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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
CURSO DE DIREITO
MESTRADO INTERINSTITUCIONAL EM DIREITO
UNISINOS – UPF
Ipojucan Demétrius Vecchi
A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA
DIMENSÃO NO CONTRATO DE TRABALHO: POSSIBILIDADES DE
CONCRETIZAÇÃO
São Leopoldo
2006
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Ipojucan Demétrius Vecchi
A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA
DIMENSÃO NO CONTRATO DE TRABALHO: POSSIBILIDADES DE
CONCRETIZAÇÃO
Dissertação apresentada a Unisinos como
requisito parcial para a obtenção do título de
Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. André Leonardo Coppetti
São Leopoldo
2006
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Ipojucan Demétrius Vecchi
A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS DE PRIMEIRA
DIMENSÃO NO CONTRATO DE TRABALHO: POSSIBILIDADES DE
CONCRETIZAÇÃO
Dissertação apresentada a Unisinos como
requisito parcial para obtenção do título de
mestre em Direito.
Aprovado em ___________ de 2006.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
RESUMO
O trabalho e sua regulamentação sofreram mutações de acordo com mudanças econômicas,
sociais e políticas. Ao longo do processo histórico, os trabalhadores conquistaram direitos e
forçaram o Estado a intervir nas relações de trabalho. Acontecimentos recentes colocam em
xeque o Estado interventor e reaparecem idéias (neo)liberais, que pregam a diminuição do
espaço público e sua tomada pelos privados, bem como a flexibilização dos direitos sociais
como forma de enfrentar o desemprego. Há um aumento geométrico do poder privado. No
enfrentamento desses problemas, com fins a assegurar os direitos básicos dos trabalhadores,
faz-se necessária a adoção de medidas, entre elas a da construção de um direito comum
baseado nos direitos humanos para enfrentar a possibilidade de dumping social. A tomada de
decisão no enfrentamento dos problemas deve ter em conta o contexto em que vivemos. A
hermenêutica filosófica nos capacita a podermos tomar consciência histórica de nosso
contexto e de nossa própria finitude e, por meio de um diálogo crítico e aberto com a tradição,
possibilita a abertura de sentidos mais adequados e promissores para a solução dos problemas.
Os direitos humanos fundamentais legam-nos uma tradição de enfrentamento e contraponto
ao poder. No momento pelo qual passamos, em que o Estado perde poder e os privados o
ganham, cabe recolocar a pergunta sobre os direitos humanos fundamentais e seu papel,
fazendo com que incidam também nas relações privadas. Assim, partindo de certas pré-
compreensões teórico/práticas dos direitos humanos fundamentais no Estado Democrático de
Direito, a problemática da presente pesquisa concentra-se na discussão sobre a possibilidade
de efetivação dos chamados direitos humanos fundamentais de primeira dimensão dentro do
contrato de trabalho. No campo do contrato de trabalho, onde o empregador detém o poder
empregatício, os direitos humanos fundamentais de primeira dimensão são trunfos necessários
dos trabalhadores para o limite desse poder. Por essa razão, faz-se necessária a concretização
ponderada dos direitos humanos de primeira dimensão no contrato de trabalho, como forma
de preservação da dignidade pessoal dos trabalhadores, o que se pode demonstrar pelo
exemplo da concretização do direito ao devido processo legal nas relações de emprego.
Palavras-chave: Contrato de Trabalho, Direitos Humanos Fundamentais, Eficácia,
Hermenêutica Filosófica, Ponderação, Primeira Dimensão.
RESUMEN
El trabajo y su reglamentación han sufrido mutaciones de acuerdo con cambios económicos,
sociales y políticos. A lo largo del proceso histórico, los trabajadores han conquistado
derechos y han forzado el Estado a intervenir en las relaciones de trabajo. Ocurridos recientes
han puesto en jeque el Estado interventor y han reaparecido ideas neo(liberales), que buscan
la disminución del espacio público y su tomada por los privados, así como la flexibilización
de los derechos sociales como manera de enfrentar el desempleo. Hay un crecimiento
geométrico del poder privado. En el enfrentamiento de estos problemas, con la finalidad de
asegurar los derechos básicos de los trabajadores, se hace necesaria la adopción de medidas,
entre ellas la construcción de un derecho común basado en los derechos humanos para
enfrentar la posibilidad de dumping social. La tomada de decisión en el enfrentamiento de los
problemas debe llevar en cuenta el contexto en que vivimos. La hermenéutica filosófica nos
capacita a tomar conciencia histórica de nuestro contexto y de nuestra propia finitud y, por
medio de un dialogo crítico y abierto con la tradición, posibilita la apertura de sentidos más
adecuados y prometedores para la solución de los problemas. Los derechos humanos
fundamentales nos han legado una tradición de enfrentamiento y contrapunto al poder. En el
momento por lo cual pasamos, en que el Estado pierde poder y los privados lo ganan, cabe
poner la pregunta sobre los derechos humanos fundamentales y su papel, haciendo con que
incidan también en las relaciones privadas. Así, partiendo de ciertas comprensiones ya hechas
teórico/prácticas de los derechos humanos fundamentales en el Estado Democrático de
Derecho, la problemática de la presente pesquisa se concentra en la discusión sobre la
posibilidad de efectividad de los llamados derechos humanos fundamentales de primera
dimensión dentro del contracto de trabajo. En el campo de contracto de trabajo, donde el
empleador detiene el poder, los derechos humanos fundamentales de primera dimensión son
trofeos necesarios de los trabajadores para el límite de ese poder. Por así ser, se hace necesaria
la concretización ponderada de los derechos humanos de primera dimensión en contracto de
trabajo, como manera de preservar la dignidad personal de los trabajadores, lo que se puede
demostrar por el ejemplo de la concretización del derecho al debido proceso legal en las
relaciones de empleo.
Palabras claves: contracto de trabajo, derechos humanos fundamentales, eficacia,
hermenéutica filosófica, primera dimensión, ponderación
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................... 07
2 O TRABALHO HUMANO: UM PANORAMA HISTÓRICO...................................... 16
2.1 A EVOLUÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E DE SUA
REGULAMENTAÇÃO..........................................................................................................
17
2.2 A EVOLUÇÃO DO TRABALHO E DE SUA REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL. 32
2.3 FENÔMENOS ATUAIS: O TRABALHO E SUA REGULAMENTAÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE...................................................................................................
37
2.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS RELAÇÕES DE TRABALHO..... 59
3 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E UMA NOVA POSTURA
HERMENÊUTICA................................................................................................................
83
3.1 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O SEU PAPEL PRODUTIVO PARA O
DIREITO.................................................................................................................................
84
3.2 O CARÁTER CONSTITUTIVO DE MUNDO QUE TEM A LINGUAGEM................ 89
3.3 SOBRE O CÍRCULO HERMENÊUTICO E A COMPREENSÃO................................. 93
3.4 A DIFERENÇA ONTOLÓGICA..................................................................................... 104
3.5 O PROCESSO HERMENÊUTICO NO DIREITO – O CARÁTER PRODUTIVO DA
INTERPRETAÇÃO, SUA INSERÇÃO E SEU PAPEL NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO..........................................................................................................................
112
3.6 A PROPORCIONALIDADE E A PONDERAÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO
DE DIREITO..........................................................................................................................
124
3.6.1 A proibição de proteção deficiente: a outra face da proporcionalidade no Estado
Democrático de Direito.........................................................................................................
137
4 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. O CASO DO CONTRATO DE TRABALHO.............................................
143
4.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIFERENÇAS E
APROXIMAÇÕES. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E SUAS VÁRIAS
DIMENSÕES..........................................................................................................................
144
4.2 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS FRENTE AOS
PARTICULARES....................................................................................................................
154
4.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS – ASPECTOS GERAIS......................................................................................
157
4.3.1 Os direitos humanos fundamentais são ori
g
inariamente contrapostos apenas ao
Estado? Existe controvérsia na aplicação de todos os direitos humanos fundamentais
frente aos particulares?........................................................................................................
158
4.3.2 A eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas: teorias
que afirmam essa eficácia.....................................................................................................
162
4.3.2.1 As teorias da eficácia mediata e imediata: considerações e questionamentos............ 163
4.3.2.2 A defesa de uma “eficácia imediata ponderada”......................................................... 168
4.4 OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO CONTRATO DE TRABALHO.. 177
4.4.1 O contrato de trabalho: configuração e o fenômeno do poder empregatício......... 179
4.4.2 Os direitos humanos fundamentais “inespecíficos” no contrato de trabalho......... 182
4.4.3 Um caso exemplar: o “devido processo legal” e o poder de punir do
empregador............................................................................................................................
194
4.4.3.1 O poder disciplinar do empregador e o devido processo legal no contrato de
trabalho....................................................................................................................................
199
5 CONCLUSÃO.................................................................................................................... 211
REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 222
7
1 INTRODUÇÃO
Num mundo cada vez mais globalizado os problemas também se tornam globais e as
possíveis soluções desses problemas ganham em complexidade. Não mais podemos pensar
em soluções locais sem levar em conta o global, o que não importa em afirmar a
desnecessidade ou, mesmo, a total impotência das soluções locais.
Os direitos humanos fundamentais foram entendidos, durante muito tempo, como uma
salvaguarda do indivíduo perante o arbítrio do poder estatal. Assim, esses direitos, na sua
visão liberal, eram concebidos como esferas de liberdade diante de um poder expansivo e
capaz de destruir a autonomia individual humana. O histórico da evolução social, todavia, tem
demonstrado que o fenômeno do poder não se concentra somente nas mãos do Estado. Num
momento de globalização marcado pelo signo do neoliberalismo, agentes privados ganham
poder geométrico e passam, como nunca antes, a representar um perigo efetivo para o respeito
e a efetivação dos direitos humanos fundamentais, entendidos como exigências ético-jurídicas
de respeito à dignidade, liberdade e igualdade humanas num determinado período histórico.
Assim, se, por um lado, cada vez mais o discurso dos direitos humanos fundamentais
se faz presente no dia-a-dia do Direito e da política, também a violação desses direitos, seja
por parte dos Estados, seja por parte dos particulares, ocupa lugar central no cotidiano,
chegando, algumas vezes, a assumir caráter dramático, principalmente em países periféricos
como o Brasil.
Partindo de certas pré-compreensões teórico-práticas dos direitos humanos
fundamentais no Estado Democrático de Direito, e segundo o viés crítico da hermenêutica
filosófica, a problemática da presente pesquisa concentra-se na discussão sobre a
possibilidade de efetivação dos chamados “direitos humanos fundamentais de primeira
dimensão” no contrato de trabalho, numa postura que considera que a dignidade humana e os
direitos humanos fundamentais devem se irradiar e ter efeitos diretos ponderados em todas as
relações jurídicas e sociais.
Como entender que um indivíduo, pelo simples fato de estar na posição contratual de
trabalhador/empregado, possa ser despido de direitos básicos, sendo considerado um cidadão
de segunda classe numa sociedade e num Estado Democrático de Direito como o brasileiro?
Como entender que os direitos humanos fundamentais de primeira dimensão sejam
desconsiderados nas relações de trabalho numa sociedade e num Estado que têm entre seus
8
fundamentos a cidadania e a dignidade da pessoa humana e que reconhecem um rol generoso
de direitos humanos fundamentais, além de se regerem, em nível internacional, pela
observância desses direitos?
Essas questões suscitaram o tema da concretização dos direitos humanos fundamentais
de primeira dimensão no contrato de trabalho, pois percebemos que na teoria jurídica
tradicional (liberal) sobre os direitos humanos são estabelecidas verdadeiras graduações de
cidadania e dignidade. Nas relações entre indivíduo e Estado, as graduações de cidadania e
dignidade são máximas, são qualificadas, porém, nas relações entre indivíduos, mostram-se
fragilizadas, quando não vilipendiadas e esquecidas.
Constatamos, portanto, um tratamento das relações sóciojurídicas na esfera dita
privada segundo o viés de uma concepção liberal individualista, incompatível com os
postulados da sociedade e do Estado Democrático de Direito, que acaba por desproteger e
desconsiderar os direitos daqueles se encontram em posições de
vulnerabilidade/subordinação.
Ao contrário do que possa parecer, a análise que privilegia os direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão não importa em desprezo aos direitos sociais, nem
desconsidera a complementaridade e indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais, mas
justamente o contrário. Procuramos demonstrar que os direitos humanos fundamentais devem
ser considerados como um todo indivisível e que, assim, para o gozo concreto dos direitos de
segunda dimensão nos contratos de trabalho, devemos considerar a imbricação que os
mesmos têm com os direitos de primeira dimensão. Não raro, a violação destes últimos
favorece o vilipêndio dos primeiros.
Estando o empregado numa situação de vulnerabilidade/subordinação perante o
empregador em todos os contratos de trabalho, tendo em vista, ainda, o aumento geométrico
do poder (econômico, social, político, fático) dos privados num momento de globalização
neoliberal, o questionamento que nos orientou na pesquisa foi no sentido de como tornar
efetivos os direitos humanos fundamentais de primeira dimensão dentro dessas relações como
medida necessária para o reforço da observância integral das várias dimensões desses direitos.
Assim, desenvolvemos parâmetros para, tendo em conta a historicidade do processo de
compreensão desses direitos, viabilizarmos a aplicação ponderada dos direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão nos contratos de trabalho, como condição sine qua non
para um processo de efetivação da cidadania dentro dos muros privados, num movimento de
9
valorização da pessoa humana em sua dignidade independentemente das relações onde estiver
figurando.
Na busca de novas compreensões e de revisão crítica das pré-compreensões sobre os
direitos humanos fundamentais e de sua aplicação ou não nas relações privadas, a
hermenêutica filosófica mostrou-se como condição de possibilidade para um mais adequado
tratamento do tema. A hermenêutica filosófica chama nossa atenção para o caráter lingüístico
e histórico do sentido, bem como para o fato de que nossas compreensões sobre os temas
estão marcadas por pré-compreensões muitas vezes enganadoras. Assim, ao mesmo tempo em
que nos adverte sobre a impossibilidade de interpretarmos como se estivéssemos fora do
mundo, também impõe que coloquemos em xeque essas pré-compreensões, adotando uma
postura de questionamento crítico. A hermenêutica filosófica questiona o dogmatismo, pois
sabe da finitude que marca o conhecimento e o próprio ser humano. Assim, podemos nos dar
conta de que os fenômenos não se dão a conhecer de forma integral, pois em tudo aquilo que
se mostra algo se vela.
Entendemos, portanto, que a hermenêutica filosófica é fundamental para a suspensão
de concepções marcadas por um sonho dogmático que defende a eternidade de determinados
sentidos e que, para o caso do tema em foco, somente vislumbra os direitos humanos
fundamentais nas relações entre indivíduo e Estado, não nas relações entre indivíduos. Tendo
em conta essa temática e esses objetivos, a presente dissertação é divida em três capítulos, nos
quais tratamos das questões consideradas pertinentes ao deslinde do tema.
No primeiro capítulo procuramos contextualizar o trabalho humano e sua
regulamentação, esquadrinhando um panorama histórico. Tratamos da evolução internacional
do trabalho e de sua regulamentação para, depois, analisar essas questões no tocante ao Brasil.
Num terceiro momento analisamos os fenômenos atuais que impactam o trabalho e sua
regulamentação para, então, avaliar tais questões sob o enfoque do Estado Democrático de
Direito. Assim, fazemos uma viagem ao longo da evolução das formas com que o trabalho
humano se organizou e como foi institucionalizado socialmente.
Fazendo registros que remontam às prístinas eras, onde o trabalho humano era
realizado de forma comunitária e sem divisão, passamos pelo regime de trabalho escravo,
quando o trabalhador sequer era considerado sujeito, mas objeto de direito, e demonstramos o
seu declínio. Tratamos do trabalho sob o regime feudal, onde era prestado sob regime servil,
até chegar às corporações de ofício, quando os trabalhadores organizaram a produção dos
10
bens e serviços. Relatamos ainda, que com o passar do tempo essa forma de organização do
trabalho descambou para o aproveitamento por parte de alguns do trabalho alheio.
Com a política do mercantilismo, o acúmulo de capital e o nascimento dos Estados
nacionais (absolutos), que favoreceram ainda mais o acúmulo de capital, o trabalho começou
a ser objeto de relações contratuais de natureza civil. Ocorre que essa forma de organização
do poder acabou não mais servindo aos interesses da burguesia, que não queria mais apenas o
poder econômico, mas também o político. Assim, com a Revolução Francesa se inaugurou a
fase do Estado Liberal.
Em consonância com os ideais liberais, os contratantes são considerados livres e iguais
(formalmente), o que favorece o aparecimento de relações de trabalho marcadas por
profundas injustiças sociais. Com a Revolução Industrial, o aparecimento das máquinas
movimentadas a vapor, de novas tecnologias de produção e transporte, bem como com o
avanço do capitalismo, a exploração do trabalho humano através do contrato ganhou uma
dimensão jamais vista.
Sem qualquer regulamentação, o contrato de trabalho era considerado um contrato
civil e, assim, os trabalhadores viam serem impostas condições degradantes de trabalho. Com
o passar do tempo e ao perceberem que as condições indignas de trabalho alcançavam a todos,
os trabalhadores ganharam consciência de classe e com lutas sociais acabaram fazendo ceder
o Estado liberal que passou a regulamentar, num primeiro momento de forma tímida, as
relações de trabalho. Nascia, então, o Direito do Trabalho. Os movimentos sociais, os
acontecimentos políticos e econômicos e os conflitos acabaram por solapar as estruturas do
Estado liberal que se transmutou em Estado Social de Direito.
Fazendo, então, um corte de cunho meramente expositivo, passamos a tratar do
trabalho e sua regulamentação no Brasil. Em nosso país, durante muito tempo as relações de
trabalho ou eram travadas sob o regime escravo ou numa roupagem muito próxima ao
servilismo. Com o passar do tempo, alguns impactos econômicos e sociais fizeram avançar o
capitalismo brasileiro e também tiveram como conseqüência o nascimento de uma classe
operária reivindicativa.
A regulamentação do trabalho no Brasil foi marcada por pressões internas
reivindicativas e externas, estas no tocante às pressões dos países desenvolvidos em impor aos
países periféricos o estabelecimento de direitos trabalhistas mínimos com fins de
estabelecimento de equilíbrio nas relações comerciais internacionais. A Constituição Federal
11
Brasileira de 1988 foi um marco na evolução da regulamentação do trabalho no país, pois os
direitos dos trabalhadores foram alçados, como nunca antes na história constitucional
brasileira, ao patamar de direitos humanos fundamentais num rol razoavelmente generoso de
direitos.
Enfocamos, ainda, que, na contramão desse movimento de proteção dos trabalhadores,
a globalização neoliberal aponta para caminhos diversos. O forte abalo sofrido pelo Estado de
bem estar social nos países centrais, combinado com a queda do bloco soviético, conduziu a
que as idéias neoliberais se tornassem difundidas de forma global.
O neoliberalismo traz em seu receituário a diminuição do papel do Estado e o
fortalecimento dos grupos privados; o favorecimento de medidas que facilitam a livre-
circulação do capital; a quebra de monopólios estatais e das barreiras alfandegárias; a
desregulamentação estatal da economia e a prevalência da lex mercatoria, bem como a
desregulamentação/flexibilização dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários. Essa
concepção provoca um enfraquecimento enorme do Estado e o fortalecimento geométrico dos
poderes privados, que ganham poder econômico, social, político e jurídico, pois impõem aos
Estados nacionais seus interesses por meio de organismos internacionais, como o Fundo
Monetário Internacional (FMI) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), entre outros.
Juntamente com isso, novas tecnologias e formas de organização produtivas
(toyotismo) impõem mudanças radicais na forma como os produtos e serviços são produzidos
e comercializados, com as megacorporações transnacionais podendo optar seletivamente por
onde irão produzir, podendo, então, barganhar com os Estados nacionais condições mais
favoráveis aos seus interesses. Todas essas mudanças acabam tendo impactos enormes no
mundo do trabalho, gerando desemprego, precarização e o desprezo pela dignidade dos
trabalhadores.
Enfocamos, ainda, no primeiro capítulo o total descompasso das políticas neoliberais
em face do Estado Democrático de Direito fundado pela Constituição Federal de 1988 no
Brasil. Assim, procuramos apontar a inconstitucionalidade de medidas flexibilizantes que
atingem direitos humanos fundamentais, por serem desconformes com os princípios
constitucionais. Por fim, numa ótica de complementaridade, não de exclusão no tocante ao
papel relativo ao Direito interno brasileiro, enfocamos a necessidade de efetivação de um jus
congens global fundado nos direitos humanos fundamentais, como forma de evitar o dumping
social e de estabelecer condições de trabalho favoráveis à preservação da dignidade dos
trabalhadores em nível global.
12
Após termos contextualizado o entorno onde nos inserimos e a partir de onde
interpretamos, no segundo capítulo procedemos à elucidação de algumas categorias
fundamentais da hermenêutica filosófica. A hermenêutica filosófica tem um caráter produtivo
para o Direito, pois se baseia na compreensão como um existencial humano, não como uma
aplicação asséptica de métodos. Dessa forma, o ser humano se constitui compreendendo e o
Direito passa a ser visto como fenômeno histórico no qual é do encontro do intérprete com os
textos jurídicos que se torna possível o sentido, sempre adaptado ao contexto.
Nesse capítulo analisamos três categorias fundamentais para a hermenêutica filosófica,
quais sejam: a linguagem, o círculo hermenêutico e a diferença ontológica. Para a
hermenêutica a linguagem não é vista como instrumento, mas como condição de
possibilidade, como medium onde ocorrem nossas experiências de mundo. O mundo se
constitui como mundo pela linguagem. O conhecimento é lingüístico, e é por meio da
linguagem que se torna possível a experiência hermenêutica como encontro entre a tradição e
o intérprete, proporcionando uma fusão de horizontes.
Dessa forma, a interpretação não se dá no vazio, mas, sim, funda-se na compreensão,
que, por sua vez, está embasada e antecipada em pré-compreensões. É o círculo hermenêutico.
São nossos pré-juízos que guiam nossa compreensão; são os primeiros esboços que devem ser
colocados sob questionamento para que seja possível a separação entre aqueles pré-juízos
autênticos e os inautênticos.
No círculo hermenêutico, nossos primeiros esboços, verdadeiros projetos de sentido,
vão sendo substituídos ao longo do processo hermenêutico por concepções que devem se
esforçar por ser mais adequadas à coisa mesma, no caso do Direito, aos textos normativos e
ao caso. O questionamento desses pré-juízos tem, assim, papel primordial. Além disso, a
consciência histórica efeitual, como consciência que é ativada e que ao mesmo tempo, sofre
os efeitos da histórica, tem papel fundamental nessa atitude crítica, podendo nos ajudar a
elucidar a compreensão mais adequada.
Dessa forma, ao ser apropriada para a práxis do Direito, a hermenêutica filosófica
chama nossa atenção para o papel fundamental que deve ter o questionamento da tradição
jurídica para o esclarecimento de nossos pré-juízos. O dogmatismo, tão presente no mundo
jurídico, acaba, não raras vezes, por encobrir e congelar o sentido, ao contrário de nos permitir
um novo e aberto encontro com a verdade.
13
Por fim, analisamos o teorema da diferença ontológica, que, ao nos lembrar da
diferença e da relação que existe entre o ser e os entes, procura nos acordar dos sonhos
dogmáticos e levar a que tomemos consciência do caráter finito e histórico do conhecimento,
da interpretação e do próprio ser humano.
Para o objeto de nossa pesquisa, a hermenêutica filosófica possibilitou um novo olhar
sobre a pergunta que colocou como tema os direitos humanos fundamentais, ou seja, como
proteger a pessoa humana diante do arbítrio e do poder? Isso tornou possível novas respostas
para essa questão num novo contexto. Assim, ao sermos guiados pela hermenêutica filosófica,
inserimos a interpretação dos fenômenos jurídicos no contexto no qual nos localizamos, ou
seja, o Estado Democrático de Direito, e, com base nos horizontes de sentido dessa concepção
estatal e societária, encaminhamos nossos questionamentos críticos acerca da hermenêutica
tradicional, na qual a interpretação não leva em conta o contexto. Embasados na concepção da
sociedade e do Estado Democrático de Direito, com seus princípios e valores fundamentais,
entre eles os direitos humanos fundamentais, é que questionamos sobre como implementar,
substancialmente, esse novo paradigma.
Finalizando o segundo capítulo, então, afirmamos que a ponderação/proporcionalidade
são verdadeiros existenciais no Estado Democrático de Direito, são modos de ser do intérprete
e desse Estado. Ora, o conflito e a tensão entre princípios, valores e direitos nessa forma
estatal e societária não são algo a ser desprezado, mas, em virtude da pluralidade, algo que se
apresenta como corriqueiro. Assim, cabe ao intérprete efetivar todos esses bens, cabendo à
ponderação/proporcionalidade um papel fundamental na efetivação equilibrada dos princípios,
valores, direitos e interesses em tensão.
Com esses aportes é que, no terceiro capítulo, tratamos da eficácia dos direitos
humanos fundamentais nas relações privadas, dando enfoque especial para o caso do contrato
de trabalho. Nesse capítulo tratamos das questões ligadas à noção de direitos humanos
fundamentais e sua concepção contemporânea, na qual esses direitos são enfocados sob o
prisma da indivisibilidade e complementaridade.
No tocante à noção desses direitos, optamos por fazer aproximações, mais do que
separações, entre os chamados “direitos humanos” e os “direitos fundamentais”. Com base
numa fundamentação ético-jurídica que, a nosso ver, auxiliou na defesa da eficácia desses
direitos nas relações privadas, optamos pela expressão “direitos humanos fundamentais”
como uma síntese entre os direitos humanos e os direitos fundamentais. Entendemos que
14
esses direitos são históricos e concretizam exigências ético-jurídicas relativas à dignidade,
liberdade, igualdade e solidariedade humanas.
Outrossim, entendemos ser necessário o tratamento desses direitos como conjunto
indivisível, visto que as várias dimensões de direitos se cumulam e se articulam
complementarmente na defesa da pessoa humana frente ao arbítrio e ao poder. Esclarecemos
alguns aspectos no tocante ao tema da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas
relações privadas relativos ao significado dado à expressão “eficácia”, bem como sobre o
significado de afirmar essa eficácia frente aos “privados”, quando sugerimos, então, quem
pode ser considerado como privado.
Questionamos a doutrina tradicional que afirma que os direitos humanos fundamentais
são originariamente contrapostos em face do Estado, como uma interpretação liberal desses
direitos, e enfocamos as teorias que disputam o sentido da eficácia desses direitos nas relações
privadas. Analisamos mais pormenorizadamente as teorias da eficácia imediata e mediata
desses direitos nas relações privadas. Após a análise dessas teorias, passamos a expor aquilo
que denominamos de “eficácia imediata ponderada”, como a maneira mais adequada para o
reconhecimento e aplicação dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas, visto
ser capaz de harmonizar os vários interesses conflitantes no tema.
Traçadas as linhas gerais, adentramos na análise da eficácia dos direitos humanos
fundamentais nas relações de emprego, caracterizando essas relações e mostrando a
onipresença do fenômeno do poder empregatício nos contratos de trabalho. Quanto aos
direitos humanos fundamentais, optamos pela análise dos direitos de primeira dimensão, que
denominamos na esteira da doutrina espanhola como “inespecíficos”, no intento de mostrar a
necessidade da proteção integral da pessoa humana no contrato de trabalho. Com isso,
tentamos mostrar que não basta a proteção dos direitos sociais trabalhistas nas relações de
emprego, visto que, muitas vezes, o desrespeito aos direitos de primeira dimensão acaba
refletindo e acarretando a violação dos direitos de segunda dimensão.
Analisamos algumas decisões do Tribunal Constitucional Espanhol e dos tribunais
brasileiros para verificar como a eficácia dos direitos humanos fundamentais de primeira
dimensão nos contratos de trabalho tem sido enfrentada. Por fim, ao privilegiarmos a análise
dos direitos humanos fundamentais de primeira dimensão do empregado perante o poder
punitivo do empregador, analisamos o caso exemplar do direito ao devido processo legal, seu
nascimento e concepções atuais, sua incidência ou não em relações privadas e no contrato de
15
trabalho, em especial, e a possibilidade de sua aplicação direta e ponderada no contrato de
trabalho.
16
2 O TRABALHO HUMANO: UM PANORAMA HISTÓRICO
Não há como entender o Direito, em geral, e o Direito do Trabalho, em especial, sem
os vislumbrarmos imbricados com a história. É a compreensão histórica, é o mergulho
consciente na historicidade de toda compreensão que torna possível a tomada de posição
diante do fenômeno jurídico. Assim, para compreendermos autenticamente o fenômeno
jurídico não podemos fugir da história; precisamos, sim, ter uma atitude crítica frente a ela, e
ter a consciência de que sempre lançamos nossos questionamentos com base no contexto
histórico existencial em que vivemos.
O diálogo com a historicidade, que se torna possível pelo fio condutor da linguagem,
permite-nos abordar as manifestações fenomênicas da tradição jurídica, possibilitando o
aparecimento de novos sentidos e tornando possível a compreensão do passado e do presente,
bem como possibilita a projeção de sentidos para o futuro de acordo com os horizontes que
abrimos nessa tarefa compreensiva e crítica. O Direito é fenômeno histórico-cultural e, assim
sendo, é influenciado e influencia várias manifestações sociais, sendo parte integrante das
sociedades humanas nas suas mais diversas formas de expressão.
Buscaremos, então, neste primeiro capítulo, traçar algumas linhas que demonstrem as
transformações sócioeconômicas, políticas e jurídicas pelas quais vêm passando o trabalho
humano ao longo de sua evolução histórica na ótica do Direito do Trabalho. Centrar-nos-
emos, de forma mais profunda, na análise da situação atual em que se encontra o trabalho e a
sua regulamentação, visto que grandes transformações sócioeconômicas, políticas e jurídicas
plantam uma série de interrogantes sobre o futuro do trabalho e da sua regulação.
Assim, é necessário fazermos uma averiguação de como evoluiu o trabalho e o Direito
do Trabalho nos diversos períodos históricos, primeiramente analisando essa evolução
considerada em nível internacional e, depois, num segundo momento, no Brasil, para, por fim,
analisar o momento atual em que vivemos e propor algumas alternativas para os problemas
atuais. Além disso, diante da necessidade da análise das normas que regulamentam o trabalho,
será necessário que, ao analisarmos a regulação do trabalho, também façamos um estudo dos
modelos estatais e seus paradigmas de regulamentação jurídica do trabalho.
Todo o enfoque do presente capítulo terá por norte assentar as bases sócioeconômicas,
políticas e jurídicas do trabalho e de sua regulamentação a fim de que possamos, com base na
17
hermenêutica filosófica, descortinar novos horizontes para o entendimento dos direitos
humanos fundamentais no contrato de trabalho.
2.1 A EVOLUÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO E DE SUA
REGULAMENTAÇÃO
Analisando a evolução do trabalho humano e de sua regulamentação podemos fazer
uma divisão em fases, às quais faremos breves referências. Cabe salientar, todavia, que não
podemos entender tais fases como se sucedessem de forma totalmente simétrica em todos os
lugares e ao mesmo tempo. É necessária tal advertência visto que o começo de uma nova fase
não acarreta, necessariamente, o aniquilamento da anterior, pois, mesmo havendo
manifestações de uma evolução em determinadas sociedades, nessas mesmas sociedades ou
em outras, permaneceram manifestações da fase anterior. Assim, por exemplo, enquanto na
Europa se vive em plena fase de capitalismo industrial, a sociedade brasileira ainda se
encontra marcada por relações de produção baseadas no trabalho escravo.
Dito isso, passemos à análise proposta.
Na sociedade pré-industrial, ou seja, antes da Revolução Industrial, apesar de inegável
a existência de trabalho humano, não se pode falar numa regulamentação desse trabalho que
possa ser caracterizada como parte do ramo do Direito denominado “Direito do Trabalho”, o
qual é um produto da sociedade ocidental, capitalista e industrial.
1
Segundo constam de registros históricos, nas sociedades ditas primitivas a divisão
entre os membros da comunidade não se fazia sentir; assim, a rigor ninguém trabalhava para
ninguém. Não havia, portanto, relações de trabalho em que um homem tivesse que trabalhar
para outro sob suas ordens; não se fazia presente a divisão do trabalho, que era muitas vezes
realizado coletivamente; não havia acúmulos e trabalhava-se para o atendimento de
necessidades as mais básicas. Contudo, essa situação foi se alterando com o domínio humano
1
MARANHÃO, Délio; CARVALHO, Luiz Inácio B. Direito do trabalho. 17. ed. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1993, p. 14-15. GOMES, Orlando; GOTTSCHALK, Élson. Curso de direito do trabalho. 13.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994, p. 1 e CAMINO, Carmen. Direito individual do trabalho. 3. ed. Porto
Alegre: Síntese, 2003, p. 27. Sem negar de forma cabal esta perspectiva, Cordeiro entende que não é
totalmente correta, pois, segundo ele, as manifestações de regulamentação do trabalho humano vêm desde
épocas remotas e devem ser consideradas como manifestações de Direito do Trabalho. CORDEIRO, António
Menezes. Manual de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 1999, p. 34.
18
sobre instrumentos de trabalho, com a divisão do trabalho e o aparecimento de relações de
poder.
2
Com o passar do tempo surgiram conflitos entre grupos diversos, e as guerras
trouxeram como conseqüência o trabalho escravo. Com efeito, num primeiro momento as
guerras causavam a dizimação dos vencidos, que eram mortos, porém, a partir de um
determinado momento, os vencedores passaram a ver de outra forma o resultado da guerra:
não era “produtivo” matar os vencidos, era mais “útil” submetê-los à escravidão, retirando-
lhes a condição de homens livres.
3
Portanto, a escravidão foi produto das guerras entre os povos ou grupos, pelas quais os
perdedores tornavam-se escravos. A escravidão é registrada como a primeira manifestação de
opressão flagrante nas relações de trabalho, na qual o trabalhador não era considerado sequer
pessoa, mas coisa, não sendo, portanto, sujeito de Direito, mas, sim, objeto de Direito. Isso
não significa que não houvesse algumas leis que protegiam os trabalhadores, como se deu no
Código de Hamurabi, por exemplo, porém isso era excepcional. O que marcou a organização
do trabalho no mundo antigo foi o regime de trabalho escravo, fenômeno que durou por
séculos.
4
O relatado não significa, entretanto, que junto com o trabalho escravo também não
tenha se desenvolvido o trabalho de homens considerados livres (escravos libertos) e homens
livres do povo, como camponeses, artesãos e operários. Tanto é assim que a locatio conductio
operarum, no Direito Romano, era a forma de regular o trabalho desenvolvido por pessoas
livres, sob orientação de outras pessoas e mediante uma retribuição (merces).
5
A difusão das idéias cristãs, o reconhecimento da natureza igual dos humanos e as
lutas dos escravizados levaram a que o sistema de trabalho baseado na escravidão fosse
paulatinamente colocado de lado. Não se pode esquecer, todavia, a utilização desse tipo de
2
OLIVEIRA, José César de. Formação histórica do direito do trabalho. Curso de direito do trabalho – estudos
em homenagem de Célio Goyatá. Coordenadora: Alice Monteiro de Barros. v. I. São Paulo: Ltr., 1993, p. 35.
3
CAMINO, Carmem, op. cit., p. 28; OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 38.
4
RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de direito do trabalho. Rio de Janeiro: José Konfino, 1972, p. 11.
5
CORDEIRO, António Menezes, op. cit., p. 38. Analisando o trabalho na Antigüidade Clássica, com enfoque
especial na civilização grega, que acabou influenciando a romana, Anderson afirma claramente que o trabalho
escravo não era exclusivo, pois existiam trabalhadores livres. Todavia, o autor salienta que a forma de trabalho
dominante era o trabalho escravo. Afirma, ainda, que, embora a escravidão fosse um modo de trabalho
conhecido por outros povos, foram as civilizações grega e romana que, propriamente, inventaram o modo de
produção escravo, sobre o qual se assentaram as suas realizações e o seu eclipse. ANDERSON, Perry.
Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 21-22.
19
trabalho até o século XIX em vários países e, infelizmente, o reaparecimento dessa forma
indigna de trabalho mesmo nos dias correntes.
6
Com a fragmentação do Império Romano que se deu a partir de 476d.c., houve
alterações de monta nas relações de trabalho quando a Igreja, o feudalismo e as chamadas
“corporações de ofício” ganharam poder
7
. O regime de trabalho no feudalismo, surgido da
distribuição de propriedades privadas através da negociação entre os “reis dos povos
bárbaros” e a nobreza romana, bem como da doação dessas terras aos nobres em troca de
fidelidade e vassalagem, na verdade, não diferia muito da própria escravidão para aqueles que
prestavam trabalho.
8
No chamado “servilismo”, ou melhor, na servidão que provinha desse arranjo político,
jurídico, social e econômico, o trabalhador, especialmente os camponeses, também não era
totalmente livre, sendo, aliás, denominado “servo da gleba”. Esses, em troca de proteção
militar e política, eram obrigados a trabalhar nas terras dos senhores feudais, não as podendo
abandonar, a entregar aos senhores feudais grande parte da sua produção e estar
6
OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 40. Cabe aqui fazer uma advertência, ou seja, da diferença entre o
trabalho escravo na Antigüidade e do seu perfil no mundo Moderno. Prado Júnior lembra que, na Antigüidade,
o trabalho escravo era visto como algo tão natural que se entrosava nas estruturas material e moral das
sociedades. Assim, segundo o autor, na Grécia ou em Roma a escravidão era como o salariado de nossos dias,
a qual condenada e discutida por muitos, aparecia aos olhos da grande maioria como algo necessário e fatal.
Todavia, adverte o autor que muito mais grave “foi a escravidão para as nascentes colônias americanas. Elas se
formam neste ambiente deletério que ela determina; o trabalho servil será mesmo a trave mestra de sua
estrutura, o cimento com que se juntarão as peças que as constituem... Mas há outra circunstância que vem
caracterizar ainda mais desfavoravelmente a escravidão moderna: é o elemento de que se teve de lançar mão
para alimentá-la. ... Aqui ainda, a comparação com o que ocorreu no mundo antigo é ilustrativa. Neste último,
a escravidão se forneceu de povos e raças que muitas vezes se equiparam a seus conquistadores, se não os
superam. Contribuíram assim para estes com valores culturais de elevado teor. Roma não teria sido o que foi
se não contasse com o que lhe trouxeram seus escravos, recrutados em todas as partes do mundo conhecido, e
que nela concentram o que então havia de melhor e culturalmente mais elevado...” Então, conclui que na
América o escravo não era visto mais do que um “simples instrumento vivo de trabalho”. PRADO JÚNIOR,
Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23. ed., 7ª. reimpressão. São Paulo: 2004, p. 270-272.
7
CAMINO, Carmen, op. cit., p. 30.
8
Analisando o trabalho na Idade Média, Huberman traça as linhas mestras do sistema feudal: “...Eram essas,
portanto, as duas características importantes do sistema feudal. Primeiro, a terra arável era dividida em duas
partes, uma pertencente ao senhor e cultivada apenas para ele, enquanto a outra era dividida entre muitos
arrendatários; segundo, a terra era cultivada não em campos contínuos, tal como hoje, mas pelo sistema de
faixas espalhadas. Havia uma terceira característica marcante – o fato de que os arrendatários trabalhavam não
só as terras que arrendavam, mas também a propriedade do senhor. O camponês vivia numa choça do tipo
mais miserável. Trabalhando longa e arduamente em suas faixas de terra espalhadas ...., conseguiria arrancar
do solo apenas o suficiente para uma vida miserável. Teria vivido melhor, não fora o fato de que, dois ou três
dias por semana, tinha que trabalhar a terra do senhor, sem pagamento. ... Jamais houve dúvida de qual era a
terra mais importante. A propriedade do senhor tinha que ser arada primeiro, semeada primeiro e ceifada
primeiro.” HUBERMAN, Leo. História da riqueza do homem. 21. ed. Rio de Janeiro: LTC, 1986, p. 5. Sobre
o modo de produção feudal, ver, ainda, ANDERSON, Perry, op. cit., p. 143.
20
disponibilizados compulsoriamente para a guerra. Esse regime de organização social foi
marcado por uma sociedade altamente fechada, com pouco espaço para as trocas comerciais.
9
Fato importante no desenvolvimento das relações de trabalho foi o surgimento, como
já mencionado, na Idade Média, das corporações de ofício. Com as “corporações” no campo
econômico e as “comunas” no campo político, o domínio econômico e político dos senhores
feudais começou a sofrer desgastes, o que acarretou, ao longo dos anos, a mudança do
feudalismo para o mercantilismo e das estruturas pré-estatais fragmentárias para o começo do
surgimento dos Estados nacionais.
Com o surgimento de centros urbanos, os trabalhadores que não eram camponeses e
que não estavam nos feudos, ou seja, estavam situados fora do poder de controle dos senhores
feudais, organizaram-se de forma corporativa para a prestação de serviços. Com o passar do
tempo, os próprios camponeses passaram a contestar os poderes dos senhores feudais e a fugir
para as cidades, os “burgos”. Houve com isso, um aumento da liberdade dos trabalhadores.
10
Entretanto, mesmo com o aumento de liberdade, os artesãos, nessa época, não eram
totalmente livres para exercer sua arte ou ofício, pois para tal tinham de ingressar numa
corporação (corporações de ofício), ficando, então, sujeitos ao estatuto rígido e hierárquico
dessas entidades. Ao longo dos anos essas entidades se tornaram centros de exploração dos
trabalhadores que estavam sob sua hierarquia. Nas corporações havia três espécies de
categorias, nas quais se enquadravam hierarquicamente os seus membros:
- mestres: eram as pessoas que tinham o domínio de uma arte (sapateiro, por exemplo)
e que estavam no mais alto escalão das corporações, sendo alçadas a essa condição pela
construção de uma “obra-prima”, ou seja, após alcançarem o reconhecimento de sua aptidão
pelos seus pares;
- companheiros: estes estavam hierarquicamente abaixo dos mestres, eram os artesãos
que trabalhavam sob as ordens dos mestres e que lutavam para se alçar àquela categoria;
9
Cabe aqui lembrar Sodré que afirma: “A fragmentação do poder e o regime dos feudos, que produziam apenas
o suficiente para consumo imediato e local, entravaria as trocas, só conhecidas, na plenitude dêsse sistema
hermético, pela atividade dos ambulantes, que se ocupavam do sal e de instrumentos de ferro, que eram os
únicos produtos que haviam especializado regiões na sua produção, não sendo gerais... Os senhores faziam da
guerra o mister predileto, porque ela lhes dava novas terras. Numa sociedade assim esquematizada, uns
trabalhavam, outros rezavam, terceiros combatiam.” SODRÉ, Nelson Werneck. Formação histórica do Brasil.
5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1968, p. 11-12. Ver, ainda, sobre o assunto NASCIMENTO, Amauri Mascaro.
Iniciação ao direito do trabalho. 28. ed. São Paulo: LTr., 2002, p. 39 e CAMINO, Carmen, op. cit., p. 30.
10
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho. op. cit., p. 40 e CAMINO, Carmen, op.
cit., p. 30-31.
21
- aprendizes: eram geralmente crianças entregues pelos próprios pais às corporações
em tenra idade para que aprendessem um ofício e estavam, hierarquicamente, na base da
pirâmide corporativa.
As corporações alcançaram poder político e econômico consideráveis, mas passaram a
sofrer desgastes e, com a Revolução Francesa, receberam um “golpe de misericórdia”. Assim,
as corporações representaram uma espécie de organização da economia que respondeu por
algum tempo às necessidades econômicas e socais, mas que, com o evoluir da sociedade,
deixou de responder às expectativas. A estrutura fragmentada dos entes pré-estatais do
feudalismo passou a não mais atender aos interesses de uma sociedade que precisava de um
poder central com capacidade (potencial) de intervenção militar. Além disso, faziam-se
necessárias a tutela e a segurança para o desenvolvimento das relações econômicas, bem
como a exigência de fomento da produção, tendo em conta a política do mercantilismo. Dessa
forma, havia a necessidade de um centro de poder forte e unificado.
11
11
Cabe assinalar que, por exemplo, Sodré é muito claro ao afirmar a estreita vinculação entre centralização do
poder e avanço do mercantilismo. SODRÉ, Nelson Werneck, op. cit., p. 23. Ver, também nesse sentido a
posição de MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad – Historia del constitucionalismo
moderno. Madrid: Trotta, 1988, p. 31.
22
Salientamos que, até o momento acima descrito na evolução do trabalho humano, as
relações de trabalho eram reguladas basicamente por normas que advinham do Direito
Romano e do Direito Comum
12
, não havendo um centro positivador de Direito, nem se
podendo falar em Estado durante todo esse longo período histórico.
13
12
CORDEIRO, António Menezes, op. cit., p. 37-41.
13
Segundo Streck e Moraes, entre as principais formas estatais pré-modernas está a do medievo, marcado por
características bem salientes que são: a instabilidade política, social e econômica; o choque entre o poder
espiritual e o poder temporal; a dispersão e fragmentação do poder diante dos inúmeros centros de poder e
decisão; o sistema jurídico consuetudinário e baseado não em direitos, mas sim em privilégios nobiliárquicos
e, por fim, relações de dependência pessoal (relações de vassalagem) e hierarquia de privilégios. Como se
percebe, segundo os autores, não é possível falar em Estado nem antes e nem no medievo. STRECK, Lenio
Luiz e MORAIS, José Luis Bolzan. Ciência política e teoria geral do estado. Terceira edição. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, p. 20, 21, 22 e 23. Ver, também, MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do
estado e da constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2002, p. 16. Sobre tal perspectiva, interessantes são as considerações de Giuseppe Duso. Desenvolvendo as
redes conceituais da filosofia política, o autor cita o caso do conceito de Estado e afirma que não raras vezes,
para se analisar formas pré-modernas de arranjos políticos da união entre os homens são utilizados conceitos
próprios do Estado moderno, que não são adequados para compreender realidades totalmente diferentes.
Segundo o autor, somente a consciência crítica poderá fornecer elementos para a análise desses conceitos e
determinação de seus conteúdos a partir de fontes próprias diversas das modernas. Para se analisar conceitos
medievais, por exemplo, devemos ter consciência crítica sobre os próprios conceitos modernos. O autor
entende, por exemplo, a impropriedade de aplicar um conceito como o de Estado a entidades políticas
anteriores à era moderna e lembra, ainda, que, embora seja possível utilizar palavras modernas (como povo e
sociedade) para falar de realidades distintas (como populus e societas, por exemplo), isso não significa
igualdade de conceitos, mas, sim, que apenas as palavras são semelhantes. Para o autor, a ciência política
moderna nasce, realmente, por volta dos 1750, quando a noção de poder ganha outros foros, sendo entendida
como uma força do próprio corpo político que é superior à força dos indivíduos isolados, uma força que é
garantia de paz e que não faz parte da ordem natural das coisas. Dessa forma, essa noção precisa ser
legitimada, justificada racionalmente, sendo este o papel da ciência política moderna. Assim, afirma que o
conceito moderno de poder só pode ser pensado juntamente com outros conceitos, como o de direitos,
igualdade, liberdade, que, embora lhe pareçam antagônicos, são pressupostos para o próprio conceito moderno
de poder. DUSO, Giuseppe. O Poder – História da filosofia política moderna. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 12-
16.
23
Com os aportes da Ilustração, centrada na idéia de homem racional e de razão
matemática/calculista, nasceu o Estado moderno (absolutista), marcado pela separação entre
Estado e sociedade, despersonalização e despatrimonialização do poder e o reconhecimento
dos direitos dos cidadãos (pautados pelos direitos de propriedade e de liberdade contratual).
14
O Estado absolutista favoreceu o acúmulo de capital que já vinha se dando desde as
últimas fases do feudalismo, havendo a transformação da ética católica, que via com
repugnância o lucro, para uma ética do lucro, que o via como graça divina
15
. Nesse ambiente,
as relações de trabalho estabeleceram-se com base em relações contratuais de natureza civil,
aparecendo os primeiros germes das fábricas modernas comandadas pelos capitalistas, que
acumularam riquezas ao longo do tempo. Formaram-se, então, organismos produtivos onde
aparece de forma clara a divisão do trabalho.
16
Ocorre que o Estado moderno absolutista passou a ser entrave para o livre
desenvolvimento das forças produtivas, tornando-se um problema para a burguesia, que
ganhou ainda mais espaço e poder econômico-social nessa forma estatal. Lembramos que o
Estado absolutista ainda mantinha privilégios que o tornava incompatível com os novos
ventos liberais.
17
14
COPETTI, André. A jurisprudencialização da constituição no estado democrático de direito. Texto disponível
no site: www.ihj.org.br, p. 4; OLHWEILER, Leonel, Estado, administração pública e democracia: condições
de possibilidade para ultrapassar a objetificação do regime administrativo. In: Anuário do programa de pós-
graduação em direito – Mestrado e doutorado da UNISINOS. Organizadores: Leonel Severo Rocha e Lenio
Luiz Streck. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p. 274-281. Sobre essa temática, afirma Duso que a ciência
política moderna ou filosofia política, termos ainda não separados, nasce justamente para dar segurança e
construir, pelo raciocínio matemático-geométrico (razão calculista), conceitos que irão dar segurança e
estabilidade para uma ordem de paz. A filosofia anterior baseada na experiência é deixada de lado, pois não
impediu os conflitos entre os homens, entendidos como disputas sobre o que é a justiça. Era a construção de
conceitos e regras éticas válidas para todos, com a precisão que os geômetras tinham, que tornaria possível a
vida em comum. Institui-se, assim, uma maneira formal e jurídica de tratar a política, o Direito natural. Esses
princípios formais buscam legitimidade não no conteúdo, mas na forma como substrato de certeza e segurança
e que têm por base a manifestação de vontade dos indivíduos, que são a fonte da autoridade, da lei. A
obediência, então, implica, a obrigação de todos de se submeterem a esta ordem, fruto da vontade de todos.
São reconhecidas a igualdade formal e a liberdade de todos, sendo a liberdade entendida como o fato de que o
sujeito depende apenas da sua manifestação de vontade, sendo livre de obrigações e obstáculos que impeçam a
manifestação dos poderes naturais. Nesse contexto é que nasce o poder moderno, como relação formal de
comando-obediência, que tem seu fundamento lógico justamente na liberdade e igualdade. Assim, o poder
legítimo terá que se fundar na vontade de todos. O poder é único, fundado no contrato social, entendido como
expressão da vontade de todos e, assim, todos devem se submeter ao que aceitaram, nascendo a noção de
soberania. Dessa forma, o representante do sujeito coletivo é que está autorizado a governar pela aceitação de
todos e não por outros motivos, havendo a separação entre ação pública e política e o agir privado dos
indivíduos. DUSO, Giuseppe, op. cit., p. 16-20. MATTEUCCI, Nicola, op. cit., p. 33.
15
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 2. ed. São Paulo: Pioneira Thomson Learning,
2003, p. 28 e 99-100.
16
VIANA, Márcio Túlio. Terceirização e sindicato: um enfoque para além do jurídico. Revista LTr. ano 67, nº.
07. São Paulo: LTr., julho de 2003, p. 776-778.
17
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan, op. cit., p. 46.
24
Nasceu, assim, principalmente com a Revolução Francesa
18
, o Estado liberal que ao
mesmo tempo em que aprofundou características já presentes no Estado absolutista,
apresentava novos caracteres, dos quais podem ser citados: a separação entre Estado e
sociedade; a garantia das liberdades individuais, principalmente da propriedade e da liberdade
contratual (que se dava pela manifestação de vontade das partes); a redução do papel do
Estado, não lhe cabendo a realização, em regra, de atividades de intervenção nas relações
econômicas; a separação de poderes, como forma de garantia dos próprios direitos; o
princípio da legalidade (prevalência das regras abstratas e formais) e a igualdade meramente
formal.
Essas idéias estavam em consonância com o ideal liberal na política e o
individualismo no Direito, fortalecendo amplamente e impulsionando o desenvolvimento da
sociedade capitalista. A sociedade, então, passou a ser fundada na propriedade, na família e
no contrato
19
. Portanto, de uma sociedade fundada em privilégios de nascimento e títulos
nobiliárquicos, do ancién regime, passa-se para uma sociedade onde são reconhecidas a
igualdade formal e a liberdade dos indivíduos, todavia considerados de forma isolada,
individual, como átomos dentro da sociedade.
Diante dessas idéias somente se concebia o Estado (liberal) como garante da fluência
normal dessas relações privadas, como guardião da propriedade, da família e do cumprimento
dos contratos “livremente formados entres partes iguais e livres”, não podendo, seja por meio
do Executivo, seja do Legislativo ou do Judiciário, imiscuir-se nessas relações. No Estado
liberal clássico não cabia falar em direito de proteção de uma determinada classe ou categoria
de pessoas, pois todos eram vistos como iguais (igualdade meramente formal); logo, também,
não havia que se falar em políticas públicas de proteção ao trabalho, por exemplo, pois ao
Estado não cabia a intervenção nas atividades dos privados, apenas lhe sendo cabível a função
18
Digo “principalmente” apenas para marcar mais fortemente a irrupção deste tipo estatal, pois, como muito bem
lembra SOUZA, a “Revolução Francesa, ainda que de fundamental relevo, não passou de um acontecimento
entre muitos outros na destruição do Antigo Regime e sua substituição por um novo sistema social e político.
Assim, o autor afirma que o Estado liberal europeu foi criatura de vários acontecimentos revolucionários,
desde a independência dos Estados Unidos da América do Norte e o desterro de Napoleão Bonaparte,
passando pela restauração do poder monárquico, um poder central forte, mas marcado por limites assentados
por assembléias representativas, para, só então, chegar aos movimentos ocorridos em França em 1848 e em
outros países (Alemanha e Itália), que não eram apenas movimentos liberais, mas que tinham tinha fortes
conotações socialistas, e só então, a partir disso chegar ao período de esplendor da burguesia. SOUZA,
António Francisco de. Fundamentos Históricos de Direito Administrativo. Lisboa: Editores, 1995, p. 149-152.
Cabe, ainda, referir a posição de Matteucci, para quem, antes mesmo da Revolução Francesa, se pode
vislumbrar na Inglaterra um Estado com características tipicamente liberais. MATTEUCCI, Nicola, op. cit., p.
128.
19
COSTA, Judith Martins. Crise e modificação da idéia de contrato no direito brasileiro. Revista de Direito do
Consumidor. nº. 3. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 131.
25
de proteção das liberdades formais e da propriedade. Neste tipo estatal, o princípio
fundamental era o da legalidade
20
, com a clássica divisão dos três poderes e tendo por regra a
não intervenção em questões econômicas e sociais.
21
No Estado liberal é o Poder Legislativo que tem proeminência, pois é a este poder que
cabe ditar a lei, vista como regra geral e abstrata, a qual será aplicada pelo Executivo e pelo
Judiciário, este último tendo a tarefa de ser a simples “boca da lei”, aplicando de forma
subsuntiva os preceitos legais aos casos concretos. Como afirma Comparato, no modelo de
Estado liberal (constitucionalismo liberal) não cabe a esse ente o papel de guiar a sociedade
na busca de objetivos ou fins comuns, mas, sim, com base em leis gerais, constantes e
uniformes, que apenas harmonizam os interesses individuais, possibilitar que cada indivíduo,
de forma privada, busque suas finalidades de vida individualmente eleitas
22
. Nesse clima de
liberalismo político, jurídico e econômico, marcado por um profundo individualismo, deram-
se as condições para o desenvolvimento de um processo que marca com profundidade a
história da humanidade: a Revolução Industrial.
Em 1812, Thomas Newcomen inventou a máquina a vapor, utilizada para bombear
água das minas de carvão inglesas, a qual foi aperfeiçoada por James Watt em 1848, abrindo
o caminho para o rápido crescimento industrial e acarretando profundas alterações no
processo econômico, na vida social, e nas relações entre o capital e o trabalho. Na verdade, a
invenção de Watt já é um efeito da primeira Revolução Industrial, visto que surgiu da busca
de uma fonte de energia capaz de mover as pesadas máquinas já inventadas para a indústria
têxtil. O motor a vapor foi generalizado e incrementou de forma jamais imaginada no passado
a produção industrial, tornando ainda mais próxima e conflitiva a relação entre capitalistas e
trabalhadores assalariados.
23
20
Comparato afirma que todo o edifício constitucional do Estado Moderno está assentado na substituição da
vontade individual dos governantes pela vontade geral e permanente que é a lei, o que conferiria segurança
individual aos cidadãos. COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de
políticas públicas. Revista de Informação Legislativa. nº. 138. Brasília: 1998, p. 40.
21
Com efeito, salientamos que a regra era a não intervenção, pois esta, de fato, embora pontual, fazia-se
presente. Como bem lembra Fachini Neto, a separação total das esferas pública e privada nunca existiu de fato,
pois o Estado liberal intervinha nas relações privadas fixando tarifas, dirigindo o mercado através dos meios
fiscais, estabelecendo barreiras alfandegárias e intervindo nas relações familiares e nos contratos através das
noções vagas de ordem pública e bons costumes. FACHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas
sobre a constitucionalização do Direito privado. In: Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo
Wolfgang Sarlet – Organizador. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 2003, p. 19, nota 12. No mesmo sentido
STRECK, Lenio Luiz. e MORAIS, José Luis Bolzan, op. cit., p. 61.
22
COMPARATO, Fábio Konder. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade, cit., p. 43.
23
CORDEIRO, António Menezes, op. cit., p 41; CAMINO, Carmen, op. cit., p. 32 e GOMES, Orlando e
GOTTSCHALK, Élson, op. cit., p. 1.
26
A invenção de novas tecnologias, o uso da energia do vapor para os maquinismos, o
crescimento das cidades, a consolidação das unidades nacionais (processo que se iniciou com
o Estado moderno absolutista), bem como o comércio interurbano e internacional, facilitado
pelas comunicações e por melhores equipamentos de transporte, abriram espaço para novos
mercados de consumo, facilitando o bomm da primeira Revolução Industrial.
Embora o trabalho na indústria crescente necessitasse de um grande contingente de
trabalhadores, não era capaz de absorver o número de camponeses e desocupados que fugiam
da fome nos campos e que vagavam pelas cidades, além do fato de que as próprias máquinas
também causavam desemprego.
24
Dentro da fábrica os trabalhadores eram comandados
segundo uma rígida disciplina de produção, com condições de trabalho deploráveis, com
jornadas de trabalho extenuantes e com salários ínfimos.
25
Era a atuação dos princípios do
liberalismo que davam o esteio para essa nova fase.
Com efeito, os princípios liberais, tendo no indivíduo o valor máximo da vida em
sociedade, representavam o caminho para o incremento da nova economia. Para a Revolução
Industrial e para o desenvolvimento econômico foi fator decisivo o mito dos homens livres e
iguais perante a lei (igualdade apenas em sentido formal); pouco importava a desigualdade
fática. A liberdade e a igualdade abstratas, todavia, vieram a significar, no plano social,
coação econômica e desigualdades para uma classe inteira de indivíduos.
26
No relato de Roppo:
24
OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 61.
25
Huberman, analisando a situação dos trabalhadores nas primeiras fábricas capitalistas servidas por máquinas,
faz uma radiografia desse período: “Mas com a chegada das máquinas e do sistema fabril, a linha divisória se
tornou mais acentuada ainda. Os ricos ficaram mais ricos e os pobres, desligados dos meios de produção, mais
pobres. As máquinas, que podiam ter tornado mais leve o trabalho, na realidade o fizeram pior. Eram tão
eficientes que tinham de fazer sua mágica durante o maior tempo possível. Para seus donos, representavam
tamanho capital que não podiam parar – tinham de trabalhar, trabalhar sempre.... Por isso os dias de trabalho
eram longos, de 16 horas. Quando conquistaram o direito de trabalhar em dois turnos de 12 horas, os
trabalhadores consideraram tal modificação uma benção. ... A dificuldade maior foi adaptar-se à disciplina da
fábrica. Começar numa hora determinada, parar, noutra, começar novamente, manter o ritmo dos movimentos
da máquina – sempre sob as ordens e a supervisão rigorosa de um capataz – isso era novo. E difícil. ... Os
capitalistas achavam que podiam fazer como bem entendessem com as coisas que lhes pertenciam. Não
distinguiam entre suas ‘mãos’ e as máquinas. Não era bem assim – como as máquinas representavam um
investimento, e os homens não, preocupavam-se mais com o bem-estar das primeiras. Pagavam os menores
salários possíveis. Buscavam o máximo da força de trabalho pelo mínimo necessário para pagá-las. ”
HUBERMAN, Leo, op. cit., p. 177-178. Ver, ainda, sobre o assunto, a obra Germinal, de Émile Zola, um
clássico da literatura que denuncia as condições deploráveis de trabalho e de vida dos trabalhadores nessa
época, enfocando o trabalho prestado nas minas de carvão francesas. ZOLA, Émile. Germinal. São Paulo: Cia
das Letras, 2005.
26
MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz Inácio B., op. cit., p. 15. CAMINO, Carmen, op. cit., p. 33.
27
Neste sistema, fundado na mais ampla liberdade de contratar, não havia lugar para a
questão da intrínseca igualdade, da justiça substancial das operações económicas de
vez em quando realizadas sob a forma contratual. Considerava-se e afirmava-se, de
facto, que a justiça da relação era automaticamente assegurada pelo facto dos
contraentes, que, espontânea e conscientemente, o determinavam em conformidade
com os seus interesses, e, sobretudo, o determinavam num plano de recíproca
igualdade jurídica (dado que as revoluções burguesas, e as sociedades liberais
nascidas destas, tinham abolido os privilégios e as discriminações legais que
caracterizavam os ordenamentos em muitos aspectos semifeudais do “antigo
regime”, afirmando a paridade de todos os cidadãos perante a lei): justamente nesta
igualdade de posições jurídico-formais entre os contraentes consistia a garantia de
que as trocas, não viciadas na origem pela presença de disparidades nos poderes, nas
prerrogativas, nas capacidades legais atribuídas a cada um deles, respeitavam
plenamente os cânones da justiça comutativa. Liberdade de contratar e igualdade
formal das partes eram, portanto os pilares – que se completavam reciprocamente –
sobre os quais se formava a asserção peremptória, segundo a qual dizer “contratual”
equivale a dizer “justo” (qui dit contractuel dit juste).
27
A exacerbação do individualismo, como já referido, levou ao estabelecimento de
condições de trabalho deploráveis, pois, de fato, as “partes do contrato” eram profundamente
desiguais, visto que os trabalhadores, fugindo da fome e do desemprego, eram obrigados a
aceitar qualquer tipo de trabalho e todo tipo de condições de trabalho impostas pelos
empregadores.
Como a questão salarial e demais condições de trabalho deveriam estar inspiradas nos
princípios liberais, no laisser faire, laisser passer caracterizador do absenteísmo estatal, era a
“lei da oferta e da procura” que regulava a situação. Assim, o excesso de mão-de-obra
acarretava baixíssimos salários, longas jornadas de trabalho, ambientes totalmente insalubres,
exploração do trabalho infantil
28
e das mulheres, levando a que a igualdade formal e a
liberdade de contratar liberal se tornassem, de fato, na liberdade de morrer de fome. Aliás,
“salário de fome” é a expressão utilizada por Maranhão e Carvalho para traduzir essa época
da exploração do trabalho humano.
29
Ocorre que, com o passar do tempo, o ideal liberal passou a ser contestado diante das
desigualdades fáticas que tal regime político, econômico e jurídico gerava, pois a igualdade
formal e a liberdade de manifestação de vontade apenas tinham servido para fortalecer
27
ROPPO, Enzo. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 35.
28
Ashton, ao analisar o trabalho das crianças nas fábricas inglesas, dá uma ligeira amostra das condições de
trabalho: “A história dos <aprendizes> fabris é lamentável. As crianças, muitas delas sòmente com sete anos,
trabalhavam doze e mesmo quinze horas por dia durante seis dias da semana.” ASHTON, T. S.. A revolução
industrial. 6. ed. Portugal: Europa-América, s/d, p. 139.
29
MARANHÃO, Délio et CARVALHO, Luiz Inácio B. op. cit., p. 16.
28
aqueles que tinham poder na sociedade (econômico, social ou de outras formas), ou seja, a
burguesia, vilipendiando a própria dignidade humana dos mais fracos, dos trabalhadores.
Em virtude de todas essas condições subumanas de trabalho e vida, pensadores
(socialistas utópicos – Saint-Simon, Fourier e Louis Blanc, na França e Robert Owen, na
Inglaterra; e científicos – Manifesto Comunista de 1848 de Marx e Engels -, em especial os
últimos), tiveram influência decisiva na união dos trabalhadores e na crítica áspera e incisiva
ao capitalismo. Além disso, alguns empresários, políticos e a Igreja (Encíclica Rerum
Novarum, do Papa Leão XIII, de 1891, resposta ao crescimento das idéias socialistas e
comunistas) também começaram a contestar essa situação
30
. Todavia, foram sobretudo os
trabalhadores que começaram a ganhar consciência de que a péssima situação em que viviam
atingia justamente os seus interesses, alcançando a todos. Assim, acabaram ganhando a
chamada “consciência de classe” e uniram-se em sindicatos, embora proibidos legalmente,
passando, por meio de ações coletivas, a pressionar e postular mudanças
31
. Para isso foi
utilizado o instrumento maior de pressão que lhes cabia, ou seja, a greve (a paralisação
coletiva do trabalho deliberada pelos trabalhadores e suas agremiações).
Manifestações das lutas de classes mostram-se bem presentes nos movimentos dos
ludistas e cartistas na Inglaterra, nas irrupções revolucionárias de 1848 e 1871 na França e na
de 1848 na Alemanha, todas clamando para que o Estado regulamentasse a vida econômica e
social
32
. Então, com o acirramento da tensão e com o medo do crescimento das idéias
socialistas, comunistas e anarquistas, os Estados passaram a interferir e restringir os princípios
liberais no âmbito das relações de trabalho.
Assim, foram sendo postos limites à autonomia da vontade no contrato de trabalho,
ainda que de início com leis tímidas. Podemos citar como primeiras regras legais sobre o
trabalho alguns atos legislativos, como: o “Moral and Health Act”, de 1802, que na Inglaterra
proibia o trabalho noturno para menores e reduzia a sua jornada diurna para 12h; na França,
em 1813, proibiu-se o trabalho de menores em minas; em 1824 os sindicatos foram
reconhecidos na Inglaterra; em 1841 foi editada na França lei que proibia o trabalho de
menores de oito anos, limitando a 8h a jornada de trabalho dos menores entre oito e doze anos
30
RUSSOMANO, Mozart Victor, op. cit., p. 15 e OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 64.
31
Como afirma Huberman: “A Revolução Industrial, iniciada na Inglaterra, espalhou-se por outros países. Em
alguns, ainda está ocorrendo. E embora nem sempre siga o modelo inglês, diferindo nas condições ou na
atitude dos ricos, ou na reforma da legislação aprovada pelos órgãos de governo, num ponto todos os países
repetiram a história da Inglaterra. Houve, em toda a parte, uma guerra aos sindicatos. É uma velha guerra. As
associações de trabalhadores com o objetivo de melhorar suas condições foram declaradas ilegais já no século
XVI, e em todos os séculos seguintes houve leis contra tais agremiações.” HUBERMAN, Leo, op. cit., p. 190.
32
OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 69.
29
e a 12h a dos menores de doze a dezesseis anos. Podemos citar também a revogação, na
França, em 1884, da Lei Chapelier de 1791, que proibia os sindicatos, ficando consagrada a
liberdade sindical e, ainda, editaram-se regras legais sobre seguros sociais em 1881 na
Alemanha.
33
Em outros países também foram editadas várias leis que regularam, em princípio, o
trabalho de crianças e mulheres e depois dos adultos masculinos quanto às várias condições
de trabalho. Florescia, assim, a intervenção estatal no mundo do trabalho e nascia o Direito do
Trabalho. Seguindo a lição de Granizo e Rothvoss
34
, a evolução do Direito do Trabalho pode
ser assim descrita:
- até 1848: as primeiras manifestações do intervencionismo estatal começaram na
Inglaterra, França, Itália e Alemanha, geralmente adstritas à limitação da jornada de trabalho
dos menores;
- de 1848 até 1890: aparece o Manifesto Comunista de Marx e Engels; na França é
permitida a liberdade de associação; são estabelecidas jornadas máximas de trabalho para
todos. Pode ser citado, ainda, o surgimento, na Alemanha, da “mão-de-ferro de Bismark”, que
concede alguns direitos para conter o avanço socialista
35
;
- de 1890 até 1919: temos a Encíclica Rerum Novarum do Papa Leão XIII; surgem os
primeiros tratados internacionais, Ministérios do Trabalho, a Constituição Mexicana de 1917
e a Revolução Russa, tudo isso mostrando a forte ebulição social;
- a partir de 1919: com o fim da Primeira Guerra Mundial vem o Tratado de Versalhes
de 1919, que cria a Organização Internacional do Trabalho (OIT)
36
; vem a lume a
33
RUSSOMANO, Mozart Victor, op. cit., p. 17; RODRIGUES PINTO, José Augusto, op. cit., p. 30 e
OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 71.
34
Citados por OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 70.
35
Gomes e Gottschalk lembram o papel político de Bismark, que fazendo algumas concessões aos líderes
sociais-democratas e aos líderes sindicais filiados à Segunda Internacional, de cunho reformista, barrou os
ideais de cunho revolucionário que provinham da Primeira Internacional. GOMES, Orlando e
GOTTSCHALK, Élson, op. cit., p. 5.
36
Segundo Genro, o Tratado de Versalhes, além de consolidar o Direito do Trabalho, também foi uma forma de
impor aos países subdesenvolvidos o ônus que a luta de classes já tinha imposto aos países desenvolvidos, para
fins de equiparação dos preços de mercadorias a serem exportadas. Na verdade, isso destaca o caráter
contraditório das finalidades da regulação internacional do trabalho e do próprio Direito do Trabalho.
GENRO. Tarso Fernando. Direito individual do trabalho. 2. ed. São Paulo: Ltr. Editora, 1994, p. 31. Essa
questão fica também presente em Uriarte, que afirma: “En efecto, el Derecho Internacional del Trabajo surge
con doble finalidad, sin lugar a dudas: regular la competencia tanto nacional como internacional y
salvaguardar la dignidad humana, evitando la explotación economica del trabajador. ... Esta doble finalidad del
Derecho del trabajo encierra una contradición que se refleja em las estructuras y el funcionamento del Derecho
del trabajo. Por una parte, consagra derechos del trabajador, elevándolos a la categoria de derechos humanos,
como forma de valorizar al máximo y por encima de todo valor de cambio a la persona humana, en el caso, la
persona do trabajador. Pero por outra parte, al reglamentar el contrato o relación de trabajo, se involucra en el
30
Constituição de Weimar de 1919 na Alemanha; é proclamada a Declaração dos Direitos
Humanos em 1948 após o término da Segunda Guerra Mundial; é editada a Encíclica Mater et
Magistra, de João XXIII, bem como uma série de manifestações posteriores, pelas quais ainda
estamos passando, o que será objeto de análise em separado.
Como podemos perceber, embora complexa, não é difícil compreender a íntima
conexão entre o desenvolvimento das formas de trabalho humano, de um lado, e a evolução
do Estado e o aparecimento e desenvolvimento do Direito do Trabalho, de outro. Portanto,
diante das pressões sociais e de movimentos de ordem política e filosófica, a concepção
liberal de Estado cede passo ao chamado Estado intervencionista, havendo o abandono do
perfil do chamado “Estado mínimo”. Os conflitos sociais, a Revolução Russa
37
, o direito ao
voto, os vários movimentos de reivindicação dos trabalhadores e outros grupos pelo
reconhecimento de direitos, bem como pela crise instaurada principalmente após a Primeira
Grande Guerra Mundial, fazem ruir o modelo liberal de Estado e tem nascimento o Estado
social ou de bem-estar, que se afigura mais preocupado com a liberdade efetiva e com a
igualdade substancial, não somente formal.
juego del llamado “mercado de trabajo”, que no deberia ser tal.” URIARTE, Oscar Ermida. Derechos laborales
y comercio internacional. Disponível em http://www.mundodeltrabajo.org.br; p. 2.
37
Sobre a influência da Revolução de Outubro na formação do Estado social ocidental, afirma Losurdo: “Da
democracia, como hoje é mais geralmente compreendida, fazem parte, pois, também os direitos sociais e
econômicos. E foi precisamente o grande patriarca do neoliberalismo, Hayek que denunciou o fato de que a
sua teorização e sua presença no Ocidente remetem à influência, por ele considerada funesta, da “revolução
marxista-russa”. Naturalmente, as classes subalternas não esperam 1917 para reivindicar o reconhecimento de
tais direitos. Sua conquista expande-se nas mesmas etapas através das quais passou o triunfo do sufrágio
universal. Robespierre, que denuncia na discriminação censitária do sufrágio um eco da escravidão antiga,
celebra também o “direito à vida” como o primeiro e o mais imprescindível entre os direitos do homem. A
revolução de 48, que confirma o triunfo do sufrágio universal (masculino), vê emergir ainda a reivindicação do
direito ao trabalho: é o início da segunda etapa, cujo protagonista é o movimento socialista. Na Alemanha,
onde ele é particularmente forte, Bismarck cuida de prevenir uma revolução de baixo para cima mediante uma
revolução pelo alto que introduz os primeiros vagos elementos de seguridade social. Enfim a terceira etapa
que, tomando impulso nos movimentos das agitações na Rússia, prolonga-se até quase aos nossos dias. No
curso do segundo conflito mundial, Franklin Delano Roosevelt declara que, para destruir de uma vez para
sempre “os gérmens do hitlerismo”, é preciso realizar a “liberdade de crescimento”, incidindo, portanto, em
profundidade nas relações econômico-sociais existentes. As palavras de ordem do presidente dos EUA
parecem delinear um projeto de democracia social que observa justamente Kissinger – vai “muito além” da
precedente tradição política americana, tanto assim, insiste Hayek – que terminam por remeter à famigerada
revolução bolchevique. E, de novo, sem Outubro e, mais em geral, sem o ciclo revolucionário que do
jacobinismo conduz ao comunismo, não é possível compreender os desenvolvimentos e, antes ainda, o
advento do Estado social no Ocidente.” LOSURDO, Domenico. Fuga da história? A revolução russa e a
revolução chinesa vistas de hoje. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004, p. 103-104.
31
Esse tipo estatal se apresenta como intervencionista, protegendo os mais fracos (por
exemplo, os trabalhadores e os consumidores), agindo, ainda, como verdadeiro empresário,
através das empresas estatais e congêneres, bem como sendo mediador dos conflitos sociais.
38
No Estado social, portanto, entram em cena algumas preocupações que marcam
características diferenciadas em relação aos modelos anteriores: a questão social passa a ser
considerada na atuação estatal; são reconhecidos direitos a prestações sociais, cabendo uma
atividade positiva ao Estado; a lei passa a ser instrumento de ação concreta do Estado,
incumbindo a este, com forte proeminência do Poder Executivo, o dever de materializar
direitos sociais; ultrapassa-se a dicotomia entre público e privado e a igualdade formal
também ganha um sentido material. Assim, o Direito do Trabalho ganha consagração e
desenvolvimento e as condições de trabalho passam a serem reguladas mais de perto.
É a partir da configuração do Estado social que ganha relevo a preocupação com as
políticas públicas, em geral, e com as políticas públicas de regulação das condições de
trabalho, em especial. O Estado social tem um papel positivo (ativo) na busca de objetivos
previamente traçados na arena pública, os quais não mais se circunscrevem, como no Estado
liberal-individualista, à proteção da vida privada perante a intervenção estatal.
O problema é que o Estado social acabou por não cumprir com muitas das suas
promessas. A questão da igualdade, por exemplo, não conseguiu solução
39
. Além disso, o
Estado social (bem-estar-social), que nunca ocorreu no Brasil, diga-se de passagem, tem
certas características autoritárias em virtude da proeminência dada ao Poder Executivo sem
uma maior consideração pela participação popular na efetivação das tarefas estatais. No
38
Streck e Moraes apresentam como causas privilegiadas de transformação do Estado liberal mínimo em Estado
social: a Revolução Industrial (com a proletarização e a chamada “questão social”); a Primeira Guerra Mundial
(impondo a necessidade de controle da vida econômica, reflexo da Revolução Russa e aparecimento das
primeiras Constituições Sociais – Mexicana e de Weimar); a crise econômica de 1929 e a depressão, que
impuseram a intervenção estatal na economia na busca de estabilidade e, por fim, a Segunda Guerra Mundial,
impondo ao aparato estatal a intervenção em vários aspectos da vida social e econômica. STRECK, Lenio
Luiz. e MORAIS, José Luis Bolzan, op. cit., p. 63.
