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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA
CORPO E IDENTIDADE FEMININA
CORPO E IDENTIDADE FEMININACORPO E IDENTIDADE FEMININA
CORPO E IDENTIDADE FEMININA
Mirela
MirelaMirela
Mirela Berger
Berger Berger
Berger
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em antropologia, do
Departamento de antropologia da
Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo, para obtenção do título de
Doutor em antropologia social.
Orientador: Prof. Dr.Renato da Silva Queiroz
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Corpo e identidade feminina
Mirela Berger
FFLCH, antropologia, USP, 2006.
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Corpo e identidade feminina
Tese de doutorado de Mirela Berger,
FFLCH, antropologia, U.S.P.
A meu pai, que na véspera de seu falecimento
Pediu-me: “Filha, promete que esta é a última?!”.
Papai fica muito orgulhoso, mas também muito nervoso
Quando você escreve qualificação e tese...”
A Satine, com amor de mãe...
“Uma sociedade só encontra existência nos corpos pulsantes dos seres
humanos que a constituem: ela é vísceras, nervos, sentidos, neurônios... A
história, desta maneira, não se concretiza apenas em guerras, decretos, tratados,
obras, monumentos ou entronizações: materializa-se também – e talvez até
primordialmente – em perfumes, sons, miragens, memórias, carícias, distâncias,
ascos, evitações, esquecimentos... Não há outra concretude social: uma sociedade
estará nos corpos de seus membros ou não residirá em parte alguma.”
(José Carlos Rodrigues, O Corpo na História)
Sumário
1 - APRESENTAÇÃO DO TEMA E DOS OBJETIVOS................................................... 1
2 - CONTEXTUALIZAÇÃO DO CAMPO TEÓRICO E DA PESQUISA DE CAMPO . 6
2.1 - METODOLOGIA DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS........................................................ 6
2.2 - DEFINIÇÃO DA AMOSTRA............................................................................................ 10
2.2.1 - Atores e cenários:.............................................................................................. 10
2.2.2 - Perfil sócio-econômico...................................................................................... 15
a) Estabelecendo os indicadores ............................................................................... 16
b) Analisando e correlacionando os indicadores........................................................ 26
2.2.3 - Por uma antropologia do corpo.......................................................................... 37
3 - O LUGAR DO CORPO NA HISTÓRIA..................................................................... 45
3.1 - DEFINIÇÃO DO RECORTE HISTÓRICO ........................................................................... 45
3.2 - IDADE MÉDIA E CORPO.............................................................................................. 46
3.2.1 - As festas medievais e os banquetes.................................................................... 47
3.2.2 - O comportamento à mesa .................................................................................. 49
3.2.3 - Higiene e Imagens Corporais............................................................................. 51
3.3 - MODERNIDADE E CORPO ........................................................................................... 54
3.3.1 - Datação Histórica.............................................................................................. 54
3.3.2 - Novas sensibilidades e fronteiras corporais: os manuais de etiqueta................... 55
3.3.3 - Higiene e Imagens Corporais............................................................................. 59
3.3.4 - Correspondências e rupturas entre medievais e modernos.................................. 63
4 - A NOÇÃO DE BELO: REFERÊNCIAS HISTÓRICAS E NOÇÕES DE BELEZA
PARA AS MULHERES PESQUISADAS......................................................................... 69
4.1 - SENTIDO DAS PRÁTICAS CORPORAIS E DA BELEZA: REFLEXÕES HISTÓRICAS. ................ 70
4.2 - CONCEPÇÃO DE BELEZA PARA AS MULHERES PESQUISADAS. ....................................... 86
4.2.1 - Sentidos da “ malhação”.................................................................................... 86
a) Saúde ou estética .................................................................................................. 87
b) O exercício como um hábito de infância............................................................... 92
c) Bem estar geral e alívio da depressão.................................................................... 93
d) Gosto ou obrigação?............................................................................................. 95
e) Corpo e maternidade............................................................................................. 99
4.2.2 - Modelos atuais de corpo.................................................................................. 101
a) Freqüência e tipos de atividades físicas............................................................... 101
b) Modelos de corpo e beleza ................................................................................. 106
4.2.3 - Corpo e auto-estima ........................................................................................ 120
4.2.4 - Importância do corpo: Presente e passado........................................................ 124
5 - O CULTO AO CORPO: PRODUÇÃO DE SI MESMO, ESTETIZAÇÃO DA VIDA
COTIDIANA E ESPETÁCULO. .................................................................................... 131
5.1 - O CULTO AO CORPO................................................................................................. 131
5.1.1 - Entendendo e datando o processo de culto ao corpo......................................... 131
5.1.2 - Existência do culto ao corpo e suas justificativas para as entrevistadas ........... 135
a) Importância do Momento Presente, da Técnica e do Esforço Individual.............. 138
b) Importância do corpo na obtenção de parceiros afetivos e no mercado de trabalho:
............................................................................................................................... 142
c) Exposição do corpo. ........................................................................................... 148
d) Modelos de beleza e culto à perfeição. ............................................................... 152
e) Competição e Cobrança Social ........................................................................... 158
5.2 - CORPO PERFEITO, ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDINA E IDENTIDADE............................ 165
5.3 - MÍDIA E ESPETÁCULO NO CULTO AO CORPO: O CORPO MIRAGEM................................ 181
6 - A POLISSEMIA DO CORPO.................................................................................... 191
6.1 - MECANISMOS PARA A OBTENÇÃO DO CORPO PERFEITO.............................................. 192
6.1.1 - Rotina de exercícios físicos ............................................................................. 198
6.1.2 - Alimentação e Suplementos Alimentares......................................................... 201
6.1.3 - Cirurgias Plásticas........................................................................................... 210
6.2 - O ESPETÁCULO DO CULTO AO CORPO: CONTRADIÇÕES E DILEMAS. ............................ 223
6.2.1 - Hedonismo, Ascese e disciplinas. .................................................................... 223
6.2.2 - Perigos do Culto ao Corpo: A Perda da Identidade, Distúrbios Alimentares e
espelhamentos............................................................................................................ 232
a) A perda do eu: identidade ou identificação ......................................................... 232
b) O culto à magreza: os distúrbios alimentares ...................................................... 237
c) Espelhamentos: Em quais espelhos as mulheres se miram?................................. 262
7 - CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................... 270
8 - BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 285
Índice de Gráficos
Gráfico 1- Indica a faixa etária de todas as entrevistadas ...................................................... 17
Gráfico 2 - Distribuição da mulheres que possuem namorado ou convivem maritalmente .... 18
Gráfico 3 - Distribuição das entrevistadas que têm filhos ..................................................... 19
Gráfico 4 - Distribuição das entrevistadas segundo a escolaridade........................................ 20
Gráfico 5 - Distribuição das entrevistadas segundo a inserção no mercado de trabalho......... 21
Gráfico 6 - Distribuição das Entrevistadas, segundo a faixa de renda ................................... 24
Gráfico 7 - Gastos com cuidados estéticos............................................................................ 25
Gráfico 8 - Renda de quem está profissionalizada ................................................................ 28
Gráfico 9 - Renda das entrevistadas com nível superior........................................................ 28
Gráfico 10 - Renda das entrevistadas com nível médio......................................................... 28
Gráfico 11 - Nível de escolaridade apenas entre as desempregadas ...................................... 29
Gráfico 12 - Renda de quem não exerce a profissão ............................................................. 29
Gráfico 13 - Distribuição de renda entre mulheres com companheiro ................................... 30
Gráfico 14 - Distribuição de renda entre mulheres sem companheiro ................................... 30
Gráfico 15 - Relação entre estado civil e mercado de trabalho.............................................. 31
Gráfico 16 - Renda entre as casadas que não trabalham........................................................ 31
Gráfico 17 - Mulheres que gostam de malhar ....................................................................... 95
Gráfico 18 - Freqüência semanal a academia...................................................................... 102
Gráfico 19 - Horas diárias de malhação.............................................................................. 102
Gráfico 20 - Exercício e auto-estima .................................................................................. 120
Gráfico 21 - Interferência da malhação nos cuidados corporais .......................................... 122
Gráfico 22 - Aumento da importância do corpo.................................................................. 124
Gráfico 23 - Culto ao corpo................................................................................................ 135
Gráfico 24 - Aparência física na escolha de parceiros afetivos ........................................... 142
Gráfico 25 - Aparência e Mercado de Trabalho.................................................................. 145
Gráfico 26 - Exibição do corpo .......................................................................................... 148
Gráfico 27 - Malhadores como uma tribo urbana................................................................ 157
Gráfico 28 - Importância da aparência física ...................................................................... 167
Gráfico 29 - Aparência e desempenho sexual ..................................................................... 170
Gráfico 30 - Nudez e corpo ................................................................................................ 171
Gráfico 31 - Gosta do próprio corpo................................................................................... 176
Gráfico 32 - Mídia e culto ao corpo.................................................................................... 181
Gráfico 33 - Regimes ......................................................................................................... 202
Gráfico 34 - Medicação para emagrecer ............................................................................. 204
Gráfico 35 - Evolução das cirurgias plásticas ao ano .......................................................... 212
Gráfico 36 - Já fez cirurgia estética .................................................................................... 214
Gráfico 37 - Pretende se submeter a cirurgia estética no futuro?........................................ 214
Gráfico 38 - Apoio ao silicone ........................................................................................... 220
Gráfico 39 - Conhecimento de pessoas com Distúrbio Alimentar. ...................................... 240
Gráfico 40 - Possui distúrbio alimentar ?............................................................................ 248
Gráfico 41 - Para quem você se cuida?.............................................................................. 263
Gráfico 42 - Para quem as mulheres se cuidam .................................................................. 265
Índice de Figuras
Figura 1 - Glúteos e mídia.................................................................................................. 113
Figura 2 - Padrão corporal magra - malhada....................................................................... 119
Figura 3 - A beleza como obrigação................................................................................... 126
Figura 4 - Geladeiras vazias e perfeição física.................................................................... 137
Figura 5 - Tecnologia e corpo ............................................................................................ 140
Figura 6 - Aparência e sucesso........................................................................................... 160
Figura 7 - Feiticeira............................................................................................................ 183
Figura 8 - Mídia e modelos de beleza................................................................................. 184
Figura 9 - Disciplina e beleza............................................................................................. 198
Figura 10 - Mario Forente usuário de anabolizante............................................................. 206
Figura 11 - Bonecos Falcon e Action Man ......................................................................... 206
Figura 12 - Fisiculturismo e anabolizantes ......................................................................... 207
Figura 13 - Usuários de HGH............................................................................................. 209
Figura 14 - Cristina com 5 Kg a mais e a direita, na pior fase das cicatrizes da lipo............ 213
Figura 15 - Anorexia.......................................................................................................... 238
Figura 16 - Capas das revistas "Corpo","Boa Forma" e “Dieta Já” ..................................... 245
Figura 17 - Gisele Bündchen.............................................................................................. 256
Índice de tabelas
Tabela 1 - Ìndice de Massa Corpórea ................................................................................... 15
Tabela 2 - Atividades Físicas Realizadas............................................................................ 104
Tabela 3 - Partes Corporais ................................................................................................ 107
Tabela 4 - Academias x Número de habitantes................................................................... 211
Tabela 5 - Cirurgias plásticas por habitantes....................................................................... 211
Tabela 6 – Idade média dos operados................................................................................. 212
Tabela 7 - Escolaridade apenas das mulheres com Distúrbio Alimentar.............................. 250
Resumo
O trabalho tem como objetivo perceber e compreender como as mulheres brasileiras de
classe média-alta e urbanas (a partir de 1990) pensam a construção de sua auto-imagem, quais
os modelos corporais que influenciam este processo, bem como as técnicas corporais para
alcançá-los. Os eixos de análise são as representações corporais, que uma das hipóteses
centrais do projeto é que através da análise do ideal de corpo perseguido pelas mulheres, seja
possível ter acesso a todo um sistema de percepção não apenas de si, mas também do mundo
do qual estas mulheres fazem parte, que o corpo pode ser visto como um microcosmo e
atesta uma marca social. O trabalho investiga as relações entre corporalidade e identidade
para as mulheres da amostra, questionando, entre outras coisas, se a obtenção de um corpo
específico é, na percepção das mulheres, fundamental para que estas se sintam donas de um
estilo de vida e de um pertencimento social específicos. Investiga a importância da mídia
neste processo, bem como os perigos do culto ao corpo, discutindo e alertando, entre outros
aspectos, para os distúrbios alimentares.
Palavras Chaves: corpo, representações corporais, técnicas corporais, culto ao corpo,
identidade feminina e mídia.
ABSTRACT
The work has as objective to perceive and to understand as the Brazilian women of
upper-middle class and urban (from 1990) they think the construction of its auto-image,
which the corporal models that influence this process, as well as the corporal techniques to
reach them. The analysis axles are the corporal representations, since one of the hypotheses
central offices of the project is that through the analysis of the ideal of body pursued for the
women, either possible to have access all a system of perception not only of itself, but also of
the world of which these women are part, since the body can be seen as a microcosm and
certifies a social mark. The work investigates the relations between corporalidade and identity
for the women of the sample, questioning, among others things, if the attainment of a specific
body is, in the perception of the women, basic so that these if feel owners of a style of specific
life and a social belonging. It investigates the importance of the media in this process, as well
as the perigos of the cult to the body, arguing and alerting, among others aspects, for the
alimentary riots.
Key Words: body, corporal representations, corporal techniques, cult of the body,
feminine identity and media.
AGRADECIMENTOS E CRÉDITOS
“Digam o que disserem, os nossos dias serão para sempre”
(Renato Russo)
Embora escrever um doutorado seja uma das atividades mais solitárias do mundo, é
também um processo resultante de várias mãos. Umas mais próximas, outras mais distantes,
mas todas presentes de uma forma ou de outra. Talvez seja injusto tentar nomear a todas, a
memória nos trai, deixamos de fora pessoas que torceram pelo trabalho, se fizeram
presentes... A estas deixo minhas sinceras desculpas... Mas, seria igualmente injusto deixar de
mencionar alguns nomes e, assim, aqui vamos nós.
Algumas contribuíram diretamente para o processo, lendo os textos preliminares,
discutindo e apontando idéias.
Meu prezado orientador, Prof. Dr. Renato da Silva Queiroz, sabiamente administrou
meus delírios e ansiedades e colocou o trabalho numa perspectiva muitas vezes negligenciada,
qual seja, da biologia, fornecendo contribuições valiosas. Seu bom senso e erudição foram
prestimosos e sou muitíssimo grata por ter sido sua orientanda.
Agradeço em especial a Dra Maruska Freire Rameck, que leu não apenas o texto da
qualificação, mas também a primeira versão da tese. Considero-a uma co-orientadora, que
indicou divisões que organizaram melhor o texto, bem como sugeriu vasta literatura a respeito
das questões de gênero. Sem sua disponibilidade e atenção esta tese não seria o que é. O Prof.
Dr. John Dawsey, argüidor da qualificação, sugeriu prestimosas leituras e abriu searas onde
eu via apenas deserto.
Quanto ao campo da pesquisa, o apoio da academia de ginástica “Cia Athletica”,
unidade Shooping Morumbi foi fundamental. Agradeço às meninas da recepção, em especial,
Karla, Renata, Carol e Cyntia, por todo apoio e atenção. Muitas entrevistas foram gravadas no
restaurante “Paolla Panine”, cujos funcionários, complacentes, deixavam que eu
permanecesse horas por ali, mesmo depois deles terem arrumado o espaço e encerrado as
atividades.
Não posso, para preservar a identidade das entrevistadas, nomear cada uma das 80
mulheres que preencheram os questionários, bem como as 70 que gravaram entrevistas. Mas
sou extremamente grata a elas pela disponibilidade de falarem sobre aspectos tão íntimos
quanto à relação com o corpo. Muitas deram depoimentos comoventes e polêmicos, e na
medida do possível, procurei contemplar a todas, na escolha dos depoimentos. Ainda assim,
os diálogos travados foram muito mais densos do que parecem aqui, revelando o quanto estas
mulheres estão conscientes acerca da importância dada ao corpo na atualidade. Além de
gravarem entrevistas, muitas mulheres ainda fizeram a gentileza de ampliar o espectro da
amostra, levando questionários extras e pedindo que suas amigas os respondessem. Fernanda
e Cássia foram imbatíveis na abordagem das entrevistadas, às vezes com mais ímpetos do que
eu mesma.
As professoras de ginástica Alessandra, Carol, Cícera, Cíntia, Elaine, Halane, Sabrina,
Tatiana, Val e Vivian foram informantes especiais e levaram–me por meandros
desconhecidos dentro do universo da academia. Neste sentido, um agradecimento especial a
doce e inesquecível Catarina (in memorium), cuja voz por vezes escuto, para dissimular sua
ausência.
Para minhas amigas de academia, das varias tribos, BodyPump, BodyBalance,
Spinning, alongamento e dança - todo o meu amor e gratidão por tantas situações partilhadas,
informações, chamegos, paciência e tudo mais que só amigas queridas podem dar. Ternuras
especiais para Dirce, Maru, Adriana, Carmem, Clara, Cristiane, Daniela, Eunice, Gabriela,
Juliana, Marília, Licia, Lúcia, Luciana, Maruska, Karen, Joana, Marlucci, Nara, Net, Pratricia,
Suzana, Viviane, Márcia, Walquiria... Graças a Deus, são tantas que se torna impossível
nomear todas!
Rosa, amiga de todas as horas, Deus sabe o quanto lhe sou grata, e também ao
Marcinho, por tudo! (e isso, como sabemos, não é pouca coisa!)
Jose, Raimundo e Gabriel são amigos novos, capixabas, meus portos-seguros nesta terra
ainda misteriosa para mim. Agradeço também a Diana e Nilsete, as únicas responsáveis em
cuidar do meu lar físico, enquanto eu morava no escritório e literalmente, “vivia” (teses não se
escrevem, se vivem) um doutorado.
Ana, mais do que amiga, guru, que você continue a içar as mulheres perdidas dentro de
nós. Sua dança e sabedoria nos levam a vários templos, e ao mais precioso deles, nosso corpo,
não só em sua aparência, mas realmente, em seu âmago.
Agradecimentos especiais ao prof. Villas, que sempre demonstrou interesse pelos rumos
desta pesquisa e que acredita, como eu, que falar de corpo nos remeta a universos mais
amplos do que pareça em princípio.
A vida também me agraciou com amigos ultrapolivalentes, que por hora consolam as
mágoas e partilham as alegrias; noutras vezes, transcrevem entrevistas, digitam textos,
elaboram gráficos, analisam estatísticas, brincam de arguidoras em pleno Ano-novo. Em
especial, minha cunhada Antonieta e minhas amigas desde sempre, Luciene, Silvana, Lodi,
Patrícia, e é claro, Juliana. Amigas de décadas, tão presentes em minha vida que seria
impossível pensar-me sem elas: são esteio, parceiras, irmãs de alma. São, simplesmente, tudo
de bom que alguém pode ter.
Fernando, Otávio, Guilherme e Kauê são sobrinhos/afilhados de alma e sangue e,
sobretudo a eles, peço desculpas pelas ausências, que graças a Deus, incomodam mais a mim
que a eles.
A Camilo, por todo amor que vivemos e que ficara em mim para sempre, como
acontece com nossos momentos mais caros e a toda sua família, que tantas vezes foi minha
também.
Ao meu ex-colegas e coordenadores da Unisa, que como eu acreditam que ainda vale a
pena lecionar, mesmo com toda precariedade de nosso sistema educacional, todo meu afeto e
gratidão. Nelly Robles Baccelar, Vera Góes, Rafa, Luis, Ioli, Tereza, Patricia, Julia, Zeca,
Carlos, Alfredo, Márcia, Kátia, Celso e tantos outros, bem como ao pessoal das secretárias e
do xerox, meus agradecimentos.
Meus ex-alunos de todas as áreas e turmas quero que saibam que se um dia fui
professora, foi graças a cada um de vocês. Nada tomará de mim o prazer de ter visto olhares
que mais pareciam fagulhas ver o saber refletido e emanado de vocês, partilhar
descobertas... Cada turma foi especial a sua maneira e esta tese é também para vocês, bem
como minhas desculpas pela longa ausência imposta pelo doutorado. Um dia eu volto e aí,
será para ficar.
Agradeço em especial a Ivan, que nunca perdeu uma oportunidade para me instigar
sobre a importância social em divulgar aspectos nocivos do culto ao corpo.
Agradeço também a toda FFLCH, em especial ao departamento de antropologia, o
pela excelência de seus professores – e em especial Carlos Rodrigues Brandão, Heloísa e José
de Sousa Martins, Margarida Moura, Leonel Itaussu de Mello, Carmem Cinira, Lux Vidal,
Sylvia Caiuby, Guilherme Manhani, Eunice Durham, Thiago Pinto de Oliveira, Dominique
Gallois e Maria Lucia Montes -, mas também pela confiança em mim depositada. E, sempre,
ao pessoal da ANPOCS, tanto pelos encontros em Caxambu, fundamentais para o progresso
desta pesquisa, quanto pelo carinho e atenção a mim dedicados: Cristina, Mírian, Maurício,
Robson, Prof. Dr. Flávio Pierucci (em especial) e Prof. Dr. Sérgio Adorno, a vocês todos,
minha gratidão.
A concessão de bolsa de pesquisa da Capes foi vital para a realização deste trabalho.
Outras pessoas também são e serão sempre lembradas: as meninas do café”, Maria
Alice, Geni, Carlota e Maria, pelo café e carinho nele embutido; S. Guigui e família; Soraia,
Ednaldo, Celso, Rose e Ivonete; S. Lino, Raul, Da. Terezinha, Carminha, Nair e seu pessoal,
Bia e Maria.
Por fim, agradeço a minha família (lembremos que as melhores partes de tudo sempre
ficam para o fim) por todo apoio ao longo de tantos anos. Minha avó materna, ahoje se
pergunta por quanto tempo eu vou ficar escrevendo teses. Minha irmã, atriz e agora
historiadora bem sabe as agruras da vida acadêmica. É bom que saibam –e esta é uma boa
oportunidade de dizer-lhes em público- que as amo, apesar e por conta de todas as diferenças
inerentes a todos nós.
Pode parecer pieguice –e talvez seja mesmo - mas meus bichos de estimação são muito
mais do que meros seres animados, são membros da família, companheiros, amigos, do tipo
que se sentam aos nossos pés e esperam, esperam, esperam... Tudo me dão e pouco me
pedem, e na solidão intelectual e física do doutorado eles sempre se fizeram presentes, em
especial, Batata, Ana, Morgana, Pipoca, Kiara e Satine.
Meu companheiro e amor, Edson Silva Marques, bem como toda sua extensa família
entrou em minha vida quando eu menos esperava e são muito mais especiais do que eu
poderia imaginar. Além de diagramar toda a tese, Edson contribuiu com idéias, corrigiu meus
rumos e deu sugestões inusitadas e talvez, por isso mesmo, algumas das melhores que eu
recebi. Inúmeras vezes adentramos pela madrugada editando imagens e trabalhando até a
exaustão. É um companheiro em todas as acepções possíveis e me faz acreditar, mesmo a
duras penas, que ainda sentido nesta vida, ainda mais, quando estamos juntos no mesmo
abraço.
Por fim, esta tese é um compromisso de honra com meus pais, que tanto sonharam com
ela, mas não a puderam ver concluída. Não dia em que eles não estejam comigo em
pensamento, e enquanto coloco o ponto final desta tese, sei que eles sorriem e dizem, em
uníssono: “Está feita. E é nossa.”
Ponta da Fruta (E.S), 14 de julho de 2006.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 1
1 - Apresentação do tema e dos objetivos
“Felicidade é entrar num vestido P”
(frase de um outdoor de “diet shake”, produto auxiliar de dietas de
emagrecimento).
Estar magra. Malhada. Definida”. Coxas duras. Ausência de barriga. Bumbum
proeminente e durinho. “Perca peso e não ache nunca mais”. “Fique linda, em clínicas
especializadas no tratamento estético facial e corporal”.
Outdoors, comerciais de televisão, anúncios de revistas nos bombardeiam com
mensagens verbais ou imagéticas que salientam a importância de atingirmos um padrão
corporal específico. Homens e mulheres são confrontados diariamente com anúncios nas mais
variadas fontes de informação, tais como revistas especializadas, de variedades, jornais
televisivos ou escritos. São comuns, ademais, programas, e mesmo canais de televisão
voltados para a estética corporal e facial.
As academias de ginástica proliferam pelos bairros (abastados ou não) e fornecem
suportes àqueles que querem atingir o hoje tão alardeado corpo ideal. Quem tem maior poder
aquisitivo, recorre aos personal trainers
1
, que prometem melhores resultados, que dedicam
atenção a uma única cliente num determinado número de horas. Para estas pessoas, recorrer a
tal serviço, além de ser importante na construção da estética desejada, também indica um
estilo de vida, em que a vaidade, a negação das marcas de envelhecimento e o “estar na
moda” são itens fundamentais.
Também nunca foi tão fácil adquirir aparelhos de ginástica, que hoje podem ser
encontrados em qualquer grande supermercado, comprados por telefone ou pela internet. O
recurso às clínicas de estética, que se multiplicaram consideravelmente a partir de 1990,
também é um dos instrumentos das mulheres na busca do corpo ideal. Isto, sem mencionar as
cirurgias plásticas, bastante comuns entre as brasileiras.
Estamos vivendo um período de culto ao corpo, que se aprofundou a partir de1980 em
países como os Estados Unidos e, a partir de 1990, no Brasil.
Neste processo, o corpo configura-se como uma nova cultura e pode fornecer caminhos
para se pensar os mecanismos de identidade feminina.
1
Profissionais formados em Educação Física, que atuam como professores particulares.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 2
Assim, este trabalho tem como objetivos perceber e compreender como as mulheres
brasileiras urbanas a partir de 1990 pensam a construção de sua auto-imagem, que modelos
corporais exercem influência neste processo, bem como as estratégias para alcançá-los.
Embora o trabalho priorize os modelos corporais, é claro que, ao tentar compreender e retratar
os padrões de beleza entre as mulheres, os cuidados com o rosto, mãos e cabelos também
deverão ser levados em consideração, pois, como afirma Ivo Pitangy, são constitutivos da
auto-imagem, expressando a individualidade
2
.
Estamos interessados em apreender os modelos de corpo feminino preponderantes entre
70 mulheres urbanas que se exercitam regularmente e quais as técnicas para alcançá-los. É de
interesse da pesquisa perceber, ademais, se houve um crescimento da importância dada à
estética a partir de 1990, traçando uma retrospectiva histórica para comparar a importância
conferida ao corpo nas décadas anteriores.
Outro ponto central da pesquisa é refletir sobre o fenômeno do culto ao corpo,
procurando entender suas origens e implicações para a auto-estima e identidade femininas.
As hipóteses centrais do projeto são as seguintes.
1) Acredita-se que por meio da análise do ideal de corpo almejado e perseguido
pelas mulheres seja possível ter acesso a todo um sistema de percepção o
apenas de si, mas também do mundo do qual estas mulheres fazem parte,
que o corpo pode ser visto como um microcosmo. Ou seja, pretendemos
perceber se a obtenção de um corpo específico é, na percepção das mulheres,
fundamental para que estas se sintam donas de um estilo de vida e de um
pertencimento social específico;
2) A pesquisa de campo aponta para a importância da mídia na definição e
constituição destes modelos corporais. As mulheres entrevistadas afirmam
que querem se parecer com os modelos corporais estampados nos outdoors,
comerciais de televisão, novelas, revistas de moda, de estética (como, por
exemplo, a “Boa Forma”), de variedades (“Veja”, “Revista da Folha”, entre
outras), que abordem celebridades (“Caras”, “Chiques e Famosos”). Neste
sentido, a etnografia parece apontar para uma grande importância dos meios
de comunicação neste processo de definição e busca do corpo ideal. Caso
este dado de fato se confirmasse preponderante, na pesquisa de campo, a
2
Os cabelos, por exemplo, carregam uma vasta simbologia e revelam o estados de personalidade quanto a
inserção em determinado grupo social.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 3
análise envolveria também, além das academias e clínicas de estética, as
imagens corporais que estas mulheres consideram significativas.
Para melhor compreensão e organização dos dados e análise, esta tese está dividida em
três segmentos, o primeiro, trata-se desta apresentação; o segundo reserva-se às considerações
finais; e o terceiro, refere-se à bibliografia; bem como por seis capítulos que procuram expor
os tópicos centrais. Em seguida, apresenta-se subdividida em itens e sub-itens, que
desenvolvem pontos mais específicos do trabalho.
O Capitulo 2 -, intitulado “Contextualização do campo teórico e da pesquisa de campo”
visa explicitar a metodologia utilizada na pesquisa, exposição e análise dos dados. Apresenta
também a indicação da amostra e sua categorização do ponto de vista de seu perfil sócio-
econômico (traçado apenas em linhas gerais). Apresenta também uma breve discussão do
campo teórico em que se insere a pesquisa, para que possamos compreender as linhas
analíticas que permeiam toda a análise.
O capítulo 3 -, intitulado “O lugar do corpo na história.”, fornece o contexto histórico da
discussão e é estratégico no sentido de oferecer ao leitor as balizas temporais da cultura do
corpo. Ele pretende evocar as representações corporais da modernidade e do “outro” do qual
ela procura distinguir-se, qual seja, a Idade Média. Longe de tentar desvendar estes dois
oceanos de tempo, a análise visa dar ao leitor condições para comparar as premissas corporais
entre medievais e modernos, para, em seguida, mergulhar em nosso próprio tempo, a
contemporaneidade.
No capítulo 4 -, intitulado A noção de belo: referências históricas e noções de beleza
para as mulheres pesquisadas.”, mostramos que a beleza só pode ser entendida dentro de
contextos históricos e culturais que variam de época para época. Uma vez tendo esboçado os
séculos anteriores no capítulo 3 -, começamos aqui com o início do século XX e nos
estendemos até o momento presente, século XXI. Neste capítulo, discutimos, entre outros
pontos, o embate entre os discursos da saúde e da estética, utilizados por parte dos médicos e
outros profissionais da área de saúde, bem como daquelas consideradas “formadoras de
opinião”
3
para explicar a cultura do corpo contemporânea.
Mostraremos que a ênfase dada ao corpo atualmente não está somente relacionada às
questões de saúde. Ela relaciona-se mais com os modelos estéticos, que estão longe de serem
3
Quando falo em meio de comunicação”, refiro-me a jornais televisivos ou escritos, revistas de variedades e
especializadas, novelas, seriados, programas de entrevistas, etc. Formadoras de opinião” são pessoas que
aparecem com destaque nestes veículos de comunicação de massas, tais como apresentadoras de televisão,
produtoras de moda, artistas, modelos, entre outras, e que, por ocuparem uma posição de prestígio, m
influência nos processos de veiculação de valores e idéias.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 4
“naturais”. É sabido entre antropólogos que o corpo sempre foi e será objeto de intervenções
culturais e é sobre elas que tese se deterá. Como afirmam Queiroz e Otta (2000), “um corpo
intocado constitui um mero objeto natural e, como tal, associado à animalidade. Assim,
parece imperioso alterá-lo, segundo padrões culturalmente estabelecidos, para a afirmação
de uma identidade grupal específica” (Queiroz e Otta, 2000: 21).
Ainda neste capítulo, começaremos a traçar os modelos corporais em vigor na
atualidade, bem como a importância de que estes se revestem para a auto-estima feminina e
para a própria construção da identidade entre as mulheres pesquisadas. Mostraremos, já
abrindo caminho para o próximo capítulo, que a importância dada ao corpo cresceu com
relação aos anos de 1920, e mesmo em relação aos séculos anteriores, revestindo-se de novos
significados e constituindo-se, mais do que mera preocupação de um grupo ou outro, num
verdadeiro culto ao corpo.
No Capítulo 5 -, “O culto ao corpo: Produção de si mesmo, estetização da vida cotidiana
e espetáculo.”, explicitaremos porque a relação com o corpo na atualidade pode ser
caracterizada como um culto ao corpo, quais as origens deste processo e como ele se
manifesta na vida de nossas entrevistadas.
Ainda neste capítulo, mostraremos que o culto ao corpo, ao mesmo tempo em que se
reveste de algumas características da modernidade, como a estetização da vida cotidiana e a
produção de si mesmo enquanto obra de arte, também as suplanta e nos coloca diante de uma
problemática nova, devido ao tipo de importância, sem precedentes em outras épocas, que o
corpo assumiu na contemporaneidade. Por fim, mostraremos que sem a mídia o processo de
culto ao corpo não seria nem efetivado nem alimentado: mídia e culto ao corpo se entremeiam
e se sustentam mutuamente, constituindo-se como verdadeiros pilares da ideologia do corpo.
O capítulo 6 -, “A Polissemia do Corpo.”, investiga em primeiro lugar os mecanismos
para a obtenção do corpo perfeito. Além de mostrar as técnicas que as mulheres utilizam na
luta pelo corpo “perfeito”, esta primeira discussão visa introduzir os conceitos de disciplina e
ascese, centrais para percebermos como o corpo na contemporaneidade se reveste de
contradições e exige, mais do que explicações unívocas, análises interdisciplinares que,
desdobrando-se nas contradições inerentes ao processo de culto ao corpo, apresentam uma
conjunção de conceitos que muitas vezes foram colocados como opostos: ascese, disciplinas e
hedonismo.
Em seguida, no mesmo capítulo, mas em item à parte, a análise investiga a contra-
partida do processo: se por um lado o corpo será central na auto-estima e na identidade
feminina das mulheres pesquisadas, da mesma forma, devido à existência e supremacia de
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 5
rígidos modelos estéticos, ele também aprisiona, anula e dissolve a possibilidade da mulher
gostar-se e afirmar-se enquanto pessoa.
Em última instância, na esteira do esfacelamento da identidade e da auto-estima, o culto
ao corpo pode levar à destruição física do eu, minando, através dos distúrbios alimentares, a
saúde, e por vezes, levando literalmente à morte.
Num movimento elíptico, o capítulo termina onde se iniciou a própria tese: perguntando
em qual espelho as mulheres se miram, ou, em outras palavras, em quais modelos de beleza se
inspiram e para quem o fazem.
Nas Considerações Finais”, retoma-se algumas inquietações que a pesquisa suscitou e,
ainda no movimento elíptico acima descrito, recolocam-se estas indagações como elas
realmente são, pelo caráter polissêmico do corpo e da cultura que sobre ele se constrói: sem
respostas.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 6
2 - Contextualização do campo teórico e da pesquisa de campo
2.1 - METODOLOGIA DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS
A coleta de dados dividiu-se em duas etapas: aplicação de questionários fechados e
realização de entrevistas gravadas com as mesmas mulheres que responderam ao primeiro.
Ambos foram realizados com mulheres freqüentadoras da academia de ginástica Cia
Athletica, Unidade Shopping Morumbi, na cidade de São Paulo, capital.
Com relação à primeira etapa, foi elaborado um questionário fechado com setenta
questões, das quais 48 apresentavam-se sob a forma de alternativas a serem assinaladas e 22
ofereciam espaço de algumas linhas para que as mulheres pesquisadas indicassem, por
exemplo, dados como profissão, área de formação, idade. A própria diagramação do
questionário visava respostas breves, que o seu objetivo era fornecer à pesquisadora dados
passíveis de serem convertidos em gráficos e/ou tabelas. Os questionários formam aplicados,
em sua grande maioria, pela própria pesquisadora, embora alguns tenham sido aplicados por
terceiros, que algumas mulheres se ofereceram para distribuir questionários entre amigas e
pessoas da família. No total, foram aplicados 80 questionários.
O segundo passo foi tabular
4
os dados, obtidos pelos questionários fechados, e calcular
as porcentagens relativas e totais frente a cada uma das perguntas. O sistema utilizado foi o de
lançar os dados em planilhas do sistema Excel e aplicar as fórmulas que permitiam ao sistema
efetuar o cálculo das porcentagens. Por meio deste método, foi possível fazer estatísticas de
quase todos os quesitos
5
e saber, por exemplo, que 88% da amostra acredita que existe na
atualidade um processo de culto ao corpo, 9% o consideram relativo e 3% não percebem sua
existência. Tal procedimento foi feito com todos os itens pesquisados e visava obter as
porcentagens para traçar o perfil das entrevistadas e obter uma média a respeito dos itens,
esboçando o caráter mais geral da pesquisa.
4
Este trabalho de tabulação dos dados e cálculo das porcentagens deve-se à pesquisadora Silvana Maria de
Souza.
5
Infelizmente, alguns dados, que surgiram nas entrevistas gravadas, estavam dispersos demais para serem
tabulados, nestes casos, a porcentagem não aparece. Além disto, as entrevistas gravadas têm uma dinâmica
própria: muitas vezes, embora haja um roteiro pré-estabelecido, surgem novas abordagens ou temas, em
virtude da interação entre pesquisadora e pesquisadas. Isto dificulta uma análise estatística do discurso
falado e limita, portanto, o cálculo na forma de porcentagens.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 7
A partir do cálculo das porcentagens, o programa Excell gerou gráficos, dando maior
visibilidade aos dados. Foram confeccionados 41 gráficos
6
, inseridos e analisados ao longo da
análise.
No entanto, a pesquisa realizada, por ser qualitativa em sua essência, exigia que tais
dados fossem checados e comentados, de modo a extrair a alma da pesquisa, ou seja, o que as
mulheres pensam sobre o corpo e os modos como se relacionam com ele. Era preciso,
portanto, burilar os dados e obter o informações, mas pausas no discurso, reflexões,
contradições... Para isso, eram necessárias entrevistas mais profundas, que permitiam, ao
estilo de Geertz (1978), distinguir tiques nervosos de piscadelas. Buscava-se chegar a uma
densidade que as entrevistas gravadas permitem, e assim foi feito. De início, o propósito
era entrevistar todas a pessoas que responderam o questionário fechado, mas isso não foi
possível por vários motivos: algumas mulheres não quiseram gravar entrevista, outras
poderiam fazê-lo meses depois do prazo estipulado pela pesquisadora para fechar a amostra,
outras ainda concederam a entrevista, mas, como é comum a toda pesquisa, tiveram a sorte ou
o azar do gravador não tê-las registrado.
Por conta destes percalços, chegou-se ao número final de 70 entrevistas gravadas, todas
conduzidas pela pesquisadora. As entrevistas seguiram um roteiro pré-planejado, baseado nas
perguntas do referido questionário fechado, mas as informantes puderam se expressar
livremente e até alterar a ordem das questões discutidas, que estas muitas vezes apareciam
de forma espontânea na fala das entrevistadas, antes mesmo que as perguntas fossem
formuladas. Se a entrevistada em questão assim o desejasse, poderia enfatizar algum aspecto
com maior profundidade.
Quase todas as entrevistas ocorreram na própria Cia Atlhética do Shopping Morumbi,
na cidade de São Paulo, em função do ritmo de vida das mulheres, que preferem não ter que
se deslocar ou receber a pesquisadora em suas casas. Em média, as entrevistas duraram 40
minutos e, posteriormente, todas foram transcritas na íntegra.
Os pontos inaudíveis ou confusos do discurso foram anotados e novamente verificados
com as informantes. Foram respeitados as expressões e o modo de falar das entrevistadas,
inclusive gírias e palavras abreviadas. No entanto, algumas falas foram reduzidas, ou por
serem muito extensas, ou por misturarem assuntos que não eram de relevância para análise em
6
Os gráficos são indicados por títulos dentro do retângulo que o contém e por fim, com uma legenda. Este
excesso de indicações justifica-se por motivos meramente de ordem técnica, para “movimentá-los” através
do computador e estabelecer a ordem correta de sua apresentação.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 8
questão. Nestas circunstâncias, elas aparecem com o sinal (...). A transcrição na íntegra
poderá ser disponibilizada, se houver necessidade.
Os nomes das entrevistadas foram substituídos por números, para preservar a identidade
das mesmas.
Na elaboração da análise, em vários momentos aparecerão palavras destacadas, em
geral por negrito. Quando tiverem sido feitas por outros autores, aparecerá entre parêntesis
que os grifos são do autor. Em todos os outros casos em que aparecerem palavras destacadas,
estas são de inteira responsabilidade da pesquisadora e servem como recurso para ressaltar
pontos importantes do texto.
O critério para análise das entrevistas privilegiou as falas gravadas das mulheres,
justamente pela maior densidade de informações que elas contêm, todavia, para a elaboração
das porcentagens, observou-se também as respostas do questionário fechado.
Em vários momentos houve discrepância entre os dados obtidos por meio do
questionário fechado e as entrevistas gravadas. Isto se deve a diversos fatores, que vão desde a
mudança de opinião por parte da entrevistada, em virtude da compreensão das perguntas
do questionário fechado, quanto da própria relação estabelecida entre pesquisadora e
pesquisada. Se no questionário fechado alguns dados não podiam ser revelados ou o foram de
maneira equivocada, com a entrevista gravada gerou-se uma relação de confiança, o que
permitiu à entrevistada relativizar os dados antes informados. Além do mais, aspectos mais
complexos da relação com o corpo, como, por exemplo, os distúrbios alimentares, foram
compreendidos pela própria entrevistada quando esta se viu confrontada com eles na
entrevista gravada, gerando, inclusive, momentos delicados e sutis que o questionário fechado
não permitiu que aflorassem. Tais dados (quando autorizados pelas entrevistadas) foram
incluídos na análise e indicados no texto.
