oficial. Horácio parte em busca de justiça. Vai à Esfera
do Estado clamar por justiça. Não recebe apoio algum. Decide então fazer
justiça com as próprias mãos. Reúne sua gente e vai cobrar o sangue de seu
irmão.
Arma um plano para invadir Campestre que fica distante de Brotas, cerca de
150 quilômetros. Segue acampando no caminho e volta e meia alguém junta-se
57
ao bando, oferecendo seus préstimos. São inimigos do Coronel Manuel
Fabrício de Oliveira e seguem com o intuito de vingança. Chegando ao destino,
revisam a estratégia. Esperam a noite cair e começam a atacar. São contra-
atacados e durante o dia o tiroteio prossegue. Percebem que serão
aniquilados, pois são em menor quantidade,e resolvem partir em retirada.
O Coronel Clementino sabe que o clã dos Matos não ficará em silêncio com a
derrota e resolve pedir ajuda oficial de Salvador. O então chefe do executivo
baiano, o Dr. J.J. Seabra determina o atendimento da solicitação e envia para a
Chapada, sob o comando do Temente Pedra, uma diligência.
Os soldados e os jagunços do Coronel Clementino cavam trincheiras,
preparam armadilhas e esperam os Matos. A espera é longa. As famílias
começam a se retirar para outras localidades, temendo os conflitos. A cidade
fica vazia. Nem mesmo a feira funciona. Num certo dia o duelo começa: são
tiros por todo lado. As perdas atingem ambos os lados. Os dias passam e a
fome assola os combatentes. Horácio percebe que pode tirar proveito da
situação, pois dispõe de alimentos em maior quantidade. Resolve contatar o
chefe dos soldados e sugere que estes partam em retirada para Salvador.
Temendo ver sua tropa morta pela fome e sede, o Comandante retorna a
Salvador. No caminho encontra novas tropas que vieram ao seu socorro. São
cerca de trezentos homens dispostos a lutar. Estes não desistem da
empreitada e marcham em direção aos Matos. Lá se aproximando, deparam
com uma “chuva de balas” que logo põe a tropa em retirada.
O Governo do Estado teme pela situação nas Lavras Diamantinas e nomeia o
respeitado Coronel José Pedreira Lapa como Delegado Especial, cuja função
era ser negociador entre as partes no intuito de restabelecer a paz no lugar. O
Coronel então negocia e consegue pôr fim aos conflitos. Horácio no entanto,
pede, como condição para sua trégua, que os assassinos de seu irmão sejam
punidos pela lei.
A trégua dura até 1916 quando o Coronel Militão Rodrigues Coelho toma, em
assalto, Brotas de Macaúbas. Houve certa resistência, mas instala-se lá na
58
esperança de ser nomeado Intendente. Seu reinando é regado a “ferro e fogo”,
dando “para os amigos, tudo e para os inimigos, a força da violência e da
perseguição”. Os moradores mais tradicionais não concordaram com sua
ocupação e o prestigiado escrivão local, de quem Militão mandou retirar o
Cartório, resolve escrever uma carta aberta às autoridades da capital,
denunciando os desmandos do Coronel em Brotas. Militão ordena a caça ao
escrivão que é preso imediatamente.
Horácio resolve combater em Barra do Mendes, os jagunços de Militão.
Consegue êxito nesta empreitada. No caminho de volta a Brotas, recebe a
notícia da ação de Militão na região. O saldo são vários mortos, saques,
humilhações e desmandos. Horácio se apressa em chegar a Brotas. Lá
chegando, iniciam-se os tiroteios que não cessam por meses.
Enquanto isso, em Barra do Mendes, Militão instala seu quartel general e se
prepara para a batalha. Munições e provisões chegam de todos os lugares,
tanto para um lado quanto para o outro. Horácio dá um ultimato às famílias de
Barra do Mendes: todos devem partir até determinada hora, porque será
travada uma batalha sangrenta.
De fato a batalha começa e guerreiam por exatos quatro meses e vinte e oito
dias. Quando então, após derrotar todos os focos de resistência, todas as
trincheiras, em duelos homem a homem, Horácio explode com uma granada de
mão o quartel general de Militão. Este foge para longe e é perseguido pelas
tropas de Horácio que consegue pegar um filho de Militão. Seguem para Barra
do Mendes e devolve Nestor Rodrigues Coelho à sua mãe.
Seus feitos correram a Chapada, sendo contados como atos heróicos,
desprovidos de interesses materiais e políticos. O imaginário local tratou de
reproduzir suas façanhas, aumentando seus poderes, ora sendo-lhe atribuído
caráter sobrenatural, ora caráter heróico no manejo das armas de fogo e do
combate corpo a corpo.
59
A fama de Horácio persiste e se consolida com a Revolução de 1930. Antes,
porém, aconteceu uma série de insurgências e levantes em virtude da
intervenção federal da Bahia. Estes levantes causaram mortes sertão adentro.
A fama de Horácio, como homem forte, justo e sóbrio cobriu toda a Chapada.
Em pouco mais de uma década, ele era a figura mais popular, querida e temida
da área. Colecionava amigos, mas também inimigos que em vão montavam
estratégias de acabar com sua vida e pôr fim ao seu poder. Várias foram as
emboscadas, registradas pela história, das quais ele sempre se safou.
Horácio combate fortemente a Coluna Prestes e se consagra como um grande
guerreiro nos domínios dos sertões secos da Bahia. Com o triunfo da
Revolução de 1930 se vê obrigado a entregar pacificamente as armas e
munições às autoridades em Salvador. Entrega cerca de 30.000 armas e é
levado preso para a capital, onde permanece até 1931, quando então é solto,
dada a pressão das autoridades da Igreja católica, de Magistrados,
comerciantes e homens influentes. Dois dias após sua soltura é assassinado a
mando dos familiares do Major de Polícia João da Mota Coelho que fora morto,
dias antes, por comparsas de Horácio. Sua morte abala os sertões secos da
Bahia, tomado por muito choro, tristeza, desespero e alívio para alguns. Os
inimigos comemoram e os aliados agora estão órfãos do grande pai, herói de
muitos chapadeiros.
A Chapada Diamantina inicia um ciclo de decadência continuada que vai
culminar no fluxo migratório de muitos para os garimpos em Mato Grosso, para
São Paulo e região Amazônica. Lençóis, que outrora ostentava o título de
capital das lavras diamantina, agora amarga a solidão dos casarios
desabitados, as ruas desertas e levas e mais levas de retirantes que, dia após
dia, partem em busca da esperança de uma vida melhor.
Outros Coronéis importantes também figuraram na batalha contra os revoltosos
da Coluna Prestes, dentre eles Coronel Franklim Albuquerque, de Pilão Arcado
e Abílio Wolney. Dentre aqueles que ofereceram apoio tático, destacam-se:
Coronel Leonídio Ambrósio de Abreu, Coronel Francisco Borges de Figueiredo
60
Filho, Coronel Manuel Alcântara de Carvalho, Coronel Marcionílio Souza e
Coronel Francisco Teixeira.
Para quem ficou, resta continuar a batalha cotidiana. Alguns coronéis de menor
importância procuram estabelecer seu domínio. Entretanto, nenhum deles se
configurou no imaginário do povo da Chapada com características heróicas
como Horácio de Matos. Seus feitos foram e ainda são transmitidos oralmente
por aqueles que presenciaram ou reproduziram o imaginário de lutas e
batalhas.
A partir de então, as terras chapadeiras ganham “novos ares”: os filhos das
famílias tradicionais são enviados para Rio de Janeiro, São Paulo e Europa
para estudar, normalmente Direito e Medicina. Ao retornarem não incorporam
mais as mesmas práticas de seus antecessores, desprezando os levantes e
batalhas. Estas práticas ganham elementos novos, ora mesclando violência e
poesia: continuam com crimes de mando para a manutenção do poder,
enquanto escrevem poemas e se lançam na vida política. Durante a Ditadura
Militar de 1964, cometem atrocidades pelas mãos de seus jagunços contra os
que representam discordância ou ameaça ao sistema imperante. Desse modo,
seguem incorporando práticas novas advindas de outras regiões do país, sem
com isso, perderem práticas violentas que, historicamente, têm mantido o povo
sob seu jugo, tolhidos de qualquer participação popular.
2.5. A PERSEGUIÇÃO A CARLOS LAMARCA
Ao lado de Horácio de Matos, Carlos Lamarca figura como um dos
personagens importantes na história das caatingas da Chapada Diamantina.
Embora tenha vivido na região pouco menos de dois meses, Lamarca deixou
um importante legado no território imaginário da Chapada. Perseguido pelo
Exército Brasileiro, por ocasião da Ditadura Militar, Lamarca se escondeu na
região de Brotas de Macaúbas, onde já se escondia o guerrilheiro Zequinha
Barreto.
61
Carlos Lamarca, nascido em 27 de outubro de 1937, no Estácio, bairro da zona
norte do Rio de Janeiro, filho do sapateiro Antônio Lamarca e Dona Gertrudes,
ingressa em 1954 na Escola Preparatória de Cadetes, em Porto Alegre. Então,
com 17 anos abraça a carreira militar com o entusiasmo de quem, meses
antes, se havia misturado às massas populares nas ruas do Rio de Janeiro,
mobilizadas em torno da campanha ‘O Petróleo é Nosso’- a luta contra a
invasão do capital estrangeiro no país.
80
Em 1962 vai servir como Segundo-Tenente nas forças da Organização das
Nações Unidas na ocupação do Canal de Suez. Permanece em Rabah por
treze meses. Em 1963 volta ao Brasil. Em 1967, torna-se capitão do Exército
Brasileiro. Em 24 de janeiro de 1969, juntamente com o ex-sargento Darcy
Ribeiro e o ex-cabo José Mariani Ferreira roubam dois caminhões carregados
de armas do 4º Regimento de Infantaria em Quitaúna, subúrbio de São Paulo.
A partir daí o Capitão passa a ser um desertor, condição que o torna um dos
homens mais procurados do país. Lamarca era um dos chefes da Vanguarda
Popular Revolucionária (VPR) razão que o levou a fazer, por intermédio do
médico simpatizante do movimento revolucionário, Almir Ferreira, uma
operação plástica no rosto. Sua arcada dentária superior foi diminuída,
provocando sensível encolhimento do lábio superior. O nariz foi modificado,
tendo sido achatado pela retirada de uma parte do osso nasal, desaparecendo,
assim, o nó com que ele aparecia nas fotos antigas. Além disso, a ponta do seu
nariz foi reduzida e os seus olhos foram amendoados.
Em 1970 seqüestra o embaixador alemão E. Hrenfriend Von Holleber e como
parte do resgate exige que seja publicado na grande imprensa nacional uma
longa carta criticando o poder, a repressão e apontando soluções para a
melhoria do quadro político brasileiro.
Em 27 de junho de 1971, desembarca na Ponte sobre o Rio Paramirim, na BR
242, Sertão da Bahia. Encontrava-se à sua espera Zequinha Barreto. A partir
80
Emiliano José e Oldack Miranda. Lamarca, o Capitão da Guerrilha. São Paulo: Global
Editora, 1989.
62
daí, começa a viver longos dias no sertão, sob o abrigo de Zequinha e seus
familiares.
Lamarca troca correspondência com colegas da guerrilha. Sua
correspondência é interceptada e o Exercito sai à sua captura, sertão adentro.
Zequinha e Lamarca iniciam fuga pelas caatingas, a fim de se esconderem.
Percorrem serras, sobem e descem morros, enquanto a força militar está no
seu encalço, perseguindo-os com um aparato jamais visto pelos caatingueiros.
São metralhadoras, fuzis, tanques, helicópteros; um batalhão fardado e outro a
paisana, disfarçado, montado a cavalo, guiado por experientes vaqueiros da
região.
O Exército se instala nos municípios de Oliveira dos Brejinhos e Brotas de
Macaúbas, abrindo picadas, abrindo pistas de pouso para helicópteros e
aeronaves de pequeno porte. Mais uma vez, o sertanejo se vê diante de
conflitos, na linha do fogo cruzado, só que desta vez, desconhecem a razão da
batalha, pois sequer sabem quem é Lamarca. As armas usadas na batalha,
também são desconhecidas, pois a grande maioria jamais havia visto um avião
antes.
Não tarda, e o Exército se ocupa de disseminar imagens negativas acerca dos
foragidos, dizendo se tratar de terroristas, comunistas, mas estas palavras
soaram vazias para o vocabulário local. O que ficou, no entanto, foi a
truculência com que o Exército tratou a população local. Ao sair em busca dos
guerrilheiros, o Exercito interrogava, torturava e humilhava pessoas. O medo
tomou conta de todos.
Os guerrilheiros continuaram sua fuga, muitas vezes com a ajuda da
população, que os esconde, fornece comida e água. Por onde quer que
passavam, o Exército estava em seu encalço. Eles conseguem fugir. Estão
sempre um passo à frente da força policial. Suas peripécias e perspicácias na
rota de fuga, diante do forte aparato bélico, logo os colocam como homens
espertos e heróis. Mais uma vez é a história de “Davi vencendo Golias”. E
63
assim, dia após dia, sua fama corre sertão adentro. Não demora e o imaginário
local trata de atribuir-lhes poderes mágicos, sobrenaturais.
“Eu achava que Lamarca era uma espécie de homem misturado com animal, destas pessoas
que têm o poder de ver as coisas que a gente comum não consegue ver. Eu fiquei com isso na
cabeça por muitos anos.”
“Para você ter uma idéia, eu ouvi dizer que lá para os lados da Passagem da Manga, Zequinha
e Lamarca passaram por uma fazenda e mataram umas criações e um bezerro...eu via a
imagem dele virando lobisomem, com uns dentes assim pontudos”.
81
O cotidiano da comunidade foi de tal forma alterado que em períodos mais
críticos, quando a polícia era comunicada da presença próxima de Lamarca em
determinada comunidade, havia uma espécie de toque de recolher, onde
ninguém podia entrar ou sair do local.
Lamarca e Zequinha foram mortos numa emboscada, em 17 de setembro, de
1971, no povoado de Pintada. Deixaram um legado no imaginário local, que
lhes atribuiu poderes de transformar-se, tornarem invisíveis, quando assim o
desejavam. Por ocasião de vinte e cinco anos de suas mortes foi erguido um
pequeno monumento em sua homenagem. Uma missa foi rezada pelo Bispo de
Barra, Dom Luiz Cappio que abençoou o lugar. A partir de então, outras
homenagens, missas e visitas ao local começaram a ser freqüentes. Todos os
anos em 17 de setembro, comemorações e eventos são realizados no lugar
onde se ergueu uma pequena capela e um cruzeiro. Representantes dos
movimentos sociais e da sociedade civil organizada, como o MST –Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Grupo Gambá de Ação Ambiental, o
Grupo Jatobá de Ação Ambiental, representantes dos sindicatos dos
trabalhadores rurais da região e dos sindicatos de garimpeiros artesanais,
reúnem-se para palestras, conferências, oficinas e cursos sobre temas diversos
como questões ambientais, educação, reforma agrária, consciência política,
convivência com o semi-árido, dentre outros. Durante a comemoração é
realizado culto ecumênico celebrado por representantes da Igreja Católica, da
81
Falas das pessoas da Comunidade do Bom Sossego, citadas no Relatório de Iniciação
Científica de minha autoria, realizado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo –
PIBIC-CEPE, 1997.
64
Igreja Protestante e outros líderes religiosos locais. Autoridades como
Deputados Federais, Prefeitos, Delegados também participam do evento ao
lado de romeiros, que para lá se dirigem em caminhões pau de arara, com o
intuito de pagar promessas e pedir graças. Os moradores da região,
demonstrando sua religiosidade, atribuem milagres aos guerrilheiros e
acreditam que tanto Lamarca como Zequinha possuem poderes santos e que
estão realizando milagres e graças. Os pés de baraúna, onde os guerrilheiros
foram mortos, tornou-se um lugar mágico; uma vez embaixo de sua sombra, o
romeiro fica abençoado. Neste feriado de finados, obtive informações que os
cemitérios de Brotas de Macaúbas e Oliveira dos Brejinhos ficaram vazios, pois
as pessoas foram rezar na capela, algumas para lá se dirigiram a pé, pagando
promessas. O local permaneceu lotado durante toda comemoração do dia de
finados. A estória da perseguição e fuga dos guerrilheiros é contada pelos que
viveram na época e reproduzida pelos mais jovens, tendendo a se perpetuar na
memória coletiva.
Ao concluir o capítulo, é importante destacar que a versão da história do
povoamento da Chapada Diamantina produzida aqui procurou estabelecer
conexões entre as diferentes versões trabalhadas pela pesquisa: as oriundas
de levantamento bibliográfico, baseadas em historiadores relevantes, com as
versões narradas pelos seus moradores quer transmitidas oralmente, quanto
aquelas registradas em literatura de cordel, poesia, material do Fórum Faz
Cidadão
82
, poemas, jornais e anotações particulares. As várias versões
coletadas, muitas vezes conflitantes, podem fornecer pistas para a
compreensão de como seus habitantes produzem sentidos acerca de sua
história. Longe de querer identificar uma versão predominante ou “verdadeira”,
a pesquisa procurou registrá-las e compreendê-las como dinâmicas de vida
dentro da complexa rede de compromissos, poder e relações com os quais os
habitantes estão em interlocução com seus pares de vida comunal e com
aqueles considerados de fora dela.
82
O Programa do Governo do Estado da Bahia, coordenado pela Fundação Luiz Eduardo
Magalhães, tem como objetivo desenvolver capacitações nos Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Local, busca fortalecer este espaço democrático de participação e gestão
para uma melhoria da qualidade de vida da população dos 100 municípios baianos com os
mais baixos índices de desenvolvimento humano – IDH. Esta é a definição que se encontra nos
relatórios do Programa Fórum Cidadão, 2001.
65
Cada comunidade, localidade, povoado ou sítio possui uma versão oral da sua
história. Nas comunidades mais organizadas, onde há associações
comunitárias, por exemplo, há um movimento de reconstrução escrita dessa
história. O Fórum Faz Cidadão, Programa do Governo do Estado da Bahia,
parece ter possibilitado, através dos técnicos da Companhia Agrária Regional,
uma prática de resgate e registro histórico, além daquelas comunidades que
possuem práticas associativas e cooperativas fomentadas pela presença da
Igreja Católica
83
.
Esta não é uma história linear, homogênea; narra conflitos de toda natureza:
pela propriedade da terra; por propriedade da mulher, do gado e outros
elementos que agregam poder ao possuidor. Tais conflitos causaram várias
mortes nos Sertões Secos do Brasil, inclusive na Bahia e foi parte constitutiva
das lógicas de ocupação e apropriação das caatingas da Chapada Diamantina.
A ocupação tem seu fluxo contínuo e se coloca no presente como um
emaranhado de fenômenos que permeiam o cotidiano desses lugares. São
teias do passado, cujas marcas são re-significadas a cada lida diária. O
passado está presente não como passado, mas como dialogia entre tempo e
espaço na concretude dos modos como ocupam e se apropriam de um lugar
físico e inter-subjetivo.
Tão complexa quanto as dinâmicas de vida natural da Chapada Diamantina,
suas dinâmicas políticas, determinações históricas e culturais dizem de um
lugar povoado por contradições, dominação, luta e resistência. Essas lutas se
estenderam pela região e quando da emancipação de algumas cidades, os
coronéis vitoriosos tomaram para si os novos municípios. Em decorrência,
mantinham sob seu jugo grande parte dos moradores que, por força da falta de
opção de trabalho, eram obrigados a trabalhar nas suas propriedades como
meeiros, agregados, diaristas e serviços de defesa, ou seja, feitos através de
jagunços. Tanto a mineração quanto o criatório de gado serviram como
83
O termo comunidade foi inserido na região pelas missões católicas dos anos 70 e 80, numa
alusão às comunidades eclesiais de base.
66
elemento de barganha política, estabelecendo-se relações de trocas e
concentrando o poder em mãos de poucos, aqueles que detinham jazidas, ou
intermediários, ou grandes proprietários de terras, criadores de gado.
Atualmente, os descendentes destes grandes coronéis continuam sendo
proprietários da maioria das terras que compreende o espaço da Chapada
Diamantina. Inicialmente pertenciam a ARENA, Aliança Renovadora Nacional
e, a partir da segunda metade da década de 1980, passaram a fazer parte do
PFL, Partido da Frente Liberal. Continuam a duelar em partidos políticos,
normalmente em consonância com a situação de mando do Governo do
Estado. Desenha-se, desse modo, um bipartidarismo que, de longe, segue
valores políticos partidários, sendo associado à figura do grande coronel. Hoje,
tais coronéis estão presentes, por exemplo, na figura do médico que orienta o
atendimento a pacientes em função da filiação política e representam assim
uma nova forma de dominação e aprisionamento das populações em estado de
pobreza. A ausência de serviços de saúde coloca a população à mercê dessas
dinâmicas.
A presença de setores da Igreja Católica como a FUNDIFRAN e a Pastoral da
Criança, através da Cáritas Brasileira e o Programa Um Milhão de Cisternas,
com a assessoria da Central de Assessoria do Assuruá, presentes em diversos
municípios da Chapada Diamantina, parece ter incentivado práticas de
mobilização, o que favoreceu a organização de muitas comunidades. É notável
que os domínios das caatingas vêm sofrendo modificações nos seus ambientes
culturais e processos organizativos, o que favorece ações de empreendimentos
coletivos, como o surgimento de cooperativas, associações e outros
empreendimentos de natureza coletiva.
Se estas práticas são estimuladas por organismos internacionais, governo
federal e estadual, encontram forte resistência no nível municipal, que vê nas
mobilizações uma “perda de tempo” ou uma ameaça aos sistemas imperantes.
Um exemplo refere-se ao Programa Fome Zero do Governo Federal. Muitos
prefeitos da região se recusam a receber o Programa, mostrando desinteresse,
67
pois o controle e distribuição dos benefícios do Programa não poderiam ser
submetidos aos seus interesses pessoais. Deste modo, a população que
poderia ser beneficiada sequer toma conhecimento da existência do Programa.
O cenário que se desenha atualmente ainda está sustentado nos pilares do
sistema coronelista que se instaurou nos domínios da Chapada Diamantina
desde o início do fluxo de povoamento da região, através de práticas como o
mandonismo, o clientelismo e o filhotismo. Este cenário ganha características
da modernidade, impulsionadas pelas dinâmicas econômicas, dentre elas: a
construção de novas relações de poder possibilitadas pelo acesso ao
conhecimento que os jovens que têm alguma posse ou os privilegiados passam
a ter através do ingresso em universidades e retorno ao município. Estes
jovens continuam a reproduzir o mandonismo, modificando as práticas de
relações de poder possibilitadas pelo conhecimento que obtiveram nas
universidades. Normalmente escolhem profissões que oferecem visibilidade
social como Medicina, Engenharia, Direito e Odontologia. Munidos da
profissão, o jovem se insere no sistema local, em posição de destaque. Outra
possibilidade de rearranjo das relações de mandonismo está presente através
da inserção de novos arranjos produtivos locais a partir de insumos já
consagrados como o beneficiamento do couro de caprino e bovino, criatório e
beneficiamento de ema, produção de queijos e derivados, produção de
vestuário, beneficiamento e lapidação do quartzo. Outra importante fonte de
obtenção de riquezas é através do comércio. Os agentes responsáveis pelos
empreendimentos configuram-se como “braços” da estrutura de mando. Ao
deter riquezas, ascendem socialmente e acabam legitimados nessa estrutura,
sendo inseridos, por exemplo, na arena de disputa política nos cargos de
vereador ou vice-prefeito ou permanecem fazendo parte da cadeia logística
como cabos eleitorais ou apóio vicinal. A materialização do coronelismo dar-se-
á na esfera das micro-estruturas de poder, onde acontece o estreitamento das
relações interpessoais. E reverberam para além das fronteiras do micro-
espaço, atingindo outras configurações. Como na metáfora das ondas
provocadas pela queda da pedra na água, atingem diversos níveis e, ao
encontrar outro personagem do poder, estabelecem-se alianças, conforme
amigo ou estabelecem-se “batalhas”, conforme inimigo, perpetuando a
68
complexa rede de manutenção do sistema. Outras modalidades de
manutenção e reprodução do sistema se atualizam a depender das dinâmicas
locais de cada município ou sub-região da Chapada Diamantina. Por exemplo,
na área de visitação turística, surgem agentes importantes ligados ao ciclo
econômico permitido pela atividade turística: proprietários de agências de
viagens, donos de hotéis, grandes pousadas, agências de automóveis e
transporte aéreo, dentre outros.
Os tentáculos do mundo mercadológico alcançam cada vez mais comunidades
que vivem relativo isolamento geográfico, disseminando novos desejos,
atualizando práticas antigas. Vários fatores permanecem significativamente
relevantes como a relação mando/obediência, o exercício discriminatório do
mando, usos privado dos bens públicos, dentre outros. A existência de figuras
centralizadoras, líderes políticos e/ou religiosos continua reproduzindo o
coronelismo sob vários enfoques, não se restringindo somente aos
proprietários de terras, mas outras formas de coronelismo que se
complexificam, como: o médico, o delegado, o dono de uma importante
mineradora ou um comerciante rico, dentre outros. Suas ações encontram
ressonância na literatura antiga, através de características como: relações
assimétricas de poder, mandonismo, crime de mando, apropriação dos bens
públicos, dentre outros. O fenômeno coronelismo na região das caatingas da
Chapada Diamantina, embora ganhando novos contornos, continua a
reproduzir a “rede de favores”, cuja contrapartida é a “gratidão” pelos serviços
prestados e pelo exercício da função pública.
69
2. EXPERIÊNCIAS DE CONVÍVIO COM O SEMI-ÁRIDO
“Corre menino, corre. Corre e joga a grinalda no fogo que eu vou ficar aqui rezando pra Santa
Luzia derramar as águas dos seus olhos e nos livrar desse fogo devorador”
84
.
Professor Aziz Nacib Ab´Saber no Dossiê Nordeste Seco
85
assim define a
região: “ o Nordeste Seco possui uma área total da ordem de 700 mil km², onde vivem
23 milhões de brasileiros – entre os quais, quatro milhões de camponeses sem terra –
marcados por uma relação telúrica com a rusticidade física e ecológica dos sertões, sob uma
estrutura agrária particularmente perversa. (...) é uma região sob intervenção, onde o
planejamento estatal define projetos e incentivos econômicos de alcance desigual, mediante
programas incompletos e desintegrados de desenvolvimento regional. E, por fim, revelando o
caráter híbrido de seu perfil socioeconômico atual, combina arcaísmos generalizados com
importantes elementos pontuais de modernização, tais como uma razoável hierarquização
urbana, um bom sistema de rodovias asfaltadas que garante as ligações intra e inter-regionais,
e uma rede de açudes, com diferentes possibilidades de fornecimento de água para áreas
irrigáveis de planícies de inundação (vazantes).”
O
Trata-se de uma das regiões semi-áridas mais povoadas entre todas as terras
secas existentes nos trópicos. Habita-se em todos os quadrantes
86
que
compõem essa imensidão territorial. Seu uso e ocupação têm sido
diversificados ao longo da história, de modo a observar a presença humana
nas mais diferentes paisagens: ocupam-se as caatingas por entre morros e
serras; o cerrado, os brejos, o agreste, as veredas e baixios, as vazantes e,
posteriormente, reocupam-se as capoeiras. Por onde circula um fio de água, lá
estão o homem e a mulher estabelecendo conexões com a natureza do lugar.
E se a água por lá não passar, estarão lá o homem e a mulher em busca desse
precioso líquido que perfaz a vida. Esse processo, conforme foi visto, é
permeado por relações de poder que historicamente tem estruturado o
mandonismo no Nordeste Seco do Brasil.
84
Fala de uma moradora do povoado Pajeú, às margens da BR 242 que liga Salvador a
Brasília. Pertence ao município de Oliveira dos Brejinhos. Os incêncios representam um dos
maires problemas para a população das caatingas.
85
Aziz Nacib Ab´Saber. Dossiê Nordeste Seco. Sertões e Sertanejos: uma geografia humana
sofrida. Estudos Avançados. Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos Avançados.
vol.13, Número 36 – maio/agosto de 1999. Página 7.
86
Ao percorrer as caatingas, o visitante pode ter a impressão de que se trata de um espaço
pouco povoado. Basta um sobrevôo ao local para perceber que se habita em todos os lugares.
70
Pierson caracteriza a região
87
: “ Entre os obstáculos naturais da região figuram o calor, o
terreno arenoso e de trechos de cascalho e rochas, enchentes em certas ocasiões do ano, os
agudos espinhos da vegetação da caatinga, as cobras venenosas, os insetos nocivos e, ao
longo dos cursos de água, piranhas e jacarés. Na região desenrolou-se uma história de
ocupação, inicialmente por ameríndios nômades; de descoberta, exploração e colonização
européias; principal (mas não exclusivamente) de origem portuguesa; de contato entre os
europeus e seus descendentes e os indígenas, seguidos de amalgamação e assimilação dos
últimos, e sua dizimação por doenças ou conflitos armados, quando não sua expulsão cada
vez mais para o interior adentro. Com os europeus vieram também, naturalmente, as
instituições européias, sobretudo as existentes em Portugal nos séculos XVI e XVII incluindo a
Igreja e o Estado; os animais de criação, principalmente o gado bovino, com o desenvolvimento
subseqüente de currais, mercados e trilhas de gado, pousadas e cidades que cresceram, em
muitos casos, em volta destas últimas”.
O presente capítulo tem como objetivo central refletir sobre os modos de
convivência com o Semi-Árido brasileiro ao longo do seu processo histórico de
ocupação. Procura argumentar que é possível conviver com a natureza semi-
árida, mesmo num contexto marcado por relações sociais construídas no
arcabouço da herança do sistema coronelista. Para ilustrar os modos de
convivência, apresenta a comunidade do Cercado, descrevendo suas
características geográficas e seus saberes que historicamente os mantêm
relacionados às tradições e memória. Apesar da comunidade vivenciar
processos de corrosão e desarticulação, resultante das dinâmicas impostas
pela modernidade a grupos que vivem relativo isolamento geográfico,
continuam lutando pela manutenção de seu modo de vida, caracterizado pela
estreita relação com a natureza semi-árida e profundo apego, afeto e
enraizamento com a terra.
O Semi-Árido forjou-se a partir das dinâmicas ocupacionais discutidas no
capítulo anterior, cuja estrutura de distribuição das terras originou grandes
latifúndios improdutivos, fomentando relações assimétricas de poder,
manifestas, por exemplo, através do fenômeno do mandonismo. A região tem
sofrido intervenções governamentais pautadas na visão de terra improdutiva,
culturalmente atrasada e fatigada pela ação climática das secas, inóspita à
habitação humana. A ocupação das terras semi-áridas foi pautada em batalhas
e duelos entre famílias rivais que guerreavam por terras e pelo estabelecimento
do poder na região. Em torno dessas famílias poderosas reuniam-se pequenos
proprietários de terras, escravos e negros forros, trabalhadores rurais e
87
Donald Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Tomo III. Rio de Janeiro: Superintendência do
Vale São Francisco- SUVALE 1972. Páginas: 450-451.
71
trabalhadores sazonais. Os grandes proprietários de terras mantinham sob seu
jugo essas famílias que lhes deviam cega obediência, quer por medo, quer por
gratidão. Estas relações de poder permeiam o fluxo de ocupação dessas terras
que ainda permanecem em mãos de poucos, acirrando a disputa por
propriedades.
Desde os primórdios da colonização, a ação climática do Semi-Árido Brasileiro
já preocupava a Coroa Portuguesa
88
. No início da divisão das Capitanias
Hereditárias, a Coroa alimentava dúvidas em relação às potencialidades de
exploração da região, não havendo, inicialmente, grande interesse na sua
povoação. Esta idéia foi sendo aplacada quando se decidiu implantar a
pecuária no Brasil, atividade que se prestava às imensas terras semi-áridas
dos sertões secos, ao mesmo tempo em que serviu de apêndice da economia
açucareira no litoral nordestino.
Segundo Villa
89
.: “o primeiro registro da ocorrência de seca nos documentos portugueses é
de 1552, três anos após a chegada do primeiro governador-geral, Tomé de Souza. O jesuíta
Fernão Cardim foi o primeiro cronista a descrever com mais detalhes o efeito de uma seca,
ocorrida no século XVI, que atingiu até o litoral de Pernambuco: no ano de 1583, houve tão
grande seca e esterilidade nesta província (cousa rara e desacostumada, porque é terra de
contínuas chuvas) que os engenhos d’água não moeram muito tempo. As fazendas de
canaviais e mandioca muitas se secaram, por onde houve grande fome, principalmente no
sertão de Pernambuco, pelo que desceram do sertão apertados pela fome, socorrendo-se aos
brancos 4 ou 5 mil índios. Porém, passado aquele trabalho da fome, as que puderam se
tornaram ao sertão, exceto os que ficaram em casa dos brancos ou por sua, ou sem sua
vontade”.
Historiando as secas, Villa
90
argumenta:
“No decorrer do século XVII houve seis grandes secas: 1603, 1605-1607, 1614, 1645, 1652 e
1692. No século XVIII ocorreram sete grandes secas: 1710-1711, 1721, 1723-1727,1736-1737,
1745-1746, 1777-1778 e 1791-1793. A seca de 1723-1727, que atingiu todo o Nordeste,
promoveu, além de desastrosos efeitos econômicos, o deslocamento das populações para as
áreas menos afetadas pelo flagelo e o surgimento de pequenos grupos de bandoleiros, que
acabaram marcando durante mais de dois séculos a história da região”.
De acordo com Josué de Castro
91
:
88
Josué de Castro. Sete Palmos de Terra e um Caixão- ensaio sobre o Nordeste, uma área explosiva.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1967.
89
Marco Antonio Villa. Vida e morte no sertão. O autor citou Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do
Brasil. São Paulo, Nacional, 1978. Página: 17.