39
STRECK, Lenio Luiz. e MORAIS, José Luis Bolzan, op. cit., p. 92. Capella aduz o fato de que o Estado social
se legitimava por meio da satisfação das demandas sociais, não apenas pela adesão ao sistema representativo.
Assim, o não atendimento dessas demandas acarretou problemas para a sua legitimação. Aduz o autor que o
atendimento das demandas sociais chegou ao limite nas condições limitadas de um sistema de acumulação
privada, o que colocava um dilema: ou superar o assistencialismo em um rumo socialista, abrindo as portas
das empresas aos princípios democráticos de direção ou governo, ou seguir políticas reprivatizadoras,
utilizando-se do próprio Estado para reprivatizá-lo, enfraquecer as classes trabalhadoras e desmontar políticas
de transferência de rendas. Por fim, afirma que as possibilidades tecnológicas e organizacionais da sociedade
jogaram a favor desta última tendência, ou seja, ganharam os de sempre, os mais fortes. CAPELLA, Juan
Ramón. Fruto proibido – Uma aproximação histórico-teórica ao estudo do Direito e do estado. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 232-233.
32
campo do trabalho, a forte regulação estatal passou a sofrer contestações, que com o impacto
da globalização econômica, sob um viés neoliberal, colocou em xeque tal regulação.
Essas últimas questões, que compõem aquilo que denominamos de “fenômenos
atuais” relativos ao trabalho e sua regulamentação, serão retomadas após fazermos uma breve
análise da evolução do trabalho e de sua regulamentação no Brasil.
2.2 A EVOLUÇÃO DO TRABALHO E DE SUA REGULAMENTAÇÃO NO BRASIL
O Brasil não ficou inteiramente alheio a toda a problemática ocorrida em âmbito
internacional na evolução do trabalho e da sua regulação, tendo sofrido com impactos internos
e externos no que tange a essa evolução. Todavia, o fato de o Brasil ser um “país periférico”
conduziu a que uma série de questões que se manifestaram nos “países centrais”, aqui não se
dessem da mesma forma ou sequer se manifestassem. A evolução do trabalho e de sua
regulamentação no Brasil, portanto, embora tenha ligações com a evolução que se deu em
nível internacional, tem certas peculiaridades.
33
Antes de adentrarmos na análise proposta, é bom termos presente a advertência que
nos faz Genro ao afirmar que se criou um mito de que as leis sociais no Brasil, especialmente
as relativas ao Direito do Trabalho, foram um presente do Estado. Segundo o autor, isso é
desmentido pela grande agitação social e luta dos trabalhadores durante vários anos, com o
movimento operário fazendo a pressão interna e, por outro lado, os acontecimentos
internacionais fazendo a pressão externa, para fins de regulamentação do trabalho no Brasil
40
.
Tendo em conta essa advertência, passemos à análise.
Antes do “descobrimento” não faz muito sentido falarmos de relações de trabalho no
Brasil, pois o trabalho se dava no seio das comunidades indígenas de forma comunitária e
para subsistência, sem registros de dominação ou trabalho forçado. Com o descobrimento, por
outro lado, pelo fato de o Brasil ter sido colonizado em moldes de extrativismo predatório,
sequer se pode falar nos impactos da primeira Revolução Industrial, tal como se deu no
mundo do trabalho dos “países centrais”.
O trabalho era prestado no campo, base da economia, em regime de escravidão. Nas
cidades existiam atividades artesanais, que se organizavam de forma muito próxima das
corporações de ofício, e outras atividades, de cunho mercantil, nas quais proliferavam
relações de parentesco ou afilhadismo entre os comerciantes e os chamados “agentes de
comércio”, bem como começaram a surgir ofícios ligados às atividades públicas.
41
Assim, tendo a economia base predominantemente rural, o trabalho prestado era
preponderantemente escravo, o que tornava, de forma geral, impossível o florescimento de
relações de trabalho em moldes fundados na liberdade de trabalho e mesmo de uma
regulamentação desse trabalho. Isso não significa que não havia relações de trabalho livre,
40
GENRO, Tarso, op. cit., p. 31. No mesmo sentido, MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz Inácio B. op.
cit., p. 20. Cabe aqui lembrar as palavras de Ianni, que afirma: “Se pudessemos resumir em poucas palavras a
situação das relações entre a burguesia e o proletariado antes e depois de 1930, afirmariamos que,
paradoxalmente, na primeira fase as tensões se revelam mais abertas e agressivas que na etapa posterior. Antes
de 30 os operários lutam para que se modifiquem as condições de vida adversas que lhes são impostas pelo
sistema produtivo em formação; sentem-se levados a ações políticas mais audaciosas, procurando impor
reivindicações ligadas às próprias condições de sobrevivência do trabalhador. Em face da inexistência de uma
legislação trabalhista sistemática, mesmo relativamente às questões fundamentais, o proletariado é levado a
greves e à formação de grupos políticos ativos. Estimulados pelas condições precárias de trabalho e
remuneração nos primórdios da indústria e orientados às vezes pela experiência redefinida de operários
experimentados em países europeus, eles conseguem desenvolver uma ação política agressiva e algumas vezes
vitoriosa. ... Reunindo brasileiros e imigrantes de primeira e segunda geração, esses movimentos refletem um
estado de tensão que se modifica gradativamente depois da revolução de 1930. Em boa parte, muitas
conquistas efetivadas na Consolidação das Leis do Trabalho, promulgada em 1943, são o resultado das
experiências daquela fase das lutas do proletariado.” IANNI, Octavio. Industrialização e desenvolvimento
social no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p. 74-76.
41
SAES, Décio. A formação do estado burguês no Brasil (1888-1891). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 268
e s. e RODRIGUES PINTO, José Augusto. Curso de Direito individual do trabalho. São Paulo: LTr. Editora,
1994, p. 37.
34
bem como certa regulamentação das mesmas, porém essas manifestações eram ínfimas.
Portanto, somente com a abolição do trabalho escravo em 1888 é que se abriu caminho para
um incipiente desenvolvimento das relações de trabalho fundadas na liberdade de trabalho e
de sua regulamentação jurídica.
42
A predominância do trabalho escravo tirava qualquer força de mobilização obreira na
busca de melhores condições de trabalho. Na verdade, buscava-se, em primeira mão, a própria
liberdade de trabalho. Por outro lado, o trabalho livre, que existia em muito menor escala, era
prestado sob os auspícios de leis civis e comerciais. Exemplos disso são a Lei de 13.09.1830,
que regulava o contrato de prestação de serviços, mas dirigida somente aos brasileiros e
estrangeiros dentro do Império, a Lei n. 108, de 11.04.1837, sobre contratos de locação de
serviços de colonos, e o Código Comercial de 1850, que regulava alguns aspectos da
prestação de serviços.
43
Com a abolição da escravatura em 1888 e a proclamação da República em 1889,
estabeleceram-se alguns pressupostos políticos para o desenvolvimento de um novo tipo de
relações de trabalho. Na Constituição de 1891, influenciada pela Encíclica Papal de Leão XIII
e pela própria abolição da escravatura, evidenciaram-se sinais jurídicos de regulação do
trabalho, o que se pode constatar com a garantia do direito de reunião (que só foi
regulamentado por leis de 1903, para os trabalhadores rurais, e de 1907, para os trabalhadores
urbanos), direito considerado básico para o desenvolvimento dos movimentos reivindicatórios
dos trabalhadores. Todavia, no plano econômico-social, existiam barreiras para o crescimento
de movimentos trabalhistas
44
. Na verdade, no período que vai de 1888 até 1930 ganharam
relevo apenas as relações de trabalho que se davam basicamente nos setores cafeeiro,
portuário, do comércio e indústria de São Paulo, e também na incipiente indústria e comércio
carioca.
O movimento operário ainda não tinha, então, uma forte capacidade de pressão, não
tendo força para imprimir uma dinâmica de conquistas e de tensão permanente sobre o capital
e o Estado. Isso não significa a inexistência de grandes manifestações obreiras (greves,
boicotes, protestos), todavia, essas eram fortemente reprimidas pela polícia. Some-se a isso, o
fato de que o Estado brasileiro era tipicamente liberal clássico, pautado pela não intervenção
nas relações econômico-sociais. Dessa forma, a questão social não era posta na ordem do dia
42
DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr., 2002, p. 101.
43
GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Elson, ob.cit., p. 6-7 e OLIVEIRA, José César de, op. cit., p. 75.
44
RODRIGUES PINTO, José Augusto, op. cit., p. 37-39.
35
e as iniciativas legislativas geralmente apenas a tangenciavam
45
. Outro fator de inegável
influência no desenvolvimento da regulação do trabalho no Brasil foi o Tratado de Versalhes
de 1919, que marcou uma grande pressão externa pela regulação do trabalho.
Foi a partir da Revolução de 30 e de sua proposta de retirar o Brasil da predominância
de uma economia agrária para introduzi-lo numa sociedade industrializada que se pode falar,
de um lado, do aparecimento de relações de trabalho marcadas por um maior grau de
desenvolvimento e, de outro, de uma verdadeira institucionalização da regulação do trabalho,
ou melhor, do Direito do Trabalho no Brasil.
A partir daí, o Brasil vivenciou um período marcado por um Estado intervencionista
(embora de natureza tipicamente autoritária, não se configurando como Estado de bem estar
social), que também iria regulamentar a chamada “questão social”. A Constituição de 1934
(concebida como a primeira Constituição Social do Brasil, mas que não teve verdadeira
implementação prática) e a Carta Constitucional de 1937, bem como a Constituição de 1946,
marcam momentos de forte intervenção estatal no mundo do trabalho. Essa intervenção se
mostra inclusive na esfera penal, pela inclusão de crimes contra a organização do trabalho no
Código Penal.
É a partir desse período que se ergue toda a ossatura legislativa brasileira sobre o
trabalho, que permanece em grande parte intocada em seu sentido textual, mesmo com o
golpe militar de 1964, as Constituições de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 (exceção
se faça, principalmente, à Lei do FGTS, que liquidou com a estabilidade no emprego do setor
privado, primeira experiência flexibilizante da América Latina
46
) até a Constituição Federal
de 1988.
Na verdade, toda essa rede legislativa anterior à CF de 1988 foi marcada por um forte
intervencionismo estatal nas relações individuais de trabalho, com a elaboração de regras
legais de ordem pública e interesse social que reconhecem uma série de direitos individuais
aos trabalhadores em nível infraconstitucional. O mote dessas regras legais, além de
estabelecer um mínimo de proteção aos trabalhadores, tem um viés voltado para a produção
de bens e serviços com o objetivo de estabelecer condições próprias para o desenvolvimento
das empresas. Por outro lado, toda essa legislação é marcada por uma forte e autoritária
45
DELGADO, Mauricio Godinho, op. cit., p. 102; RODRIGUES PINTO, José Augusto, op. cit., p. 39 e
NASCIMENTO, Amauri Mascaro, op. cit., p. 47.
46
URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade. São Paulo. LTr., 2002, p. 29-30.
36
repressão dos movimentos coletivos obreiros, atrelando os sindicatos ao Estado e limitando
amplamente a evolução do Direito Coletivo do Trabalho.
47
Segundo Maranhão e Carvalho
48
, no tocante ao Brasil, podemos esquematizar uma
rápida síntese do desenvolvimento do trabalho e da sua regulamentação nos seguintes termos:
antes de 1919 poucas leis trabalhistas houve, sendo este um ano de grandes greves, quando foi
promulgado o Decreto no. 3.724, sobre acidentes de trabalho; de 1923 é a Lei Elói Chaves,
sobre caixas de aposentadoria e pensões dos ferroviários, sendo também deste ano a criação
do Conselho Nacional do Trabalho; a reforma constitucional de 1926 à Constituição de 1891
previu a competência do Congresso Nacional para legislar sobre Direito do Trabalho; com a
Revolução de 30 nasceu o Ministério do Trabalho e, em 1932, órgãos parajudiciais de
apreciação dos dissídios trabalhistas; foi promulgada a Constituição de 1934, que inaugurou
as constituições sociais no Brasil, mas que teve duração efêmera e praticamente não foi
implementada; em 1937 a Constituição do Estado Novo proibiu o direito de greve e atrelou os
sindicatos ao Estado, sendo nesse período instituídos o salário mínimo, a Justiça do Trabalho
como parte integrante do Poder Executivo e promulgada a Consolidação das Leis do Trabalho
(CLT)
49
; com a CF de 1946 a Justiça do Trabalho passou a fazer parte do Poder Judiciário; em
1964 ocorreu mais um golpe militar e houve o desmanche da estabilidade (Lei do FGTS –
1966), arrocho salarial, as restrições quase que aniquiladoras do direito de greve através da
Lei no. 4.330/69 e do Decreto-Lei no. 1.632/78, bem como o começo do processo de
terceirização flexibilizante através da Lei no. 6.019/74, que previu a locação temporária de
mão-de-obra. Em geral, nesta fase, tanto a CF de 1967 como a Emenda Constitucional no. 1
de 1969 e uma série de manifestações legislativas sempre tiveram por norte um aumento de
disposições regulamentares visando ao Direito Individual do Trabalho, bem como o
empecilho ao desenvolvimento do Direito Coletivo do Trabalho, como forma de minar as
pressões obreiras e de manter os sindicatos atrelados ao Estado.
Com a redemocratização do país e a Constituição Federal de 1988 que consagra uma
série de direitos trabalhistas como direitos humanos fundamentais
50
, podemos perceber
47
DELGADO, Mauricio Godinho, op. cit., p. 104; RODRIGUES PINTO, José Augusto, op. cit., p. 40 e s. Aliás,
como afirma Uriarte, essa é uma marca das legislações latino-americanas, ou seja, um direito coletivo rígido e
limitativo de direitos. URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade, op. cit., p. 14.
48
MARANHÃO, Délio; CARVALHO, Luiz Inácio B. op. cit., p. 20 e 21.
49
Sobre a CLT, tão atacada nos dias atuais, é de bom alvitre que atentemos para a lição de Saad quando afirma
ser incorreto dizer que a CLT, como um todo, teve como modelo a fascista Carta del Lavoro Italiana, o que
somente seria correto com relação ao direito sindical, o qual realmente teve essa influência. SAAD. Eduardo
Gabril. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. Editora, 2000, p. 51.
50
O porquê do uso da expressão “direitos humanos fundamentais” na presente dissertação será melhor
explicitado no capítulo III.
37
mudanças, ainda não devidamente absorvidas e muitas vezes, infelizmente, incompreendidas,
na regulação das relações de trabalho. Assim, fortalece-se o regime de muitos direitos
individuais trabalhistas ao serem alçados à posição de direitos humanos fundamentais, bem
como também se percebe uma forte melhora na posição dos sindicatos, que são desatrelados
do Estado.
51
Após esse enfoque, cabe-nos agora fazer uma abordagem do momento que
vivenciamos na contemporaneidade, marcado por incertezas e mudanças. Do ponto de vista
do trabalho, a globalização neoliberal da economia, as propostas de desregulamentação, de
flexibilização, a postulação de um Direito do Trabalho mínimo e uma série de outras pressões
e “inovações” colocadas na cena política pela globalização neoliberal acabam tendo influência
no campo do trabalho e da sua regulação, merecendo ser estudadas com mais vagar no tópico
seguinte.
2.3 FENÔMENOS ATUAIS: O TRABALHO E SUA REGULAMENTAÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE
Após esse rápido panorama histórico da evolução do trabalho e de sua
regulamentação, é imprescindível uma tentativa de análise histórica da contemporaneidade
desses fenômenos. Assim, precisamos analisar a situação em que vivemos e as conseqüências
que as mutações que ocorrem na economia, na política, no Direito e na sociedade acarretam
para o “mundo do trabalho”.
52
51
Na seqüência se fará uma análise mais profunda sobre os impactos da Constituição Federal de 1988 e do
choque da direção principiológica da Constituição frente aos “reclamos da globalização neoliberal”.
52
Sem dúvidas, na análise dos fenômenos históricos da contemporaneidade percebemos uma maior dificuldade
de compreensão, certamente pela proximidade com que os estamos vivenciando, o que muitas vezes dificulta o
entendimento. Assim, percebemos a importância daquilo que Gadamer chama de “distância temporal” e de sua
possível produtividade para a compreensão adequada, categoria que será objeto de estudo adiante, no segundo
capítulo desta dissertação. Cabe marcar, por enquanto, que muitos dos fenômenos que iremos descrever ainda
estão anuviados pela falta de um distanciamento temporal que poderia nos auxiliar na elucidação dos mesmos.
Salientando essa dificuldade no entendimento dos fenômenos atuais, com foco na questão do trabalho humano,
Pochmann afirma: “Hobsbawm, novamente é útil para chamar a atenção acerca das dificuldades que o homem
tem para entender o seu próprio momento em que está vivendo. Parece ser menos complicado olhar para o
passado e procurar entendê-lo do que responder sob o curso atual do trabalho.” POCHMANN, Márcio. As
trajetórias do trabalho no final do século XX. “In” A crise do capitalismo globalizado na virada do milênio.
Raul K. M. Carrion e Paulo Fagundes Vizentini (Organizadores). Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 2000, p. 124.
38
Vivemos um momento histórico pautado pela globalização neoliberal
53
, fenômeno que
tem alterado profundamente a situação política, econômica, social e ambiental do planeta,
acarretando uma série de problemas e decies que têm um forte impacto no mundo do
trabalho.
Aduz Dallegrave Neto que como reação ao ideal keynesiano (Estado de bem estar
social) que se tornou reinante após a Segunda Grande Guerra, Friedrich von Hayek escreveu
em 1944 a obra intitulada O caminho da servidão. Sob a liderança desse autor, vários outros
autores que tinham posições semelhantes (neoliberais) se reuniram em Mont Pèlerin, na
Suíça, em 1947, e fundaram uma associação altamente dedicada.
54
53
Parece-nos importante estabelecer algumas precisões terminológicas. Assim, cabe distinguir globalização e
neoliberalismo. Nesse sentido, de um ponto de vista que podemos chamar estrito, cabe citar Vizentini, que
afirma: “...a globalização enquanto tal constitui um fenômeno estruturalmente vinculado ao capitalismo, ou
seja, já tem cinco séculos de história. Por outro lado, o neoliberalismo representa um fenômeno
qualitativamente distinto, de regulação socioeconômica da atual etapa de transformação do capitalismo
mundial (ou seja, é uma das formas de conduzir a “globalização”), atuando há aproximadamente três décadas.
O que vulgarmente é chamado de “globalização” na verdade constitui uma fase do capitalismo mundial,
iniciada como uma resposta à crise do modelo de acumulação fordista-keynesiano dos anos 70. ...Esta
gigantesca transformação, que se expressa materialmente como uma Terceira Revolução Industrial, é
impulsionada pela crescente competição entre pólos econômicos, e cada vez mais marcada pelos paradigmas
da Revolução Científico-Tecnológica (RCT).” VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A “globalização” e os
impasses do neoliberalismo. “In” Globalização, neoliberalismo, privatizações – Quem decide este jogo? Raul
K. M. Carrion e Paulo G. Fagundes Vizentini (Organizadores). 2. ed. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1998, p. 34. Como percebemos, o autor tem um entendimento restrito desses
fenômenos, sob um ponto de vista econômico. Por outro lado, podemos ter um entendimento mais aberto
desses fenômenos e nas trilhas de Morais, também podemos falar de outras globalizações possíveis, como a
busca de globalização para os direitos humanos, desvinculada do capitalismo, e, ainda, afirmar a possível
imprecisão do termo “neoliberal”, que deveria ser substituído por neocapitalismo, visto a estrita vinculação do
chamado “neoliberalismo” ao aspecto puramente econômico do liberalismo, ficando de lado os aspectos
morais, jurídicos e políticos da tradição liberal. MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da
constituição e a transformação espacial dos direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2002. p. 17
e s e 91 e s. Outros autores, também alargando a ótica, falam da globalização como um processo complexo de
intensificação das relações sociais e de interdependência entre o local e o global, alcançando não só a
economia, mas também a política, o social, o ambiental e o espaço cultural. Nesse sentido, VIEIRA, Liszt.
Cidadania e globalização. 2. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 1998, p. 72.
54
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Inovações na Legislação Trabalhista. São Paulo: LTr. Editora, 2000,
p. 19 e 20.
39
Keynes entendia que o Estado devia ter papel dirigente, agindo como investidor
central das economias nacionais, intervindo com correções quando o mercado indicasse
recessão
55
. Com as crises de 1970, que provocaram a alta do preço do petróleo, matérias-
primas e alimentos, os Estados que seguiam o modelo de bem-estar social enfrentaram
instabilidade monetária, inflação e endividamento.
56
Esses fatores abriram caminho para que o pensamento neoliberal começasse a se
tornar aceito de forma bastante alastrada. O pensamento neoliberal conquistou, então, espaço
político em 1979 na Inglaterra, com o governo Thatcher (Friedrich Hayek), e em 1980 nos
EUA, com o governo Reagan (Milton Friedman), postulando e implementando a defesa
intransigente da limitação do poder estatal. Pregava-se que, quanto mais livres fossem o
investimento e a atividade das empresas, maiores seriam o crescimento e a prosperidade para
todos. Dever-se-ia, portanto, dar um basta à intromissão do Estado na economia, devendo
caber ao mercado a regulamentação econômica. O mercado, portanto, seria a melhor forma de
se atingir o desenvolvimento econômico e social.
57
Como afirma Vizentini, para os economistas neoliberais, como Hayek, a crise pela
qual passava o modelo econômico do pós-guerra era decorrente dos aumentos salariais e dos
gastos sociais dos Estados. Assim, dever-se-iam reduzir o tamanho e as funções do Estado, o
qual deveria se preocupar com a estabilidade monetária. Essa política seria viável através do
55
KEYNES, John Maynard. A teoria geral do emprego, do juro e da moeda – Inflação e deflação. São Paulo:
Abril Cultural, 1983, p. 217. Cabe referir, ainda, na mesma obra, a introdução feita por Adroaldo Moura da
Silva, p. XVII e s., que traça as principais idéias de Keynes sobre a legitimidade da intervenção estatal.
56
Faria salienta: “... Os dois choques do petróleo ocorridos em 1973 e 1979, deflagrando uma nova crise
estrutural do sistema financeiro, subvertendo o regime de preços relativos, alterando os fluxos de inspiração
social-democrata forjados no pós-guerra, provocando uma enorme recessão nos países desenvolvidos e
abrindo caminho para uma revolução tecnológica, desencadeada com o objetivo de reduzir o impacto do custo
da energia e do trabalho no preço final dos bens e servos, puserem em xeque as engrenagens decisórias e o
sistema político-jurídico do Estado-Providência. ...” FARIA. José Eduardo. Direito e globalização:
Implicações e perspectivas. Organizador José Eduardo Faria. São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 7 e 8. Já
Calera, discorrendo sobre as crises do Estado Social de Bem-Estar, afirma: “..., el hecho es que a partir de los
años 70 las cosas no han ido tan bien para esse Estado. Particularmente sus actuaciones em el campo de las
políticas sociales y econômicas se cuestionan radicalmente. Sobre todo las fuerzas sociales e idelógicas
conservadoras opinan que el Estado intervencionista es um grave impedimento para el desarrollo econômico.
Se argumenta que las teorias de Keynes sobre la intervención del Estado em la vida econômica han fracasado.
Em consecuencia se vuelve a insistir em la necessidad de recuperar el viejo modelo econômico del liberalismo
y se apuesta decisivamente por el mercado para resolver los problemas de desarrollo y de distribución de la
riqueza: more Market, less State. Esto es, se exige “desestatalizar” y despolitizar a economia, y dar paso de
nuevo y com renovado vigor a la iniciativa privada.” CALERA, Nicolas Maria López. Yo, el Estado. Bases
para uma teoria substancializadora (não substancialista) del Estado. Madrid: Trotta, 1992, p. 16-17.
57
Uma grande parte das propostas de Hayek pode ser vista sumariamente no “Prefácio da Edição Norte-
Americana de 1975” da obra “O caminho da servidão”. HAYEK, Friedrich A.. O caminho da servidão. 4. ed.
Rio de Janeiro: Expressão e Cultura – Instituto Liberal, 1987, p. 9.
40
aumento das taxas de juros, da redução de impostos para os rendimentos elevados, do corte de
gastos sociais, da privatização de empresas públicas e da liberação financeira e comercial.
58
Assim, foram estabelecidas medidas (políticas) a serem seguidas como: a privatização
das estatais; a diminuição do espaço público e ocupação desse espaço pelos entes privados; a
desregulamentação/flexibilização dos direitos sociais trabalhistas e previdenciários; o
estímulo à livre negociação entre patrões e empregados, mas com sérias limitações ao direito
de greve e ao poder de negociação sindical; a adoção de medidas que facilitassem a livre
circulação do capital especulativo estrangeiro; a quebra dos monopólios estatais e das
barreiras alfandegárias e a desregulamentação da economia, que passa a ser regida somente
pela lei de mercado.
59
Outro fator importantíssimo que permitiu que o neoliberalismo praticamente tomasse
de assalto uma grande parte do planeta, impondo o “pensamento único”, foi a queda da
URSS. Vizentini afirma que o
58
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes. A “globalização”..., op. cit., p. 43.
59
Nesse sentido Faria, que descreve as rupturas produzidas por esse processo globalizante forjado pela doutrina
neoliberal, todas tendo como denominador comum o esvaziamento da soberania e autonomia dos Estados
nacionais, afirma: “... As rupturas mais importantes, cujos desdobramentos constituem o objeto de todos os
ensaios que compõem esta coletânea, são as seguintes: 1 – mundialização da economia, mediante a
internacionalização dos mercados de insumo, consumo e financeiro, rompendo com as fronteiras geográficas
clássicas e limitando crescentemente a execução das políticas cambial, monetária e tributária dos Estados
nacionais; 2 – desconcentração do aparelho estatal, mediante a descentralização de suas obrigações, a
desformalização de suas responsabilidades, a privatização de empresas públicas e a “deslegalização” da
legislação social; 3 – internacionalização do Estado, mediante o advento dos processos de integração
formalizados pelos blocos regionais e pelos tratados de livre comércio e a subseqüente revogação dos
protecionismos tarifários, das reservas de mercado e dos mecanismos de incentivos e subsídios fiscais; 4 –
desterritorialização e reorganização do espaço de produção mediante a substituição de plantas industriais
rígidas surgidas no começo do século XX, de caráter “fordista”, pelas plantas industriais “flexíveis”, de
natureza “toyotista”, substituição essa acompanhada pela desregulamentação da legislação trabalhista e pela
subseqüente “flexibilização” das relações contratuais; 5 – fragmentação das atividades produtivas nos
diferentes territórios e continentes, o que permite aos conglomerados multinacionais praticar o comércio inter-
empresa, acatando seletivamente as legislações nacionais e concentrando seus investimentos nos países onde
elas lhe são mais favoráveis; 6 – expansão de um Direito paralelo ao dos Estados, de natureza mercatória (“lex
mercatória”), como decorrência da proliferação dos foros de negociações descentralizados estabelecidos pelos
grandes grupos empresariais. ...” FARIA. José Eduardo. Direito e globalização, op. cit., p. 10-11.
41
colapso do Campo Soviético e o fim da Guerra Fria aprofundaram ainda mais tais
tendências no início dos anos 90. A ausência de um inimigo externo permitiu o
aprofundamento da globalização, o triunfalismo do discurso neoliberal e o refluxo
das forças politicamente de esquerda. ... O capitalismo neoliberal triunfante passou
do discurso antiestatalista libertador à prática explícita da redução de salários,
eliminação de postos de trabalho e esmagamento de direitos sociais conquistados
com imensos sacrifícios ao longo de mais de um século.
60
Para Kuntz, a metamorfose dos mercados e a reforma do Estado são as palavras de
ordem da reconstrução do capitalismo, o que acarreta, com a globalização neoliberal, o
enfraquecimento do poder dos Estados nacionais de se auto-governarem apenas baseados nas
suas premissas internas, havendo cada vez mais a ingerência de fatores externos.
61
A noção moderna de Estado, fundada na soberania, evidencia, inegavelmente, uma
crise que modifica o panorama do próprio conceito de Estado
62
. A nosso ver, todavia, embora
essa crise seja geral, ou seja, afete os Estados nacionais em todo o planeta, não é simétrica.
60
VIZENTINI, Paulo G. Fagundes, A “globalização”..., cit., p. 46. Em sentido semelhante, afirma Uriarte “Más
allá de sus diversos aspectos y manifestaciones – cuya variedad la convierten en um fenômeno complejo,
multifacético y dinâmico-, la globalización, puede ser reducida, en su mas intima esencia, a la expansión y
profundización de la economia capitalista y de sus postulados teóricos, tales como libre competencia, mercado,
libre cambio, incremento de exportaciones, etc. La caducidad del mundo bipolar que había caracterizado a la
mayor parte del siglo XX, acelero e intensifico aquella expansión, a la vez que entronizo, sobre todo en el
terreno econômico, el pensamiento único o hegemóico: el neoconservadorismo, neoclasicismo o
neoliberalismo, originario de los años 30 y 40, ahora es desempolvado e instalado como verdad revelada,
probablemente proque ya no parece (tan) necessario mitigar los aspectos más inequitativos del capitalismo.”
URIARTE, Oscar Ermida. Globalización y relaciones laborales. Disponível em
http://www.mundodeltrabajo.org.ar, p. 1.
61
FARIA, José Eduardo e KUNTZ, Rolf. Qual o futuro dos Direitos? Estado, mercado e justiça na reestruturação
capitalista. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 42-43.
62
Aliás, a crise conceitual é apenas uma das crises do Estado. Morais é um dos autores que enfrentam a questão
das crises do Estado. Segundo o autor, devemos ter presente a profunda crise em que se encontra o Estado na
contemporaneidade, o que se agravou por um profundo rearranjo econômico e tecnológico que colocou em
xeque as estruturas tradicionais do Estado em sua visão territorial soberana. Com efeito, o processo de
globalização neoliberal, com um capitalismo financeiro, facilitado pelos avanços tecnológicos (comunicação,
transporte, energia, robótica), foge aos esquemas territoriais e abala profundamente a concepção de soberania
do Estado. Assim, o autor divide a crise do Estado, para efeitos meramente analíticos e críticos, visto que estão
profundamente entrelaçadas, em: conceitual, estrutural, institucional, funcional e política. Quanto à crise
conceitual, que mais de perto nos interessa aqui, o autor afirma que a crise conceitual do Estado se apresenta
pela percepção de que o conceito de Estado foi construído em torno da soberania política (poder) territorial em
relação a uma determinada população; de uma separação rígida entre público e privado; da prevalência do
poder estatal soberano em nível interno e da autodeterminação estatal em nível externo. Todavia, ocorre que o
que se vê hoje é um esfacelamento dessas características conceituais, em virtude de uma hiper-complexidade
social, que não permite respostas a partir da noção rígida de Estado. Assim, pode-se dizer que: a) a soberania,
em seus aspectos interno e externo, é abalada pela configuração de espaços, de centros de poder, supra-
nacionais (comunidades supra-nacionais – União Européia, MERCOSUL, organizações não-governamentais,
organizações internacionais – ONU) e por uma autonomização radical dos organismos econômicos (mega
empresas transnacionais que detém poder econômico superior a muitos Estados – neocapitalismo) que não
dependem na mesma medida do poder estatal; b) a separação rígida entre público e privado é defasada diante
do aparecimento de relações sociais marcadas pelo pluralismo político-social; c) na formação de centros de
poder alternativos, que tomam decisões sem passar pelas estruturas estatais; d) no reconhecimento de direitos
humanos fundamentais, que implicam o respeito e promoção por todos, impondo o seu respeito, como critério
de legitimidade, por parte do próprio Estado. MORAIS, José Luis Bolzan de, As crises ..., op. cit., p. 16.
42
Parece-nos que a crise dos Estados nacionais é mais ou menos profunda de acordo com a
posição de força que os Estados representam no contexto internacional. De acordo com seu
maior ou menor peso (econômico, político, militar), a crise pode ser mais profunda ou mais
epidérmica.
63
Portanto, a percepção global desse fenômeno é importantíssima para a busca das
soluções aos problemas que se apresentam. Aliás, não podemos perder de vista que a própria
noção de Estado nacional ainda é importante para o próprio movimento neoliberal, tanto que
uma das bases do chamado “Consenso de Washington” é justamente, como afirma Faria, a “...
ampliação da segurança patrimonial, por meio do fortalecimento do direito à propriedade”
64
.
Ora como isso vai se dar sem que o Estado nacional o faça? Logo, embora em crise,
permanece, para os propósitos da globalização neoliberal, o papel dos Estados nacionais, mas
agora voltados, primordialmente, a defender as pautas da globalização neoliberal. Além disso,
cabe salientar que os Estados nacionais já não se apresentam como titulares únicos do poder.
Com a globalização neoliberal há um aumento enorme de complexidade para a
estruturação e entendimento do fenômeno do poder geral (entendido até recentemente como
poder público), tanto que Capella afirma que somente é possível se entender a nova
configuração do poder a partir de metáforas, como a de “campo de forças”, pois não existe um
único agente causal das decisões, mas, sim, a interação de várias determinações para a tomada
das decisões. Afirma o autor:
63
Aliás, sobre isso, interessante é lembrar a posição de John Kenneth Galbraith, segundo o qual a globalização
não é um conceito sério, pois, inventado pelos Estados Unidos, apenas serve para dissimular a entrada
econômica dos EUA em outros países. Este enfoque parece que não pode ser desconsiderado. Apud LIMA,
Rogério Medeiros Garcia de. Aplicação do código de defesa do consumidor. Biblioteca de Direito do
Consumidor – 23. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 35. Em outro enfoque, Fernandes afirma ainda a
prevalência da noção de territorialidade, de acordo com a força de cada Estado Nacional, no panorama da
globalização. Falando sobre as empresas transnacionais, mostra sua vinculação estreita com os Estados
Nacionais mais fortes. Afirma o autor: “Mais de 85% de sua atividade tecnológica é concentrada em bases
nacionais. No caso das grandes empresas norte-americanas, nada menos de 98% das cadeiras nos conselhos de
administração são ocupadas por cidadãos norte-americanos. O que estes dados indicam é que o controle e as
atividades estratégicas das empresas multinacionais continuam fortemente “territorializadas” (e, como
veremos adiante, absolutamente entrelaçadas com a política internacional dos seus Estados de origem).”.
FERNANDES, Luis. As armadilhas da globalização. “In” Globalização, neoliberalismo, privatizações – Quem
decide este jogo? Raul K. M. Carrion e Paulo G. Fagundes Vizentini. Segunda edição. Porto Alegre: Editora
da Universidade/UFRGS, 1998, p. 16-17.
64
FARIA, José Eduardo. Democracia e governabilidade: os Direitos humanos à luz da globalização econômica.
“In” Direito e globalização econômica – Implicações e perspectivas. José Eduardo Faria Organizador. 1. ed.
São Paulo: Malheiros, 1998, p. 148.
43
O poder “político” modificou sua estrutura profunda com a grande transformação;
pela primeira vez a partir do nascimento da modernidade não pôde ser descrito em
termos de soberania e legitimidade simples. O campo de poder contemporâneo – se
sustentará aqui – está constituído pela inter-relação de um soberano privado supra-
estatal difuso e – posto que se mantém a base territorial de assentamento do poder –
um “estado permeável” ou umas “associações estatais” permeáveis, abertas ou
porosas (como pode ser a União Européia). Analogamente, deixa de ser certo que o
sistema de legitimação reconhecido no relato político aceito – nas metrópoles
ocidentais, o relato democrático-representativo – seja o único operante: o campo de
poder admite a copresença de distintos sistemas de legitimação.
65
Capella denomina de “soberano privado supra-estatal difuso” ao titular de um poder
que é supra-estatal e que produz efeitos de natureza pública ou política, impondo aos Estados
nacionais determinadas políticas (neoliberais) e o trespasse de decisões capitais da esfera
pública para a privada. Esse “soberano privado” é composto pelas grandes companhias
transnacionais, pelos conglomerados financeiros, impondo-se por meio das instâncias
convencionais inter-estatais (G-7, Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional,
Organização Mundial do Comércio) e da criação de Direito pela lex mercatoria. Todavia,
salienta, esse “soberano privado difuso” não é um poder totalmente independente, mas se
inter-relaciona com o que o autor chama de “estados permeáveis”, ambos integrando o
chamado “campo de poder”. Portanto, as decisões do poder privado têm efeitos públicos
justamente pela determinação das políticas estatais, pois o poder privado não é capaz de impor
sozinho suas decisões, cabendo aos poderes dos estados-permeáveis subalternos implementá-
las.
66
Toda essa reestruturação do fenômeno do poder e da economia em nível global torna
possível que se constatem alguns efeitos, tais como macroeconomia globalizada e
financeirizada; globalização dos meios de comunicação e da mão-de-obra; perda da soberania
nacional (proporcional à força econômica, política e militar de cada Estado nacional) e a
reestruturação do sistema produtivo. Para o mundo do trabalho a incidência desses fenômenos
tem acarretado mudanças radicais.
65
CAPELLA, Juan Ramón, op. cit., p. 255.
66
Idem, ibidem, p. 257-259. Aliás, há algum tempo Galbraith já afirmava: “A instituição que mais influi em
nossas vidas é a que menos compreendemos ou, melhor dizendo, a que mais nos esforçamos por não entender.
É a grande e moderna multinacional. De semana a semana, mês a mês, ano a ano, ela exerce uma influência
cada vez maior sobre o nosso ganha-pão e modo de vida do que os sindicatos, as universidades, os políticos, o
próprio governo.” GALBRAITH, John Kenneth. A era da incerteza. 6. ed. São Paulo: Pioneira, 1984, p. 259.
44
A reestruturação produtiva, com a passagem de um sistema produtivo de tipo
taylorista/fordista
67
para o toyotista, e a revolução tecnológica, combinadas com a retirada de
proteção social por parte do Estado, têm provocado desemprego, precarização e a diminuição
drástica da qualidade de vida de imensos contingentes humanos
68
. Além disso, percebe-se um
aprofundamento da violação e (so)negação não só dos direitos sociais, mas da própria
dignidade pessoal dos trabalhadores, desconsiderados como pessoas integrais. No mundo do
trabalho, nas relações de trabalho, a conseqüência de tudo isso é o surgimento do que se
chama de “flexibilização”
69
, com nítido caráter neoliberal.
A flexibilização das relações trabalhistas, conforme já explicitado, é uma das receitas
neoliberais. Pretensamente, afirma que a diminuição da proteção trabalhista visa a aumentar o
investimento, o emprego e a competitividade das empresas
70
. Com isso, propõe uma profunda
“individualização” das relações de trabalho até o limite do politicamente possível, pregando a
não intervenção estatal nas relações individuais de trabalho, ou seja, postulando um
afrouxamento da proteção estatal. Com isso, as relações individuais de trabalho voltam a se
aproximar das relações civis, um retorno ao período anterior ao nascimento do Direito do
Trabalho. Já as relações coletivas (travadas entre sindicatos de empregados e sindicatos de
empregadores ou empresas) devem ser limitadas pelo Estado para impedir “práticas
67
O modo produtivo capitalista denominado “fordista” é entendido por Antunes “fundamentalmente como a
forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo deste século, cujos elementos
constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da linha de montagem e de produtos mais
homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo cronômetro taylorista e da produção em série
fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela fragmentação das funções; pela separação entre elaboração
e execução no processo de trabalho; pela existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela
constituição/consolidação do operário-massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões”.
Configura-se, portanto, por um “forte despotismo e controle fabril” do trabalho. ANTUNES, Ricardo. Adeus
ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 9. ed. Campinas: Cortez,
2003, p. 25 e 191.
68
Dados da OIT do ano de 2005 demonstram que 180 milhões de pessoas estão em situação de desemprego
aberto (procuram emprego mas não acham), sendo mais de um terço jovens entre 15 e 24 anos. Por outro lado,
um terço da mão-de-obra no mundo está desempregada ou subempregada, havendo um grande aumento da
economia informal, aumentando o subemprego e resultando em queda de produtividade e remuneração. Os
dados podem ser conferidos no endereço eletrônico www.oitbrasil.org.br, consulta feita em 03 de março de
2006.
69
As denominações “flexibilização” ou “flexibilidade” são utilizadas em sentido geral, ou seja, abarcando uma
série de manifestações diferenciadas. Como afirma Uriarte, em geral, “sob a denominação genérica de
flexibilidade tende-se a incluir dois conceitos diferentes. De um lado, sobretudo na doutrina européia, reserva-
se a palavra “desregulamentação” para se referir à flexibilização unilateral, imposta pelo Estado ou pelo
empregador, diminuindo ou eliminando benefícios trabalhistas, sem real participação da vontade do
trabalhador e sem contrapartida ou sem contrapartida determinada e exigível. Por outro lado, essa mesma
doutrina reserva o termo “flexibilização” para identificar a adaptação autônoma, negociada e condicionada,
quer dizer, em troca de determinadas e exigíveis contraprestações e não em troca de uma mera expectativa.”
URIARTE, Oscar Ermida, A flexibilidade, op. cit., p. 17.
70
URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade, op. cit., p. 9.
45
monopolistas” que impedem o livre jogo da oferta e da procura.
71
Como se percebe, aumenta-
se o poder das empresas e diminui-se ao máximo possível a proteção dos trabalhadores,
flexibilizando-se o trabalho e protegendo-se o capital.
72
Vamos tentar esclarecer, minimamente, nossas afirmações sobre esses fenômenos.
O toyotismo é uma inovação na administração do processo produtivo
73
(reengenharia
da empresa enxuta) introduzida, por volta dos anos de 1930, por Talichi Ohno, engenheiro
que trabalhava nas fábricas têxteis da família Toyoda, a qual, a partir de 1947, foi empregada
no setor automotivo (Toyota) e difundida mundialmente. Funciona na base de inovações
como o jus-in-time, ocupando cada trabalhador ao máximo, trabalho em grupos, flexibilidade,
polivalência, sub-contratação e outras mais.
No toyotismo, como já assinalado, o trabalho é prestado em grupos, com trabalhadores
polivalentes no exercício de funções diversas. Os grupos têm objetivos a cumprir, mas os
meios fornecidos para o alcance das metas são inferiores ao que seria normalmente utilizado,
o que impõe o extermínio dos “tempos mortos” de trabalho, aqueles nos quais o trabalhador
está ocioso durante o trabalho. É um sistema permanente, pois a cada vez que os objetivos são
alcançados, após a chefia felicitar os trabalhadores por sua competência, os meios disponíveis
para alcançar os objetivos são reduzidos, impondo um maior esforço para o alcance das metas
(sistema chamado pelos trabalhadores japoneses de “Oh! No!”, ou seja, “Oh! Não!”). Assim,
significa a “administração por estresse”
74
. Além disso, a produção é vinculada à demanda,
sendo bastante heterogênea para atender a um mercado mutável e constantemente incentivado
71
Idem, ibidem, p. 19-20.
72
Giovanni Alves é enfático ao afirmar que a flexibilidade da força de trabalho é uma estratégia para uma maior
acumulação do capital: “...a categoria de flexibilidade possui uma ineliminável dimensão política – ela apenas
robustece o poder do capital (contra a sua parte antagônica, o trabalho assalariado). Ela não atinge as
prerrogativas “rígidas” do capital, tendo em vista que é ele quem decide ainda o que produzir e onde alocar os
recursos. Até mesmo, sob a Terceira Revolução Tecnológica, com as novas tecnologias da telemática, a
capacidade de centralização do capital torna-se maior. Por outro lado, a função social do trabalho assalariado
continua restrita e parcial, apesar da polivalência operária, proclamada pelos novos experimentos da produção
capitalista de cariz flexível, tais como o toyotismo, o trabalhador assalariado continua sendo, em sua essência,
um “indivíduo parcial, mero fragmento humano que repete sempre uma operação parcial (Marx), apesar do
“enriquecimento de tarefas” (Aglietta), ou da “desespecialização” (Coriat). ALVES, Giovanni. O novo (e
precário) mundo do trabalho – Reestruturação produtiva e crise do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2000,
p. 24.
73
Giovanni Alves afirma: “Para nós, o toyotismo não é considerado um novo modo de regulação do capitalismo,
no estilho da Escola da Regulação (tal como fizeram, por exemplo, com o conceito de fordismo); o potencial
heurístico do conceito de toyotismo é limitado à compreensão do surgimento de uma nova lógica de produção
de mercadorias, novos princípios de administração da produção capitalista, de gestão da força de trabalho, cujo
valor universal é constituir uma nova hegemonia do capital na produção, por meio da captura da subjetividade
operária pela lógica do capital”. ALVES, Giovanni, O novo (e precário) mundo do trabalho, op. cit., p. 31.
74
GOUNET, Thomas. Fim do trabalho, fim do emprego? “In” A crise do capitalismo globalizado na virada do
milênio. Raul K. M. Carrion e Paulo Fagundes Vizentini (Organizadores). Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 2000, p. 102-103.
46
a “novas necessidades” de consumo; há, ainda, uma horizontalização do processo produtivo,
com a terceirização de várias etapas produtivas (tanto é assim que, na fábrica fordista, 75% do
seu produto era fabricado em seu interior e, na fábrica toyotista, apenas 25%).
75
De outro lado, o avanço tecnológico (telemática, informática etc) possibilita essa
fragmentação da produção sem perda do controle efetivo sobre a mesma, conduzindo a que as
empresas se organizem em redes, com uma grande quantidade de pequenas e médias
empresas que se ligam com as empresas principais, formando complexos relacionais. Assim,
contraditoriamente, embora haja a fragmentação da produção, existe uma cada vez maior
concentração e centralização do capital.
76
As conseqüências da implementação desse sistema, impulsionado pela globalização
neoliberal, segundo Antunes, tem provocado uma série de conseqüências drásticas no mundo
do trabalho, tais como: a) a crescente diminuição do proletariado fabril estável; b) incremento
acentuado de um novo proletariado, que é o sub-proletariado fabril e de serviços, marcado
pelo trabalho precarizado (terceirizados, trabalho a tempo parcial, informais); c) aumento
significativo do trabalho feminino, com maior índice nos trabalhos precarizados e informais;
d) incremento de assalariados médios e de serviços; e)exclusão de jovens e de idosos do
mercado de trabalho; f) inclusão precoce e criminosa de crianças no mercado de trabalho,
principalmente nos países de industrialização intermédia e subordinada e, ainda, g) a
expansão daquilo que Marx chamava de “trabalho social combinado”, no qual trabalhadores
do mundo inteiro participam do processo de produção e de serviços.
77
Sustenta o autor que o que observamos é uma fragmentação, heterogeinização e
complexificação daqueles que vivem do trabalho, demonstrando não a sua eliminação, mas a
precarização das condições de trabalho e a sua utilização ainda mais intensa, aumentando a
exploração do trabalho e a dominação do capital.
78
Tudo isso implica, portanto, uma subordinação ainda maior do trabalho perante o
capital, aumentando, principalmente nos países subdesenvolvidos, o fosso entre incluídos e
75
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? ..., op. cit., p. 181-182.
76
ALVES, Giovanni, O novo (e precário) mundo do trabalho, op. cit., p. 57. Castelo, que, ao analisar o impacto
dos novos sistemas de produção e as novas tecnologias no mundo do trabalho, afirma: “Pela primeira vez na
história da humanidade, a aceleração e difusão dos sistemas de transportes de mercadorias e no sistema de
informações tornou possível organizar a produção e não apenas o comércio, em escala transnacional. “No fim
do século XX e graças ao avanço da ciência, produziu-se um sistema de técnicas presidido pelas técnicas da
informação que passaram a exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando ao novo sistema
técnico uma presença planetária.”” CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito do Trabalho no século novo. Revista
Jurídica Consulex – ano. IV, no. 48. São Paulo: Brasília, 2000, p. 1-2.
77
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?...., op. cit., p. 182 e 183.
78
Idem, ibidem, p. 183.
47
excluídos do “mercado”, apresentando-se, ainda, um aumento significativo do trabalho
forçado.
79
Como percebemos, ocorrem mudanças radicais no mundo do trabalho, o que, todavia,
não parecem caminhar no sentido de sua extinção. Lembramos o que afirma Antunes na
contramão de muitos que falam da extinção do trabalho ou da perda de sua centralidade:
Em verdade, o sistema de metabolismo social do capital necessita cada vez menos
de trabalho estável e cada vez mais de trabalho parcial – part-time -, terceirizado,
precarizado, dos trabalhadores hifenizados de que falou Huw Beynon, da classe-
que-vive-do-trabalho de que falei em Adeus ao trabalho? e que se encontra em
explosiva expansão em todo o mundo produtivo e de serviços. Como o capital pode
reduzir muito, mas não pode eliminar completamente o trabalho vivo do processo de
criação de mercadorias, sejam elas materiais ou imateriais, ele deve, além de
incrementar sem limites o trabalho morto corporificado no maquinário
tecnocientífico, aumentar a produtividade do trabalho de modo a intensificar as
formas de extração do sobretrabalho (de mais-valia) em tempo cada vez mais
reduzido.
80
79
Um levantamento realizado pela ONU em 2005 constatou uma realidade: “a globalização faz mal aos pobres e
acentua as desigualdades entre povos e pessoas”. O relatório da ONU aponta que 15% da população mundial
se beneficia de 80% da produção mundial; assim, os 20% mais ricos respondem por 85% do consumo
mundial, ao passo que os 20% mais pobres não conseguem consumir 1% do que é produzido. A ONU conclui
que a globalização não tem sido controlada, apontando três principais causas diretas do problema: a)
concentração crescente da renda planetária e estagnação dos níveis de pobreza em patamares inaceitáveis; b)
deterioração das regras de funcionamento e proteção do mercado de trabalho; c) a forma como se tem dado a
liberalização comercial e financeira. Sobre a questão do mercado de trabalho, o Relatório afirma que as
desregulamentações e flexibilizações do mercado de trabalho contribuem fortemente para o aumento da
desigualdade, causando erosão salarial, redução de postos de trabalho e uma epidemia de informalidade e
precariedade. Exemplos disso são a América Latina, onde 50% da população ativa está na informalidade, e a
África, onde 80% da população ativa está na informalidade. KUPLER, José Paulo. A globalização faz mal aos
pobres. Endereço Eletrônio http://nominimo.ibest.com.br, consultado em 01 de setembro de 2005. Dados
recentes da OIT (2005) demonstram que as estimativas globais demonstram a existência de 12,3 milhões de
pessoas vítimas de trabalho forçado no mundo, 9,8 milhões são explorados por agentes privados e 2,5 milhões
são forçados a trabalhar para o Estado ou por grupos rebeldes militares. O trabalho forçado está assim
distribuído: 360.000 estão na Europa e EUA; 9.490.000 na Ásia e Pacífico; 1.320.000 na América Latina;
260.000 no Oriente Médio e Norte da África; 210.000 em países considerados em transição e 660.000 na
África Sub-Sahariana. Como se percebe, a maior quantidade de trabalho forçado concentra-se nos países
pobres. Esses dados podem ser conferidos no endereço eletrônico www.oitbrasil.org.br, consulta em 03 de
março de 2006. Quanto ao Brasil, especificamente, chamam a atenção os dados que demonstram o aumento do
trabalho escravo. A Comissão Pastoral da Terria (CPT) apurou que entre 1973 e 1995 foram identificados 85
mil casos de trabalhadores escravos em todo o País, com uma média de 3,7 mil ocorrências ao ano. Em 2001, a
CPT encontrou o trabalho forçado em 45 fazendas, envolvendo 2.416 trabalhadores, sendo 61crianças
ouadolescentes. Já em 2002, foram registrados até o momento 5.391 (63 crianças e adolescentes) trabalhadores
escravos em 127 fazendas. Essas informações podem ser conferidas no Endereço Eletrônico www.cpt.org.br,
consultado em 03 de fevereiro de 2006.
80
ANTUNES, Ricardo. O caracol e a sua concha – Ensaios sobre a nova morfologia do trabalho. São Paulo:
Boitempo, 2005, p. 27. Em sentido oposto, mas com enfoques diversos entre si, ver DE MASI, Domenico. O
futuro do trabalho – Fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio da Janeiro: UNB, 1999; RIFKIN, Jeremy.
O fim dos empregos. São Paulo: M. Books, 20004 e BRIDGES, William. Um mundo sem empregos – job
shift – os desafios da sociedade pós-industrial. São Paulo: Makron Books, 1995.
48
Diante de tudo isso, cabe, ainda, centrar fogo na análise do desemprego, cuja
diminuição é um dos “atrativos retóricos” da flexibilização. Essa é uma questão paradoxal,
pois a globalização neoliberal, apoiada no toyotismo e nas novas tecnologias, causa
desemprego e, por outro lado, a globalização neoliberal propõe como solução para o
desemprego a flexibilização das relações de trabalho, que tem demonstrado causar ainda mais
precariedade e desemprego. Assim, os trabalhadores enfrentam uma situação bastante difícil,
pois as políticas neoliberais flexibilizantes possibilitam o direcionamento de toda a evolução
tecnológica no sentido da diminuição drástica dos postos de trabalho, enfraquecendo a
posição dos trabalhadores e de seus sindicatos. Como afirma Capella, as “políticas neoliberais
fazem possível orientar a informática em direção à minoração do trabalho”.
81
Além disso, as novas tecnologias, combinadas com a postura imposta pela política
neoliberal, que postula e acaba por impor a quebra das barreiras estatais, possibilitam o
chamado dumping social, pois as mega-corporações podem escolher seletivamente onde irão
produzir, levando em conta, entre outros fatores, as leis fiscais, ambientais e os direitos
trabalhistas reconhecidos em determinados Estados nacionais. Assim, há uma seletividade
excludente das ordens jurídicas estatais que são mais sensíveis à proteção dos trabalhadores.
Entretanto, a questão do desemprego é ainda mais complexa.
Se, por um lado, constatamos o desemprego estrutural que alcança os trabalhadores da
indústria mesmo nos países de Primeiro Mundo, por outro, existe um aumento bastante
elevado do emprego, embora muitas vezes precário, no setor de serviços
82
. Além disso, o
desemprego alcança os Estados Nacionais de forma bastante diversa. Se, por um lado, o
desemprego aumenta em alguns países europeus
83
, nos EUA existem dados que demonstram
que o conjunto de assalariados, que era de 75,66% da população ativa em 1948, passou para
87,9% em 1998.
84
Observamos, ainda, que também os investimentos tecnológicos não causam,
necessariamente, desemprego. Dados da Organização Internacional do Trabalho demonstram
que, em 1979, o mundo tinha 45 milhões de desempregados e o G-7 (grupo dos sete países
mais ricos) respondia por 33% desse número. Já em 2002, o número de desempregados
atingia 160 milhões no mundo e o G-7 respondia apenas por 12% desse total, ou seja, o
81
CAPELLA, Juan Ramón, op. cit., p. 245. No caso brasileiro, por exemplo, isso ocorre em franco contraste
com a Constituição Federal de 1988, que em seu art. 7º, XXVII, prevê a proteção dos trabalhadores em face da
automação na forma da lei, lei esta, todavia, até hoje não editada.
82
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho?..., op. cit., p. 49.
83
ROMAGNOLI, Umberto. El derecho, el trabajo y la historia. Madrid: CES, 1996, p. 165.
84
GOUNET, Thomas. Fim do trabalho, fim do emprego? ...., op. cit., p. 101.
49
desemprego concentrou-se cada vez mais nos países pobres, que não têm condições de
investir pesadamente em tecnologia.
85
Concluímos, portanto, sobre a existência de um aumento brutal do desemprego
principalmente nos Estados menos desenvolvidos e que têm menor capacidade de
investimento. Dessa forma, a questão do emprego está diretamente ligada, como afirma
Pochman, à capacidade de inserção de cada país na economia internacional, no mercado
internacional. Tanto é assim que o autor salienta a expansão em números absolutos do
emprego industrial em países como EUA, Japão e Canadá nos últimos 24 anos, ficando claro,
portanto, que a questão do emprego também é política
86
. Assim, devem ser afastadas visões
simplistas do fenômeno do desemprego.
Outra questão a ser considerada é se a flexibilização dos direitos dos trabalhadores tem
conseguido, conforme o discurso neoliberal, aumentar o número de postos de trabalho. E aí, o
que os dados demonstram é o fracasso das políticas flexibilizantes na geração de emprego.
85
POCHMANN, Márcio. Financeirização, concentração de renda e desemprego. Como valorizar o trabalho?
Revista Princípios. São Paulo: Anita Garibaldi, novembro de 2005, p. 31.
86
POCHMANN, Márcio, As trajetórias do trabalho..., op. cit., p. 127-128. Aliás, o mesmo Pochmann, em
entrevista concedida ao Diário Vermelho de 08/02/2006, perguntado sobre a situação do mundo do trabalho no
Brasil, no qual os dados recentes demonstram desemprego em torno de 10% e informalidade em torno de 25%
da população ativa, afirmou: “Há algumas interpretações da desestruturação do mundo do trabalho. Uma delas
sustenta que foi decorrente das grandes transformações tecnológicas. O avanço causaria o desemprego, que
deveria estar associado ao aumento da produtividade. Com isso, não haveria do que reclamar, já que
cresceríamos tecnologicamente. Seria o custo do progresso. Para outra interpretação, as empresas estariam
ávidas a contratar mais trabalhadores, que não estariam preparados para ocupar as vagas oferecidas. As duas
explicações tiram a responsabilidade da política econômica e dos governos pelo desemprego. Foram levadas a
exaustão e perderam a validade. Não somos um país condenado ao desemprego nem à exclusão social, que
resultam das opções dos governos. A Pnad de 2004 mostrou que quando há crescimento econômico, amplia-se
o nível de emprego, inclusive assalariado com carteira assinada, o melhor emprego gerado pelo capitalismo
brasileiro.” POCHMANN, Márcio. País é prisioneiro da elite nacional. Endereço eletrônico
www.vermelho.org.br, p. 2.
50
Süssekind aponta um dado bastante significativo sobre essa questão no Brasil. Em
1980 o Brasil tinha em torno de 964.000 desempregados, número que se elevou, em 2000,
para 11.474.000 desempregados. Com base nesses dados, não se pode esquecer que a década
de 1980 é considerada a década perdida e que toda a década de 1990 foi marcada por políticas
neo-liberais e de flexibilização das leis trabalhistas brasileiras, não raras vezes com graves
suspeitas de inconstitucionalidade.
87
Por seu turno, Uriarte analisa, além do Brasil, os casos da Argentina, Uruguai, Chile,
Equador, Peru, Colômbia e Espanha, onde se comprova que a adoção de medidas
flexibilizadoras da legislação trabalhista acabou resultando em maior desemprego
88
. O mesmo
fato é apontado por Baylos com relação à Espanha. Segundo o autor, as reformas trabalhistas
realizadas na década de 1980 na Europa apontavam que a legislação trabalhista rígida
dificultava a criação de empregos. Assim, a Espanha adotou uma série de medidas
flexibilizantes que resultaram em maior desemprego, o que levou ao abandono de muitas
delas.
89
Castelo também adverte que nos países centrais já se demonstra alguma reviravolta
com relação à questão da flexibilização dos direitos trabalhistas, o que se pode constatar na
Alemanha com a jurisprudência que reconhece a equiparação em direitos entre os empregados
a tempo parcial e os demais empregados, bem como por meio de leis, como a lei francesa que
diminuiu a jornada de trabalho e que resultou em aumento do número de vagas. Além disso,
salienta o autor que devemos estar atentos ao que afirma Hobsbawm, o qual, ironicamente,
lembra a diferença entre flexibilizar em países centrais e em países como o Brasil, dizendo:
87
SÜSSEKIND, Arnaldo. Íntegra da palestra proferida no Fórum Internacional do Tribunal Superior do
Trabalho sobre flexibilização do Direito do Trabalho. Endereço eletrônico www.tst.gov.br, 08/04/2003, p. 3.
No tocante às medidas legislativas flexibilizantes, podem ser citadas como exemplos as adotadas ao longo da
década de 1990, como a alteração do §2º. do art. 59 da CLT, prevendo a compensação anual da jornada de
trabalho, também conhecido como “banco de horas”; a previsão pelo art. 58-A da CLT do trabalho em regime
parcial, com diminuição do período de férias e do percentual do FGTS; a Lei no. 9.601/98 que aumentou a
possibilidade de contratos por prazo determinado; a previsão do art. 476-A da CLT, que permite a suspensão
do contrato de trabalho sem ônus para o empregador, para fins de capacitação do empregado com dinheiro do
FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador); o parágrafo único do art. 442 da CLT sobre cooperativas de
trabalho, que tem possibilitado uma ampla gama de fraudes trabalhistas. Cite-se, ainda, sobre medidas
flexibilizantes tomadas pela jurisprudência, apenas como exemplos, a posição adotada pelo TST na Súmula
331, que abriu o leque para a terceirização em comparação com o antigo Enunciado no. 256, bem como a
Súmula 349, que permitiu a diminuição da proteção à saúde do trabalhador por negociação coletiva. Por fim,
cabe citar, ainda, o projeto de lei no. 5483/2001, retirado do Congresso em 2003, que previa a alteração do art.
618 da CLT, permitindo que o negociado prevalecesse sobre o legislado. Na crítica a este projeto de lei ver
RIBAS, Nelson Julio Martini. Direito do trabalho e negociação coletiva: crítica ao projeto de lei no. 5.483/01,
que altera o art. 618 da CLT. “In” Reflexões sobre direito do trabalho e flexibilização. José Mello de Freitas
Organizador. Passo Fundo: UPF, 2003, p. 105.
88
URIARTE, Oscar Ermida. Flexibilização no Direito do Trabalho – A experiência latino-americana. Endereço
eletrônico www.tst.gov.br, 06 de fevereiro de 2006, p. 1-2 e Flexibilidade, op. cit., p. 56-58.
89
BAYLOS, Antonio. Direito do Trabalho e democracia. Endereço eletrônico www.tst.gov.br, 20/10/2004, p. 1.
51
Nos países desenvolvidos, os seres humanos já não vivem sob o signo da carência, e
podem escolher entre as coisas que desejam, em vez de terem de escolher entre não
ter o suficiente para comer e não ter um teto para se abrigar. Eles não precisam mais
se preocupar com o pão de cada dia, e têm apenas de decidir se querem seus
sanduíches com pão italiano ou croissant, presunto cru ou cozido e tomates secos ou
frescos..
90
De tudo isso podemos concluir que o discurso neoliberal que prega a flexibilização
dos direitos trabalhistas não tem conseguido demonstrar sequer sua sustentação econômica no
sentido de geração de empregos, isso para não se falar do desprezo das políticas neoliberais
pelos aspectos ético-jurídicos ligados à questão dos direitos humanos fundamentais.
Na verdade, como bem frisa Uriarte, o Direito do Trabalho não é o responsável pelo
desemprego nem a flexibilização é o remédio para tal mal, e isso se dá, inclusive, em razão do
próprio custo do trabalho que nos países latino-americanos é, em média, de 10% do valor final
de venda dos produtos e serviços. E conclui:
O fato é que o verdadeiro problema do emprego não é o Direito do Trabalho nem o
sistema de relações de trabalho, cuja incidência no emprego é muito relativa. O
verdadeiro problema é um sistema econômico que destrói mais do que gera postos
de trabalho. A substituição da mão-de-obra por tecnologia, a possibilidade técnica de
produzir com menos mão-de-obra, mais a conveniência economicista de manter um
desemprego funcional são os reais problemas. E a solução não está no Direito do
Trabalho, mas fora, porque o problema em si está fora. A solução não pode ser uma
progressiva degradação das condições de trabalho, porque seria suicida e porque,
além disso, nenhum empregador contrata trabalhador que não precisa, só porque é
mais “barato”, e nenhum empregador deixa de contratar trabalhador de que precisa
porque é um pouco mais “caro”.
91
90
CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito do Trabalho no século novo. Revista Jurídica Consulex – ano. IV, nº.
48. São Paulo: Brasília, 2000, p. 9.
91
URIARTE, Oscar Ermida. Flexibilidade, op. cit., p. 55, 56 e 59. Essa conclusão é reforçada pelos dados que
demonstram que a questão do emprego tem uma ligação muito mais direta com o desenvolvimento econômico
do que com políticas flexibilizantes. Tanto é assim, que dados da OIT demonstram um ligeiro aumento do
número de empregos e da renda dos trabalhadores na América Latina, no ano de 2005, justamente em virtude
de um crescimento econômico mais sólido. Conferir no endereço eletrônico www.oitbrasil.org.br, consulta
realizada em 03 de março de 2006. Sobre a questão do “preço” do trabalho, Castelo demonstra o baixo custo
da mão de obra no Brasil. Em dólares, em dados de 1998, o custo médio da mão-de-obra por hora de trabalho
na Alemanha é de 24,87; na Noruega 21,90; no Japão 16,40; nos EUA 16,26; na França 15,38; em Taiwan
5,12; na Coréia do Sul 4,93; em Hong Kong 4,21 e, no Brasil, de apenas 2,68. Demonstra, ainda, que, mesmo
com os chamados “encargos sociais”, o custo do trabalho no Brasil é infinitamente mais baixo. Além disso,
enquanto um trabalhador americano precisa de 5 horas e meia para encher o tanque do carro, um trabalhador
brasileiro precisa de três dias de trabalho. CASTELO, Jorge Pinheiro, O Direito do Trabalho ....., op. cit., p. 7-
8.
52
Por tudo isso, podemos afirmar que a flexibilização neoliberal importa na precarização
das relações de trabalho, tudo em nome do que se convencionou chamar de “modernização” e
“competitividade” que, na verdade, mal conseguem esconder os seus reais intentos, ligados,
principalmente, com uma maior concentração de capital.
92
Na verdade, o que se busca é a prevalência dos velhos princípios econômicos liberais
(basicamente a defesa da propriedade e do contrato) disfarçados sob a rotulagem “neo”, na
tentativa de afastar quaisquer empecilhos que representem algum tipo de regulamentação,
instaurando, como tem dito Uriarte, uma “nova questão social”. Quanto a isso Capella afirma:
O impacto das políticas desreguladoras sobre o emprego redunda em um reforçado
disciplinamento laboral. A capacidade de coerção econômica do empresariado se
fortaleceu notavelmente (para consolo da Comissão Trilateral). Isso lança por terra
outras conquistas dos trabalhadores do período anterior, relativas à segurança no
trabalho, à higiene e sobretudo à dignidade pessoal. Em condições precárias se faz
difícil e inclusive arriscado protestar para defender os próprios direitos legalmente
reconhecidos (sobretudo quando o trabalhador ocupado tem sob sua
responsabilidade outras pessoas, ou em situações de enfermidade, etc.).
93
Ora, com a globalização neoliberal tudo é instantâneo e descartável, e o que é rápido,
simples e fácil é consumido pelo mundo todo com uma voracidade nunca dantes vista. Nesse
sentido, Maria Regina Gomes Redinha afirma que há uma síndrome de insegurança, incerteza
e efemeridade, a qual não é privativa das relações de trabalho ou dos mecanismos da
economia da impermanência, mas que se estende, igualmente, às esferas das relações pessoais
e familiares, fruto da subjugação à mudança que caracteriza a contemporaneidade.
94
Ocorre que a flexibilização acaba por atingir diretamente os trabalhadores e a maioria
da população mundial, principalmente nos países da periferia, que sequer experimentaram as
92
Conforme assevera Eric Hobsbawm, a ideologia neoliberal “baseia-se no pressuposto de que a liberalização do
mercado otimiza o crescimento e a riqueza do mundo, e leva à melhor distribuição desse incremento. Toda
tentativa de controlar e regulamentar o mercado deve, portanto, apresentar resultados negativos, pois restringe
a acumulação de lucros sobre o capital, e, portanto, impede a maximização da taxa de crescimento.” Todavia,
continua: “ninguém nunca conseguiu justificar de maneira satisfatória essa concepção”. ... “Para os profetas de
um mercado livre e global, tudo o que importa é a soma da riqueza produzida e o crescimento econômico, sem
qualquer referência ao modo como tal riqueza é distribuída.” Apud CASTELO, Jorge Pinheiro. O Direito do
Trabalho...op. cit., p. 2.
93
CAPELLA, Juan Ramón, op. cit., p. 249.
94
Apud DALLEGRAVE NETO. José Affonso Dallegrave, Inovações ......., op. cit., p. 25. Aliás, Bauman
também constata a incerteza que marca o mundo do trabalho. Afirma que “flexibilidade” é “o slogan do dia, e
quando aplicado ao mercado de trabalho augura um fim do “emprego como o conhecermos”, anunciando em
seu lugar o advento do trabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cobertura
previdenciária, mas com cláusulas “até nova ordem”. A vida de trabalho está saturada de incertezas.”
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p. 169.
53
benesses do Estado de Bem Estar Social, pois concentra renda e joga milhões de pessoas em
condições que agridem os direitos humanos mais elementares. Como sustenta Jucá, o modo de
produção na “sociedade pós-industrial” estabelece uma cultura baseada na velocidade e na
obsolescência, marcada pelas idéias de instantaneidade e descartabilidade, que são
incorporadas ao processo produtivo e ao sistema econômico e social. Com isso, acaba
provocando uma enorme e brutal exclusão humana, com grandes legiões sendo atingidas pelo
desemprego estrutural e conjuntural.
95
Com efeito, se mesmo em países desenvolvidos, onde as condições econômicas e
sociais são de todo diferenciadas dos países periféricos, como o Brasil, são constatadas graves
repercussões sociais em virtude das políticas neoliberais, imaginem-se tais repercussões
naqueles que sequer alcançaram um patamar mínimo de civilização para todos os seus
habitantes.
Além disso, existe um outro grave problema que tem abalado as relações de trabalho,
ou seja, a desconsideração do trabalhador como sujeito integral, como pessoa humana dotada
de direitos humanos fundamentais que devem ser entendidos em sua indivisibilidade, direitos
de que o trabalhador não abre mão ao se tornar sujeito de uma relação de emprego, direitos
que não podem ficar “na porta da fábrica” esperando o término da jornada de trabalho. Esse
problema também se torna global, ou seja, é enfrentado pelos trabalhadores nos mais diversos
“cantos da Terra”, sendo facilitado pela flexibilização, que enfraquece cada vez mais a
posição dos trabalhadores.
Embora essa questão pareça superficial diante da gama de problemas que os
trabalhadores enfrentam, como o desemprego, os baixos salários, a precariedade das
condições de trabalho e a falta de segurança, de fato a realidade não parece ser bem assim. A
desconsideração pelos direitos humanos fundamentais de primeira dimensão dos
trabalhadores, como as liberdades de pensamento e expressão, a privacidade, o devido
processo legal e outros mais no âmbito das relações de emprego, vem sendo constatada cada
vez mais e de forma bastante intensa. Além disso, é possível sustentar que muitas vezes é
95
JUCÁ, Francisco Pedro. Renovação do Direito do Trabalho – Abordagem Alternativa à Flexibilização. São
Paulo: LTr., 2000, p. 55. Aliás, Hobsbawn percebe muito bem a questão da instantaneidade em que vive a
sociedade atualmente. Afirma que a quase totalidade dos “jovens de hoje crescem numa espécie de presente
contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passadoblico da época em que vivem. Por isso os
historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim
do segundo milênio.” HOBSBAWN, Eric. Era dos Extremos – O breve século XX – 1914 – 1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995, p. 13.
54
justamente a violação desses direitos que acaba resultando e facilitando a violação dos direitos
humanos fundamentais sociais, num círculo vicioso.
96
Escartín é enfático ao afirmar a importância daquilo que chama de “direitos
inespecíficos” na relação de emprego, ou seja, dos direitos humanos fundamentais que são
reconhecidos a todas às pessoas humanas enquanto tais, não pela condição de trabalhador.
Afirma o autor:
Retomando la cuestión del respeto y adecuado ejercicio de los derechos
constitucionales “inespecíficos” por parte del trabajador, quizás se pueda pensar que
la custión es excessivamente sofisticada, incluso secundaria, en un contexto
dramático de desempleo y de precariedad en el empleo. Sin embargo, no la ha sido
para aquellos trabajadores que arriesgaron su puesto de trabajo – y en principio lo
perdieron -, porque, a toda costa – incluso con la amenaza, luego materializada, del
despido – querían ejercer y que fuera respetado, por ejemplo, su derecho
fundamental a la propria imagem y su libertad de expresión.
97
Vários problemas ligados a esses direitos têm sido objeto de preocupação no âmbito
laboral. Por exemplo, essa discussão surge com muita força no que toca ao chamado “assédio
moral”, que os espanhóis vêm denominando de “acoso moral”, também chamado de
mobbing.
98
Nessas situações de perseguição contínua e reiterada aos trabalhadores dentro do local
de trabalho, que vão desde uma mudança contínua e incessante de seu local de trabalho, dos
horários de trabalho ou das funções que desempenha, até a uma sobrecarga de trabalho ou à
própria negação de trabalho, bem como a exposição do trabalhador a condições vexatórias, o
que se percebe é uma total desconsideração pela dignidade do trabalhador. Isso demonstra a
96
As questões ligadas às dimensões dos direitos humanos fundamentais e da indivisibilidade e
complementaridade dos mesmos serão tratadas no capítulo III.
97
ESCARTÍN, Ignacio García-Perrote. Ley, Convenio Colectivo, Contrato de Trabajo y Derechos
Fundamentales del Trabajador. Revista de Derecho Social. Espanha: Editorial Bomarzo, 1998, p. 37,
especialmente p. 50.
98
López afirma: “Como premissa básica, que merece ser reiterada aunque sea ya un valor adquirido en nestas
líneas, ha de partirse de que el “mobbing” es un comportamiento contrario a la dignidad del trabajador, de ello
extrae los elementos que permiten indentificarlo: se trata de un comportamiento puesto en práctica por el
empresario, los jefes o los compañeros de trabajo, de forma reiterada y sistemática, que tiene como
consecuencia un empeoramiento de condiciones de trabajo o la restrición de derechos laborales de sus
víctimas, que éstas no están obligadas a tolerar, porque exceden las exigencias limitativas de una organización
racional del trabajo. La evolución de la normativa comunitaria nos demuestra que lo esencial em el “mobbing”
es – como en la discriminación – este resultado depressivo de derechos, que al reducir significativamente la
esfesa de interesses del trabajador, ha de ser muy adecuadamente justificado por sus reponsables en motivos
que nada tienen que ver com el substrato del “mobbing”, para que se destierre la sombra de éste.” LÓPEZ, Ma.
Fernanda Fernández. “El acoso moral en el trabajo - ?Una nueva forma de discriminación? Revista de derecho
social. Albacete: Bomarzo, 1998, p. 69-70.
55
necessidade da tutela efetiva dos direitos humanos fundamentais, a que os espanhóis
denominam de “inespecíficos”
99
.
Aliás, sobre toda essa problemática cabe citar, pela singularidade da experiência, a
pesquisa pessoal feita por Barbara Ehrenreeich nos EUA. A autora, que escreve, entre outras,
para a The New York Times Magazine, fez uma pesquisa de campo nos EUA ao viver de
“subempregos”, justamente num período alardeado como de “pleno emprego”.
Dessa pesquisa resultou o livro Miséria à americana – Vivendo de subempregos nos
Estados Unidos. Durante vários meses a autora procurou viver como vivem os trabalhadores
considerados subempregados (em torno de 30% da força de trabalho americana), trabalhando
como faxineira em empresas de limpeza, arrumadeira em hotéis, garçonete em lanchonetes e
como vendedora numa das maiores redes americana de lojas de departamento.
Ehrenreeich, além de descrever os baixos salários (em torno de 8 a 10 dólares a hora
de trabalho, o que, segundo sua vivência, mal dava para pagar aluguel e alimentação),
descreveu as situações degradantes pelas quais passam os empregados. Chamou a atenção
para o poder cooptador da gerência frente aos empregados, o que se dá até pelo vocabulário
usado para denominar os empregados (“associados”), e constatou a ligação direta entre as
condições degradantes de trabalho e a manutenção de baixos salários. Afirma a autora:
99
Idem, ibidem, p. 62.
