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VILMA MARQUES DA SILVA
EXERCÍCIO DO PODER:
CONFLITOS, DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES
CULTURAIS EM O ATENEU
Londrina
2007
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VILMA MARQUES DA SILVA
EXERCÍCIO DO PODER:
CONFLITOS, DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES
CULTURAIS EM O ATENEU
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras e Literaturas, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia
Fernandes
.
Londrina
2007
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Catalogação na Publicação Elaborada pela Divisão de Processos Técnicos
da Biblioteca Central da Universidade Estadual de Londrina
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
S586e Silva, Vilma Marques da.
Exercício do poder : conflitos, discursos e
representações cultu-
rais em O Ateneu / Vilma Marques da Silva. –
Londrina, 2007.
134f.
Orientador : Frederico Augusto Garcia Fernandes.
Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de
Londrina, Centro de Letras e Ciências Humanas, Programa de Pós-
Graduação em Letras, 2007.
Bibliografia: f.127-134.
1. Pompéia, Raul, 1863-1895 Crítica e
interpretação– Teses. 2. Ficção brasileira História e
crítica Teses. 3. Identidade social Te-ses. 4.
Hegemonia
Teses. 5. Multiculturalismo
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VILMA MARQUES DA SILVA
EXERCÍCIO DO PODER:
CONFLITOS, DISCURSOS E REPRESENTAÇÕES
CULTURAIS EM O ATENEU
Dissertação apresentada ao curso de Pós-
Graduação em Letras e Literaturas, da
Universidade Estadual de Londrina, como
requisito parcial à obtenção do título de Mestre.
COMISSÃO EXAMINADORA
______________________________
Prof. Dr
.
Frederico Augusto Garcia Fernandes
Universidade Estadual de Londrina
___________________________________
Prof. Dr
.
Luiz Carlos Migliozzi Ferreira de
Mello
Universidade Estadual de Londrina
______________________________
Prof. Dra
.
Marisa Corrêa Silva
Universidade Estadual de Maringá
Londrina, 01 de fevereiro de 2007
13
A Deus, meus pais e à minha filha Kamila: companheiros de todas as horas.
14
AGRADECIMENTOS
Embora subscritas por mim, essas páginas possuem, diretamente ou não, generosas
contribuições de outras pessoas. Por isso meus agradecimentos, de coração:
Ao meu orientador Prof. Dr. Frederico Augusto Garcia Fernandes: orientador no sentido
pleno da palavra. Agradeço suas leituras minuciosas, rigor nos comentários, professor
dedicado, rígido, e ao mesmo tempo dócil, como poucos mestres sabem ser.
Aos professores do exame de qualificação pelas prestimosas colaborações;
À minha família, especialmente minha mãe, que me dedicou os melhores anos de sua vida;
À minha filha Kamila que tem suportado os momentos de mãe ausente;
Cada um, no seu tempo e à sua medida foi especial em minha vida.
15
Como posso dialogar, se me sinto participante de um gueto de
homens puros, donos da verdade e do saber, para quem todos os
que estão fora são “essa gente”, ou são “nativos inferiores”?
Paulo Freire
16
SILVA, Vilma Marques da. Exercício do poder: conflitos, discursos e representações
culturais em O Ateneu. Dissertação. (Mestrado em Letras) – Universidade Estadual de
Londrina.
RESUMO
Objetiva-se desenvolver nessa dissertação, uma análise das relações de poder presentes em
O Ateneu, de Raul Pompéia. Para esclarecer essa questão, a pesquisa se norteará pelos
Estudos Culturais, que permitem ver a obra sob uma perspectiva multicultural, e pelos
conceitos foucaultianos sobre discurso, saber e poder. Assim, o espaço escolar de O Ateneu
é visto como um microcosmo, em que as relações de poder são estabelecidas através de
discursos criadores de “verdades” que alimentam a lógica do poder. Como conseqüência
disso, há os embates entre os discursos e os contradiscursos, os mecanismos coercitivos, as
tentativas de imposição de uma suposta identidade fixa, a manutenção dos ideais de
hegemonia e o silenciamento das diferenças e da diversidade presentes no universo
educativo retratado em O Ateneu.
Palavras-chave: O Ateneu; Estudos Culturais; relações de poder; hegemonia;
multiculturalismo.
17
SILVA, Vilma Marques da. Exercise of Power: conflicts, speach and Cultural
representation in O }Ateneu. Dissertation. (Mastership in Letras) Universidade Estadual
de Londrina
ABSTRACT
The aim of this paper is to present an analysis of the power relations showed in O Ateneu,
by Raul Pompéia. To clarify this aspect, the research will follow the Cultural Studies
which allow to focus the text through a multicultural perspective; and through the
“foucautianos’ concepts about discourse, knowledge and power. Then, the scholar set in O
Ateneu is seen as a microcosm where the power relations are stablished through productive
speeches of “truths” which feed a powerful logica. As a consequence there are some
debates between discourses an antidiscourses, the coercitive mechanisms, the impositions
trying of a fixed proposed identity, the maintence of hegemony ideals and the silence of
differences an diversities presents in the educative universe in O Ateneu.
Key words: O Ateneu; Cultural Studies, hegemony, multiculturalism.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 09
1 O ATENEU NO PANORAMA DE MUDANÇAS DO SÉCULO XIX ..........................14
1.1 Raul Pompéia: o homem sem meio-termo ....................................................................14
1.2 O Ateneu e sua recepção crítica .....................................................................................24
1.3 República das Letras e República política: distantes do povo, perto da Europa .......... 36
1.4 O caráter estetizante da educação e o ‘cidadão brasileiro’ do século XIX ...................41
1.5 O papel da Literatura na construção de uma identidade nacional .................................53
2 O PARADOXO DO SISTEMA ESCOLAR: HOMOGENEIZAÇÃO E
MULTICULTURALISMO ................................................................................................ 59
2.1 O Ateneu sob a ótica dos Estudos Culturais ..................................................................59
2.2 O projeto identitário em O Ateneu ................................................................................62
2.3 O Ateneu: espaço de ramificação do poder ...................................................................67
2.4 O discurso hegemônico calando diferenças em O Ateneu e no Brasil do século XIX...75
3 A MICROFÍSICA DO PODER EM O ATENEU .......................................................... 83
3.1 O narrador híbrido de O Ateneu ...................................................................................83
3.2 Tarefa quase invisível da escola: corpo útil e obediente ...............................................96
3.3 Os mecanismos coercitivos em O Ateneu .....................................................................99
3.4 A contra-instituição dentro da instituição O Ateneu .................................................. 107
CONCLUSÃO ..................................................................................................................119
REFERÊNCIAS ................................................................................................................127
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INTRODUÇÃO
Objetiva-se desenvolver nessa dissertação uma análise das relações de poder
presentes no discurso de O Ateneu, de Raul Pompéia. Para tanto, parte-se da perspectiva de
que o espaço escolar retratado na obra é um microcosmo, em que tais relações de poder
assemelham-se às do macrocosmo. Nesse universo, pode-se observar que, devido ao fato
de o poder não ser monolítico, dar-se em rede e não ir a apenas uma direção, podem ser
vistos na obra os discursos criadores de “verdades” que alimentam a gica do poder e,
concomitantemente, posições de resistências criadoras de contradiscursos. É por esse
recorte que O Ateneu será enfocado.
Para esclarecer essas questões, a pesquisa se norteará pelos princípios dos
Estudos Culturais, que permitem ver a obra sob uma perspectiva multicultural e pelos
foucaultianos presentes em Microfísica do Poder e em Vigiar e Punir, nas quais Foucault
aborda a relação entre discurso, saber e poder e expõe os mecanismos coercitivos presentes
em ambientes disciplinadores como, por exemplo, a escola. Nessa, um conceito de
identidade fixa que alimenta os ideais de hegemonia e procura sufocar as diferenças, a
diversidade e o caráter de identidade móvel dos sujeitos.
Diante disso, o primeiro capítulo apresenta Raul Pompéia, como artista e
intelectual inserido no panorama da segunda metade do século XIX,
período em que
profundas transformações ocorrem no âmbito político, social e econômico do panorama
brasileiro. São mudanças presentes, diretamente ou indiretamente, na literatura e que
influenciaram no papel social desempenhado pelos escritores.
Sevcenko explica que, anteriormente, século XVIII e início do XIX, período
em que a estética do Romantismo se sobressai, a situação do escritor era “de membro ou
cliente virtual da elite monárquica, alocada no topo absoluto da hierarquia e legitimada por
uma concepção sobranceira e imponderável da ordem da sociedade”
(SEVCENKO, 1995,
p. 228). Para Candido, o “individualismo e o relativismo podem ser considerados a base
romântica, em contraste com a tendência racionalista para o geral e o absoluto” (1964, p.
23). Essa visão de ordem social e de individualismo entra em declínio e, os sentimentos de
instabilidade e inquietação indicam sinais de novos tempos.
Por isso, no século XIX, começam a aparecer, não no campo literário, os
indícios de mudanças ocasionados por uma visão de sociedade fragmentada, pela queda da
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hegemonia monárquica e pelas influências das novas estéticas em voga na Europa.
é um em que
o indivíduo perde a sua estabilidade, passando os grupos sociais e as
coletividades a atuar como o padrão principal de referência. Enquanto o
romantismo, firmado sobre o herói individual, baseava na duração da sua
vida a divisão do tempo; para o realismo, fruto de processos agitados de
transformação, o tempo abrange a divisão da história. (SEVCENKO,
1995, p. 227
)
Raul Pompéia, assim como Machado de Assis, Euclides da Cunha, entre
outros, faz parte do grupo de escritores que prenunciam as mudanças, tanto no campo
estético como no social, ocorridas, principalmente, por volta de 1870. Em suas obras,
pode-se notar, por exemplo, uma visão de sociedade fragmentada e de indivíduos instáveis.
É a literatura, juntamente com outras formas culturais como a ciência e o jornalismo,
mostrando ser um meio de disseminação das novas concepções estéticas, sociais,
econômicas e políticas que se quer levar a um público mais amplo e diversificado. De
acordo com Sevcenko,
a literatura, graças em grande parte ao carisma prodigioso herdado do
romantismo do século XIX, gozava de prestígio ímpar neste período,
soando mesmo como um sinônimo da palavra cultura. Políticos, militares,
médicos, advogados, engenheiros, jornalistas ou simples funcionários
públicos, todos buscavam na criação poética ou ficcional o prestígio
definitivo que a literatura poderia lhes dar. (SEVCENKO, 1995, p.
226)
Se a literatura estava associada ao prestígio, os ideais europeus,
principalmente os franceses, também significavam cultura e status e trouxeram mudanças
explícitas ao pensamento brasileiro. Raul Pompéia (1863-1895) por meio de seu único
romance, O Ateneu, é um exemplo das transformações ocorridas no âmbito literário. Dono
de um estilo individual, o artista mostra uma obra um tanto distante dos modelos ficcionais
produzidos até então e, fornece, por meio do seu olhar, um possível viés do contexto
educacional brasileiro e dos ideais de identidade nacional alimentados pela escola.
São esses e outros aspectos que foram abordados por críticos como José
Veríssimo (1979), Sílvio Romero (1960), Mário de Andrade (1943), Araripe Júnior (1960),
além de outros contemporâneos como Candido (1964), Roberto Schwarz (1965), Lúcia
11
Miguel-Pereira (1973), Merquior (1977), Chaves (1978), Santiago (1978), Coutinho
(1968), Amaral (1988), Bosi (1994) e Castello (2004). Ainda no primeiro capítulo, são
retomados seus posicionamentos críticos e a argumentação de cada um em torno da
polêmica caracterização estética de O Ateneu.
Outro aspecto abordado é o processo de construção da República no País. A
classe intelectual, da qual Pompéia fazia parte, influenciada por correntes ideológicas
como liberalismo, positivismo, socialismo, anarquismo e pelos ideais europeus de
liberdade, igualdade e de soberania, buscava promover mudanças e instaurar o sistema
republicano no País. Porém, quase sempre, as idéias importadas não estavam condizentes
com a realidade do País, pois as adaptações teóricas eram, quase sempre, mal-feitas ou
inadequadas para o País, mostravam-se distantes da realidade brasileira, baseadas em
princípios excludentes e fundamentadas em um conceito abstrato de povo. Todas essas
características, diretamente ou indiretamente, aparecem no trabalho realizado pelo colégio
Ateneu e colaboram para que o sentimento de pertencimento a uma nação seja despertado
nos alunos.
Assim, a noção de nação, de cidadania e de identidade é realçada nos
processos simbólicos e de identificação criados dentro do ambiente escolar. Processos que,
em O Ateneu, revelam uma escola de caráter estetizante e mantenedora da desigualdade e
do hiato entre elite e povo. Nesse processo, relacionam-se Estado e Escola, cabendo a essa
- espaço legitimado - a formação do cidadão apto aos anseios do Estado.
Porém, Sérgio, o narrador, mostra que a tarefa de formar cidadãos não é o
fácil de ser executada, que o embate discursivo revela resistências explícitas ou
implícitas e, por meio dos contradiscursos, tem-se a deslegitimação do discurso oficial da
escola. O narrador, por meio de recurso como a ironia, por exemplo, traz à tona uma crítica
à instituição escolar e às suas matrizes representativas e mostra as controvérsias entre o
‘dito’ pelo discurso hegemônico e o ‘feito’ de uma realidade marcada pelo
multiculturalismo.
Silva (2003) explica que o termo multiculturalismo surgiu, inicialmente, nas
lutas contra o racismo na América do Norte, mas ganhou a Europa e os países latino-
americanos com conotações diferenciadas devido às especificidades nacionais e regionais.
Por ser algumas vezes usado como sinônimo de interculturalismo, o autor apresenta a
distinção entre os termos: Multiculturalismo é visto como o reconhecimento de que em
um mesmo território existem diferenças culturais. Interculturalismo é uma maneira de
12
intervenção diante da realidade, que tende a colocar ênfase na relação entre culturas”
(SILVA, 2003, p. 27).
Relacionando esses conceitos à realidade ficcional de O Ateneu temos uma
ambiente multicultural, pois nele coexistem diferenças várias, mas que não possui uma
educação baseada no interculturalismo, uma vez que o encontro/confronto entre as
diferenças não é explorado, mas fica restrito à perspectiva monocultural e ao discurso
hegemônico produzido pela escola.
Essa relação entre hegemonia x multiculturalismo é abordada no segundo
capítulo. Relação permitida pela fundamentação teórica nos Estudos Culturais e que mostra
O Ateneu como obra que vai além de um retrato do cotidiano de um colégio interno.
Mostra-nos o colégio Ateneu como um espaço multicultural, mas que, por impor formas
fixas de identidade, acaba gerando formas de dominação e imposições dos ideais que estão
em acordo com o seu projeto identitário. Ainda no segundo capítulo, é mostrado o conceito
de identidade emergente dos discursos presentes em O Ateneu, e mais, como o Estado e a
escola estão relacionados na tarefa de perpetuar os vários interesses sociais e políticos,
calando, assim, o que não interessa ao instituído ou ao que se quer instituir.
Logo, há, no espaço escolar da obra, a tentativa de se moldar ou
marginalizar comportamentos, assegurar formas de autoridades, bem como, incluir,
excluir, silenciar, privilegiar grupos dominantes, definir padrões de comportamentos e
fortalecer as relações de poder, ou seja, um processo de disciplinarização do corpo e da
mente do aluno. Isso põe em evidência a relação entre a linguagem e o exercício do poder e
indica a tentativa de se ‘costurar’ as diferenças numa única identidade.
O terceiro capítulo consiste em evidenciar esse processo de
disciplinarização e as formas de resistências, isto é, pretende-se revelar a microfísica do
poder em O Ateneu. Dessa forma, são mostradas as oposições coações x reações vividas
pelas personagens e, principalmente, por Sérgio, o narrador. É, pois, o jogo de forças do
colégio Ateneu que envolve as personagens e indica “a maneira como elas lutam umas
contra as outras, ou seu combate frente a circunstâncias adversas, ou ainda a tentativa que
elas fazem se dividindo para escapar da degenerescência e recobrar o vigor a partir de
seu próprio enfraquecimento” (FOUCAULT,1979, p. 23). No jogo de forças de o Ateneu, a
dominação não se apenas por parte da escola, mas numa reciprocidade que envolve a
todos do contexto.
13
Reciprocidade que mostra como o poder ocorre em rede. Por isso, o corpo
docente e os alunos estão envolvidos no cerceamento à liberdade, na criação de uma
parafernália de normas, na normalização dos comportamentos e dos indivíduos, na
vigilância panóptica e na economia do tempo. Por meio do olhar de Sérigo-narrador, é
desvendada uma outra face do Ateneu, seu contradiscurso revela a ilusão da hegemonia do
discurso escolar e como a dominação causa reação e, conseqüentemente, sujeitos históricos
ou seres dominados.
Conclui-se que a abordagem das relações de poder em O Ateneu permite ver
como uma obra literária pode suscitar questões relevantes à compreensão das relações
mantidas no contexto educacional. Relações que se fazem presentes no ambiente estético
de O Ateneu e ainda têm suas marcas na educação do século XXI. Daí, uma questão que
incomoda: Sérgio apresenta uma visão pessimista da educação escolar. É patente, na
personagem, o trauma que lhe causaram os mecanismos disciplinares escolares como, por
exemplo, o discurso homogeneizante e o cerceamento à sua individualidade. Logo,
aprender tornou-se, para Sérgio, uma tarefa penosa.
Desse modo, pergunta-se: é possível uma prática pedagógica diferenciada,
que possibilite o respeito à diversidade e ao multiculturalismo dentro do ambiente escolar?
Diante de práticas que parecem tão arraigadas no sistema educacional, pode ser que muitos
Sérgios e Francos (Franco é outra personagem que sofre fortes medidas disciplinares na
escola) ainda estão sendo ‘formados’. O que indica a necessidade de se repensar a
concepção de educação e, nessa tarefa, acredita-se que o estudo de O Ateneu pode
contribuir para buscar no passado literário uma possível compreensão para nosso presente
educacional e cultural, além de permitir investigar as possibilidades de futuras mudanças
no campo educacional. Nesse sentido, a dissertação se justifica, pois busca uma reflexão
crítica sobre as relações de poder apresentadas em O Ateneu que, como recurso
pedagógico, fornece possibilidades de elucidação das práticas que, ainda, dificultam as
relações humanas dentro do contexto escolar.
14
1. O ATENEU NO PANORAMA DE MUDANÇAS DO SÉCULO XIX
1.1 RAUL POMPÉIA: O HOMEM SEM MEIO-TERMO
Raul Pompéia nasceu em Jacuacanga, município de Angra dos Reis, em
1863. Filho de Dr. Antonio d´Avila Pompéia, advogado, conhecido como carrancudo,
misantropo e severo e de D. Rosa Teixeira Pompéia, mulher amorosa, descendente de
abastada família portuguesa fixada em Angra dos Reis devido às indústrias e ao comércio.
Por causa da educação dos filhos, Antônio Pompéia mudou-se para a Corte e, em 1873,
Raul Pompéia, aos 10 anos de idade, é matriculado no Colégio Abílio colégio famoso
pelo atendimento à elite e pela disciplina imposta aos alunos.
Da passagem de Pompéia por esse colégio, surge seu romance O Ateneu,
obra de cunho autobiográfico e que pode ser relacionada aos muitos embates entre
Pompéia e as instituições escolares por onde passou. Além disso, O Ateneu confirma o
posicionamento do autor sobre a relação de uma obra e a recepção do leitor. Para Pompéia,
um bom livro era aquele em que
A impressão está na razão directa da verossimilhança e da naturalidade.
Nada melhor se insinua no gosto, do que aquillo que parece reproduzir
artisticamente, isso é, com bella forma, o turbilhão que vae pelo intimo de
todos, mas de que raríssimos fazem justa idea. Achar num livro aquillo
mesmo que vagamente, nebulosamente desconfiavam que se passava em
nosso espírito, esta é a principal delicia, da maioria dos leitores de
romance. (PONTES, 1935, p. 221)
Dessa forma, os vínculos entre Pompéia e Colégio Abílio e Sérgio e o
Ateneu ao romance essa impressão de verossimilhança e, as muitas análises críticas
referentes à obra mostram indícios dessa influência. Exemplo disso pode ser a atitude
combativa, polêmica e temperamental de Sérgio, o narrador de O Ateneu, e Pompéia, no
Colégio Abílio. Pompéia, por meio do jornal manuscrito Archote, fazia caricaturas e
críticas aos professores, aos bedéis e às atitudes consideradas por ele como injustas.
15
Ninguém ignora o que são bancos de honra. Premios da applicação.
Todavia assim não acontece. Segundo o alto entender de certos
professores, que podem ser qualificados de tudo menos de justiceiros, os
bancos de honra são concedidos somente aos seus íntimos ou não
concedidos a quem os merece. (PONTES, 1935, p. 26)
Durante sua estadia no Colégio Abílio escreveu, sob o pseudônimo de
Procopius, Uma tragédia no Amazonas romance que teve os dois primeiros capítulos
publicados no periódico colegial Eco Literário. A obra revelava influências de Macedo e
Alencar e, após ficar guardada por dois anos, foi lançada em volume, quando o autor
estava no Imperial Collegio, onde entrou em 1879. Para os críticos, Uma tragédia no
Amazonas revela que o Pompéia é dono de um talento promissor. Segundo Pontes a
Revista Brazileira comentou:
Dizem-nos que o autor deste livrinho não tem mais de dezesete annos e é
alumno do Collegio de Pedro II. Se esta é verdade, e se a presente
narrativa não foram postas senão as mãos daquelle que a firma com seu
nome, é lícito provar nella uma vocação litteraria que póde dar á pátria
bons frutos. (PONTES, 1935, p. 43)
No colégio Imperial seu estilo polêmico foi notável. Teve atritos com o
professor Rosendo Muniz Barreto esse também foi vítima dos sarcasmos de Sylvio
Romero com o professor de grego Theodoro Schieffer, o que resultou em sua reprovação
e na publicação de um artigo, quando era acadêmico de Direito. O referido artigo mostrava
o ponto de vista de Pompéia sobre a incompetência do mestre que acabara de aprovar o
príncipe D. Pedro. Situação semelhante ocorre em O Ateneu, mas além do confronto no
nível discursivo, também um embate físico, marcante e direto entre Sérgio e Aristarco
(diretor):
Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o
adversário, empoeirado e sujo como de rolar sobre escarros. Respondi-lhe
com violência. ‘Insolente!’ rugiu o diretor. Com uma das mãos
prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a outra pela nuca, ergue-
me e sacudiu: ‘Desgraçado! Desgraçado, torço-te o pescoço!
Bandalhozinho impudente! Confessa-me ou mato-te.’ Em vez de
confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. [...] O diretor arremessou-me ao
chão. E, modificando o tom, falou: ‘Sérgio! Ousaste tocar-me!’
(POMPÉIA, 1992, p. 136)
16
Em 1881, Pompéia foi cursar Direito em São Paulo. entrou em contato
com vários grupos literários e com Luiz Gama, líder da campanha abolicionista e de quem
Pompéia recebeu grande influência. Além disso, publicou várias crônicas, charges e
caricaturas no jornal Comedia esse teve treze exemplares e a partir do sétimo passou a
ser chamado de O Bohemio, contava com redatores como Raul Pompéia, com prosadores
como Valentim Magalhães, Fontoura Xavier e os poetas Augusto de Lima, Raymundo
Correia, Luiz Murat e outros.
Ainda nesse período, 1881, Pompéia e outros acadêmicos tiveram contato
com as idéias cientificistas de Augusto Comte, trazidas a São Paulo através de Miguel
Lemos. Esse e os alunos promoveram grandes embates com professores da academia era
o conservadorismo e tradicionalismo desses e os ideais cientificistas daqueles agitando São
Paulo, cidade pequena, até então. A corrente Naturalista influenciava a literatura e Aluízio
de Azevedo lança O Mulato, obra que apresenta influência de Emile Zola. Todas essas
relações são importantíssimas, pois, diretamente ou não, aparecem em O Ateneu.
Em 1882, com o apoio de Capistrano de Abreu, Pompéia escreveu vários
contos no jornal Gazeta de Notícias e iniciou a publicação de As ias da Coroa, em que
faz críticas e sátiras a D. Pedro II. Em agosto do mesmo ano, participou junto com Alcides
Lima, Ernesto Correia, Macedo Soares e Brazil Silvado do Ça Irá, que pregava a
campanha abolicionista. O folhetim foi recebido como um escândalo e teve seu fim, no
mesmo ano, com a morte de Luiz Gama, o que trouxe uma desestabilização à campanha
abolicionista. Mas, logo em seguida a mesma ganha fôlego com Antonio Bento, sucessor
de Luiz Gama, que liderava grupos abolicionistas, dos quais Pompéia faz parte. O sistema
escravocrata e o trono eram seus alvos de ataque, o que reforçava sua aversão à monarquia
e confirmava o estilo polêmico demonstrado tanto nas instituições escolares como em seus
contos, crônicas, charges, caricaturas e em O Ateneu.
Como abolicionista e em acordo com os ideais franceses, seu estilo mordaz
desnudava a situação de atraso do Brasil monárquico em relação à Europa, principalmente,
à França. No País escravagista, a monarquia era considerada pelos intelectuais emergentes
uma forma de atraso para o progresso que se almejava para o País. Por isso, acreditava-se
que a situação poderia ser alterada se o Brasil acompanhasse as inovações técnicas,
políticas e espirituais vivenciadas na Europa. Nesse contexto, os ideais do positivismo
ganham força no meio intelectual, uma vez que eram fundamentados no cientificismo, o
17
que, acreditava-se, seria capaz de trazer o tão almejado progresso, substituindo assim, o
sistema patriarcal sustentado pela escravatura e ausência de individualismo.
Em 1883, os princípios de Zola, Flaubert, os Goncourts, Maupassant,
Alphonse Daudet, Baudelaire deste, Pompéia recebe grande influência nesse ano
inflaram os espíritos dos acadêmicos e a imprensa foi usada para veiculação desses ideais.
Pompéia, após passar férias no Rio de Janeiro, voltou a São Paulo e mergulhou na
campanha abolicionista. Neste período, fundou, também, o Jornal do Commercio, onde
aparecem suas preocupações republicanas e abolicionistas.
Ainda em 1883, é criado o Partido Republicano, ligado aos latifundiários e
liderado por capitalistas como Prudente de Morais, Américo Braziliense, Rangel Pestana e
Campos Salles. Por estar relacionado à classe dominante e aos interesses dos cafeicultores,
o Partido Republicano é visto por Pompéia como um inimigo. Por meio do Jornal do
Commercio, ataca-o, uma vez que, como republicano, segue a linha jacobina
1
. Essa,
representava a ala mais radical e com “clara influência positivista na defesa que faz de um
governo ditatorial, no anticlericalismo, no culto ao herói concretizado na glorificação de
Floriano cuja figura foi por eles [jacobinos] elevada à condição de mito.” (LAPA, 1990, p.
79). O Partido Republicano classificava os jacobinos como anarquistas e desordeiros e se
autodenominava moderado. Em todo esse contexto, no qual Pompéia demonstra ser
engajado, faltam coesão ideológica e aglutinação políticas, o que impede a eficácia de um
projeto político-pedagógico no País.
Pompéia, em 1883, começou a escrever Canções sem metro, obra revisada
várias vezes e concluída somente em 1895. Nesse mesmo ano, um incidente na academia
trouxe polêmica e grande repercussão na imprensa. Aproveitando as cenas da paixão de
Cristo, Pompéia fez uma sátira ao Diário de Campinas, sendo esse representado por um
burro. O professor Leite Moraes, ligado ao jornal, e os professores Mamede, Falcão e
Antonio Carlos tempos queriam uma punição para Pompéia por causa de suas afrontas.
Assim, aproveitando-se da temática da caricatura, puniram Pompéia e Luiz Murat com a
reprovação. O fato teve ampla repercussão e, conforme Pontes, foi noticiado em vários
jornais, inclusive no Diário de Campinas:
1
Para os jacobinos, liberdade: “era aquela que caracterizara as repúblicas antigas de Atenas, Roma e,
especialmente, Esparta. Era a liberdade de participar coletivamente do governo, da soberania, era a liberdade
de decidir na praça pública os negócios da república: era a liberdade do homem público” (CARVALHO,
1990, p. 17).
18
Sabemos ter sido reprovado no exame de 3º anno de direito o nosso
colega do Jornal do Commercio da capital, o Sr. Raul Pompéia. O acto
foi excellente, segundo nos informam, e nós podemos assegural-o,
conhecendo o grande talento de Raul Pompéia. Ao que parece, Raul
estava condemnado de antemão. Elle próprio o devia saber. O que
devemos dirigir ao talentoso acadêmico reprovado pelo ódio? Dirigir-lhe
pezames ou parabéns? (PONTES, 1935, p. 134)
Pontes também cita outros jornais que abordaram o assunto, como por
exemplo, O Jornal do Commercio:
A mesa examinadora do 3º anno do curso jurídico declarou guerra,
segundo parece, aos moços que escrevem, que figuram na litteratura, que
se distinguem no jornalismo. Depois da reprovação de Raul Pompéia deu-
se a de Luiz Murat. Se ainda algum estudante do anno que tenha
escripto para a imprensa, que, nas horas vagas, commetta versos ou
perpetre folhetins que não pense mais em fazer acto. Se o fizer é
bomba na certa.[...] (PONTES, 1935, p. 133-134)
A reprovação também foi tema publicado na Gazeta da Tarde e, de acordo
com Pontes, com muita ironia:
[...] Este facto, assume, pelas circumstancias que o revestem, os
caracteres odiosos da vingança! Raul Pompéia, um dos nossos melhores
talentos, jornalista de mérito, abolicionista de coração, levantou contra si
a má vontade d´essa faculdade, que, Santo Deus! Não tem regateado
approvações á mais incontroversa incapacidade. (PONTES, 1935, p. 136
)
Em 1884, Pompéia e Murat são aprovados, mas devido às muitas críticas e
sátiras dos estudantes houve reprovação em massa pela mesa examinadora formada pelos
professores Antonio Carlos, Mamede e Falcão. No mesmo ano, os alunos, revoltados,
fizeram greve, abandonaram a academia e foram a Recife concluir o curso entre eles,
Pompéia.
Em Recife, o professor Tobias Barreto foi grande influenciador dos jovens
e, através dele, é formada uma geração em busca de ideais republicanos. Os acadêmicos
têm acesso às teorias de Comte, Hartmann, Kant, Schopenhauer, Spencer, Taine... Pompéia
faz parte desse grupo. Mas devido ao medo de febre amarela, que levara alguns de seus
amigos, devido à necessidade de se concluir o curso, ao problema escravocrata que no
norte não tinha tanta ênfase, que a grande concentração de escravos era na região sul,
19
Pompéia deixou de lado a causa abolicionista. Em 1884, teve contato com Baudelaire,
Leopardi, Esproceda, Heine, Proudhon, Hartmann, Schopenhauer autores de
características melancólicas e pessimistas. Sob influências dos dois últimos, produziu Alma
Morta ou Cartas para o futuro. Nesse mesmo ano inicia o esboço de O Ateneu.
Em 1885, conclui os dois últimos anos do curso de Direito, mas como já
havia ocorrido no ginásio, demonstra um profundo desprezo pelo título. Anteriormente, no
Imperial Collegio de D. Pedro II, havia desprezado o título de bacharel em Letras. Por
isso, ao voltar para o Rio de Janeiro em 1886, dedicou-se à imprensa e não à advocacia. No
cenário literário, Valentim Magalhães fundou a Semana junto com escritores como
Raymundo Correia, Arthur Azevedo, Olavo Bilac, Araripe Junior, Capistrano de Abreu,
Coelho Neto, Aluízio de Azevedo, Pardal Mallet e Machado de Assis.
Em 1885, a campanha republicana ganha mais força intelectual e ares de
revolução. Pompéia escreve O Ateneu. As influências parnasianas e simbolistas começam a
ser notadas nas produções brasileiras. Entretanto, Raul Pompéia teve sua peculiaridade de
estilo, embora tenha mostrado certo entusiasmo pela sutileza de Machado de Assis e pelo
realismo subjetivo. O romance naturalista, com seus palavrões e cenas pornográficas, é a
última moda, porém não o atrai. Pontes mostra que uma explicação para esse seu
posicionamento aparece no Jornal do Commercio, em 1883: “O romance não dever ser
uma serie desordenada de scenas chocantes, shocking, como dizem os inglezes. Não deve
haver da parte do escriptor a menor intenção previa de armar ao effeito, maltratando
brutalmente a sensibilidade do leitor” (PONTES, 1935, p. 221).
Em 1888, é lançado O Ateneu, inicialmente em folhetim na Gazeta de
Notícias, no Rio de Janeiro e, no mesmo ano, em edição volume. A obra, por apresentar
diferenças em relação aos modelos ficcionais produzidos até então, foi vista como uma
novidade literária. Nesse mesmo ano, 1888, iniciou uma seção na Gazeta de Notícias, em
que expunha críticas sobre as artes pintura, escultura e literatura. Sobre romance
escreveu: “Suponho que o romance deve ser o desenho minucioso, tanto mais bem
acabado, quanto maior fôr a perícia do artista, dos diversos caracteres humanos
variadissimo enredo das circumstâncias da vida” (PONTES, 1935, p. 221) Essa
minuciosidade pode ser percebida em O Ateneu, em que caricaturas através das
palavras, sendo o diretor Aristarco sua maior vítima:
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Aristarco era todo um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um
rei o autocrata excelso dos silabários; a pausa hierática do andar
deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia para levar adiante, de
empurrão, o progresso do ensino público; o olhar fulgurante sob a
crispação áspera dos supercílios de monstro japonês, penetrando de luz as
almas circunstantes era a educação da inteligência; o queixo
severamente escanhoado, de orelha a orelha, lembrava a lisura das
consciências limpas era a educação moral. (POMPÉIA, 1992, p. 15-16)
Ainda no ano de 1888, ocorreu a Abolição da Escravatura, mas os ataques
ao trono continuavam. A queda do Imperador em 1889 e sua fuga são descritas
minuciosamente por Pompéia em Uma noite histórica (do alto de uma janella do largo do
Paço). Marechal Deodoro da Fonseca é eleito e a política domina o espírito de Pompéia, o
que o fez abandonar seu projeto literário e fazer parte do grupo do republicanismo
jacobino. Mas a República, tão idealizada, não foi a almejada e sofre rupturas devido à
divergência entre deodoristas e florianistas.
Pompéia, como jacobino, acreditava que somente Floriano Peixoto poderia
salvar o regime que se encontrava ameaçado. Posicionamento que o afasta do Partido
Republicano e de Olavo Bilac e foi responsável pela produção do artigo Lembranças da
Semana, em que faz críticas aos supostos inimigos da República. Lançado em 06 de março
de 1892, o artigo recebe réplica de Bilac na seção Combate do jornal Vida Fluminense. A
réplica é considerada por Pompéia como uma afronta. Um dos seus trechos afirmava:
O autor das Lembranças é um empregado do governo, professor de
Mythologia na Escola das Bellas Artes. Esse moço bem podia ganhar e
ingerir o seu ordenado completamente, sem rebaixamento de caracter e
sem allusões indignas. Elle, entretanto, prefere comer esse pão que o
diabo amassou, repasando-o pela manteiga do servilismo e da adulação.
E’ muito pretencioso quando pensa que incensando o Marechal Deodoro
o arrasta para as bandas florianistas, onde a deshonra impera. (PONTES,
1935, p. 241-242
)
Segundo familiares, o artigo de Bilac causou em Pompéia insônia e falta de
apetite, uma vez que considerava inadmissível o questionamento sobre sua honra fato,
que posteriormente, pode ter sido a causa de seu suicídio. A resposta é publicada no dia 15
de março:
21
[...] Ficou sem resposta a tal agressão. Respingo de lama póde lá ter
troco? Nem siquér desprezou-se: seria sujar o desprezo. Quanto a
responder ... haveria mister voltar contra os aggressores a mesma arma
fácil de affronta, de que se serviram, assacar um doesto bem forte, dizer,
por exemplo, detidamente, que o ataque foi bem digno de uns typos,
alheiados do respeito humano, licenciados, marcados, sagrados para
tudo pelo stygma preliminar do Incesto. Mas até onde iria o escândalo,
o ruidoso escândalo inútil? (PONTES, 1935, p. 243)
O embate entre os artistas foi assunto da ordem do dia numa confeitaria, na
Rua do Ouvidor, onde diariamente reuniam-se escritores, boêmios e jornalistas como Paula
Ney, Pardal Mallet, Coelho Netto, Raul Pompéia, Aluízio de Azevedo, Olavo Bilac,
Rodolpho Amoedo, José Patrocínio, Emile Ruede, Arthur de Azevedo, Ferreira de Araújo
entre outros. Olavo Bilac e Pompéia se encontram e, por estar contrafeito com o artigo do
colega, Pompéia propõe-lhe um duelo. Em um artigo, publicado em 1888, Pompéia já tinha
manifestado sua oposição aos duelos. Mas, mesmo não sabendo manejar arma alguma e
sendo míope, demonstra o desejo de desafiar Bilac e limpar sua honra por meio de um.