90
Marco Antonio Villa. Vida e morte no sertão. O autor citou Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do
Brasil. São Paulo, Nacional, 1978. Página: 18.
91
Josué de Castro. Sete Palmos de Terra e um Caixão: ensaio sobre o Nordeste, área
explosiva. São Paulo: Editora Brasiliense, 1967. Página 193.
72
“Durante séculos, todos os problemas do Nordeste tinham sido reduzidos a um só grande
problema: o das secas. O problema das secas considerado como fatalismo climático, contra o
qual nada ou quase nada poderia fazer o homem. Daí o conformismo, a inércia, a ausência de
quaisquer medidas tendentes a melhorar a situação das populações expostas ao flagelo. Só
depois da seca de 1877, que segundo os anais da História matou de fome, de sede e de outros
males epidêmicos, metade da população do Nordeste, é que o governo brasileiro tomou a
iniciativa de realizar um plano, não de luta contra o flagelo da seca, mas de ajuda e de amparo
aos flagelados da seca. Assim, foi criada a primeira Comissão Nacional de Estudos dos
Problemas da Seca, que durante anos, de forma intermitente e bem pouco ordenada,
dispensava uma vaga ajuda nas épocas de calamidades”.
Iniciam-se nesse período, ações de combate às secas, a maioria destinada a
medidas paliativas que procuravam combater seus efeitos. Nesta época, ainda
não se falava na idéia de convivência com a natureza semi-árida. Esta visão só
pôde ser materializada a partir de autores importantes como o próprio Josué de
Castro, Celso Furtado, Orlando Valverde, dentre outros de grande relevância.
As idéias que antecederam esta visão entendiam o Semi-Árido como área que
não deveria ser povoada por pessoas e sim destinada à pecuária extensiva e à
lavoura canavieira.
As secas constituem um evento climático que faz parte das condições naturais
das áreas semi-áridas. Em alguns períodos ocorre seu agravamento em
decorrência de fenômenos como o aquecimento da água do Oceano Pacífico
na porção ocidental da América, denominado de “El niño”. Vários foram os
estudos para mapear e compreender a dinâmica das secas. O mais completo
deles foi realizado em 1981 pela SUDENE – Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste
92
, que remonta a cronologia das secas desde o
século XVI. O estudo destaca as principais secas: 1744, 1790, 1846, 1877 -
1879, 1915, 1932
93
. Recentemente, os Sertões Secos da Bahia amargaram as
grandes secas de 1972, 1979, 1982 e 1993
94
.
92
Necessário se faz ressaltar que a concepção à qual a SUDENE foi criada leva em conta as
complexidade da vida no Nordeste Seco do Brasil. Obra de Celso Furtado, teórico que muito se esforçou
para dignificar a vida nos sertões secos, a SUDENE foi desvirtuada ao longo da história, usada pelo
Estado para defender interesses dos latifundiários e coronéis do Nordeste.
93
Josué de Castro. Sete Palmos de Terra e um Caixão- ensaio sobre o Nordeste, uma área explosiva.
São Paulo: Editora Brasiliense, 1967.
94
Diva Vinhas Nascimento Barbosa. Os Impactos da Seca de 1993 no Semi-Árido Bahiano: Caso de
Irecê. Salvador: SEI, 2000.
73
Seca e devastação do meio ambiente andam lado a lado, uma alimentando a
outra. Villa
95
observa que:
“Em 1796, o governo colonial criou o cargo de juiz conservador de matas com o objetivo de
coibir “a indiscreta e desordenada ambição dos habitantes que tem assolado a ferro e fogo
preciosas matas que tanto abundavam e já hoje ficam a distâncias consideráveis”. Assim, a
chegada de uma seca encontrava o sertão absolutamente despreparado para resistir aos seus
efeitos: a história acabava se repetindo, somente aumentando as proporções da tragédia
devido ao crescimento populacional”.
Já nessa época havia preocupação com os efeitos nocivos das queimadas e
derrubadas. Em 1859, Thomaz Pompeo publicou obra indicando que era
necessário não só conservar o que restava das matas, mas tornava-se
imprescindível restituir à natureza aquilo que lhe fora roubado. Em seu estudo
Memória sobre a conservação das matas, e arboricultura como meio de
melhorar o clima da província do Ceará, descreve que:
“O pernicioso sistema de roteamento das matas, o incêndio dos campos no sertão, apressará o
termo de completa ruína de nossa terra e deixará a nossos vindouros solidões e ruínas, e uma
maldição eterna à nossa memória”
. Para ele não “bastava mais somente conservar, e
poupar como uma preciosidade as matas, que ainda restam, como um patrimônio de família,
uma condição de existência da sociedade; é mister já hoje mais que uma virtude negativa,
alguma coisa de positivo. Restituamos à natureza aquilo que nossa imprudência, ou nossos
passados lhes tirou; ensaiemos a arboricultura no sertão, nas serras, por toda parte”
96
.
No final do século XIX e início do século XX, o Nordeste Semi-árido viveu seus
maiores períodos de Seca. Em 1909 foi criada a Inspetoria de Obras Contra as
Secas – IOCS, tendo à frente, como um dos mentores, Arrojado Lisboa. Inicia-
se a construção de grandes obras, de cunho eminentemente hidráulico, com a
instalação de 124 estações pluviométricas e construção de açudes. Estas
grandes obras tiveram inspiração na engenharia norte-americana, contando
inclusive com a presença de engenheiros norte-americanos no
desenvolvimento e implantação dos projetos.
A última grande seca na Chapada Diamantina se estendeu de 1997 a 1999,
trazendo sérios prejuízos à região. O biênio 2005/2006 tem se comportado com
pouca chuva, sendo que as chuvas que caíram na região, foram seguidas de
95
Fernão Cardim. Tratados da terra e gente do Brasil. São Paulo, Nacional, 1978. p 21. Em: Marco
Antonio Villa. Vida e morte no sertão: História das secas no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo:
Editora Ática, 2000. Página: 21.
96
Thomaz Pompeo de Souza Brasil:” Memória sobre a conservação das matas, e arboricultura
como meio de melhorar o clima da Província do Ceará. Fortaleza, Fundação Waldemar
Alcântara, 1997.p.5 e 23. Em: Marco Antonio Villa: Vida e Morte no Sertão: História das secas
no Nordeste nos séculos XIX e XX. São Paulo: Editora Ática, 2000. Página: 23.
74
vendavais, destruindo as plantações. De dezembro de 2005 a fevereiro de
2006, quase não choveu nas caatingas da Chapada Diamantina. As roças de
subsistência e as plantações extensivas de milho e feijão foram dadas como
perdidas, de modo que não se encontravam produtos locais nas feiras. Os
mantimentos, leguminosas e verduras vendidas nas feiras, são trazidos de
áreas irrigadas ou de áreas ribeirinhas do São Francisco. As feiras que
costumam ser um evento alegre, onde as pessoas trocam experiências,
revêem os amigos, cantam, dançam, acabam se tornando um espaço de
lamento e tristeza.
Aziz Nacib Ab’Saber
97
, discute que a produção de conhecimento sobre o
Nordeste Seco tem sido pautada em equívocos e imprecisões conceituais
sobre a natureza semi-árida:
“Das velhas e repetitivas noções do ensino médio – herdadas um pouco por todos nós –
restaram observações pontuais e desconexas sobre o universo físico e ecológico do Nordeste
seco. Sua região interiorana sempre foi apresentada como a terra das chapadas, dotada de
solos pobres e extensivamente gretados, habitada por agrupamentos humanos improdutivos,
populações seminômades corridas pelas secas, permanentemente maltratadas pelas forças de
uma natureza perversa. Muitas dessas afirmativas, como ver-se-á, são inverídicas e,
sobretudo, fora de escala, constituindo o enunciado de fatos heterogêneos e desconexos, por
um processo de aproximações incompletas”.
O Dossiê Nordeste Seco, acima referido, atenta para a necessidade de se
deter com propriedade ao conceito de espaço regional. Devido à sua complexa
formação natural, a região abrange áreas de agrestes, caatingas, serras
úmidas, baixios e brejos, indicando a necessidade de estudos aprofundados
nessas particularidades regionais. Somente após mapeamento completo
dessas áreas é que se conhecerá em profundidade a potencialidade de cada
ecossistema. A visão do Nordeste seco como uma unidade, como se não
houvesse possibilidade de cultivo agrícola e produção agropecuária
diversificada dificultou o conhecimento das principais vocações da região, bem
como o aproveitamento das práticas tradicionais na lida com a terra.
Atualmente, tanto as universidades públicas do Nordeste quanto os técnicos
dos governos estaduais e das organizações da sociedade civil que atuam na
97
Aziz Nacib Ab´Saber. Em: Dossiê Nordeste Seco. Sertões e Sertanejos: uma geografia
humana sofrida. Estudos Avançados. Universidade de São Paulo. Instituto de Estudos
Avançados. vol.13, Número 36 – maio/agosto de 1999. Página 8.
75
região procuram conhecer melhor os dinamismos humanos e naturais da área
onde atuam, visando a ações mais eficazes e menos paliativas. Entretanto,
como foi afirmado, a chamada problemática do nordeste esteve vinculada até
pouco tempo à questão climática que de certo modo ainda vigora em parte das
políticas destinadas à região, reverberando também no modo como o Brasil vê
o Nordeste Seco.
Conviver com as secas periódicas tem sido de fato um grande desafio para os
sertanejos pobres, não maior do que os desafios enfrentados pela perversa
estrutura de terras que os coloca em desvantagem diante das relações de
poder que historicamente dominaram o Nordeste seco. As formas como
homens e mulheres sertanejos têm lidado com a problemática da seca passam
por questões importantes como a constituição de fluxos migratórios em busca
de trabalho, o enfrentamento da fome e da sede e a construção de alternativas
para permanecerem na região. A experiência de migrar é relatada como evento
doloroso, decisão a ser considerada em último caso, quando não há outras
possibilidades de enfrentar a situação. Ao menor sinal de redução do drástico
quadro provocado pelas secas, retornam para ocupar seu espaço. Atualmente
têm sido intensificadas as formas de enfrentar o problema, diminuindo a
vulnerabilidade nos períodos de seca prolongada, a exemplo da experiência
das cisternas de placas, que será comentada ainda neste capítulo.
Depoimentos demonstram essa preocupação:
“A pior seca que a gente já viveu aqui na região foi a seca de 1932. Faltava de tudo: alimento,
água, os animais morriam de fome e doença. Gente também morria. Os mais fracos não
resistiam. Para conseguir algum alimento a gente tinha que sair daqui, ir para o São Bento
tentar tomar umas cuias de farinha emprestado. Às vezes chegava lá e não conseguia nada
porque os de lá também estavam passando fome. Aí a gente voltava e tentava em outros
lugares. E tinha que fazer estas caminhadas a pé, fraco e sem resistência nenhuma.”
98
“Já amargurei muita fome. Já comi as sementes de milho e feijão que eu reservava para
plantar. Não tinha nenhuma opção. Comi e dei para os meus filhos comerem para não
morrerem de fome. Aí sentei no tamborete e chorei. Foi duro! Não gosto de lembrar dessas
coisas. Fico triste!”
99
“Em 1976 eu saí daqui num pau de arara. Fui para o Mato Grosso tentar a sorte por lá.
Trabalhei cinco meses e quando tive notícias das primeiras águas eu voltei correndo. Foi a pior
coisa que aconteceu na minha vida. Dia e noite eu pedia a Deus que me levasse de volta pro
meu torrão. Ficava sonhando que havia morrido e que me enterraram lá mesmo no Mato
Grosso. Acordava e chorava. Rogava a Deus para poder voltar pra minha terra porque terra
98
C. T. T., 86 anos, morador da comunidade do Riacho Frio.
99
M.L.S., 56 anos, moradora da comunidade do Cercado.
76
como essa não há. Basta um pingo de chuva e você riscar o chão e jogar um bom milho e
feijão que já brotam e dão safra de qualidade”.
100
“A dor da fome é a pior dor que existe porque chega uma hora que você já não sente mais
nada. Só pede a Deus que lhe leve! Mas hoje em dia ninguém passa fome. Só passa fome
aquele sujeito parado, que não serve pra nada. Não sabe trabalhar e não sabe pedir auxílio ao
governo. Quando a fome aperta você tem que botar a boca no mundo. Não pode ficar
parado”.
101
“Eu sei que aqui nesta caatinga parece que não tem nada. Você olha pra estes matos e parece
que está tudo morto. Mas não é bem assim. Eu saí daqui pequena. Fui pra São Paulo e lá eu
fui criada. Fiz de tudo lá: trabalhei como empregada doméstica, como lavadeira e passadeira.
Até em coisas dos outros eu mexi. Roubei umas besteiras e aí eles queriam me prender. Corri
e vim embora para cá com meu marido. Pegamos essa casa velha do meu avô e aí estamos
morando. Ninguém tem trabalho, por isso que quando a situação me aperta, caço no mato.
Pego preá, teiú, tatu, fogo pagô e codorna e aí eu vendo e também a gente come. Mas quando
chove aí a gente planta e faz a festa. Aqui é bom. Eu já me acostumei com esse silêncio no
meio do mato”.
102
1. O BIOMA CAATINGA E O RISCO DA DESERTIFICAÇÃO
De acordo com Nilo Bernardes
103
:
“A região das caatingas abrange, praticamente, toda a área dos estados do Ceará e do Rio
Grande do Norte; quase todo o sudeste do estado
do Piauí; a maior parte do leste dos estados
da Paraíba, de Pernambuco, das Alagoas e de Sergipe; a maior parte de todo o interior da
Bahia e até mesmo uma apreciável porção do extremo norte do estado de Minas Gerais.
As caatingas constituem-se como o único bioma exclusivamente brasileiro,
cobrindo a décima parte de todo o território nacional. Nem toda a área que
compreende as caatingas é dominada pela semi-aridez. O professor Aziz
Ab´Saber
104
fala em caatingas no plural, para ressaltar o caráter de diversidade
natural desse bioma e critica a noção cristalizada de área improdutiva e de
menor valor. Adverte o autor, que as caatingas se diferem de outras áreas,
assim como suas sub-áreas diferem entre si, devido à disposição e o arranjo
nos espaços, das espécies vegetais. Não há homogeneização de paisagem,
100
J.L.S., 48 anos, morador da comunidade do Cercado.
101
J.M.S., 46 anos, moradora da comunidade da Vereda.
102
A.S.P., 32 anos, moradora de uma roça nas Queimadas. Sua casa fica distante das outras
casas do povoado. Situa-se no meio de uma grande parte de caatinga que ainda permanece
preservada.
103
Nilo Bernardes. Dossiê Nordeste Seco. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de
São Paulo, volume 13, número 36 – maio/agosto 1999. Página: 69.
104
O professor Aziz Nacib Ab’Saber, tanto em suas palestras, entrevistas, quanto no conjunto
de sua obra, analisa criticamente a visão clássica do Semi-Árido Brasil, tido como um clima
inadequado, impróprio à vida humana, cuja pobreza natural, impossibilita seu desenvolvimento
e sustentabilidade.
77
como acreditavam muitos, assim como não há distribuição pela paisagem de
um tipo específico de espécie animal, quer réptil, anfíbio, mamífero ou ave.
O caráter de semi-aridez de uma região é determinado por fatores de origem
climática, hídrica e fitogeográfica, como baixos níveis de umidade, escassez de
chuvas anuais, irregularidade no ritmo das precipitações ao longo dos anos;
prolongados períodos de carência hídrica; solos problemáticos tanto do ponto
de vista físico quanto geoquímico (solos parcialmente salinos, solos
carbonáticos) e ausência de rios perenes.
105
O que não significa dizer que, por ser semi-árida, a região das caatingas seja
pobre em biodiversidade, tornado-se inadequada ao convívio humano. Ao
contrário, as caatingas são ricas em espécies vegetais e animais, abrigando
uma riqueza de vida animal, vegetal e humana. Em seus domínios vivem cerca
de 23 milhões de pessoas.
O termo caatinga, origina-se do tupi-guarani e quer dizer mata branca. Durante
o período das secas, a vegetação se embranquece, dando aspecto cinzento à
área, o que para aqueles que a desconhecem, acaba sugerido se tratar de uma
região onde a vegetação está morta. Durante muito tempo, havia consenso de
que as caatingas eram áreas pobres, em todos os sentidos, exemplo de lugar
inóspito, habitado por pobres humanos, condenados à miséria das secas. A
idéia ficou cristalizada na literatura acadêmica e romanceada durante muito
tempo, pois as caatingas são as áreas menos estudadas de todas as áreas que
compreendem o território brasileiro.
A presença de árvores como jurema alta denuncia a proximidade das
caatingas, assim como o pereiro, o pinhão bravo, o marmeleiro, a favela e suas
abundantes folhas cobertas de espinhos. Os cactus são os mais comuns,
assim como as bromélias. A jurema, predominante, destaca seus espinhos que
ao lado dos mandacarus e xique-xiques constituem desafios para vaqueiros e
105
Aziz Nacib A’Saber. Dossiê Nordeste Seco. Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo, volume 13, número 36 – maio/agosto 1999.
78
pastores de cabras. Seu traçado entrelaçado parece constituir um tabuleiro de
xadrez, onde o xeque-mate é dado quando se chega num pontilhão de onde
nada passa, a não ser pequenos animais como preás, tatus, teiús e outros
lagartos. Até para o cachorro, fiel companheiro de lida, não há como trafegar.
Numa área de cerca de uma cinco tarefas, por exemplo, há a gradação de
ambientes, da caatinga mais seca para uma zona intermediária ou tabuleiros
como são conhecidos, onde há mata rasteira, carnaúbas, marmeleiro, pinhão e
malvas. Essa é uma área muito útil de onde se retiram fibras para tecer cordas;
madeira de qualidade para madeirar casas. As flores estão presentes por todo
lado: acácias, umbuzeiros, favelas, umburanas e outras árvores que produzem
resinas, cujo aroma pode ser percebido de longe quando o vento sopra. Aliás,
as caatingas têm seu cheiro próprio, uma mescla de aroma das flores
silvestres, com o almíscar forte de resina de terebintina. Esse cheiro vive
impregnado em meu nariz. Parece algo indescritível. Às vezes fico anos sem ir
para lá, mas quando vou, basta um soprar de brisa leve e o cheiro vem tão
fresco que parece nunca ter saído de lá.
O xique-xique, roliço e se esgalhando encostado ao chão; o facheiro alto, com seus
numerosos ramos apontados para o céu e o celebrado mandacaru, ereto e simples, com uma
ou outra ramificação. Há ainda mortos como o quipá ou palmatória de espinhos e o coroa-de-
frade, pequena bola rasteira. Das bromélias, a mancambira é a espécie mais difundida, mas há
certas áreas em que é particularmente numeroso o caroá, muito importante economicamente
pois sua fibra se presta à industrialização. Quando o porte arbóreo domina a paisagem, ou
mesmo quando árvores correm esparsas, as espécies mais repetidas, entre outras, são o
angico, a baraúna, a aroeira, o umbu, a quixabeira, o bonome, ou o juazeiro, de particular
significação para os homens e para ao animais, por ser a única árvore que conserva sua copa
frondosa durante o ano
106
.
As caatingas brasileiras são cenários únicos. Quando em períodos de seca,
seus arbustos e folhagens formam tons de prata acinzentada no chão. Para
quem não conhece a região, parece se tratar de vegetação morta. Aliás, muitos
acham que está tudo morto, quando na verdade está percorrendo vida por
entre todos os cantos. Da caatinga, retiram-se quase todos os recursos
necessários para a vida no lugar. Entretanto, esta tem sofrido a ação
devastadora, correndo risco de desertificação. Ações desordenadas e
106
Nilo Bernardes. As caatingas. Dossiê Nordeste Seco. Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo, volume 13, número 36 – maio/agosto 1999. Página 71.
79
predatórias têm sido empreendidas tanto por parte do poder público ao realizar
obras faraônicas de barragens e açudes quanto por parte da população local
que não possui um plano de manejo adequado às caatingas.
A idéia da caatinga, veiculada pela mídia, como um único lugar, normalmente
inadequado, ruim, de difícil adaptação, não corresponde à realidade dos
diversos quadrantes que compõem esse bioma. Muito mais do que as espécies
vegetais acima descritas, as caatingas se constituem como um emaranhado de
vida fluindo por toda parte. Durante muitos anos, foram carregadas de adjetivos
negativos, uma área de menor valor. Após a Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente e Desenvolvimento, a chamada Rio 92, é que os
primeiros passos puderam ser dados, a partir da construção de um documento
intitulado Agenda 21
107
, onde o risco da desertificação pôde ser discutido não
só como um problema das áreas áridas, mas também das semi-áridas e das
áreas sub-úmidas secas, como mata dos cocais e os cerrados. Assim, o Brasil
começa a olhar para o problema como um risco real resultante da devastação e
dos efeitos das atividades de agricultura extensiva e intensiva, da pecuária e da
mineração, que historicamente têm assolado os solos caatingueiros. Antes
deste período, as caatingas também eram vistas com preocupação. Muitos
estudos foram paralisados ou suas atividades diminuídas em função da
Ditadura Militar, sendo resgatados a partir da segunda metade da década de
80. A partir de então, as caatingas começam a ser vistas com cautela e
preocupação.
Após a Rio 92, grupos regionais de trabalho, voltaram aos seus lugares de
origem, motivados em pensar intervenções mais precisas sobre os dilemas
locais. Inicia-se então, uma longa jornada, composta por organizações não
governamentais e organismos governamentais, como a EMBRAPA, o
Ministério do Meio Ambiente e Programa Nacional da Biodiversidade.
Entidades engajadas na luta em defesa da caatinga somaram suas forças,
107
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis. Gestão dos recursos naturais: subsídios e elaboração da Agenda 21 brasileira. Coordeação:
Maria do Carmo de Lima Bezerra, Márcia Maria Facchina, Vítor Alexandre Bittencourt Sucupira. Brasília,
DF:Consórcio TC/BR-Funatura, 2000.
80
realizando seminários, encontros, pesquisas e debates, colocando como ponto
principal a necessidade urgente de se conhecer as caatingas em todas as suas
dimensões, identificando áreas prioritárias para conservação, bem como áreas
degradadas para recuperação.
Ademais, foram criadas redes articulando os diversos agentes interessados no
problema, como a ASA – Articulação do Semi-Árido, o grupo Caatinga e outros.
Essas redes somaram esforços para criar, por exemplo, o maior número
possível de áreas protegidas dentro do bioma. Parques Nacionais, Áreas de
Proteção Ambiental e outras Unidades de Conservação foram pensadas como
alternativas para frear a destruição. Apesar dos esforços, pouca área foi
efetivamente criada, devido a falta de vontade política, esbarrando nos
entraves burocráticos e questões fundiárias que acabaram por inviabilizar as
unidades de conservação.
Por não exibir a beleza cênica das florestas tropicais, as caatingas são vistas
como áreas de menor valor, tanto econômico, quanto de biodiversidade.
Estudos importantes antecederam à formulação de estudos mais específicos
sobre o problema da degradação das áreas semi-áridas brasileiras. Dentre
eles, destacam-se aqueles realizados por: Orlando Valverde
108
, José de
Vasconcelos Sobrinho
109
, Manuel Correia de Andrade
110
, dentre outros. Seus
estudos permitiram avanço no conhecimento sobre o tema, culminando em
estudos desenvolvidos pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido e mais
enfaticamente com a publicação, em 2003, de um estudo realizado pela
Universidade Federal de Pernambuco, objetivando começar a compreender um
pouco mais as caatingas: “Ecologia e Conservação das Caatingas
111
, é um
108
Ver principalmente: Orlando Valverde. Estudos de Geografia Agrária Brasileira. Petrópolis:
Vozes, 1985.
109
Ver principalmente: José de Vasconcelos Sobrinho. O processo de desertificação do
Nordeste. Brasília: Senado Federal, 1976.
José de Vasconcelos Sobrinho. Desertificação do Nordeste brasileiro. MRC/Universidade
Federal Rural de Pernambuco. Estação Ecológica de Tapacura. São Paulo: Padilha Inds.
Grafs. Ed, 1982.
110
Ver principalmente: Manuel Correia de Andrade. Condições naturais e sistemas de
exploração da terra no estado de Pernambuco. São Paulo, Boletim Paulista de Geografia, n.44,
páginas: 63-84,1967.
111
Ecologia e Conservação das Caatingas.Editores Inara R. Leal, Marcelo Tabarelli e José
Maria Cardoso da Silva. Recife: Editora da Universidade Federal de Pernambuco, 2003.
81
estudo sem precedentes na história do Brasil. Pela primeira vez, uma equipe
de 33 pesquisadores une esforços para estudar, catalogar e mapear os
padrões de biodiversidade das plantas, peixes, répteis, anfíbios, aves e
mamíferos das caatingas, apresentando um conjunto de propostas para a
conservação desse bioma. O estudo representa um grande avanço, dado que
pouco se conhecia sobre a região e o parco conhecimento existente
corroborava a visão de uma região pobre em biodiversidade.
Faltam, entretanto, estudos aprofundando o modo de vida humana nos
domínios das caatingas, seu convívio com o semi-árido, de modo a que se
supere a dicotomia homem/natureza e os clássicos estudos que destacam o
modo de vida exótico da população da região, enfatizando seu “caráter
messiânico”, sua “gênese violenta” ou sua “face conformista”.
Na Chapada Diamantina, a atividade erosiva provocada pela mineração, pelos
garimpos de diamante, atingiram o leito dos rios, deixando o solo sem
cobertura vegetal. A presença de dragas, trabalhando noite e dia, revolvendo o
solo em busca do diamante, alterou drasticamente o frágil ecossistema da
região. Os rios tiveram seu curso desviado, tanto pela atividade mineradora,
quanto para fins de irrigação de propriedades privadas. De acordo com
Geovani Seabra
112
, não há um só palmo de terra na Chapada que não tenha
sido revolvido pela ação predatória do garimpo.
A degradação acompanhou os diferentes tipos de exploração. O garimpo de
ouro feito de forma artesanal, nos primórdios do processo civilizatório da
região, deixou marcas do seu impacto, que se intensificaram, conforme o
acesso a tecnologia de exploração mineradora. Após a decadência das lavras
diamantinas, os estragos resultantes da mesma atividade são visíveis e difíceis
de serem revertidos.
112
Geovanni de Farias Seabra. Do Garimpo aos Ecos do Turismo: o Parque Nacional da
Chapada Diamantina. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Geografia Física
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.
82
Os efeitos da pecuária extensiva, aliados à criação desordenada de caprinos,
marcaram o desmatamento da região, deixando grandes clarões abertos nas
caatingas. As queimadas provocadas pela prática da coivara e tanto o incêndio
criminoso como o acidental devastam, todo ano, áreas importantes do território
chapadeiro, principalmente dentro do Parque Nacional da Chapada
Diamantina. A expansão das pequenas cidades, intensifica o desmatamento e
a caça predatória. A agricultura de subsistência e o manejo incorreto dos solos,
em áreas de ecossistema frágil, como os brejos, por exemplo, colocam em
risco as nascentes de riachos, olhos d’água, corredeiras e rios da região.
Uma das maiores ameaça que paira sobre a vida de quem habita as caatingas,
intensificando os problemas ambientais é o fogo intenso que devora a rala
vegetação nos períodos de seca. O medo que paira nas mentes dos seus
habitantes é algo presente em pelo menos seis meses do ano, em
espaçamentos entre os períodos das cheias. Cessada sua ação destruidora,
resta a ação restauradora...e a vida continua.
Possuidor de ação dupla, vida e morte, destruição e nascimento, o fogo vem
restaurar, queimar a rala camada de arbustos e capim seco, fazendo renascer
das cinzas outras espécies de vegetação caatingueira que outrora viveram por
ali. Os incêndios são quase sempre provocados pela prática da coivara, ainda
praticada nas roças da grande maioria da população das caatingas da Bahia.
Em poucos casos, são provocadas por crianças quando brincam de cozinhado
ou mesmo por um adulto descuidado. Existem ainda incêndios criminosos e
incêndios naturais causados pela combustão de determinadas plantas como a
canela d’ema, por exemplo. Os incêndios criminosos provocados por disputas
de terra são feitos normalmente por vizinhos que, deliberadamente, desejam
prejudicar aquele que está em propriedade da terra, objeto da disputa. Estes
incêndios normalmente não são investigados e, quando o criminoso é
descoberto, não é punido. O crime não é visto com gravidade, o que dificulta a
coibição do delito. Os crimes relacionados à natureza não são tratados com a
devida importância pelas autoridades locais e mesmo quando o IBAMA
aparece na região com o intuito de apreender gaiolas de pássaros que serão
vendidos clandestinamente ou desmantelar armadilhas para animais,
83
colocadas por caçadores do lugar, as autoridades locais riem, zombam dos
fiscais, evidentemente, às suas costas. Não há preocupação da população
local, com relação à finitude dos recursos naturais. Acreditam que a natureza
nunca se esgotará. Daí decorrem as principais dificuldades em empreender
programas relacionados à preservação dos recursos da natureza.
O medo e o horror diante do fogo não eliminam sua face familiar que retornará
no próximo período de seca, mas mesmo seu lado mais prejudicial não
esconde a face útil à vida no lugar. Trata-se de um fenômeno tanto natural
quanto humano, existente nas caatingas, cuja ação desencadeia uma série de
reações, culminando tanto na destruição que gestará vida num período
próximo, quanto na destruição que deixará seqüelas na natureza e nas
pessoas do lugar. Quando o ciclo da vida recomeça, a natureza recicla
paisagem e corações.
Mas a atividade com maior poder de devastação foi levada a cabo pelas
grandes mineradoras, principalmente nos municípios de Brotas de Macaúbas,
Oliveira dos Brejinhos e Boquira. Utilizando-se de maquinário pesado, sem a
realização de diagnóstico de impacto ambiental, elas perfuram serras,
descampam áreas, assolam rios, derrubam morros em busca de mármore azul,
quartzo, quartzito e outras rochas. Os efeitos nocivos da mineração industrial
são visíveis a olho nu e, ao se aproximar desses municípios, o visitante
defronta-se com o resultado da ação predatória: serras cortadas ao meio,
pedras revolvidas, áreas descampadas, imensos clarões abertos. Atividades
como essas intensificam o risco de desertificação das caatingas, pois seus
impactos são enormes e não há plano de manejo sustentado que preveja, num
prazo razoável, a recuperação das áreas degradadas.
A criação de Unidades de Conservação, como o Parque Nacional da Chapada
Diamantina, a Área de Proteção Marimbus-Iraquara, e outras, não são
suficientes para recuperar o que já foi degradado. Necessário seria que, tanto
as organizações não governamentais que trabalham a questão ambiental,
quanto os organismos governamentais, se apropriassem da questão,
realizando em curto prazo uma intervenção precisa, baseada em estudos
84
consistentes que pudessem subsidiar ações. Ademais, na área que tange aos
domínios das caatingas, por serem afastadas e não apresentarem interesse de
visitação turística até o momento, não têm despertado o compromisso das
autoridades dos Governos Estadual e Federal, no que se refere à preservação
ambiental e recuperação das áreas degradadas. Até mesmo áreas importantes
para a investigação científica como os sítios rupestres são tratadas como uma
área qualquer, sem nenhuma preocupação com o patrimônio deixado pelos
habitantes ancestrais. No âmbito municipal, prefeitos e vereadores não
demonstram preocupação com esta questão, uma vez que ações como essas
não despertam visibilidades que se traduzam em votos. Desse modo, essas
áreas seguem sem qualquer planejamento ou preocupação com sua finitude e
impactos causados pelas ações mineradoras. Até o momento não se ventila
qualquer preocupação, pois a idéia presente é a de que a natureza é infinita e
não se esgota nunca, portanto, pode ser usada de qualquer modo porque
existem muitas áreas para serem exploradas. Num futuro breve começarão a
sentir os impactos de suas ações. Algumas localidades já sentem esse impacto
através da escassez da água. Povoados como Vereda, Cercado e São Bento,
antes áreas de brejo com nascentes e corredeiras abundantes, hoje dependem
de água de localidades vizinhas, tamanha foi a destruição causada pela
mineração com maquinaria pesada.
Atualmente a devastação da vegetação caatingueira segue a passos largos,
sem muita preocupação por parte tanto das autoridades competentes quando
da população com os possíveis impactos que isso pode causar. Para parte da
população que sobrevive dos frutos que a natureza proporciona resta explorar
os parcos recursos que sobram.
2. A VIDA NO SEMIRIDO: DO COMBATE AO CONVÍVIO
Há pouco menos de uma década, falar do semi-árido brasileiro equivalia a
afirmar que homem e natureza estavam em lados opostos, separados pela
ação climática. A natureza semi-árida das caatingas significava que o homem
que por lá habitasse seria condenado ao atraso de uma vida difícil, regada por
muito sofrimento.
85
Celso Furtado
113
contesta essa idéia. Como um dos mais dedicados
pesquisadores do Nordeste do Brasil, inclusive das áreas semi-áridas dos
sertões, afirma que não se pode abandonar a região a pretexto da natureza de
parte de seu território. Se bem compreendido e estudado, o Nordeste pode
revelar sua natureza de riquezas, garantidora da sustentabilidade da região.
Furtado passou a vida estudando o Nordeste e sua vasta obra
114
mostra um
conhecimento sólido acerca da região, assim como preocupação em responder
aos seus desafios. Foi um dos idealizadores da SUDENE – Superintendência
de Desenvolvimento do Nordeste, órgão do Governo Federal, responsável pelo
estudo, acompanhamento e gestão de recursos para o Nordeste e, como tal, foi
um dos precursores da noção de convivência com o semi-árido.