56
A oportunidade de identificar-se com uma entidade poderosa e rica – a empresa ou o
chefe – é apenas uma isca. Há também o porrete. O que mais me surpreendeu e
ofendeu no local de trabalho de baixa renda (e, sim, aqui todos os meus privilégios
de classe média estão totalmente expostos) foi até que ponto se exige que a gente
abra mão de nossos direitos civis básicos e – o que vem dar na mesma coisa – de
nosso amor-próprio. Aprendi isso no comecinho de minha carreira como garçonete,
quando me avisaram que minha bolsa poderia ser revistada pelo gerente a qualquer
momento. ... Depois do trabalho, dei alguns telefonemas e descobri que esta prática
é inteiramente legal: se a bolsa está na propriedade do patrão – e é claro que estava –
o patrão tem o direito de examinar o seu conteúdo. Os exames antidrogas são outra
indignidade rotineira. Os defensores das liberdades civis consideram-nos uma
violação do direito de não ser submetido a “revistas sem justificativa”, garantido
pela Quarta Emenda à Constituição norte-americana; a maioria dos empregados e
candidatos os consideram simplesmente embaraçosos. ... Eu acrescentaria os testes
de personalidade admissionais à lista de intrusões aviltantes, ou pelo menos boa
parte de seu conteúdo usual. ... Há outras maneiras mais diretas de manter em seu
lugar os empregados de baixa renda. As regras contra “fofocas” ou mesmo “falar”
tornam difícil desabafar suas queixas com os colegas ou, caso haja tamanha ousadia,
alistar outros trabalhadores num esforço grupal para provocar mudanças, através de
um esforço para organizar um sindicato, por exemplo. Os que saem da linha
costumam enfrentar pequenas punições inexplicadas, como ter sua escala ou tarefas
no trabalho alteradas unilateralmente. Ou a pessoa pode ser despedida ... . Assim, se
os trabalhadores de baixa renda nem sempre se comportam de um modo
economicamente racional, ou seja, como agentes livres dentro de uma democracia
capitalista, é porque vivem num lugar que não é livre nem de modo algum
democrático. Quando se entra no local de trabalho de baixa renda – e em muitos
locais de trabalho de média renda também – você deixa suas liberdades civis na
porta, abandona os Estados Unidos e tudo o que o país supostamente representa e
aprende a fechar a boca durante toda a jornada. As conseqüências desta rendição
rotineira vão além da questão dos salários e da pobreza. Afinal de contas, mal
podemos nos orgulhar de ser a democracia mais importante do mundo se grande
quantidade dos cidadãos passam metade das horas em que estão acordados no que se
resume, em palavras simples, a uma ditadura. ...Imagino que a indignidade imposta a
tantos trabalhadores de baixa renda – os exames antidrogas, a vigilância constante,
ser “malhado” pelos gerentes – é parte do que mantém os salários baixos. Se fizerem
você se sentir suficientemente desvalorizado, talvez passe a achar que o que lhe
pagam é o que você realmente vale. É difícil imaginar qualquer outra função para o
autoritarismo no local de trabalho. ...
100
Como vemos, a situação dos trabalhadores é difícil não somente no tocante ao
desemprego e às condições ligadas diretamente ao valor de seu trabalho e a seus direitos
100
EHRENREICH, Barbara. Miséria à americana – Vivendo de subempregos nos Estados Unidos. Rio de
Janeiro – São Paulo: Record, 2004., p. 217. Na p. 48, nota 5, a autora descreve outra situação por demais
degradante: “Até abril de 1998, não havia lei federal que garantisse o Direito a pausas para ir ao banheiro.
Segundo Marc Linder e Ingrid Nygaard, autores de Void Where Prohibided: Rest Breaks and the Right to
Urinate on Company Time (Cornell University Press, 1997), “O Direito de descansar e urinar ou defecar no
trabalho não é valorizado na lista de causas sociais ou políticas defendidas por trabalhadores burocráticos ou
executivos, que gozam de liberdades pessoais no local de trabalho com as quais milhões de operários podem
apenas sonhar. (...) Enquanto nos espantamos ao descobrir que faltava aos trabalhadores o direito reconhecido
de usar o banheiro no trabalho, [os trabalhadores] ficaram espantados com a ingênua idéia dos que estão de
fora de que seus empregadores lhes permitiriam realizar esta função corporal básica quando necessário. (...)
Uma operária, sem permissão de parar durante os turnos de seis horas, urinava em absorventes usados sob o
uniforme; e uma professora de jardim de infância, numa escola sem ajudantes, tinha de levar consigo todas as
vinte crianças ao banheiro e colocá-las em fila do lado de fora da porta do cubículo enquanto evacuava”.
57
sociais trabalhistas, mas, também, no que tange à sua consideração como pessoas humanas
dotadas de dignidade.
Essas questões têm despertado, ultimamente, o interesse também no Brasil. A doutrina
tem opinado sobre a resolução desses problemas propondo soluções diferenciadas.
Nascimento postula a reforma da CLT para incluir os direitos de personalidade.
Afirma o autor a necessidade de a reforma trabalhista incluir a proteção e afirmação da
dignidade do trabalhador e cita como exemplo o Código de Portugal de 2002, que pune a
discriminação, defende a liberdade de expressão e de opinião, garante a reserva da intimidade
na vida privada, protege os dados pessoais do trabalhador, garante a confidencialidade das
mensagens, o sigilo dos testes e exames médicos e veda o uso dos meios de vigilância a
distância
101
.
De outro viés, na linha da crítica quanto ao modelo de regulação de relações de
trabalho que não se preocupa com o trabalhador como pessoa humana, está também à posição
de Aldacy Rachid Coutinho, que defende a aplicação da proteção constitucional da vida
privada aos trabalhadores. A autora deixa clara a existência da relação de poder e domínio que
se estabelece no contrato de trabalho, relação assimétrica em favor do empregador, e assevera:
101
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. CLT deve garantir Direito de personalidade. Disponível no endereço
eletrônico www.tst.gov.br, Notícias de 06/02/2006. A nosso ver, embora não seja desprezível a inclusão dos
chamados “direitos de personalidade” na legislação infraconstitucional, conforme será defendido no terceiro
capítulo dessa dissertação os direitos humanos fundamentais, entre eles os de primeira dimensão, não
dependem, em regra, de legislação infra-constitucional para serem aplicados aos contratos de trabalho, questão
que é o objeto central deste estudo, podendo ser concretizados a partir da própria Constituição Federal de
1988.
58
O salário é o núcleo reprodutivo do trabalho, de presença necessária diante da
entrega da disponibilidade da energia do empregado para utilização do empregador
e, diante das novas formas de reestruturação produtiva não mais se encontra como
instrumento valorativo da força de trabalho, mas mecanismo de controle e tomada da
subjetividade. Mas ainda não vem sendo considerado como suficiente para domínio
da pessoa do trabalhador. Tem-se como necessária, para saciar o anseio de domínio
com vistas a garantir aumento da produtividade, a destruição da auto-estima na
subjetividade. ... Como aduz Pierre Kayser, a proteção da vida privada não é uma
questão posta somente para as “vedettes de la scène et lê l’écran”, mas a todo e
qualquer simples mortal, inclusive aos integrantes da choldra ou patuléia como
lembra Lenio Luiz Streck, e, particularmente, inclusive, destinada aos trabalhadores
que no mercado de trabalho vendem sua força de trabalho para garantir a
sobrevivência sua e da família, eis que permanecem em um estado permanente de
sujeição ou subordinação ao poder empresarial, ainda não percebido como incidente
sobre o trabalho e não a pessoa. ... Tanto mais o capitalismo projeta para o
desemprego os integrantes da massa trabalhadora, tanto mais os níveis de aceitação e
autodestruição da subjetividade se intensificam. O consentimento do sacrifício do
trabalhador e a depuração do ganho e do lucro como um bem aceitável e tutelado
com primazia na ordem mundial, docilizam as relações perversas. Não há projeto
alternativo de sociedade democrática viável e eficaz para determinar uma mudança
social se não garantir à classe que sobrevive do trabalho a inviolabilidade da vida
privada do avanço do capital sem limites éticos.
102
Esses exemplos demonstram a crescente preocupação com aspectos até então
totalmente descurados das relações de trabalho no Brasil. Como podemos constatar de todo o
panorama descrito, a situação do trabalho e daqueles que vivem do trabalho é por demais
complexa. Se não trabalham, estão no desemprego e na miséria; quando trabalham, não raro
enfrentam a precariedade e a pobreza. Além disso, muitas vezes enfrentam no ambiente de
trabalho condições que caracterizam a total desconsideração pela sua humanidade.
102
COUTINHO, Aldacy Rachid. Proteção constitucional da vida privada. “In” Diálogos Constitucionais:
Brasil/Portugal. Antônio José Avelãs Nunes e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho Organizadores. Rio de
Janeiro-São Paulo: Renovar, 2004, p. 174.
59
Diante dessas perplexidades é que tentaremos, a seguir, traçar algumas linhas para
possíveis saídas desses dilemas num Estado Democrático de Direito como o Brasil, já que
como ficou marcado ao longo dessas linhas, apesar de inegável crise pela qual passa o Estado,
a sua importância ainda é primordial na implementação de políticas públicas, entre elas de
emprego, renda e concretização dos direitos humanos fundamentais, principalmente em países
periféricos
103
. Essa perspectiva não afasta outras, entre as quais, a da necessidade da
construção de um paradigma mundializado, supra-estatal, de proteção aos direitos humanos
fundamentais, que também será sumariamente abordada. Assim, podemos falar de saídas
fundadas numa perspectiva interna e numa perspectiva externa ao Estado, sem que elas se
excluam, pois, caso contrário, perde-se a possibilidade de entender e resolver a complexidade
do mundo contemporâneo
104
. É o que faremos a seguir.
2.4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO E AS RELAÇÕES DE TRABALHO
Conforme já assinalado, o “Estado social de bem estar social”
105
foi abalado por
profundas crises que acabaram por colocá-lo em xeque, principalmente através da postulação
103
Aliás, sobre o papel do Estado na sociedade atual, em contraponto total ao projeto neoliberal, Calera é
enfático ao afirmar: “... a mi entender, está inicialmente claro es que hoy se necesita mucho Estado,
indudablemente democrático, radicalmente democrático, para que la convivência social y su ordenación
merezcan la pena calificarse de positivas y razonables. Hoy ya no cabe pensar uma sociedad sin Estado. ...”.
CALERA, Nicolas Maria López, ob. cit,, p. 13. Mais, adiante, no que toca a outra questão pertinente, qual seja
a da democracia no espaço privado, falando sobre a postulação de auto-organização eficiente da sociedade em
espaços hoje ocupados pelo Estado, bem como sob a alegação de que a própria sociedade tem capacidade de
integração e de solidariedade, conforme defendem alguns autores que entendem que deve haver uma
diminuição significativa do papel do Estado, Calera afirma: “Sin embargo, lo que no está demostrado es que
en ella existan aceptables niveles de democracia, por lo que desde estos sectores neoliberales se ha reconocido
que, para volver a la sociedad civil, es necesaria también la “democratización de los espacios privados”.
CALERA, Nicolas Maria López, ob. cit,, p. 18.
104
Segundo Morin, em seu sentido original, complexo significa “o que é tecido junto”. Para o autor, o desafio da
globalidade do mundo atual é também um desafio de complexidade. Afirma Morin: “Existe complexidade, de
fato, quando os componentes que constituem um todo (como o econômico, o político, o sociológico, o
psicológico, o afetivo, o mitológico) são inseparáveis e existe um tecido interdependente, interativo e inter-
retroativo entre as partes e o todo, o todo e as partes. Ora, os desenvolvimentos próprios de nosso século e de
nossa era planetária nos confrontam, inevitavelmente e com mais e mais freqüência, com os desafios da
complexidade. ... Uma inteligência incapaz de perceber o contexto e complexo planetário fica cega,
inconsciente e irresponsável.” MORIN, Edgar. A cabeça bem-feita – repensar a reforma – reformar o
pensamento. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 14-15.
105
A denominação “Estado social de bem estar social” é utilizada tendo em vista o que afirma Krell sobre a
diferença entre o Estado Social, tal qual existente hoje na Alemanha, e o clássico welfare state, pois o primeiro
procura harmonizar as idéias liberais de economia livre com a igualdade de chances e oportunidades. Assim o
Estado ganha papel de prevenção de riscos, além de direcionar o processo de desenvolvimento social.
KRELLl, Andréas J Direitos sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha – Os (des)caminhos de um
Direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 44.
60
e implementação de políticas neoliberais. Assim, pretendemos abordar as relações de trabalho
no paradigma do Estado Democrático de Direito (perspectiva interna), bem como traçar
breves linhas sobre uma perspectiva mundial de proteção dos trabalhadores a partir da idéia
do paradigma dos direitos humanos fundamentais (perspectiva externa).
Na perspectiva interna ao Estado, no tocante à saída dos problemas delineados,
devemos contextualizar e descobrir qual é o significado da fundação de um Estado
Democrático de Direito pela Constituição Federal de 1988 num Estado periférico como o
Brasil, que nunca viveu as políticas públicas de um “Estado social de bem estar social”.
A Constituição Federal de 1988, em seu paradigmático art. 1º, textualmente prevê que
a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e
do Distrito Federal, constitui-se num Estado Democrático de Direito e tem entre seus
fundamentos, entre outros, o valor social do trabalho, a cidadania e a dignidade da pessoa
humana. A fundação de um Estado Democrático de Direito tem implicações por demais
relevantes no entendimento de todo o regime jurídico e político de uma determinada
comunidade
106
. Dessa forma, a configuração de um regime constitucional democrático deve
ser levada a sério no entendimento do fenômeno jurídico que se desvela nesse ambiente
sóciopolítico-jurídico, principalmente no tocante ao entendimento dos princípios e dos
direitos humanos fundamentais que são considerados a base da igualdade democrática.
Entendemos que o chamado “Estado Democrático de Direito” é uma evolução do
Estado de bem estar social, no qual a participação efetiva do povo na condução dos assuntos
públicos é postulado essencial. Além disso, nessa conformação estatal, os direitos humanos
fundamentais são reconhecidos como princípios atuantes, vinculando tanto o Estado como os
particulares.
Estabelece-se, nesse paradigma estatal, uma nova relação entre Estado e cidadãos.
Aliás, o próprio conceito de cidadania ganha em extensão e conteúdo, pois deixa de ser uma
relação vista pela padronização de direitos políticos (votar e ser votado, basicamente), para se
tornar a expressão da liberdade, da igualdade, da responsabilidade, da dignidade da pessoa,
106
José Afonso da Silva afirma que o regime político instituído pela Constituição de uma determinada
comunidade é um complexo estrutural de princípios e forças políticas que configuram determinada concepção
do Estado e da sociedade, e que inspiram seu ordenamento jurídico. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito
Constitucional Positivo. 13. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1997, p. 125.
61
enfim, no direito a ter direitos, exercitável em todas as relações (públicas e privadas), bem
como no direito de participar ativamente na construção do futuro.
107
Ultrapassa-se tanto a formulação do Estado liberal como a do Estado social, impondo-
se ao Estado e à ordem jurídica, como tarefa principal, a transformação social no sentido do
aprofundamento da democracia formal e substancial (democracia política, econômica e social)
e a prevalência dos direitos humanos fundamentais. A questão da igualdade ganha, portanto,
um conteúdo substantivo no sentido de assegurar juridicamente padrões de vida dignos às
pessoas humanas, não só do prisma individual, mas considerados como seres que vivem em
comunidade
108
.
107
Ver, sobre a extensão do conteúdo e dos espaços de expressão da cidadania, MORAIS, José Luis Bolzan. As
crises do estado e da constituição, cit. p. 97. Sob outra perspectiva, mas na mesma linha, Carnen Lucia Silveira
Ramos afirma: “... Nesta perspectiva, que significa a retomada pelo direito privado de sua vocação original de
direito do cidadão – jus civile em oposição ao sentido de direito burguês, voltado para a proteção de interesses
individuais, que lhe foi atribuído a partir da Revolução Francesa, a cidadania deixa de ser considerada apenas
uma relação política entre o indivíduo e o Estado, para se fazer presente em outros níveis e espaços sociais e
econômicos, como por exemplo na empresa, onde, superando o poder patronal a que tradicionalmente ficava
submetido o trabalhador, passa a ter direito de expressão, de informação, de participação. ...” RAMOS,
Carmem Lucia Silveira. A constitucionalização do Direito privado e a sociedade sem fronteiras. Repensando
Fundamentos do Direito Civil Contemporâneo. Luiz Edson Fachin - Coordenador. Rio de Janeiro – São Paulo:
1998, p. 9. Ver, ainda, ampliando o leque tradicional sobre a noção de cidadania, a posição de Celso Lafer, que
com base nos aportes de Hannah Arendt, fala em cidadania como o direito a ter direitos. LAFER, Celso. A
Reconstrução dos Direitos Humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001, p. 22.
108
KRELL, Andréas J., op. cit., p. 92-99. Ferrajoli, não à toa, diz que a atual concepção de igualdade é uma
igualdade em direitos, tendo em vista uma visão substancial do Estado e da democracia. Daí o autor afirmar as
características estruturais dos direitos fundamentais que os diferenciam dos demais, ou seja: a) a sua
universalidade, pois correspondem a todos e na mesma medida, sem afastar as demais pessoas humanas, como
ocorre com os direitos patrimoniais que têm caráter de exclusividade; b) sua natureza de direitos indisponíveis
e inalienáveis, não estando disponíveis para o regateio do mercado ou da política, marcando o espaço do que
pode/deve ou não ser decidido e vinculando a todos na sua tutela e satisfação. FERRAJOLI, Luigi. Derechos y
garantias. La ley del más débil. Madrid: Editorial Trotta, 1999, p. 25.
62
O Estado Democrático de Direito apresenta como suas características marcantes: a) o
aprofundamento da questão da igualdade, não mais apenas como igualdade formal, mas
também material, e não só política, mas também econômica e social; b) a transformação do
status quo pela implementação de um conjunto de direitos humanos fundamentais que
englobam os direitos liberais, os direitos sociais, os direitos transindividuais e os de
manipulação genética; c) a participação efetiva do povo nas decisões fundamentais do Estado
passa a ser direito humano fundamental e, finalmente, d) dá-se novo papel ao Poder
Judiciário, que passa a ser não só garantidor negativo de direitos (papel passivo), mas também
de fomentador ativo/positivo na implementação de tal ideário (papel interventivo)
109
.
109
Streck afirma que a fundação de um Estado Democrático de Direito apresenta vários significados e vaticina:
“Tais valores substantivos fazem parte do núcleo político da Constituição, que aponta para o resgate das
promessas de igualdade, justiça social, realização dos direitos fundamentais. Dito de outro modo, da
materialidade do texto constitucional extrai-se que o Estado Democrático de Direito, na esteira do
constitucionalismo do pós-guerra, consagra o princípio da democracia econômica, social e cultural, mediante
os seguintes pressupostos deontológicos: a) constitui uma imposição constitucional dirigida aos órgãos de
direção política e da administração para que desenvolvam atividades econômicas conformadoras e
transformadoras do domínio econômico, social e cultural, de modo a evoluir-se para uma sociedade
democrática cada vez mais conforme aos objetivos da democracia social; b) representa uma autorização
constitucional para que o legislador e os demais órgãos adotem medidas que visem a alcançar, sob a ótica da
justiça constitucional, nas vestes de uma justiça social; c) implica a proibição de retrocesso social, cláusula que
está implícita na principiologia do estado social constitucional; d) perfila-se como elemento de interpretação,
obrigando o legislador, a administração e os tribunais a considerá-lo como elemento vinculado da
interpretação das normas a partir do comando do princípio da democracia econômica, social e cultural; e)
impõe-se como fundamento de pretensões jurídicas aos cidadãos, pelo menos nos casos de defesa das
condições mínimas de existência.” STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma
Nova Crítica do Direito, op. cit., p. 32-34. Morais, por sua vez, afirma: “O Estado Democrático de Direito
tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma
adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material
de concretização de uma vida digna ao homem e, passa a agir simbolicamente como fomentador da
participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre
todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a idéia de democracia
contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência.”
MORAIS, José Luis Bolzan de. As crises do estado e da constituição, cit., p. 63, nota 55. Ver, ainda,
MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais – O estado e o direito na
ordem conemporânea. Porto Alegre: Livraria do Adovado, 1996, p. 74-75.
63
Tendo em conta a historicidade e a lingüisticidade do processo de
compreensão/interpretação dos fenômenos sociais, entre eles o jurídico, cabe, assim, construir
outras possibilidades significativas para o Estado e o Direito, as quais se desvelam ao nos
darmos conta do acontecimento desse novo horizonte de sentido que se faz presente pela
fundação de um Estado Democrático de Direito, no qual o convívio entre princípios e valores
conflitantes deve ser visto como salutar, não como uma maldição
110
, e onde o respeito e a
efetivação dos direitos humanos fundamentais da pessoa humana, em sua unidade indivisível,
são condição de possibilidade do convívio social numa sociedade mais justa e solidária.
O Estado e a sociedade democrática e pluralista, bem como a Constituição que as
conforma, não são entes que possuem sentidos unívocos, dados a priori, que determinam a
predominância de uma concepção única de vida, mas, sim, entes a serem desvelados em seus
mais variados sentidos históricos e nas múltiplas possibilidades que a existência humana pode
abrir. A Constituição de um Estado Democrático de Direito é como uma espécie de mix de
princípios e valores muitas vezes contrastantes, que demandam um trabalho constante de
concretização e de desenvolvimento ao longo do próprio curso da vida e da história.
Assim, o conflito entre esses princípios, valores e direitos, é ínsito ao regime
constitucional de um Estado Democrático de Direito e às constituições que afirmam
princípios e valores materiais (substanciais), não meramente procedimentais. Nesse sentido,
Sanchís lembra que as constituições atuais, por serem documentos dotados de um forte
conteúdo material de princípios e de direitos substantivos, não se circunscrevem a um
delineamento homogêneo e fechado de escolhas morais, axiológicas e filosóficas. Assim,
afirma que
110
CHAUÍ, que afirma que dois traços distinguem a democracia de outras formas sociais e políticas, ou seja: a)
que na sociedade democrática o conflito é considerado legítimo, sendo as necessidades e interesses trabalhados
politicamente e transformados em direitos que exigem respeito e reconhecimento. Além disso, na sociedade
democrática os indivíduos e grupos se associam e criam frente ao Estado um contra-poder social que limita o
poderio estatal; b) que a sociedade democrática é “verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao
possível, às transformações e ao novo”, pois a criação de direitos e a existência de contra-poderes sociais torna
possível a incessante discussão das divisões e diferenças internas à sociedade, ficando aberta a possibilidade
de mudanças (liberdade) e da alteração da sociedade em sua práxis. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12.
ed. São Paulo: Ática, 2002, p. 433.
64
conflictos non son infrecuentes en Derecho y tampoco constituyen una novedad
propria del régimen constitucional, pero han cobrado una particular relevância y, tal
vez también, uma fisionomía especial en el marco de aplicación de los documentos
constitucionales dotados de un importante contenido sustantivo, de uma densidad
material y de una fuerza jurídica desconecidas em el viejo constituciolanismo.
111
Streck, por seu turno, é muito claro ao afirmar o “conflito quanto à hierarquia
axiológica” que está manifesto na configuração do projeto de Estado Democrático de Direito.
Em razão da complexidade das sociedades hodiernas, o conflito axiológico está positivado no
próprio texto constitucional, quando, então, a Constituição não mais aponta um projeto único,
um projeto determinado, pronto e acabado, de vida social em comum, mas estabelece os
parâmetros para suas condições de possibilidade. Existe um rol variado de valores e princípios
que devem ser passíveis de concretização a partir de uma escala hierárquica variável desses
valores e princípios.
112
Trazemos, ainda, a posição de Ferrajoli, o qual demonstra que no Estado
Constitucional de Direito, tal como construído nas constituições hodiernas, a vinculação à
constituição não é somente formal, mas também substancial. Com efeito, afirma:
En efecto, el sistema de las normas sobre la produción de normas – habitualmente
estabelecido, em nuestros ordenamientos, con rango constitucional – no se compone
solo de normas formales sobre la competência o sobre los procedimientos de
formación de las leyes. Incluye también normas sustanciales, como el principio de
igualdad y los derechos fundamentales, que de modo diverso limitan y vinculam al
poder legislativo excluyendo o imponiéndole determinados contenidos. Así, una
norma – por ejemplo, uma ley que viola el principio constitucional de igualdad – por
más que tenga existencia formal o vigencia, puede muy bien ser inválida y como tal
susceptible de anulación por contraste com una norma sustancial sobre su
produción.
113
111
SANCHÍS, Luis Prieto. Justicia constitucional y derechos fundamentales. Madrid: Editorial Trotta, 2003, p.
185-186 e 188. Ver em sentido semelhante Ferrajoli, que afirma que a vinculação substancial que os direitos
fundamentais e os princípios e valores constitucionais impõem na construção de uma democracia não só
formal, mas substancial, provoca vários conflitos e faz impensável uma total coerência e plenitude do
ordenamento jurídico, constatações estas que devem ser vistas não como um problema, mas como a maior
virtude do Estado constitucional substancial. FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 20-24. Copetti, que afirma a
existência de uma significativa complexidade e conflituosidade axiológica na Constituição Federal Brasileira
de 1988, possibilitando uma série de medidas legislativas factíveis a partir dos indícios formais presentes no
texto constitucional. COPETTI, André. Por uma (neo)filosofia política constitucional no direito penal: uma
exigência fenomenológica do Estado Democrático de Direito brasileiro. In: (Neo)Constitucionalismo: ondem,
os códigos hoje, as constituições. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004, p. 16.
112
STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade e o cabimento de mandado de
segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico, p.1-2. Texto consultado
em www.ihj.org.br.
113
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., 2001, p – 20-21.
65
Como percebemos, o conflito entre princípios constitucionais, entre direitos humanos
fundamentais, entre bens e interesses tutelados constitucionalmente, pode se fazer presente de
forma contumaz na sociedade pluralista e democrática desse novo paradigma estatal, havendo
a necessidade de um novo pensar jurídico, que possibilite o trabalho com essas colisões de
forma a que não se torne inviável a concretização do ordenamento jurídico em sua diversidade
axiológica/principiológica.
114
Nesse contexto, o princípio da proporcionalidade exerce um papel decisivo na
ponderação dos bens ou interesses que possam entrar em conflito, servindo como caminho
para a concretização equilibrada e racional
115
dos interesses em jogo. Tal princípio, além de
limitar as restrições aos direitos humanos fundamentais, também impõe ao Estado uma
proteção efetiva desses direitos, aspectos estes que serão desenvolvidos com mais vagar no
segundo e terceiro capítulos desta dissertação.
A Constituição do Estado Democrático de Direito espelha toda essa riqueza e
pluralidade social, requerendo uma nova postura em sua compreensão. Salientamos, ainda,
que a Constituição não pode ser posta de lado na apreciação dos fenômenos atuais, em razão
do seu caráter constituinte do modelo sócioeconômico-jurídico, bem como em virtude do fato
de que não se pode perder de vista que o Estado ainda tem um papel importantíssimo na
regulação e implementação dos direitos humanos fundamentais. Por incrível que isso possa
parecer, mas como “o óbvio somente é óbvio quanto dito, desvelado, como óbvio”, é preciso
afirmar, nas trilhas de Hesse e de Streck, que a constituição vincula, que a constituição é
114
Afirma Ohlweiler que a materialização dos princípios constitucionais não pode ser vislumbrada como uma
operação de um saber objetivista, pois passa pela síntese entre o geral e o particular, como um verdadeiro
acontecer que exige a adaptação do geral às circunstâncias do caso concreto. Assim, o sentido de um
princípio somente surge no caso concreto, no momento de sua aplicação, sendo compreendido em cada
momento e em cada situação de uma maneira nova. Há, portanto, um processo unitário entre o
conhecimento de um ente-princípio e o ato de sua aplicação no caso concreto. OHLWEILWER, Leonel. Os
princípios constitucionais da Administração Pública a partir da filosofia hermenêutica: condições de
possibilidade para ultrapassar o pensar objetificante. Texto do Minter em Direito UNISINOS/UPF, 2005, p.
25-26.
115
A razão tem sido posta em xeque por várias correntes filosóficas, bem como sofre fortes ataques nesse
momento que tem sido chamado por alguns de “pós-modernidade” e, por outros, de “transmodernidade”.
Entendemos, todavia, que a razão, embora todos os ataques, merece aceitação. Como afirma Chauí: “... a
permanência da razão se deve ao fato de considerarmos que a realidade (natural, social, cultural, histórica)
tem sentido e que este pode ser conhecido, mesmo quando isso implique modificar a noção de razão e
alargá-la. Dissemos também que a razão permanece porque a própria razão exige que seu trabalho de
conhecimento seja julgado por ela mesma, e que, para esse julgamento da racionalidade dos conhecimentos
e das ações, a razão oferece dois critérios principais: 1. o critério lógico da coerência interna de um
pensamento ou de uma teoria, isto é, a avaliação da compatibilidade e da incompatibilidade entre os
princípios, conceitos, definições e procedimentos empregados e as conclusões ou resultados obtidos; 2. o
critério ético-político do papel da razão e do conhecimento para a compreensão das condições em que vivem
os seres humanos e para sua manutenção, melhoria ou transformação.” CHAUÍ, Marilena, op. cit. p. 87.
66
normativa, que a constituição é condição de possibilidade de um agir legítimo do poder e da
construção do Direito num Estado Democrático de Direito.
116
Por isso, salientando o sentido da tradição no pensamento de Gadamer, Streck afirma
que o Estado Democrático de Direito se assenta sobre duas vigas mestras, que são os direitos
fundamentais e a democracia. Dessa forma, numa “Teoria da Constituição Adequada a Países
de Modernidade Tardia”, em contraponto às ventanias neoliberais, é fundamental o papel que
tem o Estado, integralmente considerado, e da justiça constitucional, em especial, na
implementação desses direitos, o que vai revelar um papel mais ativo do Poder Judiciário.
117
Importa, portanto, afirmar que o receituário neoliberal não se coaduna com a
principiologia valorativa e os direitos humanos fundamentais, que são o núcleo-base do
Estado Democrático de Direito fundado no Brasil pela Constituição Federal de 1988. Com
efeito, a Constituição Federal de 1988, fruto do processo constituinte mais democrático já
ocorrido no Brasil, constituiu, fundou, um Estado Democrático de Direito que tem na
democracia efetiva e na realização dos direitos humanos fundamentais sua razão de ser
118
.
É nesse contexto, portanto, num país periférico em que sequer se conseguiu alcançar a
implementação dos direitos liberais, quanto mais dos sociais e dos transindividuais; num país
que possui uma Constituição Democrática e Dirigente, a qual se funda no princípio da
dignidade da pessoa humana e nos direitos humanos fundamentais e onde o Estado (em todas
as suas esferas) e a sociedade
119
, via de regra, ainda não se deram conta dessa mesma
constituição, que se instaura o desafio maior dos juristas, ou seja, fazer com que essa
116
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 24
e STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 300-301.
117
STRECK, Lenio Luiz. A concretização de direitos e a validade da tese da constituição dirigente em países de
modernidade tardia. In: Diálogos constitucionais: Brasil/Portugal. Organizadores: Antônio Jose Avelãs Nunes
e Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p 336 e 337. Ver no mesmo sentido,
afirmando a centralidade dos direitos sociais no Estado Democrático de Direito, BARRETTO, Vicente de
Paulo. Reflexões sobre os Direitos sociais. In: Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito
Constitucional, Internacional e Comparado. Ingo Wolfgang Sarlet Organizador. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p. 110.
118
É justamente por isso que Streck propõe uma resistência constitucional, “entendida como o processo de
identificação e detecção do conflito entre princípios constitucionais e a inspiração neoliberal que promove a
implantação de novos valores que entram em contradição com aqueles: solidariedade frente ao individualismo,
programação frente à competitividade, igualdade substancial frente ao mercado, direção pública frente aos
procedimentos pluralistas.” STRECK, Lenio Luiz. O papel da jurisdição constitucional na realização dos
Direitos sociais-fundamentais. In: Direitos fundamentais sociais: estudos de Direito constitucional,
internacional e comparado. Ingo Wolfgang Sarlet Organizador. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 208.
119
Aqui cabe lembrar também que a sociedade, como um todo, não só o Estado, está vinculada a esse projeto de
transformação social, entrando em debate a questão da eficácia frente aos particulares dos princípios e direitos
humanos fundamentais. Interessante, nesse contexto, é a afirmação de Nagib Slaibi Filho quando sustenta que
a “Constituição não é, simplesmente, um pacto da sociedade em face do Estado – é um pacto da sociedade,
organizando o Estado e a si mesma.” FILHO, Nagig Slaibi. Anotações À Constituição de 1988. São Paulo:
Editora Forense, 1989, p. 198.
67
constituição aconteça. É nesse marco que nos cabe perguntar sobre a validade e a legitimidade
das posturas neoliberais e na implementação das políticas flexibilizadoras de direitos.
Ganha papel fundamental diante das questões traçadas, uma configuração substancial
do Direito, na qual os princípios constitucionais têm um plus axiológico
120
e os direitos
humanos fundamentais têm papel primordial, cabendo ao Estado, e ao Poder Judiciário em
especial, pela atuação da jurisdição constitucional, assumir uma postura ativa no
asseguramento de todas as dimensões dos direitos humanos fundamentais. No que tange mais
diretamente às questões relativas ao trabalho e sua regulação, nessa mesma linha, não
podemos esquecer que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, especificamente, alguns
marcos diretivos que também não podem ser desconsiderados.
Dessa forma, sob o que denominamos de “prisma interno ao Estado”, não podemos
perder de vista que a Constituição estabelece balizas ao processo de globalização neoliberal e
de flexibilização dos direitos. Se, por um lado, refletindo a pluralidade de princípios e valores
ínsitos ao Estado Democrático de Direito, a Constituição Federal abriu espaços para a
flexibilização dos direitos dos trabalhadores, por outro, esses espaços são restritos, ou seja,
estão devidamente estruturados e limitados pela Constituição Federal.
Com efeito, se, por um lado, o art. 7
o
. da CF de 1988 estabelece em seus incisos VI,
XIII e XIV casos em que é possível a flexibilização por meio da negociação coletiva e no
inciso XXVI, reconhece o direito dos trabalhadores à negociação coletiva, por outro, existe
120
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 3. ed. op. cit, p. 238 e 239. Ver, também, Bonavides
que escreve: “Tudo quanto escrevemos fartamente acerca dos princípios, em busca de sua normatividade, a
mais alta de todo o sistema, porquanto quem os decepa arranca as raízes da árvore jurídica, se resume no
seguinte: não há distinção entre princípios e normas, os princípios são dotados de normatividade, as normas
compreendem regras e princípios, a distinção relevante não é, como nos primórdios da doutrina, entre
princípios e normas, mas entre regras e princípios, sendo as normas o gênero, e as regras e os princípios a
espécie. Daqui já se caminha para o passo final da incursão teórica: a demonstração do reconhecimento da
superioridade e hegemonia dos princípios na pirâmide normativa; supremacia que não unicamente formal, mas
sobretudo material, e apenas possível na medida em que os princípios são compreendidos e equiparados e até
mesmo confundidos com os valores, sendo, na ordem constitucional dos ordenamentos jurídicos, a expressão
mais alta da normatividade que fundamenta a organização do poder. As regras vigem, os princípios valem; o
valor que neles se insere se exprime em graus distintos. Os princípios, enquanto valores fundamentais,
governam a Constituição, o regímen, a ordem jurídica. Não são apenas a lei, mas o Direito em toda a sua
extensão, substancialidade, plenitude e abrangência.” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.
12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 259 e 260. Sobre o Pós-Positivismo, vide, também, Barroso,
que chama a atenção para o fato de que no momento atual os princípios ganham normatividade, dando unidade
e harmonia ao sistema, integrando as suas partes e atenuando as tensões normativas, figurando como a síntese
dos valores abrigados no ordenamento jurídico e proporcionando uma reaproximação do Direito com a Ética.
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos teóricos e filoficos do novo Direito Constitucional Brasileiro, op.
cit., p. 11. Ver, ainda, Dworkin que postula a necessidade de um diálogo entre o direito constitucional e a
teoria moral. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Tradução de Nelson Boeira. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 233 e 234.
68
uma série de parâmetros constitucionais que determinam a interpretação restritiva de tais
hipóteses de flexibilização.
Devemos salientar que, pela primeira vez na história constitucional brasileira, os
direitos dos trabalhadores foram alçados pela Constituição Federal de 1988 ao patamar de
direitos humanos fundamentais, que, apesar das divergências que em geral se baseiam em
questão meramente literal, estão abrangidos pelas chamadas “cláusulas pétreas” previstas no
§4
o
. do art. 60 da Constituição Federal de 1988
121
. Assim, são direitos humanos fundamentais
sociais específicos, ou seja, que têm pertinência direta aos trabalhadores, principalmente os
direitos humanos fundamentais sociais que estão previstos nos arts. 6
o
., 7
o
., 8º, 9º. 10, 11 e
227, § 3
o
., incisos I e II, todos da CF de 1988.
121
Ver, nesse sentido, entre outros, Sarlet que, fazendo a análise dos argumentos contrários à caracterização dos
direitos sociais, entre eles os dos trabalhadores, é categórico em afirmar que são direitos fundamentais e estão
abrangidos pela proteção das chamadas cláusulas pétreas. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Segunda Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 363; também José Affonso
Dallegrave Neto, que entende que os direitos sociais são direitos fundamentais que estão protegidos pelas
chamadas cláusulas pétreas da Constituição Federal, sendo que, em defesa de sua posição cita, inclusive, voto
do Ministro Sepúlveda Pertence, acolhido pelo Plenário do STF, no julgamento da ADIn – 1675-1, de 24.9.97.
DALLEGRAVE NETO, José Affonso, op. cit., p. 55 e 87; MARTINS, Ives Gandra da Silva. A influência da
Consituição Portuguesa sobre as normas imodificáveis da Constituição Brasileira. “In” Doutrina Jurídica
Brasileira (CD-ROM), organizador Sérgio Augustin, Caxias do Sul: Plenum, 2001; BONAVIDES, Paulo.
Curso de Direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 594 e 595 e LIMA FILHO,
Francisco das Chagas. Alteração do art. 618 da CLT. Ilegitimidade constitucional. Jus Navegandi. Endereço
eletrônico www.jus.com.br, p. 1, 2 e 4. Em sentido contrário, e postulando a desconstitucionalização e
flexibilização dos direitos dos trabalhadores ver a posição de SOUZA, Otávio Augusto Reis de. Nova teoria
geral do Direito do Trabalho. São Paulo: LTr., 2002, p. 90.
69
Entretanto, é de importância salientar, também, que os direitos dos trabalhadores,
considerados como direitos humanos fundamentais, não se esgotam no rol previsto
expressamente na CF de 1988, visto que também alcançam os direitos implícitos que
decorrem do regime e princípios constitucionais e os direitos previstos em tratados
internacionais. Nesse sentido é o § 2
o
. do art. 5
o
da CF de 1988, verdadeira cláusula aberta que
possibilita o entendimento de que os direitos humanos fundamentais não se restringem aos
previstos expressamente na Constituição.
122
Outra inovação bastante significativa inserida pela CF de 1988 foi a elevação ao
patamar constitucional do princípio trabalhista da norma mais favorável, já previsto nos arts.
444 e 620 da CLT. Com efeito, o art. 7
o
, caput, da CF de 1988 prevê que são direitos dos
trabalhadores, urbanos e rurais, não somente os que estão expressamente previstos, mas
também outros que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores.
Da interpretação
do texto em análise, como percebemos, alça-se ao nível de direito positivo constitucional o
princípio trabalhista da norma mais favorável, ou seja, estabelecendo um patamar mínimo de
direitos que são qualificados como fundamentais dos trabalhadores e que não podem sofrer
reversão, além de indicar um parâmetro interpretativo para as demais normas de Direito do
Trabalho
123
. Esse princípio, a nosso ver, tem estreita ligação com o princípio da proibição de
retrocesso social
124
, havendo entre eles um fortalecimento recíproco no tocante aos direitos
humanos fundamentais dos trabalhadores.
122
Nesse sentido SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, cit., p. 91 e 126 e s. Em outro
texto, Sarlet afirma: “Todavia, não há como deixar de considerar que a noção de direitos implícitos, em
sentido amplo, inclui os direitos decorrentes do "regime" e dos "princípios" consagrados pela nossa
Constituição. Aqui, conforme demonstrado alhures, exercendo plenamente sua competência criativa, o
intérprete atua na "construção jurisprudencial do direito", revelando os direitos fundamentais que se encontram
em estado latente na nossa Carta e que podem ser deduzidos diretamente do regime (democracia social) nela
consagrado e dos princípios fundamentais que informam a ordem constitucional (artigos 1º a 4º). Nesta esfera,
os limites são traçados pelo próprio alcance e significado do regime e dos princípios, bem como pelos direitos
fundamentais positivados na Constituição formal, eis que não há como admitir-se a hipótese de direito
decorrente (implícito) contrário a direito fundamental expresso.” SARLET, Ingo Wolfgang. Valor de alçada e
limitação do acesso ao duplo grau de jurisdição: Problematização em nível constitucional à luz de um conceito
material de Direitos fundamentais. “In” Doutrina Jurídica Brasileira – CD-ROM, org. Sérgio Augustin, Caxias
do Sul: Plenum, 2001. No tocante ao acréscimo do § 3º ao art. 5º da CF de 1988 e às implicações com o § 2º
do referido artigo, faremos breve alusão abaixo.
123
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 17 ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2001, p.
252, 253 e 254; DALLEGRAVE NETO, José Affonso, op. cit., p 55 e 87; GENRO, Tarso, op. cit., p. 85 e
CAMINO, Carmen, op. cit., p. 75.
124
Sobre o princípio da proibição de retrocesso social ver CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição
dirigente e vinculação do legislador – Contributo para a compreensão das normas constitucionais
programáticas. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 413 e 414; SARLET, Ingo Wolfgang. O
estado social de direito, a proibição de retrocesso e a garantia fundamental da propriedade. Doutrina Jurídica
Brasileira (CD-ROM). Organizador Sérgio Augustin. Caxias do Sul: Plenum, 2001.
70
Assim, diante de conflitos de leis, nas revogações ou alterações constitucionais e
legais, devemos indagar se são possíveis, validamente, dentro de nosso regime constitucional,
leis que revoguem fundamentalmente um patamar social mínimo já consagrado sem o
estabelecimento de qualquer compensação. Essa, portanto, é uma questão a ser levantada
diante do fenômeno da flexibilização, ou seja, cabe perguntar se reformas constitucionais e
legislativas podem acabar por dar uma conformação inconstitucional aos direitos humanos
fundamentais sociais dos trabalhadores, por revogá-los ou restringi-los demasiadamente, sem
que se assegure algum processo que efetive alguma forma de compensação. Além disso,
também é de ser questionado o próprio poder de autonomia privada dos grupos (negociação
coletiva), no sentido de analisar se podem e, em caso positivo, até que ponto, estabelecer
normas inferiores aos padrões já alcançados
125
.
Como afirma Sarlet, para se averiguarem a amplitude e intensidade da proteção
derivada da proibição de retrocesso social devem ser observadas as especificidades do caso
concreto, não podendo ser estabelecidas normas gerais sobre o assunto. No tema em questão,
a utilização do princípio da proporcionalidade é paradigmática. Esse princípio serve para
aferir a legitimidade não só das leis restritivas de direitos fundamentais, mas também para o
exame da constitucionalidade da ação erosiva do legislador infraconstitucional que tenha por
objetivo a implementação de mudanças e cortes no âmbito dos direitos sociais. Da violação
125
Cabe referir aqui o recente Acórdão no. 509/02 proferido pelo Tribunal Constitucional Português, no qual se
discute a inconstitucionalidade de um diploma legal que restringiu o alcance de prestações sociais (rendimento
mínimo garantido) constitucionalmente previstas, que já haviam sido reguladas por lei. O tribunal analisa a
questão, dentre outros enfoques, na ótica do princípio da proibição de retrocesso social. Na decisão se faz
menção ao posicionamento do Conselho Constitucional francês que entende que esse princípio se aplica tanto
aos chamados “direitos econômicos e sociais”, como também às chamadas “liberdades públicas”. No referido
acórdão o tribunal reassenta, sobre a questão do princípio da proibição de retrocesso social, a posição adotada
em outra decisão (Acórdão 39/84) nos seguintes termos: “[...] a partir do momento em que o Estado cumpre
(total ou parcialmente) as tarefas constitucionalmente impostas para realizar um direito social, o respeito
constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de constituir apenas) numa obrigação positiva, para se
transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O Estado, que estava obrigado a actuar para dar
satisfação ao direito social, passa a estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito
social”. O acórdão pode ser consultado no endereço eletrônico www.tribunalconstitucional.pt . No Direito
brasileiro, mais estritamente no âmbito trabalhista, apesar do pouco tratamento dado ao princípio da proibição
de retrocesso social tanto na doutrina como na jurisprudência, podemos citar a decisão proferida pelo Tribunal
Regional do Trabalho da 4ª. Região no Acórdão 00646-1999-751-04-00-9 (AP), no qual o tribunal entendeu
inconstitucional, por ferir o princípio da proibição de retrocesso social, uma lei municipal que limitou em valor
inferior a trinta salários mínimos a possibilidade da expedição de requisição de pequeno valor para fins de
pagamento de débito trabalhista devido pela Fazenda Pública Municipal. Entendeu o tribunal que, apesar da
previsão constitucional que possibilita valores diversos tendo em conta a capacidade de pagamento de cada
ente público, a lei municipal não podia ter infringido o disposto no art. 87 do ADCT da CF de 1988, que
regulamentou provisoriamente a matéria, sob pena de diminuir o patamar de proteção social já alcançado. O
acórdão pode ser consultado no endereço eletrônico www.trt4.gov.br .
71
desse princípio resulta a ofensa aos próprios direitos fundamentais sociais e ao princípio do
estado social de Direito
126
.
Em sentido semelhante, Streck entende que a Constituição não tem somente a tarefa de
apontar para o futuro, mas tem, igualmente, a relevante função de proteger os direitos já
conquistados. Desse modo, mediante a utilização da principiologia constitucional (explícita
ou implícita), é possível combater alterações feitas por maiorias políticas eventuais, que,
legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar)
conquistas da sociedade. O autor, então, cita decisão do Tribunal Constitucional de Portugal,
que aplicou a cláusula da “proibição do retrocesso social”, inerente/imanente ao Estado
Democrático e Social de Direito segundo a qual
... a partir do momento em que o Estado cumpre (total ou parcialmente) as tarefas
constitucionalmente impostas para realizar um Direito social, o respeito
constitucional deste deixa de consistir (ou deixa de consistir apenas) numa obrigação
positiva, para se transformar ou passar também a ser uma obrigação negativa. O
Estado, que estava obrigado a atuar para dar satisfação ao Direito social, passa a
estar obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao Direito social.
127
Portanto, a cláusula de proibição de retrocesso social, que tem origem na
fundamentalidade dos direitos humanos fundamentais, nas cláusulas pétreas, como
decorrência do princípio da confiança e da configuração de um Estado como Democrático de
Direito, no âmbito do Direito do Trabalho ganha realce em conjunto com o princípio da
norma mais favorável previsto no art. 7º, caput, da Constituição Federal de 1988.
126
SARLET, Ingo Wolfgang. O estado social de Direito, op. cit.,. Em outra obra, Sarlet afirma: “Em se levando
em conta que o postulado da proibição de retrocesso social, por não ter caráter de regra geral e absoluta, mas,
sim, de princípio, não admite solução baseada na lógica do tudo ou nada, aceitando determinadas reduções no
âmbito das conquistas sociais ao nível infraconstitucional, encontra-se vedada, por evidente, sua supressão
pura e simples. Por outro lado, não se poderá desconsiderar que estas restrições não poderão, em hipótese
alguma, ferir o núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais legislativamente concretizados, além da
necessidade de se situarem sempre dentro dos limites fixados pelo princípio da proporcionalidade.” SARLET,
Ingo Wolfgang, A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 376.
127
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Terceira edição revista, Porto Alegre: Livraria do
Advogado Editora, 2001, pág. 245 e 246. Em outra obra, Streck: “Neste ponto adquire fundamental
importância a cláusula implícita de proibição de retrocesso social, que deve servir de piso hermenêutico para
novas conquistas. Mais e além de todos os limites materiais, implícitos ou explícitos, esse princípio deve
regular qualquer processo de reforma da Constituição. Nenhuma emenda constitucional, por mais que
formalmente lícita, pode ocasionar retrocesso social. Essa cláusula paira sobre o Estado Democrático de
Direito como garantidora de conquistas. Ou seja, a Constituição, além de apontar para o futuro, assegura as
conquistas já estabelecidas. Por ser um princípio, tem aplicação na totalidade do processo aplicativo do
Direito.” STRECK, Lenio Luiz, Jurisdição constitucional, op. cit., p. 552.
72
Como já assinalamos, essa ótica não pode ser afastada quando se fala de flexibilização
dos direitos dos trabalhadores, que não podem ser analisados somente da perspectiva, que já
demonstramos falsa, de sua conveniência, pois merecem a análise na perspectiva da
legitimidade constitucional. Sustentamos, portanto, que as hipóteses de flexibilização
previstas art. 7
o
da CF de 1988 são restritas, não podendo ser alargadas. Essa é a resposta que
nos parece adequada se operarmos no marco de uma interpretação conforme à Constituição,
que não a entenda em tiras mas, sim, em sua unidade, levando em conta a necessidade de
concordância prática de suas normas.
O art. 7
o
., caput, ao positivar o princípio da norma mais favorável, está harmonizado
com os princípios e valores fundantes da CF de 1988 (dignidade humana, cidadania,
valorização do trabalho), bem como de acordo com o regime do Estado Democrático de
Direito. Portanto, esse complexo normativo é de fundamental importância para que
alcancemos a melhor interpretação conforme a Constituição. Esses argumentos são reforçados
pelo que foi decidido pelo STF no Recurso Extraordinário no. 234.186-3, SP, julgado em 05
de junho de 2002, por unanimidade, tendo como relator o ministro Sepúlveda Pertence. No
referido julgamento, em que se analisava a flexibilização de direitos através de negociação
coletiva, o tribunal decidiu:
EMENTA: Estabilidade provisória da empregada gestante (ADCT, art. 10, II, b):
inconstitucionalidade de cláusula de convenção coletiva do trabalho que impõe
como requisito para o gozo do benefício a comunicação da gravidez ao empregador.
1. O art. 10 do ADCT foi editado para suprir a ausência temporária de
regulamentação da matéria por lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a
lei a poderia dar: não a convenção coletiva, à falta de disposição constitucional que o
admitisse.
2. Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças
normativas, não é lícito estabelecer limitações a Direitos constitucionais dos
trabalhadores, que nem à lei se permite.
128
Na fundamentação do acórdão consta:
128
O acórdão pode ser consultado no Endereço Eletrônico www.stf.gov.br.
73
...Depreende-se do preceito que – enquanto não disciplinada a matéria na lei
complementar referida no art. 7
º
, I, da Constituição – o exercício da garantia só
dependeria da confirmação da gravidez. O art. 10 do ADCT foi editado
precisamente para suprir a ausência temporária de regulamentação da matéria por
lei. Se carecesse ele mesmo de complementação, só a lei a poderia dar, o que, por si
só, seria paradoxal, pois esvaziaria o significado de norma constitucional transitória.
De qualquer sorte, jamais o poderia fazer a transação de natureza coletiva, à falta de
disposição constitucional que o admitisse. Trata-se de Direito irrenunciável da
empregada, que não pode ser afastado ou neutralizado por simples convenção.
Aos acordos e convenções coletivos de trabalho, assim como às sentenças
normativas, não é lícito estabelecer limitações a Direito constitucional dos
trabalhadores, o que nem à lei é permitido. As cláusulas deles resultantes têm o seu
âmbito circunscrito às categorias profissionais envolvidas, cujos integrantes não
podem ter reduzidos ou eliminados os Direitos constitucionais, assegurados a todos
os brasileiros em igual situação. ... .
Como vemos, do prisma interno ao Estado brasileiro, um Estado Democrático de
Direito, e tendo em conta a necessária contextualização histórica de nossas pré-compreensões,
as respostas à globalização neoliberal apontam em sentido contrário ao da flexibilização geral
e irrestrita. Em sentido inverso ao da flexibilização e precarização das relações de trabalho é
que a CF de 1988 aponta, ou seja, aponta no sentido da preservação da dignidade humana do
trabalhador, na valorização do trabalho e na proteção dos direitos humanos fundamentais,
entre os quais os dos trabalhadores.
Ora, no art. 1º, inciso IV, primeira parte, e no art. 170, caput, da CF de 1988 está
previsto como valor fundamental de nossa ordem jurídica a valorização social do trabalho,
que, portanto, não pode ser tratado como simples mercadoria, pois é uma das bases do
desenvolvimento da sociedade. A valorização do trabalho, assim, não significa apenas o
aspecto econômico do trabalho, mas também o aspecto ético, demonstrando que o trabalho é
fator de desenvolvimento não só de riquezas, mas também da própria personalidade humana,
pois o trabalho deve possibilitar que a pessoa humana, em sua atividade, acabe por imprimir
no mundo um pouco de sua individualidade e de sua contribuição na construção societária.
Portanto, o trabalho não pode ser tratado numa visão meramente utilitarista/economicista,
como muitas vezes é visto, mas, sim, levar em conta que está elevado como um dos pilares de
nossa sociedade, na qual o trabalho não pode ser gênese de esvaecimento de quem o presta,
mas, sim, uma fonte de dignificação e consideração pela pessoa que o presta.
Essa perspectiva pode abrir-nos os olhos para outras questões, como, por exemplo, não
a restrição e a diminuição do campo de incidência do Direito do Trabalho, que são postulados
pela flexibilização neoliberal, numa verdadeira “fuga do Direito do Trabalho”, mas um
74
aumento significativo do espectro de seu alcance protetivo
129
. Assim, caberia, por exemplo,
rever a distinção, fundada nos arts. 2º, 3º. e 442, todos da CLT, entre relação de trabalho e
relação de emprego, pois, segundo essa distinção, o Direito do Trabalho só alcança um tipo
específico de relações de trabalho, que são as relações de emprego, ficando fora de sua
incidência uma grande parte das relações de trabalho
130
.
Com efeito, tais dispositivos estabelecem, como afirma Marques de Lima, que a
relação de emprego é uma espécie do que se pode denominar “relação de trabalho”, pois é
uma relação de trabalho específica marcada pela subordinação, pelo trabalho prestado de
forma não eventual, pessoal e remunerada por um empregado (pessoa física) a um
empregador (arts., 2º, 3
º
e 442, todos da CLT).
131
Ora, essa configuração afasta da incidência do Direito do Trabalho uma gama imensa
de relações de trabalho, deixando grandes contingentes de trabalhadores sem qualquer
proteção do Direito do Trabalho, o que se agrava por todos os processos postulados pela
globalização neoliberal. Como bem nos lembra Uriarte, o Direito do Trabalho nasceu de uma
desigualdade, entre trabalhadores e empregadores, e essa desigualdade continua e se agrava,
razão pela qual entende que “a proteção não só não deve ser eliminada nem diminuída com
relação aos clássicos trabalhadores subordinados, mas estendida aos trabalhadores autônomos
e informais, tão, ou mais ainda, necessitados de tutela que os primeiros.”
132
No mesmo sentido, Dallegrave Neto aponta uma das saídas ao fenômeno da
flexibilização, a luta por uma legislação trabalhista mais includente, a fim de que cada vez
mais empregados e sub-empregados sejam por ela protegidos, eliminando a idéia de espectro
privilegiado a poucas categorias organizadas, e também a busca de efetividade das normas da
129
Desse ponto de vista concordamos com Romagnoli, o qual entende que todos os tipos de trabalho merecem
proteção do Direito do Trabalho. ROMAGNOLI, Umberto, op. cit., p. 173.
130
Cabe referir aqui duas questões importantes, uma de natureza “material” e outra de natureza “processual”. No
aspecto material, cabe lembrar que a extensão da aplicação dos direitos fundamentais trabalhistas aos não
empregados foi prevista num caso, expressamente, pela própria Constituição Federal de 1988. Trata-se do
inciso XXXIV do art. 7º, que estende os mesmos direitos dos trabalhadores com vínculo empregatício aos
trabalhadores avulsos (em regra os portuários). No mesmo sentido, cabe referir a Lei no. 5.889/73, que se
aplica aos empregados rurais, que em seu art. 17 da Lei estende os direitos a trabalhadores eventuais e aqueles
que estão em uma zona cinza entre o trabalho subordinado e autônomo, denominados por muitos de
“parasubordinados”. No aspecto processual, cabe lembrar a Emenda Constitucional no. 45, que, ao alterar a
redação do art. 114 da CF de 1988, previu a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de questões
relativas às relações de trabalho e não somente às relações de emprego. Pela mudança processual, a Justiça do
Trabalho pode julgar litígios que surjam de relações de emprego, nas quais se aplica o Direito do Trabalho, e
litígios que surjam de relações de trabalho em que não se configura a relação de emprego, quando se aplicarão
as normas do direito civil ou de outros ramos do Direito.
131
LIMA, Francisco Meton Marques de. Elementos de Direito do Trabalho e processo trabalhista. 4. ed. São
Paulo: LTr. Editora, 1992, p. 55.
132
URIARTE, Oscar Ermida, A flexibilidade, op. cit., p.24-26.
75
Constituição, que salientam e asseguram não só direitos trabalhistas, mas o direito ao
trabalho.
133
Durante o Fórum Internacional sobre Flexibilização no Direito do Trabalho,
patrocinado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), Pochman propôs um código do
trabalho que abarque os trabalhadores hoje excluídos da CLT, entendendo que deve levar em
conta as diferentes formas com que o trabalho assalariado é prestado em nossa sociedade
134
.
Portanto, sob o viés interno ao Estado Democrático de Direito brasileiro, a saída
legítima não é simplesmente flexibilizar, ou melhor, possibilitar a destruição dos direitos
humanos fundamentais sociais mínimos, mas, sim, buscar políticas públicas de emprego, de
crescimento, de inclusão e de distribuição de renda que alcancem esse grande número de
pessoas que estão fora do sistema, além de garantir a efetividade das normas constitucionais
que prevêem os direitos humanos fundamentais.
Por outro lado, sob um viés externo ao Estado, não podemos perder de vista a
necessidade de uma “globalização dos direitos humanos fundamentais”, entre eles os dos
trabalhadores, como resposta à globalização econômica. Não se trata, evidentemente, de
desconsiderar o espaço nacional, mas de avançar na construção de balizas jurídicas mundiais
que tenham como seu cerne os direitos humanos fundamentais.
Como diz Capella, diante das circunstâncias em que nos encontramos, ou se estabelece
uma democratização social real, intensiva e extensiva, e daí a importância do questionamento
das reais “leis que governam a sociedade”, ou se estabelece a barbárie. O autor insiste na
importância do questionamento de “sistemas democráticos” onde a liberdade e a dignidade se
ajoelham diante do dinheiro.
135
Com a possibilidade de fragmentação dos processos produtivos, com empresas
flexíveis e fronteiras estatais cada vez mais débeis (principalmente as dos países periféricos),
conforme já salientado, fica fácil para as mega-corporações escolherem seletivamente o
direito interno de cada Estado a que vão se submeter, o que facilita o dumping social, ou seja,
o direcionamento da produção para locais onde os direitos humanos fundamentais dos
133
DALLEGRAVE NETO, José Affonso, op. cit., p. 42.
134
A proposta do professor da UNICAMP pode ser conferida no endereço eletrônico www.tst.gov.br, notícias do
dia 08 de abril de 2003. Em sentido semelhante foi a posição adotada pelo professor de Direito do Trabalho da
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Márcio Túlio Viana, debatedor no referido Fórum, em sua
intervenção que pode ser conferida no mesmo endereço eletrônico, notícias de 09 de abril de 2003, quando
afirmou a necessidade de proteção dos trabalhadores que prestam trabalho sob dependência econômica e sem
proteção trabalhista.
135
CAPELLA, Juan Ramón, Fruto prohibido. op. cit., p. 287-288.
76
trabalhadores não são respeitados. Essa situação facilita, também, o processo de pressão do
capital pela “desregulamentação nacional”
136
.
Dessa forma, a globalização dos direitos humanos fundamentais, entre os quais os dos
trabalhadores, seria uma pauta mínima a ser respeitada em todos os locais. Essa idéia se
encontra presente em vários autores de posturas diversas, mas que concordam em torno da
necessidade de um processo de mundialização dos direitos humanos fundamentais.
Bobbio entende que se faz necessário o reconhecimento dos direitos humanos acima
de cada Estado:
Direitos do homem, democracia e paz são três momentos necessários do mesmo
movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há
democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução
pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos,
e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos
fundamentais; haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa,
somente quando existirem cidadãos não mais deste ou daquele Estado, mas do
mundo.
137
Delmas-Marty propõe que, a partir dos direitos humanos, como “Direito dos direitos”,
como “modelo comum a ser seguido”, devemos buscar a construção de um “direito comum”
que não suprima as diferenças, mas que considere o múltiplo e a complexidade. E aduz:
136
Tratando da relação entre capital e trabalho e a independência daquele de fatores territoriais, Bauman afirma
que é “claro que a independência não é completa, e o capital não é ainda tão volátil como gostaria de e tenta
ser. Fatores territoriais – locais – ainda devem ser considerados na maioria dos cálculos, e o “poder de
confusão” dos governos locais ainda pode colocar limites constrangedores à sua liberdade de movimento. Mas
o capital se tornou extraterritorial, leve, desembaraçado e solto numa medida sem precedentes, e seu nível de
mobilidade espacial é na maioria dos casos suficiente para chantagear as agências políticas dependentes de
território e fazê-las se submeterem a suas demandas. A ameaça (mesmo quando não expressa e meramente
adivinhada) de cortar os laços locais e mudar-se para outro lugar é uma coisa que qualquer governo
responsável, em benefício próprio e no de seus concidadãos, deve tratar com a maior seriedade, tentando
subordinar suas políticas ao propósito supremo de evitar a ameaça de desinvestimento.” BAUMAN, Zygmunt,
Modernidade ...., op. cit., p. 172.
137
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 1.
77
A partir dos direitos do homem, fica possível imaginar um “Direito dos Direitos”
que permitiria aproximar, e não unificar, os diferentes sistemas. Aproximá-los numa
harmonia feita tanto da subordinação deles a uma ordem supranacional como da
coordenação deles segundo princípios comuns. Como nuvens que, levadas por um
mesmo sopro, se ordenassem aos poucos guardando seu ritmo próprio, suas formas
próprias.
138
Em linha semelhante, Bolzan de Morais postula um projeto civilizatório na contramão
da globalização neoliberal, um projeto assentado nos direitos humanos de todas as dimensões
e em novos espaços para a democracia a serem abertos em nível local, regional, comunitário,
supranacional, que envolva tanto as relações privadas como as relações inter-estatais.
139
Cabe referir também a posição de Barreto, que afirma:
... O atual estágio do processo de internacionalização da economia mostrou como
alguns efeitos perversos da chamada globalização ignoram os direitos básicos da
pessoa humana. Ao contrário do que sustentavam os ideólogos do liberalismo
clássico, a internacionalização da economia aumentou a corrupção política, o tráfico
de órgãos entre países ricos e países pobres, a exploração do trabalho infantil, a
escravidão branca, o crime organizado etc. Todos esses resultados dos novos tipos
de relações econômicas e sociais evidenciam um quadro de distorções e violações da
dignidade da pessoa humana, que somente poderá ser corrigido – e esta é a
contribuição central de Kant para a reflexão contemporânea – por um direito
também global, cosmopolita, e que afirme e garanta os valores constitutivos da
dignidade humana.
140
No campo específico do Direito do Trabalho essa preocupação também está presente
tanto na doutrina como na postura que vem sendo adotada pelos órgãos internacionais.
Jean Claude Javillier, na condição de diretor do Departamento de Normas
Internacionais do Trabalho da OIT, afirma a necessidade da implementação de normas
138
DELMAS-MARTY, Mireille. Por um Direito comum. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. IX-XII e 306. E
aqui cabe lembrar que esse projeto comum de direito a partir dos direitos humanos, certamente, não é um dos
objetivos da globalização econômica neoliberal, que quer apenas liberdade, e cada vez maior, para o capital.
Como afirma Bauman: “Lembremos mais uma vez o que Michel Cozier assinalou muitos anos atrás no seu
pioneiro estudo sobre O fenômeno burocrático: toda dominação consiste na busca de uma estratégia
essencialmente semelhante – deixar a máxima liberdade de manobra ao dominante e impor ao mesmo tempo
as restrições mais estritas possíveis à liberdade de decisão do dominado. Essa estratégia foi outrora aplicada
com sucesso por governos estatais, que agora no entanto se encontram do outro lado do processo. Agora é a
conduta dos “mercados” – primordialmente das finanças mundiais – a principal fonte de surpresa e incerteza.
Não é difícil portanto ver que a substituição dos Estados territoriais “fracos” por algum tipo de potências
legislativas e policiais globais seria prejudicial aos interesses dos “mercados mundiais”.” BAUMAN,
Zygmunt. Globaliação – As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 77.
139
BOLZAN DE MORAIS, José Luis, As crises do estado, op. cit., p. 98.
140
BARRETO, Vicente. Ética e direitos humanos: Aporias preliminares. “In” Legitimação dos direitos
humanos. Organizador: Ricardo Lobo Torres. São Paulo – Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 519.
78
internacionais de trabalho, principalmente no mundo globalizado, como forma de garantir a
paz e o bem-estar geral, deixando clara sua posição ao afirmar que “o custo da ausência de
Direito e de normas internacionais é a pobreza, a exclusão, a corrupção, a guerra e a morte.”
Postulou, ainda, a ampliação do raio de ação do Direito Internacional do Trabalho para
alcançar não só os trabalhadores subordinados, mas também levar em conta as novas formas
de prestação de trabalho.
141
É claro, que, conforme já dito, apesar de evidente necessidade das normas
internacionais e a busca por soluções que abranjam mais do que um Estado, não podemos
esquecer das questões locais, com suas singularidades e problemas específicos, como forma
de não se perder de vista aspectos circunstanciais de cada Estado, bem como para não se
alijarem da discussão amplas parcelas populacionais, o que apenas empobreceria o
entendimento do momento atual.
142
Um dos autores que, no âmbito do Direito do Trabalho, tem dado atenção especial à
problemática que envolve a globalização neoliberal e a flexibilização das relações de trabalho,
propondo um novo direito internacional como solução é Oscar Ermida Uriarte. Diante da
globalização econômica, Uriarte postula a necessidade da globalização dos direitos humanos.
Afirma o autor que,
Se plantea así, por el agraviamento de la situación social y por el desplazamiento del
centro de gravedad económico, político y social desde lo nacional hacia lo
internacional, la re-regulación internacional de las relaciones laborales. Más aún, la
globalización econômica se acompassa con la universalización de los derechos
humanos, que incluyen, por cierto, derechos del trabajador.
143
E adiante continua:
141
JAVILLIER, Jean Claude. Fórum internacional sobre Direitos humanos e Direitos sociais. Endereço
eletrônico www.tst.gov.br, Notícias de 30 de março de 2004.
142
YAZBEK, Otávio. Circulação e Transferência dos Modelos Jurídicos. Direito Constitucional – Estudos em
homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho – Organizadores. São
Paulo: Malheiros Editores, 2003, p. 557.
143
URIARTE, Oscar Ermida. Derechos laborales y comercio internacional. Endereço eletrônico
http://www.mundodeltrabajo.org.ar/, consulta em 10/01/2006, p. 2-3.
79
Sin embargo, una interpretación en notoria expansión – en consonancia,
precisamente, con la mundialización -, postula que en tanto parte del jus congens,
los derechos humanos reconocidos como tales por la comunidad internacional en
esas grandes Declaraciones y Pactos integran el ordem público internacional y por
tanto, gozan de imperium mas allá de todo acto de ratificación, convalidación o
recepción nacional. ... Em efecto, hemos podido ser testigos del nacimiento y
crecimiento de un Derecho de los derechos humanos, hijo del Derecho Internacional
y del Drecho Constitucional, de ambito o dimensión universal y que contiene
normas imperativas de orden pública internacional que constituyen princípios
básicos de convivencia internacional. ... En general, la doctrina sostiene que
pertencen al jus cogens el principio pacta sunt servanda, la buena fe y los derechos
humanos.
144
Em outro texto o autor postula uma “re-regulamentação” internacional do Direito do
Trabalho. Afirma que as normas internacionais, as declarações e pactos de direitos humanos,
além de convenções coletivas bi, pluri ou multinacionais, cláusulas e pactos sociais, já se
apresentam como uma realidade incipiente em alguns aspectos, mas de necessidade de
desenvolvimento impostergável. Segundo o autor, isso não significa, pelo menos a médio e
longo prazo, a substituição dos sistemas nacionais por tais normativas, mas, sim, uma atuação
na qual essas normativas devem conviver e interagir com os sistemas nacionais, pautando as
diretivas para esses.
145
Durante o Fórum Internacional sobre Direitos Humanos e Direitos Sociais, realizado
no TST, tratando da relevância dos direitos humanos consagrados na Constituição e por
normas internacionais, após afirmar que os direitos humanos fundamentais, por serem
essenciais à pessoa humana, “operam como um limite de ordem púbica, são indisponíveis,
encontram-se fora da esfera de disponibilidade dos poderes púbicos e, por isso, são
insuscetíveis de flexiblização”, Uriarte reafirma que os pactos internacionais podem ser vistos
como normas integrantes de uma ordem pública internacional, nas quais a boa-fé, o
cumprimento dos acordos e os direitos humanos são elementos fundamentais. Então propõe:
144
Idem, ibidem, p. 9.
145
URIARTE, Oscar Ermida. A flexibilidade, op. cit., p. 63.
80
1 – A Constituição é a norma máxima da ordem jurídica nacional, o que permite
dizer que esse texto deve ser o primeiro passo de qualquer operação jurídica
interpretativa ou aplicativa e por isso deve ser vista como de máxima eficácia e de
aplicação direta;
2 – As normas internacionais sobre Direitos humanos são de hierarquia máxima e de
aplicação direta e formam parte da nossa Constituição;
3 – Existe uma tendência de evolução para considerar os Direitos humanos como
universais e não apenas como internacionais. Os Direitos humanos não
correspondem a um problema de Direito internacional, entre nações, mas uma
questão universal, da espécie humana;
4 – Superação da antinomia jusnaturalismo X positivismo. Quando encontramos na
Constituição uma norma positiva, uma remissão a Direitos próprios da pessoa
humana, temos uma norma positiva recolhendo em seu seio uma partes do
jusnaturalismo e vice-versa;
5- Também há a superação da velha oposição entre monismo e dualismo, que
envolvia as discussões entre prevalência da ordem internacional sobre a nacional ou
o contrário. Na medida em que a Constituição remete a tratados internacionais,
como ocorre no art. 5
o
§ 2
o
do texto brasileiro, a discussão se torna obsoleta;
6 – Indisponibilidade dos Direitos humanos. Esses Direitos universais, reconhecidos
como constitucionais e universais, estão supra-ordenados face à lei ordinária. É
intangível, inalcançável pelo legislador nacional e, portanto, impassível de
flexibilização. E permite, também, uma reconstrução do Direito do Trabalho, só
possível aos magistrados;
7 – Necessidade de uma reconstrução conceitual, ou seja, a premência do
desenvolvimento de um pensamento fundado em Direitos. Se a essência da ordem
púbica internacional e do constitucionalismo nacional é esse elenco de Direitos
humanos fundamentais, nosso pensamento tem que partir daí e potenciar isso;
8 – Necessidade de uma reconstrução jurisprudencial, que corresponde a um papel
dos juízes. A reconstrução do Direito do Trabalho só se faz real, só se torna real com
a atuação dos magistrados. Este é o momento supremo do Direito, em que as obras
jurídicas aterrisam e são aplicadas pelo juiz, com base na doutrina jurídica e a
pedido dos advogados.
146
146
URIARTE, Oscar Ermida. Palestra proferida no Fórum Internacional sobre direitos humanos e direitos
sociais do TST. Endereço eletrônico www.tst.gov.br, Notícias de 31 de março de 2004.
81
Cabe-nos salientar, por fim, que a CF de 1988 dá plena sustentação a essa postura de
construção de um direito comum, fundado nos direitos humanos fundamentais, pois
expressamente prevê um processo comum de integração dos direitos fundamentais previstos
na Carta com os direitos humanos previstos nas normativas internacionais. Com efeito, o § 2
o
do art. 5
o
da CF de 1988
147
veio dar uma visão diferenciada para as normas de direito
internacional que tratam dos direitos humanos fundamentais. Essas normas internacionais são
diferenciadas em relação às demais normas internacionais, pois àquelas são integradas no
ordenamento interno no plano constitucional, ao passo que estas são integradas no plano
infraconstitucional.
148
Portanto, tanto em nível interno ao Estado como no externo, existem saídas ao
processo de exclusão social patrocinado pela globalização neoliberal, as quais não se
excluem, mas, sim, são complementares.
Como percebemos a situação do trabalho em nível mundial encontra-se diante de
sérias dificuldades, que foram aprofundadas pela globalização neoliberal e pelo discurso
ideológico da única via. Todavia, não estamos condenados ao discurso único, pois existem
saídas que apontam para outro viés, o viés dos direitos humanos fundamentais e da
democracia. Esse outro caminho não está pronto, precisa ser construído, cabendo aos juristas
também um papel nesse projeto civilizatório. Dessa forma, impõe-se uma postura marcada
por um profundo mergulho na historicidade e de tomada de consciência histórica, o que
147
Cabe lembrar, ainda, que a Emenda Constitucional no. 45/2004 incluiu o § 3º no art. 5º. da CF de 1988,
dispositivo que causa perplexidade em sua interpretação. Se, por um lado, vem confirmar a interpretação
que entende que os direitos humanos previstos em tratados e convenções internacionais ingressam no
ordenamento jurídico brasileiro em patamar constitucional, por outro, faz essa integração depender de um
procedimento formal agravado para sua aprovação por parte do Congresso Nacional. E aí surgem alguns
problemas. Em primeiro lugar, cabe referir que a maior parte dos tratados, convenções e pactos
internacionais mais importantes (Pactos de Direitos Civis e Sociais de 1966, por exemplo) já foi ratificada
pelo Brasil antes da vigência de referido dispositivo. Como ficam essas normativas internacionais? Em
segundo lugar, o § 3º altera, em parte, o que dispunha o § 2º do art. 5º. da CF de 1988, que previa uma
espécie de eficácia imediata para a normativa internacional no âmbito interno. Ora, isso não ofende
frontalmente as cláusulas pétreas previstas no art. 60 da CF de 1988? Em terceiro lugar, cabe lembrar que o
Brasil se rege nas suas relações internacionais, segundo o que dispõe o inciso II do art. 4º da CF de 1988,
pela prevalência dos direitos humanos. É possível não se reger desta forma no âmbito interno? Como vemos,
parece-nos que a melhor saída é entender que continua a plena eficácia da interpretação que a melhor
doutrina vinha dando ao § 2º. do art. 5º. da CF de 1988.
148
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito internacional dos Direitos humanos. Volume
I. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 407; SARLET, Ingo Wolfgang, A eficácia dos
Direitos fundamentais, op. cit., p. 91 e 126; MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Direitos humanos & relações
internacionais. Campinas: Agá Juris, 2000, 102 e PIOVESAN, Flávia. Temas de Direitos humanos. 2. ed.
São Paulo: Max Limonad, 2003, p. 44 e s. e, da mesma autora, Direitos humanos e o Direito constitucional
internacional. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 103 e s. Embora esta posição ainda não seja
prevalecente no STF, cabe citar, todavia, o voto vencido do Ministro Carlos Mário da Silva Velloso,
proferido na ADIM 1.480 – DF, de 04/09/1997, que trilha no caminho aqui sustentado. O voto pode ser
conferido na Revista LTr, nº. 09, vol. 61. São Paulo: LTr. Editora, setembro de 1997, p. 1.161.