Foram arroladas as testemunhas e marcados dia e hora.
Na hora do duelo, conforme testemunhas citadas por Pontes, o comandante
Francisco Mattos procurou dissuadi-los do embate, o que foi aceito por Bilac, que encerrou
o assunto dizendo: “Fui eu o offensor. Dou-me por satisfeito” (PONTES, 1935, p. 249).
Luiz Murat, em 1895, retoma, em um artigo, o duelo envolvendo Pompéia, mas, segundo
consta, o fez de forma distorcida. Afirma que Pompéia acovardou-se e desistiu na hora do
duelo afirmação que, de acordo com testemunhas, fez Pompéia sentir-se desonrado e
cometer suicídio em 25 de dezembro de 1895.
Em 1889, é proclamada a República e o marechal Deodoro assume o poder.
Todavia, o que se nos ideais defendidos por Pompéia e na República instituída é que
esta não trouxe a coesão e a aplicabilidade dos ideais apresentados em seu período
embrionário. Ao contrário, as discussões e ataques entre antigos companheiros de
academia eram comuns. Exemplo disso é a discussão entre Pompéia, Murat e Bilac. Raul
Pompéia, dono de um florianismo exacerbado, abandonou a arte e entregou-se à política,
ao civismo tido como salvador da pátria e à xenofobia.
Nesse período, produz os Escriptos políticos; pregava em seus discursos a
necessidade de se fazer uma política de nacionalismo, de se ter um ideal de pátria, a
nacionalização do comércio, a educação dos jovens para o civismo, a expulsão do Brasil
dos portugueses que se consideravam estrangeiros e a nacionalização da opinião pública.
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Alia-se ao movimento jacobino, tendo como principal inimigo o português, que em sua
maioria detinha o controle do comércio e das casas para locação.
Em 1891, após um fracassado golpe de Estado que fechou o Congresso
Nacional, Deodoro renuncia e Floriano assume. Seu mandato é marcado por guerras entre
duas oligarquias Pica-paus, representante do Partido Republicano Rio-grandense e
Maragatos, do Partido Nacional Federalista, que se ligou à Revolta da Armada e, entre
1893 e 1894, tentou a restauração da monarquia no País. Através de forte repressão,
Floriano coibiu os movimentos e consolidou a República.
Em 1895, com a morte de Floriano Peixoto, Prudente de Morais assume o
poder. Contra esse, Pompéia realiza suas campanhas em cafés, teatros e confeitarias. No
dia 29 de setembro, após o término do mausoléu que levou cerca de três meses para ficar
pronto, é realizado o sepultamento definitivo de Floriano. Na solenidade, o presidente
Prudente de Morais compareceu acompanhado de vários ministros; houve vários discursos,
inclusive o de Pompéia, que não foi presenciado pelo presidente e sua equipe, pois
tinham voltado ao ministério. Após isso, Pompéia, acusado de atacar o atual governo em
seu discurso produzido no enterro, foi demitido do cargo de diretor da Biblioteca Nacional,
função nomeada por Floriano Peixoto e exercida desde 1894.
A acusação foi refutada por ele em um artigo publicado em 05 de outubro
de 1895 e intitulado Clamor maligno, em que reproduz o discurso realizado no cemitério.
Todavia, no dia 16 de outubro, Luiz Murat, antigo companheiro da academia, publica um
artigo intitulado Um louco no cemitério. Nele, o autor aprova a exoneração de Pompéia,
tacha-o de dono de uma bravata demagógica, louco e covarde. Para tanto faz alusão ao
antigo conflito entre Pompéia e Bilac e afirma que ao primeiro
Faltou a coragem, depois de mandar os seus padrinhos entenderem-se
com o offensor, de medir-se com elle, no momento em que aaquelles iam
dar sinal de combate, e que, ao envez de se bater em desaggravo de sua
honra, seriamente comprometida, se lança nos braços do adversário, em
prantos, esquecendo a affronta. (PONTES, 1935, p. 278-279)
Além disso, faz uma crítica ao jacobismo, classificando-o de fenômeno
mórbido, destrutivo e insaciável por vingança e sangue. Afirma:
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Levantar a bandeira dos motins, e das sedições como pretende o
jacobismo brazileiro, sem uma razão, sem uma causa, somente porque o
governo não quer pactuar com esses actos de verdadeiro cannibalismo, é
a maior das loucuras, quando não é o maior dos crimes. (PONTES, 1935,
p. 280)
Os amigos esconderam o artigo de Pompéia, que estava absorvido pelas
lutas jacobinas. Nas conversas, de acordo com relatos de amigos, mostrava-se fanático,
nervoso e classificam-no de neurastênico de natureza. O artigo só lhe foi revelado no início
de dezembro. A partir de então, o silêncio, a tristeza e o sentimento de desonra dominaram-
no. Somando-se a isso, ele enviou dois artigos ao jornal A Notícia, que não foram
publicados por razões desconhecidas. O fato foi entendido por Pompéia como uma afronta
e como parte de uma conspiração. Devido a isso, no dia 25 de dezembro de 1895, Pompéia
suicidou-se com um tiro no peito. Deixou apenas um bilhete: “A Noticia e ao Brazil
declaro que sou um homem de honra”. Para Carvalho (1987, p. 26), sua morte “dói o
trágico símbolo do fracasso de uma alternativa política, assim como a fuga de Bilac,
Guimarães Passos e outros indicava que não seria tão fácil estabelecer os parâmetros de
uma convivência pacífica entre a República da política e a República das letras”.
Portanto, sua trajetória de homem polêmico, temperamental, sem nenhum
amigo em especial, corrobora algumas posições encontradas em seus escritos: “Quatro
coisas não fazem os fortes: confidencias, pedidos, consultas, consultas de honra e
lamentações” (PONTES, 1935, p. 292). Suas atitudes de combates têm amparo na
afirmação: “O meio termo é o status quo da covardia. Na gica é o pavor da
conseqüência, desfiada em deduções pelo declive do argumento. Na vida commum é a
duplicidade tímida, ante as coherencias energicas do caracter” (PONTES, 1935, p. 49).
Logo, o que se pode perceber é que Pompéia, sempre enfático em suas
posições, não apresentou meio termo em nenhuma luta em que se inseriu, tanto no campo
literário como no jornalístico, o que demonstra coerência em seu curto, mas marcante,
percurso existencial. Seu único romance O Ateneu confirma, no campo ficcional, seu
espírito combativo. A seu modo, ele corrobora o perfil de escritor comprometido com o seu
tempo, ou conforme afirma Sevcenko, os escritores deveriam demonstrar:
um exercício de liderança comprometido com propostas de reforma da
elite, de seu modo de atuação e de sua relação com a população, o
território e as forças internacionais. Reforma da elite, mas a partir da sua
24
própria inserção numa situação de proeminência social e política. Como
críticos da elite, eles eram portadores de planos alternativos para a sua
revalidação, enquanto agente eficaz do corpo social maior,
democraticamente organizado. (SEVCENKO, 1995, p. 244)
Conclui-se, portanto, que Pompéia esteve em consonância com o período
vivenciado e cumpriu, não em sua obra O Ateneu, mas também em outros escritos e
experiência vivenciada, o papel de escritor-cidadão e de atuação cívica. A busca por um
diferencial literário aparece em O Ateneu, daí a importância de rever o posicionamento da
crítica em relação à obra.
1.2 O ATENEU E SUA RECEPÇÃO CRÍTICA
A pluralidade estilística presente em O Ateneu superou os padrões estéticos
literários presentes no final do século XIX. Pompéia mostrou-se dono de um estilo próprio
e, por isso, os críticos divergem, ou não, entre si quanto à classificação, que a obra
apresenta uma mescla de estilos.
Segundo Bosi (1988), Raul Pompéia “partilhava com Machado o dom do
memoralista e a finura da observação moral, mas no uso desses dotes deixava atuar uma tal
carga de passionalidade que o estilo de seu único romance, O Ateneu, mal se pode definir,
em sentido estrito, realista” (1994, p. 183). Para José Veríssimo (1979), a obra mostra
influência do naturalismo francês, para Candido (1988) a obra é um compromisso do autor
com a poética simbolista. Já Romero (1960) classifica O Ateneu como romance com
psicologismo idealista com tendências simbólicas. Coutinho (1968) vê a obra como a
primeira repercussão impressionista no Brasil. Para Carvalho (2004), O Ateneu apresenta
características simbolistas no pensamento do Dr. Cláudio e é um romance de penetração
psicológica classificação dada também por Chaves (1978).
Para Mário de Andrade (1943), a obra é um exemplo Naturalista. Dele
discordam Miguel-Pereira (1973) e Glória Amaral (1988), para esta, O Ateneu é precursor
dos romances modernos, posição compartilhada por Schwarz (1965); aquela concorda
com a afirmação de Capistrano de Abreu: O Ateneuabicaria ao romance estético e
25
parnasiano” (apud, Miguel-Pereira, 1973, p. 118). Merquior (1977) e Araripe Júnior (1960)
classificam O Ateneu como obra Impressionista. Diante de tantas classificações em
concordância ou não, faz-se necessário rever a argumentação de cada crítico em relação ao
O Ateneu.
José Veríssimo (1979, p. 133-139) ao comentar uma edição de O Ateneu,
lançada em 1906, afirma que o livro foi mais famoso que lido e sua publicação, em 1888,
não foi um acontecimento literário notável, já que a obra assemelha-se mais a um ensaio de
principiante. Embora não negue alguns aspectos positivos na obra, como por exemplo,
considerá-la um diferencial em seu tempo, o crítico deixa claro que considera um exagero
Pompéia ser considerado um escritor, o que revela sua aversão ao mesmo. Segundo ele, o
escritor poderia aperfeiçoar-se ainda mais, pois sua obra possui muitos defeitos, sendo o
maior deles a insignificância do tema “episódios da vida colegial de um menino de quinze
anos” (VERÍSSIMO, 1979, p. 134).
Além desse, ele cita outros possíveis defeitos: é uma disparidade o autor
adulto e experiente fazer-se passar pelo narrador e herói do romance, dando a esse a
filosofia e estilo de homem feito; generalização da vida em internatos e, de acordo com
o crítico, falta correspondência entre o ambiente retratado na obra e a realidade, uma vez
que o autor adulterou a realidade, exagerando-a por causa da amargura juvenil. E mais, a
ironia é usada como recurso revelador da amargura e pessimismo do autor diante da vida.
A capacidade do autor de desenhar e de caricaturar é menosprezada, uma vez que
considera a caricatura um meio de exagerar a realidade, falseando-a. Na visão desse crítico,
o diretor do colégio não apresenta falta alguma, é o caráter caricatural dado por Pompéia
que trouxe prejuízo à imagem do mestre.
Ainda de acordo com Veríssimo, Pompéia mostra influências do
naturalismo francês, porém acredita que o escritor “apenas lhe recebeu a essência, o íntimo
do pensamento filosófico ou estético que o determinou, sem lhe adotar, se não com grande
independência, os processos e cacoetes” (VERÍSSIMO, 1979, p. 135). Afirma, ainda, que a
obra possui influência do evolucionismo spenceriano, o estilo metafórico e pinturesco que
a torna cansativa e possui um gongorismo ruim. Portanto, para Veríssimo, Pompéia é um
escritor malogrado e, além disso, O Ateneu apenas revela o que porventura havia nele de
genialidade.
Todos esses apontamentos de Veríssimo, vistos como aspectos
empobrecedores ou, até mesmo, como defeitos da obra, foram, posteriormente, analisados
26
por outros críticos, entre eles Mário de Andrade (1943), Araripe Júnior (1960), Romero
(1960), Coutinho (1968), Schwarz (1965), Merquior (1977), Bosi (1994). E, o que
Veríssimo aponta como defeito, às vezes, é visto por outros críticos como recursos
estéticos que dão à obra um diferencial, uma vez que, entre outros aspectos, a linguagem
apresenta, por exemplo, recursos como a intertextualidade e a auto-reflexibilidade sobre a
questão escolar.
Os críticos mostram que a obra é renovadora dentro de sua época, pois
apresenta uma mescla de estéticas que foge do parâmetro imposto pelas escolas literárias
dominantes na época. Tem, ainda, caráter universal, que seu tema revela a condição
humana, mas é, ao mesmo tempo, nacional, ao desnudar a condição educacional do País.
Logo, esses fatores dão à obra a literariedade e fizeram com que outros críticos, além de
Veríssimo, se debruçassem sobre ela, na tentativa de compreendê-la dentro de seu
contexto, de sua relação com o autor e em seus recursos estéticos. Diante disso, faz-se
necessário rever o posicionamento dos principais críticos a respeito de O Ateneu.
Para Sílvio Romero (1960), O Ateneu é resultado de um naturalismo
iniciante. Para ele, dentre os lançamentos a partir de 1887 A Carne de Júlio Ribeiro, O
Ateneu de Raul Pompéia, Cromo de Horácio de Carvalho, Hortência de Marques de
Carvalho, O Homem de Aluísio Azevedo o de Pompéia é o único que apresenta como
diferencial um estilo forte, pois os outros, após a publicação de O Homem, têm estruturas
semelhantes na construção de seus heróis. Dentro de seu quadro sintético da evolução dos
gêneros, a obra de Pompéia é classificada por Romero como romance com psicologismo
idealista com tendências simbólicas.
Sob a ótica de Romero, Pompéia é o mais culto escritor da segunda metade
do século XIX e aquele que melhor soube deglutir a cultura dos franceses, a dos clássicos
latinos, gregos e do melhor que foi publicado pelos ingleses e alemães. O crítico acredita
que Pompéia, por ter tal nível cultural, não tem influência do naturalismo da escola de
Zola, o qual classifica como estreito e estéril e em
desacordo com os princípios exatos da estética e da crítica. Fere, por
exemplo, de frente, o princípio verdadeiro de Taine de que a arte não
consiste na imitação exata e completa dos fatos e sim na das simples
relações necessárias e, entre estas, a do caráter fundamental das cousas
(ROMERO, 1960, p. 1639).
27
Romero acredita que foi injustificável o erro de método de Zola: presumir
que o romance e a arte poderiam ser objetos de experimentações poderiam sim, ser de
observações. Entretanto, os naturalistas preferiram estudar “o povo na sua bandalheira!
Simples questão de gosto. Mas é preciso convir que até na bandalheira a natureza tem
muito pouco que ver; os refinamentos, os encantamentos artísticos da crápula são um
produto da cultura da civilização” (
ROMERO,
1960, p. 1639).
Faz-se importante ressaltar que Romero considerava o povo brasileiro
inferior devido à predominância da raça negra. Adepto aos ideais da cultura européia,
acreditava que a Alemanha, não a França, era o modelo de civilização. Embora
etnocêntrico e favorável ao arianismo do País e às idéias positivistas que determinariam a
evolução social, foi o primeiro crítico brasileiro a reconhecer a integração entre meio, raça
e cultura. Para ele:
A nossa originalidade depende do enriquecimento cultural do meio,
porque o talento não encontra, nos meios pobres, o húmus fertilizante.
[...] explica-se sua preocupação em transformar o ambiente através da
crítica cultural (no sentido sociológico), que concorrerá para a boa
orientação intelectual e a formação de uma atmosfera que permita a
eclosão do homem eminente, sempre representativo do tempo e do meio.
(apud, CANDIDO, 1988, p. 47)
Pode-se afirmar que, talvez, por Pompéia apresentar esse conhecimento de
outras culturas é que tenha ganhado a simpatia do crítico e um lugar na privilegiada lista
dos intelectuais do século XIX. Segundo lvio Romero, Pompéia está entre os que
mostraram “o mais brilhante da nossa literatura, manejaram melhor no Brasil a palavra
escrita, na difícil arte da prosa” (1960, p. 1819) um grupo seleto que revela sua visão um
tanto elitista de arte.
Mário de Andrade (1943), em sua análise de O Ateneu, classifica-o como
um marco do romance brasileiro e legítima obra-prima que evidencia a vingança do
escritor contra a vida em um internato. Para o crítico, ao caricaturar as condições de vida
no internato, o autor revela sua intenção punitiva e não de denúncia da realidade do
colégio, portanto não tem intenção social. O sentimento de vingança é visto como
ingenuidade do autor, pois esse generaliza a vida em colégios internos e revela assim,
algumas das características da personagem, sendo elas: a inexistência do sentimento de
amizade e a incompreensão diante da adolescência
características do autor. Pontes
28
(1935) afirma que, segundo testemunhas, Pompéia não teve um único amigo e confidente.
Suas relações eram superficiais e resumiam-se às questões políticas ou literárias.
Para Mário de Andrade (1943), o sexo masculino é visto negativamente por
Pompéia, que em sua obra desenha-os como “grotescos, invejosos, insensíveis, perversos
ou brutais [...] O homem o horroriza em sua brutalidade de macho. São todos monstros
papões. E sobres eles Raul Pompéia descarrega a audácia desesperada da sua vingança
[...]” (ANDRADE, 1943, p. 174 -175). Nesse perfil, nem mesmo Sérgio é poupado, pois
faz “de si mesmo um animalzinho ruim, despeitado, perverso, gato de unhas
inalteravelmente prontas pra arranhar a vida e os veludos do sentimento” (ANDRADE,
1943, p. 175). O romance é classificado como naturalista, uma vez que,
ele representa exatamente os princípios estético-sociológicos, os
elementos e processos técnicos do Naturalismo. É sempre aquela
concepção pessimista do homem-besta, dominado pelo mal, incapaz de
vencer seus instintos baixos reflexo dentro da arte das doutrinas
evolucionistas. É sempre aquele exagerar inconsciente e ao sério das
manifestações destrutivas do ser, baseado no terror, que concebe os
homens como bestas e ignora a ‘parte do anjo’. (ANDRADE, 1943, p.
184)
Araripe Júnior (1960) via Pompéia como dono de um diferencial em
relação aos outros do mesmo período, (no Brasil, Aluísio de Azevedo e na França, Balzac e
Zola). Para o crítico, Pompéia é um “analista fino, sugestivo, e um pintor delicado, incisivo
e notador de impressões pessoais mais sobressaltado que era possível imaginar nesta terra,
aonde todos já são por si tão irrequietos” (ARARIPE JÚNIOR, 1960, p. 129).
Após a morte de Pompéia, Araripe Júnior reafirma sua admiração pela obra,
relacionando-a ao macrocosmo. De acordo com o crítico, o romance é resultado das
recordações do autor no colégio, sendo que esse “vira, em esboço, todas as maldades,
vícios e defeitos que tumultuavam na sociedade por ele agora diretamente observada, e de
desta surpresa nasceu O Ateneu” (ARARIPE JÚNIOR, 1960, p.169).
O autor argumenta, ainda, que O Ateneu é resultado da experiência de
Pompéia/Sérgio que, apesar de estar em um meio corrompido, não se deixa influenciar,
mas desnuda o aparelho educacional e evidencia as suas mazelas, mostrando ser no colégio
“hostilizado, de outras vezes ameaçado de assimilação, torturado, rebelde, nunca
convencido” (ARARIPE JÚNIOR, 1960, p.170). Para Araripe Júnior, Pompéia manteve-se
29
firme em suas convicções, tanto em seu papel de cidadão como também no de personagem.
A morte do artista teria como causa o seu entusiasmo, seu amor e suas ilusões encerradas
em cristal. Como conseqüência disso, de acordo com Araripe Junior, tem-se a perda de um
dos espíritos mais originais do País.
Antônio Candido (1964, p. 266-268), assim como Araripe Júnior também
uma relação entre a experiência vivenciada pelo autor e a vivida pelo narrador de O
Ateneu. Afirma que, apesar de Pompéia ressaltar o caráter memoralista da obra, um
tratamento de ficção, baseado em possível experiência pessoal. Uma experiência que,
deformada, propicia uma análise psicológica, moral e intelectual. De acordo com o crítico,
o enredo não pode ser resumido, pois são apresentadas as experiências do autor-
personagem, o que traz à obra uma visão subjetiva do Sérgio-criança, dominada pelo
Sérgio adulto.
Essa correlação é vista pela necessidade de reconquistar o equilíbrio de uma
experiência vivenciada, mas que ainda se mostra opressora. Ao contrário de Veríssimo,
Candido vê na obra um compromisso do autor com a poética simbolista. Para ele, a
linguagem, a caricatura e o vocabulário de riqueza plástica, sonora e marcante, são
elementos que dão à obra um valor excepcional. E mais, a origem memorialista, a técnica
de composição e a vibração humana e apaixonada tornam a obra atual e singular no
panorama literário do final do século XIX.
Se, para Candido, O Ateneu tem compromisso com a estética simbolista,
para Schwarz (1965) a obra tem dimensões modernas, pois supera o Realismo e o
Naturalismo ao mostrar a presença emotiva do narrador. Ele explica que essa relação entre
o narrador e seu objeto escapa da exigência de impessoalidade da função narrativa exigida
pelo Realismo e torna-se, assim, figura imanente ao texto. A presença da subjetividade
ocorre devido ao fato de o narrador, embora adulto, não conseguir romper com sua
infância.
Assim, as descrições dos fatos que envolveram sua infância têm
características realistas e naturalistas, porém, as emoções que perduram em sua consciência
deixam o romance próximo aos modernos, sendo essa ligação afetiva responsável pela
qualidade atmosférica do livro:
A ligação evocativa e emocional resulta numa espécie de atmosfera que é
a peculiaridade do livro. Nessa ambiência dá-se o difícil equilíbrio do
30
romance, entre realismo e subjetivismo; os fatos guardam, a um tempo,
sua consistência e seu eco, profundo, na subjetividade. (SCHWARZ,
1965, p. 15)
Ele menciona também, como influências do Naturalismo, os sucessivos
desmascaramentos relacionados ao colégio, por exemplo, Aristarco, que se apresenta como
pai amoroso à sociedade, é na verdade cobiçoso e conivente; o Ateneu é palco de
indivíduos que visam ao poder e seus princípios revelam ânsia sexual, o que os assemelha
aos animais; a linguagem, com suas metáforas, retórica, dramatizada, revela as emoções do
narrador e sua decepção desmascaradora.
Outro fato interessante destacado pelo crítico é que a interioridade
apresentada pertence apenas ao próprio autor, uma vez que as outras personagens são
mostradas somente exteriormente, interpretadas à luz dos traços principalmente visuais,
confrontados com um pessimismo biologista, feroz e irônico” (SCHWARZ, 1965, p. 16),
sendo, pois, “vistas de fora”. Destaca ainda, que o ponto alto do romance é a presença de
Aristarco, representativo da visão de mundo que anima O Ateneu: “aparência cobrindo
vermes, [...] é a condição humana implicada no romance, onívora, que devora seu próprio
narrador” (SCHWARZ, 1965, p. 16-17).
Schwarz (1965) classificou O Ateneu como obra de dimensões modernas e
com influências Naturalistas, Afrânio Coutinho (1968), apesar de também reconhecer
alguns traços naturalistas, enxerga a obra como a primeira repercussão do Impressionismo
no Brasil. Para ele, Pompéia, formado na doutrina do Naturalismo, revela influência dos
Goncourt e da estética simbolista e alcança a plenitude expressiva através dos cânones do
Impressionismo. Ressalta também a necessidade sentida pelo autor em dar uma marca
nacionalista à sua obra e contribuir com a linha psicológica no campo da ficção brasileira,
contribuição, posteriormente, aprimorada pelos modernistas.
Miguel-Pereira (1973) também ressalta em sua análise o aspecto diferencial
de O Ateneu na época de seu lançamento, em 1888. Para ela, o destaque está na mistura
entre romance e memórias, sobriedade e rebuscamento, na oscilação entre a ousadia dos
naturalistas e as insinuações de Machado e no drama da solidão revelado através da crítica
ao internato. Ela também menciona a possível relação entre a vida de Pompéia e o drama
descrito no livro um fato, hoje, sem importância, que a obra superou as circunstâncias
de sua produção.
31
Miguel-Pereira (1973) classifica como tema substantivo da obra a busca de
Sérgio pela compreensão de si mesmo, bem como a insinuação da homossexualidade entre
os alunos; a crítica ao sistema educativo é vista como tema adjetivo e os problemas
psicológicos como acento tônico, uma vez que não obrigam o escritor a tecer longas
análises. as descrições são enxergadas como o ponto alto do romance, o que a leva a
classificar o autor como um artista plástico e a obra como exemplo da estética
impressionista, classificação também dada por Coutinho.
Ainda no que tange ao posicionamento de Miguel-Pereira(1973), a obra o
pode ser considerada naturalista posição compartilhada com Amaral (1988) pois
dessa estética há apenas empréstimos de recursos como a objetividade na descrição da vida
interior de Sérgio. As insinuações, as meias palavras, a falta de explicação biológica para a
homossexualidade presente no colégio, a ação do meio que não atinge a todos os
estudantes, a falta de relação entre os problemas psicológicos de Sérgio e seus dados
fisiológicos são elencados como características que afastam a obra do Naturalismo.
Isso poderia ocorrer se a obra for vista como romance tese que visa
comprovar a influência dos internatos, o que reduziria seu valor. Além disso, o
caráter autobiográfico do livro, que revela a tentativa do autor em compreender a si
próprio, o que o distancia do naturalista, que procura fugir da subjetividade. Para Miguel-
Pereira, quem melhor classificou a obra de Pompéia foi Capistrano de Abreu. Para esse, a
obra “abicaria ao romance estético e parnasiano” (MIGUEL-PEREIRA, 1973, p. 118).
Merquior (1977) e Coutinho (1968) vêem O Ateneu como representação
da estética impressionista. Para o primeiro, apenas Machado de Assis supera o romancista
de O Ateneu obra composta de “uma sucessão de quadros mentais uma série
impressionista de ‘páginas’ soltas na consciência do narrador. De evocações altamente
plásticas, como seria de esperar de um escritor-artista. Sérgio pinta seus rancores e
afeições” (MERQUIOR, 1977, p.192). O crítico destaca, também, o tom satírico de O
Ateneu, colocando-o como um dos melhores já produzidos na literatura brasileira.
Chaves (1978) é outro autor que classifica a obra como narrativa
psicológica, “onde a memória do adulto procura recuperar o menino para atar as duas
pontas da vida” (CHAVES, 1978, p. 52). Esse aspecto psicológico da obra foi dado
também por Romero (1960), que a classificara como representante de um psicologismo
idealista com tendências simbólicas, enfoque abordado por Mário de Andrade (1943).
32
Ao caráter psicológico da obra, Chaves (1978) acrescenta o enganoso e
aparente aspecto de memórias infanto-juvenis, uma vez que o enredo reconstrói um
microcosmo que se liga ao macrocosmo onde Pompéia está inserido. Antes, Araripe
Júnior (1960) já tinha estabelecido a relação macro e microcosmo em O Ateneu.
A presença do discurso social em O Ateneu, as relações comerciais como
reflexos de uma sociedade maior e o conflito de classe dentro da escola são destaques na
análise de Chaves (1978). Ele evidencia a contradição entre o código ético do colégio e as
ações cotidianas que visam ao lucro, interesse, investimento, exploração; a relatividade dos
princípios éticos do colégio, que causa a corrosão da individualidade da pessoa; a
adaptação forçada da personagem ao universo escolar e, conseqüentemente, seu trauma
diante das contradições entre seus ideais de responsabilidade, solidariedade e fraternidade e
a realidade escolar de egoísmo, mentira, covardia e traição. Realidade em que está
inserido, onde sua vontade é anulada e onde se faz presente a cisão entre o mundo dos
valores estabelecidos e apregoados e a realidade vivenciada cotidianamente.
O posicionamento de Araripe Júnior (1960), de que Pompéia e Sérgio não
foram corrompidos pelo meio e mantiveram-se firmes em suas convicções, não é
compartilhado por Chaves (1978). Para esse crítico, sim uma crítica à sociedade da
época. Porém, o intuito do autor é mostrar que
Sérgio aprende, no itinerário da adaptação, que o espaço social não é
propriamente o receptáculo dos ideais da infância, mas o universo das
manifestações possíveis. A revolta é aparente e ilusória e, tal como ocorre
por processos bastante diversos na ficção de Machado de Assis. O câncer
social termina por se instalar na individualidade da personagem,
condicionando sua atuação. (CHAVES 1978, p. 70)
Silviano Santiago (1978) também compartilha da idéia de relação entre O
Ateneu e o macro e microcosmo apontada por Araripe Júnior (1960) e Chaves (1978).
Santiago afirma que o romance pode ser relacionado à sociedade e à experiência
vivenciada pelo autor. Explica que Sérgio, ao combater Aristarco está, na verdade,
criticando a sociedade brasileira da época e revela, desse modo, sua inadaptação, fracasso,
diferença e recusa em aceitar as normas impostas pelos seus contemporâneos
inadaptação porque, assim como na vida real, seu ideal existia apenas na teoria.
Santiago (1978) vê na obra uma escrita vingativa e assassina e ressalta a
importância de enxergá-la com um olhar crítico e sagaz, desvendando, assim, as
33
contradições presentes na obra. Uma delas é o suposto distanciamento entre autor narrador
e autor-personagem conseguido por meio do uso retórico do falso natural, que pode ser
destruído pelo leitor agudo e inteligente, que o ingênuo aceita a simplicidade do
narrador-personagem e nela se reconhece.
Para ele, o autor procura safar-se de defeitos e fraquezas do personagem e
de sua escrita, assim, qualquer problema recairá sobre o narrador-personagem. A
conseqüência disso, é uma obra irônica em suas idéias, atitudes, técnica e estilo.
Argumenta, também, que o autor separa hoje, passado e futuro no hoje, enquadrou-se às
normas de conduta da sociedade, o passado representa sua covardia e fraqueza. Ao
libertar-se do passado (no desfecho da obra) Sérgio liberta-se de um julgamento ético, é
como se recebesse o atestado de ‘bons antecedentes’.
Outro aspecto interessante apontado por Santiago é a figura do Dr. Cláudio.
Esse representa uma terceira fase da vida de Sérgio, porém é uma imagem idealizada: o
Sérgio maduro, grave, liberto do passado, discutindo idéias nos campos estético e ético, Dr.
Cláudio é o seu equilíbrio. O personagem aparece em três conferências: “a primeira uma
crítica geral da literatura brasileira e a outra sobre ‘a arte em geral’ (ambas no cap. VI), e a
terceira sobre a questão do internato (cap. XI)” (SANTIAGO, 1978, p. 94).
No século XIX, essas características são vistas como inovações e dão à obra
um aspecto diferenciado. É, por exemplo, a única obra do período que discute o tema
principal da obra a questão do internato questão observada pelo Dr. Cláudio: “Não é o
internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali viceja, vai de fora.
Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar o passaporte do sucesso, como os que se
perdem, a marca da condenação” (POMPÉIA, 1992, p. 163).
Esse é um dos aspectos que leva Amaral (1988) a discordar do
enquadramento de O Ateneu na estética do Naturalismo. Ela argumenta usando a questão
do homossexualismo presente, implicitamente, no romance. Por ser mostrada sultilmente, o
leitor é obrigado a tirar suas próprias conclusões. Portanto, “a alusão está longe do âmbito
da linguagem naturalista, em que os episódios são explicitados de forma quase didática.
Nada fica a cargo da suposição do leitor” (AMARAL, 1988, p. 198).
A ironia é um outro aspecto que foge do Naturalismo. Amaral (1988)
explica que esse recurso distancia-se da seriedade com que o Naturalismo impregna o
romance, além de transmitir falta de clareza entre a palavra e o objeto retratado algo que
não ocorre no Realismo que “deve reproduzir verbalmente o objeto. Relação encontrada
34
O Ateneu na descrição do espaço interno do colégio” (AMARAL, 1988, p. 200).
Entretanto, a descrição tem uma finalidade: “permitir ao leitor movimentar-se com Sérgio,
localizar-se, saber o caminho entre as dependências mais utilizadas do colégio”
(AMARAL, 1988, p. 200).
Um outro aspecto que distancia O Ateneu do Naturalismo é o zoomorfismo
nas descrições das personagens. Para Amaral (1988), essa característica não está
relacionada ao recurso naturalista de animalizar os seres humanos, mas liga-se ao aspecto
caricatural; logo, é um recurso estilístico ou expressionista de Pompéia. Ela mostra,
também, que na obra estão presentes características dos movimentos literários em voga em
1888, porém nenhum configura-se de modo incisivo ou aparece de forma harmoniosa e, só
os encontra o leitor disposto a analisar esse enfoque. Conclui que tudo isso faz de O
Ateneu um precursor dos romances modernos.
para Bosi (1994), o ponto alto do romance é a exposição do microcosmo.
Bosi (1988) afirma que a obra não naufragou no puro romance tese devido ao talento do
artista em retratar a escola como um microcosmo, em que a prática pedagógica gira em
torno do poder da riqueza, o que envolve tanto o diretor como os alunos. Menciona ainda,
o aspecto darwinista que rege a educação e, conseqüentemente, a sociedade, uma vez que a
primeira é vista como reflexo da segunda. Para o autor, a teoria da educação presente em O
Ateneu está coerente com as leis universais e “deveria secundar os fortes e considerar como
‘natural’ o esmagamento dos fracos e inaptos. Aquém e além dos muros da escola, ‘os
deserdados abatem-se’. [...] é o princípio da seleção natural proposto na Origem das
espécies havia trinta anos” (1988, p. 48). O personagem Franco, segundo ele, é “um
exemplo de bode expiatório, no qual todos exorcizam a má consciência que os rói em meio
a tantas contradições” (BOSI, 1994, p. 186).
Bosi (1994) vê O Ateneu como uma obra que vai muito além de um meio do
artista extravasar suas angústias, neuroses e, se assim o fosse, o artista
não teria ultrapassado o limiar da literatura de confidência e evasão que
marcou quase toda a prosa romântica. Mas ela vai além da projeção:
tematiza os escuros desvãos da memória em torno de ambientes, cenas,
personagens, e molda as estruturas obtidas no nível da palavra descritiva,
narrativa, dialogada. (BOSI, 1994, p. 184)
35
Para o crítico, a obra apresenta os ideais artísticos de Flaubert, dos Goncourt
e dos parnasianos. Além disso, o expressionismo da imagem, a caricatura que revela o
quão traumática foi a experiência escolar. Sérgio-narrador é visto como o promotor e o juiz
desse universo que ainda guarda na memória, já que sua experiência escolar reflete “o
trauma da socialização que representa a entrada de uma criança no mundo fechado da
escola” (BOSI, 1988, p. 33). Trauma porque o espaço escolar opõe-se à casa materna,
porque Sérgio é ‘iludido’ por uma educação que lhe dificulta o acesso ao conhecimento de
fato, sua experiência o faz encolher-se, apassivar-se, anular-se é o homem “tornado
absolutamente coisa, eis o objeto da curiosidade do experimentador e do aluno perverso”
(BOSI, 1988, p. 44).
Castello (2004) ressalta que Pompéia é dono de um estilo individual
marcante e nesse patamar coloca Gonçalves de Magalhães, Gonçalves Dias, José de
Alencar, Machado de Assis e Manuel de Oliveira Paiva. características simbolistas no
pensamento da personagem Dr. Cláudio, quando esse faz algumas reflexões sobre a arte,
classifica o romance como sendo de penetração psicológica, o que é uma proposta que será
seguida por outros.
Para ele, Pompéia vai além de uma denúncia do colégio-internato ao dar à
obra caráter psicológico e pedagógico “sob o enfoque do tempo e memória [...] O Ateneu é
o caso em que o autor atrai para si, e ao mesmo tempo repele, o universo do protagonista
principal, sem, contudo, denunciar intenção autobiográfica ou memoralismo analítico”
(CASTELLO, 2004, p. 396).