Além dele, autores como Francisco de Oliveira, Aziz Ab’Saber, Manuel Correa
de Andrade, Josué de Castro, Milton Santos e outros
115
, realizaram estudos
questionando a postura, vigente até então, do Nordeste Seco como área
impossível de se tornar produtiva e sustentável. Gradativamente, suas
posições ganham destaque não só nas universidades, mas também
influenciam ações cotidianas de técnicos responsáveis por programas do
Governo e setores da Igreja Católica. A partir do final dos anos oitenta, com a
disseminação das organizações não governamentais que trabalhavam com o
Semi-Árido, essas idéias ganham força e começam a fazer parte das
discussões e ações nas pequenas comunidades localizadas nos mais
diferentes lugares do Nordeste Seco do Brasil.
Estava implantada a semente do convívio com o semi-árido. A natureza
passava a ser vista não como uma inimiga causadora de sofrimento, mas uma
113
Celso Furtado. Seca e Poder . São Paulo: Editora da Fundação Perseu Abramo, 1998.
114
Ver principalmente: Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959;
A Operação Nordeste. Rio de Janeiro: ISEB, 1959; Uma política de desenvolvimento para o
Nordeste. Novos Estudos CEBRAP, vol. 1 (1), dezembro, 1981; Brasil: a Construção
Interrompida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992 e O Longo Amanhecer. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1999.
115
Ver também: Josué de Castro. Geografia da Fome. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2001; Josué de Castro. Sete Palmos de Terra e um Caixão – ensaio sobre o Nordeste, uma
área explosiva.São Paulo: Editora Brasiliense, 1967.
86
aliada capaz de vencer os obstáculos colocados por séculos de exploração
irresponsável e exercício discriminatório do mando. Essa nova relação com a
natureza permitiu que temas tabus como a escravidão, a dizimação de povos
indígenas e a perversa estrutura de terras, passassem a ser debatidos e
correlacionados com o coronelismo, o clientelismo e o voto de cabresto. Na
Chapada Diamantina, durante as reuniões de associações de moradores e de
trabalhadores, nas comunidades eclesiais de base, nas reuniões da Igreja e em
outros espaços, começou a ser possível colocar na ordem do dia tais assuntos
agora pensados a partir da necessidade de soluções locais.
Surgem, com isso, idéias como o Projeto Fundo de Pasto, cujo objetivo central
era a busca da sustentabilidade das comunidades caatingueiras, através da
criação coletiva do bode, animal de fácil manejo na região, por requerer pouca
água e que se alimenta da rala cobertura vegetal que existe. Foram feitas roças
coletivas e no fundo do pasto era destinada uma faixa de terra, de propriedade
coletiva, onde era criado o bode. O manejo, beneficiamento e venda dos sub-
produtos eram também realizados de forma coletiva. Queijos de cabra, doce de
leite de cabra, couro, leite, carne e outros sub-produtos passaram ser feitos e
vendidos com relativo sucesso. A cerca é a inimiga número um do bode, pois
este precisa de amplo espaço para pastagem, o que era favorecido pelo
Projeto Fundo de Pasto.
Decorridos mais de 15 anos do início do Projeto, que teve financiamento do
Governo do Estado da Bahia e organismos internacionais de fomento, como o
Banco Interamericano de Desenvolvimento, restam pouco mais de três
comunidades que ainda trabalham com o sistema fundo de pasto, adaptando-o
às novas demandas e realidade do mercado. Apesar de não ter havido
aumento do número de comunidades beneficiadas pelo Projeto, aquelas que
passaram pela experiência desenvolveram uma percepção de si muito
diferente das demais O associativismo, a cooperação e o espírito de
coletividade foram estimulados e aplicados no cultivo, beneficiamento e venda
dos produtos obtidos da terra.
87
Se por um lado, a experiência trouxe uma série de benefícios para a região, por
outro lado, acirrou a já complicada disputa por terras, causando conflitos que
culminaram com a morte de um importante líder, militante político e técnico do
Governo do Estado da Bahia, no final da década de 80, no município de
Oliveira dos Brejinhos. Ocorreu, também, manipulação política pelos Sindicatos
de Trabalhadores Rurais dos municípios de Oliveira dos Brejinhos e Brotas de
Macaúbas, que passaram a administrar os fundos de modo discriminatório,
privilegiando aliados políticos. Reproduziu-se, desse modo, o tão combatido
sistema de troca de favores que assola a região. Essas constatações são fruto
da convivência continuada que tive com a região e seus moradores desde
1996.
Outros projetos importantes puderam ser realizados na região, como a oficina
de lapidação, coordenada pela ong Grupo Jatobá de Ação Ambiental,
objetivando capacitar jovens para a confecção de artesanato com pedras,
projeto ambiental de reciclagem de garrafas pet em Palmeiras, artesanato em
Oliveira dos Brejinhos e Brotas de Macaúbas, dentre outros.
A ação da Igreja Católica, através da Cáritas Brasileira e Pastoral da Terra
criou o Projeto Água de Chuva
116
,para construir cisternas de placa que
armazenam a água da chuva. Esse Projeto associou-se ao Programa de
Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semi-Árido: Um
Milhão de Cisternas Rurais, presente em toda a região. Além disso, várias
frentes foram abertas para realizar campanhas pela convivência com o Semi-
Árido Brasileiro, que tem surtido efeito em nível regional, na área da Chapada
Diamantina.
Com um custo baixo, não atingindo R$ 650,00, a cisterna de placa
117
tem sido
uma solução para os períodos de seca mais prolongada. Percebeu-se que o
problema central da região era que existiam muitas barragens, mas quase
116
Consultar o seguinte material: Água de Chuva: o segredo da convivência com o Semi-Árido
brasileiro. Cáritas Brasileira, Comissão Pastoral da Terra, Fian/Brasil. São Paulo: Paulinas,
2001.
117
Ver panfleto sobre as cisternas de placas produzidos pela ASA – Articulação do Semi-Árido
e também no site: www.asa.org.br.
88
todas construídas em áreas privadas, beneficiando grandes proprietários de
terra. Assim, a idéia da cisterna foi democratizar o acesso a água de qualidade,
mas vai além da questão da água, procurando promover a transformação
social através da mobilização da sociedade, da capacitação técnica e do
controle social
118
. Seus ganhos se estendem para processos de socialização,
incentivando as trocas solidárias e modos associativos de trabalho. O momento
de construção das cisternas acaba sendo um importante exercício de cidadania
e participação, pois na maioria das comunidades elas acabam sendo
construídas de forma coletiva.
Outras soluções para o problema de convivência com o semi-árido foram
apontadas por vários pesquisadores. O mais relevante deles talvez seja o
estudo organizado por Aziz Nacib Ab’Saber, no Dossiê Nordeste Seco,
publicado pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo.
Nesse documento são apontadas soluções importantes, como o
aproveitamento dos brejos, o uso dos umbuzeiros e juazeiros, além da ênfase
que é dada ao processo de educação das crianças da região, procurando
inseri-las nos conhecimentos tradicionais dos povos das caatingas, no que
tange à exploração dos recursos vegetais, como plantas medicinais, recursos
minerais e animais. É notória a importância dos brejos na lida cotidiana, não só
por ser uma importante fonte de água, mas por produzir alimentos que não
podem ser produzidos em outras áreas, funcionando como um celeiro para as
áreas secas.
A Chapada Diamantina é rica em brejos, sendo os mais importantes os de
piemonte ou pé-de-serra que ocorrem no município de Oliveira dos Brejinhos,
Boquira e Brotas de Macaúbas e os marimbus, áreas pantanosas, na região de
Andaraí, Lençóis e Palmeiras. A palavra brejo se refere aos solos pantanosos
ribeirinhos, áreas encharcadas, terreno pantanoso e rico em matéria orgânica.
O roteiro de aplicações da expressão brejo no espaço sertanejo parece ter sido mais
complicado. De início, o tema foi usado para designar alveolares encharcadas, existentes em
118
Ver folheto explicativo da ASA – articulação do Semi-Árido: construindo cidadania no Semi-
Árido brasileiro.
89
serras úmidas sob a forma de vales suspensos
119
. Posteriormente foi usado para
designar áreas encharcadas, com presença de água abundante. Os brejos se
constituem em espaços fundamentais na produção de alimentos, como
mandioca, feijão, mangaba, caju, mamão, hortaliças, verduras, cana de açúcar
e muitos outros, além de ser o habitat natural da palmeira conhecida como
buriti da qual se pode extrair uma série de produtos.
Nos povoados do Cercado e da Vereda, por exemplo, plantam-se uma
variedade de produtos agrícolas alimentares, como pequi, mangaba, manga,
quiabo japonês, mandioca para produzir farinha, tapioca ou polvilho e beijus de
vários tipos, além de diversas hortaliças, servindo de zona de abastecimento
regional. Os brejos dessas comunidades são faixas estreitas de terras,
contendo nascentes de riachos, córregos e olhos d’água. No passado a
potencialidade desses brejos era explorada de modo ordenado pela população
local. Com a chegada de grandes mineradoras, a água se rarificou,
estabelecendo com isso, enorme dependência da água encanada de outras
localidades.
Há que se estudar as diferentes potencialidades dos brejos, para sua
preservação, ampliando e diversificando seu uso, de modo sustentável,
permitindo atividades que não se adaptam às áreas mais secas. Por ter
ecossistemas diferentes em cada um dos seus quadrantes, a Chapada
Diamantina apresenta rico potencial natural e pode contribuir para a melhoria
da qualidade de vida de seus habitantes.
Para exemplificar processos de convivência com o semi-árido, na luta cotidiana
pela vida, relato a seguir o caso da comunidade do Cercado, cuja
complexidade dos seus ecossistemas frágeis, aliada à exploração maciça de
grandes mineradoras
120
, somam-se aos desafios impostos pelo mandonismo
que traduz em práticas como o voto de cabresto e a gratidão. Desafios que
intensificaram o fluxo migratório nos anos setenta e oitenta, início da ameaça
119
Aziz Nacib A’Saber. Dossiê Nordeste Seco. Instituto de Estudos Avançados da Universidade
de São Paulo, volume 13, número 36 – maio/agosto 1999.
120
Mendes Júnior foi a primeira mineradora atuante na região em meados da década de
oitenta. Seguida da Conservice e Rossits.
90
de desarticulação do estilo de vida comunal que garantia sua sobrevivência.
Vivendo relativo isolamento geográfico, o Cercado manteve-se até pouco
tempo, distanciado das conseqüências produzidas pela modernidade a grupos
com esta característica. A comunicação com espaços urbanos produziu trocas
e intensificou a porosidade das fronteiras capitalistas, provocando modificações
e atualizações nos desejos, no sistema de crenças e no modo de vida local. A
convivência com a natureza era pautada numa relação simbiótica de
dependência, respeito e uso dos seus recursos, principal aliada na luta pela
sobrevivência. Atualmente, a comunidade do Cercado vive profundo processo
de desarticulação, colocando seus habitantes no epicentro do vazio existencial
provocado pela perda da magia do mundo. Procuram rememorar lembranças
de um tempo que consideram rico, carregado de qualificadores positivos, onde
os cerimoniais e as festanças povoavam o vale da serra do Cigano, irmanando
os pequenos povoados, roças e comunidades.
Para sistematizar a apresentação da comunidade do Cercado, convencionou-
se realizar a seguinte sub-divisão: primeiro estabelecer as características
geográficas da comunidade, frente ao fato de viver relativo isolamento devido à
natureza da sua localização – situa-se num estreito vale. Em seguida
estabelecer um panorama histórico de seu fluxo ocupacional, detendo-se
cuidadosamente nas memórias daqueles que lá vivem e também daqueles que
migraram para São Paulo e para o Mato Grosso. A apresentação da
comunidade continuará no capítulo 3, onde serão aprofundadas questões como
processos de sociabilidade, religiosidade e trabalho.
3. APRESENTANDO A COMUNIDADE DO CERCADO
3.1.SOBRE A GEOGRAFIA E A HISTÓRIA DO CERCADO
A localidade do Cercado situa-se em cima da serra do Cigano, no município de
Oliveira dos Brejinhos, região semi-árida da Chapada Diamantina, margeando
a trilha cavaleira que dá acesso ao Rio São Francisco. Sua área abrange parte
caatinga, parte tabuleiro, brejo de pé de serra e uma parte diminuta de mata
alta, constituindo assim uma complexidade de ecossistemas, com animais,
91
vegetação e rochas diversificadas, formando diferentes paisagens ao longo da
trilha que dá acesso ao lugar. Até início dos anos noventa, a única forma de se
chegar ao Cercado era a pé ou utilizando montaria em animais. Com a
chegada de firmas de mineração que exploram o mármore azul e o quartzo, foi
aberta uma estrada de terra, no lado leste da serra, para facilitar o acesso aos
garimpos e aos povoados.
Antes da construção desta estrada, os povoados situados na serra do Cigano
viviam relativo isolamento. Para aqueles que de lá nunca tinham saído, a
estrada possibilitou que conhecessem carros, motos e tratores. Dois anos após
o início da construção da estrada, uma rede de encanamento de água passou
pela localidade, servindo de abastecimento para as áreas onde as firmas se
instalaram. Em março de 2006 a energia elétrica chegou à serra, beneficiando
os povoados: Cercado, Tapera e São Bento.
O acesso à subida da serra do Cigano dá-se via povoado do Riacho Frio que
se situa ao pé da serra, distando cerca de seis quilômetros da sede do
município. A subida a pé ou a cavalo ainda é feita por este caminho, embora a
grande maioria ainda prefira ir de carro ou moto, quando tem acesso a estes
meios de transporte. Para a população local, que não possui transporte
motorizado, a alternativa continua sendo a montaria em animais e também a
caminhada. No caminho, logo ao sair da sede do município, o viajante depara-
se com a caatinga rala, coberta de arbustos secos, jurema baixa, cabeça de
frade e palma. Conforme vai se aproximando do pé da serra, vêem-se
palmeiras: são coqueiros da bahia e dendê. As árvores da caatinga começam a
ficar mais altas, as juremas aumentam de tamanho, surgem preás, teiús, aves
como o pássaro preto, alma de gato, fogo pagô e outras. Os juazeiros são
frondosos e vê-se de longe um vale verde que se esconde ao pé da serra. Já
chegando às primeiras casas do Riacho Frio, as mangueiras, goiabeiras,
coqueiros, pés de jatobá, cana-de-açúcar e capim estão presentes nas roças
dos fundos das casas e, conforme se aproxima do centro do povoado, ouvem-
se o barulho do riacho e das corredeiras. O verde está presente por todos os
lados, tanto nos quintais das casas, quanto dentro delas. As pessoas gostam
92
de cultivar plantas e hortaliças. O clima é ameno e a brisa traz orvalho e
gotículas de água, conforme o vento sopra mais forte.
“Mas o Riacho Frio já foi frio mesmo. Aqui você tinha que andar de blusa de frio porque o clima
era baixo. Hoje em dia as águas já estão ficando mais raras. O povo desmata na cabeceira do
riacho, aí a água vai acabando. Hoje tem água encanada, mas tempos atrás cada um tinha
uma bica no quintal de casa e a água era de fartura, aliás, tinha fartura em tudo. Era muita
fruta, muita manga e caju, muita melancia nas roças e tinha hortaliças o ano todo. Hoje em dia
as coisas facilitaram por um lado porque tem carro e transporte e aí você chega rápido em
Brejinhos, mas está mais difícil porque a natureza não tem mais a mesma fartura. Riacho Frio
já teve sua era de ouro. Já teve grande comércio, com feira e tudo. Aqui paravam todos que
subiam esta serra para alcançar o São Francisco. Hoje só tem este banho aí que atrai as
pessoas que vêm aqui se divertir, mas muitos também não conservam a natureza do lugar.
Jogam caco de garrafa pra menino cortar os pés e quando tem festa é um mundaréu de
bêbado. Não sei onde a gente vai parar”
121
.
O Riacho Frio é uma importante localidade para a economia do município, pois
é um dos poucos que produz frutas e hortaliças na região, além de concentrar
um pólo de lazer, contendo piscinas de água natural e riachos, onde a
população do município e de municípios vizinhos para lá se dirige nos feriados
e dias de festejo. O que outrora abrigava um importante pólo comercial, com a
presença de hospedarias para romeiros, caixeiros viajantes, tropeiros e
aventureiros, hoje está significativamente menor tanto em expressividade
regional quanto em número de habitantes, uma vez que grande parte das
famílias possui moradia dupla, ou seja, durante a semana permanecem na
cidade de Oliveira dos Brejinhos, onde trabalham e estudam e nos finais de
semana voltam para o povoado em busca de lazer e também para cuidar das
roças e das casas. Desse modo, Riacho Frio tende a se tornar um lugar de
veraneio e descanso.
No início da trilha que sobe a serra, pés de tabuleiro, jatobás, buritizeiros e
coqueiros cedem lugar a árvores altas, frondosas de tronco grosso. No solo,
entrecortado por riachos e corredeiras, no descambar da serra, está uma faixa
estreita de mata alta que margeia o riacho que corre no pé da serra. Esta faixa
diferenciada na serra vai dando lugar ao tabuleiro com pés de caju silvestre,
mangaba, manguba, umburana de cheiro, pau pereiro e outros. A terra
avermelhada, aos poucos, vai cedendo lugar ao barro preto e úmido. Nas
partes mais secas, há areia branca e fininha com a presença de canela d’ema
121
J. B. S. morador do Riacho Frio.
93
e outras bromélias, além de orquídeas. Conforme o viajante vai se
aproximando das primeiras casas do Cercado, uma corrente de vento sopra
mais forte, amenizando o clima e trazendo o cheiro peculiar do lugar: uma
mistura do odor do barro encharcado, típico de brejos com o cheiro das flores
silvestres abundantes na área: são flores de mangaba, caju silvestre, canela
d’ema e outras. Após passar por uma estreita faixa seca, com areão branco
que encobre as patas dos animais, o viajante depara-se com um pequeno
córrego que atravessa a estrada. Normalmente o animal ali pára para beber
água. Ocasião em que o viajante também pode ser beneficiado com a água
fresca que corre de uma pequena bica. Ele já está bem próximo das primeiras
casas, quando as frondosas mangueiras e juazeiros tornam o lugar mais verde.
O vale se estreita e há sombra por todos os lados.
As casas normalmente são afastadas uma das outras. Quando são próximas,
uma situa-se à margem esquerda e a outra à margem direita da trilha. As
melhores casas são feitas de adobe, rebocadas e pintadas de branco com
tabatinga. As janelas são de madeira e normalmente não são pintadas. Existem
cercas nos quintais, separando criatórios de animais como: cavalos, jumentos,
burros, ovelhas, porcos e galinhas. Geralmente nos fundos da casa há um
forno para assar doces como avoador e peta; a cozinha é separada do restante
da casa, feita com troncos de madeira, pois a fumaça produzida pelo fogão à
lenha ficaria difícil de ser dissipada se a cozinha fosse fechada com paredes.
As chaminés são feitas de flandres a partir de lata de óleo e querosene. Em
algumas casas ainda é usada a trempe para cozinhar, principalmente nas
casas feitas de enchimento, onde normalmente moram as pessoas mais
pobres. Os utensílios são de barro, pois o Cercado, a Tapera e São Bento
possuem forte produção de cerâmica, usada tanto para o consumo próprio
como para a comercialização. As mulheres fazem botijas e potes para
armazenar água para beber e preparar alimentos; fazem também pratos,
panelas, gamelas e tachos. Trabalham com o barro há gerações, sendo o ofício
transmitido de mãe para filha. Também confeccionam utensílios a partir da
madeira e do pau do buriti. Constroem bancos, cadeiras, camas, gaiolas para
criar animais, recipientes para armazenar cereais e sofás. A madeira mais
utilizada é a umburana, pois é de fácil manejo e presta-se à fabricação de
94
prato, colher de pau, gamela e outros. Os produtos industrializados são mais
raros, mas os mais comuns encontrados são: fogão a gás, que normalmente
não é usado, pois o gás é caro, sendo geralmente usado como móvel de
decoração, na sala, enfeitado com uma toalha bordada e um jarro com flores
artificiais; usam também rádio de pilha, sintonizado em AM para ouvir o
programa do Zé Bétio, locutor paulista de grande sucesso na região; bicicleta,
incrementada com decoração diversa; quadros de santos e fotografias das
pessoas mais velhas da família.
Cerca de dois quilômetros após passar nas primeiras casas do Cercado, o
viajante finalmente chega ao centro da localidade, onde existem cinco casas
próximas umas das outras. Os moradores antigos contam que o Cercado já
teve sete casas próximas, mas duas delas caíram e seus moradores não
quiseram reerguê-las no mesmo lugar, mudando-se para a roça um pouco mais
distante. O centro do Cercado é a área mais aberta do estreito vale da serra
do Cigano. Possui parte terras embrejadas, onde normalmente planta-se arroz,
hortaliças, frutas e feijão de arranca e cultiva-se o buritizeiro; na parte mais
seca, planta-se mandioca, a mais importante fonte de renda da população do
lugar.
No vale existem morros pequenos e formações rochosas com cavernas, grutas,
onde se descobriram sítios arqueológicos relevantes, como o Sítio
Arqueológico da Pedra Furada
122
, já catalogado por equipes de arqueólogos da
Universidade Federal da Bahia e da Universidade Estadual de Feira de
Santana, além de outros sítios desconhecidos da comunidade científica como o
Morro de Geraldo e outros em roças mais distantes. A população local
desconhece a importância dos sítios arqueológicos como registro histórico de
população remota que viveu na região, o que dificulta a preservação do
patrimônio. Nos sítios mais distantes como o do Morro de Geraldo, há crença
local que se trata de um lugar “encantado”, coberto de ouro, mas amaldiçoado.
Ainda permanece intacto por ser um lugar que não é freqüentado pelas
pessoas, que temem “os poderes que lá existem”. Dizem que, aqueles que se
122
O Sítio tem o nome de Pedra Furada devido a uma enorme fenda existente na pedra
principal.
95
atreveram a desafiar o encanto, voltaram de lá assombrados. O Cercado seria
povoado por entidades mágicas, habitado por assombrações que reforçam e
legitimam práticas de feitiço: quem tem o saber de “botar feitiço nos outros” tem
o poder e o domínio sobre as pessoas.
No Cercado não há escola, igreja nem cemitério. As crianças que freqüentam
até a quarta série precisam se deslocar para a localidade da Tapera, cerca de
5 quilômetros de distância. O lugar gira em torno da casa de farinha cujo uso é
coletivo embora seja de propriedade privada. A própria lida na casa de farinha
depende de uma série de pessoas para sua produtividade. Obedecendo ao
ciclo da plantação da mandioca e do buriti, a localidade tece sua economia de
subsistência, auxiliada pelos benefícios oferecidos pelos programas sociais do
Governo Federal e pela aposentadoria rural.
As áreas de transição, compreendendo desde as adjacências da serra do
Cigano até sua diversidade paisagística, evidenciam a complexidade natural
que, segundo Ab’ Saber
123
, perfaz parte do território semi-árido: serras úmidas,
baixios e brejos.
“Um brejo é sempre um enclave de tropicalidade no meio semi-árido: uma ilha de paisagens
úmidas, quentes ou subquentes, com solos de matas e sinais de antigas coberturas florestais,
quebrando a continuidade dos sertões revestidos de caatingas. É evidente que isso só ocorre
em determinados sítios, como serras e encostas de maciços que captam a umidade de
barlavento, piemontes com acumulações detríticas retentoras de água, agrupamentos de
nascentes ou fontes (designadas olhos d’água), encostas ou sopé de escarpas, bordas de
chapadas, bolsões aluviais de planícies alveolares (baixios) e setores de vales bem arejados
por correntezas de ar marítimo (ribeiras e vales úmidos)”.
O uso do termo brejo para a população local indica solos pantanosos, com
presença abundante de água. Desse modo, conforme se vai aproximando da
localidade do Cercado, nota-se a presença do brejo em algumas roças
cercadas. Os brejos se localizam não apenas próximo à serra, mas também em
área descampada. Os moradores mais velhos relembram que, até por volta da
década de oitenta, havia árvores altas no local, indicando a presença de ações
de devastação do meio-ambiente:
123
Aziz Nacib Ab’Saber. Em Dossiê Nordeste Seco. Instituto de Estudos Avançados da
Universidade de São Paulo. Volume 13 – nº 36 – Maio/Agosto 1999. Página 17.
96
“No tempo de antigamente aqui tinha uns pés de pau alto, com muito galho. Era pereiro, jatobá,
manguba, manga e tanta coisa, mas aí a gente foi cortando, foi morrendo e hoje não tem mais
nada. Só este descampado com essa biquinha de água. Nem parece mais o Cercado de
outrora.
124
Seguindo a trilha, após o Cercado, o viajante depara-se com a Tapera,
povoado com cerca de dezoito casas. No trajeto, aos poucos, a vegetação vai
se tornando mais seca e rala. O brejo dá lugar à terra vermelha e seca, as
fontes e bicas d’água rareiam, até que se chega à Tapera, localizada fora do
vale, em área descampada. O povoado possui uma escola com séries
múltiplas, onde estudam alunos de seis a 12 anos, uma pequena Igreja de
Nossa Senhora Aparecida, construída há menos de um ano, além de uma
venda que comercializa desde cachaça, cereais, rapadura até produtos
industrializados como bolachas, óleo de soja, querosene, pilha, vela, agulha,
linha e comprimidos para dor de cabeça. Há um importante cemitério, onde são
sepultadas as pessoas do lugar e de outros povoados, como o Cercado. Além
de plantarem mandioca, feijão, cana-de-açúcar e milho, criam gado e porcos,
sua principal fonte de subsistência.
Após passar pela Tapera, o viajante anda pela trilha, que cada vez mais seca,
sobe a serra em direção ao São Bento, destacado povoado da região. Com
cerca de quarenta casas, algumas espalhadas por entre a serra, o São Bento
destaca-se no município como importante produtor de farinha de mandioca,
feijão, milho, cana-de-açúcar, além de seu rebanho bovino. Conta com um
comércio razoável, com vendas e mercadinho. É o ponto de concentração da
atividade mineradora do município, sendo que parte da população trabalha
para as empresas de mineração. Abriga também os empregados dessas
empresas que são de fora do lugar, além de garimpeiros que se aventuram nos
garimpos de cristal de rocha.
Ao seguir a trilha em direção ao Rio São Francisco, o viajante vai se deparar
com vários outros povoados, alguns ainda pertencentes ao município de
Oliveira dos Brejinhos, outros pertencentes ao município de Boquira e outros
ao município de Paratinga, onde finalmente alcançam o Rio São Francisco. A
124
Dazinha, 72 anos, moradora do Cercado.
97
trilha principal usada pelos tropeiros, passava pelo rio Santo Onofre até
alcançar o São Francisco. Posteriormente, outras trilhas foram abertas no
intuito de encurtar o caminho para a passagem de romeiros.
3.2. UM PASSEIO PELA HISTÓRIA ORAL: DOS PRIMEIROS HABITANTES AO FLUXO
MIGRATÓRIO DA DÉCADA DE SETENTA
O tropeiro João Nicolau, por volta da década de quarenta do século XVIII,
percorrendo os caminhos deixados pelos primeiros bandeirantes, após cochilar
por longo período, extraviou-se da trilha principal e acidentalmente deparou-se
com terras embrejadas em plena área semi-árida da Chapada Diamantina, Alto
Sertão do São Francisco. O tropeiro buscava chegar ao São Francisco de onde
conduziria o gado vindo da região de Jacobina. As novas terras descobertas
foram batizadas por ele como “terra dos brejos”, para onde se mudou com a
família, trazendo consigo parte dos trabalhadores que o auxiliavam. Desse
modo, inicia-se o processo de ocupação das terras pertencentes ao município
de Oliveira dos Brejinhos.
Estas terras embrejadas situavam-se próximas a três serras principais, uma
vizinha à outra, e também de outras elevações menores, como morros. Com a
necessidade de alcançar o Rio São Francisco, os primeiros moradores
começaram a explorar as serras e logo descobriram uma passagem para o rio
via serras do Cigano e Alazão, desembocando no Paulista e alcançando o
Velho Chico em Paratinga. Já no final deste mesmo século, as famílias
Coimbra e Brito se deslocam da região de Macaúbas para estas áreas. Outras
famílias somaram-se a elas com o intuito de estabelecerem seus domínios para
a criação de gado. Desse modo, em meados do século XVIII a estrada do
Alazão para alcançar o Rio São Francisco já era conhecida na região, servindo
de atalho para aqueles advindos da região de Lençóis, Mucugê, Brotas de
Macaúbas e outras áreas. O ponto de início da trilha pela serra começava com
a localidade do Riacho Frio, onde construíram um barracão para hospedar
tropeiros e caixeiros viajantes. Após o Riacho Frio, a próxima parada da trilha
era o São Bento. No trajeto, havia uma grande área embrejada, rica em
nascentes, corredeiras, córregos, com muitas frutas silvestres como mangaba,
araticum cagão, puçá, pequi, cagaita, multa de tabuleiro, fruta da palma, caju
98
silvestre, gravatá, buriti, bacu pari, jatobá, manga e outras. A área foi povoada
no início do século XIX, por viajantes que lá passavam e sentiam-se atraídos
pela beleza das formações rochosas e pela abundância de água e frutas. À
nova localidade deram o nome de Cercado, situada à beira da trilha de
viajantes que iam em busca do São Francisco. O nome Cercado refere-se ao
fato de ser cercado por serras, um pequeno vale embrejado que acolheu
algumas famílias. Outras famílias se estabeleceram ao longo da trilha em áreas
fora do vale, mas em todo o trajeto que circundava a busca pelo Rio São
Francisco. Uma das localidades mais antigas desse trajeto é São Bento, cujo
povoamento foi quase que concomitante ao do Riacho Frio, por ser ponto de
pouso de tropeiros e viajantes.
A tradição oral conta que por haver muitos homens e poucas mulheres no
lugar, os casamentos eram dificílimos. Para resolver a escassez feminina, eles
iam para o mato “caçar” mulheres índias para se casar. Muitas eram pegas no
laço, após serem acuadas por cachorros. Eram trazidas para o povoado onde
eram obrigadas a contrair matrimônio com os homens do lugar. Contam que
muitas vezes os homens da tribo vinham resgatá-las, mas sem sucesso, pois
seus opositores os detinham com armas de fogos e cães ferozes.
Não há registros sobre os grupos indígenas que habitavam aquela área
específica da Chapada Diamantina. A população do lugar os nomeia
muribecas. São achados freqüentemente pela população local fragmentos de
cerâmica, ossos, cachimbos de barro, armas de madeira e outros artefatos.
Acredita-se pertencerem a tais grupos existentes nas serras, mas não foram
feitos estudos sistemáticos sobre o assunto. Esses achados muitas vezes são
destruídos pela própria população que não vê neles importância ou valor
histórico. Pierson
125
, com base na literatura e na coleta de informações junto à
população, cataloga uma série de grupos indígenas que margeavam o São
Francisco, mas não se refere especificamente a essas áreas.
125
Donal Pierson. O Homem no Vale do São Francisco. Tomo II. Rio de Janeiro:
Superintendência do Vale do São Francisco – SUVALE, 1972.
99
Seguindo o caminho para o São Francisco, a partir do município de Oliveira
dos Brejinhos, o viajante iniciava a subida da Serra do Cigano a partir do
Riacho Frio. Cerca de uma légua depois ele alcançava o Cercado, depois a
Tapera e finalmente o São Bento. Normalmente pousava por lá. No dia
seguinte partia pela Serra do Alazão, chegando ao Mourão, depois na Borroca,
alcançando a ladeira da Quixaba e o carrasco do Paulista, Volta da Serra de
onde era possível ver o Velho Chico. Esse trajeto economizava dias de viagem
sob o sol escaldante das caatingas descampadas até chegar a Bom Jardim,
onde hoje é Ibotirama.
É a partir desse fluxo de andanças que surge a localidade do Cercado, cuja
densidade demográfica permaneceu quase inalterada desde então. No início
do século XX, lá moravam as famílias de Silidone, de Romana, de Alvina, todas
oriundas das famílias pioneiras. Por volta da década de quarenta, o Cercado se
tornava um importante pouso de romeiros que iam cumprir promessas e visitar
o santuário do Bom Jesus da Lapa, utilizando a mesma trilha outrora aberta
pelos primeiros bandeirantes e tropeiros. Os romeiros, boiadeiros e tropeiros
pousavam na casa de Alvina, que construiu um rancho para abrigá-los. Ela
oferecia comida, bebida, doces, como avoador, cocada, peta e tijolo de buriti.
Vendia também cachaça e raízes de plantas medicinais, como papaconha que
servia para dor de barriga e cólicas; a unha d’anta; e feixes de dandá que era
usado dentro da cachaça, além de vender sabão de decoada que ela mesma
fazia. Os romeiros vinham de longe, de todos os lugares da Bahia: desde a
região de Cafarnaum, até Jacobina, Lençóis, Mucugê e outras áreas. Nesta
época, lá moravam mais de cem pessoas, distribuídas em cerca de vinte
famílias
126
.
Para os atuais moradores, o Cercado teve sua época de ouro até meados da
década de oitenta quando muitos ainda permaneciam por lá. Na década de
setenta, parte da população migrou para trabalhar na lavoura e nos garimpos
do Mato Grosso. No final da década de oitenta, o destino era São Paulo, em
busca de emprego na construção civil.
126
Estes dados foram fornecidos pela memória dos moradores atuais. Não há registro desses
números. Trata-se de números aproximados e sem precisão.
100
3.3. MEMÓRIA E PROCESSOS MIGRATÓRIOS
As narrativas colhidas tanto com moradores do Cercado quanto com pessoas
que migraram para São Paulo ilustram momentos da trajetória dos que foram
tentar a sorte em outras paragens, como Mato Grosso e São Paulo. A
esperança de enriquecer nos garimpos ou obter um bom emprego na
construção civil arrastou muitas vidas para fora do Cercado.
No início da década de quarenta do século XX, iniciou-se o fluxo migratório de
pessoas das serras do Cigano, do Riacho Frio e Chapada do Arroz para Mato
Grosso em busca de trabalho nos garimpos de ouro e na lavoura. Nesta região,
o primeiro migrante de que se tem notícia foi o “finado” Jerônimo. “Todo ano ele
vinha passar os festejos do Senhor Bom Jesus na Chapada do Arroz para participar da
cavalgada.