82
possibilita novas posturas hermenêuticas que não congelem sentidos, mas que, tomando em
conta o contexto, consigam abrir novas possibilidades de interpretação do fenômeno jurídico.
A hermenêutica filosófica nos capacita a dar essas respostas que os novos tempos pedem,
possibilitando uma nova leitura do papel civilizatório que os direitos humanos fundamentais
podem ter para a humanidade e abrindo novos caminhos para uma compreensão adequada
desses direitos num mundo novo.
83
3 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E UMA NOVA POSTURA HERMENÊUTICA
Conforme o que foi observado no primeiro capítulo desta dissertação, a situação pela
qual passam o trabalho e os trabalhadores (aqueles que vivem de sua força de trabalho) é por
demais periclitante e cheia de incertezas no atual mundo globalizado orientado pela ótica
neoliberal.
Diante das mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais que ocorrem numa
velocidade cada vez mais alucinante, faz-se necessário que os juristas reflitam sobre o
contexto onde vivem e onde projetam as soluções para os problemas que se apresentam
socialmente. Como já dito, o Direito, como fenômeno sócio-cultural, é essencialmente
histórico, sendo, dessa forma, marcadas pela historicidade as soluções construídas ao longo
dos tempos para o enfrentamento das aporias jurídicas.
Assim, não podemos perder de vista o contexto em que vivemos. Ao propormos
soluções para os problemas graves que estão na ordem do dia, não podemos esquecer que
vivemos no Brasil, nem que, em primeira mão, a Constituição Federal de 1988 é o pacto
constituinte de um Estado Democrático de Direito. Em segundo lugar, não podemos esquecer
que o Brasil é um país de Terceiro Mundo, que não conseguiu ainda vencer problemas
existenciais para a maioria da sua população. Por outro lado, cabe-nos também tomar
consciência do papel histórico que os direitos humanos fundamentais, como direitos
necessários para se manter um mínimo de legitimidade de um ordenamento jurídico e de uma
sociedade, podem ter no enfrentamento dos problemas criados pela possibilidade de dumping
social, cada vez mais facilitado pela globalização neoliberal.
É nesse contexto, portanto, que a hermenêutica filosófica é um caminho teórico que
torna possível darmos algumas respostas pertinentes à construção de uma concepção
adequada sobre o papel fundamental que os direitos humanos fundamentais, entendidos em
sua indivisibilidade e complementaridade, têm no enfrentamento dos graves problemas que
surgem no mundo do trabalho. Em especial, cabe a reflexão sobre a eficácia dos direitos
humanos fundamentais de primeira dimensão nas relações entre privados, em especial, no
contrato de trabalho, aspecto que será aprofundado no terceiro capítulo da presente
dissertação.
Nessa senda, no presente capítulo faremos a exposição de algumas noções operativas
sobre a hermenêutica filosófica que consideramos como fundamentais para o deslinde dos
84
problemas propostos e que são indispensáveis para um novo olhar sobre os fenômenos do
trabalho e sua regulamentação, na ótica dos direitos humanos fundamentais.
3.1 A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA E O SEU PAPEL PRODUTIVO PARA O
DIREITO
A hermenêutica filosófica, que se faz basilar para a construção do presente trabalho,
não se coaduna com a visão metódica da hermenêutica própria ao senso comum teórico dos
juristas
149
, pois esta última se apresenta como uma hermenêutica marcada por métodos que,
supostamente, possibilitam a interpretação do Direito. A hermenêutica filosófica não se
apresenta como fundada em métodos que, supostamente, pela sua utilização, possibilitariam a
construção de “receitas” aptas a dar respostas “objetivas e dotadas de certeza matemática” aos
problemas jurídicos.
150
Ao contrário, a hermenêutica filosófica possibilita-nos uma abordagem mais produtiva
do Direito, por meio de um diálogo aberto com a tradição democrática, no qual a historicidade
do conhecimento e a impossibilidade do congelamento eterno de sentidos, são marcas
indeléveis para a solução dos problemas jurídicos.
Como lembra-nos Ohlweiler, com a hermenêutica filosófica há a superação da velha
disputa, na interpretação dos textos jurídicos, entre os partidários da vontade do legislador
(subjetivistas) e os partidários da vontade da lei (objetivistas), não se atribuindo tanta
importância, como costumeiramente se faz, à intenção de “quem quer significar algo”, pois o
que importa é o contexto no qual se encontram o intérprete e o texto. A interpretação é sempre
149
WARAT afirma: “De uma maneira geral, a expressão “senso comum teórico dos juristas” designa as
condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diferentes práticas de enunciação e
escritura do Direito. Trata-se de um neologismo proposto para que se possa contar com um conceito
operacional que sirva para mencionar a dimensão ideológica das verdades jurídicas. Nas atividades cotidianas
– teóricas, práticas e acadêmicas – os juristas encontram-se fortemente influenciados por uma constelação de
representações, metáforas, estereótipos e normas éticas que governam e disciplinam anonimamente seus atos
de decisão e enunciação. Pode-se dizer que estamos diante de um protocolo de enunciação sem interstícios.
Um máximo de convenções lingüísticas que encontramos já prontas em nós quando precisamos falar
espontaneamente para reificar o mundo, compensar a ciência jurídica de sua carência.” WARAT, Luiz
Alberto. Introdução geral ao direito. Volume I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994, p. 13.
150
Como afirma Kaufmann, a hermenêutica não é em sua essência método, “mas sim filosofia transcendental. ...
Ela é filosofia transcendental no sentido em que designa as condições de possibilidade de compreensão do
sentido em geral. A hermenêutica, enquanto tal, não prescreve nenhum método. Ela apenas indica sob que
pressupostos se pode compreender algo no seu sentido.” KAUFMANN, Arthur. A problemática da filosofia do
direito ao longo da história. Filosofia do direito. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 149-150.
85
contextualizada, e é na fusão de horizontes que se dá a produção de novos sentidos. Assim, ao
intérprete não cabe buscar uma vontade, seja do legislador, seja da lei (posturas metafísicas),
mas adotar uma postura dialógica com o texto, que será compreendido na dialética circular
das perguntas e das respostas.
151
A hermenêutica que está marcada pelos métodos, a “hermenêutica metódica”, é uma
postura praticada pelos juristas ainda imersos no senso comum teórico e que ainda não se
deram conta da “viragem lingüística” (quando a linguagem, de terceira coisa entre sujeito e
objeto, passou a ser condição de possibilidade de nosso modo de ser no mundo) e do
rompimento da filosofia da consciência (relação de dominação entre sujeito e objeto, para a
qual o sujeito está fora do mundo histórico e pode controlar o que está à sua frente – o
objeto).
152
Streck demonstra, com base na hermenêutica crítica (hermenêutica de base filosófica),
a precariedade da “hermenêutica metódica”, pois nesta os chamados “métodos” são
apresentados como caminhos neutros e científicos para se chegar à verdade. Todavia, de fato,
são procedimentos retóricos que escondem os valores que se quer preservar na interpretação
do Direito.
153
Assim, ao contrário da “hermenêutica metódica”, a hermenêutica filosófica não
oferece métodos, mas, sim, como afirma Hernández-Largo, é uma proposta de descrição das
condições reais do intérprete. O intérprete está integrado num meio cultural, numa tradição
sem a qual sequer é imaginável a interpretação. Afirma o autor:
No cabe situarse fuera del entorno cultural ni de la cadena interpretativa del texto.
Pero, simultáneamente, ese sujeto no está atado indefectiblemente a una
comprensión, pues, entender es siempre una actitud de apertura y antesala a algo
creador y complementario del pasado. En la ciencia jurídica nunca se resaltará
suficientemente que la interpretación es una nueva lectura de las normas jurídicas y
que cada caso será una nueva aplicación, algo así como si el derecho reverdeciera
cada vez que es aplicado o cumplido.
154
151
OHLWEILER, Leonel Pires. Direito Administrativo em perspectiva – Os termos indeterminados à luz da
hermenêutica. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2000, p. 146.
152
Palmer afirma: “O método é uma tentativa de avaliação de controle por parte do intérprete; é o oposto de nos
deixarmos guiar pelo fenômeno. A “abertura” da experiência – que altera o próprio intérprete em favor do
texto – é a antítese do método. Assim o método é de facto uma forma de dogmatismo , separando o intérprete
da obra, colocando-se entre esta e ele, e impedindo-o de experimentar a obra em toda a sua plenitude. A visão
analítica é cega à experiência; é uma cegueira analítica.” PALMER, Richard E.. Hermenêutica. Lisboa:
Edições 70, 1999, p. 248. É nessa ótica que aqui será postulada a ultrapassagem do modelo metódico para o
modelo hermenêutico.
153
STRECK. Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 109. Ver no mesmo sentido, WARAT,
Luiz Alberto, op. cit., p. 33-38.
154
HERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna. Hermenéutica Jurídica – En torno a la hermenéutica de Hans-Georg
Gadamer. Valladolid: Secretariado de Publicaciones, Universidad, D.L., 1992, p. 93.
86
É com essa matriz teórica, na qual a filosofia hermenêutica de Heidegger e a
hermenêutica filosófica de Gadamer têm papel decisivo, que poderemos descortinar novos
sentidos para os direitos humanos fundamentais no atual mundo do trabalho, tendo como
mote perguntar pela construção de caminhos não metódicos que possibilitem o acontecer
desses direitos em sua indivisibilidade, com especial referência à eficácia ou à vinculação dos
sujeitos privados aos direitos humanos fundamentais de primeira dimensão.
155
A hermenêutica filosófica permite-nos uma abordagem do fenômeno jurídico que
torna produtivo o estranhamento que vivenciamos ao perceber que ainda para o senso comum
teórico dos juristas os direitos humanos fundamentais continuam a ser interpretados de uma
ótica liberal em plena vigência de um Estado Democrático de Direito.
Streck defende que os intérpretes do Direito devem se dar conta da “viragem
lingüística” e da superação da filosofia da consciência, quando de terceira coisa entre o sujeito
e o objeto, a linguagem passa a ser condição de possibilidade de dizer o fenômeno jurídico,
condição de possibilidade do próprio saber, condição de termos um “mundo como mundo”.
Afirma, ainda, com Gadamer, o caráter produtivo da interpretação no Direito, que se dá a
partir da fusão de horizontes entre o intérprete e o texto jurídico, fusão que é balizada pela
tradição jurídica.
156
155
Ohlweiler dá grande importância a essa temática. O autor cita o texto “A pergunta pela técnica” de Martin
Heidegger, onde o “Filósofo da Floresta Negra” chama a atenção para o problema do método e para a
adequada compreensão do que significa perguntar, quando diz: “perguntar es estar construyendo um camino.
Por ello es aconsejable fijar la atención en el camino y no estar pendiente de frases y rótulos aislados. El
camino es un camino del pensar.” OHLWEILER, Leonel. Os princípios constitucionais da administração
pública a partir da filosofia hermenêutica: Condições de possibilidade para ultrapassar o pensar objetificante.
Texto do MINTER em Direito UNISINOS/UPF, 2005, p. 19.
156
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2002, p. 169-175.
87
Ora, como afirma o autor
157
, toda a interpretação pressupõe uma compreensão e, para
compreender, precisamos ter uma pré-compreensão. Por seu turno, a pré-compreensão é uma
estrutura prévia de sentido que se articula a partir de uma posição prévia, de uma visão prévia
e de uma concepção prévia, a qual possibilita o entendimento do todo. Dessa forma, a
pergunta pelo sentido do texto jurídico (o ser do ente) deixa de ser uma questão de método e
passa a ser a pergunta de como o sentido se dá, isto é, de como o Dasein (ser-aí), como ente
compreendedor que compreende o ser
158
, compreende esse sentido (entendido como a
articulação, como a perspectiva do projeto sobre o qual se estrutura a pré-compreensão)
159
.
Assim, a compreensão é entendida como um existencial, o modo de constituição do próprio
homem, este entendido como poder-ser, como existência.
157
Idem, ibidem, p. 169-171.
158
Heidegger nas notas explicativas de “Ser e Tempo” afirma que o Dasein ou pre-sença “não é sinônimo nem
de homem, nem de ser humano, nem de humanidade, embora conserve uma relação estrutural. Evoca o
processo de constituição ontológica de homem, ser humano e humanidade. É na pre-sença que o homem
constrói o seu modo de ser, a sua existência, a sua trajetória etc...”. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Parte
I. 14. ed.. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005, p. 309. Em outra passagem, falando sobre o Dasein, a pre-
sença, Heidegger afirma: “Elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – o que
questiona – em seu ser. Como modo de ser de um ente, o questionamento dessa questão se acha
essencialmente determinado pelo que nela se questiona – pelo ser. Esse ente que cada um de nós somos e que,
entre outras, possui em seu ser a possibilidade de questionar, nós o designamos com o termo pre-sença.”
HEIDEGGER, Martin, op. cit., p. 33. Já Hermann, com base em Safranski, diz que o “Dasein ou existência
significa, pois, que nós não apenas somos, mas percebemos que somos. E nunca estamos acabados, como algo
presente; não podemos rodear a nós mesmos, mas em todos os pontos estamos abertos para o futuro. Temos de
conduzir nossa vida. Estamos entregues a nós mesmos. Somos aquilo que nos tornamos.” Então a autora
afirma que a compreensão, para Heidegger, torna-se possível porque habitamos o mundo e o mundo antecede
a separação entre pessoa e mundo objetivado, e conclui que o “mundo é o próprio ser e o homem é o ser-no-
mundo”. Dessa forma, a compreensão não é uma das formas do comportamento do sujeito, mas o próprio
modo de ser do Dasein, ou seja, o modo de ser do Dasein, do ser-no-mundo, é compreender. HERMANN,
Nadja. Hermenêutica e educação. Rio de Janeiro: DP&A Editora. 2003, p. 33 e 34.
159
Heidegger afirma que sentido “é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos
de sentido aquilo que pode articular-se na abertura da compreensão. ... Sentido é a perspectiva em função da
qual se estrutura o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se
torna compreensível como algo. ... Sentido é um existencial da pre-sença e não uma propriedade colada sobre
o ente, que se acha por “detrás” dela ou que paira não se sabe onde, numa espécie de “reino intermediário”.
HEIDEGGER, Martin, op. cit., p. 208.
88
O Direito passa, nessa perspectiva, a ser visto como fenômeno histórico
160
que não
pode ser reduzido a uma questão de métodos. Além disso, a verdade também prescindirá do
método, ou melhor, deixa de ser a verdade do método para ser entendida como desocultação,
como o desvelamento do ser, do sentido do Direito, que possibilita o grau de revelação dos
entes jurídicos.
161
É com base na filosofia hermenêutica (Heidegger) e na hermenêutica filosófica
(Gadamer) que, entre outros, Streck abre toda uma gama de novas possibilidades para o
acontecer do Direito num Estado Democrático de Direito, fazendo uma crítica áspera e
corrosiva ao senso comum teórico, que teima em não deixar o fenômeno jurídico vir à tona.
Na nova crítica do Direito de Streck, como já dito, Heidegger e Gadamer são fundamentais na
construção de condições de possibilidade para ultrapassar o senso comum teórico. Por essa
razão, faz-se necessária a abordagem de algumas questões imprescindíveis para o
160
Fenômeno aqui é entendido no sentido heideggeriano. Heidegger esclarece que a expressão “fenômeno”
significa mostrar-se; sendo assim, o que se mostra, o que se revela, são os fenômenos as coisas que se podem
por à luz do dia, que podem ser reveladas em si mesmas. Assim, a fenomenologia “é a via de acesso e o modo
de verificação para se determinar o que deve constituir tema da ontologia. A ontologia só é possível como
fenomenologia. O conceito fenomenológico de fenômeno propõe, como o que se mostra, o ser dos entes, o seu
sentido, suas modificações e derivados.” HEIDEGGER, Martin, op. cit., p. 58 e 66. Todavia, Heidegger
salienta que o “mostrar-se” não é um mostrar-se qualquer, visto que o ser dos entes não pode ser uma coisa
atrás da qual esteja outra que não se manifesta, pois atrás dos fenômenos não há nada, apenas o que ocorre, é
que o que se mostra, pode se velar. É por isso que se torna necessária a fenomenologia, pois em geral as coisas
não se dão, sendo o encobrimento o oposto de fenômeno. Em virtude disso, Pires diz, com base na afirmação
de Heidegger de que a fenomenologia é a ciência do ser dos entes (ontologia), que a fenomenologia deve tratar
justamente como tema aquilo que pode se esconder e pode ser mostrado. Segundo o autor, Heidegger descobre
o conceito fenomenológico de fenômeno, assim, “o que se oculta nos entes deve ser revelado na sua verdade,
deve tornar-se fenômeno’’. É o ser dos entes que deve ser tematizado. PIRES, Celestino. Heidegger e o ser
como história. Revista Portuguesa de Filosofia. Tomo XIX – Julho/Setembro de 1963. Fasc. 3. Braga:
Faculdade de Filosofia Braga, 1963, p. 231. Já Palmer afirma que a fenomenologia significa “deixar que as
coisas se manifestem como o que são, sem que projectemos nelas as nossas próprias categorias. Significa uma
inversão da orientação a que estamos acostumados; não somos nós que indicamos as coisas; são as coisas que
se nos revelam. Isto não sugere qualquer animismo primitivo, antes é o reconhecimento de que a própria
essência do conhecimento verdadeiro é ser orientado pelo poder que a coisa tem de se revelar. Esta concepção
é uma expressão da própria intenção de Husserl de regressar às coisas mesmas. A fenomenologia é um meio
de ser conduzido pelo fenômeno, por um caminho que genuinamente lhe pertence.” PALMER, Richard E..,
op. cit., p. 133. José Carlos da Silva Filho, em linha semelhante, afirma que a fenomenologia de Heidegger
não opõe fato e essência, parte do a priori do mundo da vida, em busca das coisas mesmas. Assim, a filosofia
torna-se histórica e hermenêutica, pois a faticidade da existência humana, o a priori da existência humana em
relação ao logos, é o próprio fundamento ontológico. SILVA FILHO, José Carlos. Hermenêutica filosófica e
direito – O exemplo privilegiado da boa-fé objetiva no direito contratual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003,
p. 52-53. Por fim, Stein deixa claro que a fenomenologia hermenêutica liga, é um caminho que descobre uma
certa continuidade entre o conhecimento filosófico que o autor, utilizando a linguagem de Putnam, chama de
“racionalidade I”, e o conhecimento empírico, que denomina de “racionalidade II”. Tanto um como o outro,
segundo o autor, vão depender de uma filosofia da finitude. Assim, a racionalidade II tem como condição de
possibilidade a racionalidade I. STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença – filosofia e conhecimento
empírico. Ijuí: Editora Unijuí, 2002, p. 16.
161
STRECK, Lenio Luiz.. Jurisdição constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do Direito, op. cit., p.
178.
89
entendimento do pensamento desses filósofos, que acabam possibilitando um tratamento mais
apropriado para a hermenêutica jurídica e para o tema em foco.
Salientamos, ainda, que uma hermenêutica crítica, tal como entendemos ser a
hermenêutica filosófica, é condição de possibilidade para que possamos perceber novos
horizontes na concretização dos direitos humanos fundamentais, em especial, com relação ao
tema da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas. Dessa forma,
faremos uma breve abordagem de três categorias fundamentais para essa reviravolta que a
hermenêutica filosófica possibilita, quais sejam: a) o caráter constitutivo de mundo da
linguagem; b) a diferença ontológica; c) o círculo hermenêutico.
Trataremos a seguir dessas questões, vistas de forma separada apenas para que se torne
mais transparente o seu tratamento, pois todas estão intimamente co-implicadas. Após,
trabalharemos nos diferenciados enfoques que essas categorias provocam na interpretação do
Direito e de toda a produtividade que tornam possível para um novo desvelar do fenômeno
jurídico.
3.2 O CARÁTER CONSTITUTIVO DE MUNDO QUE TEM A LINGUAGEM
Na abordagem hermenêutica a linguagem assume um papel central, por ser ela o
medium onde ocorrem nossas experiências de mundo. É por meio da linguagem que temos
mundo. Assim, é fundamental para essa análise crítica do Direito o entendimento de que a
linguagem não é uma terceira coisa entre o sujeito e o objeto, nem é instrumento que possa ser
usado e jogado fora ou posto de lado, mas é condição de possibilidade para podermos dizer e
conhecer o fenômeno jurídico.
Demonstrando a importância da linguagem nas trilhas de Heidegger, Streck
esclareceu:
90
A linguagem, então, é totalidade; é abertura para o mundo; é, enfim, condição de
possibilidade. Melhor dizendo, a linguagem, mais do que condição de possibilidade,
é constituinte e constituidora do saber, e, portanto, do nosso modo-de-ser-no-mundo,
que implica as condições de possibilidades que temos para compreender e agir. Isto
porque é pela linguagem e somente por ela que podemos ter mundo e chegar a esse
mundo. Sem linguagem não há mundo, enquanto mundo. Não há coisa alguma onde
falta a palavra. Somente quando se encontra a palavra para a coisa é que a coisa é
uma coisa.
162
Com essas afirmações não queremos dizer que a linguagem crie o mundo, que não
exista mundo antes da linguagem, mas, sim, que o mundo só se nos dá como mundo quando o
nomeamos. O mundo como mundo só aparece enquanto mundo interpretado. A hermenêutica
consiste, pois, justamente em “levar o ser do ente a se manifestar como fenômeno”. Sendo a
ontologia heideggeriana a pergunta pelo ser do ente, a ontologia fundamental tem como tema
“o ser dos entes, o sentido dos entes”.
163
Após salientar que a linguagem e a hermenêutica sempre estiveram presentes na obra
de Heidegger, embora muitas vezes nas entrelinhas, Grondin analisa o que significa e como
deve ser entendido, para Heidegger, na última fase do seu pensamento, o hermenêutico. Aduz
o autor que, para Heidegger, o hermenêutico devia ser entendido como “aquele expor que traz
a notícia, enquanto ele capacita a ouvir uma mensagem”. Então, afirma:
Antes de cada interpretação se manifesta o hermenêutico, como “a trazida de
mensagem e notícia”. Esses informes, como a maior parte deles na obra tardia,
devem ser encarados em sua singeleza. Nas palavras mais simples o hermenêutico
expressa a trazida de uma mensagem que desperta um escutar. Em parte alguma de
sua obra esteve Heidegger tão próximo da tradição hermenêutica, como aqui. Essa
trazida de uma mensagem só é possível através da linguagem, e até se comprova
como o fazer mais elementar da própria linguagem. É a linguagem, prossegue
Heidegger, que carrega “a relação hermenêutica”. No final, a pergunta pelo
hermenêutico funde-se, conseqüentemente, com a pergunta sobre a linguagem. ...
164
162
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 193-194. Cabe lembrar aqui, ainda, as
palavras de Bauman, que afirma: “Cabe um lembrete: “universo lingüístico” é um pleonasmo: o universo em
que cada um de nós vive é lingüístico, e não pode ser senão lingüístico – é feito de palavras. As palavras
iluminam as ilhas das formas visíveis no oceano escuro do invisível e marcam os dispersos pontos de
relevância na massa informe da insignificância. São as palavras que dividem o mundo em classes de objetos
nomeáveis e fazem surgir seu parentesco ou oposição, proximidade ou distância, afinidade ou estranhamento
e enquanto estiverem sozinhas no campo elevam todos esses artefatos ao nível da realidade, a única realidade
que existe.” BAUMAN, Zygmunt, Modernidade ...., op. cit., p. 236-237.
163
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do Direito, op. cit., p.
176-177.
164
GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 1999, p. 176-177.
91
Palmer acentua o caráter fundamental que a linguagem teve no pensamento de
Heidegger e a crítica que este autor fazia às teorias que viam a linguagem como um mero
instrumento de comunicação. Afirma que, para Heidegger, apenas há o ser quando ocorre um
desvelamento, a aparição, a revelação. Assim, “como não pode haver ocorrência de ser sem
apreensão, nem apreensão sem ser, também não pode haver ser sem linguagem, nem pode
haver linguagem sem ser”.
165
Como percebemos, a questão do próprio ser, a questão do sentido, não pode ser
colocada sem a linguagem. Não há experiência nem conhecimento sem linguagem.
166
Gadamer chama a atenção para o fato de que a linguagem não é somente condição
para o processo de entendimento e de que todos os problemas de entendimento são problemas
de linguagem, mas, além disso, alerta que todo o processo de compreensão é um
acontecimento de linguagem
167
. Gadamer é enfático ao dizer que pensamos com e por
palavras e que pensar é pensar sobre alguma coisa, o que significa que é dizer algo para nós
mesmos. Assim, o pensamento humano é composto pela linguagem, constituindo-se num
diálogo infinito que mantemos com nós mesmos e que antecipa o diálogo com os outros. É
nesse âmbito que o mundo se abre para nós, visto que toda a experiência é aberta por este
diálogo.
168
Tanto para Heidegger como para Gadamer a linguagem tem papel fundamental, pois
possibilita a compreensão; logo, não há compreensão sem linguagem, a qual, assim, não é
instrumento, mas condição de possibilidade. Como afirma Rohden, para Gadamer, a
linguagem é o meio universal. É na linguagem que se realiza a compreensão mesma. A
linguagem é modo de ser que determina o próprio objeto da hermenêutica. Tanto o sujeito
como o “objeto” têm caráter lingüístico e, assim, somente desse ponto de vista se legitimam
como tais.
169
Com efeito, Gadamer afirma:
165
PALMER, Richard E., op. cit., p. 157.
166
Duarte Júnior, ao falar sobre a existência humana como diferente de todas as demais formas de vida que
habitam nosso planeta, afirma: “O que funda esta diferença, o que torna o homem humano é, básica e
decisivamente, a palavra, a linguagem. A consciência humana é uma consciência reflexiva porque ela pode se
voltar sobre si mesma, isto é, o homem pode pensar em si próprio, tomar-se como objeto de sua reflexão. E
isto só é possível graças à linguagem: sistema simbólico pelo qual se representam as coisas do mundo, pelo
qual este mundo é ordenado e recebe significação.” DUARTE JÚNIOR, João-Francisco. O que é realidade. 4.
ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986, p. 18.
167
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. 2. ed.. Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 216.
168
Idem, ibidem, p. 234-335.
169
ROHDEN, Luiz. Hermenêutica e Linguagem. In: Hermenêutica Filosófica – Nas trilhas de Hans-Georg
Gadamer. Custódio Luis Silva de Almeida, Hans Georg Flickinger e Luiz Rohden. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2000, p. 155.
92
a linguagem é o medium universal em que se realiza a própria compreensão. A
forma de realização da compreensão é a interpretação. ... Todo compreender é
interpretar, e todo interpretar se desenvolve no medium de uma linguagem que
pretende deixar falar o objeto, sendo, ao mesmo tempo, a própria linguagem do
intérprete. ... Assim, como a conversação, a interpretação é um circuito fechado pela
dialética de pergunta e reposta. É uma verdadeira relação vital histórica que se
realiza no medium da linguagem e que, mesmo no caso da interpretação de textos,
podemos chamar “conversação”.
170
Lembra Grondin que o encontro com a tradição, com a história, é condição de
possibilidade para o conhecimento e, ao mesmo tempo, é o seu limite. Então, afirma que, para
Gadamer, é através do “fio condutor da linguagem” que a tradição é transmitida.
171
Em Gadamer, como acentua Palmer, a linguagem acaba por revelar o nosso mundo, o
mundo da vida, não o mundo científico ou o mundo ambiente. Ter mundo, assim, não é o
mesmo que ter ambiente. Os animais não têm mundo, mas apenas ambiente; somente o
homem tem mundo. Para Gadamer, para “termos um mundo temos que estar aptos a abrir um
espaço diante de nós, no qual o mundo se possa mostrar tal como é. Ter um mundo é ao
mesmo tempo ter linguagem”. Palmer salienta que os animais não podem se
entender/compreender sobre uma situação ou circunstância do passado ou do futuro porque
não têm linguagem como poder de abrir espaços, de construir um mundo, mas apenas uma
linguagem enquanto signo. O homem, pelo contrário, tem linguagem como poder real de
construir um mundo.
172
Palmer lembra-nos ainda que, sendo a experiência hermenêutica um encontro entre a
tradição e o horizonte do intérprete, entre um texto transmitido e o seu intérprete, é justamente
a lingüisticidade que vai fornecer a base sobre a qual pode haver esse encontro. É por meio da
170
GADAMER, Hans-Geor. Verdade e Método I – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 6. ed.
Rio de Janeiro: Vozes, 2004, p. 503-504.
171
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 179. Aliás, GADAMER afirma que a essência da tradição se caracteriza pelo seu
caráter lingüístico. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, op. cit., p. 504.
172
PALMER, Richard E., op. cit., p. 207-208. Por seu turno, Stein lembra uma questão importante nesse
contexto. O autor afirma que o conceito de mundo, em Heidegger, é bem específico, pois mundo é entendido
como totalidade de sentido em que o ser humano se move, sendo, então, o homem o ser-no-mundo. Lembra-
nos ainda o autor que nossas relações com o mundo são sempre relações significativas, marcadas por um
contexto histórico/cultural. Não existe um mundo natural em si, mas, sim, as relações que estabelecemos a
partir desse contexto histórico/cultural com o mundo. Assim, o que a fenomenologia hermenêutica quer
mostrar, segundo o autor, é que entre as nossas representações e o mundo natural se encontra a compreensão,
enquanto o ser humano é, enquanto ser-aí, ele sempre compreende e se compreende como seu modo de ser
ontológico. Por isso Stein afirma que “... o mundo natural nunca é natural em momento algum, enquanto
houver ser humano, porque envolvê-lo na compreensão significa um desenvolver do cuidado, em cujo
contexto, a vida fática já sempre assume o mundo natural como seu mundo. .. O mundo natural passa a ser
situado no contexto do conhecimento, da familiaridade e do lidar com que lhe tira o caráter simplesmente
objetivo e lhe impõe o caráter de algo significativo, vindo então o mundo ao nosso encontro com o caráter da
significabilidade.” STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença – Filosofia e Conhecimento Empírico. Ijuí:
Editora Unijuí, 2002, p. 121, 115-117.
93
linguagem que a tradição é transmitida e escondida; assim, a própria experiência
hermenêutica ocorre na e pela linguagem. O autor afirma que a “lingüisticidade é algo que se
difunde no modo de estar-no-mundo do homem histórico. Como observávamos, o homem tem
um mundo e vive num mundo por causa da linguagem.”
173
Dessa forma, fica claro o caráter ontologicamente histórico da linguagem e do próprio
homem (marcado pela sua finitude), tanto que, quando Gadamer afirma que “ser que pode ser
compreendido é linguagem”, está salientando o limite de toda experiência do sentido. Nessa
frase fica dito que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Para Gadamer, o “que
vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é
sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o “ser se
mostra””. Assim, toda experiência hermenêutica de sentido é finita, é inconclusa.
174
Como podemos observar, é a linguagem que abre as condições de possibilidade para
nós, que somos seres históricos e finitos, podermos ser e construir um mundo. A linguagem
não é uma terceira coisa entre o sujeito e o objeto, mas o medium no qual o mundo se
apresenta como mundo e se nos torna significativo.
3.3 SOBRE O CÍRCULO HERMENÊUTICO E A COMPREENSÃO
O círculo hermenêutico é outra questão fundamental para a hermenêutica filosófica,
sendo um dos teoremas fundamentais da filosofia da finitude. Com efeito, Stein lembra que os
dois teoremas fundamentais da filosofia da finitude são o círculo hermenêutico e a diferença
ontológica. Afirma o autor que, ao passo que a lógica clássica trabalha com base nos
princípios de não-contradição e da identidade, a lógica hermenêutica trabalha com a
circularidade e a diferença.
175
Vale salientar aqui que toda a interpretação pressupõe a compreensão que, por sua vez,
tem como condição de possibilidade as pré-compreensões do intérprete. Tanto é assim que
Streck, no âmbito da NCD (Nova Crítica do Direito) de nítida matriz hermenêutica, registra:
173
Palmer afirma: “A experiência hermenêutica é intrinsecamente lingüística. Não nos é possível compreender a
importância que isto tem enquanto não concebermos a linguagem circunscrita ao horizonte da
“linguisticidade”, ou seja, não como um instrumento de uma consciência manipuladora mas como um meio
pelo qual um mundo se coloca face a nós e dentro de nós.” PALMER, Richard E., op. cit., p. 210. e 243.
174
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II, op. cit., p. 384 e 386.
175
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. op. cit., p. 17 e 51.
94
A NCD busca, por meio de uma análise fenomenológica, o des-velamento
(Unverborgenheit) daquilo que, no comportamento quotidiano, nos ocultamos de
nós mesmos (Heidegger): o exercício da transcendência, onde não apenas somos,
mas percebemos que somos (Dasein) e somos aquilo que nos tornamos pela tradição
(pré-juízos que abarcam a faticidade e historicidade de nosso ser-no-mundo, no
interior do qual não se separa o Direito da sociedade, isto porque o ser é sempre o
ser de um ente e o ente só é no seu ser, sendo o Direito entendido como a sociedade
em movimento), e onde o sentido vem antecipado (círculo hermenêutico) por uma
posição (Vorhabe), um ver prévio (Vorsicht) e um pré-conceito (Vorgriff), isso
porque, conforme ensina Heidegger, o ente somente pode ser descoberto, seja pelo
caminho da percepção seja por qualquer outro caminho de acesso, quando o ser do
ente já está revelado.
176
O autor deixa claro que no Direito, ao contrário do que pensam os juristas inseridos no
senso comum teórico, a “fundamentação” de uma interpretação é produto do modo-de-ser-no-
mundo do intérprete, daquilo que o levou a compreender daquele modo, ou seja, fruto de suas
pré-compreensões (vetor de racionalidade I) e, assim, anterior ao ato explicativo da decisão
(argumentação – vetor de racionalidade II), pois a compreensão é pressuposto da
interpretação.
177
É fundamental esclarecermos o entendimento do círculo hermenêutico, como uma das
questões fundamentais do pensar hermenêutico. É assim que, para Heidegger, a interpretação
funda-se na compreensão, e esse fundamento é entendido como existencial. Na interpretação
há uma apropriação por parte da compreensão daquilo que foi compreendido. Dessa forma,
interpretar “não é tomar conhecimento do que se compreendeu, mas elaborar as possibilidades
projetadas na compreensão...”
178
. O mundo já compreendido se interpreta.
Para Heidegger, a interpretação move-se numa estrutura prévia já caracterizada e
funda-se na compreensão, sendo o sentido o que se articula na interpretação, mas que já ficou
pré-dado na compreensão como possibilidade de articulação. Assim, “a interpretação que se
coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que quer interpretar”.
Dessa forma, Heidegger afirma que para a lógica o círculo hermenêutico é vicioso, posição
que critica, pois considera que esse entendimento se configura como um mal-entendido acerca
do que é a compreensão. Afirma que, para que possamos interpretar, não devemos
176
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (Jurídica): comprendemos porque interpretamos ou interpretamos
porque comprendemos? Uma resposta a partir da Ontological Turn, op. cit., p. 227, nota 3.
177
Idem, ibidem, p. 228.
178
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I, p. 204-205. Cabe aqui também fazer um esclarecimento sobre as
palavras “existência” e “existencial” em Heidegger, pois elas têm significados específicos. Nas notas
explicativas de Ser e Tempo, p. 310 e 311, fica registrado que a palavra “existência” ficou reservada para
designar “toda a riqueza das relações recíprocas entre pre-sença e ser, entre pre-sença e todas as entificações,
através de uma entificação privilegiada, o homem. Nessa acepção só o homem existe. “A pedra é” mas não
existe.” Já a palavra “existencial”, remete “às estruturas que compõem o ser do homem a partir da existência
em seus desdobramentos advindos da pre-sença.”
95
desconhecer as condições essenciais de sua realização; assim, o que importa não é afastar o
círculo, mas entrar no círculo da compreensão de modo adequado. O círculo “exprime a
estrutura-prévia existencial, própria da presença.” Assim, nele
se esconde a possibilidade positiva do conhecimento mais originário que, de certo,
só pode ser apreendida de modo autêntico se a interpretação tiver compreendido que
sua primeira, única e última tarefa é não se deixar guiar, na posição prévia, visão
prévia e concepção prévia, por conceitos ingênuos ou “chutes”.
179
A interpretação deve assegurar o tema a partir das coisas mesmas.
Segundo Grondin, com Heidegger a hermenêutica ganha impulso e avança de forma
duradoura para o centro da reflexão filosófica. Heidegger propôs uma hermenêutica da
faticidade, não uma hermenêutica como a anterior de Droysen e Dilthey, de caráter
meramente epistêmico (secundária para Heidegger). Em Bultmaan, Heidegger vai buscar um
impulso inicial, ou seja, de que a compreensão sempre se orienta por uma pré-compreensão, a
qual emerge de uma situação existencial que vai marcar o tema e o limite de validade de cada
tentativa de interpretação. Heidegger busca aquilo que dá condições de possibilidade para a
tomada dos juízos, da compreensão; investiga a nossa habilidade, o poder, a arte de “entender-
se sobre algo”. Assim, a compreensão (o entender) de algo é um situar-se no mundo, não um
modo de conhecimento. A compreensão é o modo de ser do ser-aí, do Dasein. É do cuidado
que temos ao lidar com as coisas do mundo e da preocupação que o ser-aí tem consigo mesmo
que surge o caráter específico de esboço de nossas compreensões.
Então, continua Grondin, é de nossa relação com o mundo que surgem esses pré-
esboços de compreensão; é desse como hermenêutico, desse encontro com as coisas do
mundo que nos importam. Segundo o autor, para Heidegger a consideração meramente teórica
do mundo não é desconsiderada; na verdade, ela é justamente a suspensão desses zelosos
esboços.
179
Idem, ibidem, p. 209-212. Vattimo afirma: “Ser-aí, com se sabe, significa essencialmente ser-no-mundo; mas
isso, por sua vez se articula na tríplice estrutura dos “existenciais”, isto é, Befindlichkeit, Compreensão-
Interpretação, Discurso. O círculo de compreensão e interpretação é a estrutura constitutiva central do ser-no-
mundo que caracteriza o Ser-aí. … O ser-aí existe na forma de projeto, no qual as coisas só são na medida em
que pertencem a esse projeto, na media em que têm um sentido nesse contexto. Essa familiaridade preliminar
com o mundo, que se identifica com a própria existência do Ser-aí, é o que Heidegger chama de compreensão
ou pré-compreensão. Qualquer ato de conhecimento nada mais é que uma articulação, uma interpretação desta
familiaridade preliminar com o mundo. GIANNI, Vattimo. O fim da modernidade – Niilismo e hermenêutica
na cultura pós-moderna. São Paulo: Martins-Fonte, 2002, p. 112.
96
Esses esboços não são de nossa escolha, em primeira mão; assim, somos lançados,
jogados neles. Por isso, Grondin afirma que é justamente esse caráter de sermos lançados e de
historicidade do ser-aí (Dasein) que caracteriza nossa faticidade. Assim, estamos jogados no
círculo hermenêutico e somos conduzidos por essas perspectivas prévias que guiam nossas
compreensões. Todavia, o autor nos lembra que isso não nos impõe, como tem sido dito do
círculo hermenêutico, uma visão ofuscada e errante de andar à mercê dessas pré-estruturas, de
nossos preconceitos, pois a “hermenêutica de Heidegger é exatamente o oposto disto. Ela visa
um explícito esclarecimento dessa pré-estrutura historicamente dada”. Esse esclarecimento é o
que Heidegger chama de interpretação, que é entendida como o esclarecimento da pré-
estrutura da compreensão, fica marcado, segundo Grondin, o seu aspecto crítico. Todavia, a
função esclarecedora da interpretação não quer dizer que seja algo diverso e separado da
compreensão, pois na interpretação é que a compreensão se apropria do que compreendeu.
Grondin assinala que, na interpretação, que só ocorre por sobre uma primeira compreensão,
há uma auto-apropriação da compreensão, ou seja, a compreensão é “conduzida a si
própria”.
180
A interpretação quer evitar o equívoco pessoal. Eis o seu aspecto crítico, que é o de
levar à consciência a pré-estrutura da compreensão, o que não significa cair em subjetivismos.
Como lembra Grondin:
Heidegger pensa, evidentemente, em algo muito mais primário: para, por exemplo,
interpretar textos de maneira correta, exige-se que primeiro se torne transparente a
própria situação hermenêutica, para que o estranho ou diferente do texto possa fazer-
se valer antes de tudo, isto é, sem que nossos preconceitos não esclarecidos exerçam
aí sua despercebida dominação e assim escondam o específico do texto. Quem
descarta soberanamente sua própria situação hermenêutica, corre o risco de pôr-se à
sua mercê de forma tanto mais acrítica.
181
Seguindo as sendas abertas por Heidegger, Gadamer afirma que o círculo
hermenêutico tem um sentido positivo. Na compreensão de algo como algo sempre partimos
de uma posição prévia, de uma visão prévia e de uma concepção prévia. Assim, como tarefa
impostergável da interpretação está, justamente, o não se deixar guiar por “conceitos ingênuos
e chutes”, pois toda a interpretação correta deve ter cuidado com arbitrariedades e com
hábitos mentais muitas vezes imperceptíveis, devendo “voltar-se “para as coisas mesmas”
180
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 155-167.
181
Idem, ibidem, p. 165.
97
(que, para os filósofos, são os textos com sentido, que por seu turno tratam novamente de
coisas)”.
182
Gadamer, ainda chamando a atenção para a produtividade do círculo hermenêutico,
afirma “que no son tanto nuestros juicios como nuestros prejuicios los que constituyen nuestro
ser”. O autor reconhece que, diante da noção de pré-juízos formulada pela Ilustração (francesa
e inglesa), essa fórmula é provocativa, pois atribui um conceito positivo aos pré-juízos. E
continua:
Los prejuicios no son necesariamente injustificados ni erróneos, ni distorsionan la
verdad. Lo cierto es que, da la historicidad de nuestra existencia, los prejuicios en el
sentido literal de la palabra constituyen la orientación previa de toda nuestra
capacidad de experiencia. Son anticipos de nuestra apertura al mundo, condiciones
para que podamos percibir algo, para que eso que nos sale al encuentro nos diga
algo. Esto no significa, evidentemente, que estemos cercados por un muro de
prejuicios y sólo dejemos pasar por la estrecha perta aquello que pueda presentar el
pasaporte donde figura la frase: aquí no se dice nada nuevo. El huésped mejor
recibido es justamente el que promete algo nuevo para nuestra curiosidad. Pero
¿cómo conocer al huésped que nos va a decir algo nuevo? ¿no es el fondo antiguo en
el que estamos inmersos lo que determina nuestra expectativa y nuestra disposición
a oír lo nuevo?....
183
Para Gadamer, a interpretação sempre começa com conceitos prévios que vão sendo
substituídos ao longo do processo compreensivo por conceitos mais adequados, num
constante projetar de novo, na elaboração de projetos corretos que tenham em conta a coisa
182
GADAMER, Hans-Geor. Verdade e Método II, op. cit., p. 74-75. Stein lembra que a palavra de ordem do
movimento fenomenológico é “às coisas em si mesmas”. Então, afirma: “Compreendido o ser como
velamento e desvelamento, decidido que o ser é “a coisa em si mesma”, estabelecido que o ser, desde a
Antigüidade, se dá como tempo, determinado que o método da filosofia é o mostrar fenomenológico, então se
apresenta toda a problemática heideggeriana até hoje envolta nas experiências e no seu contato com Husserl.
Tarefa fundamental da filosofia será, portanto, para Heidegger, captar o ser como velamento e desvelamento
por meio de um método adequado e no horizonte adequado. O método adequado será a fenomenologia
esboçada em Ser e Tempo. O horizonte adequado será o tempo que, desde a Antigüidade vem ligado ao ser.
Para analisar o ser ligado ao tempo é preciso partir daquele ente que esconde em suas estruturas o tempo em
seu sentido: é o ser-aí. Portanto, é necessário partir da faticidade do ser-aí que esconde em suas estruturas a
temporalidade para determinar o ser como tempo. Isto é possível, sem que se incorra no perigo de errar a
analítica, porque o único ente cujo ser consiste em compreender o ser é o homem. Dessa maneira, uma
hermenêutica das estruturas do ser-aí, realizada pelo método fenomenológico hermenêutico, conduzirá ao
horizonte em que se poderá interrogar pelo sentido do ser que é o tempo. Afinal, interrogar pelo ser no tempo e
partir da temporalidade do ser-aí é movimentar-se na finitude, é compreender a questão do ser fora do contexto
da tradição metafísica. ... Heidegger rompe, portanto, com suas primeiras respostas ontoteológicas e se
debruçou, mediante o método fenomenológico, sobre a finitude do ser-aí e a finitude do ser. Essa interrogação
se realizou através do círculo hermenêutico por causa da circularidade da constituição do ser-aí que se
movimenta no ser enquanto o ser nele se manifesta e enquanto o ser o sustenta. Assim, se instaurou, no
pensamento de Heidegger, uma ontologia como o signo da finitude”. STEIN, Ernildo. Compreensão e
Finitude. Estrutura e movimento da interrogação heideggeriana. Ijuí: Unijuí, 2001, p. 138 e 147.
183
GADAMER, Han-Georg. Verdad Y Metodo II. Tradujo Manuel Olasagasti. Segunda Edición. Salamanca:
Ediciones Sígueme, 1994, p. 217 e 218.
98
mesma
184
. Como percebemos, não se trata, simplesmente, de afastar os pré-conceitos, mas,
sim, de reconhecê-los e elaborá-los na interpretação. Como essa tarefa sempre impõe o risco
de nos deixarmos conduzir por pré-conceitos enganadores, deve haver o esforço
compreensivo a partir da situação hermenêutica de alcançar a compreensão adequada à
realidade.
185
Para isso, Gadamer dá uma importância fundamental ao “perguntar”. É a pergunta que
possibilita o esclarecimento, a distinção entre os preconceitos que cegam e os preconceitos
verdadeiros. Para isso existe a necessidade de que a consciência hermenêutica inclua uma
consciência histórica, pois só assim se tornará possível o perguntar. É no encontro com a
tradição que se torna possível reconhecer um preconceito, sem colocá-lo em aberto, ele atua
imperceptivelmente; sem questioná-lo, ele não aparece como pré-conceito. Assim, Gadamer
diz:
O primeiro elemento com que se inicia a compreensão é o fato de que algo nos
interpela. É a primeira de todas as condições hermenêuticas. Agora vemos o que se
exige para isso: uma suspensão fundamental dos próprios preconceitos. Toda
suspensão de juízos, porém, começando pelos preconceitos, logicamente falando,
possui a estrutura da pergunta.
186
É por meio da pergunta numa situação de diálogo que se colocam e que se mantêm as
possibilidades em aberto, e, para isso, é fundamental que o conhecimento reconheça sua
finitude e historicidade. Gadamer nos lembra ainda que a compreensão do falado deve ser
184
GADAMER, Hans-Geor. Verdade e Método II, op. cit., p. 75. O autor afirma: “... a estrutura da compreensão
que se encontra na base da hermenêutica; ela possui, como já vimos, as características de algo como um
“pertencimento” à tradição.... Trata-se da relação circular entre o todo e suas partes: o significado antecipado
em um todo se compreende por suas partes, mas é a luz do todo que as partes adquirem a sua função
esclarecedora. ... a compreensão amplia e renova, em círculos concêntricos, a unidade efetiva do significado
global e final que é o critério da compreensão. Quando essa coerência falha, falamos, então, de um malogro da
compreensão.... Pensemos uma vez mais na interpretação de um texto. Tão logo descubra alguns elementos
compreensíveis, o intérprete esboça um projeto de significação para todo o texto. Mas os primeiros elementos
significativos só vêm à luz se ele se entregar à leitura com um interesse mais ou menos determinado.
Compreender “a coisa” que surge ali, diante de mim, não é outra coisa senão elaborar um primeiro projeto que
se vai corrigindo, progressivamente, à medida que progride a decifração.” GADAMER, Hans-Georg. Esboço
dos fundamentos de uma hermenêutica. In: O problema da consciência histórica. Pierre Fruchon (0rg.). Rio de
Janeiro: Fundação Getúlio Vargas Editora, 1998, p. 58 e 61.
185
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 187.
186
GADAMER, Hans-Gerg. Verdade e Método II, op. cit., p. 80-81. Palmer salienta o aspecto dialético da
pergunta. O autor lembra o aspecto de negatividade criativa da pergunta e da experiência em Gadamer, pois a
experiência não nos diz aquilo que esperávamos, mas transcende e nega as expectativas, o mesmo ocorrendo
com a pergunta, que para ser verdadeira não pode já ter a resposta final e deve permitir que o outro, que o
texto, também suscite perguntas e bote em xeque o horizonte do intérprete. PALMER, Richard E., op. cit., p.
234 e 235.
99
vista numa situação de diálogo em que “a coisa suscita perguntas”, o mesmo ocorrendo entre
texto e intérprete, visto que aqui também está em questão a coisa de que se fala, “seu ser
assim ou assado”
187
. Para Gadamer, a dialética de pergunta e resposta se dá como
conversação. Além disso, como já dito, compreensão e aplicação coincidem, pois aplicamos a
compreensão de acordo com e para a nossa situação.
Como, entretanto, distinguir os preconceitos que cegam dos preconceitos que
esclarecem? É aí que Gadamer levanta a tarefa crítica da hermenêutica, esboçando a noção de
distância temporal, segundo a qual a distância no tempo é uma possibilidade positiva e
produtiva para esse esclarecimento. Embora a distância temporal não possa ser vista como
princípio seguro, oferece-nos bons indícios
188
.
Com efeito, Grondin questiona a produtividade absoluta da distância temporal,
afirmando que Heidegger já tinha deixado claro que a história muitas vezes é encobridora.
Contudo, salienta que Gadamer, como heideggeriano, sabia disso, tanto que reviu sua posição
anterior que afirmava a perene produtividade da distância temporal e, na edição de 1985 de
Verdade e Método, salientou que a distância temporal “freqüentemente” é capaz de resolver a
questão crítica da hermenêutica.
189
187
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II. op. cit., p. 13.
188
Gadamer chama a atenção para o fenômeno do pertencimento a uma tradição, aquilo que é comum a todos, e
afirma: “A hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo, com a
coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a “coisa” possa me falar”.
Gadamer vai salientar que este encontro não é sem problemas, pois existe uma tensão entre a familiaridade e a
estranheza, estando o intérprete “suspenso entre o seu pertencimento a uma tradição e a sua distância com
relação aos objetos que constituem o tema de suas pesquisas”. É aí que entra a situação hermenêutica e a
distância temporal, sendo que esta distância não precisa ser vencida para que compreendamos, na verdade
trata-se “na verdade, de considerar a “distância temporal” como fundamento de uma possibilidade positiva e
produtiva de compreensão. Não é uma distância a percorrer, mas uma continuidade viva de elementos que se
acumulam formando uma tradição, isto é, uma luz à qual tudo o que trazemos conosco do passado, tudo o que
nos é transmitido faz a sua aparição.” GADAMER, Hans-Georg. Esboço dos fundamentos de uma
hermenêutica. In: O problema da consciência histórica, op. cit., p. 66 e 67.
189
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 189. Gadamer, falando sobre a distância temporal, deixa claro o quanto de
equívocos provocou essa sua afirmação. Ela obscureceu a importância do encontro com o outro, o diálogo, a
alteridade. Segundo o autor, essa distância não é apenas uma distância histórica e, ainda, não é apenas a
distância temporal, que em absoluto vai superar os pré-conceitos verdadeiros dos falsos. Salienta que referida
distância pode também ocorrer na simultaneidade, pois o encontro com o outro, por exemplo, pode também
trazer à consciência os erros. Gadamer põe em evidência a posição produtiva do diálogo, embora afirme que a
distância temporal é um “auxílio” importante. GADAMER, Hans-Georg, Verdade e Método II, op. cit., p. 16.
100
Dentro dessa rede, outro conceito fundamental de Gadamer é o de consciência
histórica efeitual
190
, o qual desempenha um papel imprescindível para o entendimento do
tema central dessa dissertação. Para Gadamer a história é sempre efetiva, está sempre atuando
sobre nós que somos seres históricos e finitos. Assim, não nos retiramos da história para
compreender, estamos inextricavelmente na história e sob os seus efeitos. Gadamer deixa isso
claro quando afirma que os efeitos da história efeitual operam em toda a compreensão, mesmo
que não estejamos conscientes disso. A consciência da história efeitual, então, deve partir, em
primeiro lugar, da consciência da situação hermenêutica. Afirma que uma situação
hermenêutica se caracteriza pelo fato de não estarmos diante dela, mas nela, e nossa tarefa é
elucidá-la, o que nunca se dá por completo, por ser isso impossível, em razão de nossa própria
historicidade.
191
190
Gadamer entende que o conceito de consciência histórico-efeitual encarna uma certa ambigüidade, que
consiste “em que por ele se designa, por um lado, a consciência, ativada no curso da história e determinada
pela história, e por outro, uma consciência do próprio ser ativado e ser determinado.” O que o autor quer
marcar ao expor esta ambigüidade é justamente que a história está sempre atuando, mesmo que não se saiba
disso, sobre o que chama de moderna consciência histórica ou mesmo a científica e, então afirma que a
“consciência da história efeitual é finita num sentido tão radical que o nosso ser, efetivado no conjunto de
nossos envios de destino, sobrepuja de maneira essencial o seu saber sobre si mesmo.” GADAMER, Hans-
Georg. Verdade e Método I, op. cit., p. 20-21. Apropriando-se dessa categoria fundamental no pensamento de
Gadamer, Olhweiler salienta a importância da chamada “consciência histórico-efeitual” para a abertura de
sentido dos entes. Trabalhando no âmbito do direito administrativo, o autor confere fundamental relevo a esta
categoria, que é de importância fundamental para o entendimento sobre o papel do Estado na realização das
políticas públicas. Assim, para o autor, se faz necessária a interrogação fenomenológica sobre as alterações e
mudanças sociais e econômicas, políticas e filosóficas, que delinearam o processo de formação do direito
administrativo. Dessa forma, é a consciência histórica efeitual como, “a consciência, ativada no curso da
história e determinada pela história, e por outro lado uma consciência do próprio ser ativado e determinado
pela história”, que vai possibilitar as perguntas que podem levar a uma compreensão autêntica do assunto
abordado e que não permita que esqueçamos da finitude de todo o compreender. OLHWEILER, Leonel.
Estado, administração pública e democracia: condições de possibilidade para ultrapassar a objetificação do
regime administrativo. In: Anuário do programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da
UNISINOS. Organizadores: Leonel Severo Rocha e Lenio Luiz Streck. São Leopoldo: UNISINOS, 2003, p.
274, 282 e 283.
191
Idem, ibidem, p. 398 e 399. Palmer afirma que compreender se efetua sempre tendo em conta aquilo que
vemos, o que nossa compreensão da situação presente coloca e, ainda, de um sentido do que o futuro poderá
trazer. Assim, toda interpretação se situa num contexto. E é por meio da linguagem, como repositório do
passado, que podemos conhecer, é o meio que temos para conhecer, pois toda a compreensão é lingüística.
Pela linguagem um mundo se nos abre, um mundo partilhado pela compreensão que se dá pela linguagem.
Este mundo é delimitado, é finito e muda com o tempo. Assim, afirma o autor que “isto significa que é
historicamente formado, e que cada acto de compreensão contém a actuaçao da história na e pela
compreensão”. PALMER, Richard E., op. cit., p. 230.
101
Grondin afirma que, para Gadamer, a consciência histórica efeitual é um verdadeiro
“princípio”, que é observado em toda a sua hermenêutica. É, em primeira mão, a exigência de
tornar consciente a própria situação hermenêutica, seu horizonte, para poder controlá-la; é a
explicitação da pré-compreensão como queria Heidegger. Todavia, segundo Grondin, nesse
ponto Gadamer foi mais marcante que Heidegger, por deixar claro que a história efeitual não
está em nosso poder, visto que, ao mesmo tempo em que permite e é a base para a tomada de
consciência, nos permitindo dar-nos conta de nossas pré-compreensões, por outro lado, como
está sempre atuante, também limita o esclarecimento total. É nesse sentido que o autor
entende a afirmação de Gadamer de que a consciência histórica efeitual seria “mais ser do que
consciência”.
192
Ter consciência histórica é ter consciência da situação hermenêutica e dos horizontes
de sentido dessa situação
193
. Para Gadamer, o conceito de horizonte significa o campo de
visão, o âmbito de visão que temos segundo uma determinada situação e que vai marcar o
alcance e o limite do que pode ser visto. É a partir disso que Gadamer fala da compreensão
como fusão de horizontes.
194
Segundo Gadamer, o horizonte de sentido de nosso presente está
sempre em formação, porque constantemente estamos pondo à prova nossos preconceitos.
Assim, o horizonte do presente está intrincado e ligado ao passado, não se forma à sua
margem. Para Gadamer não existe um horizonte do presente por si mesmo nem horizontes do
passado que seriam conquistados. Afirma que “compreender é sempre o processo de fusão
desses horizontes presumivelmente dados por si mesmos”.
195
Como afirma Hermann
Essa bela metáfora da fusão de horizontes não refere uma ingênua absorção do
passado, porque a própria situação hermenêutica é consciente da tensão que
acompanha o texto e o presente. Essa tensão, por não ser oculta, é desenvolvida
conscientemente. A fusão de horizontes preside a dialética entre estranheza e
familiaridade, pertencimento e distanciamento, constitutiva da experiência
hermenêutica.
196
O caráter conflitivo entre estranheza e familiaridade fica evidenciado quando Gadamer
afirma que a compreensão sempre implica um confronto, de modo que é um contra-senso
192
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 190-192.
193
HERMANN, Nadja, op. cit., p. 49.
194
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, cit., p. 399.
195
Idem, ibidem, p. 404.
196
HERMANN, Nadja, op. cit., p. 50.
102
entender que o valor dado na hermenêutica à tradição configure uma aceitação acrítica da
tradição ou uma espécie de conservadorismo político-social. De acordo com Gadamer:
Toda a experiência é confronto, já que ela opõe o novo ao antigo, e, em princípio,
nunca se sabe se o novo prevalecerá, quer dizer, tornar-se-á verdadeiramente uma
experiência, ou se o antigo, costumeiro e previsível, reconquistará finalmente a sua
consistência. Sabemos que, mesmo nas ciências empíricas, como Kuhn em particular
o demonstrou, os conhecimentos novamente estabelecidos encontram resistências e na
verdade permanecem por muito tempo ocultos pelo “paradigma” dominante. O
mesmo ocorre fundamentalmente com toda a experiência. Ela precisa triunfar sobre a
tradição sob pena de fracassar por causa dela. O novo deixaria de sê-lo se não tivesse
que se afirmar frente a alguma coisa.
197
Não estamos cegamente atados às nossas pré-compreensões, pois, apesar de nossas
pré-compreensões serem limitadas, não são fechadas. A tradição não se impõe
automaticamente, pois cabe ao intérprete ter uma atitude de questionamento perante a
tradição, separando os pré-juízos autênticos dos inautênticos. Coreth, com propriedade,
afirma:
Essa pré-compreensão, porém – como a totalidade de meu “mundo” – é, sim, sempre
limitada, mas nunca está fechada em si. É limitada, porque jamais experimentei e
compreendi tudo, mas muita coisa se subtraiu a meu conhecimento. Contudo, a pré-
compreensão – como, repitamos, a totalidade de meu “mundo” – nunca está
definitivamente fixada e fechada em si, mas é, por princípio, aberta. Representa só
um primeiro e essencialmente provisório acesso da compreensão. .... Somente quem
sempre mantém aberta de novo sua pré-compreensão, pronto a se deixar instruir e
corrigir, está capacitado à legítima compreensão. Quer se trate de uma compreensão
pessoal, objetiva, ou histórica, ela apresenta em sua essência um caráter dialogal.
Deve entrar em conversação com o conteúdo de significado a ser compreendido;
deve abrir-se para apreender o sentido que lhe é dito. Nesse acontecimento, o
horizonte se transforma e se alarga, possibilitando dessa forma uma compreenção
mais profunda e mais plena.
198
Além disso, para Gadamer, a compreensão não é reprodutiva, mas produtiva, pois
“compreender é compreender-sempre-diferentemente”
199
. O autor marca com essa afirmação
o fato de, que sempre que compreendemos um texto, uma diretriz, isso se dá numa
determinada situação em que nos encontramos e, diante de nossa historicidade ontológica,
197
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. op. cit., p. 14.
198
CORETH, Emerich. Questões fundamentais de hermenêutica. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1973,
p. 112-113.
199
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método II, op. cit., p. 15.
103
essa situação é essencialmente cambiável. Essa interpretação se torna clara quando, sobre o
sentido de um texto enfocado pelo intérprete, afirma:
O sentido de um texto supera seu autor não ocasionalmente, mas sempre. Por isso, a
compreensão nunca é um comportamento meramente reprodutivo, mas também e
sempre produtivo... Basta dizer que, quando se logra compreender, compreende-se
de um modo diferente.
200
Como nos lembra Grondin, para Gadamer a aplicação não é algo secundário à
compreensão, pois, na trilha de Heidegger, entende que compreender é sempre um
compreender-se. Dessa forma, compreender é aplicar um sentido à nossa situação,
evidenciando, assim, o caráter produtivo da compreensão. Esclarece Grondin:
Entender um texto do passado significa traduzi-lo para a nossa situação presente,
escutando nele uma discursiva resposta para os questionamentos de nossa era. ... a
verdade, aqui concebida como abertura de sentido (aléteia), ocorre apenas no
decurso da aplicação histórico-efetual. ... Um texto só se torna falante, graças às
perguntas que nós hoje lhe dirigimos. Não existe nenhuma interpretação, nenhuma
compreensão, que não respondesse a determinadas interrogações que anseiam por
orientação.
201
De tudo o que foi dito percebemos que não podemos simplesmente nos colocar fora do
mundo para que possamos encontrar as respostas adequadas para as perguntas que possam ser
feitas, pois fora do mundo sequer se torna possível um verdadeiro perguntar. Devemos, sim,
nos entender como irremediavelmente no mundo, embora não definitivamente atados
acriticamente ao que nos vem do passado pela linguagem. Esse é o papel do esclarecimento
dos pré-juízos que possibilitam a compreensão autêntica, possibilitando ao intérprete a
abertura de novos sentidos adequados a novos contextos.
200
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, op. cit., p. 392.
201
GRONDIN, Jean, op.cit., p. 192-195.
104
3.4 A DIFERENÇA ONTOLÓGICA
A diferença ontológica é outro dos teoremas fundamentais para a compreensão da
fenomenologia hermenêutica de Heidegger e que foi desenvolvida também por Gadamer em
sua hermenêutica filosófica.
Segundo Stein, a diferença ontológica é a diferença essencial, onde está a unidade
entre o ser humano e a compreensão do ser. Essa diferença não significa uma separação entre
ser e ente, mas a relação entre ser e ente que se dá pelo comportamento do Dasein, do ser-aí.
Assim, a função da diferença ontológica é o que possibilita a Heidegger fazer a pergunta, o
questionamento
202
, pelo ser, distinguindo-o dos entes. Lembra ainda o autor que a
fenomenologia hermenêutica mostra que o processo da pré-compreensão sempre acompanha
o ser-aí, sendo condição de possibilidade de qualquer conhecimento. Dessa forma, Stein
conclui que a diferença ontológica é o teorema que supera a relação sujeito-objeto, pois
precede essa relação e recupera, portanto, uma visão totalizante, em que se estabelece um
vínculo entre o pensar filosófico e o pensar científico no qual se estabelece um espaço de
encontro.
203
Como afirma Streck, a questão sobre o sentido do ser é possível somente quando se dá
a compreensão do ser, quando o sentido se dá já simbolizado. O Dasein, como ser no mundo,
está desde já sempre inserido nessa estrutura simbólica; o Dasein, o ser-aí, existe
compreendendo, pois a compreensão faz parte do seu modo de ser-no-mundo, do homem no
mundo; a compreensão. Portanto, é um existencial, categoria por meio da qual o homem se
constitui. Afirma o autor que em Heidegger a hermenêutica consiste em levar o ser do ente a
se manifestar, a aparecer como fenômeno. A ontologia (fundamental) é o questionamento
sobre o sentido do ser. Dessa forma,
202
Heidegger afirma que todo “o questionamento é uma procura. Toda procura retira do procurado sua direção
prévia. Questionar é procurar cientemente o ente naquilo que ele é e como ele é. A procura ciente pode
transformar-se em “investigação” se o que se questiona for determinado de maneira libertadora”.
HEIDEGGER, Martin, op. cit., p. 30-31. Rée, elucidando esta passagem de Heidegger, afirma que para
Heidegger toda a pergunta é uma busca, sendo orientada pelo que é buscado. A pergunta é sobre algo e já
contém esse algo sobre que pergunta, sendo também uma pergunta a algo. Assim, também pertence à pergunta
o que é interrogado e o que se deve descobrir com a pergunta. RÉE, Jonathan. Heidegger. São Paulo: Editora
UNESP, 2000, p. 13-14.
203
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença, op. cit., p. 16, 17, 18, 19 e 100.
105
só é possível, aqui, como fenomenologia, que terá como temática o ser dos entes, o
sentido dos entes. ... Não mais o ente enquanto ente, mas, sim, o ser (o sentido) do
ente, uma vez que o ser sempre se manifesta nos entes. Só há ser no ente. A
metafísica sempre pensou o ente, mas nunca pensou o ser que possibilita o ente,
aduz o filósofo.
204
Conforme Stein, a fenomenologia hermenêutica de Heidegger volta-se criticamente
para a história da metafísica, tanto na filosofia como na ciência, demonstrando que ambas,
embora em seus próprios temas, apenas acabaram por tratar dos entes e levaram ao
esquecimento do ser. Assim, foi esquecida uma diferença essencial que se caracteriza por uma
situação incontornável na qual está a unidade entre o ser humano e a compreensão do ser.
Para o autor, a diferença ontológica não significa apenas uma separação ente ser e ente, mas
uma relação entre eles que se dá pelo comportamento, pelo modo de ser de um ente que é o
ser-aí (Dasein). Assim, “a diferença ontológica se constitui no contexto da compreensão do
ser, mas, ao mesmo tempo, dá a essa o espaço de seu acontecer.”
205
É justamente isso que fica claro da afirmação de Gadamer quando diz que, em
Heidegger, é a diferença ontológica, a diferença entre ser e ente, que possibilita a própria
pergunta e a compreensão do ser.
206
Stein elucida que Heidegger não formula uma teoria do ser, nem responde à pergunta
sobre o ser; o que ele faz é uma topologia do ser e é na diferença ontológica, diferença
esquecida pela metafísica, que ele se movimenta. Afirma que a metafísica “sempre pensou o
ser ligado ao ente. O ser como emergência do ser dos entes subtraiu-se à interrogação
metafísica.” Através da hermenêutica da faticidade, pela analítica existencial, continua Stein,
é que Heidegger promove a interrogação do ser na “zona privilegiada de sua manifestação, o
204
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito, op. cit., p.
177.
205
STEIN, Ernildo. Pensar é Pensar a Diferença – filosofia e conhecimento empírico, op. cit., p. 16-18. Rée
afirma que é o Dasein que tem a capacidade de questionar o ser e compreender o ser. Essa capacidade é
inerente ao Dasein, do ser-aí, é de sua existência compreender o ser. O Dasein é compreendendo, em suas
compreensões autênticas ou não. Assim, a peculiaridade do Dasein é ser um ente ontológico, pois a
compreensão do ser é sua característica determinante (Heidegger). Além disso, “se nossa existência não é
explicitamente ontológica, ela é pelo menos “pré-ontológica””. Dessa forma, a ontologia fundamental vai
assumir o papel de clarificar e radicalizar nosso entendimento pré-ontológico do ser. A ontologia fundamental
será radicalmente reflexiva, devendo ser buscada na analítica existencial do Dasein, mostrando que não existe
fundamento último, mas, sim, que nossa existência não tem outra base que ela mesma. RÉE, Jonathan. op. cit.,
p 15-18.
206
GADAMER, Hans-Geor. Verdade e Método I, op. cit., p. 345.
106
mundo humano do ser-aí.”
207
As afirmações de Stein ficam ainda mais claras quando temos
contato com o que Heidegger afirma sobre o ser e sobre o ente:
o ser não somente não pode ser definido, como também nunca se deixa determinar em
seu sentido por outra coisa nem como outra coisa. O ser só pode ser determinado a
partir de seu sentido como ele mesmo. ... . O ser é algo derradeiro e último que
subsiste por seu sentido, é algo autônomo e independente que se dá em seu sentido. ...
Ser é o conceito mais universal. ... O conceito de ser é indefinível, em virtude de sua
máxima universalidade. ... O ser não pode ser concebido como ente; enti non additur
aliqua natura: o “ser” não pode ser determinado, acrescentando-lhe um ente. Não se
pode derivar o ser no sentido de uma definição a partir de conceitos superiores nem
explicá-lo através de conceitos inferiores ...
...
Chamamos de “ente” muitas coisas e em sentidos diferentes. Ente é tudo de que
falamos, tudo que entendemos, com que nos comportamos dessa ou daquela maneira,
ente é também o que e como nós mesmos somos. Ser está naquilo que é e como é, na
realidade, no ser simplesmente dado (Vorhandenheit), no teor e no recurso, no valor e
validade, na pre-sença, no “há”.
208
Rée esclarece que Heidegger está em busca do que significa o ser, o significado do ser,
não como algo que está atrás do ser, mas o sentido que este termo tem em nossas linguagens e
compreensões. Salienta que Heidegger não diz o que é o ser, mas dá sugestões gerais, dizendo
que o ser envolve uma questão crucial, assunto que diz respeito a todos nós, mesmo que não
estejamos conscientes disso; daquilo que falamos quando falamos de alguma coisa e que
acabou sendo trivializado pela tradição filosófica que acabou por esconder o ser.
209
Assim, continua o autor, Heidegger afirma que o ser é o mais universal de todos os
conceitos, o que não significa que seja o mais claro, pois é o mais obscuro; que o ser é vago e
indefinível, sendo, portanto, diferente das entidades com as quais lidamos cotidianamente.
Mostra, assim, que questões ontológicas (questões sobre o ser) não podem ser tratadas como
questões ônticas (questões sobre entes particulares). Dessa forma, continua, se de algum modo
compreendemos o que é ser, essa “compreensibilidade mediana” precisa ser analisada.
Heidegger lembra ainda que constantemente somos tentados a tratar as questões ontológicas
como questões ônticas, o que demonstra a importância de ser problematizada a questão do ser.
207
STEIN, Ernildo. Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 143.
Em outra passagem o autor nos lembra: “A vida já sempre se compreende de algum modo a si mesma. A
fenomenologia analisa o ser-aí que compreende o ser e, assim, se transforma em fenomenologia hermenêutica.
O ser-aí é analisado em sua existência fática e, por isso, emerge a analítica existencial. ... A analítica
existencial visa ao desvelamento das estruturas do ser-aí ... . A partir do ser-aí se desvelará o horizonte da
temporalidade como horizonte transcendental do ser.” Idem, ibidem, p. 60.
208
HEIDEGGER, Martin, op. cit., p. 13, 28, 29 e 32.
209
RÉE, Jonathan, op. cit., p. 10-13.
107
Ocorre que, de alguma forma, “desde os albores de nossa existência, nas palavras de
Heidegger, “já vivemos em um entendimento do ser”, até porque só existimos tendo algum
tipo de compreensão do mundo e de nosso lugar nele.”
210
Heidegger, afirma o autor, pensa o ser de forma diversa da metafísica, pois, para ele, a
compreensão não é algo ou uma operação oposta à própria vida constituinte, mas é o próprio
modo originário do Dasein, modo original pelo qual o homem vive, existe no mundo, mundo
que é o próprio ser e que nos chega sempre simbolizado pela linguagem. O homem é o ser-no-
mundo que compreende como seu modo de existir.
211
Dessa forma, a própria questão da verdade ganha outra dimensão. Rée demonstra que
Heidegger critica a concepção (aristotélica) da verdade como correspondência entre juízos, de
um lado, e em objetos, do outro. Por meio da analítica existencial, Heidegger não propõe
simplesmente ignorar ou jogar fora toda a tradição filosófica que vem desde os gregos sobre a
verdade, mas, sim, apropriá-la de forma primordial, indagando o que foi primordialmente
indagado, através das palavras mais elementares do Dasein. Heidegger afirma que a verdade e
o ser estão relacionados. A verdade, para Heidegger, é abertura, é desvelamento; a abertura é
um modo de ser essencial do Dasein. Assim, para Heidegger, “só “há” verdade à medida que
o Dasein existe. Entidades só são descobertas – e só se abrem uma vez que – o Dasein de
algum modo existe.” Para Heidegger, sem Dasein não pode existir verdade, o que explica,
segundo o autor, a posição de Heidegger quando falou sobre as Leis de Newton. Esclarece
Rée,
que antes de Newton suas leis não eram nem verdadeiras e nem falsas não significa
que as entidades descobertas e apontadas por essas leis antes não existiam. As leis se
tornaram verdadeiras por meio de Newton, e, com elas, entidades ficaram acessíveis
em si mesmas ao Dasein. Ao serem descobertas, essas entidades se mostraram
precisamente como entidades que já existiam antes. Esse tipo de descoberta é o
modo de ser da “verdade.
212
210
Idem, ibidem.
211
HERMANN, Nadja, op. cit., p. 34.
212
RÉE, Jonathan, op. cit., p. 41-42. Ver também Hermann, que salienta que, para Heidegger, o conceito de
verdade deixa de ser a autenticidade da expressão ou prova da existência do real, ficando imerso no tempo e
aberto às possibilidades do ser. Assim, a verdade passa a ser alétheia, desvelamento, desocultamento, sendo
sempre relativa ao Dasein e de sua abertura ao mundo. A verdade deixa de ser subjetiva e passa para o
mundo prático; é no interior da abertura ontológica que a verdade aparece e se oculta. Assim, não existem
mais verdades atemporais, absolutas, pois isso seria uma fuga da finitude humana. HERMANN, Nadja, op.
cit., p. 38-40.
108
É com base nisso que Rée vaticina que, para Heidegger, “a ciência é indubitavelmente
histórica, mas a história não é nenhuma inimiga da verdade”.
213
Para Palmer a experiência hermenêutica é a revelação da verdade, que não pode ser
entendida como correspondência entre um juízo e um fato, pois que a verdade é emergência, é
o surgimento do ser em sua manifestação. A verdade é sempre parcial, nunca total; é
carregada de ambigüidade, visto que, ao mesmo tempo em que se revela, se oculta. Afirma o
autor que a verdade
fundamenta-se na negatividade; esta é a razão pela qual a descoberta da verdade se
processa melhor no interior de uma dialéctica onde o poder da negatividade possa
actuar. A emergência da verdade na experiência hermenêutica aparece nesse
encontro com a negatividade que é intrínseca à experiência; nesse caso a experiência
surge como “momento estético” ou como “evento lingüístico”. A verdade não é
conceptual, não é fato – acontece.
214
E é através do que Heidegger chamou de “indícios formais” que se trilha o caminho
para a verdade, esta entendida como existencial, como desvelamento, na trilha a ser trilhada
para o encontro das próprias coisas.
215
Como afirma Stein é através dos indícios formais que o ver fenomenológico trilha o
caminho em relação às coisas mesmas. Aduz o autor que Heidegger chama de “analítica
existencial” o processo de descrição dos indícios formais, o exercício de descrição das
condições existenciais. Heidegger busca os indícios formais das características do Dasein e
descobre dois indícios formais próprios do Dasein: a) o sentimento de situação, pelo qual
desde sempre já sei de meu ser-jogado-no-mundo e b) a compreensão ligada ao sentimento de
situação, que é uma pré-compreensão e, a partir daí, desenvolve um caminho de descrição do
acontecer das coisas. Esses indícios são próprios do modo de ser-no-mundo do Dasein,
estando presentes e operando em qualquer nível do conhecimento. Nessa mesma trilha, por
213
RÉE, Jonathan, op. cit., p. 44.