Também com relação aos dados falados, nem sempre foi possível isolar, nas falas, todos
os aspectos do discurso e elaborar porcentagens pertinentes a cada um deles. Lembremos ao
leitor que, como salientou Geertz, “Fazer etnografia é como tentar um manuscrito estranho,
desbotado, cheio de elipses, incongruências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,
escritos não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos transitórios do
comportamento modelado” (Geertz, 1978: 20). Infelizmente, nestes casos as recorrências no
discurso aparecem indicadas pelas expressões “muitas mulheres”, “algumas mulheres”, e não
por números exatos. Se estes dados parecem inexatos, é justamente porque o são. Quando
lidamos com entrevistas orais, não podemos esperar o grau de exatidão que (ilusoriamente)
achamos que temos com os dados “mais objetivos” de questionários fechados.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Também o pretendemos ter dado conta de todo o universo das entrevistadas. Isto não
se deve ao campo em si, pois, ao contrário de muitas investigações que encontram
dificuldades nesta etapa, no caso da pesquisa em questão obtivemos um rico e vasto conjunto
de representações (até mesmo devido à grande quantidade de entrevistas gravadas –70). Deve-
se mais ao caráter da descrição e análise etnográficas, pois, evocando Geertz, “a análise
cultural é intrinsecamente incompleta, e o que é pior, quanto mais profunda, mais
incompleta” (idem, ibidem: 22).
Deve-se destacar também que descrição e análise dos dados se mesclam, visto que,
como enfatiza Geertz, a própria descrição densa é interpretativa desde o início, ou seja, na
própria fase de coleta e exposição dos dados. Isto implica em dois pontos centrais para o
trabalho aqui apresentado:
1) Impossibilidade de separar objetivamente descrição dos dados e análise, bem
como de separar as respostas do questionário fechado de sua
complementação, qual seja, as entrevistas gravadas.
2) Desnecessidade de uma conclusão nos moldes tradicionais, já que a mesma
permeia todo o trabalho analítico. Assim, em vez de “concluir” a tese,
fazemos algumas “considerações finais”, que, mais do que oferecer respostas
para tudo o que foi indagado sob a forma de objetivos do trabalho, pretende
sobretudo indicar algumas das idéias centrais do mesmo, bem como deixar
algumas perguntas, propositadamente, sem respostas e abertas para
investigações futuras.
O fio condutor do trabalho é a antropologia, em especial a linha interpretativa da
cultura, na perspectiva Geertiziana. Adota-se o conceito de cultura e de sua análise segundo a
seguinte definição: “O conceito de cultura que defendo (...) é essencialmente semiótico.
Acreditando, como Max Weber, que o homem é um animal amarrado a teias que ele mesmo
teceu, assumo a cultura como sendo estas teias, e sua análise, portanto, não como uma
ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado” (idem, ibidem: 15).
Mas, à luz desta perspectiva de fundo, outras linhas se mesclam, em especial aquelas
que pensam o corpo, e o fazem percebendo que “o corpo é um processo sócio-cultural
revelador de momentos históricos específicos” (Berger,1999: 7). Aqui, a interdisciplinaridade
guia o trabalho e, assim, utilizamo-nos tanto da antropologia clássica e moderna (ver item
2.2.3 “Por uma antropologia do corpo”), quanto dos trabalhos de historiadores que
privilegiam o corpo enquanto objeto de reflexão.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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2.2 - DEFINIÇÃO DA AMOSTRA.
2.2.1 - ATORES E CENÁRIOS:
A pesquisa foi realizada com 80 mulheres, todas praticantes de atividades físicas e
freqüentadoras da academia de ginástica Cia Atlhética. Desta maneira, embora o presente
trabalho não se concentre nas linhas analíticas que discutem profundamente a questão do
gênero, a mesma não deixou de perpassá-lo, aporque, como salienta Lauretis, “a partir do
momento em que assinalamos o ‘F’ num formulário, ingressamos oficialmente no sistema
sexo-gênero, nas relações sociais de gênero, e fomos ‘engendradas’ como mulheres, isto é,
não apenas os outros que nos consideram do sexo feminino, mas a partir daquele momento
nós passamos a nos representar como mulheres.” (Lauretis, 1994: 220). Para a autora, é
preciso desfazer a idéia de uma “natureza” masculina e feminina (idéia que reforça as
diferenças entre homem e mulher como de ordem inata) e conceber o sujeito social e as
relações da subjetividade como a de um sujeito constituído no gênero: “um sujeito
‘engendrado’ não na experiência de relações de sexo, mas também nas de raça e
classe.”(idem, ibidem: 208).
Explicitando melhor o conceito de nero, Scott afirma que “o gênero é um elemento
constitutivo de relações fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é um
primeiro modo de dar significado às relações de poder.” (Scott, 1990: 14).
Embora ciente de toda a polêmica que envolve as discussões de gênero
7
, a opção por
entrevistar somente mulheres deve-se aos seguintes motivos:
1) Facilidade de acesso às mesmas devido às redes de relações travadas no
ambiente da academia de ginástica;
2) Interesse da pesquisadora em delinear um universo específico (o feminino),
com a maior abrangência possível;
3) Nítida percepção de que as mulheres estavam mais dispostas a conversar
com uma mulher sobre aspectos ligados ao corpo que os homens.
4) O culto ao corpo envolve, em um grau bem mais elevado, o universo
feminino do que o masculino
8
.
7
Ao longo do presente trabalho, discutirei em vários outros momentos aspectos relacionados ao gênero, dando
novos subsídios às definições e usos deste conceito. Ver, por exemplo, itens 4.1 -. Sentido das práticas
corporais e da beleza: reflexões históricas. item 6.2.1 -. Hedonismo, Ascese e disciplinas.
8
Sabe-se, hoje em dia, que os homens admitem a vaidade mais do que no passado, no entanto, o tema reveste-se
ainda de tabus. Segundo informação da dona da clínica de estética “Corpo e Desing”, situada no bairro do
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 11
O lócus deste trabalho é a academia de ginástica Companhia Athlética, unidade
Shopping Morumbi. Trata-se de uma academia voltada para um público-alvo abastado, sendo
que a mensalidade mínima para adultos estava cotada em 2004 em R$ 273,00 reais mensais,
acrescida de uma taxa especial para alunos que façam natação. A etnografia mostrou que,
muitas vezes, a mulher não é a única integrante da família a freqüentar a academia, pois
geralmente a mesma vai com os (a) filhos (a) e/ou com o marido. Embora a academia
estabeleça alguns convênios com empresas e lojas, estipulando preços menores para estes
fregueses, ainda assim atinge prioritariamente um público de renda elevada.
A academia situa-se no segundo andar do Shopping Morumbi e pode ser vista pelas
pessoas que ingressam por uma das entradas; na verdade, a academia atrai muito a atenção
do público, que normalmente pára para ver as piscinas, todas com teto solar e amplas
vidraças; ou para ver as salas de musculação, que também podem ser observadas de vários
ângulos. O chão da academia é, em toda sua extensão, de granito e as estruturas, feitas de
ferro com revestimento de vidro. Possui recepção, várias salas de ginástica, loja de roupas,
restaurante de grife (“Paola Panini”), espaço para musculação, spinning, uma grande área para
atividades aeróbicas com dezenas de aparelhos, dois vestiários femininos e dois masculinos,
aluguel de toalhas, saguão com televisão, espaço para as mães deixarem os bebês brincando
(desde que acompanhados pelas babás), área das piscinas, sauna seca, espaço de estética,
Biotherme”, solarium, nutricionista e fisioterapeuta.
A primeira impressão que se tem ao chegar à academia é que ela é luxuosa e muito
limpa. E, como veremos, oferece uma série de modalidades de aula, permitindo ao aluno que
execute todas as atividades desejadas, pagando um extra apenas pela natação e pelos serviços
opcionais de medicina e estética. Todas as salas são espelhadas e, na maioria delas, duas
paredes são de espelhos. Na maior parte das vezes, a observação mostrou que as (o) alunas (o)
gostam de se olhar no espelho e os locais mais próximos a eles são os mais disputados.
Também gostam de ser vistos, tanto pelos colegas e professores quanto pelas pessoas do
shopping. Para tanto, na sala da musculação, perto dos materiais de peso-livre, os alunos
chegam a abrir as persianas que dão para a entrada mencionada. É também muito comum que
as (o) mesmas (o) circulem pelo shopping, algumas vezes com roupas sociais, outras vezes,
em trajes de ginástica.
O padrão sico de vestuário é shorts ou bermudas com camiseta para os homens. Já as
mulheres usam shorts, bermudas ou calças de lycra e tops, preferencialmente de grifes, como
Morumbi, em o Paulo, os homens freqüentam a clínica às escondidas, perferindo entrar em salas de
estética mais reservadas (como, por exemplo, àquelas situadas no sub-solo) e, pelos fundos.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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os da “Trackel e Field”, ou “Body for Sure”. Tanto para homens quanto para as mulheres
parece vigorar uma regra implícita: quanto mais “malhado” o corpo estiver, menor pode ser o
tamanho das peças e mais justa a camiseta, que no caso das mulheres é totalmente dispensável
(a mulher malhada” prefere usar top, quando muito uma camiseta justinha.). Tênis é
marca diferencial: todos reparam nele e comentam se é de marca ou o e são poucas as
pessoas que usam apenas dois modelos, pois na maioria das vezes o tênis combina com o
restante das roupas, sendo trocado de acordo com elas.
O ambiente é todo decorado com faixas ou cartazes incentivando a prática de exercícios
físicos e reforçando a idéia de que a Companhia Atlhética é um local especial, um clube para
pessoas que partilham o mesmo estilo de vida, cujos valores são estar em forma, alimentar-se
de maneira saudável, respeitar os colegas e treinadores. Tanto os cartazes quanto os próprios
corpos “malhados” em seu permanente desfile fazem da academia uma espécie de templo do
culto ao corpo. Circula também por lá uma revista própria da academia e a glória para os
alunos é nela merecer uma notinha sobre seu desempenho. Quando isto acontece, a
reportagem é mostrada pelo eleito a todas as pessoas e guardada como um troféu. Festas na
academia são comuns e sempre ocorrem quando datas comemorativas. Também ocorrem
festas fora da academia, geralmente em bares ou danceterias da moda.
Quase todas as pessoas circulam com garrafinhas, normais ou térmicas, variando apenas
seu conteúdo, que oscila entre água, isotônico e sucos “turbinados” com suplementos
alimentares, como, por exemplo, creatina (um branco que auxilia no ganho de massa
muscular). Na sala de musculação é comum ver preparados líquidos e potes grandes de
suplementos, como “Megamass”. Homens e mulheres trocam receitas e dicas sobre como
“turbinar a malhação”.
É de se acrescentar que, para o leigo no mundo das academias de ginástica, a linguagem
é ininteligível. É preciso ser ao menos um iniciado para poder se comunicar e saber do que
estão falando os nativos. Segue um pequeno glossário das categorias nativas, reunindo os
termos mais utilizados pelas entrevistadas:
Spinning: aula feita numa bicicleta aeróbica de metal, que varia entre 30 minutos
e uma hora. O aluno observa os movimentos do professor e, ao som de música
eletrônica, simula estar subindo ou descendo montanhas, bem como pedalando
em áreas planas. O grau de dificuldade depende da posição (pedalar sentado ou
em ) e do peso colocado na bicicleta. Peso maior simula subida, e menor,
terrenos planos. É comum o uso de luz negra. É indicada apenas para alunos que
já possuam alguma resistência física e que gostem de atividade aeróbica intensa.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Transport: aparelho em que se movem ao mesmo tempo os braços e as pernas,
como se o aluno corresse no ar, muito procurado por gerar grande queima
calórica.
Crossramp: aparelho aeróbico que simula uma rampa de esqui, movimenta as
pernas e pode ser usado com ou sem carga, também muito procurado pelos
freqüentadores da academia.
BodyBalance: Aula que combina ginástica localizada, ioga, tai chin chuan; é
feita com música geralmente oriental, exige força muscular, concentração e
capacidade para soltar o corpo.
BodyPump: Aula de musculação coreografada, em que as séries alternam
exercícios para os membros superiores (peito, costas, braços e abdômen) e
inferiores (pernas e glúteos). Utiliza-se uma barra de metal de dois quilos e nas
suas extremidades, são inseridos outros pesos, denominados de anilhas e que
variam de um a cinqüenta quilos. O número de repetições é maior do que na
musculação e o peso, geralmente menor. Exige muita força e concentração. As
músicas são norte-americanas em sua maioria; aliás, como se pode ver, todas as
aulas são nomeadas em inglês.
Pesos, pesinhos e/ou anilhas: artefatos de metal com unidades de medida (por
peso) que visam gerar sobrecarga muscular.
Prannaball: Aula de alongamento realizada com grandes bolas, sobre as quais é
possível sentar e deitar; bem como com pequenas bolas embebidas em essências
aromáticas que visam estimular os setes chacras corporais.
BodyStep: Aula de ginástica feita sobre plataforma alta (step), com coreografia
rápida, onde o aluno sobe e desce com movimentos dançados.
BodyJump : Aula de ginástica feita sobre cama elástica, com coreografia pida;
exige equilíbrio e fôlego, pois não se pode descer da mesma até o final da aula.
É indicada apenas para alunos iniciados na prática esportiva, que exige
muito das articulações, bem como a capacidade de equilíbrio e concentração.
Hidro: Abreviatura de hidroginástica, ou seja, ginástica realizada em piscinas.
Botox: Abreviatura de sustância botulímica, encontrada em alguns alimentos,
como o palmito e que, se ingerida, pode paralisar parte do organismo. Foi
sintetizada recentemente por laboratórios e quando aplicada sob a pele, paralisa
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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os músculos presentes na região. É hoje muito utilizada por mulheres para
paralisar por cerca de seis meses os músculos da face, como os da testa, evitando
que estes se contraiam e produzam rugas. É aplicada com injeções sub-cutâneas
que devem ser administradas apenas por médicos, mas que, no entanto, têm sido
realizadas por esteticistas.
Peeling: Processo que promove forte descamação celular através do uso de
substâncias químicas. É aplicado no rosto com o objetivo de fazer nascer nova
pele. Sua intensidade pode variar e dependendo do caso, pode ser considerado
como ato cirúrgico. Visa eliminar rugas. É muito utilizado pelas mulheres como
recurso para evitar cirurgias plásticas faciais.
Kansas: Refere-se à unidade da academia Cia Athlética situada na rua Kansas. É
a preferida por celebridades e/ou pessoas anônimas que buscam maior status.
Malhada, seca, definida e/ou sarada: Designa a mulher que tem pouca gordura e
musculatura definida, aparente sob a pele.
Marombeira: Mulher que se dedica assiduamente à musculação, geralmente
fazendo um treino com bastante peso, cujo objetivo é uma definição muscular
ainda mais evidente do que a da mulher “sarada”.
Fitness: atividades relacionadas à prática de exercícios podendo caracterizar a
entrevistada (quando é usada no sentido de ser fitness, ou seja, praticante assídua
de atividade física) ou eventos ligados à área (feira de acessórios, congressos,
competições, etc.).
Shape: nada mais é do que a forma física do corpo.
Secar: significa perder peso, “enxugar” as gordurinhas.
Trincar: significa enrijecer e deixar a pele lisa, de modo que os músculos
apareçam.
Barriga “tanquinho”: Fazer com que os músculos abdominais saltem sob a
pele, conferindo ao abdômen o aspecto da parte do tanque destinada a esfregar
as roupas.
Massa magra X massa gorda / Taxa de gordura corporal: massa magra
significa o peso definido pelos músculos, quanto maior a massa magra, mais a
pessoa é considerada “malhada”. Massa gorda deve ser reduzida ao máximo,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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significa tecido adiposo e é medida pela taxa de gordura corporal, que também
atua como troféu: quanto menor, maior é o prestígio social da pessoa.
IMC: significa Índice de Massa Corpórea. Trata-se de uma classificação de
indivíduos adultos segundo a relação entre altura e peso. É obtido dividindo-se o
peso pela altura ao quadrado. Ex: uma mulher de 60 Kg e 1.60 de altura terá o
seguinte IMC 60 divididos por 2,56 = 23, 43. De acordo com a tabela abaixo,
seria considerada de peso normal.
Tabela 1 - Ìndice de Massa Corpórea
Classificação IMC (Kg/h)
Magro < 18,5
Normal 18,5-24,9
Com excesso de peso > 25
Pré-obeso 25-29,9
Obeso classe I 30-34,9
Obeso classe II 35-39,9
Obeso classe III > 40
A academia conta com dois serviços que, embora ocorram no mesmo cenário e com os
mesmos atores, são vistos pela diretoria como independentes: as atividades regulares que
constam no plano do aluno e um serviço extra, de personal trainer. Tê-lo é diferencial de
status, pois significa que o aluno em questão preocupa-se com o seu corpo de uma maneira
mais intensa e dispõe de financeiros para fazê-lo.
Para uma melhor caracterização dos atores, foi esboçado um perfil-sócio econômico das
mulheres entrevistadas, como vermos a seguir.
2.2.2 - PERFIL SÓCIO-ECONÔMICO.
Como vimos na caracterização inicial da amostra, a pesquisa envolveu 80 mulheres que
fazem atividade física na academia Cia Atlhética.
Embora a pesquisadora tenha percebido parte do perfil das mesmas através da
observação de campo, optou-se por sistematizar os dados por meio da constituição de um
perfil sócio-econômico.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Deve-se ressaltar que este é apenas um recurso para caracterizar melhor a amostra: a
pesquisa não se concentrou neste objetivo; assim, os dados que seguem visam menos explicar
os indicadores elencados, mas sobretudo situar o leitor no universo da pesquisa. Mesmo ao
contemplar a relação entre os vários indicadores, a intenção permanece a de apenas
contextualizar o campo.
a) ESTABELECENDO OS INDICADORES
Com o intuito de esboçar o perfil sócio-econômico das mulheres entrevistadas, foram
escolhidos alguns itens dos questionários, aqui chamados de indicadores, que nos auxiliaram,
ao serem analisados de forma isolada, a definir como é formada a nossa amostra.
Posteriormente, ao se cruzar os dados de dois ou mais deles, poderemos correlacionar suas
influências no universo de nossas pesquisadas. Para isto foram escolhidos os seguintes
indicadores:
Idade.
Estado Civil.
Filhos.
Escolaridade.
Atividade Profissional.
Renda.
Gasto mensal com cuidados estéticos.
Vamos a eles.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 17
A faixa de idade mais representativa (que corresponde a 40%) das entrevistadas é
composta de mulheres entre 29 a 39 anos, em segundo, aparece a faixa que vai de 40 a 50
anos (20%). Nestas respectivas faixas de idade, encontramos muitas mulheres que são mães,
bem como mulheres que têm companheiro (vide próximos gráficos).
Estas tendem a se concentrar especialmente no período da tarde, das 12:00 às 19:00, que
foi o escolhido justamente por reunir maior número de mulheres, em especial aquelas que
estão fora do mercado de trabalho. Este dado explica-se porque neste período, as mulheres
costumam ir à academia com seus filhos ou enquanto os maridos trabalham.
Neste mesmo período do dia, encontramos também 28% de mulheres nas faixas de 18 e
28 anos, porque neste período elas se encontram dispensadas da rotina escolar ou de
faculdade. A pesquisa mostrou que, devido às próprias opções dadas pelo sistema educacional
do nosso país, a maioria dos cursos, seja do ensino médio, seja do ensino superior, é oferecida
preferencialmente nos períodos matutinos e noturnos, assim, as mulheres nesta faixa etária
freqüentam a escola antes ou depois da academia, agendando as atividades físicas no horário
da tarde.
As mulheres que estão entre 51 anos 61anos correspondem a 13% da população
investigada, justamente porque um dos diferenciais que marcam a cultura do corpo atual é que
Gráfico 1- Indica a faixa etária de todas as entrevistadas
Distribuição das Entrevistadas, segundo a faixa etária
23%
40%
20%
13%
1%
3%
18 a 28 anos
29 a 39 anos
40 a 50 anos
51 a 61 anos
62 a 72 anos
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 18
ela não se restringe às faixas etárias consideradas “mais jovens”. Ela tende, cada vez mais, a
influenciar mulheres que estão na chamada “terceira idade”, ou que caminham para ela.
Acima dos 61 anos temos 1% da amostra, mas esta porcentagem aumentará progressivamente,
porque as mulheres da faixa anterior (51 61 anos) afirmaram à pesquisadora que pretendem
fazer ginástica a vida toda e algumas usaram a expressão “até ficar velhinha demais”, ou até
morrer”.
Os professores de ginástica entrevistados observaram que aumentou muito o ingresso
destas faixas etárias no universo da ginástica, a ponto da academia citada, a Cia Athética, ter
um plano específico para ela, chamado de “Platinun”, que promove atividades em ritmo
menos acelerado e voltado para minimizar alguns problemas típicos da terceira idade, como
osteoporose, dores na coluna, falta de flexibilidade, entre outros.
Como podemos perceber, 75% da amostra é constituída de mulheres que têm
companheiro, sendo o restante, 25%, de mulheres sem companheiros.
Do total de 75% das mulheres que têm companheiro, foi impossível estabelecer a
proporção de mulheres que se casaram no civil e as que vivem maritalmente, embora não
tenham oficializado a relação. Para as próprias mulheres, esta é uma questão delicada por
vários motivos.
Em primeiro lugar, porque embora o casamento civil ainda seja visto por muitas
mulheres como um índice de status, já há, principalmente nas faixas etárias mais jovens, a
Gráfico 2 - Distribuição da mulheres que possuem namorado ou convivem maritalmente
Companheiros
75%
25%
companheiros
sem companheiro
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 19
incorporação da idéia de que não é necessário, ter um companheiro, oficializar a relação
através de um casamento nos moldes formais.
Lembremos que a própria lei, acompanhando as mudanças sociais e culturais,
modificou-se e legitimou o concubinato como uma união estável, dando aos pares os mesmos
direitos garantidos pela união civil. Assim, as mulheres, muitas vezes, ficam em dúvida,
diante de questionários fechados, sobre qual opção assinalar, se a definida nos termos da lei e
dos costumes tradicionais ou a definida pelos novos códigos de convivência entre homens e
mulheres.
Em segundo lugar, na cada de 1960, houve uma mudança de comportamento entre
os sexos e uma maior liberdade sexual de homens e mulheres foi conquistada, permitindo que
os dois sexos convivessem de forma mais íntima, o que diluiu um pouco as fronteiras que
antes demarcavam o que era um “Casamento” e um “namoro”, propositadamente grafados
aqui de maneira distinta, para evidenciar que, aos olhos da sociedade mais tradicional, o
primeiro tinha um peso e uma dignificação maiores que o segundo. Hoje, estas fronteiras
estão ainda mais tênues e é comum que as mulheres se sintam inseguras quanto ao status de
sua situação: o termo “ficar” ganhou espaço e é possível “ficar”com alguém durante anos e
anos, sem definir se se trata de um namoro, um noivado ou mesmo um casamento.
A pesquisadora optou, assim, por utilizar as categorias “com companheiro” e “sem
companheiro” e não a terminologia usual de “casadas” e “solteiras”, fazendo uso das últimas
apenas para dar fluência a alguns pontos da discussão.
Gráfico 3 - Distribuição das entrevistadas que têm filhos
Filhos
48%
52%
filhos
sem filhos
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 20
Conforme podemos ver, 52% das entrevistadas m filhos, ao passo que 48% o os
têm. A média de filhos da amostra foi de dois ou apenas um só, sendo raro mulheres com três
ou mais filhos.
Com o advento dos anticoncepcionais, a taxa de natalidade, de um modo geral, diminuiu
e isto ocorreu também no do universo das pesquisadas. Mais à frente, no item 4.2.1 -, em
especial no item “e”, a questão dos filhos será retomada, ao avaliarmos as relações entre corpo
e maternidade.
A pesquisa descobriu que 16% possui superior incompleto, 55% superior completo e
18% cursam pós-graduação, representando 89% das entrevistadas com nível superior. Esta
informação é condizente com as faixas etárias mais expressivas da amostra (18-28 anos: 23%
da amostra e 29-39 anos: 40% da amostra), porque nestas faixas etárias as mulheres
terminaram o segundo grau e ingressaram na faculdade, ou terminaram a faculdade e
iniciaram a trajetória na Pós-Graduação.
É condizente também, como veremos, com o fato das mulheres pertencerem às classes
média e média-alta, porque como sabemos, num país em que o acesso à educação não é
igualitário, é mais fácil para mulheres com maior renda dedicar-se aos estudos. Muitas vezes,
é difícil para as camadas das classes baixas ingressar em faculdades públicas, devido à
Gráfico 4 - Distribuição das entrevistadas segundo a escolaridade
Distribuição das entrevistadas segundo a
escolaridade
3%
8%
55%
18%
16%
Primário Completo
Secundário Completo
Superior Completo
Superior Incompleto
Pós-Graduação
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 21
educação de baixa qualidade que receberam ao longo dos anos e igualmente difícil, pagar as
mensalidades das faculdades privadas.
O restante da amostra é composto de 3% que possuem apenas o primário e 8% que
possuem secundário completo, totalizando somente 11% da amostra fora do universo do
ensino superior. No entanto, esta porcentagem deve se alterar um pouco, pois duas mulheres,
ambas com 18 anos (Mulher 4 e Mulher 16), ingressaram no ensino superior logo após a
tabulação dos dados.
os 3% de mulheres que possuem apenas o primário corresponde a duas entrevistadas,
Mulher 65, de 61 anos, e Mulher 42, de 66 anos, as quais indicaram que, nas décadas de 1930
e 1950, não era comum a mulher estudar, reservando-se, por questões de gênero, este
privilégio aos homens. Da mulher esperava-se que ela fosse boa dona de casa e esposa,
bastando-lhe, ademais, conhecer das primeiras letras (como muitas vezes era chamado o que
hoje entendemos como primário e/ou ensino fundamental). Isso já era o suficiente.
Aproximadamente dois terços (67,5%) da população estudada exerce a profissão,
enquanto que o restante, 32,5%, encontra-se fora do mercado de trabalho.
A relação entre mulher e mercado de trabalho oscilou consideravelmente ao longo do
tempo, sendo marcada por avanços e retrocessos, ora porque parte das mulheres aderiu ao
papel de donas-de-casa, ora porque lutava contra tais representações.
Rago (2004), em seu estudo “Trabalho Feminino e Sexualidade”, mostra aspectos da
trajetória do trabalho feminino no Brasil durante as primeiras décadas do século XX. A autora
Gráfico 5 - Distribuição das entrevistadas segundo a inserção no mercado de trabalho
Exerce alguma atividade profissional?
32,5%
67,5%
sim
Não
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 22
afirma que em 1901 foi realizado um primeiro levantamento sobre a mão-de-obra no estado
de São Paulo, revelando que 49,95% dela era constituída de mulheres e 22,79% de crianças,
num total de 72,74%, porcentagem que aumentou ainda mais em 1919, tanto no Rio de
Janeiro quanto em São Paulo. Mas a partir da década de 1920, as mulheres operárias
começaram a sofrer pressões para que abandonassem seus empregos, por força de argumentos
masculinos que identificavam a mulher que trabalhava fora como promíscua ou abandonadora
do lar. Assim, a taxa de emprego feminino, que em 1872 correspondia a 76% do operariado
fabril caiu, em 1950, para 23%.
Rameck (2001) aponta que a utilização da mão de obra operária feminina coincide com
a luta pelo voto, que se efetivou no Brasil em 1932, no governo de Getúlio Vargas. Mas,
segundo a pesquisadora, a mulher passou a ter maior participação no mercado de trabalho
na década de 1970. Os fatores que possibilitaram esse ingresso crescente da mulher no
mercado de trabalho foram de ordem econômica e social. A autora indica as pesquisas de
Leite (1994) e Bruschini & Lombardi (1996)
9
, que mostram como a expansão da economia,
aliada ao aumento da urbanização e do desenvolvimento industrial, forneceu maiores
possibilidades de ascensão das mulheres no mercado de trabalho.
Para a autora, “a motivação econômica é, sem dúvida, um dos fatores mais importantes
na inserção da mulher no universo do trabalho. A economia gera novos produtos, ampliando
os serviços, e estes, por sua vez, demandam a contratação de mais profissionais. É uma
dinâmica econômica que aumenta as necessidades de consumo, pressionando por uma
ampliação da receita no orçamento familiar” (Rameck, 2001: 28).
Outro fator indicado pela pesquisadora foi a ampliação do uso de métodos
anticoncepcionais, que permitiu à mulher administrar melhor o seu desenvolvimento pessoal e
profissional: Ela pôde, assim, se dedicar também a estudos de aperfeiçoamento,
mobilizando-se para buscar melhor orçamento familiar e maior status econômico. Daí, outra
grande transformação social para a entrada da mulher dos setores médios no mercado de
trabalho: o seu ingresso no mundo universitário” (idem, ibidem: 28).
É possível ressaltar que, acompanhando a expansão da economia, os movimentos
sociais, com destaque para o movimento feminista, ganham força nos anos 1970
10
, e o
9
Leite, L.C.P. Mulheres, Muito Além do Teto de Vidro, São Paulo, Atlas, 1994. Bruschini, C. & Lombardi,
M.R., O Trabalho da Mulher Brasileira: primeiros anos da década de 90, Caxambu, Minas Gerais,
Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 1996.
10
Sylvia Caiuby Novaes faz uma interessante discussão sobre os Movimentos Sociais no seu livro Jogo de
Espelhos, Edusp, 1996. Ela mostra, entre outros pontos, que as minorias sociogicas necessitaram, para se
organizar, passar por diferenças (inclusive ideológicas) entre seus vários componentes e se unificaram
como um único conjunto, na atitude que ela denominou de “nós-coletivo”.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 23
trabalho doméstico das mulheres começa a ser denunciado como uma subordinação ao
homem, indicando que para as mulheres, trabalhar fora de casa equivaleria a traçar o caminho
de sua emancipação.
Devido ao escopo desta pesquisa, não será possível enveredarmos pelas numerosas
pesquisas que procuraram estudar as origens e implicações da divisão sexual do trabalho.
Muitas destas pesquisas estão na área de gênero e a título de exemplo
11
, podemos citar a
pesquisadora Joan Kelly, que propõe que imaginemos vários conjuntos inter-relacionados de
relações sociais, em vez da clássica oposição entre dois ou mais domínios: “O que vemos não
são duas esferas da realidade social, e sim dois (ou três) conjuntos de relações sociais. Por
enquanto chamaria estas relações de relações de trabalho e sexo (...) Em qualquer das
formas históricas tomadas pela sociedade patriarcal (feudal, capitalista, socialista, etc) um
sistema de sexo-gênero e um sistema de relações produtivas operam simultaneamente (...)
para reproduzir as estruturas sócio-econômicas e o domínio masculino da ordem social
dominante” (Kelly, 1979: 61, apud Lauretis, 1994: 215).
Outra explicação igualmente interessante é dada por Proust (2003), correlacionando os
argumentos que orientam os novos rumos do trabalho feminino à progressiva especialização
dos espaços no século XX. Segundo este autor, enquanto a casa e o mundo do trabalho não se
constituíam como esferas autônomas, homens e mulheres trabalhavam juntos, num mesmo
universo doméstico e a divisão do trabalho não era vista como manifestação de desigualdade
ou sujeição: “a espacialização dos espaços rompe a igualdade conjugal e institui a mulher
como criada” (Proust, 2003: 40).
De todo modo, quaisquer que sejam os motivos e/ou explicações, o ingresso da mulher
no mercado de trabalho continua a ser uma luta constante e o desemprego entre mulheres
ainda é maior do que entre os homens, sendo que, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), 48,9% das mulheres estavam empregadas em 2002, contra
72,8% dos homens
12
.
No universo pesquisado, como vimos no gráfico 4 (Exerce alguma profissão?), 32,5%
das entrevistadas não trabalham, mas no entanto possuem renda elevada, como veremos a
11
Ver Joan Kelly, “Woman, history and theory” (Chicago: Univ. Of Chicago Press, 1984; Joan Scott, “Woman’s
History: The Modern Period”, in: Past and Prest, 1983; Arakcy Martins Rodrigues, “Lugar e Imagem da
mulher na indústria”, Cristina Bruschini, “O Uso de abordagens quantitativas em pesquisas sobre relações
de gênero”, Mary G. Castro e Lena Lavinas, “Do Feminino ao gênero: a construção de um objeto.”,
Elizabeth Souza Lobo, “O trabalho como linguagem, o gênero do trabalho”, In: Uma Questão de gênero,
Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1992, entre outros.
12
Síntese de indicadores sociais de 2002, pg. 97, disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/indic_sociais200
2.pdf, acesso em 28 de março de 2006.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 24
seguir. Era preciso, portanto, investigar tanto os motivos desta não inserção no mercado de
trabalho, quanto entender o fato da renda ser independente do exercício da profissão.
Como a pesquisa não tratava do desemprego, não foram esmiuçadas as causas da taxa
de 32,5% de desempregadas, mas questionou-se fatores que poderiam levar a isso, como por
exemplo, a escolaridade.
Mas, antes de procurarmos a relação entre os indicadores, faltava-nos saber como se
distribui a renda entre as pesquisadas, como veremos a seguir.
Podemos perceber que as duas maiores porcentagens referem–se às faixas de renda de
R$ 2601,00 a 5000,00 (21%) e mais de R$ 5000,00 (62%), o que nos permite categorizá-las
como mulheres de classe média-alta e alta
13
.
De início, a pesquisa pretendia comparar as percepções sobre o corpo manifestadas por
mulheres de classes sociais diferentes. pouca bibliografia sobre a percepção corporal de
mulheres dos setores menos abastados. Boltanski (1979) investigou esta questão
14
; todavia, o
fez antes da explosão da cultura do corpo nos anos de 1990.
13
A pesquisa procurou classificar a renda de acordo com o banco de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), mas o obteve uma classificação da faixas de renda. No entanto, segundo o instituto
citado, os 40% mais pobres ganham em média R$ 149,85 e os 10% mais ricos apresentam um rendimento
médio de R$ 2.744,30. (Síntese de indicadores sociais de 2002, pg. 102, disponível em
http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/indicadoresminimos/indic_sociais200
2.pdf, acesso em 28 de março de 2006 )
14
Ver discussão no item 5.1.2 Existência do culto ao corpo e suas justificativas para as entrevistadas, em
especial, item “e”, Competição e Cobrança Social.
Gráfico 6 - Distribuição das Entrevistadas, segundo a faixa de renda
Faixa de renda
1%
1%
9%
21%
62%
6%
até 780
781 a 1.300
1301 a 2.600
2601 a 5000
mais de 5000
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 25
No entanto, devido ás inúmeras questões que envolvem a cultura do corpo na
atualidade, optamos por examinar em profundidade apenas um estrato social; assim, a
pesquisa acabou restringindo-se às mulheres de classe social mais abastada. Como toda
escolha, aqui perdas e ganhos, pois se a comparação entre dois setores poderia ser muito
rica, também poderia limitar a compreensão dos dois universos, obscurecendo pontos
importantes e tornando o trabalho demasiadamente extenso.
De todos os indicadores que visavam delinear nossa amostra, este foi o mais complicado
de ser aferido, por vários motivos. Em primeiro lugar, a pesquisadora optou por deixar que as
entrevistadas indicassem, de modo livre (sem alternativas a serem assinaladas), o quanto
investiam em cuidados estéticos. Isto gerou muita variação dos valores declarados, o que fez
com que a pesquisadora procurasse agrupá-los por faixas, que ainda assim, tornou difícil a
visualização dos dados. Mas o problema central é que as mulheres sentem-se inibidas a
declarar abertamente os gastos com cuidados estéticos, talvez temendo algum tipo de
julgamento moral por parte da sociedade mais ampla. Além do mais, muitas mulheres não
incluíram o valor da mensalidade de R$ 270,00, ou por serem funcionárias da Cia Atlhética (o
que as desobriga do pagamento da mensalidade), ou por terem a academia paga pelo marido.
Outras declararam um valor bem abaixo do verdadeiro, fato que foi percebido durante
as entrevistas gravadas, pois, a maioria delas, recorre a serviços como drenagem linfática, que
custa em média R$ 70,00 e que é feita semanalmente por muitas mulheres da amostra. Outras
declararam gastar entre R$ 410,00 e R$ 800,00, mas comentaram com a pesquisadora terem
feito aplicação de botox (substância que paralisa os músculos da região da face, evitando
contrações musculares e, portanto, rugas), que custa R$ 780,00, ou que compraram cremes
Gráfico 7 - Gastos com cuidados estéticos
Gastos com estética
13%
13%
4%
5%
18%
11%
8%
9%
19%
de 100 a 400
de 410 a 800
de 810 a 1100
de 1110 a 1400
de 1410 a 1700
de 1710 a 2000
de 2310 a 2500
acima de 2500
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 26
faciais como La Prairie, feito à base de caviar beluga e que custa por volta de R$ 1.200,00. A
maioria também faz uso de cosméticos que prometem inibir a celulite, que em geral, são
caros, ainda mais se forem de grife.
Assim, ainda que possamos agrupar os valores declarados em três faixas, para melhor
visualização de R$ 410,00 a 1.100,00 reais, 30% das entrevistadas; de R$ 1.100 a R$
2.000,00, 34% e acima de R$ 2.000,00, 17%- devemos levar em conta que provavelmente, a
maioria da amostra pesquisada gasta bem mais com cuidados estéticos do que o declarado
15
.
b) ANALISANDO E CORRELACIONANDO OS INDICADORES
Uma vez estabelecidos os indicadores centrais, era preciso ver as relações entre eles e,
na medida do possível, esboçar uma interpretação das mesmas. O trabalho de analisar os
dados e ordená-los fez emergir as seguintes correlações:
Renda e Faixa Etária.
Renda e Exercício da Profissão.
Renda e Escolaridade.
Escolaridade e Desemprego
Renda e Não Exercício da profissão.
Renda, Estado Civil e Exercício da Profissão.
15
A revista Veja São Paulo” de 03 de julho de 2002 divulgou como matéria de capa que algumas mulheres
gastam entre R$ 6.000,00 e 15.000,00 por mês para manter a boa forma. Os rituais de beleza destas
mulheres (que chegam a somar 6 horas diárias) incluem banho de imersão de leite de cabra para manter a
pele clara e jovem, lavagem dos cabelos semanal em salão com água mineral importada, aplicações de
laser para estimular a produção de colágeno, academia, personal trainer, terapia ortomolecular, sessões de
massagem, entre outros. Se levarmos em conta a alta renda e a inserção social das mulheres pesquisadas
para o escopo do presente trabalho, a pesquisadora acredita que muitas das entrevistadas encaixam-se no
perfil da reportagem acima citada.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 27
Observando-se os dados referentes à renda e à idade, pode-se perceber que tanto a faixa
(indicada pela cor ameixa) que vai de R$ 2601,00 a 5000,00 quanto acima de R$ 5000,00
correspondem às mulheres que estão na faixa de 29 a 39 anos.
Ainda com renda superior a R$ 5.000,00, temos também uma parte expressiva (indicada
pela de cor amarela) que corresponde à faixa etária entre 40 e 0 anos e 51 e 61 anos (azul).
Levando-se em consideração que o ingresso no mercado de trabalho se dá, para a classe
média-alta e alta, por volta dos 20 anos, e que ainda para a mulher a aposentadoria por idade
acontece a partir dos 55 anos, as faixas com maior concentração de renda decorrem do
exercício da profissão, configurando-se assim o nosso próximo item de análise.
Gráfico 8 - Distribuição segundo renda e faixa etária
Distribuição das Entrevistadas, segundo a renda e a faixa etária
0
5
10
15
20
25
781 a 1.300
1301 a 2.600
2601
a 5000
mais de 50
00
18 a 28 anos
29 a 39 anos
40 a 50 anos
51 a 61 anos
62 a 72 anos
o respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 28
De fato, comprovou-se que entre os 67,5% das que trabalham, 72% ganham acima de
R$ 2600,00. As atividades profissionais mais citadas por estas mulheres foram:
Professora de Educação Física: 9; Professora: 6; Veterinária: 2; Publicitária: 2,
Psicóloga: 2 e Administradora de Empresas: 2.
As demais foram: esteticista, empresária, corretora de imóveis, nutricionista, médica,
arquivista, advogada, procuradora do Estado, gerente de importação, fisioterapeuta, lingüista,
economista, artista plástica e jornalista.