Jerônimo, todos os anos chegava na festa e fazia grande sucesso, pois tinha boa
aparência, cheirava bem, gastava dinheiro pagando bebidas e tira-gosto para os amigos. Com
muitos dentes de ouro na boca, encantava as mulheres, até que um dia se apaixonou
perdidamente por Hilda, filha da Velha Alvina”
127
, uma espécie de líder do Cercado.
Alvina, casada com José Luís de Souza, mais conhecido por Nê, homem
pacato, franzino que obedecia cegamente às ordens da mulher. Hilda tinha 14
anos e ainda nem se interessava por rapazes, mas sua mãe acertou o
casamento para dois anos depois. Ela ficou esperando o noivo. Nesse tempo
de espera não podia ir a lugar algum sem a companhia do pai ou da mãe. Ela
já havia sido prometida a Jerônimo que era considerado o melhor partido da
região e não podia ter nenhum comportamento que a desabonasse, senão o
noivo romperia o compromisso. Após dois anos, Jerônimo veio se casar.
Trouxe todo o enxoval: coisas boas e caras, feitas com muito capricho. As
encomendas que por carta ele havia feito às pessoas da região, como o vestido
de noiva, por exemplo, foi feito pela melhor costureira do lugar. Casaram-se em
cerimonial considerado de luxo, com muita festa, bebida e comida para todos.
Logo após o casamento foram morar no Mato Grosso, mais precisamente
numa localidade chamada Grotão que fazia parte do município de Dom Aquino,
local onde o noivo morava. Lá chegando, Hilda demorou a se acostumar à vida
127
E. L. S. moradora do Cercado.
101
de casada e de vez em quando Jerônimo a flagrava brincando de boneca no
cafezal com outras crianças da vizinhança. Ele então a levava para casa,
reclamava do seu comportamento e pedia às vizinhas que lhes dessem
conselho. Pouco depois, ela engravidou e ele a trouxe para passear no
Cercado. Alvina, sua mãe, fez uma promessa para o Bom Jesus da Lapa para
que ela tivesse um bom parto. Jerônimo envia Hilda do Mato Grosso para o
Cercado quando ela estava no sétimo mês de gravidez. Na hora do parto
mandaram chamar a Velha Virgilina que chegou, fez suas orações, massageou
a barriga de Hilda e logo descobriu que se tratava de gêmeos. O parto foi muito
difícil, Hilda sofreu bastante e sua mãe intensificou a promessa ao Bom Jesus
da Lapa. Após muito trabalho, ela deu a luz a um casal de gêmeos. As crianças
nasceram sadias e foram crescendo. Enquanto isso, muita fofoca corria entre o
Cercado e o Grotão no Mato Grosso, falava-se que a Velha Alvina, mãe de
Hilda, não aceitava mais que sua filha voltasse para o Mato Grosso. Sem
avisar, Jerônimo veio e hospedou-se em uma localidade vizinha, a Chapada do
Arroz. A Velha Alvina mandou chamá-lo e assim que ele chegou e viu os filhos
emocionou-se, chorando copiosamente. Soltou uma dúzia de fogos para
comemorar e providenciou uma festança que se estendeu por dias. Após
cumprir a promessa em Bom Jesus da Lapa, voltaram ao Mato Grosso,
levando Valdim e Marina, irmãos de Hilda. Inicia-se nesse período, o fluxo
migratório mais intenso da região para o Mato Grosso em busca de trabalho
nos garimpos de ouro e também na lavoura.
Algum tempo depois a situação no Cercado ficou muito difícil, devido à falta de
chuva que obrigou as pessoas a comerem as sementes destinadas à
plantação. Com isso a fome se intensificou e Justino, irmão de Hilda viu-se
obrigado a ir em busca de trabalho no Mato Grosso. Juntamente com outros
homens da localidade do Carrapato, viajaram por dias, usando todo tipo de
transporte, desde o lombo de animais até caminhões pau-de-arara. Ao se
aproximaram da área do Grotão, avistaram numa estrada de terra uma mulher
que pensaram se tratar de Marina. Justino ficou pensando: “_ como essa mulher se
parece com Marina!”
Mas achou impossível tamanha coincidência e resolveu não
falar nada. Ela também pensou que aquele rapaz se parecia com o irmão e
resolveu perguntar. Os dois irmãos se abraçaram e choraram com muita
102
emoção. “Marina viu a situação do irmão, com todos os dentes estragados, restando alguns
cacos na boca. Assim que ele descansou da longa viagem, o levou a Dom Aquino para extrair
os dentes
128
”. Logo Justino arrumou trabalho e sempre mandava cartas para o
Cercado chamando a mãe e o pai para irem embora para o Mato Grosso, mas
a mãe não queria. A Velha Alvina dizia: “só saio daqui a alma. Enquanto puder ir
resistindo continuarei por aqui”.
Os filhos chamavam, prometiam coisas e nada. “
Justino que trabalhava com umbanda, fez um forte trabalho para sua mãe ir pro Mato Grosso,
ajudado por Sulino. Os espíritos abaixaram em Justino e confirmaram que a Velha Alvina iria
sem demora. Sem dar explicações, ela resolveu partir. Foi uma semana de despedida, gente
indo de todo os lugares da serra para se despedir dela, com festejos, rezas e choro. Como era
muito querida na região, esperou muita gente chegar de longe para se despedir. Alguns
traziam produtos da região como tapioca, beijus, avuador, tijolo de buriti, enquanto outros
traziam vidros de perfume pela metade, porque já haviam usado, pois perfume era algo raro
comprado longe ou ganhado de parente que morava na cidade grande
129
. Mesmo com
tantos festejos ela dizia: “se eu morrer no Mato Grosso minha alma não se salva. Eu quero
morrer no Cercado”.
Seu marido, o Velho Nê cantava lamentos: “Oh! Alvina! Oh
Alvina!”.
Dias após se despedir de todos os amigos, Alvina parte para Mato
Grosso juntamente com seu esposo, dois filhos e um neto. Após sua ida, outros
parentes também partiram em busca de “recursos” pra viver, muitos foram “tocar
roça de feijão e mandioca e outros foram arriscar a sorte no garimpo de diamante e ouro.
Muitos de lá nunca retornaram, morrendo nos garimpos de Serra Pelada”.
Partiam em busca de melhoria das condições de vida, fugindo da fome e da
seca e acabaram encontrando miséria, mais fome e pobreza. Foi o caso de
uma das filhas da Velha Alvina, a finada Zilda, que se suicidou bebendo
cândida. Era alcoólatra e “era possuída por espírito ruim de prostituição. Seduzia os
homens ruins. Não gostava de ninguém bom. Ficou grávida cedo. Ninguém sabia o que ela
tinha, que espírito que era, mas a mãe trancava a porta e o espírito destrancava. Quando
estava no Cercado só melhorava quando Zé Rodrigues
130
batia o ramo nela. Zé Rodrigues
usava do pretexto de ir rezar ela nos córregos e se aproveitava dela. Ia para as cabeceiras
dos córregos e se aproveitava dela. Se aproveitou foi de muitas moças!
131
128
M. L. S., moradora do Cercado.
129
E. L. S. moradora do Cercado.
130
Zé Rodrigues, importante curador da região.
131
D.S., moradora do Cercado.
103
Zilda faleceu no Mato Grosso num dia chuvoso. Como a família não tinha
dinheiro para removê-la para a cidade mais próxima onde tinha um cemitério,
ela foi enterrada numa roça, “numa terra encharcada, num matagal na roça dos outros,
pois eles ainda não possuíam terras próprias”.
Todos da família têm um sentimento de
dor por causa deste fato. Recentemente seu filho que mora em São Paulo foi
até lá para roçar o local onde o corpo está enterrado. Fincou uma cruz, plantou
algumas flores, mas gostaria mesmo de remover os ossos para enterrar em um
cemitério.
A opinião da maioria dos moradores do Cercado é que aqueles que tentaram a
sorte no Mato Grosso voltaram muito pior do que foram. A pobreza e a loucura
tomaram conta de quase todos. O Neto Gildásio que foi com a Velha Alvina,
quando os avós adoeceram e ficaram inválidos, teve que parar de estudar para
tomar conta deles. Lavava, passava, cozinhava e cuidava da roça e dos
animais, único sustento deles. Seus dentes apodreceram, ficou fraco, doente e,
assim que seus avós faleceram, mandou pedir dinheiro para os parentes que
ainda restavam no Cercado para comprar a passagem e voltar. Após viver por
um ano no Cercado decidiu ir para São Paulo, onde mora até hoje. Chico, seu
irmão que foi tentar a sorte nas roças de Mato Grosso, após trabalhar na
lavoura de cana-de-açúcar e mandioca, enlouqueceu, indo parar num asilo,
onde ficou internado por quase um ano. No manicômio em Rondonópolis
permanecia amarrado com as mãos para trás até que seus irmãos que
moravam no Cercado e em São Paulo puderam enviar dinheiro para tirá-lo de
lá e encaminhá-lo de volta ao Cercado, onde permanece trabalhando na
lavoura até hoje, juntamente com seus filhos e esposa. As marcas das cordas
ainda estão em suas costas e em seu pulso. Não gosta de falar sobre este
evento em sua vida. Zezão, outro morador do Cercado que foi tentar a sorte no
Mato Grosso também não se deu bem. “
Ele e a finada Joana foram tentar a vida por lá,
já no meio do caminho sofreram um acidente no pau-de-arara que os levava, sobreviveram,
mas lá chegando Zezão teve uma crise dos nervos e ficou louco”
132
. Não demorou muito e
retornou ao Cercado. Lá permaneceu até o início dos anos noventa quando
migrou juntamente com Joana para São Paulo, onde encontrou praticamente
toda a família que já havia partido tempos atrás.
132
G. L. S. hoje reside em São Paulo.
104
Toda família da região da serra do Cigano possui uma história de tristeza
vinculada ao processo migratório quer para São Paulo quer para o Mato
Grosso. Sabem que embora a maioria das experiências tenham sido negativas,
ainda permanecem alimentando o sonho de migrar e ir em busca de melhores
recursos de vida. Para aqueles que retornaram do processo migratório, esta é
a última das alternativas viáveis, embora não a descartem em períodos de seca
prolongada. Esta dinâmica de ir e vir marca significativamente os modos de
vida no interior da comunidade cujos intercâmbios com outros lugares
fornecem elementos importantes na configuração dos territórios imaginários e
no cotidiano local.
O capítulo procurou trazer à tona discussões sobre os modos de convivência
com a natureza semi-árida, enfatizando que há vida fluindo por todos os
lugares. Procurou discutir que é possível conciliar a convivência com a
diversidade de ecossistemas que fazem parte do Semi-Árido brasileiro, com os
saberes tradicionais que sua população vem construindo ao longo da história
de povoamento da região. A conciliação destas dimensões tem sido feita de
modo relativamente simples e harmônico por parte das comunidades locais. O
exemplo da comunidade do Cercado ilustra sua relação com a natureza, onde
retiram dela o que precisam para a sobrevivência, em contrapartida, criam-se
elementos sobrenaturais que protegem os lugares mais intocados e frágeis do
ecossistema caatingueiro. Elementos estes, seriamente ameaçados pelo
avanço da fronteira capitalista que dissolve e desarticula grupos que vivem em
relativo isolamento geográfico, indicando que é iminente a perda da magia do
mundo, condição necessária à manutenção das crenças e tradições.
O Cercado, assim como outras localidades da região, tem vivenciado fluxos
migratórios que se intensificam ou se retraem. No caso específico do Cercado,
este fluxo iniciou-se a partir da década de quarenta. Talvez uma das
possibilidades de análise desse fenômeno esteja na interlocução entre as
condições materiais de busca pela sobrevivência e as condições imateriais de
busca pela atualização dos desejos trazidos pela sociedade de consumo.
105
Um complexum de fatores entrelaçados, como a busca por melhores condições
de vida, a fuga da fome e miséria, a estrutura de distribuição das terras
produtivas, cuja propriedade está em poucas mãos, aliados ao despertar de
novos desejos e anseios, trazidos na “bagagem” de viajantes que usavam a
trilha cavaleira, somou-se às dificuldades impostas tanto pela geografia do vale
chapadeiro quanto pelas relações senhoriais de dominação e mandonismo
possivelmente intensificou este fluxo migratório que, nas décadas de setenta e
oitenta, tornou-se intenso. Dados resgatados a partir da memória dos
habitantes da comunidade indicam que até o final da década de sessenta
moravam no Cercado e roças vizinhas cerca de cem pessoas distribuídas em
aproximadamente quarenta famílias distintas. Nos anos oitenta este número já
se encontrava significativamente reduzido, contando com cerca de sessenta
moradores. Atualmente, residem aproximadamente quarenta pessoas,
distribuídas exatamente em nove famílias.
Dados do IBGE sobre o município de Oliveira dos Brejinhos apontam que na
década de oitenta residiam um total de 18.340 habitantes, sendo que 15.546
pessoas moravam na zona rural e 2.794 pessoas moravam na zona urbana, ou
seja, na sede do município. O IBGE registrou que em 1991, 404 pessoas do
município migraram, sendo que 59,41% se deslocaram dentro do próprio
estado da Bahia, seguido de 32,92% que migraram para São Paulo. Não há
registros específicos da comunidade do Cercado, mas a partir dos relatos orais,
verifica-se tendência de deslocamento para a região do São Francisco, nos
municípios de Bom Jesus da Lapa, Paratinga e Ibotirama.
Numa localidade de dimensões populacionais reduzidas como é o caso do
Cercado, pequenas alterações podem significar transformações profundas no
seu dinamismo. A falta de apoio dos representantes políticos pode dificultar a
vida local. A comunidade “acompanhava”, ou seja, apoiava e votava nos
representantes políticos dos “rabudos”, partidários inicialmente da ARENA II e
posteriormente do MDB. Entretanto esta facção política foi derrotada nas
primeiras eleições da década de setenta. Como a comunidade não era aliada
política do candidato vencedor, passou a sofrer o desprezo deste que não
106
direcionava nenhum benefício à localidade. Em decorrência, a vida foi ficando
cada vez mais difícil.
Os moradores relatam uma seca intensa entre 1973 e 1974 que os obrigou a
buscar alternativas em roças mais distantes, nas imediações do Rio São
Francisco. Nesta ocasião algumas pessoas migraram para Mato Grosso
enquanto outras foram para o outro lado do rio, na região do Javí. As que se
dirigiram para locais próximos retornaram, as que migraram para Mato Grosso
permaneceram por lá por período maior. Algumas retornaram até final da
década de oitenta.
Gerônimo talvez não represente um marco na divisória dos processos
migratórios, mas representa, no imaginário da população local, depositário de
qualificadores de sucesso dos que migraram, assim como, outros como Chico
e Zezão também representam qualificadores de insucesso daqueles que
migraram. Para as pessoas que se sentiam motivadas em migrar, Gerônimo
corroborava sua decisão, assim como para as que desejavam permanecer no
lugar, usavam e ainda os usam como exemplo, demonstrando as dificuldades e
desvantagens desse processo.
Quando o povo viu Gerônimo todo cheiroso e bonito, com a boca coberta de ouro, aí o povo
disse: de onde ele está tirando deve ter mais. Aí começou o rebuliço na serra. Era uns
querendo ir trabalhar no Mato Grosso para comprar um rádio, outros querendo uma bicicleta,
mas eu estava querendo mesmo era comprar uns vestidos de chita e quem sabe achar um
homem rico pra casar. Mas dei com os burros n’água. Nem fui, nem tenho coragem de ir.
Quem quiser que vá. Eu não vou. Quero ficar quieta aqui no meu canto
133
”.
“Tem gente que não gosta daqui. Acha que aqui é um ermo só e por isso foi embora. Tem
gente que não volta aqui nem pra passear, quem dirá pra morar. Outros de vez em quando
vêm ver o torrão que deixou. O pessoal que foi para o Mato Grosso e ficou pobre tem o sonho
de voltar, nem que seja pra ser enterrado. Já aqueles que se deram bem em São Paulo só vem
a passeio e quando vem é botando banca em cima da gente. Traz carro e sai por aí
dirigindo.
134
“Não vou dizer pra você que eu não tenho vontade de ir embora pro Cercado. Tem dia que eu
até choro de saudade, mas não vou mentir que não dá pra morar lá. O que é que vou fazer lá
se um filho meu ficar doente? Como é que eu vou levar ao médico? Vou ter que andar num
lombo de um burro até Brejinhos ou vou ficar na dependência de um político fornecer um carro
pra me buscar e me trazer de volta. Não dá! É muito isolado! São muitas humilhações que a
gente tem que passar. Pai fica lá porque ta velho e recebe aposentadoria. Mesmo assim, se
precisar de um médico tem que fazer o tratamento é aqui no Hospital das Clínicas
135
”.
133
A.L.S., 59 anos, moradora do São Bento.
134
G. M.S., 25 anos, morador da Tapera.
135
M.M.S., 31 anos, reside atualmente em São Paulo.
107
A dificuldade no convívio com a natureza semi-árida tem produzido fenômenos
de deslocamento como a mudança sazonal para a sede do município ou outras
comunidades próximas, na busca de roças para plantar, tanto do sistema de
meia quanto no de arrendamento, além da busca de trabalho na prestação de
serviços de carpinagem e roçagem que exige deslocamento para lugares
específicos. Os depoimentos a seguir procuram ilustrar este dinamismo.
“A vida aqui na serra é muito dificultosa. Não tem trabalho. Se você não sair daqui para buscar
trabalho vai passar dificuldades. Volta e meia eu dou uns pulos lá pela beira do Rio São
Francisco. Faço uns trabalhos por lá e é assim que a gente vai vivendo”.
“Eu mesmo não sei o que é melhor nessa vida. A gente ta aqui e só reclama. Reclama que
ganha pouco que quer ganhar mais dinheiro. Aí a gente vai para uma cidade grande como São
Paulo e acaba sofrendo mais ainda. São tantos problemas. Gente morrendo, gente matando e
ninguém liga, parece que morreu foi uma formiga. Eu não cheguei a nenhuma conclusão. Fico
pensando e faço o que precisa ser feito
136
”.
“Esse povo de hoje em dia não quer saber de dificuldade. Antigamente a gente acordava duas
horas da manhã para botar montaria num animal para ir para Brejinhos para fazer a feira de
sábado. Levava as bruacas cheias de farinha, tapioca, quiabo, abóbora e o que tivesse para
vender. Aí ficava naquele sol quente vendendo. Às vezes não vendia era nada, mas a gente
tinha que ficar até o fim para apurar aquele dinheirinho suado para comprar o café e o óleo que
a gente não tinha. Quando dava sorte de vender, corria na venda e comprava aquele pacotinho
de café. Lá pelas duas da tarde, saía de Brejinhos e voltava no sol de rachar até a serra.
Chegava em casa à boca da noite e aí era que a gente podia botar um feijão na barriga. Hoje
em dia não. Ninguém ta pra isso. É tudo fácil. O jovem consegue uma garupa de uma moto,
consegue uma carona no caminhão das firmas e assim chega logo no seu destino. Bota sua
barraca na feira e vende tudo porque hoje o dinheiro corre”
137
.
As tecnologias de convívio com o semi-árido estão à disposição de todos e são
empregadas no cotidiano por parte daqueles que lá vivem, conforme foi
discutido no capítulo. Ao contrário das visões cristalizadas sobre pobreza,
miserabilidade e conformismo, a experiência aponta a riqueza da diversidade
humana e natural na região. No interior das pequenas comunidades e cidades,
há burburinho de gente inventando e reinventando formas de expressar-se. Há
produção humana sendo trocada, legitimada e rearranjada a todo instante. A
noção de lugar
138
, como lócus da vida, emprega-se com propriedade à região.
Se por um lado, processos de desarticulação e dissolução de comunidades
fragilizam grupos de pessoas, por outro produz resistência e acomodação ao
mesmo tempo, indicando quão vivo está o lugar. Na Chapada Diamantina, há
136
E.L. M., 40 anos, morador do Cercado.
137
L.G.M., 75 anos, morador do São Bento.
138
Conceito discutido por Milton Santos e Peter Spink nas seguintes obras: Milton Santos. A
natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1997.
Peter Spink. O Lugar do Lugar na Análise Organizacional. Revista de Administração
Contemporânea da ANPAD. Volume 5, 2001.
108
uma infinidade de lugares como expressão da vida da gente: riqueza, pobreza,
escassez, abundância... acesso, pouco acesso, não acesso. A imponência da
geografia chapadeira impõe desafios: habita-se no topo de serras, por entre
vales, nas capoeiras, nas caatingas, nos brejos... constrói-se vida por todos os
lugares: bodes, crianças, gente grande, gado, teiús, urubus... a vida vai se
formando em interlocução estreita com os sistemas de crenças ditada pelo
ritmo da natureza semi-árida!
139
A dimensão da existência humana não se constrói sem a interlocução com a
natureza. Este estreitamento fornece um elemento importante na análise dos
modos de vida da região pois é a partir dele que as pessoas constroem
subjetividades, formulam seus arranjos cotidianos e moldam sua cultura. Nessa
interação com a natureza estreitam os laços de sociabilidade cujo convívio
comunal possibilita modos de expressão baseados na solidariedade, ao
mesmo tempo em que estabelecem conexões com elementos de magia e
crenças no sobrenatural que transcendem a dura racionalidade ditada pela
modernidade. Estas características também dialogam com a história de
ocupação da região cujo fluxo de povoamento deu origem a relações
assimétricas e desiguais onde o abuso de poder marcou com ferro e fogo as
dimensões de expressão das liberdades política e econômica das pessoas.
As caatingas brasileiras são espaços camaleônicos, repletos de vida em
abundância, adaptados às intempéries. Por estes espaços circulam a vida e a
morte; a água e a seca. Há um leque de matizes possíveis: ela não é tanto
cinza nem tanto verde, mas uma gradação por onde passam outras
possibilidades. Essa gradação diz de espaços e lugares permeados por
contradições, cuja complexidade se assemelha aos emaranhados dos galhos
secos, que outrora verdes se engalanaram de flores e folhas coloridas. O
acinzentado dos tempos secos é refletido nas cores igualmente
monocromáticas da presença humana. Homem e natureza se imbricam em
tamanha harmonia.
139
Sugiro os seguintes filmes como formas de ilustrar modos de vida da região: Abril
Despedaçado do Diretor Walter Salles, parte gravado na Comunidade de Bom Sossego e parte
gravado no município de Rio de Cantos e Narradores de Javé da Diretora Eliana Caffé,
gravado em Gameleira dos Índios, região do Rio São Francisco.
109
Viver nos domínios do Semi-Árido não é melhor ou pior do que em outro lugar.
Impõe desafios peculiares das áreas semi-áridas, mas isso não o torna
impróprio à convivência, tampouco significa sinônimo de pobreza e
miserabilidade. Convivem lado a lado, a abundância e escassez como em
outras regiões do Brasil. Suas peculiaridades indicam a necessidade de se
deter exaustivamente em formas de convivência com os diferenciados
ecossistemas que fazem parte da região. A conciliação dos saberes
tradicionais das populações locais com a geração de novas tecnologias de uso
da água e do solo semi-áridos poderá facilitar o desenvolvimento sustentado na
região.
Longe de ser uma situação ideal, no interior dos municípios rurais das
caatingas da Chapada Diamantina ainda sobrevivem velhos fenômenos como o
coronelismo e suas manifestações, a saber: o voto de cabresto, o mandonismo
e o filhotismo, agora agregados de elementos da modernidade que
insistentemente têm procurado manter o povo sob o domínio dos “donos do
poder”. Muita coisa precisa ser feita, muitas reflexões precisam ser produzidas
no sentido de subsidiar ações concretas que possam romper com este secular
ciclo vicioso de dominação que se instaurou nos domínios caatingueiros.
Muitas lutas precisam ser travadas para que o povo não seja relegado ao
último plano das ações públicas o que requer o exercício incansável de vigília,
cobrança e trabalho de busca da melhoria na qualidade das liberdades
individuais e no comprometimento social da região.
110
3. AMEAÇA DE DESARTICULAÇÃO E DISSOLUÇÃO DA
COMUNIDADE DO
CERCADO
“Mesmo morando em São Paulo há tanto tempo, eu sempre sonho com o Cercado, quase
todos os dias. Sinto aquele cheiro inconfundível da terra preta encharcada. O cheiro do
Cercado é singular, nunca o senti em outro lugar: uma mistura de lama com o cheiro silvestre
das plantas do lugar. O barulho das folhas dos buritizeiros quando o vento sopra; a leve brisa
do entardecer dissipa aquele perfume das flores de mangaba e canela d´ema. De lá a gente
não sai, mesmo estando a quilômetros de distância”
140
.
presente capítulo tem o objetivo de: a) apresentar a localidade do
Cercado como um lugar por onde a vida flui, cuja cotidianidade passa
pela vida e pela morte, com festejos, rituais fúnebres, conflitos, economia,
sociabilidade e dimensões subjetivas; b) inscrever o Cercado em perspectiva
da desagregação do seu modo de vida, cujo exame aponta para a dissolução
de sua existência frente ao processo de mutação que sofre na atualidade.
O
Para que este objetivo seja concretizado, convencionou-se sistematizar o
capítulo da seguinte forma: - apresentar o cotidiano da comunidade face ao
modo de vida, no que tange aos processos de sociabilidade, formas de
economia, religiosidade e sistema de crenças, estabelecendo conexões com as
dimensões de sua geografia e história já apresentados no capítulo anterior. Em
seguida, refletir sobre o processo de desarticulação e dissolução da
comunidade, a partir dos eixos teóricos mencionados.
Dada a amplitude dos dados obtidos em campo, optou-se por apresentar o
Cercado em quatro grandes dimensões para então, sistematizar as reflexões
propriamente ditas: sobre a Geografia e a História do Cercado – apresentada
no capítulo anterior; sobre as formas de trabalho e relação com a terra; sobre
religiosidade e sistema de crenças e sobre o modo de vida, sociabilidade e
cultura. Não se trata de separar estas três dimensões inseparáveis da vida da
comunidade. Estes tópicos se entrecruzam no trabalho.
140
M.I.S., 47 anos, vive em São Paulo desde seus 16 anos.
111
1. SOBRE FORMAS DE TRABALHO, RELAÇÃO COM A TERRA E A PRESENÇA DE
MINERADORAS NA ÁREA
.
No Cercado toda terra tem seu dono. Há cercas por todos os lados e de todos
os tipos: as mais antigas são as cercas de pedra, normalmente feitas para
separar propriedades em cima de serra ou morro; há também as cercas
espinha-de-peixe, também antigas, feitas de madeira fina e trançada num
complicado emaranhado que faz jus ao nome; as mais recentes são as de
arame farpado e mourão. Não há registro de grandes conflitos pela posse da
terra. As terras que não possuem documentação não são invadidas ou
griladas. Até início dos anos noventa, eram poucas as famílias que possuíam
alguma documentação da terra. A regularização da documentação começou a
ser feita com o objetivo de facilitar o acesso à aposentadoria rural. Existem
acordos implícitos de beneficiamento e usufruto. Embora haja uma divisão
clara das propriedades, os usos da terra são negociados de acordo com
necessidades específicas, muitas vezes beneficiadas e usufruídas por pessoas
de outro grupo familiar.
A principal atividade produtiva da comunidade é a farinha de mandioca e o
beneficiamento feito artesanalmente na casa de farinha, processo envolvendo
praticamente todas as pessoas da comunidade. O modo como os produtos
finais são compartilhados garante certa eqüidade. Os moradores relatam que
as terras produtivas foram ficando insuficientes e algumas pessoas precisavam
se deslocar para roças próximas onde tinham parentes e amigos. No início dos
anos oitenta, com a chegada das grandes mineradoras à serra, as terras foram
vendidas para elas que as usavam tanto para a exploração mineradora quanto
para o estabelecimento de sua logística. Propriedades com água abundante
foram vendidas, principalmente as que possuíam nascentes de água potável,
usadas para o abastecimento dos trabalhadores das mineradoras. As pessoas
indenizadas compraram terras em outras localidades, mantendo moradia dupla,
sazonal, a depender do ciclo produtivo da mandioca. A comunidade vivia estas
alterações concomitante à saída de alguns moradores para o Mato Grosso e
São Paulo.
112
Conforme visto, a Chapada Diamantina foi povoada tendo como base as
atividades de pecuária e mineração de ouro, diamante, carbonato e outras
pedras semi-preciosas. A mineração sempre esteve ligada ao ciclo produtivo
da região. Os moradores do Cercado relatam que a primeira vez que tomaram
conhecimento sobre o interesse de exploração mineradora na serra do Cigano
data de 1976 quando a empresa Vale do Rio Doce realizou prospecção no
local. Não se sabe precisar que metais estavam procurando. Sabe-se,
entretanto, que o interesse de exploração dessa serra esteve diretamente
relacionado ao ciclo de produção de chumbo nas serras vizinhas que
pertencem ao município de Boquira. Durante a década de setenta e meados da
década de oitenta, o município viveu em prosperidade, explorando serras,
revolvendo solo e sub-solo da área, no processo de exploração do chumbo,
atividade de alta periculosidade, tanto para as pessoas quanto para o
ecossistema. A presença de grandes empresas estrangeiras (Companhia
Brasileira de Chumbo – COBRAC, subsidiária da empresa francesa Penarroya
Oxide SA) alterou significativamente o ecossistema da região
141
. Atualmente,
tanto o governo local, auxiliado por ONGS, quanto representantes na Câmara
Federal lutam para reverter o quadro de contaminação por metais pesados na
região.
As primeiras mineradoras que chegaram às serras do Cigano e São Bento
foram a Mendes Júnior e posteriormente a Conservice que não vieram em
busca do chumbo, mas do quartzo, quartzito “Azul Imperial”, dentre outras
rochas ornamentais. Atualmente atuam na região, no complexo denominado
“Marinace”, as empresas Peval e Nord. Atuam também a Rossitis Brasil SA, na
exploração do quartzito, a Cawa mineração na extração de pedra, areia e
argila, a Crystalandia na extração de quartzo bruto e a Togni Mineração da
Bahia Ltda, no ramo de rocha ornamental. Outras empresas têm demonstrado
interesse em realizar pesquisas na área. A presença da atividade mineradora
na região é detectada assim que o visitante se aproxima da serra. Clarões
141
Ata da Câmara dos Deputados – Comissão de Defesa do Consumidor, Meio Ambiente e Minorias,
datada de 12/12/2002 em Brasília, onde foi realizada Audiência Pública, destinada à discussão
objetivando elaborar planos de remediação dos sítios de pessoas contaminada por metais pesados na
cidade de Santo Amaro da Purificação e do fechamento da Mina de Chumbo em Boquira, ambas no
estado da Bahia. A Audiência foi requerida pelo Deputado Fernando Gabeira.
113
foram abertos na serra, assim como estradas de terra cortam a serra em várias
partes. Conforme se vai subindo a serra, percebem-se os efeitos da maquinaria
pesada e do uso de dinamite no processo exploratório. Os efeitos da
devastação ambiental já podem ser visualizados, assim como os efeitos do
suposto progresso que as mineradoras trariam à região já são analisados pelos
moradores como algo que trouxe mais problemas do que soluções.
Como o Cercado situa-se num estreito vale, suas terras produtivas são
limitadas às áreas embrejadas, constituindo estreitas faixas e, tanto em
estação de chuvas intensas quanto em secas prolongadas, as condições de
beneficiamento da agricultura tornam-se difíceis. O brejo quando
excessivamente molhado não se presta à plantação de feijão e mandioca,
culturas comuns na localidade. Nesta ocasião, planta-se somente para o
consumo próprio, pois é muito dificultoso levantar leiras no barro alagadiço. Na
seca, o barro ressequido torna-se impróprio à plantação, sendo esta possível
somente após abrir regos para a irrigação. Tratam-se de áreas de frágil
ecossistema, conforme já escrito neste trabalho, o que é agravado com as
atividades empreendidas pela exploração mineradora.
Os efeitos das atividades mineradoras ameaçam as tradicionais atividades de
plantação, de beneficiamento da cerâmica e cultivo do buriti, uma vez que o
uso de maquinaria pesada e dinamite provocam desequilíbrio ecológico,
comprometendo as nascentes de água potável e os brejos, importantes
celeiros para as pessoas que lá vivem. Ademais, as promessas de trabalho
para a população local não se concretizou, uma vez que as empresas utilizam
mão de obra especializada trazida de fora. Na área específica que abrange a
comunidade do Cercado, poucas terras foram vendidas, permanecendo a
antiga estrutura que predominava na década de setenta, apogeu do fluxo
migratório.
As propriedades nos domínios do Cercado são pertencentes aos seguintes
grupos familiares: família do finado Zé Maria, cujos herdeiros ficaram com as
propriedades das áreas embrejadas; família do finado Velho Nê e da finada
Alvina, que dividiu suas terras com os filhos que migraram para o Mato Grosso.
114
Estes por sua vez cederam o usufruto em benefício da família de Nia e
Mariinha que ficaram com as roças onde se situa o sítio rupestre da Pedra
Furada, além de áreas com nascentes e corredeiras; família de Dazinha, viúva
de Martinho e que também se beneficiou de parte das terras deixadas por
Alvina, além de outras propriedades que foram compradas recentemente; há
também a família de Domingos, proprietária das terras mais distantes, nas
imediações da trilha de acesso ao Cercado; já a família de Geraldo ficou com
as terras à margem direita na mesma trilha, incluindo parte da serra. Há
também aqueles residentes na cidade de Oliveira dos Brejinhos que adquiriram
propriedades com o intuito de fazer plantação de cana-de-açúcar para a
produção de cachaça e derivados.