214
PALMER, Richard E., op. cit., p. 246.
215
Grondin nos lembra que, visto que Heidegger queria, com sua hermenêutica filosófica, evitar o auto-equívoco
e responsabilizar cada intérprete por suas interpretações, destruindo as sentenças universais e não mais
questionadas do ser-aí, bem como para não cair em uma “escolastizaçao”, ele acabou por introduzir seus
conceitos como meros “indicadores formais”, o que impõe a quem interpreta apropriar-se sempre de novo
dessas indicações, não meramente reproduzi-las acriticamente. Assim, o que deve ser buscado são as
experiências específicas que se manifestam no universal. GRONDIN, Jean, op. cit., p. 167-170. Ver, ainda,
sobre essa questão Ohlweiller, Leonel. A pergunta pela técnica e os eixos dogmáticos do Direito
Administrativo: Algumas repercussões da fenomenologia hermenêutica. Texto de aula MINTER-
UNISINOS-UPF. Passo Fundo, 2005, p. 22 e nota 59.
109
meio da analítica existencial, Heidegger vai também em busca do modo do acontecer das
coisas, dos entes disponíveis.
216
Lembra ainda o autor que os indícios formais não dão conta do todo da coisa; assim, a
sua descrição nunca é completa, mas é um caminho sempre a ser percorrido. Surge, portanto,
uma base não-inferencial do conhecimento, mas, sim, uma descrição do modo-de-ser-no-
mundo a partir de um encontro com a realidade, com as coisas mesmas.
217
Por fim, Stein
ensina:
Como ser-no-mundo, o Dasein abre, pela pré-compreensão, um espaço para o
acontecer de um encontro entre o sentido e a realidade, o significado e a experiência,
as palavras e as coisas, o pensar e a experiência. Esse âmbito é constituído pela
diferença ontológica. Dela surge um elemento não-inferencial, condição de
possibilidade de qualquer inferência. A fenomelogia hermenêutica, através dos
indícios formais, pretende abrir-nos o caminho para esse universo não-inferencial, o
antepredicativo, que se dá em bases existenciais.
218
Dessa forma, é através de um encontro com a realidade, de um diálogo aberto com a
tradição e pela análise dos indícios formais que se apresentam que se pode alcançar uma visão
não metódica sobre a verdade, até porque, como lembra Gadamer, a ciência moderna, que
busca estabelecer a verdade pelo uso de métodos (entendidos como “caminhos de
seguimento” que sempre podem ser refeitos) acabou por trocar, como parâmetro do
conhecimento, a verdade pela certeza; assim, esqueceu a verdade como desvelamento
(alethéia), como encontro com as coisas mesmas e, por fim, deixou de ver a verdade para se
afirmar apenas no método.
219
Faz-se necessária a volta ao questionamento fundamental, ao questionamento do ser, à
busca fenomenológica pela verdade, não a cegueira analítica dos métodos. Isso não significa
uma desconsideração total dos métodos, que podem auxiliar no processo de conhecimento,
mas ter consciência de que estes não são caminhos que levam à verdade, mas que buscam a
216
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença, op. cit., p. 157-159 e 159-160, respectivamente.
217
Idem, ibidem, p. 166-167. Ver, também, Silva Filho que afirma: “Tudo isso quer dizer que o sentido autêntico
é o fruto de um adequado confronto das coisas que aparecem ao homem com a sua pré-compreensão. A
essência dos entes se revela, assim, sempre a partir de uma estrutura de significado provisória e em constante
mutação. Daí porque o homem nunca pode esgotar a enunciação do ser dos entes com os quais se defronta.”
SILVA FILHO, José Carlos et all. O Princípio da boa-fé objetiva no Direito Contratual e o problema do
homem médio: Da jurisprudência dos valores à hermenêutica filosófica. Texto de aula MINTER UNISINOS-
UPF. Passo Fundo, 2005, p. 9,
218
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença. op. cit., p. 167-168.
219
GADAMER, Hans-Geor. Verdade e Método II, op. cit., p. 59-71.
110
certeza. Esquece-se, dessa forma, do fundamental, ou seja, que a verdade é acontecimento, é
alethéia.
Rée lembra o momento histórico em que Heidegger escreveu Ser e Tempo, quando na
filosofia estava presente o debate entre verdade e história. Naquele momento, no qual a fé
iluminista no progresso foi abalada pela Primeira Grande Guerra, abriu-se o campo para o
relativismo, pois não haveria mais verdades absolutas transcendentais confiáveis. Heidegger,
por sua vez, mostrou que, se os conceitos de particularidade histórica e verdade científica
forem investigados a fundo, esse conflito não é tão radical. Segundo o autor, Heidegger
demonstra que as “nossas peculiaridades individuais não são uma crisálida que deixamos para
trás a fim de ascender a um sublime reino da verdade, mas a origem e âncora de todo o nosso
conhecimento.”
220
Mais adiante, Rée diz que
talvez já possamos discernir o caminho que Heidegger quer nos ver seguir: um
caminho que nos mantém distantes tanto do absolutismo como do relativismo, e nos
traz repentinamente de volta, surpresos, à nossa própria existência como bons ou
maus intérpretes do mundo, como perguntadores pela questão do significado de ser,
e como ontologistas que podem por fim ver por que a história é a melhor amiga da
verdade.
221
Esse novo ver que brota da filosofia da finitude, da hermenêutica filosófica, pode abrir
e abre novos caminhos para o Direito, desde que estejamos dispostos a nos deixarmos guiar
pelo próprio caminho, pelas coisas, pela linguagem, não simplesmente pela metodologia.
Dessa forma, a compreensão ganha novos ares e nova força com a hermenêutica filosófica,
deixando para trás a relação sujeito-objeto e focando-se na relação sujeito-sujeito. O intérprete
não é mais visto como o sujeito (cogito) que, pela sua consciência, domina o objeto (o que
está à sua frente) conhecendo-o em sua essência fundamental; intérprete e texto estão
imbricados de forma ontológica.
Cabe-nos todavia, esclarecer bem essa questão.
Stein descortina o pensamento de Heidegger sobre a relação entre ciência e filosofia
quando analisa a questão da preservação da diferença ontológica perante a objetivação como o
cenário próprio da filosofia. Aduz o autor:
220
RÉE, Jonathan, op. cit. p. 8.
221
Idem, ibidem, p. 62.
111
O filósofo, de modo algum, negará que, no cotidiano, na ciência e em outros
comportamentos, o ser humano necessariamente apela para a objetivação. O problema
começa quando não percebemos que com a atitude de objetivar ou objetificar, estamos
apenas permitindo que apareça um aspecto da nossa relação com as coisas, com os
eventos e com as pessoas. É nesse sentido que a objetivação ou a objetificação passam
a ser objeto de crítica. Pois, o filósofo, pelo próprio desenvolvimento de seu conceito
de fenômeno, trabalha com o binômio velamento e desvelamento, o manifesto e aquilo
que só se mostra através de uma espécie de ocultamento. A objetivação olharia apenas
o aspecto do desvelamento e esse numa perspectiva de um sujeito que se situa diante
de um objeto. Nessa relação, tanto a coisa como o evento ou a pessoa, passam a ser
simplesmente objetos da representação do sujeito. Esse passa a ter um domínio sobre
aquilo que ele coloca na sua frente e do qual ele dispõe como sujeito. Dessa maneira,
o acontecer ou o presentar-se, ou ainda o vir-ao-encontro com seu modo de ser, das
coisas, dos eventos e das pessoas, é negado, é encoberto ou mesmo totalmente
ignorado. Entretanto, é nesses aspectos que precisamente se dá a dimensão
fundamental em que os entes se mostram em seu ser e, ignorar essa dimensão do
acontecer do ser, significa não permitir que apareça a diferença ontológica.
222
Portanto, buscamos não simplesmente ignorar o trabalho da ciência, e no nosso caso
da ciência do Direito, mas guardar um espaço para o perguntar filosófico, para o acontecer do
sentido do fenômeno jurídico, que não pode ser congelado de uma vez por todas por
esquemas metodológicos que não atentam para a temporalidade do ser
223
. Superamos com
isso, como já referido, a relação de dominação, para entrar numa relação dialogal. Não é à toa
que Gadamer afirma:
Importa, portanto, reconhecer todas as formas da vida humana e articulações de cada
uma de suas respectivas margens de mundo. Estamos, então, no domínio da
hermenêutica. É assim que chamo a arte do compreender. Mas o que é,
propriamente, compreender? Compreender não é, em todo caso, estar de acordo com
o que ou quem se compreende. Tal igualdade seria utópica. Compreender significa
que eu posso pensar e ponderar o que o outro pensa. Ele poderia ter razão com o que
diz e com o que propriamente quer dizer. Compreender não é, portanto, uma
dominação do que nos está à frente, do outro e, em geral, do mundo objetivo. Pode
até se compreender que se compreenda para dominar. ...
224
222
STEIN, Ernildo. Pensar é pensar a diferença, op. cit., p. 191 e 193.
223
Cabe-nos aqui lembrar Silva Filho, que afirma: “Assim, pode-se entender o fenômeno jurídico como um ente,
como uma manifestação da realidade que revela o seu ser continuamente, e para o qual deve-se ter ouvidos. A
ciência do Direito, neste prisma, não pode aprisionar o ente que lhe diz respeito ao modo de um objeto a ser
dominado, medido e quantificado e que, uma vez delimitado implica o permanente enquadramento de todo o
acontecimento futuro dentro dos seus moldes, devendo, assim, o ente em sua manifestação ser inibido na
revelação do seu ser em favor de uma projeção de um ser ou fundamento já transformado em objeto e de um
procedimento metódico que o imortaliza.” SILVA FILHO, José Carlos Moreira, Hermenêutica filosófica e
direito, op. cit., p. 170-171.
224
GADAMER, Hans-Georg. Da palavra ao conceito. A tarefa hermenêutica enquanto filosofia. Tradução de
Hans-Georg Flickinger e Muriel Mais-Flickinger. Hermenêutica Filosófica – Nas trilhas de Hans-Georg
Gadamer, op. cit., p. 23.
112
Essa é a postura da hermenêutica crítica, uma hermenêutica que se preocupa com a
verdade enquanto acontecimento do sentido, que surge e se vela; com a pergunta pelo ser que
é temporal; com a responsabilidade do intérprete pelo produto de sua interpretação, sem
desatentar para o aspecto dialogal e intersubjetivo do Direito e, por fim, que se preocupa com
a efetivação dos princípios e direitos humanos fundamentais no ambiente do Estado
Democrático de Direito e de uma sociedade mais justa e solidária.
3.5 O PROCESSO HERMENÊUTICO NO DIREITO – O CARÁTER PRODUTIVO DA
INTERPRETAÇÃO, SUA INSERÇÃO E SEU PAPEL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
Toda a base filosófica da hermenêutica de Heidegger e Gadamer tem sido apropriada
por vários cultores do campo do Direito e, numa verdadeira aplicattio, tem instaurado uma
série de novas possibilidades para dizer o fenômeno jurídico, além de colocar em xeque a
visão metódica da interpretação.
Para a hermenêutica filosófica, como já mencionamos, a linguagem deixa de ser uma
terceira coisa entre sujeito e objeto, passando a ser condição de possibilidade para o próprio
pensar. Além disso, o intérprete não está fora do mundo, mas imerso no mundo e na
circularidade hermenêutica. Por fim, a verdade deixa de ser correspondência entre coisa e
enunciado, passando a ser o encontro (desvelamento/ocultamento) do ser, o aparecer das
coisas mesmas na abertura propiciada pelo Dasein, tendo em vista a diferença ontológica.
Assim, não é possível defender sentidos congelados, aistóricos, que impedem um novo
encontro com a verdade.
É claro que essa abordagem certamente angustia
225
e suscita perguntas, provoca nosso
pensar para um caminho diverso e mais fecundo do que o pensar do senso comum teórico dos
225
Rée afirma que Heidegger nos lembra de que temos uma tendência para a inautencidade, de estarmos no
próprio-impessoal, perdidos no palavratório, entendendo o que se fala apenas por alto, na curiosidade que só
quer se informar, mas que não se preocupa com conhecer e sim em só num tomar conhecimento. Isso implica a
ambigüidade, que faz com que tudo pareça entendido quando de fato não está. Dessa forma, as novas criações,
as genuínas criações já são antiquadas quando chegam a público. Para Heidegger, é a angústia do
estranhamento que pode nos tirar da inautencidade e nos levar à autencidade; a angústia acorda o Dasein. Ao
se sentir estranho, o Dasein se individualiza como ser-no-mundo, saindo de sua queda e absorção no mundo.
Isso não significa um individualismo, mas, sim, que com a angústia o Dasein se coloca frente a frente com o
seu mundo como ser-no-mundo. Portanto, não há fuga do mundo, mas uma “ousada descoberta e
reapropriação deste”. RÉE, Jonathan, op. cit. 31.
113
juristas. Sobretudo, provoca-nos a ver o novo com os olhos do novo, não do velho, como
afirma Streck. Para os fins da presente dissertação, a visão propiciada pela hermenêutica
filosófica possibilita que percebamos os novos significados do fenômeno constituinte de 1988
e de seu fruto, a Constituição Federal de 1988, ou seja, a constituição de um Estado
Democrático de Direito fundado em direitos humanos fundamentais, que são a base comum
de um direito minimamente legítimo.
226
Assim, devemos refletir sobre o processo interpretativo do Direito no ambiente
(contexto) no qual estamos imersos, ou seja, num Estado dito Democrático de Direito.
Devemos, ainda, atentar e ter em conta que a sociedade brasileira é uma sociedade altamente
diversificada, pluralista e que tem dificuldades atinentes às condições de vida da população,
as quais podem ser qualificadas como de primeira necessidade ou existenciais. Então, sem a
inserção da interpretação nesse contexto certamente se perdem as novas possibilidades que
podem surgir dessa inserção. Por isso, é por meio de um debate profícuo com a tradição
democrática, alicerçada nos direitos humanos fundamentais, que é possível a construção de
novos sentidos para o Direito.
227
Ora, a inserção da interpretação nesse contexto é imprescindível, pois, como bem
lembra Stein,
... Gadamer nos deu, com sua hermenêutica filosófica, uma lição nova e definitiva:
uma coisa é estabelecer uma práxis de interpretação opaca como princípio, e outra
coisa bem diferente é inserir a interpretação num contexto – ou de caráter
existencial, ou com as características do acontecer da tradição na histórica do ser –
em que interpretar permite ser compreendido progressivamente como uma
autocompreensão de quem interpreta. E, de outro lado, a hermenêutica filosófica nos
ensina que o ser não pode ser compreendido em sua totalidade, não podendo assim,
haver uma pretensão de totalidade da interpretação.
228
226
BARROSO, Luís Roberto; STRECK, Lenio Luiz, na obra coletiva Canotilho e a Constituição Dirigente.
Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Organizador. Rio de Janeiro-SãoPaulo: Renovar, 2003, p. 33 e 81,
respectivamente.
227
É interessante aqui lembrar o que diz Rée sobre a linguagem: uma “linguagem é evidentemente uma entidade
histórica – uma herança cultural dinâmica e multifacetada, de desconcertante complexidade, produto das
labutas poéticas, gramaticais e filosóficas de incontáveis gerações antecedentes. Como usuários de uma
linguagem, é inevitável que sejamos parte de uma história que sempre nos sobrepuja.” Como afirma o autor,
podemos nos relacionar, segundo Heidegger, de forma ôntica ou ontológica com a tradição. Podemos tratá-la
como tesouro cultural que nos foi entregue pelo passado e que é apreendida de um modo temporal ligado ao
presente (forma ôntica) ou podemos nos apropriar da tradição produtivamente, fazendo um retorno positivo ao
passado e abrindo outras possibilidades para o futuro (forma ontológica), indo às fontes primordiais de onde
nos chega esta tradição e levantar novamente a questão que colocou essa tradição em movimento, a questão do
ser. RÉE, Jonathan, op. cit., p. 20-21.
228
STEIN, Ernildo. A Consciência da história: Gadamer e a Hermenêutica. Caderno especial de domingo Mais
da Folha de São Paulo de 24 de março de 2002, p. 2 e 3. Disponível em: www.cfh.ufsc.br/~wfil/gadamer.htm.
114
Para isso, não podemos esquecer que, como afirma Streck, a norma não está contida de
forma imediata no texto, mas é produzida no processo de concretização do Direito
229
. Dessa
forma, como lembra o autor, “a hermenêutica de cariz filosófico não depende de
procedimentos. Não é, portanto, normativa; é atribuição de sentido; é modo-de-ser-no-mundo,
a partir da pré-compreensão do intérprete”.
230
A interpretação é, então, produção de sentido que só se torna possível pela
linguagem
231
. A produtividade da interpretação está indissoluvelmente ligada não só ao
intérprete e ao seu mundo, a suas pré-compreensões, que possibilitam e condicionam sua
interpretação (história efeitual), mas também está ligada intimamente ao caso, visto que a
concretização da lei só se faz no caso concreto.
Silva Filho relata que, em carta escrita a Karl Jaspers, Heidegger descreveu-se como
um zelador de museu que afastava as cortinas que encobriam as obras para que elas pudessem
ser mais bem vistas. Isso quer dizer, segundo o autor, que a filosofia hermenêutica tem o
papel de remover aquilo que encobre, aquilo que a habitualidade esconde, sendo o exercício
do “deixar ver”. E continua:
Fazendo uma transposição para o intérprete-aplicador do Direito, cultivar este
sentido do pensamento de HEIDEGGER significa tornar o jurista sensibilizado
diante do caso concreto, do âmbito da norma e da mensagem que a norma traz, sem
se deixar amparar previamente, de modo rígido, sufocante e alienado por uma
interpretação prefixada ou uma tradição doutrinária que não se dispõe ao verdadeiro
diálogo (senso comum teórico). Significa surpreender-se e, de fato, contemplar em
seu ser o fenômeno social com o qual se depara. É este exercício do deixar-ver que
possibilita os momentos de abertura no sistema e a conseqüente realização do
desiderato de todo o jurista que preze esta qualificação: a busca da paz social através
da justiça.
232
229
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do direito, op. cit., p. 548.
Em outro texto o autor salienta a diferença entre texto e norma, esta última como atribuição de sentido pelo
intérprete, embora deixando claro que isso não significa assumir a defesa da possibilidade de arbitrariedade do
intérprete, pois a atribuição de sentido terá por base a sua situação hermenêutica, “de la tradición em que está
incluído a partir de seus prejuícios. La diferença ontológica, lócus del acto aplicativo (applicatio) funciona,
así, como garantia contra esa discricionaridad representada por uma pretendida “libertad de atribución de
senidos”.” STRECK, Lenio Luiz. Diferencia (ontológica) entre texto y norma: alejando el fantasma del
relativismo. Disponível em: site www.leniostreck.com.br, p. 3.
230
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (Jurídica): comprendemos porque interpretamos ou interpretamos
porque comprendemos? Uma resposta a partir da Ontological Turn, op. cit., p. 237.
231
Streck, lembrando Heidegger, afirma: “Como o compreender só é possível se o homem é um ser-no-mundo,
nosso acesso a esse mundo só é possível pela linguagem. Por isto vai dizer, mais tarde, na Carta Sobre o
Humanismo, que a linguagem é a casa (morada) do ser.” STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m)
Crise, op. cit., p. 193.
232
SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. op. cit., p. 230.
115
Como afirma Streck, os textos e os fatos sociais não podem ser tratados como meros
objetos, pois estão juntos no mundo através da linguagem. Nesse mesmo mundo se encontra o
intérprete, que não contempla objetos que estão à sua frente para, então, arrancar um sentido
em si do objeto, mas já está desde sempre com tais “objetos” no mundo. Ultrapassa-se, assim,
a relação sujeito-objeto (objetificante-metafísica) e passa-se para uma relação sujeito-sujeito
(hermenêutica-dialógica). Além disso, a compreensão, a interpretação e a aplicação não estão
separadas e somente ganham sentido diante dos casos concretos e da produtividade
interpretativa.
233
A hermenêutica filosófica, portanto, sustenta o caráter produtivo da interpretação, a
qual não se resume a uma reprodução de sentidos já dados, mas envolve a construção de
sentidos que se dão diante do caso concreto.
234
.
Por ser produtiva, a hermenêutica também é, segundo Streck, crítica, visto que o
intérprete não interpreta o Direito fora do mundo, como se estivesse isolado aos efeitos da
história efeitual de que fala Gadamer. Perde, assim, razão de ser qualquer alegação de um
conformismo por parte da hermenêutica por esta estar ligada à tradição, visto que o aspecto
crítico da hermenêutica “surge da situação hermenêutica em que está inserido o intérprete e da
fusão de horizontes que ocorre entre o texto/realidade e o intérprete, uma vez que é na
linguagem que surge a ação”.
235
Gadamer explicita o caráter produtivo do caso particular no Direito, porque, segundo o
autor, o juiz, além de aplicar a lei in concreto, promovendo a concreção do Direito, colabora,
por meio da decisão, para a evolução do Direito. Portanto, a tarefa do juiz é prática, visto que
233
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit., p. 254. Hernández-Largo afirma: “Al hilo
del discurso de Gadamer, hemos ido percibiendo que este pensamiento se decantaba por una hermenéutica
entendida como una estructura ontológica del intérprete y un desvelar la índole histórica de toda comprensión.
Lo cual se traducía en una superación de una larga tradición de pensamiento que, originada en el romanticismo
y en el historicismo, ha reflexionado sobre la hermenéutica con vía de acceso al conocimiento de algo
histórico, pero dejando intactos los dos polos de tal conocimiento: el sujeto y el objeto. Ahora que se nos
ofrece es que el sujeto pertenece a la comprensión misma y que el interpretandum sólo existe en la historia
factual de la comprensión que genera.” HERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna, op. cit., p. 110.
234
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise, op. cit., p. 261.
235
Idem, ibidem, p. 260. Aliás, cabe afirmar que o autor deixa claro que a hermenêutica filosófica tem claros
traços críticos, havendo uma unidade indissolúvel entre o método dialético, que parte da oposição, e o método
hermenêutico, que parte da mediação, sendo, assim, a experiência hermenêutica dialética. Palmer afirma que
A experiência hermenêutica é dialéctica. Os frutos deste facto só podem colher-se quando a experiência for
concebida não como consciência que percebe objetos, mas como compreensão que encontra uma negatividade
que alarga e ilumina a autocompreensão.” PALMER, Richard E., op. cit., p. 243. Em sentido parcialmente
divergente está Pérez Luño, pois, embora acate vários dos postulados da hermenêutica de Gadamer (caráter
lingüístico da interpretação, pré-compreensão e círculo hermenêutico, debate com a tradição), acaba
sustentando, também, em parte, a posição da chamada “crítica das ideologias” de Apel e Habermas, afirmando
a necessidade de se adotar uma posição racional reflexiva sobre a interpretação. PÉREZ LUÑO, Antonio
Enrique. Derechos humanos, estado de derecho y constitucion. 8. ed. Madrid: Tecnos, 2003, p. 263-265.
116
diante dos casos adapta a lei transmitida aos reclamos do presente, tentando reconhecer qual é
o seu significado tendo em conta a sua própria história, o seu presente. Isso não implica
arbitrariedade, pois “compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido
vigente. O juiz procura corresponder à “idéia jurídica” da lei, intermediando-a com o
presente. Claro que ali se trata de uma mediação jurídica.”
236
Afirma também Gadamer que ao juiz cabe a tarefa de interpretação produtiva, pois
consistente em concretizar a lei em cada caso. Essa tarefa de aplicação é uma tarefa prática, o
que não significa arbítrio judicial, visto que o juiz está sujeito à lei como qualquer outro
membro da comunidade. Além disso, a própria idéia de uma ordem judicial, de uma decisão,
não se coaduna com a de arbítrio, mas, sim, com a de uma “ponderação justa do conjunto”,
que será possível somente para quem estiver consciente da situação da concreção e de suas
especificidades. Assim, o autor diz que não basta o simples conhecimento dos artigos dos
códigos, mas de toda a judicatura e de
todos os momentos que a determinam se quisermos julgar juridicamente um caso
determinado. Não obstante, a única pertença à lei que se exige aqui é que a ordem
jurídica seja reconhecida como válida para todos, sem exceção. ... Entre a
hermenêutica jurídica e a dogmática jurídica existe, pois, uma relação essencial, na
qual a hermenêutica detém a primazia. A idéia de uma dogmática jurídica perfeita,
sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença como um simples ato de subsunção,
não tem sustentação.
237
236
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, op. cit., p. 79, 403 e 431. Nesse ponto, é possível afirmar
uma grande afinidade nos pensamentos de Gadamer e Dworkin. Com efeito, a nosso ver as idéias de Gadamer
estão presentes em Dworkin quando este autor afirma e entende a aplicação do Direito e o papel dos juízes
nesta tarefa como interpretativa e criativa. Nessa tarefa, tendo em vista a busca de integridade no Direito, os
juízes escrevem um “romance em cadeia”, pois, diante de um caso concreto, são autores e críticos. Ao mesmo
tempo que levam em conta a tradição das decisões anteriores (precedentes e atos legislativos), introduzem
acréscimos nessa tradição ao decidirem o caso num novo momento. DWORKIN, Ronald. O império do
direito. São Paulo, 2003, p. 63-80 e 275 e s. A aproximação entre Gadamer e Dworkin e o desdobramento
dessa aproximação são apontadas em STRECK, LenioLuiz, Verdade e consenso – Constituição, hermenêutica
e teorias discursivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 186., especialmente, p. 199. Cabe lembrar, ainda
sobre o assunto a posição de Rocha, que, ao analisar a contraposição de Dworkin à tese de Hart sobre o poder
discricionário do juiz nos hard cases, afirma que a postura de Hart é criticada por Dworkin, “que entende que
o direito sempre proporciona uma “boa resposta”, já que o juiz ao julgar escreve a continuidade de uma
história. Neste sentido, Dworkin coloca a célebre metáfora do romance escrito em continuidade, apontando o
problema da “Narração”. A “boa resposta” seria aquela que resolvesse melhor à dupla exigência que se
impõem ao juiz, ou seja, fazer com que a decisão se harmonize o melhor possível com a jurisprudência
anterior e ao mesmo tempo a atualize (justifique) conforme a moral política da comunidade”. O autor salienta
também a base em Rawls (fundamentação neo-contratualista) da posição de Dworkin. ROCHA, Leonel
Severo. et. al. Introdução à teoria do sistema autopoiético do direito. Porto Alegre: 2005, p. 24-25.
237
Idem, ibidem, p. 432-433.
117
A influência de Gadamer no pensamento de Konrad Hesse é muito clara. Hesse
sustenta que interpretar é concretizar. Assim, a interpretação tem caráter criativo, embora
esteja vinculada à norma. Para o autor, a concretização pressupõe o entendimento do conteúdo
da norma, que, por sua vez, está diretamente vinculado à pré-compreensão do intérprete e do
problema a ser solucionado. O intérprete não compreende o conteúdo da norma situado no
abstrato, fora da situação histórica, mas compreende-o em sua situação histórica concreta. É
por uma pré-compreensão, que é condição de possibilidade para que o intérprete olhe a norma
com certas expectativas, que ele projeta um sentido do todo da norma, um anteprojeto que
carece de confirmação e que, por isso, precisa ser revisado e corrigido para se chegar à
unidade de sentido. Cabe, portanto, ao intérprete, não se deixar levar pelas antecipações da
pré-compreensão, mas torná-las conscientes, protegendo-se contra o arbítrio de idéias e a
estreiteza dos hábitos, para, então, dirigir seu olhar “para as coisas mesmas”, sempre tendo em
conta o caso concreto a ser solucionado. O autor afirma que a concretização só se torna
possível diante de um caso concreto e, também, afirma a unidade do processo de interpretação
e de aplicação no Direito. Entende que para isso se faz impostergável uma pré-compreensão
tanto do problema como das normas jurídicas, sendo a teoria, a fundamentação teórica,
condição de possibilidade da compreensão tanto da norma como do problema a ser
solucionado
238
.
Streck, por sua vez, afirma que a hermenêutica jurídica descreve as condições reais do
intérprete, porém não oferta métodos científicos. A compreensão é impossível fora do círculo
hermenêutico. Ora, o intérprete está inserido num meio cultural, numa tradição, sem a qual
não é possível pensar que se tenha acesso a um texto determinado. Portanto, é imprescindível
situar o intérprete no ambiente cultural junto com o texto, o que não significa que ele esteja
simplesmente amarrado por suas pré-compreensões, pois em cada interpretação se faz uma
nova leitura dos textos jurídicos, uma nova produção de sentido; a cada caso se dá uma nova
aplicação. O intérprete, portanto, está numa relação dialética e tensa entre familiaridade e
estranheza com a tradição
239
. Adiante, continua afirmando que o intérprete só compreende o
conteúdo do texto a partir de suas pré-compreensões, de um projeto prévio que terá de ser
ajustado, pois não se trata simplesmente de seguir essas pré-compreensões, mas de explicitá-
las, protegendo-se do arbítrio e indo “às coisas mesmas”.
240
238
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís
Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1998, p. 61.
239
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise., op. cit., p. 210.
240
Idem, ibidem, p. 211.
118
Para a hermenêutica filosófica a compreensão, a interpretação e a aplicação não são
momentos isolados, mas fazem parte de uma totalidade, ganhando relevo o sentido de
applicatio, que, segundo Gadamer, é elemento constitutivo de todo compreender. Com efeito,
Gadamer evidencia que a aplicação não é a submissão de uma situação concreta a regras já
conhecidas em si e totalmente independentes do caso. O que a hermenêutica filosófica faz é
refletir sobre os condicionamentos que sempre atuam sobre o compreender, visto que são
constitutivos da própria compreensão prévia do intérprete, não significando, com isso,
permitir o arbítrio do intérprete, pois este deve colocar em jogo seus próprios preconceitos.
Dessa forma, o intérprete tem papel produtivo inegável na compreensão, mas, como já dito,
isso não legitima subjetivismos e arbitrariedades, visto que “a coisa que está em questão a
cada vez – o texto que se quer compreender – é o único critério dotado de validade”. Logo
adiante, conclui o autor que o “intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio “horizonte”
e todo o compreender representa uma fusão desses horizontes”.
241
Aliás, Barroso, com razão, afirma que o trabalho de interpretação dos fenômenos
políticos e jurídicos não se apresenta como exercício abstrato na busca de verdades que
surgiriam como universais e atemporais, pois toda a interpretação é produto de uma época, da
história, envolvendo não só os fatos, mas o sistema jurídico, as circunstâncias do intérprete e
o imaginário de cada um. Assim, afirma: “A identificação do cenário, dos atores, das forças
materiais atuantes e da posição do sujeito da interpretação constitui o que se denomina pré-
compreensão”.
242
Essa é a lição de Gadamer colhida por Hesse:
O intérprete não pode compreender o conteúdo da norma de um ponto de vista
situado fora da existência histórica, por se assim dizer, arquimédico, senão somente
na situação histórica concreta, na qual ele se encontra, cuja maturidade enformou
seus conteúdos de pensamento e determina seus saber e seu (pré)-juízo. Ele entende
o conteúdo da norma de uma (pré)-compreensão, que primeiramente lhe torna
possível olhar a norma com certas esperanças, projetar-se um sentido do todo e
chegar a um anteprojeto que, então, em penetração mais profunda, carece da
confirmação, correção e revisão até que, como resultado de aproximação
permanente dos projetos revisados, cada vez, ao “objeto”, determine-se
univocamente a unidade do sentido.
243
241
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II, op. cit., p. 131-132.
242
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro.
Disponível em Jus Navigandi – www.jus.com.br, p. 1 e 18.
243
HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha, op. cit., p. 61-62.
119
Portanto, o intérprete não está fora do mundo, mas no mundo, e cabe ao intérprete
esclarecer seus pré-juízos para que não se guie por “chutes” (Heidegger).
Além disso, Streck nos chama a atenção para outra questão fundamental, ou seja, a de
que texto e norma não são a mesma coisa. Isso, todavia, não significa dizer que exista uma
separação metafísica entre ambos; o que existe é uma diferença (diferença ontológica), pois
texto e norma não têm existência autônoma: o texto só é na norma e a norma só é no seu texto
(o ser é o ser do ente e o ente só é no seu ser). Então, continua o autor:
não há separação entre texto e norma; há, sim, uma diferença entre eles (que é
ontológica), questão que pode ser retirada da assertiva heideggeriana de que o ser é
sempre o ser de um ente, e o ente só é no seu ser. Não há ser sem ente! No plano da
hermenêutica jurídica – e daquilo que aqui denomino de Nova Crítica do Direito -, é
possível afirmar que a norma (que é produto da atribuição de sentido a um texto) não
é uma capa de sentido a ser acoplada a um texto “desnudo”. Ela é, sim, a construção
hermenêutica do sentido do texto. Esse sentido manifesta-se na síntese hermenêutica
da aplicattio.
244
A interpretação, portanto, é produção de sentido que se dá na totalidade do processo de
compreensão, interpretação e aplicação do Direito, não como momentos separados, como na
hermenêutica “metódica”, mas como totalidade coincidente. O processo interpretativo está
marcado pela historicidade, aspecto fundamental para que não acabemos por cair, como o faz
a dogmática jurídica tradicional, em uma postura metafísica na defesa de conceitos e sentidos
aistóricos, absolutos, congelados.
A consciência da historicidade de toda a compreensão, a consciência de que estamos
mergulhados no rio da história, bem como de que tanto o intérprete como todo o processo
244
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise, cit., 5. ed., p. 310-311. Em enfoque semelhante no
tocante à diferença entre texto e norma ver GRAU. Eros Roberto. A ordem econômica na constituição de
1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, nota 1, p. 183; do mesmo autor, Ensaio e discurso sobre a
interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 71. Müller faz a distinção entre
texto da norma e norma, e entre programa da norma, que é a ordem jurídica tradicionalmente entendida, e o
âmbito da norma, que é o recorte da realidade social que o programa da norma escolheu como seu âmbito de
regulamentação. Para o autor, a norma somente se apresenta pela interpretação de todo este material
conjuntamente. MüLLER, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. Apresentação de Paulo
Bonavides. 2. ed. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 53. Por fim, Canotilho,
nesta linha, diferencia texto (enunciado, disposição) da norma (resultado da interpretação), pois esta é o
sentido, é o texto já interpretado juntamente com seu contexto. O autor, explicitamente, segue neste ponto a
formulação de Muller, consistente na distinção entre o programa da norma e o âmbito da norma, sendo a
interpretação o processo que leva ao sentido pela consideração conjunta desses dois campos através da
concretização (processo de densificação das regras e prinpios jurídicos). CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito
constitucional, op. cit., p. 1195.
120
interpretativo sofrem os efeitos da história efeitual, é fundamental para que possamos abrir
outros horizontes de sentido para o Direito.
Cabe-nos, entretanto, afirmar que, ao sustentarmos que na interpretação jurídica existe
produção de sentido, isso não significa que qualquer resultado, que qualquer atribuição de
sentido (norma) a um texto jurídico seja viável ou adequada, afinal de contas o que existe
entre texto e norma é uma diferença, não uma separação. Essa questão é importante para
desfazer um mito, ou seja, de que a hermenêutica filosófica permitiria um niilismo
interpretativo.
Ao tratar da aplicação do Direito, Gadamer desfaz a compreensão incorreta que afirma
que a hermenêutica levaria à impossibilidade de respostas adequadas:
Independentemente de toda codificação, a tarefa de busca do direito e do juízo
correto implica uma inevitável tensão, já analisada por Aristóteles: a tensão entre a
universalidade da legislação vigente – codificada ou não – e a particularidade do
caso concreto. É evidente que o caso concreto numa questão jurídica não é um
enunciado teórico, mas um “resolver coisas com palavras”. A aplicação da lei
pressupõe sempre uma interpretação correta. Cabe afirmar, nesse sentido, que toda
aplicação de uma lei ultrapassa a mera compreensão de seu sentido jurídico e cria
uma nova realidade. ... Creio que a interpretação da lei num caso particular implica,
de modo análogo, um ato interpretativo. Mas isso significa que toda aplicação de
disposições legais que aparece como correta concretiza e aprimora o sentido de uma
lei.
245
Por seu turno, Streck preocupa-se com essa questão e afirma que, de forma alguma, a
hermenêutica filosófica possibilita qualquer resposta. Esclarece que é em virtude da diferença
(ontológica) entre texto e norma, não de uma separação entre texto e norma, que
a afirmação “a norma é (sempre) produto da interpretação do texto”, ou que o
“intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto”, nem de longe pode
significar a possibilidade deste – o intérprete – poder “dizer qualquer coisa sobre
qualquer coisa”, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto e
norma estivessem separados (e, portanto, tivessem existência autônoma).
246
245
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método II, op. cit., p. 359-360.
246
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora,
2005, p. 312-313. Na presente dissertação foram trabalhadas duas edições da obra ora referida para marcar a
evolução do pensamento do autor sobre algumas questões. Ver, também, a posição de Hesse, que, fundado em
Gadamer, afirma que a “Interpretação está vinculada a algo estabelecido”, sendo esse “algo estabelecido” a
Constituição e o ordenamento jurídico. HESSE, Konrad, Elementos de direito ...., op. cit., p. 69. MÜLLER,
Friedrich, Métodos de trabalho, op. cit., p. 75.
121
Streck esclarece bem o limite que o texto normativo impõe à produção de sentido que
ocorre no processo interpretativo ao afirmar que o processo de atribuição de sentido “encontra
limites na textura da Constituição. Há um significado de base nos textos que se mantém, e
esse significado de base não permite interpretação que avance para além do explicitado”.
247
Ora, em especial no campo jurídico, lidamos com limites, temos uma Constituição e
leis que devem, como referido por Gadamer, ser válidas para todos. Portanto, não cabe ao
intérprete simplesmente desconsiderar tais limites, o que também implica afirmar que existe,
como afirma Streck, a resposta correta, adequada para o caso concreto.
248
É preciso sustentar, ainda, com Streck, outra diferenciação, qual seja a de que vigência
e validade jurídicas não são a mesma coisa. Cabe prevalência à validade frente à vigência,
visto que um texto normativo vigente só terá validade se conforme com a Constituição em seu
sentido material (princípios fundamentais e direitos humanos fundamentais) e formal.
Portanto, diante de um texto normativo vigente e não válido, caberá ao juiz deixar de aplicá-lo
por inconstitucional, no caso de controle difuso de constitucionalidade, ou declará-lo
inconstitucional, no caso de controle concentrado de constitucionalidade.
249
Diante desses esclarecimentos, portanto, afirmar que a hermenêutica possibilitaria um
relativismo é uma questão que só pode ser colocada por quem acredita em fundamentos
últimos, em verdades atemporais e, portanto, por quem despreza e desconsidera a finitude e a
historicidade humana, ou seja, por um pensamento metafísico que quer, justamente, superar a
temporalidade. Grondin é enfático ao dizer que um relativismo, segundo o qual seria possível
dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, nunca foi defendido seriamente por ninguém, muito
menos pela hermenêutica, a qual afirma que nossas experiências com a verdade não podem
ser dissociadas da nossa situação, daquela conversação interior que fazemos conosco mesmos
e com os outros. Portanto, não se aceita que tudo seja “igualmente válido e de igual valor”, o
que afasta a questão do arbítrio. Ora, verdades absolutas nunca foram demonstradas e, ainda,
247
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito, op. cit., p.
597.
248
STRECK, Lenio Luiz, Verdade e consenso, op. cit., p. 213. Nessa mesma obra e página o autor afirma: “Na
medida em que o caso concreto é irrepetível, a resposta é, simplesmente, uma (correta ou não) para aquele
caso. A única resposta acarretaria uma totalidade, em que aquilo que sempre fica de fora de nossa
compreensão seria eliminado. O que sobra, o não dito, o ainda-não-compreendido, é o que pode gerar, na
próxima resposta a um caso idêntico, uma resposta diferente da anterior. Portanto, não será a única resposta;
será, sim, “a” resposta. A única resposta correta é, pois, um paradoxo: trata-se de uma impossibilidade
hermenêutica e, ao mesmo tempo, uma redundância, pois a única resposta acarretaria seqüestro da diferença e
do tempo (não esqueçamos que o tempo é a força do ser na hermenêutica). E é assim porque é conteudística,
exsurgindo do mundo prático. Ou seja, a resposta correta só pode ocorrer levando em conta a conteudística.”
249
Idem, ibidem, p. 548.Em sentido semelhante, em outra matriz, ver FERRAJOLI, Luigi, Derechos y garantías
..., op. cit., p. 20-21.
122
a falta de verdade absoluta não significa simplesmente falta de qualquer verdade, pois nós
levantamos constantemente pretensões de verdade por algo significativo que está em
consonância com as coisas tais quais as experimentamos e, assim, movimentamos argumentos
e provas.
250
Enfatiza Grondin que a própria idéia de um fundamento último é uma fuga do homem
de sua temporalidade, o que significa o esquecimento da temporalidade humana, da sua
finitude. Assim, com Heidegger, afirma que é justamente na estrutura de nossos pré-
conceitos, vistos no sentido positivo atribuído ao círculo hermenêutico, que podemos buscar
nossas possibilidades de compreensão a partir de nossa situação existencial.
251
Aliás, é por isso que Streck salienta que o fundamento tem de ser “sem fundo”, pois
não é infinito nem objetivo. A hermenêutica de caráter heideggeriano e gadameriano introduz
um novo conceito de fundamentação, como “fundamentação de caráter prévio, onde sempre já
existe um “compreendermos a nós mesmos”, que é uma espécie de antecipação prévia de
sentido que se explicita na compreensão do ser.”
252
Aduz o autor que a própria noção de
Constituição é um paradoxo, porque funda sem ser fundamento último (inconcussum), não se
podendo da Constituição deduzir normas, por ser ela um existencial
253
.
A hermenêutica deixa de ser metódica e passa a ser modo de deixar os fenômenos do
Direito, da Constituição, da ordem jurídica como um todo vir à presença; assim, o que cabe é
desobjetificar esses entes e fazer a pergunta originária, no caso da Constituição, em especial, a
pergunta pelo sentido da Constituição e do projeto constitucionalizante.
254
A fragilidade dos denominados “métodos de interpretação do direito” é flagrante,
como conclui Streck, sendo ainda pior o fato de que tais métodos ou técnicas acabem por
desresponsabilizar os intérpretes das injustiças levadas a efeito pelas suas decisões. O autor
afirma que existem vários elementos (gramatical, teleológico, lógico, sistemático), que
concorrem conjuntamente para a interpretação, os quais não podem ser encarados como
250
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 230-232. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (Jurídica): comprendemos porque
interpretamos ou interpretamos porque comprendemos? Uma resposta a partir da ontological turn, op. cit., p.
237.
251
GRONDIN, Jean, op. cit., p. 180.
252
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica (Jurídica): comprendemos porque interpretamos ou interpretamos
porque comprendemos? Uma resposta a partir da Ontological Turn, op. cit., p. 232-233.
253
Idem, ibidem, p. 234.
254
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 5. ed. op. cit., p. 319.
123
métodos ou técnicas. Ora, a compreensão não depende de métodos, pois não é modo de
conhecer, mas modo de ser.
255
É necessário, assim, dar-nos conta do papel da Constituição, do sentido de uma
Constituição de um Estado Democrático de Direito que é fundado na dignidade da pessoa
humana e nos direitos humanos fundamentais. Dessa forma, a hermenêutica filosófica, com
seu apelo para a consciência histórica, para a historicidade e temporalidade do sentido, para o
caráter constitutivo da linguagem, se constitui para o Direito num pensamento poderoso,
porque abre horizontes muitas vezes velados.
Ora, num contexto histórico de profunda exclusão e marginalização, onde, em especial
para os efeitos da presente dissertação, o trabalho humano e as pessoas que o prestam por
conta alheia vivem momentos de profunda negação de seus direitos humanos fundamentais,
em especial em sociedades desiguais como a brasileira, uma nova postura perante a incidência
desses direitos nas relações sociais se faz premente. Como afirma Hernández-Largo, a
hermenêutica
es el marco proprio de los planteamientos acerca de la significatividad de las
conclusiones científicas, de su relevancia y de su valoración. La hermenéutica
invalida la pretensión de una ciencia desprovista de valores y de racionalidad
subjetiva. La ciencia jurídica, en consecuencia, no puede ser descrita en su
integridad sin referencia a los valores del derecho, a las finalidades humanas de las
normas y a la situación histórica y concreta desde las que se plantean los
interrogantes.
256
Portanto, é preciso repensar, a partir de todo o contexto em que vivemos, qual o
sentido dos direitos humanos fundamentais, especificamente para objetivo da presente
dissertação, dos chamados “direitos humanos fundamentais de primeira dimensão”, no sentido
de perguntarmos se esses direitos são eficazes e vinculam, em regra, apenas o Estado, ou se
vinculam também pessoas e entidades privadas nas relações de trabalho. É nesse contexto,
portanto, num país periférico como o Brasil, onde sequer conseguimos alcançar a
implementação dos direitos liberais, quanto mais dos sociais e dos trans-individuais, é que se
255
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise. 3. ed. p. 297-299. Hesse afirma: “A vinculação da
interpretação à norma a ser concretizada, à (pré)-compreensão do intérprete e ao problema concreto a ser
resolvido, cada vez, significa, negativamente, que não pode haver método de interpretação autônomo,
separado desses fatores, positivamente, que o procedimento de concretização deve ser determinado pelo objeto
da interpretação, pela Constituição e pelo problema respectivo.” HESSE, Konrad, Elementos de direito ..., op.
cit., p. 63.
256
HERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna, op. cit., p. 103.
124
instaura o desafio maior dos juristas, ou seja, fazer com que esses direitos, tão fartamente
reconhecidos na Constituição Federal de 1988, aconteçam.
Para isso, ganha papel fundamental uma configuração substancial do Direito, na qual
os princípios constitucionais têm um plus axiológico/finalístico e os direitos humanos
fundamentais têm papel primordial, bem como o Poder Judiciário, pela jurisdição
constitucional, devendo assumir uma postura ativa no asseguramento de todas as dimensões
de direitos fundamentais. No momento pelo qual passa o Direito, na crise em que se encontra
o senso comum teórico dos juristas, há a necessidade de os operadores jurídicos fazerem as
perguntas adequadas e buscarem respostas adequadas para possibilitar um convívio social que
se apresente como minimamente aceitável diante dos desafios históricos que se apresentam.
A nosso ver, nesse caminho a ser percorrido, o princípio da proporcionalidade e a
ponderação apresentam-se como existenciais inelimináveis numa nova concepção de Direito,
de Estado e de sociedade realmente democráticos e pluralistas.
3.6 A PROPORCIONALIDADE E A PONDERAÇÃO NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE
DIREITO
257
Diante da tarefa de levar a cabo uma hermenêutica adequada à concretização do
Estado Democrático de Direito, deparamos-nos com a necessidade de uma visão mais
257
Antes de adentrarmos no tema, precisamos fazer algumas precisões. Parcela da doutrina trata como
intercambiáveis os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Nesse sentido, por exemplo, está o
posicionamento de Maria Rosynete Oliveira Lima, que afirma: “Razoabilidade e proporcionalidade podem até
ser magnitudes diversas, entretanto, cremos que o princípio da proporcionalidade carrega em si a noção de
razoabilidade, em uma relação inextrincável, e que não pode ser dissolvida, justificando, assim, a
intercambialidade dos termos proporcionalidade e razoabilidade no ordenamento brasileiro”. LIMA, Maria
Rosynete Oliveira. Devido processo legal. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 287. Por outro
lado, outros autores entendem que esses princípios merecem tratamento diferenciado. Nesse último sentido,
Guerra Filho sustenta a diferença entre referidos princípios. Afirma que a proporcionalidade tem em mira que
o direito seja interpretado/aplicado atendendo à racionalidade na determinação da melhor interpretação
possível, com a promoção simultânea e equilibrada dos vários direitos fundamentais e valores do ordenamento
jurídico, ao passo que a razoabilidade tem em mira evitar que absurdos inaceitáveis sejam cometidos na
elaboração do Direito. GUERRA FILHO, Willis Santiago. Princípio da proporcionalidade e teoria do Direito.
Direito constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago
Guerra Filho Organizadores. 1. ed. – 2
a
. Tiragem. São Paulo: 2003, p. 283. Também trabalhando no sentido da
não identificação dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade está a posição de ÁVILA, Humberto.
Teoria dos princípios – Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 101-
103. Para o presente trabalho, os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade são entendidos como
intimamente vinculados, servindo como parâmetros impostergáveis na solução dos conflitos por meio do juízo
de ponderação, no qual atuam de forma imbricada.
125
apropriada dos significados que o chamado “princípio da proporcionalidade” e a “ponderação
de interesses, direitos e bens” apresentam historicamente nesse ambiente. Assim,
sustentaremos que esses existenciais são algumas das estruturas do ser do Estado
Democrático de Direito.
No regime político-jurídico-constitucional de um Estado Democrático de Direito nos
moldes fundados pela Constituição Federal de 1988, a convivência diante da pluralidade torna
imprescindível a necessidade de uma concepção harmonizadora dos valores e bens jurídicos
tutelados. Dessa forma, o princípio proporcionalidade e a ponderação são mais do que
mecanismos ou técnicas para a concretização dos textos/normas jurídicas, configurando-se
como existenciais ao próprio “modo de ser” do intérprete e do Estado Democrático de Direito,
que, por ser pluralista e substancial, apresenta um grau não desprezível de conflituosidade na
solução dos casos concretos quando estão em jogo os direitos humanos fundamentais, os
princípios fundamentais e outros bens constitucionalmente tutelados.
258
O princípio da proporcionalidade apresenta-se como parâmetro, como um existencial
para a solução dos casos conflituosos em nível de valores, princípios e de direitos humanos
fundamentais. Assim, a compreensão dos papéis desempenhados pelo princípio da
proporcionalidade, que está intimamente ligado à ponderação interesses, bens e direitos
259
, a
partir de pré-compreensões adequadas ao Estado Democrático de Direito, é essencial para
uma nova postura perante o Direito.
Como já assinalado, numa sociedade altamente complexa e plural, o conflito entre
princípios, entre direitos humanos fundamentais, enfim, entre interesses, bens ou valores
258
Não é à toa que Torres, na esteira de Walter Leisner, fala em “Estado de Ponderação” em virtude de que o
atual Estado de Direito busca justiça através da proporcionalidade. TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação
dos direitos humanos e os princípios da ponderação e da razoabilidade. “In” Legitimação dos direitos
humanos. Organizador: Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar, 2002, p. 525-526.
259
Muitas vezes a doutrina diferencia o princípio da proporcionalidade e a ponderação. Nesta pesquisa, todavia,
são considerados como intimamente relacionados. Canotilho, por exemplo, afirma que a idéia presente na
ponderação está também contida na observância do princípio da proporcionalidade em sentido estrito,
lembrando que existem autores que sublinham que a ponderação cumpre as mesmas funções que a
proporcionalidade. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituiçao, op. cit. p. 1241.
Alexy afirma a identidade entre a máxima parcial da proporcionalidade em sentido estrito, que abaixo será
explicatada, e a ponderação de interesses propriamente dita. ALEXY, Robert. Teoría de los derechos
fundamentales, op. cit., p. 112. Sarmento afirma que o princípio da proporcionalidade é essencial para a
ponderação de interesses, que na verdade pressupõem-se reciprocamente, visto que é o princípio da
proporcionalidade que permite o sopesamento dos interesses em conflito. SARMENTO, Daniel. A ponderação
de interesses na Constituição Federal. 1ª. edição. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2002, p. 96. Por fim, Ana Maria
D’Ávila Lopes afirma a estreita vinculação entre o princípio da proporcionalidade e a ponderação de
interesses, embora a autora entenda que não se identifiquem, pois que a proporcionalidade está ligada à
averiguação da relação meio e fim de uma intervenção, ao passo que a ponderação está ligada à questão da
determinação de qual bem prevalecerá. LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao
poder de legislar. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2001, p. 194.
126
tutelados pelo ordenamento jurídico é freqüente, impondo uma postura mais plástica perante a
realidade na avaliação dos casos concretos e na verificação de qual dos interesses, bens,
princípios, direitos, valores, deve prevalecer.
Ao longo do tempo a doutrina e a jurisprudência construíram, tendo por diretriz o
princípio da proporcionalidade e da ponderação, critérios de solução para esses conflitos.
Aqui cabe, todavia, uma advertência. Os critérios e soluções indicadas não são assumidos, na
presente dissertação, como meras técnicas de solução, mas como indicadores que informam o
caminho, mas não decifram e delimitam, a priori, os sentidos possíveis de uma vez por todas.
Segundo Sanchís, o conflito entre direitos fundamentais e o conflito entre princípios
são solucionados da mesma maneira, ou seja, por meio da ponderação, embora se fale também
de razoabilidade, proporcionalidade e interdição de arbitrariedade. Nos casos de ponderação
sempre há razões em conflito, uma apontando uma solução e as adversas apontando soluções
diversas. Assim, na solução dos casos de conflito, a ponderação é o caminho, embora não
infalível, de solução dos casos, pelo estabelecimento de uma preferência condicionada, de
uma “hierarquia móvel” ou “axiológica” entre os bens, interesses, direitos ou princípios em
confronto. Dessa forma, a ponderação conduz a uma exigência de proporcionalidade no
estabelecimento da prevalência relativa de um dos interesses em jogo no caso concreto,
podendo essa prevalência ser alterada em outros casos, observadas as suas circunstâncias.
260
Em linha semelhante está a posição de Canotilho, o qual lembra que as idéias de
ponderação e balanceamento emanam da necessidade de correção na aplicação do Direito em
casos de tensão entre bens juridicamente protegidos. Afirma, ainda, que existem várias razões
que justificam a aplicação desses critérios, como: a) a inexistência de uma ordenação
hierárquica abstrata entre os bens constitucionais; b) a formatação principial das normas
constitucionais, implicando juízos de pesagem e ponderação no caso de conflitos entre
260
SANCHÍS, Luis Prietro, op. cit., p. 188.. No mesmo sentido ver Canotilho, J. J. Gomes. op. cit., p. 1258.
Dworkin afirma que os princípios têm uma dimensão de peso ou importância. Assim, em caso de resolução de
conflitos, deve-se observar a força relativa de cada um dos princípios em jogo mediante a ponderação.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 42. Ver, ainda, Grau,
que afirma: “Em cada caso, pois, em cada situação, a dimensão do peso ou importância dos princípios há de
ser ponderada. Isso explica o quanto acima afirmei: a circunstância de em determinado caso a adoção de um
princípio, pelo intérprete, implicar o afastamento do outro princípio, que com aquele está em testilhas, não
importa que seja este eliminado do sistema, até porque em outro caso, e mesmo diante do mesmo princípio,
este poderá vir a prevalecer.” GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação do direito. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 175. Cabe lembrar aqui, o que não poderá ser desenvolvido, mas que serve como
alerta, que não só no choque entre princípios está presente a dimensão ponderativa, mas também ela se
apresenta no choque entre regras, que escondem, por detrás, choques entre princípios. Além disso, cabe
afirmar que no conflito entre regras, embora a ponderação seja institucionalmente mais limitada, está presente.
Sobre isso, ver a posição de FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do Direito. 3
a
. edição. São Paulo:
Malheiros Editores, 2002 e de ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios ......., op. cit., 2003.
127
princípios; c) a fratura da unidade dos valores da comunidade, o que obriga a várias leituras
dos bens em conflito. Ponderar, portanto, para o autor, significa “sopesar a fim de se decidir
qual dos princípios, num caso concreto, tem maior peso ou valor”, o que implica uma
hierarquia móvel entre os princípios em conflito.
261
Na doutrina nacional, Zavascki
262
, por exemplo, trabalhando sobre o conflito entre
direitos fundamentais, afirma que a chamada “concordância prática” entre os direitos que
eventualmente estejam tencionados entre si é obtida mediante regras de solução estabelecidas
ou por via da legislação ordinária (solução legislativa dos conflitos), ou pela via judicial
direta. A primeira (solução pela "via legislativa") é possível de se dar sempre que forem
previsíveis os fenômenos de tensão e de conflito, sempre que for possível intuí-los, à vista do
que comumente ocorre no mundo dos fatos. Já a construção da regra pela "via judicial" direta
tornar-se-á necessária quando inexistir regra legislada de solução, ou quando essa (construída
que foi à base de mera intuição de possíveis conflitos) se mostrar insuficiente ou inadequada à
solução do conflito concretizado, que não raro se apresenta com características diferentes das
que foram imaginadas pelo legislador. Em qualquer caso, considerada a inexistência de
hierarquia rígida no plano normativo entre os direitos fundamentais previstos na Constituição,
a solução do conflito há de ser estabelecida mediante a devida "ponderação dos bens e
valores", concretamente colidentes, na busca da identificação de uma relação específica de
prevalência de um deles.
263
261
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1236-1241.
262
ZAVASCKI, Teori Albino. Antecipação da tutela e colisão de direitos fundamentais. Revista da AJURIS, no.
64, julho/1995, p. 395 e seguintes. “In” Doutrina Jurídica Brasileira. CD-ROM. Org. Sérgio Augustin.
Plenum: Caxias do Sul, 2001.
263
Na verdade, a ponderação se faz sempre presente, pois a “lei”, o texto, só ganha “sentido” diante do caso
concreto e de suas circunstâncias, sempre estando aberta a possibilidade de consideração de eventual conflito
entre os interesses em jogo. Aliás, Sanchís é claro em afirmar que a ponderação do legislador não afasta
definitivamente a ponderação do juiz, embora deva ser levada em conta por este a ponderação feita por aquele.
SANCHÍS, Luis Prietro, op. cit., p. 198.
128
É justamente na chamada “ponderação de interesses, bens e direitos” que o princípio
da proporcionalidade e a preservação do núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais
ou princípios em choque deverão ser observados como pautas para uma solução que se
apresente como dando guarida à conflituosa unidade do ordenamento jurídico e à
razoabilidade e proporcionalidade da decisão tomada.
264
Problemática semelhante à que ocorre no caso de conflito ou de tensão entre princípios
e direitos humanos fundamentais, os chamados “conflitos normativos” também se apresentam
nos casos de restrição aos princípios e direitos humanos fundamentais. Assim, como os
princípios, também os direitos humanos fundamentais não estão imunes a restrições. Existem
restrições expressamente previstas na própria Constituição e outras que são consideradas
como imanentes em virtude da previsão de direitos humanos fundamentais que se limitam
reciprocamente, ou no caso de limitações de tais direitos feitas com base em outros valores
constitucionais. Nas restrições aos direitos humanos fundamentais, tal como ocorre nos casos
de colisões, o princípio da proporcionalidade e a ponderação têm papel operante em sua
solução.
Nesse sentido, Luciane Amaral Corrêa afirma que, para se aferir a constitucionalidade
de uma restrição a um direito fundamental, é íntima a conexão entre o chamado “núcleo
essencial desses direitos” e o princípio da proporcionalidade, proibindo o excesso na
ponderação dos interesses em jogo.
265
Por sua vez, Steinmetz afirma, no tocante às restrições legislativas aos direitos
fundamentais, que o legislador só pode restringir esses direitos caso haja previsão
constitucional autorizando a restrição ou no caso de a restrição estar justificada de forma
imanente na própria Constituição. Esta última questão está diretamente ligada aos princípios
da unidade e harmonia na preservação de todos os bens constitucionais. Em qualquer dos
264
As idéias de razoabilidade, proporcionalidade, ponderação de interesses e preservação do núcleo essencial dos
direitos fundamentais, ficam bem claras no art. 52, primeira parte, da Carta dos Direitos Fundamentais da
União Européia, que dispõe: “Artículo 52. Alcance de los derechos garantizados> Cualquier limitación del
ejercicio de los derechos y libertades reconocidos por la presente Carta deberá ser establecida por la ley y
respetar el contenido esencial de dichos derechos y libertades. Sólo se podrán introducir limitaciones,
respetando el principio de proporcionalidad, cuando sean necesarias y respondan efectivamente a objetivos de
interés general reconocidos por la Unión o a la necesidad de protección de los derechos y libertades de los
demás.”
265
CORRÊA, Luciane Amaral. O princípio da proporcionalidade e a quebra do sigilo bancário e do sigilo fiscal
nos processos de execução. Ingo Wolfgang Sarlet (Organizador), A constituição concretizada – Construindo
pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 202 e nota 70 e p. 203. Ver
também Alexy, que após analisar as várias configurações em que se apresenta o postulado do núcleo essencial
dos direitos fundamentais nas decisões do Tribunal Constitucional Alemão, acaba por concluir pela sua ligação
íntima com o princípio da proporcionalidade. ALEXY, Robert, op. cit., p. 286.
129
casos, seja autorizada explícita ou implicitamente, a restrição encontra-se submetida ao
controle formal (competência, procedimento) e material (proporcionalidade e preservação do
núcleo essencial) de constitucionalidade.
266
Assim, as restrições aos direitos humanos
fundamentais, advindas seja de emenda constitucional, seja de lei infraconstitucional ou de
atos de privados
267
, não podem atuar sem consideração ao princípio da proporcionalidade e do
núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais na ponderação dos interesses em jogo,
sob pena de inconstitucionalidade.
268
Constatamos, portanto, a importância e a imprescindibilidade de uma compreensão
mais arejada sobre o Direito, que seja afinada com a realidade e historicidade da existência
humana, na qual a ponderação e o princípio da proporcionalidade atuem na conformação
jurídica dos casos concretos com vistas à concretização dos princípios constitucionais e dos
direitos humanos fundamentais. Conforme Bonavides, o princípio da proporcionalidade
consagra a idéia de que se deve observar a existência de relação de adequação entre os fins
que se quer alcançar e os meios que são empregados para tal desiderato, confrontando o fim e
o fundamento de uma intervenção com os efeitos produzidos por esta, tendo em vista o
controle de excesso.
269
No nosso Direito o princípio da proporcionalidade tem o caráter de princípio
constitucional, sendo reconduzido por alguns autores à cláusula do devido processo legal
substancial, e entendido, por outros, como ínsito na configuração do próprio Estado de
266
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 37-38.
267
Essa questão está diretamente ligada ao problema da chamada “eficácia horizontal” ou “eficácia nas relações
privadas” dos direitos humanos fundamentais, tema central no terceiro capítulo. Cabe, todavia, afirmar que
essa é uma questão para a qual temos um exemplo que demonstra a fecundidade de um pensamento marcado
pela historicidade e sabedor de sua finitude, que não se atrela a formalismos aistóricos. Tradicionalmente, o
princípio da proporcionalidade e a ponderação são usados para aquilatar os atos restritivos operados pelos
poderes públicos perante os princípios e direitos humanos fundamentais. Ocorre que não só atos dos poderes
públicos restringem direitos, mas também atos de particulares. Assim, a proporcionalidade e a ponderação
podem ser caminhos adequados para se aquilatar a adequação constitucional ou não desses atos. Sobre tal
questão cabe citar UBILLOS, Juan María Bilbao. ?En qué medida vinculan a los particulares los derechos
fundamentales?. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Ingo Wolfgang Sarlet – organizador.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 299.
268
Canotilho afirma que o controle feito através do princípio da proporcionalidade (previsto no art. 5º. do
Tratado da União Européia) trata-se de um controle difundido na Europa através do Tribunal de Justiça das
Comunidades. Assim, o: “princípio da proporcionalidade é também utilizado na jurisprudência do Tribunal
Europeu dos Direitos do Homem na concretização/aplicação de algumas normas da Convenção Européia dos
Direitos do Homem (art. 8º. e 11º.). As medidas restritivas dos direitos fundamentais devem ser proporcionais
ao fim visado e jamais atingirem a substância do direito.” CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit, p. 269.
269
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 357.
Ver, ainda, nesse sentido, STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit., p. 244-245.
130
Direito
270
. Aliás, Streck afirma, com o que concordamos, que o princípio da
proporcionalidade, assim como ocorre com o princípio da interpretação conforme a
Constituição, é um princípio imanente ao novo modelo de direito instaurado com o Estado
Democrático de Direito.
271
Como dito acima, o princípio da proporcionalidade e a ponderação fazem-se
impostergáveis na solução tanto dos casos de conflitos como nas restrições de princípios e de
direitos humanos fundamentais, funcionando como critérios de avaliação da
constitucionalidade dos atos estatais, sejam administrativos, legislativos ou judiciais, e
atuando, ainda, frente aos atos dos particulares. Ao longo do tempo, a doutrina e a
jurisprudência vêm traçando determinados indicadores na aplicação do princípio da
proporcionalidade, verdadeiros indícios de como se pode compreender/aplicar esse princípio
imprescindível para a ponderação na solução dos conflitos surgidos da tensão de princípios e
direitos humanos fundamentais.
Sanchís lembra que o Tribunal Constitucional Espanhol tem estabelecido
determinados critérios ou passos a serem observados no juízo de ponderação, os quais são: a)
a adoção de uma determinada medida ou restrição que interfira num direito fundamental ou
princípio constitucional deve apresentar um fim constitucionalmente legítimo; b) a medida ou
restrição adotada deve ser apta, adequada ao alcance da finalidade buscada; c) deve ser
demonstrado que não existe medida ou restrição menos gravosa ou restritiva ao direito ou
princípio afetado, ou seja, a medida ou restrição deve ser necessária; d) por fim, a ponderação
270
Maria Rosynete Oliveira Lima entende que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade estão
vinculados com a cláusula do devido processo legal substancial. Afirma: “O devido processo legal projeta-se
no momento da criação e da interpretação-aplicação do texto normativo, não para dar solução ao conflito de
interesses em litígio, mas para servir de pauta orientadora e de conferência para o sujeito, tanto sob a dimensão
material quanto processual. Significa, portanto, não só um guia de razoabilidade e proporcionalidade, mas um
dever de obediência ao procedimento que melhor atenda aos interesses da justiça. Como guia de razoabilidade
e proporcionalidade, o princípio do devido processo legal atua por ocasião da tarefa de concordância prática
entre os bens protegidos constitucionalmente, a fim de que eles obtenham uma máxima efetividade.” LIMA,
Maria Rosynete Oliveira, op. cit., p. 227 e 228. Já Barroso entende que o princípio da razoabilidade ou
proporcionalidade (considerados intercambiáveis pelo autor) pode ser reconduzido como inerente ao Estado de
Direito ou à cláusula do devido processo legal. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da
Constituição. 3. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999, p. 228. Bonavides, por seu turno, afirma que o princípio
da proporcionalidade é um “axioma” constitucional, estando positivado e fluindo do espírito do § 2
o
. do art. 5
o
.
da CF de 1988, na consagração dos direitos e garantias que decorrem da essência do regime, do Estado de
Direito e dos princípios consagrados “e que fazem inviolável a unidade da Constituição”. BONAVIDES,
Paulo, op. cit., p. 396-397. Na ADIMC – 1407/DF, Relator Celso de Mello, DJ de 24.11.2000, julgada pelo
Tribunal Pleno em 07/03/1996, endereço eletrônico www.stf.gov.br, ao aferir a constitucionalidade de preceito
legal, o tribunal para fazer o controle de constitucionalidade material utilizou-se do princípio da
proporcionalidade, observando se a norma não seria arbitrária ou irrazoável, entendendo que o referido
princípio está ínsito no devido processo legal substancial e, assim, garantindo o controle material de
constitucionalidade.
271
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise, op. cit. p. 245.
131
é completada pelo chamado “juízo de proporcionalidade em sentido estrito”, que, segundo o
autor, condensa as exigências anteriores e se constitui no núcleo mesmo da ponderação, sendo
aplicado no caso tanto de interferências públicas como de privadas nos direitos ou princípios
fundamentais. Esse juízo consiste na demonstração de certo equilíbrio entre os benefícios que
se obtém com a interferência ou restrição num direito fundamental para proteção de outros
bens ou fins legítimos e os danos que essa medida ou restrição causam no direito que sofreu a
restrição ou interferência. Determina-se, assim, o peso de cada direito no caso concreto, numa
valoração conjunta de satisfação e sacrifício.
272
Em sentido semelhante, Canotilho afirma que o princípio da proporcionalidade se
concretiza por meio de sub-princípios, quais sejam: a) da conformidade ou adequação,
segundo o qual a medida adotada para persecução de um fim deve ser apropriada para o seu
alcance; b) exigibilidade ou necessidade, que traz a idéia de que entre várias medidas
possíveis para se alcançar um fim, deve-se adotar a menos onerosa; c) o princípio da
proporcionalidade em sentido estrito ou da “justa medida”, segundo o qual
Meios e fim são colocados em equação mediante um juízo de ponderação, com o
objectivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao
fim. Trata-se, pois, de uma questão de “medida” ou “desmedida” para se alcançar
um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim.
273
272
SANCHÍS, Luis Prieto, op. cit., p. 199-203.
273
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 269-270.
132
Essas questões também têm sido discutidas e salientadas pela doutrina nacional, a qual
aponta que na aferição da atuação do princípio da proporcionalidade, além do fim
constitucionalmente legítimo a ser alcançado pela medida sindicada, também deverão ser
observados os chamados “elementos parciais” do princípio da proporcionalidade, também
chamados “sub-princípios”, que são a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em
sentido estrito.
274
Podemos dizer, portanto, que, no caso de conflito entre direitos humanos fundamentais
ou princípios, bem como na restrição dos direitos humanos fundamentais, a ponderação para a
solução do conflito levará em conta o princípio da proporcionalidade e seus sub-princípios
para averiguar se no caso: a) está presente a adequação, pertinência ou aptidão, ou seja, se,
diante dos motivos apresentados como relevantes, os meios utilizados para atingir
determinada finalidade apresentam as condições necessárias para tanto, ou seja, se podem
274
Sobre o assunto ver, exemplificativamente, BARROSO, Luís Roberto. Princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade. Endereço Eletrônico www2.uerj.br/~direito/publicações; BONAVIDES, Paulo, op. cit., p.
360; CORRÊA, Luciane Amaral, op, cit., p. 199; LOPES, Ana Maria D’Ávila, op. cit., p. p. 195,
SARMENTO, Daniel, A ponderação de interesses na Constituição Federal, op. cit., p. 87-90. Ver, ainda,
embora longa, a posição de Sarlet que afirma: “Ponto de partida deverá ser a constatação de que nenhum
direito fundamental consagrado na Constituição se encontra imune a restrições, mesmo que se trate de direito
que não se encontra sob a reserva (simples ou qualificada) de lei, isto é, que não pode ser objeto de restrições
pelo legislador ordinário. De acordo com a mais moderna doutrina, a noção de limites é inerente à natureza das
liberdades, mesmo das consagradas e garantidas pelas normas de direitos fundamentais. Todo e qualquer
direito fundamental contêm limites denominados de imanentes, decorrentes da ordem constitucional. Via de
regra, são apontadas duas espécies de limites imanentes: a) a existência de uma colisão entre direitos
fundamentais; ou b) entre estes e outros valores constitucionais. No mais, nos casos em que incide a reserva
legal, a restrição é viável apenas através de lei ou com base em lei. Em qualquer caso, vigora o princípio
consagrado da proporcionalidade da restrição, segundo o qual a interferência limitadora no âmbito de proteção
de um determinado direito fundamental deve obedecer a três requisitos: a) a necessidade da restrição, ou seja,
a utilização do meio menos gravoso (aquele que menos limita a liberdade); b) a sua pertinência (adequação),
no sentido da sua possibilidade de atingir o resultado almejado; e c) a proporcionalidade em sentido estrito,
que outra coisa não quer dizer senão a observância do equilíbrio na relação entre o meio e o fim. Ademais,
apenas uma finalidade constitucionalmente legítima autoriza uma restrição a um determinado direito
fundamental. Nos casos de uma colisão entre direitos ou entre valores constitucionais, ocasião na qual não se
cogita necessariamente de restrição pelo legislador, o que se busca é a otimização entre os direitos e valores
em jogo, no estabelecimento de uma concordância prática (praktische Konkordanz), utilizando a linguagem de
KONRAD HESSE, que deve resultar numa ordenação proporcional dos direitos fundamentais e/ou dos valores
constitucionais restritivos. Em rigor, cuida-se de processo de ponderação no qual não se trata da atribuição de
uma prevalência absoluta de um valor sobre outro, mas, sim, na tentativa de aplicação simultânea e
compatibilizada de normas, ainda que no caso concreto se torne necessária a atenuação de uma delas. De
qualquer modo, esta atividade encontra, por sua vez, limite na preservação do núcleo essencial (Wesensgehalt)
do direito fundamental, que não pode ser completamente sacrificado. Ao contrário da Constituição portuguesa
de 1976 e da Lei Fundamental da Alemanha de 1949, a Constituição Federal de 1988 não contém regra
expressa no campo das restrições aos direitos fundamentais, à exceção da norma do artigo 60, § 4º, que veda a
abolição dos direitos e garantias individuais, constituindo limite material ao poder de reforma constitucional,
que, por uma decorrência lógica, também vincula o legislador ordinário. A teoria dos limites imanentes e o
princípio da proporcionalidade, contudo, igualmente já se encontram consagrados na nossa doutrina e na
jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.” SARLET, Ingo Wolgang. Valor de alçada e limitação do acesso
ao duplo grau de jurisdição: Problematização em nível constitucional, à luz de um conceito material de direitos
fundamentais. Doutrina Jurídica Brasileira (CD-ROM), organizador Sérgio Augustin, Caxias do Sul: Plenum,
2001.
133
levar a que realmente seja atendida a finalidade que se quer alcançar, além de consistir,
também, numa análise sobre se os motivos e finalidades a serem alcançados são conformes à
Constituição; b) se está presente a necessidade, ou seja, a sindicância para averiguar se a
medida escolhida para atingir a finalidade se apresenta como indispensável, averiguando-se se
não existe uma medida igualmente efetiva e que cause menores danos ou restrições ao direito.
A medida adotada não pode exceder os limites do necessário, devendo ser escolhida aquela
que menos restrição traga ao direito ou princípio em conflito; c ) por fim, cabe, ainda, a
averiguação da chamada “proporcionalidade em sentido estrito”, ou seja, a ponderação quanto
a se as vantagens obtidas com a limitação ou restrição do princípio ou direito serão superiores
às desvantagens causadas, levando em consideração os interesses que estão em jogo,
verificando-se se há razoabilidade e justiça em que um dos bens ou interesses preceda ao
outro no caso concreto.
Além disso, outra questão a ser tematizada, por estar intimamente ligada ao princípio
da proporcionalidade e à ponderação, é a que a se cunhou chamar de proteção do “núcleo
essencial” dos direitos humanos fundamentais, aspecto não negligenciável e que já resultou de
algumas passagens antes citadas.
Sobre o assunto, referimos o art. 19, alínea 2, da Lei Fundamental da Alemanha, o
qual dispõe que, quando autorizada a limitação de um direito fundamental por lei, ou com
fundamento em lei, em nenhuma hipótese o seu conteúdo essencial (Wesensgehalt) pode ser
alterado, o que implica afirmar que não pode ser suprimido ou alterado a tal ponto que seu
conteúdo se torne irreconhecível.
275
No mesmo sentido, lembramos a Constituição
Portuguesa, art. 18º/3, que prevê a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais,
bem como o art. 52, primeira parte, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia,
que dispõe que as restrições aos direitos e liberdades deverão observar o conteúdo essencial
dos mesmos.
A doutrina e a jurisprudência têm trabalhado muito em torno dos sentidos da “cláusula
de proteção do núcleo essencial” dos direitos humanos fundamentais, havendo divergência
entre correntes que disputam o significado a ser dado à referida cláusula. Conforme afirma
Canotilho, a idéia de um núcleo essencial parece ser simples, pois indicaria que os direitos
fundamentais têm um núcleo que não pode ser violado, mesmo quando a própria Constituição
275
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004,
p. 59, nota 105.
134
permite a edição de medidas restritivas. O problema, como lembra o autor, é determinar qual
o objeto de proteção e qual o valor da proteção.