Podemos ver que, comparativamente, os gráficos não indicam mudanças profundas na
relação entre renda e escolaridade. Se for verdade que aquelas com nível superior (59%)
Gráfico 8 - Renda de quem está profissionalizada
Gráfico 9 - Renda das entrevistadas com nível
superior
Gráfico 10 - Renda das entrevistadas com nível
médio
Renda
7%
51%
9%
12%
21%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
não declarou
renda x escolaridade(superior)
8%
6%
21%
59%
6%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
não declarou
Renda x escolaridade médio
13%
25%
13%
49%
0%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
não declarou
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 29
ganham acima de R$ 5000,00, também é verdadeiro que a diferença quanto à renda entre estas
e as que têm apenas ensino médio (49%) é de apenas 10%.
Se considerarmos apenas os 33% de entrevistadas que não ingressaram ou não
permaneceram no mercado de trabalho, podemos ver que 21 mulheres, ou seja, 77,8%, o
mulheres que possuem ensino superior, indicando que a falta de escolaridade não é
determinante para o ingresso destas mulheres no mercado de trabalho.
Então, o que poderia explicar o fato destes 33% não estarem no mercado de trabalho?
Uma das possíveis explicações deve-se as questões de gênero e estado civil – a mulher “opta”
por deixar seu emprego para dedicar-se às funções de mãe e esposa. Ainda assim, a renda de
quem não exerce a profissão é alta, como veremos a seguir.
Gráfico 11 - Nível de escolaridade apenas entre as desempregadas
Gráfico 12 - Renda de quem não exerce a profissão
Escolaridade das desempregadas
22,2%
77,8%
basico
supeior
Renda sem exercer profissão
4%
70%
7%
0%
19%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
não declarou
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 30
A pesquisa indicou que 70% das mulheres que o estão trabalhando desfrutam de
renda superior a R$ 5000,00, sendo, portanto mais elevada a porcentagem das mulheres que
trabalham e obtém a mesma renda (que é de 51%).
Como entender então que 89% das mulheres que têm renda entre R$ 2600,00 e 5000,00
(19%) e acima de R$ 5000,00 (70%) estão fora do mercado de trabalho?
Diversas variáveis podem ser indicadas quanto a esta questão: duas entrevistadas
(Mulheres 4 e 16) declararam a renda da família e não as suas individuais, e como são de
famílias abastadas, justifica-se a renda declarada. A idade contribui também, pois três
mulheres estão na faixa etária de 18 anos, sendo, portanto, bastante jovens; além do mais,
pertencem a uma classe social economicamente favorecida e podem se dar o luxo de apenas
estudar, postergando o ingresso no mercado de trabalho.
Outras, independentemente do estado civil ou da escolaridade, têm renda de
aposentadoria e/ou herança de família.
No entanto, se considerarmos as 27 entrevistadas que não ingressaram ou o
permaneceram no mercado de trabalho e/ou que têm renda elevada, 21 delas, ou seja, 77,77%,
são mulheres que têm companheiro, indicando que as questões de gênero e estado civil
interferem na opção
16
.
16
Para os limites deste trabalho a discussão será apenas apontada, não constituindo nem o cerne, nem os
objetivos desta pesquisa.
Gráfico 13 - Distribuição de renda entre mulheres
com companheiro
Gráfico 14 - Distribuição de renda entre mulheres
sem companheiro
Renda com companheiro
10%
5%
23%
62%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
Renda sem companheiro
5%
20%
15%
60%
menos de 1300
1300 a 2600
2600 a 5000
mais de 5000
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 31
Se analisarmos os dados referentes à renda X casada, podemos perceber que entre as
mulheres com companheiros, as duas maiores faixas salariais correspondem a 62% das que
ganham acima de R$ 5000,00 e 23% das que ganham entre R$ 2600,00 a 5000,00, totalizando
85% de mulheres casadas com renda alta.
para as mulheres solteiras, a faixa das mulheres que ganham acima de R$ 5000,00
corresponde a 60% e 15% ganham entre R$ 2600,00 a 5000,00, totalizando 75% de mulheres
sem companheiro com renda nas faixas descritas acima.
A diferença entre os dois grupo é pequena, totalizando 10% a mais de renda para as que
têm companheiro.
Restava-nos, por fim, indagar como o estado civil interfere na inserção feminina no
mercado de trabalho.
No que se refere à relação entre trabalhar ou não e ter companheiro, percebemos que um
terço das mulheres (37%) estão casadas e o trabalham, enquanto que 63% estão casadas e
trabalham.
Do total de 37% de mulheres que são casadas e não trabalham, 94% têm renda acima de
R$ 2600,00.
É claro que, nos limites deste trabalho, o é possível analisar em detalhes a influência
do estado civil sobre a inserção profissional, nem explicar a alta renda das mulheres casadas e
desempregadas. Nosso intuito é traçar um esboço das variáveis que nos permitam conhecer
um pouco do universo de nossas pesquisadas.
No entanto, é fato que a “opção” por não trabalhar relaciona-se com o estado civil e
com a renda declarada, seja familiar, seja advinda da própria condição de classe destas
Gráfico 15 - Relação entre estado civil e mercado de
trabalho
Gráfico 16 - Renda entre as casadas que não
trabalham
Mercado de trabalho x Companheiro
37%
63%
casada sem
trabalho
casada
trabalhando
Renda das mulheres casadas que não
trabalham
6%
94%
menos de 2600 2600 ou mais
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 32
mulheres. Nos depoimentos percebemos também que se configura, para boa parte delas, uma
situação de dependência econômica do marido.
São questões delicadas, primeiro porque as discussões sobre o gênero o são
consensuais, gerando inúmeras polêmicas e debates entre os que se enveredem por elas
17
; e
segundo, porque as próprias mulheres entrevistadas se posicionam de maneira ambígua sobre
a relação entre estar casada e não trabalhar.
Embora haja pouco consenso entre as várias linhas de pensamento que abordam a
questão do gênero, alguns pontos parecem comuns a diversos autores (embora as soluções
propostas possam ser totalmente divergentes), podendo ser emprestados a esta discussão.
Em primeiro lugar, falar em gênero remete necessariamente ao poder, ou nas palavras
de Saffioti: "O poder/prestígio é distribuído/conquistado na luta cotidiana dos diferentes
contingentes humanos na base da contradição entre as classes sociais, do antagonismo entre
raças/etnias em presença e dos interesses opostos de homens e mulheres gerados pela
organização social de gênero" (Saffioti, 1997: 142).
Em segundo lugar, a construção das diferenças de gênero interfere diretamente na
situação econômica feminina, criando entraves para que a mulher possa se inserir no mercado
de trabalho com maior representatividade numérica (o trabalho feminino foi cerceado ao
longo dos tempos) e financeira (as mulheres ganham em média menos do que os homens,
mesmo quando ocupam cargos iguais). Outro enclave para a relação feminina com o mundo
do trabalho refere-se a fatores de ordem cultural, uma vez que sobre homens e mulheres
constroem-se representações diversas, associando-se, comumente, a mulher ao universo da
casa, do lar; e os homens ao universo da rua e do trabalho.
Este enclave leva-nos ao terceiro ponto, expondo mais uma das divergências nos
estudos sobre o gênero: onde se situaria a causa primeira das diferenças entre homens e
mulheres?
Mais uma vez, as opiniões são divergentes. Diversos autores tentaram explicar as
diferenças entre homem e mulher calcando-as no sexo, entendido aqui como resultados de
conformação genética, colocando as discussões no terreno da biologia. Mas, como afirma
Rameck (2001), estas teses não se sustentam frente aos estudos pautados nos modelos de
criação e socialização, que reforçam a noção de que gênero é, antes de tudo, produto de
construções sociais, ou, como diria Chodorow (1978), “a criação de seres heterossexuais e
17
Agradeço á pesquisadora Maruska Freire Rameck por ter chamado a atenção para as discussões sobre gênero,
bem como por ter indicado valiosas sugestões bibliográficas., incluindo sua tese de doutorado, Dinâmicas
da voz e do gênero: uma questão de poder, Puc, 2001 (indicação completa na bibliografia).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 33
com identidades de gênero deve-se a um processo social extremamente complexo e
profundamente não natural” . Graças às relações de gênero, as diferenças entre homens e
mulheres são profundas: “As capacidades e orientações que descrevi (de matronagem) devem
ser construídas no interior da personalidade; elas não são comportamentais. As capacidades
das mulheres para maternar e suas habilidades para retirar disto gratificação são fortemente
internalizadas e psicologicamente reforçadas, e são construídas, ao longo do processo de
desenvolvimento, no interior da estrutura psíquica feminina” (Chodorow, 1978: 39, apud
Saffioti, 1992: 188, 190).
Esboçados os enclaves que nos interessam diretamente, falta-nos perceber como as
entrevistadas lidam com a associação ter companheiro/não-trabalhar/ (que corresponde 37%).
Vamos então nos deter agora sobre a fala de algumas mulheres:
“Não, agora o trabalho mais. Eu fui professora de Educação Física, formada pela
PUC. Mas quando eu tive o meu filho eu parei, foi uma opção”(Mulher 14, 34 anos)
“Não, no momento não trabalho, eu era dentista. cuido dos meus filhos”(Mulher 47,
40 anos)
“Agora não trabalho. Eu me casei, tive filho e preferi não trabalhar fora. Como sou
artista plástica, ainda faço peças em casa, mas mais como hobby” (Mulher 70, 30 anos)
“Não trabalho. Trabalhei quando me formei né, fiz enfermagem na PUC de Campinas, aí
eu trabalhei lá cinco anos, depois casei, vim pra cá, parei de trabalhar para cuidar de
marido, de casa e de filho”(Mulher 36, 45 anos)
“Sou do lar, já trabalhei” (Mulher 65, 61 anos).
Para estas mulheres, bem como para outras da amostra, o casamento foi um divisor de
águas na opção por não trabalhar, variável mais importante do que a escolaridade,
contrariando a afirmação de Saffioti de que mulheres escolarizadas e/ou competentes
profissionalmente dificilmente abandonam o seu emprego quando se casam ou têm filhos
(Saffioti, 1979: 358).
Tais mulheres incorporaram a idéia de que com o casamento devem se ocupar das
atribuições domésticas de mãe e esposa. Na verdade, a questão é ainda mais complicada, pois
como vimos na perspectiva de Chodorow (1979), a organização social de gênero afeta, por
conseguinte, os processos e estruturas psíquicas inconscientes. As mulheres citadas aderiram
às representações de gênero da mulher organizadora do lar e mãe zelosa.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 34
Cabe lembrar que os papéis correspondentes tanto às mulheres quanto aos homens
podem ser entendidos dialeticamente: “A lógica que preside à operação das relações de
gênero é dialética”, pois “reflete concepções de gênero internalizadas por homens e
mulheres” (Saffioti, 1992: 193).
A dialética sustenta o eixo analítico de Saffioti, que se propõe a ver “o sexo enquanto
fator de estratificação social que ao mesmo tempo exprime e nega as relações de produção
(...)” (Saffioti, 1979: 356).
A autora assinala que a mulher na sociedade de classes capitalista oscila entre aderir aos
papéis construídos (e ao status associado ao segundo – que Saffioti chamou destatus reflexo
do marido”) de “mulher economicamente ativa” ou como mãe de família [ou ‘dona-de-
casa] ‘ociosa’ (do ponto de vista do sistema dominante de bens e serviços), que goza do
status reflexo do marido” (idem, ibidem: 356).
É preciso, no entanto, em virtude da peculiaridade da amostra, dar um novo sentido à
expressão “mãe de família [ou dona-de-casa]”. As mulheres da amostra pertencem à classe
média-alta ou alta e não assumem exatamente as funções do lar, como lavar e passar roupa,
fazer a faxina da casa e cozinhar. Elas atuam mais como uma espécie de governantas de suas
próprias casas. Explicando melhor, devido à sua posição de classe favorecida
economicamente, cabe no orçamento familiar a contratação de empregadas domésticas,
passadeiras, cozinheiras e babás. Assim, as mulheres pesquisadas, mais do que realizar os
trabalhos, os supervisionam, verificando sua eficácia no andamento do lar. Quando assumem
alguma função delegada às empregadas, como cozinhar ou organizar itens e aspectos da casa
(como por exemplo, as roupas no armário), o fazem menos por necessidade do que por
demandas do gênero. Espera-se delas que continuem zelando pelo lar, pelo maridos e filhos,
atestando assim sua capacidade em manter a harmonia e o funcionamento do lar.
Mas numa época em que vigoram as tiranias da aparência, ser apenas” boa mãe e
esposa não basta, cabendo às mulheres se adequarem aos padrões estéticos estabelecidos,
como veremos nos próximos capítulos
18
. Assim, parte do prestígio social da mulher advém de
sua aparência e parecido com o que Saffioti afirmou, mas, invertendo os termos, os homens
também se beneficiam da imagem física de suas esposas ou companheiras, configurando uma
atitude de status reflexa: o embelezamento das mesmas confere prestígio ao homem, pois ao
circular com elas nos meios sociais que cobram beleza, eles se afirmam como viris
18
Em especial Capítulos 4 - ( A noção de belo: referências históricas e noções de beleza para as mulheres
pesquisadas.), 5 (O culto ao corpo: Produção de si mesmo, estetização da vida cotidiana e espetáculo.) e 6
(A Polissemia do Corpo.)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 35
(conquistaram e mantiveram mulheres bonitas), bem sucedidos (capazes de manter
economicamente a casa e ainda permitem que a mulher possa “se cuidar”- e “se cuidar” será
interpretado pelas mulheres como “estar bonita”). Vejamos como as mesmas mulheres que
falaram da opção por não trabalhar em razão do casamento comentam o peso da beleza:
“Meu marido paga minha academia (...) Porque quando você está bem fisicamente, você
coloca uma roupa, fica melhor, o teu marido te elogia (...). Meu marido me total
apoio, porque é bom também pra ele ter uma mulher bonita ao lado, todo mundo gosta”
(Mulher 14, 34 anos)
“Muito, muito, é ele que fica falando: ‘a sua perna tá flácida, precisa fazer mais
exercício com a perna, bumbum caindo e tal ... ele fica falando’. Sempre. Se gosta um
pouco ele um toque também, tá sempre preocupado. O meu marido me cobra muito.
Principalmente pelo fato de eu não trabalhar, então ele acha que eu tenho a obrigação
de estar me mantendo bem, fazendo ginástica, vindo direto na academia” (Mulher 47, 40
anos)
“No começo, eu acho, quando é novo, quando conhece, primeiro a aparência, a
estética”(Mulher 36, 45 anos)
“Meu marido gosta de me ver sempre arrumada e cobra de mim atividade física, até
paga minha academia. Qual homem não gosta de estar com uma mulher bonita?”
(Mulher 70, 30 anos)
Em todos os casos mencionados acima, a academia é paga pelo marido. Nestes casos, se
a mulher dona-de-casa” usufrui da renda aferida pelo marido, ela também
ingressa/permanece na relação com outros capitais todos eles construídos culturalmente e
nas relações de gênero: as aptidões para ser boa mãe, administrar a casa e ser bela, pois a
beleza se tornará, como veremos, um dos capitais simbólicos
19
da mulher contemporânea.
Não se pretende dizer com isso que a importância da beleza é necessariamente maior
para as que não trabalham, pois, como se visto no capítulo 5.1.2 (em especial, item “e)
Competição e Cobrança Social”), ela se disseminou pela sociedade de modo a influenciar as
mulheres das classes média-alta e alta de uma maneira geral. O que se afirma é que se
desejamos traçar um perfil sócio-econômico das mulheres pesquisadas, temos que salientar
que por causa dos mecanismos de gênero e pela cultura que as relações de gênero devem
ser pensadas também na esfera da cultura- , cuidar do físico é fundamental para a obtenção de
signos de prestígio que a elevem na esfera social e que, ao mesmo tempo, alimentam as
19
Ver discussão no subitem 5.1.2 -b).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 36
relações de gênero ao estabelecer a beleza, a feminilidade e o poder de sedução como armas
femininas.
A título de resumo, segue uma breve sistematização dos dados que caracterizam a nossa
amostra. Podemos afirmar que as principais características do público entrevistado são:
1) a maioria (63%) é composta de mulheres da faixa etária entre 18 e 39 anos,
seguida logo após por 20% que compreende a faixa etária entre 40 e 50 anos.
2) 75% delas têm companheiro ou convivem maritalmente e 52% da amostra
têm um ou mais filhos.
3) 89% m nível superior, bem como 18% cursam pós-graduação, indicando
alto nível de escolaridade no universo pesquisado.
4) 2/3 da amostra (67,5%) exercem profissão.
5) 83% ganham acima de R$ 2.600,00 reais por mês, sendo que desta
porcentagem, 62% correspondem às entrevistadas com renda superior a R$
5.000,00.
6) Do total de 33% das entrevistadas que estão fora do mercado de trabalho, tal
opção justifica-se mais por questões de gênero do que pela escolaridade, que
como vimos, é elevada. Pode-se dizer que faz parte do estilo de vida destas
mulheres abastadas que elas se dediquem às funções de governanta da casa e
mãe, delegando ao companheiro a função de prover economicamente o lar.
7) Mesmo entre as desempregadas, a renda familiar declarada é alta, sendo que
94% delas afirmou renda mensal acima de R$ 2.600,00.
8) Já se delineia que para as mulheres entrevistadas o cuidado com a aparência
é importante, não para a auto-estima, mas também em termos de status,
pois a beleza se configurará como um capital simbólico.
Uma vez esboçado o universo com o qual estamos lidando, falta-nos contextualizá-lo
historicamente, bem como compreender que, como salientou Rodrigues, “o corpo é
socialmente concebido, e que a análise da representação social do corpo oferece uma das
numerosas vias de acesso à estrutura de uma sociedade particular (...)” (Rodrigues, 1983:
44, 63).
É preciso investigar, portanto, como a estrutura social e a cultura imprimem-se no
corpo, caminho este que traçaremos em seguida.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 37
2.2.3 - POR UMA ANTROPOLOGIA DO CORPO.
“Nós não temos um corpo, nós somos um corpo”.
(Lígia A. Amaral)
Desde 1990, a questão da corporalidade e das representações que o corpo suscita são
meus objetos de reflexão. Durante a graduação, analisei como pessoas portadoras de
deficiência física pensavam seus corpos e se relacionavam socialmente
20
. No mestrado,
verifiquei como o cinema internacional veicula a deficiência física congênita e, desta forma,
constrói representações sobre o corpo de pessoas portadoras de deficiências
21
. Nestes
trabalhos, pude perceber que um dos modelos mais vigorosos de constituição corporal do
Ocidente era o espelhado pelo corpo grego, cujas principais marcas de perfeição diziam
respeito à beleza e à funcionalidade. Desta forma, a deficiência estampada no próprio corpo
negava um padrão de Humanidade tido como ideal, instaurando uma desordem tanto no que
diz respeito à estética, quanto à funcionalidade. Ela marcava sua presença na constituição
física portanto, no plano da natureza - do indivíduo e impunha uma desordem no plano da
cultura, pois, como vimos, este "corpo ideal" é conseqüência de um processo cultural. E é
sobre este corpo diferente e apreendido como desigual que se fundam o preconceito e o
estigma. Além disto, com a explosão da cultura do corpo a partir de 1980, a imperfeição do
corpo marcado por uma deficiência se torna ainda mais visível. Foi justamente no embate
destas duas corporalidades tão distintas que nasceu a idéia de investigar o outro lado da
moeda, ou seja, avaliar os significado inerentes a um tipo de corpo específico que a sociedade
atualmente fabrica, que é o corpo feminino perfeito.
A opção de refletir sobre as representações corporais não é nova na Antropologia. O
corpo sempre constituiu um fecundo campo teórico desta disciplina, sendo objeto de reflexão
de autores como Marcel Mauss, que, em trabalhos clássicos como As Técnicas Corporais
(1974) e A Noção de Pessoa (1974), nos chama a atenção para as várias maneiras possíveis
por meio das quais cada sociedade impõe ao indivíduo um uso rigorosamente determinado do
seu corpo, bem como da fabricação de máscaras sociais que se sobrepõem ao indivíduo.
Segundo ele, é através da educação das necessidades e das atividades corporais que a estrutura
social imprime sua marca nos indivíduos: “adestram-se as crianças (...) a dominar reflexos
(...) inibem-se medos (...) selecionam pausas e movimentos (...) A educação da criança está
cheia do que chamamos detalhes, mas que são essenciais. Quantidade de detalhes, não
20
Ver Berger, Mirela; Gonçalves, Cristiane e Montanari, Patrícia- “Quando o espelho não reflete: alunos
portadores de deficiências na Usp”, relatório final, CECAE/USP, 1991.
21
Ver Berger, Mirela – A Projeção da Deficiência, Dissertação de Mestrado, PPGAS, USP, 1999.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 38
observados, e dos quais é necessário fazer a observação, compõem a educação sica de
todas as idades e dos dois sexos.” (Mauss, 1974: 221).
Mauss alertava para a premente necessidade de se fazer o inventário e a descrição de
todos os usos que os homens, no curso da história e principalmente em todo o mundo, fizeram
e continuam a fazer de seus corpos. Para ele, os limites da dor, da excitabilidade, da
resistência são diferentes em cada cultura. Sua premissa básica é que o homem, sempre e em
toda parte, soube fazer de seu corpo um produto de suas técnicas e de suas representações. A
sociedade fabrica, de acordo com épocas e lugares, estereótipos e modelos de comportamento
que se inscrevem no corpo.
Sobre o corpo, apreendido como algo no domínio da cultura, serão impostas técnicas
corporais (Mauss, 1974), ou seja, atos tradicionais e eficazes que combinam elementos
biológicos, psicológicos e socioculturais, sem que os próprios agentes e objetos tenham
sempre consciência disto. Rodrigues (1983) reforça esta tese assinalando que o corpo humano
é permanentemente afetado pela ocupação, religião, estrutura de classes, grupo familiar e
outros fatores da cultura, ainda que seus usos apareçam em nossa consciência como naturais.
Este autor pretende demonstrar que a estrutura social encontra-se simbolicamente impressa no
corpo, e a atividade corporal nada mais faz senão torná-la expressa: “Em cada sociedade
poder-se-ia levantar o inventário destas impressões-mensagens e descobrir-lhes o código:
bom caminho para se demonstrar na superfície dos corpos, as profundezas da vida social”
(Rodrigues, 1983: 44).
Por esta via, entendo o corpo o apenas como um produto da cultura, mas também
como um dos lócus privilegiado de reflexão e produção da própria cultura. O presente
trabalho caminha também na direção proposta por Mauss, elencando as percepções corporais
da mulher urbana pós 1990 e as técnicas corporais por elas utilizadas.
O corpo é um reflexo da sociedade que articula significados sociais e não apenas um
complexo de mecanismos fisiológicos; assim sendo, é impossível pensar o corpo sem
considerar a pluralidade de sentidos que ele engloba. Ou, para citar novamente Rodrigues,
“Inspirado no seu próprio corpo, o homem concebeu relações entre os astros, as estações, as
coisas, os animais e os deuses; reconhecemos no nosso corpo e no das pessoas que conosco
se relacionam um dos diversos indicadores da nossa posição social e o manipulamos
cuidadosamente em função deste atributo. Vemos, no nosso próprio dia-a-dia, o corpo se
tornando cada vez mais carregado de conotações: liberado física e sexualmente na
publicidade, na moda, nos filmes e romances; cultivado higiênica, dietética e
terapeuticamente; objeto de obsessão de juventude, elegância e cuidados” (idem, ibid: 46).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 39
Segundo o autor, “arranhando, rasgando, perfurando, queimando a pele, imprimem-se
cicatrizes signo que são formas artísticas ou indicadoras de status (...)” (Rodrigues, 1983:
63). Cada uma destas práticas se explica por uma razão específica, dada pelo contexto sócio-
cultural em que foram produzidas, que pode ser ritual ou estética, indicando ritos
propiciatórios, marcas tribais, signos de status social, ritos de passagem, entre outros.
Diversos outros antropólogos privilegiaram o corpo em seus estudos, mostrando-nos
que toda sociedade utiliza-se de formas específicas de marcar o corpo de seus membros.
Clastres (1988) mostrou como nas sociedades primitivas o corpo tinha o status de uma
escritura, que as normas sociais eram inscritas nele. Assim, a tortura corporal servia como
um ritual de iniciação e como um modo de gravar na pele e na memória dos iniciados os
ensinamentos sociais. A marca corporal funcionava como um sinal de que aquele jovem era
plenamente membro da aldeia e que não poderia se esquecer disto, que trazia no próprio
corpo uma marca inscrita pela sociedade: “Na exata medida em que a iniciação é,
inegavelmente, uma comprovação da coragem pessoal, esta se exprime se é que podemos
dizê-lo no silêncio oposto ao do sofrimento. Entretanto, depois da iniciação, já esquecido
todo sofrimento, ainda subsiste algo, um saldo irrevogável, os sulcos deixados no corpo pela
operação executada com a faca ou a pedra, as cicatrizes das feridas recebidas. Um homem
iniciado é um homem marcado. O objetivo da iniciação, em seu momento de tortura, é
marcar o corpo: no ritual iniciatório, a sociedade imprime sua marca no corpo dos jovens.
Ora, uma cicatriz, uma marca, são indeléveis (...) A marca é um obstáculo ao esquecimento,
o próprio corpo traz impressos em si os sulcos da lembrança o corpo é uma
memória.”(Clastres, 1988: 128).
Michel Foucault (1987) mostrou como o corpo também se configurava como o substrato
onde se inscrevia a lei. A tortura, que incluía a marcação com ferro em brasa no corpo dos
condenados, visava tornar marcado e visível o mal que ele havia cometido. Foucault também
enfatiza que a sociedade capitalista, em função do adestramento para o trabalho, faz um
rigoroso controle dos corpos de seus membros. Sendo assim, as técnicas corporais evidenciam
a presença de montagens fisio-psicológicas através de uma série de atos e marcas, que são
inscritos no corpo pela sociedade e que evidenciam o seu poder, fazendo com que o corpo
esteja mergulhado num campo político, econômico e cultural
Seeger (1979) salientou que é impossível pensar em uma antropologia das sociedades
indígenas do Brasil sem levar em conta as categorias de espaço, tempo e pessoa. Ele nos
lembra que a originalidade das sociedades tribais brasileiras reside na elaboração de uma
noção de pessoa calcada na corporalidade. Segundo ele, as etnografias precisam se reportar
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 40
aos modos como cada sociedade lida com o corpo de seus membros e os elabora como uma
construção social. Viveiros de Castro (1979) compartilha da posição de Seeger ao mostrar
como se a fabricação do corpo na sociedade xinguana e como este processo é a base de
todo um complexo sistema de construção de identidades onde o corpo figura como matriz e
fonte de significado.
Entre as mulheres pesquisadas, estas questões ficam muito evidentes. Para quem
observa de fora as práticas corporais das freqüentadoras da Cia Atlhética, pode parecer
futilidade ou falta do que fazer dedicar tantas horas à malhação e a outros cuidados com
cabelos, rosto e corpo. Mas, para as próprias mulheres, trata-se de colocar em prática
mecanismos de construção da identidade, e esta o pode ser considerada abstraindo-se as
questões estéticas. Malhar e cuidar da aparência, para o grupo pesquisado, fazem com que as
mulheres se identifiquem e identifiquem as outras como membros de uma espécie de clã, no
qual a forma física apresenta-se como referencial classificatório. Trata-se, portanto, de uma
questão de identidade e de apreensão moral: numa sociedade onde o corpo malhado
apresenta-se como objeto de adoração e classificação, não possuí-lo é não estar inserido. E
mais, como veremos, sobre o corpo não malhado recairá um estigma e uma culpa, que um
dos pilares da ideologia do corpo perfeito recai no esforço individual. Assim, como reforça
Eckert (1995), “Os corpos se inserem numa vasta teia de representações, ideologias e
concepções morais” (Eckert, 1995: 165). Esta autora cita Merleau-Ponty: “Operador sine
Qua non de todas as práticas sociais, o corpo é projeto sobre o mundo” (Merleau-Ponty,
apud Eckert, 1995:21). O corpo será assim como uma tela, o lugar da visibilidade de códigos
de conduta, de regras estéticas e do próprio gosto cultural das mulheres pesquisadas.
Neste sentido Queiroz e Otta (2000) afirmam que “o corpo e os usos que dele fazemos,
bem como as vestimentas, pinturas e ornamentos corporais, tudo isso constitui, nas mais
diversas culturas, um universo no qual se inscrevem valores, significados e comportamentos,
cujo estudo favorece a compreensão da natureza da vida sociocultural.” (Queiroz e Otta,
2000: 19).
Certeau (1994) enfatiza estas conexões entre corpo e sociedade. Segundo ele, as
gramáticas sociais do poder induzem ou obrigam as pessoas a corrigir um excesso ou déficit
corporal, sendo que as atividades de extração ou contenção remetem a um código que mantém
os corpos submetidos a um ideal ideologicamente construído.
É assim também que determinados tipos de produtos postos à disposição do público,
graças a uma bem sucedida estratégia de marketing comercial, modelam igualmente os
corpos, impondo-lhes uma forma e um tônus que têm o valor de uma carteira de identidade.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 41
Esta é uma outra forma de fazer com que os corpos se tornem um espaço de escrituras visíveis
às diversas formas sociais e indicativos de pertencimento a grupos específicos. Como vimos,
Clastres (1988) nos mostra que nas sociedades primitivas a modelagem do corpo tem como
objetivo verificar a resistência pessoal e demonstrar um pertencimento social: é sobre o corpo
que a lei é escrita, ou seja, o corpo físico atuará como memória do corpo social. Acredito que
nas sociedades contemporâneas, e neste caso específico, no Brasil, este culto ao corpo, que
trabalha no sentido de amoldá-lo a alguns padrões pré-estabelecidos, também evidencie
pertencimentos sociais, defina visões de mundo de grupos específicos e estilos de vida
22
aos
quais se tenta aderir para se obter reconhecimento social, como veremos mais adiante.
Além disto, se hoje boa parte da construção da identidade parece passar por um corpo
magro, malhado, jovem, como ficam as mulheres que o aderem a estas lógicas? Como elas
se vêem e são vistas pela sociedade mais ampla? Como lidam com regras culturais que
definiram padrões muito específicos de beleza?
Para além de conhecermos mais a fundo os padrões corporais marcantes no Brasil,
enquanto antropólogos devemos nos perguntar o que está por trás da busca deste corpo
considerado saudável e bonito, questionando certos modelos que, antes de serem “naturais”
ou “individualizados”, são produzidos pela sociedade, e atingem uma coletividade. Mauss já
nos alertava para o fato de que nosso corpo não foge a uma dupla ordem de fenômenos,
pertencendo ao mesmo tempo à natureza e à cultura. Embora a busca de um padrão corporal
dependa do indivíduo, de sua disciplina e força de vontade, como toda técnica corporal é obra
da razão prática coletiva.
São diversas as questões antropológicas que podemos evocar nesta época de culto ao
corpo. Percebo, entre elas, que talvez nas últimas décadas estejamos vivendo embates entre os
padrões fisiológicos do corpo e os culturais. O biótipo ideal das brasileiras, embora marcado
pela diversidade, tem caminhado bastante para a magreza. O padrão de distribuição da
gordura corporal pode ser determinado calculando-se a razão entre a medida da circunferência
da cintura e a da circunferência do quadril (RCQ), sendo que esta taxa exibe variações de
acordo com a procedência da pessoa: européia, asiática, africana ou sul-americana. Entre as
mulheres européias, esta taxa é maior devido à estatura e a configuração corporal (quadris
mais estreitos); entre as brasileiras, é menor, que nosso biótipo é caracterizado por
mulheres mais baixas e de quadris mais largos. Ou seja, é biologicamente impossível igualar o
padrão corporal destas mulheres. Até aqui, nenhum problema, não fosse o fato de que boa
22
Segundo Siebert (1995), “‘estilo de vida’ é a maneira dos homens produzirem, cotidianamente, sua existência
social, dos modelos de consumo às formas de organização do lazer e das relações interpessoais. Todo este
conjunto é condicionado pelos valores e pelas normas culturais dominantes ” (Siebert, 1995: 19)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 42
parte das brasileiras está tentando ficar cada vez mais magra, fazendo o (im)possível para se
aproximar dos padrões europeus, que são os mais presentes nos editoriais de moda
brasileiros!
A preocupação estética de uma classe significativa de mulheres, ainda mais no que diz
respeito ao modelo do corpo excessivamente magro, esdeixando de ser um problema que
possa constituir uma preocupação apenas individual e ocasional, a ponto de se transformar
inclusive num problema muito mais amplo, com implicações na saúde
23
.
O estudo aprofundado da junção entre a fabricação deste corpo pelas mulheres, os
modelos corporais produzidos pela sociedade e o papel da mídia neste processo, pode revelar
muito sobre os modelos corporais do nosso tempo e, ao nos questionarmos sobre algo que nos
é veiculado como “natural”, podemos lançar luzes sobre as vantagens e desvantagens desta
“estética da fome” e de outros modelos corporais presentes em nossa sociedade.
Desta forma, algumas questões se colocam e podem ser respondidas por uma
investigação que busque compreender como as mulheres pós 1990 constroem sua identidade e
que modelos corporais exercem influência sobre este processo. O que é ser pessoa entre as
mulheres com poder aquisitivo no Brasil? Ocorrem variações deste modelo entre as classes
sociais? Quais os modelos arquitetônicos corporais que a nossa sociedade produz? No que
eles se baseiam? Qual o papel dos meios de comunicação de massa neste processo? Como a
antropologia visual pode nos auxiliar no entendimento desta proliferação imagética de corpos
magros e de suportes para alcançá-los, presentes nos meios de comunicação e na sociedade
mais ampla? Será que esta maior preocupação com o corpo pode estar relacionada com a
expansão dos processos de gravação da auto-imagem, como a fotografia, os vídeos “caseiros”,
entre outros? Como e porque entender a proliferação de revistas ligadas à estética? Estas são
algumas das questões que a tese visa decifrar.
Também é importante ressaltar que o corpo está no centro de numerosas discussões em
curso na atualidade. Tenho percebido que a cada ano se amplia no Brasil o número de
publicações não científicas sobre a questão do culto ao corpo e, principalmente, a respeito de
seus templos preferenciais, ou seja, as academias de ginástica e as clínicas de estética e
cirurgias plásticas. Todos nós conhecemos pessoas que eram sedentárias e despreocupadas
com a estética e que de um tempo para se tornaram “malhadoras”. Também temos contato
com pessoas que sofrem de distúrbios de alimentação (como a anorexia nervosa e a bulimia).
23
No Jornal Nacional de 12/10/2000, saiu uma reportagem sobre os danos que dietas rígidas provocam na
memória e no raciocínio, afirmando que uma semana de dieta rígida pode causar danos cerebrais
irreversíveis.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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A cultura do corpo nunca esteve tão visível, mas, apesar de percebermos o que acontece em
nossa volta, temas relacionados às academias de ginástica parecem fúteis para algumas
comunidades científicas. Os E.U.A. são pioneiros no que se refere aos estudos sobre esta
questão. São inúmeras as publicações científicas a este respeito, inclusive em revistas e
jornais científicos relacionados à área de saúde, mas que contam com uma abordagem mais
holística do corpo e de suas representações. No Brasil, até o início de 2000, temas
relacionados à cultura física na contemporaneidade apresentavam-se como uma seara aberta
por alguns núcleos de pesquisa, mas inexplorada. Somente alguns discutiam com visibilidade
o tema, entre eles o grupo de pesquisa Antropologia do Corpo e da Saúde do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGA/UFRGS) e o Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Neste último destacam-se as pesquisas de César Sabino As Drogas de Apolo: O
Consumo de Anabolizantes em Academias de Musculação, e os trabalhos de Miriam
Goldemberg.
No departamento de antropologia da USP, não nenhum grupo de pesquisa estudando
o tema, mas tivemos o livro organizado por Renato Queiroz, O Corpo do Brasileiro: Estudos
de Estética e Beleza(2000). No entanto, posteriormente, o surgiu nenhuma outra pesquisa
no departamento sobre o tema, e creio que esta é a primeira tese que versa sobre a cultura
física atual. em outros estados, como o Rio de Janeiro, entre 2000 e 2005 os trabalhos se
multiplicaram e várias teses e livros foram defendidas e publicados, entre eles, os trabalhos de
Alexander Edmonds (2002) sobre cirurgias plásticas, e outros trabalhos de Miriam
Goldemberg (2002 e 2004) e Sabino (2000). Em São Paulo, destacam-se as historiadoras
Mary Del Priori (2000 e 2004) e Mônica Raisa Schpun (1999), ambas do departamento de
História da Universidade de São Paulo.
Acredito que este crescimento do número de publicações reflete a importância que
temas relacionados ao corpo na contemporaneidade tem alcançado em várias partes do país.
De temas marginais e tidos até como supérfluos, as academias de ginástica e a identidade da
mulher “malhadora” hoje estão em evidência e apontam para antigas e novas lógicas que têm
como suporte privilegiado o corpo e seus mecanismos de visibilidade. Talvez estejamos,
como propunha Mauss (1974), contribuindo com uma parte do infinito inventário do uso que
os homens fazem de seus corpos, num cenário (as academias de ginástica), até o início do
século XXI, pouco explorado.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 44
Por fim, na temática do corpo, é preciso ressaltar o magistral trabalho de Löic
Wacquant, em seu livro Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe (2002),
que de uma forma literalmente visceral, propõe que a sociologia “deve se esforçar para
capturar e restituir essa dimensão carnal da existência (...) Para tanto, nada como a
iniciação iniciática e mesmo a conversão moral e sensual ao cosmo considerado como
técnica de observação e análise”, ou, em outras palavras, a necessidade de tematizar “uma
sociologia não somente do corpo, no sentido do objeto (o inglês fala ‘of de body’), mas
também a partir do próprio corpo como instrumento de investigação e vetor do conhecimento
(‘from the body’)” (Wacquant, 2002: 11, 12). Wacquant inicia seus estudos num clube de
boxe de um bairro do gueto negro de Chicago e vai percebendo que a reflexão sócio-
antropológica a respeito do boxe deveria mostrar que a prática do esporte faz do corpo “ao
mesmo tempo a sede, o instrumento e o alvo” (Wacquant, 2002: 32) da pesquisa, ao ponto
dele, que nunca havia praticado esportes, converter-se ao boxe para melhor apreender, de
dentro, a lógica do sistema.
Com este trabalho, o autor situa definitivamente o corpo no centro da reflexão
acadêmica e recoloca as questões levantadas pelos antropólogos pós-modernos, que
defendem, entre outras idéias, que o pesquisador pode participar do grupo estudado e, ainda
assim, manter a distância metodológica e o estranhamento fundador da disciplina. Para
Wacquant, trata-se, mais do que estudar o corpo contemporâneo, fazê-lo a partir do próprio
corpo, dando assim uma dimensão ainda maior à corporalidade, ela mesma transformada em
objeto e método de análise.
O presente trabalho compartilha totalmente da postura adotada pelo autor e salienta a
importância de uma pesquisa em que o corpo figure ao mesmo tempo como objeto e eixo
catalisador das discussões.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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3 - O lugar do corpo na história.
3.1 - DEFINIÇÃO DO RECORTE HISTÓRICO
“Memória mutante das leis e dos códigos de cada cultura, registro das
soluções e dos limites científicos e tecnológicos de cada época, o corpo não
cessa de ser (re) fabricado ao longo do tempo. Pois o corpo é, ele próprio,
um processo”
(Denise Bernuzzi de Sant’Ana)
Nosso corpo não é algo simples e que remeta exclusivamente ao domínio da biologia.
Muito pelo contrário, enquanto matriz e suporte de significados ele é extremamente complexo
e diversamente pensado através do tempo e da história. “Cada sociedade tem seu corpo,
assim como ela tem sua língua”, escreve Michel de Certeau (1982). E, do mesmo modo que a
língua, o corpo essubmetido à gestão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa. Não
é possível falar do corpo sem nos darmos conta de que a concepção do que seja um corpo
esteticamente perfeito é sempre uma construção cultural que varia de acordo com as diversas
sociedades existentes, variando, portanto historicamente. Sant’Ana (1995) reforça que o
corpo, enquanto resultado provisório das convergências entre técnica e sociedade, sentimentos
e objetos, pertence menos à natureza do que a história.
Afirmar que o corpo pertence à história nos obriga a fazer uma dupla distinção: primeiro
temos que levar em conta que a própria importância conferida ao corpo é algo que varia
historicamente; e em segundo, devemos nos deter nos sentidos atribuídos ao corpo nas mais
diversas épocas.
Embora o objeto deste trabalho seja compreender a relação entre corpo e identidade
feminina no presente, somos obrigados a fazer uma breve retrospectiva histórica. De outro
modo, como perceber os elementos que aproximam e distanciam o atual culto ao corpo do
tratamento dado às questões corporais no passado? Fala-se hoje da crescente importância
dada, por exemplo, à aparência física e aos mecanismos para tornar-se bela, entre eles, a
“malhação”. Mas se a importância aumentou, é porque em outras épocas ela também se
apresentava. Portanto, o que mudou? De qual forma mudou?