Castello (2004) cita, ainda, a interdependência entre o “eu narrador” e o “eu
personagem”, uma relação em que um aprisiona o outro. Por isso, a narrativa é o meio
simbólico para o “eu narrador” destruir e libertar-se do passado. Esteticamente, insere a
obra dentro do Expressionismo e, mais exatamente, no Simbolismo. Porém, ressalta que o
romance “se desprende das limitações circunstanciais, temporais e sociais, para se erigir
autônoma com a linguagem que lhe foi a mais própria ou adequada” (CASTELLO, 2004,
p. 399). Além disso, menciona sua contribuição à análise do contexto educacional e
pedagógico brasileiro e seu estilo mordaz, quase panfletário, contra a instituição escolar.
Diante de tantas oscilações na classificação de O Ateneu, pode-se concluir
que a produção apresentou um diferencial em relação às obras lançadas no final do século
XIX, pois, até então, os padrões literários da Metrópole eram os parâmetros para o País. O
36
resultado disso era, quase sempre, uma adaptação mal feita da produção européia e distante
da realidade brasileira e de suas problemáticas.
O que se percebe, em O Ateneu, são inovações que aparecem com maior
incidência nas obras representantes do Modernismo. Nesse sentido, se levar em conta que
as obras modernistas apresentam um bricolage de estilos e buscam maior proximidade com
a realidade social, a classificação de Santiago (1978) e Schwarz (1965) de que a obra é
moderna a seu tempo parece coerente. Por conseguinte, é possível vislumbrar as
características de uma e/ou outra estética, todavia elas funcionam como fontes de recursos
e não como uma redoma, o que poderia limitar a obra e ocultar o talento de um artista
ousado que se recusou a fechar-se em torno de ideais estéticos e ideológicos.
Como resultado, tem-se a tentativa de se produzir uma obra mais próxima
da tão almejada identidade nacional, uma vez que põe em debate uma questão de extrema
importância: a educação. Por essa ter como bússolas os interesses políticos, sociais,
econômicos, faz-se necessário estabelecer a possível relação entre a educação e o conceito
de República que se tinha para o País, o que será enfocado a seguir.
1.3 REPÚBLICA DAS LETRAS E REPÚBLICA POLÍTICA: DISTANTES DO
POVO, PERTO DA EUROPA
A trajetória de Pompéia e seus contos, caricaturas, crônicas, artigos e O
Ateneu revelam o desejo e busca por uma nacionalidade, questão que já vinha sendo
trabalhada desde o Romantismo, com José de Alencar. Contudo, pode-se perceber que esse
processo de construção da nacionalidade deu-se de maneira complicada, que o caminho
encontrado para se alcançar o projeto nacional foi, um primeiro momento, assemelhar-se
ao colonizador português e, em um segundo, à França.
Havia uma tentativa de provar à Europa que o País tinha cultura e poderia
ser tão civilizado quanto o modelo. Para tanto, nota-se um esforço em adaptar teorias
européias, importar estéticas, fugir do localismo e enquadrar-se no universal,
principalmente, nos modelos franceses, símbolos de revolução e liberdade.
37
Pela trajetória de Raul Pompéia, pode-se perceber sua participação nas
mudanças que fermentavam desde 1870 e culminaram na proclamação da República. O
escritor fazia parte de uma burguesia responsável pelo surgimento do movimento
positivista no País. Mas o povo, sobre o qual pairavam os ideais de liberdade, igualdade e
soberania, não participava, era apenas uma entidade idealizada.
A idéia de povo era abstrata. Muitas das referências eram quase
simbólicas. Os radicais da República falavam em revolução (queriam
mesmo que esta viesse no centenário da grande Revolução de 1789),
falavam do povo nas ruas, pediam a morte do príncipe-consorte da
herdeira do trono (era um nobre francês!), cantavam a Marselhesa pelas
ruas. (
CARVALHO
1990, p. 26
)
Logo, povo existia apenas no imaginário político e dos homens das letras,
não era o povo real, mas o imaginado através da história francesa. Assim, sua participação
nas decisões políticas foi praticamente nula, que a vida política era restrita aos
abastados. Ainda de acordo com Carvalho, a grande agitação na proclamação da República
não foi realizada pelo povo, mas sim pelo: “espírito da especulação, de enriquecimento
pessoal a todo custo, denunciado amplamente pela imprensa, na tribuna, nos romances,
dava ao novo regime uma marca incompatível com a virtude republicana” (CARVALHO,
1990, p. 30).
É, pois, o interesse individual, a falta de ética e o caráter capitalista que
predominam e que inviabilizam pensar o País dentro de uma consciência coletiva e como
uma nação. Monarquia ou República, cada sistema a seu modo demonstra pouca
preocupação com o coletivo. A primeira representava bem
um modelo de sociedade estável, mantido sob um sistema homogêneo de
autoridade, como o do II Reinado no Brasil. Supunha-se, por isso, um
sistema único de valores e uma perspectiva de contemplação social
privilegiada e também exclusiva, que é a que se orienta do topo em
direção à base da pirâmide. O substrato material dessa sociedade era um
sistema econômico letárgico, que mantinha os pólos, agentes e a
circulação das riquezas, estáveis, por períodos suficientemente longos de
tempo, de forma a consagrar uma imagem da sociedade e da sua elite.
(SEVCENKO, 1995, p. 227)
a República, sendo idealizada por estudiosos de idéias européias e
resultado da revolta de alguns soldados em parceria com grupos políticos, não contou com
38
uma corrente ideológica própria, mas com uma mistura de vertentes do pensamento
europeu, propagada desde meados dos anos 70: liberalismo, positivismo, socialismo,
anarquismo trouxeram uma confusão ideológica, uma vez que foram mal absorvidas ou
assimiladas de modo parcial, distorcido ou ainda, impostas sem nenhuma adaptação às
condições do País tão diferentes das européias. Portanto, também distante do coletivo.
Raul Pompéia estava inserido neste período em que as mudanças sociais e econômicas
mostram-se em seu período embrionário e, por isso, um tanto confusas e causadoras de
divisões, até mesmo, entre os simpatizantes dos ideais republicanos.
Na biografia de Pompéia, por exemplo, vêem-se os diferentes rumos
tomados por estudantes como Bilac, Murat, Pompéia a possível causa do suicídio de
Pompéia pode ser um indício dessa divisão. Conforme Carvalho, esse ambiente
republicano foi adjetivado por Evaristo Moraes de “porre da felicidade ideológica” (apud
Carvalho, 1987, p. 24), para Sérgio Porto era “o maxixe do republicano doido” (apud
Carvalho, 1987, p. 24).
Diante de tantas correntes ideológicas e de modelos a serem seguidos, a
República mostrou-se falha por não levar em conta a necessidade de criar um espírito de
nação, de identidade comum, ou seja, “para isso, talvez fosse necessária a existência
anterior de um sentimento de comunidade, de identidade coletiva, que antigamente podia
ser o de pertencer a uma cidade e que modernamente é o de pertencer a uma nação”
(CARVALHO, 1990, p. 32).
Se os estudiosos estavam perdidos em ideologias, a grande massa pouco
sabia do que se tratava: sem estudo, era restrita a participação política, pois para exercer o
direito do voto havia a exigência da alfabetização: “No Império como na República, foram
excluídos os pobres (seja pela renda, seja pela exigência de alfabetização), os mendigos, as
mulheres, os menores de idade, as praças de pré, os membros de ordens religiosas”
(CARVALHO, 1987, p. 44).
Isso significa que no Rio de Janeiro, a cidade com maior índice
populacional em 1890 (estima-se 522 mil pessoas), apenas 20%, aproximadamente, da
população era considerada cidadã. A grande massa era mantida longe das discussões, dos
ideais tão propagados, como incorporar o proletariado à sociedade e possibilidade de
extensão dos direitos e da cidadania. Conceitos esses debatidos e explicados por cada uma
das correntes ideológicas circulantes a partir da segunda metade do século XIX e que,
infelizmente, faziam parte do mundo das idéias.
39
Quando se começou a pensar em república, o conceito era ambíguo. Havia
três modelos a serem seguidos: o modelo liberalista americano, de Montesquieu (o modelo
vencedor), o jacobinismo francês, de Rosseau, e o positivista, de Comte, reforçado no
Brasil por Benjamim Constant. Esses modelos visavam a transformações no âmbito
político, econômico, social e cultural do País. A diferença entre os modelos almejados é
explicada por Carvalho:
O americano e o positivista, embora partindo de premissas totalmente
distintas, acabavam dando ênfase a aspectos de organização do poder. O
terceiro [jacobino francês] colocava a intervenção popular como
fundamento do novo regime, desdenhando os aspectos de instituições.
(CARVALHO, 1990, p. 22)
Entretanto, essas possíveis mudanças circulavam apenas no circuito
intelectual. Somente as classes dirigentes tinham acesso aos ideais liberais, que buscavam
uma noção de pátria o que já vinha ocorrendo desde o início do século XIX. Na
literatura, por exemplo, José de Alencar, com a obra O Guarani, já evidenciara a busca por
uma identidade própria. Embora o processo de emancipação e expansão cultural ocorresse
desde 1808 com Dom João VI, o País ainda esbarrava na questão da escravatura, na
profunda desigualdade social e na falta de educação escolar para a grande massa
populacional.
O fosso entre elite e massa populacional dificilmente diminuiria diante dos
interesses dos republicanos, uma vez que cada uma das correntes tinha interesses
particulares e nenhuma gestara um ideal que envolvesse o coletivo. O deodorismo, por
exemplo, “buscava apenas posição de maior prestígio e poder, a que julgava ter o Exército
direito após o esforço de guerra contra o Paraguai” (CARVALHO, 1990, p. 39).
Benjamim Constant representava a república sociocrática, a ditadura
republicana, que tinha por finalidade “promover a república social, isto é, garantir, de um
lado, todas as liberdades espirituais e promover, de outro, a incorporação do proletariado à
sociedade, mediante a eliminação dos privilégios da burguesia” (CARVALHO, 1990, 41).
Essa visão messiânica de Constant permitiu sua ligação com o jacobinismo, do qual
Pompéia fez parte. Quintino Bocaiúva foi o responsável pela propaganda republicana
inaugurada através do Manifesto Republicano de 1870 e era representante da República
40
Liberal, chefe do Partido Republicano e dos propagandistas civis, que conseguiram o
poder.
Pode-se concluir que, embora houvesse um ideal de república, esse não
ocorreu no imaginário de grande parcela da população. Essa, formada por negros e
mestiços, era considerada como pertencente a “uma nação composta por raças
miscigenadas, porém em transição. Essas, passando por um processo acelerado de
cruzamento, e depuradas mediante uma seleção natural (ou quiçá milagrosa), levariam a
supor que o Brasil seria, algum dia, branco” (SCHWARCZ, 1993, p. 12).
Em 1872, o País tinha uma população negra e mestiça de 55% e em 1890, “a
Região Sudeste (devido, sobretudo, ao movimento imigratório europeu) a população
branca predominava 61% —, no resto do país a situação se invertia, chegando os
mestiços a totalizar 46% da população” (SCHWARCZ, 1993, p. 13). Percebe-se a
hegemonia do homem branco, que amparada no ideário positivo-evolucionista,
interpretava a situação brasileira como inferior, devido ao alto índice de negros e mestiços.
Portanto, vê-se a influência de dois modelos teóricos: o liberalismo, que se fundava no
indivíduo e em sua responsabilidade pessoal, e o racismo, que “retirava a atenção colocada
no sujeito para centrá-la na atuação do grupo entendido enquanto resultado de uma
estrutura singular” (SCHWARCZ, 1993, p. 14).
São modelos presentes a partir de 1870 e parecem um tanto excludentes,
uma vez que privilegiaram e ficaram restritos a uma elite ligada ao poder e detentora do
saber, do acesso à educação escolar e à cultura européia. A idéia de inclusão do povo ficou
apenas no papel, que o ‘povo real’ não se enquadrava nos moldes europeus, pois não
tinha a ‘cultura’, tom da pele e nem o comportamento político esperado pelos intelectuais.
A idéia de povo estava associada aos negros, proletários, imigrantes, ex-escravos, pobres e
excluídos dos ideais de cidadania, igualdade e liberdade divulgados pela classe dirigente.
Todavia, é esse povo quem forma à nacionalidade brasileira, pois,
paralelamente, é criada uma outra cultura da qual mais tarde também participa a elite
brasileira. Por meio de organizações e promoções de festas, que se tornaram tradicionais
como a festa da Glória, a festa da Penha, o samba, a capoeira, ou ainda, os movimentos
grevistas e a Revolta da Vacina, a cultura brasileira vai adquirindo contornos peculiares e
afirmando seu diferencial.
41
O mundo subterrâneo da cultura popular engoliu aos poucos o mundo
sobreterrâneo da cultura das elites. Das repúblicas renegadas pela
República foram surgindo os elementos que constituiriam uma primeira
identidade coletiva da cidade, materializada nas grandes celebrações do
carnaval e do futebol. (CARVALHO, 1987, p. 41)
Portanto, havia povo e participação social, mas a República não soube
articular e somar forças, por conseguinte, falhou, pois tentou a construir a fórceps uma
república sem democracia, sem cidadão, sem a participação cívica e, conseqüentemente,
sem cidadania. Nesse terreno de ignorância, por estar baseada nos padrões de progresso
europeu, faltou à república um projeto de instrução pública que unisse os interesses dos
intelectuais, da elite e do povo em prol de um bem comum e de sentimento coletivo de
pertencimento a uma nação.
O movimento em prol da república ficou restrito à classe intelectual e, por
não buscar a participação efetiva da população, apresenta um aspecto romântico da
constituição do Estado-Nação moderno no País. É, pois, esse caráter elitista que aparece
da República e também na educação. Diante disso, serão enfocados, a seguir, alguns
aspectos que caracterizam a educação do século XIX e aparecem, em maior ou menor grau,
no contexto escolar de O Ateneu.
1.4 O CARÁTER ESTETIZANTE DA EDUCAÇÃO E O ‘CIDADÃO
BRASILEIRO’ DO SÉCULO XIX
A questão educacional está diretamente ligada ao conceito de cultura,
que, em um embate de cosmovisões, uma cultura que se considera superior procura impor
seus ideais e valores. Sendo a escola uma das responsáveis pela formação do ideal de
nação, ela acaba transmitindo a idéia de que é possível ter uma cultura comum. Morais
(1989), parafraseando o ‘Dicionário Moderno Sociológico’ defende o conceito de nação
como
‘um agrupamento político autônomo, delimitando territorialmente, cujos
membros compartilham uma lealdade a instituições comuns’,
42
agrupamento esse que ‘confere um sentido de unidade à comunidade’,
veremos derivar disso o importante conceito de nacionalidade, como
sendo ‘a participação e identificação com uma nação particular’
(MORAIS, 1989, p.42)
O ideal de cultura do século XIX é, principalmente, a cultura francesa, mas,
como observa Morais, a influência estrangeira ocorreu desde o início da colonização:
A classe dominante branca ou branca-por-autodefinição desta população
majoritariamente mestiça, tendo como preocupação maior, no plano
racial, salientar sua branquidade e, no plano cultural, sua europeidade,
aspirava a ser lusitana, depois inglesa e francesa, como agora quer ser
norte-americana. (MORAIS, 1989, p. 128)
Por isso, quando se procura analisar a trajetória cultural de um país, o
resultado é “alguma compreensão de nós mesmos, preparando a investigação quanto às
possibilidades que temos de nos superar no sentido de auto-realização cultural” (MORAIS,
1989 p. 49). O conceito de cultura, ao ser estudado num sentido clássico e limitado,
prioriza o conhecimento de uma classe social. É, pois, uma forma hierarquizante, ao invés
de totalizante, de se ver cultura, o que a torna algo inacessível a muitos, uma vez que "seu
estudo incide diretamente sobre a produção, a conservação e o progresso dos valores
intelectuais, das idéias, da ciência e das artes, de tudo enfim que constitui um esforço para
o domínio da vida material e para a libertação do espírito". (AZEVEDO, 1971, p. 38). Mas,
ao ser enfocada num sentido mais amplo, totalizante, cultura passa a ser entendida como:
uma estrutura biface código e atualizações (concreções). Articula-se ao
sistema social e torna possíveis as diferentes trocas entre os homens
(bens, mensagens, mulheres) ou entre os homens e a natureza (a
transformação e a assimilação). A cultura é, na verdade, um sistema
mediador uma espécie de circuito que possibilita a circulação, a análise
e a construção do real humano (não se pode falar, assim, de uma cultura
simplesmente animal). (SODRÉ, 1983, p. 14)
A partir do momento que a cultura é retirada de sua posição dominante,
tendência de as análises começarem a enquadrar as diversas manifestações culturais de um
País. E, isso pode ser observado na análise de O Ateneu, na qual é revelado o descompasso
entre a cultura real e a ideal. Quando se vê, sob a ótica de Sérgio-narrador, um outro lado
da história do colégio Ateneu, nota-se uma diferença entre a expectativa do sujeito sobre o
43
objeto/fato e sua experiência real. Desse modo, a cultura ideal reside na expectativa
positiva e no fetiche, enquanto que a real nega toda a idealização construída anteriormente.
Como conseqüência tem-se a desmistificação, que a simbologia
construída é mostrada em sua nudez e os sentidos construídos com finalidade de legitimar
a função da escola são desvendados.
As instituições, enquanto instância simbólica, operam como lógicas que
regulam a atividade humana, caracterizam uma atividade humana ou se
pronunciam valorativamente com respeito a ela, esclarecendo o que deve
ser , ou seja, o que está prescrito , o que não deve ser o proscrito ,
assim como aquilo que é diferente ou oposto [...] outra função do
simbólico é dar sentido: que os sujeitos percebam como legítimas essas
posições e funções, assim como as relações que engendram. ‘Legítimas’
significa que são percebidas como necessárias, obrigatórias, ideais e
emblemáticas. Essa capacidade de engendrar sentido se denomina
eficácia simbólica. (GARAY, 1998, p. 132)
Observando o percurso educacional no Brasil, pode-se perceber a escola
como um espaço onde é construído o ideal de cultura. Assim, o sentido de nação e a
noção de cidadania e identidade são realçados nos processos simbólicos e de identificação
criados dentro do ambiente escolar. Nesse processo, estão unidos o Estado e a escola,
cabendo à segunda - espaço legitimado - a formação do cidadão e, conseqüentemente, se
olharmos o seu caráter estetizante, a manutenção da desigualdade e o hiato entre elite e
povo. Isso ocorre porque escola e cultura estão intrinsecamente ligadas.
Em O Ateneu, é possível ver a escola como representante do progresso, da
formação de valores e de disciplina do cidadão e é um lugar propício para se propagar ‘a
verdade ou as verdades’ que interessam ao poder vigente. Essas são características que
fazem o colégio Ateneu afigurar-se como um possível exemplo de aparelho político e
cultural do século XIX. Nele, é refletido o conceito de cultura que se tinha no período, bem
como alguns embates entre monarquistas e republicanos. Em O Ateneu, assim como
Pompéia também o era, Sérgio-narrador expões sua crítica à monarquia, às vezes,
explicitamente:
Uma coisa o entristeceu, um pequenino escândalo. Seu filho Jorge, na
distribuição dos prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa, como
faziam todos ao receber a medalha. Era republicano o pirralho! Tinha
aos quinze anos as convicções ossificadas na espinha inflexível do
caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura. Aristarco, porém, chamou
44
o menino à parte. Encarou-o silenciosamente e nada mais. E ninguém
mais viu o republicano! Consumira-se naturalmente o infeliz, cremado ao
fogo daquele olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino da
Monarquia jurada, última verba do programa. (POMPÉIA, 1992, p. 22)
Esse é um dos primeiros embates mostrados entre os ideais dos
monarquistas e os dos republicanos. A tentativa de calar o contestador fica evidente, pois o
filho de Aristarco, no decorrer da trama, não mais aparece e nem lhe é dada voz. Embora a
oposição ideológica seja silenciosa por parte de Jorge, ao longo do enredo as duas forças
opostas são mostradas com clarividência. Um exemplo disso está no discurso do Dr.
Cláudio, que mexe com os ânimos do Dr. Lobo, “pai de um aluno. Devoto jurado e
confirmado das instituições, irmão de não sei quantas ordens terceiras, primo de todos os
conventos, advogado de causas religiosas, conservador em suma, enraivado e militante”
(POMPÉIA, 1992, p. 97). A exaltação do Dr. Lobo vem após crítica do Dr. Cláudio a
D. Pedro II:
O pântano das almas é a fábrica imensa de um grande empresário,
organização de artifício, tão longamente elaborada, que dir-se-ia o
empenho madrepórico de muitos séculos, dessorando em vez de
construir. É a obra moralizadora de um reinado longo, é o transvazamento
de um caráter, alagando a perder de vista a superfície moral de um
império o desmancho nauseabundo, esplanado, da tirania mole de um
tirano de sebo!... (POMPÉIA, 1992, p. 97)
O confronto entre monarquia e república mostra uma desestabilização
daquela e um processo subterrâneo de ascensão dos ideais republicanos. Nesse período,
segunda metade do século XIX, a Europa e, principalmente, a França, têm grande
influência sobre o pensamento brasileiro, inclusive na área educacional. Seus modelos são
almejados, copiados, transferidos para uma realidade brasileira completamente adversa à
européia. Dessa forma, a idéia de cultura liga-se à de refinamento “está, para os latinos, tão
ligada à de civilização (civilis, polido, refinado), que essa palavra lhes evoca sempre
doçura de costumes, isto é, um certo equilíbrio entre desenvolvimento intelectual e moral e
a organização social” (AZEVEDO, 1971, p. 36-37).
Para atingir esse refinamento cultural buscam-se os modelos europeus. E
qual instituição melhor que a escola para se propagar tal objetivo? É interessante observar
a visão que a sociedade intelectual, burguesa e elitizada tem da escola. Essa é onde se
45
disciplina, doutrina, divulga os ideais científicos, forma cidadãos aptos para promoverem o
progresso e, conseqüentemente, serem divulgadores dos anseios de uma classe que não
quer se ver negra, indígena, pobre e latino-americana. Portanto, o ambiente escolar é o
meio para esse País que objetiva ser uma extensão da Europa, do seu progresso, de sua
razão e de sua civilização.
A partir da segunda metade do século XIX, houve intensas transformações
nas esferas políticas, sociais, econômicas e culturais. Na Europa, com o desenvolvimento,
as indústrias, as forças produtivas e o mercado mundial foram revolucionados, o que gerou
um período de crises na sociedade capitalista, assim, as contradições da sociedade
acabaram tornando-se ainda mais evidentes. Dessa forma, os países envolvidos na
produção mundial foram obrigados a se adequarem às exigências do sistema capitalista,
rumo ao imperialismo e aos monopólios.
Dentro desse panorama, o Brasil agrário e escravocrata necessitava de
modernização, ou seja, precisava equiparar-se aos parâmetros europeus. Para tanto, fazia-
se necessário separar Igreja e Estado, reformar o sistema eleitoral, institucionalizando o
voto do alfabetizado, incentivar a imigração e a industrialização, preparar mão-de-obra
qualificada, assimilar novas técnicas de produção, viabilizar novas formas de comunicação
a partir da construção de estradas de ferro, navegação a vapor, instalação de telégrafos e
iluminação pública.
Portanto, o País, para ‘civilizar-se’, transplantou os ideais e conceitos
europeus de produção, trabalho, desenvolvimento e utilidade. A Europa e seus padrões de
civilidade, seus hábitos, valores culturais e morais eram os ideais da elite intelectual
brasileira, pois simbolizavam o modelo de progresso que o Brasil urgia. Todavia, a solução
para europeizar o modo de vida brasileiro exigia instrução. Assim, a ‘elite ilustrada’ passa
a valorizar a criação de escolas para as classes populares e a debater problemas
relacionados à esfera educacional, como o investimento na educação, a formação do
cidadão-eleitor e a educação do escravo recém liberto. Mas essas discussões pautam-se nas
experiências de países capitalistas mais avançados, o que causa um descompasso entre
teorias e realidade.
A educação infantil, por exemplo, é implantada com a finalidade de atender
aos filhos dos trabalhadores, dos pobres e dos mais necessitados e incapazes. Contudo,
acaba destinada apenas às crianças das classes privilegiadas. A educação infantil recebida
46
por Sérgio é mostrada como inacessível às classes trabalhadoras, por causa do horário
das nove às duas horas.
Freqüentara como externo, durante alguns meses, uma escola familiar do
Caminho Novo, onde algumas senhoras inglesas, sob a direção do pai,
distribuíam educação à infância como melhor lhes parecia. Entrava às
noves horas, timidamente, ignorando as lições com maior regularidade, e
bocejava até ás duas horas, torcendo-me de insipidez sobre os carcomidos
bancos que o colégio comprara, de pinho e usado. (POMPÉIA, 1992, p.
13)
A proposta pedagógica almejada baseava-se em modelos didáticos de
Froebel
2
, nos princípios de Pestalozzi
3
, o que evidencia que “a educação moral e a
formação do cidadão passam pelo cultivo da polidez, da ordem e do senso estético, por
meio de exercícios regrados conduzidos pela mestra” (KUHLMANN JR, 2005, p.75).
Conclui-se que essas instituições infantis, a primeira instalada apenas em 1875, no Rio de
Janeiro, tentam enquadrar-se nos parâmetros das nações classificadas como modernas e
isso deixa profundas marcas em todo o sistema educacional imposto no País. Os próprios
alunos do Ateneu criticam o sistema educacional, que visava ao lucro, e, ironicamente
trazem os princípios de Froebel, o que ainda demonstra a influência alemã nas perspectivas
de mudanças educacionais:
Ora, diretores! Empresários! Fabricantes de ciência barata e prodígios
de carregação, com que empulham os papais basbaques... O que querem é
negócio... Falem em anúncios... Mulher ao balcão... Que chamariz,
uma carinha sedutora! Eu por mim, se fosse diretor, inaugurava um
Kindergarten
4
para taludos; uma bonita diretora à testa e quatro adjuntas
amáveis... Não haveria nhonhô graúdo que não morresse pelo ensino
intuitivo. Como não haviam de pagar para cortar pauzinhos no meu
jardim! E que serviço ao progresso do meu país: estimular à Froebel as
inteligências perrengues e as adolescências atrasadas... (POMPÉIA, 1992,
p. 115
)
2
Na proposta pedagógica do jardim, para as atividades de construção e de linguagem, utilizavam-se os
materiais didáticos de Froebel, os dons: a bola, os lidos geométricos elementares, a esfera, o cubo, o
cilindro, e as subdivisões, tabuinhas, varinhas, material para desenho, alinhavo e tecelagem de papel, etc.
Praticam-se jogos organizados, os brinquedos. Adota-se uma ritualização na programação, com músicas e
versos para diferentes atividades. (KUHLMANN JR, 2005, p.75)
3
Princípio de Pestalozzi “considerava importante a atividade da observação na formação do docente, a escola
primária e o jardim, anexos, seriam local de estágio para as professoras.” (KUHLMANN JR, 2005, p.75)
4
Nome dado, em alemão, por Froebel aos jardins de infância.
47
Se no ensino infantil há a tentativa de europeização, o ensino secundário não
é diferente e, além disso, como a preocupação do governo era a formação de uma elite
dirigente, houve uma concentração de seus esforços no ensino secundário e superior e, em
ambos casos, os valores são pautados em modelos europeus, enquanto o ensino primário e
o técnico-comercial recebem apoios insignificantes.
De acordo com Morais, a escola do século XIX é estetizante, isto é, “em
suas produções espirituais uma manifestação muito mais retórica e ornamental, muito mais
mimética do que expressiva de um tônus nacional emergido de nossas singularidades”
(MORAIS, 1989, p. 32). Logo, há uma negação de culturas e discursos que ignoram a
dimensão da diversidade humana na escola lugar, geralmente, de embates e de relações
contraditórias, onde uma cultura que se considera superior impõe suas visões e valores de
maneira coercitiva, o que pode ocorrer tanto implicitamente como explicitamente.
Distorce-se, desse modo, uma realidade e privilegia-se uma visão de mundo em detrimento
a uma diversidade cultural.
O Ateneu reflete uma escola com visão reducionista, pois inferioriza e
aniquila aquilo que contradiz seus discursos e mostra-se estetizante por fundamentar-se em
parâmetros europeus de educação. Um exemplo disso é a influência positivista que
predominou no final do século XIX, tendo na escola espaço garantido de reprodução é o
pensamento acrítico que marca presença e é usado como forma de garantir a perpetuação
do poder de uma classe dominante preocupada com a aparência.
Assim, instala-se a ‘cultura de fachada’, ou seja, aquela que “emerge de um
caráter estetizante no qual o estetismo é filho do desespero imposto pelo vazio cultural e de
uma compulsiva necessidade de impressionar a nós mesmos e aos outros” (MORAIS,
1989, p.130). É a educação a serviço da opressão, uma vez que são impostos a uma
realidade valores e modelos estranhos às nossas raízes culturais. É a educação ornamental e
alienante, que, ainda hoje, mantém seus resquícios na educação escolar do País. Isso
evidencia o fosso entre a dimensão estética que a escola alimenta e a realidade do aluno
uma questão, ainda hoje, debatida na escola.
Vechia explica essa dimensão estética da educação ao mostrar as disciplinas
instituídas. De acordo com o autor, em 1772, foram estabelecidas as ‘aulas-régias’
5
de
Gramática Latina, Grego, Filosofia. Em 1793, no Rio de Janeiro, nas aulas para militares
5
“Cada aula-régia constituía-se no ensino de uma determinada disciplina, ministrada por um professor, sem
articulação com as demais ou com uma escola. As aulas-régias eram, portanto, disciplinas autônomas e
isoladas, ensinadas sem um plano de estudo estruturado.” (VECHIA, 2005, p.78)
48
foram colocados os ensinos de Aritmética, Geometria Prática, Francês e Desenho. Em
1799, ao saber da precariedade da educação no Brasil, o governo da metrópole instituiu a
fiscalização das aulas-régias e ordenou, no Rio de Janeiro, as disciplinas de Grego, Latim,
Retórica, Filosofia, Matemática Elementar e Trigonometria. Em 1800 foram instituídos
Desenho e Figura.
Vê-se que a partir do desmatelamento do sistema jesuítico, que também
visava e atendia a formação de uma elite intelectual, os ideais pombalinos pautam-se nos
franceses e iluministas. As aulas-régias sofrem uma expansão com a instituição de
disciplinas como Retórica, Hebraico, Matemática, Filosofia, Teologia, Línguas Modernas,
Ciências Experimentais, Grego, Comércio e Música. É o clássico-humanístico dos jesuítas
dando lugar a novas disciplinas.
O currículo escolar é evidenciado em vários trechos de O Ateneu:
A história tria deliciou-me em quanto pôde [...] a história santa
revelou-me este épico, quem o diria? − o Cônego Roquette! [...] na
tabuada e no desenho linear, eu prescindia do colega mais velho. Desde o
mês de julho do ano anterior, cursava os estudos elementares das línguas
[...] as páginas sorriam de literatura [...] os professores eram bons e
moderados. O de francês, Mr. Delille, nome de poeta aplicado a um urso
[...] O professor de inglês, Dr. Velho Júnior, nome de contradição ainda
[...] O professor Venâncio também lecionava inglês [...] Mânlio, além das
primeiras letras, regia a cadeira especial de português. (POMPÉIA, 1992,
p. 44-147)
É importante verificar esse currículo presente em O Ateneu, pois como
afirma Aplle:
O currículo nunca é simplesmente uma montagem neutra de
conhecimentos, que de alguma forma aparece nos livros de aula de um
país. Sempre parte de uma tradição seletiva, da seleção feita por alguém,
da visão que algum grupo tem do que seja o conhecimento legítimo. Ele é
produzido pelos conflitos, tensões e compromissos culturais, políticos e
econômicos que organizam e desorganizam um povo. (2001, p. 53)
O currículo em O Ateneu mostra sua característica elitista e a influência
européia na educação. É o clássico e o moderno mostrando o ecletismo da monarquia, que
seleciona aquilo que está condizente com seus interesses. Novos rumos educacionais são
propostos pelo bispo Azevedo Coutinho, em 1800:
49
uma ordenação lógica e gradual das disciplinas, duração do curso e
regime de agrupar os alunos em classes. Procurava reunir, em um plano
integrado de estudos, o ensino clássico e o moderno
6
. [...] Tudo isso com
vistas ao preparo ‘de um bom cidadão e de um indagador da natureza’
que buscasse ‘procurar a verdade nas suas fontes’ (Estatutos do
Seminário Episcopal de N. S. da Graça da cidade de Olinda de
Pernambuco, 1798) (apud, VECHIA, 2005, p. 80)
O que se percebe no panorama educacional brasileiro é uma mistura de
classicismo e modernismo insosso, imposto a partir das reformas do Marques de Pombal
situação que perdura até grande parte do século XX. Com a vinda da família real ao Brasil,
há, no campo educacional, novas mudanças. São criadas as Escolas de Medicina do Rio de
Janeiro e de Salvador (1808) com os cursos de Anatomia e Cirurgia. Os estudos das
línguas francesa e inglesa passam a ter finalidades práticas a primeira por ser considerada
universal, a segunda pelo número de assuntos escritos em inglês.
São abertas algumas escolas particulares para estrangeiros. Em 1812, D.
João propõe planos para a educação brasileira. Esses eram fundados na liberdade,
segurança individual e prosperidade objetivando “a instrução primária gratuita a todos os
cidadãos e pela criação de ‘Colégios e Universidades’ onde eram ensinados os elementos
das ciências, belas letras e artes” (VECHIA, 2005, p. 82). Portanto, as tentativas de
transplantar os moldes europeus em um país escravocrata e agrário mostram-se falaciosas,
uma vez que os modelos são extremamente avançados para o contexto brasileiro.
São desveladas, assim, as discrepâncias sociais; as classes privilegiadas
acabam sendo contempladas com a educação que não atende as peculiaridades nacionais e
revela-se como um produto a mais para ser consumido por classes abastadas. A descrição
da solenidade da distribuição bienal dos prêmios aos alunos dá-nos uma idéia da clientela
de o Ateneu:
Na massa dos convidados, diversas centenas de representantes da boa
sociedade, havia pessoas verdadeiramente notáveis: titulares de sólida
grandeza, argentários de mais sólidos títulos, vultos políticos de bela
estampa e tradições sonoras, uns exibindo à fronte as neves pensativas do
6
Tradicional limitava-se à Gramática, à Retórica e à Filosofia, ainda que com modificações de conteúdo e de
método. [...] O moderno compreendia as Ciências Experimentais, que se destacavam na Filosofia, e a
Geometria como disciplina autônoma, que abrangia os estudos de Aritmética, Geometria, trigonometria e de
Álgebra. As ciências englobavam a Física, a Química e a História Natural. Era atribuída grande importância à
observação direta, “que não basta sem a experiência”, e ao Desenho como forma de expressão prática.
(VECHIA, 2005, p. 80).
50
hibernal senado, outros a energia moça da câmara temporária, médicos
celebrizados por façanhas cirúrgicas, ou simplesmente pela vivissecção
recíproca de mazelas em pleno logradouro público dos “a pedidos”.
Havia jornalistas, literatos, pintores, compositores; entre as senhoras,
acumuladas principalmente nas bancadas especiais, distinguiam-se perfis
soberbos de rainha em toda a eflorescência da formosura, que a claridade
branda do lugar vaporizava idealmente; havia ostentações de pedraria e
vestuários que impressionavam; havia juventudes de lábios e de olhar
enervantes ou arrebatadores, morenas, forçando magicamente o torpor da
sesta sensual sob a carícia opressora de um pequenino pé vitorioso, louras
convidando a um enlace de transporte a nuvem, mais alto! ao retiro etéreo
onde vivem amor as estrelas duplas... (POMPÉIA, 1992, p. 172-173)
Essa situação de elitismo educacional evidenciada na obra, de acordo com
historiadores não se limita ao campo ficcional literário, mas estende-se a todo o país e é
uma situação que se torna mais problemática após 1831, quando, após abdicação de D.