276
Quanto ao objeto da proteção, Canotilho refere duas teorias, a objetiva e a subjetiva. A
primeira entende que a proteção do núcleo essencial protege o direito fundamental como
norma objetiva, como garantia abstrata da norma objetiva (texto constitucional), não da
proteção de um direito individual de um determinado sujeito, ao passo que a segunda entende
que o que se protege é o núcleo de um direito subjetivo individual. Canotilho afirma que não é
possível adotar nenhuma das teorias de forma radical, pois se deve atentar para a função que
os direitos fundamentais têm na vida comunitária, tornando descabida uma teoria subjetiva
que desconhecesse tal fato, visto a necessidade de limitação dos direitos fundamentais para a
vida comunitária, como, por outro lado, tamm seria descabida a adoção, pura e simples, da
teoria objetiva, pois não se pode abdicar da proteção em face de restrições que possam
aniquilar um direito subjetivo individual.
277
Quanto ao valor da proteção, também surgem duas orientações que disputam o sentido
do “núcleo essencial”, as teorias absolutas e as teorias relativas. As primeiras entendem que o
núcleo essencial é caracterizado por um conteúdo normativo abstratamente fixado e
irrestringível, ao passo que as teorias relativas entendem que o conteúdo do núcleo essencial
equivale ao resultado do processo de ponderação. Canotilho, também aqui, entende que não é
possível abraçar quaisquer das posições radicais, pois as teorias relativas acabam por reduzir o
núcleo essencial à proporcionalidade e as absolutas esquecem que o âmbito de proteção de um
direito depende, necessariamente, da equação a ser feita com outros bens constitucionais.
278
Canotilho argumenta que não podemos confundir, a partir da Constituição Portuguesa,
o princípio da proporcionalidade com a exigência de salvaguarda do núcleo essencial. Assim,
se, por um lado, é razoável entender que o âmbito de proteção de um direito deve ser
determinado no caso concreto, por outro, não faz sentido afirmar a proteção do núcleo
essencial se esse não se constituir num reduto último intransponível por qualquer medida
restritiva. O autor cita dois exemplos:
276
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 458-459.
277
Idem, ibidem, p. 459.
278
Idem, ibidem, p. 459-460.
135
Bastam dois exemplos para se ver a autonomia do núcleo essencial relativamente ao
princípio da proibição do excesso. Quando se proibe a pena de morte não se pretende
dizer que esta pena é “apenas” excessiva. Pretende-se salientar que, depois do
cumprimento desta pena, “não resta nada” do mais sagrado dos direitos – o direito à
vida. Segundo exemplo: quando se censura a prisão perpétua, a ideia não é somente a
de acentuar o seu carácter desproporcionado, como talvez seja o caso da discussão da
pena máxima de prisão (25 anos? 30 anos?). A liberdade está sujeita à ponderação de
direitos e bens, mas afirmar-se um núcleo absoluto significa só isto: o valor liberdade
individual é constitutivo da ordem constitucional. É este o sentido que nos parece estar
presente no projecto de Constituição Europeia, onde se estabelece (art. II-52) que
“qualquer restrição ao exercício dos direitos e liberdades” “deve respeitar o conteúdo
essencial desses direitos e liberdades”.
279
Por seu turno Sanhís, tomando parte no debate entre os que defendem uma concepção
absoluta do núcleo essencial e os que argumentam com uma concepção relativa do núcleo
essencial, afirma que o núcleo essencial tem um caráter independente da ponderação e atua
como seu limite, além do qual a ponderação não pode ir. Afirma o autor:
Em cierto modo, pues, cabe decir que la cláusula del contenido esencial desempena
una función independiente de la ponderación, que es precisamente no cerrar nunca
por completo el paso a esta última em sede de aplicación judicial de los principios y
derechos constitucionales; función independiente y em cierto modo también
negativa, pues el contenido esencial no nos proporciona algo así como um dibujo
definitivo del derecho com todas sus facultades “intocables”, pero si nos permite
mostrar que ciertas intervenciones legales pueden desvirtualo em su esencia
constitucional, que no es outra que su aptitud para la ponderación.
280
Apesar das divergências sobre o tema, que, como vemos, são muitas, tem sido
reconhecido um valor autônomo à proteção do núcleo essencial dos princípios e direitos
humanos fundamentais como barreira última a restrições que possam significar seu
aniquilamento. A Constituição Brasileira de 1988 não reconhece, de forma expressa, uma
cláusula de proteção do núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais, o que não tem
impedido a doutrina brasileira de trabalhar sobre tal concepção.
Sarlet, analisando a função das chamadas “cláusulas pétreas” no tocante aos direitos
fundamentais (art. 60, § 4º., IV, da CF de 1988), explica que a cláusula do núcleo essencial
tem função de proteção autônoma no Direito brasileiro. As cláusulas pétreas têm o objetivo de
impedir a destruição dos elementos essenciais da Constituição, preservando a sua identidade.
Dessa forma, mesmo garantidos por cláusulas pétreas, os direitos fundamentais não são
279
Idem, ibidem, p. 460-461.
280
SANCHíS, Luis Prieto, op. cit., p. 203 e 237.
136
absolutamente intangíveis, aplicando-se, assim, a tese da proteção de seu núcleo essencial,
para que não sejam atingidos em seu cerne, o qual deve ser aferido no caso concreto. Afirma,
ainda, que, no momento em que a Constituição veda as emendas que visem a abolir ou
tendam a abolir os direitos fundamentais, está clara a busca da preservação do cerne de cada
direito fundamental.
281
Steinmetz entende que a proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais deriva
da supremacia da Constituição e do significado que os direitos fundamentais adquirem nos
sistemas constitucionais que, como o nosso, possuem Constituição rígida, exprimindo-se
como um postulado constitucional imanente. Dessa forma, funciona como limite dos limites
para salvar a idéia mesma de fundamentalidade dos direitos fundamentais, pois sem ela os
direitos fundamentais e seu conteúdo estariam à livre disposição dos poderes públicos, de
modo especial do Legislativo.
282
Constatamos, portanto, que, mesmo sem ter consagração expressa na Constituição
Federal de 1988, a proteção do núcleo essencial dos direitos humanos fundamentais tem
merecido a atenção da doutrina e já teve reflexos na jurisprudência pátria
283
. Assim, podemos
dizer que o “núcleo essencial” é o limite à ponderação, barreira além da qual a ponderação
não pode ir. Esse núcleo essencial mostra-se como certos indícios que fazem com que um
determinado direito humano fundamental seja compreendido como aquele determinado direito
humano fundamental. Essas características devem ser aferidas de acordo com as concepções
de uma determinada comunidade e num determinado momento histórico. Dessa forma,
podemos dizer que nem mesmo uma emenda constitucional pode alterar a conformação básica
que um direito humano fundamental tem, aquilo que o caracteriza, que o torna identificável e
281
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais.. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado,
2001, p. 367. Cabe também citar Streck, que afirma que no plano hermenêutico não se pode entender que as
“cláusulas pétreas” signifiquem o mesmo que “cláusulas petrificadas”, pois um texto sofre mutações histórico-
temporais. Assim, o autor ratifica a posição de Canotilho, o qual entende que somente se garante a
irreversibilidade das cláusulas materiais que tenham identidade com o núcleo, a “essência”, da Constituição.
STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica, op. cit., p. 553, nota 171.
282
STEINMETZ, Wilson Antônio. Colisão de Direitos Fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2001, nota 515 da p. 163.
283
Neste sentido podem ser citadas as seguintes decisões proferidas pelo STF na ADIMC – 2381/RS/2001 – Rel.
Sepúlveda Pertence, DJ 13/12/2001, j. 20/06/2001 – Tribunal Pleno e na ADIMC – 2024/DF – Sepúlveda
Pertence, DJ 01.12.2000, Tribunal Pleno, julgado em 27/10/99, endereço eletrônico www.stf.gov.br .
Adotando a teoria relativa sobre o núcleo essencial, que acaba por identificar o núcleo essencial com o
princípio da proporcionalidade está a posição de SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na
Constituição Federal, op. cit., p. 111-113. Ver, também, Ana Maria D’Ávila Lopes, que afirma que se faz
necessário um entendimento que torne possível a relativização dos direitos fundamentais em virtude de seu
caráter histórico e de permanente atualização do direito, embora entenda que o núcleo essencial é um
mecanismo indispensável na proteção dos direitos fundamentais. LOPES, Ana Maria D´Ávila, op. cit., p. 190.
137
reconhecido como tal, pois a sua desconfiguração ou amesquinhamento ofende a
Constituição.
Toda essa construção ligada ao princípio da proporcionalidade e à ponderação na
busca da concretização dos princípios e dos direitos humanos fundamentais, que a melhor
tradição jurídica vem construindo ao longo do tempo, é imprescindível para uma melhor
atuação dos poderes que devem trabalhar na preservação e promoção dos mesmos.
Como ficou demonstrado no primeiro capítulo da presente dissertação, é insofismável
o papel que o princípio da proporcionalidade desempenha na preservação dos direitos
humanos fundamentais trabalhistas diante das alterações propostas pela flexibilização
neoliberal. Além disso, como demonstraremos no terceiro capítulo, o princípio da
proporcionalidade serve de marco também para a concretização dos direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão no contrato de trabalho, pois permite a ponderação e
concretização desses direitos numa visão integral dos valores albergados constitucionalmente.
A complexidade da vida e do ordenamento jurídico ganha cada vez maior dimensão.
Essa complexidade é potencializada no Estado Democrático de Direito, quando, então,
também o entendimento do princípio da proporcionalidade, sem deixar de lado sua concepção
de proteção contra o excesso, deve ser aberto para novas possibilidades de significação, para
que possa continuar a cumprir o papel existencial na solução dos conflitos e na ponderação de
interesses, bens e direitos. Abre-se, assim, a outra face do princípio da proporcionalidade, a
proibição de proteção deficiente. É do que trataremos a seguir.
3.6.1 A proibição de proteção deficiente: a outra face da proporcionalidade no Estado
Democrático de Direito
O Estado Democrático de Direito, tal qual como configurado em nossa Constituição
Federal de 1988, visa transformar a realidade social e tem por finalidade a promoção e
proteção dos princípios e direitos humanos fundamentais de forma integral, emergindo como
novo paradigma estatal e societário.
Como afirma Copetti, com a Constituição Federal de 1988 a sociedade brasileira
estabeleceu um novo modelo de sociedade, com base no paradigma do Estado Democrático
de Direito. Com o deslocamento da idéia de democracia formal para a de democracia
138
substancial, a noção de garantia ganha novos contornos, não tendo apenas um aspecto
negativo, no sentido de proibir as intervenções arbitrárias do Estado, mas ganhando
importância também o aspecto positivo, ou seja, a obrigação de concretização de certos
conteúdos inspirados nos ideais característicos do pensamento democrático, como, por
exemplo, o igualitarismo.
284
Assume papel fundamental uma configuração substancial do Direito, na qual os
princípios constitucionais ganham, conforme já afirmamos, um plus axiológico/finalístico e os
direitos humanos fundamentais têm papel primordial na construção da sociedade e do Direito.
Por outro lado, o Poder Judiciário, pela jurisdição constitucional, deixa de ter uma postura
meramente negativa e deve assumir uma postura ativa no asseguramento de todas as
dimensões de direitos humanos fundamentais.
Bercovici assinala a importância que uma teoria da Constituição e uma teoria do
Estado têm na concretização e força normativa da Constituição, sendo imprescindível uma
teoria da Constituição constitucionalmente adequada, para, juntamente com uma concepção
de Estado, completar as pré-compreensões do texto constitucional na efetivação da
Constituição em seus problemas fundamentais, entre eles o desenvolvimento nacional e a
superação das desigualdades. Afirma, também, que, embora a Constituição deixe abertura
para manobras das forças políticas na implementação das opções políticas, essa abertura não é
total, pois não se admite qualquer interpretação, visto que através dos princípios e
procedimentos constitucionais é fixado tanto o que deve como o que não deve ficar aberto ao
jogo político. A Constituição não é neutra e a ideologia constitucional vincula o intérprete,
cabendo papel de especial relevo aos princípios fundamentais, entre eles o do art. 3
o
. da
Constituição Federal de 1988, verdadeiro programa de ação e de legislação, que vincula todos
os poderes estatais e a sociedade (pelos menos, para o autor, os detentores de poder
econômico ou social não estatal).
285
Todos os poderes estatais (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como os próprios
poderes e atores sociais, devem, portanto, atuar no sentido de proteção e implementação dos
direitos humanos fundamentais, procurando tornar realidade social o projeto constitucional
descrito pelos princípios constitucionais fundamentais, verdadeira razão de ser do novel pacto
constituinte.
284
COPETTI, André. A jurisprudencialização da constituição no estado democrático de direito, op. cit., p. 25.
285
BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, p. 273,
289 e 299.
139
Propriamente para o Poder Judiciário se descortina um novo papel, um papel ativo na
função de fiscalização e implementação de políticas públicas para a efetivação de todos os
direitos humanos fundamentais vistos em sua integralidade
286
. Essas políticas passam a ficar
sujeitas a um forte controle de constitucionalidade tanto dos meios utilizados para o alcance
de objetivos, como dos objetivos que forem visados. Além disso, também caberá o controle
não só negativo dessas políticas quando de sua implementação pelos Poderes Legislativo e
Executivo, mas também o controle positivo no caso de omissão estatal.
287
Como percebemos, na conformação desse novo paradigma estatal e societário, o
Estado e o Direito não têm apenas uma feição negativa, mas também positiva. Por meio do
Estado e do Direito devem ser não apenas garantidos espaços de não ingerência nos direitos
humanos fundamentais, mas também haver a sua implementação e promoção dos mesmos.
Ora, conforme já demonstrado, o princípio da proporcionalidade mostra-se
imprescindível para a ponderação dos interesses e solução dos conflitos entre princípios e
direitos humanos fundamentais, ganhando, no Estado Democrático de Direito, em virtude da
feição ativa que o Estado deve assumir na implementação dos princípios e direitos humanos
fundamentais, uma nova dimensão. Assim, além de ter uma função negativa, ao vedar
excessos, também tem uma função positiva, ao proibir a proteção deficiente.
Canotilho refere que o sentido mais geral do princípio da proporcionalidade está
ligado à proibição do excesso. Todavia, adverte que, por outro lado, também se faz presente, a
partir deste princípio e da idéia de proteção, a chamada “proibição por defeito”. Esse defeito
de proteção se faz sentir quando determinadas entidades, que têm um dever de proteção,
adotam medidas insuficientes, do ponto de vista constitucional, para garantir uma proteção
adequada aos direitos fundamentais. E aduz:
286
Castellanos, falando sobre a concepção integral dos direitos humanos, afirma: “A Conferência de Viena
(1993) deu um passo definitivo para a compreensão integral dos direitos humanos. Com ela abriu-se o
panorama da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos, apesar da tradição
considerar que uns direitos são primordiais e outros quase que acessórios.” CASTELLANOS, Camilo. A
democracia é um fogo fátuo. O papel dos direitos econômicos, sociais e culturais na formação da cidadania na
América Latina. “In” Justiça social: uma questão de direito. Maria Elena Rodrigues Ortiz – Organizadora.
DP&A, 2004, p. 129. Cabe salientar, ainda, em virtude da citação feita, de como é necessário um debate crítico
com a tradição, para que sejam separadas concepções e tradições autênticas e inautênticas.
287
COMPARATO, Fábio Konder, Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas. In: Revista
de Informação Legislativa n. 138. Brasília: 1998, p. 45-47. Cabe salientar, também, que dado o papel ativo que
a cidadania tem no Estado Democrático de Direito, a tarefa de construção de políticas públicas não pode ficar
a cargo somente do aparato estatal, bem como sob o controle exclusivo do Poder Judiciário. Cabe a abertura de
possibilidades para a atuação constante da cidadania na construção de políticas, que devem ser sempre
marcadas pelos fins e princípios constitucionais.
140
Podemos formular esta ideia usando uma formulação positiva: o estado deve adoptar
medidas suficientes, de natureza normativa ou de natureza material, conducente a
uma proteção adequada e eficaz dos direitos fundamentais. A verificação de uma
insuficiência de juridicidade estatal deverá atender à natureza das posições jurídicas
ameaçadas e à intensidade do perigo de lesão de direitos fundamentais.
288
Ora, o Estado tem papel imprescindível na proteção dos direitos humanos
fundamentais, e o princípio da proporcionalidade, em sua dupla face, faz-se necessário na
implementação conjunta de todos esses direitos e demais bens constitucionalmente
protegidos.
No Estado Democrático de Direito o princípio da proporcionalidade é desvelado em
outras possibilidades, ou seja, não significa somente controle da proibição de excesso na
concretização dos textos/normas jurídicas, mas também implica a proibição de proteção
deficiente quando de sua concretização, visto o caráter transformador da realidade dessa
concepção estatal. Nesse sentido, Streck afirma:
Há que se ter claro, portanto, que a estrutura do princípio da proporcionalidade não
aponta apenas para a perspectiva de um garantismo negativo (proteção contra
excessos do Estado), e, sim, também para uma espécie de garantismo positivo,
momento em que a preocupação do sistema jurídico será com o fato de o Estado não
proteger suficientemente determinado direito constitucional, caso em que estar-se-á
em face do que, a partir da doutrina alemã, passou-se a denominar de “proibição de
proteção deficiente”(Untermassverbot). Este conceito, explica Bernal Pulido, refere-se
à estrutura que o princípio da proporcionalidade adquire na aplicação dos direitos
fundamentais de proteção. A proibição de proteção deficiente pode definir-se como
um critério estrutural para a determinação dos direitos fundamentais, com cuja
aplicação pode determinar-se se um ato estatal – por antonomásia, uma omissão –
viola um direito fundamental de proteção.
289
Dessa forma, tudo isso implica um novo modo de ser do princípio da
proporcionalidade, intimamente ligado à vinculação material do Estado (considerado
unitariamente) e da sociedade aos valores e princípios constitucionais, alcançando não só a
proteção contra as atitudes comissivas, mas também das atitudes omissas na proteção dos
direitos humanos fundamentais. Dessa forma, tanto será inconstitucional o excesso praticado
288
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 273.
289
STRECK, Lenio Luiz. A dupla face do princípio da proporcionalidade: da proibição de excesso
(Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot) ou de como não há blindagem contra
normas penais inconstitucionais. Revista da AJURIS. Porto Alegre: AJURIS, março de 2005, p. 180.
141
no sopesamento entre fins e meios, como será inconstitucional a falta de proteção de um
direito humano fundamental em virtude de omissão (total ou parcial) do Estado.
290
Nessa perspectiva, no tocante à eficácia dos direitos humanos fundamentais no âmbito
do contrato de trabalho, a face positiva do princípio da proporcionalidade impulsiona uma
postura mais efetiva na proteção desses direitos também no âmbito laboral, aspecto a ser
abordado no terceiro capítulo desta dissertação.
Desvelado em suas várias possibilidades, o princípio da proporcionalidade e a
ponderação assumem papel imprescindível na configuração e concretização dos princípios e
direitos humanos fundamentais múltiplos e tantas vezes colidentes na conformação do Estado
Democrático de Direito e da sociedade democrática e pluralista, possibilitando a abertura de
novos caminhos a serem trilhados na busca de uma sociedade mais justa e solidária.
No Estado Democrático de Direito a pluralidade e a diversidade de concepções de
mundo e de vida refletem-se no ordenamento jurídico, em particular na Constituição. Assim,
ao invés de se pretender estabelecer um projeto fechado, a sociedade de democracia
substantiva é um locus simbólico para um projeto de civilização aberto à historicidade e ao
poder-ser humanos. Essas pré-compreensões se fazem necessárias para uma adequada
compreensão do sentido desse ente que é o Estado Democrático de Direito, o qual precisa ser
desvelado em suas várias possibilidades, muitas delas ainda encobertas. Assim, a consciência
histórica efeitual e o questionamento de falsos pré-juízos que ainda tomam conta do
imaginário dos juristas, atrelados a uma concepção liberal-individualista, são fundamentais
para o acontecer das possibilidades dessa nova concepção estatal e societária.
O princípio da proporcionalidade e a ponderação, como existenciais, como modos de
ser, modos de compreender essa nova realidade sóciopolítico-jurídica, assumem papel
fundamental no balanceamento e sopesamento dos princípios e direitos humanos
fundamentais que estão em jogo, tornando possível a concretização mais plástica e
harmoniosa dos interesses legítimos estabelecidos na ordem constitucional.
Dada a atitude positiva, não só passiva, que sobretudo o Estado deve assumir na
implementação e proteção dos princípios e direitos humanos fundamentais, cabe-nos falar de
uma dupla face do princípio da proporcionalidade, não mais visto apenas como proibição de
excesso, mas também como vedação, como proibição de proteção deficiente na
implementação desses princípios e direitos humanos fundamentais. Abre-se, portanto, a
290
Idem, ibidem, p. 180.
142
possibilidade de um maior controle e fiscalização de atos arbitrários, sejam por ação, sejam
por omissão, não só do Estado, mas também dos particulares, principalmente os dotados de
poder (social, econômico ou jurídico), cabendo um papel mais ativo do Poder Judiciário na
proteção dos princípios e direitos humanos fundamentais.
Assim, tendo em conta o contexto social em que nos situamos, olhado com a lente
potente das categorias teóricas da hermenêutica filosófica, é que enfrentaremos no próximo
capítulo o tema da eficácia dos direitos humanos fundamentais de primeira dimensão no
contrato de trabalho, tentando descortinar novos horizontes para um processo civilizatório
num dos campos mais conflitivos do Direito.
143
4 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS. O CASO DO CONTRATO DE TRABALHO
Como temos afirmado na presente dissertação, as noções jurídicas não são atemporais,
mas marcadas pela historicidade. Assim, por meio do diálogo com a tradição democrática, só
possível pelo fio condutor da linguagem (meio pelo qual constituímos e temos mundo),
juntamente com uma posição crítica marcada pela consciência histórica efeitual, pelo círculo
hermenêutico e pelo incontornável teorema da diferença ontológica, é possível que se vão
descortinando sentidos até então velados do Direito, abrindo-se novas possibilidades de
significação.
Durante muito tempo se acreditou que o Estado era o “grande vilão” frente aos
direitos humanos fundamentais. Mas a doutrina e a jurisprudência têm constatado que não
raras vezes não é o Estado que desempenha o papel de “vilão” em relação a esses direitos,
mas, sim, que sujeitos privados, especialmente quando dotados de poder (jurídico, social ou
econômico), apresentam-se como fortes “inimigos” desses direitos. Essa constatação ganha
em importância quando o fenômeno da globalização neoliberal impõe graves restrições ao
poder estatal e aumenta, de forma geométrica, o poder de grandes grupos privados.
No contrato de trabalho, por seu turno, o poder privado apresenta-se no cotidiano das
relações, visto a própria relação de subordinação/vulnerabilidade e, portanto, de assimetria em
que o empregado está diante do empregador. Assim, tendo por mote a indivisibilidade e
complementaridade dos direitos humanos fundamentais, analisaremos a eficácia desses
direitos nas relações privadas, dando enfoque específico ao contrato de trabalho e aos direitos
de primeira dimensão.
Com base nessas idéias, faremos uma abordagem: a) sobre uma noção operativa de
“direitos humanos fundamentais”; b) sobre a eficácia dos direitos humanos fundamentais nas
relações privadas; c) sobre a eficácia dos direitos humanos fundamentais no contrato de
trabalho e, por fim, d) sobre o caso exemplar do devido processo legal no contrato de
trabalho.
144
4.1 DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIFERENÇAS E
APROXIMAÇÕES. OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS E SUAS VÁRIAS
DIMENSÕES
O apontamento de alguns indícios formais que delimitam os contornos da noção de
“direitos humanos fundamentais” é de relevância ímpar na busca do desvelamento de sentidos
mais autênticos para esses direitos que consideramos como imprescindíveis para uma vida
humana digna.
Segundo Cançado Trindade, a idéia de direitos humanos e de direitos inerentes à
pessoa humana é tão antiga quanto a história das civilizações, tendo aparecido ao longo do
tempo em diversos momentos históricos e em diversas culturas e épocas. Essa idéia se fundou
sempre na afirmação da dignidade da pessoa humana contra todas as formas de dominação, de
exclusão ou opressão, na luta pela proteção contra as arbitrariedades e na busca da
participação das pessoas na vida comunitária segundo um critério de legitimidade. Assim,
para o autor, os direitos humanos são o “legado” não só da tradição ocidental, como
costumeiramente se afirma, mas também de outras culturas, as mais diversas, e a sua vocação
universal está presente na Declaração dos Direitos Humanos de 1948. Assim, segundo o
autor,
o legado de tais correntes de pensamento para a conceituação jurídica
contemporânea dos direitos humanos consagra as premissas de que os direitos
humanos, inerentes a cada ser humano e inalienáveis, antecedem os direitos dos
Estados; de que o poder estatal deriva da vontade do povo; e de que a justiça prima
sobre o direito estatal positivo.
291
Os direitos humanos são, portanto, na visão contemporânea, direitos históricos, fruto
de lutas e conquistas da humanidade na busca pelo reconhecimento e proteção da pessoa
humana em todas as situações em que possam estar presentes seja a opressão, seja a exclusão,
291
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. V. I.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 17-19. Sob ótica diversa, mas convergente, Fioravanti chama a
atenção para o fato da existência de direitos fundamentais antes da existência do poder político estatal, ou seja,
antes do Estado, analisando em especial a Idade Média. FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos
fundamentales. Madrid: Trotta, 2000, p. 26-27.
145
o medo ou a discriminação, enfim, todas as formas e maneiras de vilipêndio ao ser humano
292
.
Cabe lembrar que o homem é sempre um ser situado, é um ser-aí. Logo, os direitos humanos
são a resposta, em cada momento histórico, às agruras e dificuldades que atingem ao homem.
Esses direitos, marcados pela historicidade, podem ser entendidos, nas palavras de
Bolzan de Morais, como
conjunto de valores históricos básicos e fundamentais, que dizem respeito à vida
digna jurídico-político-psíquico-econômico-física e afetiva dos seres e de seu
habitat, tanto daqueles do presente quanto daqueles do porvir, surgem sempre como
condição fundante da vida, impondo aos agentes político-jurídico-sociais a tarefa de
agirem no sentido de permitir que a todos seja consignada a possibilidade de usufruí-
los em benefício próprio e comum ao mesmo tempo. Assim como os direitos
humanos se dirigem a todos, o compromisso com sua concretização caracteriza
tarefa de todos, em um comprometimento comum com a dignidade comum.
293
Como afirma Comparato, a própria personalidade de cada ser humano é moldada por
toda a carga da tradição, do passado coletivo carregado de valores, crenças e preconceitos.
Assim, o ser humano tem o seu próprio ser como algo incompleto e inacabado, sempre em
transformação, ou seja, lembrando Heidegger, o ser humano está num permanente
inacabamento.
294
Essa lição se aplica ao Direito em geral, e aos direitos humanos em especial,
sempre sujeitos à historicidade da vida humana e social.
Lafer, trabalhando as categorias de Hannah Arendt, afirma que a idéia fundamental da
autora sobre os direitos humanos é de que não é verdade que “os homens nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”, pois nós não nascemos iguais, mas, sim, “nos tornamos iguais
como membros de uma coletividade em virtude de uma decisão conjunta que garante a todos
292
Cabe fazer referência aqui a como Lyra Filho entendia o Direito, ou seja, o Direito era visto pelo autor como
processo de positivação de liberdades. FILHO, Roberto Lyra. O que é direito. 6. ed. São Paulo: Brasiliense,
1986, p. 124.
293
BONZAN DE MORAIS, José Luis. As crises do estado e da constituição e a transformação espacial dos
direitos humanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 64.
294
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004,
p. 29-31. Cabe salientar que para Comparato, apesar do caráter histórico dos direitos humanos, não se pode
fundar esses direitos sobre um viés positivista. Para o autor, é “a consciência ética, a convicção longa e
permanente da comunidade, de que a dignidade da condição humana exige o respeito a certos bens e valores
em qualquer circunstância”, ainda que não reconhecidos pelos Estados ou pelos instrumentos internacionais,
que dão fundamento vigoroso aos direitos humanos. Idem, ibidem, p. 59.
146
direitos iguais”. Assim, a igualdade não é um dado, mas um construído convencionalmente
pelos homens através de sua ação conjunta na organização da comunidade política.
295
Flavia Piovesan assume expressamente a idéia de Arendt, ou seja, a idéia de que os
direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, e afirma a
historicidade desses direitos, optando por uma concepção contemporânea dos direitos
humanos que se baseia na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na
Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993. A autora aduz:
Conclui-se que a Declaração Universal de 1948, ao introduzir a concepção
contemporânea de direitos humanos, acolheu a dignidade humana como valor a
iluminar o universo de direitos. A condição humana é requisito único e exclusivo,
reitere-se, para a titularidade de direitos. Isto porque todo ser humano tem uma
dignidade que lhe é inerente, sendo incondicionada, não dependendo de qualquer
outro critério, senão ser um ser humano.
296
Afirmamos, portanto, na concepção exposta, o caráter histórico dos direitos humanos,
que devem ser reconhecidos a todos os seres humanos única e exclusivamente por assim se
caracterizarem, o que não configura uma decaída na metafísica no sentido de se sustentar uma
essência humana imutável e aistórica, mas, sim, que esses direitos são o resultado de
postulados ético-jurídicos impostergáveis para a vida humana digna.
Cabe destacar que a doutrina tem traçado algumas diferenças entre as expressões
“direitos humanos” e “direitos fundamentais”, embora muitas vezes sejam utilizadas como
sinônimas
297
. É comum a doutrina afirmar que os direitos humanos estão em uma instância
mais abstrata em relação aos chamados “direitos fundamentais”. Os direitos humanos são
tratados como direitos inalienáveis que têm sua origem na própria natureza humana e que
aspiram à validade universal, sem estarem adstritos a uma determinada ordem constitucional.
Assim, estariam previstos em documentos internacionais e não possuiriam, em regra, meios
jurídicos eficazes para sua exigência. Por sua vez, os direitos fundamentais são considerados
aqueles direitos humanos que estão consagrados e positivados, que têm previsão mais precisa
295
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos – Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.
São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 150.
296
PIOVESAN, Flavia. Direitos humanos, o princípio da dignidade humana e a Constituição Brasileira de 1988.
“In” (Neo) Constitucionalismo – Ontem, os códigos hoje, as constituições. Revista do Instituto de
Hermenêutica Jurídica. Porto Alegre: Instituto de Hermenêutica Jurídica, 2004, p. 80 e 87.
297
Ver, neste último sentido, por exemplo, BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 12. ed. São
Paulo: Malheiros, 2002, p. 514.
147
e restrita, estando em consonância com uma determinada ordem constitucional; existe, assim,
em caso de violação, a previsão de um recurso judicial para sua exigência e sua concretização
prática
298
.
Canotilho fala de direitos fundamentais como direitos que estão positivados na
Constituição, significando a “incorporação na ordem jurídica positiva dos direitos
considerados naturais e inalienáveis do indivíduo”, considerando esses direitos como
elementos que conferem legitimidade a um ordenamento jurídico. Afirma, ainda, que os
direitos fundamentais apresentam tanto uma fundamentalidade formal, pois estão no ápice do
sistema jurídico e encontram-se protegidos de alterações legislativas, como uma
fundamentalidade material, já que “o conteúdo dos direitos fundamentais é decisivamente
constitutivo das estruturas básicas do Estado e da sociedade.”
299
Como percebemos, a qualificação de fundamentais a determinados direitos decorre
não só de sua posição formal no ordenamento jurídico (integrantes da Constituição, estão no
ápice do ordenamento jurídico; estão submetidos a limites formais e materiais de reforma
constitucional – cláusulas pétreas -, bem como são normas diretamente aplicáveis e vinculam
de forma imediata as entidades públicas e privadas), mas também de sua fundamentalidade
material como elementos da Constituição material, como decisões fundamentais sobre a
estrutura básica do Estado e da sociedade. A fundamentalidade material significa que essas
decisões fundamentais têm em vista a posição ocupada nesses espaços pela pessoa humana,
como vetores da positivação de valores fundamentais como liberdade, igualdade, dignidade da
pessoa humana, vida e solidariedade
300
.
A diferenciação, assim, entre direitos humanos e direitos fundamentais é feita,
basicamente, como mostramos acima, tendo em vista a positivação dos segundos nas
constituições. Dessa forma, segundo tais concepções, tais direitos encontrariam mecanismos
de proteção mais efetivos, bem como encarnariam a visão de uma determinada sociedade
sobre os direitos humanos.
298
Ver nesse sentido a posição de SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 33
e 34.; HECK, Luís Afonso. Direitos fundamentais e sua influência no direito civil. Artigo extraído de palestra
apresentada no evento das Jornadas Preparatórias do XVII Congresso Argentino de Direito Civil, 1998 e
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, op. cit., p. 393.
299
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 377. Sobre a fundamentalidade das normas de direitos fundamentais,
tanto no sentido formal, como material, ver, ainda, a posição de ALEXY, Robert. Teoría de los derechos
fundamentales, op. cit., p. 503-506.
300
Ver nesse sentido SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 80.
148
A nosso ver, essa diferenciação entre direitos humanos e direitos fundamentais merece
ser revista, ou pelo menos, “flexibilizada”, por razões tanto de ordem de legitimidade como
também de conveniência, que estão intimamente interligadas.
Mencionamos o fato de que a própria legitimidade de um ordenamento jurídico
constitucional tem sido medida por sua aceitação dos direitos humanos, implicando, cada vez
mais, portanto, a aproximação entre os direitos fundamentais previstos nos ordenamentos
jurídicos internos dos Estados e a assim denominada “ordem jurídica internacional dos
direitos humanos”.
301
Isso implica, não só a aceitação da eficácia dos direitos humanos
diretamente no ordenamento jurídico interno dos Estados
302
, como também a necessidade da
construção de mecanismos jurídicos supra-estatais cada vez mais eficazes para a proteção e
promoção dos direitos humanos
303
. Com efeito, em virtude das próprias alterações da
soberania e dos efeitos produzidos pela globalização econômica, a doutrina vem postulando a
abertura de novos campos e possibilidades de proteção dos direitos humanos além das
fronteiras estatais (podemos citar como exemplos o Tribunal Penal Internacional, a Corte
Européia de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos).
301
Verdú afirma que, após a Segunda Grande Guerra, a doutrina vem postulando que os direitos humanos, que
dimanam da dignidade da pessoa humana, são o “fundamento”das Constituições, que os recebem, reconhecem
e lhes deve dar garantia. E afirma: “Las Constituciones son instrumentos fundametales que cumplen uma
función-poder. Es decir, se justifícan em tanto que cumplen uma exigencia deontológica al proteger esos
derechos. Los derechos humanos, inspirados en valores, son postulados ético-sociales encaminados a una
finalidad, a saber: tutelar el libre desarrollo de la dignidad humana en la sociedad. Son, también, puntos de
vista exigidos por la Justicia.” VERDÚ, Pablo Lucas. Los derechos humanos como “regilión civil”. Derechos
humanos y concepción del mundo y de la vida. Sus desafios presentes. In: Direito Constitucional – Estudos em
homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago Guerra Filho (Organizadores). 1. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 537-538. Ver, também, a posição de Cançado Trindade, que afirma a necessidade
da aplicação da norma mais favorável na proteção dos direitos humanos, implicando a necessidade do
entendimento conjunto dos direitos internacional e constitucional. CANÇADO TRINDADE, Antônio
Augusto, op. cit., p. 22-23. Por fim, ver TORRES, Ricardo Lobo. A legitimação dos direitos humanos e os
princípios da ponderação e da razoabilidade. “In”: Legitimação dos direitos humanos. Organizador Ricardo
Lobo Torres. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002, p. 397.
302
Sobre essa temática ver CANÇADO TRINTADE, op. cit., p. 430-443. Por seu turno, Binenbojm afirma,
tomando a construção de Dworkin sobre os direitos, que: “Os direitos humanos prescindem, assim, de
reconhecimento legislativo, e sua eficácia plena deve ser reconhecida pelo Poder Judiciário, inclusive com a
adjudicação de direitos sociais integrantes do mínimo existencial. Por evidente, nenhuma maioria legislativa
poderá deliberar contra os direitos humanos, não apenas em virtude de sua previsão expressa no texto
constitucional, mas sobretudo em função de seu papel decisivo para a existência da própria democracia. ...
Como afirma Robert Alexy, os direitos humanos são compatíveis com a democracia, mas representam,
simultaneamente, uma desconfiança do processo democrático. São democráticos na medida em que asseguram
a existência e desenvolvimento de pessoas capazes de manter o processo democrático em funcionamento, pois
sem eles a democracia fica reduzida a mera figura de retórica. Por outro lado, com a vinculação também do
legislador, os direitos fundamentais são subtraídos do poder decisório das maiorias parlamentares, o que
reflete a aludida desconfiança na democracia.” BINENBOJM, Gustavo. Direitos humanos e justiça social: as
idéias de liberdade e igualdade no final do século XX. In: Legitimação dos direitos humanos. Ricardo Lobo
Torres Organizador. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002, 246-247. Sobre a tese dos direitos como
princípios pressupostos da organização social e que o podem ser suprimidos mesmo pela maioria, ver
DWORKIN, Ronald, Levando os direitos a sério, op. cit., p. 127.
303
BOLZAN DE MORAIS, José Luis, op. cit., p. 91-100.
149
Essas postulações implicam, por seu turno, uma relativização ainda maior das
diferenças entre direitos humanos e direitos fundamentais. Percebemos, assim, diante do
fenômeno da globalização, a necessidade de uma concepção mais aberta sobre esses direitos,
na qual seja possível a defesa da pessoa humana em quaisquer tipos de relações, sejam
internas ou não a um determinado Estado. Há, portanto, a necessidade do aperfeiçoamento
dos mecanismos de proteção que atuem tanto dentro dos Estados como na esfera
internacional.
304
Portanto, diante da aproximação cada vez maior, desejável e fundamentada entre os
direitos humanos e os direitos fundamentais, tanto no que tange ao seu entendimento como
aos seus desafios, torna-se imprescindível um tratamento desses temas que antes privilegie as
aproximações do que as diferenciações.
305
É por isso que entendemos como mais satisfatória a
denominação de “direitos humanos fundamentais”, expressão utilizada, entre outros, por
Eusebio Fernández e que parece exprimir uma gama de significados subjacentes.
Fernández defende que com esta terminologia se consegue manifestar que toda a
pessoa possui direitos morais pelo fato de ser pessoa e que esses direitos devem ser
reconhecidos e garantidos pela sociedade, pelo Direito e pelo poder político sem nenhuma
discriminação, seja social, econômica, jurídica, política, ideológica, cultural ou sexual. Ao
mesmo tempo, significa que esses direitos são fundamentais, pois se acham estreitamente
conectados com a idéia de dignidade humana e são ao mesmo tempo as condições do
304
Cabe lembrar aqui a posição assumida por Barreto, que afirma: “No pensamento social contemporâneo,
encontramos a tentativa de identificar os direitos humanos fundamentais como, a “norma mínima”das
instituições políticas, aplicável a todos os Estado que integram uma sociedade dos povos politicamente justa.
Esse conjunto de direitos tem um estatuto especial no direito interno das nações, sendo exigência básica para
que um Estado possa integrar a comunidade internacional.” O autor chama a atenção, ainda, para o
pensamento de Hannah Arendt, que deixou muito claro que o reconhecimento de direitos apenas para os
nacionais, em virtude de uma postura de valorização máxima da soberania nacional, redundou numa série de
violações dos direitos básicos. Dessa forma, o autor sustenta a necessidade de uma fundamentação ética para
os direitos humanos fundamentais, que se sobrepõem aos direitos nacionais, sendo condição de sua
legitimidade. BARRETO, Vicente, Ética e direitos humanos: aporias preliminares, op. cit., p. 501.
305
Pérez Luño afirma: “Puede afirmarse, en primer lugar, que la internacionalización ha supuesto, desde el punto
de vista de la fundamentación de los derechos humanos, una vuelta a la reivindicación de su carácter universal
e supraestatal. Es innegable que en el proceso de constitucionalización de los derechos fundamentales el
positivismo jurídico jugo un papel importante al plantear la exigencia de una concreción jurídica de los ideales
jusnaturalistas, para dotarlos de autentica significación jurídico-positiva. Ahora bien, los acontecimientos
políticos se han encargado de evidenciar, en ocasiones de forma trágica, la necesidad de situar la
fundamentación del sistema de las libertades públicas en una esfera que rebasara el arbítrio de la jurisdicción
interna de cada Estado.” PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Derechos humanos, estado de derecho y
constitucion. Madrid: Tecnos, 2003, p. 129.
150
desenvolvimento dessa idéia de dignidade. Referem-se, portanto, aos direitos mais essenciais
em relação ao pleno desenvolvimento da dignidade humana.
306
Constatamos, pois, com tal expressão que os direitos humanos fundamentais têm como
sujeito passivo não só o Estado, mas também a sociedade e os demais indivíduos. Sendo
afirmados como “direitos morais”, traduzem a idéia de uma fundamentação ética desses
direitos que, assim, devem se fazer presentes tanto na esfera pública como na privada. Essa
formulação, além de nos parecer acertada, ainda facilita o desenvolvimento da temática
principal desta dissertação, ou seja, a eficácia desses direitos perante os particulares.
Fernández defende uma fundamentação ética para os direitos humanos fundamentais, o que
traz de pronto a idéia de que pressupõe uma visão ética do ser humano, da pessoa humana, em
todas as suas relações, não só com o Estado.
Assim, como afirma o autor, a fundamentação ética, também chamada “axiológica”,
parte do pressuposto de que a fundamentação dos direitos humanos não pode ser jurídica (no
sentido do Direito Positivo), mas prévia ao jurídico, isso não querendo dizer que não seja
importantíssimo para a eficácia desses direitos a sua previsão e garantia no direito positivo.
307
O autor entende que existem certas exigências que são imprescindíveis como condição para
uma vida digna, sendo os direitos humanos fundamentais direitos morais, quer dizer,
aparecem como exigências éticas, como direitos que os seres humanos têm pelo fato de serem
homens e, portanto, com um direito igual a seu reconhecimento, proteção e garantia por parte
do poder público e do Direito. São direitos que o homem possui por ser homem, que possui
em virtude de sua dignidade, sendo inerentes ao seu ser.
308
Fernández chama de “direitos morais” os direitos humanos fundamentais para
exprimir a idéia de síntese entre os direitos humanos entendidos como exigências éticas ou
valores e os direitos humanos entendidos paralelamente como direitos. O qualificativo
“moral” significa essa fundamentação ética, sendo esses direitos os que estão mais
intimamente ligados com a idéia de dignidade humana. Já com o substantivo “direito” o autor
sustenta a idéia de que esses direitos estão a meio-termo entre as exigências éticas e os
direitos positivos, correspondendo, ainda, à pretensão de serem efetivamente garantidos e
incorporados pelo ordenamento jurídico positivo. Assim, a fundamentação ética dos direitos
306
FERNÁNDEZ, Eusebio. Teoria de la justicia y derechos humanos. Madrid: Editorial Debate, 1991, p. 78.
Ver, também defendendo a natureza de direitos morais sobre os direitos humanos a posição de NINO, Carlos
Santiago. Buenos Aires: Astrea, 1989, p. 19-20.
307
Idem, ibidem, p. 106.
308
Idem, ibidem, p. 106-107.
151
humanos fundamentais baseia-se na consideração desses direitos como direitos morais,
entendendo por direitos morais o resultado da dupla vertente ética e jurídica.
309
O ponto de vista de Fernández é muito próximo ao que defende Pérez Luño, apesar
das aparentes divergências em algumas questões, bem como pelo fato da concepção deste
último autor ser mais aberta, e a nosso ver mais correta, por englobar de forma mais
contundente os direitos sociais. Pérez Luño argumenta que a fundamentação dos direitos
humanos só pode se dar sob o viés de um “jusnaturalismo deontológico”. Ao verificar a
posição do autor, observamos, então, que o jusnaturalimos deontológico não tem o caráter
estático das correntes tradicionais do jusnaturalismo clássico, mas, sim, que essa concepção
está aberta à historicidade. Os direitos humanos são, para o autor, o conjunto de faculdades e
institutos que, a cada momento histórico, tendo em conta as necessidades humanas, são
descobertos pelo diálogo intersubjetivo e pela razão prática, concretizando as exigências
ligadas à dignidade, à liberdade e à igualdade das pessoas humanas, e que aspiram seu
reconhecimento no ordenamento jurídico positivo.
310
Entendemos, assim, que é possível, ponderando o conjunto dessas contribuições,
adotar uma posição que sustenta que os direitos humanos fundamentais são históricos, são
exigências éticas, estão abertos à historicidade e são pré-positivos, embora busquem
positivação nos ordenamentos jurídicos, bem como que são condição de legitimidade dos
ordenamentos estatais, servindo como parâmetros críticos dessa ordem. Como percebemos,
isso não significa que não seja importante a positivação desses direitos nos ordenamentos
constitucionais. Essa postura, além de, a nosso ver, constatar a essência existencial dos
direitos humanos fundamentais como “trunfos das pessoas humanas frente ao poder e ao
309
Idem, ibidem, p. 108-109.
310
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, op. cit.,, p. 48-49 e 177-184. Cabe aqui traçar um paralelo entre o que diz
Pérez Luño e o pensamento de Gadamer. Como se percebe, em Pérez Luño a experiência (razão prática) e o
diálogo intersubjetivo (que pressupõe o reconhecimento do outro) possibilitam a descoberta e o
reconhecimento dos direitos humanos. Na obra de Gadamer vislumbra-se a preocupação constante com o
reconhecimento do outro e com o diálogo. Para Gadamer, só é possível um verdadeiro diálogo onde se
reconheça o outro como outro. Portanto, embora o autor não aborde explicitamente a questão dos direitos
humanos fundamentais, podemos aí ver uma contribuição importante para a compreensão dos mesmos.
Gadamer afirma: “Assim como nossa apercepção sensível do mundo é ineludivelemente privada, também
nossos impulsos e nossos interesses individualizam-nos, e nossa razão, comum e capaz de apreender o comum
a todos, permanece impotente diante dos ofuscamentos alimentados pela nossa individualidade. Assim, o
diálogo com os outros, suas objeções ou sua aprovação, sua compreensão ou seus mal-entendidos, representam
uma espécie de expansão de nossa individualidade e um experimento da possível comunidade a que nos
convida a razão. Poderíamos imaginar toda uma filosofia do diálogo, partindo dessas experiências: o ponto de
vista intransferível do indivíduo, onde se espelha a totalidade do mundo, e a totalidade do mundo que se
apresenta nos pontos de vista individuais de todos os outros como um e o mesmo.” GADAMER, Verdade e
método II, op. cit., p. 246 e 249.
152
arbítrio”, facilita, e, portanto, é oportuna, a sua defesa não só perante a eventuais Estados que
neguem tais direitos, mas tamm sua defesa diante dos privados.
A nosso ver, a pergunta original que coloca como tema os direitos humanos
fundamentais é justamente: como proteger as pessoas humanas diante do poder? Essa
pergunta só pode ser respondida tendo em conta a historicidade do processo de afirmação
desses direitos, o que não é nunca um processo acabado. A história efeitual dos direitos
humanos fundamentais permite-nos a compreensão da necessidade dessa pergunta pelo
sentido dos direitos humanos fundamentais ter de ser sempre refeita em cada momento
histórico, para que consigamos arrancar o seu sentido do velamento.
Assim, é em razão de toda essa tradição dos direitos humanos fundamentais,
questionada a partir do horizonte histórico de um Estado Democrático de Direito num país
“periférico” e tendo em conta as novas necessidades de enfrentamento do poder colocar pelos
processos de globalização neoliberal em curso, que optamos pela denominação desses direitos
como “direitos humanos fundamentais”.
Merece também nossa atenção o tema relativo às várias “dimensões ou gerações” dos
direitos humanos fundamentais. A idéia de “gerações” de direitos está ligada ao fato de que ao
longo do processo histórico, esses direitos foram surgindo e se afirmando em blocos, ligados a
determinados valores tidos como impostergáveis para a proteção da pessoa humana. Todavia,
a idéia de gerações tem acabado por gerar uma série de problemas, pois muitas vezes ofusca
uma questão fundamental apontada pela doutrina contemporânea, ou seja, o entendimento da
complementaridade solidária e da indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais.
Com efeito, a Conferência Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena no ano
de 1993, afirmou o princípio da complementaridade solidária e indivisibilidade desses
direitos:
Todos os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e inter-
relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos
globalmente, de modo justo e eqüitativo, com o mesmo fundamento e a mesma
ênfase. Levando em conta a importância das particularidades nacionais e regionais,
bem como os diferentes elementos de base históricos, culturais e religiosos, é dever
dos Estados, independentemente de seus sistemas políticos, econômicos e culturais,
promover e proteger todos os direitos humanos e liberdades fundamentais.
311
311
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. op. cit, p. 67.
153
Flavia Piovesan afirma a universalidade e indivisibilidade dos direitos em foco, visto
que a sua proteção integral é condição para o respeito de todos esses direitos, já que são
intimamente correlacionados e interdependentes; portanto, a proteção dos direitos civis e
políticos é condição para a observância dos direitos sociais e econômicos, e vice-versa. A
autora afirma:
A concepção contemporânea de direitos humanos caracteriza-se pelos processos de
universalização e internacionalização destes direitos, compreendidos sob o prisma
de sua indivisibilidade. Ressalte-se que a Declaração de Direitos Humanos de Viena,
de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5º.,
afirma:
Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados. A
comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de forma
justa e eqüitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase.
312
Tendo em vista isso, optamos, no presente estudo por utilizar a expressão “dimensões”
de direitos humanos fundamentais, visto que aquela expressão (gerações) pode dar a
impressão de alternância entre as várias dimensões de direitos, como se uma substituísse a
outra, quando, na verdade, o reconhecimento de novos direitos tem aspecto de
complementaridade, de cumulação, no sentido de que uma dimensão vem a se somar à outra
num processo de contínua construção, reconhecimento e positivação de direitos
313
.
Os direitos humanos fundamentais têm sido classificados em várias dimensões, cada
uma representando uma gama de conquistas da pessoa humana. Muitas vezes se
correlacionam as dimensões desses direitos com os valores da tríade presente no lema da
Revolução Francesa, ou seja, liberdade, igualdade fraternidade (lida hoje como solidariedade),
ligando-se a cada um desses valores uma dimensão de direitos
314
. Por outro lado, também,
tendo em vista o caráter expansionista e histórico desses direitos, existe a postulação de uma
série de novos direitos que vão se configurando como necessários para o pleno
desenvolvimento da pessoa humana, o que leva a que autores defendam a existência de outras
dimensões.
315
312
PIOVESAN, Flavia, op. cit., p. 81 e 85. CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 24 - 25.
313
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 49.
314
BINENBOJM, Gustavo, op. cit., p. 226.
315
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional, op. cit., p. 516 e OLIVEIRA JUNIOR, José
Alcebíades. Teoria jurídica e novos direitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000, p. 99 e 100.
154
Assim, essa distinção entre várias dimensões não tem o sentido de estabelecer
fronteiras rígidas e instransponíveis entre essas, mas sim, na linha do pensamento de
complementaridade, unidade, cumulatividade e indivisibilidade dos direitos humanos
fundamentais, enfocar a necessidade de proteção integral desses direitos
316
. Tanto é assim que
o aparecimento de novas dimensões de direitos humanos fundamentais não tem o papel de
aniquilar as dimensões anteriores, como já assinalado, mas, certamente, pode ter o papel de
redefini-las, ou melhor, de mudar o sentido que apresentavam, incorporando novas
possibilidades de sentido.
317
Desveladas essas idéias básicas, sempre novamente postas à luz crítica da consciência
histórica, é que trataremos do tema da vinculação dos privados aos direitos humanos
fundamentais, tendo como enfoque principal a aplicação dos direitos de primeira dimensão no
contrato de trabalho. Intentamos com essa análise, demonstrar a necessidade da proteção
integral desses direitos em todas as relações jurídicas.
4.2 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS FRENTE AOS
PARTICULARES
A questão da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações entre privados
tem, ultimamente, ocupado lugar de destaque no debate doutrinário. Para o deslinde da
questão em foco, faz-se necessário que algumas idéias sejam precisadas, especialmente: a) o
que significa o termo “eficácia” dos direitos humanos fundamentais e b) o que significa
afirmar esta eficácia nas relações com “particulares” ou “nas relações privadas”.
Com relação à primeira das questões, ou seja, no tocante ao significado da locução
“eficácia dos direitos humanos fundamentais”, a expressão é utilizada no sentido de afirmar
que esses direitos vinculam, que são passíveis de serem invocados e aplicados em determina
situação. Portanto, quando se afirma a eficácia desses direitos, significa dizer que geram
316
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, cit., p. 49-50, STRECK, Lenio Luiz, La
jurisdicción constitucional y las possibilidades de concretización de los derechos fundamentales-sociales. Site:
www.leniostreck.com.br, p. 24-25 e FREITAS, Juarez. O intérprete e o poder de dar vida à constituição. In:
Direito constitucional – Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. Eros Roberto Grau e Willis Santiago
Guerra Filho (Organizadores). 1. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 242.
317
Sobre isso ver PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, op. cit., p. 585—587; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os
direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987, p. 54 e BOLZAN DE
MORAIS, José Luis, op. cit., p. 62, nota 54.
155
posições passivas (obrigações, deveres) perante a determinados entes (pessoas físicas,
jurídicas e, mesmo, entes despersonalizados) que estão obrigados por esses direitos
318
. Já,
quanto, à segunda questão levantada, ou seja, sobre o que significa a expressão “relações
privadas ou sujeitos privados”, as respostas são mais complexas.
Em primeiro lugar, cada vez se torna mais difícil fazer a distinção entre público e
privado, seja no tocante aos institutos jurídicos, seja quanto aos interesses envolvidos. Assim,
não há como estabelecer os limites matemáticos entre o público e o privado, não havendo
como determinar uma diferença qualitativa entre os ramos do Direito, por exemplo, para fazê-
los subsumidos a essa divisão; cabe, sim, entender que existem, em todos os ramos do Direito,
espaços públicos e privados, o que configura apenas uma distinção quantitativa
319
. Aliás, isso
pode ser percebido, por exemplo, nos próprios dispositivos constitucionais sobre a ordem
social, quando, por exemplo, o art. 194 da CF de 1988 dispõe que a seguridade social
compreende um conjunto integrado de ações tanto de iniciativa dos poderes público como da
sociedade, com o fim de assegurar os direitos à saúde, à previdência e à assistência social.
Dessa forma, quando dizemos que os direitos humanos fundamentais têm eficácia
frente aos particulares, isso significa que atuam vinculativamente perante sujeitos privados
(pessoas físicas, jurídicas e mesmo entes despersonalizados), não dotados de poder estatal
nem ligados de alguma forma mais estreita ao poder estatal. Significa que uma pessoa pode
invocar diretamente esses direitos numa relação estabelecida com outra pessoa não-estatal,
pois esta pode ser considerada sujeito passivo desses direitos.
320
Nessa questão trazemos o pensamento de Daniel Sarmento, o qual defende um grau de
eficácia diferenciado desses direitos levando em conta quem é o sujeito passivo, o Estado ou
um particular. Afirma que onde houver o “dedo estatal” deve ser dada uma eficácia mais
enérgica, mais robusta a esses direitos, o que não afasta a eficácia desses direitos nas relações
privadas, tendo em vista a necessidade de sua proteção integral, que, para o autor, decorre da
318
ALEXY, Robert, op. cit., p. 507; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas
considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: A constituição
concretizada – Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.
109, 112 e 115; FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do
direito privado, op. cit., 44 e STEINMETZ, Wilson. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais.
São Paulo: Malheiros, 2004, p. 40, 42, 52 e 53.
319
Ver sobre o tema PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil – Introdução ao Direito Civil Constitucional.
2. ed. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002, p. 52-54; TEPEDINO,
Gustavo. Temas de Direito Civil. 2. ed. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2001, p. 19. Ver, ainda, FACHIN,
Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2000, p. 125 e 221.
320
Ver, nesse sentido, ALEXY, Robert, op. cit., p. 510-511. Ver, no mesmo sentido, mas fazendo algumas
ressalvas, a posição de SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado, op. cit. p. 113, 116
e 117.
156
opção axiológica da Constituição Federal de 1988 pela dignidade humana e a prevalência dos
direitos humanos
321
.
Afirma, ainda, que considera particulares (sejam pessoas físicas, associações,
empresas privadas, por exemplos) somente aquelas pessoas e entes que não exercem nenhum
tipo de atividade pública e não têm ligações com o Estado. Nessas relações os direitos
humanos fundamentais incidem de forma diferenciada, menos enérgica, mais matizada.
322
Por
outro lado, onde se caracterize a presença estatal deve haver uma eficácia mais exigente
desses direitos. Segundo sua opinião, configura-se a eficácia desses direitos em relações
estatais quando se apresentam no pólo passivo da relação: a) entidades que desempenham
atividades estatais típicas (União, Estados, Distrito Federal, Municípios e seus poderes); b)
entes que, embora com personalidade de direito privado, desempenham funções de
relevantíssimo interesse público (partidos políticos, justiça desportiva); c) entes que se
utilizam ou se constituem de alguma forma de bens ou recursos públicos (empresas públicas,
sociedades de economia mista e suas subsidiárias, os concessionários e permisssionários de
serviços públicos, bem como os serviços sociais autônomos – Sesc, Senai, Sesi -, que recebem
contribuições parafiscais); d) entidades de direito privado que se utilizam de bens, recursos e
serviços de agentes estatais (organizações sociais – Lei no. 9.637/98 – e entidades de apoio –
Lei no. 8.958/94). Assim, onde estiver presente de alguma forma o Estado, a relação não se dá
entre privados.
323
Portanto, não podemos determinar a priori e de forma fechada o que se considera
eficácia desses direitos perante o Estado ou os particulares. Apesar disso, os apontamentos
feitos podem servir de parâmetros, de indícios, para a tomada das decisões nos casos
concretos. É nos casos concretos que devemos averiguar se estamos perante um ente que
detém poder estatal ou parcelas desse poder entendidas em sentido amplo, ou se estamos
diante de um particular que atua despido de poder estatal ou de parcelas desse poder.
Entretanto, não podemos perder de vista ainda que, não raro, num momento de
globalização neoliberal, grupos privados e empresas transnacionais muitas vezes acabam
321
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 313-
315.
322
Idem, ibidem, p. 314.
323
Idem, ibidem, p. 314-318. Andrade defende uma concepção em parte semelhante à sustentada por Sarmento.
Todavia, sustenta que somente devem ser considerados entes públicos para fins de eficácia dos direitos
humanos fundamentais aquelas entidades (dotadas ou não de personalidade jurídica de direito público) que
sejam dotadas de poder de imperium. No tocante aos demais entes, não dotados de poder de imperium
(sociedades de economia mista, por exemplo), não caberia falar em vinculação a esses direitos da mesma
forma que estão vinculado os poderes públicos, mas sim em vinculação como poderes sociais. ANDRADE,
José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, op. cit., p. 266-269.
157
detendo um poder de fato (político, econômico ou social) maior do que o poder de muitos
Estados, o que torna problemática a afirmação de um maior grau de vinculação somente do
Estado. Conforme o direito envolvido no caso e a situação que o caso concreto apresenta,
também podem tornar esta afirmação prenhe de problemas. Pensemos, por exemplo, na
discriminação racial na contratação de um empregado. Por que deveria haver uma eficácia do
direito à igualdade de forma diferenciada perante uma empresa estatal e perante empresas
particulares?
Entendemos, assim, em coincidência parcial com a linha sustentada por Sarmento, que
onde estiver presente o “dedo estatal”, fato a ser averiguado no caso concreto, como já dito, a
incidência dos direitos humanos fundamentais deverá ser mais contundente
324
. Por outro lado,
sempre que estivermos perante sujeitos privados dotados de um enorme poder de fato
(político, econômico ou social) equiparável ou superior ao próprio poder estatal, também se
faz necessária essa vinculação mais incisiva. Essa mesma situação apresenta-se conforme o
direito humano fundamental concretamente envolvido e as nuances do caso.
Estabelecidas essas linhas diretivas, é necessário analisar, de um prisma geral, a
questão da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas.
4.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
PRIVADAS – ASPECTOS GERAIS
Antes de fazermos uma análise do problema da eficácia dos direitos humanos
fundamentais no contrato de trabalho, faz-se necessária a abordagem de alguns aspectos
gerais ligados ao assunto para que possamos descortinar alguns pontos de controvérsia. Dessa
forma, assumindo o pensamento da hermenêutica dialogal de Gadamer, na qual a
compreensão se dá em um processo de diálogo aberto pela estrutura da pergunta, precisamos
questionar alguns temas para que possamos esclarecer certos pré-juízos necessários ao
entendimento da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas.
324
Cabe lembrar que não raras vezes, no Brasil, tanto a administração direta como a indireta usam de contratos
de trabalho para contratar seus servidores e empregados, sendo estes contratos regidos pelo Direito do
Trabalho, de forma geral. Essa possibilidade se tornou ainda mais ampla após a Emenda Constitucional no.
19/1998. Assim, segundo a proposta a que aderimos com as ressalvas pertinentes, nesses contratos de trabalho
a incidência dos direitos humanos fundamentais é tal qual é numa relação com o Estado, não cabendo falar em
efeito diante de particulares.
158
4.3.1 Os direitos humanos fundamentais são originariamente contrapostos apenas ao
Estado? Existe controvérsia na aplicação de todos os direitos humanos fundamentais
perante os particulares?
A primeira questão que merece tratamento é a alegação de que os direitos humanos
fundamentais são direitos que nasceram da tensão entre indivíduo e Estado. Segundo
Lorenzetti, os direitos humanos fundamentais nasceram da tensão entre indivíduo e Estado na
busca da contenção do poder. Afirma o autor que, na sociedade moderna, a noção de poder,
todavia, se expande, incluindo não só o conflito Estado-indivíduo, mas também os conflitos
gerados nas relações entre grupos econômicos e indivíduos, entre maiorias e minorias e
indivíduos entre si
325
. Lembra que hoje gigantescos grupos privados exercem um poder de
fato não menos ameaçador que o poder do Estado, convertendo em pura ilusão a teórica
igualdade das partes e a autonomia da vontade. Assim, segundo autor, muitas vezes o poder
privado torna-se maior do que o poder do Estado e corre-se o risco de se ver arrasada a
“sociedade civil” como modo de convivência juridicamente organizada
326
.
Em linhas gerais, é possível concordar com a análise de Lorenzetti. Conforme visto no
capítulo I, realmente estamos diante do aumento geométrico do poder privado, o que implica
a necessidade de expandir a aplicação dos direitos humanos fundamentais. Todavia, no que
tange à afirmação de que esses direitos foram originariamente opostos somente frente ao
Estado, a idéia merece esclarecimentos, pois a afirmação de que os direitos humanos
fundamentais atuam apenas perante o Estado corresponde à interpretação liberal desses
direitos.
É necessário, para fins de desvelar um sentido mais adequado para a questão da
eficácia dos direitos humanos fundamentais, um mergulho crítico no rio da historicidade, com
o que poderemos esclarecer as pré-compreensões sobre esses direitos e separar os pré-juízos
autênticos dos inautênticos.
Canotilho chama a atenção para um fato importante, ou seja, de que o sentido original
dos direitos do homem tal como previsto na Declaração de 1789 não era o de que tais direitos
325
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. Tradução de Vera Maria Jacob de Fradera.
São Paulo: RT, São Paulo, 1998, p. 125 e 126. STEINMETZ. Wilson, A vinculação dos particulares a direitos
fundamentais, op. cit., p. 83-91.
326
LORENZETTI, Ricardo Luis. Fundamentos do direito privado. op. cit., p. 119 e 120.
159
somente fossem aplicados em relação ao Estado, mas também frente aos particulares. Afirma
o autor:
A Declaração dos Direitos do Homem de 1789 não afirmava apenas o valor dos
direitos fundamentais perante o Estado; dirigia-se também contra os privilégios da
nobreza e do clero, contra posições desigualitárias, em virtude da classe social e
poder econômico, no âmbito do direito privado (cfr., por ex., Constituição
Portuguesa de 1822, arts. 12º. e 13º.). O Estado deveria, nesta perspectiva, assegurar
também a liberdade no âmbito do direito privado. Só mais tarde, com a radicação da
teoria liberal individualista, se alicerçaram duas idéias: (1) a função dos direitos
fundamentais é a da defesa dos indivíduos perante o Estado (direitos de defesa); (2)
o direito privado tem o seu próprio direito (sobretudo os códigos) separado do
direito constitucional.
327
Portanto, como percebemos, a concepção de uma radical separação entre sociedade e
Estado, bem como o entendimento de que os direitos humanos fundamentais só seriam
aplicáveis nas relações indivíduo-Estado, é fruto da concepção liberal individualista e
positivista desses direitos que acabou por impor essa visão.
328
Sarmento afirma que pela própria origem contratualista das teorias sobre os direitos
humanos, considerados anteriores ao Estado, esses direitos eram invocáveis nas relações entre
privados, pois o que justificava o poder estatal era a preservação desses direitos. A idéia de
que os direitos humanos fundamentais são direitos perante o Estado e não aplicáveis nas
relações privadas, portanto, é uma idéia da doutrina liberal dos direitos humanos.
329
Sarlet, sobre o assunto, afirma:
Assim, recolhemos a lição de Peces-Barba, para quem a maioria das teorias
contratualistas concebeu os direitos naturais como direitos dos indivíduos entre si, em
face da ausência do Estado no estado de natureza, registrando, ademais, que mesmo
nos primeiros textos constitucionais, em especial na Declaração de Independência
Americana (1776) e Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão
(1789), os direitos do homem são concebidos como direitos de todos, não excluindo
os particulares da vinculação....
330
327
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1289.
328
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, op. cit., p. 312-313.
329
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, cit., p. 27. Aliás, na p. 66, nota 153, o autor
expõe o argumento de Dickson, que para defender a extensão dos direitos fundamentais às relações privadas,
lembra que isso corresponde ao sentimento e à percepção populares, já que para o público em geral a questão
dos direitos humanos jamais se limitou às relações de direito público.
330
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, op. cit., p. 148-149.
160
Por fim, recorremos a Ubillos, o qual entende que a aceitação da vinculação dos
particulares aos direitos humanos fundamentais exige uma profunda revisão da concepção
desses direitos vigente no chamado “Estado liberal”, concepção que está fundada na visão de
uma profunda separação entre Estado e sociedade. O autor, ao postular a necessidade da
extensão desses direitos às relações privadas, lembra a historicidade desses direitos e a
urgência da abertura de outras possibilidades antes não pensadas no conflito entre liberdade e
poder.
331
Percebemos, portanto, que os direitos humanos fundamentais têm uma origem mais
densa e com maior espectro do que a veiculada pela teoria liberal desses direitos, a qual
tradicionalmente negou a incidência desses direitos nas relações privadas
332
. Cabe lembrar
que os próprios motivos que nos levaram à denominação desses direitos como “direitos
humanos fundamentais” têm como uma de suas pretensões dar sustentação à defesa da
eficácia desses direitos nas relações privadas, por entender que não pode existir uma dupla
ética nas relações das pessoas humanas em sociedade: uma em relação ao Estado e outra em
relação aos particulares.
Fundamental, ainda, é termos em conta que, no processo de compreensão,
existencialmente marcado pela historicidade, devemos nos resguardar da objetificação
conceitual que congela os sentidos, bem como estar sempre prontos a colocar em xeque
nossos pré-juízos, abrindo possibilidades de desvelar outras hipóteses de sentido. O contexto
histórico em que vivemos, marcado pelo agigantamento dos poderes privados, é aspecto
essencial que deve ser levado em conta para o entendimento mais adequado da questão da
eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas.
Quanto à segunda questão, ou seja, se existe controvérsia na aplicação de todos os
direitos humanos fundamentais diante dos particulares, também precisamos fazer algumas
precisões. O problema da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas só
surge realmente como tema em algumas circunstâncias, pois, em outras, esses direitos são
aplicados nas relações privadas sem maiores questionamentos. Por outro lado, também em
331
UBILLOS, Juan María Bilbao. ?En que medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales?, op.
cit., p. 299-300.
332
Sobre o assunto ver, ainda, ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, op. cit. p. 270-275; STEINMETZ, Wilson, A vinculação dos particulares a direitos
fundamentais, op. cit., p. 65-83 e MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade – Estudos de direito constitucional. São Paulo: Instituto Brasileiro de Direito
Constitucional, 1998, p. 214-217.
161
certas circunstâncias sequer é cabível falar de uma eficácia desses direitos em relações
privadas.
Com efeito, existem determinados direitos humanos fundamentais que, sem a menor
sombra de dúvida, são aplicáveis nas relações privadas, como, por exemplo, a indenização por
dano moral e o direito de resposta previsto no inciso V art. 5º. da CF de 1988, ou muitos dos
direitos dos trabalhadores, como, por exemplo, o gozo de férias anuais remuneradas, previsto
no inciso XVII do art. 7º. da CF de 1988
333
. Por outro lado, existem direitos humanos
fundamentais que são somente dirigidos ao Estado. Como exemplos, podemos citar a
proibição de juízo ou tribunais de exceção e o direito do brasileiro nato de não ser extraditado,
previstos, respectivamente, nos incisos XXXVII e LI, ambos do art. 5º. da CF de 1988.
Aliás, Canotilho afirma que a questão da eficácia dos direitos fundamentais nas
relações privadas, como problema, só tem sentido em algumas hipóteses, estando em outras,
já solucionado. Então aduz:
Duas observações prévias: a) o problema não se põe para os direitos fundamentais
que só podem ter como sujeito passivo o Estado (assim, por ex., arts. 22º., 31º.,
49º./1, 52º./2, etc.); b) o problema está resolvido, quando é a própria Constituição a
reconhecer expressamente aos direitos fundamentais efeitos em relação a terceiros
(ex.: arts. 37º/4, 38º./2, etc.). Por outro lado, o problema só adquire autonomia
quando se admite terem os direitos fundamentais eficácia imediata em relação a
terceiros.
334
Como constatamos, existem casos nos quais o problema da eficácia dos direitos
humanos fundamentais nas relações privadas não tem pertinência. Essa pertinência ou não,
todavia, não pode ficar ligada a concepções estanques e aistóricas, visto que o processo
histórico impõe a abertura de novas possibilidades de sentido. Assim, ganha importância a
averiguação da melhor forma de se proteger integralmente a pessoa humana.
333
STEINMETZ, Wilson, A vinculação de particulares a direitos fundamentais, op. cit., p. 101.
334
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1288. Ver, também, nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos
fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos
fundamentais, op. cit., p. 115-116 e SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit.,
p. 8.
162
4.3.2 A eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas: teorias que
afirmam essa eficácia e contraposições
Podemos afirmar, com certa margem de precisão, que a negativa da eficácia dos
direitos humanos fundamentais nas relações privadas é uma postura que tem ligações
profundas com uma visão e interpretação liberal desses direitos. Nessa visão está pressuposta
uma separação absoluta entre Estado e sociedade, cabendo, assim, ao chamado “Direito
Público” resolver as relações entre indivíduo e Estado e, ao Direito Privado, resolver as
relações entre particulares. Dessa forma, para essas correntes, os direitos humanos
fundamentais são espaços de proteção do indivíduo perante o Estado, grande inimigo desses
direitos, não havendo qualquer possibilidade de eficácia desses direitos nas relações privadas,
pois deve ser mantida a autonomia individual como espaço preservado contra as ingerências
estatais.
Quanto a essa postura de negativa absoluta de eficácia desses direitos nas relações
privadas, podemos afirmar, também com certa margem de consenso, que foi abandonada ou
mitigada.
335
Superada a doutrina liberal, que negava, taxativamente, a eficácia dos direitos
humanos fundamentais nas relações privadas, podemos dizer que, tradicionalmente, duas
correntes disputam o sentido da chamada “eficácia ou vinculação dos particulares aos direitos
humanos fundamentais”. Essas duas correntes são as teorias da eficácia direta e da eficácia
indireta.
A nosso ver, são essas as duas principais teorias que disputam a questão sobre o tema.
É certo que também surgiram outras teorias sobre o assunto, que, de uma maneira ou outra,
acabam tomando de empréstimo e combinando argumentos das duas teorias básicas citadas.
Podemos citar como exemplo a teoria dos deveres de proteção, subsidiária da teoria da
eficácia indireta, segundo a qual cabe ao Estado o dever de proteção aos direitos humanos
fundamentais nas relações privadas, que assim acabam atuando nessas relações através do
Estado (Executivo, Legislativo ou Judiciário). Podem ser citadas, ainda, a teoria da
convergência estatista (Alemanha) e a teoria da state action (EUA). A teoria da convergência
335
Sobre essas posturas, seu abandono ou mitigação ver, entre outros, ANDRADE, José Carlos Vieira de, op.
cit., p. 271, PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, op. cit., p. 297-298, STEINMETZ, Wilson, A vinculação dos
particulares a direitos fundamentais, op. cit., p. 65, SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações
privadas, op. cit., p. 226 e s.; MENDES, Gilmar Ferreira, Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade, op. cit., p. 215, CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição,
op. cit., p. 1286 e s. e ALEXY, Robert, Teoria de los derechos fundamentales, op. cit., p. 505.
163
estatista nega a validade da discussão entre as teorias da eficácia imediata e mediata dos
direitos humanos fundamentais nas relações privadas; segundo esta teoria, a atuação dos
particulares se dá por uma permissão ou ação estatal, sendo o Estado o responsável pelas
violações a esses direitos. Por outro lado, a teoria da state action afirma a impossibilidade de
aplicação dos direitos humanos fundamentais nas relações eminentemente privadas, cabendo a
aplicação desses direitos apenas nas relações em que particulares exercem funções estatais ou
quando se possa imputar ao Estado a conduta de um particular que viola um direito. Por fim,
podemos citar a posição de alguns que negam totalmente o interesse da discussão, posições
estas já descartadas acima, pois afirmam que o problema desses direitos nas relações privadas
deveria ser resolvido pelas leis civis e penais, não pelas leis de patamar constitucional
336
.
Iremos nos dedicar à análise e discussão das teorias da eficácia imediata e à da eficácia
mediata dos direitos humanos fundamentais pelos motivos acima indicados, além de
propormos uma solução diferenciada, ou seja, aquilo que podemos chamar de “eficácia
imediata ponderada” dos direitos humanos fundamentais.
4.3.2.1. As teorias da eficácia mediata e imediata: considerações e questionamentos
Não é possível respondermos ao questionamento sobre a eficácia dos direitos humanos
fundamentais nas relações privadas se não atentarmos para as pré-compreensões que são as
condições de possibilidade de uma resposta adequada. Portanto, o esclarecimento dessas pré-
compreensões passa, necessariamente, pela investigação das teorias que tratam do tema.
Canotilho afirma que existem duas correntes que tradicionalmente disputam o sentido
da chamada “eficácia horizontal dos direitos fundamentais ou eficácia dos direitos
fundamentais na ordem jurídica privada”: a teoria da eficácia direta e a teoria da eficácia
indireta. Pela primeira, esses direitos se aplicam, obrigatória e diretamente, às relações do
comércio jurídico com as entidades privadas, individuais ou coletivas. Assim, os indivíduos
poderiam invocar diretamente tais direitos para regular suas relações sem a necessidade de
interferência dos poderes públicos na sua regulamentação por meio de normas
336
Sobre todas essas teorias e posições ver SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado:
algumas considerações em torno da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, op. cit., p. 120.;
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 223; UBILLOS, Juan Maria
Bilbao, op. cit., p. 308; STEINMETZ, Wilson, A vinculação dos particulares a direitos fundamentais, cit., p.
135 e s. e MENDES, Gilmar Ferreira, Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade, op. cit., p. 217
164
infraconstitucionais. Por sua vez, a teoria da eficácia indireta afirma que a eficácia desses
direitos se dá, em primeira mão, perante o legislador, que deve regular tais direitos por meio
de normas infraconstitucionais para sua aplicabilidade nas relações entre privados.
337
Dessa forma, uma teoria propõe a aplicação direta desses direitos nas relações
privadas, ao passo que a outra entende que não deve se dar essa aplicação diretamente,
havendo a necessidade de intervenção do legislador infraconstitucional a fim de preservar a
esfera privada da “colonização” constitucional.