Contudo, antes de iniciar esta retrospectiva, é necessário estabelecer um recuo. Como
salientou Lévi-Strauss, “todas as sociedades humanas têm atrás de si um passado que é
aproximadamente da mesma ordem de grandeza” (Lévi-Strauss, 1993: 340). Podemos voltar
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infinitamente na história, seja qual for o tema, e talvez mais ainda no tocante a algo tão
intrínseco a nós, como o corpo. Mas parece ser um consenso na literatura especializada que
um ponto de ruptura central para a compreensão do tema é a modernidade, uma vez que a
ascensão do ideário e costumes burgueses marca uma profunda transformação nas relações
com o corpo, como veremos mais adiante. Novamente, temos um problema inicial, referente à
datação da modernidade, que oscila entre um sentido mais restrito, a passagem do século
XVIII para o XIX e, um mais amplo, a partir do século XVI.
Em princípio, resolvemos o problema do recuo histórico se elegermos com razão - a
modernidade como um marco central. No entanto, como nos indica magistralmente Rodrigues
(1999), a Idade Média coloca-se como referencial central para contrastar e relativizar nossas
próprias convicções e sensibilidades: “as mentalidades e as sensibilidades medievais são
aquilo contra o que a cultura capitalista e, mais adiante, a cultura industrial se define. Estas
culturas se posicionam diante da cultura medieval e afirmam enfaticamente para elas
mesmas: isto é o que não queremos ser, isto é o que renegamos da maneira mais convicta e
radical. De certo modo, a Idade Média constitui, se posso dizer assim, o outro específico da
sociedade contemporânea” (Rodrigues, 1999, grifos do autor).
Desta forma, a estratégia adotada aqui quanto ao recuo temporal eslonge de traçar
uma história do corpo”, tarefa das mais ingratas, até porque esta jamais seria coesa e linear,
caminhando mais no sentido de elencar alguns fragmentos de épocas e processos históricos
que engendram diferentes posturas frente ao corpo, bem como de fornecer pistas para a
análise do corpo enquanto objeto heterogêneo e plural, para, em seguida, traçarmos os
modelos corporais das mulheres urbanas brasileiras a partir de 1990.
3.2 - IDADE MÉDIA E CORPO
“Pensar o corpo é outra maneira de pensar o mundo e o vínculo social;
uma perturbação introduzida na configuração do corpo é uma perturbação
introduzida na coerência do mundo”
(David Le Breton)
A Idade Média, talvez mais do que qualquer outro período histórico, concentra ao seu
redor inúmeros preconceitos. Nos livros de História, com exceção dos mais recentes, ela é
chamada de época das trevas (em contraposição ao Iluminismo), do dogmatismo religioso,
dos povos bárbaros... Rodrigues (1999) comenta que estas acusações, longe de
corresponderem à realidade, atestam mais o nosso etnocentrismo. Também se veicula a idéia
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errônea de que durante aquele período, era reduzida a importância dada ao corpo e alega-se
que isto se deve ao predomínio da religião, que enfatizaria os aspectos ligados à alma. No
entanto, as preocupações com o corpo não estavam ausentes na Idade Média, talvez apenas
recebessem outro enfoque.
Portanto, para uma melhor compreensão da cultura corporal moderna e pós-moderna
temos primeiro que investigar como a Idade Média pensou questões relativas ao corpo. O
primeiro ponto que salta aos olhos é que os medievais percebiam o universo de maneira
absolutamente integrada, tornando difícil escolher alguns pontos para esta discussão, na
impossibilidade e incapacidade de abordar todos eles. Foram privilegiados os pontos que
tocavam mais diretamente aos temas da alimentação e dos cuidados corporais.
3.2.1 - AS FESTAS MEDIEVAIS E OS BANQUETES
Para Mikhail Bakhtin (1987), as festas na Idade Média eram constantes, carnavalescas e
diretamente ligadas a banquetes, ou seja, à ingestão de alimentos e bebidas em maior
quantidade que a ingerida diariamente. Festejava-se nos campos, nos castelos e até nas
Igrejas. Nestes momentos ritualizavam-se os conflitos e dava-se margem às pulsões sexuais, à
gestualidade obscena, e à comilança. O consumo de bebida era intenso, sobretudo a cerveja,
localmente produzida e consumida por adultos e crianças. As festas davam o tom da
existência e eram, em geral, permeadas pelo cômico. Nem a Igreja escapava: parte das
festividades acontecia no interior do templo ou em suas adjacências. Segundo Rodrigues, em
algumas paróquias era costumeiro comer e beber à mesa de comunhão. A própria figura de
Deus era representada por um glutão insaciável, como um ser que tem fome, possuidor de
uma barriga gigantesca, capaz de devorar os pecados do mundo (Rodrigues: 72).
A insolência e a irreverência marcavam o tom das festividades: “a festividade era
simultaneamente todas estas coisas encontros e desencontros, comemorações e conflitos - ,
mas sempre matizada por um estilo característico, estilo governado pela alegria e
transbordamento” (Rodrigues, op.cit.: 67).
Dentre as festas mais comuns estavam as festas dos tolos, as de ridicularização do rei, as
celebrações dos solstícios, as festas de casamento... Quando não havia uma festa em
andamento, comentava-se sobre as passadas e preparava-se as futuras. Havia festas na cidade
e no campo, na casa de ricos e de pobres e quem chegasse era bem vindo, tendo sido
convidado ou não.
A hospitalidade era um traço marcante dos medievais: o homem medieval abria as
portas de sua casa e dava guarida, fosse a casa ser grande ou pequena. Recebia-se aqueles que
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chegavam como era possível, pois não existiam ainda lugares ou datas predefinidos para a
hospitalidade. Os castelos constituíam uma espécie de habitat comunitário, fazendo parte das
obrigações dos homens poderosos hospedar pobres, viajantes e outras pessoas que estivessem
de passagem. Os cômodos mais públicos das habitações dos senhores, como as salas, estavam
preparados para festas.
Era comum ao homem medieval oferecer banquetes. Rodrigues narra que em 1460 um
simples negociante genovês gastou com o banquete das bodas de sua filha um terço do que
custou a alimentação de toda a família (dez pessoas) durante um ano. Quando Bernardo
Ruccellai se casou com a filha de Piero de Médice, em 1466, estavam sentados em torno da
mesa principal 170 convidados, e mais 500 espalhavam-se pelas outras mesas. Foram
consumidos cento e vinte barris de vinho, três mil aves, dois mil e oitocentos pães (Heers,
apud Rodrigues, 1988).
Bakhtin afirma que o papel das imagens de banquete no livro de Rabelais é enorme e
estão elas mescladas às do corpo grotesco: “as imagens da alimentação estão ligadas à do
corpo e da reprodução (fertilidade, crescimento, parto)”. (Bakhtin, 1987: 244). Para o autor,
é comendo que o homem medieval se encontra com o mundo: “O comer e o beber são uma
das manifestações mais importantes da vida do corpo grotesco. As características especiais
deste corpo são que ele é aberto, inacabado, em interação com o mundo. É no comer que
estas particularidades se manifestam da maneira mais tangível e mais concreta: o corpo
escapa às suas fronteiras, ele engole, devora, despedaça o mundo, fá-lo entrar dentro de si,
enriquece-se e cresce às suas custas” (op.cit: 245). E mais, além de encontrar-se com o
mundo através da comida, o homem medieval também via o mundo por ela, tanto que o autor
afirma que o banquete é o “enquadramento essencial da palavra sábia, dos sábios ditos, da
alegre verdade”.(idem, ibidem: 249). Para Bakhtin, o banquete deve ser compreendido como
triunfo vitorioso e renovação, estando, portanto, relacionado com a alegria e com o prazer
24
.
Os celeiros destinavam-se a guardar alimentos para eventualidades, nunca para apenas
acumular o alimento: “O alimento ainda não havia sido transformado numa espécie de
combustível, destinado à restauração das energias utilizadas pelo organismo (...) Se existia o
cuidado e, mesmo a preocupação, de acumular alimentos no celeiro (...) tal não acontecia,
todavia, senão como uma espécie de previsão, ou melhor, como uma provisão para as
festividades” (Rodrigues, 1999: 139).
24
A título de comparação com a época presente, ver a discussão sobre a anorexia no capítulo 6 - A Polissemia do
Corpo.
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Segundo Elias, “comer e beber nessa época ocupavam uma posição muito mais central
na vida social do que hoje, quando propiciavam com freqüência, embora nem sempre - o
meio e a introdução às conversas e ao convívio” (Elias, 1990: 74). Como vimos
anteriormente, a comida fazia parte das festividades e era consumida em abundância. Mas
quais eram as regras de etiqueta à mesa para o consumo da comida ofertada?
3.2.2 - O COMPORTAMENTO À MESA
Segundo Elias e Rodrigues, os quadros que retratavam pessoas à mesa, até início do
século XV, mostram bem poucos utensílios, sendo comum, tanto entre ricos, quanto entre
pobres, comer com as mãos ou levar líquidos como sopa diretamente da travessa à boca. Não
havia garfos, a faca era o talher básico aliás, era um instrumento multifuncional, servindo
tanto para matar pessoas quanto para cortar um pedaço de carne - e também não havia pratos
individuais. Utilizavam-se as mesmas facas e talheres para diferentes alimentos. Ainda que
houvesse luxo à mesa entre a alta classe secular, de modo geral comer era visto como uma
necessidade básica que não requeria maiores sofisticações (Rodrigues, 1999; Elias, 1990).
Os animais eram servidos inteiros na mesa, mesmo aqueles de maior tamanho, como
porcos e bois. Inteiro aqui quer dizer não só não-fatiados, mas com cabeça, patas, vísceras,
olhos... A tônica era fartar-se, sempre, retirando dos aparadores as comidas que agradassem o
paladar, sem seguir uma ordem específica. Provavelmente, soaria estranho aos ouvidos de um
medieval que ele deveria evitar a gordura ou comer moderadamente. De fato, o que aparece
nos manuais de etiqueta da época são alguns conselhos, que, como ressaltam Elias e
Rodrigues, soariam ingênuos frente à nova sensibilidade e à rigidez da época moderna.
Segundo Elias, o conceito que orientava o comportamento social considerado aceitável na
Idade Média apareceu em francês como courtoise, em inglês como courtesy e em italiano
como cortezia. Eles estabelecem: “É assim como as pessoas se comportam na corte”. Segundo
o autor, o padrão estabelecido era relativamente homogêneo e “poderia ser chamado de
simplicidade ou ingenuidade. São menos numerosas, como aliás em todas as sociedades em
que as emoções são manifestadas mais violenta ou diretamente, as nuanças psicológicas e as
complexidades no conjunto geral de idéias. amigos e inimigos, gente boa e gente má,
desejo e aversão” (Elias, idem: 76). Elias acredita que a rusticidade devia-se ao fato de que
isso atendia às necessidades das pessoas e que parecia importante exatamente desta forma. As
orientações de comportamento eram simples e motivadas mais por sensações (como gostar ou
não de algo) do que por ditames sociais, ainda que houvessem comportamentos recusados e
aceitos. O autor cita alguns destes exemplos, retirados de manuais de comportamento da
época:
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“Um homem refinado não deve fazer barulho de sucção com a colher
quando estiver em boa companhia. Esta é a maneira como se comportam na corte
pessoas que se entregam a hábitos grosseiros”.
“Algumas pessoas mordem o pão e, em seguida, grosseiramente,
mergulham-no na travessa. Pessoas refinadas rejeitam esta maneira rude.”
“Se um homem bufa como uma foca quando come, como acontecesse com
algumas pessoas, e estala os beiços como um camponês bávaro, então ele
renunciou a toda boa educação ”
(extraídos do Hofzucht, de Tannhäuser, código de comportamento)
“Os que se levantam e fungam repugnantemente sobre os pratos, como se
fossem suínos, pertencem à classe dos animais do campo”
“Bufar como um salmão, comer voraz e ruidosamente como um texugo e
queixar-se enquanto come – eis três coisas realmente indecorosas”
(extraídos de Ein spruch der se tische Kêrt (Uma palavra sobre aqueles à
mesa ).
“Não babes enquanto bebes, porque isto é um hábito vergonhoso”.
“Ouvi dizer que alguns comem sem lavar as mãos (se isto é verdade, é um
mau sinal.) Que seus dedos fiquem paralíticos!”
“Não é educado enfiar os dedos nas orelhas ou nos olhos, como fazem
algumas pessoas, nem introduzi-los no nariz, quando estiveres comendo. Esses
três hábitos são feios.”.
(extraídos de Conenance de table).
Elias salienta que no ato de comer tudo é mais simples e o menos restringidos os
impulsos e as inclinações. Nos manuais da época não foram encontradas restrições
alimentares de ordem estética, apenas indicações normativas quanto ao comportamento. Mas
mesmo estas, inclusive nas cortes feudais, ainda não sancionam grandes restrições às emoções
e, se comparado a épocas posteriores, o controle ainda é suave.
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3.2.3 - HIGIENE E IMAGENS CORPORAIS
O mesmo caráter displicente e festivo dos medievais frente à comida e às regras de
etiqueta podia ser encontrado também na relação que mantinham com o banho e outros rituais
de higiene. Mesmo quando alguém chegava das longas viagens, o que se reparava era o brilho
ofuscado das espadas e não a poeira ou os odores.
Assim como entre os gregos, os banhos eram públicos e menos destinados à questões
higiênicas do que ao prazer. É claro que se limpar fazia parte do banho, mas seu sentido ainda
não era moral e nem era a função privilegiada. Eles ocorriam em média a cada quinze dias e
eram coletivos. Rodrigues afirma que não havia separação entre os sexos, e os banhos
romanos e medievais constituiam-se como locais privilegiados de sociabilidade, onde o corpo
figurava como uma espécie de altar, onde se cultuava o prazer: “Talvez dando seqüência à
tradição romana, o banho medieval estava vinculado a uma sociabilidade lúdica e festiva,
com suas distrações, dissipações e, muito freqüentemente, excessos. Os banhos eram locais
onde as pessoas comiam, bebiam, deixavam-se massagear e se divertiam” (Idem, ibidem:
156).
A proximidade física fazia parte do banho do mesmo modo que fazia parte de outras
situações, como o próprio ambiente da casa, onde muitas vezes dormiam todos os seus
habitantes num mesmo espaço, a mesmo partilhando-o com animais.
Segundo o autor, “As casas na Idade Média não eram locais de enclausuramento,
mesmo em seus interiores. Seus cômodos eram poucos, mas de natureza multifuncional. E se
a compararmos às casas de hoje, poderemos afirmar com toda tranqüilidade que se
destinavam a um número enorme de usuários” (Idem, ibidem: 138). O conceito de íntimo não
tinha o sentido de coisas a serem preservadas e sim de coisas misturadas: “Não o sentido de
‘aquilo que se deva esconder`, mas o de ‘nada há a esconder`.
Todo este código de comportamento gregário, nos banhos ou na mesa, não deve ser
analisado como “negativo” ou incivilizado”, como bem mostra Elias. Eles eram coerentes
com a sociabilidade medieval, calcada mais na liberdade do que no controle rígido: “O que
faltava nesse mundo courtois, ou no mínimo, não havia sido desenvolvido no mesmo grau,
era a parede invisível das emoções que parece hoje se erguer entre um corpo humano e
outro, repelindo e separando, a parede que é freqüentemente perceptível à mera aproximação
de alguma coisa que esteve em contato com a boca ou as mãos de outras pessoas (...)(Elias,
op.cit: 82).
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No que diz respeito aos bitos de higiene e às imagens corporais na Idade Média,
sintetizadas na obra de Rabelais, Bakhtin percebe a preponderância do que ele denominou de
realismo grotesco ou grotesco popular, cujas origens se assentam na cultura popular medieval.
Corpos despedaçados, valorização dos orifícios corporais, órgãos destacados do corpo, comer
em excesso, deglutir, expelir excrementos e urina, nascer, parir, morrer. Nos rios
personagens que Rabelais mostra em seus livros, todos são representados por imagens
hiperbólicas do corpo e das funções corporais, bem como de seus orifícios. Neste contexto,
soltar gases ou referir-se à genitália feminina ou masculina são prática comuns e não
despertam sentimentos de pudor; pelo contrário, são louváveis, como podemos ver nestas
passagens da obra de Rabelais, comentadas por Bakhtin:
Perdida a cabeça, perece apenas a pessoa; perdidos os colhões, perecerá toda a
natureza humana.”
(extraído de Rabelais, Obras, Plêiade, p. 233; Livro de bolso, vol. I, p. 217-
219)
Os órgãos genitais são as próprias pedras por meio das quais Deucalião e Pirra
reconstituíram o gênero humano abolido pelo dilúvio (...)”
(extraído de Rabelais, Obras, Plêiade, p. 356; Livro de bolso, vol. III, p.
133)
Outro exemplo, retirado de uma obra de Hipócrates
25
, em referência às virtudes do
molho verde, confirma como o escatologismo medieval é rebaixado e renovado nas imagens
do ‘baixo’ material e corporal:
De trigo verde fareis belo molho verde, de ligeira cozedura, (...) o qual vos alegra o
cérebro, (...) expurga a bexiga, enche as partes genitais, corrige o prepúcio, encrusta a
glande, retifica o membro; faz-vos um bom ventre, arrotar bem, soltar gases, peidar, cagar,
urinar, espirrar, soluçar, tossir, cuspir, vomitar, bocejar, assoar-se, (...) e mil outras
vantagens raras
(extraído de Hipócrates, Epidemias, Primeiro Livro, p. 671)
25
Bakhtin afirma que a influência da Antologia de Hipócrates sobre o pensamento filosófico e médico da época
de Rabelais foi intensa, a ponto deste último realizar, em junho de 1531, um curso sobre um texto grego de
Hipócrates e, nos anos seguintes, publicar duas obras do autor, acrescidas de comentários seus.
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Bakthin também afirma que o corpo humano aparece na obra de Rabelais como melhor
material de construção do que pedras e rochas, como ele exemplifica com a construção das
muralhas: “as muralhas mais sólidas são as constituídas pelos ossos dos guerreiros( idem,
ibidem: 273, negritos do autor)
Para o autor, o corpo que emerge do universo medieval é um corpo eminentemente
social, e mais ainda, cósmico e universal: O corpo individual está totalmente ausente da
imagem grotesca vista no seu limite, pois essa é formada de cavidades e excrescências, que
constituem o novo começado; é de alguma forma a passagem de dupla saída da vida em
perpétua renovação, o vaso inesgotável da morte e da concepção. (...) O grotesco ignora a
superfície sem falha que fecha e limita o corpo, fazendo dele um fenômeno isolado e acabado.
Também, a imagem grotesca mostra a fisionomia não apenas externa, mas ainda interna do
corpo: sangue, entranhas, coração e outros órgãos. Muitas vezes, ainda, as fisionomias interna
e externa fundem-se numa única imagem.”( Idem, ibidem: 282). Rodrigues corrobora esta
afirmação dizendo que aparência e interior eram indissociáveis para o homem medieval, uma
remetendo à outra. Do mesmo modo que a aparência era considerada positiva por revelar
tudo, o interior também devia ser visível, fosse pelas cavidades corporais, fosse pelo que era
expelido delas (Rodrigues, 1999).
Além disto, não entre os medievais separação entre o corpo e o restante do
mundo:“Os corpos estão entrecruzados, misturados às coisas e ao mundo. A tendência à
dualidade dos corpos afirma-se por toda parte. O aspecto procriador e cósmico do corpo é
sublinhado em todos os lugares” (Bakhtin, 1987: 282).
O autor afirma que em vários episódios e imagens narrados por Rabelais, “o ‘baixo’
corporal figurava sobretudo no sentido estrito do termo. No entanto, a boca escancarada tem
também (...) um papel importante. Ela está, naturalmente, ligada ao ‘baixo’ corporal
topográfico: a boca é a porta aberta que conduz ao baixo, aos infernos corporais”.(Idem,
ibidem: 284, negritos do autor).
Bakhtin, as figuras dos gigantes e as lendas a eles associadas, comuns nas imagens
carnavalescas e nas festas populares, mesclam-se à concepção grotesca do corpo e
estabelecem paralelos entre os fenômenos naturais e o relevo locais. Isto se explica porque,
como já dissemos, não havia separação entre o corpo e o mundo, as pessoas assimilavam e
sentiam em si mesmas o cosmos material, com seus elementos naturais, nos atos e funções
eminentemente materiais do corpo: alimentação, excrementos, atos sexuais (...)” (Idem,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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ibidem: 294, negritos do autor). Tais imagens eram disseminadas por toda parte, sendo,
portanto, familiares e compreensíveis para todos os contemporâneos de Rabelais.
“O corpo, formado pelas profundidades fecundas e excrescências reprodutoras, jamais
se delimita rigorosamente do mundo: ele se transforma neste último, mistura-se e confunde-
se com ele: mundos novos e desconhecidos nele se escondem (como na boca de Pantagruel).
O corpo toma uma escala cósmica, enquanto o cosmos se corporifica. Os elementos cósmicos
se transformam em alegres elementos corporais do corpo crescente, procriador e vencedor”.
(Idem, ibidem: 297, negritos do autor).
Desta maneira, o corpo no contexto medieval era percebido pela experiência, era
experimentado e mantinha relações com todo universo de significados da Idade Média. Se o
corpo continha tudo, era a morada do cosmos, era também o veículo de comunicação com
Deus e, ao mesmo tempo, continha em si mesmo o sagrado e o profano. Incontido, era o corpo
do transbordamento, da abundância, das formas opulentas, da alegria desregrada e
carnavalesca. Um corpo que não conhecia ditames alimentares, nem mesmo de contenção ou
forma física, bem diferente do modelo corporal que será instaurado no processo de
modernidade, como veremos a seguir.
3.3 - MODERNIDADE E CORPO
“Cada época tem seu próprio passo, olhada e jeito (...) não somente nas
maneiras e gestos, mas até na forma do rosto”
(Baudelaire)
“Aos poucos o controle efetuado sobre si através de terceiros vai
convertendo-se em autocontrole e vigilância. Deste modo, o eu se
transforma em cárcere cada vez mais exíguo.
E cada um, em carcereiro sempre mais severo de si mesmo”
(José Carlos Rodrigues)
3.3.1 - DATAÇÃO HISTÓRICA
Comecemos pelo primeiro problema, qual seja, o da datação histórica. Para Berman
(1994), é possível dividir a modernidade em três fases:
1) Do início do século XVI até o fim do XVIII, quando as pessoas estavam apenas
começando a experimentar a vida moderna;
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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2) A partir da onda revolucionária de 1790. Com a Revolução Francesa e suas
reverberações, ganharia vida, de maneira abrupta e dramática, um grande e moderno público,
que compartilharia entre si o sentimento de viver em uma era revolucionária;
3) No século XX, o processo de modernização se expande a ponto de abarcar
virtualmente todo o mundo, e a cultura modernista atingiria alto grau nas artes e no
pensamento. Desta maneira, Berman acredita que a modernidade continua sendo o cenário em
que nossas vidas se desenrolam; ao contrário da corrente que caracteriza nosso tempo como
sendo da pós-modernidade.
Featherstone (1995) afirma que alguns componentes unificariam a experiência da
modernidade à pós-modernidade, dificultando as tentativas de estabelecer parâmetros para
definir o fim da primeira. Para Featherstone, os choques, os trancos no processo histórico, a
ênfase na estetização da vida cotidiana, a transformação da realidade em imagens, a
transformação arquitetônica, entre outros aspectos, perduram até hoje e, em certo sentido,
unificam a experiência da modernidade à pós-modernidade.
Segundo Berman, “Existe um tipo de experiência de tempo e de espaço, de si mesmo e
dos outros, das possibilidades e perigos da vida – que é compartilhada por homens e
mulheres em todo o mundo. Designarei este conjunto de experiências como modernidade. Ser
moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento,
autotransformação e transformação das coisas em redor mas ao mesmo tempo ameaça
destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos.” (Berman, 1994: 15).
No conjunto de sua obra, Baudelaire concebeu diversas definições do que seria a
modernidade. Em uma delas, afirmou: “Por ‘modernidade’ eu entendo o efêmero, o
contingente, a metade da arte cuja outra metade é eterna e imutável” (Baudelaire, 1864: 2).
Esta definição aponta para a dificuldade de se definir a experiência vertiginosa da
modernidade, ressaltando, ao mesmo tempo, uma de suas características centrais, o desejo de
mudança.
3.3.2 - NOVAS SENSIBILIDADES E FRONTEIRAS CORPORAIS: OS MANUAIS DE ETIQUETA
De início, o que salta aos olhos é que toda uma nova sensibilidade a respeito do corpo e
da nudez terá início (nos últimos séculos da Idade dia e depois no período do
Renascimento) e levará a formas de controle que, cada vez mais, vão ser interiorizadas nos
indivíduos e vão alcançar sua plenitude no século XXI, quando o corpo será inscrito na nova
lógica do culto ao corpo perfeito, malhado, magro, exposto, mas, ao mesmo tempo,
aprisionado em rígidos padrões estéticos. Além de processos de controle cada vez mais
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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rígidos, o corpo e as relações que mantemos com ele passarão por um processo de
fragmentação, processo este que se refletirá em outras áreas, como os domínios de saber, a
especialização dos cômodos nas residências, do afastamento do homem com relação ao seu
corpo e ao dos outros: “A nova sensibilidade se constitui basicamente em ruptura com os
princípios medievais e se define simbolicamente em oposição a estes. No essencial, esta
constituição assumiu a forma de um contínuo processo de fragmentação daquele todo
amalgamado que a cultura medieval configurava. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que
o processo de constituição disto que denominamos modernidade e contemporaneidade se deu
antes de tudo pelo aparecimento nos comportamentos, nos pensamentos e nos sentimentos
das pessoas - de esferas mais ou menos autônomas, nas quais se supõem residirem
experiências relativamente independentes. Autonomização e fragmentação, ali onde a
mentalidade medieval via confluências e superposições” (Rodrigues, 1999: 109).
Acredito que no século XXI este processo de fragmentação também se encontra no
auge, como veremos com os processos de segmentação das partes do corpo que devem ser
trabalhadas, dos grupos musculares, das dietas de emagrecimento ou aliadas ao ganho de
massa muscular.
Além do mais, embora as mulheres atuais digam que cuidar do corpo é também cuidar
da alma e da saúde, percebo que elas estão, na verdade, tentando rebater o oposto, ou seja, a
supremacia das formas corporais em detrimento de todo o resto. O corpo, na modernidade,
parece se configurar como uma unidade autônoma, separada do mundo e que legitima práticas
(como os regimes) que minam a saúde e atestam o processo de fragmentação inscrito no
corpo; e ao mesmo tempo o corpo assume uma posição privilegiada de inserção no mundo,
pois ter um corpo malhado será importante para a aceitação social.
Mas, sobretudo, o corpo da modernidade é espaço de coerção, de controle externo e
interno, de adequação a padrões estanques de beleza e juventude.
Um bom começo para se pensar a questão do controle é a mudança do conceito de
courtoise para o de civilité, que aparece na obra de Erasmo de Rotterdam, em 1530, De
civilitate morun pueriliun (da civilidade em crianças). Trata-se de um manual de etiqueta pra
orientar o comportamento e o decoro corporais de pessoas em sociedade, e embora seja
dedicado a um menino nobre, alcançou boa parte da sociedade européia, como a França,
Inglaterra, Portugal, Alemanha, Itália, entre outras. Como vimos, regras de etiqueta
estavam presentes entre os medievais, na forma de poemas mnemônicos ou mesmo manuais,
mas com o tratado de Rotterdam e com outros que se seguiram ocorre uma mudança no tom e
no rigor das prescrições. Muitas das prescrições a respeito do comportamento à mesa
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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aparecem tanto na época medieval quanto na moderna, mas com tratamento e contexto
diferentes. Aos poucos, segundo Elias, o uso do conceito de courtoise e as representações que
ele suscita foram progressivamente superados pelo conceito de civilité, até que o segundo, por
volta do século XVII, assume preponderância na Europa. Começa a emergir uma crítica à
voracidade, ao comer exageradamente, atitudes comparadas agora à falta de modos atribuídas
aos camponeses e aos comportamentos animais: "A ascensão do conceito de civilidade nas
sociedades de corte marca o início da condenação dos excessos corporais valorizados na
sociedade tradicional, dentre eles a embriaguez, a comilança, a gordura. Começa a se
delinear outro ideal de corpo, contido, refinado, esbelto” (Elias, op.cit.: 4). Outro autor, Jorge
Crespo, também ressalta que nesta transição do conceito de courtoise para o de civilité,
ocorrerá uma tentativa de aumentar e estender as regras morais e corporais à toda sociedade e
não apenas a alguns setores da mesma: “a ‘cortesia’ não dava a dimensão do coletivo, do que
se entendia por civilização; a ‘cortesia’ não era um gesto propiciador da utilidade vantajosa
ao progresso social. O caráter ‘urbano’ de um corpo media-se pela sua capacidade de ser
repetido pela maioria, pela possibilidade de ser acessível a todos, isto é, na medida em que se
podia tornar-se ‘público’” (Crespo, 1990: 504). E, neste processo de civilização, o corpo
adquire papel central, pois, é por meio de seu controle e adestramento que o homem moderno
poderá diferenciar-se dos que lhe precederam: “A civilização do corpo traduzia-se num
conjunto de preceitos e técnicas, de gestos e maneiras de viver que podiam reconhecer-se nos
mais variados momentos da vida humana, no viver quotidiano de um colectivo de homens
ansiosos por se desprender, ao mesmo tempo, da ‘barbárie’ dos costumes da minoria rude e
das ‘virtudes’ de uma minoria, para caminhar finalmente em direção a outros valores mais
fraternos e envolvendo a coletividade inteira” (idem, ibidem: 504). Vai estabelendo-se, por
toda Europa, a importância da disciplina dos comportamentos individuais, sobretudo dos
gestos e da alimentação, e, delineando-se novos padrões corporais, que atestassem o triunfo
do espírito. A alimentação exagerada “favorecia a doença, diminuía as ‘forças corporaes’,
bem como a vontade de espírito, impedindo os homens de desempenharem ações de utilidade
para a sociedade, ofendia os preceitos religiosos e, além disso, fazia perder a capacidade
para o matrimónio” (idem, ibidem: 515). A frugalidade na alimentação visava o
endurecimento do corpo o domínio sobre si mesmo.
O corpo hiperbólico da época medieval vai sendo substituído por imagens de corpos
mais verticalizados, alongados, silenciosos e contidos e, necessariamente, aumenta o controle
sobre a alimentação, sobretudo pelos excessos alimentares e também sobre os alimentos
aceitos e condenáveis, dentre os últimos, a gordura, considerada vilã.
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As pessoas passam a se controlar mais e cresce o grau de consideração esperado dos
demais. Mas o mais importante para a nossa discussão é que aumenta a compulsão em
policiar o próprio comportamento. Vejamos alguns trechos de diferentes manuais de
comportamento da época:
“Algumas pessoas levam as mãos ao prato de servir logo que se sentam.
Lobos fazem isso...
Não seja o primeiro a tocar o prato que foi trazido, não só porque isto
demonstra gula, mas também porque é perigoso. Isto porque alguém que põe, sem
saber, alguma coisa quente na boca, tem que ou cuspi-la ou, se a engolir, vai
queimar a garganta. Em ambos os casos ele se torna tão ridículo como digno de
pena.
É uma boa idéia esperar um pouco antes de comer, de modo que o menino
se acostume a controlar suas inclinações”
(extraídos de De civilitate morun pueriliun - da civilidade em crianças).
“Antigamente a pessoa podia...molhar o pão no molho, contanto apenas
que não o tivesse mordido ainda. Hoje isto seria uma mostra de rusticidade.
Antigamente a pessoa podia tirar da boca o que não podia comer e jogá-lo no
chão, contanto que o fizesse habilmente. Hoje isto seria sumamente repugnante”
( De Noveau Traité de civilité, de Antoine Courti, 1672).
“Faz parte do decoro e do recato cobrir todas as partes do corpo, exceto a
cabeça e as mãos. No tocante às necessidade naturais, é correto (mesmo no caso
de crianças) satisfazê-las apenas onde a pessoa não puder ser vista.
Nunca é certo se referir às partes do corpo que devem estar sempre
escondidas e às necessidades corporais a que a sociedade nos sujeitou, ou mesmo
mencioná-las”
“Você não deve...nem se despir nem ir para a cama na presença de
qualquer outra pessoa. Acima de tudo, a menos que seja casado, não deve ir pra
cama na presença de qualquer outra pessoa do mesmo sexo”
(La Salle, Lês Reègles de la bienséance et de la civilité chrétienne)
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Percebemos nestas passagens que o tom das proibições se torna mais imperativo e
também é maior a necessidade de se distinguir o novo comportamento do medieval, agora
considerado incivilizado. No jogo da alteridade, condutas antes permitidas tornam-se
repugnantes e os medievais serão, ao mesmo tempo, o espelho no qual nos miramos e do qual
procuramos nos afastar. As crianças são orientadas a internalizar regras de conduta, tal como
conter os impulsos. Crespo (1990) salienta a este respeito: Tudo quanto contribuísse para
sublinhar o corpo em relação aos outros se tornava alvo de crítica. A tosse, o bocejo, o
arroto ou o gesto de assoar-se podiam ser lícitos a não ser que contribuíssem, pelo som, para
evidenciar uma presença” (op. cit: 511).
O corpo individual será separado do corpo social e as atividades que os medievais
levavam a cabo de forma gregária serão agora separadas e escondidas. O contato entre os
sexos e a exposição do corpo diminui. As pessoas passam a observar mais umas as outras e a
se auto-observarem. A nudez será revestida de pudores e deverá ser evitada ao máximo. Do
mesmo modo que o garfo, o lenço e os talheres individuais, surgirá a camisola de dormir e
também, posteriormente, as roupas íntimas.
3.3.3 - HIGIENE E IMAGENS CORPORAIS
Se durante o contexto da Idade Média percebemos uma certa liberalidade com relação
aos hábitos de higiene (como, por exemplo, soltar gases) e mesmo com as partes e funções
corporais ligadas ao baixo corporal, na modernidade haverá maior controle sobre estas, como
podemos perceber nestas passagens do Tratado de Roterdam citado por Elias:
“A pessoa educada deve sempre evitar expor, sem necessidade, as partes às
quais a natureza atribuiu pudor. Se a necessidade a compele, isto deve ser feito
com decência e reserva, mesmo que ninguém mais esteja presente. (...)
Prender a urina é prejudicial á saúde e urinar em segredo diz bem do
pudor. aqueles que ensinam que o menino deve prender os gases,
comprimindo-os no intestino. Mas não é conveniente, esforçando-se para ser
educado, contrair uma doença. Se for possível retirar-se do ambiente, que isto
seja feito a sós. (...)”
(extraído de Erasmo de Rotterdam, De civilitate morun pueriliun, 1530)
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O tratado tem, portanto, a função de cultivar sentimentos de vergonha e delicadeza
sobre aquilo que entre os medievais seria considerado comum, apontando para novos padrões
de relacionamento com o corpo.
Bakhtin também comenta esta interdição ao falar do novo cânon que regeu a linguagem
oficial e literária modernas, ao dizer que estas “interdizem a menção de tudo que diz respeito
à fecundação, à gravidez, ao parto, etc., isto é, de tudo que trata do inacabamento, do
despreparo do corpo e da sua vida propriamente íntima. Uma fronteira rigorosa traça-se
então entre a linguagem familiar e a linguagem oficial de ‘bom-tom’”(Bakhtin, 1987: 280).
Segundo o autor, os órgãos genitais, o traseiro, o ventre, o nariz e a boca, tão valorizadas entre
os medievais, deixam de ter importância para os modernos.
Os banhos públicos, também comuns na idade Média, serão, segundo Vigarello (1985),
substituídos a partir do século XVII pela higiene seca e imbuídos de conotações morais: tanto
homens quanto mulheres limpavam as partes do corpo que podiam ser expostas mãos e
rostos com um lenço, em vez de lavá-los. Surge também a lavagem setorial, nos pés e nas
partes intersticiais do corpo, que poderiam suar e exalar mau cheiro. O banho com água e
mais, de imersão, praticamente desaparecem.
No entanto, a supressão da água, que aparentemente estava ligada a uma tentativa de
afastamento do corpo, produziu em certo sentido o efeito oposto, que as pessoas gastavam
mais tempo e empenho para disfarçarem os odores e salientar as partes visíveis do corpo, bem
como das roupas que cobriam as partes proibidas. Acompanhando o processo de
fragmentação já comentado, algumas peças do vestuário se autonomizam e se destinam a
separar o interior do exterior, como as roupas de baixo e a camisola. Será sobre as roupas de
baixo que a limpeza agora se deterá; estas serão quase que uma segunda pele e se
transformarão nos signos privilegiados do cuidado com o corpo. Num contexto de pudor da
exposição corporal, a camisola de dormir servirá para esconder este corpo dos olhares dos
outros e de si próprio.
Mas o mais importante é que com estas mudaas no vestuário percebemos algo mais
complexo: a necessidade de controle mesmo nas esferas da casa e a nova dimensão que a
palavra intimidade passa a ter, com bem mostram Elias e Rodrigues; nas palavras deste
último, “O íntimo passou a adquirir, com os hábitos de vestuário e de limpeza das roupas,
um lugar que não possuía. Isto porque a mudança de camisa e de roupas de baixo após a
transpiração constitui um gesto de si para si, eminentemente. Constitui um ato privado,
derivado de uma sensibilidade privada. Significa uma nova orientação dos sentidos, agora
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direcionados para dentro. Pressupõe uma vigilância de si. Exige uma atenção reflexiva nova.
Por intermédio desta, cada um passa a se policiar a si mesmo” (Rodrigues, 1999: 164).
Como a história dos costumes não segue uma linha linear, o banho, que entre gregos e
medievais era fonte de prazer e progressivamente vai ser associado ao pecado, encontra certa
reabilitação no século XIX. Por volta desta época a higiene também ganha um novo sentido e
os higienistas vão começar a aliar o banho à saúde e as mansões terão cabines de banho
individuais, o que aumentará ainda mais o sentido do íntimo como algo segregado, proibido
aos outros (e quiçá a si mesmo): “A história da casa é extremamente solidária a do corpo. O
estabelecimento da separação de corpos é um evidente criador de fronteiras, definidor e
redefinidor da idéia de individualidade (...), pois passa a exigir que o corpo contenha dentro
de si tudo que ofereça algum risco de transbordar as fronteiras que o definem como
individual: os arrotos, os flatos, as transpirações, a saliva, o hálito, os catarros e, mais tarde,
os pensamentos e sentimentos. Tudo isso tinha livre curso nos tempos medievais e, portanto,
deverá ser dramaticamente modificado. Agora, novas mentalidades, novas sensibilidades,
novas individualidades: devem ser aprisionadas e circunscritas aos limites privados do
corpo. É preciso que a arquitetura o viabilize” (Rodrigues, 1999: 147)
Todas estas transformações se iniciam a partir do século XII e refletem, segundo
Rodrigues “uma vontade de afastamento do corpo que encontrou sua plena realização no
século XIX, quando as partes corporais que não pudessem ser vistas também não poderiam
ser abertamente objetos de discurso” (idem, ibidem: 161).
Embora as idéias de Rodrigues me pareçam corretas, eu diria que a palavra afastamento
não foi bem empregada neste contexto. Afastamento sugere que os modernos se distanciam
do corpo; no entanto, o é isso que acontece, como Rodrigues percebe e assinala nas páginas
posteriores do livro. O corpo estará no centro de toda discussão moderna, o próprio tratado de
Rotterdam é uma evidência disto, mas o que acontece é que sobre ele se colocarão disciplinas
rígidas de controle das funções corporais, do que se deve vestir, do que se deve comer. A
partir do século XVIII, a ginástica também entrará em cena e o corpo será cada vez mais
domesticado, trabalhado, exercitado. Mas se também escondido pelas roupas – pode-se
dizer que o corpo que desponta no início da modernidade é um corpo trabalhado, domesticado
e necessariamente, coberto - , até que depois, sobretudo nos séculos XX e XXI, será
novamente despido e exibido.
vimos que com a transição do conceito de courtoise para o de civilité, toda uma
mudança na relação com o alimento e com o corpo se processará. As imagens hiperbólicas do
corpo serão progressivamente substituídas por outro ideal de corpo, agora esbelto, contido,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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refinado e individualizado. Surgirão os manuais de higiene e toda uma visão burguesa do
corpo, que ao mesmo tempo em que colocam o corpo no centro de variados processos,
também promovem uma separação entre corpo e mundo. As pessoas passam a se preocupar
com a comida de uma maneira totalmente diferente daquelas vigentes no passado, contendo
os excessos em função do novo modelo de corpo.
É justamente neste contexto que Jorge Crespo (1990) situa o surgimento da idéia
moderna de Educação Física, que, segundo o autor, surgiu em Portugal, na primeira metade
do século XIX.