O modo como beneficiam a terra tornou possível a sobrevivência no lugar,
baseando-se na relação de troca, em que o proprietário cede a terra e ajuda na
plantação e na colheita, dividindo meio a meio o que foi produzido. Nestes
casos normalmente a colheita serve apenas para subsistência das famílias
envolvidas, não sobrando excedentes para a comercialização. A própria lida na
casa de farinha não é possível de ser empreendida sem a participação de um
número razoável de pessoas. O que por um lado trouxe a união do grupo, por
outro contribui para o acirramento dos ânimos em situações conflituosas,
evidenciadas através de brigas, discussões e agressões.
O episódio a seguir foi descrito na dissertação de mestrado
142
de minha
autoria, evidenciando a importância do trabalho envolvendo o grupo como um
todo, o que facilita o manejo, aumenta a produtividade e mantém a motivação
das pessoas.
1.1.
A LIDA NA CASA DE FARINHA: A FORÇA DO EMPREENDIMENTO COLETIVO
A lida na casa de farinha é comandada pelas mulheres que fazem questão de
mostrar as especificidades da culinária local: beiju de tapioca recheado de coco
142
Myrt Thânia de Souza Cruz. Uma História de Alijamento do Povo: análise psicossocial da
trajetória de implantação e interrupção do Programa Cidades Saudáveis na Chapada
Diamantina. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Psicologia Social da PUC/SP, 2001.
115
e assado nas palhas de bananeira; beiju de massa, bem sequinho e salgado e,
a puba, responsável pelo preparo de vários alimentos, principalmente
adicionada ao leite ou simplesmente à água, para fazer mingau para os bebês,
além de bolos, cuscuz e outros pratos.
“O trabalho segue bem intenso, apresentando um ambiente de troca: enquanto raspam a
mandioca, as mulheres cantam as ladainhas, as crianças ajudam também neste processo de
raspagem. Aos homens cabem as tarefas mais pesadas, como arrancar a mandioca do chão e
transporta-la nas bruacas com os jumentos até a casa de farinha, seguram firmemente os
braços pesados da roda que move as engrenagens que transformam a mandioca em massa
para o preparo da farinha.”
A divisão das tarefas segue o critério gênero e idade e a partição dos produtos
atende num primeiro momento àquele que beneficiou a roça de mandioca,
depois o dono da casa de farinha e finalmente aqueles que ajudaram na lida:
“Essa farinha que estamos torrando hoje é de João de Romana. Aí nessas horas todo mundo
ajuda, porque ninguém sabe do dia de amanhã. Hoje é por ele, amanhã será por nós. Aqui
ninguém tem dinheiro para pagar dia de serviço de ninguém não. Aí a gente se junta e cada um
ganha alguma coisa. Emília vai levar um pouco de tapioca que Bento vende na feira no Sábado
e aí já livra um dinheirinho. Compadre Chico faz uns beijus pros meninos pra tomar café de
manhã cedo. Eu levo um pouco de farinha que a minha já está bem no fim. Aí é assim que a
gente vive”
143
Quando as pessoas disponíveis para o trabalho não são encontradas em
número suficiente no Cercado, pessoas de fora do lugar são chamadas para
auxiliar. Muitas encontram nessas atividades uma forma possível de conseguir
alimentos em tempos de escassez.
“Aqui pra gente plantar, a gente depende dos outros, se vai limpar a terra também. A gente já
acostumou trabalhar assim. Ninguém aqui pode trabalhar sozinho, não! A gente briga, tem
gente aqui que eu já fiquei até de mal quase um ano, mas depois a gente tem que voltar a
tratar aquela pessoa, senão como é que a gente vai viver nesse ermo? Aqui a terra é bem
dividida e cercada, ninguém se mete na terra dos outros não. A terra minha é minha! A de Nia
é de Nia. Mas na hora de trabalhar eu ajudo ele e ele me ajuda. Isso aí já é de outrora. Os mais
velhos trabalhavam assim e aí a gente também trabalha assim”.
Embora se trate de um grupo relativamente coeso em termos de trabalho na
terra e acesso aos recursos que ela produz, o que homogeneíza de certo modo
o nível econômico das pessoas, existem discrepâncias evidenciadas nos
últimos anos através do acesso aos recursos públicos viabilizados por
representantes do poder público como vereadores, por exemplo, que
beneficiam alguns em detrimento dos outros, fornecendo-lhes acesso a
serviços e bens que o grupo não dispõe o que acaba acirrando disputas
143
L. J. R., 42 anos, morador do Cercado.
116
internas. E mesmo não havendo um estudo sistemático sobre estes
empreendimentos realizados de forma coletiva, as evidências da lida diária
apontam não só para a eficácia do processo produtivo como forma de
aumentar a produtividade do grupo, como também para a permanência da
memória coletiva do lugar, auxiliando na preservação dos conhecimentos
acumulados pelo grupo e na perpetuação dos principais rituais e festejos, o que
não significa afirmar que se trata de um grupo fechado em suas tradições, mas
que está em interlocução com outros sistemas que ocorrem no restante do
país, principalmente em São Paulo, cujas relações de troca e reciprocidades
permanecem vivas através de parentes, amigos e para aqueles que
eventualmente viajam para lá e voltam para o Cercado.
Os moradores contam que até meados da década de oitenta poucas pessoas
sabiam ler e escrever, sendo que estas aprenderam em outras localidades.
Havia uma pessoa que lia e redigia cartas, lia bula de remédio e documentos
importantes. Os problemas de saúde eram resolvidos a partir do conhecimento
do curador, feiticeiro e da parteira. Casos graves eram transportados para a
sede do município usando a montaria de animais, percorrendo a íngreme trilha
de cerca de 30 quilômetros na serra. Lá na sede eram submetidos aos
cuidados do único enfermeiro. Não havia médicos disponíveis no município.
2. SOBRE RELIGIOSIDADE E SISTEMA DE CRENÇA
O Cercado é marcado pela crença no sobrenatural, mesclando elementos do
catolicismo popular com a religiosidade de matrizes africanas aportadas em
localidades da Chapada Diamantina. Uma mescla de rituais medievais
advindos dos portugueses adicionados à presença do feitiço como elemento
principal de cura, devoção e malefício faz do Cercado uma localidade peculiar,
onde livuzias
144
, seres míticos, assombrações, possessões e demônios
habitam todos os cantos, influenciando o ciclo da natureza, ditando o ritmo das
plantações e colheitas.
144
Na região não há uso do termo assombração. Usa-se o termo livuzia para se referir a
assombração, entidades mágicas, alma penada.
117
Relações sociais, amizade, namoro e casamento são tecidas a partir do fio
condutor do sobrenatural, ora consultando o “curador”, o “feiticeiro” da região,
ora valendo-se de rezas e rituais dos mais velhos para que a relação ou troca
se concretize. Há quem afirme que antes mesmo de pedir uma pessoa em
namoro, deve-se fazer a consulta para se certificar de que vai dar certo. Usa-se
deste expediente para todas as ocasiões: na busca da cura quando alguém
está enfermo; no consolo da perda em caso de morte de familiar ou alguém
querido; na incrementação da economia quando alguém vai empreender algo
novo, como uma roça a ser beneficiada ou um garimpo longínquo; na bênção
de uma união nova, mesmo para os casais que não se casarão no cartório; no
pedido de vitória para um candidato de sua preferência; para tirar alguém do
caminho, em caso de empecilhos; para “amarrar o rastro” de um desafeto; para
fazer justiça, devolvendo o mal que alguém fez em dobro, como no caso de um
crime ou ato grave. Os múltiplos usos do feitiço servem a propósitos de
atualização do acesso a bens e serviços restritos, como o direito de usufruir
uma roça, ganhar uma demanda por terra, vencer uma disputa por mulher.
Além disso, oferece benefícios que os serviços públicos deveriam oferecer,
mas não o fazem: não há escolas, água encanada, serviços de saúde e
socorro básico. Nesse contexto, a religiosidade passa a ser fundamental na
manutenção dos vínculos sociais, na produção e reprodução da cultura
material e imaterial da comunidade, além de permitir a expressão de
subjetividades próprias aos que vivem nesse relativo isolamento geográfico.
Gestada a partir do arcabouço das três matrizes de povoamento do espaço
semi-árido da Chapada Diamantina, a religiosidade apresenta-se como ponto
crucial na vida das pessoas. Os cerimoniais de cura invocam elementos da
cultura africana, ao lado de traços da religiosidade portuguesa, através de
rezas, ladainhas, loas e culto aos Santos e Santas do Catolicismo,
apresentando também práticas de rituais indígenas, na figura central do
feiticeiro, importante conhecedor do poder curador da natureza. A religiosidade
está fortemente marcada pela presença dos elementos naturais, como plantas,
pedras e animais, utilizados em rituais de cura, invocação de entidades
protetoras e santos que atuam sobre a natureza, como no ato de fazer chover,
por exemplo. As descrições a seguir procuram contemplar aspectos da
118
religiosidade, resgatados a partir da memória de seus moradores, ora
apresentando a atualidade, ora rememorando passado recente ou distante.
No Cercado até o início da década de setenta, Justino era o procurador de
todas as festas de Santos e Santas. Conforme já descrito, Justino teve que
migrar para Mato Grosso em busca de trabalho e mais precisamente fugir da
grande fome que afugentou parte dos moradores em meados da década de
setenta. Ele era a figura central no processo organizativo dos cerimoniais,
festas e festejos da localidade.
“Ele tinha uma missão. Tinha que cumprir a missão senão ele ficava doente. Justino era o
homem mais devoto que tinha pra esses lados. Ele herdou isso da Velha Virgilina que criou a
Velha Alvina, mãe dele. A Velha Virgilina lhe ensinou tudo. Ele tinha muita devoção e tinha
missão com Santa Luzia, São João e São Gonçalo. E ele festejava todos. Ele vivia para isso.
Trabalhava, arrecadava leilão, fazia festa, vendia doce e sabão de decoada para juntar dinheiro
pros festejos. Na festa de Santa Luzia acontecia muitos festejos: primeiro tinha a procissão que
vinha da Tapera, da casa do procurador da festa que era geralmente Cilidone, para o Cercado
no altar de Santa Luzia que ficava na casa dele. Era de tarde e o povo vinha de toda a
redondeza para a procissão. Ele não seguia a procissão porque preferia ficar no Cercado para
receber o andor da Santa. Ele gostava de ver aquela multidão chegando com as velas na mão.
Ele mesmo fazia as velas e as roupas e todos os enfeites da Santa. Ele ia ao mato caçava a
mandassaia para tirar a cera porque só servia cera de mandassaia. O mel ele guardava para
fazer remédio. Ele mesmo fiava o algodão e fazia os pavios, enrolava os pavios na cera da
mandassaia e aí enrolava num papel colorido que ele mesmo tingia com açafrão e dava para
cada um segurar uma vela. Chegando perto eles acendiam as velas porque já estava na boca
da noite. Ele fazia o andor de Santa Luzia de pau de buriti e enrolava com tecidos que ele
comprava em Brejinhos. O andor era carregado por quatro moças virgens vestidas igualmente
uma com a outra. Quando chegava na boca da estrada era saudado com uma salva de foguete
e olé viva. Levava para o altar e começava a ladainha de Santa Luzia. Era a reza certa. Depois
tinha o bendito de Santa Luzia, só com cantos. Por volta das sete da noite tinha o reis da Santa
ao pé do altar, o puxador de reis era Leandro e seu Gracinha. Era um reis muito animado.
Quando acabava o reis começava o leilão da Santa e quem gritava o leilão era Bernadino e
Chico Cachola. Todo mundo dava leilão pra Santa. Justino passava meses juntando leilão e
quando chegava bem perto do dia, as pessoas davam doces, bolos, beiju, galinha e outras
coisas. Tinha também os mordomos de Santa Luzia e uma lista de juízes. Bernadino subia num
banco alto e lia a lista dos mordomos e juízes para o ano seguinte. As pessoas ficavam
querendo ser juízes e mordomos. Os juízes tomavam conta da festa, os procuradores
providenciavam os leilões, os tocadores e a comida. E os mordomos ajudavam nos leilões e
em tudo mesmo. Faltando oito dias para a festa, Justino saía de casa em casa recolhendo as
esmolas para o leilão: era rapadura, farinha, carne e frutas. Ele engordava porco, galinha e
ovelha para matar pra dar comida pro povo nesse dia. Vinha gente de longe”
145
.
O trabalho da memória invoca um tempo em que a religiosidade era intensa,
centrada nas mãos de Justino, mas que dependia do trabalho do grupo como
um todo, envolvendo pessoas da localidade e de localidades vizinhas. Por
exemplo, Bernadino é morador da Tapera, assim como outros que faziam o
145
E. L. S., 51 anos, moradora do Cercado.
119
papel de juizes ou mordomos. Os juizes eram pessoas importantes que
auxiliavam o procurador da festa tanto na logística da festividade como nas
rezas, ladainhas e cânticos. Tratava-se de pessoas cuja religiosidade e fé eram
inabaladas, assim como a conduta pessoal de cada um deles dentro e fora dos
domínios da localidade. A obediência às regras sociais, assim como a
conservação da moral e dos costumes tornavam-se condição essencial para a
participação nas festividades nos postos de organizadores, a saber, na
hierarquia: procurador da festa, juizes e mordomos.
“Justino também festejava São João, saltava fogo, fazia fogueira. Os tições e as capelas eram
guardados pra usar em dia de tempestade. Porque você sabe que em matéria de chuva de
vento, de fogo e assombração, não tem nada igual. É só usar estas coisas que passa. Tem que
rezar também, não adianta querer que uma chuva de vento passe se não orar pra São José
que faz chover, faz ventar e faz parar. A fogueira ele tirava uma árvore quase morta, mas com
muitos galhos e aí ele pendurava as prendas. Era só coisa boa: tinha rapadura, cana, manga,
mangaba, corte de tecido, avoador, brevidade, peta e era muita coisa. Ele ia juntando as coisas
bem antes e aí ele fazia a festança. Enquanto a fogueira queimava, ficava um enxame de
menino saltando fogo, assando batata e abóbora e os mais velhos crismando na fogueira,
enquanto outros saltavam fogo. Lá pelas tantas, apareciam os caretas que eram dois: um
vestido de mulher, bem desengonçado, com máscara preta, pintada de carvão e os dentes
eram de sementes de laranja, com um lenço amarrando na cabeça, usavam uma capa preta e
uma saia grande. Os caretas já saíam de dentro de casa dando chicotadas nos meninos, era
um chicote de três pontas. Era um vestido de homem e outro vestido de mulher, mas os dois
eram homens. Aí eles faziam graça, brincavam de namorar, beijavam os dois, corriam atrás do
povo e só via correria, divertindo o povo todo. Quando a fogueira já estava pra cair todo mundo
caía em cima. Aqueles mais fortes conseguiam pegar o que queriam. Os outros ficavam com
os restos, mas era bom do mesmo jeito. Aí quando acabava a fogueira tinha o samba e o
sanfoneiro. Eram duas latadas, duas festas. A roda de samba com os reiseiros, Seu Zé Maria,
Bernardo Preto, Leandro, Teodoro de Maria de Reimunda, Daliberto do Mane Gome e outros
que nem me lembro. Tinha a chula de Leandro que quando estava lá pro fim da festa eles
cantavam:”Adeus Joana, Adeus, Adeus, Adeus Joana que já vou me embora”. Aí o outro
respondia: “Adeus Seu Zé, adeus, adeus, adeus Seu Zé até uma hora”. Tinha outros dizeres,
mas não me lembro. Na outra latada ficava o sanfoneiro cantando, tocando e comendo poeira.
Os mais novos gostavam de dançar um forró lascado. Na latada do forró ficavam aqueles mais
modernos que queriam namorar e aí as mães e os pais ficavam vigiando as filhas
146
”.
Para os moradores do Cercado, a Roda de São Gonçalo é um cerimonial da
maior relevância, cuja tradição remonta aos primeiros moradores do lugar.
Composta por uma complexa dança, cada roda dura cerca de uma hora e
meia, sendo que cada vez que alguém resolve dançar uma roda, outros
moradores também aproveitam para pagar suas promessas dançando até dez
rodas por noite, o que é extremamente cansativo para dançarinos e tocadores.
Mas estes de nada se queixam, sentem que estão cumprindo uma obrigação.
Cada vez mais o número de pessoas habilitadas para dançar a roda se rarifica.
146
M.L.S., 57 anos, moradora do Cercado.
120
Dançar uma roda como foi dito não pode ser feito por qualquer pessoa.
Existem regras rígidas, que se desrespeitadas são punidas com severidade
pelo próprio santo através do ato de cair. Quando alguém cai numa roda, pode
significar que a pessoa desrespeitou São Gonçalo e este a castigou. Assim, a
pessoa passa a ser vista pelo grupo como alguém de pouca confiança. Dentre
as principais regras para que alguém possa dançar uma roda de São Gonçalo,
destaca-se: se moça, ser virgem; se mulher casada, ser fiel ao marido; se
homem casado, não beber cachaça pelo menos vinte e quatro horas antes; se
velho, não “botar feitiço” em ninguém, dentre outras.
“A Roda de São Gonçalo é a promessa mais séria que alguém pode fazer. O compromisso com
São Gonçalo não é fácil de pagar. Para você mandar dançar uma roda você tem que ter muito
preparo. Hoje em dia são poucos que sabem dançar a roda, mas ainda tem. Minha mãe tinha
uma promessa que se ela morresse sem botar essa roda ela ia dar um trabalhão pra gente.
Levou anos em São Paulo juntando uns troquinhos, preparando as coisinhas pra mandar
dançar a roda. Ela veio se preparou e aí muita gente aproveitou a roda dela pra também
dançar as suas. Só as moças virgens e as mulheres casadas é quem podem dançar. Os
rapazes solteiros que são direitos e os homens casados que não pulam o mourão. O Santo
vigia bem. Com ele ninguém engana. Se a moça diz que é casta e já for mexida, aí o bicho
pega. É batata: é só dançar e cair. São Gonçalo é um santo muito poderoso. A dança é muito
difícil e não é todo mundo que sabe dançar. Tem os dançadores e os tocadores certos. Cada
roda dura mais de uma hora e aí não pode parar. É um trocadilho nos pés do Santo e é nessa
hora que quem não for virgem, cai. E eu já vi foi muita moça cair. Depois é um falatório só!.
147
“Nos festejos o povo cai. Cai com santo que baixa, entidade que apossa. Numa festividade,
Zezão bebeu umas cachaças por lá e noite vai até que caiu. Caiu já com a boca espumando. O
bicho era feio. Dizia palavrão, desastrava, queria pegar menino, arribar saia de mulher e bater
em homem grande. Foi um labuto danado. Zezão correndo no mato que nem bicho brabo, os
homens correndo atrás, as mulheres rezando e foi aquele rapapá. Então alguém se lembrou do
cordão de São Francisco. Pegaram o cordão e com muitos galhos de arruda, jogaram Zezão
numa cama de pau-de-buriti e aí seu Gracinha, Bernadino e Venceslau e aí eles açoitaram
Zezão com o cordão de São Francisco que foi uma lida grande. No outro dia de manhã Zezão
amanheceu com a cara inchada de tanta chicotada com o cordão de São Francisco.Esse bicho
pegou Zezão, mas já pegou muita gente. É só meter a besta com ele. Só nunca pegou e não
pega é Dazinha porque tem o corpo fechado.
148
“Hoje os jovens não querem saber de santo, nem pensam em festa de santo, ninguém quer ter
trabalho com nada. Só querem é colher o maduro. Esses dias esse padre que está aí veio
rezar uma missa no São Bento. Aí perguntou: _ Quem é o padroeiro daqui? Eles responderam:
_ É Etevaldo. Eles nem sabem o que é um padroeiro, quem dirá dançar uma roda de São
Gonçalo?”
149
.
Fica configurada para a mulher, a fidelidade e a moral sexual como requisitos
fundamentais exigidos pelo santo. Tais normas sociais prestam-se à demanda
147
N. B. S., 62 anos, morador do Cercado.
148
D. C. C., 63 anos, moradora do Cercado.
149
Etevaldo é professor muito querido do povoado da Tapera,
121
masculina por fidelidade nas relações conjugais e controle da atividade sexual
feminina. Este controle vai para além da barreira moral imposta pela
religiosidade, encontrando nas práticas cotidianas da economia de subsistência
forte aparato de reprodução e manutenção das relações assimétricas:
masculino e feminino duelam numa queda de braço onde vence aquele que
consegue impor suas posições frente ao grupo. Para tanto, utilizam-se de todos
os expedientes possíveis, sendo mais forte o uso do feitiço como estratagema
para vencer.
Certa feita a finada Paulina teve uma inquisira com Justino e botou um feitiço nele. Ele era todo
ciligristido, trabalhador, festeiro, mas depois do feitiço, foi acometido por uma dor de dente que
não tinha remédio pra passar: de beberagem a remédio de farmácia, foi tudo e nada da dor
passar. Ele não podia comer nada e bebia água num canudo de mamona. Aí ele foi em Nego
de Ló
150
e ele disse que era feitiço e disse quem botou. Mas que só passava se ele quebrasse
a pauta, dando uma surra de pau de pinhão em quem tinha botado o feitiço. E foi o que ele fez.
Quando Paulina passou, ele dobrou o pau de pinhão nas pernas dela. Eles tinham brigado por
causa de animal na roça um do outro, essas bobagens assim, mas como ela era feiticeira,
resolveu botar um feitiço nele. Foi só dar a surra e a dor de dente passou”
151
.
Reunindo elementos da natureza, os moradores compõem rituais, preparam
festejos. A conexão tecida com a natureza possibilita a manutenção do grupo,
construindo subjetividades gestadas nesta interface. O que por um lado confere
materialidade aos rituais, trazendo elementos para a confecção dos artefatos
necessários aos processos ritualísticos, por outro, desperta e mantém o
mistério em torno de fenômenos cíclicos como chuva e ventos, assim como
produz conexões com aspectos específicos da natureza como as rochas e
grutas que compõem o sítio arqueológico, as fontes e nascentes, algumas
árvores específicas como o “pé de doido”, juazeiro frondoso situado à beira da
trilha. Acreditam que aquele que por ventura vier a pernoitar embaixo deste
juazeiro será tomado por uma insanidade incurável pela medicina. A loucura
contraída só pode ser combatida com rezas e orações específicas, ministradas
pelo “curador” da região.
Mesclas de conexões com a natureza estão presentes em todos os festejos.
Numa festa de Natal, por exemplo, onde se faz um presépio em homenagem
ao menino Jesus, todo o material necessário é retirado da natureza para a
150
Nego de Ló, o mais importante “curador” da região, falecido na década de oitenta, sua fama
continua fortemente presente nos dias atuais.
151
Depoimento de E.L.S., 51 anos, moradora do Cercado.
122
composição da lapinha, como são conhecidos os presépios. A lapinha é parte
integrante dos festejos do nascimento do menino Jesus e toda casa deve ter a
sua. A lapinha é armada cerca de duas semanas antes do Natal e somente é
retirada após o dia 06 de janeiro, quando se comemora o dia de Santo Reis.
Normalmente nesse dia faz-se uma grande festa onde o cortejo de reisado
passa de casa em casa, recolhendo contribuições. Reisado é uma das
tradições mais importantes dos sertões secos da Bahia, mas está em vias de
desaparecimento, assim como a roda de São Gonçalo está deixando de existir
por falta de pessoas que saibam realizá-las. Trata-se de cerimoniais bem
específicos cujo ritual demanda conhecimentos que são transmitidos oralmente
através das gerações. Atualmente, a juventude não mostra interesse em
perpetuar a tradição, do mesmo modo que aqueles que sabem fazê-lo não
crêem que a juventude tenha capacidade em conduzi-lo. Desse modo, seguem
sem perspectiva de que venham a mantê-los, a exemplo de outras cerimônias
que já desapareceram como as novenas de Nossa Senhora das Oliveiras, as
cavalgadas com seus rituais da argola, as vaquejadas e mesmo as novenas de
Santo Antonio. Não só no Cercado, mas em quase todos os domínios do semi-
árido da Chapada segue-se o fluxo de vida sem tecer um compromisso mais
profundo sobre as tradições.
Ainda hoje as lapinhas são partes constitutivas dos festejos de fim de ano.
Agora com menos elementos retirados das caatingas e mais itens vindos da
rua Vinte e Cinco de Março em São Paulo: as flores já não cheiram mais, pois
são de plástico, as pedras são substituídas por papel craft e o presépio já não é
de barro. Miniaturas de plástico, brinquedos e outros bibelôs vão
gradativamente substituindo artefatos antes produzidos artesanalmente pelos
próprios habitantes. Convivem lado a lado, o novo e o tradicional em igual grau
de importância, sem distinção ou reflexão.
Importante é, aliás, comemorar, festejar, cantar os santos. O foco que era dado
às rezas e aos rituais de oferendas e penitência, passa por uma metamorfose e
se reduz a uma festa em que as cordas das violas são substituídas por um
toque de axé ou forró eletrônico.
123
2.1. FEITIÇO E HISTÓRIAS DE ASSOMBRAÇÃO
Elementos sobrenaturais, mesclados com a religiosidade católica estão
presentes nos sistemas de crença da região. Esses sistemas de crença fazem
parte de uma série de elementos presentes no imaginário, compostos pelas
dimensões inconscientes em consonância com aspectos da realidade. Suas
sobreposições e manifestações estão presentes para além do tangível,
encontrando substrato nos territórios imaginários, onde quer que se
estabeleçam seus domínios.
A crença no sobrenatural parece percorrer parte das localidades caatingueiras.
Em algumas delas os elementos sobrenaturais aparecem de forma marcante.
No Cercado todos já ouviram, já viram ou conhecem alguém próximo que já
teve experiência com o sobrenatural. Os relatos a seguir representam crenças
nas entidades mágicas e demoníacas que cercam o imaginário local. Muitos
deles contendo elementos de contenção e regulação das normas sociais e
morais.
“ Moço, livuzia atrapalha muito a nossa vida por aqui. Tem noite que chega um de madrugada e
diz: essa noite na casa de fulano ninguém dormiu um pingo labutando com livuzia. Só quando
alguém dava um defumador é que a livuzia passava”
152
.
“Liberato filho de Joana, esse mesmo eu sei que morreu foi porque mandaram amarrar o rastro
dele. Foi caçar no tabuleiro, ficou uns dias pelo mato, tava com sede e no sol quente e aí
chupou uma melancia quente. Foi voltar de lá já com febre e cambaleando. Disseram que era
estupor, que tinha pegado um ramo, mas não foi nada disso. Ele tinha uma inquisira com um
fulano que não posso falar o nome e aí esse fulano mandou amarrar o rastro dele. Moço, esse
rapaz não podia dar um passo. O pé inchou que nem um pilão. Quase apodreceu e aí ele não
agüentou e morreu, mas o povo ficava falando também que ele morreu porque meses antes
achou uma cabeça com cabelo lá no cemitério velho, porque veio a enxurrada e desenterrou
uns defuntos e aí ele achou a cabeça e jogou na pedra que espatifou. Foi um barulhão. Passou
uns meses e aí ele adoeceu e morreu
153
”.
“Moço ali naquela serra tem mistério demais! Eu nunca vi livusia, o que vi mesmo foi uma bola
de fogo na serra. O sol já estava entrando e aí de repente vem aquele clarão, aquela bola de
fogo. Chamei Zezão e fomos ver o que era. Quando chegamos perto o fogo foi abaixando e
diminuindo, abaixando, abaixando atrás de uma moita e de repente sumiu. Pois no lugar
daquela moita ninguém tinha mais coragem de chegar perto. Esses dias os engenheiros da
mineradora foram lá, botaram uma máquina pra cavar no lugar. Disseram que tinha minério
bom, mas aí não demorou muito e a máquina quebrou. Quebrou que não funcionou foi nada e
aí eles desistiram. Eu não via livuzia, via um barulho de chave, via passada, via vulto, mas
acho que não era livuzia. Acho que era visagem, eu tenho esse dom de ver certas coisas, mas
coisas do cão ou do romãozinho eu não vejo não”
154
.
152
A.L.S., 38 anos, moradora do Cercado.
153
N. B. S., 62 anos, morador do Cercado.
154
N. B. S., 62 anos, morador do Cercado.
124
“Lá pela roça de Domingo tinha e ainda tem o porcão. Ele só ataca a gente certa. Gente que
fez coisa errada, que chamou a pelada ou fez pacto com o cão. Esses dias ele deu uma
carreira em Orlei porque dormiu com mulher dos outros. Eu mesmo não vi o porcão, mas ele é
um porco grande, alto e preto com os dentões. Quebra galho de caju, quebra galho de jatobá e
corre demais e se o camarada não tiver uma perna ligeira ele pega. Isso é velho! Já vejo o
pessoal contar do porcão desde que sou menino”
155
.
“Esse povo bebe umas cachaças e aí a coisa fica feia. Vão pros bailes montados no lombo
dum burro magro, eles mesmos tão magros de comer pouco e aí na beira das estradas vêem
livuzia. Volta pra casa e vêem livuzia debaixo dos pés de manguba, vêem livuzia nos córregos,
vêem em todo canto. Eu mesmo não vejo livuzia porque estou com Deus. Rezo demais. Rezo
pra todo tipo de Santo. Peço o livramento, faço minhas novenas e aí com o poder de Deus e a
água que eu trouxe da pia de batismo do Bom Jesus, eu guardo nesse vidro. Aí eu tenho o
livramento, mas eles que pensam em mulheres dos outros, que vivem na bebedeira, eles vão
ver livuzia”
156
.
Para resolver os problemas causados pela livuzia e assombração, existe a
necessidade da presença daquele capaz de lidar com elas. Mas esta é uma
tarefa para poucos, uma vez que os ensinamentos devem ser transmitidos
livremente pelo mestre ao discípulo de sua escolha, sendo que não cabe ao
discípulo a escolha de exercer ou não o ofício. Ser “curador” ou “feiticeiro” não
é uma escolha. Antes trata de ter sido escolhido, o que normalmente é
encarado como uma “bênção”, uma “dádiva” que é construída lentamente,
através de ensinamentos, recolhimento, orações e rituais específicos.
Atualmente Cristóvão é o mais importante líder religioso da região. Filho de Zé
Rodrigues, importante curador que transmitiu em vida seus ensinamentos ao
filho. Entretanto, Cristóvão não se denomina curador ou feiticeiro. Prefere ser
encarado como uma espécie de “mentor religioso” das pessoas que o
procuram em busca de ajuda. Trabalha com a doutrina espírita de Alan Kardec,
ensinando também os usos das ervas e plantas medicinais.
“Cristóvão
157
começou tocando sanfona. Quando era solteiro tocava sanfona. Vivia disso: um
convidava pra tocar num baile, outro convidava pra tocar numa festa de santo e pagava uns
mirreis pra ele. Ele foi tomando gosto e aí se tornou o melhor sanfoneiro dessa região. Mas
teve que deixar o ofício porque quando seu pai morreu ele herdou essa missão de Zé
Rodrigues:continuar ajudando o povo nas beberagem e nas oração. Ele começou assim:
rezava um, rezava outro, uma mordida de cobra aqui, um quebranto ali, uma dor de dente,
espinhela caída e hoje ele já faz operação invisível. O trabalho dele é muito diferente do
trabalho do pai dele. Não mexe com coisa da pintura do sujo. Só com coisa boa, ele tem uma
missão espiritual, essas coisas de espiritismo, mesa branca, né? Não entendo muito disso, mas
sei que é diferente. Vem gente de toda redondeza falar com ele. É só bater o olho, já diz o que
155
B.T.S., 74 anos, morador da Tapera.
156
B.T.S., 74 anos, morador da Tapera.
157
Cristóvão é atualmente o mais importante “curador” da região. Filho de Zé Rodrigues,
“curador” já falecido que até a década de oitenta, atendia a todas as localidades situadas em
cima das Serra do Cigano, Vereda e Retiro. Foi discípulo de Nego de Ló, o mais importante
“feiticeiro” da região.
125
a pessoa tem. Aí ora, reza, prepara as beberagens e aí a pessoa fica melhor. E ele não cobra
nada, mas a pessoa sempre dá um agrado que pode ser um frango, ovos, algum dinheiro,
peças de roupas usadas porque ele tem meninos demais e agora tem até neto. As filhas dele
estão parindo logo e nem casaram.Mas é assim mesmo. Eu sei que se não fosse ele nem sei o
que seria daquele povo pobrezinho”
158
.
Na hierarquia do poder conferido a um líder religioso, a figura o feiticeiro
encontra-se no topo. Dentre suas principais habilidades estão: o poder de curar
doenças físicas, espirituais e mentais; o poder de provocar a morte de pessoa
ou animal; o poder de “responsar” alguém, ou seja, quando uma pessoa é
roubada, o feiticeiro tem como saber quem foi o autor do roubo; o poder de
influenciar o pensamento e decisões dos outros; o poder de provocar chuva;
combater fogo e curar mordida de cobras, dentre outros. Num segundo plano
figura o curador, normalmente aprendiz do feiticeiro, cujos poderes são
menores do que o primeiro, mas também são considerados relevantes, como:
curar determinadas doenças físicas, espirituais e mentais; poder de tirar
quebranto; de influenciar as decisões dos outros, num nível menor; poder de
rezar animais quando doentes; poder de produzir remédios a partir de ervas,
raízes e plantas medicinais, dentre outros. Ao lado do curador, está o
macumbeiro, cujos poderes são parecidos, entretanto, cabe ao macumbeiro,
realizações que o curador não faz. Dentre elas:“amarrar o rastro” de uma
pessoa; arruinar uma plantação; provocar a morte de uma pessoa ou animal.
Para os moradores da região, o macumbeiro é uma figura enigmática, capaz
tanto de provocar “o bem” quanto “o mal”, o que acaba isolando a pessoa e
afastando-a das demais atividades do grupo. Uma mescla de preconceito e
medo povoa a relação entre as pessoas do lugar e o macumbeiro, visto como
alguém que “sabe o que você pensa”, é capaz de provocar-lhe o mal, caso não
goste de você. A correlação entre preconceito racial e medo do macumbeiro
também está presente em outros rituais que transmitem a religiosidade
africana. Nesta área específica da Chapada Diamantina os cultos oriundos de
cultura africana são tidos como algo que faz parte da “pintura do sujo”, ou seja,
algo demoníaco, portador do mal. Rituais africanos encontrados na região de
Andaraí, Lençóis e Mucugê como o Jarê, por exemplo, são banidos pela
população da Serra do Cigano.