Alexy também analisa as teorias da eficácia mediata e imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas. Segundo o autor, a teoria da eficácia mediata tem como
um dos principais defensores Dürig, tendo sido encampada pelo Tribunal Constitucional
Federal Alemão. Esta teoria defende que os direitos fundamentais, enquanto direito objetivo
(valores ou princípios objetivos), irradiam-se através das cláusulas gerais do direito privado,
influenciando a interpretação e a aplicação do direito privado. Assim, os direitos
fundamentais não são diretamente invocados perante os particulares, mas o juiz deve, de
acordo com uma interpretação conforme aos direitos fundamentais, dar uma eficácia indireta
desses nas relações privadas.
338
Segundo Alexy, a teoria da eficácia imediata tem como seus maiores defensores
Nipperdey, tendo repercussão nas decisões do Tribunal Federal do Trabalho. Seus defensores
sustentam que, enquanto direitos subjetivos públicos, em sentido clássico (direitos dos
cidadãos frente ao Estado), os direitos fundamentais são aplicáveis somente em face do
Estado. Todavia, como direito objetivo, as normas de direitos fundamentais vinculam os
particulares diretamente, ou seja, não se aplicam pela interpretação dos textos legais do direito
privado, mas, sim, delas “fluyen directamente también derechos privados subjetivos del
individuo”.
339
Outro autor que trata do assunto é Ubillos, o qual afirma que a teoria da eficácia
mediata ou indireta, na verdade, é uma solução intermediária no reconhecimento da eficácia
dos direitos fundamentais nas relações privadas. Pela mediação de um órgão do Estado, que
está vinculado objetivamente a esses direitos, esses se irradiam para as relações de direito
privado como direito objetivo, seja pela intervenção do legislador infraconstitucional ao
regulamentar esses direitos nas leis ordinárias, seja pelo juiz, quando da interpretação do
337
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição, op. cit., p. 1286-1287.
338
ALEXY, Robert, op. cit., p. 511-512. Para uma análise da posição dos tribunais alemães sobre o assunto,
HECK, Luís Afonso. Direitos fundamentais e sua influência no direito civil.
339
ALEXY, Robert, op. cit., p. 512.
165
direito infraconstitucional. Já a teoria da eficácia imediata ou direta defende que uma grande
parte dos direitos fundamentais, enquanto direitos subjetivos reforçados pelas garantias
constitucionais, é diretamente aplicável nas relações privadas diante de violações a estes
direitos praticadas por particulares. Assim, as normas constitucionais são diretamente
invocáveis como normas de comportamento nas relações privadas.
340
Como percebemos, ambas as teorias, seja a da eficácia mediata, seja a da eficácia
imediata, defendem a eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas,
embora de forma e intensidade diversas
341
. A teoria da eficácia indireta está diretamente
ligada com a questão da chamada “dupla dimensão dos direitos humanos fundamentais”, ou
dimensões objetiva e subjetiva desses direitos.
342
Segundo a primeira dessas concepções, os direitos humanos fundamentais apresentam-
se como uma ordem de valores, de princípios constitucionais que se irradiam por todo o
ordenamento jurídico, alcançando tanto o direito público como o direito privado. Assim, o
Estado deve não só respeitar, mas também promover tal ordem de valores e princípios. Por
outro lado, tendo em vista a visão unitária do ordenamento jurídico, esses valores e princípios
alcançam também a sociedade e os privados. Assim, esses direitos não podem ser pensados
apenas do ponto de vista dos indivíduos, mas também da comunidade como um todo.
Um aspecto importante desta teoria é a possibilidade que traz no sentido de uma
interpretação conforme à Constituição, da filtragem constitucional das normas
infraconstitucionais, possibilitando a irradiação da Constituição, notadamente quanto a seus
valores e princípios fundamentais, bem como dos próprios direitos humanos fundamentais por
toda a ordem jurídica, considerada em sua unidade.
A ligação entre a dimensão objetiva dos direitos humanos fundamentais com a teoria
da eficácia mediata desses direitos fica bem clara no famoso e controverso caso Lüth, julgado
pelo Tribunal Constitucional Alemão, em que o tribunal entendeu que a ordem de valores e
340
UBILLOS, Juan Maria, op. cit., p. 309-317.
341
Sobre a eficácia das normas de direitos fundamentais nas relações privadas ver, ainda, FILHO, Nagig Slaibi.
Anotações À Constituição de 1988, op. cit., p. 197-198; COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. A Obrigação
Como Processo. São Paulo: José Buschatski, Editor, 1976, p. 23 e 24, LORENZETTI, Ricardo Luis.
Fundamentos do direito privado, op. cit., p. 378 e 379 e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Aspectos de teoria
geral dos direitos fundamentais. “In” Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília
Jurídica, 2000, p. 169.
342
Sobre referida temática ver CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1256., BONAVIDES, Paulo, op. cit., p.
519; SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 133 e SARLET, Ingo
Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, op. cit., p. 118.
166
princípios consagrados na Lei Fundamental Alemã irradia por todo o ordenamento jurídico,
alcançando a interpretação e concreção do direito privado.
343
Já a segunda concepção entende que os direitos humanos fundamentais são, em
primeira linha, direitos subjetivos das pessoas, ou seja, são reconhecidos como faculdades,
como poderes atribuídos aos sujeitos ativos de tais direitos, os quais podem exigir
comportamentos perante os sujeitos passivos. Assim, o que se põe de relevo é a proteção que
deflui desses direitos com relação aos interesses, situação de vida, liberdades de uma pessoa
encarada como sujeito de direitos.
Essa separação absoluta, a nosso ver, não faz sentido. Entendemos que essas
concepções devem atuar em conjunto, com a dimensão objetiva dos direitos humanos
fundamentais atuando como fortalecimento da dimensão subjetiva, tendo em conta a unidade
do ordenamento jurídico. Apesar disso, pensamos que, quanto à eficácia perante os
particulares, deve-se dar prevalência ao aspecto subjetivo desses direitos, para que se assegure
a pessoa humana contra todos os atos de agressão aos direitos humanos fundamentais, que são
reconhecidos e positivados justamente para proteger a pessoa humana.
Além disso, a que nos parece, a dimensão subjetiva dos direitos humanos
fundamentais possibilita um maior espectro de proteção a esses direitos, pois não limita sua
eficácia à mera irradiação pelo direito privado, que se faz necessitada do papel interventivo do
Estado em nível infraconstitucional (seja através do Legislativo, ou seja do juiz na concreção
dos textos infraconstitucionais), mas, sim, possibilita a aplicação direta, ainda que ponderada,
desses direitos nas relações privadas.
344
.
Portanto, a que nos parece, a teoria da eficácia mediata funciona como uma solução
intermediária, visto que mantém os direitos humanos fundamentais destinados, em primeira
mão, somente a ter como sujeito passivo o Estado, apenas sendo aplicados nas relações
privadas pela mediação do legislador infraconstitucional, vinculado que está à ordem
constitucional, ou pela mediação do juiz, este se utilizando de critérios interpretativos, numa
espécie de “interpretação conforme aos direitos humanos fundamentais das normas infra-
constitucionais de direito privado”, ou na concreção das chamadas “cláusulas gerais”, quando,
343
Sobre o caso Lüth ver, entre outros, MENDES, Gilmar Ferreira, Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade, op. cit., p. 220-221.
344
Além disso, cabe lembrar um argumento pragmático. Embora altamente criticável, pois impede um controle
constitucional das normas infraconstitucionais, a posição do STF é no sentido de não conhecer recursos
extraordinários que não estejam fundados em direta violação dos textos constitucionais. Dessa forma, teríamos
uma barreira formal de acesso ao STF que poderia trancar a análise, por nossa Corte Suprema, dos efeitos
irradiantes dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas.
167
então, deve utilizar desses direitos como parâmetros de aplicação e concreção dessas
cláusulas.
Assim, em nosso entendimento, um dos problemas dessa teoria está em seus
pressupostos, o que ocasiona problemas em sua aplicação e na amplitude de seus efeitos. Com
efeito, esta teoria aceita em primeira mão que os direitos humanos fundamentais somente
vigoram diretamente perante o Estado, minorando a importância que têm nas relações
privadas, principalmente nas relações privadas assimétricas (desigualdade de forças).
Portanto, ao postular que os direitos humanos fundamentais não são diretamente invocáveis
perante os particulares, a teoria enfraquece o âmbito de incidência desses direitos e o grau de
proteção de que necessitam na contemporaneidade.
Dito isso, cabe-nos fazer uma breve análise sobre a teoria da eficácia imediata dos
direitos humanos fundamentais. A teoria da eficácia imediata, por seu turno, aplicada em sua
feição original e de forma absoluta, deixa de levar em conta uma série de circunstâncias,
sobretudo o fato de que a eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas
deve ser ponderada em virtude de que nessas relações o sujeito passivo também pode ter
direitos humanos fundamentais, que o Estado, de regra, não tem, os quais devem ser levados
em conta na decisão
345
.
Outra questão levantada em face da teoria da eficácia imediata é que, se aplicada sem
a devida ponderação, pode levar ao aniquilamento do direito privado. Nesse sentido podemos
citar a opinião de Canaris, que sustenta que uma aplicação da teoria da eficácia imediata poria
em risco o direito privado. Segundo o autor, a aplicação desta teoria colocaria em risco tanto o
345
Alexy afirma: “Actualmente se acepta, en general, que las normas iusfundamentales influyen en la relación
ciudadano/ciudadano y, en este sentido, tienen un efecto en terceros o un efecto horizontal. Lo que se discute
es como y en qué medida ejercen esta influencia. En la cuestión acerca de como las normas iusfundamentales
influyen en la relación ciudadano/cuidadano, se trata de un problema de construcción. La cuestión acerca de
en qué medida lo hacen formula un problema material, es decir, un problema de colisión. Tanto el problema de
construcción como el de colisión resultan de una diferencia fundamental entre la relación Estado/ciudadano y
la relación ciudadano/ciudadano. La relación Estado/ciudadano es una relación entre un titular de derecho
fundamental y un no titular de derecho fundamental. En cambio, la relación cuidadano/ciudadano es una
relación entre titulares de derechos fundamentales.” ALEXY, Robert, op. cit., p. 510-511. Por seu turno,
Sarmento afirma: “diversamente do Estado, que tem de ser juridicamente limitado, o indivíduo é
essencialmente livre, e a sua autonomia, numa ordem democrática, constitui direito fundamental
constitucionalmente protegido. Não seria aceitável sujeitar o cidadão ao mesmo regime vigente para o Estado,
na qualidade de sujeito passivo dos direitos fundamentais, diante da liberdade constitucionalmente desfrutada
pelo primeiro, que se apresenta como corolário inafastável da sua dignidade como pessoa humana, em
oposição ao caráter intrinsecamente limitado do segundo.” SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e
relações privadas, op. cit., p. 5-6. Quanto a essa temática, cabe lembrar, por fim, a advertência de Andrade,
para quem é perigoso estender demasiadamente os direitos humanos fundamentais às pessoas coletivas, pois
essas apenas analogicamente podem ser consideradas titulares desses direitos como direitos atípicos, tanto que
afirma que, nesses casos, não se trataria de verdadeiros direitos subjetivos, mas de garantias institucionais, já
que os direitos humanos fundamentais têm como verdadeiro titular a pessoa humana. ANDRADE, José Carlos
Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, op. cit., p. 183.
168
direito contratual como o direito extra-contratual, que seriam substituídos pelo direito
constitucional. Segundo o autor, essa teoria não leva em conta que os direitos fundamentais
têm por seu destinatário direto apenas o Estado.
346
Embora entendamos que a posição de Cannaris esteja fundada no pressuposto liberal
de que a eficácia direta dos direitos humanos fundamentais se dá somente perante o Estado,
não podemos desconsiderar, simplesmente, parte de sua fundamentação, ou seja, a que afirma
a necessidade da preservação de um âmbito próprio do direito privado. Dessa forma,
entendemos que o que podemos chamar de uma teoria da “eficácia imediata ponderada” é a
melhor maneira de resolver a questão, pois, sem desconsiderar a necessidade de proteção dos
direitos humanos fundamentais nas relações privadas, pode, por meio de um modelo de
concreção proporcional/ponderado, descortinar os vários problemas que demandam solução
para o tratamento adequado do tema em foco.
4.3.2.2 A defesa de uma “eficácia imediata ponderada”
Conforme já assinalamos, a proporcionalidade/ponderação é um existencial que se faz
presente nas sociedades pluralistas e democráticas. A ponderação é o modo de ser dos Estados
e das sociedades democráticas, cabendo tamm na questão da eficácia dos direitos humanos
fundamentais nas relações privadas a consideração desse existencial.
Para Canotilho, o problema da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas
relações privadas deve ser resolvido por meio de “soluções diferenciadas”, tendo em conta a
pluralidade de funções desses direitos e, ainda, tendo em conta qual o direito humano
fundamental que está envolto no caso concreto. Segundo o autor, o problema dessa eficácia
está inserido no âmbito da função de proteção desses direitos, que devem ser considerados
princípios de ordenação objetiva, como direitos e garantias de proteção do Estado, que
também alcança a ordem jurídica privada. Salienta, ainda, que, sobre uma eventual
“hipertrofia” desses direitos, o que sufocaria a ordem privada, tal não se dá, pois não se
346
CANARIS, Claus-Wilhem. A influência dos direitos fundamentais sobre o direito privado na Alemanha. In:
Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Ingo Wolfgang Sarlet (Organizador). Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2003, p. 235. Em sentido semelhante ver HESSE, Konrad. Elementos de direito
constitucional da República Federal da Alemanha, op. cit., p. 284-285.
169
pretende que nas relações privadas as pessoas sejam colocadas no mesmo pé de igualdade no
qual devem estar nas relações com o Estado.
347
Canotilho lembra, também, que os direitos, liberdades e garantias não protegem
apenas os cidadãos em face do poder público, visto que as ordens jurídicas da liberdade de
profissão e da liberdade, como exemplos, podem ser também perturbadas por forças do
domínio social. Assim, a função de proteção dos direitos, liberdades e garantias não pode
deixar de implicar a eficácia desses direitos no âmbito de relações privadas assimétricas,
caracterizadas pela desigualdade das partes, cabendo às leis e aos tribunais, nestes casos,
estabelecer normas de conduta e decisão que cumpram a função de proteção desses direitos,
liberdades e garantias.
348
Ainda, complementa Canotilho:
Em primeiro lugar, os direitos, liberdades e garantias são hoje direitos subjectivos,
independentemente do carácter público ou privado; em segundo lugar, não se
deduzem, com base em concepções imperativísticas, das normas legais. Por isso,
nada impede que valham como direitos subjectivos na sua aplicação ao direito civil,
se esta caracterização lhes trouxer uma maior dimensão prática. Desde logo, a de
fundarem o direito de acesso aos tribunais para defesa desses mesmos direitos e a de
exigirem a aplicação dos princípios constitucionais materiais, como exemplo, os
princípios da exigibilidade e da proporcionalidade.
349
Sarlet também defende uma eficácia direta prima facie não absoluta, justamente por
reconhecer que alguns dos argumentos dos que defendem a teoria da eficácia mediata,
principalmente o fato de que nas relações privadas podem estar presentes titulares de direitos
humanos fundamentais tanto no pólo ativo como no pólo passivo da relação, devem ser
levados em conta. Assim, concorda com Canotilho na busca de soluções diferenciadas e
afirma:
Com efeito, cuidando-se de relações entre titulares de direitos fundamentais, sempre
se farão presentes – ponto de vista comum às teorias da eficácia direta e indireta – na
esteira do que observou Alexy, conflitos ou, pelo menos, situações de tensão, que,
por sua vez, reclamam soluções distintas, de acordo com o caso concreto e do (ou
dos) direitos fundamentais em conflito (ou tensão), tratando-se, em última instância,
de um problema de ponderação.
350
347
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 1289.
348
Idem, ibidem, p. 1293.
349
Idem, ibibem, p. 1295.
350
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno da
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, op. cit., p. 157.
170
Dessa forma, a eficácia imediata ponderada dos direitos humanos fundamentais nas
relações privadas parece ser a melhor solução para o problema posto em foco. Defender uma
eficácia imediata ponderada dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas nada
tem nada de extraordinário, como bem lembra Ubillos, partidário dessa concepção. Com
efeito, lembra o autor que mesmo nas relações entre indivíduo e Estado os direitos humanos
fundamentais não apresentam caráter ilimitado ou absoluto, mas estão sujeitos a limitações.
Afirma que, tendo em vista o reconhecimento da autonomia e liberdade humanas, é
impossível aplicar sempre o princípio da igualdade, enquanto proibição de arbítrio, nas
relações privadas. Com base em L. Henkin, sustenta “a liberdade de ser irracional”, pois no
âmbito estritamente privado existem comportamentos que não estão ao alcance das normas
constitucionais (por exemplo, quem quero convidar para vir a uma festa em minha casa).
351
Ubillos defende a necessária ponderação na aplicação dos direitos humanos
fundamentais quando nas relações entre os particulares, o que deverá ser feito segundo um
juízo de ponderação/proporcionalidade dos interesses em conflito. Afirma o autor:
Descartada la hipótesis de una eficacia uniforme o indiscriminada, la clave está en la
definición de los criterios que han de orientar esa compleja tarea. Habrá que
determinar primero si en una determinada relación jurídico-privada rige un concreto
derecho (si el derecho no puede operar en ese contexto, ahí acaba la indagación: no
existe, por ejemplo, um derecho de acceso a los medios de comunicación privados)
y, despejada esa incógnita, precisar, en un segundo momento, y mediante el
correspondiente juicio de proporcionalidad, hasta qué punto há de ser respetado por
un particular, porque sostener que un derecho fundamental está en juego en una
determinada relación no significa postular que haya de prevalecer a toda costa. En
caso de colisión, la ponderación es ineludible y no tiene por qué resolverse
necessariamente en favor del titular del derecho fundamental.
352
Nessa mesma direção vai o pensamento de Sarmento, o qual esclarece que na
aplicação dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas é a ponderação dos
interesses em jogo que vai constituir o caminho da solução do problema. Segundo o autor,
nessas relações podem entrar em conflito os direitos humanos fundamentais e a autonomia
privada, também tutelada constitucionalmente. Dessa forma, não é possível aplicar esses
direitos perante os particulares com a mesma intensidade que se aplicam nas relações com o
Estado. Mesmo nas relações assimétricas com os chamados “poderes sociais”, onde, segundo
o autor, a intensidade da eficácia desses direitos deve ser mais intensa, não devem ter a
351
UBILLOS, Juan María Bilbao, op. cit., p. 332-333.
352
UBILLOS, Juan María Bilbao, op. cit., p. 334-336.
171
mesma intensidade que nas relações com o Estado. Sustenta ainda que nas relações privadas
deve ser garantida, em nome da liberdade pessoal, uma certa margem de arbítrio em
determinadas circunstâncias, principalmente naquelas relações privadas ligadas às vivências
afetivas. Quando, pelo contrário, entrar em conflito a autonomia privada ligada a interesses
econômicos e os direitos humanos fundamentais, a eficácia desses poderá ser mais intensa.
353
Diante dessas questões Ubillos, entre outros, indica dois critérios que podem ser de
grande valia e que auxiliam o juiz na ponderação dos interesses em jogo diante do caso
concreto quando da concreção dos direitos humanos fundamentais em relações jurídico-
privadas:
Dos criterios que pueden ayudar al juez a decidir, por ejemplo, em qué medida el
consentimiento del afectado excluye la inconstitucionalidad de la autorregulación
privada. Em primer lugar, la capacidad de penetración de estos derechos en la esfera
privada debería ser mayor cuando se detectase una relación asimétrica, análoga a la
que se establece entre ciudadanos y poderes públicos. Es decir, cuando en la relación
entre particulares una de las partes ostenta una posición de clara superioridad fáctica
frente a la outra o cuando la própria relación jurídico-privada constituya en sí mesma
un “bien escaso” (Alfaro), dadas las dificultades objetivas que encuentra el
particular para satisfacer los objetivos que persigue a través de una relación
alternativa. Cuanto mayor sea la desigualdad de facto entre los sujetos de la relación,
mauor será el margen de autonoía privada cuyo sacrificio es admissible, porque falla
entonces el presupuesto o fundamento de la proteción de esa autonomía. ... En
segundo lugar, la incidencia de los derechos en el tráfico privado será más intensa
cuando es la propria dignidad de la persona humana la que se vê directamente
afectada. ...
354
Portanto, conforme depreendemos das afirmações feitas, embora seja necessário dar
um espaço para a autonomia privada, não se pode perder de vista a necessidade da tutela da
353
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 282, 299, 303, 307, 309 e 310.
354
UBILLOS, Juan María Bilbao, op. cit., p. 334. Sobre a vinculação dos particulares à dignidade humana, cabe
lembrar Sarlet, que afirma: “Para além desta vinculação (na dimensão positiva e negativa) do Estado, também
a ordem comunitária e, portanto, todas as entidades privadas e os particulares encontram-se diretamente
vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, por sua natureza igualitária e por
exprimir a idéia de solidariedade entre os membros da comunidade humana, o princípio da dignidade da
pessoa humana vincula também no âmbito das relações entre os particulares.” SARLET, Ingo Wolfgang.
Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2001, p. 109-110. Ver, ainda, a posição de Bramante, que defende a eficácia dos direitos
fundamentais nas relações privadas, chamando a atenção para o fato de que a finalidade protetora dos direitos
básicos deve ter alcance universal, no mesmo nível de proteção comparável com as relações com poder
público, principalmente nas áreas em que prevalecem as relações de poder assimétricas, como no vínculo
empregatício, na posição do consumidor final e nas demais relações particulares que submetem o indivíduo a
um vínculo de subordinação ou às instâncias decisionais privadas.
BRAMANTE, Ivani Contini. Eficácia do
contraditório e da ampla defesa nas relações interprivadas. Revista LTr.. Vol. 64, no. 08. São Paulo: LTr.
Editora, agosto de 2000, p. 1015.
172
dignidade humana como princípio e valor indisponível
355
, bem como levar em conta, ainda, as
chamadas “relações assimétricas” de poder nas relações privadas, quando, então, a incidência
ponderada dos direitos humanos fundamentais deverá ter um grau maior de intensidade.
A questão dos poderes privados, dos poderes econômico-sociais, dos poderes de fato,
aliás, ganha grande importância no momento em que vivemos. Cada vez mais, grandes grupos
privados ocupam lugar de proeminência em relação aos Estados, em especial dos periféricos,
impondo, de forma “oligárquica” suas leis (lex mercatória).
356
Aponta Ubilos, categoricamente, a expansão do fenômeno do poder, o que torna uma
ficção o entendimento de que nas relações privadas há o desfrute da liberdade pela simples
proclamação do princípio da igualdade formal. Registra o autor:
355
O princípio da dignidade da pessoa humana expressamente agasalhado no texto constitucional brasileiro (art.
1º, inciso III, da CF de 1988) estabelece limitações à autonomia privada, mesmo de seu titular. Sarlet define a
dignidade da pessoa humana: “Assim sendo, temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e
distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e
da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as
condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa
e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988, op. cit. p. 57. Nobre Júnior, por seu turno, assinala: “Com base na sistematização de JOAQUÍN ARCE
Y FLÓRES – VALDÉS, podemos, mediante as adaptações necessárias, revelar o substrato material da
dignidade da pessoa humana em nossa ordem jurídica. Disso resulta que a interferência do princípio se espraia,
entre nós, nos seguintes pontos: a) reverência à igualdade entre os homens (art. 5
o
., I, CF); b) impedimento à
consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, a implicar a observância
de prerrogativas de direito e processo penal, na limitação da autonomia da vontade e no respeito aos direitos de
personalidade, entre os quais estão inseridas as restrições à manipulação genética do homem; c) garantia de um
patamar existencial mínimo”. NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. O Direito brasileiro e o princípio da
dignidade da pessoa humana. Endereço Eletrônico www.jus.com.br. De ambas as posições, percebe-se que
existe um espaço de proteção à dignidade humana que impede o próprio titular do direito de abrir mão desta
esfera protetiva, ou seja, é uma esfera indisponível ao próprio titular, quanto mais a terceiros. Aliás, sobre esse
assunto, ver ainda, sobre o célebre “caso do arremesso de anão” julgado pelo Conselho de Estado Francês,
onde se reconhece a indisponibilidade da dignidade da pessoa humana, GOMES, Joaquim B. Barbosa. O
poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana na jurisprudência francesa. Endereço Eletrônico
www2.uerj.br/direito/publicações. Por fim, cabe citar Häberle, que afirma o caráter pré-positivo e vinculativo
da dignidade humana frente a todos – Estado e sociedade – como valor fonte irrenunciável, caracterizando
uma verdadeira “eficácia de irradiação” desse princípio. HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como
fundamento da comunidade estatal. “In” Dimensões da dignidade – Ensaios de filosofia do direito e direito
constitucional. Ingo Wolfgang Sarlet – Organizador. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2005, p. 89.
356
Steinmetz, tratando do fenômeno do poder nas sociedades capitalistas modernas afirma: “...(re)define-se,
aqui, poder como a relação entre, no mínimo, dois atores ou sujeitos (individuais ou coletivos) na qual um dos
atores tem (i) a capacidade de induzir, determinar ou obrigar o outro a fazer algo, em uma determinada esfera
ou âmbito de vida, que de outra forma não faria ou (ii) a capacidade de impedir, em uma determinada esfera
ou âmbito de vida, que o outro faça algo que desejaria fazer. Em enunciação mais concisa, o poder é a
capacidade que um sujeito tem de condicionar, restringir ou eliminar a liberdade de outrem em uma
determinada esfera ou âmbito de vida. Ora, no mundo contemporâneo, o Estado não é o único sujeito capaz de
condicionar, restringir ou eliminar a liberdade das pessoas (indivíduos ou grupos). Nas relações horizontais,
entre particulares, também se verifica, amplamente, a capacidade de alguns sujeitos condicionarem,
restringirem ou eliminarem as liberdades de outros sujeitos. STEINMETZ, Wilson, A vinculação dos
particulares a direitos fundamentais, op. cit., p. 86-87.
173
...Hoy como ayer la realidad desmiente la existencia de una paridad jurídica en
buena parte de los vínculos entablados entre sujetos privados. El Derecho privado
conoce también el fenômeno de la autoridad, del poder, como capacidad de
determinar o condicionar jurídicamente o de facto las decisiones de otros, de influir
eficazmente en el comportamiento de otros, de imponer la propria voluntad. Basta
con mirar alrededor y observar atentamente la realidad que nos rodea. Es un hecho
fácilmente constatable la progresiva multiplicación de centros de poder privados y la
enorme magnitud que han adquirido algunos de ellos....
357
Aliás, Tepedino, em linha semelhante, ensina que a proteção dos direitos humanos
fundamentais não mais pode ser perseguida a contento se confinada ao âmbito tradicional do
chamado “Direito Público”, sendo possível, mesmo, aduzir que as pressões do mercado,
especialmente intensas na atividade econômica privada, podem favorecer uma conspícua
violação à dignidade da pessoa humana, reclamando, por isso mesmo, um controle social com
fundamento nos valores constitucionais.
358
Pérez Luño, ao tratar do tema da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas
relações privadas, registra:
En cualquier caso, entiendo que la necesidad de extender la aplicación de los
derechos fundamentales a lãs relaciones entre sujetos privados es fruto de dos
argumentos básicos. El primero, que opera en el plano teórico, es corolario de la
exigencia lógica de partir de la coherencia interna del ordenamiento jurídico lo que
constituye, al proprio tiempo, una consecuencia del principio de la seguridad
jurídica. Se ha indicado, con razón, que el no admitir la eficacia de los derechos
fundamentales en la esfera privada supondría reconecer una doble ética en el seno de
la sociedad: la una aplicable a las relaciones entre el Estado y los particulares, la otra
aplicable a las relaciones de los ciudadanos entre sí, que serían divergentes en su
propria esencia y en los valores que consagran. El segundo obedece a un acuciante
imperativo político del presente, en una época en la que o poder público, secular
amenza potencial contra las libertades, le ha surgido la competencia de poderes
econômico-sociales fáticos, en muchas ocasiones, más implacables que el proprio
Estado en la violación de los derechos fundamentales.
359
357
UBILLOS, Juan María Bilbao, op. cit., p. 301. Sobre o fenômeno do poder privado, cabe lembrar também
Capella, que afirma que o “soberano privado supra-estatal difuso” (mega-corporações e grupos privados)
possui poder de natureza política, pois impõe decisões no âmbito, principalmente, da configuração econômica,
o que foi favorecido pelas políticas neoliberais de enfraquecimento do Estado. CAPELLA, Juan Ramón, Fruto
proibido – Uma aproximação histórico-teórica ao estudo do direito e do estado, op. cit., p. 257-258.
358
TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. Direitos Humanos e Relações Jurídicas Privadas. 2. ed. Rio de
Janeiro – São Paulo: Renovar, 2001, págs. 60 e 66. Ver, também, sobre a questão do aumento do poder dos
privados e a necessidade de novas posturas de proteção aos direitos humanos fundamentais, dentre elas, a
eficácia desses direitos nas relações privadas, a posição de SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e
relações privadas, op. cit., p. 1-4.
359
PéREZ LUñO, Antonio Enrique, Derechos humanos, estado de derecho y constitucion, op. cit., p. 314. Ver,
também a posição de CAMPOS, Germán J. Bidart. Teoría general de los derechos humanos. Buenos Aires:
Astrea, 1991, p. 12-14, 25 e 397.
174
Cabe ao intérprete-aplicador, portanto, tomar consciência das mudanças contextuais
pelas quais passamos, nas quais o fenômeno do poder não se restringe à esfera estatal,
cabendo, assim, a abertura de novos sentidos para os direitos humanos fundamentais, já que
verdadeiros trunfos frente ao poder. Os intérpretes não podem ficar atrelados a uma
concepção liberal dos direitos humanos fundamentais, que congelou o sentido desses direitos
impedindo-os de fundar não só as relações indíviduo-Estado, mas, tamm, as relações entre
privados.
A hermenêutica filosófica constantemente chama a atenção dos intérpretes para isso,
para a responsabilidade ética e social dos intérpretes e para o seu papel de mediadores na
tarefa prática, da razão prática, que sempre deve estar presente na solução dos casos jurídicos.
É nesse sentido a postura de Hernández-Largo, que, ao falar da construção de uma
hermenêutica jurídica sob o viés da hermenêutica filosófica, aduz:
Lo que así se reconstruye es una teoría de la razón práctica jurídica, en la que la
racionalidad del discurso jurídico, la universalidad de su validez, la comprensibilidad
de sus postulados y la justificación de sus conceptos y principios, estén fundados en la
misma realidad óntica del ser humano social y en su ontológica apertura a los demás.
En el derecho se encuentran la autoconsciencia ética del ser humano y su pretensión
de construir formas posibles de convivencia con otros sujetos de igual condición y
dignidad. Las situaciones conflictivas a que ese objetivo pueda dar lugar, no pueden
solventarse más que introduciendo la razón circunstanciada del intérprete en la
comprensión del conflicto. De ahí que las leyes sean asequibles a la razón al ser
aplicadas y en referencia a las situaciones humanas desde las que se las interroga.
360
É necessário, ainda, contextualizar o que denominamos de “autonomia privada”, já
que é com esse princípio que não raras vezes os direitos humanos fundamentais terão de ser
ponderados na esfera privada. Cabe afirmar que a autonomia privada, que consiste no poder
conferido aos privados para conformarem (regularem) as suas relações jurídicas
361
, não pode
mais ser vista em sua feição liberal.
360
HERNÁNDEZ-LARGO, Antonio Osuna, op. cit., p. 14.
361
ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução de Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Livraria Almedina,
1988, p. 127 e 128; PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – Introdução ao direito civil constitucional.
2. ed. Tradução de Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002, p. 17.
175
Tendo como pressuposto a liberdade, a autonomia privada tem como sua expressão no
campo constitucional brasileiro a livre iniciativa
362
, prevista como valor social
363
pelo inciso
IV, in fine, do art. 1
o
. e no caput do art. 170, ambos da CF de 1988. Como observamos, a
autonomia privada não pode mais ser entendida no sentido tradicional, como liberdade plena
de contratar, mas, sim, como liberdade valorizada enquanto compatível com os demais
princípios e regras que lhe são opostos e que lhe são limitativos, ficando evidenciada a sua
proteção em especial no campo econômico, enquanto se justifique por sua função social.
364
Além disso, a autonomia privada não é sinônimo de autonomia contratual, porque se
manifesta em vários outros fenômenos jurídicos em que não há contrato. Por outro lado, como
já afirmado, a dignidade humana, valor fonte no qual os direitos humanos fundamentais
buscam sustentação, é limite intransponível à autonomia privada, limitando, inclusive,
eventuais casos de renúncia dos próprios titulares de direitos humanos fundamentais.
365
Essa contextualização do papel dos direitos humanos fundamentais leva-nos a concluir
pela necessidade de aumento do espectro de seu alcance, devendo ser expandidos para todos
362
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. A autonomia privada como princípio fundamental da ordem
jurídica. Perspectivas estrutural e funcional. Revista de Direito Civil no. 46., p. 12 e 17. No mesmo sentido
NORONHA, Fernando. O Direito dos contratos e seus princípios fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1994, p.
74. Saliente-se, ainda, que a livre iniciativa, ainda mais quando qualificada como valor social, não pode ser
entendida enquanto apenas livre iniciativa econômica, mas, sim, como um grau de autonomia da pessoa com
respeito à sua própria liberdade, igualdade e dignidade, que tem projeção também no campo extra-patrimonial.
Sobre essa perspectiva, PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil – Introdução ao direito civil
constitucional, op. cit., p. 17.
363
Eros Roberto Grau, escrevendo sobre a livre iniciativa, afirma: “... Este em verdade enuncia, como
fundamentos da República Federativa do Brasil, o valor social do trabalho e o valor social da livre iniciativa.
Isso significa que a livre iniciativa não é tomada, enquanto fundamento da República Federativa do Brasil,
como expressão individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso.” GRAU, Eros Roberto. A
ordem econômica na Constituição de 1988. 7. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2002, p. 242. Quanto aos
limites da livre iniciativa, cabe lembrar a lição de Lipari, que afirma: “La iniciativa económico-privada es
libre”: en el reconocimento, constitucionalmente garantizado, de una libertad de ejercicio de la iniciativa
económica hay la fijación de un límite a tal ejercicio, no pudiendo actuarse com violación o, en todo caso,
comprimiendo el mismo derecho de libertad atribuido a los demás sujetos. Es notorio que la coexistencia de
libertades no puede por menos de traducirse em un límite a las libertades mismas. Cuál sea el límite se dice
explícitamente en el proprio art. 41 de la Constitución, cuando afirma que la libre iniciativa económica “no
puede actuarse en contraste com la utilidad social, o de manera que comporte un daño a la seguridad, a la
liberdad e a la dignidad humana”. LIPARI, Nicoló. Derecho privado un ensayo para la enseñanza. Bolonia:
Publicaciones del Real Colegio de España, 1980, p. 347. Embora a nossa Constituição Federal de 1988 não
seja expressa nesse sentido, é por demais evidente que adota a mesma normatização.
364
Como afirma Judith Martins Costa: “Contemporaneamente, modificado tal panorama, a autonomia contratual
não é mais vista como um fetiche impeditivo da função de adequação dos casos concretos aos princípios
substanciais contidos na Constituição e às novas funções que lhe são reconhecidas. Por esta razão desloca-se o
eixo da relação contratual da tutela subjetiva da vontade à tutela objetiva da confiança, diretriz indispensável
para a concretização, entre outros, dos princípios da superioridade do interesse comum sobre o particular, da
igualdade (em sua face positiva) e da boa fé em sua feição objetiva.” COSTA, Judith Martins. Crise e
modificação da idéia de contrato no Direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor. nº. 3. São Paulo:
Revista dos Tribunais, p. 141.
365
Ver, além de outros já citados, ANDRADE, José Carlos Vieira de, Os direitos fundamentais na Constituição
Portuguesa de 1976, op. cit., p. 292.
176
os campos do Direito, já que são trunfos na proteção da pessoa humana frente ao poder. Aliás,
diante da ocupação dos espaços públicos por entes privados, o que denota o crescimento
geométrico da força dos “poderes privados”, a preocupação na busca de proteção dos direitos
humanos fundamentais também começa a se fazer presente no chamado Direito Internacional
dos Direitos Humanos. Com efeito, alguns autores passam a defender uma extensão da
proteção dos direitos humanos fundamentais também para as relações privadas.
Segundo essa postura, à qual nos filiamos, a proteção dos direitos humanos
fundamentais diante do agigantamento dos poderes privados não pode mais se restringir ao
campo estatal, pois também de outros centros de poder podem provir atentados e violações a
estes direitos.
Afirma Cançado Trindade que as fontes de violação dos direitos humanos se
diversificam, havendo a necessidade de superação da rígida distinção entre Direito Público e
Direito Privado para a proteção da pessoa humana. Essa distinção rígida não resiste ao
imperativo de proteção dos direitos humanos fundamentais, seja nas relações interindividuais,
seja nos atentados praticados por agentes não identificados, por conglomerados econômicos,
órgãos de comunicação ou outros entes não estatais. E complementa:
Só mediante o enfrentamento dos atentados perpetrados por estes agentes (não
estatais) evitar-se-á que o atual paradigma de proteção se torne insuficiente e
anacrônico, entendendo-se que mesmo nestas hipóteses permanece o Estado
responsável por omissão, por não tomar medida positivas de proteção.
366
O autor assinala que os Estados têm o dever de proteção dos direitos humanos de
acordo com a normativa internacional por meio de medidas positivas, cabendo a
responsabilização do Estado no caso de omissão dessas medidas. Aliás, lembra que mesmo o
pretenso enfraquecimento do Estado e a erosão de seu poder na atualidade não podem servir
de escusas nem eximem a responsabilização do Estado nos casos de não proteção dos direitos
366
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 24. Por seu turno Canotilho afirma que: “Deve notar-
se que a eficácia horizontal dos direitos não se limita, hoje, à ordem estatal. Problemas semelhantes são
agitados no âmbito das convenções internacionais de direitos do homem. A chamada Drittwirking da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem aponta precisamente para a necessidade de proteção dos direitos
do homem perante a violação dos mesmos por entidades particulares.” CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p.
1290.
177
humanos. Essa responsabilidade por omissão, ainda que residual, subsiste mesmo no caso de
violação dos direitos humanos praticados por agentes não estatais.
367
Na mesma linha está o pensamento de Sarmento, que entende cabível a vinculação dos
privados aos tratados de direitos humanos. Lembra que a Corte Européia de Direitos
Humanos vem aceitando a eficácia desses direitos nas relações privadas, afirmando a doutrina
das obrigações positivas do Estado, que deve proteger esses direitos nas relações privadas. O
Estado, então, é garantidor desses direitos; se falhar na proteção, seja por meio do Legislador,
seja do Judiciário ou do Executivo, pode ser acionado e responder perante a Corte. Essa
mesma posição, segundo o autor, começa a ter adeptos também no âmbito da Corte
Interamericana de Direitos Humanos.
368
Portanto, a nosso ver, apresenta-se uma postura de expansão dos existenciais da
proporcionalidade/ponderação, pois, além de servirem como limites às restrições e limitações
dos direitos humanos fundamentais (aspecto negativo), também impõem uma proteção
eficiente aos mesmos direitos (aspecto positivo). Com efeito, o aumento do poder dos grandes
grupos empresariais, bem como uma fragilização da soberania estatal, leva a que sejam
demandadas novas estratégias para a proteção dos direitos humanos fundamentais. Isso não
afasta o dever de proteção dos Estados, mas, por outro lado, não vincula somente o Estado,
mas também os privados, especialmente os mais poderosos.
Expostas as pré-compreensões necessárias para o entendimento do tema relativo à
eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas, cabe-nos, agora, analisar
toda essa base teórica no âmbito do contrato de trabalho, principalmente no que tange aos
direitos humanos fundamentais que chamaremos de “inespecíficos”, ou seja, aqueles que não
se dirigem diretamente aos trabalhadores como tais, mas que são reconhecidos a todas as
pessoas humanas.
4.4 OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS NO CONTRATO DE TRABALHO
Não é rara a aplicação dos direitos humanos fundamentais, mesmo daqueles que não
são específicos dos trabalhadores, nas relações laborais. Ocorre que essa aplicação tem sido
367
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto, op. cit., p. 442 e nota 71.
368
SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 266-276.
178
feita sem uma fundamentação consistente pela jurisprudência, o que tem provocado uma série
de problemas que resultam, ao cabo, na falta de efetiva proteção desses direitos.
369
Aliás,
observamos, em geral, um vazio na fundamentação/justificação das decisões que aplicam ou
deixam de aplicar esses direitos nas relações laborais, não havendo maiores preocupações em
enfrentar a questão da eficácia desses direitos nas relações privadas.
370
Entretanto, a análise do problema da eficácia dos direitos humanos fundamentais no
Direito do Trabalho tem uma importância prática e teórica não desprezível. Cordeiro salienta
isso ao afirmar:
À importância prática soma-se uma importância teórica que tem passado
despercebida, mas que é fundamental. Colocado em zonas de particular
sensibilidade política, social e econômica e confrontado com um dinamismo que não
se compadece com estruturas jurídicas anquilosadas, o Direito do trabalho constitui
um importante espaço experimental para novas construções jurídicas. Temas fulcrais
como os do princípio da igualdade, da projecção dos direitos fundamentais nas
relações privadas, da adaptação do Direito a novas situações, do controlo das
cláusulas contratuais gerais, da concretização de conceitos indeterminados, dos
níveis colectivos na regulação jurídica, etc., assumem-se, frontalmente, no Direito
do Trabalho, propiciando construções, instrumentos e conclusões que podem depois,
com êxito, ser ensaiados noutras áreas do Direito e, designadamente, no Direito
civill.
371
Ora, no campo do Direito do Trabalho colocam-se questões que têm interesse direto
com o tema em foco, visto que na relação de emprego o empregado se encontra em posição de
subordinação/vulnerabilidade perante o empregador, numa relação assimétrica na qual ao
empregador é reconhecido o que chamamos de “poder empregatício ou poder de direção”.
Essas são algumas das questões das quais vamos nos ocupar.
369
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 292-293.
370
Cabe lembrar, ainda, que a questão da fundamentação/justificação das decisões no Estado Democrático de
Direito não é uma questão de “perfumaria”. Streck defende a postura de Dworkin que postula a
responsabilidade política dos juízes e afirma: “Os juízes têm a obrigação de justificar suas decisões, porque
com elas afetam os direitos fundamentais e sociais, além da relevante circunstância de que, no Estado
Democrático de Direito, a adequada justificação da decisão constitui-se em direito fundamental. O sentido da
obrigação de fundamentar as decisões previstas no art. 93, X, da Constituição do Brasil implica,
necessariamente, a justificação dessas decisões. STRECK, Lenio Luiz, Verdade e consenso, op. cit., p. 242.
371
CORDEIRO, António Menezes. Manual de direito do trabalho. op. cit., p. 82.
179
4.4.1 O contrato de trabalho: configuração e o fenômeno do poder empregatício
O contrato de trabalho dá vazão a uma relação de emprego que é uma relação jurídica
obrigacional nascida do contrato e é travada e desenvolvida entre empregado e empregador,
pelo qual o primeiro presta ou se obriga a prestar serviços de natureza não eventual, pessoal,
remunerada e subordinada (sob dependência) ao segundo, que dirige a prestação dos serviços
ou a obrigação de prestar os serviços do primeiro e remunera-o em virtude do trabalho feito e,
em certas circunstâncias, pela simples obrigação de prestar trabalho. Todos esses elementos
configuradores da relação de emprego encontram-se previstos nos arts. 2º, 3º e 442 da CLT.
Sem perder de vista os outros elementos citados, fulcral na configuração da relação de
emprego e do contrato de trabalho é a subordinação. A doutrina dominante e tradicional
entende a subordinação como hierárquica e jurídica, a qual se configura apenas quando o
empregado está adstrito ao cumprimento de ordens numa organização de tipo piramidal.
372
Essa noção clássica de subordinação, todavia, precisa ser revista, pois nem sempre a
subordinação assim se apresenta. Em outra linha, Genro afirma que a subordinação não é
sempre a obediência a ordens do empregador no sentido comum do vocábulo, podendo se
manifestar pela inserção do prestador de trabalho num sistema coordenado em função dos
interesses do empregador, no qual os atos de trabalho do empregado não são atos de sua
escolha, mas atos de integração no processo produtivo ou nos serviços exigidos pelas
finalidades essenciais da empresa.
373
A relação de emprego é, portanto, uma relação assimétrica, no qual a subordinação do
empregado, combinada aos outros elementos acima citados, é nota primordial para sua própria
configuração. Assim, se, de um lado dessa relação temos a subordinação do empregado, do
outro, temos o poder de direção do empregador.
374
Maranhão e Carvalho, por exemplo,
informam que da subordinação resultam para o empregador os poderes de: a) dirigir e
372
MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz Inácio B., op. cit., p. 64 e 65.
373
GENRO, Tarso. Direito individual do trabalho, op. cit., p. 99. Aliás, este tipo de subordinação integrativa do
trabalhador na empresa torna-se cada vez mais comum, pois nos empreendimentos econômicos de hoje, por
exemplo, para os cargos mais elevados dentro da empresa, nos casos de trabalhos prestados à distância
(teletrabalho) e naqueles trabalhos prestados numa zona gris entre o trabalho autônomo e o trabalho
subordinado, não há uma subordinação direta do empregado ao empregador, mas existe uma série de controles
da própria engrenagem da empresa que retiram a autonomia do empregado, subordinando-o “indiretamente”,
surgindo a noção de parasubordinação, que traduz esta subordinação mitigada. Nesse sentido, ver, ainda,
DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Novos contornos da relação de emprego diante dos avanços
tecnológicos. Revista LTr. – maio 2003. São Paulo: LTr. Editora, p. 67-05/553. Ver, ainda, em sentido
semelhante, CAMINO, Carmem. Direito individual do trabalho. op. cit., p. 85 e 86.
374
NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao direito do trabalho, op. cit.,, p. 164.
180
comandar a execução da obrigação contratual pelo empregado; b) controlar o cumprimento
dessa obrigação; c) aplicar penas disciplinares (advertência, suspensão, dispensa) quando o
empregado não satisfaz, devidamente, a prestação a que se obrigou, ou se comporta de modo
incompatível com a confiança, que está na base do contrato.
375
Surge, assim, a questão ligada ao chamado “poder empregatício”, que, a nosso ver,
tem fundamento contratual, ou seja, é em virtude do contrato de trabalho que o empregador
poderá exercer esse poder perante o empregado. O artigo 2
o
, caput, da CLT, ao definir o
empregador, dispõe que ele dirige a prestação de serviços. Por outro lado, não podemos fechar
os olhos ao fato de que, num regime capitalista, de livre iniciativa, mesmo que pautada pelo
seu valor social (arts. 1º, inciso IV, e 170, ambos da CF de 1988), via de regra, o poder do
comando da atividade econômica cabe ao proprietário ou controlador dos bens de produção.
Esse poder contratual conferido ao empregador tem várias facetas funcionais que se
inter-relacionam, permitindo-lhe dirigir a prestação de trabalho do empregado e a
regulamentar a forma como referida prestação laboral será realizada dentro da dinâmica da
atividade do empregador (poder de comando ou direção), bem como conferindo ao
empregador a possibilidade de fiscalizar a atividade laboral (poder de controle ou
fiscalização). Confere, por fim, ao empregador o poder de disciplinar e punir o empregado
que descumprir com as obrigações que nascem da realização do contrato (poder disciplinar ou
punitivo).
376
Assim, a própria ordem jurídica reconhece o poder empregatício, conferindo todas
essas faculdades ao empregador na relação com o empregado. Entendemos, então, que é
necessário interpretar a noção de poder empregatício possibilitando uma visão que insira essa
manifestação de poder dentro do sistema jurídico vigente (regime democrático de Direito),
considerando a ordem jurídica em seu sentido unitário, em que o exercício de qualquer poder
dentro dela a tenha por fundamento e limite.
Portanto, isso nos remete ao papel que o constitucionalismo tem na preservação da
própria continuidade democrática. Bolzan de Morais chama-nos a atenção para essa questão,
lembrando o papel do constitucionalismo para assegurar as “regras do jogo”, para que os
“próprios jogadores” possam jogar com plena consciência das “circunstâncias, das garantias e
dos riscos que envolvem tal ato”. O autor salienta o crescimento avantajado do poder privado
no momento em que vivemos, bem como a substituição da política pelo mercado na tomada
375
MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz Inácio B, op. cit., p. 66 e 67.
376
DELGADO, Maurício Godinho. O poder empregatício. São Paulo: LTr. Editora, 1996 p. 191.
181
das decisões que regulam a sociedade. Diante disso, defende o papel que os direitos humanos
fundamentais, que são históricos e se formulam diante das “circunstâncias sócio-histórico-
políticas”, devem ter diante dessa realidade e a necessidade de torná-los efetivos.
377
Assim, a nosso ver, é o fenômeno do poder empregatício que torna ainda mais
imperiosa uma cuidadosa análise da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações
laborais. O fenômeno do poder privado, como já dito, é uma realidade que atinge toda a
sociedade, todos os ramos do Direito e, em especial, o Direito do Trabalho, que tem ligações
mais estreitas com a economia e sofre mais diretamente os efeitos das crises e das pressões do
mercado que assolam as sociedades, sobretudo as mais desiguais e periféricas como a
brasileira.
Ao postularmos que o poder empregatício deve ser entendido como um poder exercido
de acordo e com fundamento na ordem jurídica como um todo, estamos chamando a atenção
para a necessidade de proteção dos direitos humanos fundamentais nas relações de emprego,
bem como de colocarmos em xeque nossos pré-juízos para que possamos compreender
adequadamente esse fenômeno dentro de um Estado Democrático de Direito.
Francisco Pedro Jucá assevera o papel social e político da empresa, que decorre de ela
funcionar como a organizadora da produção e do consumo, não só interpretando o imaginário
e aspirações da sociedade, mas também influindo na criação dessas, aglutinando forças e
intervindo mesmo na formulação das ações do Estado-nacional, com o que fica evidente o seu
poder político.
378
Cabe-nos, todavia, aqui, fazer uma advertência. No âmbito das relações de
emprego, não só as grandes empresas dispõem do poder empregatício, pois o poder
empresarial é reconhecido aos empregadores em geral, aliás como decorrência do próprio
regime capitalista e da conceituação de empregador, que é quem “dirige” a prestação de
trabalho.
Dessa forma, diante do poder empregatício é que a questão da eficácia dos direitos
humanos fundamentais na relação de emprego ganha relevo, pois, revelado o caráter de
sujeição em que se encontra o empregado, resta evidenciada a necessidade de proteção desses
377
MORAIS, José Luis Bolzan de. Constituição ou barbárie: perspectivas constitucionais. A Constituição
Concretizada – Construindo pontes com o público e o privado. Ingo Wolfgang Sarlet Organizador. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000, p. 14-16.
378
JUCÁ, Francisco Pedro. Renovação do direito do trabalho - Abordagem alternativa a flexibilização. São
Paulo: LTr., 2000, p. 47, 48, 53 e 54.
182
direitos diante do poder do empregador
379
. Todavia, isso não quer dizer que os direitos
humanos fundamentais se apliquem apenas às relações assimétricas, mas, sim, como lembrou
Ubillos, antes citado, devemos ter claro que o fato de uma relação ser assimétrica pela
presença de um poder privado é um dado a ser levado em conta e que pesa a favor da
aplicação desses direitos de forma mais intensa nas relações privadas. Assim, na ponderação
entre os direitos humanos fundamentais e eventual restrição a esses aposta pela autonomia
privada numa relação assimétrica, existem fortes razões para uma incidência mais intensa,
mais robusta, a ser aferida no caso concreto desses direitos em confronto com dita restrição.
380
Apontados esses aspectos, necessários para a aborgagem da questão, adentraremos
agora na análise da eficácia dos direitos humanos fundamentais “inespecíficos” na relação de
emprego.
4.4.2 Os direitos humanos fundamentais “inespecíficos” no contrato de trabalho
Os direitos humanos fundamentais sociais específicos dos trabalhadores, ou seja, os
direitos trabalhistas, que, ao longo do processo histórico de afirmação dos direitos humanos
fundamentais, foram alçados a esse patamar, são, em geral e em grande parte, sem maiores
questionamentos, diretamente aplicáveis e exigíveis perante os empregadores. Direitos
humanos fundamentais como a limitação da jornada de trabalho e as férias, como exemplos,
aplicam-se nas relações privadas sem contestações por parte da doutrina e da jurisprudência.
Resulta clara a eficácia desses direitos nas relações privadas, o que é inegável da própria
formulação de sua previsão constitucional, de acordo com o resultado do processo
interpretativo feito pela doutrina e pela jurisprudência. Exemplos disso são os direitos
previstos no art. 7º. da CF de 1988, em geral, diretamente aplicáveis nas relações privadas.
379
Tanto é assim que a STC 292/1993 do Tribunal Constitucional Espanhol assim dispôs: “el poder de direción y
gestión de la empresa tiene como limite infranqueable el respecto a los derechos fundamentales de los
trabajadores”. ESCARTÍN, Ignacio García-Perrote, op. cit., p. 40, nota 96.
380
Sarmento afirma: “De qualquer forma, é importante destacar que os direitos fundamentais não vinculam
diretamente apenas os chamados “poderes sociais”, mas também os demais particulares, mesmo em casos de
relações paritárias. De fato, mesmo em relações de tendencial igualdade, impõe-se uma proteção direta dos
direitos fundamentais, sob pena de se proporcionar uma garantia incompleta à dignidade humana. ... Todavia,
nestes casos, a proteção à autonomia privada há de ser mais intensa no momento da ponderação de interesses,
já que não mais prevalecerá aquela presunção de que a parte mais fraca não agiu livremente, no momento em
que “consentiu” com determinada restrição ao exercício de certo direito fundamental de que era titular.”
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 306-307.
183
Entretanto, surgem problemas quanto à eficácia dos direitos humanos fundamentais
nas relações de emprego quando fazemos a pergunta sobre se outros direitos humanos
fundamentais, principalmente os que chamaremos, na senda aberta pela doutrina espanhola,
de “inespecíficos”, são aplicáveis perante particulares nas relações de emprego.
A doutrina espanhola cunhou como direitos “inespecíficos” aqueles direitos humanos
fundamentais que o trabalhador tem não como trabalhador, mas como pessoa humana, como
cidadão que faz parte de uma determinada sociedade (liberdade de expressão, intimidade,
própria imagem, devido processo legal, como exemplos). Surgem, então, questionamentos
sobre a maneira como esses direitos podem ser exercidos perante o empregador e no local de
trabalho
381
. A questão a ser posta é aberta pela pergunta sobre se o trabalhador pode ou não
ser despido de seus direitos que lhe são reconhecidos como pessoa humana enquanto figura na
posição de empregado. A questão é saber se aqueles direitos configurados como de primeira
dimensão se aplicam ou não dentro da relação de emprego.
A nota a ser salientada sobre o problema é de que o empregado não perde a condição
de pessoa humana, de cidadão, ao ingressar na relação de emprego, na qual necessita que os
vários aspectos de sua personalidade e dignidade sejam protegidos, ou seja, não basta apenas
a proteção dos seus direitos sociais, mas também importa ser tratado com dignidade e
respeito.
Ora, a hermenêutica filosófica nos chama a atenção para o fato de que o sentido não é
atemporal. Assim, não podemos cair na armadilha de entificarmos o sentido dos direitos
humanos fundamentais e não nos darmos conta da necessidade de proteção integral desses
direitos no contexto de uma sociedade que se pretende justa, livre e solidária.
O que se requer é a proteção integral da pessoa humana, às vezes mal- compreendida
quando se defende a necessidade dos chamados “direitos de liberdade”, visto o falso
entendimento que desses direitos se faz tanto no pensamento liberal como no pensamento
socialista. Aliás, sobre o assunto, Ferrajoli sustenta o equívoco tanto dos liberais, que,
equivocadamente, valorizam o direito de propriedade como direito do mesmo tipo que as
liberdades, como dos marxistas, que desvalorizam as liberdades, por considerarem-nas
desacreditadas como direitos “burgueses” do mesmo plano que a propriedade. O autor
sustenta que os únicos direitos essenciais para o capitalismo e que não podem ser separados
381
ESCARTÍN, Ignacio García-Perrote, op. cit., p. 37.
184
da economia de mercado são o direito de propriedade e a liberdade de contratar, ou seja, os
direitos ligados à autonomia negocial. Assim, esclarece:
...derechos de liberdad, autonomía contractual y derecho de propriedad son derechos
diferentes no sólo desde el punto de vista estructural, sino también porque
corresponden a sistemas sociales y políticos diferentes y en todo o caso
independientes. Para empezar, los derechos de liberdad no tienen nada que ver con
el mercado, que puede tranquilamente prescindir de ellos, tal como se ha
comprobado durante los diversos fascismos y en las diversas involuciones
autoritarias de las democracias de nuestro siglo. Además estos derechos se
encuentran virtualmente en conflicto no solamente con el Estado sino incluso con el
mercado: no es posible alienar la propria liberdad personal, al igual que no es
posible vender el proprio voto. Los derechos de liberdad, como todos los demás
derechos fundamentales, incluidos los derechos de autonomía privada, son, en
efecto, inatacables e indisponibles y representan un limite no sólo frente a la política
y a los poderes públicos, sino también frente al mercado y a los poderes privados.
382
Estabelecer essas diferenças torna-se uma questão importante, pois, ao mesmo tempo
em que se afastam pré-compreensões falsas, abre-se espaço para que percebamos a
importância daquilo que já salientamos acima, ou seja, a imprescindibilidade de uma defesa
integral dos direitos humanos fundamentais como estratégia para enfrentar as graves questões
postas por um mundo que tem se apresentado hostil aos mais vulneráveis.
A postura adotada, ao valorizar a abordagem dos direitos de primeira dimensão, não
significa a valorização apenas desses direitos, ao contrário: o que queremos demonstrar é
justamente a necessidade de proteção integral dos direitos, pois a só proteção e preocupação
com os direitos de segunda dimensão (sociais) na relação de emprego têm permitido a
violação de direitos imprescindíveis para uma vida digna. Ora, cada vez são mais comuns as
violações da intimidade, da privacidade, da liberdade de pensamento, do tratamento
isonômico, do direito de defesa e do contraditório ínsitos ao devido processo legal nas
relações de emprego.
Para demonstrar a importância da proteção integral dos direitos, basta citar como
exemplo a possibilidade reconhecida pela ordem jurídica de aplicação de penas disciplinares
pelo empregador. Nesses casos, a falta de tratamento isonômico ou a não observância de
requisitos mínimos ligados ao devido processo legal e às garantias do direito de defesa e do
contraditório, típicos direitos de primeira dimensão, podem afetar, no caso de uma despedida
por justa causa, os direitos sociais, como o percebimento de salários, aviso prévio, férias, 40%
382
FERRAJOLI, Luigi, op. cit., p. 45, 101 e 103.
185
sobre o FGTS, liberação do FGTS e seguro-desemprego. Portanto, a consideração da unidade
e indivisibilidade dos direitos humanos fundamentais se faz premente.
Diante da questão da eficácia dos direitos humanos fundamentais “inespecíficos”,
Escartín analisa a posição do Tribunal Constitucional Espanhol sobre o tema e chega a
algumas conclusões. Segundo o autor, os chamados direitos “inespecíficos” são aplicáveis
dentro da relação laboral em virtude da chamada “eficácia horizontal dos direitos humanos
fundamentais”. Assim, esses direitos não ficam na “porta da fábrica” esperando o trabalhador
sair; esses direitos são exercidos dentro da relação laboral, embora sujeitos a
limitações/modulações. Essas limitações aos direitos humanos fundamentais, todavia,
somente se demonstram aceitáveis se passarem por um juízo de
proporcionalidade/ponderação.
383
Evidencia-se, assim, a defesa de uma eficácia ponderada dos direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão nas relações de emprego. Aliás, compulsando duas
decisões do Tribunal Constitucional Espanhol, fica clara a necessidade de ponderação dos
interesses em jogo em casos de eficácia desses direitos nas relações laborais. Vamos nos
ocupar apenas das diretrizes, dos parâmetros, que o Tribunal Constitucional Espanhol tem
fixado para a solução desses casos.
Trata-se das sentenças STC 98/2000, de 10 de abril de 2000, e STC 196/2004, de 15
de novembro de 2004
384
. Na primeira (STC 98/2000) tratou-se do caso de instalação de
microfones em determinados locais de uma empresa (cassino), onde já havia câmeras de
vídeo. A discussão plantou-se em torno do direito à intimidade dos trabalhadores em
confronto com o poder de comando do empregador. O tribunal assentou certas premissas para
a decisão do caso:
- a celebração de um contrato de trabalho não implica, de modo algum, a privação para
uma das partes, o trabalhador, dos direitos que a Constituição reconhece aos cidadãos
(doutrina já assentada na STC 88/1985);
- o contrato de trabalho não pode considerar-se com um título legitimador de recortes
no exercício dos direitos fundamentais que cabem ao trabalhador como cidadão, que não
perde essa condição ao se inserir no âmbito de uma organização privada (doutrina já
assentada na STC 99/1994), sendo inaceitáveis as manifestações de “feudalismo industrial”
(doutrina assentada na STC 88/1985);
383
ESCARTÍN, Ignacio García-Perrote, op. cit., p. 45.
384
Essas sentenças podem ser conferidas no endereço eletrônico www.tribunalconstitucional.es.
186
- o direito à intimidade decorre da dignidade da pessoa humana, implicando a
existência de um âmbito próprio e reservado frente à ação e conhecimento dos demais, de
acordo com a cultura de uma determinada comunidade, tendo como objetivo manter uma
qualidade mínima de vida humana (doutrina assentada já em várias sentenças, como exemplo,
a STC 209/1988). O direito à intimidade, embora não seja absoluto, pois pode ceder frente a
outros bens constitucionalmente protegidos e desde que para alcançar fins legítimos, só pode
sofrer restrições se respeitado um juízo de proporcionalidade, bem como preservado o seu
núcleo essencial (doutrina assentada em várias sentenças, como exemplo, a STC 57/1994);
- a limitação dos direitos fundamentais só é admissível na medida necessária à tutela
de outros interesses constitucionalmente previstos, como as faculdades organizativas
empresariais (poder empregatício), cabendo um juízo de ponderação no qual o princípio da
proporcionalidade se faz presente;
- não basta a mera utilidade para a empresa a fim de justificar a restrição a um direito
fundamental, pois para a restrição se mostrar legítima deve se mostrar imprescindível para a
tutela dos interesses empresariais constitucionalmente legítimos.
Na segunda das decisões (STC 196/2004), tratou-se do caso da despedida de uma
trabalhadora, considerada não apta ao trabalho pelo setor médico da empresa, visto ter sido
flagrada em exame de urina por uso de maconha (cannabis sativa). Também entrou em
conflito, no caso, a discussão sobre o direito à intimidade e os interesses organizativos da
empresa (poder empregatício). Nessa decisão, as premissas já referidas quando da análise da
STC 98/2000 foram ratificadas, razão pela qual não voltaremos a demonstrá-las, e foram
assentados mais alguns parâmetros:
- o uso de exames médicos na relação laboral não pode ser um instrumento
empresarial para o controle dispositivo da saúde dos trabalhadores, tampouco uma faculdade
que se reconheça ao empregador para verificar a capacidade profissional ou a aptidão
psicofísica de seus empregados com o propósito de seleção de pessoal ou similar, mas, sim,
tem por fim a própria proteção da saúde dos trabalhadores;
- não há necessidade de intencionalidade para que a lesão a um direito fundamental
possa produzir-se, pois o tribunal entende que a vulneração dos direitos fundamentais não está
condicionada à ocorrência de dolo ou culpa na conduta do sujeito ativo, ou à indagação de
fatores psicológicos e subjetivos de árduo controle. O elemento intencional é irrelevante,
187
bastando constatar um nexo de causalidade adequado entre o comportamento antijurídico e o
resultado lesivo proibido pela norma (doutrina já assentada, entre outras, pela STC 225/2001);
- o ato de livre determinação que autoriza uma intervenção sobre o âmbito pessoal da
intimidade do trabalhador requer que o trabalhador seja expressamente informado das provas
médicas. Somente um conhecimento informado do trabalhador, com a ampla garantia de sua
liberdade real de manifestação da vontade, poderia justificar a utilização dos exames pela
empresa e, ainda, exclusivamente para os fins constitucionalmente legítimos e consentidos
pelo trabalhador.
Como percebemos, o tribunal faz uma análise complexa dos interesses em jogo,
ponderando os interesses dignos de tutela segundo um juízo de proporcionalidade/ponderação,
para, só então, decidir sobre o grau de eficácia dos direitos humanos fundamentais e de suas
restrições no caso concreto. A questão da eficácia dos direitos humanos fundamentais de
primeira dimensão na relação de emprego, portanto, não possui uma resposta simples, pois
para se tomar uma decisão adequada é preciso levar em consideração uma série de dados,
entre eles o reconhecimento jurídico do poder empregatício e da autonomia privada, que
envolve o direito de comando na empresa, diante de possíveis colisões com os direitos
humanos fundamentais dos empregados.
Como já sustentado, as possíveis colisões e a solução das mesmas no âmbito desses
direitos devem ser tratadas na ótica da ponderação, em que o princípio da proporcionalidade
será de aplicação imprescindível. Numa possível colisão entre o poder patronal de determinar
a forma de prestação de trabalho e o direito à imagem do empregado, por exemplo, será
através da ponderação e da atuação do princípio da proporcionalidade que se poderá chegar
uma solução adequada ao caso concreto. Portanto, é um modelo em que o juízo de ponderação
se impõe, pois eventual restrição a um direito humano fundamental não pode implicar sua
eliminação, visto o dever de preservação do seu núcleo essencial. Assim, somente diante do
caso concreto e de suas circunstâncias podemos tomar uma decisão adequada ao caso.
Aliás, como estamos tratando de relações contratuais, embora assimétricas, devemos
ter em conta que pode estar envolvida no juízo de proporcionalidade/ponderação a
concordância do próprio afetado na restrição de seus direitos humanos fundamentais. Seria o
caso do empregado que, no exercício de sua autonomia privada, tenha dado o seu
assentimento para a restrição ou menoscabo a seu direito. Essa é uma questão crucial, pois
não raro pode surgir este tipo de problema, ou seja, o próprio trabalhador poderia ter aberto
188
mão ou aceito restrições de seus direitos humanos fundamentais através de sua autonomia
privada.
A concordância do afetado numa restrição aos seus direitos humanos fundamentais é
um fato a ser levado em conta, como afirma Sarmento. Para o autor, nas relações privadas
deve ser observado se a lesão a um direito humano fundamental tem base numa decisão
heterônoma (do outro agente privado presente na relação que impõe sua autonomia) ou se está
presente a concordância do afetado quanto à lesão. Assim, quando o atingido em seus direitos
não participa com sua concordância para o ato de lesão, está em jogo apenas a autonomia
privada da outra parte; já, quando o afetado participa com sua aquiescência, principalmente
nos contratos, torna-se necessário apreciar a autonomia privada de ambas as partes. Esses
aspectos devem ser apreciados na ponderação, sendo mais relevantes nas relações paritárias
onde há igualdade das partes, presumindo-se a sua liberdade real. Nesses casos surge a
questão da validade da renúncia aos direitos humanos fundamentais. Afirma o autor:
Sem embargo, nesta matéria, é incontroversa a existência de, no mínimo, dois
limites muito claros que têm de ser respeitados: a vontade do titular do direito deve
ser autenticamente livre, o que quase nunca ocorre nas relações privadas
assimétricas, em que o consentimento do ofendido decorre em regra de
condicionamentos heterônomos. Além disso, a renúncia ao exercício não pode
importar em lesão ao princípio da dignidade da pessoa humana, nem ao núcleo
essencial dos direitos fundamentais do indivíduo. Por mais livre que seja o agente, a
ordem jurídica não admite que ele se submeta voluntariamente a situações que
atentem contra a sua humanidade. Assim, mesmo em relações privadas paritárias e
equilibradas, o livre consentimento da pessoa não legitima lesões ao núcleo
essencial dos seus direitos fundamentais, nem tampouco à sua dignidade como
pessoa humana, que são considerados irrenunciáveis.
385
A simples concordância do afetado não torna legítima, por si só, a restrição ou
afastamento dos direitos humanos fundamentais num caso concreto, até porque qualquer
restrição a um direito humano fundamental só pode ser levada a cabo para assegurar outros
interesses constitucionalmente legítimos e, ainda assim, deve passar por um juízo de
proporcionalidade/ponderação, no qual deve restar preservado o núcleo essencial desses
385
SARMENTO, Daniel, Direitos fundamentais e relações privadas, op. cit., p. 311-312. Cabe citar sobre a
questão a posição de Konrad Hesse. O autor, partidário de uma eficácia apenas mediata dos direitos humanos
fundamentais nas relações privadas, entende que nas relações entre privados que estão em pé de igualdade a
eficácia desses direitos deve ser muito cuidadosa em atenção ao princípio da autonomia privada. Todavia,
quando se trata de relações assimétricas, onde o poder econômico ou social está presente, o autor entende que
cabe uma eficácia mais rígida dos direitos humanos fundamentais, ou seja, cabe uma restrição maior da
autonomia privada. HESSE, Konrad, Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha,
op. cit., p. 285-286.
189
direitos. Cabe lembrar ainda, como já salientamos, que os efeitos (direitos, prerrogativas,
interesses) ligados à dignidade humana são irrenunciáveis e indisponíveis, não podendo ser
afastados mesmo pela vontade de seu titular.
Assentadas essas questões, é de bom tom que avaliemos como os tribunais brasileiros
têm enfrentado os casos em que são invocados pelos empregados direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão para resolverem problemas surgidos nas relações de
emprego.
Conforme já mencionado, os tribunais brasileiros vêm aplicando esses direitos nas
relações privadas, em especial nas relações de emprego, embora, a nosso ver, sem maiores
cuidados com a maneira com que essas questões são resolvidas, o que acaba por resultar num
tratamento “discricionário”, no qual o juiz aplica ou deixa de aplicar esses direitos sem o
esclarecimento das pré-compreensões que são pressupostos da decisão. Essa prática tem
levado a uma falta total de possibilidade de controle e crítica das decisões, pois os direitos
humanos fundamentais são aplicados ou deixam de ser aplicados sem, sequer, muitas vezes, o
tribunal analisar a questão na ótica específica desses direitos. Assim, as decisões ganham um
caráter voluntarista, tanto quando aplicam como quando deixam de aplicar esses direitos. A
nosso ver, isso inibe a construção de uma doutrina mais sólida sobre o assunto, servindo como
pano de fundo para melhores compreensões do assunto.
Não se trata, portanto, de crítica ao resultado de muitas das decisões que nos parecem
corretas, mas, sim, à falta de desenvolvimento de uma motivação mais consistente. Para
demonstrar isso, vamos fazer a análise de alguns casos julgados.
Interessante, nesse sentido, é a decisão proferida no Recurso Extraordinário no.
161.243-6 (DF), proferida pela 2
ª
Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) tendo como
relator o Ministro Carlos Velloso. Nessa decisão, com base no princípio da igualdade, o
tribunal reconheceu que se aplicavam a um trabalhador brasileiro, empregado de empresa
francesa situada no Brasil, os estatutos de pessoal da empresa que concediam vantagens aos
empregados franceses. Com efeito, a empresa, através do regulamento, restringia a
aplicabilidade do regulamento aos empregados de nacionalidade francesa. O acórdão
considerou discriminatória a cláusula do estatuto, pois a discriminação baseada em atributo,
190
qualidade, nota intrínseca ou extrínseca do indivíduo, como o sexo, a raça, a nacionalidade, o
credo religioso etc., é inconstitucional e não pode ter qualquer aplicação válida.
386
Portanto, houve aplicação imediata dos direitos humanos fundamentais de primeira
dimensão, vedando-se o tratamento desigual com base na nacionalidade, no que, a nosso ver,
andou bem a decisão para o caso. Todavia, em momento algum da fundamentação do acórdão
o tribunal preocupou-se em estabelecer algum parâmetro sobre como se desenvolve a eficácia
desses direitos nas relações privadas. Houve uma aplicação do princípio da igualdade tal qual
se aplica frente ao Estado, sem se fazer qualquer distinção e precisão sobre o que teria levado
a essa incidência de igual grau.
Em outro caso, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) decidiu, nos Embargos em
Recurso de Revista no. 217.791/95.3, proferido pela 2
ª
T., tendo como relator o Ministro
Valdir Righetto, que a despedida procedida pela empresa de empregado portador de AIDS,
embora sem haver texto legal que garantisse sua permanência na empresa, por ser
discriminatória, ofendia o caput do art. 5
º
da CF de 1988 e, portanto, considerou nula referida
despedida, afirmando que a norma que estabelece o princípio da isonomia alcança as relações
de trabalho. Também na fundamentação do acórdão, em nenhum momento se procedeu a uma
exposição de quais os parâmetros haviam sido utilizados para a referida conclusão.
387
No Agravo Regimental no. 3427/85.1, o TST, por decisão de sua Seção Especializada
em Dissídios Individuais, tendo como relator o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias
Mello, decidiu que a despedida de empregado em virtude de sua convicção política não
passava pelo crivo da Constituição, pois a liberdade política é atributo da cidadania, garantia
mínima do cidadão trabalhador. Nessa decisão se determinou a nulidade da despedida pela
violação de direito de primeira dimensão. A fundamentação do acórdão baseou-se na figura
do abuso de direito, ou seja, o tribunal entendeu que, ao despedir o empregado em virtude de
suas concepções políticas, o que é vedado constitucionalmente, o empregador teria exercido
de forma anormal o seu direito potestativo de despedir. Novamente nada se discutiu sobre a
eficácia ou não, e em que circunstâncias, dos direitos humanos fundamentais na relação de
emprego.
388
386
O acórdão citado pode ser conferido na Revista LTr., vol. 61, nº. 04, de abril de 1997, págs. 61-04/509 à
61/04/511.
387
O acórdão citado pode ser conferido na Revista LTr., vol. 64, nº. 04, de abril de 2000, págs. 64-04/505 à
6404/506.
388
O acórdão citado pode ser conferido na Revista LTr., vol. 55, nº. 08, agosto de 1991, págs. 55.08/966 à
55.08/970.
191
Existem várias decisões condenando empresas a indenizar e até a reintegrar seus
empregados em virtude: a) de instalação de câmera em banheiro (TST - AIRR 1.507/2003); b)
em razão de revista íntima (TST – RR 1540/2000); c) de imposição de castigos e
constrangimentos pelo não alcance de metas de vendas (TST – AIRR 1024/2004); d) dispensa
em virtude de discriminação por idade (TST – RR 462888/1998).
389
Tendo em conta esses
casos, duas conclusões podem ser tiradas.
Em primeiro lugar, comprova-se a importância da consideração integral dos direitos
humanos fundamentais nas relações de emprego, ficando evidenciada a imprescindibilidade
da consideração dos direitos de primeira dimensão no contrato de trabalho, bem como do
déficit que a sua não aplicação dos mesmos implica para os trabalhadores. Em segundo lugar,
em todos esses casos, embora fique evidente a aplicação desses direitos de forma direta e
imediata nas relações privadas, em nenhum momento a questão da eficácia dos direitos
humanos fundamentais nas relações privadas foi efetivamente debatida, o que gera um déficit
de fundamentação que acaba por ter resultados danosos.
A nosso ver, é em razão disso que permanecem sintomas de “feudalismo empresarial”
e “patrimonialismo” no Brasil, que acabam, em muitos casos, ganhando a chancela de nossos
tribunais e, por outro lado, contam com uma quietude deprimente da doutrina trabalhista
dominante. Os direitos humanos fundamentais merecem um tratamento mais sério, pois,
afinal de contas, são os direitos básicos que legitimam o próprio ordenamento jurídico. Além
disso, como adverte Gadamer, pressuposto de um ordenamento jurídico é que essa ordem seja
válida para todos, o que acaba, por falta de cuidado no trato com esses direitos, não
ocorrendo. Vamos analisar alguns casos que demonstram isso.
Como exemplo podemos citar a decisão proferida pelo TST no E-RR 564568/1999.2,
na qual o tribunal reconheceu como legítima a punição aplicada de forma distinta a
empregados que cometeram a mesma falta. Tratou-se de caso no qual vários empregados
cometeram, em conjunto, fraudes dentro da empresa, estando todos diretamente implicados na
questão. O tribunal reconheceu ao empregador o direito, emanado de seu poder de comando,
de aplicar penas distintas aos empregados, demitindo uns por justa causa e perdoando outros.