Pedro I, as províncias tornam-se responsáveis pela legislação da instrução pública primária
e secundária. Isso refletiu a instabilidade política e a escassez de recursos das províncias.
As aulas passam a ser ministradas de formas avulsas, sem organicidade, sem qualquer
integração e em um local único. Como solução, o Regime do Império procura mecanismos
para direcionar e controlar, mesmo de forma indireta, o ensino secundário ofertado pelas
províncias.
Em 1837, o Ministério da Justiça propôs a criação de uma escola
secundária no Município da Corte que servisse de modelo a todas as instituições do
Império e a todo o sistema público educacional do País. É criado assim o Imperial Collegio
de Pedro II, que tinha como base os estatutos dos liceus franceses. O colégio, que atendia a
elite intelectual, foi o difusor dos ideais educacionais; seus planos e estudos eram
enciclopédicos e incorporavam os estudos considerados clássicos, enfatizando-se os
estudos das Humanidades.
“A ênfase dada às humanidades é evidenciada pela distribuição da carga
horária: 62% da carga horária total do plano de estudos era atribuída aos estudos
humanísticos e, desses, 50% era atribuído ao estudo de Latim e Grego.” (VECHIA, 2005,
p. 84). Os estudos eram organizados em oito aulas correspondentes a oito anos, com
possibilidade de serem reduzidos a quatro anos, após exames; se reprovado, o aluno tinha
um prazo máximo de dezesseis anos para conclusão do curso; se aprovado em todas as
matérias o aluno recebia o Diploma de Bacharel em Letras e o direito de ingressar, sem os
Exames Preparatórios, nos cursos superiores.
51
Após 1840, com a declaração da maioridade de D. Pedro II, o deputado
Liberal Antônio Carlos Ribeiro de Andrade reformulou o ensino no Collegio, reduzindo o
curso para sete anos e graduando os estudos de acordo com a capacidade dos alunos, além
de incluir as disciplinas de Alemão, Geologia, Zoologia Filosófica e disciplinas específicas
de desenho. Além do mais, a carga dispensada à área de Humanidades foi reduzida para
40% em Latim e 50% para Gramática, Filosofia, Retórica e Poética, enquanto que a carga
das línguas inglesa e francesa triplicou. Essa mudança visava à modernização do plano de
estudos e domínio das línguas para aquisição dos conhecimentos da disciplina de
‘Literatura e das Ciências’ que estavam em desenvolvimento na Europa.
Em 1850, uma nova reforma divide os estudos secundários em Estudos de
Primeira Classe e Estudos de Segunda Classe. O primeiro tinha duração de quatro anos e
com o certificado de conclusão o aluno poderia ingressar nos institutos de formação
técnica, sem prestar exames. o segundo tinha duração de três anos e visava preparar o
aluno na aquisição de conhecimentos humanísticos e literários, requisitos para o ingresso
nos cursos superiores.
Porém em 1857, um novo decreto instituiu dois cursos paralelos: um de sete
anos para quem quisesse ingressar nos cursos superiores e obter grau de bacharel; outro de
cinco anos para quem optasse para o ingresso nos cursos técnicos. Grande parte dos alunos
optava pelo primeiro curso, uma vez que as profissões técnicas eram desvalorizadas. Isso
culminou com a supressão do curso especial e, é adotado então, um curso único que dava
ao aluno o título de bacharel. Com a Proclamação da República, há novas reformas
educacionais. Benjamin Constant, pautado nos ideais positivistas, estabeleceu o estudo
secundário de sete anos:
tendo como eixo a ordem lógica de classificação das ciências
fundamentais, proposta por Augusto Comte. Paralelamente a esse eixo,
dispunha-se o estudo das línguas modernas, do Grego e do Latim, da
Geografia e da História, do Desenho, da Ginástica e da Música, tornando-
enciclopédico. Ao final do curso, os alunos deveriam demonstrar a
assimilação de todo o acervo de conhecimento humano, no chamado
Exame de Madureza, que fora instituído. (VECHIA, 2005, p. 87)
Vê-se, portanto, que a trajetória educacional do Brasil, no século XIX, é
elaborada e reelaborada nas tendências européias e até mesmo nas norte-americanas.
Todavia, esses modelos não se adequam à realidade de um país extremamente agrário. Por
52
visar a formação do cidadão, a escola torna-se legitimadora do poder estatal e produtora de
um discurso que visa à educação e modelação dos indivíduos, que autonomizarão e
tornarão uma força significativa da história que se quer construir ou deixar para a
posteridade.
É, pois, a educação um dos meios usados para a ‘construção’ do ‘cidadão
brasileiro’. Nesse processo percebe-se uma articulação entre a pedagogia e a política, o que
possibilita, ao menos em tese, a cristalização de uma sociedade e a sua heterogeneidade.
Vê-se que no Brasil, embora a sociedade tenha buscado renovações no campo educacional,
essas apenas perpetuaram o privilégio à educação de uma classe dominante e criaram um
hiato entre ideais de dominantes e dominados.
É a manutenção de um sistema oligárquico e a formação de um sujeito
escolarizado esse é o cidadão que relaciona saber e poder, silenciando e excluindo os
contrários à ordem vigente. Logo, os ideais de democracia, cidadania estão restritos a uma
classe que sabe unir o saber pedagógico ao político, do significado que a escola possui.
Nesse sentido:
A instituição escolar é um espaço discursivo, atravessado pela memória,
em que se organiza uma desigualdade real na sociedade, de forma difusa,
ambígua e opaca, mas eficaz na identificação, re-conhecimento e controle
dos cidadãos. Ela tem uma materialidade significativa que deixa pistas e
vestígios do modo pelo qual se estabelecem relações entre a forma-sujeito
de direito e a forma-sujeito do conhecimento, e entre a ngua enquanto
objeto real e objeto de conhecimento em sua natureza contraditória,
ficando o político apagado, denegado. (SILVA, 2002, p. 88)
Deduz-se, ao observar a trajetória educacional brasileira, que o espaço
escolar não se caracterizou apenas como lugar de aprendizagem, mas também como local
onde os sujeitos identificam-se, ou não, com determinadas filiações ideológicas e
discursivas, onde circulam e são reforçadas formas de saber e poder, isto é, são
institucionalizadas técnicas de classificação, hierarquização e distribuição de lugares e
posições de sujeitos.
É a escola assumindo seu poder multiplicador e objetivando criar modelos a
serem seguidos. Vista por esse ângulo, a escola de O Ateneu reflete um possível reflexo da
sociedade burguesa e seletiva do século XIX e, por ser um espaço de cultural e disciplinar,
visa à construção de sujeitos que se identifiquem com a identidade nacional brasileira.
53
Assim como a educação objetivava a formação da classe intelectual do País
e a colaboração na produção de uma identidade nacional, a literatura, entre outras formas
artísticas, também tomou para si essa tarefa e, apresentando rios momentos, mostra a
busca pela superação da condição colonial e por maior independência intelectual. Dessa
forma, como será enfocado a seguir, a literatura mostra indícios de maior ou menor
influência no projeto identitário que se tinha para o País.
1.5 O PAPEL DA LITERATURA NA CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
NACIONAL
No Brasil, a formação literária esteve, quase sempre, associada à elite. Por
ser uma atividade intelectual e, portanto, acessível apenas a uma camada mínima da
sociedade, a literatura teve, desde o seu período embrionário, características elitizantes.
Isso porque apenas os fidalgos portugueses, os senhores de engenhos, os mineradores
podiam educar seus filhos, primeiramente nos colégios de padres e, posteriormente,
enviavam-nos à Coimbra para aperfeiçoamento. Sendo assim, as idéias literárias eram
provenientes da Europa e, nem sempre, mostravam-se próximas à realidade social
brasileira, uma vez que seguiam os moldes europeus.
Como conseqüência disso, tem-se, no início do período colonial, uma
literatura caracterizada pela imitação e que objetivava marcar as diferenças entre a classe
dominante e a grande massa ignorante, além disso, visava ao pragmatismo, como afirma
Candido:
Os homens que escrevem aqui durante o período colonial são, ou
formados em Portugal, ou formados à portuguesa, iniciando-se em uso de
instrumentos expressivos conforme os moldes da mãe-pátria. A sua
atividade intelectual, ou se destina a um público português, quando
desinteressada, ou é ditada por necessidades práticas (administrativas,
religiosas, etc.). É preciso chegar ao século XIX para encontrar os
primeiros escritores formados aqui e destinando sua obra ao magro
público local. (CANDIDO, 2000, p. 84 )
54
Logo, por estar marcada pelo imediatismo, por ser confundida como
atividade prática, ou seja, mostrar-se nos sermões, relatórios e catequese, por ter público
escasso e estar ligada ao padrões europeus, a literatura colonial parece artificial e
mantenedora de uma atitude conformista, uma vez parece distante da realidade do País.
É, em meados do século XVII, que surgem os primeiros indícios de um
processo formativo na literatura. Processo que, progressivamente, parece maturado na
segunda metade do século XIX: “só então se pode considerar formada a nossa literatura,
como sistema orgânico que funciona e é capaz de dar lugar a uma vida literária regular,
servindo de base a obras ao mesmo tempo universais e locais”. (CANDIDO, 2000, p. 84)
Portanto, século XVII, é o período inicial do sistema orgânico literário, isto
é, um sistema “articulado, de escritores, obras e leitores ou auditores, reciprocamente
atuantes, dando lugar ao fenômeno capital de formação de uma tradição literária”
(CANDIDO, 2000, p. 84). Neste período, tem-se a primeira elite intelectual de prosadores
e poetas nascidos no Brasil, porém ainda presos à cultura portuguesa.
Destacam-se, entre outros, José de Anchieta com suas cartas-relatórios e
autos didáticos, o cronista Simão de Vasconcelos, a oratória sagrada de Antônio Vieira, o
poeta épico Bento Teixeira e o poeta repentista e recitador Gregório de Matos Guerra e,
embora este tenha lançado duras críticas à sociedade da época, não se nota, tanto em suas
obras quanto nas dos outros escritores, nenhuma mudança substancial em relação à
linguagem. Essa ainda apresenta os mesmos níveis formal e sintático e a eloqüência das
produções da Metrópole.
na segunda metade do XVIII os ideais de emancipação nacional
começam a circular no País. Dão-se devido ao desenvolvimento da mineração, ao
crescimento econômico do centro-sul do País, às reações nativistas da Inconfidência
Mineira (que consegue unir política e letras em um início de sentimento nacional) e, além
disso, há o intenso comércio de ouro e diamantes que geram fortunas e o anseio, de alguns,
por igualdade entre as classes e pela igualdade e democracia. O sentimento nativista tem
como conseqüência a deflagração de vários embates como a Guerra do Emboabas (1707)
em Minas Gerais, dos Mascates (1711) em Pernambuco e a Conjuração Mineira (1789),
uma reação contra o fisco e a política repressiva da Metrópole.
Na literatura, nesse período, destacam-se, entre outros, Frei José de Santa
Rita Durão (1720-1784), autor de Caramuru; José Basílio da Gama (1740-1795), autor de
Uraguai; Tomás Antônio de Gonzaga (1744-1792) com Marília de Dirceu. Nessas
55
produções pode-se observar uma temática diferente que apresenta “o sentimento da terra
americana, na exaltação do índio, na evocação dramática dos episódios de nossa história e
na pintura das belezas naturais” (AZEVEDO, 1971, p. 326), porém, ainda não é vista uma
ruptura, de fato, com os modelos clássicos, embora possam ser vistos alguns traços que
desencadearão no nacionalismo da literatura do Romantismo.
Mas, é no século XIX, que o processo de formação de um sistema literário
parece consolidar-se, porém, as mudanças não se limitam à literatura, pois profundas
transformações de ordem econômica, social, política e cultural mudaram o panorama
brasileiro. São mudanças que se transformaram em literatura ou podem ser vistas na
literatura que, diretamente ou indiretamente, incorporou elementos históricos, formais e/ou
temáticos.
Carvalho (2004) explica que o processo de modernização cultural iniciou-se
com a vinda de Dom João VI para o Brasil em 1808 e, até 1821, houve crescente
intercâmbio cultural através de contato com o estrangeiro, importação e comércio de livros,
revistas, jornais e implantação da imprensa nacional, criação das primeiras escolas
superiores, melhorias nas condições de vida, construções de museus, associações culturais
e desenvolvimento do gosto por manifestações artísticas como música e teatro. O País
ingressa, assim, em uma ruptura com o colonizador e passa a receber influências várias,
principalmente, da França.
Nesse clima de mudanças e rupturas, a literatura busca sua independência.
Tendo José de Alencar como seu principal destaque, o Romantismo início à busca por
um nacionalismo literário. Sua reação antilusa objetivava abandonar a imitação européia e,
para tanto, usa recursos como o nativismo, o indianismo e uma linguagem peculiar na
intenção de despertar uma consciência patriótica. Destacam-se: Fagundes Varela, Álvares
de Azevedo, Casimiro de Abreu, Castro Alves, Gonçalves Magalhães, Gonçalves Dias,
sendo esse o principal destaque, pois dá à sua poesia “um cunho particular, que é talvez sua
nota mais original, associando ao sentimento pitoresco, o poder emotivo e o sopro ardente
da inspiração dos grandes românticos, a esse admirável sentido clássico da sobriedade e do
equilíbrio” (AZEVEDO, 1971, p. 333). A imprensa tem, nesse período, a função de
difundir e debater os ideais lançados nas produções literárias.
Entretanto, é a partir de 1870 que ocorrem mudanças significativas no
panorama literário nacional. O culto às ciências, ao progresso e às correntes filosóficas cria
embates nos campos político-social-religioso do Brasil. São, pois, as questões servil,
56
religiosa e militar que procuram enquadrar-se ao espírito de um novo tempo que se
percebe:
De modo que tudo favoreceu aquela vasta revisão de valores e postulados
que iria colocar na primeira plana o pensamento ‘moderno’: as doutrinas
positivistas, ortodoxa e heterodoxa de Littré, o biologismo de Darwin, o
evolucionismo de Spencer, o determinismo de Taine, a concepção
histórica de Buckle, o monismo de Kant, Schopenhauer
e Haeckel.
(COUTINHO, 1968, p.193)
Toda essa agitação corpo a um movimento intelectual que busca
reformas e, para tanto, são criadas associações de proprietários, manifestações populares,
associações abolicionistas, militares, republicanas, literárias e outras. No entanto, é
importante ressaltar que essa mobilização é formada por grupos diferenciados em seus
níveis social, econômico e político. Logo, tinham interesses divergentes, pois
havia grupos decadentes, estacionários e ascendentes. O ponto de contato
entre grupos tão diferenciados era a partilha de uma experiência de
marginalização política: o bloqueio às instituições políticas
fundamentais, fruto da longa dominação conservadora. (ALONSO, 2002,
p. 100)
A autora também mostra que esses grupos queriam posições políticas
relevantes e, diante da falta de privilégios políticos (não econômicos!) passaram a atacar as
instituições e valores imperiais. Contudo, parece inegável, que apesar de todos esses
percalços, mudanças importantes ocorreram no âmbito literário.
São mudanças nítidas, principalmente, nos autores Machado de Assis,
Euclides da Cunha e Raul Pompéia. Com Machado de Assis, a literatura ganha aspectos
de universalidade. O escritor, com sua vasta produção, circulou entre Romantismo,
Realismo, Naturalismo, Parnasianismo e Simbolismo, todavia mostrou-se independente de
todos esses estilos. Para Bosi, Machado é “o ponto mais alto e mais equilibrado da prosa
realista brasileira” (1994, p.174). Carvalho acredita que “Sem dúvida, a obra de Machado
de Assis é subordinada a um tratamento universalizante e desde cedo progressivamente
independente de vinculação limitadora” (2004, p. 391). Já Euclides da Cunha
57
fixou, como ninguém, na sua obra, o colorido localista, as inspirações do
sertão, a fisionomia particular da nacionalidade. [...] escritor
eminentemente brasileiro, pelo sentido agudo da terra e da vida nacional,
saltando da razão e da arte pura para escutar melhor a voz do instinto da
raça, apanha, para compreendê-las, todos os seus conhecimentos e os
arrebata na corrente impetuosa de seu pensamento como o rio que
descreveu. (AZEVEDO, 1971, p. 353-354)
Quanto a Pompéia, a maioria dos críticos reconhece seu diferencial em
relação às demais produções de seu tempo. Favoráveis ou não, os críticos ressaltam as
peculiaridades da linguagem, do tema, da posição do narrador-autor, do aspecto caricatural
e irônico e às influências estéticas, que são motivos de controvérsias em relação à
classificação estética de O Ateneu.
Logo, o que se percebe é que, nessa busca por uma literatura que
identificasse e diferenciasse o País o que vinha ocorrendo desde Alencar são esses três
autores que a maioria dos críticos reconhece como donos de propostas inovadoras tais
como: o caráter universalizante, o nacionalismo e a linguagem diferenciada. São fatores
que superam a influência portuguesa e revelam a peculiaridade das produções nacionais do
século XIX. Tem-se, assim, uma literatura voltada mais para o contexto social brasileiro,
em outras palavras, nota-se a tendência de se produzir uma literatura, em que as
particularidades do meio, raça e história nacionais sejam identificadas um aspecto que é
enfatizado, posteriormente, nas obras representantes do Modernismo.
Essa tendência é notada, principalmente, a partir de 1870, quando o
movimento intelectual do País, influenciado pelas noções de cientificismo e progresso em
alta na Europa, cria novas estéticas Realismo, Naturalismo e Parnasianismo. São
movimentos que se entrecruzam e, por volta de 1890, entram em declínio dando lugar a
novos estilos: Simbolismo, Impressionismo e Modernismo. De acordo com Coutinho,
devido às diversas correntes estéticas, o século XIX é “uma época que se recusa a uma
periodização precisa e a mostrar nitidez de fronteiras entre os movimentos” (1968, p.180).
Essa falta de nitidez estética está presente na obra de autores como Euclides
da Cunha, Lima Barreto, Machado de Assis e Raul Pompéia. Machado de Assis e Pompéia,
por exemplo, comprovam que, dada à diversificação estética do campo literário no final do
século XIX, suas obras não podem ser reduzidas a um único denominador.
Em termos cronológicos, esses autores estão inseridos em um período de
quarenta anos (de 1880 a 1922, aproximadamente), em que a literatura apresenta um
58
crescente envolvimento com as questões político-sociais da época. É, pois, o tempo de
incertezas, da inquietude moderna, da inovação na ciência, dos ideais estéticos e dos
embates entre os discursos monárquico e republicano. Esses tornaram-se a matéria-prima
dos escritores e indicam um processo literário em transição no País. Pode-se concluir que
todas as épocas históricas e períodos literários são transitórios e não momento histórico
estacionário. Porém, as transformações ocorridas no final do século XIX parecem
importantes, uma vez que serviram como âncora e nortearam os objetivos dos artistas
modernos.
No que tange à obra O Ateneu, uma incursão pelo ambiente escolar retratado
na obra possibilita a verificação da presença de um projeto identitário vinculado às
mudanças em circulação no País. Como será abordado no próximo capítulo, o projeto
político-pedagógico do colégio pauta-se em um discurso hegemônico que cala as
diferenças presentes em o Ateneu. Assim, por meio de recursos como a disciplinarização e
a normatização, o Ateneu é visto como um microcosmo ou uma representação metonímica
do País.
59
2. O PARADOXO DO SISTEMA ESCOLAR: MULTICULTURALISMO E
HOMOGENEIZAÇÃO
2.1 O ATENEU SOB A ÓTICA DOS ESTUDOS CULTURAIS
Os Estudos Culturais, por pertencerem a um campo de estudo que busca
perceber a diversidade nas relações humanas, podem ser a bússola para a compreensão das
relações de poder presentes em O Ateneu. Na obra, Sérgio, o protagonista, circula dentro
do internato retratado na obra e, com seu olhar, aqui e acolá, expõe a pluralidade desse
espaço ao dar visibilidade aos erros, às angústias, opressões, histórias de vidas e às
diferenças que envolvem a todos.
Seu olhar expõe a complexidade e o paradoxo do ambiente escolar: a escola,
concomitantemente, visa a despertar no sujeito a autonomia e também a homogeneização e
a construção de um projeto coletivo. Isso mostra que as instituições e a educação são
produções humanas, sociais e culturais. Nelas o conflito constitui pano de
fundo permanente; fonte de dificuldades e sofrimento, mas também do
qual nascem o questionamento, a mobilização do instituído pelo
instituinte, o descobrimento de novas formas e de novas matizes de
sentido. (GARAY, 1998, p. 120)
Os conflitos e as novas matizes de sentido podem ser vistos por meio do
confronto entre o discurso oficial e o do narrador. Confronto que possibilita verificar como
a instituição Ateneu apropria-se de um discurso homogeneizante e legitimador dos
conceitos de cultura, identidade, saber e poder conceitos que não contemplam as
individualidades e a diversidade de diferenças dos sujeitos do contexto, não dão
visibilidade e reconhecimento aos alunos e subestimam-nos ao apoiarem-se em verdades
dicotômicas e idealizadas por um grupo dominante.
Aristarco, o diretor da instituição, é representante de um grupo dominante
que visa à perpetuação do poder escolar e, também, do Estado: “trinta anos de tentativas e
resultados, esclarecendo como um farol diversas gerações agora influentes no destino do
60
país!” (POMPÉIA, 1992, p. 26). Por meio de seu projeto educacional, Aristarco busca a
formação de gerações responsáveis em perpetuar seus ideais e os do País.
Esse caminho trilhado pelo colégio Ateneu legitima a finalidade da
instituição, a saber: “Os fins se inspiram em princípios e valores que constituem o
fundamento institucional. Idéias, valores, imaginários, utopias que, traduzidas em metas,
projetos, planos, práticas, impulsionados e sustentados por forças sociais, buscam instituir-
se”. (GARAY, 1998, p. 130). Mas, o discurso do ‘fundamento institucional’, as convicções
arraigadas na instituição Ateneu e a construção de seus sentidos são questionados e
relativizados por Sérgio, narrador e personagem.
Seu posicionamento em o Ateneu propicia a investigação das relações de
poder a partir dos discursos em conflito, ou seja, pode-se ver como a instituição escolar
está, diretamente, ligada à dimensão do poder. Ao subverter o discurso escolar e mostrá-lo
em suas incoerências e falta de linearidade, o narrador oferece possibilidades de se
repensar a instituição Ateneu. Nesse aspecto, a obra O Ateneu está relacionada aos Estudos
Culturais, uma vez que esses se afastam
da alta cultura e argumentam que todas as formas de produção cultural
precisam ser estudadas em relação a outras práticas culturais e às
estruturas sociais e históricas. Os Estudos culturais estão, assim,
comprometidos com o estudo de todas as artes, crenças, instituições e
práticas comunicativas da sociedade. (NELSON et al, 1995, p.13)
Além do diálogo com outras práticas sociais e culturais de uma sociedade,
os Estudos Culturais têm outras características que permitem repensar o papel da educação
representado em O Ateneu. O quadro a seguir, estabelece a oposição entre as características
que colocam numa situação antagônica os Estudos Culturais e o colégio Ateneu:
Características dos Estudos Culturais:
Constam na obra O Ateneu:
- percepção da diversidade nas relações
humanas;
- criação de possibilidades de diálogo para
o exercício de uma vida democrática;
- relacionam diferenças culturais, poder e
história;
- formas fixas de identificações; identidade
vista como algo fixo e estagnado;
- discurso homogeneizante que dificulta a
percepção das diferenças;
- corporificações das formas culturais
dominantes consideradas válidas e ideais;
61
- a linguagem está associada ao poder e, por
isso deve ser vista em seus constantes
reposicionamentos;
- reconhecem, no contexto escolar, a cultura
e a experiência do aluno;
- preocupam-se com a produção, recepção,
os usos dos variados textos e suas relações
sociais com a conceituação do eu;
- reconhecem a importância de se verificar
a história com suas rupturas, falta de
linearidade, memórias excluídas,
silenciadas, subjugadas pelo discurso
oficial;
- a pedagogia é vista como uma produção
cultural com responsabilidade ética e
asserções sobre as memórias sociais e
legitimação de imagens e símbolos sociais.
- a linguagem é usada para moldar
comportamentos, identidades, assegurar
formas de autoridades, marginalizar
comportamentos, incluir, excluir e silenciar,
privilegiar grupos, definir padrões de
comportamento e fortalecer relações de
poder;
- o silenciamento de culturas e
experiências não condizentes com as
políticas e objetivos escolares;
- mantém a diversidade escolar sob o
‘suposto’ manto da padronização; o ‘eu’ é
unificado dentro de um todo coerente;
- o discurso oficial mostra as relações e o
cotidiano de modo linear, homogêneo, livre
de embates e confrontos;
- a pedagogia visa aos interesses
particulares, não questiona e não relativiza
o saber e a memória social a fim de manter
os padrões almejados.
Portanto, os Estudos Culturais são possível caminho para se questionar o
papel desempenhado por educandos e educadores no contexto escolar de O Ateneu e
permite observar “quem produz uma dada linguagem, para quem produz, como a produz e
quem a domina. Tudo isso coloca a questão da luta pelo direito à expressão e da luta dos
dominados pelo direito de se apresentar na cena histórica como sujeitos” (VIEIRA et al,
1989, p. 20).
A fim de que sejam reconhecidas outras possibilidades de existências, é
preciso evidenciar as diferenças em um campo cultural. E, na obra O Ateneu, as diferenças
aparecem a partir do momento em que se percebe a voz de um narrador que, embora
negado em um primeiro momento, foi superando as limitações impostas e tornou-se assim,
sujeito de sua própria história. Uma das formas de percebê-lo como sujeito é repensar o
conceito de identidade que se pode apreender no universo de O Ateneu.
62
2.2 O PROJETO IDENTITÁRIO EM O ATENEU
Por entender o espaço escolar como uma representação do poder vigente, de
legitimação de conhecimentos e com capacidade de valorizar e contribuir com valores,
sejam eles quais forem, em O Ateneu é possível observar a relação da linguagem com o
poder e como se a relação entre construção de uma identidade unificada e sujeitos com
formações várias. Assim, a linguagem é vista como aquela que
emprega o poder em suas conexões com o campo da subjetividade, ou
seja, ela oferece identificações e noções de sujeitos por meio das formas
de conhecimentos, valores, ideologias e práticas sociais que disponibiliza,
em relações desiguais de poder, para diferentes setores das comunidades
global e nacional. Com força pedagógica, a cultura reivindica certas
histórias, memórias e narrativas. (GIROUX, 2003, p. 19)
Toda essa força pedagógica, que seleciona alguns fatos e omite outros, tem
por finalidade a produção de uma identidade homogênea, o que torna difícil a percepção
das complexas relações humanas, das inter-relações, da diversidade e do leque de
significados que as relações podem produzir. Identidade é, pois, enxergada como algo
estagnado, imutável e fixo, assim, “quando vamos discutir se as identidades nacionais
estão sendo deslocadas, devemos ter em mente a forma pela qual as culturas nacionais
contribuem para ‘costurar’ as diferenças numa única identidade” (HALL, 2004, p. 65).
A tentativa de se ‘costurar’ as diferenças em uma única identidade está
associada ao desejo de se instituir um projeto identitário para o País. É uma visão que
interessa ao poder instituído, que permite maior dominação e a imposição dos ideais
considerados adequados. Como representação metonímica do Brasil, o colégio Ateneu
funciona como um aparelho do Estado a serviço da perpetuação dos vários interesses
sociais e políticos que interessam à classe detentora do poder.
Portanto, a função escolar que pode ser subentendida em o Ateneu é a de
disciplinar o indivíduo. Assim, são caladas as vozes que não interessam ao instituído ou ao
que se quer instituir e vigora o acobertamento de uma diversidade que a todo o instante
teima em gritar e confirma uma prática pedagógica ancorada politicamente.
63
Durante o tempo da visita, não falou Aristarco senão das suas lutas,
suores que lhe custava a mocidade e que não eram justamente apreciados.
“Um trabalho insano! Moderar, animar, corrigir esta massa de
caracteres, onde começa a ferver o fermento das inclinações; encontrar e
encaminhar a natureza na época dos violentos ímpetos; amordaçar
excessivos ardores; retemperar o ânimo dos que se dão por vencidos
precocemente; espreitar, adivinhar os temperamentos; prevenir a
corrupção; desiludir as aparências sedutoras do mal; aproveitar os
alvoroços do sangue para os nobres ensinamentos; prevenir a depravação
dos inocentes; espiar os sítios obscuros; fiscalizar as amizades; desconfiar
das hipocrisias; ser amoroso, ser violento, ser firme; triunfar dos
sentimentos de compaixão para ser correto; proceder com segurança, para
depois duvidar; punir para pedir perdão depois... Um labor ingrato,
titânico, que extenua a alma, que nos deixa acabrunhados ao anoitecer de
hoje, para recomeçar com o dia de amanhã... (POMPÉIA, 1992, p. 29)
(grifo nosso)
Numa análise superficial, a descrição de Aristarco sobre seu papel
pedagógico fornece uma idéia de como a realidade do aluno é percebida e restrita a um
único quadro de referências em que se pressupõe a disciplinarização, hieraquização, a
perpetuação de controle dos cidadãos e da desigualdade social, bem como a coibição de
possíveis discursos e saberes contrários ao que se quer instituir.
Assim, é preciso desmistificar o que se apresenta como coerente e linear e
buscar as lutas, resistências e os mecanismos de exclusão que foram suprimidos. Na obra,
essa função cabe ao narrador adulto Sérgio, que desmantela a visão etnocêntrica de
Aristarco, mostrando que seu discurso está para um lado e sua prática, para outro. Na
continuação da descrição de seu trabalho, Aristarco afirma: “Ah! meus amigos, conclui
ofegante, não é o espírito que me custa, não é o estudo dos rapazes a minha preocupação...
É o caráter! Não é a preguiça o inimigo, é a imoralidade!”
(POMPÉIA, 1992, p. 29).
Entretanto, de acordo com o narrador Sérgio:
Sua diplomacia dividia-se por escaninhos numerados, segundo a
categoria de recepção que queria dispensar. Ele tinha maneiras de todos
os graus, segundo a condição social da pessoa. As simpatias verdadeiras
eram raras. No âmago de cada sorriso, morava-lhe um segredo de frieza
que se percebia bem. E duramente se marcavam distinções políticas,
distinções financeiras, distinções baseadas na crônica escolar do
discípulo, baseadas na razão discreta das notas do guarda-livros.
(POMPÉIA, 1992, p. 28)
64
Vê-se que há uma contradição entre o trabalho pedagógico descrito por
Aristarco e sua prática. O seu objetivo em fazer de seus alunos uma “massa de caracteres”
(POMPÉIA, 1992, p. 29) é impossibilitado devido à pluralidade e à diversidade que a
caracterizam e não permitem a homogeneização aspecto percebido quando se
acompanha o olhar do narrador ao entrar na sala de aula pela primeira vez:
Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de tipos
que me divertia. O Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos
revoltos, motilidade brusca e caretas de símio palhaço dos outros,
como dizia o professor; o Nascimento, o bicanca, alongado por um
modelo geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como uma foice; o
Álvares, moreno, cenho carregado, cabeleira espessa e intonsa de vate de
taverna, violento e estúpido, que Mânlio atormentava, designando-o para
o mister das plataformas de bonde, com a chapa numerada dos
recebedores, mais leve de carregar que a responsabilidade dos estudos; o
Almeidinha, claro, translúcido, rosto de menina, faces de um rosa
doentio, que se levantava para ir à pedra com um vagar lânguido de
convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido, fortíssimo em tabuada.
(POMPÉIA, 1992, p. 31) (grifo nosso)
As diferenças não afloram apenas no aspecto físico, mas também
psicológico (veja grifos) e revelam o caráter flutuante de identidade. Para Bernd,
identidade deve ser enfocada dentro de um conceito de deriva e movência, ou seja, “pensa-
se identidade não como o fortalecimento de uma raiz única, mas como rizoma, ou seja, a
raiz multiplicada que se abre em busca do outro, aceitando o múltiplo e o diverso como
base de (re)elaboração identitária” (BERND, 2003, p. 26).
Ao ignorar essas diferenças, Aristarco busca inserir todos numa mesma
experiência de vida, o que está relacionada à formação de uma identidade nacional.
Bauman (2005) explica o conceito de identidade nacional pode ser uma ficção, pois se
imagina uma realidade e a partir da coerção, convencimento, segregação, seleção e
agregação traçam-se discursos de verdades que legitimam essa identidade ‘dita’ nacional.
Todavia, isso não é possível, uma vez que é um equívoco pensar identidade
como algo fixo, coeso e sólido posição que a coloca numa camisa de força. De acordo
com o autor, as identidades são flutuantes, pois estamos num ambiente líquido
7
e, por isso,
7
“a principal força motora por trás desse processo tem sido desde o princípio a acelerada
‘liquefação’ das estruturas e instituições sociais. Estamos agora passando da fase ‘sólida’ da
modernidade para a fase ‘fluida’. E os ‘fluidos’ são assim chamados porque não conseguem manter
65
podemos fazer nossas escolhas ou escolher alternativas lançadas pelos que nos cercam.
Assim:
Buscamos, construímos e mantemos as referências comunais de nossas
identidades em movimento – lutando para nos juntarmos aos grupos
igualmente velozes que procuramos, construímos e tentamos manter
vivos por um momento, mas não por muito tempo. (BAUMAN, 2005, p.
32)
Portanto, se o ambiente é líquido, a identidade do homem passa a ser
flutuante. Mas essa é uma questão que ganhou força recentemente, quando se começou
pensar que “língua e cultura estão no coração dos fenômenos de identidade. A noção de
identidade encontra sucesso crescente no campo das ciências sociais desde a década de
1970” (WARNIER, 2003, p.16). É, pois, essa noção de sujeito sociológico que mostra o
quanto o homem e o seu meio são complexos.
A noção de sujeito sociológico refletia a crescente complexidade do
mundo moderno e a consciência de que este núcleo interior do sujeito não
era autônomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com ‘outras
pessoas importantes para ele’, que mediavam para os sujeitos os valores,
sentidos e símbolos – a cultura – dos mundos que ele/ela habitava.
(HALL, 2004, p. 11)
Ao ser enxergada por esse ângulo, a identidade passa a ser vista como
provisória, móvel, definida historicamente, impossível de ser colocada numa fachada
sólida ou, como elucida Bauman: “no admirável mundo novo das oportunidades fugazes e
das seguranças frágeis, as identidades ao estilo antigo, rígidas e inegociáveis, simplesmente
não funcionam” (BAUMAN, 2005, p. 33).
A transformação pela qual passou o narrador Sérgio pode exemplificar essa
mobilidade da identidade. Primeiramente, mostrado como protegido no ambiente
doméstico: “O internato! Destacada do conchego placentário da dieta caseira, vinha
próximo o momento de se definir a minha individualidade” (POMPÉIA, 1992, p. 14).
Depois, já no internato, apresenta o caráter móvel da identidade:
a forma por muito tempo e, ao menos que sejam derramados num recipiente apertado, continuam
mudando de forma sob a influência até mesmo das menores forças.” (BAUMAN, 2005, p. 57)
66
Aristarco, alargando pausas dramáticas de comoção, ler, claro, severo
[...]quando ouvi: “O Sr. Sérgio tem degenerado...”
Eu havia figurado já na gazetilha do Ateneu com algumas notas de
louvor; guardou-se a sensação para a nota má. O diretor olhou-me
sombrio. No fundo do silêncio comum do refeitório, cavou-se um silêncio
mais fundo, como um poço depois de um abismo. Senti-me devorado por
este silêncio hiante.
(POMPÉIA, 1992. p. 56)
Vê-se que ao mostrar-se inapto ao meio escolar é punido por todos diretor
e alunos. Todavia, como afirma Hall, a identidade caracteriza-se pelo interacionismo entre
o eu e a sociedade: “O sujeito ainda tem um núcleo ou uma essência interior que é o ‘eu
real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os mundos culturais
‘exteriores’ e as identidades que esses mundos oferecem.” (HALL, 2004, p. 11).