158
B.T.S., 74 anos, morador da Tapera.
126
3. SOBRE O MODO DE VIDA, SOCIABILIDADE E CULTURA
O nascer e o morrer nas imediações das caatingas é perpassado por práticas
que, muitas vezes, confundem o observador de fora: celebra-se a vida, bebe-se
o defunto morto! Há que se celebrar estes acontecimentos!
O nascimento de uma criança é comemorado com muita cachaça, pirão de
parida e muita fofoca, afinal, a parturiente durante um mês recebe visitas que
trazem boas vindas para o recém nascido e também as novidades para a mãe
que, em período de resguardo, permanece confinada em casa, sem fazer
esforço. Muitas visitas ali chegam guiadas pelo desejo de comer o pirão de
parida, comida de sabor especial.
159
A dieta é seguida por cerca de 30 dias.
Com o decorrer dos anos, houve algumas alterações, principalmente em
relação ao tempo do resguardo: o que inicialmente era de cerca de 60 dias,
passou para 40 e atualmente fica em torno de 30 dias; entretanto, a lista de
proibições ou restrições continua quase inalterada.
Embora fiéis seguidoras das dietas e resguardadas de dissabores e
preocupações, para as mulheres gestarem uma vida e colocá-la no mundo nos
domínios das caatingas é algo complexo. Tanto os conhecimentos que cercam
a vinda de uma criança, quanto os saberes acerca das plantas, aves, árvores,
fornecem recursos para a manutenção do grupo. São práticas mantidas até os
dias atuais, pois além das famílias não poderem contar com a presença de
serviços básicos de saúde, tais práticas e usos produzem sentidos sobre o
viver, em grupos orientados para a comunidade.
Os cuidados dizem respeito à gravidez, ao momento do parto, do pós-parto e
ao aborto. Em cada um deles, as mulheres descrevem como atuar, evitando
159
A receita foi narrada da seguinte forma: “quando a mulher já fica sabendo de seu estado de gravidez,
os preparativos começam: primeiro ela tem que botar pra engordar muitas franguinhas e alguns frangos.
Eles devem ser bem alimentados, de preferência com milho mesmo e algum resto de comida. A farinha
também deve ser feita com mais cuidado: ela deve ser bem torrada e fina. No canteiro deve cultivar os
temperos que a mulher pode comer, porque afinal esse é um estado muito especial e não pode comer
nada reimoso. Aí quando chega a hora, a parentada deve iniciar os preparos do pirão de parida. Mata a
galinha e guarda a banha, ela vai servir para preparar remédios para a criança. A galinha é temperada
com sal, alho, cebola, açafrão, gengibre, coentro seco. Ela é cozida, muito bem cozida. Aí separa o caldo
dos pedaços. Com o caldo faz o pirão, colocando a farinha até ficar escaldada. Nos pedaços acrescenta
coentro e cebola verde.”
127
que a doença se instale. Dessa forma, podemos observar um discurso que fala
de uma prática preventiva. Baseadas na experiência, as mulheres sintetizam
como devem proceder na hora do parto: “um filho pra nascer depende da gente saber
respirar junto com ele. A mulher precisa ter calma. Não adianta se desesperar, chorar e gritar.
Tudo isso só faz aumentar a dor. A mulher senta em posição de parto, de preferência de
cócoras ou com travesseiros altos e aí vai respirando, rezando, rogando a Deus pela batalha
da vida que tem seu passo naquele minuto”
160
.
A primeira parteira de que se tem notícia nas imediações da Serra do Cigano
era a velha Luzia. Cega, era a melhor parteira da região, atendendo não só as
pessoas que moravam no Cercado, como também de povoados vizinhos.
Quando alguma mulher se incomodava para dar à luz, um garoto ou garota era
despachado num lombo de um jumento para ir buscar a Velha Luzia. A parteira
cega era então conduzida na garupa do jumento até a casa da parturiente que
ansiosa aguardava sua chegada para então aliviar-se de seu sofrimento. Ela
então, começava com suas orações. Trazia patuás e folhas específicas para a
ocasião. Mandava ferver chocolateiras de água, enquanto com sebo quente de
carneiro massageava a barriga da parturiente. Contam que ela, só de tocar a
barriga da mulher, sabia se ela teria um menino ou uma menina. Suas
previsões eram certeiras, não errando nunca. O parto era então conduzido e
outras ajudantes entravam em cena, cuidando da criança, cuidando da limpeza
da mulher e outras na beira do fogão cozinhando o pirão de mulher parida.
Estas mulheres eram iniciadas em seus ofícios logo cedo, por volta dos doze
ou treze anos, normalmente por suas avós. Muito raramente suas mães as
ensinavam, pois somente mulheres bem mais velhas é que podiam passar os
ensinamentos às mais jovens. Elas aceitavam sem retrucar o novo ofício,
sendo que muitas o encaravam como uma missão enquanto outras o viam
como uma obrigação da qual não tinham escapatória.
A parteira ocupa lugar de destaque na vida do povoado e vizinhanças, mas
isso não lhe confere privilégios pessoais, conforto, poder econômico ou algo
assim. Transmitido oralmente, o ofício de parteira vai se transformando,
agregando elementos novos, desfazendo práticas e criando novas formas de
160
C.T.S., 59 anos, moradora da Tapera.
128
ajudar a mulher a ter filho. No viver cotidiano, esta atividade é re-significada a
cada momento. O grupo social tem um papel fundamental no sentido de manter
vivos alguns ensinamentos e tradições passadas pelas parteiras. Talvez pela
ausência de assistência à saúde, sua presença é ainda hoje indispensável à
vida da coletividade.
“Isso é ofício de família. Aprendi com minha avó. Minha mãe não sabia pegar menino. Tinha
medo de sangue. Aí, quando eu tive meu primeiro filho, minha avó me chamou num canto da
casa e falou que ela não ia morrer em paz sem ensinar esse ofício para mim. Ela me mandou
fechar o olho e responder se queria ou não ser parteira. Fechei o olho e disse que sim. A partir
daí, começou o ensinamento. E era reza de todo o jeito. Eu decorava as rezas e de noite
cantava para ela, como se fosse uma lição. Aí quando apareceu o primeiro parto pra fazer foi
um Deus nos acuda. Era um tal de correr de lá pra cá. O sentido foi que eu nem sei como
consegui pegar aquela criança, mas ela veio ao mundo e foi forte demais”
161
.
A parteira é uma companheira importante para a grande maioria das mulheres.
Mesmo aquelas que podem e decidem ter o filho com médico ou enfermeira
têm um grande respeito pela parteira, porque é a ela que recorrem quando o
filho recém-nascido chora sem parar. Além de fazer parto, ela também acumula
atividades como rezar contra o mau olhado, mordida de cobras, dores variadas,
prisão de ventre, além de rezar por animais doentes.
Entretanto, esse ofício parece estar em vias de desaparecimento. As novas
gerações não têm mostrado interesse em aprendê-lo. Atualmente no Cercado
não há nenhuma mulher jovem que esteja passando pelo processo de
aprendizagem do ofício. A única parteira atuante é Dazinha que com cerca de
70 anos, já se sente cansada quando tem que se deslocar para realizar um
parto em localidades distantes. Ainda que se trate de um ofício feminino,
existem também na região alguns parteiros. São homens dedicados não só ao
trabalho de ajudar uma criança a nascer, mas também ao exercício da
medicina e odontologia popular.
3.1. MORTE E RITUAIS FÚNEBRES
Assim como o nascimento, a morte é um evento importante. Só que ao
contrário das alegrias trazidas pela vida, a morte normalmente é cercada da
161
V.T.T., 71 anos, moradora da Tapera.
129
dor da perda de um parente querido ou de um vizinho e amigo. O evento
merece celebração, a depender da natureza da morte e de quem é o defunto.
O padre José Artulino Besen em sua obra sobre os sertões do São Francisco,
narra uma encomenda de corpo:
“Na casa, o drama solitário. Eram três irmãs, velhinhas. Uma chorava. A outra, de voz grave
(depois me disseram com muita sutileza que não era nem uma coisa nem outra), a acalmava:
““fortaleza irmã!”” Na velha casa de adobe, piso de terra, entulhada de mais adobes, sacos,
sacarias e objetos de montaria... estavam sozinhas. Chegou a hora! ...Acheguei-me à Narcisa.
Numa cama de paus, couro de boi por colchão, recurvada, paralisada pelas dores, gemia os
mesmo ais que gemera ao longo de 76 anos...dei-lhe a absolvição. Quando recitou o sinal da
cruz, Narcisa gemeu e falou dolorosamente: ““padre, qual foi o pecado que eu fiz sem saber
pra não conseguir me benzer?”” Com mais esta dor, Narcisa foi insistindo até os olhos se
fecharem. Enquanto a vela ardia em suas atrapalhadas pelo rosário, mais uma vida de apagou.
Lá fora tudo igual: homens, mulheres, bêbados e crianças continuavam no seu nada fazer.
162
Assustado pelas práticas cotidianas nas caatingas, o catarinense Padre José
narrou nessa obra seus vários anos de trabalho nas comunidades de Oliveira
dos Brejinhos, Ipupiara e Brotas de Macaúbas. Com seu olhar de fora do lugar,
narrou ricas estórias em detalhes, algumas carregadas do espanto
característico daqueles que adentram as caatingas pautados nas referências
do sul e sudeste do Brasil. Narra inclusive algumas passagens sobre os
moradores da serra do Cigano, cujo ritual de encomenda do corpo sofreu
poucas modificações ao longo do tempo.
Os rituais fúnebres são preparados pela pessoa após alcançar certa idade,
algo em torno dos sessenta e cinco anos. A partir de então, começa a tecer
uma série de preparativos para o momento da morte: desde a confecção dos
trajes típicos até providenciar animais que serão abatidos na ocasião, servindo
de alimentação para os participantes do velório, além de armazenar provisões
como farinha, tapioca, milho, feijão e arroz. Muitas pessoas demoram quinze,
vinte anos se preparando para o momento que consideram importante. Mesmo
sem apresentar problemas de saúde, as pessoas se preparam, fazem
recomendações, ditam cartas e anotações que serão lidas na posteridade.
162
José Artulino Besen. Nos Sertões do São Francisco – recordações do mundo sertanejo.
Passo Fundo/Rio Grande do Sul: Gráfica e Editora Pe. Berthier, 1993. Página: 19.
130
Morando em São Paulo havia cerca de 20 anos, a velha Joana, como era
conhecida, já preparava sua morte havia 10 anos: quando fora passear em sua
terra, no povoado do Cercado, mandou sua comadre Chica preparar-lhe a
mortalha. Comprou tecido azul cor do céu, bico de renda, mandou forrar
botões, comprou um terço novo, benzido pelo Frei Luís
163
e uma imagem
pequena de Santa Luzia. Trouxe para São Paulo, mas temia morrer por aqui.
Tinha como sonho ser enterrada na sua terra, um cemitério cheio de mato no
povoado da Tapera, onde estão enterrados seus pais e seu filho Liberato que
morreu vítima de feitiço. Todos os anos ela tinha a esperança de ir morrer na
Bahia. Arrumava muitos sacos de roupas usadas e lá ia ela para o Cercado.
Todo ano ela dizia que esta seria sua última viagem. E foi assim por mais de
dez viagens. Tempos atrás sofreu um aneurisma cerebral, vindo a ficar
internada por três meses. Saindo de lá, espalhava com muito orgulho que os
médicos atribuíram sua ótima recuperação à sua dieta à base de buriti e
mingau de puba, mas o fato é que ela se recuperou muito bem e viveu por mais
oito anos, quando em 2002 veio a falecer de enfarte.
Joana já havia encomendado seu caixão, quando um filho a repreendeu
severamente: “mãe, aonde é que a senhora vai guardar esse troço?” Morando num
quarto e cozinha, não havia muito espaço nem para as pessoas, quem diria
para um enorme caixão de madeira. Desse modo ela desistiu da idéia, mas
comentava com pesar: “não queria dar trabalho pra ninguém, já queria deixar tudo aqui
guardadinho”.
Preparar para a morte num centro urbano como São Paulo, requer
adaptações: não se compra em qualquer esquina uma mortalha; é necessário
preparar alguém para realizar a cerimônia. É necessário investir o tempo e a
dedicação de uma pessoa disposta a aprender as rezas e ladainhas; não se
pode armazenar um caixão em casa, sem que cause transtornos.
164
Seu velório
165
teve que ser realizado aqui em São Paulo, em virtude da família
não dispor de recursos para transportar o corpo para a Bahia. Como faleceu
em casa, seu corpo foi para um hospital público para os procedimentos de
163
O Bispo da Barra Dom Luís Cappio é conhecido desde a década de setenta na região.
Muitas pessoas lhe atribuem milagres e poderes de santo.
164
Narrativas fornecidas por E.L.S., 51 anos, filha de Joana.
165
Estive presente ao velório.
131
rotina. Dispensado da autópsia, seu corpo descansava no banco de cimento do
hospital. Todos aguardavam a presença do pessoal da funerária. Entre muito
choro, gritos de desespero e saudade reuniam-se filhos, netos e outros
parentes. De repente alguém lembra da indumentária, a mortalha e todo o
aparato preparado em vida para esse momento especial. Mas retruca uma filha
evangélica: “para que essa palhaçada, ela já está morta! Agora é um corpo!” Essa frase
causou um grande reboliço no ambiente. Alguns esconjuravam! “Que absurdo!
Como é que fala assim com a mãe que em vida deixou tudo preparado: a mortalha, a santa, as
orações e até o terço”.
Muita discussão, quando de repente, um grande susto:
ouve-se um grito! E uma entidade se apossa de uma das filhas:
é o finado
Justino”!
Reconhece alguém. A pessoa apossada pela entidade começa a falar
com voz diferente: “será que é preciso eu estar aqui agora para vocês respeitarem a
vontade de Joana?”.
Todos se assustam e ficam quietos. A entidade dá seu
recado e vai embora. Todos partem rumo à sentinela.
Nesta noite ninguém dorme. É preciso fazer sentinela para o defunto. Alguém
corre na casa e pega a indumentária, guardada numa mala velha embaixo da
cama. Uma das filhas se encarrega de vestir a mãe. O corpo é então levado
para o velório. Lá passa a noite. As filhas levam garrafas e mais garrafas de
café, bolo, salgadinho. Revezam-se para a vigília ao corpo. Nessa hora todos
que estão na presença do corpo choram. O tempo não pode ser observado
nessa ocasião: dia e noite são iguais. Já passa das onze da manhã quando
alguém requisita a presença de um padre.
Mas onde a gente arranja padre por aqui?”
Uma hora depois, lá estava o padre para realizar a missa de corpo presente e
encomendar a alma da finada. Todos se reúnem em torno do corpo. São mais
de cinqüenta pessoas entre parentes, amigos, conhecidos, todos conterrâneos.
Posteriormente, foi necessário fazer uma “vaquinha” para pagar o velório, que
havia saído muito caro, pois, segundo o administrador do local, nunca um
corpo tinha permanecido por tanto tempo naquele velório. A chamada sentinela
costuma ser um evento que tradicionalmente dura 24 horas. Durante esse
tempo todos fazem visitas e choram o defunto, principalmente se o finado é
possuidor de bens. Ainda em vida, reserva-se um animal para a sentinela. O
hábito de servir alimentação e bebida é muito comum, tornando a sentinela um
132
evento bem concorrido: “ mal o dono fecha os olhos, apagam os do animal e começa a
cerimônia regada por muita carne, arroz, feijão, farinha e cachaça”
166
.
Esta prática vem se tornando cada vez mais rara. Nas sedes dos municípios,
por exemplo, ela é pouco utilizada. Servir alimentos nessa ocasião tem mais a
ver com a razão prática. Normalmente as pessoas residem distantes umas das
outras, chegando a ser vários os quilômetros que as separam. Com o intuito de
manter todos ao redor do defunto, a alimentação e a bebida servem muitas
vezes como estímulo para que lá se permaneça.
Em todas as localidades estudadas durante a pesquisa, há um cemitério,
exceto o Cercado que enterra seus mortos no cemitério da Tapera,
comunidade vizinha. Não se pratica mais a cova solta ou em fazendas, como
era costume. Agora, todos são enterrados com o conhecimento da sede que
faz o controle. Estas medidas foram tomadas em virtude das fraudes no
sistema de aposentadoria, quando muitas famílias não informavam a morte de
um aposentado, visando continuar a receber o benefício. Mesmo nas
comunidades mais isoladas, esse registro é feito. A morte de “anjos”, crianças
recém-nascidas, que até pouco tempo eram sepultadas em caixas de sapato,
hoje são controladas tanto pela Pastoral da Criança quanto pelos agentes de
saúde.
O cerimonial da morte é cercado por cuidados específicos que ficam a cargo
dos companheiros da comunidade. Para os familiares essa não é uma hora de
resolver problemas, mas de chorar a perda. Há ainda, as companheiras que
choram os defuntos: são sempre as mesmas e se encarregam de rezar as
ladainhas e os cânticos, chorar pelo defunto, mesmo que ele tenha sido em
vida um desafeto seu.
O evento da morte está marcado pelo controle do Estado e dos grupos
intermediários. Já o controle do nascer nem sempre é feito. Ainda hoje muitas
famílias deixam de registrar seus filhos. A prática tem se tornado mais rara, por
166
José Artulino Besen. Nos Sertões do São Francisco – recordações do mundo sertanejo.
Passo Fundo/Rio Grande do Sul: Gráfica e Editora Pe. Berthier, 1993. Página: 18.
133
serem as famílias agora beneficiadas pelos programas de renda mínima: bolsa
escola, renda família, cestas básicas, tíquete, fome zero e outros.
4. REFLEXÕES SOBRE O PROCESSO DE DESARTICULAÇÃO E DISSOLUÇÃO DA
COMUNIDADE DO
CERCADO
Ao longo de sua história de povoamento, a comunidade do Cercado foi tecendo
suas dinâmicas de vida baseadas em profundo diálogo com a natureza,
retirando dela tudo de que precisava para sua sobrevivência e continuidade.
Esta interação permitiu que as subjetividades fossem sendo forjadas ao longo
do trajeto de cada indivíduo dentro do grupo. A intersecção com a geografia do
vale do Cercado e a natureza do isolamento inscreveu estes indivíduos na
particularidade de convivência com o semi-árido chapadeiro, assim como na
eleição da natureza como matriz básica, sustentáculo da vida local,
constituindo modos de vida em que se coadunam religiosidade, magia e feitiço.
A crença nos elementos naturais e a centralidade nos tempos da natureza
constituíam, por assim dizer, os pontos de ancoragem das subjetividades
individuais que reverberavam no grupo comunal. A personificação de
características como a crença na magia do mundo colocava os indivíduos em
constante dependência dos ciclos naturais, segundo os quais organizavam a
estrutura da vida comunal. A religiosidade fortemente marcada nos rituais de
feitiço, e na dependência dos conhecimentos acumulados pelo feiticeiro e
curador, estabelecia as conexões primordiais com a crença no poder das
plantas medicinais e nos conhecimentos da mágica necessária para a
manutenção da comunidade. Os rituais e as práticas religiosas corroboravam a
necessidade dessa magia como condição da inviolabilidade das tradições
locais. Jamais questionavam essas práticas ou sugeriam sua ineficácia.
As tradições, magia, crenças e feitiços eram a garantia de cura dos males do
corpo e da alma. O Cercado permaneceu assim e tudo ocorria dentro do
esperado pelo grupo. Mesmo em tempos de escassez, quando as secas
castigavam, a fé permanecia, a crença de que uma nova fase se aproximava e
não havia por que duvidar das tradições. A vida foi se pondo à prova na
134
cotidianidade. Com o espaçamento das estações chuvosas cada vez se
intensificando, um após o outro foi se retirando em busca de condições de
sobrevivência. Aqueles que ficavam permaneciam inabalados em sua fé;
mesmo com toda a sorte de dificuldades, permaneciam firmes em seu
propósito de guardar as tradições.
Em uma comunidade pequena, sem acesso aos serviços básicos de saúde,
educação, água encanada, energia elétrica
167
, transporte, a dimensão mítica
aproxima-os cada vez mais. No final da década de setenta, com a
intensificação do fluxo migratório, o Cercado começou a perder figuras centrais
que mantinham as práticas religiosas e as demandas dos santos. Aqueles que
gradativamente foram substituindo os líderes, tentavam a todo custo manter
rituais e festejos. Durante algum tempo conseguiam, mas as dificuldades
impostas pelas condições materiais iam, gradativamente, atualizando estas
práticas frente à nova realidade que se impunha a cada momento. Algumas
modificações foram incorporadas, e em determinado tempo ocorria o processo
de ancoragem e subjetivação
168
.Nenhuma mudança muito brusca foi narrada
pelos moradores, mas eles sentiam que as mudanças mais sutis poderiam
significar uma viagem sem volta; aqueles que retornavam de suas andanças
pelo Brasil traziam novos elementos que igualmente iam se incorporando às
práticas antigas.
Todas essas mudanças, entretanto, não significaram rupturas na ordem
estabelecida. Antes significavam um rearranjo, uma nova roupagem. A crença
167
Em março de 2006 a energia elétrica chegou à serra do Cigano, beneficiando as
comunidades do Cercado, Tapera e São Bento.
168
Ancoragem aqui é utilizada na acepção formulada por Serge Moscovici em que consiste na
integração cognitiva do objeto representado. É tudo aquilo que permite que o conhecimento
novo seja incorporado ao conhecimento já existente. As representações já disponíveis podem
funcionar também como sistemas de acolhimento de novas representações. De um modo
geral, o processo é responsável pelo enraizamento - ou, como o próprio nome indica
ancoragem social da representação e de seu objeto. O autor considera que a classificação dá-
se mediante a escolha de um dos paradigmas ou protótipos estocados na nossa memória, com
a qual comparamos então o objeto a ser representado. O processo de ancoragem supõe três
sub-processos: 1 - como se confere sentido ao objeto; 2 - a instrumentalização do saber,
modalidade que permite compreender como os elementos da representação não só expressam
relações sociais como também contribuem para constituí-lo e 3 - a integração da novidade ao
pensamento pré-existente. Ver: Serge Moscovici. Introducion a la Ppsychologie Sociale. Parias:
Libraire Larousse, 1972. e
Denise Jodelet. Loucuras e Representações Sociais. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
135
na magia do mundo permanecia como traço marcante na dinâmica de vida das
pessoas; reverberava para além das fronteiras do Cercado, se estabelecendo
em outros territórios para onde quer que migrasse um cercadense. Este
processo não gerava grandes mudanças. Mas, em meados na década de
noventa, começam a ocorrer corrosões, como se algo fosse minando
gradativamente a magia, como se houvesse a perda do encantamento do
mundo. O que ocorreu afinal, por que esta crise nos sistemas de crenças?
Não se trata aqui de encontrar um marco causador da crise, nem mesmo de
identificar agentes responsáveis pelo processo. Trata-se de refletir sobre como
os moradores do Cercado vivenciaram e ainda vivenciam este processo: a
perda da magia do mundo. Para tanto, basta um olhar cuidadoso sobre a
sociedade atual, os valores da modernidade que ultrapassam as fronteiras do
vale do Cercado, espalhando-se como uma densa névoa pela serra do Cigano.
Estes processos de mutação estão diretamente ligados às condições impostas
pela modernidade a grupos tradicionais que vivem em relativo isolamento
geográfico. A natureza do isolamento não impõe a estagnação de costumes e
modos de vida. Ao contrário, os determinantes da geografia do vale do
Cercado, ao lado da constituição histórica de processos como o mandonismo
dialogam com a construção das subjetividades forjadas no processo de
povoamento da região. Desde a criação dos primeiros núcleos humanos na
serra do Cigano, por volta de meados do século XVIII, a área experimenta
processos de mudanças a partir do fluxo de viajantes, tropeiros e garimpeiros
que buscavam alcançar o Rio São Francisco. Talvez por ter sua constituição
baseada neste fluxo de pessoas, as comunidades que se formaram a partir daí
solidificaram modos de vida que garantiam sua permanência como grupo
comunal. A passagem dessas pessoas não significava ruptura na constituição
do seu ethos comunal, antes as tornavam unidas no propósito de habitarem
aquele território.
A acepção de comunidade aqui é entendida como “uma relação social na medida em
que a orientação da ação social – seja no caso individual, na média ou no tipo ideal - baseia-se
em um sentido de solidariedade: o resultante de ligações emocionais ou tradicionais dos
136
participantes”
169
. O estreitamento dos laços comunais atuava como estratégia
para a sobrevivência do grupo, bem como para a manutenção das tradições o
que os tornava singulares e inscritos numa dimensão identitária.
Permaneceram ali por muitos anos, precisamente por dois séculos, até que em
meados do século XX, iniciaram-se fluxos migratórios para os estados de São
Paulo e Mato Grosso. De modo gradativo, a população foi tangida do lugar pela
fome que se intensificava e pela falta de perspectiva de trabalho nas roças de
mandioca e arroz. Tanto o período das secas prolongadas quanto o período
das chuvas intensas dificultou o manejo das terras embrejadas. Estas
limitações, aliadas à pouca terra disponível para a agricultura, obrigou os
moradores a procurar alternativas de plantio em roças vizinhas, conforme já
descrito. Antes disso, e até concomitante a este fluxo de migração, o Cercado
teve sua “época de ouro”, rememorada pelos moradores mais velhos que
puderam alcançar um tempo em que lá “dava de tudo”, não sendo preciso
recorrer à cidade como ponto de apoio. As necessidades eram atualizadas ali
dentro ou através de intercâmbio com comunidades vizinhas. Dali retiravam o
sustento e os recursos de que precisavam para a manutenção do seu modo de
viver. Seus festejos eram famosos e atraíam pessoas de fora. A vida
transcorria de forma corriqueira, com toda sorte de acontecimentos cotidianos:
luta, festa, morte, funerais, festejos, nascimentos. O Cercado estava vivo e isso
bastava.
Neste contexto, marcado pelas interlocuções entre as dimensões sócio-
históricas e o relativo isolamento geográfico que constitui as subjetividades, as
transformações empreendidas pelo capitalismo nas metrópoles brasileiras
tardam a se instalar no Cercado. Mas a mobilidade e expansão do capital
alcançam finalmente o Cercado: através daqueles que saíram para outros
centros ou daqueles que entraram, de modo que as trocas e intercâmbios não
cessaram e permearam as subjetividades, transformando gradativamente tanto
os desejos quanto as necessidades.
169
Max Weber. Conceitos Básicos de Sociologia. São Paulo: Centauro, 2005. Página 71.
137
O conceito desencantamento do mundo formulado por Max Weber empresta-
nos duas acepções básicas: uma que se refere ao sentido ético-religioso, como
perda da magia do mundo e outra que se refere ao desencantamento do
mundo pela ciência, através da cultura moderna racional. Estas duas acepções
são complementares neste estudo, uma vez que a modernidade, conforme
Bauman
170
, líquida, fluída, derretida, desce da esfera do sistema para o nível
micro do indivíduo. Em última instancia, é ele quem carrega sobre si o peso
dessa condição.
De acordo com Weber:
“O conflito entre o capitalismo e a tradição tem agora conotações políticas, pois se o poder
econômico e político passa definitivamente para as mãos do capitalista urbano surge a questão
de se os pequenos centros rurais de informação política, com sua cultura social peculiar,
entrarão em decadência, e as cidades, como as únicas depositárias da cultura política, social e
estética, ocuparão todo o campo de batalha.”
171
E embora esteja se referindo a um
contexto sócio-histórico diferente do aqui tratado, a aquisição de conotações
políticas nas relações com lideranças regionais impõe que a submissão da
localidade rural seja dada na medida em que ela estabelece dependência
econômica em relação à sede do município, da micro-regional, do estadual e
do Federal. Mais que isto, a complementaridade entre esses diversos níveis
indica quão complexo é este sistema.
Esta complementaridade é discutida por Wolf
172
em seus estudos sobre o
México.
“ (...) as comunidades que fazem parte de uma sociedade complexa não são mais vistas como
sistemas integrados e completos em si mesmos. É mais apropriado considera-las os terminais
locais de uma rede de relações de grupos que se estende, por meio de níveis intermediários,
do nível da comunidade ao da nação. Na própria comunidade, essas relações podem ser
totalmente tangenciais umas às outras”.
Para o autor não basta que se estudem as comunidades. É necessário
debruçar sobre os interstícios da sua relação com os diversos grupos que as
compõem. É a rede de relações de grupos que conecta as localidades e as
instituições no âmbito nacional. O que só pode ser materializado a partir do
170
Zygmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
171
Max Weber.Textos Selecionados. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Página 94.
172
Eric Wolf. Antropologia e Poder. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo:
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo: Editora Unicamp, 2003. Página 74.
138
estudo dos diferentes grupos de pessoas, cuja tessitura de poder tece relações
historicamente inscritas. O autor faz distinção entre os grupos orientados para
a comunidade, dos grupos orientados para a nação em termos dos objetivos de
suas ações. No interior de um agrupamento de população pequena, como é o
caso do Cercado, importa mais o calor, a afetividade das relações
interpessoais do que propriamente o modo como as pessoas se interconectam
com a esfera macro. Entretanto tais relações reverberam para além das
fronteiras locais e encontram na economia a impossibilidade de um
afastamento do mundo capitalista.
Esta cultura social peculiar a que se refere Weber é responsável pela aquisição
de padrões apropriados de comportamento político, sem os quais não se filia
no mundo do capital, condição essencial para a perda progressiva da magia do
mundo. Essa perda dar-se-á na cotidianidade, acelerada pela égide do mundo
da mercadoria. A fluidez expressa nessa face sem rosto que se tornou a
modernidade, a condição de desencantamento do mundo.
Flávio Antonio Pierucci realizou uma série de estudos minuciosos sobre a
localização exata do termo desencantamento do mundo nas obras de Max
Weber, catalogando 17 passagens na obra do autor onde ele usa o termo.
Pierucci argumenta que não se trata de um termo carregado de polissemia,
como se indicasse desencanto ou universo em desencanto. Segundo
Pierucci
173
:
“A origem do termo foi inspirada nas reflexões estéticas do filósofo e poeta Friedrich von
Schiller (...) Fora da Alemanha, os primeiros a divulgar essa filiação literária do termo foram
Hans Gert e Charles Wright Mills, autores da dinfundidíssima coletânea de textos de Weber
traduzidos para o inglês: From Max Weber [FMW]. Usadíssima em todo o mundo, o mundo
todo veio a ter maior acesso à diversidade da obra de Weber com essa publicação no imediato
pós-Segunda Guerra, em 1946. A certa altura da longa introdução dos organizadores pode-se
ler o seguinte:Ao refletir sobre a mudança nas atitudes e mentalidades humanas ocasionada
por esse processo [de racionalização], Weber gostava de citar a frase de Friedrich Schiller, ‘o
desencantamento do mundo’. A extensão e a direção da ‘racionalização’ podem ser
mensuradas, ou negativamente, em termos do grau em que os elementos mágicos do
pensamento são desalojados, ou positivamente, à proporção que as idéias vão ganhando em
coerência sistemática e consistência naturalística”.
173
Antonio Flávio Pierucci. O Desencantamento do Mundo – todos os passos do conceito em Max Weber.
São Paulo: Editora 34, 2003. Página 28.
139
O autor adverte, entretanto, que embora tenha catalogado as referências de
autores que atribuem o empréstimo do termo, nenhum cita a fonte exata na
obra de Schiller, segundo a qual Weber teria se inspirado. Para Pierucci:
“Desencantamento do mundo é um significante de fraseado lírico, hipersuscetível de
manipulação metafórica. Às vezes, é como se fosse um verso. E verso de tão forte apelo à
imaginação do leitor, que na travessia dessa destinação termina por funcionar à guisa de um
mote. E feito faz um mote, ele efetivamente desata a fantasia glosadora das pessoas que,
intempestivamente, começam por livre associação de idéias a lhe atribuir uma infinidade de
significados alusivos e fluidos, frouxos, a partir da pura similitude vocabular. (...) O termo é
realmente bom, é rico o vocabulário “desencantamento”. Seu feixe básico de significados
lembra tudo que é mágico e encantador, tudo que seduz e atrai, tudo que enfeitiça e arrebata,
tudo que tem charme e fascina. Charme. Fascinação. Feitiço. Embrujo. Sedução. Encanto.
Incanteismo. Atração. Magnetismo. Tudo enfim que encanta – este núcleo – pode de repente
sair dessa palavra. E é isto, acho eu, que permite a Weber, por exemplo, usar e abusar da
metáfora do “jardim encantado”, em alemão Zaubergarten”, mesmo quando está no meio do
maior esforço intelectual para traçar com clareza e distinção os limites lógicos do conteúdo que
ele entende dar ao novo conceito.”
174
Assim como outros conceitos formulados por Max Weber, desencantamento do
mundo só faz sentido se analisado segundo o contexto da obra e do autor.
Nela aparece pela primeira vez impresso num texto que faria parte da obra
Economia e Sociedade, denominado ‘sobre algumas categorias da sociologia
compreensiva’, datada de setembro de 1913. Não se trata de um conceito auto-
explicativo ou didaticamente esmiuçado como outros que fazem parte da obra
do autor. Para sua compreensão é necessário um exame minucioso de sua
obra, permitido também através da tecnologia de localização de vocábulos,
através de softwares específicos. Dada a vastidão de sua obra e dos parcos
recursos desta tese, optou-se pela apreensão do conceito através do
mapeamento sugerido por Pierucci, sendo consultadas as obras por ele
catalogadas.