Antes deste período, eram comuns os espetáculos circenses populares, que trabalham o
corpo com acrobracias, contorcionismos e outras práticas do gênero. Tais espetáculos eram
alvo de contorvérsias pelos vários setores da sociedade portuguesa. Se por um lado as
autoridades policiais os consideravam menos perigosos que os espetáculos teatrais – que
poderiam difundir idéias subversivas , por outro o escapavam do crivo destas mesmas
autoridades, bem como dos médicos sanitaristas, em ascensão no período (pois, também eram
formados, em sua maioria, por estrangeiros, considerados os propagadores de idéias contrárias
ao bem-estar da nação). Para os portugueses, era consenso de que o progresso da sociedade
portuguesa passava por um fortalecimento moral, vico e físico de seus habitantes. Como
ressalta Crespo, “O pensamento e ação da época traduziam-se, pois, em actos
criteriosamente elaborados, revelando a existência de cálculos e estratégias que finalmente
se procuravam adequar à situação, na tentativa de controle dos corpos e das energias dos
portugueses, reunindo-as para as grandes tarefas do progresso e da civilização” (Crespo,
1990: 10).
Mas, era necessário difundir um programa de ginástica mais adequado aos objetivos dos
portugueses do que as acrobacias. Assim, em finais do século XIX, um professor de escolas
municipais de Lisboa, Alfredo Dias, apresenta um programa de ginástica sem aparelhos e que
recuperasse o conceito grego da prática. A ginástica surge então com funções profiláticas;
gerando calor e, através do suor, expelindo os maus odores e também associada à economia
do corpo: toda energia despendida pelo corpo deveria estar a serviço da construção da nação.
Está dado o primeiro passo para que a prática seja adotada como básica na formação escolar
do jovem português. No entanto, segundo Crespo, a ginástica ainda está amalgamada ao
controle do ócio e à educação do espírito, visando formar indivíduos dotados de vitalidade
corporal e mental, que auxiliassem o Estado na tarefa de empurrar a nação para frente: “Para
além de uma sólida formação moral, baseada no autocontrole e no escrupuloso respeito
pelos outros, o que se recomendava também, era um programa de exercícios corporais que
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pudesse contribuir para o vigor do espírito na perspectiva do ‘mens sana in corpore sanoo’”
(Crespo, ibidem: 498). O autor ressalta ainda que “O corpo enredava-se, assim, em múltiplos
condicionamentos, submetendo-se a normas cada vez mais racionalizadas, e convertia-se,
através das subtilezas do controlo social, em vigilante de si próprio” (idem, ibidem: 499).
Será só a partir do século XX que a ginástica e o esporte se autonomizam e passam a
constituir-se como disciplinas à parte, como veremos no próximo capítulo.
O que interessa de imediato para a nossa discussão é que o corpo moderno será pensado
de uma maneira muito distinta da medieval, como veremos a seguir, ao traçarmos as
correspondências e rupturas entre os modelos corporais medievais e modernos.
3.3.4 - CORRESPONDÊNCIAS E RUPTURAS ENTRE MEDIEVAIS E MODERNOS
Havia, portanto, entre os medievais, clareza das normas a serem seguidas, seja na mesa,
seja nos banhos públicos, seja na relação com a casa. Havia padrões alimentares e corporais,
regras de etiqueta claras. Portanto, o que mudou com relação à modernidade? Ou, em outras
palavras, qual a importância e o sentido dados às práticas corporais e no que isto se distingue
do culto ao corpo da época moderna?
Primeiramente, o tom do discurso, que entre os medievais era menos incisivo e que,
progressivamente, vai se tornando mais taxativo a partir que a modernidade avança. “Assim,
no século XIII recomendava-se, por exemplo, com uma insistência capaz de suscitar
desconfiança, que aquele que por ventura tossisse ou assoasse o nariz cuidasse de se virar
para o lado, a fim de que nada caísse sobre a mesa de refeição. No século XIV, era
indelicado assoar o nariz na toalha de mesa. No século XV, o tom passou a ser um pouco
mais imperativo: ´não assoe o nariz com a mesma mão que usa para segurar a carne.` Em
1589 o tom de ordem aumentou: ´que ninguém antes, durante ou após as refeições suje as
escadas`( Elias, 1990:136-137 apud Rodrigues, 1999: 147).
Elias diz que as regras medievais dariam as instruções de comportamento da seguinte
maneira: “Corta e não rompas o pão”, enquanto que no tratado de Erasmo de Rotterdam, “De
civilitate mourum puerlium” (Da civilidade em crianças), de 1530, a mesma regra apareceria
assim: “Deves deixar a uns poucos cortesãos o prazer de apertar o pão na mão e, em
seguida, parti-lo com os dedos. Deves, sim, cortá-lo decentemente com a faca”.
A mudança parece pequena, maso é, porque nesta passagem vemos que os modernos
perderam a simplicidade (pensada por Elias como oposição simples entre “bom” e “mau”) e
passaram a enxergar as coisas com mais diferenciação, com maior controle das emoções,
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aumentando, portanto, significamente o grau de coação e de exigência quanto ao
comportamento.
Deve-se ressaltar também que com a modernidade, intensifica-se o convívio social em
virtude das transformações urbanas e da aceleração do ritmo de vida. Assim, uma das
diferenças entre as prescrições modernas e medievais é que na primeira, as prescrições são
menos detalhadas e transmitidas principalmente pela cultura oral; enquanto que, na segunda,
as prescrições, além de mais detalhadas, são também observadas em razão da convivência
cotidiana.
Com a nova ordem burguesa, temos a formação de uma classe de nobres vindos das
mais diversas classes sociais, os velhos laços ancorados em sólidas relações estamentais se
esfacelam e, por esta razão, “a questão do bom comportamento uniforme torna-se cada vez
mais candente, especialmente porque a estrutura alterada da nova classe alta expõe cada
indivíduo de seus membros, em uma extensão sem precedentes, às pressões dos demais e do
controle social” (Elias, op. cit.: 91). É preciso homogeneizar o comportamento de modo a não
ofender o grau de consideração esperado dos demais
26
.
Em segundo lugar, podemos dizer que, ao contrário do que afirmam alguns textos sobre
a Idade Média
27
, o corpo tinha sim grande importância entre os medievais. Como vimos, boa
parte da experiência da vida passava pelo corpo, podendo-se mesmo dizer que o mundo
medieval era, de uma certa maneira, corporificado. Mas o sentido dado ao corpo, comparado
com o que se na época moderna, é diferente. Na Idade Média, observamos uma maior
liberdade corporal, tanto no tocante às suas manifestações (escarro, flatulências) quanto à sua
forma. Não havia, como acredito haver atualmente, indícios relativos a um padrão de estética
corporal, ou se havia algum era menos claustrofóbico do que ocorre hoje. Como vimos, neste
universo, a preferência recaía sobre imagens hiperbólicas do corpo e das funções corporais,
inclusive com a valorização dos orifícios corporais como a boca, o ânus, os órgãos genitais,
entendidos como locais privilegiados de circulação da vida. Esse corpo excessivo - até mesmo
Deus era glutão - é representado por Rabelais através dos personagens Pantagruel e
Gargantua, que são grandes e gordos (Bakhtin, 1987). Segundo Rodrigues, “o corpo medieval
era totalmente diferente daquele que surgirá no ambiente aristocrático-capitalista. Era um
26
Ver discussão no item:Sentido das práticas corporais e da beleza: reflexões históricas.
27
Recentemente, em um artigo lido para esta tese, Romero (1993) afirma que na Idade Média os dados sobre o
corpo são de acentuado desprestígio, isto é, toda e qualquer preocupação com o corpo foi banida. A
influência da Igreja era grande, extinguindo até os Jogos Olímpicos. Os preceitos religiosos e o bem da
alma eram colocados em oposição ao corpo. Tal afirmação exemplifica parte destes preconceitos, que,
como veremos, os dados e as reflexões nos mostrarão justamente o contrário.
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corpo de orifícios dotados de liberdade, de expressão, de aberturas que falam, que podem
usar da sinceridade (...) Era o corpo do ânus que expele gases, do nariz que escorre. Não era
um corpo contido pela musculatura (...) Nada desta couraça muscular que oprime os orifícios
para que não se manifestem em público, para que se retenham, para que se escondam. Nada
de uma rigidez que separa o interior corporal do exterior, que desenha os limites do corpo,
restringindo-os à sua corporalidade individual (...) O corpo medieval nada tinha a ver com
aquele que pensamos conhecer e que abriga a nossa sensibilidade. Não se tratava do corpo
singularizado e individualizado do burguês. Não era um corpo circunscrito em si. Não era
um corpo contido (...) Não era um corpo visível apenas do exterior e que mostrasse apenas
uma superfície, uma fachada lisa e quase sem fendas” (Rodrigues, 1999: 85).
Certamente, era também um corpo “não-malhado”, ou pelo menos, não da forma como
conhecemos hoje. As atividades no campo ou mesmo na cidade trabalhavam o corpo, mas não
tinham por função deixá-lo rígido. O corpo era ponte de relação com o mundo, mas não o
próprio fim. Quanto ao consumo de alimentos hoje execrados pela mídia, como a gordura
animal, as recomendações são de que o se lamba os dedos engordurados ou seque-os no
casaco, apenas limpe-os na tolha de mesa. (extraídos do Hofzucht, de Tannhäuser, código de
comportamento). Em consonância com uma corporalidade expansiva e glutona, as regras
quanto ao que se poderia comer eram muito mais fluidas. Não parecia haver prescrições de
regimes alimentares para a manutenção de formas corporais esbeltas; pelo contrário,
valorizava-se a possibilidade de se comer muito e bem. A gordura, tanto animal quanto
humana, ainda não era depreciada, e seu consumo, portanto, era permitido.
na modernidade, segundo Bakhtin, “a hiperbolização é totalmente excluída do novo
cânon. A imagem do corpo individual rouba-lhe toda possibilidade de ocorrência” (Bakhtin,
op.cit.: 281).
As regras de apresentação da comida também são indícios de uma profunda mudança de
sensibilidade na passagem das duas épocas. Se na Idade Média, como vimos, os animais eram
levados à mesa inteiros, nossa sensibilidade atual ordena que eles sejam servidos em pedaços,
como por exemplo, sob a forma de bifes, num mecanismo que Rodrigues chamou de
“desidentificação do alimento” (Rodrigues, 1999: 142). Tal processo deve ocorrer longe de
nossas vistas, para que elementos como o sangue, as vísceras, os gritos e a dor do animal
ocorram fora do palco da vida social, ocorrendo em bastidores como açougues e matadouros e
por pessoas consideradas por nós como de status inferior.
Além disto, é inegável a importância que o corpo assume na modernidade, a tal ponto
de ser, ao mesmo tempo, mecanismo e alvo da ação. O corpo ocupa na modernidade o centro
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das atenções, sendo investido de práticas alimentares e exercícios que visam, em última
instância, o próprio corpo. Ele fecha-se em si mesmo, a ponto de tornar-se claustrofóbico.
O terceiro ponto a ressaltar é que, no período medieval, corpo e alma ainda não haviam
se fragmentado, como ocorrerá na modernidade.
Segundo Rodrigues (1999), quando falamos da Idade Média devemos ter em vista que a
cosmovisão medieval postulava uma integridade absoluta do universo. Macrocosmos e
microcosmos se fundiam, se indiferenciavam e o se contrapunham. Para o homem
Medieval “o mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-
se nas estrelas e a erva envolvendo em suas astes os segredos que eram úteis ao homem”
(Foucault, 1968: 64, apud Rodrigues, 1999). Desta maneira, espírito e matéria também não se
opunham, não sendo possível falar, entre os medievais, de uma separação entre corpo e alma,
como muitas vezes falamos na contemporaneidade. Em várias situações, principalmente ao
expor o tema da presente pesquisa para públicos universitários, uma das indagações que mais
me faziam é se o culto ao corpo da contemporaneidade está ou não desvinculado de questões
filosóficas e como isto se processava no passado. Perguntam também se o corpo tinha grande
importância entre os medievais ou se estes apenas se preocupavam com questões religiosas,
como a salvação da alma. Rodrigues (1999) afirma que a corporalidade medieval era
valorizada em si, até porque continha o que hoje chamamos de espiritual: “o simbolismo
corporal tinha lugar crucial nos padrões medievais de pensamento e sentimento (...) o corpo
medieval não era um mero revelador da alma: era o lugar simbólico em que se constituía a
própria condição humana (...) no mundo medieval, espírito e matéria, corpo e alma não se
separavam. Nada era verdadeiramente espírito, nada era verdadeiramente matéria (idem: 56,
60).
Já com a modernidade um processo de fragmentação foi se impondo e separando
universos (como corpo e alma) que antes apareciam mesclados. Uma parte desta
fragmentação pode ser percebida no mecanismo de banir do discurso algumas partes
corporais, em especial, o baixo corporal, de outras partes consideradas mais nobres, como a
cabeça (depositária da alma) e os olhos (janelas para a alma e, portanto, imbuídos de
expressividade). Outra parte deste processo de fragmentação pode ser percebida nos discursos
e nas representações midiáticas sobre o corpo, uma vez que nas revistas ligadas ao corpo,
como por exemplo as publicações mensais “Boa Forma” e “Corpo”, a tônica recai unicamente
no poder dos exercícios, dietas e cosméticos de interferirem na forma física, sem maiores
discussões sobre os efeitos dos mesmos na psique.
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Página 67
As questões estéticas suplantam as metafísicas e o Homem que desponta neste cenário é
meramente físico, maleável, moldável às ideologias (também corporalizadas) de nossa época,
a ponto de comprar, por meio de cirurgias plásticas, o corpo que deseja.
Na prática atual de exercícios, fragmenta-se o trabalho em função dos músculos que se
quer atingir, fazendo com que bíceps, tríceps, quadríceps e outros pareçam mais com unidades
autônomas do que como partes de um sistema integrado.
A quarta diferença entre a Idade Média e a Moderna é que, na primeira, além de o
haver uma separação entre corpo e alma, também não havia entre corpo individual e corpo
social. Como vimos com Batkhin, o corpo individual era ausente na cultura medieval, o
indivíduo se dissolvia no corpo social, cósmico e universal (Bakhtin, 1987). Tudo que se
relaciona com o corpo era público: o comer, o dormir, o banhar-se. Os contatos interpessoais
caracterizavam-se por abraços freqüentes, por contatos físicos, banhos públicos. Até as
atividades excretoras eram feitas em público e as partes baixas do corpo, hoje policiadas até
no discurso, eram nomeadas sem rodeiros e valorizadas, já que eram verdadeiras portas
abertas para o mundo. Como as fronteiras entre corpo individual e social não estavam
estabelecidas, a relação com a vergonha e a nudez não se coloca à luz da sensibilidade
moderna. Elias analisa algumas gravuras medievais produzidas entre 1475 e 1480 e
organizadas no livro “Mittelalterliches Hausbunch” (livro de Imagens da Idade Média),
ademais de alguns quadros deste período e percebe que são comuns imagens de pessoas nuas,
de ambos os sexos, tomando banhos ou em folguedos amorosos, em rios ou campos abertos.
Não se trata, segundo o autor, de imagens que circulariam em mãos privadas como
pornografia e sim imagens cotidianas, que mostram um padrão de vergonha diferente do
nosso, retratos “de uma sociedade na qual as pessoas davam vazão aos impulsos e
sentimentos de forma incomparavelmente mais rápida, mais fácil, espontânea e aberta do que
hoje, na qual as emoções eram menos controladas e, em conseqüência, menos reguladas e
passíveis de oscilar entre extremos (...) É claro que havia controle, restrições, mas estes se
faziam em uma direção diferente e em grau menor que em períodos posteriores, e não
assumiam a forma de autocontrole constante, quase automático” (Elias,1990: 210).
na Idade moderna, o corpo se singulariza e se distancia do mundo, tornando-se cada
vez mais privado. O corpo se individualiza e, ao mesmo tempo, individualiza a pessoa que o
porta. Ele não reflete mais o cosmos e sim o seu dono, que é a pessoa. Ele se basta em si
mesmo e pleiteia cuidados em seu próprio benefício. Em última instância, não nos
exercitamos nem mesmo para nós e sim para o nosso corpo, para que ele ateste seu próprio
triunfo.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Ainda nesta linha de raciocínio, Bakhtin analisa os cânons que norteavam a literatura no
período medieval e, posteriormente, na modernidade
28
, mostrando que as representações
grotescas do corpo dominaram as artes, sendo que o cânon moderno só começou a influenciar
a literatura européia a partir do século XVI. Segundo ele, “A propriedade característica do
novo cânon ressalvadas todas as suas importantes variações históricas e de gênero é um
corpo perfeitamente pronto, acabado, rigorosamente delineado, fechado, mostrado do
exterior, sem mistura, individual e expressivo (...) Da mesma forma se fecham todos os
orifícios que dão acesso ao fundo do corpo. Encontra-se na base da imagem a massa do
corpo individual e rigorosamente delimitada, a sua fachada maciça e sem falha. Essa
superfície fechada e unida do corpo adquire uma função primordial, na medida em que
constitui a fronteira de um corpo individual fechado, que não se funde com os outros
(Bakhtin, op.cit: 279, negritos do autor). Na concepção moderna, a vida íntima do corpo e
tudo que reflita seu inacabamento serão banidos para a vida privada e terão sentido mais
estreito, sem relação com a vida social ou com o cosmos.
Para o autor, “o corpo do novo cânon é um único corpo; não conserva nenhuma marca
de dualidade; basta-se a si mesmo, fala apenas em seu nome; o que lhe acontece diz
respeito a ele mesmo, corpo individual e fechado (...) Todos os atos e acontecimentos têm
sentido no plano da vida individual: estão encerrados nos limites do nascimento e da morte
individuais desse mesmo corpo, que marcam o começo e o fim absolutos e não podem jamais
se reunir nele”. (idem, ibidem: 281, negritos do autor).
Da mesma forma, na modernidade, fecham-se os orifícios corporais e as referências a
eles e às suas funções são evitadas e/ou censuradas. No tratado de Erasmo de Rotterdam
vimos claramente como as atividades sexuais e mesmo o simples ato de soltar gases em
público são vistos como indecorosos, sendo normatizados e reprimidos (Elias, 1990).
Embora fosse possível apontar outras diferenças entre as concepções medievais e
modernas do corpo, temos materiais suficientes para perceber, no próximo capítulo, como se
desenrolam as discussões atuais, explicitando, entre outros pontos, os paralelos e as rupturas
entre a noção de beleza para as mulheres pesquisadas e as duas visões do belo analisadas até
agora.
28
A respeito desta discussão, ver capítulo 5 - do presente trabalho, O culto ao corpo: produção de si mesmo,
estetização da vida cotidiana e espetáculo.
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4 - A noção de belo: referências históricas e noções de beleza para
as mulheres pesquisadas.
“Na novela das oito, eu não gosto de ver novela, mas eu vi a mulher
[Débora Secco], ela perdeu totalmente a expressividade, não tô falando do
seio, tô falando do rosto, ela não precisava ter colocado aquele monte de
silicone e agora ela ri, é botox daqui pra cima, isto não mexe!!! Então as
pessoas estão perdendo a expressão, a natureza, a naturalidade, isto é
horrível. É a degradação, isto não é beleza. A beleza é uma coisa que nasce
do pântano, com a flor de Narciso” (Márcia Molina).
Das tarefas ingratas, certamente uma das piores é definir o conceito de beleza.
Corremos sério risco de, assim como no conceito de cultura, mergulharmos num pântano
conceitual e, sobretudo, filosófico. Portanto, nossos objetivos aqui são infinitamente mais
simples, mas ainda assim, dificílimos: traçarmos um panorama dos sentidos dados às práticas
corporais e bem como das acepções de beleza ao longo da modernidade.
Em seguida, começaremos a questionar como as mulheres pesquisadas concebem a
prática de exercícios físicos e a beleza, analisando, entre outros aspectos, quais as partes do
corpo feminino consideradas por elas as mais importantes na definição de um corpo bonito.
Veremos como a relação com o corpo desemboca na idéia de auto-estima e como esta é
vista como central no processo de construção da identidade feminina. Em seguida, veremos
como, embora a auto-estima esteja ligada fundamentalmente a sentir-se bem consigo mesma e
com o corpo, ela não deixa de remeter à sociedade mais ampla, que o sentido do que seja
um corpo aceitável e bonito é, em larga medida, construído socialmente. Por mais que as
mulheres digam que fazem ginástica por que gostam, ou porque se sentem bem, e que gostam
de seu corpo mesmo quando ele não se encaixa nos padrões estéticos determinados, veremos
que a questão é muito mais complexa e aponta diretamente para a emergência do corpo
enquanto um forte capital simbólico, passível de ser usufruído, mas também exibido, desde
que conforme os modelos definidos como belos pelo grupo social mais amplo. No horizonte
desta discussão, embora não como alvo central, já desponta a mídia, que como veremos no
capítulo 5 - (O culto ao corpo: Produção de si mesmo, estetização da vida cotidiana e
espetáculo.), é indissociável dos processos atuais de valorização do corpo e da beleza.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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4.1 - SENTIDO DAS PRÁTICAS CORPORAIS E DA BELEZA: REFLEXÕES HISTÓRICAS.
Comecemos por indagar o que significa falar em sentido das práticas corporais. Casa
Nova (1996) afirma que o corpo social e individual fazem parte de um sistema mais amplo
que lhes confere sentido. Construímos um imaginário cultural e nele o corpo se inscreve como
“o mais imaginário de todos os objetos imaginários”, como afirmou Barthes em entrevista a
Alain Grillet em Porque amo Barthes
29
. É sobre o corpo que a sociedade irá projetar seus
valores e seus discursos de poder. Mas, como se daria a tomada de consciência do próprio
corpo? Casa Nova afirma que o domínio e a consciência do corpo puderam ser alcançados
pelo efeito dos investimentos do corpo pelo poder: “ginástica, músculos, nudez, exaltação da
beleza física, conduzindo ao desejo de seu próprio corpo por meio de um trabalho insistente,
meticuloso, que o poder exerceu sobre os vários corpos, das crianças, das mulheres, dos
soldados, do corpo sadio” (Casa Nova, 1996: 147). Ou seja, sobre o corpo se investe um
sentido construído no embate de discursos sociais e dos sujeitos existentes no momento,
fazendo com que no corpo possamos ver parte das estruturas sócio-culturais e de poder.
Duarte (1996) diz que falar do corpo é desenterrar antigas idéias que povoam
milênios os sonhos e pesadelos da humanidade e que, de tempos em tempos, são chamados
novamente a marcar sua presença” (Duarte, 1996: 178). Segundo a autora, enquanto a
natureza é vista como força rude e primitiva, o charme, o glamour, a elegância e outros sinais
do corpo são vistos como armas contra a natureza, ou seja, foram criadas pelos homens,
abstrações cultivadas como poderes: “O belo refere-se à inteligência e à cultura. Cada cultura
fabrica o seu próprio corpo, moldando-o às suas regras e valores” (Duarte, 1996: 178).
Segundo Queiroz e Otta (2000) “O corpo humano é submetido a um processo de
humanização, e sua experiência é modificada pela cultura” (Queiroz e Otta, 2000: 21).
Quando falamos em beleza, vários aspectos devem ser considerados. Isto porque não
variam os indicativos de beleza de época para época, mas também a própria importância da
beleza e os mecanismos para alcançá-los. Além da época histórica, a geografia também
interfere no peso dado à beleza e nos seus indicativos. O que é válido para as áreas urbanas
não o é necessariamente para o campo.
Se não entendermos a trajetória das definições de beleza, dificilmente entenderemos a
especificidade do momento atual, e não poderemos entender a importância que o culto ao belo
alcançou no final do século XX e início do XXI. Por isso, somos obrigados a proceder a uma
breve retrospectiva histórica da beleza, antes de nos perguntarmos sobre os modelos atuais.
29
Grillet, A. Porque amo Barthes, Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p.22.
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Araújo (2004) afirma que nos séculos XVII e XVIII a sina das mulheres coloniais era o
confinamento. Elas poderiam sair às ruas em raras ocasiões e sempre vigiadas de perto por
parentes ou serviçais. Com a idade de 15 anos já se casavam, com maridos escolhidos pelos
pais e a quem passavam a devotar respeito. A sexualidade continuava controlada pela igreja,
visando à procriação, todo erotismo ou excesso era condenado.
Neste contexto, qual a importância que se atribuía á beleza e aos cuidados com o
corpo?
O primeiro ponto que considero importante destacar é que se faz necessário diferenciar,
no século XVII, mulheres das áreas urbanas e rurais. Embora o controle social fosse comum a
ambas, entre as mulheres da oligarquia rural os imperativos quanto à manipulação da
aparência eram mais severos. Maria Castilho Costa (1985) analisou retratos de mulheres
paulistas e verificou que o que aparece nos retratos são mulheres de postura altiva, vestidas de
negro até o pescoço, no máximo com um broche na gola, mas no geral sem jóias nem
pinturas, com cabelos presos em coques discretos. Quanto à fisionomia, é sempre dura, sem
sorrisos, o rosto exibindo rugas que ostentam com orgulho sua passagem pelo tempo e o
indícios de sobrevivência a situações difíceis. A postura é ereta e as mãos cruzadas sobre o
colo. Mesmo entre as mulheres mais jovens, o padrão é o mesmo, sem dissimulação das
rugas. Os casamentos são em geral arranjados e, menos do que a beleza, valorizam a tradição
da família da noiva e do noivo. Os sobrenomes darão a estirpe dos pretendentes e serão
critérios de classificação e escolha dos parceiros. Sabe-se claramente quem é quem na
sociedade e os valores recaem sobre a honra, tradição, religião católica - e classe social.
Beleza e juventude não são consideradas importantes neste meio.
Já entre as mulheres coloniais urbanas, ocorrem algumas mudaas. Tanto Araújo
(2004) quanto Del Priori (2000) mostram que estas viviam contradições com relação à beleza.
Se por um lado as mulheres abastadas saíam às ruas cobertas de luxo, de roupas vistosas e
cabelos armados em verdadeiras esculturas - nas raras ocasiões em que isto era permitido -,
por outro lado, em casa apresentavam-se em completo desleixo, notado inclusive por
estrangeiros que nos visitaram. Mary Graham afirmou que “dificilmente poder-se-ia acreditar
que metade delas eram senhoras da sociedade. Como não usam nem coletes, nem espartilhos,
o corpo torna-se quase indecente, desalinhado logo após a primeira juventude; e isto é tanto
mais repugnante quanto elas se vestem de modo muito ligeiro, não usam lenços ao pescoço e
raramente os vestidos têm qualquer manga. Depois, neste clima quente, é desagradável ver
escuros algodões e outros tecidos, sem roupa branca, diretamente sobre a pele, o cabelo
preto mal penteado e desgrenhado, amarrado inconvenientemente, ou ainda pior, em
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 72
papelotes, e a pessoa toda com a aparência de não ter tomado banho.”(“Diário de uma
viagem ao Brasil”, Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo, Edusp, 1990, pg 137; apud Araújo,
2004). Del Priori confirma tais impressões, dizendo que as mesmas mulheres que se
produziam com esmero para sair às ruas, em casa ficavam cobertas com um “timão”, espécie
de camisolão branco, de tecido leve, que o as atrapalhavam nas atividades domésticas. Não
havia nenhuma preocupação em manter a forma do corpo ostentada na juventude. Segundo
Freyre (1986), “resultado, decerto, dos muitos filhos que lhes davam os maridos; da vida
morosa, banzeira, moleirona, dentro de casa; do fato de saírem de rede e debaixo de
pesados tapetes de cor (...), ou então de bangüê ou de liteira; e no século XIX, de palaquim e
carro de boi. Algumas senhoras até na igreja entravam de rede, muito anchas e triunfantes,
nos ombros dos escravos” (Freyre, 1986: 400). As meninas casavam-se muito cedo, com
doze, treze, quatorze anos. Com quinze anos, caso solteiras, já causavam preocupação aos
pais e com vinte, estavam condenadas à solterice. Freyre diz que “Quase todos os viajantes
que nos visitaram durante o tempo da escravidão contrastam a frescura encantadora das
meninas com o desmaiado do rosto e o desmazelo do corpo das matronas de mais de 18. De
Mrs. Kindersley vimos a opinião: as senhoras ficavam com o ar de velhas muito depressa.
Seus traços perdiam a delicadeza e o encanto. O mesmo notou Luccock no Rio de Janeiro.
Olhos vivos, dentes bonitos, maneiras alegres tal o retrato que nos traça das meninas de
treze ou quatorze anos. Aos 18, matronas, atingiam a completa maturidade. Depois dos
vinte, decadência. Ficavam gordas, moles. Criavam papada. Tornavam-se pálidas. Ou então
murchavam. Algumas, é certo, tornavam-se fortes e corpulentas como o original de um certo
retrato antigo, que hoje se na Galeria do Instituto Histórico da Bahia: mas feias, de buço,
um ar de homem ou virago” (idem, ibidem: 401-2)
Outro foco de tensão vinha da relação beleza versus preceitos religiosos. Del Priori
30
diz
que “a preocupação feminina com a aparência não era pequena. que ela era controlada
pela Igreja” (Del Piori, 2000: 27-8). Deter-se demais sobre a aparência era pecaminoso, até
porque alterava a obra do Criador, que fazia seus filhos à sua imagem e semelhança. Do ponto
de vista dos relacionamentos afetivos, também não era considerado adequado associar o
casamento à escolha de parceiras bonitas, como pregavam os católicos: “Quem ama sua
mulher por ser formosa, cedo lhe converterá o amor em ódio; e muitas vezes não será
necessário perder-se a formosura para também perder o amor, porque como o que se
emprega nas perfeições e nas partes do corpo não é o verdadeiro amor, se não apetite, e a
nossa natureza é sempre inclinada às variedades, em muito não durará”. ( Del Priori, 1993)
30
Várias das considerações que seguem foram emprestadas da autora, em especial, do livro Corpo a corpo com a
mulher, citado na bibliografia.
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Além disto, ao embelezar-se em demasia a mulher poderia despertar a libido masculina,
incorrendo novamente em pecado. Lembremos que a luxúria figura para a Igreja Católica,
muito forte no momento, como um dos sete pecados capitais. Mas o que era considerado
demasiado em termos de cuidados estéticos e o que era considerado “normal”? Quem
estabelecia os limites eram a Igreja e a Medicina, nasce nesta época a idéia de cosmética
saudável, que seria aquela que, mais do que embelezar, visava tratar medicamente os males,
não os extinguindo de todo, mas disfarçando-os através de pomadas, ungüentos e loções. Para
Del Priori, “O curioso é que no limite entre a cosmética saudável, aquela capaz de sanar
males e doenças, e a cosmética para ‘embelezar’ era estreito. As mulheres resvalavam de
uma para outra, sob o olhar sempre condenatório de maridos, padres e médicos” (idem,
ibidem: 30). O alvo principal era o rosto e empregavam-se nele loções feitas de materiais
como leite, açúcar, mel, água de rosas e até excrementos animais, que passavam antes por um
processo purificador. Acredito que como as técnicas de beleza são sempre técnicas culturais
que visam corrigir ou alterar elementos do corpo, em última instância, elemento da natureza,
tais procedimentos purificados eram fundamentais para se empreender esta passagem da
natureza para a cultura, processo semelhante ao de cozimento e transformações dos alimentos.
Investia-se também em roupas, já que elas tinham um papel político-social, funcionando
como um signo de hierarquização e pertencimento a grupos sociais. Jóias também cumpriam
função semelhante. A partir do século VXIII, a importância destes itens cresce e a moda,
trazida da Europa, começa a ser uma grande preocupação por parte das mulheres, havendo, no
Rio de Janeiro, em 1821, cinqüenta e quatro modistas francesas. Os vestidos eram longos,
embora decotados, e os sapatos eram muito valorizados. Vigorava aqui a idéia de que os pés
femininos deveriam ser pequenos e delicados, e era comum, como entre as orientais, que os
ossos do fossem dobrados à dimensão dos sapatos, mostrando que estas mulheres
pertenciam a uma classe social abastada, não necessitando de pés largos, estes associados às
trabalhadoras e escravas.
Portanto, os critérios de beleza que definiam a mulher eram: ser branca, nunca
demasiadamente pintada, com os cabelos cuidados e adornados em complicados penteados,
bem vestida, e de talhe esguio. Vale ressaltar que o modelo da roupa procurava evidenciar a
cintura, sempre bem marcada e projetar os seios, bem como, através do uso de estruturas de
ferro nos quadris, as famosas anquinhas, sugerir avantajados quadris
31
.
31
Veremos mais adiante, quando discutirmos os padrões corporais entre as mulheres pesquisadas os motivos da
preferência por esta estrutura de corpo. Para maiores informações, ver o texto de Queiroz e Otta (2000),
indicado na bibliografia.
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O talhe esguio e alongado dos corpos femininos era valorizado, mas este não era
conquistado via regimes ou exercícios. Entra aqui um outro tipo de coerção sobre o corpo: o
espartilho
32
. Para Del Priori, “Inicia-se toda uma severa estética da compostura, uma ética da
contração. A vida nas cortes européias, ou na nossa, iria controlar todas as possíveis
turbulências do corpo, sua expansão ou vacilações. O envelope em couro ou pano duro, que
cobria dos joelhos aos ombros, servia também para conter a moleza intrínseca do corpo
feminino, corrigindo sua fragilidade natural e constitutiva. Vitória da razão sobre a natureza,
da fixidez contra os movimentos intempestivos, da impassibilidade sobre a emoção, o
espartilho junto com a luva, as plumas do chapéu e o salto alto do sapato remetia aos
signos nobres da improdutividade” (idem, ibidem: 52). A mulher da elite tentava a todo custo
distanciar-se da imagem de decomposta, agora associada exclusivamente ás escravas e
mulheres do povo.
Embora no século XIX a beleza pareça ser já mais importante do que no século anterior,
um dos marcos decisivos para se entender a mudança na importância dada á beleza ocorre no
século XX, nos anos de 1920.
Neste período, a cultura urbana de São Paulo vai ressaltar a necessidade de novos
modos de vida, mais em consonância com os ideais de modernidade trazidos da Europa, e um
destes é a necessidade de fazer exercícios físicos e de cuidar da aparência. No entanto, como
veremos, os exercícios ainda são leves, diretamente associados á questões terapêuticas e
higienistas e a beleza deve ser buscada, mas sem excessos, dentro de um contexto onde ainda
se ressaltará a naturalidade. O corpo será um mecanismo através do qual se adere ou não a um
estilo de vida mais moderno.
O paulistano começa assim a aderir aos esportes: ligado ao estilo de vida das classes
dominantes, o estilo esportivo vai valorizar o corpo como suporte da distinção. Segundo
Defrance (1978), a ginástica surge como disciplina autônoma no século XIX e são três as
características que a distinguem das práticas corporais tradicionais:
1) por se separar das atividades da vida ordinária (trabalho) e extraordinária
(jogo, competição), objetivando apenas a cultura do corpo. O exercício passa
a ser medido, feito por séries de repetições, etc;
2) o exercício físico rompe com o tempo social da vida camponesa, das cortes e
passa a seguir um calendário fixo, a intensidade dos exercícios físicos passa
32
Espartilhos são coletes rígidos, nos quais são perpassadas barbatanas rígidas e superpostas e que podem ser
progressivamente apertados, com a finalidade de reduzir ou corrigir as regiões do torso (costelas, cintura,
barriga). Seu uso, seja por razões ortopédicas, seja por estéticas, se difundiu no final do século VXII. Para
mais informações sobre os espartilhos, ver Vigarello (1995), indicado na bibliografia.
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de moderada (pelo discurso médico) para intensa e medida por pesos, quilos,
metros, de acordo com necessidades individuais;
3) a competição se torna aberta a todo indivíduo. Courtine (1995), no magistral
artigo “Os Staknovistas do Narcisismo: body-buildinng e puritanismo
ostentatório na cultura americana do corpo” mostra como nos E.U.A, entre
1870-1880, a cultura física e o esporte tornaram-se verdadeiras paixões, a
ponto de numerosas academias de ginástica se espalharem por todo território
americano e ser criada uma seita religiosa denominada “Cristandade
Muscular”, cujo credo era: a moralidade é tanto uma questão de forma
muscular quanto de piedade religiosa, e os melhores cristãos têm o dever de
possuir um corpo atlético. Sustentava-se inclusive que Jesus Cristo fora,
antes de tudo, um homem de ação, um atleta espiritual, sua vida
testemunhava seu entusiasmo pelas alegrias e esforços deste baixo mundo, e
seu calvário não fora mais do que uma corrida de obstáculos, conduzindo-o
ao primeiro lugar no podium.
para Crespo (1990), como vimos, a ginástica deve ser compreendida levando-se em
consideração que dela depende o triunfo da civilização sobre a barbárie. Segundo o autor, a
educação física faz parte do crescente processo de racionalização do mundo moderno e atinge
o seu ápice na transição do culo XIX para o culo XX. Seu desenvolvimento em Portugal
deve-se à incorporação de um discurso científico novo que, “em ruptura com o passado,
rejeitava a idéia de um corpo imutável e definitivamente formado por determinações
externas”, bem como constituído por elementos diversos, relacionando-se entre si e
funcionando em completa interdependência, com sua autonomia própria” (Crespo, 1990:
562). O que dava elasticidade e firmeza aos órgãos era a maneira como as múltiplas fibras
nervosas teciam suas malhas e dinamizavam as relações entre as diversas partes. Esta
possibilidade, segundo o autor, “transformou-se num elemento primordial na gênese do
conceito de organismo e, ao mesmo tempo, tornou possível o desenvolvimento da idéia de
educação física e, em especial, justificaria a importância dos exercícios do corpo na
manutenção da vida. Enquanto dominava a teoria humoral, a utilização de meios artificiais
(...) justificava-se pela necessidade de dinamizar as partes líquidas do corpo. Este não
dispunha, em qualquer caso, de capacidades próprias de imprimir o requerido dinamismo,
para eliminação de matéria nociva. Em relação ao passado, a possibilidade de movimentar
as partes sólidas, através dos exercícios, constituía uma solução mais eficaz.” (idem, ibidem:
562). A ginástica daria também às crianças maior auto-domínio e capacidade para superar a si
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mesmas, permitindo a elas inverter o curso dos fenômenos orgânicos. A experiência atestava
que o exercício físico dava aos praticantes uma aparência corporal diferente, podendo
constituir-se em motivação essencial para o desenvolvimento de si mesmo e da nação.
De todo modo, independentemente de suas origens, a ginástica logo se torna uma febre
por vários países, saindo das igrejas e dos clubes, passando para os ringues de luta e, o mais
importante, para as ruas, podendo ser vista em qualquer parte. Fazer exercícios e ter um corpo
ao mesmo tempo sem gordura e com músculos passa a ser um ideal tanto para homens quanto
para mulheres. Estava aberta a via que, um século mais tarde, conduziria ao fenômeno do
culto ao corpo.
No entanto, no Brasil o exercício vai ter importância no século seguinte, a partir da
década de 1920. Segundo Schpun (1999), alguns dos marcos fundamentais para se entender a
cultura física que começa a desabrochar nos anos de 1920, são a necessidade de se ingressar
na modernidade e a transferência do centro de poder do campo para a cidade. Esta mudança
geográfica fará com que a oligarquia rural, instalada nas metrópoles, tente, a todo custo, criar
estratégias de diferenciação econômica e social frente aos negros, que embora livres da
escravidão, não foram integrados à sociedade mais ampla.
Além do mais, a energia elétrica, a incorporação das máquinas no cotidiano das pessoas,
bem como a invenção da fotografia e do cinema desestabilizam as antigas temporalidades e
impõem a velocidade, o controle do tempo e a mobilidade. Isto gera um número cada vez
maior de pessoas convivendo juntas.
Neste cenário, é preciso normatizar o comportamento, inclusive através de disciplinas
físicas, da multidão que ocupa as ruas. Será preciso, à semelhança do que ocorreu na
passagem da Idade Média para a Moderna, quando “indivíduos de diferentes origens sociais
são reunidos à cambulhada” (Elias, 1990: 91), definir as regras corporais e de etiqueta que os
indivíduos, e em especial as mulheres, devem seguir para serem identificados como
pertencentes a classe social mais ou menos abastada.
Além de normatizar os códigos de conduta e dar-lhes homogeneidade, o exercício físico
também seria o operador simbólico que distingue os tradicionais, os velhos, dos fortes, jovens
e saudáveis, ou, numa palavra, modernos. Estar em movimento é estar em consonância com a
utopia do progresso, que, por sua vez, se confunde com a da juventude. Está lançado o tripé
que até hoje marcará parte de nossa cultura: juventude, beleza e exercícios.
Deve-se lembrar que a ênfase recai na mulher pela própria disposição da cidade, que
com habitações mais próximas e passeios públicos, permite que as mulheres, antes reclusas e
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isoladas nas Casas-Grandes, passem agora a circular No entanto, esta saída da mulher do
ambiente doméstico casa provocará suspeitas e apreensões, e um dos modos de controlá-la
será através de códigos de conduta que se inscreverão, sobretudo, no corpo feminino, como é
o caso da apresentação física. A este respeito, Perrot afirma: “O corpo está no centro de toda
relação de poder. Mas o corpo das mulheres é o centro, de maneira imediata e específica.