Confirmando essa idéia de idéia de identidade mutável, Sérgio mostra sua capacidade de
metamorfosear a identidade e assim, parece assumir a identidade do colégio:
Dias depois, no colégio, eu era um pequeno potentado. Derrubei o
Sanches; consegui revogação da disciplina das espadas; reconquistei a
benevolência de Mânlio; levantei a cerviz! Desembaraçado do arbítrio
pretensioso de um vigilante, o trabalho agradou-me. Um conselho de casa
afirmou-me que havia a nobre opinião de Aristarco e a opinião ainda
melhor da cartilha, mas havia uma terceira — a minha própria, que se não
era tão boa, tão abalizada como as outras, tinha a vantagem alta da
originalidade. Com uma palavra fez-se um anarquista.
(POMPÉIA, 1992,
p. 76)
Pode-se concluir que, ao ser exposto a uma nova comunidade, em que são
apresentados princípios e idéias diferentes, o indivíduo acaba desenvolvendo uma idéia de
pertencimento, podendo ser essa provisória e frágil, que a dinâmica da sociedade é
formada através das ações de sujeitos e de suas relações sobre o seu meio.
O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos,
identidades que não são unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente. Dentro
de nós identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções,
de tal modo que as nossas identificações estão sendo continuamente
deslocadas. (
Hall,
2004, p. 13)
Por intermédio de discursos moralistas, religiosos, disciplinares, a
instituição executa um de seus papéis: a instância da instituição em si, o que implica:
67
Constituir-se, necessita reprimir a diferenciação individualizante, limitar
o reconhecimento dos outros a um outro análogo, estruturado por um
modelo comum. Essa necessidade nas instituições educativas instaura um
paradoxo: a instituição se propõe a educar, formar os indivíduos,
respeitando e promovendo a individuação, mas, simultaneamente, sua
condição de existência é a negação da individuação. (GARAY, 1998, p.
122)
Logo, fica evidente que, ainda que haja uma concepção de identidade fixa e
a tentativa de calar e homogeneizar, por outro, a resistência, podendo essa ser sutil
como, por exemplo, a indiferença mostrada pelo narrador durante a missa dominical:
Íamos à missa nos domingos. Todos abriam os livrinhos, para que o
diretor os visse atentos. Eu não abria o meu. Deixava apenas fugir-me o
espírito para o alto e aderir à abóbada como as decorações sagradas,
ajustar-se estreitamente nos detalhes da arquitetura do templo como o
ouro sutil dos douradores, conservar-se em cima, ávido ainda de
ascensão, ambicioso de céu como a baforada dos turíbulos. (POMPÉIA,
1992, p. 71)
Portanto, nesse universo estético de O Ateneu, Aristarco representa o
interesse da ordem social dominante. Por meio de sua instituição escolar, espaço
legitimado, o mosaico de que é formado o ser humano sofre tentativa de sobrepujança, com
intuito de se impor a identidade almejada. Isso faz de o Ateneu um espaço de violentas
controvérsias multiculturais, ou seja, um espelho deformado da sociedade, um
microcosmo, onde o poder não ocorre de forma monolítica, mas ramificado.
2.3 O ATENEU: ESPAÇO DE RAMIFICAÇÃO DO PODER
O Ateneu pode ser visto como um espaço onde regulamentação da vida
social, das relações interpessoais, a troca de uma perspectiva multicultural por uma
monocultural, o que gera um embate de forças e faz do Ateneu um exemplo de microcosmo
da sociedade elitizada do século XIX.
68
O Ateneu é, sem sombra de dúvida, uma espécie de microcosmo não
da vida íntima do escritos, mas também da vida da nação brasileira de sua
época, o registro de uma breve panorâmica dos problemas políticos e
sociais do Brasil, durante a última parte do culo XIX. (
HEREDIA,
1979, p. 11).
Se para Heredia o Ateneu é um microcosmo, para o narrador também o era:
Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu.
Coragem para a luta.’ [...] Com esta crise do sentimento casava-se o
receio que me infundia o microcosmo do Ateneu. Tudo ameaça os
indefesos. [...] A sala geral do estudo, comprida, com as quatro galerias
de carteiras e a parede oposta de estantes e a tribuna do inspetor, era um
microcosmo de atividade subterrânea. (POMPÉIA, 1992, p. 13- 111)
(grifo nosso)
O colégio Ateneu como microcosmo é uma visão recorrente na obra. Sob
essa perspectiva, têm-se os discursos do Dr. Cláudio, reveladores de uma ferrenha crítica
social.
Falava uma vez sobre educação.
Discutiu a questão do internato. Divergia do parecer vulgar, que o
condena. É uma organização imperfeita, aprendizagem de corrupção,
ocasião de contato com indivíduos de toda origem? O mestre é a tirania, a
injustiça, o terror? O merecimento não tem cotação, cobrejam as linhas
sinuosas da indignidade, aprova-se a espionagem, a adulação, a
humilhação, campeia a intriga, a maledicência, a calúnia, oprimem os
prediletos do favoritismo, oprimem os maiores, os mais fortes, abundam
as seduções perversas, triunfam as audácias dos nulos? A reclusão
exacerba as tendências ingênitas? Tanto melhor: é a escola da sociedade
.
(POMPÉIA, 1992, p.162)
A personagem é ambígua. Por intermédio do Dr. Cláudio, Pompéia mostra
seus ideais republicanos e a necessidade de derrubar os paradigmas monárquicos
ambigüidade que pode ser explicada:
existe como elemento apenas conceitual na obra, encarregado sempre de
levar adiante, em forma de oratória, aquilo que o próprio entrecho do
romance queria comunicar. [...] Mas não nos esqueçamos de que as
palavras do Dr. Cláudio possuem um valor ambíguo: ele era professor de
Ateneu, um porta-voz também dos interesses de Aristarco. Mas é a
própria ambigüidade de suas falas que expressa por inteiro o dualismo de
69
Pompéia. Daí a posterior explosão do incêndio do colégio. (BARBOSA,
2000, p. 15-17)
A relação macrocosmo e microcosmo pode ser vista no desfecho
simbólico mostrado por Pompéia o incêndio do colégio. Sua destruição, além de mostrar
que em ambos sistemas opressores interligados, foi antecipada nos discursos do Dr.
Cláudio ao criticar o sistema educacional, mostrando-o como microcosmo e reflexo da
sociedade:
Ensaiados no microcosmo do internato, não mais surpresas no grande
mundo lá fora, onde se vão sofrer todas as convivências, respirar todos os
ambientes [...] E não se diga que é um viveiro de maus germes seminário
nefasto de maus princípios, que hão de arborescer depois. Não é o
internato que faz a sociedade; o internato a reflete. A corrupção que ali
viceja, vai de fora. Os caracteres que ali triunfam, trazem ao entrar o
passaporte do sucesso, como os que se perdem, a marca da condenação.
(POMPÉIA, 1992, p.162-163)
Ainda de acordo com a personagem, nesse microcosmo, envolvendo tanto
alunos como a equipe docente, fazem-se presentes a corrupção, humilhação e tirania: “Os
professores sabiam. À nota do Franco, sempre má, devia seguir-se especial comentário
deprimente, que a opinião esperava e ouvia com delícia, fartando-se de desprezar”
(POMPÉIA, 1992, p.37); espionagem: “Levava as aparições às aulas, surpreendendo
professores e discípulos. Por meio deste processo de vigilância de inopinados, mantinha no
estabelecimento por toda a parte o risco perpétuo do flagrante como uma atmosfera de
susto” (POMPÉIA, 1992, p. 62); adulação:
Venâncio não se perturbou. Abriu um guarda-chuva para não ser
inteiramente desmentido pelas goteiras e continuou, na guarita, a falar
entusiasticamente ao sol, a limpidez do azul. Não querendo desprestigiar
o estimável subalterno, Aristarco fingia acreditar no improviso e,
indiferente, deixava cair o aguaceiro.(
POMPÉIA, 1992, p. 132)
terror:
De repente vimos assomar à porta, que dominava o pátio sobre a escada
de cantaria, um homem coberto de sangue. Um grito de horror escapou a
todos. O homem precipitou-se em dois pulos para o recreio. Trazia um
70
ferro na mão gotejando vermelho, uma faca de lamina estreita ou um
punhal.“Matou! matou!” gritavam da copa; “Pega o assassino!”
(POMPÉIA, 1992, p. 79)
intriga, maledicência, calúnia:
A palestra corria desassombrada.
Deitavam-se uns a uma cama, outros cercavam agrupados nas camas
próximas e atacavam os assuntos:
No salão dos médios:
“D. Ema... D. Ema... não se murmura à toa... Reparem na maneira de
falar do Crisóstomo... Tem motivo, um rapagão... Palavra que os apanhei
sozinhos, juntinhos, conversando, a distancia de um beijo...” (POMPÉIA,
1992, p. 114)
injustiça sobre Franco:
Três anos havia que o infeliz, num suplício de pequeninas humilhações
cruéis, agachado, abatido, esmagado, sob o peso das virtudes alheias mais
que das próprias culpas, ali estava, cariátide forçada no edifício de
moralização do Ateneu, exemplar perfeito de depravação oferecido ao
horror santo dos puros. (POMPÉIA, 1992, p. 37)
Ou, usando as palavras da personagem Dr. Cláudio: “Tanto melhor: é a escola da
sociedade” (
POMPÉIA, 1992,
p. 162).
Diante desse quadro tão negativo retratado pelo narrador Sérgio, é preciso
questionar: como a escola consegue manter-se como espaço legitimado? Sendo ela um
microcosmo, é legitimada por discursos oficiais, nela há a difusão e divulgação dos
‘discursos da verdade’, sendo esses centrados em discursos científicos e amparados pelos
direitos jurídico e soberano. É a escola detentora de um saber legitimado, funcionando
como uma das ramificações do poder do Estado. Mas o que é o poder?
O poder está delimitado por efeitos de verdade, isto é, liga-se a formas de
saber. Foucault (1979, p.167-177) explica que há dois tipos de saber: o saber dominado e o
saber institucionalizado (erudito, exato e sistematizado). Aquele se opõe a este e é
entendido como:
os conteúdos históricos que foram sepultados, mascarados em coerências
funcionais ou em sistematizações formais.[...] os saberes dominados são
estes blocos de saber histórico que estavam presentes e mascarados no
71
interior dos conjuntos funcionais e sistemáticos e que a crítica pode fazer
reaparecer, evidentemente através do instrumento da erudição. [...] uma
série de saberes que tinham sido desqualificados como não competentes
ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente
inferiores, saberes abaixo do nível requerido de conhecimento ou de
cientificidade. (FOUCAULT, 1979, p. 170)
Portanto, por meio da tirania de discursos totalizantes, o saber erudito,
legitimado e oficial procura desqualificar, deslegitimar e sepultar o saber dominado.
Usando recursos como a imposição de um discurso teórico, unitário, formal e científico
a intenção de mascarar as lutas, as contradições e as oposições de um contexto histórico.
Exemplo são os heróis citados por Sérgio quase todos relacionados ao Império e
mostrados de forma idílica:
Cada página era um encanto, prefaciadas pela explicação complacente do
colega. Graças à habilidade das suas apresentações, apertei a mão aos
mais truculentos figurões do passado, aos mais poderosos. Antônio
Salema, o cruel, sorriu-me; o Vidigal foi gentil; D. João VI deixou-me
rapé nos dedos. Conheci de vista Mem de Sá, Maurício de Nassau, vi
passar o herói mineiro, calmo, mãos atadas como Cristo, barba abundante
de apóstolo das gentes, um toque de sol na fronte lisa e vasta, escavada
pelo destino para receber melhor a coroa do martírio. A história santa
revelou-me este épico, quem o diria? — o cônego Roquette! (POMPÉIA,
1992, p. 45)
Por isso, Foucault propõe uma genealogia dos saberes, ou seja,
Delineou-se assim o que poderia chamar uma genealogia, ou melhor,
pesquisas genealógicas múltiplas, ao mesmo tempo redescoberta exata
das lutas e memórias dos combates. E esta genealogia, como
acoplamento do saber erudito e do saber das pessoas, só foi possível e só
pôde tentar realizá-la à condição de que fosse eliminada a tirania dos
discursos englobantes com suas hierarquias e com privilégios da
vanguarda teórica. (FOUCAULT, 1979, p. 171)
Um projeto genealógico combate os efeitos do poder e saber dos discursos
científicos e revela o que esses querem entronizar, os sujeitos que serão deixados para a
história e os saberes capazes de lutas e de oposições ao instituído. A genealogia procura
analisar o poder, sendo esse entendido como “uma relação de força [...], como
72
essencialmente repressivo. O poder é o que reprime a natureza, os indivíduos, os instintos,
uma classe” (FOUCAULT, 1979, p. 175).
Assim, no colégio o Ateneu, espaço de poder, são travados confrontos e
lutas, às vezes silenciosos. Logo, é um lugar delimitador do poder e onde as pessoas estão
inscritas em práticas discursivas, portanto, sujeitas a constantes reposicionamentos, que
suas identidades são influenciadas por discursos impregnados de poder e de efeitos de
verdades. Cabe ainda a pergunta: como os discursos de verdades podem surtir efeitos tão
poderosos? Primeiramente, a escola é o espaço de institucionalização do poder e,
juridicamente esse poder é normativo, o que significa:
A normativa institucional prescreve e proscreve, premia e castiga.
Regula, mas não resolve os conflitos. Observamos que ali onde vazio
normativo ou perda de poder regulador das regras por perda da
legitimidade, incrementam-se os conflitos; desse modo, quando se
conseguem entrar em, 1998 acordo, se impõe a necessidade de
normatizar. (
GARAY
, p. 126).
Sendo esse um poder institucional, a norma legitima a instituição, que a
relação entre instituição e direito é este normatizar aquela e criar leis para o coletivo. Em O
Ateneu, as normas privilegiam a moral em detrimento à instrução, além de normatizarem
as manifestações de apreço ao diretor:
Outros quadros vidraçados exibiam sonoramente regras morais e
conselhos muito meus conhecidos de amor à verdade, aos pais, e temor
de Deus, que estranhei como um código de redundância. Entre os
quadros, muitos relativos ao Mestre os mais numerosos; e se
esforçavam todos por arvorar o mestre em entidade incorpórea,
argamassada de pura essência de amor e suspiros cortantes de sacrifício,
ensinando-me a didascalolatria que eu, de mim para mim, devotamente,
jurava desempenhar à risca. (POMPÉIA, 1992, p. 28-29)
Como conseqüência disso, a escola busca o respeito e a valorização da ‘sua
norma’, porém essas são impostas sem que o aluno tenha uma atitude reflexiva sobre as
diferenças e causas dos problemas que envolvem o ser humano em essência, o que é
válido para o colégio, é para todos. Dessa forma, as normas escolares são alçadas como
panacéias para todos os males. Isso possibilita aos indivíduos reconhecerem-se como
membros de uma cultura, além, é claro, de coibir conflitos, embates e transgressões,
73
porém, esses não são eliminados do contexto. O confronto entre Aristarco e Sérgio
comprova a falácia das normas:
Aristarco veio sobre mim. Que explicasse a briga! Eu estava como o
adversário, empoeirado e sujo como de rolar sobre escarros.
Respondi-lhe com violência.
“Insolente!” rugiu o diretor. Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a
estalar os botões, com a outra pela nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu.
“Desgraçado! desgraçado, torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente!
Confessa-me tudo ou mato-te.”
Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a
excitação do primeiro combate; não podia olhar conveniências de
respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou-me ao chão. E, modificando o tom, falou: “Sérgio!
ousaste tocar-me!” (POMPÉIA, 1992, p. 136)
Portanto, como explica Foucault, o direito não existe apenas no âmbito
jurídico, mas é também uma relação de dominação e sujeição dentro de uma sociedade, ou
seja, é um instrumento de dominação: “por dominação não entendo o fato de uma
dominação global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre outro,
mas as múltiplas
formas de dominação que podem se exercer na sociedade” (FOUCAULT, 1979, p. 181).
Se há múltiplas formas de dominação é porque o poder possui ramificações.
Foucault explica-o: não é central e ultrapassa o campo jurídico; ele se em práticas reais
e efetivas, num contínuo processo de sujeição; não é homogêneo, mas circula e funciona
em cadeia, em rede, passa pelos indivíduos, que podem exercer ou sofrer os efeitos do
poder; não é exercido de cima para baixo, mas é ascendente. Por isso, é preciso examinar,
partindo de baixo, como funcionam os mecanismos de controle as técnicas e táticas de
dominação, ou seja, verificar os mecanismos de exclusão, legitimação, vigilância e as
razões que levam à naturalização de um posicionamento em detrimento a outro.
Em O Ateneu, as notas escolares, por exemplo, são recursos usados para
expor o aluno ou ainda, funcionam como um poderoso meio de dominação, legitimação e
exclusão. Por meio delas, pode-se ver o subjetivismo da escola: “Os professores já sabiam.
À nota de Franco, sempre má, devia seguir-se especial comentário deprimente, que a
opinião esperava e ouvia com delícia, fartando-se de desprezar” (POMPÉIA, 1992, p. 37).
Vê-se que em O Ateneu, predomina o modelo classificatório de avaliação e, notas
registradas em livros passam a ser o veredicto oficial sobre a capacidade do aluno:
74
A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça do
arbítrio, não era ainda a cafua, asilo das trevas e do soluço, sanção das
culpas enormes. Era o Livro das notas. [...] Era o nosso jornalismo. Do
livro aberto, como as sombras das caixas encantadas dos contos de
maravilha, nascia, surgia, avultava, impunha-se a opinião do Ateneu.
Rainha caprichosa e incerta, tiranizava essa opinião sem corretivo como
os tribunais supremos. O temível noticiário, redigido ao sabor da justiça
suspeita dos professores, muita vez despedidos por violentos, ignorantes,
odiosos, imorais, erigia-se em censura irremissível de reputações.
(POMPÉIA, 1992, p. 54 -55) (
grifo nosso)
Portanto, a nota é usada como meio de exclusão e coerção, basta observar a
adjetivação: ‘terrível’, ‘temível’. Como mecanismo coercitivo, ultrapassa o campo jurídico
e é colocado em xeque pelo próprio autor, que a ‘justiça suspeita’ é feita por mestres de
conduta questionável.
Atualmente o poder é sutil, não se unicamente na forma de extração de
bens e riquezas, não é exercido sobre a terra e seus produtos ou está centrado na figura de
um soberano, como o era até o século XVIII e parte do século XIX. Hoje, ele é disciplinar,
centrado nos corpos, tem gasto mínimo e visa eficiência máxima. Porém, nas sociedades
modernas, direito disciplinar e direito soberano coexistem. Essas duas características estão
interligadas, embora a primeira esteja no âmbito do discurso e a segunda, no campo do
direito jurídico, o que não impede que o direito da soberania invada o campo do direito
disciplinar e vice-versa.
Em o Ateneu, microespaço, o direito soberano está centrado na figura de
Aristarco, que representa, num macroespaço, as relações governamentais, o império e suas
aspirações. A Aristarco foi delegado um poder, sendo esse amparado por sistemas jurídicos
ou por uma legislação. Todavia, isso não o impede de exercer o direito disciplinar, que é
alheio à lei.
Quando a coisa não dava para cóleras, Aristarco limitava-se a sublinhar
com uma ponderação qualquer sentença catedrática; ora uma exclamativa
de espanto, ora uma ameaça, ora um insulto vivo e breve ora um conselho
amortalhado em fúnebre dó. Às vezes enlaçava com dois dedos o menino
pela nuca e o voltava, tremente e submisso, para o colégio atento,
oferecendo-o às bofetadas da opinião: ‘Vejam esta cara...’A criança
lívida, fechava os olhos. (POMPÉIA, 1992, p. 56)
O trecho acima corrobora a presença do direito disciplinar, isto é, aquele
que não está nas normas jurídicas, mas nos discursos, que normalizam e, de maneira quase
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silenciosa, fazem a engrenagem do poder funcionar, disciplina os corpos e mentes e parece
natural. É o discurso normalizador, presente na organização e prática escolar. Isso torna o
colégio Ateneu um espaço de conflitos e constantes confrontos, que uma noção de
poder nessa normalização, que, inevitavelmente, está relacionada a uma visão cultural e,
diretamente, às questões de saber.
Portanto, nem sempre a aprendizagem dentro do ambiente escolar tem a
finalidade de levar o discente à contestação e à aprendizagem, mas à disciplinarização de
seus corpos e mentes. Supostamente, isso seria efetivado por meio de um discurso
hegemônico e resultaria na destruição das diferenças, o que asseguraria a obediência e o
domínio.
2.4 O discurso hegemônico calando diferenças em O Ateneu e no Brasil do século XIX
Na destruição das diferenças, o discurso está a serviço de um jogo de forças
e poder. Nesse jogo, sobressalente está a “verdade” do discurso oficial instituído,
hegemônico. Em O Ateneu, esse discurso representa o Império – poder vigente na época.
Algumas damas empunhavam binóculos. Na direção dos binóculos
distinguia-se um movimento alvejante. Eram os rapazes. “Aí vêm! disse-
me meu pai; vão desfilar por diante da princesa.” A princesa imperial,
Regente nessa época, achava-se à direita em gracioso palanque de
sarrafos. (POMPÉIA, 1992, p. 19).
Assim, como a obra deixa transparecer, a instituição escolar aliada às
governamentais, ao discurso científico e histórico oficial usa a linguagem como
instrumento a serviço do poder. É através da linguagem que podem ser vislumbrados os
heróis que vão para posteridade e os fatos que estão em sintonia com o interesse vigente.
Aos olhos de Raul Pompéia, como aos de muitos brasileiros conscientes,
a Monarquia no Brasil era um vestígio do Imperialismo português e não
algo que representasse um governo nativo da América. O Imperador
nunca mereceu a simpatia de Pompéia, que nele via o herdeiro de um
sistema reacionário, cuja prosperidade assentava na escravatura. E além
76
de sancionar um governo minado pela corrupção, demonstrava sua
fraqueza com as tímidas e inúteis tentativas para libertar os escravos e
estabelecer a necessária reforma agrária (
HEREDIA,
1979, p. 16).
É, pois, o Ateneu a instituição que legitima o poder do Império, propaga
seus valores, seus ideais e suas normas de comportamentos:
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de
nutrido réclame, mantido por um diretor que de tempos a tempos
reformava o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de novidade, como
os negociantes que liquidam para recomeçar com artigos de última
remessa (POMPÉIA, 1992, p.15).
Pompéia, ironicamente, expõe ao leitor o discurso dos ideais imperiais.
Nesse, toda a suntuosidade requerida pelo Império; “Aristarco todo era um anúncio. Os
gestos, calmos, soberanos, eram de um rei o autocrata excelso do silabário” (1992, p.15),
é o poderio do Império retratado tanto na aparência arquitetônica como na dos indivíduos:
“A bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundiu-me a consideração tímida de
um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência e do bem” (1992,
p.17).
Portanto, esses são símbolos que pretendem reafirmar a identidade
almejada, a saber, aquela que representa o status do Império. É uma identidade que
abandona as contradições da escola e do País, de modo geral, privilegiando a minoria
abastada:
A ideologia dominante, que tinha como sempre tem na escola um
poderoso reduto [...] a Razão, o Bem, o Belo, a Moral, a Ordem, o
Progresso, todos a serviço dos interesses da burguesia. É o próprio Raul
quem identifica a clientela d’O Ateneu: Ateneu era o grande colégio da
época’[...] um compromisso de honra com a posteridade mandar dentre os
jovens, um, dois, três representantes abeberar-se à fonte espiritual do
Ateneu (PERRONE-MOISÉS, 1988, p.16).
E quem não tinha esse compromisso de ‘honra com a posteridade’? Pompéia
afirma que “os educandos do Ateneu significavam a fina flor da mocidade brasileira (1992,
p.16)”. E aqueles que não tinham acesso ao Ateneu? Esses não aparecem no discurso
oficial, são donos das vozes que, se manifestadas, poderão evidenciar não relações de
77
sentido, mas de forças, embates que desnudam conflitos, contestações, disparates,
discórdias e máscaras diversas − portanto, precisam ser silenciadas.
Enfim, sujeitos, donos de discursos vários, mas isolados do discurso
reconhecido como oficial. Esse, nem sempre atenta para o fato de que as identidades são
construídas por meio de trocas, isto é, a partir da interação entre sujeito e sociedade, do
diálogo contínuo com os diversos mundos culturais e através das múltiplas identificações
do eu de um sujeito com sua realidade circundante. Devido a essa falta de interação, é
descortinado um sistema excludente vigente no País e torna-se evidente que é reforçado
pela escola e objetiva a construção de uma identidade homogênea.
Despreza-se, assim, a contínua mobilidade dos indivíduos. Como afirma
Hall (2004), a identidade é móvel, formada e transformada continuamente, definida
historicamente, e não biologicamente. Assim, embora haja uma sensação de um “eu”
unificado, isso é apenas aparente, pois dentro de nós contradições várias, mutáveis e em
constante deslocamento.
No contexto social do século XIX, há dois Brasis: o ‘Brasil português’ que é
representado no discurso monárquico de O Ateneu e no discurso de Pompéia, que, pelo seu
viés, mostra o Brasil real com sua falta de saneamento, precariedade das casas, classes
oprimidas, serviço informal, as muitas formas de resistência e as improvisações como
formas de sobrevivência. Esse não aparece na obra, que privilegia o universo da erudição,
das fontes escritas e da ciência valores perpetuados pela escola.
Enquanto a arquitetura, a propaganda, a imagem dos alunos, de Aristarco e
do colégio Ateneu impõem ostentação, o que é coerente com o discurso institucional ligado
à coroa, há uma imensa maioria à margem. Assim,
cheiros, vozes, pregões, gestos, cantigas, grande parte das entonações e
trejeitos do quotidiano de quitandeiras sentadas em esteiras, de pito na
boca ou percorrendo caminhos, fazem parte dos discursos de
sobrevivência que se perderam para sempre. (DIAS, 1984, p.12)
Essa realidade pode ser percebida nos depoimentos de viajantes, nos
documentos fragmentados, nas entrelinhas das documentações, nas referências esparsas de
historiadores, literatos, artistas, na historiografia. É bem diferente daquela representada no
ambiente estético:
78
Voltando-me, divisei, ao longo do muro, duas linhas de estrado com
cadeiras quase exclusivamente ocupadas por senhoras, fulgindo os
vestuários, em violenta confusão de colorido. Algumas protegiam o olhar
com a mão enluvada, com o leque, à altura da fronte, contra a rutilação do
dia num bloco de nuvens que crescia do céu. Acima do estrado
balouçavam docemente e sussurravam bosquetes de bambu, projetando
franjas longuíssimas de sombra pelo campo de relva
. (
POMPÉIA, 1992,
p. 19)
A paisagem retratada por Pompéia opõe-se à descrição de caos realizada por
Dias,
não são os eventos políticos nem os marcos de reformas institucionais
que definem sua história. O seu dia-a-dia estava mais enredado nas
contínuas crises de abastecimentos, que provocavam carestia e falta de
gêneros alimentícios na cidade. [...] Nestes momentos de crise aguda
quando ‘o povo ameaçava amotinar-se’, como dizem os documentos
municipais, é que tinham alguma entrada na história escrita, mesmo
assim, referências veladas, pois eram, sob o ponto de vista das
autoridades, discutíveis as suas práticas de comércio clandestino e de
pequeno contrabando ambulante. (1984, p. 18)
Mauro (1991, p. 22) explica que,
através de depoimentos de viajantes, é
percebida uma realidade que se opõe à visão projetada contida no discurso institucional
presente em O Ateneu, “tratava-se antes de tudo de um processo avassalador de
multiplicação da pobreza, que acompanhava, principalmente nas cidades, o crescimento
vegetativo da população, tendo como pano de fundo a estagnação econômica” (MAURO,
1991, p.22).
E
sse depoimento revela o quanto o discurso pedagógico de o Ateneu parece
alienado e distante das mazelas do Brasil real por apegar-se a um passado mítico:
a história pátria deliciou-me em quanto pôde. Desde os missionários da
catequese colonizadora, que vinha ao meu encontro, com Anchieta,
visões de bondade, recitando escolhidas estrofes do evangelho das selvas,
mandando adiante, coroados de flores, pela estrada larga de areia branca,
os columins alegres, aprendizes da e da civilização. (POMPÉIA, 1992,
p.44)
Desse modo, a imagem do colonizador bondoso, dono da e instrução,
diante de aborígines receptivos ao saber europeizado, é transmitida no colégio sem
79
questionamento algum e sem relação com a realidade, sem mostrar as lutas, os choques
culturais e a violência do processo de colonização. A desvinculação do discurso oficial
com a realidade revela a ânsia do País em parecer europeizado, civilizado, é, pois, o que
Mauro nomeia de ‘complexo de inferioridade’, ou seja,
O gosto pelo escuro, pelas roupas à européia, com camisas de colarinho
engomado e punho rígido, ternos de colete, mesmo que seja de alpaca
leve ou de sede, estava ligado à vontade de diferenciar-se do escravo
negro e até do índio, de guardar o selo da Europa, da civilização. Era a
marca do complexo de inferioridade inconfesso e inconfessável em
relação ao europeu (MAURO, 1991, p. 41)
Portanto, um universo silenciado em O Ateneu, um ‘complexo de
inferioridade’ que anula a diferença, o outro, silencia, exclui e cria um discurso linear e
coerente em si, mas destoante do todo; um discurso que visa à produção de uma imagem
moderna, avançada e europeizada. Esse posicionamento traz em si uma noção de sujeito
sociológico e de identidades que se formam e se transformam através das relações
culturais, porém falha, à medida que o Ateneu apresenta uma identidade baseada numa
“supervalorização” da cultura européia, logo, distante do Brasil real e criadora de um fosso
entre povo e os ideais intelectuais.
Pode-se concluir que em O Ateneu, universo privado, é reconstruída
toda a complexidade do mundo exterior, são universos que se assemelham, no que tange às
relações de poder e aos discursos unificadores que anulam o outro. Todavia, no desenrolar
dos acontecimentos, essa unificação mostra-se falaciosa, uma vez que não leva em conta as
tensões, conflitos e confrontos que promovem mudanças no cotidiano e mudam o rumo da
história, não permitindo assim, que se chegue a um resultado único, como deseja o
discurso linear dominante.
Dessa forma, O Ateneu pode ser compreendido como um espaço que
representa idéias e discursos sociais, que privilegia um discurso hegemônico, totalizador,
homogêneo, da ‘verdade’, em detrimento ao multiculturalismo da realidade cultural da
obra. Esse mecanismo é explicado por Foucault como a construção que alimenta a gica
do poder presente em meios sociais, pois “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua
‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como
verdadeiros” (FOUCAULT, 1979, p. 12).
80
No espaço de O Ateneu, tanto a pluralidade do mundo exterior como a do
interior ao colégio é sufocada e silenciada através da tentativa de se impor a ‘verdade’
produzida pelo poder vigente. Entretanto, a todo o instante, ela é contestada pelo narrador,
o que gera os embates que compõem o enredo da obra. É por meio do narrador que esse
Brasil oficial, na obra, representado pelo discurso escolar, é desnudado.
Usando uma linguagem irônica, Sérgio distorce a aparência, mostrando que
o que ocorre é o inverso do que a escola pretende mostrar. Se no discurso prega-se a
moralidade, a lei, a justiça e a igualdade: “E recuava tragicamente, crispando as mãos.
“Ah! mas eu sou tremendo quando esta desgraça nos escandaliza. Não! Estejam tranqüilos
os pais!” (POMPÉIA, 1992, p.29), todavia a prática revela o oposto disso:
Torturava-o ainda em cima o ser ou não ser das expulsões. Expulsar...
expulsar... falir talvez. O código, em letra gótica, na moldura preta, li
estava imperioso e formal como a Lei, prescrevendo a desligação também
contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo ao mesmo
tempo... Era demais! era demais!... Entrava-lhe a justiça pelos bolsos
como um desastre. O melhor a fazer era chimpar um murro no vidro
amaldiçoado, rasgar ao vento a letra de patacoadas, aquela porqueira
gótica de justiça! (POMPÉIA, 1992, p. 140)
Sérgio, como representante de uma elite intelectual, aluno de um colégio
acessível a uma minoria e preso aos parâmetros europeus de civilização, não mostra o
externo ao colégio, ou seja, as discrepâncias e mazelas sociais que atingem a grande massa.
Seu olhar restringe-se ao seu contexto escolar e à crítica a Aristarco, representante de um
sistema capitalista, que transforma a educação em mercadoria: “Soldavam-se nele o
educador e o empresário com uma perfeição rigorosa de acordo, dois lados da mesma
medalha: opostos, mas justapostos” (POMPÉIA, 1992, p. 28); à educação darwinista que
seleciona a quem pertence ou não o saber: “Ele tinha maneiras de todos os graus, segundo
a condição social da pessoa. [...] E duramente se marcavam distinções políticas, distinções
financeiras, distinções baseadas na crônica escolar do discípulo, baseadas na razão discreta
das notas do guarda-livros”( POMPÉIA, 1992, p. 28).
Critica, ainda, a hipocrisia do discurso escolar que prega a moralidade: “No
Ateneu, a imoralidade não existe! Vejo pela candura das crianças, como se fossem, não
digo meus filhos: minhas próprias filhas! O Ateneu é um colégio moralizado! E eu aviso
muito a tempo... Eu tenho um código...” (POMPÉIA, 1992, p. 29).
81
Ao longo da narrativa, é revelado o quanto esse discurso moralista,
paternalista e ‘éticode Aristarco é hipócrita. Imoral e antiético, porque em suas relações
predominam os interesses e, até mesmo sua filha é uma mercadoria a ser negociada:
“Quando vinha Melica ao Ateneu, era Rômulo o primeiro a aproximar-se, o último a ser
visto. Aristarco chamava-o às vezes e levava a passeio com a menina” (POMPÉIA, 1992,
p. 118), afinal Rômulo era anafado de aparência, e ainda mais ancho na fortuna,
significava bem o que se diz um bom partido” (POMPÉIA, 1992, p. 117).
Portanto, a afirmação de Aristarco: “Eu tenho um código” (POMPÉIA,
1992, p. 29) não é aplicada na prática, pois seus interesses, principalmente financeiros,
estão em um primeiro plano. Outra incoerência entre o discurso e a prática é percebida
quando o narrador contrapõe o discurso de Aristarco:
Ah! meus amigos, conclui ofegante, não é o espírito que me custa, não é
o estudo dos rapazes a minha preocupação... É o caráter! Não é a
preguiça o inimigo, é a imoralidade!”Aristarco tinha para esta palavra
uma entonação especial, comprimida e terrível, que nunca mais esquece
quem a ouviu dos seus lábios. “A imoralidade!”(POMPÉIA, 1992, p. 29)
Mas, na prática o discurso moralista e a preocupação anunciada aos pais dão
lugar ao interesse financeiro e não ao educacional: “Chegavam-me palavras perdidas. ‘...
De boa família... dois, um descrédito!... Vão pensar... Expulsar não é corrigir... Isto ao
menos; não gratuitos?... Sim, sim... Quanto a mim... desagradável sempre riscar... borra
a escrita... em suma... mocidade...” (POMPÉIA, 1992, p. 139).
Portanto, o Ateneu demonstra que no espaço escolar um discurso em
consonância com interesses de quem detém o poder, seja esse da instituição, um
microcosmo, ou de uma instância maior, o macrocosmo, ou ainda, de ambos. Neles, a
construção de uma verdade, a princípio inquestionável, porém, numa análise mais
profunda, vê-se que a prática não corrobora o discurso oficial. No caso da instituição
Ateneu, a questão educacional fica em um segundo plano, uma vez que interesses políticos,
sociais, econômicos são as bússolas para as ações pedagógicas do dia-a-dia.
Diante disso
,
o próximo capítulo aborda o universo de O Ateneu e suas
relações de poder, imposições e resistências. Ao expor suas microrelações e evidenciar
como o poder se em rede, como sujeitos ora são dominados ora estão como
dominadores, como vozes silenciadas e outras legitimadas, tem-se a microfísica do
82
poder, isto é, a escola é desnudada e desmistificada de seu discurso hegemônico. Assim,
seu discurso que objetiva a subalternização de culturas e das diferenças é mostrado em suas
controvérsias e falta de linearidade.
83
3. A MICROFÍSICA DO PODER EM O ATENEU
3.1 O NARRADOR HÍBRIDO DE O ATENEU
Como verificado em capítulo anterior, O Ateneu de Raul Pompéia é
considerado por críticos como Mário de Andrade (1943), Antônio Candido (1964),
Roberto Schwarz (1965), Lúcia Miguel-Pereira (1973), Flávio Loureiro Chaves (1978),
JoséVeríssimo (1979) e Alfredo Bosi (1994) uma obra com possibilidade autobiográfica.