A cultura racional moderna faz configurar nos grupos a fragmentação das
práticas que trazem laços de solidariedade. Essa fragmentação ocorre também
no âmbito dos processos subjetivos de constituição dos sujeitos dessa ação
que, imbuídos de um espírito de razão, coloca em segundo plano esferas da
religiosidade. Os interstícios entre uma economia racional orientada para os
preços e os interesses religiosos que conferem fé ao humano indicam que esta
é uma arena de lutas. O processo de aquisição e ancoragem de novos modos
de pensar, sentir e agir não são automatizados, nem construídos de uma hora
174
Antonio Flávio Pierucci. Obra citada. Páginas 32 e 33.
140
para outra. Antes, os espaços intersticiais entre as relações interpessoais e a
concretude dos ditames econômicos formam arranjos e rearranjos, se
acomodam e se desfazem até que se estabeleçam novas lógicas que
comporão seus territórios imaginários. E assim que estes estiverem ancorados,
se dissolvem, conforme Bauman
175
, na inconsistência dos fluidos, metáfora da
modernidade atual.
Para Weber:
“A tensão entre a religião fraternal e o mundo foi mais evidente na esfera econômica. Todas as
formas mágicas ou mistagógicas primevas de influenciar os espíritos e divindades tiveram
interesse especiais. Lutaram pela riqueza, bem como pela vida, saúde, honra, descendência e,
possivelmente, melhoria do destino no outro mundo (...) Uma economia racional é uma
organização funcional orientada para os preços monetários que se originam nas lutas de
interesses dos homens no mercado. O cálculo não é possível sem a estimativa em preços em
dinheiro e, daí, sem lutas no mercado. O dinheiro é o elemento mais abstrato e “impessoal” que
existe na vida humana. Quanto mais o mundo da economia capitalista moderna segue suas
próprias leis imanentes, tanto menos acessível é a qualquer relação imaginável com uma ética
religiosa de fraternidade. Quanto mais racional, e, portanto impessoal, se torna o capitalismo,
tanto mais ocorre isso. No passado, foi possível regulamentar eticamente as relações pessoais
entre senhor e escravo precisamente porque elas eram relações pessoais. Mas não é possível
regulamentar – pelo menos, não no mesmo sentido, ou com o mesmo êxito – as relações entre
os variáveis detentores de hipotecas e os variáveis devedores dos bancos que concedem tais
hipotecas: pois neste caso não há relações pessoais de qualquer tipo.”
176
A incompatibilidade entre estes dois sistemas também tornou incompatível a
crença na magia, condição de inviolabilidade da tradição. O que resta então?
Que finalidade tem esta comunidade, agora? Qual é o sentido em manter suas
tradições?
As mutações e persistências não são descritas aqui em termos de dualidade
campo/cidade, mas em termos da relação, conforme Wolf, entre o móvel e o
tradicional, entre conflito e acomodação, produzindo mudanças de
configuração tanto no interior da localidade quanto em tudo que a ela se refere.
São descritas também, conforme Canclini, nos hibridismos constituídos a partir
dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional e o moderno se misturam.
Para analisar as idas e vindas da modernidade, os cruzamentos das heranças indígenas e
coloniais com a arte contemporânea e as culturas eletrônicas, talvez fosse melhor não fazer um
livro. Nem mesmo um filme, nem uma novela, nada que se entregue em capítulos e vá de um
começo a fim. Talvez se possa usar este texto como uma cidade, na qual se entra pelo
175
Zigmunt Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
176
Max Weber. Economía y Sociedad. Esbozo de sociologia compreensiva. México: Fondo de
Cultura Econômica. 1964. Página: 245.
141
caminho do culto, do popular ou do massivo. Dentro, tudo se mistura, cada capítulo remete aos
outros, e então já não importa saber por qual acesso se entrou”
177
.
Os itinerários da mudança ou mesmo as ideologias modernizadoras, conforme
o autor, não indicam onde começa e onde se conclui este processo. Nem
mesmo isto é relevante, uma vez que a modernização não acabou com as
formas de produção artesanal, nem com os sistemas de crenças e os bens
tradicionais. Antes, houve sua apropriação como mercadoria, produto a ser
comercializado. Por isso mesmo este fenômeno não pode ser estudado como
algo que possui começo, meio e fim o que dificulta sua compreensão por um
lado e por outro, coloca-nos no epicentro do chamado ‘mal-estar pós-moderno’.
As relações mercadológicas do mundo pós-moderno acabaram por dizimar
crenças em escrituras sagradas, assim como acabam ocupando o lugar
destinado à magia da natureza e do sobrenatural.
Para os moradores do Cercado, a memória se retrai quando relembra um
tempo ideal, onde os acontecimentos se inscreviam numa lógica da perfeição,
onde nada saía do lugar. Mas esta lógica só pode ser rememorada, ela nunca
foi vivida como acontecimento de fato. O que se modifica, no entanto, é a
tessitura da narrativa, que agora permeada da racionalidade moderna, agrega-
se à dissolução da magia, na diminuição da fascinação e do feitiço que sempre
marcou a atmosfera da vida na comunidade. A memória resgatada fala de um
tempo ideal, onde as coisas aconteciam sem grandes problemas, revive um
passado, ( que Bosi
178
denomina de “memória dos velhos”) em que a evocação
permite imagens de outro tempo, semelhante ao sonho e ao devaneio. Os
moradores mais velhos do Cercado oscilam entre a rememoração de um tempo
onde os festejos e cerimoniais serviam a propósitos relacionados à fé, à
manutenção do grupo, auxiliando na concretização das práticas cotidianas e a
evocação da memória como forma de resignificação dos processos vividos,
procurando dar sentido à sua própria história. Muito mais do que lembranças
de um passado idealizado, a memória tem a função, segundo a autora, de
177
Nestor Garcia Cnclini. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003. Página 20.
178
Ecléa Bosi. Memória e Sociedade: lembranças dos velhos. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
142
empurrar as experiências significativas para a margem da atualidade,
encontrando ressonância nos tempos atuais. Se os mais jovens se interessarão
por estas questões, isso não está mais ao alcance dos mais velhos, cabe-lhes,
entretanto, dar ciência, tornar aparente e vivo um passado que foi útil ao grupo.
Neste sentido, contar, recontar e encontrar pessoas interessadas em ouvi-los
parece ser algo que desperta contentamento e entusiasmo. Ao rememorar
passagens de outros tempos, os moradores do Cercado expressaram alegria e
contentamento; sentados num tronco de manguba caído à beira da trilha, perto
das casas, contavam suas histórias, acompanhados de crianças e jovens que
se divertiam, rindo e buscando saber mais sobre os eventos narrados.
Qual é a profundidade das mudanças que ocorreram no Cercado? Podemos
falar em mudanças na relação mando/obediência? Podemos falar em mudança
no âmbito da dominação?
É possível falar de mudanças que se concretizaram no âmbito do acesso à
terra e mudanças drásticas no frágil ecossistema da serra do Cigano,
mudanças ocasionadas pela aproximação, na década de oitenta, de empresas
mineradoras de fora do Estado que lá se instalaram para explorar mármore
azul e quartzo. A presença das mineradoras produziu metamorfoses na
dinâmica natural do lugar; suas atividades cortaram e remexeram a serra com
maquinaria pesada, instalando bases em área de nascentes de água potável,
diminuindo significativamente o fluxo de água. Descrente das promessas
contidas na apologia do desenvolvimento que circulavam nessas áreas, a
população local assiste ao esfacelamento de seus valores e modos de vida em
favor de uma racionalidade ditada pelo ritmo econômico. Não há saída. Não há
escolha a ser feita uma vez que contra o Entzauberung der Welt
179
não há o
que fazer, pois está fora do alcance dos mortais.
Se pensarmos que o modo de vida do Cercado assegurou a manutenção da
coesão do grupo através de dinamismo próprio que permitiu uma adaptação
continuada diante das transformações econômicas e sociais da modernidade,
179
Desencantamento do mundo – Max Weber.
143
por que não ver no desencantamento um movimento de ajuste e atualização
face aos novos arranjos? Estaria ocorrendo um fenômeno de resistência e
acomodação de novas atitudes, hábitos e valores? Apenas uma nova
configuração frente aos desafios impostos pelos novos tempos?
A questão central desse processo passa pelo vazio deixado pela perda da
magia do mundo. Vazio que não é preenchido pelos apelos e sedução do
mundo da mercadoria. Para esse vazio identitário não há possibilidade de
preenchimento porque o próprio vazio padece de “não-sentido”. Esta é uma
luta árdua uma vez que a intangibilidade dos sentidos vai se dissipando como
névoa fraca rumo ao desconhecido. Este vazio não será facilmente preenchido
com valores e crenças globais porque é na esfera particular e local que se dará
efetivamente a crença mágica. Para Milton Santos
180
, o lugar constitui a
dimensão da existência e, como tal, compartilha o cotidiano de diversas
pessoas e instituições. No lugar há conflitos e cooperação, acomodação e
transformação, articulando dimensões subjetivas com dimensões concretas da
vida. É nele que a existência se concretiza através do compartilhamento, onde
tudo se funde, enlaçando as noções e as realidades de espaço e tempo. Neste
sentido, pode-se afirmar que o desencantamento do mundo se dá na dimensão
do lugar, lócus das relações entre o local e o global. Para Peter Spink
181
, é no
lugar que o global e o local se entrecruzam. “Todos são produtos sociais com graus
diferentes de intermediação. O lugar; em constante construção, é aquilo que temos; não há
nada além dele. Seus horizontes e limites são produzidos e disputados por nós mesmos.”
Lócus de receptividade e acolhimento das experiências particulares de sujeitos
que experimentam o mundo através de um relativo isolamento geográfico,
mediado pelas vivências com a natureza semi-árida.
O desencantamento se inscreve nesta perspectiva, na qual a dinâmica do lugar
está em constante movimentação e mudança de significados e sentidos, cuja
construção é de caráter eminentemente coletivo. A transposição da conduta
coletiva, do estilo de vida comunal para a disciplina de práticas individualistas
180
Milton Santos. A natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo:
Hucitec, 1997.
181
Peter Spink. O Lugar do Lugar na Análise Organizacional. Revista de Administração
Contemporânea da ANPAD. Volume 5, 2001. Página 33.
144
altera o modo como produzem sentidos e, por conseguinte, a forma como
operacionalizam o cotidiano. Se antes as trocas solidárias ditavam o sentido
das relações tanto dentro da comunidade quanto com as comunidades
vizinhas, agora a inversão dessas lógicas impõe que novos sentidos sejam
produzidos a partir daí. O vazio criado pelo esfacelamento das relações de
parentesco, dos ciclos de confiança e solidariedade entre vizinhos não é
facilmente preenchido pelo discurso da globalização ou da modernização. O
vazio sequer produz o caos generalizado. Produz antes o silêncio, o medo e a
desesperança.
As falas a seguir procuram ilustrar esse processo:
“Antigamente a gente podia confiar nos conselhos dos mais velhos, confiar nos ensinamentos
que eles nos passavam, no modo como a gente devia agir diante de uma mordida de cobra,
diante de uma criança doente ou uma mulher que estava sentindo as dores de parto. Hoje em
dia isso fica mais difícil porque não tem mesmo em quem a gente deve confiar. Ta certo que
Cristóvão ajuda muita gente, mas não é a mesma coisa. Qualquer dorzinha de barriga o povo
já corre pros médicos
182
”.
“Eu estava enfermo e fui no Barro Duro em busca de um curador.Lá chegando o homem me
falou tanta besteira que eu fiquei pensativo. Não tive coragem de beber aquelas raizadas que
ele preparou. Parecia tudo muito sujo. Mas o problema é que nem médico resolve o meu
problema porque nem mesmo eles sabem o que eu tenho. Já rodei pra São Paulo, pra Seabra
e mesmo nesses médicos de Brejinhos. Ninguém sabe de nada. Mas eu sei que é feitiço. Sei
quem botou e tudo mais. Só não sei quem é que tem a capacidade para tirar essa maldição de
mim. Aqui não tem mais curador que preste. Este povo moderno não sabe fazer operação
invisível como antes. Se opera, o mal volta. Me falaram que lá pra Volta da Serra tem um
curador bom. Estou esperando uma melhora no tempo para fazer essa viagem porque já não
agüento mais sofrer com tanta coceira”
183
.
“Eu sou devota de Santa Luzia. Fiz promessa porque minha filha quase perdeu as vistas numa
queda de cavalo.Todo ano eu faço o presépio para Santa Luzia. Antigamente vinha gente de
longe rezar aqui em casa com a gente, no andor que eu armava. Mas de uns tempos pra cá o
povo tem diminuído e este ano que passou eu contava nos dedos as pessoas que apareceram
para a novena de Santa Luzia. Eu fico muito triste porque em volta desse terreiro aqui era cheio
de gente, a casa nem cabia tanta gente. Hoje em dia em fico muito triste com isso!”
184
“Aqui no Cercado a coisa está ficando cada vez mais triste. Isso aqui ao invés de ir pra frente, é
só atraso. Antigamente aparecia viajante, pessoas diferentes que iam pro São Francisco. Hoje
as únicas pessoas que passam por aqui são os trabalhadores das firmas de mineração.
Este poço de Ermiro já está quase secando. Olha só a situação! Tem só uma laminha de água!
É muito triste! Fico triste só de pensar que era dele que todo mundo retirava água pra beber na
ocasião da seca. A gente nem tomava banho nele. Hoje ta nessa situação”
185
.
O medo de não conseguir sobreviver utilizando as já consagradas práticas
agrícolas, agora prejudicadas pela questão ambiental causada pelas
182
M.M.S., 48 nos, moradora do Cercado.
183
N.L.S., 67 anos, morador do Cercado.
184
V. M. S., 69 anos, moradora do Cercado.
185
L. M. C., 42 anos, morador do Cercado.
145
mineradoras, soma-se à rejeição ou pouca procura pelos produtos produzidos
pela comunidade que são comercializados na feira da sede do município. A
substituição dos produtos orgânicos, sem adição de químicos, tradicionalmente
vendidos na feira pelos moradores do Cercado como o buriti, a farinha de
mandioca, o beiju, as hortaliças e frutas silvestres, por produtos industrializados
que ganharam a preferência do consumidor da sede, provoca insegurança com
relação à comercialização dos excedentes, importante fonte de renda dos
trabalhadores da comunidade. Os sistemas organizativos locais estão sendo
alterados, incorporando novas exigências do mercado. Entretanto, essa
transformação não é acompanhada pelos órgãos de fomento à organização e
ação social do governo do Estado, como a Companhia Agrária Regional ou a
Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Bahia que normalmente
auxiliam as comunidades no processo de organização e gestão local. Sem
assessoria que os auxilie nesse enfrentamento, resta o embate corpo a corpo
na lida cotidiana de conviver com os dilemas ambientais de gestão da parca
água que sobrou, assim como da pouca terra que resta para a plantação de
subsistência. Muitos não resistem e migram em busca de alternativas viáveis
para a sobrevivência. Aqueles que ficam, definham na árdua luta com a terra
para dela retirar todo o sustento de que necessitam. O trabalho nas
mineradoras é para poucos privilegiados que possuem laço estreito com os
“poderosos”. Da mesma forma, conseguir trabalho público requer que
conchavos e acordos sejam costurados, privilegiando somente uma pequena
parcela que detém algum grau de poder.
Tanto as dinâmicas de vida humana quanto as dinâmicas da natureza
começam a sofrer fortes impactos. Se antes os viajantes e os tropeiros
deixavam apenas rastros, a presença das mineradoras agora impõe ritmos e
dita regras. Está configurada a intervenção na relação tempo/espaço que
mantinha a vida no lugar. Esta intervenção aliada às modificações dos
dinamismos organizativos da comunidade impulsionou deslocamentos das
pessoas do Cercado que procuravam trabalho tanto nas roças das imediações
quanto em terras distantes.
146
Maria Aparecida de Moraes Silva
186
, em seus estudos sobre a modernização
trágica empreendida pelo Estado Brasileiro em áreas de cultivo de cana-de-
açúcar no interior paulista, chama a atenção para os processos de
expropriação, exploração-dominação e exclusão de milhares de homens e
mulheres que fornecem as bases para o maciço êxodo rural que o país tem
enfrentado. A resultante disso são exércitos de errantes, trabalhadores “bóias-
frias” cuja subjetividade é transformada e marcada na concretude de sua
história. Segundo a autora:
“Sob o disfarce de um Estatuto de Trabalhadores Rurais, o Estado brasileiro institucionaliza a
descaracterização destes homens e mulheres enquanto trabalhadores, negando-lhes esta
condição e imprimindo-lhes a marca da indefinição, de uma verdadeira escória. Esta
diferenciação coexistirá com a diferenciação entre “os de fora”, “os do lugar” e as mulheres. Os
trabalhadores de outras regiões, “os de fora”, tornam-se “imigrados” no seu próprio país.
Possuem um falar, hábitos culturais diferentes, muitos são negros ou pardos. Todas essas
características étnicas ou culturais definidoras de um modo de vida transformaram-se em
atributos negativos no momento em que seus portadores deparam-se frente ao “outro”, ao “do
lugar”, ao paulista.
Na descrição de Josué de Castro
187
, evidencia-se a agonia e a luta daqueles
que não possuem terra. A luta pela terra já não é mais a luta por beneficiá-la. A
expropriação perversa que varreu os Sertões Secos do Brasil responde pela
violência que os seus moradores têm vivenciado. A luta pela vida e pela morte
confunde-se: reivindicam-se sete palmos de terra para descansar da árdua
batalha que tiveram em vida.
“Em 1955, João Firmino, morador do Engenho Galiléia, fundava a primeira das Ligas
Camponesas no Nordeste do Brasil. Não fora seu objetivo principal, como muita gente pensa, o
de melhorar as condições de vida dos camponeses da região açucareira, ou de defender os
interesses desses bagaços humanos, esmagados pela roda do destino, como a cana é
esmagada pela moenda dos engenhos de açúcar. O objetivo inicial da ligas fora o de defender
os interesses e os direitos dos mortos, não os dos vivos.Os interesses dos mortos de fome e de
miséria; os direitos dos camponeses mortos na extrema miséria da bagaceira. E para lhes dar o
direito de dispor de sete palmos de terra onde descansar os seus ossos e o de fazer descer o
seu corpo à sepultura dentro de um caixão de madeira de propriedade do morto, para ele
apodrecer lentamente pela eternidade afora. Para isto é que foram fundadas as Ligas
Camponesas. De início, tinham assim muito mais a ver com a morte do que com a vida, mesmo
porque com a vida não havia muito o que fazer... Só mesmo resignação. A resignação à fome,
ao sofrimento e à humilhação. Mas, se já não havia interesse dessa gente em lutar pela vida –
em lutar por uma vida melhor e mais decente, porque este obstinado empenho em reivindicar
direitos na morte? Reivindicação de mortos que nunca tiveram direito em vida! Por que esta
desvairada aspiração de possuir, depois de morto, sete palmos de terra, por parte de quem na
vida não dispusera, de seu, nem de uma polegada de solo, pertencendo quase todos, aos
186
Maria Aparecida de Moraes Silva. Errantes do Fim do Século. São Paulo: Fundação Editora
da UNESP, 1999. Página 72.
187
Josué de Castro. Sete Palmos de Terra e Um Caixão – Ensaio Sobre o Nordeste, Uma Área
Explosiva. São Paulo, Editora Brasiliense, 1967. Página: 23 e 24.
147
imensos batalhões dos sem terra que povoam o Nordeste brasileiro? E porque este desespero
em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte
nunca foram proprietários de nada – nem de terra, nem de casa, nem mesmo do seu próprio
corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos senhores da terra? Por que esta
conduta aparentemente tão estranha, tão em contradição com o conformismo, a apatia, a
resignação desta pobre gente? Tudo isto só tem sentido, quando a gente compreende que,
para os camponeses do Nordeste, a morte é que conta, não a vida, desde que, praticamente, a
vida não lhes pertence. Dela, eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da
eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante as seca, da polícia, da fome e da doença.
Para eles só a morte é uma coisa certa, segura, garantida. Um direito que ninguém lhes tira: o
seu direito de escapar um dia pela porta da morte, do cerco da miséria e das injustiças da vida.
Tudo mais é incerto, improvável ou impossível. Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo
cerimonial da morte, que ele encara como o da sua libertação à opressão e ao sofrimento da
vida. “Aos pobres de espírito pertence os reinos dos céus”, dizem as Escrituras Sagradas.
Palavra consoladora para aqueles que há muito já tinham perdido toda a esperança de
conquistar um lugar decente nos reinos da Terra”.
Esta densa passagem marca as lidas e incessantes batalhas pela vida e pela
morte, nas quais as reivindicações por vida mais justa parecem diluir-se frente
ao desespero dos que almejam apenas um caixão para descansar. A questão é
ainda mais complexa porque compõe os processos identitários do indivíduo
marcado com o ferro da derrota: aquele que em vida não pôde lutar pela morte,
transita entre os espaços relegados aos que se suicidam ou os que muito mal
fizeram aqui na terra, o que torna compreensível o desespero e a aspiração
pelos sete palmos de terra. São as marcas deixadas pela dominação
tradicional que tem varrido os Sertões Secos do Brasil; marcas da violência têm
abortado qualquer tipo de reivindicação, imprimindo medo e reavivando o
mandonismo nas relações entre o proprietário das terras e seus trabalhadores.
A fome é um fantasma que apavora todos não só no Cercado, mas em todas
as áreas de domínio das caatingas da Chapada Diamantina. Um misto de
revolta e agonia povoa aqueles que ousam lembrar
“das fome braba” por que
passaram, principalmente até meados da década de oitenta. Rememorar a
fome significa vivenciá-la novamente, o que é evitado por muitas pessoas.
Como afirma Castro
188
, a fome deixa marcas no físico e no psiquismo do
indivíduo, alterando drasticamente sua fisiologia dos sentidos:
“A fome quantitativa se traduz de logo pela magreza aterradora, exibindo faces chupados,
secos, mirrados, com os olhos embutidos dentro das órbitas, as bochechas sumidas e as
ossaturas desenhadas em alto-relevo por baixo da pele adelgaçada e enegrecida. Indivíduos
que mesmo no tempo de abundância – nas épocas do verde – nunca foram de muita gordura,
188
Josué de Castro. Geografia da Fome – o dilema brasileiro: pão ou aço. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. Página:189.
148
apresentando-se sempre com sua carne um tanto enxuta, chegam a perder, nas épocas secas,
até 50% de seu peso” .
O socorro vem da natureza, todos os recursos são retirados dela. A ela todos
recorrem quando necessitam de ajuda. O caatingueiro mais antigo, trabalhador
de roça, criado na lida da caatinga não reconhece no poder público o papel de
gestor e possibilitador do acesso às necessidades básicas do cidadão. Sente
que a fome deve ser saciada por aqueles que tiveram o alento de plantar e a
aposentadoria que recebe já é demasiada para alguém que não espera nada
de ninguém. Espera tudo de Deus e da natureza, únicos responsáveis pelo
processo da vida e da morte, sem os quais não poderia prover sua família.
Mesmo os que de lá já saíram alguma vez para a cidade grande, não acreditam
que há o que cobrar do poder público, pois os homens que estão no poder
“estão lá para beneficiar suas próprias famílias e não têm obrigação de ajudar a ninguém”.
Idéias como acesso aos serviços básicos de saúde, aos benefícios previstos
em lei para todo cidadão brasileiro soam como uma abstração, produto “daquilo
que é visto na televisão
”, portanto desconexo com as dinâmicas da realidade
concreta. Isso tem fortalecido tanto o exercício discriminatório do mando
quanto a apropriação privada dos bens públicos por parte dos que estão
ligados ao poder.
Esta vida Severina, conforme Ciampa
189
, constitui sua identidade na interface
com a atividade, que é sempre relacional, cuja intersubjetividade se concretiza
nos papéis que exerce. Ser Severina, “bóia fria”, migrante, errante, numa terra
de “estrangeiros”. A vida Severina do “bóia fria” não é a mesma vida Severina
do trabalhador de garimpo, embora ambas compartilhem da condição de
destituídos. Não é por acaso que os que migraram se vêem e são vistos como
alguém que retornou sem nada.
À contraposição da dominação, libertar-se, segundo Bauman
190
, “significa
literalmente libertar-se de algum grilhão que obstrui ou impede os movimentos; começar a
sentir-se livre para se mover ou agir. “Sentir-se livre” significa não experimentar dificuldade,
obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos movimentos pretendidos ou
189
Antonio da Costa Ciampa. A estória do Severino e a História da Severina. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987.
190
Bauman. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. Páginas: 23 e 24.
149
concebíveis.” Para o autor, o problema reside no fato de que pode haver
incongruência entre o que se sente como liberdade com o que ela é de fato,
sugerindo que as pessoas possam estar satisfeitas com suas condições, sentir-
se livres, mesmo diante da escravidão. A genuinidade da liberdade não reside
na supressão das condições objetivas da dominação ou da escravidão, pois
não há como se certificar de que as pessoas almejem de fato a perspectiva da
libertação, uma vez que nem todos estão dispostos a enfrentar as dificuldades
que o exercício da liberdade pode acarretar.
Bauman, citando argumentos de Arthur Schopenhauer, propõe o equilíbrio
entre os desejos, a imaginação e a capacidade de agir. Para ele, “o equilíbrio
pode ser alcançado e mantido de duas maneiras diferentes: ou reduzindo os desejos e/ou
imaginação, ou ampliando nossa capacidade de ação”.
Posicionando-se como sujeito do
capital, desejar menos significa ir contra a atração da mercadoria ou minimizar
sua ação sobre o inconsciente, razão pela qual o autor distingue “ entre liberdade
“subjetiva” e “objetiva” – e também entre a “necessidade de libertação” objetiva e subjetiva.
Bauman,
191
analisando as obras de Freud O mal-estar da civilização e O futuro
de uma ilusão, argumenta que para o autor “embora alguns espécimes seletos da
humanidade pudessem dominar a arte do autocontrole, todos os demais, e isso quer dizer a
vasta maioria, precisavam da coerção para continuar vivos e permitir que os outros vivessem”.
Esta renúncia do instinto, por assim dizer, seria o tributo necessário pago à
sociedade pela condição de humanidade. Bauman entretanto, critica tal
posicionamento, argumentando que sua validade restringe-se ao âmbito da
clínica psicanalítica. Para ele, trata-se antes de um arranjo moderno, onde a
face emancipatória também convive com a face coercitiva.
Um olhar sobre as condições objetivas dos moradores do Cercado mostra que
a liberdade é restrita, uma vez que não há a opção de mudar essas condições.
Entretanto, a coordenação dos processos organizativos que conduzem os
modos de vida no lugar, no tocante às atividades tradicionais está em suas
mãos. Dominação e libertação coexistem lado a lado.
191
Zygmunt Bauman. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2003. Página: 28.
150
O Cercado permaneceu como se “desejasse menos” na lógica do capital e a
diferença entre pobreza e rusticidade tem limites tênues. O desejar menos
pode indicar que a natureza do isolamento geográfico manteve o morador do
Cercado distanciado dos apelos do mercado ou que o definidor dos seus
desejos corresse próximo às tradições, festejos e crenças próprios.
Se a redução da imaginação/desejo se concretiza apenas parcialmente,
ampliar a capacidade de ação seria a forma condizente com a sociedade
moderna para se alcançar o equilíbrio. Assim, o Cercado produziria mais,
venderia seu excedente, ampliaria seu universo de consumo. Mas esta
hipótese também não se concretiza, embora haja espaço para o intercâmbio de
mercadorias vindas de centros urbanos. Na lida diária, não há
desejos/necessidades subjetivas ou objetivas que justifiquem a corrida pela
produção. No tocante ao cotidiano, tanto a urgência em sanar a fome quanto a
necessidade de cantar loas aos santos se inscrevem na mesma face da moeda
que, embora congregando práticas e objetivos diferentes, sustenta-se no fato
de que o desejo e a imaginação não estão fora das condições objetivas em que
são constituídos, ou melhor, esta não é uma opção que emerge da
consciência; antes, trata-se de processos inconscientes no sentido freudiano
do termo, como coerção e renúncia do instinto.
Na lida do cotidiano são feitas trocas, arremedos, negociações, barganhas, que
possuem o colorido da intersubjetividade possibilitada pela intimidade do
convívio diário. Aí estão presentes trocas mais profundas, legitimadas pela
idéia do reconhecimento. Segundo Todorov:
192
“É o reconhecimento que determina, mais do que qualquer outra ação, a entrada do indivíduo
na existência especificamente humana. Mas apresenta também uma singularidade estrutural:
aparece, em certo sentido, como o duplo obrigatório de todas as outras ações. (...) O
reconhecimento pode ser material ou imaterial, da riqueza ou das honrarias, implicando ou não
o exercício do poder sobre as outras pessoas. A aspiração ao reconhecimento pode ser
consciente ou inconsciente, acionando mecanismos racionais ou irracionais. O reconhecimento
atinge todas as esferas de nossa existência e suas diferentes formas, e nenhuma pode
substituir a outra: conseguem, no máximo, proporcionar, conforme o caso, algum consolo”.
O reconhecimento pelo trabalho prestado, pela participação na vida de um
grupo pode ser entendido e sentido como a força necessária para alavancar ou
192
Tzvetan Todorov. Vida em Comum – ensaio de Antropologia Geral. Campinas, São Paulo:
Papirus, 1996. Página 89.
151
perpetuar a estima própria. O reconhecimento do outro situado numa hierarquia
superior indica a certeza dos acertos, tranqüiliza a existência, reforça a troca
com os outros. A natureza das trocas simbólicas, materiais ou imateriais, como
dar ao coronel o filho para batizar; votar no candidato do “meu patrão”, indicam
relações baseadas num nível de intersubjetividade que legitima sua existência,
o que não justifica o processo de dominação, mas distancia-se da venda do
voto para candidatos desconhecidos em troca de dinheiro ou outro valor. Essas
relações de mando têm fornecido elementos para a constituição de
subjetividades forjadas na esteira da figura imponente do “grande proprietário
bom”: aquele a quem todos devem favor. É ele quem abre as portas para o
emprego na prefeitura; é ele quem fornece a terra para a benfeitoria; é ele que
abre crédito bancário etc. Também é ele quem legitima e reconhece o fruto de
seu trabalho.
Com papéis sociais bem definidos, homens e mulheres tecem sua vida diária,
instituindo espaços de sociabilidade que marcam tanto o espaço imaginário
quanto o do trabalho. Devido à fricção causada entre o tradicional e o móvel,
uma nova configuração vai se instalando nas dimensões subjetivas da
realidade e passa a operar por meio de ações no universo prático e simbólico
dos habitantes.
As conexões que tecem elementos da tradição e elementos da modernidade
fazem parte de uma rede maior entre os sistemas locais e os sistemas
nacionais. Segundo Wolf:
193
As comunidades são modificadas e adquirem características
novas devido a sua dependência funcional de um sistema novo e mais amplo. (...) é a rede de
relações de grupos que conecta as localidades e as instituições nacionais.”
As tradições sofrerão modificações no seu fazer, entretanto sua gênese atende
às necessidades pelas quais foram criadas porque fazem parte do modo de ser
e existir nos domínios das caatingas e não em outro lugar. As idéias de cura,
prevenção e cuidados são objetivadas, testadas e consagradas, sofrendo
mutações no lidar diário da vida no lugar. Representam manifestações de como
193
Antropologia e Poder. Eric Wolf. Organizado por Bela Feldman-Bianco e Gustavo Lins
Ribeiro. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo: Editora UNICAMP, 2003. Página 74.
152
o lugar foi construindo, ao longo de sua história, saberes que garantem a
sobrevivência do grupo. Elementos novos são agregados, provenientes da
convivência entre as diversas comunidades e também dos conhecimentos
trazidos por aqueles que migraram, em meio à imensa rede de movimentação
e troca com centros urbanos, como São Paulo, por exemplo.
Quando as pessoas migram, entram em interlocução com os modos de vida de
uma sociedade urbana capitalista, apreendem modos que são incorporados e
consolidados no decorrer do tempo. Entretanto, seus sistemas inconscientes,
presentes em suas ações, parecem extrapolar para além do que fora
incorporado. Não são mais os sistemas próprios de quem nunca saiu de lá,
nem também o novo sistema incorporado a partir da convivência urbana. Trata-
se de um elemento novo, composto de fragmentos identitários, numa
metamorfose que se inscreve num tempo determinado. Num tempo próximo,
ela já não será mais como antes, mas em transmutação constante a partir dos
elementos da vivência com as crenças antepassadas e a vivência atual.
O capítulo procurou mostrar cenas do cotidiano da vida nos domínios de
localidades caatingueiras, centrando-se no Cercado como foco de
profundidade, ao mesmo tempo em que o interconecta com outras localidades
adjacentes. Não se trata de evidenciar seu modo peculiar, sua forma de
isolamento, mas estabelecer conexões entre os diferentes intercâmbios que
seus moradores tecem com os outros lugares. Narrados a partir da trilha que
dá acesso à subida da Serra do Cigano, os modos de vida nas diferentes
localidades encontradas até o Rio São Francisco são perpassados por
elementos de intensa intersecção, formando intercâmbios de saberes, trocas,
práticas, não só em nível local, mas também nas esferas do município, dos
municípios vizinhos e dos outros Estados da Federação por onde segue a rota
migratória de pessoas do lugar.
A partir da década de setenta o Cercado passou a conviver com mudanças no
seu dinamismo organizativo, mudanças configuradas a partir de uma
complexidade de fatores, entre os quais destacamos: o enfraquecimento da
agricultura provocado pela escassez de terras férteis e intensificado pelos
153
períodos de secas prolongadas nos anos de 1973 e 1974; o intercâmbio com
viajantes e pessoas da região que retornavam a passeio despertou a
necessidade motivacional pela busca de atualização dos desejos de consumo.
Gradativamente o Cercado foi modificando seus eventos religiosos, suas
práticas profiláticas, manuseio das plantas medicinais e sistema de
beneficiamento da mandioca.