Essa distinção na aplicação das penalidades não estava ligada a aspectos relacionados a
389
Todas estas decisões podem ser consultadas no endereço eletrônico www.tst.gov.br.
192
participação de cada um na fraude, mas, sim, deveu-se a mero arbítrio do empregador,
levando em conta os interesses da produção
390
.
Ora, o mesmo tribunal que invoca o princípio da igualdade para solucionar alguns
casos deixa de lado este princípio fazendo preponderar os interesses empresariais em outro,
sem sopesar as circunstâncias que viabilizaram ou impediram a aplicação do princípio,
restando, portanto, uma aplicação arbitrária do Direito.
Outro exemplo paradigmático é a decisão tomada pelo TST no AIRR 613/2000. Nesta
decisão o tribunal considerou legítima a despedida por justa causa de um empregado por ter se
utilizado do correio eletrônico corporativo para enviar fotos de mulheres nuas a seus colegas.
O tribunal entendeu que o empregador, no exercício de seu poder de comando e fiscalização,
poderia controlar as mensagens de seus empregados. Assim, o empregador tem o direito de
investigar o e-mail de seus empregados. O relator, Ministro Dalazen, afirmou que mesmo que
o contrato de trabalho fosse omisso na regulação sobre restrições ao uso do e-mail, este não
poderia ser utilizado para fins moralmente censuráveis. Citou, ainda, para justificar a decisão,
Lei do Reino Unido que garante ao empregador autorização para monitorar telefonemas e e-
mails de seus empregados. Citou, ainda, o exemplo dos EUA, onde os Tribunais entendem
que não existe “expectativa”de privacidade no e-mail fornecido pelo empregador.
391
390
Ver comentário sobre o referido acórdão no site do TST (www.tst.gov.br), notícias de 11 de novembro de
2004. No referido caso, o ministro Relator Rider de Brito afirmou: “Ora, faz parte do poder de comando do
empregador ponderar sobre os prós e contras de manter um empregado faltoso na empresa, analisando os
prejuízos que a sua ausência poderia gerar ou os benefícios de sua presença, que justificariam o perdão da falta
cometida”. Aliás, esta decisão contraria a própria posição que vinha sendo sustentada pelos Tribunais
Regionais do Trabalho, demonstrando uma “mudança” no sentido de valorização exclusiva e não ponderada
dos “interesses da produção” frente à proteção dos direitos humanos fundamentais. Como exemplo, pode-se
citar o caso julgado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6
ª
Região, no Recurso Ordinário no. 2.341/98,
acórdão da 2
ª
T., Relatora Juíza Gisane Barbosa de Araújo, que considerou que em face do princípio da
isonomia consagrado no caput do art. 5
º
da CF de 1988, correto converter a despedida por justa causa em sem
justa causa de um empregado, visto que, como existia pluralidade de empregados faltosos, não tinha a empresa
o direito de despedir alguns por justa causa e outros sem justa causa, tendo ficado provado que a empresa
demitiu empregados envolvidos sem lhes aplicar a pena de justa causa. Saliente-se, todavia, que em momento
algum, também, na fundamentação do acórdão consta qualquer motivação que trabalhe a doutrina dos direitos
fundamentais. O acórdão citado pode ser conferido na Revista LTr., vol. 62, nº. 11, novembro de 1998, págs.
62-11/1535 à 62-11/1537.
391
Como se percebe, no presente caso, a decisão afirmou uma regra geral, ou seja, o e-mail fornecido pelo
empregador pode sempre por este ser investigado. Além disso, foi fixado que a privacidade do empregado não
é levada em conta no ambiente de trabalho, pois não existe essa “expectativa” no tocante ao e-mail. Pergunta-
se: e se o empregador sempre permitiu a utilização para questões particulares, mesmo que tacitamente, como
fica a questão? Estar-se-ia, aqui, permitindo a obtenção de prova por meio ilícito (invasão do e-mail)? A
invasão do e-mail para fins de obtenção de prova é um ato moralmente e juridicamente aceitável? Essas
questões não foram debatidas. Assinale-se que o próprio TST, em outra decisão (RR 5300/2001), entendeu que
a prova obtida por meio de escuta telefônica ilegal não poderia ser usada para aplicação de uma justa causa de
despedida de uma empregada. Ambas as decisões podem ser consultadas no endereço eletrônico
www.tst.gov.br.
193
Trazemos, ainda, a posição dominante nos tribunais trabalhistas, segundo a qual é
possível a despedida por justa causa de empregado sem qualquer procedimento interno na
empresa que lhe garanta o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, a menos
que a própria empresa tenha regulamento que preveja tal procedimento (Súmula no. 77 do
TST). Aliás, sequer se considera necessária a comunicação ao empregado dos fatos concretos
que lhe estão sendo imputados.
Em todos os casos citados, a nosso ver, há um déficit de fundamentação, pois as
questões ligadas aos direitos humanos fundamentais são negligenciadas, o que importa em
não levar a sério esses direitos. Mesmo quando aplicados em relações privadas, isso ocorre
sem maior motivação, o que impede a consolidação do aspecto pedagógico que as decisões
dos tribunais podem ter na proteção desses direitos. Assim, algumas vezes, os tribunais
simplesmente desconhecem e sequer tocam no assunto e, em outras, permitem restrições a
esses direitos sem qualquer filtragem por um juízo de ponderação/proporcionalidade.
Portanto, sustentamos a necessidade de um tratamento mais consistente do problema,
além de ficar evidenciada a necessidade de proteção dos direitos humanos fundamentais,
entendidos integralmente, nas relações de emprego. Parece-nos razoável afirmar que grande
parte dos direitos humanos fundamentais que denominamos de “inespecíficos”, como o
devido processo legal, englobando a ampla defesa e o contraditório, a igualdade, a liberdade
de pensamento, e outros decorrentes da dignidade da pessoa humana, devem ter aplicação
direta e imediata, embora ponderada nas relações privadas laborais, visto que, como direitos
humanos fundamentais, os intérpretes devem lhes atribuir a maior eficácia e a interpretação
mais favorável.
392
As relações privadas, ao contrário do que pregou o ideário liberal e prega a sua
roupagem “neo”, não é o campo da liberdade entre sujeitos iguais. Por outro lado, o Estado
também não se apresenta sempre como o grande inimigo dos direitos humanos fundamentais.
Não raras vezes, os direitos humanos fundamentais correm sério risco nas relações privadas e
é muitas vezes, pela proteção Estatal, de acordo com a ordem jurídica considerada em sua
unidade, que podem ser resguardados.
Nas relações de emprego, marcadas pela assimetria, a desconsideração dos direitos
“inespecíficos” dos trabalhadores tem possibilitado violações diárias a esses direitos,
rebaixando o trabalhador a um cidadão “minorado”, a uma pessoa humana de segunda classe,
392
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, op. cit., p. 253.
194
que, ao chegar à “porta da empresa”, deixa vários de seus direitos humanos fundamentais
pendurados atrás da porta, como se estes fossem vestimentas para serem usadas apenas da
porta da empresa para fora.
Um ordenamento jurídico fundado na dignidade da pessoa humana e na prevalência
dos direitos humanos, que reconhece um rol generoso de direitos humanos fundamentais,
como é o caso do ordenamento constitucional brasileiro, não permite tal interpretação. Isso
não significa que esses direitos não podem sofrer restrições nas relações de emprego, mas,
sim, que tanto a eficácia desses direitos como eventuais restrições devem passar por um
cuidadoso juízo de ponderação/proporcionalidade, preservando-se o seu núcleo essencial e os
interesses mais diretamente ligados à dignidade da pessoa humana.
Portanto, é preciso colocar em xeque pré-juízos que nos cegam, não raras vezes
determinados por uma tradição inautêntica (liberal-individualista), tomando consciência
histórica do contexto existencial em que vivemos e, assim, preservando-nos de cairmos na
tentação da objetificação do sentido dos direitos humanos fundamentais. Só assim, novos
horizontes de sentido serão possíveis e, assim, os direitos humanos fundamentais podem ter
uma melhor chance de efetivação.
4.4.3 Um caso exemplar: o “devido processo legal” e o poder de punir do empregador
A hermenêutica filosófica sempre nos chama a atenção para os casos exemplificativos,
que acabam por fazer com que acordemos dos sonhos dogmáticos.
Como exemplo significativo de aplicação da eficácia ponderada dos direitos humanos
fundamentais nas relações de emprego, cabe analisar, na ótica do “devido processo legal” –
due process of law, o poder disciplinar reconhecido ao empregador, que pode punir os seus
empregados no âmbito do contrato de trabalho.
O devido processo legal, expressamente consagrado no texto constitucional brasileiro
como direito humano fundamental, é uma cláusula, um princípio fundamental que tem
demonstrado uma grande capacidade de mutação ao longo do seu desenvolvimento histórico,
fenômeno este que ganha realce diante de sua previsão numa Constituição de um Estado
Democrático de Direito.
195
O nascimento da cláusula do due process of law está intimamente ligado a um dos
textos mais lembrados quando se fala do desenvolvimento histórico dos direitos humanos
fundamentais, ou seja, a Magna Carta Inglesa de 1215 (Carta Magna das Liberdades ou
Concórdia entre o rei João e os Barões para outorga das liberdades da Igreja e do Reino
inglês)
393
. Com efeito, é nesse texto que a idéia do devido processo legal aparece com força
na história do desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais, entendidos como limites
contrapostos ao poder. A Magna Carta de 1215 teve um papel importantíssimo na positivação
e desenvolvimento desses direitos, sendo um marco na luta contra o arbítrio dos poderes,
embora, se vista num sentido puramente historicista, possa ser considerada apenas como a
consagração de privilégios de determinadas “elites”.
A Magna Carta contém em seu art. 39 a idéia originária do due process of law, ao
prever:
Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado de seus bens (disseisiatur),
banido (utlagetur) ou exilado ou, de algum modo, prejudicado (destruatur), nem
agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus
pares ou segundo a lei da terra (nisi per legale iudicium parium suorum vel per
legem terre).
394
Esse dispositivo seria fundamental para a consagração posterior dos limites do poder e
para a preservação dos direitos dos “súditos”. Pérez Luño afirma que esse dispositivo da
Magna Carta foi a base para o desenvolvimento posterior das liberdades dos súditos ingleses.
No transcurso do tempo, as liberdades previstas na Magna Carta sofreram uma metamorfose
radical, pois de “libertades en sentido exclusivo y estamental en régimen de derecho privado,
pasan a ser libertades generales en el plano del derecho público....”.
395
Em virtude de uma capacidade imensa de evolução, a idéia do devido processo legal
sofreu metamorfoses e configurou-se como garantia de todos perante o poder. Hoje o devido
processo legal ganha foros de princípio fundamental, de direito humano fundamental, estando
393
CANOTILHO, J. J. Gomes, Direito constitucional e teoria da constituição, op. cit. p. 492; PÉREZ LUÑO,
Antonio Enrique, op. cit., p. 112; COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos,
op. cit., p. 80; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 411; PORTANOVA, Rui.
Princípios do Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 145 e BARROSO, Luís Roberto.
Interpretação e aplicação da constituição. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 218.
394
Conferir a redação do texto em COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos direitos humanos,
op. cit., p. 83.
395
PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique, op. cit., p. 114. Em sentido semelhante, OLIVEIRA LIMA, Maria
Rosynete, op. cit., p. 184.
196
consagrado expressamente nos arts. 8 e 10 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948, no art. 14 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, bem como no ar. 5º,
inciso LIV, da Constituição Federal de 1988.
A Constituição Federal de 1988 expressamente consagrou o devido processo legal,
bem como os princípios ou sub-princípios do contraditório e da ampla defesa
396
, como
direitos humanos fundamentais, expressamente reconhecendo a fundamentalidade formal e
material desses princípios para o alcance de uma sociedade pluralista e democrática num
Estado Democrático de Direito, que tem como um de seus princípios fundamentais a
dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF de 1988).
Como já afirmado, ao longo de seu desenvolvimento histórico, o princípio do devido
processo legal ganhou novos contornos e novas significações, ultrapassando uma visão
puramente processual, para ganhar também contornos substantivos. Assim, foram
descortinados novos horizontes de sentido para esse princípio, que alteraram profundamente a
sua concepção
397
. Assim, desenvolveu-se uma “dupla noção”, um “duplo viés” ou “dupla
dimensão” do devido processo legal, ou seja, a procedimental e a substancial.
Como afirma Canotilho, a V e XIV Emendas à Constituição Americana permitiram
uma dupla leitura do devido processo legal: por um lado, a partir dessa cláusula, para que
fosse restringida a vida, a liberdade ou a propriedade se fazia necessário o “processo devido
em direito”, ou seja, um processo justo definido em lei para se aplicar o direito; por outro
lado, isso abriu as portas para se levantar a idéia de que o próprio processo deve ser um
396
Entendemos que os princípios da ampla defesa e do contraditório são verdadeiras concretizações, princípios
ou sub-princípios que servem de apoio ao princípio do devido processo legal. São, assim, co-originários ao
princípio do devido processo legal. Esses sub-princípios atuam como concretizações do princípio do devido
processo legal, dando maior densidade em sua aplicação. Nesse sentido ver OLIVEIRA LIMA, Maria
Rosynete, op. cit., p. 181.
397
Comparato afirma: “Mas o grande elemento revitalizador dos direitos fundamentais nos Estados Unidos tem
sido, inegavelmente, a fórmula geral do necessário respeito ao due process of law. A jurisprudência, logo após
o término da guerra civil, assentou que, além dos efeitos processuais (notadamente o direito a uma ampla
defesa em todo processo-crime), a cláusula tem também um elemento substancial: toda vez que uma lei
restringe ou suprime indevidamente a liberdade individual, ela viola um direito inato da pessoa, cuja proteção
constitui a finalidade de toda a organização estatal.” COMPARATO, Fábio Konder, op. cit., p. 121.
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 493. A história do devido processo legal nos EUA, todavia, não é
pacífica. A cláusula do due process of law serviu ao longo do tempo tanto para um aprofundamento dos
chamados “direitos ou liberdades civis”, em uma postura de ativismo judicial que implicou várias decisões
historicamente marcantes, como as que condenaram as políticas segregacionistas, bem como para a
manutenção de uma visão conservadora e liberal clássica, como as decisões que nulificaram as políticas
intervencionistas do New Deal, como a de salários mínimos. Sobre isso ver, BARROSO, Luís Roberto,
Interpretação e aplicação da constituição, op. cit., p. 220 e s. e OLIVEIRA LIMA, Maria Rosynete, op. cit., p.
69.
197
“processo justo”, ou seja, o processo devido deve ser um processo justo de criação legal de
normas jurídicas.
398
Salienta Canotilho que assim surgem as teorias processual e substancial do devido
processo legal: a primeira enfocando a idéia de que, para que uma pessoa seja privada de seus
direitos, ela tem o direito de exigir que isso se faça de acordo com o processo especificado em
lei; já a segunda se consubstancia na busca da idéia material de processo justo, não bastando
ser apenas legal, mas legal, justo e adequado, ou seja, as autoridades legiferantes não podem,
nem têm o direito de dispor arbitrariamente dos direitos das pessoas. Passa, então, o devido
processo legal a ser utilizado como critério de apreciação da constitucionalidade das leis. Por
fim, ambas as teorias se unificam servindo de critério de proteção dos direitos humanos
fundamentais, através do judicial review.
399
Essa dupla concepção do devido processo legal nem sempre é considerada na doutrina
nacional, visto que os autores, muitas vezes, limitam-se a enxergar o devido processo legal
apenas em sua dimensão puramente processual, sem qualquer conotação substancial, o que
retira dessa cláusula sua função de parâmetro aberto e material de controle de
constitucionalidade.
400
De outro lado, boa parte da doutrina brasileira, principalmente a doutrina surgida após
a Constituição Federal de 1988, começa a explorar as várias facetas do devido processo legal,
visto já segundo um prisma constitucional, tanto no seu aspecto processual, como no seu
aspecto substancial. Dessa forma, o devido processo legal surge como parâmetro material e
aberto de controle da constitucionalidade dos atos normativos, tendo como diretrizes
condutoras os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.
401
Não podemos perder de vista que o sentido só se dá historicamente, ou seja, que a
própria noção do due process of law é histórica, não sendo, assim, como frisa Portanova, um
instrumento mecânico, mas um “processo de adaptação que inevitavelmente envolve o
exercício do julgamento por àqueles a quem a Constituição confiou o desdobramento deste
processo...”. Assim, o devido processo legal é um processo devido quando “se preocupa com
a adequação substantiva do direito em debate, com a dignidade das partes, ...”.
402
O devido
398
CANOTILHO, J. J. Gomes, op. cit., p. 493.
399
Idem, ibidem, p. 494-495.
400
SANTOS, Ernane Fidélis. Manual de direito processual civil. Processo de conhecimento. São Paulo: Saraiva,
1994, p. 37 e SILVA, José Afonso, op. cit., p. 411.
401
LIMA, Maria Rosynete Oliveira, op. cit., p. 227 e 228 e BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação
da constituição, op. cit., p. 228.
402
PORTANOVA, Rui, op. cit., p. 147.
198
processo legal, portanto, tem cumprido papel não só como garantia de feitio processual, mas
também, em sua faceta substancial, como parâmetro para o controle da constitucionalidade de
restrições aos direitos humanos fundamentais.
403
O Supremo Tribunal Federal tem aplicado o due process of law como critério de
aferição de legitimidade de atos normativos, por meio do qual se aferem a razoabilidade e a
proporcionalidade de medidas adotadas pelo poder público. Por esse teste busca-se apurar a
compatibilidade, a adequação ou não desses atos à Constituição Federal de 1988.
404
A evolução da cláusula do devido processo legal levou à consagração de uma dupla
exigência para o atendimento do referido princípio, ou seja, além de um processo legalmente
previsto (devido processo legal processual), também se faz necessário que esse processo seja
justo, razoável e proporcional (devido processo legal substancial). Essas duas faces se
integram numa unidade de sentido, as quais se concretizam através de vários pontos de apoio,
sendo básicos o direito ao contraditório e à ampla defesa (de onde se concretizam uma série
de direitos como: direito de ser citado e direito de tomar conhecimento da acusação; direito a
um julgamento público em um prazo razoável; direito ao juiz natural; direito de produção de
provas; direito à igualdade entre acusação e defesa; direito a não ser condenado em virtude de
provas ilegítimas; direito de acesso ao processo etc), bem como da atuação dos princípios da
proporcionalidade e razoabilidade.
405
Tendo presente essas pré-compreensões, cabe-nos, agora, analisar o devido processo
legal no campo da relação de emprego e sua pertinência ou não no controle do poder
disciplinar do empregador.
403
OLIVEIRA LIMA, Maria Rosynete, op. cit, p. 180 e 187 e MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela
jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Material disponível no site
www.jus.com.br, p. 19-20.
404
Nesse sentido, podem ser citadas como exemplos as decisões proferidas nas ADIn no. 1.407-2-DF, DJ de
24/11/2000 e ADIn 1.511-MC, DJ 06/06/2003, que podem ser consultadas no site www.stf.gov.br.
405
OLIVEIRA LIMA, Maria Rosynete, op. cit., p. 263, 273-274 e 289.
199
4.4.3.1. O poder disciplinar do empregador e o devido processo legal no contrato de trabalho
Conforme já sustentado, ao empregador é reconhecido o chamado “poder
empregatício”, que tem facetas funcionais que se inter-relacionam. Vamos nos ocupar da
faceta disciplinar do poder empregatício em contraste com o devido processo legal.
No Direito do Trabalho brasileiro a conformação e a forma de atuação do poder
disciplinar do empregador, seus limites e condicionamentos não estão dados, em regra, nos
textos legais da legislação trabalhista. A doutrina e a jurisprudência foram construindo, ao
longo do tempo, alguns critérios que são utilizados como balizas para a atuação desse
poder.
406
Assim, foram sendo estabelecidas várias condicionantes para a atuação do poder
disciplinar: a) o dever de obediência do empregado é limitado em razão da matéria
(obrigações intrínsecas ou conexas ao contrato de trabalho) e em razão do tempo (vigência do
contrato); b) não há punição sem culpa (latu sensu, englobando o dolo e a culpa estrito sensu);
c) a pena deve ser proporcional à falta, que deve ser grave e aplicada com razoabilidade (a
proporcionalidade e a razoabilidade não são, todavia, vistas na amplitude e densidade de
princípios constitucionais); d) deve haver uma relação de causa e efeito entre a falta praticada
e a punição aplicada (nexo etiológico); e) não se admite multa (salvo expressa previsão legal),
rebaixamento ou transferência como formas de punição; f) falta não punida imediatamente é
falta perdoada; g) para uma única falta só se pode aplicar uma única punição (non bis in
idem); h) imodificabilidade ou insubstituibilidade da punição pelo Poder Judiciário
(impossibilidade do juiz alterar a punição aplicada, ou seja, reconhece-a e ratifica-a ou não a
reconhece e decreta sua invalidade); i) a suspensão disciplinar não pode ir além de 30 (trinta)
dias. Se ultrapassar este prazo, caracteriza-se a rescisão injusta do contrato (art. 474 da CLT);
j) os casos passíveis de punição são somente os previstos em lei (arts., 158, 482 e 508 da
CLT, como exemplos).
407
Existem, ainda, normas coletivas (acordos coletivos, convenções coletivas de trabalho,
sentenças normativas), regulamentos de empresa e contratos individuais de trabalho que
406
GOMES, Orlando e GOTTSCHALK, Élson, op. cit., p. 68.
407
Este rol de condicionantes apresentado, com algumas diferenças, é o indicado em regra pela doutrina e
aplicado pela jurisprudência. Para conferência, podem ser citados MARANHÃO, Délio e CARVALHO, Luiz
Inácio B., op. cit., p. 89 e ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes. Direito do Trabalho – Itinerários da
dominação. São Paulo: LTr., 1994, p. 171.
200
algumas vezes também traçam mais alguns critérios para a atuação do poder disciplinar,
ficando, todavia, como se percebe, numa zona franqueada à autonomia privada (seja coletiva,
seja individual).
Partindo disso é pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência trabalhistas, que é
possível a punição do empregado pelo empregador sem qualquer procedimento interno na
empresa que garanta o devido processo legal e os direitos de ampla defesa e do contraditório,
a menos que a própria empresa a isso voluntariamente se tenha obrigado por meio de
regulamento que preveja tal procedimento (Súmula no. 77 do TST)
408
, ou seja, essa obrigação
não se concretiza a partir da previsão constitucional do devido processo legal.
Aliás, sequer é considerada necessária a comunicação ao empregado dos fatos
concretos que lhe estão sendo imputados pelo empregador (informação sobre o conteúdo das
acusações). O empregado pode ser despedido por justa causa sem tomar conhecimento dos
fatos que fundamentam as acusações que estejam lhe sendo imputadas.
409
Diante dessa realidade, portanto, parece-nos importante descortinar outros âmbitos do
devido processo legal, mais propriamente, investigar a possibilidade de extensão de seus
efeitos para as relações privadas.
Ora, punições eventualmente aplicadas pelo empregador acarretam a perda de direitos
do empregado previstos como direitos humanos fundamentais sociais e podem afetar, ainda, a
esfera moral do empregado. Vários direitos sociais podem deixar de ser pagos, acarretando
408
Referida Súmula no. 77 do TST prevê: “Nula é a punição de empregado se não precedida de inquérito ou
sindicância internos a que se obrigou a empresa por norma regulamentar.”
409
Esta postura atenta, a nosso ver, não só contra o devido processo legal, conforme abaixo será sustentado, mas
atinge diretamente a dignidade da pessoa humana. Com as devidas ponderações, visto estar direcionada para o
âmbito penal, cabe citar a seguinte decisão do STF: "Denúncia. Estado de direito. Direitos fundamentais.
Princípio da dignidade da pessoa humana. Requisitos do art. 41 do CPP não preenchidos. A técnica da
denúncia (art. 41 do Código de Processo Penal) tem merecido reflexão no plano da dogmática constitucional,
associada especialmente ao direito de defesa. Denúncias genéricas, que não descrevem os fatos na sua devida
conformação, não se coadunam com os postulados básicos do Estado de Direito. Violação ao princípio da
dignidade da pessoa humana. Não é difícil perceber os danos que a mera existência de uma ação penal impõe
ao indivíduo. Necessidade de rigor e prudência daqueles que têm o poder de iniciativa nas ações penais e
daqueles que podem decidir sobre o seu curso" (HC 84.409, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 19/08/05). Esta
decisão pode ser conferida no site www.stf.gov.br . Aliás, sobre a ligação do devido processo legal e a
dignidade humana, Streck cita o pensamento de Tribe, quando esse autor afirma que o direito ao devido
processo legal tem na sua base a dignidade pessoal, pois ser ouvido é parte do que significa ser pessoa.
STRECK, Lenio Luiz, Verdade e consenso, op. cit., p. 20. Cumpre salientar, ainda, como nota histórica, mas
de importância relevante, que o Anteprojeto de Código de Trabalho de Evaristo de Moraes Filho, apresentado
em 31 de março de 1963, previa toda uma sistemática para a utilização do poder disciplinar. No art. 542, por
exemplo, entre outros, previa que na aplicação da justa causa deveria o juiz observar o princípio da boa fé na
execução dos contratos, sendo que, no art. 544 estabelecia a obrigatoriedade de especificação dos motivos que
fundamentaram a demissão por justa causa, permitindo ao empregado a ampla defesa quanto à falta imputada..
Para mais informações sobre o referido Anteprojeto, consultar ANDRADE, Everaldo Gaspar Lopes de, op.
cit., p. 174 e 175.
201
perdas patrimoniais ao empregado, em virtude da aplicação de uma penalidade. Como
exemplo disso podemos citar os efeitos de uma suspensão disciplinar ou de uma despedida
por justa causa. Uma suspensão disciplinar implica a perda de salário dos dias não
trabalhados, além de afetar o repouso semanal remunerado e a contagem de tempo de serviço.
Já uma despedida por justa causa priva o empregado do aviso prévio, do 13º. salário
proporcional, das férias proporcionais, do FGTS, da multa de 40% sobre o FGTS e do seguro-
desemprego. Além disso, os danos morais podem ser relevantes, inclusive numa simples
advertência (sem efeitos patrimoniais), quanto mais numa suspensão ou despedida por justa
causa (despedida por improbidade – art. 482, letra “a”, da CLT -, por exemplo).
Cabe-nos, portanto, formular duas perguntas: a) num Estado Democrático de Direito,
fundado na dignidade da pessoa humana e no valor social do trabalho, entre outros valores, é
legítimo o exercício de um poder sem a observância dos direitos humanos fundamentais?; b) o
devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa, como direitos e garantais
fundamentais apenas se aplicam em processos onde houver a presença estatal ou se aplicam
também perante poderes privados que em sua atuação possam afetar direitos?
Diante disso, precisamos investigar se o devido processo legal se constitui em direito
humano fundamental diretamente aplicável no interior do contrato de trabalho, quando do
exercício do poder disciplinar pelo empregador no contexto de um Estado Democrático de
Direito, tal qual conformado no ordenamento jurídico brasileiro. Ora, o fato de nossa
sociedade ter assumido a conformação de um Estado que tem um regime político estruturado
como Democrático de Direito, deve ocasionar uma reavaliação de toda a dogmática anterior,
tendo em vista a mudança da base sobre a qual se ergue o contrato social constitucional
410
.
A democracia substancial não deve se cingir ao aspecto das escolhas estatais, mas,
como regime político, deve se fazer presente em todas as relações intersubjetivas que ocorram
na sociedade, principalmente onde houver relações de poder mesmo entre privados,
respeitados os âmbitos recônditos das escolhas estritamente pessoais das pessoas. Nessa
direção, ao tratar das transformações ocasionadas pela passagem dos modelos de Estado
410
Como afirma Perlingieri, o “estudo do direito – e portanto também do direito tradicionalmente definido
“privado” – não pode prescindir da análise da sociedade na sua historicidade local e universal, de maneira a
permitir a individualização do papel e do significado da juridicidade na unidade e na complexidade do
fenômeno social. O Direito é ciência social que precisa de cada vez maiores aberturas; necessariamente
sensível a qualquer modificação da realidade, entendida na sua mais ampla acepção.” PERLINGIERI, Pietro.
Perfis do direito civil – introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Tradução de Maria Cristina de Cicco.
Rio de Janeiro-São Paulo: Renovar, 2002, p. 1.
202
liberal e social para o Estado Democrático de Direito, com o seu plus transformador, Copetti
afirma:
...Exige a concretização dos direitos humanos o cumprimento da Constituição não só
pelos cidadãos componentes da população de um Estado, mas, principalmente, pelos
próprios poderes públicos que têm uma função de proteção. Com isso, realizam-se
no plano concreto as pretensões dos destinatários dos direitos fundamentais
positivados no que se refere ao seu significado de proteção, seja em relação aos
outros cidadãos, seja contra as instâncias de poder público ou privado.
411
Os operadores do Direito devem concretizar as normas constitucionais na prática,
levando em conta a realidade da vida, mas buscando alterá-la no sentido das normas
constitucionais, efetivando a “força normativa da Constituição”, como bem ensinou Hesse.
412
Necessário se faz uma “filtragem constitucional” das noções antes tidas e
“consagradas” sobre o poder empregatício, a fim de que esse poder se exerça não como um
poder arbitrário e isolado dentro do contrato de trabalho, mas que se submeta aos ditames da
ordem jurídica vigente. Afirmar que os direitos humanos fundamentais e os princípios
constitucionais são limites e condicionamentos ao exercício do poder disciplinar do
empregador é afirmar que o ser humano é um fim em si, não um meio, sendo dotado de
dignidade, bem como que o empregado não deixa de ser cidadão ao adentrar no “chão-da-
fábrica”.
Vemos nessa visão um profundo compromisso ético que o pensamento hermenêutico
postula ao chamar a atenção dos intérpretes para a responsabilidade social de sua prática.
Como afirma Rohden:
É inerente à hermenêutica filosófica a responsabilidade com os caminhos de uma
sociedade ao afirmar que não há ciência, linguagem, conhecimentos “puros”,
“objetivos”. Estes estão comprometidos, no tempo e no espaço, com uma
determinada posição ético-política. Cabe à hermenêutica explicitar os
“compromissos”existentes e repensar o projeto implícito que os condiciona e os
determina, o que pressupõe uma concepção ética.
413
411
COPETTI, André, A jurisprudencialização da constituição no estado democrático de direito, op. cit., p. 27.
412
HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 24.
413
ROHDEN, Luiz, op. cit., p. 190.
203
Em nossa opinião, as posturas que simplesmente negam ou aplicam ad hoc os
princípios constitucionais e os direitos humanos fundamentais inerentes ao Estado
Democrático de Direito, tal qual construído em nossa sociedade e nossa Constituição Federal
de 1988, explicitam compromissos ético-jurídicos estranhos ao novo paradigma constitucional
e humanitário. Essas posturas acabam por impor sua subjetividade, que não raras vezes se
apresenta prenhe de ideários ligados ao positivismo liberal e a uma concepção do Estado e da
ordem jurídica que não têm qualquer compromisso com a transformação social, em clara
oposição à concepção do Estado Democrático de Direito.
Embora não dando destaque ao devido processo legal, mas aos sub-princípios do
contraditório e da ampla defesa, Bramante entende que o inciso LV do art. 5
º
da CF de 1988,
ao tratar do direito à defesa, sugere que há dois destinatários desse direito, ou seja, aos
litigantes em processo judicial e administrativo e aos “acusados em geral”. Assim, o direito de
defesa dos litigantes está vinculado ao processo judicial e administrativo, e o direito de defesa
dos acusados em geral não está associado ao processo e é referido de modo indeterminado.
Assim, conclui que a Constituição estabeleceu que o direito à defesa não socorre o cidadão
apenas quando litiga com o Estado ou perante o Estado em processo judicial ou
administrativo, mas também que a Constituição pôs o cidadão a recato quando confrontado
com o arbítrio de outras instâncias de poder, cujos atos sejam dotados de cogência suficiente
para submetê-lo unilateralmente a seus desígnios. Afirma, ainda, que, no tocante ao direito à
defesa, houve uma mudança substancial quanto ao seu alcance. A Constituição Federal
anterior remetia à lei a missão de assegurar aos acusados a ampla defesa, o que levou a
jurisprudência a uma interpretação restritiva no sentido de que a garantia à defesa dependia da
lei e os meios e recursos da defesa seriam aqueles previstos em lei. Todavia, na Constituição
Federal de 1988 houve uma mudança nessa atitude, pois foi eliminada do texto a referência à
lei para o exercício da ampla defesa, o que tornou essa norma “auto-executável”, dispensando
a interpositio legislatoris e, portanto, não autorizando uma negação do direito, tampouco,
comportando a espera de normas reguladoras procedimentais para o exercício do direito.
414
O STF já se manifestou sobre a questão no âmbito de relações privadas marcadas pela
igualdade, o que justifica ainda mais o questionamento aqui feito no tocante às relações
marcadas pela assimetria, como ocorre nas relações de emprego.
414
BRAMANTE, Ivani Contini. Eficácia do contraditório e da ampla defesa nas relações interprivadas. Revista
LTr. vol. 64, nº. 08. São Paulo: LTr., agosto de 2000, p. 1009 a 1016.
204
No acórdão proferido no RE – 158.215-4-RS, tendo como relator o Ministro Marco
Aurélio, DJ 7.6.1996, p. 19.830, o STF reconheceu a nulidade de punição aplicada em relação
privada em virtude de não ter sido assegurada a oportunidade de defesa. A ementa do acórdão
está assim vazada:
Defesa – Devido Processo Legal – Inciso LV do Rol das Garantias Constitucionais –
Exame Legislação Comum. A intangibilidade do preceito constitucional assegurador
do devido processo legal direciona ao exame da legislação comum. Daí a
insubsistência da óptica segundo a qual a violência à Carta Política da República,
suficiente a ensejar o conhecimento de extraordinário, há que ser direta e frontal.
Caso a caso, compete ao Supremo Tribunal Federal exercer o crivo sobre a matéria,
distinguindo os recursos protelatórios daquelas em que versada, com procedência, a
transgressão a texto constitucional, muito embora torne-se necessário, até mesmo,
partir-se do que previsto na legislação comum. Entendimento diverso implica relegar
à inocuidade dois princípios básicos em um Estado Democrático de Direito – o da
legalidade e do devido processo legal, com a garantia da ampla defesa, sempre a
pressuporem a consideração de normas estritamente legais. Cooperativa – Exclusão
de Associado - Caráter Punitivo – Devido Processo Legal. Na hipótese de exclusão
de associado decorrente de conduta contrária aos estatutos, impõe-se a observância
ao devido processo legal, viabilizando o exercício ampla da defesa. Simples desafio
do associado à assembléia geral, no que toca à exclusão, não é de molde a atrair a
adoção de processo sumário. Observância obrigatória do próprio estatuto da
cooperativa..
415
Também pode ser citado o acórdão do STF no AI 346.501-AgR/SP, tendo como
relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 25.02.2005, com a seguinte ementa:
EMENTA: 1. Agravo regimental: necessidade de impugnação da motivação da
decisão agravada e de modo convincente (RISTF, art. 317, § 1º): precedentes. 2.
Cooperativa: exclusão de cooperado: imposição de observância do devido processo
legal: precedente (RE 158.215, Marco Aurélio, 2ª T., DJ 7.6.1996). 3. Recurso
extraordinário: descabimento: a invocação do artigo 5º, XVIII, da Constituição,
relativo à liberdade de criação e à autonomia de funcionamento de associações e
cooperativas, não afasta o fundamento do acórdão recorrido referente à
inobservância dos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do
devido processo legal, verificada à luz de normas estatutárias: incidência das
Súmulas no. 283 e 254.
416
Por fim, paradigmático é o acórdão proferido pelo STF no RE no. 201819-8, tendo
como relator para o acórdão o Ministro Gilmar Mendes, julgado em 11/10/2005, pois nele, ao
415
Este acórdão pode ser conferido em BRAMANTE, Ivani Contini, op. cit., p. 1015, bem como no site
www.stf.gov.br.
416
Este acórdão pode ser conferido no site www.stf.gov.br.
205
contrário de uma tendência à omissão no debate da questão da eficácia dos direitos humanos
fundamentais nas relações privadas, já criticada, o tema é enfrentado.
417
No referido acórdão o STF negou provimento a um recurso extraordinário no qual se
pedia a reforma de decisão na qual o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, pela aplicação do
disposto no inciso LV do art. 5º. da CF de 1988 (direitos de ampla defesa e do contraditório),
invalidara a punição aplicada por uma entidade privada (sociedade civil) a um de seus
membros, visto não terem sido garantidos o amplo direito de defesa e o direito ao
contraditório. A entidade recorreu para o STF de referida decisão. A relatora, Ministra Ellen
Gracie, em seu voto deu provimento ao recurso entendendo que o dispositivo constitucional
citado não tinha aplicação ao caso, pois totalmente descabida a aplicação do art. 5º, LV, da CF
de 1988 a uma entidade privada. Esse voto foi acompanhado pelo voto do Ministro Carlos
Velloso. Houve pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes, que votou pela manutenção da
decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro; acompanhou Gilmar Mendes o Ministro
Joaquim Barbosa. Em 11/10/2005, após o voto do Ministro Celso de Mello, foi desacolhido o
recurso extraordinário e mantido o acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, tendo
sido designado como relator do acórdão o Ministro Gilmar Mendes.
Em seu voto, o Ministro Gilmar Mendes fez as seguintes considerações:
417
Este acórdão pode ser conferido no site www.stf.gov.br.
206
O tema versado nos presentes autos tem dado ensejo a uma relevante discussão
doutrinária e jurisprudencial na Europa e nos Estados Unidos. Valho-me aqui de
estudo por mim realizado constante da obra - Direitos Fundamentais e Controle de
Constitucionalidade - Estudos de Direito Constitucional-, sob o título -Eficácia dos
direitos fundamentais nas relações privadas - (...). Assim, ainda que se não possa
cogitar de vinculação direta do cidadão aos direitos fundamentais, podem esses
direitos legitimar limitações à autonomia privada seja no plano da legislação, seja no
plano da Interpretação. É preciso acentuar que, diferentemente do que ocorre na
relação direta entre o Estado e o cidadão, na qual a pretensão outorgada ao indivíduo
limita a ação do Poder Público, a eficácia mediata dos direitos fundamentais refere-
se primariamente a uma relação privada entre cidadãos, de modo que o
reconhecimento do direito de alguém implica o sacrifício de faculdades
reconhecidas a outrem. Em outros termos, a eficácia mediata dos direitos está
freqüentemente relacionada com um caso de colisão de direitos. A posição jurídica
de um indivíduo em face de outro somente pode prevalecer na medida em que se
reconhece a prevalência de determinados interesses sobre outros. (...) Essas
considerações parecem fornecer diretrizes mais ou menos seguras e, até certa parte,
amplas, para a aplicação do direito de defesa no caso de exclusão de associados.
Todavia, afigura-se-me decisivo no caso em apreço, tal como destacado, a singular
situação da entidade associativa, integrante do sistema ECAD, que, como se viu na
ADI n° 2.054-DF, exerce uma atividade essencial na cobrança de direitos autorais,
que poderia até configurar um serviço público por delegação legislativa. Esse caráter
público ou geral da atividade parece decisivo aqui para legitimar a aplicação direta
dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e
à ampla defesa (art. 5°, LIV e LV, da CF) ao processo de exclusão de sócio de
entidade. Estando convencido, portanto, de que as particularidades do caso concreto
legitimam a aplicabilidade dos direitos fundamentais referidos já pelo caráter
público - ainda que não estatal - desempenhado pela entidade, peço vênia para
divergir, parcialmente, da tese apresentada pela Eminente Relatora. Voto, portanto,
pelo conhecimento do recurso e, no mérito, pelo seu desprovimento.
418
O Ministro Celso de Mello, em seu voto no referido acórdão, é, a nosso ver, mais
firme na postura de extensão dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas, razão
pela qual, apesar da extensão, faz-se interessante a citação de sua posição. Consta do voto:
... O exame da controvérsia suscitada nesta sede recursal extraordinária faz instaurar
instigante discussão em torno de tema impregnado do mais alto relevo
constitucional, consistente na análise da eficácia horizontal dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, ..... .
...
O acórdão objeto do presente recurso extraordinário, ao assinalar que o estatuto das
liberdades públicas (enquanto complexo de poderes, de direitos e de garantias) não
se restringe à esfera das relações verticais entre o Estado e o indivíduo, mas também
incide sobre o domínio em que se processam as relações de caráter meramente
privado, reconheceu que os direitos fundamentais projetam-se, por igual, numa
perspectiva de ordem estritamente horizontal.
...
418
O voto pode ser conferido no site www.stf.gov.br, bem como site www.estadao.br, no link consultor jurídico,
notícias de 11/10/2005.
207
Essa mesma reflexão sobre o tema é também compartilhada com WILSON
STEINMETZ (“A Vinculação dos Particulares a Direitos Fundamentais”, p. 295,
2004, Malheiros), cujo magistério põe em destaque a significativa importância de
estender-se, ao plano das relações de direito privado estabelecidas entre particulares,
a cláusula de proteção das liberdades e garantais constitucionais, cuja incidência –
como já referido no início deste voto – não se resume, apenas, no âmbito das
relações verticais entre os indivíduos, de um lado, e o Estado, de outro:
“No marco normativo da CF, direitos fundamentais – exceto aqueles cujos sujeitos
destinatários (sujeitos passivos ou obrigados) são exclusivamente os poderes
públicos – vinculam os particulares. Essa vinculação se impõe com fundamento no
princípio da supremacia da Constituição, no postulado da unidade material do
ordenamento jurídico, na dimensão objetiva dos direitos fundamentais, no princípio
constitucional da dignidade da pessoa (CF, art. 1º., III), no princípio constitucional
da solidariedade (CF, art. 3º, I) e no princípio da aplicabilidade imediata dos direitos
e das garantias fundamentais (CF, art. 5º, §1º.).”(grifei)
É por essa razão que a autonomia privada – que encontra claras limitações de ordem
jurídica – não pode ser exercida em detrimento ou com desrespeito aos direitos e
garantias de terceiros, especialmente aqueles positivados em sede constitucional,
pois a autonomia da vontade não confere aos particulares, no domínio de sua
incidência e atuação, o poder de transgredir ou de ignorar as restrições postas e
definidas pela própria Constituição, cuja eficácia e força normativa também se
impõem, aos particulares, no âmbito de suas relações privadas, em tema de
liberdades fundamentais.
...
Concluo, pois, presentes as razões expostas, no sentido de reconhecer, Senhores
Ministros, que assiste, ao associado, no procedimento de sua expulsão referente à
entidade civil de que seja membro integrante, a prerrogativa indisponível de ver
respeitada a garantia do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes, consoante prescreve, em cláusula mandatória, a
Constituição da República, em seu art. 5º., inciso LV, não obstante se trate, como no
caso, de ato praticado na esfera e sob a égide de uma típica relação de ordem
jurídico-privada.
419
O acórdão é paradigmático porque rompe com um silêncio de anos da jurisprudência
brasileira sobre o tema relativo à eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações
privadas, não porque esses direitos não tenham sido tantas vezes aplicados, mas, sim, por
buscar uma motivação consistente na aplicação desses direitos nas relações privadas.
Portanto, doutrina e jurisprudência têm aberto outros horizontes na aplicação do devido
processo legal, estendendo sua aplicação para casos nos quais, mesmo no interior de relações
privadas, uma das partes, em virtude da “cogência” e “auto-executividade” de seus atos, possa
atingir a esfera jurídica de outrem.
No campo do poder disciplinar do empregador, por ser a relação de total assimetria, os
argumentos apontados são ainda mais cogentes. Não se pode perder de vista que é dado ao
empregador imputar uma conduta reprovável a um empregado, bem como em virtude disso
419
O voto pode ser conferido no site www.stf.gov.br, bem como site www.estadao.br, no link consultor jurídico,
notícias de 11/10/2005.
208
julgar e impor sua despedida por justa causa com uma série de conseqüências jurídicas, tanto
de ordem patrimonial como moral, que são imediatamente desencadeadas com a despedida
por justa causa, o que configura a auto-executoriedade da medida adotada pelo empregador.
Tanto a dimensão substancial como a processual da cláusula do devido processo legal
podem ser invocadas em tais casos. Não é razoável nem proporcional que direitos humanos
fundamentais (tanto morais como patrimoniais) possam ser atingidos por uma decisão
unilateral do empregador sem um procedimento prévio justo. Por outro lado, a falta de
qualquer procedimento para a aplicação de penalidades importa em desconsiderar totalmente
aspectos processuais do devido processo legal, como seja, o contraditório, a ampla defesa e a
informação dos fatos imputados.
Com relação ao devido processo legal no âmbito da relação de emprego, é oportuno
lembrar a decisão do STF no julgamento da ADIMC – no. 1.480-3 - DF, em 25/09/96, tendo
como relator o Ministro Celso de Mello
420
. Tratou-se do julgamento relativo à
constitucionalidade da Convenção no. 158 da OIT, aprovada pelo Brasil através do Decreto
Legislativo no. 68, de 16/09/92, promulgada pelo Decreto no. 1.855, de 10/04/96 e
denunciada pelo Decreto de no. 2.100, de 20/12/96.
Nessa ação o STF considerou inconstitucional a referida Convenção na parte em que
previa estabilidade no emprego de forma geral aos empregados, pois entendeu que essa parte
da Convenção contrariava o art. 7º, I, da CF de 1988. O que nos importa, todavia, é a posição
adotada no tocante à interpretação do art. 7º. da Convenção, considerado constitucional, o
qual dispõe:
Art. 7
o
. – Não deverá ser terminada a relação de trabalho de um trabalhador por
motivos relacionados com seu comportamento ou seu desempenho antes de se dar ao
mesmo a possibilidade de se defender das acusações feitas contra ele, a menos que
não seja possível pedir ao empregador, razoavelmente, que lhe conceda esta
possibilidade.
Como percebemos, o artigo dispõe sobre o devido processo legal em casos
relacionados ao comportamento ou desempenho do empregado que possam levar à extinção
do contrato de trabalho. Ao analisar o dispositivo, o Ministro Relator Celso de Mello
salientou alguns pontos que nos parecem cruciais:
420
Esta decisão pode ser conferida no site www.stf.gov.br.
209
... A Convenção n. 158/OIT, de outro lado, enuncia em seu Artigo 7
o
., um princípio
de fundamental importância, destinado a permitir que o empregado tenha ciência das
causas que lhe são imputadas pelo empregador e de cuja comprovação poderá
resultar ulterior ruptura do contrato individual de trabalho. ... O reconhecimento, em
favor do empregado, da possibilidade de pronunciar-se, previamente, sobre a falta
que lhe é imputada – e de cuja prática pode derivar a ruptura unilateral do contrato
de trabalho – impõe-se, enquanto providência compatível com os princípios gerais
de Direito, como medida indispensável à formalização desse ato revestido de
gravíssimas conseqüências no plano jurídico e social. ....
O Ministro Sepúlveda Pertence, em seu voto, concordou com o relator e afirmou que
os “... arts. 7
o
., 8
o
e 9
o
. da Convenção são garantias processuais, o primeiro extrajudicial e os
dois últimos judiciais, plenamente harmônicos com as múltiplas garantias do due process of
law, da Constituição Federal. ...”. Por seu turno, o Ministro Carlos Velloso afirmou em seu
voto: “... O artigo 7
o
. consagra medida salutar, que se relaciona com o devido processo legal
inscrito no art. 5
o
., LV, da C.F. É dizer, ao empregado é concedido o direito de defesa, ou a
possibilidade de se defender. ...”. Portanto, o próprio Supremo não anteviu nada de novo no
dispositivo da Convenção no. 158, pois entendeu que esse já fazia parte de nosso
ordenamento jurídico de base constitucional.
Percebemos na não aplicação dos direitos humanos fundamentais de primeira
dimensão nas relações de trabalho, como é o caso do devido processo legal, é uma postura de
total falta de questionamento dos sentidos que podem ser abertos com a instauração de uma
ordem jurídica democrática, que não se cinge às relações Estado-indivíduo, mas que tamm
normatiza as relações sociais como um todo. A nosso ver, essa postura está marcada por um
conceitualismo dogmático que impede que os intérpretes se dêem conta de que o fenômeno
jurídico se mostra e se vela ao longo da história. Cabe aos intérpretes, portanto, tomar
consciência histórica e dirigir as perguntas adequadas para colocar à luz esses entes, tornando
possível o esclarecimento de pré-juízos inautênticos e fazendo possível a abertura de sentidos
mais adequados.
Portanto, parece razoável concluir que é obrigatória a observância do devido processo
legal para que o empregador possa punir um empregado no interior do contrato de trabalho,
mesmo sem legislação infraconstitucional que regule a matéria. Todavia, a aplicação desse
direito não pode ser de tal forma que não leve em conta aspectos ligados à situação e aos
sujeitos envolvidos, o que envolve um juízo de proporcionalidade/ponderação dos interesses e
das circunstâncias do caso, como se denota da própria redação dada ao art. 7º. da Convenção
210
no. 158 da OIT (proibição de excesso), bem como não pode deixar de proteger o empregado
(proibição de proteção deficiente).
Não é possível, por exemplo, exigir de um empresário individual, que tenha apenas um
empregado, que no exercício de seu poder punitivo viabilize um procedimento complexo,
com uma ampla possibilidade de recursos processuais e probatórios para o empregado. Por
outro lado, nada impede que se exija numa situação dessas que seja o empregador obrigado a
comunicar ao empregado os motivos da punição e ouvi-lo sobre a mesma. Por outro lado, no
caso de uma grande empresa, não vemos motivo para que não se exija um procedimento mais
complexo, com direito a ser informado sobre a acusação, de manifestar-se sobre a mesma, de
produzir provas e de ter a decisão proferida por uma comissão, por exemplo.
Com isso, desvela-se mais uma aplicação para o devido processo legal, aliás, já
entreaberta pela doutrina e pela jurisprudência, ou seja, estender seus efeitos para dentro do
contrato de trabalho. Com efeito, diante da posição de superioridade em que se encontra o
empregador e pela possibilidade que tem de aplicar punições ao empregado, não se justifica,
salvo em hipóteses extremas (sumiço do empregado, por exemplo), que as punições sejam
aplicadas sem a observância de um procedimento mínimo que garanta ao empregado as
concretizações básicas do devido processo legal.
É evidente que seria salutar que medidas legais infraconstitucionais fossem editadas
para estabelecerem um procedimento adequado para a aplicação de punições no contrato de
trabalho. Todavia, isso não impede que o juiz concretize nos casos concretos, a partir do
princípio, da cláusula, do direito humano fundamental ao due process of law, certos
mecanismos que garantam ao empregado a efetiva concretização desse direito, sob pena
nulidade da punição aplicada.
211
5 CONCLUSÃO
O trabalho realizado demonstrou a necessária vinculação entre o estudo do Direito e
do Direito do Trabalho, em especial, com a história. A tomada de consciência da historicidade
que marca o fenômeno jurídico é condição de possibilidade para o enfrentamento mais
adequado dos problemas jurídicos.
O trabalho humano, ao longo do tempo, manifestou-se de várias formas e em cada fase
existiu uma diferente maneira de regulamentá-lo. Para os fins específicos do Direito do
Trabalho é a Revolução Industrial que constitui o processo necessário para o seu surgimento.
Numa sociedade capitalista de signo liberal, com sujeitos de fato oprimidos e desiguais, mas
juridicamente considerados plenamente livres e iguais, a exploração do homem pelo homem,
por meio do contrato em sua feição clássica, ganha contornos gritantes.
Os trabalhadores, unidos pelas condições péssimas de vida em torno de ideais comuns,
forçam o Estado a intervir, solapando as bases do Estado liberal clássico e levando a que haja
a regulamentação do trabalho e o reconhecimento de alguns direitos básicos. Toda essa
pressão social e política, combinada a outros fatores, conduz, com o passar do tempo, à
criação do chamado Estado de bem estar social.
Esse processo de intervenção estatal nas relações de trabalho ocorreu, em primeiro
lugar, nos países mais desenvolvidos e onde existia uma classe trabalhadora mais forte e
organizada. Nos países desenvolvidos o trabalho passa a ter regulamentação estatal já a partir
da primeira metade do século XIX, ao passo que, nos países periféricos, como é o caso do
Brasil, o trabalho era ainda prestado, basicamente, no regime escravo, e os trabalhadores
“livres” tinham suas relações estabelecidas em regime muito próximo ao feudal.
No Brasil, a abolição da escravatura e o avanço interno do capitalismo impõem
mudanças econômicas e sociais e, então, abre-se espaço para a estruturação de novas relações
de trabalho, aparecendo uma classe obreira reivindicativa. O Estado brasileiro, então, começa
a intervir nas relações de trabalho, regulamentando-as. Por outro lado, à pressão interna pela
regulamentação do trabalho vem a ser somada a pressão internacional, imposta pelos países
desenvolvidos que queriam que os custos do trabalho fossem universalizados.
O nascimento do Direito do Trabalho no Brasil é, assim, marcado por pressões
internas dos trabalhadores e por pressões internacionais. Essa regulamentação, basicamente
212
em sede infraconstitucional, é bastante intensa, principalmente no campo do Direito
Individual do Trabalho. Com a Constituição Federal de 1988 os direitos dos trabalhadores são
alçados, de forma generosa e nunca antes vista, ao rol dos direitos fundamentais e ganham,
assim, um papel de maior relevo no ordenamento jurídico interno. Todavia, em contraposição
a esta evolução protetiva dos direitos dos trabalhadores, surgem movimentos globais, que
apontam em outra direção.
O mundo do trabalho é atingido por alterações econômicas, políticas e sociais que têm
causado um impacto gigantesco nas condições de vida daqueles que vivem do trabalho. A
globalização sob a feição neoliberal tem provocado um processo de corrosão das estruturas
políticas e jurídicas, privilegiando os aspectos econômicos da produção ligados aos interesses
do capitalismo transnacional em contraste com a possibilidade de uma globalização
civilizatória fundada nos direitos humanos.
Com as crises do petróleo que desencadearam uma crise financeira nos Estados de
bem estar social, dá-se vazão ao aparecimento no plano do receituário político/econômico da
visão neoliberal, que se transforma numa espécie de pensamento único, principalmente após o
colapso do campo soviético e o fim da Guerra Fria, e impõe políticas que não privilegiam o
trabalho, mas, sim, o acúmulo cada vez maior de capital. O receituário da globalização
neoliberal postula, em nível geral, a diminuição do espaço público e o enfraquecimento dos
Estados nacionais. Assim, o espaço público é tomado pelos entes privados, o que ocasiona um
aumento geométrico do seu poder econômico/político. Além disso, mais especificamente no
campo do trabalho, são estabelecidas políticas de desregulamentação e flexibilização dos
direitos humanos sociais.
Como dito, com a globalização neoliberal os Estados nacionais perdem força (não de
forma simétrica, mas proporcional ao seu poderio econômico e militar) sendo colocado em
xeque o conceito moderno de Estado como Estado soberano. Tanto é assim que surge no
plano político um novo sujeito internacional, um “soberano privado supra-estatal e difuso”,
formado pelas mega-corporações transnacionais e que, agindo por meio de instâncias inter-
estatais como o FMI, o Banco Mundial e o G-7, impõe suas diretrizes e seu direito (lex
mercatória) aos Estados nacionais permeáveis, que integram essas diretivas em seus
ordenamentos jurídicos internos. Há um crescimento imenso do poder privado em
contraponto com o esvaecimento do poder público tradicionalmente representado pelos
Estados nacionais. Isso não significa dizer, todavia, que desaparece o poder estatal, mas, sim,
que a globalização neoliberal quer o Estado fraco para não poder se contrapor aos seus
213
desideratos, mas forte o suficiente para impor, em nível interno aos seus nacionais, as
diretrizes do neoliberalismo, ou seja, o fortalecimento da propriedade privada e dos contratos
no seu sentido liberal, favorecendo o acúmulo de capital.
No campo do trabalho esses fenômenos são potencializados por uma forte
reestruturação produtiva e o aparecimento de novas formas de produção, marcadas pela
flexibilidade, pelas revoluções tecnológica e organizacional e por um aumento gritante das
formas precarizadas de prestação de trabalho.
A globalização neoliberal gera desemprego, visto que seus objetivos não estão
voltados para a criação de empregos e prega a flexibilização dos direitos dos trabalhadores
como receita para a geração de empregos. A flexibilização das relações de trabalho é assim
proposta para a solução do grave problema do desemprego. É a resposta neoliberal para um
problema criado pelo neoliberalismo e suas políticas econômico/sociais.
Por outro lado, além do grave problema do desemprego, os trabalhadores que estão
ativos no mercado de trabalho enfrentam, em nível global, a violação sistemática de sua
dignidade, daqueles direitos humanos fundamentais que chamamos de “inespecíficos”. Não se
trata aqui de questões de puro viés econômico, mas, sim, daquelas ligadas aos chamados
“direitos humanos fundamentais de primeira dimensão” (liberdade de expressão e
pensamento, privacidade, devido processo legal, intimidade), que são constantemente
violados no ambiente de trabalho, configurando manifestações de “feudalismo empresarial”.
Na análise específica da flexibilização dos direitos dos trabalhadores e da precarização
das relações laborais, analisamos esses fenômenos em dois enfoques diversos: um no plano da
conveniência e outro no plano da legitimidade.
No plano da conveniência analisamos se o seguimento do receituário neoliberal
realmente gera os empregos alardeados, argumento retórico que funciona como sua tentativa
de legitimação. Constatamos que os dados apontam para uma resposta negativa. As
experiências de flexibilização não têm mostrado aumento de empregos, mas, sim, mais
desemprego, caindo por terra o argumento na ótica da conveniência. No plano da
legitimidade, nossa análise se centrou no questionamento voltado a saber se as medidas
flexibilizadoras se coadunam com o Estado Democrático de Direito Brasileiro (plano interno),
bem como com uma perspectiva de globalização dos direitos humanos (plano externo),
perspectivas essas que não se excluem, mas se complementam.
214
No plano interno, entendemos que, apesar do enfraquecimento do poder estatal, o
Estado Democrático de Direito fundado no Brasil com a CF de 1988 apresenta-se como
fundamental para a defesa dos direitos humanos fundamentais. Aliás, entendemos que as
políticas flexibilizantes não se coadunam com os princípios fundamentais do Estado
Democrático de Direito. Nessa forma estatal, marcada pela prevalência dos direitos humanos
fundamentais em sua visão integral, bem como pela sua diretriz de transformação social, as
políticas neoliberais flexibilizantes não encontram guarida, sendo marcadas, em regra, pela
ilegitimidade constitucional.
No plano externo, em virtude do enfraquecimento das fronteiras estatais, bem como
das mudanças organizacionais e tecnológicas das empresas que possibilitam o dumping social
(seletividade na escolha de onde produzir), faz-se necessário uma outra globalização. Essa
globalização, a que denominamos “civilizatória”, é a globalização fundada nos direitos
humanos fundamentais. Postulamos, dessa forma, a necessidade de construção de um sistema
global de defesa dos direitos humanos fundamentais que funcionem como verdadeiro jus
cogens, pautando a legitimidade dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados.
Cabe salientarmos que em toda a trajetória do estudo feito foi a hermenêutica
filosófica que, explícita ou implicitamente, deu sustentação aos nossos questionamentos.
Superando a visão metódica tradicional da hermenêutica jurídica, a hermenêutica filosófica
nos propicia uma descrição das condições reais do intérprete, que é considerado não como um
sujeito aistórico e situado fora do mundo, mas, sim, integrado a um meio cultural e numa
tradição que são condição de possibilidade da interpretação. Com isso, a interpretação do
Direito ganha um caráter produtivo, que se dá na fusão de horizontes do intérprete e do texto
jurídico. O Direito, então, passa a ser visto como um fenômeno marcado pela historicidade. A
verdade, por seu turno, deixa de ser a verdade do método (certeza) e passa a ser entendida
como desocultação, como desvelamento do ser, do sentido dos entes jurídicos, nunca
completa e absoluta, mas finita.
Desenvolvemos, assim, três categorias fundamentais da hermenêutica filosófica, que
condicionaram o deslinde do nosso tema, quais sejam: o caráter constitutivo de mundo da
linguagem, o círculo hermenêutico e a diferença ontológica.
Para a hermenêutica filosófica a linguagem deixa de ser uma terceira coisa entre
sujeito e objeto e passa a ser condição de possibilidade para o dizer do fenômeno jurídico; ela
é o medium universal em que se realiza a compreensão. É a linguagem que constitui o saber,
pois onde não há linguagem não há mundo como mundo; o sentido só se dá na linguagem e
215
todo o processo de compreensão é lingüístico, pois pensamos com e por palavras. A própria
consciência humana, com seu caráter reflexivo, em virtude de o homem poder pensar sobre si
mesmo, só é possível graças à linguagem.
O conhecimento só se torna possível pelo encontro com a tradição, e é justamente pelo
“fio condutor da linguagem” (Gadamer) que a tradição é transmitida. É no encontro entre o
horizonte do intérprete e o horizonte do texto, somente possível pelo caráter lingüístico de
ambos, que a experiência hermenêutica pode ocorrer, tanto no que tem de desvelamento da
verdade como de sua ocultação. É na linguagem que o ser, que o sentido, vem como algo e,
assim, “ser que pode ser compreendido é linguagem”(Gadamer).
Como já afirmamos, a hermenêutica filosófica descreve as condições de possibilidade
da compreensão, entre as quais está o círculo hermenêutico. Ora, a interpretação funda-se na
compreensão como uma apropriação e elaboração das possibilidades projetadas nesta
(Heidegger). Por seu turno, a compreensão sempre se orienta por uma pré-compreensão na
qual somos lançados, pois surge de nossa relação com o mundo, e é nessa relação que se
formam esses esboços de compreensão. Partindo desses esboços, a compreensão busca
esclarecê-los. Portanto, não estamos cegamente atados às nossas pré-compreensões, pois, para
compreendermos adequadamente, devemos suspender esses pré-esboços, colocá-los em
xeque. Ao longo do processo compreensivo, vamos substituindo esses primeiros esboços por
outros mais adequados que tenham em conta a “coisa mesma”, no caso do Direito, os textos
jurídicos.
O esclarecimento de nossos pré-juízos dá-se pelo questionamento, pela pergunta
formulada numa situação de diálogo, na qual a consciência histórica efeitual desempenha uma
função fundamental. Isso não significa a infalibilidade dessa consciência, mas, sim, que ela
pode desempenhar um papel importantíssimo para separarmos os pré-juízos que cegam dos
que esclarecem. Ter consciência histórica, portanto, significa ter consciência de nossa
situação hermenêutica, do contexto em que vivemos, bem como dos horizontes de sentido que
temos a partir dessa situação. Portanto, a hermenêutica filosófica tem um profundo caráter
crítico, colocando em jogo nossas pré-compreensões, pois toda compreensão, toda a
experiência, tem o caráter de confronto entre o novo e o antigo, entre a familiaridade e a
estranheza.
Por fim, a diferença ontológica é outro dos teoremas fundamentais da hermenêutica
filosófica. A diferença ontológica marca a diferença, não a separação, entre o ser e os entes,
relação que se dá pelo comportamento do Dasein, do ser-aí. Assim, o ser é sempre ser de um
216
ente e um ente só se dá no seu ser. Há nesse teorema uma crítica ferrenha à idéia de verdade
como correspondência entre juízos e objetos; logo, a verdade deixa de ser correspondência e
passa ser abertura, desvelamento do ser.
A hermenêutica filosófica é marcada pelo caráter de finitude e historicidade da
experiência e do conhecimento. A diferença ontológica nos chama a atenção para que fujamos
da objetificação, ou seja, do congelamento do sentido, tão comum na visão dogmatista do
Direito. A objetificação, a entificação do ser, permite que apenas uma faceta de nossa relação
com as coisas, com as pessoas, com os eventos, apareça, pois nessa atitude se perde a
dimensão do binômio velamento/desvelamento que marca os fenômenos. Isso não significa
que nas ciências, em geral, e no Direito, em especial, não apelemos necessariamente para a
objetivação. O problema é quando não nos damos conta de que nessa atitude de entificação só
estamos nos atendo ao que foi desvelado, esquecendo o que se vela do fenômeno. Assim, o
descobrimento de uma verdade não significa o seu congelamento, pois a verdade está marcada
por um caráter de historicidade e finitude.
No momento em que a hermenêutica filosófica foi apropriada pelo Direito, em nosso
entendimento, houve o arejamento do fenômeno da interpretação jurídica. Com a
hermenêutica de matriz filosófica o processo de interpretação do Direito não mais pode ser
separado de sua aplicação e, assim, do caso concreto. Na interpretação/aplicação do Direito
deixa-se de levar em conta apenas o texto normativo, para que tamm o contexto fale. Dessa
forma, a interpretação/aplicação do Direito, como tarefa teórico/prática, tem caráter
produtivo, pois o juiz deve aplicar a lei in concreto, promovendo a concreção do Direito no
caso. Isso não significa, de forma alguma, arbítrio judicial, pois o juiz deve fazer uma
“ponderação justa do conjunto” (Gadamer), do caso e do Direito, tendo como pressuposto que
“a ordem jurídica seja reconhecida como válida para todos”(Gadamer).
A interpretação jurídica é entendida, assim, como concretização que, embora criativa,
está vinculada ao texto jurídico e ao caso a ser solucionado. O intérprete não pode entender o
conteúdo da norma de um ponto de vista situado fora da existência histórica, mas somente
diante da situação histórica concreta. As pré-compreensões do intérprete permitem-lhe
projetar certas esperanças de sentido diante do texto, pré-projeto este que precisa de
confirmação. A norma, portanto, é o resultado da interpretação do texto.
A hermenêutica filosófica nos chama a atenção para a historicidade de nossa
compreensão e para a nossa própria finitude, o que nos faz acordar dos sonhos dogmáticos.
Com isso, a necessária contextualização da compreensão nos remeteu ao paradigma do Estado
217
Democrático de Direito e à pergunta de como é possível concretizar seus valores, princípios e
direitos humanos fundamentais constitutivos, não raramente conflitantes. Em resposta a esse
questionamento, abordamos o princípio da proporcionalidade e a ponderação no Estado
Democrático de Direito não como técnicas de solução, mas como verdadeiros existenciais,
como modos de ser do intérprete e deste Estado.
A sociedade e o Estado Democrático de Direito são marcados pela pluralidade e
complexidade. Assim, o conflito entre princípios, direitos e bens tutelados
(constitucionalmente) não é um fato esporádico, requerendo solução que não exclua
definitivamente um dos pólos da tensão. O juízo de proporcionalidade/ponderação apresenta-
se, portanto, como diretriz básica no enfrentamento desses conflitos, buscando tutelar os
princípios, direitos ou interesses colidentes pelo estabelecimento de prevalências variáveis de
um em relação ao outro, tendo em conta o contexto do caso a ser resolvido e sempre
preservando o núcleo essencial dos direitos em tensão. Com essas diretrizes busca-se
preservar a pluralidade ínsita ao Estado Democrático de Direito, evitando, por um lado,
medidas restritivas que sejam excessivas, como também, por outro, postulando uma proteção
eficiente dos princípios, direitos ou interesses tutelados constitucionalmente.
Após termos contextualizado o momento pelo qual passa o mundo do trabalho e sua
regulamentação, bem como de marcarmos a postura interpretativa que informa nossa análise,
ingressamos no tema central desta dissertação, qual seja, o da eficácia dos direitos humanos
fundamentais de primeira dimensão no contrato de trabalho/relação de emprego. Diante das
doutrinas que separam os direitos humanos dos direitos fundamentais, optamos por aproximar
essas duas categorias, unindo-as na expressão “direitos humanos fundamentais”. Isso não se
tratou de mera questão terminológica, mas, sim, de uma opção teórica e prática que entende
que esses direitos possuem uma fundamentação ética e, assim, reconhece uma visão
substancial do Direito na qual existem pontes entre Direito e moral. Isso, todavia, não implica
não reconhecer a importância da positivação desses direitos.
Entendemos que, por um lado, essa postura serve para instaurar uma instância crítica
para aferirmos a legitimidade das ordens jurídicas estatais. Por outro, entendemos que com
essa postura o tema da eficácia desses direitos em relação aos privados torna-se ainda mais
consistente, já que se torna praticamente impossível que se sustente uma dupla ética, uma para
as relações indivíduo-Estado e outra para as relações entre os indivíduos na sociedade.
Afirmamos que os direitos humanos fundamentais são exigências ético-jurídicas,
abertas à historicidade, e que representam trunfos das pessoas humanas perante o poder e o
218
arbítrio para a manutenção de sua dignidade, liberdade, igualdade, abrindo a possibilidade de
uma convivência social solidária. Esses direitos não surgiram de uma só vez, mas, sim, ao
longo do processo histórico no qual foram sendo constatadas novas necessidades na defesa da
pessoa humana diante do poder e do arbítrio. Optamos por defender a indivisibilidade e
interdependência entre as várias dimensões dos direitos humanos fundamentais,
demonstrando que a defesa integral desses direitos é impostergável para uma vida digna.
Com essas pré-compreensões firmadas, ingressamos no tema da eficácia dos direitos
humanos fundamentais nas relações privadas e afirmamos que essa locução significa que
esses direitos vinculam aos particulares, que podem ser sujeitos passivos desses direitos.
Demonstramos, ainda, que alguns desses direitos são inegavelmente eficazes perante
particulares, bem como que, para outros, nesse momento histórico, não faz sentido invocá-los
perante esses.
Tradicionalmente, afirma-se que os direitos humanos fundamentais são contrapostos
ao Estado, que é o grande inimigo desses direitos. Constatamos, porém, que esta é uma pré-
compreensão inautêntica, pois, na verdade, cinge-se à visão liberal dos direitos humanos
fundamentais, fundada na idéia de profunda separação entre o Estado e a sociedade, sendo
esses direitos entendidos como um espaço reservado aos indivíduos perante a ingerência
estatal. Aliás, ficou demonstrado que os direitos humanos fundamentais surgiram como
direitos de todos perante a todos. Dessa forma, procuramos demonstrar a superação da
doutrina liberal, para a qual não tem sentido falar de eficácia dos direitos humanos
fundamentais perante a particulares.
Enfocando as teorias que sustentam a eficácia desses direitos diante dos privados, após
a análise dos prós e contras das duas principais correntes sobre o assunto, ou seja, a teoria da
eficácia imediata e a teoria da eficácia mediata, optamos por defender uma postura que
sustenta a eficácia imediata ponderada desses direitos nas relações privadas. A eficácia
imediata ponderada desses direitos nas relações privadas permite soluções diferenciadas, com
base em juízos de proporcionalidade/ponderação que levam em conta tanto os direitos
humanos fundamentais como outros princípios e bens fundamentais tutelados
constitucionalmente, em especial, no campo das relações privadas, o princípio da autonomia
privada. Constamos, ainda, que o fenômeno do poder não pode ser mais cingido ao poder
estatal, mas sim que nas relações entre particulares existem posições marcadas pela assimetria
(seja fática, jurídica, econômica ou social).
219
Em virtude disso, duas balizas importantes que servem como parâmetros para uma
maior ou menor intensidade na eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações
privadas são, justamente, observar se a relação em foco é uma relação entre iguais ou uma
relação assimétrica, bem como se ambas as partes estão no pleno gozo de sua autonomia
privada ou se uma delas está em posição na qual sua autonomia resta limitada. Isso não
significa afirmar que nas relações entre iguais não haja a incidência dos direitos humanos
fundamentais, ou que possam ser renunciados, pois o núcleo em dignidade de tais direitos é
irrenunciável. Sustentamos, ainda, que, no campo do Direito Internacional, o tema da eficácia
dos direitos humanos fundamentais vem sendo considerado e existem posições fundadas
defendendo a necessidade de sua proteção nas agressões de particulares, o que não invalida a
responsabilidade estatal.
O trabalho realizado, portanto, foi de construção de suportes que foram necessários
para uma melhor compreensão do tema central: a eficácia dos direitos humanos fundamentais
de primeira dimensão no contrato de trabalho. Salientamos, então, que não é rara a aplicação
dos direitos humanos fundamentais inespecíficos nas relações de emprego pela jurisprudência.
O problema é que a aplicação ou não desses direitos não resulta de uma fundamentação
sólida, mas de aplicações ad hoc sem que as pré-compreensões que as sustentam sejam
esclarecidas. Assim, sustentamos a necessidade de uma teoria adequada que sirva de base para
a crítica e controle dessas decisões.
Está assentado que na relação de emprego o empregado encontra-se em posição de
subordinação/vulnerabilidade em relação ao empregador (seja este uma grande empresa ou
não) ao qual se reconhece o poder empregatício. Portanto, essa relação é marcada pela
assimetria, bem como pela limitação da autonomia do empregado. O poder empregatício
desenvolve-se em várias facetas (regulamentar, fiscalizadora e punitiva), o que implica a
sujeição do empregado às decisões tomadas unilateralmente pelo empregador. A centralização
da análise dos direitos humanos nos de primeira dimensão não foi feita no sentido de
estabelecer uma separação em relação aos direitos sociais, mas, sim, de demonstrar que o
menoscabo dos direitos de primeira dimensão pode afetar os direitos sociais, com o que se
marca uma clara posição de interdependência e indivisibilidade dos direitos humanos
fundamentais.
Salientamos, também, que o ponto de partida da análise desses direitos na relação de
emprego é a afirmação de que o empregado não perde a condição de pessoa humana, os seus
direitos fundados na dignidade, liberdade igualdade e solidariedade ao adentrar nessa relação.
220
Não se torna um cidadão de segunda classe nessas relações, em especial numa sociedade e
num Estado marcado pelo regime democrático e pela prevalência dos direitos humanos
fundamentais.
Constatamos que a jurisprudência, em alguns casos, tem aplicado esses direitos de
forma ponderada e em outros, os aplica sem maiores fundamentações, bem como, em outros
casos, esses direitos deixam de ser aplicados. O problema é que a aplicação ou não desses
direitos não raras vezes se faz sem um enfoque que os avalie como o são: direitos humanos
fundamentais. Como caso exemplificativo (aplicattio hermenêutica), avaliamos o devido
processo legal e sua aplicação às relações de emprego.
Demonstramos a evolução da cláusula do devido processo legal, desde suas origens,
passando pela sua visão processual, até alcançar uma concepção substancial, na qual tem
papel de parâmetro de aferição de constitucionalidade. Assentamos, também a ligação desta
cláusula com os direitos, entre outros, ao contraditório e à ampla defesa. Com isso,
adentramos na análise da possibilidade de aplicação do devido processo legal perante o poder
disciplinar do empregador na relação de emprego, constatando que a eficácia desse direito
humano fundamental é, além de correta, necessária.
Demonstramos que referida questão não é objeto de considerações pela jurisprudência
trabalhista tendo por base a teoria dos direitos humanos fundamentais, bem como os graves
problemas que isso causa, chegando-se ao ponto de admitir que um empregado seja punido
sem ter conhecimento da acusação.
Por outro lado, demonstramos que a jurisprudência do STF tem aplicado o devido
processo legal, o contraditório e a ampla defesa mesmo em relações privadas marcadas por
maior igualdade das partes. Aliás, vimos que o STF, recentemente, discutiu diretamente a
questão da eficácia dos direitos humanos fundamentais nas relações privadas e concluiu
favoravelmente a essa eficácia. Com base nisso, defendemos que nas relações de emprego a
incidência do devido processo legal, de forma direta e ponderada, levando em conta a situação
em foco no caso concreto, é um imperativo impostergável que emana de nosso ordenamento
jurídico constitucional, bem como deste jus congens mundial que são os direitos humanos
fundamentais.
Não mais se admite que, numa sociedade e num Estado sob o regime democrático,
fundados na dignidade humana e na prevalência dos direitos humanos, alguns dos seus
cidadãos continuem sendo tratados como pessoas de segunda classe, despidos de direitos que
221
são a base para uma convivência justa e solidária. Os direitos humanos fundamentais são,
assim, considerados em sua integralidade, como condição de possibilidade para a construção
de uma verdadeira comunidade (co-humanidade).
222
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