Isso porque, ao se analisar a trajetória do autor Pompéia e a da personagem Sérgio, podem
ser verificadas algumas coincidências pessoais na vida de ambos.
Exemplos dessas: Sérgio e Pompéia foram matriculados em um internato
voltado para o atendimento à elite, o primeiro aos onze anos e o segundo aos dez anos de
idade; ambos demonstraram facilidade na produção de caricaturas e de críticas à instituição
escolar, embora Sérgio, criança e personagem, não demonstre essa verve crítica, mas o
Sérgio-narrador sim. Sua crítica é, por meio da retórica, erudição e, principalmente, da
ironia, concretizada na obra O Ateneu.
Diferente de Sérgio, que em sua fase adulta vinga-se, explicitamente,
escrevendo suas memórias, Pompéia, em sua vida estudantil, publicava suas críticas, tanto
ao sistema monárquico como à escola, nos jornais estudantis e, posteriormente, após a
conclusão do curso superior, em jornais, como por exemplo, Gazeta de Notícias e Jornal
do Commercio, onde trabalhou. Um exemplo disso é uma opinião publicada no jornal
contra o professor Theodoro Schieffer, que acabara de aprovar o príncipe D. Pedro, mas
era considerado por Raul Pompéia como incompetente um fato que se assemelha ao,
citado, embate entre Sérgio e Aristarco. Porém, com esses, a ação se deu de forma física e
restrita e com aqueles, no âmbito discursivo e tornando-se público.
Entretanto, as coincidências que envolvem o autor e Sérgio-narrador-
personagem são apenas possibilidades, já que as semelhanças não passam do nível de auto-
referencialidade e possíveis coincidências em seus universos axiológicos. Em O Ateneu,
Sérgio-narrador e Sérgio-personagem representam dois focos narrativos passíveis de
discussões, uma vez que um enunciador que delega voz ora ao adulto, ora à criança.
84
Santiago explica que o romance possui, assim, uma separação/dissociação: o Sérgio-
narrador, o adulto, e Sérgio-personagem, a criança que vive e atua. O primeiro critica o
segundo esperando a aprovação do leitor e autor. Por retratarem as mencionadas
semelhanças com Pompéia, tem-se o caráter autobiográfico da obra O Ateneu.
Semelhanças à parte, o foco narrativo em O Ateneu revela-se intercalado,
pois Sérgio-narrador usa uma consciência adulta em uma personagem que se duplica: é a
adulta e a criança simultaneamente, cabendo àquela revelar mecanismos que passam
despercebidos ao Sérgio-personagem. O fato de o narrador adulto contar suas memórias
sob a ótica de um narrador pré-adolescente, é explicado por Santiago (1978) como a busca
de um milagre, pois Sérgio-narrador tenta ressuscitar o Sérgio-personagem e, por meio
desse, acusa seus carrascos. Suas ações são mostradas como resultados das circunstâncias
do Outro, sendo que o Outro, em O Ateneu, consiste, principalmente, na figura de
Aristarco:
Miramo-lo na inteira expansão oral, como por ocasião das festas, na
plenitude da sua vivacidade prática. Contemplávamos (eu com aterrado
espanto) distendido com grandeza épica o homem-sanduíche da
educação nacional, lardeado entre dois monstruosos cartazes. Às costas, o
seu passado incalculável de trabalhos; sobre o ventre, para a frente, o seu
futuro: o réclame dos imortais projetos. (POMPÉIA, 1992, p. 26)
O trecho acima corrobora a intercalação narrativa e a diferença que pode ser
notada entre Sérgio-narrador e Sérgio-personagem: o primeiro sua opinião de forma
mordaz, irônica e faz uso de uma retórica e erudição não condizente a uma criança de onze
anos. A narração inicia-se com Sérgio-personagem mostrando seu espanto diante da
eloqüência de Aristarco ao conversar com o pai que o levara para deixar no internato. Em
seguida, mostra-se como o Sérgio-narrador, adulto e crítico, que julga e faz suas próprias
interpretações como classificar Aristarco de homem-sanduíche, numa explícita crítica à
visão capitalista de educação, que se afasta de seus valores humanistas, formadores de
cidadãos críticos e torna-se mais um produto a ser adquirido. Análogas a essa, outras
críticas que parecem ter como finalidade o combate ao poder opressor da escola.
Além disso, o posicionamento de Sérgio-narrador-personagem revela o
aspecto híbrido de cultura. “Culturas híbridas são, na nossa concepção, aquelas em que a
tensão entre elementos díspares gera novos objetos culturais que correspondem a tentativas
85
de tradução ou de inscrição subversiva da cultura de origem em uma outra cultura.
“(BERND, 2003, p.75-76)
A trajetória de rgio dentro de O Ateneu mostra o seu hibridismo cultural,
que sua identidade é ressignificada por meio dos muitos encontros e confrontos
discursivos que flexibilizam a postura da personagem, levando-a a questionar e
desconstruir o cânone da cultura hegemônica escolar. Daí seu discurso de desconstrução
8
de um modelo unívoco, o que gera como resultado a promoção de um novo processo de
enunciação, que se em termos de linguagem, ou seja, a retórica aprendida no colégio é
traduzida
9
, subvertida, pois, parodisticamente, destrói valores sócio-éticos, principalmente,
quando se trata de seu alvo preferido: Aristarco.
Um jacto de luz elétrica, derivado de foco invisível, feria a inscrição
dourada ATHENÆUM em arco sobre as janelas centrais, no alto do
prédio. A uma delas, à sacada, Aristarco mostrava-se. Na expressão
olímpica do semblante transpirava a beatitude de um gozo superior.
Gozava a sensação prévia, no banho luminoso, da imortalidade a que se
julgava consagrado. Devia ser assim: luz benigna e fria, sobre bustos
eternos, o ambiente glorioso do Panteão. A contemplação da posteridade
embaixo.
Aristarco tinha momentos destes, sinceros. O anúncio confundia-se com
ele, suprimia-o, substituía-o, e ele gozava como um cartaz que
experimentasse o entusiasmo de ser vermelho. Naquele momento, não era
simplesmente a alma do seu instituto, era a própria feição palpável, a
síntese grosseira do título, o rosto, a testada, o prestígio material de seu
colégio, idêntico com as letras que luziam em auréola sobre a cabeça. As
letras, de ouro; ele, imortal: única diferença. (POMPÉIA, 1992, p. 22-23)
(grifo nosso)
Usando a ironia como recurso, Sérgio-narrador transforma o poderio de
Aristarco em “simples cartaz, síntese grosseira”. Assim,
Ao utilizar, na confecção de figuras, elementos heterogêneos
pertencentes a domínios diferentes, ao satirizar a retórica empregando-a
ela própria com efeitos invulgares, ao destruir enfim o mundo discursivo
do colégio Ateneu para recuperá-lo num plano altamente elaborado,
Pompéia comporta-se como um acróbata. (ALMEIDA 1988, p. 109)
8
Nanni e Abbruciati explicam que “O termo desconstrução foi introduzido pelo filósofo francês Jacques
Derrida, indicando a necessidade de comportamentos críticos nos confrontos das formas totalizantes e
absolutizantes de cada tradição cultural, particularmente daquela do Ocidente” (apud SOUZA, 2003, p.53).
9
Hall entende tradução ‘no sentido etimológico do latim ‘transferir, transportar entre fronteiras’,
características das culturas híbridas” (apud SOUZA, 2003, p.54).
86
Essa linguagem utilizada o diferencial da obra em seu tempo. Foi
classificada como plástica e sonora, forte e marcante, onde pode ser verificada
a presença e ação dos vários mecanismos que as instituições totais fazem
funcionar com a finalidade de controlar e modelar e produzir o indivíduo.
Pompéia descreve à sociedade a "carreira moral" de Sérgio, ao longo de
páginas densas de introspecção psicológica. (BENELLI, 2003)
À sua eloqüência e à sua riqueza de estilo, características que lhe são
peculiares, Pompéia tinha uma explicação:
O typo de estilo simples é o didactico, que começa por estar fora dos
domínios da arte. O poema, o romance, em que não o capricho do
rythmo, accommodado aos períodos sentimentaes da descripção, não é
obra de arte, da mesma maneira que o esqueleto não é corpo vivo. [...] A
prosa tem que ser eloquente, para ser artistica, tal qual os versos.
(PONTES, 1935, p. 218-219
)
Para rio de Andrade (1943), nessa afirmação, o autor confunde simples
com simplório e O Ateneu é visto pelo crítico como revelador da última expressão barroca
no Brasil, que sua “escritura artista, artificial, original, pessoal, tão sincera e legítima
como qualquer simplicidade. Não é apenas uma questão de gosto, é uma questão de
beleza” (MÁRIO DE ANDRADE, 1943, p. 183).
É por meio dessa linguagem mordaz, irônica, quase panfletária, às vezes
quase musical, reveladora de estado de tensão e também de relaxamento e rica em imagens
fortes, coloridas e movimentadas, que Pompéia confirma seu estilo individual e foge dos
modelos ficcionais produzidos até então. E mais, a educação, o modelo pedagógico da
época e a crítica contra a instituição escolar fornecem uma imagem da sociedade diferente
daquela que era transmitida pela ‘Corte’.
Sérgio-narrador, em seu processo de tradução, também usa a linguagem
para desnudar o microcosmo escolar, onde podem ser vistos problemas ainda hoje
presentes em ambientes educacionais, tais como: educação a serviço de uma elite
dominante e do sistema capitalista, a homofobia e a intolerância à diversidade sexual, a
repressão sexual, a noção de moralidade e imoralidade apregoada e/ou praticada no
colégio, as muitas formas de coerção física e psicológica, além do currículo como forma de
87
dominação e imposição cultural e a serviço da construção de uma identidade
escolar/nacional que se quer impor. É o caráter híbrido de cultura, mostrando que tanto
Pompéia com O Ateneu, como Sérgio-narrador promoveram uma subjetividade diferente,
devido à reconceitualização da cultura experimentada em seus respectivos universos.
Na pretensão de desmascarar o discurso escolar, ainda se pode perceber no
romance a noção bahktiana de polifonia
10
, pois são visíveis a heterogenidade discusiva:
Sérgio-narrador com sua consciência adulta e Sérgio-personagem, a criança. Mesmo sendo
dono das vozes predominantes da obra, logo, impondo seus referenciais, Sérgio-narrador
parece ganhar a confiança do leitor e, as muitas análises que o ligam diretamente à vida de
Pompéia podem comprovar o aspecto da veracidade com que a obra foi recebida. Desse
modo, as perspectivas e os valores apresentados por Sérgio-narrador nesse universo
estético predominam em relação à sua possível história ‘real’ vivenciada no colégio Abílio.
Por se julgar capaz de entender e relacionar as motivações dos integrantes
do colégio, Sérgio-narrador expõe os acontecimentos a partir de sua atual compreensão.
Desse modo, permite-se, até mesmo, focalizar os acontecimentos das personagens em seus
pensamentos e motivações íntimas. Isso se dá, principalmente, com Aristarco.
Aristarco caiu em si. Referia-se ao busto toda a oração encomiástica de
Venâncio. Nada para ele das belas apóstrofes! Teve ciúmes. O gozo da
metamorfose fora uma alucinação. O aclamado, o endeusado era o busto:
ele continuava a ser o pobre Aristarco, mortal, de carne e osso. O próprio
Venâncio, o fiel Venâncio, abandonava-o. E por causa daquilo, daquela
coisa mesquinha sobre a peanha, aquele pedaço de Aristarco, que nem ao
menos era gente! (POMPÉIA, 1992, p. 175)
Ao recorrer à onisciência para mostrar o ciúme, decepção e sentimentos de
Aristarco em relação ao busto que lhe fora ofertado pelos alunos, Sérgio-narrador procura
reforçar sua antipatia e negativismo no que diz respeito à figura do diretor e é possível
afirmar que deseja também compartilhar esse sentimento com o leitor. Portanto, mostra o
diretor em suas motivações intrínsecas e, cuidadosamente, são escolhidos os fatos que
favorecem ao Sérgio-narrador e ao leitor terem maior compreensão das situações e das
relações escolares. Desse modo, tem-se a impressão de que o universo escolar de O Ateneu
10
O termo polifônico foi usado por Bakhtin: “São polifônicos os textos - ou contextos – em que as múltiplas
vozes e significados permanecem em interação, ao mesmo tempo que podem continuar a ser distinguidas,
identificadas. Não possibilidade de se constituir estaticamente um uníssomo, um som único, uniforme ou
uniformizador. As várias vozes, os múltiplos significados, encontram lugar para se expressar e se influenciar
mutuamente.” (AZIBEIRO, 2003, p. 96)
88
é um todo compreensível, que os fatos são citados numa ordem linear e coerente, o que
não acontece na realidade.
Lá estava o diretor, o ministro do Império, a comissão dos prêmios. Desta
ante-sala, trepado a uma cadeira, eu espiava. Meu pai ministrava-me
informações. Diante da arquibancada, ostentava-se uma mesa de grosso
pano verde e borlas de ouro. estava o diretor, o ministro do Império, a
comissão dos prêmios. Eu via e ouvia. (POMPÉIA, 1992, p.17)
Nesse trecho, pode-se notar a busca em entender o complexo ambiente
escolar e, ao relacioná-lo ao império, Sérgio-narrador abre outras portas de entendimento,
como por exemplo, a educação elitizada e acessível apenas a uma minoria da sociedade.
Outro aspecto que se pode notar no trecho é que, quando o foco narrativo pertence ao
Sérgio-personagem, tem-se a sensação de que ele apenas descreve o que observa e vivencia
em seu cotidiano escolar, o que o diferencia do Sérgio-narrador. Ao afirmar: “Lá estava o
diretor, o ministro do Império, a comissão dos prêmios(POMPÉIA, 1992, p. 17), o foco
narrativo não mais pertence à personagem criança. Essa não teria a perspicácia de
relacionar o diretor ao ministro do império, mas o adulto o faria.
Portanto, por meio de um olhar mais atento, a impressão de que O Ateneu é
apenas um livro de memórias se desfaz, pois a obra, narrada em primeira pessoa, além de
fornecer a subjetividade do narrador em relação ao colégio o que deixa transparecer, no
todo da obra, um certo sentimento de revolta no que tange à sua experiência escolar e que o
tempo ainda não conseguiu apagar também permite que esse mesmo narrador lance suas
críticas às aparências mantidas no sistema escolar.
Logo, o Sérgio adulto não pode ser dissociado do Sérgio criança e, em
ambos, o sentimento de revolta e mágoa em relação à escola não permite menção a ponto
positivo algum que porventura houve em sua experiência escolar. É, pois, esse sentimento
que o faz construir um discurso destruidor daquele realizado pela escola. Nessa
desconstrução, a obra pode ser vista como uma representação metonímica do Brasil.
White explica metonímia como sendo “a estratégia poética pela qual as entidades contíguas
podem ser reduzidas à condição de funções uma da outra, como o nome que designa a
parte de uma coisa é tomado por toda a coisa” (WHITE, 1994, p. 276).
Assim, o Ateneu está relacionado ao macrocosmo (Brasil) e transmite os
ideais de nacionalidade, identidade e as relações de poder que dinamizam a história do
89
Estado, escola e as dos sujeitos sociais dentro do ambiente escolar. Essa representação
metonímica pode ser vista em trechos como: “‘Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai,
à porta do Ateneu. Coragem para a luta.’ [...] Tanto melhor: é a escola da sociedade [...]
ensaiados no microcosmo do internato, não há mais surpresas no grande mundo fora”
(POMPÉIA, 1992, p. 13-162).
Na relação macro e microcosmo, a educação é vista sob a ótica mercantil do
sistema capitalista, uma visão representada, principalmente, pela figura de Aristarco,
diretor escolar. Esse evidencia, também, a incoerência entre prática e discurso escolar, uma
vez que é apresentado em sua falta de ética e contradição. Ao descrevê-lo, Sérgio-narrador
o faz por meio da construção de caricatura verbal, o que denuncia sua aversão ao mesmo:
Aristarco todo era um anúncio. Os gestos, calmos, soberanos, eram de um
rei [...] A própria estatura, na imobilidade do gesto, na mudez do vulto, a
simples estatura dizia dele: aqui está um grande homem... não vêem os
côvados de Golias?!... Retorça-se sobre tudo isso um par de bigodes,
volutas maciças de fios alvos, torneadas a capricho, cobrindo os lábios,
fecho de prata sobre o silêncio de outro, que tão belamente impunha
como o retraimento fecundo do seu espírito, teremos esboçado,
moralmente, materialmente, o perfil do ilustre diretor. (POMPÉIA, 1992,
p. 15-16)
A descrição revela, não nesse trecho, mas em toda a narração, como o
Sérgio-narrador enxerga Aristarco. Todavia, é a sua visão pessoal que se impõe, que em
toda a obra não oposição à mesma. Embora use o verbo no plural, ‘teremos esboçado
,
faz-se presente a falsa modéstia, que intenciona desmistificar a figura de Aristarco, o que
pode ser entendido como tentativa de relacionar a imagem do diretor à suntuosidade do
império, sistema de governo rechaçado tanto por Pompéia, autor, como por Sérgio-
narrador.
Mas as críticas e fatos relembrados e que separam Sérgio-narrador e Sérgio-
personagem, criando entre eles um distanciamento, são cuidadosamente selecionados para
que, caso haja coincidências entre o autor Pompéia e a personagem, que a obra é de
cunho autobiográfico, essas sejam compreendidas em suas motivações. Assim, Sérgio-
narrador não se entrega plenamente e procura escapatórias para preservar-se.
A amizade do Bento Alves por mim e a que nutri por ele, me faz pensar
que, mesmo se o caráter de abatimento que tanto indignava ao Rebelo,
certa efeminação pode existir como um período de constituição
90
moral. Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque
me podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse
ânimo de ser amigo. Para me fitar esperava que eu tirasse dele os meus
olhos. [...] Aquela timidez, em vez de alertar, enternecia-me, a mim que
aliás devia estar prevenido contra escaldos de água fria. (POMPÉIA,
1992, p. 93) (grifo nosso)
Ao justificar que “certa efeminação pode existir como um período de
constituição moral”, o Sérgio-narrador procura safar-se de qualquer acusação que lhe possa
ser feita sobre uma possível tendência ao homossexualismo. Sendo essa condenada pela
igreja, família e cultura da época, o narrador tem o cuidado de não deixar que sua conduta
no colégio seja desaprovada.
Para tanto, relaciona-a à indefinição moral e sexual no período da
adolescência, formação de responsabilidade do colégio e, ainda, deixa entender que são
resultados dos sentimentos de solidão e carência presentes no colégio: “O tédio é a grande
enfermidade da escola, o tédio corruptor que tanto se pode gerar monotonia do trabalho
como da ociosidade” (POMPÈIA,1992, p. 108). Sendo a formação moral sua
responsabilidade, o colégio propaga que qualquer ato que fuja às convenções socialmente
aceitas será repudiado:
Ah, mas eu sou tremendo quando esta desgraça escandaliza. Não!
Estejam tranqüilos os pais! No Ateneu, a imoralidade não existe! Velo
pela candura das crianças, como se fossem, não digo meus filhos: minhas
próprias filhas! O Ateneu é um colégio moralizado! E eu aviso muito a
tempo... eu tenho um código. (POMPÉIA, 1992, p. 29)
Esse discurso inflado de Aristarco contra a imoralidade é, posteriormente,
colocado em cheque quando um flagrante de homossexualismo o que é condenado
pelo colégio e taxado de prática imoral. O fato envolve Emílio Tourinho e Cândido, que
são classificados por Aristarco como: “os acólitos da vergonha, os co-réus do silêncio [...]
Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância inelutável de Deus!”
(POMPÉIA, 1992, p. 138). Até então, a sexualidade fora mantida sob silêncio, já que
Fingir que alguém não existe nada tem de imparcial, e ignorar costuma
ser a melhor forma de fazer valer os padrões de comportamento
considerados ‘bons’, ‘corretos’, ‘normais’. O silêncio e a tentativa de
ignorar o diferente são ações que denotam cumplicidade com valores e
padrões de comportamento hegemônico. (MISKOLCI, 2005, p.18)
91
Quando o silêncio é quebrado, surge a verbalização da homofobia.
Homossexualismo é adjetivado como incorreto, inaceitável e ato desprezível. O aluno é
tachado de estranho, anormal, mau exemplo para os ‘normais’ e, portanto, não sujeito, uma
vez que não se encaixa dentro do comportamento socialmente desejado.
Porém, o Sérgio-narrador deslegitima esse discurso ao mostrar sua
incoerência com a prática, pois nessa fatores econômicos e/ou pessoais considerados
mais importantes. Exemplo disso, é que quando Aristarco busca uma possível punição para
Emílio e Tourinho preocupa-se mais com o lucro. Dessa forma, o flagrante ou o assunto
em si torna-se irrelevante. Segundo o Sérgio-personagem, que estava atrás do armário e
próximo a uma porta, chegavam até ele algumas frases soltas de um diálogo que se dava na
sala de visitas: “De boa família... dois, um descrédito!... Vão pensar... Expulsar não é
corrigir... Isto é o menos; não gratuitos?... Sim, sim... Quanto a mim... desagradável
sempre riscar... borra a escrita.... em suma... mocidade...” (POMPÉIA, 1992, p.139).
Ao relacionar o ocorrido a uma característica da mocidade, o diretor evita a
probabilidade de escândalo e o comprometimento de seu lucro. O caso é abafado e a tão
temida punição restringe-se a “algumas dezenas de páginas de escrita e reclusão por três
dias numa sala [o que ocorreu] impossível, [pois] lá estava o Franco, por exigência
expressa do Silvino, como causador das inqualificáveis perturbações da ordem no Ateneu
(POMPÉIA, 1992, p. 141).
Interessante observar como ambos, Sérgio e Aristarco, redimem-se frente
aos fatos, ligando-os à imaturidade e ao processo formação do jovem. Em O Ateneu, esses
subterfúgios podem ser explicados na ligação entre os envolvidos e seu mundo imediato
família, Estado, Nação, cultura. Daí a necessidade de se verificar o contexto em que a
personagem está inserida, para assim procurar perceber seus valores éticos e morais, bem
como os valores do seu entorno.
É esse mundo imediato que impele o Sérgio-narrador ao politicamente
correto e o exime de possíveis culpas por seus atos. Talvez, por haver a possibilidade de
relação entre a obra e a sua vida, Pompéia desvia-se das culpas que poderiam comprometê-
lo perante a sociedade do meio em que estava inserido. Assim, Sérgio-narrador tem que
parecer honesto e íntegro. O que foge disso é, habilmente, colocado sob responsabilidade
das circunstâncias, ou ainda, sob o Sérgio-personagem uma criança inserida em um
universo hostil o que exige dela tomadas de decisões, que podem até parecerem pouco
92
éticas ou inaceitáveis para a sociedade, mas que no universo de O Ateneu funcionam como
formas de sobrevivência imediata.
Entretanto, quando se trata de Aristarco, o atenuante apresentado para a
personagem não existe. Embora recorram às mesmas evasivas, as motivações da
personagem Aristarco são mostradas como negativas: ele é o interesseiro, o capitalista,
aquele que está em conluio com o sistema imperial, o autoritário. Já no caso de Sérgio-
narrador, suas motivações têm causas explícitas, sendo esse o artifício usado a fim de
eximir-se de culpa e responsabilidade por qualquer ato de Sérgio-personagem.
Assim, as culpas de Sérgio são mostradas como se fossem decorrentes de
sua vida dada, ele apenas dá-lhe continuidade. Um outro exemplo de continuidade, em
que se pode perceber a limitação da distância entre Sérgio-narrador e Sérgio-personagem
é a relação entre Ema, mulher de Aristarco e Sérgio.
Adiantava-se por movimentos oscilados, cadência de minueto
harmonioso e mole que o corpo alternava. Vestia cetim preto justo sobre
as formas, reluzente como um pano molhado; e o cetim vivia com ousada
transparência a vida oculta na carne. Esta aparição maravilhou-me.
Houve as apresentações de cerimônia [...].(POMPÉIA, 1992, p.25)
Nessa descrição do primeiro contato, Sérgio se auto-descreve como
maravilhado. Mas qual Sérgio? O narrador ou o personagem? Sérgio-personagem é uma
criança de onze anos que acabara de chegar ao internato, que pouco antes narrara com
pesar o abandono do “conchego placentário da dieta caseira [...] os meus brinquedos,
antigos, já! os meus queridos pelotões de chumbo! espécie de museu militar de todas as
fardas, de todas as bandeiras [...] (POMPÉIA, 1992, p. 14).
Não parece possível que, em sua infantilidade, faria uma descrição física de
cunho erótico! Mas pode-se afirmar que, talvez, ainda haja, no Sérgio-narrador, uma
continuidade do sentimento de desejo e/ou fantasia do Sérgio-personagem por Ema
sentimento desabrochado durante o período em que conviveram na enfermaria:
Assim passei alguns dias, sem me queixar. Certa manhã, descubro no
corpo um formigueiro de pintinhas rubras. Aristarco fez-me recolher na
enfermaria, um prolongamento de sua residência para os lados da
natação. Veio o médico, o mesmo do Franco; não me matou. D. Ema foi
para mim o verdadeiro socorro. Sabia tanto zelar, animar, acariciar, que a
própria agonia aos cuidados do seu trato fora uma ressurreição.
(POMPÉIA, 1992, p. 180)
93
Pode-se perceber que o sentimento maternal demonstrado por Ema, aliado à carência de Sérgio-
personagem, tenham despertado um sentimento mais que maternal e que ainda perdura no Sérgio-
adulto.
Sonhei: ela sentada na cama, eu no verniz do chão, de joelhos. Mostrava-
me a mão, recortada em puro jaspe, unhas de rosa, como pétalas
incrustadas. Eu fazia esforços para colher a mão e beijar; a mão fugia;
chega-se um pouco, escapava para mais alto; baixava de novo, fugia
mais longe ainda, para o teto, para o céu, e eu a via inatingível na
altura, clara, aberta como um astro. Ela ria do meu desespero, mostrava-
me o pé descalço, que a calçasse; não permitia mais. [...] Calçá-la apenas!
Mas eu a fazia torcer-se, calçando-a, de dores numa tortura ardente de
beijos, exalando eu próprio a chama toda em chama. [...] Que outra
criatura era eu ao despertar! A aparição extinta; mas eu sofria da reação
das trevas que sucede deslumbramentos. (POMPÉIA, 1992, p. 154-155)
(grifo nosso)
O fato permite verificar a presença de duas perspectivas: a de Sérgio-
narrador e a de Sérgio-personagem o que lhe traz ambigüidade e pode levar o leitor à
cogitação sobre se realmente houve a experiência narrada por Sérgio-personagem. Embora
a narração pretenda se passar em um passado distante, a maturidade demonstrada e o
desejo ardente pertencem ao presente do Sérgio-narrador um adulto que, traído por suas
palavras, demonstra ainda sofrer pela mulher inatingível e ausente e pelas trevas que se
sucedem aos seus deslumbramentos fantasiosos.
Daí discordar, parcialmente, de Santiago (1978), para quem Ema representa
a saída de rgio das mãos paternas (de seus protetores) para as mãos maternas. O crítico
em ambos uma montagem artificial da relação mãe e filho, pois com Ema, Sérgio
retoma ao aconchego placentário perdido com sua entrada no colégio.
Todavia, se Ema é a mãe protetora, o que predomina na memória de Sérgio-
narrador é Ema, a mulher sedutora, bem diferente daquela descrita por Sérgio-personagem
no primeiro encontro, em que o menino parece envolvido por um sentimento de proteção:
E a senhora com um nadinha de excessivo desembaraço sentou-se no
divã perto de mim.
— Quantos anos tem? perguntou-me.
— Onze anos...
— Parece ter seis, com estes lindos cabelos.
Eu o era realmente desenvolvido. A senhora colhia-me o cabelo nos
dedos:
94
Corre e ofereça a mamãe, aconselhou-me com uma carícia; é a
infância que aí fica, nos cabelos louros... Depois, os filhos nada mais têm
para as mães...
O poemeto de amor materno deliciou-me como uma música. Olhei
furtivamente para a senhora. [...] que boa mãe para os meninos, pensava
eu. (POMPÉIA, 1992, p.25) (grifo nosso)
Ao afirmar:
a senhora com um nadinha de excessivo desembaraço’, o
narrador-autor deixa transparecer seu julgamento atual sobre a recepção que Ema lhe deu.
Contudo, quando diz: “O poemeto de amor materno [...] que boa mãe para os meninos
é o
sentimento maternal e de proteção que Ema lhe desperta, o que contrapõe à aspereza de
Aristarco. Nesse aspecto, o posicionamento de Santiago (1978) é corroborado: Ema
representa o “aconchego placentário”.
O que pretende Sérgio-narrador? Talvez vingar-se de Aristarco ‘possuindo’
sua esposa, esconder seu atual desejo colocando-o sob a responsabilidade de Sérgio-
personagem, provar que a efeminação faz parte de um período da constituição moral, como
afirmara no início da narração. Quando diz: “Ema afetava não ter mais para mim avareza
de colchete. ‘Sérgio, meu filhinho.’ Dava-me os bons-dias. Saía, voltava fresca, com o
grande, vernal sorriso rorejado ainda do orvalho das abluções. Rindo sem causa: da
claridade feliz da manhã, de me ver forte, quase bom (POMPÉIA, 1992, p.183)”, procura
relacionar a alegria de Ema à sua estadia na enfermaria.
Não estaria ela apenas lhe proporcionando apenas um afeto maternal, mas
que na imaginação do narrador-autor transcende e vai ao encontro de seus atuais, ou não,
desejos? Afinal, o que poderia e o que o Sérgio-narrador deseja em seu presente, no
universo estético torna-se uma possibilidade ‘real’. Portanto, suas memórias são pouco
confiáveis, pois há, apenas, a sua versão dos fatos.
Ema parece pertencer ao seu mundo platônico e, além disso, abruptamente,
é dado um fim ao seu suposto relacionamento e ao colégio: “tudo acabou como o fim
brusco de mau romance... [e que] desaparecera igualmente durante o incêndio a senhora
do diretor” (POMPÉIA, 1992, p. 184-188) (grifo nosso). Antes disso afirmara: “a imagem
de Ema (era agradável suprimir o D.)” (POMPÉIA, 1992, p. 154), por que agora esse
distanciamento ao usar ‘senhora’?
Quiçá, porque tenham sido confirmadas as suspeitas que pairavam sobre O
Ateneu, de que Ema mantinha relações estreitas com professor Crisóstomo (seria esse o
motivo de sua alegria?). Ou ainda, por comprovar que os sentimentos de Ema não lhe
95
eram exclusivos, afinal, afirmavam que ela era “a enfermeirazinha cuidadosa, com um jeito
incomparável para o tratamento dos casos graves do coração” (POMPÉIA, 1992, p. 159).
As insinuações, o fim abrupto da narração, o subjetivismo do narrador e as
poucas informações sobre Ema não permitem que sejam tiradas conclusões como, por
exemplo, estarem os alunos confundindo o sentimento maternal com o sexual. Portanto,
sob a perspectiva de Sérgio-narrador, Ema é envolvida em uma aura de mistério, onde
estão mescladas a mulher mãe e protetora, a mulher sensual e erótica e, talvez, a mulher
corajosa que abandona um marido ausente.
É interessante observar como esse discurso de Sérgio-narrador, mesmo
marcado pela dúvida, é aceito como uma possível verdade. Nesse ambiente estético,
mesmo que de fato a relação entre Ema e Sérgio possa parecer inverossímil ou fruto de
fantasia, há dentro da narrativa, uma coerência gica e probabilidades de o fato ter peso
axiológico, pois
O mundo da visão artística é um mundo organizado, ordenado e acabado
independentemente do antenado e do sentido em torno de um homem
dado como seu ambiente axiológico: vimos como em torno dele se
tornam artisticamente significativos e concretos os elementos e todas as
relações de espaço, tempo e sentido. Essa orientação axiológica e essa
condensação do mundo em torno do homem criam para ele uma realidade
estética diferente da realidade cognitiva e ética (da realidade do ato, da
realidade ética do acontecimento único e singular do existir), mas,
evidentemente, não é uma realidade indiferente a elas. (BAKHTIN, 2003,
p. 173)
Portanto, é na recepção do leitor, que o viver artístico ganha a credibilidade
requerida pelo narrador ao criar seu mundo ficcional, uma vez que o tornar-se ‘real’ desse
mundo ficcional assemelha-se, de algum modo, à realidade concreta vivida pelo homem.
Para isso, a organicidade, a verossimilhança, a possibilidade ou probabilidade de se
concretizar a ação são elementos que validam o discurso do narrador. E, ainda que nesse
mundo ficcional de O Ateneu, o possível romance parece um tanto fantasioso e platônico, o
predomínio dos recursos coercitivos, disciplinares, dos meios de dominação e resistências,
que serão vistas a seguir, reforçam o caráter axiológico necessário à legitimação da obra.
96
3.2 TAREFA QUASE INVISÍVEL DA ESCOLA: CORPO ÚTIL E OBEDIENTE
A partir da segunda metade do século XVIII o corpo humano passou a ser
visto como uma máquina, algo fabricável e não natural, manipulável, que pode ser treinado
e ter suas forças multiplicadas. Logo, passou-se a buscar a docilidade dos corpos: “tratava-
se ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e explicação: corpo útil, corpo
inteligível. [...] É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode
ser transformado e aperfeiçoado” (FOUCAULT, 1987, p.118). Nessa tarefa unem-se
regulamentos militares, hospitais, exércitos, escolas... Para esses, o corpo é um
instrumento, que pode sofrer limitações, proibições e/ou obrigações por meio de
mecanismos coercitivos.
A coerção consiste em trabalhar o corpo ininterruptamente, cercear seus
movimentos dentro de determinado tempo e espaço. “Esses métodos que permitem
controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas
forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos chamar as
‘disciplinas’” (FOUCAULT, 1987, p. 118), — disciplinas que se tornaram meios de
dominação no decorrer dos séculos XVII e XVIII. Foucault (1987) explica que essa
dominação é diferente de escravidão, pois não se apropria dos corpos; difere da
domesticidade, que não está submetida às vontades de um patrão; não é vassalidade,
porque não há relação de submissão e diverge dos regimes tipo monástico, por não
implicar obediência a outrem.
Para o Foucault, dominação é tornar o corpo mais obediente e útil, para
assim, agir dentro de técnicas e de rapidez e eficácia pré-determinadas. É o corpo, que tem
suas forças maximizadas e funcionando de forma útil para a economia e de modo
obediente para a política. Porém, os mecanismos de dominação não são explícitos, ocorrem
de modo sutil, minucioso, às vezes sob uma aparência inocente e dão-se por meio do
detalhe.
Dessa forma, é preciso verificar dentro de um micro espaço como se
manifestam as formas disciplinares, como o poder é exercido e não possuído e, a partir da
verificação dos detalhes, perceber a ‘microfísica do poder’, ou seja, como as relações de
força exprimem relações de poder. Se a escola é um espaço disciplinador, O Ateneu
97
proporciona reflexões a respeito dos mecanismos coercitivos no ambiente escolar. Por
coerção entende-se:
a atuação de mecanismos de punição, vigilância, controle e correção,
sobre um comportamento, crime ou infração. Podem agir como estímulo
positivo, por meio de elogios, prêmios, recompensas ou oferecendo
privilégios. Podem ser por estímulos negativos, por meio da repreensão,
constrangimento, suplício ou retenção. (COLOMBO, 2005, p. 27
)
Se coerção pode ser positiva ou negativa, isso poderia explicar porque o
poder se mantém. Mantém-se, pois oferta produtividade, possui alguma positividade, é
desejado e produz saberes. De acordo com essa perspectiva, em o Ateneu, as normas
disciplinares são aceitas, pois o colégio, simbolicamente, representa status, progresso e
educação da inteligência e da moral.