A chegada de mineradoras à área parece ter acelerado essas transformações
que culminaram na modificação do espaço destinado à plantação e água doce.
Uma série de atualizações no sistema de organização do modo de vida local
necessitou ser feita para garantir a continuidade da comunidade, apesar dos
fluxos migratórios que se seguiram.
Neste novo contexto marcado pelo avanço irreversível da mercadoria, o espaço
para o cultivo do feitiço diminuiu, a manifestação da magia e dos saberes locais
perde legitimidade. A descrença num imaginário que outrora fornecia o sentido
da existência deixou um espaço vazio na comunidade. O Cercado
gradativamente vai perdendo os referenciais que antes dignificava a vida no
lugar. Em decorrência, passa a se enfraquecer enquanto grupo comunal. Com
a saída de importantes lideranças locais nas décadas de setenta e oitenta, o
Cercado começou a padecer de um não-lugar, cujo processo identitário sofria
esfacelamento que refletia diretamente nas práticas cotidianas que garantiam a
sobrevivência da comunidade.
O fluxo dos acontecimentos cotidianos inscreveu o Cercado na lógica de
convivência com a natureza do semi-árido, mantendo vivas suas tradições e
modos de vida que garantiam a sobrevivência da comunidade. A comunidade
também se alimentava das trocas materiais e imateriais que realizava com as
diversas localidades da complexa rede de sociabilidade vicinal. Entretanto, com
a intensificação da porosidade das fronteiras impostas pela modernidade, o
mundo da mercadoria passou a ramificar-se no interior desses grupos,
reescrevendo modalidades de convívio comunal. O Cercado que outrora vivera
dilemas entre abundância e escassez, agora padece de um não-lugar, onde
154
vigora a transitoriedade dos desejos e sonhos de consumo. Projeta-se uma
face sem rosto que deixam os processos identitários em suspensão.
Para concluir, é importante ressaltar que o Cercado e as comunidades vizinhas
lutam desde sempre com dificuldade para manter sua vida, em meio aos
desmandos e autoritarismo regional. Como vimos, ações governamentais são
realizadas na área, mas a maioria não se preocupa em ouvir verdadeiramente
a população local, compreender suas principais necessidades, seus anseios e
o que desejam para o lugar. Como resultado, descompassos entre a lógica da
população e a lógica governamental, preocupada em sanar as deficiências dos
indicadores sociais, são inevitáveis. Via de regra, há um hiato entre as
concepções e modelos de desenvolvimento formulados pela gestão pública e
as carências e anseios das comunidades.
O Cercado, assim como outras localidades da região, amargam um relativo
abandono por parte do poder público: a cidadania ali se manifesta através do
voto, de cabresto, do sistema de aposentadoria rural e de escolas
multisseriadas que oferecem serviço precário ao aluno. Essas últimas sequer
chegaram ao Cercado, cujas crianças utilizam a escola da comunidade da
Tapera. A presença das mineradoras não trouxe benefício à comunidade; muito
pelo contrário, sua ação predatória e intervencionista acabou por alterar
significativamente o ecossistema da serra.
Tradicionalmente a região tem presenciado ações públicas formuladas a partir
de um híbrido de assistencialismo e demagogia, que geralmente acompanham
a visão do Nordeste Seco como área atrasada, passível de intervenções de
toda natureza. O modelo de desenvolvimento para a região tem se alterado
timidamente nos últimos anos, embora permaneça a falsa concepção de que a
população local é conformista, não luta por seus direitos, sendo, portanto
dispensável que sua opinião e participação sejam levadas em consideração.
Essa visão é ilustrada com propriedade através das tradicionais frentes de
trabalho que em tempos de seca empregam os mais necessitados e cuja
atividade se resume em quebrar pedras para em seguida removê-las para o
local de onde foram tiradas. Esse tipo de ação pública, relativamente comum,
155
tem significado desrespeito aos recursos públicos e aos trabalhadores, cuja
dignidade é frontalmente abalada. O impacto da ofensa é ainda mais severo,
quando se sabe que homens e mulheres já se sentem bastante humilhados por
sua condição de pobreza e miséria.
Visões de desenvolvimento como esta vêm sendo questionadas por teóricos e
sociedade civil organizada, conforme abordado nesta tese. A população local
tem unido esforços na tentativa de romper com este ciclo, criando projetos
voltados às suas necessidades, como o de criação do bode, de beneficiamento
do buriti, de artesanato mineral, oficinas de costura, projeto da casa de farinha,
dentre outros. Essas iniciativas se inscrevem na lógica de convivência com o
semi-árido, mostrando que é possível conciliar a presença humana com os
frágeis ecossistemas caatingueiros. Essas são ações que revelam menor
impacto no ambiente e podem permitir sustentabilidade às comunidades. Deste
modo, o cenário que se desenha atualmente contém um misto de otimismo e
também de pessimismo. Otimismo porque as pessoas já estão se mobilizando
em torno de um objetivo comum. Pessimismo porque as ações locais parecem
se diluir frente à presença das corporações mineradoras e de outros interesses
contrários ao exercício da participação popular. Trata-se de uma tensão em
que atuam, lado a lado, dominação e libertação, vitória e derrota. E este é um
motor que mantém em pleno funcionamento o exercício humano na luta e
paixão pela vida.
156
CONSIDERAÇÕES FINAIS
o início da colonização portuguesa, os bandeirantes avançaram sertão
adentro, dizimando as populações indígenas, explorando os recursos
naturais e demarcando territórios. Com a intenção de estabelecer a pecuária
nos domínios do semi-árido brasileiro, varreram a área em busca de povos
para escravizar. Quando encontravam resistência, usavam de seu poderio de
“fogo” para dominar os grupos existentes. Utilizando o Rio São Francisco
penetraram a região central da Bahia, área da Chapada Diamantina.
Estabeleceram-se por lá, constituindo-se um dos elementos de formação dos
povos das caatingas. Paralelo à atividade pecuária, descobriu-se grande
quantidade de riquezas: primeiramente o ouro e, num segundo momento, o
diamante. Inicia-se então o processo histórico de ocupação dos povos externos
à região. Com o enfraquecimento da atividade canavieira na faixa litorânea,
muitos escravos foram deslocados para a região com o intuito de serem
utilizados na atividade pecuária e nos garimpos. Essa ocupação é marcada
pela violência que acompanhou as batalhas entre bandeirantes e indígenas e
entre bandeirantes e escravos. Violência que se inscreve nos modos de ser e
existir na região, perpetuando a relação mando/obediência que marca tanto as
relações patronais quanto as relações com lideranças políticas, criando
práticas de gestão da res pública baseadas na apropriação e uso privado dos
bens públicos, bem como no estabelecimento de políticas do favorecimento a
uma minoria privilegiada que historicamente tem dominado os pequenos
municípios da Chapada Diamantina.
N
O Brasil tem visto o Nordeste Seco como lugar incapaz de se auto-sustentar, o
que justifica intervenções. Desde aquelas mais comedidas e baseadas em
estudos científicos, até as faraônicas, como a construção de grandes
barragens em propriedades privadas ou ainda as bizarras, como a importação
de camelos da Argélia, cujo fim era adaptá-los como animal de montaria e
157
carga.
194
A oligarquia nordestina e os donos do poder
195
viam nessas
intervenções oportunidade ideal para enriquecimento e fortalecimento das
estruturas de domínio e subjugação às quais suas populações estavam
submetidas. As famílias tradicionais do Nordeste, as elites açucareiras e
latifundiárias usavam a seca como moeda de troca por favores políticos. Os
nordestinos pobres e sem terra respondiam à dominação de vários modos, ora
adaptando-se a ela e tirando algum proveito, ora sendo explorados até o limite
da condição humana, às vezes, respondendo com levantes e revoltas. De
modo que a violência tem marcado as relações sociais nordestinas, com crimes
de mando, vingança, cobrança de sangue e assassinatos comuns.
Desde o início da colonização a região da Chapada Diamantina foi devassada
de forma predatória. Primeiramente com a presença dos exploradores de ouro
e diamantes que após exaurirem as lavras diamantinas buscaram a extração
de pedras semi-preciosas, mármore azul, quartzo, dentre outras. Atualmente o
solo é fragmentado em propriedades privadas dedicadas à criação de bovinos,
caprinos e para a agricultura de pequena escala, além de atividades de
garimpo. Gradativamente, a região teceu sua dinâmica cotidiana em cima tanto
de escombros humanos gerados pelo menosprezo e abandono quanto dos
ecossistemas frágeis com risco de desertificação
196
.
Através das históricas lutas entre coronéis rivais criaram-se os primeiros
partidos políticos da região. Partidos que se mantêm presos às mesmas
dinâmicas anti-democráticas sob as quais foram criados, originando assim os
duelos e facções que se rivalizam pelo poder até os dias atuais. Essas
rivalidades conferem peculiaridade à democracia da região, uma vez que o
fenômeno do mandonismo subsiste com força, subjugando a população aos
ditames daqueles que se encontram no poder. As contradições e lutas se
interpõem: ora vive-se um intenso burburinho de participação, ora vive-se o
194
Sobre as obras de cunho intervencionista, ver o capítulo 2.
195
Raimundo Faoro. Os Donos do Poder: formação do patronato político brasileiro. Porto
Alegre: Globo, 1977.
196
Geovanni de Farias Seabra. Do Garimpo aos Ecos do Turismo: o Parque Nacional da
Chapada Diamantina. Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Geografia Física
da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998.
158
terror da não expressão. Dentro desta atmosfera de abandono e dominação, os
desafios para o futuro requerem negociação com os diversos poderes
existentes para abrir espaço a presença humana nos espaços povoados por
frágeis estruturas naturais.
No processo de convivência com a caatinga, a mulher e o homem sertanejos
criam e reproduzem práticas que garantem muito mais do que sua
sobrevivência. Relacionam-se com a natureza de forma a retirar dela tudo de
que precisam para o estabelecimento de uma vida plena, onde felicidade,
angústia, dor, tristeza, alegria e comemorações fazem parte de um complexum
cotidiano, como outra comunidade qualquer. Viver nas caatingas da Chapada
Diamantina não os torna mais ou menos felizes que outros. Torna-os
singulares nas experiências ímpares que possuem no diálogo com seus
territórios imaginários ao mesmo tempo em que compartilham a humanidade
que há em todos os povos. Irmanam-se com outros povos do mundo que
enfrentam condições parecidas, numa economia agrária de subsistência, cuja
condição climática os posiciona como sujeitos que convivem com o Semi-Árido.
Mas nada disso os torna “especiais”, torna-os antes, sujeitos de seu processo
histórico. Neste sentido, convém assinalar, que a ausência do Estado brasileiro
insiste em torná-los invisíveis, intensificando o seu isolamento geográfico, o
que resulta na negação do acesso aos direitos básicos garantidos pela
Constituição Brasileira, agravando a pobreza. Se antes era seu estilo de vida
rústico que aos olhos de um desavisado poderia indicar miséria, agora a
pobreza é real, sentida através da privação aos meios que garantiam e
coloriam sua existência: as manifestações culturais, a religiosidade e os
saberes medicinais.
Enquanto espaços em mutação, as caatingas apresentam as contradições e a
heterogeneidade do mundo inscrito na modernidade atual. Esses elementos
contêm a elasticidade própria das dinâmicas sociais em ebulição, o que quer
dizer que mesmo o estado de relativo isolamento geográfico de algumas
comunidades permite um fluxo de diálogo, contendo elementos inter-
relacionados do campo social Brasil e mundo. As mutações se impõem com
159
relevância. As tradições sofrem atualizações conforme a necessidade do
grupo, e também conforme as imposições das políticas macro-econômicas, das
políticas públicas intervencionistas e das práticas predatórias empreendidas
pelas mineradoras na região. As comunidades menores e mais fragilizadas
sofrem diretamente as conseqüências dessas ações, resultando no
enfraquecimento cada vez maior das tradições e modos de vida local.
Gradativamente, as populações tradicionais perdem seus referenciais, seus
conhecimentos tradicionais como o saber sobre o corpo e a saúde, que já não
atendem mais às suas necessidades e tampouco têm a mesma vivacidade de
outrora. A relação que tecem com a natureza e com a terra está em
metamorfose.
Esta metamorfose está diretamente relacionada à perda da magia do mundo,
condição básica para a manutenção da dimensão mítica como sedimento da
vida comunal. A transposição das barreiras porosas da modernidade fluída
permite que seja instaurado um processo de “minar” de dentro para fora, do
interior da vida comunitária, as dimensões da magia, criando a desarticulação
dos aspectos primordiais que conferiam identidade ao grupo. O exemplo
estudado no trabalho ilustra o processo de desarticulação que ameaça o
esfacelamento da comunidade. O Cercado vive intensamente este processo,
ou seja, encontra-se no epicentro do desencantamento do mundo: não está
totalmente desarticulado, nem absorveu por completo os estilos de vida
urbana, mas questiona o sentido das suas tradições. Há crise na produção de
sentidos dos habitantes do Cercado sobre si mesmos, sobre a utilidade dos
festejos, das rezas e rituais, dos usos diversificados do feitiço e do modo de
vida da comunidade. As práticas discursivas locais sinalizam para um hiato
entre os estilos de vida que preconizavam a magia da vida e aqueles estilos
que se avizinham. Neste momento a comunidade do Cercado vive algo
disforme, sem rosto e sem sombra. Algo que não sabem o que é, mas sentem
que um vazio toma conta de todos, gradativamente. Resta a rememoração dos
tempos de outrora, onde podem reviver, na imaginação, um tempo de ouro,
onde as coisas tinham um ritmo próprio e a natureza ditava os ciclos da vida.
160
Aos poucos, o modo de vida comunal vai sendo substituído pela competição e
individualismo, presentes nos atuais processos de disputa por terras, por rezes
e por mulher. A presença das mineradoras na região tem intensificado a
disputa pelos parcos postos de trabalho, causando inimizades entre famílias
que historicamente haviam se mantido unidas pela força da lida na casa de
farinha. A própria dinâmica na casa de farinha alterou-se com a presença da
energia elétrica que dispensa as pessoas que antes eram necessárias para
puxar a roda da moenda; o ritmo é outro: a temporalidade pacata agora ganha
ares de produtividade, uma vez que é necessário que se trabalhe depressa, as
conversas freqüentes na lida da roça ou da própria casa de farinha não são
mais possíveis, é necessário poupar também a energia elétrica, de alto custo.
A desarticulação está associada à perda do núcleo identitário central da
comunidade, representado pelas festividades, rituais, usos diversificados do
feitiço e relação intensa com a natureza. Em seu lugar não há a busca por
outros elementos de identificação; há um esvaziamento dos sentidos do viver e
habitar nas dimensões territoriais do Cercado. A própria relação que
mantinham com a terra, que antes ultrapassava a idéia de usufruto,
significando um espaço, um lugar por onde a vida flui, cujo sentimento de
pertença circunscrevia seus habitantes nos territórios imaginários de lutas e
conquistas, agora amarga o abandono, visível nas casas, nas roças e nos
espaços coletivos.
O processo de territorialização é marcado, conforme Alencar
197
, pelas diversas
dimensões, elementos e componentes, inscritos num processo histórico
contínuo e contraditório. Esse processo indica um território em uso, conforme
Milton Santos
198
. O território em uso indica a importância da investigação da
malha de conexões possíveis que são estabelecidas entre as comunidades em
diferentes níveis, estendendo essas conexões para a sociedade como um todo.
197
Raildo da Silva Alencar. Assentamento Rural: conflitos internos e a territorialização do MST
– Um estudo de caso. Dissertação de Mestrado em Geografia apresentada na Faculdade de
Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2005.
198
Milton Santos. Território e Sociedade: entrevista com Milton Santos. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2004.
161
A temporalidade das ações locais permite a visualização das relações, além de
permitir a compreensão das intersecções, dos nós desse processo.
Entre o território imaginário e ideal e o território da cotidianidade há um hiato
preenchido pela sobreposição de territorialidades desejadas: relações
solidárias; retorno a um tempo idealizado; lugar de fartura e concretude das
conquistas desejadas. Segundo Alencar, a construção do território faz parte
das estratégias identitárias, nas quais o sujeito tenta reconstruir seu modo de
vida, suas relações de parentesco, seus costumes e hábitos com a família. No
confronto com os acontecimentos cotidianos, a transmutação está inscrita num
tempo presente ao mesmo tempo em que se reconhece o caráter de
imutabilidade: os elementos humanos na composição paisagística parecem
permanecer inalterados até os dias atuais. Relatos de viajantes do século XIX
confundem-se com a observação empírica da paisagem de hoje: casas de pau-
a-pique se espalham por todos os lugares; cacimbas; cabaças; gibão de couro
cru corroboram a estética que fora antes estigmatizada pela visão de atraso
cultural. A oscilação entre a estética caatingueira e a aquisição de novos
padrões estéticos da modernidade mostra a efervescência de um processo que
se determina para além da relação entre tradição e modernidade. Conexões
são tecidas entre os modos de vida local e aqueles resultantes das
intersecções com outros grupos. A diferença é que essas conexões não se
traduzem em dissolução ou desarticulação desses modos de vida, mas em
complementaridade e troca. A questão central diz respeito ao modo como a
modernidade, na acepção de Bauman
199
, promove a desarticulação dos modos
de vida local e interfere diretamente nas conexões entre grupos vizinhos e a
sociedade em geral. Não somente a sedução do mundo mercadológico, mas a
racionalidade que não permite mais conferir sentido às crenças locais,
potencializa a perda da magia.
A tecnologia, o advento dos grandes sistemas de informação, redes de
mapeamento imagético e superação de limites imaginados pelo homem não
tem significado melhoria da qualidade do modo de vida em comunidades rurais
199
Zygmut Bauman. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
162
caatingueiras. Questões básicas como o enfrentamento da fome, da miséria e
da não participação na gestão pública têm intensificado a degradação da vida
local. Essas tecnologias têm se preocupado cada vez mais com o aumento da
potencialidade de consumo de grupos populacionais marginalizados.
Entretanto, ao colocá-los no epicentro da sociedade de consumo, os exclui
dessa mesma sociedade, pois seu pequeno poder de consumo não justifica tal
“investimento”. Configura-se assim uma tênue linha neste incongruente
processo: pessoas abaixo da linha de pobreza ocupando territórios imaginários,
compartilhados com latifundiários e “donos do poder”, irmanados pelo que resta
da crença da magia do mundo. Pensar em soluções que tragam melhoria da
vida local através de ações públicas responsáveis pela valorização de estilos
de vida solidários parece ser um grande desafio.
Algumas comunidades, muitas delas de difícil acesso, retiram seu sustento da
natureza e tecem com ela uma relação de temerosidade e respeito.
Desconhecem a finitude dos recursos naturais, mas conhecem verdadeiras
“fórmulas sagradas” que os livram da doença, da morte e da fome. Seu sistema
de trocas solidárias permite gerir a comunidade, muitas vezes, instalando e
mantendo uma escola em locais onde o poder público desconhece a
existência. Criam assim, uma irmandade de sujeitos intercambiáveis, onde os
sentidos das trocas representam algo mais do que suprir uma falta material.
Esta é uma problemática vivida não só no Cercado, mas em muitas outras
comunidades chapadeiras com relativo isolamento geográfico.
As negociações de uso do espaço são elementos imprescindíveis na produção
de sentidos das populações caatingueiras. Estas dinâmicas estão relacionadas
ao fluxo de determinação das águas e dizem diretamente da forma como se
constrói a sociabilidade do lugar. Segundo Milton Santos
200
, o mundo não
existe por si, mas para os outros. É o lugar que dá conta do mundo. A relação
entre o global e o local, entre os que mandam e os que não mandam, os ricos e
os pobres, os poderosos e os não poderosos se faz presente da mesma forma
200
Milton Santos. Metamorfoses do Espaço Habitado: fundamentos teóricos e metodológicos
da geografia. São Paulo: HUCITEC, 1996.
Milton Santos. Por uma Outra Globalização: do pensamento único a consciência universal. Rio
de Janeiro: Record, 2003.
163
que a noção de horizontalidade como resultado da vizinhança, coabitação e da
coexistência do diverso. Somam elementos para a compreensão dos sentidos
das pessoas acerca do outro que é diferente de si, tanto em relação à língua,
como com relação aos costumes, valores e interesses.
Entende-se como fundamental a discussão sobre os espaços de vida cotidiana
e seus desdobramentos, compreendendo as relações tecidas pelos habitantes
locais com seus espaços de lida. Muito mais que uma descrição de arranjos da
vida dos habitantes da Chapada Diamantina, é importante a preocupação em
compreender como o espaço da habitação, arredores e dinâmicas da natureza
da região dialogam com a lógica governamental de implantação das políticas
públicas a eles direcionadas. Entende-se o “lugar” como uma construção social
e que, portanto, obedece a lógicas de interesse diferentes para cada segmento
social. Tais lógicas estão em diálogo que poderão tornar-se efetivos e
sinérgicos ou poderão divergir, formando descompassos entre um
entendimento e outro. Segundo Peter Spink, há um complexo de ligações e
relações de colaboração, solidariedade, contradição, disputa e conflito presente
na discussão sobre o lugar; relações cujos sentidos estão em contínua
produção
201
. Da mesma forma, a noção de território em uso, preconizada por
Milton Santos, que por ser mais visível revela o drama e as contradições da
nação e a dialogia entre espaços e poderes.
Como aspecto desafiador, surge a integração das forças que convergem para o
desenvolvimento das nações pobres e a idéia de que é necessária a
preservação dos raros recursos naturais existentes no planeta. Mas não se
trata de um desenvolvimento a qualquer custo, que aniquila populações
tradicionais que vivem exclusivamente desta relação que mantém com a
natureza. Esse novo empreendimento requer que se pense integrando forças e
sinergias para a sustentabilidade do lugar. Conceitos amplamente defendidos
na Convenção da Diversidade Biológica
202
solicita aos Estados-membros que,
de acordo com a legislação nacional, respeitem, preservem e mantenham o
201
Solicitação feita pelo autor.
202
Brasil. Ministério do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Gestão dos
Recursos Naturais: subsídios à elaboração da Agenda 21 brasileira. Brasília, DF: Consórcio
TC/BR-FUNATURA, 2000.
164
conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades indígenas e locais
que incorporam estilos de vida tradicionais relevantes para a conservação e o
uso sustentado da diversidade biológica e que promovam sua aplicação mais
ampla com a participação e envolvimento dos detentores desses
conhecimentos, inovações e práticas. Além disso, encorajam o compartilhar
eqüitativo dos benefícios resultantes da utilização desses conhecimentos,
inovações e práticas.
O que se observa, no entanto, é que tanto a natureza, quanto os povos
tradicionais que dela sobrevivem são relegados ao esquecimento. E a ação das
políticas públicas, criadas para contemplar esta relação, sofre desvios na sua
aplicação e não atinge seus objetivos. As populações tradicionais
desenvolveram modos de vida particulares que envolvem grande dependência
dos ciclos naturais, conhecimento dos ciclos biológicos e dos recursos naturais,
tecnologias apropriadas, simbologias, mitos e até um linguajar próprio revelam
a sua integração com a natureza.
Conciliar a presença humana com espaços povoados por frágeis estruturas
naturais constitui um dos maiores desafios a ser enfrentado na atualidade. Com
a intenção de tornar esta relação menos predatória e impactante, surgiram
importantes reflexões sobre sustentabilidade, conceito que poderia trazer
respostas para esta convivência e tem sido na prática alvo de controvérsias e
questionamentos. Afinal, como conciliar o desenvolvimento com a necessária
sustentabilidade? Em contextos como o nosso onde a distribuição das riquezas
é uma das mais perversas e desiguais do mundo, em que a estrutura de
distribuição das terras e, conseqüentemente, dos recursos naturais contribui
para a criação de mecanismos excludentes, como pensar na conciliação da
ação humana sobre a natureza com necessidade de obtenção da melhoria da
qualidade de vida das pessoas?
A idéia de desenvolvimento tem sido ao longo dos anos adaptada às mais
diversas situações. Essa característica “camaleônica” do conceito tem
aumentado também a confusão em torno dos seus usos. Talvez o ponto
comum que aproxima os diferentes usos do conceito, seja a idéia marcante de
165
evolução e progresso. Mas no mundo do pós-guerra, constatou-se que a
inesgotável natureza já clamava por socorro e que o caminho trilhado até
então, de desenvolvimento econômico a qualquer custo, não mais seria
possível, uma vez que este dava seus primeiros sinais de esgotamento,
elevando consideravelmente as desigualdades sociais
203
.
De acordo com Arbix e Zilbovicius:
204
“Em um país de carências como o nosso, desenvolvimento já foi totem e tabu. Com profundas
raízes no passado, mas encravado nos territórios do futuro, esse conceito foi ao longo do
século XX fonte inesgotável de criação, proteção e destruição de novas imagens do mundo, em
especial nos países atrasados. Sob o domínio do Estado, insinuou-se para além do bem e do
mal. Momentos houve em que irrompeu prenhe de sentidos, envolvendo governantes e
governados com as razões da economia. Em outros, porém, mal conseguia disfarçar um vazio
cínico, que aproximou sua elasticidade de conceito ao de uma usina de ilusões.”
A adoção do conceito por parte dos organismos internacionais e do Governo
brasileiro atrelou-o aos ditames estritamente econômicos, relegando a planos
secundários dimensões importantes como a ecológica e a social. Embora se
trate de um conceito elástico podendo se adequar às diversas situações,
conforme o interesse que convém à nação ou outros grupos controladores, é
importante que não se perca de vista a dimensão da utopia que nos coloca
diante do desafio de superar os problemas ambientais e sociais que se
evidenciam atualmente.
Para Ignacy Sachs
205
, é importante que sejam abarcadas várias dimensões na
busca pelo desenvolvimento e sustentabilidade:
- sustentabilidade social: cujo objetivo é construir uma civilização do “ser”,
em que exista de fato maior eqüidade na distribuição do “ter”,
procurando assim melhorar as condições de vida das populações em
exclusão, diminuindo as diferenças entre ricos e pobres;
- sustentabilidade econômica: objetivando alocar de forma mais eficiente
os recursos, em uma ordem social econômica mundial mais justa;
203
Solange Silva-Sánches. Cidadania ambiental: novos direitos no Brasil. São Paulo:
Humanitas/Annablume/USP, 2000.
204
Glauco Arbix e Mauro Zilbovicius. Por uma estratégia de civilização. Em: Razões e Ficções
do Desenvolvimento. São Paulo: Editora UNESP, Edusp, 2001. Página 55.
205
Ignacy Sachs. Estratégias de transição para o século XXI – desenvolvimento e meio
ambiente. São Paulo: Studio Nobel Fundap, 1993.
166
- sustentabilidade ecológica: aumentando a capacidade de carga, com a
intensificação dos usos dos recursos potenciais dos ecossistemas, sem
prejuízos aos mesmos, limitando o uso de combustíveis fósseis e de
outros recursos facilmente esgotáveis, além de estipular limites no
consumo dos ricos e também estimular e intensificar a pesquisa em
tecnologias capazes de reverter a degradação;
- sustentabilidade espacial: equilíbrio nas dinâmicas de ocupação entre o
espaço urbano e o espaço rural e
- sustentabilidade cultural: procurando adaptar as diversidades culturais
ao meio ambiente e entorno social, incentivando soluções locais aos
problemas enfrentados.
Atualmente, à frente do novo pensamento integrado está o Relatório de
Desenvolvimento Humano, do Programa das Nações Unidas Para o
Desenvolvimento
206
. Nele estão contidas as noções de desenvolvimento
Humano como: o processo de alargamento das escolhas das pessoas e o nível
de bem estar, essência de desenvolvimento humano. Independentemente do
nível de rendimento, as três escolhas essenciais para as pessoas são: as de
ter uma vida longa e saudável, de adquirir conhecimentos e de ter acesso aos
recursos necessários a um padrão de vida adequado.
Priorizando a atuação do homem frente ao mundo em que vive, o Relatório de
Desenvolvimento Humano procura discutir questões que tangem aos valores
universais e colocam o homem em condições de igualdade no mundo
competitivo atual. Procura colocar em pauta eqüidade nos serviços de saúde,
educação e segurança para garantir que estes valores universais realmente
atinjam a todos numa proporção desejável.
O Economista indiano Amartya Sen representa um dos principais nomes dessa
corrente de pensamento. Para Sen, há que se buscar o equilíbrio entre as
206
Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, 1996.
Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, 1997.
167
dimensões do valor do humano e as determinações econômicas. Nenhuma
política pública terá sucesso se relegar a segundo plano a capacidade humana
de escolha. Aliás, a própria noção de desenvolvimento está atrelada à
expansão das capacidades humanas e das liberdades substantivas: (1)
liberdades políticas, (2) facilidades econômicas, (3) oportunidades sociais, (4)
garantias de transparência e (5) segurança protetora.
“As liberdades não são apenas os fins primordiais do desenvolvimento, mas também os meios
principais. Além de reconhecer, fundamentalmente, a importância avaliatória da liberdade,
precisamos entender a notável relação empírica que vincula, umas às outras, liberdades
diferentes. Liberdades políticas (na forma de liberdade de expressão e eleições livres) ajudam
a promover a segurança econômica. Oportunidades sociais (na forma de serviços de educação
e saúde) facilitam a participação econômica. Facilidades econômicas (na forma de
oportunidades de participação no comércio e na produção) podem ajudar a gerar a abundância
individual, além dos recursos públicos para os serviços sociais. Liberdades de diferentes tipos
podem fortalecer umas às outras”.
207
Sen propõe uma inversão nas análises das políticas públicas questionando o
sentido utilitarista e imediatista impulsionado pelos ditames econômicos. A
dimensão da esperança parece que ficou relegada à meia dúzia de otimistas,
os utópicos, que assim como Sen, ousam pensar que o mundo poderá ser um
lugar melhor do que tem sido ultimamente. Celso Furtado, economista
brasileiro de renome internacional, referência importante neste trabalho,
corrobora as visões de Sen. Para Furtado
208
:
“Hoje o Brasil tem uma renda dez vezes maior do que tinha quando comecei a estudar esses
problemas, mas tem também maiores desigualdades, e os pobres continuam igualmente
pobres. Cabe a pergunta: houve desenvolvimento? Não: o Brasil não se desenvolveu;
modernizou-se. O desenvolvimento verdadeiro só existe quando a população em seu conjunto
é beneficiada”.
Se pensarmos que as populações que habitam as caatingas da Chapada
Diamantina estão alijadas da participação nas determinações das políticas
públicas que a eles são dirigidas, como almejar a sustentabilidade, conciliando
tradições e liberdades? Ao propor mudanças na metodologia de análise do
desenvolvimento, tanto Sen quanto Furtado estão lançando as sementes de
um processo sensível a outros indicadores e dados que devem ser prioritários
quando a intenção é olhar profundamente para questões como pobreza,
desenvolvimento e sustentabilidade de determinada região. Para Sen, as
207
Amartya Sen.Desenvolvimento como liberdade.o Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Páginas 25 e 26.
208
Celso Furtado. Em Busca de um Novo Modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São
Paulo: Paz e Terra, 2002. Página 21.
168
próprias pessoas devem ter a responsabilidade de desenvolver e mudar o
mundo em que vivem, o que pressupõe o entendimento de que as pessoas
possuem capacidades, como expressão da liberdade substantiva. Essa
compreensão deve levar em consideração:
“1) sua relevância direta para o bem-estar e a liberdade das pessoas;
2) seu papel indireto, influenciando a mudança social, e
3) seu papel indireto, influenciando a produção econômica.
O princípio organizador que monta todas as peças em um todo integrado é a abrangente
preocupação com o processo do aumento das liberdades individuais e o comprometimento
social de ajudar para que isso se concretize. Essa unidade é importante, mas ao mesmo tempo
não podemos perder de vista o fato de que a liberdade é um conceito inerentemente
multiforme, que envolve considerações sobre processos e oportunidades substantivas”.
209
A relevância de se deter nessas dimensões diz respeito ao entendimento das
pessoas que habitam as caatingas da Chapada Diamantina como indivíduos
cuja expressão de liberdade os emancipa da tutela de quem quer que seja.
Compreendê-los como pessoas que possam expressar suas liberdades
substantivas requer que o Estado, as ONGS e segmentos da sociedade civil se
desfaçam dos velhos preconceitos e visões arraigadas que os enxerga como
“pobres miseráveis, vitimas da seca”, destituídos da capacidade de auto-
percepção ou auto-determinação. A importância dessa visão não se restringe
somente ao plano ideológico, mas deve estar no bojo das decisões políticas, no
cerne do planejamento das políticas públicas que historicamente insistem em
tratá-los como tábula rasa. Levar em consideração a capacidade de expressão
da liberdade das pessoas inverte a lógica de planejamento estatal, colocando
os indivíduos como agentes ativos e responsáveis tanto pela formulação,
quanto pelo planejamento, aplicação e avaliação das políticas públicas o que
poderia mudar significativamente a eficácia das ações voltadas ao
desenvolvimento da região.
Conciliar o modo de vida de comunidades caatingueiras da Chapada
Diamantina com as exigências impostas pela modernidade, requer que se
retomem práticas solidárias e de trocas, usuais em sistemas de intercâmbio e
organização do trabalho local. As formas de sociabilidade, os sistemas de
209
Amartya Sen. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Página 335 e 336. Ver também: Amartya Sen. Sobre Ética e Economia. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.
169
crença compõem a organização do cotidiano local do mesmo modo que os
laços de parentesco e vizinhança. Este estilo de vida corre o risco de
desarticulação, decorrente dos processos aqui discutidos. A questão que se
coloca passa pelas seguintes preocupações: contra o ritmo acelerado da
modernidade não há o que fazer. Resta, entretanto, saber se estes estilos
sobreviverão ajustados aos ditames da modernidade, ou se antes serão
capturados pelo mundo mercadológico e transformados em produtos turísticos
de um estilo de vida pseudo comunitário, pseudo tradicional.
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