Sua aparência, sua beleza, suas formas, suas roupas, seus gestos, sua maneira de andar, de
olhar, de falar e de rir (provocante, o riso não cai bem às mulheres, prefere-se que elas
fiquem com as lágrimas) são objeto de uma perpétua suspeita (...) toda mulher em liberdade é
um perigo e, ao mesmo tempo, está em perigo, um legitimando o outro” (Perrot, 2005: 447).
Neste contexto, a ginástica para as mulheres terá funções profiláticas: acreditava-se que
a mulher, quando demasiadamente confinada ao espaço doméstico, poderia desenvolver
histeria e melancolia, sendo aconselhável, portanto, que ela fizesse alguns exercícios ao ar
livre. Mas está associada também à aquisição e conservação da beleza.
os homens, deveriam se diferenciar da oligarquia rural através da adesão a práticas
esportivas. Nos anos 20, temos uma multiplicação dos eventos esportivos: tênis, golfe,
hipismo, futebol, natação, ginástica, danças. Dentre estes, a ginástica, a natação e o tênis
serão considerados exercícios femininos; haverá uma nítida distinção de gênero: os homens
fazem esportes, deles se exige competitividade, agilidade, agressividade e virilidade, ao passo
que as mulheres devem fazer exercícios leves, cuja finalidade é mais estética do que
propriamente esportiva. Na verdade, esta divisão de nero entre atividades masculinas e
femininas constrói a representação da mulher enquanto objeto de desejo, enfatizando que para
serem vistas e desejadas pelos homens, elas devem ser, antes de tudo, belas, discurso este que
as próprias mulheres incorporarão. Vale lembrar que para Lauretis, “A construção do gênero
é tanto o produto quanto o processo de sua representação”(Lauretis, 1994: 212). Ou seja,
através das relações de gênero homens e mulheres vão criando e interiorizando representações
sobre si mesmos e sobre o outro, e vão sendo recriados por elas.
Neste mecanismo de construção de papéis, as mulheres começam a ser incentivadas a
praticar atividades físicas moderadas, bem como surgem os salões de beleza femininos.
Schpun diz que em 1914, na cidade de São Paulo, havia cinco salões femininos e, em 1929,
estes passam para trinta e quatro. Inicia-se também, entre as classes médias, o consumo de
cremes, maquiagem, produtos para os olhos, que são produzidos de modo caseiro ou
importados da Europa, embora se pretendam modernos. Sant’Anna (1995) afirma a
existência, entre os anos de 1900 e 1930, de produtos que prometem “afinar a cintura”,
“branquear a pele”, “tirar pelos”. Tais produtos não recebem ainda o nome de cosméticos, são
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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chamados de remédio, mostrando uma associação entre beleza e saúde, que o misturadas
nos discursos higienistas e médicos. A feiúra aparece como uma doença e os “remédios”
prometem curá-la: “Aliados às preocupações higiênicas, inúmeros cuidados com o corpo
tendem a ser tratados, unicamente, sob o prisma medicinal” (Sant’Anna, 1995: 124). Schump
também ressalta esta associação entre beleza/higiene. o ainda referências sobre o prazer
que estes tratamentos podem proporcionar, do mesmo modo que também não na,
publicidade da época, imagens invocando beleza e sensualidade, como ocorre atualmente.
No entanto, ser bela começa a ser um imperativo, têm início os concursos de misses,
algumas lojas de departamento como o Mappin Stores surgem e a moda também se
desenvolve. A beleza corporal começa a tomar o lugar da beleza espiritual. Neste sentido, a
importância da beleza nos anos de 1920 marca uma ruptura importante, a da primazia do
corpo sobre o espírito. Até este momento, inclusive ao longo do século XIX, o cultivo do
corpo se justificava sempre por servir à consecução de valores morais, sobretudo os
patrióticos. Entre os gregos, o cuidado de si através da ginástica e da alimentação atestava as
condições de cidadania e democracia. Sennett (1997) e Foucault (1985) mostram que no
período arcaico grego, ser bom orador e bom político era indissociável de exercitar a alma
com a filosofia e o corpo com a ginástica. entre os medievais, não havia esta ruptura entre
corpo e alma, do mesmo modo que também não havia separação entre corpo individual e
social: tudo era parte de um continuum perfeitamente orquestrado por Deus. Será a partir da
modernidade e da contemporaneidade que esta ruptura se processará. Se o corpo na
Antiguidade e na Idade dia era uma ponte para se alcançar algum ideal colocado fora do
corpo – como a democracia, a relação com o cosmos, o triunfo da nação -, na modernidade ele
é o próprio ideal. A partir dos anos de 1920, no Brasil, o corpo começa a ganhar uma
autonomia e começa a se fechar em si mesmo, sendo, num só momento, o mecanismo e o alvo
da ação.
Várias revistas da época, como “A Cigarra” e “Sport” alardeiam a importância da
beleza: A coqetterie é a qualidade mais admirável da mulher. Graças á ela, muitas mulheres
feias parecem bonitas, e as bonitas – encantadoras” (“A Cigarra”, julho de 1920). É claro que
permanecem alguns movimentos contrários, que tentam normatizar fortemente o apelo da
beleza. Sant’Anna (1995) diz que ainda prevalecerá a idéia de que a verdadeira beleza é
fornecida por Deus, não sendo possível conquistá-la de modo individual. E como ainda
uma forte vigilância moral (por parte da Igreja, dos médicos e dos homens) sobre o excesso de
cuidados com o corpo, no cotidiano as experiências de embelezamento serão vividas como
segredos entre amigas. Pintar-se em demasia ou dar muita importância à aparência será
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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comportamento de mulheres mundanas e pervertidas e, portanto, condenado. Em algumas
camadas, a beleza ainda será vista como um dom, que pode, desde que sem excessos, ser
potencializado. Também será possível dissimular a beleza, fingindo ser bela perante o marido
através de recursos como pomadas e maquiagens. Lingeries e cintas (que nesta época
substituíram os espartilhos) podem corrigir alguma adiposidade. A ginástica, embora comece
a fazer parte da vida feminina, ainda não terá, como hoje, a função de remodelar o corpo,
servindo mais para manter aquilo que já se tem ou melhorar o que for possível
33
. Ainda há nos
discursos da época uma prescrição para que a beleza seja algo “natural”, completamente
diferente de nossos tempos, onde vigora o belo fabricado por tratamentos estéticos agressivos,
bem como por cirurgias plásticas.
Mas de modo geral a boa aparência começa a ser cada vez mais requisitada e pouco a
pouco vai se estabelecendo um padrão corporal. Qual é ele?
O primeiro aspecto da beleza que desponta é a juventude. Os anos 1920 darão início ao
banimento da mulher velha: estamos nos distanciando das mulheres aristocratas do século
XVIII, que antes de terem vergonha de suas rugas, as exibiam como prova de maturidade e
austeridade. No cenário dos anos 1920, as marcas do tempo o serão bem vistas e os
cosméticos que prometem acabar com elas serão amplamente consumidos. A modernidade
instaurará o culto ao jovem, ao novo. Se não for possível ser eternamente jovem (não se pode
parar o tempo), será necessário ao menos parecê-lo, através de técnicas de maquiagem,
cosméticos, penteados e roupas.
Além de jovem, a mulher deve ser magra, pois ocorrerá uma associação entre gordura,
velhice e feiúra, como destacam vários autores (Schupm, 1999; Del Priori, 2000; Sant’Anna,
1995; Lipovetsky, 1997; Giddens, 1997). Uma revista de época, Revista femininadiz: “É
feio, é triste mesmo ver-se uma pessoa obesa, principalmente se se tratar de uma senhora;
toca ás vezes as raias da repugnância” (Revista Feminina, 1923). Del Priori comenta que a
magreza “tinha mesmo algo de libertário: leves, as mulheres moviam-se mais e mais
rapidamente, cobriam-se menos com vestidos mais curtos e estreitos, estavam nas ruas”
(Idem, ibidem: 75). Foi-se o tempo em que a gordura estava associada a status financeiro,
como entre os nobres. Agora ela será vista como sinal de lassidão moral e de fraqueza, os
33
Crespo afirma que, em Portugal, no século XIX, ainda vigorava a crença de que o corpo não era uma matéria
totalmente moldável: ele continha em si próprio as potencialidades de sua configuração. Talvez
carregando ainda reminiscências da filosofia dos humores, os higienistas visavam liberar o corpo de
contenções como espartilhos para que o corpo, ele mesmo, fosse instrumento para a sua criação, mas,
dentro dos limites assegurados pela heretitariedade. Era impensável neste período que o corpo pudesse
ultapassasr a si mesmo, adquirindo formas totalmente diferentes daquelas dadas pela genética (Crespo,
op. cit.).
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gordos serão vistos como preguiçosos e indolentes, incapazes de controlar a ingestão de
comida e de exercitarem-se
34
. Ser magra era ter mais liberdade de agir e de movimentar-se,
além de livrar as mulheres de couraças como o espartilho. Começa-se a pensar o corpo em si
mesmo, o próprio ritmo de vida moderno e a possibilidade de sair às ruas farão com que a
mulher deseje manter uma forma física que baste por si só, que não tenha que ser contida por
mecanismos externos. Veremos que na atualidade isto se exacerba, que as cirurgias
plásticas vão permitir a reconstrução do corpo, substituindo a necessidade de sutiãs por
prótese de silicones; de cintas por retirada de gordura via lipoaspiração.
Outro critério que fazia uma mulher ser considerada bela era ser loira, aspecto
ressaltado por Freyre (1986) e, depois, reforçado tanto por Schump (1999) quanto por Del
Priori (2000). Freyre diz que a moda das loiras chegou ao Brasil com as bonecas de porcelana
francesa, todas loiras, de olhos azuis e vestidos de seda. Ele acredita que ao chegar às mãos
das meninas ricas fez com que algumas crescessem contaminadas de um certo arianismo,
desejando que suas crianças nascessem loiras como as bonecas e também para consolidar esta
característica como padrão de beleza das mulheres dos trópicos. Isto aliado aos ideais de
branqueamento e eugenia vividos entre nós com o fim da escravidão e a chegada dos
imigrantes europeus, consolida de vez a mulher loira como modelo hegemônico de beleza.
Era importante também que, além de loira, tivesse cabelos bem cuidados, finos e lisos,
ou, no máximo, delicadamente ondulados, pois estes também eram um poderoso símbolo de
status, como afirmam Queiroz e Otta, “o estado dos cabelos pode ser revelador da trajetória
de vida de uma pessoa, da sua condição de existência e do momento que vivencia no interior
de um determinado grupo social” (Queiroz e Otta, 2000: 27)
35
. Cabelos crespos ou ondulados
em demasia remetiam aos traços da raça negra, sendo, portanto, mal vistos.
Por fim, na mesma lógica de associar branqueamento e progresso da sociedade
brasileira, a mulher, para ser considerada bela, deveria também ser branca, daí o sucesso de
inúmeras pomadas e loções que visavam clarear a pele.
Schump comenta que em linhas gerais o modelo de beleza era elitista e profundamente
marcado por nuances raciais; características que remetessem à raça branca eram mais
valorizadas e funcionavam como marcadores de classe. Assim, a beleza não era para todas,
34
Schump diz que numa das revistas de época, “a Cigarra” (segunda quinzena de dezembro de 1922), aparecem
caricaturas de mulheres pobres, freqüentemente domésticas, ou ao menos encarregadas das tarefas caseiras
das quais as mulheres burguesas parecem desligadas. E são ao mesmo tempo feias e gordas, tendo às
vezes, os traços bem masculinos. A caricatura das domésticas faz contraponto à das patroas: estas são
bonitas, delicadas e esbeltas.
35
A respeito da vasta simbologia sobre os cabelos, ver o texto de Leach, intitulado “Cabelo Mágico”, in: Journal
of the Royal Anthropological Institute, n. 88, 1954: 147-64.
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mas dirigida às mulheres da elite e contribuirá para reforçar esta identificação entre beleza e
classe social. É neste contexto também que elas freqüentam os locais onde acontecem os
esportes hípicos
36
. Também por este motivo, os cuidados com a aparência serão normatizados,
através dos conselheiros de beleza, em geral homens, que vão instruir as mulheres sobre como
lidar com a maquiagem, com as roupas, de modo que ela encontre a medida correta para
enfeitar-se. Se maquiada demais poderia ser confundida com prostitutas, mas quando
maquiada na medida certa, a mulher diferenciava-se das outras pelo seu bom gosto, pelos
produtos utilizados, em geral caros e pela ostentação de um tempo livre para se dedicar a esta
atividade. Ensina-se também às mulheres como controlar seus corpos, como se sentar de
maneira sensual, mas não vulgar e, sobretudo, como andar. A mulher aprenderá assim uma
série de condutas que se apresentam como técnicas corporais, ou seja, ou seja, atos balizados
pela tradição e eficazes, muitas vezes inconscientes, passados de uma geração a outra por
meio da educação. (Mauss, 1974).
Mas se a beleza parece se configurar como uma necessidade, cabe perguntar a quais
propósitos servia. Por que a mulher tinha, mais do que no passado, que se preocupar em ser
bela? Segundo Schump, a beleza estava lidada ao prestígio social da mulher, de sua
capacidade para fazer-se bela, de “seu poder de fazer-se ouvir, de ocupar um lugar junto aos
homens (...) Para se mais exata, a beleza de uma mulher colabora sobretudo, segundo a
maioria dos discursos examinados, na conquista de uma posição social verdadeiramente
prestigiosa, a de mulher casada” (Schump, 1997: 90).
Como podemos ver, a mudança com relação às mulheres da oligarquia, sobretudo rural,
não pode ser mais profunda. Imersas numa rede de relações que definia as pessoas por suas
posições sociais, nomes de família e honra, a beleza contava muito pouco. Eram os títulos de
nobreza que conferiam valor às mulheres, bem como as prendas domésticas e o apego às
tradições. Com a modernidade, homens e mulheres ingressam na multidão, que se por um
lado aparentemente aproxima as pessoas, também as distancia, pois elas se perdem no
anonimato. Distinguir-se da multidão passa a ser uma necessidade e o corpo será um dos
mecanismos que possibilitará esta distinção. Daí a importância da beleza, que pode ser
apreendida num simples olhar. Ainda que as mulheres da elite ainda tenham nome e
sobrenome e parte dos casamentos ainda sofra “arranjos” por parte da família, ser bela torna-
36
Schup comenta que entre os homens, o esporte tem claramente um caráter elitista: os cosmopolitas absorvem o
novo, desde que ele colabore na composição de uma imagem de uma classe dirigente que tem olhos
para o futuro, afastando-se daquilo que representa o tradicional. O esporte se presta a este papel, reforça
as identidades de classe e o projeto social em vigor.
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se mais uma vantagem, que pode potencializar melhores parceiros, pode proporcionar um
bom casamento.
Outra maneira de se firmar os modelos corporais aceitos para época são os concursos de
misses, inexistentes até a década de 20. Schump mostra que os concursos vêm para ficar,
embora fossem criticados por senhoras católicas, que condenam a exposição e o julgamento
sobre os corpos. Os concursos ainda não prevêem desfiles, os leitores votam nas mulheres
conhecidas, o que atesta que o universo da escolha é restrito á mulheres belas da sociedade.
São os homens que elegem as mais bonitas, pois, segundo a ideologia da época, teriam mais
competência para isso, o que nos remete de novo à questão do gênero. Ao homem é atribuído
o poder de julgar, entre outros aspectos, a beleza, e, como lembra Scott, “o gênero é um
primeiro campo no seio do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (Scott, 1990:
16). O ponto mais interessante ao meu ver é que nestes concursos, a escolha de quem é a
mulher mais bonita reforça o modelo de beleza importado da Europa e dos E.U.A, ou seja, da
mulher alta, magra e loira, semelhante ao que acontece hoje, tanto com os concursos de
misses quanto com os concursos de top model, reforçando, aos olhos da sociedade mais
ampla, os estereótipos estéticos. Eles contribuíam para formar um gosto e para gerar a
assimilação social de um modelo. Para a autora, os concursos fizeram muito sucesso na época
porque reforçavam o otimismo do país em sua modernidade, primeiro, porque provava que no
Brasil a elegância e a beleza estavam bem representadas; e segundo, porque permitiam ao país
se afirmar como “civilizado”, já que todos os outros países, considerados desenvolvidos,
tinham seus concursos de misses.
Por fim, este triunfo da beleza seria impossível sem o auxílio da moda e da mídia. A
moda que faz sucesso nos anos de 1920 ainda tem inspiração francesa, mas como o cinema
americano começa a despontar e o Brasil trava relações políticas e militares com os E.U.A,
aos poucos os modelos norte-americanos de roupas, comidas, filmes e outro bens culturais
passam a fazer parte do nosso universo e serão associados aos ideais de modernidade que
tanto desejamos alcançar. Sobretudo, chegam a nós os padrões corporais das divas do cinema
e vai se criando na mentalidade da mulher brasileira uma preocupação com o corpo e com a
moda muito mais intensa do que no passado. Segundo Cott (s/d), no século XX tornou-se
possível não só reivindicar um estilo de vida americano, mas também difundi-lo: “Durante os
anos 20, 40% dos lares adquiriram rádios, e a freqüência semanal dos cinemas duplicou-se,
atingindo no final da década 100 a 115 milhões de espectadores. Inquéritos indicavam que
mesmo as estrelas de cinema tinham substituído os deres políticos, empresariais ou
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artísticos como as figuras mais admiradas pelos jovens. Novas formas de comunicação
forjavam informações e valores comuns” (Cott, s/d: 95, 96).
A difusão das fotografias contribui ainda mais para a fixação de imagens, seja
veiculando imagens de mulheres bonitas e famosas, seja fixando nossa própria imagem, que
passa a se objetivar e cristalizar frente aos nossos olhos e aos dos outros. Para entendermos
este processo, basta pensarmos em nós mesmos: embora altamente familiarizados com as
fotografias e ao mesmo tempo vendo nossa imagem corporal refletida no espelho, quantas
vezes já não nos surpreendemos ao olhar nossa imagem em uma fotografia? Parece que a
imagem congelada e fixada no papel (ou hoje, na tela do computador ou da própria máquina
de fotografia) nos permite nos ver de outra maneira, até mesmo estranhando nossos corpos.
Quem nunca se olhou numa foto e sentiu-se estranhamente magro ou gordo demais, como se
estivesse olhando-se pela primeira vez “Nossa, esta sou eu”? Imaginemos então esta
sensação num contexto em que a fotografia ainda era uma novidade, bem como as próprias
preocupações estéticas.
Se a preocupação estética já era alta nos anos 1920, a partir dos anos 1950 esta
importância só faz crescer. É possível correlacionar este fato com o desenvolvimento da
economia, que durante o governo do presidente Juscelino Kubitschek passou por saltos de
crescimento, gerou mais empregos assalariados (inclusive da mão de obra feminina) e
estimulou o consumo.
Neste período temos também um reforço da própria dia e dos modelos corporais por
ela veiculados. A partir da metade do século XX, as imagens penetrarão cada vez mais no
nosso cotidiano. Multiplicam-se as revistas dirigidas às mulheres, sejam de moda, sejam de
variedades, e em todas elas figuram mulheres bonitas nas capas. A televisão ainda é um artigo
de luxo, mas cada vez mais ingressa nos lares brasileiros, bem como se intensifica o hábito de
ir aos cinemas. Uma legião de mulheres bonitas se apresenta ao olhar e parece nos dizer que
ser bela é fácil, desde que se utilize o produto “X”.
Neste jogo econômico-cultural, beleza e mercado consumidor se atrelam cada vez mais:
a beleza vira item de consumo e as mulheres, consumidoras potenciais de tecnologia que
possibilitam a aquisição da beleza.
Segundo Sant’Anna, Cinelândia, Capricho, Querida, estão entre as publicações onde
os conselhos de beleza são recomendados por estas mulheres-mitos. Mulheres belas
aconselhando outras mulheres, de modo informal e extremamente didático, quase
sussurrando como é bom, fácil e importante se fazer bela, dia após dia (...) Mulheres sempre
jovens afirmando com uma ênfase antes nunca vista, que não vale à pena sofrer por falta de
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beleza. Ao lado desta nova tendência, as regras de beleza prescritas pelos dicos e
moralistas das décadas anteriores se tornam insuficientes, austeras e ultrapassadas. Desde
então os produtos de beleza agora raramente chamados de remédios adquirem um poder
antes pouco reconhecido. Segundo a publicidade, eles podem influenciar diretamente o
psiquismo de cada mulher, tornando-a não somente mais bela como também mais feliz e
satisfeita com ela mesma” (Sant’Anna, 1995: 128).
Vão desaparecendo as idéias, ainda presentes nos anos de 1920, de que a beleza é um
dom de poucas e que as técnicas para reforçá-la são segredos; agora, as novas empresas de
cosméticos e os próprios conselheiros de beleza colocam-na como ao alcance de todas. Mas se
por um lado a beleza se democratiza, por outro caberá à mulher a culpa por sua feiúra. Será
uma tônica constante que é feia quem quer e estamos muito próximos dos discursos
atuais que considerarão a mulher feia e gorda hoje, tornados sinônimos - como negligente,
sem força de vontade, desleixada. A beleza surge como uma promessa acessível para todas,
mas também começa a ser uma prisão: não haverá felicidade fora da beleza; para ser moderna,
feliz no casamento e principalmente, feliz consigo mesma, será preciso ser bela, ou ao menos,
empenhar-se para tal. Cada mulher deve travar sua luta contra a feiúra e será a única
responsável por bani-la de suas vidas. Afinal, as técnicas estão disponíveis, os cosméticos se
tornam mais acessíveis às camadas médias da população, e até mesmo para as mais pobres, as
revistas indicam como conseguir um corpo mais bonito, ainda que para isso, seja preciso
exercitar-se em casa, as lojas de departamento passam a oferecer roupas mais em conta, a
mulher ganha seu próprio dinheiro... Para ser bela, basta que a mulher se empenhe e descubra
o prazer de fazê-lo.
Vamos nos distanciando cada vez mais dos modelos que associavam a beleza apenas a
preceitos médicos e higiênicos; agora, o prazer e a sensualidade se infiltram nos discursos e
passam a justificar a beleza em função das próprias mulheres, que não temem tanto a
condenação moral e social da beleza por parte da igreja. Sant’Anna diz que “A partir dos
anos 60, uma imagem começa a se tornar freqüente nas revistas femininas: aquela de uma
mulher sob a ducha, seminua, olhos fechados, mãos e braços envolvendo o próprio corpo,
sugerindo o prazer de estar consigo. Ao invés de olhar diretamente o leitor, esses modelos de
beleza, muitas vezes anônimos, parecem não necessitar mais de aprovação alheia. São
mulheres sempre jovens, que se querem ‘iguais a todo mundo’ e que sugerem um
contentamento único e solitário: aquele de cuidar do próprio corpo.” (Idem, ibidem:133).
Para a autora, esta liberação do corpo sedutor e da positividade que o prazer começa a
ocupar na vida feminina, advém dos movimentos de liberação ocorridos na década de 1960,
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da contracultura, do desenvolvimento da publicidade e da própria cosmetologia e indústrias da
beleza, que proliferam em várias partes do mundo. Tudo isso parece dar à mulher
oportunidades nunca antes concedidas no livre acesso aos produtos e técnicas de beleza. A
mulher não teme ser confundida com prostitutas em virtude do uso excessivo de produtos
ou mesma da importância dada ao corpo, também não teme mais nem a Igreja, nem os
companheiros. Seus medos agora recaem mais em serem incompetentes no uso dos recursos,
ou de serem privadas deles por questões econômicas. Temem não se encaixarem nos modelos
difundidos e serem culpabilizadas e penalizadas por isso.
Courtine (1995) ressalta os paradoxos quanto ao corpo instituídos a partir da metade do
século XX: “Assim, entre as finalidades das práticas esportivas, a busca de um prazer
pessoal não cessou de coexistir com desejo de vencer e com o cortejo de disciplinas e de
sofrimentos que é seu atributo. As ambigüidades desse hedonismo inscrevem-se ainda,
literalmente em sua linguagem, isto é, no caráter paradoxal e na força performática desses
enunciados obrigatórios que levam à busca de um bem-estar na atividade física. ‘Have fun’:
a alegria é um dever moral, uma forma insistente de obrigação. No mesmo contexto, o bem
estar psicológico (‘feeling good’) é entendido como uma conseqüência da forma física
(‘being in shape). Esta última expressão deve também ser tomada ao da letra (da mesma
maneira que ‘sentir-se bem na própria pele’): o sentimento de prazer provém de uma
aplicação, de um trabalho sobre a forma do corpo que tende a se confundir, desde esta
época, com uma virtude pública” (idem, ibidem: 100-1).
Todos estes mecanismos de projeção da beleza a patamares nunca antes vistos, bem
como da associação complexa entre beleza/obrigação/prazer se potencializam a partir da
década de 1980, nos E.U.A, quando ocorre o chamado culto ao corpo
37
e chegam aqui no
Brasil uma década depois, a partir de 1990
38
. Para Courtine, os anos 1980 conheceram um
desenvolvimento muito intenso do mercado do músculo e do consumo de bens e serviços
destinados à manutenção do corpo. Basta lembrarmos que os anos 1980 foram marcados pela
onda da aeróbica, protagonizada por Jane Fonda, através do livro e do vídeo “Jane Fonda
Workout Book”. Com collants, meia calça, calças de lycra, polainas, tênis e faixa na cabeça,
Jane Fonda convidava todas as mulheres a “malharem” ao som de músicas norte-americanas
agitadas, proclamando que a conquista da boa forma passava pelo esforço e dedicação, coisas
à altura de todas as mulheres, aliás, de cada uma das mulheres. Ela apregoava que o corpo era
37
Para compreender melhor este processo, ver item 4.2 do presente trabalho.
38
É por esta razão que embora o presente trabalho esteja preocupado com o culto ao corpo a partir de 1990 no
Brasil, em alguns momentos aparecerá referências á década de 80, devido ao fato desta cultura ter se
iniciado neste período nos E.U.A
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a única realidade sobre a qual o indivíduo, e ele, tinha controle. Era seguir os
ensinamentos do vídeo e do livro para alcançar a o sonhada forma física. E nós brasileiros,
já ávidos pelas promessas de beleza para todos, embarcamos na onda.
O sentido da prática de exercícios muda drasticamente. As academias se multiplicam no
Brasil e supermercados e lojas de departamento começam a vender diversos aparelhos de
ginástica, de pesos á esteiras e bicicletas ergométricas, além de roupas próprias para a
“malhação”, que ficam cada vez mais justas, evidenciando os progressos e fracassos desta luta
corporal. O tom leve da cultura física dos anos 1920 é abandonado e inicia-se um fervoroso
culto ao suor e ao esforço físico concentrado. Agora se exercitar é um imperativo e jamais a
mulher atual aceitaria de bom grado apenas dissimular através de cintas suas adiposidades. A
própria cultura de exposição do corpo inviabiliza esta prática, as roupas são mais curtas e, a
partir dos anos de 1990, com a incorporação das calças de cintura baixa, a barriga, que antes
poderia ser disfarçada pelo próprio tecido da roupa, tende agora a ser exposta e liberta, e
precisa estar sequinha”. Influenciados pelos E.U.A, começamos a dar mais valor aos
músculos, e às atividades que visam o crescimento muscular pressupõem rotina, disciplina,
esforço árduo. Faz-se necessário incorporar a “malhação” às atividades cotidianas, reservando
um tempo pra sua execução, ainda que se tenha também que trabalhar e/ou estudar.
4.2 - CONCEPÇÃO DE BELEZA PARA AS MULHERES PESQUISADAS.
A partir de agora, veremos como estas questões relativas à beleza e às atividades físicas
se apresentam para setenta mulheres urbanas, freqüentadoras da academia de ginástica
Companhia Athlética, unidade Shopping Morumbi. A intenção é perguntar, de maneira
semelhante ao que foi feito através da retrospectiva histórica, quais os sentidos que estas
mulheres dão à ginástica e aos cuidados com o corpo, bem como questionar sobre os modelos
de corpo atuais (bem como de alguns mecanismos para alcançá-los) e o significado da
aparência na auto-estima feminina. Por fim, questionaremos a importância do corpo na
atualidade, perguntando-nos se as mulheres entrevistadas percebem mudanças com relação à
importância do corpo no passado e no presente.
4.2.1 - SENTIDOS DA MALHAÇÃO
Comecemos perguntando por que as mulheres entrevistadas começaram a fazer
ginástica regularmente, ou, no termo nativo, a malhar?
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De antemão é preciso ressaltar que os sentidos dados à prática física encontram-se
mesclados: estética, saúde, gosto, combate ao stress, entre outros, se confundem e
embaralham, um remetendo ao outro.
Mesmo assim, foi feito um esforço classificatório de ordená-los minimamente, de modo
a guiar o leitor pela profusão de sentidos que o corpo condensa em sua pluralidade.
a) SAÚDE OU ESTÉTICA
Parece que como tudo o que se refere ao corpo, as respostas são dúbias. Muitas alegam
saúde como principal motivo, mas analisando com mais cuidado e instigando as mulheres a
falarem sobre o assunto, percebe-se que também ocorre uma associação entre “malhar” e ser
bela, ou melhor dizendo, a malhação aparece vinculada à questões estéticas, como a conquista
de um corpo mais magro e/ou mais tonificado. Muitas vezes, trata-se realmente das duas
coisas, mas cada mulher pode pender a balança para um dos lados e, por conta desta opção,
dedicar-se a um treino mais leve ou mais intenso, bem como eleger as atividades que
realizarão.
Vejamos algumas das respostas:
“Bem, primeiro, acho que eu sempre gostei de esportes, mas mesmo pra manter o corpo
assim, não ficar muito gorda. Eu gosto, mas também tem a aparência” (Mulher 6, 19
anos).
“Porque eu gosto, pela saúde e pela estética. Eu senti que o meu corpo não estava bom e
precisava mudar(Mulher 9, 27 anos).
“Estética. Não tem outra razão. estética. Depois eu fui vendo que começou a melhor
minha saúde, postura. Eu quero um corpo perfeito.” (Mulher 10, 26 anos).
“Eu comecei a fazer ginástica porque... É, eu acho que eu achei que eu estava ficando
com umas gordurinhas que eu não tinha antes e como eu não sei parar de comer [ela ri],
então pra eu comer tudo o que eu quero aí eu optei por fazer ginástica, e para espairecer
a cabeça também (Mulher 33, 35 anos).
“Tem tudo a ver com estética hoje” (Mulher 18, 23 anos).
“Mais por estética. Porque eu acho que eu sempre posso ficar melhor, eu posso levantar
mais peso, fazer mais abdominal. Eu acho que não tem fim (...). Tem um pouco de
exagero, eu tenho noção disto, então eu tento puxar um pouco o freio, senão, eu fico
horas fazendo ginástica.”(Mulher 64, 39 anos).
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“Por estética. Lembro como se fosse hoje, o meu companheiro comentou que eu estava
flácida. eu comecei com hidroginástica, fui vendo melhora no corpo, ficando mais
magra, mas também mais durinha, e hoje, embora tenha também questões de saúde é
muito por estética, pra ficar com um corpo legal” (Mulher 68, 34 anos).
“Ficar com o corpo malhado. É sempre a estética, pra mim. Estética pra mim, não para
os outros. Eu sempre fui muito perfeccionista comigo mesma, eu me cobro demais”
(Mulher 45, 43 anos ).
Dentre as respostas mais citadas, a estética aparece em primeiro lugar, sendo
diretamente apontada por 45 (56,25%) mulheres, independentemente de suas faixas etárias
(ela é apontada tanto por mulheres nas faixas etárias de 18-28 anos e 29-39 anos, quanto por
mulheres das faixas etária de 40 a 50 anos, de 51 a 61 anos e de 62 a 72 anos). É possível
perceber que, dentre os motivos relacionados á estética, o principal está associado à perda de
peso. Malhar configura-se então como uma das estratégias para controlar a adiposidade e
manter o corpo em dia. Como dizem as entrevistadas, ela é uma aliada no extermínio das
gordurinhas não desejadas e aparece também como um fator de equilíbrio entre a necessidade
de manter o corpo e o prazer de comer. Ou, em outras palavras, fazer exercícios minimiza os
efeitos da ingestão de alimentos calóricos e permite algumas fugas das dietas rígidas. Fazer
exercícios também auxilia, na opinião das mulheres, a adquirir um corpo com musculatura
mais definida, menos flácida e, como veremos, pelos modelos estéticos atuais, não basta estar
magra, é preciso estar magra e malhada.
Um ponto polêmico é que a pesquisa de campo indica que as mulheres oscilam entre
citar a estética como motivo principal e camuflá-la sob o discurso da saúde, talvez por temor
de serem julgadas fúteis. Esta é mais uma contradição de nosso tempo e cultura, que incita as
pessoas a se preocuparem mais com estética e aparência, mas, ao mesmo tempo, parece
condenar moralmente aquelas que assumem esta associação. Assim, muitas iniciam a fala,
como veremos, citando a saúde, mas na seqüência remetem-se também à estética:
“Eu acredito em saúde, principalmente. E na estética claro, então saúde e estética pode
ser? Estética porque eu me sinto melhor, eu me sinto mais leve mais esquia, mais ... mais
disposta, mais atraente, porque não? eu gosto de me sentir bem, de ser elogiada, "puxa
você esta bem!" (...) além da saúde em primeiro lugar (...) não pretendo deixar de fazer
até ficar bem velhinha, e que eu possa escolher outras atividades mas sempre fazendo
ginástica” (Mulher 42, 66 anos)
“Eu malho pela saúde e pela estética. Primeiro a saúde, é fundamental, te estimula, e
depois fazendo isso, vendo o seu corpo, se comparando com pessoas da sua idade que
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não têm um corpo adequado, você fica mais feliz. É melhor malhar do que fazer plástica,
lipo, no caso, a melhor coisa é malhar” (Mulher 43, 39 anos).
“Saúde em primeiro plano. Claro que no decorrer, como eu tenho 51 anos, houve
outros objetivos, tive aquela fase de ter personal, pra ficar com o corpo definido,
queria uma musculatura mais definida, se bem que eu não tenho aquele biótipo de definir
musculatura, mas eu queria, então eu acho que os objetivos vão mudando, agora é a
saúde” (Mulher 19, 51 anos)
“Pra ter condicionamento sico e também pela parte estética. Saúde e estética (Mulher
35, 36 anos)
Nos relatos acima, exemplificados entre tantos outros, podemos ver que a saúde é o
aspecto mais valorizado, mas que, mesmo nestes casos, a estética aparece, às vezes, como um
ganho a mais e, por outras vezes, como um fator tão importante quanto a saúde. É interessante
destacar que segundo Novaes, para mulheres na faixa de 16 a 48 anos, ‘malhar’ está
associado à saúde; porém, o próprio conceito de saúde refere-se, ele mesmo, às melhorias
estéticas” (Novaes, 1987, apud Del Priori: 96). Lembremos que 83% (ver indicador , item
2.2.2 -, perfil sócio-econômico) da nossa amostra corresponde justamente a faixa descrita pela
autora.
Assim, a saúde aparece como razão utilitária em algumas falas, quando na verdade,
trata-se de estética, cuja origem repousa nas cobranças impostas pela sociedade mais ampla.
Como vimos, as noções de beleza são construídas socialmente, de acordo com parâmetros de
pertinência impostos por grupos sociais específicos.
É também a sociedade que disponibiliza ou não para os seus membros a possibilidade
de acesso aos recursos que deverão ser utilizados na conquista do modelo de beleza e, como
salienta Rodrigues: “os homens [no sentido de humanidade, não de sexo] não perdem a
possibilidade de lançar mão desses recursos, para se aproximarem do ideal de estética
corporal que a sociedade define, destacando, dissimulando ou atenuando particularidades de
sua aparência: submetem-se a dietas especiais, praticam exercícios físicos, pintam-se ou
deitam-se em mesas de operações cirúrgicas – porque crêem que, procedendo assim, estarão
incrementando a vitalidade de sua constituição orgânica e social” (Rodrigues, 1983: 64).
Foram poucos os relatos que não tocam na questão da estética, ressaltando apenas a
saúde:
“É...Por questão de saúde né? Até por remorso né, porque como eu fumo e eu sei que é
bem prejudicial eu resolvi dar um antagonista, me deu aquele medo, porque você sabe
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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que não é saudável, mas vo fazendo atividade física e espero que deus seja bom
comigo. Estética nunca foi o meu principal objetivo. Graças a Deus eu sempre fui magra,
eu nunca tive problema de sobrepeso e o que me levou além da saúde foi o remorso
mesmo, o medo de ter um infarto pelo cigarro e comecei a gostar, é o divã do analista
que eu não pago, eu digo isso pra todo mundo, não desmerecendo o analista, e pelo
menos na atividade eu jogo os meus demônios todos pra fora” (Mulher 44, idade não
declarada).
“Eu comecei com hidro porque eu tenho lordose, cifose, eu fiz RPG e a fisioterapeuta
mandou eu procurar hidroginástica ou alongamento, como eu não gosto de alongamento
eu fui fazer hidroginástica.”. (Mulher 52, 48 anos)
“Eu tenho escoliose e bronquite, e ai eu comecei... antes da bronquite eu comecei a
praticar mais exercícios físicos, independentemente do que fosse por causa da minha dor
nas costas, eu tinha muita dor nas costas” (Mulher 29, 54 anos).
“Porque o médico alegou que eu tinha fibromialgia e que eu precisava malhar pra me
livrar deste mal, eu comecei a freqüentar a academia e a fazer ginástica” (Mulher 55,
44 anos)
alguns relatos questionam a importância dada à estética e constituem um contraponto
ao grupo anterior. Inclusive, as críticas ao processo de culto ao corpo virão principalmente
destas mulheres:
“Porque faz bem a saúde, eu penso muito sabe, mas pra frente ... eu também não que eu
malho o tempo todo, imagina, mas eu acho que também é uma questão de saúde, eu acho
que a malhação também não pode ser vista como um lado é...uma coisa de estética, eu
não vejo somente por este lado não, vejo também pelo lado da saúde” (Mulher 58, 27
anos).
“Eu nunca faria por questões estéticas, por saúde mesmo. Eu me sinto bem, muito
bem, eu não sou fanática, tanto que eu faço uma ou duas horas (...) eu faço
unicamente por questões de saúde, a finalidade estética está em segundo plano, mas é um
benefício extra e muito bom, porque é bom você estar bem” (Mulher 63, 42 anos).
“Eu acho que a grande maioria faz exercícios por uma questão estética. É o culto ao
corpo, se você começa a ficar com barriga, a sociedade te cobra muito, então você se
sente na obrigação de fazer exercícios, te fazer cirurgias, correr riscos, até sem
necessidade, tem gente que fica tão aficionada pelo físico que começa a se olhar no
espelho e se achar gorda, a pessoa pode até estar dentro dos padrões, mas ela extrapola,
tem gente que é bulímica, tenho uma amiga que já foi anoréxica” (Mulher 21, 44 anos)
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“Eu faço ginástica não só para o culto ao corpo. Eu sou de Parati, estado do Rio, e lá eu
caminhava muito e aqui eu vi que o meu cardiovascular estava muito ruim, porque aqui
eu não ando (...) Eu comecei a fazer esteira, cardiovascular, um negócio chamado
aerodança, fiz várias modalidades, mas hoje eu faço esteira, faço localizada, pra ter um
pouco mais de tônus, por causa da idade (...) o culto que eu tenho é o culto á saúde, e é
lógico, isto vai do meu grau de escolaridade, eu sou doutora.” (Mulher 66, 44 anos)
Outro dado que ao meu ver reforça a importância dos motivos estéticos na prática
regular do exercício é a fala das orientadoras, professoras ou mesmo alunas da Companhia
Athlética, que, quando questionadas sobre como vêem a balança entre saúde e estética,
afirmam:
“Muitas pessoas hoje falam que é por causa da saúde, mas eu não acredito que seja por
causa disto, acho que primeiro vem a estética, com certeza (...) eu, como orientadora,
converso com todos os alunos novos, eu acho que a grande maioria o que eles buscam é
mais por estética mesmo. Eles vêm, falam, poucos, acho que de dez, um ou dois vem por
recomendação médica, ou pela saúde mesmo. O pessoal diz, ‘eu quero ganhar massa’,
‘eu quero perder gordura’, eu quero fortalecer isto e aquilo’...é mais ou menos isso
mesmo” (Mulher 10, 18 anos)
“ Ah, uma coisa agrega a outra né [saúde e estética] (...) A maioria vem por estética, e aí
depois quando eles estão assim motivados, eles começam a ver o outro lado, de
disposição, tônus... a grande maioria procura o médico mais por causa do problema
estético, mas que pode estar associado a algum outro fator, mas o médico recomenda
que venha à academia , tanto é que não entram tantos gordinhos na academia, porque
têm vergonha, eles acham que aqui tem gente bonita que com o corpo bonito.”