Por meio de intensa propaganda, o Ateneu transforma-se em um produto a
ser consumido: “Ateneu era o grande colégio da época. Afamado por um sistema de
nutrido réclame [...] desde muito tinha consolidado crédito na preferência dos pais, sem
levar em conta a simpatia da meninada, a cercar de aclamações o bombo vistoso dos
anúncios” (POMPÉIA, 1992, p. 15).
Vê-se a mercadorização do saber, veiculada na difusão de pacotes de
conteúdos escolares vendáveis: “[...] enchia o império com o seu renome de pedagogo.
Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos pontos da cidade”
(POMPÉIA, 1992, p. 15), mas com qualidade questionável, o que é feito por meio do
modo irônico com que o narrador-autor descreve o material produzido pelo Ateneu:
Eram boletins de propaganda pelas províncias, conferências em diversos
pontos da cidade, a pedidos, à substância, atochando a imprensa dos
lugarejos, caixões, sobretudo de livros elementares, fabricado às pressas
com o ofegante e esbaforido concurso de professores prudentemente
anônimos, caixões e mais caixões de volumes cartonados em Leipzig,
inundando as escolas públicas de toda a parte com a sua invasão de capas
azuis, róseas, amarelas, em que o nome de Aristarco, inteiro e sonoro,
oferecia-se ao pasmo venerador dos esfaimados de alfabeto dos confins
da pátria. Os lugares que os não procuravam eram um belo dia
surpreendidos pela enchente, gratuita, espontânea, irresistível! E não
havia senão aceitar a farinha daquela marca para o pão do espírito.
(POMPÉIA, 1992, p. 15)
98
É também por meio da ironia que é revelada a face oculta de O Ateneu.
Essa, explicitada de acordo com a ótica de Sérgio-narrador, comprova os mecanismos
coercitivos, às vezes, um tanto medievais, que destoam da imagem de modernidade
propagada pela escola. Uma face que não é nítida a quem está fora do contexto e nem é
mostrada na história ‘real’ e oficial da escola.
Assim, teoricamente, a escola transmite e apóia-se no discurso de afirmação
de seu objetivo: a propagação de idéias. Isso porque há o discurso do professor, os
conteúdos dos materiais didáticos, a interpretação, leitura entre outros recursos. Porém,
subjacente a este discurso, a busca pela dominação do corpo, da mente e do espírito
humano dominação que se de modo silencioso e numa reciprocidade. Logo, sem
mocinhos ou bandidos. Uma face escolar que não aparece na história propagada, que
nesta, consta apenas o que interessa deixar para a posteridade: os grandes pedagogos e as
reformas pedagógicas realizadas.
Desse modo, o cotidiano escolar esconde uma realidade, que muitas vezes
nem mesmo os envolvidos conseguem assimilar e discernir os mecanismos de cerceamento
à liberdade, a parafernália de normas, as regras disciplinares, a vigilância panóptica, a
economia do tempo, a normalização dos indivíduos e de seus comportamentos. Esses são
mecanismos que envolvem a todos, docentes e discentes e são, também, valores
disciplinares que traem o discurso de democracia e de formação do cidadão crítico
veiculado pela escola.
A percepção da opressão, dos mecanismos disciplinares e da arbitrariedade
da escola torna-se comprometida, uma vez que, como instituição legitimada pelo Estado,
seu domínio é reconhecido pela sociedade e suas regras estão no inconsciente coletivo,
que foram historicamente construídas. Por isso, é preciso, então, verificar os detalhes e as
minúcias que sustentam a rede de poder presente no ambiente escolar, isto é, realizar a
microfísica do poder.
99
3.3 OS MECANISMOS COERCITIVOS EM O ATENEU
Em O Ateneu, a coerção ocorre de várias formas: física, psicológica, moral.
Essas podem ocorrer simultaneamente ou não e nem sempre têm uma conotação negativa,
que a dominação pode se dar tanto de um modo violento como também silencioso e
sutilmente. O processo de coerção escolar inicia-se na admissão do aluno, esse é
enclausurado, perdendo assim sua liberdade e a autonomia sobre suas vontades:
O Ateneu estava situado no Rio Comprido, extremo, ao chegar aos
morros. As eminências de sombria pedra e a vegetação selvática
debruçavam sobre o edifício um crepúsculo de melancolia, resistente ao
próprio sol a pino dos meios-dias de novembro. Esta melancolia era um
plágio ao detestável pavor monacal de outra casa de educação, o negro
Caraça de Minas. Aristarco dava-se palmas desta tristeza aérea - a
atmosfera moral da meditação e do estudo, definia, escolhida a dedo
para maior luxo da casa, como um apêndice mínimo da arquitetura.
(POMPÉIA, 1992, p. 18) (grifo nosso)
A adjetivação relacionada à estrutura arquitetônica do Ateneu indica uma
atmosfera de melancolia e enclausuramento de um espaço fechado, mas que é ao mesmo
tempo visível. Nele é permitida uma visibilidade controladora dos gestos, dos movimentos
e o exercício da disciplina. Disciplina que pode ser vista no primeiro contato entre
Sérgio e Aristarco. O sentimento de uma hierarquia piramidal (superioridade e
inferioridade), de pequenez e impotência de Sérgio diante do poderio do diretor parecem
dominá-lo:
Nisto afagaram-me a cabeça. Era Ele. Estremeci.
— Como se chama o amiguinho? perguntou-me o diretor.
Sérgio... dei o nome todo, baixando os olhos e sem esquecer o “seu
criado” da estrita cortesia.
Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo de ter a bondade de ir ao
cabeleireiro deitar fora estes cachinhos. (POMPÉIA, 1992, p. 24)
Percebe-se que a tentativa de mortificação de Sérgio é iniciada nessa
sensação de distanciamento e fosso que o separa do diretor, embora esse hiato se no
nível psicológico. Dessa forma, Sérgio passa por um ritual que objetiva a perda da
100
identidade adquirida em sua experiência de vida anterior ao colégio. Quando esta é
ignorada e Sérgio é obrigado a assumir a identidade ditada pela escola, tem-se o ritual de
despersonalização, que propicia o exercício do poder dentro do colégio Ateneu, que a
personagem é colocada hierarquicamente numa escala de inferioridade.
Outro ritual de mortificação se fisicamente, pois logo na admissão
escolar, rgio é privado de seus cabelos, roupas, de seus bens individuais e passa a
‘vestir’ a identificação ditada pelo colégio:
[...] o amigo de ter a bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes
cachinhos. [...] Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que eu tolhi a
tempo de ser forte. Subi ao salão azul, dormitório dos médios, onde
estava a minha cama; mudei de roupa, levei a farda ao número 54 do
depósito geral, meu número. Não tive coragem de afrontar o recreio.[...]
Hesitava em ir ter com eles, embaraçado da estréia das calças longas,
como um exagero cômico, e da sensação de nudez à nuca, que o corte
recente dos cabelos desabrigara em escândalo. (POMPÉIA, 1992, p. 24 -
30)
Há, pois, a tentativa de despir Sérgio das disposições sociais conseguidas no
reduto doméstico. Seus cabelos são cortados, é privado de suas roupas e, a partir de então,
sua identificação passa a ser o número que lhe é fornecido, sua identidade é aquela que
identifica o colégio: “a bela farda negra dos alunos, de botões dourados, infundiam-me a
consideração tímida de um militarismo brilhante, aparelhado para as campanhas da ciência
e do bem” (POMPÉIA, 1992, p.17). Nesta identidade escolar estão implícitos os anseios e
os conceitos de cultura e de Brasil que o colégio pretende inculcar no corpo estudantil.
Para que tal objetivo seja atingido é preciso constantes treinos que ocorrem nas tarefas
cotidianas:
Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante de corneta
que dominava à distância, e sorria à docilidade mecânica dos rapazes.
Como oficiais subalternos, auxiliavam-no os chefes de turma, postados
devidamente com os pelotões, sacudindo à manga distintivos de fita verde
e canutilho. (POMPÉIA, 1992, p.20)
Nesse, como em outros espetáculos do colégio, o corpo é exposto. Através
dele, a escola é reconhecida por sua disciplina e capacidade de adestrar, manipular,
docilizar, modelar, treinar e tornar o corpo útil, hábil e forte. Ao exercer essa tarefa, a
101
escola ampara-se e une-se aos discursos científicos, políticos, econômicos reconhecidos
pela sociedade, tornando-se, a instituição legitimada e reconhecida socialmente. Exemplo
disso é quando o pai de Américo entrega-o ao colégio: “O pai pediu contra ele toda a
severidade. Aristarco, que tinha veleidades de amansador, gloriando-se de saber combinar
irresistivelmente a energia com o modo amoroso, tranqüilizou o fazendeiro: ‘Tenho visto
piores’” (POMPÉIA, 1992, p 184).
Portanto, ao pedir toda a severidade possível, o pai de Américo reconhece e
dá respaldo à autoridade escolar. Respaldada, lança mão de todos os possíveis mecanismos
coercitivos disponíveis: “O Professor Venâncio lecionava também Inglês; escapei-lhe às
garras, felizmente: uma fera! chatinho sob o diretor, terrível sobre os discípulos; a um deles
arremessou-o contra um registro de gás, quebrando-lhe os dentes”
(POMPÉIA, 1992, p.
147).
A coerção pode ser violenta como a do professor Venâncio ou sutil e por meio não-
verbal como a de Aristarco:
Aristarco mostrou-se em toda a grandeza fúnebre dos justiçadores. De
preto. Calculando magnificamente os passos pelos do diretor, seguiam-no
em guarda de honra muitos professores. À porta fronteira, mais
professores de e os bedéis ainda, e a multidão bisbilhoteira dos
criados. (POMPÉIA, 1992, p.137)
Como se vê, o controle disciplinar ocorre por meio de uma relação entre
gesto e corpo em sua totalidade, uma vez que “um corpo bem disciplinado forma o
contexto de realização do mínimo gesto. [...] um corpo bem disciplinado é a base de um
gesto eficiente” (FOUCAULT, 1998, p.130). Em O Ateneu, esse trabalho de adestramento
é realizado meticulosamente e fundamentado em detalhes, cotidianamente, ocorrendo,
portanto, quase sempre de modo sutil:
No Ateneu formávamos dois para tudo. Para os exercícios físicos, para a
entrada na capela, no refeitório, nas aulas, para a saudação do anjo da
guarda, ao meio-dia, para a distribuição do pão seco depois do canto. Por
amor à regularidade da organização militar, repartiam-se as três centenas
de alunos em grupos de trinta, sob o direto comando de um decurião ou
vigilante. Os vigilantes eram escolhidos por seleção de aristocracia.
(POMPÉIA, 1992, p. 41)
Outro aspecto positivo para o aluno era a possibilidade de ser escolhido
como decurião, um posicionamento que, além de garantir certas regalias e reconhecimento,
102
mostram o oprimido assumindo o discurso do opressor e agindo como tal: “Os sabres
puniam sumariamente as infrações da disciplina na forma: duas palavras ao cerra-fila,
perna frouxa, desvio notável do alinhamento. Regime siberiano, como se vê, do que
resultava que os vigilantes eram altamente conceituados” (POMPÉIA, 1992, p. 42).
Ser decurião também é uma forma de adequação ao sistema escolar, pois o
escolhido passa a agir dentro dos moldes ditados pela instituição: “O professor Mânlio, a
quem eu fora recomendado, recomendou-me por sua vez ao mais sério dos seus discípulos,
o honrado Rebelo” (POMPÉIA, 1992, p. 30). A escolha também favorece a quem está no
poder (professores, diretor...), uma vez que maior circulação de informações e uma
visão mais ampla para controle dos estudantes.
Nestas relações de poder todos estão envolvidos, uma vez que na ausência
de um responsável reconhecido (no trecho citado, o professor Mânlio), qualquer um pode
assumir o posto de controlador (o aluno Rebelo), desde que assuma o discurso do
dominador. Portanto o poder existe no corpo social e funciona em cadeia, unindo sujeitos
que ora sofrem ora exercem as ações das forças do poder.
No exercício do poder, o espaço é de suma importância e por meio dele
podem-se ser rompidas as ligações consideradas perigosas, além de propiciar a vigilância
geral e individual.
A sala geral do estudo tinha inúmeras portas. Aristarco fazia aparições, de
súbito, a qualquer das portas, nos momentos em que menos se podia
contar com ele. Levava as aparições, surpreendendo professores e
discípulos. Por meio deste processo de vigilância de inopinados,
mantinha no estabelecimento por toda parte o risco perpétuo do flagrante
como uma atmosfera de susto. Fazia mais com isso que a espionagem de
todos os bedéis. (POMPÉIA, 1992, p. 62
)
Vê-se que a arquitetura do colégio Ateneu permite um controle interior dos
sujeitos envolvidos. Esses devem ser conhecidos e vigiados, não por Aristarco, mas por
qualquer um que esteja presente no corpo escolar. É o efeito panóptico que permite “um
estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático
do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus efeitos, mesmo se é
descontínua a ação” (FOUCAULT, 1987, p. 126). Portanto, o colégio funciona não
como uma “máquina de ensinar, mas também de vigiar, de hierarquizar, de recompensar”
(FOUCAULT, 1987, p. 126).
103
Um outro recurso coercitivo capaz de promover a hierarquização, seleção,
inclusão, exclusão, punição e recompensa é a nota.
A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça do
arbítrio, não era ainda a cafua, asilo das trevas e do soluço, sanção das
culpas enormes. Era o Livro das notas. Todas as manhãs, infalivelmente,
perante o colégio em peso, congregado para o primeiro almoço, às oito
horas, o diretor aparecia a uma porta, com a solenidade tarda das
aparições, e abria o memorial das partes. (POMPÉIA, 1992, p. 54)
Em o Ateneu, quando o é possível a coerção física ou quando não se acha
suficiente somente a aplicação da nota baixa, aplica-se coerção moral, isto é, a nota é usada
no ataque à auto-estima, como se no trecho citado, o que, além de estigmatizar o aluno,
constrói sua imagem negativa perante a todos. Ao expor as notas ao público, o que era para
ser um recurso didático torna-se mais um mecanismo de coerção e punição. Por meio dele,
são escolhidos aqueles que representam, e bem, o Ateneu, deixando implícito, ainda, que
quem não o faz da forma almejada pode ser punido moralmente e publicamente, o que
resulta em censura, tanto por parte da escola como dos próprios colegas.
Além disso, anunciar a nota em público funciona como inibição de um
comportamento indesejado pelo colégio e como forma de exclusão ou inclusão em outras
atividades consideradas prazerosas: “Fosse como fosse, certo é que, com os bilhetes de boa
nota, comprava-se uma saída, e isto era o importante, como nos países de más finanças:
desde que o papel tem curso, de que vale o valor?” (POMPÉIA, 1992, p. 75).
Logo, a nota acaba sendo usada para punir e o como possível meio de
construção de um cidadão crítico ou como possibilidade de mudanças metodológicas por
parte do docente. Como conseqüências da exposição da nota, pode-se ter o aluno inibido,
passivo, sem criatividade, submisso e preso a estereótipos, preconceitos e rótulos
elaborados pela escola. “Era o nosso jornalismo. Do livro aberto, como as sombras das
caixas encantadas dos contos de maravilha, surgia, avultava, impunha-se a opinião do
Ateneu” (POMPÉIA, 1992, p. 55). Neste caso, o ensino é usado contra o próprio ensino.
Outro recurso utilizado na sujeição dos corpos é o controle do tempo.
Pompéia (1992) mostra que em o Ateneu controla-se o tempo para início e término de
qualquer ação: “Às onze horas, a sineta deu o sinal das aulas” (p.30); para recolher-se ou
levantar: “a sineta tocando ao despertar, livrou-me da angústia [...] Às duas horas da noite,
troaram os tambores com em quartel assaltado” (p.39-127); para comer: “A sineta
104
chamando à ceia, pacificou os ânimos” (p. 140). Ao controlar e cronometrar o tempo, tem-
se o máximo de tempo útil e de aproveitamento do corpo. Portanto, um corpo bem
disciplinado gera eficiência, rapidez e maior articulação entre corpo e objeto.
Embora o Ateneu fosse reconhecido por uma educação com ares de
novidade, métodos coercitivos um tanto medievais: cafua, agressão física, reclusão,
ataque à auto-estima: “A mais terrível das instituições do Ateneu não era a famosa justiça
do arbítrio, não era a cafua, asilo das trevas e do soluço, sanção das culpas enormes. Era o
Livro das notas” (POMPÉIA, 1992, p. 54).
Ao usá-los, a escola o faz a fim de coibir ações as quais julga erradas e
antiéticas, sendo essas quase sempre ligadas aos seus próprios interesses e objetivando a
manutenção da disciplina. Ao aplicar a pena, a escola tem como alvo não o culpado,
mas todos aqueles que porventura possam praticar o desvio, ou seja, o aparelho punitivo é
usado como aparelho de saber.
Em o Ateneu, o aluno Franco é a representação da penalidade corretiva. Sua
inadaptação, insubmissão e resistência às imposições do colégio rendem-lhe as medidas
mais agressivas e visíveis, sendo essas concentradas em seu corpo. É sua moral, seu corpo
e seus gestos que servem de espetáculo a fim de coibir possíveis indisciplinas.
De joelhos... Não perguntar; é o Franco. Uma alma penada. Hoje é o
primeiro dia, ali está de joelhos o Franco. Assim atravessa as semanas,
meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De joelhos como
um penitente expiando a culpa de uma raça. O diretor chama-lhe de cão,
diz que tem calos na cara. Se não tivesse calos no joelho, não haveria
canto do Ateneu que ele não marcasse com o sangue de uma penitência.
O pai é de Mato Grosso; mandou-o aqui com uma carta em que o
recomendava como incorrigível, pedindo severidade. (POMPÉIA, 1992,
p. 34)
Quando o pai de Franco o tacha de incorrigível e ao colégio a liberdade
de usar toda severidade possível, o reconhecimento e a legitimação da autoridade do
colégio Ateneu. Assim, a manipulação de seu corpo é respaldada por várias instâncias:
família, Estado, pelos ideais positivistas de ordem e progresso, pelo corpo docente e por
discentes: “Os professores já sabiam. À nota do Franco, sempre má, devia seguir-se
especial comentário deprimente, que a opinião esperava e ouvia com delícia, fartando-se de
desprezar. Nenhum de nós como ele!” (POMPÉIA, 1992, p.37). Explicitamente, o
105
narrador-autor mostra-se ciente do uso do aluno Franco como recurso disciplinar a fim de
reprimir indisciplinas por parte dos outros alunos.
Na disciplinarização de Franco, muitos se acham no direito de aplicar as
medidas corretivas, é a assimilação do discurso dominante, assim o poder de punir,
rebaixar e degradar torna-se coletivo:
De joelhos neste ponto, Franco, ao pelourinho: diante das chufas dos
maus e da alegria livre de todos. Como esta porta era caminho dos
rapazes até as bandejas onde se elevavam pilhas sedutoras da merenda,
ficava ainda o condenado com um reforçozinho de pena. Passando por
ele, os mais enfurecidos deram empurrões, beliscaram-lhe os braços,
injuriaram-no. Franco respondia a meia voz, por uma palavrinha porca,
repetida rapidamente, e cuspia-lhes, sujando a todos com o arremesso dos
únicos recursos da sua posição. (POMPÉIA, 1992, p. 64)
Nessa realidade fabricada é preciso seguir os conselhos de Rebelo: “Faça-se
forte aqui, faça-se homem. Os fracos perdem-se” (POMPÉIA, 1992, p. 35). Portanto, estar
fora das normas de comportamento e dos padrões culturais almejados pela escola, não se
submeter à identidade imposta ou não agir conforme foi ordenado significa, em o Ateneu,
ser um indivíduo fraco, perdedor e incivilizado. O resultado disso é a estigmatização do
aluno que, ao ser visto como fraco, inferior e indefeso, torna-se presa fácil das várias
discriminações e violências do contexto escolar.
Violências, porque nesse microcosmo escolar, conforme Sérgio-narrador
“tudo ameaça os indefesos. O desembaraço tumultuoso dos companheiros à recreação, a
maneira fácil de conduzir o trabalho, pareciam-me traços de esmagadora superioridade;
espantava-me a viveza dos pequenos, tão pequenos alguns!” (POMPÉIA, 1992, p. 43).
Portanto, a viveza dos pequenos é gerada pela necessidade de sobrevivência em um meio
hostil. Não se submeter é condenar-se à morte, assim como Franco: “No dia seguinte, um
domingo alegre, Franco estava morto” (POMPÉIA, 1992, p. 165).
Pode-se concluir que a aceitação da necessidade da ordem, do silêncio, da
rotina está relacionada à autoridade e ao corte da capacidade de resposta do indivíduo.
Quando o Ateneu ignora as diferenças entre os alunos e impõe uma identidade coletiva, na
qual não aparecem as características particulares de cada indivíduo e suas identificações
várias, leva os alunos a agirem de forma individualista ou conforme a exigência do meio
em que estão inseridos. Mas os alunos também podem se submeter às dominações e
coerções escolares por motivações extrínsecas:
106
Na escola são também facilmente identificáveis: aprovação social,
oportunidades de promoção acadêmica, oportunidades ocupacionais e
sociais, possibilidade de evitar sanções... Algumas dessas motivações são
encontradas no contexto imediato: a imagem de si, a satisfação paterna, a
aprovação do professor, o suposto prestígio diante dos colegas, obter uma
bicicleta de presente ou passar umas boas férias. (ENGUITA, 1989, p.
194)
Porém, a existência dessas motivações não implica na eliminação de
comportamentos indesejados, uma vez que a resistência pulsa no ambiente escolar e
contradiz o discurso oficial e a busca pela homogeneização da escola. Essa é,
simultaneamente, palco de subordinação e insubordinação de todos os envolvidos
(docentes e discentes). Embora haja um discurso que objetiva eliminar o sujeito, o máximo
que ele consegue é amordaçá-lo, silenciá-lo por algum tempo, pois, ao se analisar o
cotidiano, ao realizar a microfísica do poder em O Ateneu são enxergadas as contradições
que fogem da linearidade do discurso escolar oficial.
Aristarco empalideceu de despeito. Visava-o diretamente a desaforada
insurreição. E isto no mesmo dia em que fizera espetáculo da justiça
tremenda. Não quis, entretanto, arriscar o prestigio. Vimo-lo no corredor,
incerto, sem sangue, mandando que voltassem os bedéis a acalmar.
Torturava-o ainda em cima o ser ou não ser das expulsões. Expulsar...
expulsar... falir talvez. O código, em letra gótica, na moldura preta, li
estava imperioso e formal como a Lei, prescrevendo a desligação também
contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo ao mesmo
tempo... Era demais! era demais!... Entrava-lhe a justiça pelos bolsos
como um desastre. O melhor a fazer era chimpar um murro no vidro
amaldiçoado, rasgar ao vento a letra de patacoadas, aquela porqueira
gótica de justiça! (POMPÉIA, 1992, p. 31)
a pluralidade cultural: “Os companheiros de classe eram cerca de vinte; uma variedade de
tipos que me divertia”
(POMPÉIA, 1992, p. 31); a deslegitimação do discurso escolar:
Uma vez, muito entusiasmado, o ilustre mestre mostrou-nos o Cruzeiro
do Sul. Pouco depois, cochichando com o que sabíamos de pontos
cardeais, descobrimos que a janela fazia frente para o norte; não
atinamos. Aristarco reconheceu o descuido: não quis desdizer-se.
ficou a contragosto o Cruzeiro estampado no hemisfério da estrela polar
(POMPÉIA, 1992, p. 93)
107
a destruição das diferenças: “Por amor da regularidade da organização militar, repartiam-se
as três centenas de alunos em grupos de trinta, sob o direto comando de um decurião ou
vigilante. Os vigilantes eram escolhidos por seleção de aristocracia, asseverava Aristarco”
(POMPÉIA, 1992, p. 41);
as verdades e o Brasil que se quer legitimar:
O anfiteatro encheu-se tumultuariamente.A Princesa Sereníssima, com o
augusto esposo, chegou pontual às duas horas, acedendo ao convite que
recebera primeiro que ninguém.
As duas e três minutos, subia à tribuna Aristarco. Não preciso dizer que a
caranguejola sofrera mais uma das grandes comoções da malfadada
existência. Ali estava, paciente e quadrada, no exercício efetivo de
porta-retórica. Ficava à direita do sólio da princesa e diante do Orfeão.
Aristarco inclinou-se ligeiramente para a Graciosa Senhora. Passeou um
olhar sobre o anfiteatro. (POMPÉIA, 1992, p. 170)
Portanto, no universo de O Ateneu, o narrador-autor denuncia as relações de
poder decorrentes dos discursos e contradiscursos escolares e das vozes constestadoras que
foram sufocadas pelos discursos totalizantes e hegemônicos do colégio Ateneu. Ao
confrontar tais discursos, tem-se uma imagem escolar distante daquela planejada e
veiculada oficialmente. Diante disso, faz-se necessário verificar como essa contra-
instituição aparece em O Ateneu.
3.4 A CONTRA-INSTITUIÇÃO DENTRO DA INSTITUIÇÃO O ATENEU
Sendo um espaço cultural, a escola possui sujeitos sociais envolvidos em
idéias, sonhos, aspirações e formas de controle e subordinação que ultrapassam o campo
jurídico. Desse modo, há uma outra escola dentro de o Ateneu, que se move de modo quase
imperceptível, ou não, e que desafia as formas de autoridade e de coerção violenta ou sutil
presentes em qualquer processo de disciplinarização. É um movimento ordenado que
caminha paralelo ao da autoridade reconhecida, criando assim, formas várias de embates.
Embora haja formas rígidas de controle, essas são burladas a todo o instante.
Um exemplo dessa organização é o sistema de comunicação que os alunos
construíram para burlar a imposição da lei do silêncio.
108
Foi assim a invenção malfadada do telégrafo-martelinho. Tantas
pancadinhas, tal letra; tantas mais, tantas menos, tais outras. Os
inventores achavam no sistema dos sinais escritos a desvantagem de não
servir à noite. O elemento base desta reforma era uma confiança absoluta
na surdez dos inspetores; aventuroso fundamento, como se provou.
As primeiras pancadinhas passaram; apenas os estudantes mais próximos
sorriam disfarçando. Mas o martelinho continuou a funcionar e ganhou
coragem. No silêncio da sala, gotejavam as pancadas. Miúdas, como o
debicar de um pintainho no soalho. No alto da tribuna, o Silvino coçou a
orelha e ficou atento; começava a implicar com aquilo. Silêncio...
silêncio, e as pancadinhas de vez em quando.
Foi o diabo. Inesperadamente precipitou-se do alto do assento como um
abutre, e com a finura do ofício foi cair justo sobre o melhor de um
despacho. Seguiu-se a devastação. Examinando a carteira, descobriu a
rede considerável dos outros telégrafos. Foi tudo raso. Brutal como a
fúria, implacável como a guerra — oh Havas! — o Silvino não nos
deixou um fio, um fio ao novelo do novelo das correspondências! [...]
a violência não fez mais que aumentar o tráfego dos bilhetinhos e
suspender temporariamente a telegrafia. (POMPÉIA, 1992, p. 112-113)
Vê-se que, mesmo correndo o risco de serem flagrados, os alunos se
organizam, exercem sua criatividade e desse movimento todos participam, mesmo aqueles
que são desconsiderados pela avaliação escolar. Ao sofrer a desorganização, o grupo se
reestrutura procurando novas alternativas para se burlar os mecanismos coercitivos. Como
exemplo, tem-se o sistema telegráfico descrito abaixo que foi substituído pelo telégrafo-
martelinho.
Os fios telegráficos eram da melhor linha de Alexandre 80, sutilíssimos e
fortes, acomodados sob a tábua das carteiras, mantidas por alças de
alfinete. Em férias desarmavam-se. Dois amigos interessados em
comunicar-se estabeleciam o aparelho; a cada extremidade, um alfabeto
em fita de papel e um ponteiro amarrado ao fio, legítimo Capanema.
Tantas as linhas, que as carteiras vistas de baixo apresentavam a
configuração agradável de cítaras encordoadas, tantas, que às vezes
emaranhava-se o serviço e desafinava a cítara dos recadinhos em harpa de
carcamano. (POMPÉIA, 1992, p. 111-112)
São esses movimentos subterrâneos que fazem a dinâmica da sociedade
escolar, que promovem as mudanças e rompem as expectativas criadas pelo poder oficial e
legitimado. Dentro da escola, eles formam vozes que, embora sofram a tentativa de
silenciamento, manifestam-se dando corpo ao contradiscurso e apresentam, ainda, estreita
relação com fatores externos e internos ao colégio. Dos externos tem-se o conhecido do
109
aluno em sua vida pré-escolar, mas ignorada pela escola. Exemplos disso são as
brincadeiras:
A peteca não divertia mais, palmeada como estrépito, subindo como
foguete, caindo a rodopiar sobre o cocar de penas? Inventavam-se as
bolas elásticas. Fartavam-se de borracha? Inventavam-se as pequenas
esferas de vidro. Acabavam-se as esferas? Vinham os jogos de salto sobre
um tecido de linhas a giz no soalho, ou riscadas a prego na areia, a
amarela, e todas as suas variantes, primeira casa, segunda casa, terceira
casa, descanso, inferno, céu, levando-se à ponta de pé o seixozinho chato
em arriscada variagem de pulos. Era depois a vez dos jogos de corrida,
entre os quais figurava notavelmente o saudoso e rijo chicote queimado.
(POMPÉIA, 1992, p. 109)
Brincadeiras que o colégio Ateneu aboliu de sua programação, pois, desde o
processo de admissão, iniciou a mortificação do aluno, cobrando desse uma atitude de
maturidade, de autonomia e o status de um adulto, o que nem sempre está em consonância
com a sua idade. Exemplo disso é o momento que Sérgio entra em luta corporal com
Aristarco, diretor do colégio:
Com uma das mãos prendendo-me a blusa, a estalar os botões, com a
outra pela nuca, ergueu-me ao ar e sacudiu. "Desgraçado! desgraçado,
torço-te o pescoço! Bandalhozinho impudente! Confessa-me tudo ou
mato-te."
Em vez de confessar, segurei-lhe o vigoroso bigode. Fervia-me ainda a
excitação do primeiro combate; não podia olhar conveniências de
respeito. Esperneei, contorci-me no espaço como um escorpião pisado. O
diretor arremessou-me ao chão. E modificando o tom, falou: "Sérgio!
ousaste tocar-me!" (POMPÉIA, 1992, p. 136)
Ao ser tratado e colocado numa condição de adulta, Sérgio, a criança, foi
mortificado. As tentativas de mortificação são comuns no colégio Ateneu e perpetuam-se
por meio de ações cotidianas como, por exemplo, a religiosidade, da qual o narrador-autor
parece ter plena consciência do processo de anulação de seu eu:
Uma hora de oração que aborrecia era a da noite, antes do recolher. {..]
alguns meninos catavam cabeceando, desmaiando a voz em bocejos. Nas
primeiras linhas, dos pequenos, estavam muitos de olhos fechados, bem
longe dos cuidados da prece. Eu gozava o prazer da mortificação,
sustendo-me fervoroso durante a reza noturna. Para isso, levava no bolso
um punhado de pedrinhas, com que formava no soalho um genuflexório
despertador, fitando arregaladamente os olhos, ardidos de sono, na
110
lingüeta tiritante do fogo das velas. (POMPÉIA, 1992, p. 61- 62) (grifo
nosso)
Ironicamente, o narrador-autor afirma gozar o prazer da mortificação, em
seguida explicita seus mecanismos para manter-se acordado: pedrinha no soalho e olhar
fixamente para o fogo das velas. Deslegitima assim, o discurso da escola, que tende a
mostrar todos como envolvidos e convertidos aos seus ensinamentos. Portanto, é pertinente
aqui o questionamento: até que ponto os alunos submetem-se ao que é ditado pela escola,
pois, mesmo nos corpos mais dóceis, latejam sinais velados de insubordinação? Rômulo é
um dos personagens que podem exemplificar essa suposta docilidade e subordinação.
Escolhido por Aristarco como pretendente a genro, próximo ao diretor e à sua filha,
mostrava uma atitude de resignação:
Quando vinha Melica ao Ateneu, era Rômulo o primeiro a aproximar-se,
o último a ser visto. Aristarco chamava-o às vezes e levava a passeio com
a menina. Melica, toda donaire e orgulho, passava adiante e permitia
quando muito que Rômulo a seguisse cabisbaixo e mudo, como um
hipopótamo domesticado. Diga-se, a bem da verdade, que o gorducho
esperava rir por último ao pai e à filha. (POMPÉIA, 1992, p. 118) (grifo
nosso)
Mas a atitude de hipopótamo domesticado não se longe de Aristarco.
Envolveu-se em brigas com Sérgio:
A uma das vaias estive presente. Rômulo marcou-me. Pouco depois
encontrávamo-nos no longo corredor que levava à biblioteca do Grêmio.
Situação embaraçosa. Eu vinha, ele ia. Parar? Recuar? Enquanto hesitava,
fui-me adiantando. Rômulo, de salto, empolgou-me a gola da blusa.
Sacudia a ponto de macerar-me o peito. "Então, seu cachorro (sic), diga-
me aqui, se é capaz, quem é mestre." A injúria equilibrou-me o espanto.
Estava tudo perdido. Deitei bravura. "Mestre, mestríssimo cook!" gritei-
lhe à barba. Não sei bem do que houve. Quando dei por mim, estava
estendido embaixo de uma escada. Entraram-me na cabeça três pregos,
que havia nos últimos degraus. Ponderando que tinha no futuro tempo de
sobra para vingança, levantei-me e sacudi da roupa a poeira humilhante
da derrota. (POMPÉIA, 1992, p. 121)
Além disso, junto com outros alunos, pulava e ajudava-os a pularem a
janela, por meio de lençóis amarrados, para “quando o silêncio se fazia, a tomar fresco no
jardim do diretor” (POMPÉIA, 1992, p.158). Embora seja colocado como um ser sem
111
autonomia e pareça aceitar tal situação, essa aceitação é aparente, ou seja, como indivíduo,
dono de um ‘eu real’, sujeito a identificações várias, Rômulo está constantemente
subvertendo as tentativas de ser enquadrado em um mundo único e fixo. Não Rômulo,
mas todos os outros alunos buscam formas de burlar a vigilância, a mortificação, manter
um ‘eu’ preservado, bem como sua autonomia nesse universo que aspira a uma identidade
homogênea e fixa. Uma das formas de preservação é o armário. Visto como local
inviolável, lá cada um mantém suas excentricidades, diferenças:
À parede, em frente, perfilavam-se grandes armários de portas
numeradas, correspondentes a compartimentos fundos; depósitos de
livros. Livros é o que menos se guardava em muitos compartimentos. O
dono pregava um cadeado à portinha e formava um interior à vontade.
Uns, os futuros sportmen, criavam ratinhos, cuidadosamente desdentados
à tesoura, que se atrelavam a pequenos carros de papelão; outros, os
políticos futuros, criavam cameleões e lagartixas, declarando-se-lhes
precoce a propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das peles [...]
(POMPÉIA, 1992, p. 58)
Esse mundo fixo de o Ateneu mostra sua identificação com uma escola
meritocrática e valorizadora do empenho. Sua proposta pedagógica, ao menos em tese, está
em harmonia com toda a diversidade social, essa é inserida em um único modelo que foi
escolhido pela escola. Nesse contexto quem não tem notas escolares, dinheiro, valores
impostos pelo colégio, esperteza ... é estigmatizado como fracassado. Assim, a vergonha
não está ligada à moral, mas ao ter.
Dias depois da terrível nota, voltava eu a figurar com outra má, menos
filosoficamente redigida, porem agravada de reincidência. Aristarco não
perdoou mais. Houve ainda terceira, quarta, por diante. Cada uma delas
doía-me intensamente; contudo não me indignavam. Aquele sofrimento
eu o desejava, na humildade devota da minha disposição atual. Chorava à
noite, em segredo, no dormitório. (POMPÉIA, 1992, p. 56-57)
Ter nota e adaptar-se à hipotética identidade homogênea da escola são
formas de ter e receber o reconhecimento escolar. Porém, como tê-lo, se nem mesmo a
escola mantém-se fiel ao seu discurso e não demonstra imparcialidade em suas ações,
que lança mão de meios um tanto escusos para atingir seus objetivos? Exemplo disso é a
preocupação com o lucro, status e prestígio perante a sociedade que levam o diretor a
passar sobre suas máximas quando ocorre a revolução da goiabada:
112
Ultimamente, havia três meses, a goiabada mole de bananas, manufatura
econômica do despenseiro. Aristarco empalideceu de despeito. Visava-o
diretamente a desaforada insurreição. E isto no mesmo dia em que fizera
espetáculo da justiça tremenda. Não quis, entretanto, arriscar o prestígio.