(Mulher 8, 25 anos)
“A maioria das alunas é por estética, não é por saúde, é por estética. Tem muita gente
pensando na saúde, mas a maioria é no corpo. Eu acho que o conceito de saúde está
aumentando, porque você muita terceira idade fazendo, então tá aumentando, mas pra
pegar a grande maioria, é corpo, é ficar bonita, é ficar bem, e ficar na média, sabe, na
grande referência que é a televisão.” (Mulher 18, 23 anos)
“Acho que a maioria é estética né? A grande maioria, né? Entre elas, tem outras que
malham por vários motivos. Mas a maioria é por estética mesmo. Eu vejo a estética nas
meninas de 16, 17 anos, até nas de 30. Também depende de como elas estão, do que elas
estão buscando, porque às vezes o seu estado te faz cuidar muito mais pra buscar um
parceiro, estar mais enxuta, né?” (Mulher 19, 51 anos)
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“Eu acho que é os dois , acho que todo mundo busca a saúde por causa desta vida que a
gente vive, às vezes muito sedentarismo, então muita gente vem na academia em busca da
qualidade vida (...) mas a ideologia dos homens é aumento da massa muscular,
hipertrofia forte, eles também vem para academia em busca de estética, em busca de um
corpo saudável, malhado, um corpo delineado, então as duas coisa estão ligadas, o
pessoal vem pela saúde, mas junto com isso está a melhoria do corpo” (Mulher 54, 26
anos).
Saúde e estética, desta maneira, mesclam-se nos discursos das entrevistadas, como
veremos por exemplo, quando discutirmos a freqüência à academia de ginástica ( item 4.2.2 -
), que embora seja camuflada sob o discurso da saúde, na verdade, o contraria na prática.
b) O EXERCÍCIO COMO UM HÁBITO DE INFÂNCIA
Outro motivo muito citado pelas entrevistadas quando questionadas sobre os motivos
que as levaram a fazer exercícios é o fato do esporte ou atividade física em geral fazer parte
da vida desde a infância. A propósito, todas as professoras indicaram que começaram a fazer
atividade física por paio adquirida no seio familiar:
“Na verdade acho que este estímulo veio desde os meus pais. Desde os três anos eles me
incentivaram a ser mais saudável, entender o corpo, caminhavam mais para este lado da
saúde, da importância” (Mulher 5, 22 anos)
“Na verdade eu faço desde criança, é uma coisa que eu faço desde os seis anos, depois
que eu terminei o balé eu fazia aula de dança e comecei a fazer musculação e esteira pra
complementar o treino (...) porque no balé a gente trabalha muito a perna, mas o
trabalha os braços, então eu comecei a fazer um pouco de musculação para o braço e
abdominal (...), esteira eu sempre gostei de fazer” (Mulher 22, 32 anos).
“Bom, sempre pratiquei atividades físicas, no colégio eu sempre gostei de praticar todos
os esportes (...) desde criança eu fiz natação, balé e ginástica olímpica. Hoje em dia vejo
a importância das atividades físicas mesmo para qualidade de vida, pro bem estar, pra
melhorar a auto-estima, para estar mantendo uma aparência legal e saudável,
preocupada mais com uma estética do corpo.” (Mulher 54, 26 anos)
“Ah, ginástica eu gosto, sempre gostei de fazer atividade física e sempre usei ela como
uma forma de lazer, então quando eu não estou fazendo nada, eu estou fazendo atividade
física (...) e também por causa da saúde, porque é...a gente aprende quando está fazendo
faculdade o que é bom o que é ruim, então a gente procura manter pra ter uma vida mais
saudável(...)” (Mulher 57, 28 anos).
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“Fui ginasta, da artística (...) eu participei de competições, e expressivas, campeonato
brasileiro, campeonato fora, pan-americano...eu sempre gostei de desporto, então isso tá
em mim, até hoje eu procuro algum campeonato máster, alguma coisa assim da minha
faixa, pra brincar, porque eu sinto falta. Eu sempre gostei” (Mulher 59, 39 anos).
“Ah, sempre fiz, desde novinha, sempre fiz, sempre gostei de ginástica, e sempre fazendo.
Na época nem tinha academia, quando eu vim pra cá, a gente fazia lá na Ala Shermam e
quando fechou...na época não tinha academia né, aí foi abrindo, abrindo, o pessoal
da Alla Shermam veio pra cá, nós estamos aqui desde o começo” (Mulher 36, 45 anos).
“Desde pequena eu faço atividade física, isto passou a fazer parte de mim. Se eu não
fizer, eu fico chata, eu faço mais com a finalidade de saúde mesmo, eu faço pra me sentir
bem, eu comecei com 8 anos, hoje eu tenho 42 (...) Eu acho que o corpo é a morada da
alma, então você deve cuidar dele pra que você possa permanecer mais tempo”.(Mulher
63, 42 anos)
Vemos que os processos de socialização são fundamentais para se criar o hábito da
ginástica. Se a criança convive com uma família que valoriza as atividades físicas e as pratica
no dia-a-dia, tende a perpetuar estes hábitos quando adultas e passá-los à geração seguinte.
Embora a faixa etária das mulheres tenha variado bastante de18 anos a 69 anos - , em geral
concentrou-se na faixa de mulheres de 29 a 39 anos (40%), que nasceram por volta da década
de 70- 80, período em que a atividade física já estava mais valorizada socialmente.
Provavelmente, se esta pesquisa fosse realizada novamente com as filhas destas
mulheres, perceberíamos um aumento ainda maior do hábito da ginástica desde a tenra
infância, que suas mães são “malhadoras assíduas” e tendem a transferir a seus filhos os
hábitos adquiridos. Tanto que, se olharmos novamente o gráfico 1 (Idade Geral), podemos
perceber que 23% da amostra tem entre 18 e 28 anos e muitas são filhas das mulheres
entrevistadas que se concentram nas faixas de 40 a 50 anos e de 51 a 61 anos.
c) BEM ESTAR GERAL E ALÍVIO DA DEPRESSÃO.
Outro motivo assinalado pelas mulheres foi o bem-estar de modo geral, adquirido por
meio da prática regular de exercícios. A atividade física seria um modo de manter o corpo em
movimento e também de se socializar, conhecer novas pessoas:
“Condicionamento físico, vontade de fazer uma outra atividade e de certa forma foi um
pouco pelo social também (...) conhecer outras pessoas, trocar idéias, aqui a gente
encontra gente divertida, gente chata, de todo jeito”. ( Mulher 12, 48 anos).
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“Eu sempre fiz ginástica, eu fui atleta, eu joguei vôlei profissional dos 10 aos 15 anos,
então eu sempre fiz muita ginástica. Quando eu parei o vôlei eu comecei na Cia Atlética,
aqui uns vinte anos, nesta unidade sete anos. Os objetivos principais são bem
estar e manter a forma (...) eu faço ginástica não é para ter um corpo mais bonito, mais
malhado, eu faço para o meu bem-estar, pra eu me sentir bem. Pra eu colocar uma roupa
e sentir que bacana, pra eu não me sentir apertada, é por isso que eu faço ginástica,
pra eu me sentir bem” (Mulher 16, 36 anos).
“Foi porque eu sempre fiz muito esporte, sempre...meus cavalos, e com a idade, quando
eu fiz 40 anos, eu comecei a perceber que estava faltando forças...e então eu comecei a
levar mais a sério.. a academia, a musculação, ginástica e tudo mais, para poder
continuar indo viajar, esquiar na neve, fazer mergulho submarino, porque eu adoro todos
os tipos de esportes e foi por isso que eu comecei a fazer academia pra valer. É mais
física do que estética, mas lógico que ajuda também na parte estética.Você não fica com
gorduras localizadas, você fica com um porte mais bonito, uma postura mais bonita e
tudo isso te ajuda para você se sentir melhor. (Mulher 39, 58 anos).
Nas falas de Mulher 16 e Mulher 39 vemos claramente o que Courtine (1995) queria
dizer quando afirmou que a partir dos anos 1960 o bem estar psicológico (“feeling good”) é
entendido como uma conseqüência da forma física (“being in shape”). Ainda que não se
visem necessariamente fins estéticos, ao se exercitarem as mulheres se sentem melhor;
primeiro, pela liberação de hormônios como a serotonina; em segundo, porque aprenderam
que o corpo deve estar em movimento (queiramos ou não, faz parte de nossa ideologia) e em
terceiro, porque bem estar físico e psicológico parecem hoje indissociáveis.
Três mulheres afirmaram ter começado a se exercitarem como uma espécie de válvula
de escape, motivada por depressão. Reencontrar-se com o corpo seria um modo de
reencontrar a si mesmo e retomar a alegria de viver:
“Eu comecei há quinze anos atrás quando eu perdi uma irmã que eu amava muito, até aí
eu odiava ginástica, ficar suada não era comigo, eu era comodista. Depois que minha
irmã morreu, eu pirei. Aí o analista falou pra eu procurar uma academia de ginástica, no
começo eu fazia sem gostar, depois eu comecei a gostar da coisa, gostar e hoje eu sou
viciada, é isto que você está vendo” (Mulher 65, 61 anos)
“Porque eu tava muito deprimida. Meu corpo estava muito fraco, tava muito difícil
mesmo Mirela, então foi uma forma de eu estar me encontrando. quatro anos eu tô
malhando, eu fui atleta também por quatro anos, eu parei, neste momento eu fiquei
muito mal porque eu acho que corpo é tudo, atividade física é fundamental, eu ficava
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muito angustiada, muito deprimida, chateada, muito mal, por isso que eu entrei na
academia.” (Mulher 34, 33 anos).
“Porque eu entrei numa depressão ultimamente. Aliás, ultimamente não, vai fazer um
ano... Foi em agosto do ano passado. Entrei numa depressão muito forte e então uma das
coisas que eu achei que poderia me ajudar era a atividade física. E também porque eu
estava assim com uma auto-estima muito baixa, eu tinha engordado e eu queria
emagrecer. Aí eu fiz uma dieta e comecei a fazer e consegui” (Mulher 31, 54 anos).
As falas das mulheres 34 e 31 apontam um dado curioso, pois indicam que em
momentos de crise geralmente não temos ânimo para uma série de funções e o abandono do
corpo reflete este estado de espírito, do mesmo modo que para estar feliz consigo mesma, para
se gostar, é preciso estar de bem com seu corpo. Acaba sendo um ciclo vicioso: deprimidas,
abandonamos os cuidados com o corpo, e, ao fazê-lo, potencializamos nossa tristeza. Por
outro lado, cuidar do corpo nos alegra e motiva novamente, restabelecendo os canais de
sintonia conosco mesmo.
d) GOSTO OU OBRIGAÇÃO?
Embora a malhação estivesse presente na vida de todas as mulheres entrevistadas, era
preciso saber se elas gostavam ou não da prática, para depois entender a influência da mesma
na construção da auto-estima.
Gráfico 17 - Mulheres que gostam de malhar
Gosta de Malhar?
97%
0%
3%
sim
o
mais ou menos
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Só 3% da amostra afirmou gostar “mais ou menos”, nestes casos, a prática de exercícios
deve-se muito mais à cobrança, por parte dos maridos e das outras pessoas, para que elas
façam esta atividade. Como fazer algo pelo corpo e com o corpo se tornou um imperativo
social, a mulher que opta por não fazer atividade física será olhada de soslaio, como se ela se
negasse a fazer parte de algo que é um dever, seja em nome da saúde ou da estética. Daí a
necessidade de, mesmo contra os desejos mais íntimos, aderir a “malhação”:
“Ah, hoje em dia virou um hábito tão . é ... se eu pudesse optar, e se não fizesse um
nenhum efeito, tanto para a saúde quanto para a estética, eu não faria. Mas como eu sei
que é um ... é necessário hoje. Eu faço (...) eu sou muito preguiçosa. E normalmente
quando eu começo a fazer ginástica eu fico com a roupa de ginástica o dia inteiro e.. e ai
acabo não me arrumando e quando eu não faço ginástica fico mais arrumada .. ai eu
começo a ficar mais avacalhada quando eu tô na ginástica, assim, em termos de ...
roupa de vestimenta” (Mulher 47, 40 anos).
“Não, eu nunca gostei de academia, eu faço porque é uma necessidade, não que eu goste,
é uma necessidade. Se eu pudesse estar em casa agora, sentada, eu estaria, não estaria
aqui, eu não gosto de atividade física. Mas é uma necessidade, em primeiro lugar por
causa da saúde, em segundo lugar, por causa do corpo.” (Mulher 32, 33 anos)
“Olha, eu não gostava, entendeu, este ano eu gostando mais, as atividades que eu
comecei a fazer, a dança, tanto a do ventre quanto o bodyjan, o prannaballs, eu peguei
as atividades que eu gosto mais pra mim não...Pra eu ficar mais interessada. Se fosse
pra ficar na esteira e na musculação eu não daria conta” (Mulher 33, 35 anos).
“Eu não gosto, foi orientação médica. Eu faço até, e aqui tem várias opções. Hoje eu não
posso dizer que eu não gosto, mas não amo” (Mulher 52, 48 anos).
“Mais ou menos, eu malho assim porque preciso, mas não sou apaixonada não” (Mulher
58, 27 anos).
Por outro lado, várias mulheres afirmaram que gostam muito de “malhar”, embora não
tenham especificado os motivos:
“Eu gosto muito” (Mulher 63, 42 anos)
“Adoro, é a paixão da minha vida, viciei” (Mulher 29, 54 anos)
“Muito, muito. Eles me indicaram, mas desde os seis anos eles perceberam que era uma
coisa com a qual eu me identificava muito, além de qualquer outro assunto” (Mulher 5,
22 anos)
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“Eu adoro. Minha vida é malhar” (Mulher 14, 34 anos)
Entre as que gostam e especificaram os motivos, percebi ser intensa a associação
assinalada entre bem estar físico e psíquico, além da liberação de hormônios. A ginástica
também foi citada como modalidade de terapia, tanto nas entrevistas quanto em conversas
informais:
“Comecei a gostar, é o divã do analista que eu não pago, eu digo isso pra todo mundo,
não desmerecendo o analista, e pelo menos na atividade eu jogo os meus demônios todos
pra fora” (Mulher 44, idade não declarada).
“Eu adoro, eu me sinto viciada em ginástica. É minha sessão de terapia, é o analista que
eu não pago” (Mulher 65, 61 anos)
Note-se que em ambas as falas aparecem quase que a mesma expressão: “o analista que
eu não pago”. A fala é compreensível, já que o convívio com outras pessoas, o uso da força
e/ou da concentração nas atividades, bem como as técnicas de relaxamento de algumas aulas e
a sensação de estar fazendo algo para si acabam contribuindo para que a mulher alivie parte
do stress e das tristezas.
Outras falas também apontam para este sentido:
“Muito, muito, hoje se tornou meu vício na verdade, não consigo viver sem a ginástica.
Quando eu não venho eu sinto muita falta. Dá culpa, bastante, bastante, se eu não venho.
Academia, pra mim é uma terapia. Sempre falo pra todo mundo, não existe nada melhor
do que fazer a ginástica, se eu entro com um determinado humor aqui eu saio com outro,
sempre melhor, pra mim é a minha terapia. Aqui eu fico bem, mais disposta, melhora o
humor, melhora o ânimo, melhora tudo, então meu vício é em função disso, me faz bem
ao extremo, fisicamente e muito mentalmente, psicologicamente pra mim é um bem
extremo.” (Mulher 20, 33 anos)
“Eu dou 100 % de importância à academia. Primeiro pelo astral das pessoas, se você
está deprimida você vem, faz uma aula que te levanta; segundo, que pra saúde mesmo, é
fundamental pra gente, quanto mais melhor” (Mulher 67, 29 anos).
“Tem um pouco de auto estima, sempre tem. Você se sente bem. Eu acho que a gente
libera [endorfina] ou sei lá, acaba se sentindo bem, se sente bem depois de fazer aula. Eu
sempre me senti bem e sou feliz. Eu incorporei isso. faz parte da minha rotina
malhar e vou malhar até o fim da minha vida.(Mulher 7, 39 anos).
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“Gosto (...) me sinto viva, me sinto feliz.(...) è a tal da serotonina, que alimenta o
cérebro, os músculos, é bem por mesmo, porque ela me deixa...eu me sinto viva, sou
capaz de poder fazer alguma coisa, me movimentar, que eu acho bárbaro, a pessoa poder
mexer os braços, as pernas, os dedos, é uma dádiva de Deus, então eu gosto por isso, eu
me sinto viva” (Mulher 55, 44 anos).
Outras cometam que quando você começa a fazer atividade física constantemente, o
corpo se acostuma, passa a ser como comer, tomar banho, trabalhar, uma atividade constante
e rotineira, que gera mais disposição pra enfrentar os outros aspectos do dia a dia, além de dar
uma sensação, muitas vezes comentada, de missão cumprida”, o que confirma ainda mais a
importância que o corpo alcançou na atualidade:
“Eu gosto. Desde pequena eu faço bastante esporte e eu to muito acostumada, se eu
não faço eu me sinto muito mal, assim, sempre, o corpo acostumou (...) Eu me sinto
meio inchada, meio parada demais, sempre” (Mulher 6, 19 anos)
“Eu acho que eu criei um hábito, né, meu corpo precisa, eu gosto de fazer tudo aqui, em
geral gosto de manter a flexibilidade, fico com dor no corpo quando eu não treino,
porque como eu treino muito o corpo sente, me sensação do corpo atrofiando, acho
que falta de flexibilidade, então por isso, lógico entra o fator de saúde, muito forte.”
(Mulher 8, 25 anos).
“É como tomar banho, escovar dente, pentear cabelo, dormir, a atividade física faz parte
da minha vida” (Mulher 64, 39 anos).
“Viciei, viciei no bom ... eu me sinto mal, me sinto ..., me falta alguma coisa. Se eu
pudesse viria todos os dias, mais horas. E eu faço bastante exercício, você sabe. Body
pump, body balance, musculação, aeróbica, e tudo que aparece assim, aparece num
horário em que eu posso fazer, eu faço. Eu adoro ginástica. E adoro porque eu me sinto
bem, porque foi excelente para mim para tudo” (Mulher 42, 66 anos).
“Faço com prazer. Não adianta, para mim foi fácil, pode ser que um dia eu acorde com
preguiça, mas eu acabo fazendo, entendeu? Que nem com o trabalho, tem dia que a
gente não está querendo ir trabalhar mais tem que ir, eu ponho uma ... eu, isto faz parte
da minha rotina, entendeu? (...) de uma maneira geral, quando não dá para eu vir para a
ginástica aqui na academia, ou eu corro, ou eu tenho bicicleta, ou mesmo como eu tenho
as crianças eu acabo também tendo que fazer alguma coisa né, eu acabo me
exercitando.” (Mulher 51, 34 anos).
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“Nossa, ela [a academia de ginástica] é a extensão da minha casa, porque eu acho que
cada vez os espaços estão menores e você tem mais stress, mais coisas pra fazer (...)
então aqui eu fo uma aeróbica, que compensa o meu cardiovascular e tranqüiliza,
porque você joga a adrenalina. Vira um hábito, é como escovar os dentes, eu falo pra
minha irmã.” (Mulher 66, 44 anos)
outras mulheres enfatizaram mais os benefícios estéticos alcançados com a ginástica
e, à semelhança do que percebi quanto questionei o motivo que as levou a malhar, os mesclam
com o discurso da saúde:
“Hoje eu gosto, mas antes não, não gostava, mas hoje eu peguei gosto, por causa disto,
você vai vendo a diferença no corpo e você quer cada vez melhorar mais e hoje eu
gosto bastante, eu faço por gosto” (Mulher 1, 30 anos)
“Gosto. Agora eu parei um pouquinho, mas eu fazia musculação, dança, boxe, ginástica
e agora eu estou fazendo dança do ventre. Mas eu sempre fiz por causa do corpo, pra
o corpo, simplesmente para o corpo ficar bonito e também para aliviar o stress” (Mulher
15, 31 anos)
“Gosto! Na verdade quando eu não faço, eu me sinto mal, eu começo a me achar feia,
gorda, acaba me fazendo mal, eu fico de mau-humor, então pra tá bem eu tenho que estar
fazendo alguma coisa” (Mulher 22, 32 anos).
“Adoro, eu viciei em ginástica, amo ir pra academia, é um bem que eu faço pelo meu
corpo, quando não vou fico triste e culpada” (Mulher 68, 34 anos).
Note-se esta última fala, em que aparece a expressão é um bem que eu faço pelo meu
corpo”. Ela sintetiza parte de nossa discussão, pois mostra que o corpo, aos poucos, vai
alcançando tal importância que no limite, a mulher malha para o seu corpo, ainda que também
para si: o corpo é a pessoa, ou pelo menos, parte essencial dela e de sua inserção social.
e) CORPO E MATERNIDADE
Outro motivo para a prática da ginástica apontado pelas mulheres foi o nascimento dos
filhos. Muitas delas se queixam de seu corpo após o parto. A mudança no corpo gera
angústias, ainda mais quando a sociedade veicula de maneira tão ostensiva a necessidade das
mulheres terem um corpo perfeito. O nascimento dos filhos engendra sentimentos
contraditórios: se por um lado os filhos são fonte de felicidade e realização para várias
mulheres, eles são também fonte de angústias, pois tê-los submeterá o corpo a processos de
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 100
mudança
39
. Devido às pressões sociais e estéticas, será preciso depois seguir dietas e fazer
ginástica para a (re)conquista de um corpo atraente, mulheres antes sedentárias começam a
sentir a necessidade de fazer ginástica após o nascimento dos filhos, justamente porque
neste período o corpo passa por uma série de transformações radicais e segundo as
entrevistadas, depois do parto e da amamentação, o corpo fica feio, ou, segundo as falas
nativas, “flácido”, “com gordurinhas”:
Eu sempre gostei de atividade física, mas antes dos meus filhos nascerem eu fazia bem
pouco, eu era meio relaxada, mas depois que eu tive as meninas, que o corpo ficou mais
feinho, eu comecei a ser mais assídua na academia, até porque elas começaram a
fazer, aí eu tinha que vir todos os dias porque elas faziam todo dia, aí eu comecei a pegar
gosto pelo negócio, eu vi a diferença do corpo, começou a melhorar bastante, eu
passei a me empolgar e passei a vir cada vez mais” (Mulher 1, 30 anos).
Foi depois do terceiro filho que eu senti necessidade de fazer (...) Porque eu fiquei um
pouco mais flácida. O principal motivo acho que foi estético. Eu ainda não pensava como
eu penso hoje, eu ainda não sabia o que eu sei hoje. Hoje é a saúde, a estética ficou em
segundo plano” (Mulher 17, 61 anos)
“Eu faço desde 1981, quando o meu filho nasceu, ai eu tinha engordado muito e entrei
na Ala Shermam, pra começar a fazer ginástica pra emagrecer, ai eu nunca mais parei
(...)” (Mulher 30, 51 anos)
“Bem, eu faço ginástica quase vinte anos, praticar esportes eu sempre pratiquei,
mas depois eu fiz, parei, depois que eu tive filho, quando eu tive o segundo filho eu
não tava mais me gostando, uns quilos a mais, eu resolvi voltar. Também porque eu
não tava me sentindo bem comigo mesma, a insatisfação pessoal com o corpo está ligada
com o psíquico das pessoas, se você não malha você não tá...legal.” (Mulher 46, 42
anos)
“Manter a forma. Porque eu tive três filhos né, eu sempre fui magra, mas em
conseqüência das minhas gravidez, das três, eu engordei um pouco e eu sou assim muito
neurótica por um corpo assim...não perfeito, mas...um corpo que prazer de colocar
uma roupa, de usar um biquíni, de ir pra uma praia” (Mulher 60, 40 anos)
Um outro depoimento foi significativo, pois nos faz pensar se, devido à cobrança de se
ter um corpo perfeito, teremos uma queda nas taxas de natalidade:
39
E como veremos mais a frente, item 4.2.1 -, em especial, item 4.2.1 -e), o nascimento dos filhos se
amplamente citado como legitimador de cirurgias plásticas, principalmente, abdomemplastia, implante de
silicone e sustentação dos seios.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 101
“A minha tia teve o primeiro filho dela e o meu tio tinha o sonho de ter vários filhos e ela
já fez a operação, sem o meu tio saber, no dia do parto, pra não ter mais filhos, pensando
em que? No amor que ela tinha pelo meu tio? No filho dela, que não vai ter irmãos? Não,
ela só pensou nela. Eu não quero mais, pelo meu corpo, por mim.” (Mulher 5, 22 anos).
Não temos ainda como responder esta questão, para tanto seria preciso analisar as taxas
de natalidade no passado, compara-las com as do presente e esperar que parte da amostra
(23% das mulheres estão na faixa de 18 a 28 anos) inicie e/ou continuidade ao ciclo
reprodutivo.
Mas certamente, se os modelos atuais de corpo e a importância do mesmo para a auto-
estima continuem a ganhar importância, a mulher relutará em perder as formas adquiridas,
diminuindo ou mesmo evitando o nascimento dos filhos.
4.2.2 - MODELOS ATUAIS DE CORPO
Como afirmamos anteriormente, sobre o corpo físico serão impostos modelos
culturais de beleza e atratividade, fazendo com que o corpo seja “significado”, ou seja,
imbuído de sentidos construídos no seio da sociedade. Estes modelos variam, obviamente, de
acordo com a multiplicidade de culturas humanas, como salienta Rodrigues (1983): “O que é
sexualmente estimulante em uma sociedade pode exercer o efeito exatamente contrário em
outra. Há, na África central, um ideal de estética feminina que identifica beleza com a
obesidade, sendo a moça, à época de sua puberdade, submetida às mais diversas técnicas,
capazes de fazê-la o quanto mais gorda (...)” (Rodrigues, 1983: 74).
Assim, faltava-nos perceber quais são os modelos corporais da sociedade atual, bem
como os mecanismos para alcançá-los.
a) FREQÜÊNCIA E TIPOS DE ATIVIDADES FÍSICAS
Fazer ginástica associa-se à conquista de um corpo mais bonito, mais apresentável e do
qual a mulher possa se orgulhar. que, para isto, disciplina é fundamental e um dos modos
pela qual ela se manifesta é na freqüência às atividades físicas:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 102
Podemos perceber que as duas maiores faixas, se somadas, correspondem a 88% e
indicam que as mulheres dedicam boa parte da semana às atividades físicas: 44% das
mulheres vão á academia três ou quatro dias na semana, e outras vão cinco dias ou mais.
É comum que as entrevistadas freqüentem a academia nos finais de semana, indicando a
importância da mesma em suas vidas.
Mas, por quanto tempo lá permanecem?
Gráfico 18 - Freqüência semanal a academia
Gráfico 19 - Horas diárias de malhação
Distribuição das Entrevistadas, segundo
a frequência semanal à academia
9%
44%
3%
44%
1 a 2 vezes
3 a 4 vezes
5 vezes ou mais
não respondeu
Horas diárias dedicadas á malhação
73%
19%
4%
1%
3%
1 a 2 horas
3 horas
4 horas
mais de 4 horas
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 103
Segundo o gráfico, 73% permanece apenas por 1 ou 2 horas, 19% por 3 horas, 4% por
4 horas e só 1% fica mais de quatro horas.
que, na prática, as coisas mudam. A observação participante, como nos lembra
Malinowski (1984), permite que façamos uma nítida distinção entre o que os nativos dizem
que fazem (representação) e o que eles efetivamente fazem (ação).
Assim, o campo mostrou que as mulheres malham geralmente por três ou mais horas. É
comum que as mulheres emendem duas aulas na seqüência e ainda façam cardiovascular ou
musculação, o que ultrapassa duas horas diárias. Além disto, pelos corredores da academia, de
modo discreto, funciona um tipo de troca bem peculiar: a de tíquetes de entrada do
estacionamento.
Explicando melhor: Os shoppings, de uns tempos para cá, começaram a cobrar pelo
estacionamento, emitindo na entrada do veículo um tíquete que indica a hora e que deve ser
validado e pago na saída. As tabelas de preço variam de um estabelecimento para o outro, mas
em geral, cobra-se pela primeira hora e depois, por períodos, sendo que o primeiro deles é de
quatro horas. Bem, a academia estudada fica no Shopping Morumbi e a mesma faz uma
gentileza aos alunos: dá-lhes um papel que, ao ser apresentado com o tíquete, isenta o
pagamento do estacionamento, desde que não ultrapasse quatro horas. Depois deste período, o
aluno deve arcar com a diferença de preço.
Mas o que acontece é que os alunos vivem ultrapassando o tempo e, portanto, para não
pagar o tempo excedido, trocam os tíquetes com aqueles que entraram depois e não vão ficar
as quatro horas. Um mesmo tíquete pode passar na mão de pelo menos duas pessoas.
Além desta prática, uma outra atesta a permanência de muitas mulheres por mais de
quatro horas: simplesmente pegar o papel, validar o tíquete depois de quatro horas, sair do
shooping e entrar de novo, recebendo um novo tíquete. Resta agora, por simpatia ou sorte
40
,
receber outro “salvo-conduto”.
Acredito que esta relutância das mulheres entrevistadas em assumirem as horas que se
dedicam à academia vem das contradições de nossa sociedade, referidas, de incentivar o
culto ao corpo mas, ao mesmo tempo, de rotular de “fúteis” ou “desocupadas” as mulheres
que aderem a ele. Decorre também da comentada tendência, estimulada pela mesma razão
descrita acima, de vincular a prática de exercícios físicos à saúde e não à busca de um corpo
perfeito. Vale lembrar que o discurso da saúde prega que o correto é se exercitar três vezes
40
As atendentes da recepção são orientadas a fornecer apenas um tíquete por aluno.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 104
por semana, cerca de uma hora por dia, e as mulheres sabem disto e “fazem de conta” que
incorporam o discurso.
Através de uma tabela
41
, podemos ver as atividades físicas preferidas pelas setenta
mulheres que gravaram entrevista:
Tabela 2 - Atividades Físicas Realizadas
Mulher 03 29 musculação, esteira, bicicleta, ginástica e alongamento
Mulher 04 18 musculação, spinning
Mulher 05 22 Tudo que você puder imaginar eu já fiz
Mulher 06 19 musculação, spinning, esteira
Mulher 07 39 Yoga, step, abdominal, alongamento, spinning.
Mulher 12 33 natação, dança, local e alongamento
Mulher 14 34 Body pump, body step, power jump, RPM, Abdomen
Mulher 16 36 corrida, spinning, bicicleta e musculação
Mulher 20 33 Musculação e aeróbico
Mulher 21 44 Danço e caminho, eu ando muito
Mulher 22 30 balé clássico, localizada e musculação, corrida e alongamento
Mulher 24 18 natação, capoeira e ginástica localizada
Mulher 26 19 dança, cardiovascular, alongamento, e ás vezes, natação
Mulher 27 18 Musculação
Mulher 29 54 Bodypump, balance e ioga
Mulher 30 57 Bodypump, spinning, body Jan, dança do ventre
Mulher 31 54 alongamento, pilates e musculação
Mulher 32 33 aeróbico, local e bodypump
Mulher 33 35 Dança, musculação
Mulher 34 33 dança, bike, hidroginástica e musculação
Mulher 35 36 body pump, body step, body balance, body combat, alongamento, jump fit, step,
etc
Mulher 36 45 musculação, alongamento e aeróbico
Mulher 38 48 Natação, hidro e dança
Mulher 39 58 aeróbico, musculação e pilates
Mulher 40 32 aeróbico, dança e musculação
Mulher 41 19 Cardiovascular e musculação
Mulher 42 Body pump, body balance, musculação, aeróbica, prannaball, ioga, alongamento
Mulher 43 39 pedalar, musculação e corrida
Mulher 44 aebica, localizada
Mulher 45 43 alongamento, musculação e aeróbico
Mulher 45 40 alongamento, musculação e aeróbico
Mulher 47 40 spinning e pump
Mulher 49 27 Pump, jump, spinning, step, abdominal, corrida
Mulher 51 34 corrida, spinning, bicicleta
Mulher 53 29 Corrida e musculação
Mulher 54 26 Musculação, spinning, natação, aeróbica
Mulher 55 44 flexibilidade, musculação
Mulher 56 57 musculação, cardio
Mulher 57 28 musculação, futebol
41
A pesquisadora tentou organizar os dados em um gráfico, mas considerou que como as mulheres fazem muitas
atividades ao mesmo tempo, ficaria difícil mensurar isto por porcentagens, sem contar, que ao
convertermos todos os dados qualitativos em números, perdemos o perfil individual de cada mulher. Vale
ressaltar que, para diminuir a “poluição visual” de uma tabela já extensa, optamos por classificar somente
as mulheres que informaram as atividades que praticam no questionário fechado, deixando de fora as que
não responderam.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 105
Tabela 2 - Atividades Físicas Realizadas
Mulher 58 27 dança do ventre, aeróbico e musculação
Mulher 59 40 bodypump, body step, body jump, musculação.
Mulher 60 42 bodypump, caminhada e transport
Mulher 61 27 Abdominal, alongamento, body balance, esteira, bicicleta
Mulher 64 40 Musculação, local, aeróbica, body balance
Mulher 65 59 Bodypump, transport, body balance, esteira, Jump Fit.
Mulher 66 dança do ventre, aeróbica, local, musculação
Mulher 67 dança do ventre, Jump Fit, aeróbico, musculação, alongamento e vou tentar
encaixar ioga
Mulher 68 34 bodypump, spinning, dança do ventre, aeróbico, balé clássico, abdômen e
alongamento
Analisando os dados da tabela e os gráficos, podemos ver que as mulheres fazem uma
série de atividades físicas e que combinam atividades de cardiovascular com aulas
localizadas, bem como musculação e danças. O ritmo de atividades não é necessariamente
reduzido entre pessoas mais velhas; por exemplo, podemos citar Mulher 65, 59 anos, que faz
Bodypump, Transport, Body Balance, esteira, Jump Fit, indo à academia cinco ou mais vezes
semanais; ou Mulher 42, 63 anos que também vai todos os dias da semana e faz Body Pump,
Body Balance, musculação, aeróbica, Prannaball, ioga, alongamento. Mulheres entre 30 anos
e 40 também são assíduas e diversificam as atividades, como é o caso de Mulher 14, 34 anos,
que vai os cinco dias da semana e faz Body Pump, Body Step, Power Jump, RPM, abdômen.
Ou seja, o ritmo de atividades é intenso, tanto em termos de dias, quanto de atividades.
Estamos muito longe aqui da idéia de ginástica leve, apregoada nos anos vinte. Naquele
período, como vimos, era bem grande a importância dada à ginástica, mas ainda assim,
incomparável com o que ocorre no presente. A partir dos anos de 1980, com a cultura do
corpo, temos uma transição dos exercícios leves e terapêuticos para exercícios intensos, que
têm a finalidade de modificar muito mais profundamente o corpo do que ocorreria no passado.
Schump (1997) cita um trecho da revista Sports, no qual as mulheres são aconselhadas a
optar pela dança clássica que, seguida da ginástica leve, seriam as atividades mais indicadas
às mulheres: A graça feminina é como um imã secreto, encanto mágico que num sorriso,
num gesto, seduz e cativa. A educação sica feminina deve, pois, visar principalmente este
traço característico do sexo (...) A mulher não necessita de músculos de Hercules. Os
exercícios de estética, a harmonia das formas, a graça dos movimentos são próprios e
característicos da fisiologia feminina (...)” (Sports, janeiro de 1920, apud Schump, 1997).
um conselheiro da época e escritor de artigos das citadas revistas, Fernando de Azevedo, diz
que a terceira atividade recomendada às mulheres é a caminhada, mas de curta distância, pois
visa mais o aspecto higiênico das saídas ao ar livre do que o trabalho muscular.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 106
Mudou a época, mudaram os costumes. O que era intenso sessenta anos atrás seria
considerado “mínimo” para as mulheres de hoje. A atividade física feminina o se presta
mais a este caráter higiênico e nem obedece tão rigidamente às fronteiras entre atividades
físicas masculinas e femininas. É claro que, atualmente, ainda inúmeras segmentações de
gênero entre malhadores homens e malhadoras mulheres; como no passado, os homens
continuam a trabalhar mais as partes superiores do corpo (braços, tórax, peito, ombros) e as
mulheres, as inferiores (pernas e glúteos); as mulheres também não buscam ficar tão
musculosas quanto os homens. No entanto, a distinção entre mulher/ginástica leve X
homens/esforço muscular, definitivamente não faz mais parte do universo dos bodybuilders.
Mesmo entre as mulheres que optam pela dança clássica como atividade principal, como é o
caso de Mulher 22, mesmo assim, um desejo de trabalhar os braços através de outras
atividades, como a musculação, pois com ela se possível adquirir maior tônus muscular.
Esta diversificação e intensificação das atividades físicas femininas deve-se aos próprios
modelos de corpo e de beleza em geral que as mulheres visam alcançar.
Bem, e quais são eles?
b) MODELOS DE CORPO E BELEZA
Numa sociedade multirracial como a brasileira e num cenário de globalização, podemos
detectar vários tipos de constituição corporal e facial, bem como várias concepções do que se
considera belo ou feio. No entanto, dois pontos parecem convergentes: o primeiro refere-se à
importância da beleza na atualidade. Algumas pesquisas norte-americanas
42
e outras,
brasileiras, como a de Lucila de Sousa Campos, trabalham com a importância da beleza na
seleção de parceiros, através da análise das mensagens de sessões como a “Classiline”
43
, do
Jornal Folha de S.Paulo. Um exame do número de respostas das caixas-postais revelou que as
mulheres que anunciaram beleza receberam mais telefonemas em comparação com aquelas
que não anunciaram este atributo. Além dos estudos científicos, um passeio pelos
supermercados, shoppings centers e drogarias, assim como uma análise dos comerciais
televisivos nos mostra uma avalanche de produtos de beleza e de mensagens enfatizando a
importância do “estar bonita”. Além disto, várias características femininas têm sido
postuladas como ideais e acentuadas pela mídia e pelas cirurgias plásticas.
42
Tais como a de Erich Goode, “Gender and Courtship entiltlement: Responses to personal Ads”, Sex Roles, 34,
141-69, 1996; e a de M. W. Widerman, “Evolved Gender Differences in mate Preferences: Evidence fron
Personal Advertisement”, Ethology and Sociobiology, 14, 331-52, 1993.
43
O jornal em questão (assim como vários outros) reserva uma parte para que mulheres e homens possam deixar
mensagens (que definem o tipo de parceiros que buscam, bem como listam as qualidades pessoais que
possam atrair eventuais interessados).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 107
O segundo refere-se à evidência, segundo Queiroz e Otta, da existência de “alguns
padrões universais, como sugerem certas evidências de similaridades interculturais no
julgamento da beleza facial e corporal” (Queiroz e Otta, 2000: 38/39). Segundo os autores,
características que lembrem crianças (olhos grandes e arredondados, nariz pequeno, testa
ampla, bochechas salientes) são bem vindas entre as mulheres. As operações plásticas de rosto
visam, entre outros, corrigir assimetrias na face, tais como nariz grande ou adunco.
Nas últimas décadas parecemos assistir a um embate entre alguns modelos corporais, o
que dificulta ainda mais a definição do que é ou não considerado belo. No entanto, em termos
de modelo corporal, quando questionadas sobre o que seria um corpo perfeito, as mulheres
oscilaram entre dois modelos principais: a) as que classifiquei como bodybuilders, que
querem um corpo magro, mas malhado, com músculos aparecendo, b) as que optam por um
corpo bem magro, cujo referencial é o corpo das modelos
44
.
Utilizei duas estratégias para tentar apreender as concepções de beleza e de corpo ideal
entre as pesquisadas: 1) indagar, através de questionário fechado, as partes do corpo de que
mais gosta; as partes do corpo às que mais atenção; as partes do corpo que gostaria de
mudar, as cirurgias plásticas que faria e o que mais inveja nas outras mulheres; 2) através da
entrevista gravada, indagá-las sobre o tipo de corpo que consideram bonito e o tipo de corpo
que percebem como padrão.
Quando questionadas através do questionário fechado sobre as partes do corpo que mais
dão atenção, que mais admiram no próprio corpo e que mais invejam nas outras mulheres,
obtivemos os seguintes resultados
45
:
Tabela 3 - Partes Corporais
Entrevis-
tada
Idade Partes do
corpo
que mais
gosta
Que dá
mais
atenção
Partes do corpo
que gostaria de
mudar
Cirurgia
plástica
que faria
Mulher 1 30 Peitoral,
tórax e pés
Seios Coxas, queria que
fossem mais grossas,
glúteos mais volumosos
e torneados
Lipo
Mulher 2 31 Ombros,
gêmeos
abdômen Glúteos, diminuir o
tamanho, a celulite,
definir o abdômen
inferior
Lipoescultura
e silicone
Mulher 3 29 Braços Pernas e O bumbum, porque é Lipo
44
o houve relatos de mulheres fisioculturistas, com exceção de mulher 61, que o chega a sê-lo, mas que
gosta de músculos mais aparentes que as outras mulheres.