Vimo-lo no corredor, incerto, sem sangue, mandando que voltassem os
bedéis a acalmar.
Torturava-o ainda em cima o ser ou não ser das expulsões. Expulsar...
expulsar... falir talvez. O código, em letra gótica, na moldura preta,
estava imperioso e formal como a Lei, prescrevendo a desligação também
contra os chefes da revolta... Moralidade, disciplina, tudo ao mesmo
tempo... Era demais! era demais!... Entrava-lhe a justiça pelos bolsos
como um desastre. (POMPÉIA, 1992, p. 140) (grifo nosso)
Portanto, por basear-se no princípio da meritocracia, o colégio Ateneu
mostra-se interessado no lucro e status, visão que dificulta o acesso à igualdade de
oportunidades. Nesse modelo meritocrático, os fracassados são vistos como responsáveis
pelo próprio fracasso, o que lhes atinge a auto-estima e pode levá-los à violência: “‘A
minha vingança!’ repetiu-me o Franco. Para o sangue, sangue, acrescentou com o risinho
seco. Amanhã rirei da corja!... Trouxe-te aqui para que alguém soubesse que eu me
vingo!” (POMPÉIA, 1992, p. 76). Por ser considerado fracassado, Franco busca uma
vingança (joga cacos de garrafas na piscina) que visa ao coletivo. Como ser inadaptado, é
desqualificado pela escola, o que pode gerar tanto ações violentas, como as realizadas por
Franco e outras sutis mostradas por outros alunos:
Batista Carlos, raça de bugre, válido, de má cara, coçando-se muito,
como se o incomodasse a roupa do corpo, alheio às coisas da aula, como
se não tivesse nada com aquilo, espreitando apenas o professor para
aproveitar as distrações e ferir a orelha aos vizinhos com uma seta de
papel dobrado. Às vezes a seta do bugre ricochetava até à mesa do
Mânlio. Sensação; suspendiam-se os trabalhos; rigoroso inquérito. Em
vão, que os partistas temiam-no e ele era matreiro e sonso para disfarçar.
(POMPÉIA, 1992, p. 31)
Batista Carlos, por meio de sua apatia, confirma que as resistências nem
sempre fazem uso da força ou de violências físicas e não consistem, necessariamente, em
comportamentos ilegais, no sentido jurídico, mas a uma ordem estabelecida, nem sempre
clara e explicada. Resistências que mostram corpos indóceis, momentos de tensão e
tentativas de fugir ao controle vindo de cima:
113
A hora solene do meio-dia Aristarco aproveitava para distribuir uma
merenda de conselhos, depois do canto e antes de outra de fatias,
incomparavelmente mais bem recebida. Muitas vezes não eram
conselhos. Também reprimendas em massa por culpas coletivas,
arrecadações de cigarros, ou pequenos processos sumários em que se
averiguava a autoria de delitos importantes, como encher de papel picado
uma sala, cuspir às paredes, molhar a privada, e mesmo muito mais
graves, como um episódio do Franco, que se prende ao período beato das
minhas reminiscências. (Pompéia, 1992, p. 63)
Os comportamentos elencados por Sérgio são derivados da monotonia das
aulas, da falta de relação entre conteúdo estudado, mundo do aluno e de aproximação com
o que lhe interessa. Tudo isso, levam-no a dispersar e a cometer atos de indisciplinas,
mesmo sabendo que será punido de alguma forma. Talvez, deseja uma punição e espera
por ela, que essa pode ser uma forma de gritar que existe. E, quem sabe seria essa busca
a responsável pela constância no comportamento indisciplinado de Franco em O Ateneu?
Franco, no domingo da véspera, aproveitando a largura da vigilância no
dia vago, fora vadiar ao jardim. E para tomar água de um poço aí
existente, cuja bomba não funcionava em regra, deliberou, imaginem!
Umedecer a bucha aspiradora com um quido que Moisés seria capaz de
obter no árido deserto, sem milagre mesmo e sem Horeb. Agora
considerem que o referido poço fornecia água para a lavagem dos pratos.
(POMPÉIA, 1992, p.63)
Mais uma vez, Franco realiza uma punição coletiva, que pode ser entendida
como busca por auto-afirmação em uma outra situação que não seja a imposta pela escola.
Na produção de uma elite fechada, como a almejada no século XIX, a desigualdade é
reforçada em o Ateneu e, o vencido não tem espaço, uma vez que foi coagido a identificar-
se com o fracasso. Quando é interessante para Aristarco, o vencedor é construído, mesmo
que seja a fórceps:
Havia no Ateneu, fora desta regra, alunos gratuitos, dóceis criaturas,
escolhidas a dedo para o papel de complemento objetivo de caridade,
tímidos como se os abatesse o peso do beneficio; com todos os deveres,
nenhum direito, nem mesmo o de não prestar para nada. Em retorno, os
professores tinham obrigação de os fazer brilhar, porque caridade que não
brilha é caridade em pura perda. (POMPÉIA, 1992, p. 121)
114
Vê-se que a dominação é mantida sob o aluno por meio de uma caridade
fictícia, o que acaba gerando ambigüidade: troca de ambos lados e um e outro visam ao
interesse individual e ao lucro. Visto por esse lado, o Ateneu cumpre seu papel de preparar
o indivíduo para encarar o mundo externo, isto é, ser maleável, sujeitar-se, dissimular.
Quem conseguir vencer o internato, vencerá no macrocosmo que o espera. Para o Sérgio-
narrador, que expõe sua opinião por meio da personagem Dr. Cláudio, o externato está
correlacionado ao mundo, pois:
é um meio-termo falso em matéria de educação moral; nem a vida
exterior impressiona, porque a família preserva, nem o colégio vive
socialmente para instruir a observação, porque falta a convivência de
mundo à parte, que a reclusão do grande internato ocasiona. O
internato, com a soma dos defeitos possíveis, é o ensino prático da
virtude, a aprendizagem do ferreiro à forja, habilitação do lutador na luta.
Os débeis sacrificam-se; não prevalecem. Os ginásios são para os
privilegiados da saúde. O reumatismo deve ser um péssimo acrobata.
Erro grave combater o internato. (POMPÉIA, 1992, p. 163)
Portanto, mesmo que haja uma resignação dissimulada, ela pode ser falsa,
como o exemplifica o personagem Américo:
Entre os reclusos das férias, contava-se um rapaz, matriculado de pouco,
o Américo. Vinha da roça. Mostrou-se contrariado desde o primeiro dia.
Aristarco tentou abrandá-lo; impossível: cada vez mais enfezado. [..]
Carregando a vista com toda a intensidade da força moral, segurou o
discípulo rijamente pelo braço e fê-lo sentar-se. “Tu ficarás, meu filho!”
O moço limitou-se a responder, cabisbaixo, possuído de repentina
complacência: “Eu fico”. [...]e ninguém foi jamais como ele exemplo de
cordura. (POMPÉIA, 1992, p. 184)
Essa dissimulação de ‘cordura’ é uma forma de resistência, uma vez que as rupturas, as
transformações, as lutas e as controvérsias do cotidiano, mesmo que pareçam silenciosas,
estarão indicando a falácia do discurso totalizante escolar.
Os conflitos, quando abordados e trabalhados pela escola, propiciam a busca
por soluções, o crescimento do ser humano e a quebra de barreiras e limites. Mas, como se
pode perceber em o Ateneu, os conflitos apresentam-se apenas como normativos, assim,
abre-se espaço para a sensação de caos e de violência denunciada por Sérgio-narrador:
“Informaram-me de coisas extraordinárias. O incêndio fora propositalmente lançado pelo
115
Américo, que para isso rompera o encanamento do gás no saguão das bacias. Desaparecera
depois do atentado” (POMPÉIA, 1992, p. 184). Tal desfecho, oportunizado por Américo,
parece ser resultado da imposição de um único modelo de conduta, aparentemente
homogêneo, que lhe foi imposto.
A esse modelo homogêneo de o Ateneu até mesmo a sexualidade do aluno
deve ser enquadrada. Ela é vista como algo que deve ser aprendido e normatizado, sendo,
pois, o modelo binário (masculino e feminino) visto como natural, o que contribui com a
reprodução de preconceitos e violências física, verbal e moral.
Era uma carta do Cândido, assinada Cândida.
"Esta mulher, esta cortesã fala-nos da segurança do lugar, do sossego do
bosque, da solidão a dois... um poema de pouca-vergonha! É muito
grave o que tenho a fazer. Amanhã é o dia da justiça! Apresento-me
agora para dizer somente: serei inexorável, formidando! [...]
“... Esquecem pais e irmãos, o futuro que os espera, e a vigilância
inelutável de Deus!... Na face estanhada não lhes pegou o beijo santo das
mães... caiu-lhes a vergonha como um esmalte postiço... Deformada a
fisionomia, abatida a dignidade, agravam ainda a natureza; esquecem as
leis sagradas do respeito à individualidade humana... E encontram
colegas assaz perversos, que os favorecem, calando a reprovação,
furtando-se a encaminhar a vingança da moralidade e a obra restauradora
da justiça!...” (POMPÉIA, 1992, p. 134-138) (grifo nosso)
Ao flagrar uma relação homossexual, a escola foi obrigada a sair do seu
silêncio. Silêncio que visa, ao menos em tese, transformá-la em um espaço sexualmente
neutro, invibializando, assim, as práticas que vão contra a forma hegemônica de
masculinidade e legitimada pela escola. Em o Ateneu, a legitimação da masculinidade
socialmente aceita dá-se quando Aristarco classifica a relação entre Cândido e Emílio
Tourinho como ‘miséria, pouca vergonha’ e, por isso, passível de justiça de Deus, da
família e da sociedade uma violência verbal seguida de outra por meio da exposição ao
público:
“Levante-se, Sr. Cândido Lima!
“Apresento-lhes, meus senhores, a Sr.a D. Cândida”, acrescentou com
uma ironia desanimada.
“Para o meio da casa! e curve-se diante dos seus colegas!”
Cândido era um grande menino, beiçudo, louro, de olhos verdes e
maneiras difíceis de indolência e enfado. Atravessou devagar a sala,
dobrando a cabeça, cobrindo o rosto com a manga, castigado pela
curiosidade pública.
“Levante-se, Sr. Emílio Tourinho...
116
Este é o cúmplice, meus senhores!”(POMPÉIA, 1992, p. 138)
Ao expor Cândido e Emílio, Aristarco objetiva, além ferir a auto-estima dos
alunos, coibir possíveis manifestações homossexuais no futuro. Objetivo que não é
atingido, uma vez que o narrador-autor mostra que a homogeneidade é apenas aparente, já
que a sexualidade, embora ignorada pelo colégio Ateneu, está presente, incisivamente, no
contexto escolar:
E para prevenir: todo aquele que direta ou indiretamente se acha
envolvido nesta miséria... tenho a lista dos comprometidos... e que negar
espontâneo auxílio ao procedimento da justiça, será reputado cúmplice e
como tal: punido!" Este convite era um verdadeiro arrastão. Remexendo a
gaveta da consciência e da memória, ninguém havia, pode-se afirmar, que
não estivesse implicado na comédia colegial dos sexos, ao menos pelo
enredo remoto do ouvi dizer. (POMPÉIA, 1992, p. 134)
Portanto, a sexualidade em o Ateneu tem um modelo único e socialmente
aceito: práticas sexuais para o casamento e procriação entre homens e mulheres. Vê-se que
a escola tomou para si a tarefa de ensinar as preferências sexuais, mas essas devem seguir
seu padrão do que é certo ou errado. As sexualidades alternativas são marginalizadas,
silenciadas, discriminadas, expostas ao ridículo e aos insultos em público. Classificadas
como maus exemplos, são submetidas às medidas disciplinares.
Para Miskolci, “marcar alguém como estranho é a forma que encontram
para defender o mito de neutralidade da escola em matéria de sexualidade” (2005, p.18).
Logo, a escola nem sempre leva em conta que a sexualidade foi construída historicamente
e que existem formas rias de se viver a masculinidade ou feminilidade. Dessa forma, “a
instituição que em tese deveria educar respeitando as particularidades e de forma a
contribuir para uma sociedade mais justa termina por ensinar a dissimulação, a obrigação
de rejeitar em si mesmos tudo o que os diferencia da maioria” (MISKOLCI, 2005, p. 19).
O Ateneu corrobora, pois, uma prática educativa homofóbica, ao tentar
introjetar no aluno a opção pela heterossexualidade, o que indica sua cumplicidade com a
forma hegemônica que prescreve um único molde de sexualidade. Quando Aristarco
silencia sobre as possíveis relações homossexuais ou quando expõe ao público Cândido e
Emílio, humilhando-os, enxerga os alunos como pertencentes a um grupo assexuado.
117
Assim, ao tentar reprimir a sexualidade, Aristarco deixa de debater o
assunto e de mostrar o quanto as pessoas são complexas e vão além de suas práticas
sexuais e “que a diferença não precisa ser uma marca, uma categoria ou um estigma, mas
algo que nos faça repensar modelos que nos aprisionam em um binarismo de gênero que
não se sustenta” (MISKOLCI, 2005, p. 19).
Essa regulamentação meticulosa da vida estudantil pode até assegurar
mudanças de comportamento, aprendizado, desenvolvimento de aptidões, mas esses nem
sempre se dão como descritos oficialmente.
Aristarco soprou duas vezes através do bigode, inundando o espaço com
um bafejo de todo-poderoso. E, sem exórdio: “Levante-se, Sr. Cândido
Lima! “Apresento-lhes, meus senhores, a Srª Cândida, acrescentou com
uma ironia desanimada. Para o meio da casa! e curve diante dos seus
colegas!!” (POMPÉIA, 1992, p. 137-138)
São transformações que, por serem permeadas por lutas e resistências,
deixam de atender às expectativas iniciais de quem detém o poder. Exemplo disso é o
desfecho de o Ateneu: consumido pelo fogo.
Ateneu devastado! O seu trabalho perdido, a conquista inapreciável dos
seus esforços!... Em paz!... Não era um homem aquilo; era um de
profundis. estava; em roda amontoavam-se figuras torradas de
geometria, aparelhos de cosmografia partidos, enormes cartas murais em
tiras, queimadas, enxovalhadas, vísceras dispersas das lições de anatomia,
gravuras quebradas da história santa em quadros, cronologias da história
pátria, ilustrações zoológicas, preceitos morais pelo ladrilho, como
ensinamentos perdidos, esferas terrestres contundidas, esferas celestes
rachadas; borra, chamusco por cima de tudo: despojos negros da vida, da
história, da crença tradicional, da vegetação de outro tempo, lascas de
continentes calcinados, planetas exorbitados de uma astronomia morta,
sóis de ouro destronados e incinerados... Ele, como um deus caipora,
triste, sobre o desastre universal de sua obra. (POMPÉIA, 1992, p. 189)
Para Santiago (1978) o fogo pode ser entendido como uma vingança pessoal
do narrador-autor. Portanto, o incêndio em o Ateneu destrói o objeto, que ainda pode fazer
parte da existência do Sérgio adulto. Embora tenha saído há tempos do colégio, esse parece
não ter saído de Sérgio. Ao queimá-lo, seu presente e futuro estão simbolicamente libertos,
pois é realizado “funeral para sempre das horas” (POMPÉIA, 1992, p.189). O fogo tem
vários significados:
118
O elemento que parece ter vida, porque consome, aquece e ilumina, mas
também pode causar dor e morte, é simbolicamente ambivalente. [...]
Assim o fogo pode ter a característica da ‘chama purificadora’, que
destrói o mal e que pode eliminar qualquer traço de corporeidade em
bruxas (cf. Feiticeiras) e outros seres demoníacos, que anula as máculas
do purgatório da doutrina católica. (BIEDERMANN, 1993, p. 162-163)
O
fogo, em o Ateneu, pode ser entendido como purificação e destruição.
Purificação, pois o incêndio traz ao Sérgio-narrador a libertação de suas horas de dor,
medo, lutas, amores, carências, monotonia, desejos e as humilhações que não lhe saem da
memória. Portanto, tudo isso e necessita ser queimado e simbolicamente enterrado.
O fogo pode, também, ser interpretado como a destruição de Aristarco, seu
opressor e representante de um sistema que precisa ser reorganizado e tornar-se mais
humano. Nesse aspecto, o Ateneu, como instituição disciplinadora, assemelha-se às atuais
instituições escolares ou de enclausuramento que, nas rebeliões, podem ser incendiadas,
depredadas e parecem caóticas incivilidades, frutos de relações humanas deterioradas
problema, que como é evidenciado em O Ateneu, revela-se um tanto antigo e, ainda
hoje, não resolvido.
Pode-se concluir que o Ateneu, como instituição pedagógica, vai além da
escolarização, uma vez que pretende moldar comportamentos e provocar mudanças morais,
psicológicas e físicas. Para tanto, são usados tanto signos verbais (aulas, exortações,
perguntas...) como não verbais (gestos, olhares, cores...). Contudo, essa imposição oficial
sofre resistências, pois dentro desse mundo submundos, que são organizados e
reorganizados, continuamente, através de um jogo de forças.
Portanto, o que se pode ver em O Ateneu é uma estreita relação com a vida,
imitando o seu ritmo e buscando um vínculo entre universo estético da obra e mundo do
leitor. Desse modo, o receptor da obra poderá compreender o mundo em que se insere ou
esteve inserido, que ao vivenciar um fato, por se estar demasiadamente envolvido, não
se é possível uma visão do todo, mas uma fragmentada e incompleta. Assim, tanto o
Sérgio-narrador como o leitor da obra passam a contemplar à distância um fato que pode
envolver a ambos. Tudo isso é permitido pela ficção e pode favorecer uma percepção mais
clara do mundo ‘real’.
119
CONCLUSÃO
Analisar O Ateneu é ver, principalmente, o narrador-personagem Sérgio
metamorfoseando-se ao longo da narrativa. Por meio de práticas discursivas, às quais vai
se adequando, interpretando e ressignificando, a personagem constrói e desconstrói o
mundo a sua volta e a si mesmo. Assim,
é o menininho amedrontado e desamparado em um ambiente hostil:
“não havia mais a mão querida para acalentar-me o primeiro sono [...] a convicção do meu
triste infortúnio lentamente, suavemente aniquilou-me num conforto de prostração e eu
dormi” (POMPÉIA, 1992, p. 38);
é o aluno apático que deixa de estudar: “Dias depois da terrível
nota, voltava eu a figurar com outra má, menos filosoficamente redigida, porém agravada
de reincidência. Aristarco não perdoou mais. Houve ainda terceira, quarta, por diante”
(POMPÉIA, 1992, p. 56);
é o aluno que ganha autoridade: “Dias depois, no colégio, eu era um
pequeno potentado. Derrubei o Sanches; consegui revogação da disciplina das espadas;
reconquistei a benevolência de Mânlio; levantei a cerviz! Desembaraçado do arbítrio
pretensioso de um vigilante, o trabalho agradou-me” (POMPÉIA, 1992, p. 76);
é o adolescente em dúvida quanto à sua orientação sexual:
A amizade do Bento Alves por mim, e a que nutri por ele, me faz pensar
que, mesmo sem o caráter de abatimento que tanto indignava ao Rebelo,
certa efeminação pode existir como um período de constituição moral.
Estimei-o femininamente, porque era grande, forte, bravo; porque me
podia valer; porque me respeitava, quase tímido, como se não tivesse
animo de ser amigo. Para me fitar esperava que eu tirasse dele os meus
olhos. A primeira vez que me deu um presente, gracioso livro de
educação, retirou-se corado, como quem foge. Aquela timidez, em vez de
alertar, enternecia-me. (POMPÉIA, 1992, p. 93)
é o menino-homem:
Eu me sentia pequeno deliciosamente naquele circulo de conchego como
em um ninho. Quando entrei em convalescença, a graciosa enfermeira
tornou-se alegre. [...] Desde essa ocasião, fez-se-me desesperada
120
necessidade a companhia da boa senhora. Não! eu não amara nunca assim
a minha mãe. (POMPÉIA, 1992, p. 180-181)
é o homem dominado por lembranças
:
Um dia, meu pai tomou-me
pela mão, minha mãe beijou-me a testa, molhando-me de lágrimas os cabelos e eu parti.
é o homem crítico, irônico, mordaz:
“Ateneu! Ateneu! Aristarco, todo era um anúncio. Os gestos, calmos,
soberanos, eram de um rei o autocrata excelso dos silabários; a pausa
hierática do andar deixava sentir o esforço, a cada passo, que ele fazia
para levar adiante, de empurrão, o progresso do ensino público”
(POMPÉIA, 1992, p. 15)
Mas a metamorfose não se limita a esses poucos exemplos. Acompanhando
o olhar do narrador pelas dependências do colégio, é perceptível que o modelo de homem
binário não existe Aristarco é mais um exemplo: “Sua diplomacia dividia-se por
escaninhos numerados, segundo a categoria de recepção que queria dispensar. Ele tinha
maneiras de todos os graus, segundo a condição social da pessoa” (POMPÉIA, 1992, p.
28). Portanto, uma variedade de modos de ser e as pessoas não podem ser definidas
somente por sua idade, classe social e gênero. Portanto, o colégio Ateneu mostra-nos o
quanto uma identidade pode ser multifacetada, dinâmica e ambígua.
Sérgio-narrador corrobora o quanto é irreal pensar que o aluno, ao adentrar
os portões escolares, deixará lá fora sua história de vida, seu corpo, suas emoções e
sentimentos. Da mesma forma, ao sair, carrega as marcas da escola, o que nem sempre
significa ‘conteúdos estudados’. Assim, o personagem Sérgio não pode ser considerado
apenas uma criança ou um aluno ou ainda, um adulto em suas reminiscências. É tudo isso
e mais: um adulto, masculino, com sentimentos específicos, sonhos e expectativas,
representante de uma classe social e marcado por uma experiência de vida.
São identidades contraditórias que coexistem e apresentam uma infinidade
de possibilidades, às quais Sérgio, a longo da narrativa, vai se adequando conforme a
manifestação discursiva com que se depara. Isso comprova que as identidades não são
inerentes ao ser humano, mas emergem de práticas discursivas que constroem a realidade
social e a do indivíduo. Daí a importância do discurso, pois
121
Falar, nomear, conhecer, transmitir, esse conjunto de atos se formaliza e
se reproduz incessantemente por meio da fixação de uma regularidade
subjacente a toda ordem social: o discurso. A palavra organizada em
discurso incorpora em si, desse modo, toda sorte de hierarquias e
enquadramentos de valor intrínsecos às estruturas sociais de que emanam.
Daí porque o discurso se articula em função de regras e formas
convencionais, cuja contravenção esbarra em resistências firmes e
imediatas. Maior, pois, do que a afinidade que se supõe existir entre as
palavras e o real, talvez seja a homologia que ela guarda com o ser social.
(SEVCENKO, 1995, p. 20)
É, pois, por meio de sua participação em discursos que a personagem vai
aprendendo suas crenças, valores, visão de mundo e projetos políticos. As práticas
discursivas são, pois, determinantes em suas mudanças identitárias e sujeitam-no aos
constantes reposicionamentos, o que caracteriza os aspectos móvel, dinâmico e flexível da
identidade. Entretanto, o Ateneu, como ambiente escolar, evidencia que tal característica
nem sempre é observada.
Pautado em um pretenso discurso monocultural, construído a partir de um
modelo hegemônico, o colégio Ateneu nem sempre leva em conta a riqueza formadora do
ser humano e procura enquadrá-lo ao seu monopólio cultural. no interior do colégio
toda uma engrenagem que camufla as diferenças e acaba ensinando a dissimulação, o que,
em o Ateneu, ocorre, entre outras formas, por meio da seleção das disciplinas instituídas,
da valorização da cultura européia, das escolhas dos heróis que serão vistos e/ou deixados
para a posteridade, dos mbolos representativos dos ideais escolares e das tentativas de
silenciar as diferenças presentes no ambiente escolar.
Assim, por meio de uma prática educativa baseada na invisibilidade das
diferenças, a escola procura apoiar-se no mito da neutralidade e impor as formas que
considera adequadas para ser e se comportar. Sabe-se que esse modelo de prática
pedagógica mostrado em O Ateneu pertence ao mundo ficcional da literatura, que fala ao
historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram,
sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos
homens que foram vencidos pelos fatos” (SEVCENKO, 1995, p. 21). Entretanto, a
possibilidade de tornar-se um fato não está ausente da realidade vivida.
Numa incursão aos atuais contextos educacionais, como aluno ou docente,
pode-se perceber que ainda fortes vestígios dessa prática pedagógica voltada para a
disciplinarização do corpo, para a uniformização e em mecanismos que negam a
122
diversidade e a existência de outros saberes. Diante disso, pergunta-se: a prática
pedagógica evidenciada em O Ateneu poderia ser diferente?
Se a educação que se almeja for aquela de transformação social, de
desenvolvimento de uma consciência crítica, aquela em que o aluno perceba as múltiplas
culturas e rompa com a reprodução de uma pretensa cultura dominante, uma possível saída
seria a fomentação de uma intervenção intercultural, o que significa “superar de vez a
assimilação e a coexistência passiva de uma diversidade de culturas para desenvolver a
auto-estima, assim como o respeito e a compreensão aos outros(SILVA, 2003, p. 47).
Portanto, transformar o contexto educacional implica em buscar uma educação que
questione as relações de poder implícitas nas práticas discursivas presente no colégio.
O olhar denunciador de Sérgio-narrador-personagem de O Ateneu revela tais
práticas e mostra que o poder não tem mão única pode ser, por exemplo, o poder
legitimado de Aristarco: “Ao peito tilintavam-se as agulhetas do comando, apenas de
cordões vermelhos em trança. Ele dava as ordens fortemente, com uma vibração penetrante
de corneta que dominava a distancia, e sorria à docilidade mecânica dos rapazes”
(POMPÉIA, 1992, p. 20); ou pode ser o poder deslegitimador do discurso de Aristarco:
Sua diplomacia dividia-se por escaninhos numerados, segundo a
categoria de recepção que queria dispensar. Ele tinha maneiras de todos
os graus, segundo a condição social da pessoa. As simpatias verdadeiras
eram raras. No âmago de cada sorriso, morava-lhe um segredo de frieza
que se percebia bem. E duramente se marcavam distinções políticas,
distinções financeiras, distinções baseadas na crônica escolar do
discípulo, baseadas na razão discreta das notas do guarda-livros.
(POMPÉIA, 1992, p. 28)
ou ainda, o poder das atitudes desafiadoras de Franco:
Franco, no domingo da véspera, aproveitando a largura da vigilância no
dia vago, fora vadiar ao jardim. E para tomar água de um poço aí
existente, cuja bomba não funcionava em regra, deliberou, imaginem!
umedecer a bucha aspiradora com um quido que Moisés seria capaz de
obter no árido deserto, sem milagre mesmo e sem Horeb. Agora
considerem que o referido poço fornecia água para a lavagem dos pratos.
(POMPÉIA, 1992, p. 63)
123
Todas essas relações de poder permitem enxergar a necessidade de uma
prática pedagógica carente de mais solidariedade, de justiça e de humanidade, que, pelo
predomínio do autoritarismo e do utilitarismo, é minada uma educação voltada para a
cidadania. Como ser cidadão em um contexto em que a circulação, o funcionamento e a
materialização de um discurso procuram anular uma realidade constituída de uma
multiplicidade de indivíduos e de vontades? Em O Ateneu, o discurso de Aristarco tem
essa função demolidora das diferenças: “O Ateneu é um colégio moralizado! E eu aviso
muito a tempo... eu tenho um código” (POMPÉIA, 1992, p. 29) (grifo nosso).
Nessa mistura de colégio e diretor, a linha que os separa é muito tênue,
relacionam-se por meio da criação de uma aparente vontade única: a de Aristarco, o que
faz jus ao significado da palavra que origina o nome do diretor: (αριστοκρατία, de
ριστεύς (aristoi), melhores, e κρατε
ν (kratos), poder) ‘governo dos melhores, dos
sábios, superiores em moral e intelectualidade’. É esse caráter de superioridade que
sustenta o discurso Aristarco e colabora para que seja mantido um aparente poder
homogêneo. Aparente porque, como revelado por Sérgio-narrador, o poder se dá em
cadeia, em rede, envolvendo indivíduos que estão em posição de sofrerem e/ou exercerem
o poder.
Em o Ateneu, o personagem Franco é visto pelo sistema escolar como
aquele que, além de receber as ações e sanções do poder, serve de exemplo para coibir
ações indesejadas. Sua utilidade é, pois, ser o bode expiatório’ da escola, pois por meio
das punições recebidas, outros alunos serão ‘educados’: “A pior hipótese do sistema do
pelourinho era quando o estudante ganhava o calo da habitualidade, um assassinato do
pudor, como sucedia com o Franco” (POMPÉIA, 1992, p. 56). Mas, por contrariar todas as
imposições do colégio Ateneu, Franco pode ser visto, também, como possível exemplo de
anti-herói:
Durante a conferência pensei no Franco. Cada uma das opiniões do
professor, eu aplicava onerosamente ao pobre eleito da desdita, pagando
por trimestre o seu abandono naquela casa, alaguei do desprezo.
Lembrava-me do desembargador em Mato Grosso e da carta que eu lera e
da irmã raptada, da vingança extravagante dos cacos, da timidez baixa
das maneiras, da concentração muda de ódios, dos movimentos
incompletos de revolta, da submissão final de escorraçado que se resigna.
Tive pena. (POMPÉIA, 1992, p. 63)
124
Franco é um efeito do poder, suas ações são reações a tudo o que é imposto
e, ao subverter o instituído, mostra que na escola as táticas e estratégias discursivas
desdobram-se em estratégias de poder que anulam, humilham, envergonham, inferiorizam,
causam opiniões negativas e vergonhosas. Nesse sentido, sua trágica morte pode ser
entendida como um processo de purificação, uma vez que o universo em que está inserido
parece ser absurdo e imutável.
A personagem é, também, um exemplo de como a vergonha é usada para
promover transformações no aluno: “Hoje é o primeiro dia, ali está de joelhos o Franco.
Assim atravessa as semanas, os meses, assim o conheço, nesta casa, desde que entrei. De
joelhos como um penitente expiando a culpa de uma raça” (POMPÉIA, 1992, p. 34). Esse
tipo de vergonha é definido como a vergonha retrospectiva, pois “profana, mortifica o “eu”
e gera paixões tensas e programas de liquidação da falta” (MIGLIOZZI, 2002, p. 256).
Difere-se da vergonha prospectiva que “transforma o “eu” e evita paixões
tensas e programas de liquidação da falta” (MIGLIOZZI, 2002, p. 256). Vítima da
vergonha retrospectiva, Franco tem seu ‘eu’ mortificado, sendo essa, mais uma tentativa do
colégio Ateneu de assegurar seu poder sobre Franco e os demais alunos. Portanto, o que se
em o Ateneu é uma prática abusiva do uso da vergonha retrospectiva, o que seria
desnecessário se houvesse um trabalho que contribuísse para a inibição de práticas
pedagógicas promovedoras da exclusão e da humilhação. É função da escola
incutir novos valores nos alunos, isto é, fazer com que eles tenham
comportamentos desejáveis, atitudes que os distinguam de outros
indivíduos não-escolarizados, a escola precisa fazer com que eles sintam
vergonha. Mas não se fala aqui da vergonha retrospectiva e sim da
prospectiva. (MIGLIOZZI, 2002, p. 256)
Vê-se que predomínio do uso da vergonha prospectiva revela uma escola em
que o sentimento de moralidade é construído a partir das subjetividades da própria escola,
o que resulta em desigualdades, preconceitos, injustiças, privilégios, corrupção e delação.
Logo, os sentimentos de vergonha e de moral trabalhados na escola deveriam partir de
decisões pautadas em conceitos construídos nos princípios de justiça, igualdade e
democracia princípios que deveriam fundamentar todo o processo educativo, mas,
infelizmente, limitam-se ao papel ou a ações isoladas.
125
Uma possível intervenção nesse processo educativo seria a noção de
interculturalidade, pois ela “parte do pressuposto de uma intervenção crítica e
transformadora na realidade multicultural, trazendo uma proposta de ação” (SILVA, 2003,
p. 48). No contexto de o Ateneu, a noção de interculturalidade poderia equilibrar as forças
presentes e garantir uma participação democrática, que se fundamenta na comunicação
entre os indivíduos e nas relações de trocas presentes nos processos de aprendizagem.
É essa falta de participação democrática que se pode perceber em O Ateneu,
pois, ao colocar-se como dona de uma cultura majoritária, ao desestimular a reflexão sobre
as diferenças e, conseqüentemente, não atingir mudanças nas relações interpessoais e no
reconhecimento das diferenças e respeito às mesmas, o colégio não estimula uma
perspectiva crítica em relação às diferenças. Sendo os discursos sociais responsáveis pela
construção de identidades em o Ateneu, as práticas discursivas que envolvem alunos x
alunos x diretores, professores x alunos deveriam ser revistas, bem como, os discursos
implícitos, pois os mesmos são, também, partes dos significados totais construídos no
colégio.
Se o aluno não consegue ver-se na discurso da escola é como se sua vida
não existisse. Exemplo disso é o relacionamento homossexual entre Emílio Tourinho e
Cândido, que não se reconhecem na masculinidade hegemônica presente no colégio
Ateneu. Portanto, ao evitar a abordagem de um discurso sobre sexualidade em sala de aula,
o colégio foi responsável pela manutenção de atitudes preconceituosas
Sendo assim, o currículo escolar de o Ateneu, ao privilegiar um ensino
retórico e ornamental, deixa de promover a necessidade de se aprender a conviver com a
diferença e com as diversas práticas discursivas. Nesse sentido, nota-se que as escolas têm
papel fundamental na reversão de práticas discursivas que geram exclusão. Portanto,
educação deve ser pensada dentro de uma mudança de concepção, em que a forma de ver o
mundo não seja compartimentalizada, mas que promova a visibilidade dos seres
envolvidos no processo educacional.
Portanto, ao caráter monocultural do colégio Ateneu, construído a partir de
um modelo hegemônico, faltou uma interação que propiciaria aos sujeitos perceberem-se
como donos de práticas discursivas que têm significados. É, pois, a experiência de ser
ouvido, visto, ter sua opinião valorizada, discutida, perceber o brido, o polifônico,
entender novos paradigmas, não dentro de modelos prontos, mas dentro de horizontes que
126
se ampliam e vão criando teias de significados. Tudo isso é intervenção intercultural que
possibilita a dissocialização de subalternizações e exclusões.
Conclui-se que a prática pedagógica explicitada em O Ateneu parece
arraigada em nosso sistema educacional, o que dificulta promover, na escola, mudanças
que objetivem, por exemplo, como o respeito às diferenças sociais, físicas, intelectuais e
ideológicas. Mas é inadmissível, no atual e real contexto escolar do século XXI, dar
continuidade à certas práticas pedagógicas descritas no mundo fictício de O Ateneu, obra
do final do século XIX que possibilita ver personagens agindo no drama da vida e
oferecendo possibilidades de reflexão sobre nosso mundo social. Nesse sentido, o texto
literário não é
uma ferramenta inerte com que se engendre idéias ou fantasias somente
para a instrução ou deleite do público. É um ritual complexo que, se
devidamente conduzido, tem o poder de construir e modelar
simbolicamente o mundo, como os demiurgos da lenda grega o faziam.
(SEVCENKO, 1995, p. 233)
Assim, o poder simbólico da literatura, ‘se devidamente conduzido’, é capaz
de transcender o campo ficcional e orientar mudanças possíveis no mundo real. Afinal,
num mundo fragmentado, líquido e multicultural como o que estamos inseridos, parece
retrógrado manter o atual sistema educacional semelhante aos moldes do retratado em O
Ateneu. Portanto, faz-se necessário pensar educação dentro de uma perspectiva
intercultural e estudar outras formas de mudanças. Perpetuar, na escola, um discurso
monocultural é ver identidade como inerente à pessoa e desconsiderar que as ações
humanas são resultados de ações discursivas.
127
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