45
Os dados foram colhidos através de questionário fechado e as mulheres podiam indicar livremente, por
escrito, as partes do corpo que mais gostavam no seu corpo, mais davam atenção, que gostariam de
modificar e que invejavam em outras mulheres. Igualmente ao caso anterior, a pesquisadora optou por
manter os dados em tabela, ao invés de condensá-los em gráficos.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 108
Tabela 3 - Partes Corporais
Entrevis-
tada
Idade Partes do
corpo
que mais
gosta
Que dá
mais
atenção
Partes do corpo
que gostaria de
mudar
Cirurgia
plástica
que faria
bumbum grande
Mulher 4 18 Cabelo,
rosto e colo
Barriga
Lipo
Mulher 5 22 Barriga Diminuir nariz e
aumentar seio
Nariz e seio
Mulher 6 19 Mãos e
barriga
semi-
definida
Barriga Redução de peito Redução de
peito
Mulher 7 39 Quadril,
ombros
Rosto Seios flácidos Seios, nariz e
orelha
Mulher 8 25 Rosto,
bumbum,
coxa,
panturrilhas,
mãos
Bumbum,
coxa, rosto
Os braços, gordura no
tríceps
Mulher 9 27 Colo, mãos Barriga A barriga, é feia e gorda
Lipoaspiraçã
o
Mulher 10 18 Mãos e
costas
Abdômen e
glúteo
Pernas, engrossá-las,
são muito finas
Silicone nos
seios
Mulher 11 26 Coxas
definidas
Glúteos Glúteo, tem celulite Peito e glúteo
Mulher 12 48 Pernas e
abdômen
abdômen Pneuzinhos laterais Lipo
Mulher 13 58 Pernas Barriga Emagrecer como um
todo, menos nas pernas
Lipoaspiraçã
o, pálpebras,
seio
Mulher 14 34 Pernas Barriga abdômen definir mais Lipoaspiraçã
o
Mulher 15 31 Boca e
barriga
Rosto Seios, bumbum, mais
massa muscular
Lipoaspiraçã
o
Mulher 16 36 Pés, mãos,
rosto
Cintura,
pernas,
barriga
Ombros, coxas e
flancos
Lipoaspiraçã
o no
abdômen
Mulher 17 61 Pernas
longas e
bem
torneadas
abdômen e
cintura
Peito, seios Peito, seios.
Mulher 18 23 abdômen,
coxa
Glúteo e
abdômen
Bumbum Silicone
Mulher 19 51 Olhos
expressivos
e seios
proporcionai
s
Pernas,
Glúteos
Quadril, é muito grande Lipoaspiraçã
o
Mulher 20 33 Braços
definidos
Costas e
braços
Barriga, tenho flacidez Sim, para a
barriga
Mulher 21 44 Colo,
pernas,
bumbum,
feminilidade
Seios e
pernas
Flacidez na barriga Barriga e
rosto
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 109
Tabela 3 - Partes Corporais
Entrevis-
tada
Idade Partes do
corpo
que mais
gosta
Que dá
mais
atenção
Partes do corpo
que gostaria de
mudar
Cirurgia
plástica
que faria
Mulher 22 30 Pernas
definidas
Rosto, cabelo
e pernas
Seios, ficaram flácidos Prótese nos
seios
Mulher 23 48 Pernas,
abdômen,
Glúteos
Nada Seios e rosto
Mulher 24 18 Pernas
definidas
Peito e
abdômen
abdômen ,porque tem
gordura
Lipoaspiraçã
o
Mulher 25 19 Boca
carnuda
Rosto Nariz e barriga Plástica no
nariz
Mulher 26 18 Cabelo,
olho, boca,
cor e bunda
Cabelo Não, apenas perder peso
enrijecer
Não faria
Mulher 27 18 Pernas,
olhos
Pernas Seios Silicone
Mulher 29 54 Ombros
largos
Todo o corpo
Barriga, tem celulite e
flacidez
Rinoplastia e
lifting
Mulher 29 57 Seios,
pernas e
rosto
Rosto, mãos
e pés
Bunda grande Todas que eu
achasse
necessárias
Lourdes 31 54 Seios, colo
bonito
Traseiro o traseiro Não sei
Mulher 32 33 Rosto Barriga Barriga, é grande Barriga
Mulher 33 35 Pés, mãos ,
olhos
Barriga Seios, por causa da
amamentação
Seios
Mulher 34 33 Rosto, seios,
altura
Barriga Barriga, porque é
flácida
Barriga e
seios
Mulher 32 36 Pernas
torneadas e
musculosas
Pernas,
braços e
peitoral
Seios, são muito
volumosos
Não faria
Mulher 66 45 A todas Plástica no rosto Olhos
Mulher 37 33 Pernas,
costas
abdômen Cintura Redução de
mama
Mulher 38 48 Pés e mãos Rosto, tronco
e membros
Barriga e cintura Lipoescultura
Mulher 39 58 Postura
segura
Barriga Não Não
Mulher 40 32 Cintura,
colo
Pernas e seio Seios Prótese nos
seios e
lipoaspiração
Mulher 41 19 Em geral Barriga Não Não
Mulher 44 Pernas Boca, pernas,
geral
Nada Se precisar
Mulher 43 39 Pernas Pernas e
Abdômen
Seios Facial
Mulher 45 43 Pernas
longas e
bem
definidas
Pernas e
Abdome
Seios mais firmes Lipo
Mulher 46 42 Seios e
pernas
Pernas,
braços
Bumbum Abdome
Mulher 47 40 Pernas Bumbum, Diminuir a mama e os
Lipoescultura
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 110
Tabela 3 - Partes Corporais
Entrevis-
tada
Idade Partes do
corpo
que mais
gosta
Que dá
mais
atenção
Partes do corpo
que gostaria de
mudar
Cirurgia
plástica
que faria
grossas braços culotes e pálpebra
Mulher 48 40 Cabelo,
pernas
Glúteos Peito
Mulher 49 27 Pernas,
Glúteos,
rosto
Pernas,
bumbum e
peito
Não Não
Mulher 50 26 Olhos,
expressão
Cabelo Sim, seios,
lipo
Mulher 51 34 De tudo Barriga,
quadris
Seios
Mulher 52 48 Nádegas,
Pernas
Pernas Abdômen, não é
definido
Não
Mulher 53 34 Costas,
barriga,
Pernas
abdômen Seios maiores Silicone nos
seios
Mulher 54 26 Pernas,
Glúteo,
abdome
Costas, tem gordura Todas
Mulher 55 44 De tudo Nádegas e
pernas
Não Não
Mulher 56 57 Cintura,
barriga
Pernas,
braços
Barriga, ficou diferente
depois da gravidez
Lipo
Mulher 57 28 Braços,Pern
as
Braços,Perna
s
Só melhoraria, não
mudaria
Prótese nos
seios
Mulher 58 27 Pernas
torneadas
Glúteos
Mulher 59 39 Seios e costas, diminuir
Mulher 60 40 Abdome Rosto, Pernas
Barriga, coxa Não faria,
sofri muito
com uma
Mulher 61 27 Seios, lábios
Rosto Não Não
Mulher 62 42 O conjunto Rosto e mãos
Aumentar massa
muscular
Silicone nos
seios e no
bumbum
Mulher 64 39 Olhos e
Pernas
Barriga e
coxas
Mulher 65 59 Pernas Pernas abdome Lipo
Mulher 68 34 Mãos,
sorriso
Pernas Definir bumbum, ter
mais cintura. Seios
caídos
Lipoescultura
,levantaria os
seios
Mulher 71 42 Perna, rosto
e bunda
Pernas e
Glúteo
Abdômen, depois das
crianças teria que
mudar
Seios
Mulher 72 57 Olhos Dentes Barriga Todas
Mulher 73 35 Muitas Todas As
necessárias
Mulher 74 Braços,
pernas
Não Não
Mulher 75 34 Costas,
busto
Glúteo e
abdome
Diminuir a cintura Lipoaspiraçã
o
Mulher 76 35 Pernas, Todas Não Sim
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 111
Tabela 3 - Partes Corporais
Entrevis-
tada
Idade Partes do
corpo
que mais
gosta
Que dá
mais
atenção
Partes do corpo
que gostaria de
mudar
Cirurgia
plástica
que faria
Bumbum,
ombros,
costas
Mulher 79 33 Pernas abdome Bumbum, estômago,
seios
Lipo, prótese
nos seios
Mulher 80 35 Seios Nenhuma
específica
Ser mais alta, ter pernas
mais finas
Não
Dentre as partes preferidas pelas mulheres em si mesmas, a perna foi uma das mais
citadas (39 entrevistadas, 48,75%) e as características principais que a colocam neste posto
são a facilidade em trabalhá-las na ginástica e a firmeza. As pernas também são citadas
também como uma das partes às quais as mulheres mais dedicam atenção, sendo ressaltadas
por 24 mulheres (30%). Talvez isto se explique devido a maior facilidade de trabalhar os
músculos das pernas, que além de maiores, são solicitados em atividades rotineiras, como
andar, subir escadas, etc, estando, portanto, em constante atividade. Vale lembrar também que
desde o advento da mini-saia, as pernas passaram a ser foco da atenção masculina. Mãos,
seios e glúteos aparecem seguidos nas preferências femininas, com respectivamente 8 (10%),
9 (11,25%) e 9 (11,25%) indicações. O restante da preferência divide-se em braços, cabelos,
colo, ombros, pés, costas, com pouco ou nenhum destaque para as outras partes. O rosto,
olhos e boca somam 18 (22,5%) indicações. Os olhos, nas falas femininas aparecem
destacados mais por sua expressividade do que pela cor. a boca aparece principalmente
acentuando-se os lábios, que são valorizados quando carnudos, numa clara referência á
sexualidade, ainda mais em tempos em que injeção de silicone nos lábios anda tão em voga, já
que as mulheres associam lábios carnudos a uma boca sexy.
Um dado importante é que na lista de preferências femininas a cintura recebeu apenas
uma indicação, mas quando questionadas sobre a parte do corpo que gostariam de mudar, esta
região, também indicada como parte lateral do abdômen, ou apenas abdômen é absoluta
campeã, totalizando 30 (37,5%) indicações no quesito parte do corpo que mais atenção.
Das entrevistadas, 24 ( 30%) mulheres gostariam de mudar esta região e 26 (32,5%) delas
indicam a lipoaspiração ou a lipoescultura como a cirurgia plástica que mais gostariam de
fazer. As razões femininas alegadas é que se trata da região que mais acumula gordura,
responsável pelos temidos e odiados “pneuzinhos”, fazendo inclusive com que as mulheres,
mesmo as menos simpatizantes da plástica manifestem desejo de modificá-la através de
cirurgias. Ressalta-se que a região muitas vezes ficou flácida e apresenta excessos de gordura
localizada:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 112
“A barriga é o que mais me frustra, acho que praticamente eu não vou à praia por causa
da minha barriga, que mais me incomoda, até quando eu me relaciono eu não me sinto
muito á vontade, com amigos e amigas, isto é um problema para mim” (Mulher 6, 19
anos)
“O pneuzinho lateral, eu acho que ele me incomoda, eu gostaria de lipoaspirar esta
parte, porque ele é um dos pontos que pegam e não tem como tirar mais, ele sempre
estará lá, é impressionante, pode reparar, mulher que teve filho...o pneuzinho...” (Mulher
12, 48 anos)
“É importante para mim não ter barriga, eu odeio estar barriguda, odeio!” (Mulher 13,
59 anos)
“Você nunca vai me ver de top, porque eu tenho uma gordurinha na barriga que me
incomoda, que não sai, então eu não gosto de abaixar, dobrar o corpo e ela aparecer, me
incomoda” (Mulher 14, 34 anos)
“Só que eu sempre tive uma barriga, abdômen, sempre, eu fui consultar um cirurgião
plástico e ele falou ´olha, este tipo de gordura localizada é uma herança genética, sua
mãe tem, naturalmente a mãe dela também teve, e isso, não vai sair com ginástica
nunca´, e como eu sempre fiz exercício físico, a vida inteira, mas sempre tive aquela
dobra na barriga quando você senta, e isso me incomodava (...). Eu fiz uma
lipoaspiração, fiz só no abdômen, fiquei super feliz” (Mulher 16, 36 anos)
“Eu tenho uma gordura localizada na barriga que todos os médicos disseram que eu
não vou perder com a ginástica, não tem como, é o meu biótipo, a minha mãe também
tem uma barriga praticamente idêntica,(...) às vezes eu dou uma disfarçadinha (...)”
(Mulher 20, 33 anos)
“Eu faria na barriga, porque é uma coisa que me incomoda, não é estético, eu tive
rompimento da musculatura na gravidez, então quer dizer, a minha barriga não vai sair
sem cirurgia, mesmo se eu fizer regime, por mais que eu emagreça, só a cirurgia resolve.
Mas mesmo que eu não precisasse, que o meu caso não fosse cirúrgico pra barriga, eu
faria, porque é uma coisa que me incomoda bastante” (Mulher 32, 33 anos)
“Um corpo perfeito é um corpo sem pneuzinhos” (Mulher 34, 33 anos)
Outra parte do corpo citada pelas entrevistadas são os glúteos, que são alvo predileto de
atenção de16 mulheres (20%), seriam modificados por 13 (16,25%) mulheres e causam inveja
feminina em 15 (18,75%) casos.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 113
Esta região recebe constante atenção, mais até do que a declarada pelas mulheres no
questionário fechado. É comum ver mulheres realizando exercícios de agachamento ou de
definição dos glúteos com caneleira, coisa que não acontece entre os homens, que por
diferenças ligadas ao gênero, eles preferem trabalhar as partes superiores do corpo. A
pesquisa confirma que o Brasil ainda é, segundo uma das entrevistadas, “o país da bunda” e
que esta deve ser firme. Não é à toa que toda revista ligada à estética efatiza tratamentos e
exercícios para “turbinar” e enrijecer esta região, como podemos ver no exemplo a seguir:
No entanto, como é uma região de intervenção
cirúrgica mais difícil, poucas são as entrevistadas que a
mudariam com cirurgias plásticas (só três entrevistadas
a modificariam). O uso de prótese de silicone nas
nádegas ainda é pouco difundido entre nós, mas
acredito que se a importância dada ao corpo continuar
crescente, logo um número maior de mulheres vão
aderir à prática.
Sabino (2002) diz que esta preocupação em
otimizar o tamanho e a forma das nádegas foi chamada
por Gilberto Freyre como “dignificação das ancas”
(1986). Segundo o autor, na sociedade brasileira a
mulher com ancas e nádegas mais salientes seria
considerada mais feminina e teria mais vantagens no
jogo de sedução. Isto aliado à técnica corporal de andar mexendo as cadeiras, projetando os
seios para frente e empinando as nádegas, conferiria a estas mulheres elevado valor sexual
para os homens (Sabino, 2000). para Queiroz e Otta, as razões para esta escolha remetem
ao nosso passado evolutivo: “Cintura e nádegas são atributos unicamente humanos. Os
grandes símios chipanzés, orangotangos e gorilas não possuem nem cintura, nem
nádegas. Estas últimas evoluíram por causa da rotação do sacro, do desenvolvimento da
pelve e do músculo ‘glúteos maximum’ para a postura bípede. A cintura foi criada pelo
‘ilium’ curto, pela vértebra lombar aumentada, pela curvatura lombar da espinha, enfatizada
pelo acúmulo de gordura subcutânea no ‘fascia glúteo’. Assim, a RCQ [relação cintura
quadril] pode ter significado funcional único na espécie humana. Os homens detectam este
sinal nas mulheres e o utilizam para fazer julgamentos sobre a atratividade.” (Queiroz e
Otta, 2000, 46).
Figura 1 - Glúteos e mídia
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Os seios também aparecem com muito importantes na construção da auto-estima
feminina. Recentemente, em uma aula de abdominal, uma aluna comentou que não poderia
fazer alguns exercícios, pois tinha acabado de colocar silicone nos seios e o professor de
ginástica perguntou quantas aqui puseram silicone?” De cerca de dez alunas presentes,
duas não levantaram as os! No entanto, como é impossível modificar a forma dos seios
com ginástica, sendo possível apenas tonificar o músculo peitoral, que ainda assim fica
coberto pela gordura, esta parte não é muito trabalhada pelas mulheres, que preferem corrigi-
la, caso necessário, com próteses de silicone, aspecto que abordaremos posteriormente.
Um dado que não foi comentado com ênfase nas entrevistas, mas que é perceptível ao
primeiro olhar, é que na concepção de beleza os cabelos assumem grande importância:
valoriza-se muito os cabelos com aspecto sedoso, que tenham brilho e, sobretudo, que sejam
lisos. Nos anos de 2004/2005, vários tratamentos capilares surgiram com a promessa de
hidratar os fios e alisá-los: cauterização térmica, escova progressiva, escova definitiva, entre
outros. E as mulheres da academia aderiram em peso! Muitas vezes, antes das aulas,
discutíamos a polêmica sobre os dois últimos métodos, pois ambos prometem cabelos mais
lisos, que usam em sua fórmula queratina e formol e veiculou-se muito na imprensa que o
formol poderia causar câncer. As questões variavam sobre a veracidade da informação e se
valeria a pena ou não correr o risco em função da estética. As opiniões se dividiam: quem
havia feito encantava-se com os resultados imediatos, mas se preocupava com os futuros, mas
dia a dia crescia o número de mulheres que aderiam a prática e chegavam à academia com
cabelos esvoaçantes, que pareciam saídos de comercial de televisão. Uma delas, Mulher 40,
que por ser dentista e lidar com formol não acreditava nos riscos, chegou um dia na aula de
dança muito feliz com seu cabelo alisado, dizendo que ele era antes muito volumoso e lhe
dava muito trabalho; quando outras mulheres a bombardeavam com advertências, ela
respondeu “Antes morrer de câncer do que de tristeza de ter o cabelo que eu tinha!”.
Não podemos esquecer que embora vivamos o mito da democracia racial, cabelos
ondulados ou crespos são associados às característica fenotípicas dos negros e, portanto,
pouco valorizados nos nosso imaginário
46
. Como destacamos anteriormente, na década de
1920 fomos seduzidos pelo modelo de mulher que vinha da Europa, muitas de cabelos loiros e
lisos, que rapidamente viraram símbolo de status. Dentre as modelos da moda e atrizes, o
cabelo liso faz muito mais sucesso que cabelos encaracolados, e várias delas, quando
alcançaram sucesso profissional, alisaram as madeixas, como por exemplo, as cantoras
Daniela Mercury, Ivete Sangalo; as atrizes Débora Bloc, Cláudia Raia, Cristiane Torloni,
46
Vale lembrar que muitas pessoas referem-se ao cabelo crespo como “ruim”.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Luiza Tomé; a jornalista Fátima Bernardes, a modelo Luma de Oliveira... A lista poderia
prolongar-se infinitamente... O cabelo liso parece ser associado à idéia de mulher elegante e
bem sucedida, sendo, portanto, valorizado entre as pesquisadas.
Na segunda etapa para tentar estabelecer os padrões corporais e de beleza, incentivei as
mulheres a comentar as respostas dadas no questionário fechado, a partir de depoimentos
falados. Vejamos algumas falas femininas sobre o modelo de corpo que elas almejam
alcançar:
“Eu sempre fui magra e pretendo continuar sempre magra, portanto eu faço bastante
aeróbico, eu nem pretendo ficar musculosa, é mais manter um corpo, ficar mais rígida,
estas coisas. Um corpo perfeito pra mim significa um corpo com pouca gordura e mais
massa muscular” (Mulher 1, 30 anos)
“Um corpo harmonioso, sem muita gordura. Hoje a mulher tem que ser definida, não
pode ter uma gordura e antigamente era uma Marilyn Monroe, mais cheinha” (Mulher 3,
29 anos)”.
“Um corpo perfeito deve ter muitos músculos e pouca barriga. Isto em 100% das
mulheres, dá uma sensação de missão cumprida” (Mulher 5, 22 anos).
“O corpo ter pouca gordura. Eu queria emagrecer e ficar mais tonificada” (Mulher 9, 27
anos)”.
“Ah, um corpo com o nimo de gordura, massa muscular, tônus muscular, é isso.”
(Mulher 10, 26 anos).
“O padrão de corpo perfeito é magra, mas com peito” (Mulher 19, 51 anos).
“Eu acho que a minha opinião bate com a de todo mundo, tem que ser aquela magra,
sem barriga, ereta... Que vo veja que tem uma atividade sica, que tem uma postura,
eu acho que isto conta muito, é o plano de todo mundo, ser uma pessoa esbelta, fina, eu
acho que isto conta” (Mulher 32, 33 anos).
“É magra, mas malhada” (Mulher 69, 45 anos)
“Sem flacidez e com tudo no lugar. Um corpo perfeito significa ter bunda, ter peito
empinado, ter cintura, ser dura, ter uma estatura razoável” (Mulher 47, 40 anos).
“Olha, eu quero um corpo bem tonificado, nada flácido, o corpo um pouco mais
durinho, mas nada muito definido, muito grande, magra definida, magra tonificada.”
(Mulher 49, 27 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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“Eu quero o que todo mundo quer, um corpo magro, mas malhado” (Mulher 70, 30
anos)
De uma amostra de oitenta mulheres, cinqüenta e uma (63,75%) elegeram o corpo
magro e malhado como seu ideal de beleza. Outras vilãs das mulheres são a celulite e as
estrias, citadas por várias delas. O que isto significa? Acredito que como hoje a exposição do
corpo está maior, tanto no sentido do corpo estar mais em evidência, quanto de estar mais
exposto, as mulheres querem um corpo sem gordura, até porque aprenderam a perceber
gordura como algo negativo. É preciso, então, para desnudar o corpo, ou mesmo para vesti-lo
com roupas que marquem as formas, livrá-lo de adiposidades, no vocabulário nativo
chamadas de “pneuzinhos”. Mas isso não basta, pois é preciso também exibir um corpo
tonificado, firme, um corpo que se diferencie de um corpo o malhado, não modificado pela
cultura física. Embora os rígidos padrões possam levar à busca de uma magreza extrema,
como veremos mais adiante, no consenso geral o corpo feminino deve ter alguma musculatura
aparente. Daí a escolha das mulheres por atividades que promovam gasto calórico, como Body
Step, Body Jump, Jump Fit e da musculação, do Body Pump, das aulas de local e abdômen,
que atuam no sentido de fornecer tônus muscular. De todo modo, é preciso “malhar” para
alcançar o padrão de corpo que se quer.
Segundo Novaes, a própria expressão “malhar” é significativa, pois vem de malhar
com esforço o ferro para que ele se amolde a novas formas (Novaes, 1997: 23). que aqui,
trata-se de malhar o corpo, pedaço por pedaço, parte por parte, “consertando” as partes ruins
ou substituindo-as por novas (no caso da plástica), o que nos leva novamente a idéia de que o
corpo do humano atual é fragmentado, como vimos na discussão sobre a modernidade (ver
item 3.3 -). Cada parte dele, embora se conecte a um todo, é única, a ponto do músculo se
configurar quase que como uma unidade e entidade autônoma, ou, nas palavras de Travaillot
(1998), “o último ‘must’ é o músculo. O corpo ideal é o musculado, firme, flexível, dinâmico
e resistente” (Travaillot, 1998: 95).
Não se come para manter a saúde como um todo, mas para alimentar o músculo, e
também não se come qualquer coisa, é a quantidade certa de proteína e carboidrato para que
Ele, o músculo, cresça. Inclusive, é neste processo de fragmentação que devemos entender a
musculação para a maioria das mulheres. Em geral, estas não gostam de musculação,
preferem atividades mais grupais, como aulas de ginástica e cardiovascular, mas aderem à
musculação por necessidade, que sabem que será ela que dao tônus muscular desejado.
E, geralmente, não a tem como atividade física principal, ela é apenas um complemento que
vai trabalhar de modo mais intenso as partes femininas consideradas atrativas, como pernas e
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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glúteos. Aqui a musculação entra menos como atividade prazerosa do que como atividade
necessária, e seus objetivos são muito mais específicos e caminham na direção de dar à
mulher os recursos para se tornar malhada” e, portanto, “poderosa” aos olhos dos homens e
das próprias mulheres.
Embora (quando questionadas sobre o corpo que queriam alcançar) a maioria tenha
dado respostas que adjetivam o corpo malhado, magro, tonificado –, ressaltando
características estéticas como definidoras do corpo ideal, também encontramos respostas que
tendem a salientar outros pontos, como a saúde, a funcionalidade do corpo e a sensação de,
simplesmente, gostar dele, considerá-lo harmônico e equilibrado mesmo quando ele não
corresponda aos padrões:
“Ah, assim, eu acho que é um corpo que obedeça àquilo que você quer fazer, entendeu?
De repente você quer caminhar, mas vonão está em condições, porque você um
pouco acima do peso (...) então acho que um corpo legal é aquele que condições pra
você fazer aquilo que você quer, você pra se sentir bem (...)” (Mulher 57, 28 anos)
“Você se sentir bem, mas com saúde (...) Acima de tudo, se eu fosse um pouco mais
gordinha eu iria para uma academia, ia fazer alguma coisa para a minha saúde. Para
problema do coração, colesterol, etc, mas não porque tem que ficar bonita porque a
sociedade me cobra que tem que ser bonita. Eu faço tudo tipo pra mim, nem para a
sociedade nem para ninguém” (Mulher 58, 27 anos).
“Eu acho que ... um corpo bonito ... é aquele que a pessoa se sente bem, tá, mas por
exemplo, eu posso falar para vo isto, mas as pessoas que passam na rua vão falar: ah,
às vezes eu não vou achar aquele corpo bonito, às vezes porque tem uma barriguinha,
alguma coisa. Mas se for parar para pensar, é isto, um corpo em que você se sente bem,
entendeu? Porque se a pessoa tem aquela barriga mas ela não liga, ela anda de top, ou
ela seque uma postura adequada ela não vai ... ela mostra que ela está bem com aquilo
ela vai passar aquilo para a gente entendeu?” (Mulher 26 )
“É o que consegue integrar-se harmonicamente com a alma, tornando-se belo” (Mulher
63, 42 anos)
“Mente sã, coração tranqüilo, corpo em sintonia. Perfeição é uma utopia” (Mulher 21,
44 anos)
Nestas falas a beleza não é percebida tanto em termos do corpo se adequar a uma forma
preconcebida, é mais um estado de espírito que associa bem estar físico ao equilíbrio
emocional, rompendo em parte com os modelos hegemônicos que definem a mulher bonita
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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como magra, malhada, tonificada. Mas, mesmo entre estas mulheres, às vezes a estética vai se
infiltrando no discurso, como algo que elas não gostariam de valorizar, mas que também o
conseguem abstrair de todo.
com relação à pergunta “existe um padrão de corpo perfeito e de beleza difundido
pela mídia?”, as respostas foram unânimes: todas as mulheres, mesmo as que estão em busca
de outras formas de beleza e que ressaltam conexões entre beleza e espiritualidade,
perceberam e apontaram que o padrão hegemônico é mesmo a “magra malhada”:
“Meninas mais magras, pode ver, eles não colocam meninas gordinhas pra fazer uma
propaganda de biquíni, então o modelo de beleza é em forma, sem excesso de gordura,
com bom tônus muscular (...)” (Mulher 2, 31 anos).
“Ser aquela mulher magra, com peito, com bunda, sabe, que todo mundo fala ‘nossa, é
ela’. Claro que é errado a gente seguir um padrão corporal, mas na verdade, todo
mundo segue. Quem colocou este padrão foi a mídia. Eu acho que ela estabeleceu um
tipo de pessoa e as pessoas vão seguindo este tipo, por exemplo, a mulher bonita hoje é a
que não tem barriga, que tem peito e bunda, até as modelos estão assim, que nem a
Gisele Bündchen, que é a mais famosa, é assim, eu acho que a mídia coloca as pessoas
deste jeito e aí o povo em volta vai e segue a mídia”. (Mulher 4, 18 anos).
“Mulheres altas, magras, fora da média da população, eu acredito” (Mulher 9, 27 anos)
“Eu acho que é o corpo definido. É o corpo definido, malhado, da mulher sem nenhuma
gordura, sem nenhuma celulite. Magra sem nenhuma celulite, é isso.” (Mulher 26, 18
anos)
“Qual o modelo? Bom. O modelo é bunda né. A história da bunda redonda, perfeita, em
pé, tanto pro homem como pra mulher. Alguém que tenha uma bela bunda, em pé, pernas
longas... Magra. Magra. Mas tem que ter bunda e tem que ter seio né... Não é uma
Gisele Bündchen magra, mas não tem muita bunda. Ela não tem muito as curvas assim
que o brasileiro gosta né... gosta até de culote... eu acho isto um absurdo, mas enfim”
(Mulher 31, 54 anos).
“A mídia, as modelos, olha as meninas, elas querem ser como as modelos, magérrimas,
altas, siliconadas, a mídia acaba criando mesmo um padrão.” (Mulher 43, 39 anos)
“Ah, a magreza, a pessoa malhada, né, a pessoa de academia, a pessoa que está com um
corpo musculoso, que está com um corpo sem nada fora do lugar, sem estrias, sem
flacidez, sem celulite, sem nada disto. Eu acho que é isso que a mídia cobra” (Mulher 45,
43 anos).
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“Acho que a imprensa, as modelos, acho que várias atrizes, acho que a televisão traz
muito isso, este padrão, você por exemplo, caldeirão do Huck, você olha, eles fazem
toda uma ênfase, na salva - vidas, ela é bem este padrão de mulher gostosa, aquele
mulherão, malhada, então este é o padrão da mulher brasileira.”. (Mulher 59, 39 anos)
“Ah, sempre um corpo bonito como o da Gisele Büdchen, é o exemplo, é difícil você ver
um exemplo de pessoa obesa, ou gordinha, é difícil você ver numa capa, em qualquer
lugar ou num outdoor, é sempre uma pessoa que tem um corpo que...chama
atenção”.(Mulher 62, 27 anos)
A dia aparece nas falas femininas como sendo a
principal veiculadora de padrões estéticos, auxiliando a criar,
no imaginário, estratégias de sedução deste corpo magro e
malhado. A título de ilustração, selecionamos uma capa de
revista (Figura 2), entre outras possíveis, para exemplificar
este modelo corporal. Este fascínio da mídia se explica porque
a imagem possui uma dinâmica própria: o poder da imagem é
algo incontestável e passível de apreensão imediata. A
imagem toca diretamente os sentidos, é imediatamente captada
não pelo olhar, mas também pela emoção e pela razão.
Ela sugere uma variedade de coisas que com dificuldade
uma outra forma de apreensão do real e do imaginário
percebe e transmite, além de ter um grande poder de síntese.
Uma só imagem condensa uma série de elementos e diz muito sobre a percepção do real que a
pessoa que a registrou ou criou possui. Ela pode ser apropriada das mais diferentes formas:
pode ser um instrumento político, lúdico, artístico, etc. Através dos múltiplos elementos que
põem em cena (e também dos múltiplos elementos que deixam de pôr em cena), as imagens
constroem mitos, contam histórias, enfim, registram tempos, lugares, sentimentos,
condensando uma série de eventos e representações.
Neste caso em questão, de tão familiarizados com imagens de corpos perfeitos,
acabamos acreditando que eles são o reais, mas que contêm em si a “verdade”, ou,
melhor dizendo, nos ditam quais os modelos que devemos aceitar se quisermos ser aceitos
também. Vemos mulheres lindas na mídia o tempo todo, recebemos via publicidade virtual ou
convencional inúmeras mensagens imagéticas que sugerem que emagrecer e ser bonito é um
passaporte para a felicidade. Como as imagens são formas privilegiadas de condensar e
Figura 2 - Padrão corporal
magra - malhada
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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veicular representações sociais, não me espanta que as falas das mulheres da Cia Atlhética
remetam à mídia e falem de um corpo que, de tão perfeito, quase vira miragem.
Este corpo setão importante que interferirá na construção da auto-estima feminina,
como veremos a seguir.
4.2.3 - CORPO E AUTO-ESTIMA
Se malhar parece ser uma atividade central na vida das mulheres entrevistadas e se elas
têm clareza do corpo que querem alcançar e do corpo veiculado como ideal, cabe nos
perguntar qual o papel que os cuidados com o corpo têm no processo de construção da auto-
estima feminina. Percebi que para a maior parte das entrevistadas, “malhar” foi uma espécie
de divisor de águas entre gostar ou não gostar do corpo, levando muitas mulheres a mudar a
percepção de si e investir ainda mais nos cuidados estéticos, como alimentação, massagens,
drenagem linfática e até cirurgias plásticas. Muitas entrevistadas, antes de começarem a
“malhar” estavam num processo de abandono do corpo, não se importando muito com roupas,
recusando convites para sair, descuidando da alimentação e até mesmo, por estarem infelizes,
apresentando um certo mal-humor no trato com as pessoas, como comentou uma das
entrevistadas, Mulher 24, era assim, eu me sentia mal, como eu te falei, eu não queria sair
na rua, porque eu tinha engordado muito, eu não queria mais sair, ficava de mal-humor, hoje
não”.
Gráfico 20 - Exercício e auto-estima
Você acha que fazer exercícios mudou a sua
auto-estima?
3%
1%
33%
63%
o
um pouco
muito
o respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Segundo o gráfico 20, a prática de exercícios regulares interfere bastante na auto
estima. Para 63% ela influi na auto-estima. Para 33% ela influi um pouco. Somente 3%
responderam que não.
Embora 33% da amostra tenha assinalado que a “malhação” interfere apenas um pouco,
nas entrevistas ficou claro que isto se deve, em parte, ao fato das mulheres não terem
alcançado o padrão corporal que desejavam e menos da importância que estas atribuíam ao
corpo.
Vejamos o que as entrevistadas dizem a respeito da relação entre malhação e auto-
estima:
“Claro, porque um corpo bonito melhora a sua auto-estima e você reafirma a sua
identidade, você tem mais vontade de aparecer, de estar entre as pessoas, mesmo de se
mostrar, né, entre aspas” (Mulher 2, 31 anos)
“Muda, com certeza, muda muito a auto-estima. Se você está se sentindo bem com você,
se você está se sentindo bem com o seu corpo você fica muito mais bonita, acorda mais
feliz, quando você olha no espelho e você está se sentindo bem esteticamente, você se
sente melhor, com certeza. Então você muda, você fica mais feliz, você dorme melhor”
(Mulher 24, 18 anos).
“A roupa cai melhor, sem dúvida. Se você está gorda, nada fica bem, agora não,
qualquer coisa está bem. Se você põe uma calça, uma blusa, tudo cai bem então você se
sente bem, e isso faz com que interiormente você se sinta bem, qualquer coisinha que
você faz por fora melhora por dentro, por incrível que pareça” (Mulher 69, 45 anos).
“Você se sente em forma novamente, se esforça. Eu tenho 54 anos e o corpo muda muito
e os exercícios ajudam a modelar... Você começa a vestir roupas que você não vestia
mais não . Isso dá uma levantada boa. Mexe muito com a auto estima...” (Mulher 31, 54
anos).
“Corpo e auto-estima? Pra mim é essencial. Eu gosto, e eu gosto de me ver bem pra
mim, para os outros, assim, não me interessa. Se gostam ou não pouco me importa, cada
um tem a sua imagem das outras pessoas” ( Mulher 37, 33 anos).
“Ah, sem dúvida, a auto-estima é diretamente proporcional à beleza física e à qualidade
de vida.” (Mulher 44, idade não declarada).
“A ginástica me deixa mais confiante, eu me sinto bem fazendo ginástica, então isso
acaba refletindo em mim” (Mulher 64, 39 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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“É muito importante, você se olhar no espelho e se sentir bem, você tem que se gostar, eu
acho que foi um começo maravilhoso você se sentir bem com o seu corpo (...) Melhorou a
auto-estima. Mas o que melhorou mesmo foi a plástica” (Mulher 55, 44 anos).
“Eu me sinto muito bem quando eu faço exercício, me sinto mais bonita quando eu
consigo atingir o meu objetivo, eu acho que influencia. Me faz bem, eu me sinto melhor,
me encaixo neste padrão que foi e é imposto, massificado” (Mulher 9, 27 anos).
Ainda com relação a auto-estima, 84% das entrevistadas afirmaram que passaram a
gostar muito mais de si a partir da hora que ingressaram na academia de ginástica e que isto as
influenciou a cuidar da aparência de modo geral. É como se a prática regular de exercícios
físicos tivesse alavancado outros cuidados com o corpo:
Nas falas esta associação fica evidente:
“Nossa, muito, é assim, antes eu odiava academia, e... tava bem, e me sentia bem com o
corpo e depois eu fui, fui comparando, fui olhando e fui vendo que não tava legal, muita
gordura, com uma alimentação errada, então assim, depois que emagrece você se
acha linda, maravilhosa, se até se cuida mais, eu passei a me cuidar mais depois que eu
emagreci. Mudou totalmente os cuidados com o corpo, passei a fazer drenagem linfática,
passei a cuidar mais da pele, passar protetor solar, fiz dieta, tive uma reeducação
alimentar, eu não como muita gordura, como pouquíssima gordura, como muita fruta,
muito cereal, muita coisa integral, mudei radicalmente, até porque tava me sentindo bem,
Gráfico 21 - Interferência da malhação nos cuidados corporais
interferência da malhação na auto-imagem e nos
cuidados com o corpo
1%
84%
1%
14%
não interfere
interfere um pouco
interfere muito
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 123
então você que muda, você fala bom, vou mudar totalmente, então mudou muito os
cuidados, muito, mudou muito mesmo” (Mulher 49, 27 anos).
“Sim, eu acho que influi bastante. É o que eu digo, hoje eu me gosto mais do que
antigamente eu acho que por isso eu gosto muito de malhar, eu acho que a minha auto-
estima se elevou muito desde que eu comecei a fazer diariamente, eu acho que influi
bastante, mudou até a alimentação” (Mulher 1, 30 anos)
“Muito! O meu corpo tem vários defeitos, apor causa da idade, mas eu gosto muito
mais dele hoje do que quando eu tinha 18 anos. Quanto mais eu faço atividade física,
mais tenho vontade de investir no meu corpo, seja na alimentação, seja em tratamentos
estéticos. Sinto-me mais magra, mais malhada e isto mais auto-confiança na gente,
pra se expor, usar roupas mais justas, mostrar a barriga e mesmo se cuidar mais”
(Mulher 68, 34 anos)
“Antes de fazer ginástica eu era meio largada, me achava feia, caída, nem vontade de
comprar roupa eu tinha. Depois que comecei com a ginástica, fui vendo que dava pra
melhorar minha aparência, comecei a fazer drenagem linfática, a me cuidar mais, até no
banho, usar bucha vegetal pra diminuir a celulite. Mudou muito, e pra melhor” (Mulher
70, 30 anos).
O que podemos apreender das falas transcritas? Bem, em primeiro lugar, que quase
todas as entrevistadas associam malhação e auto-estima, com exceção de duas entrevistadas,
Mulher 57, que prefere ficar mais à vontade porque o corpo como um instrumento para o
lazer e Mulher 52, que não gosta de atividades físicas, mas que também associa a auto-estima
ao corpo. O que muda é apenas o mecanismo – tratamentos estéticos e plásticas – para
alcançar esta satisfação consigo mesma. Todas as outras afirmam que fazer exercícios físicos
faz com que elas se sintam mais bonitas, para si próprias, para os companheiros e para a
sociedade em geral. Olhar-se no espelho e gostar da imagem refletida, sentir-se bem ao vestir
uma roupa, perceber o corpo tomando nova forma depois das gestações faz com que as
mulheres se sintam mais confiantes, e, como ressalta Proust, “a reabilitação do corpo
certamente constitui um dos aspectos mais importantes da vida privada. Com efeito, ela
modifica a relação do indivíduo consigo mesmo e com os outros” (Proust, 1993: 102). Sentir-
se bem consigo mesma torna-se questão de honra, e fazer exercícios é um mecanismo
fundamental neste processo, que à mulher nova identidade, na medida em que a percepção
de si mesma é indissociável da relação com o corpo. Mesmo quando as entrevistadas não
salientam questões estéticas como centrais para a auto-estima, reforçam que fazer exercícios
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 124
melhora a auto-estima por liberar hormônios, gerando assim uma sensação de prazer e de
satisfação consigo mesma.
Mas, se houve uma reabilitação do corpo na construção da auto-estima, significa que
no passado esta importância podia ser menor. Cabe-nos perguntar, então, o que mudou, e
como mudou.
4.2.4 - IMPORTÂNCIA DO CORPO: PRESENTE E PASSADO
Vimos que o corpo, enquanto suporte do indivíduo, sempre foi importante na construção
da identidade, e isto ocorria tanto entre gregos da Antiguidade, quanto entre as populações
medievais.
No entanto, como foi ressaltado, a partir da modernidade a relação com o corpo se
modifica, seja em termos da importância dada ao corpo, seja com relação aos mecanismos que
o controlem. De simples meio, o corpo passa a constituir um fim em si mesmo, ou como diria
Proust, “A novidade do final do século XX é a generalização das atividades físicas que têm
como fim o próprio corpo: sua aparência, seu bem estar, sua realização.” (Proust, 1992:
102). Ou seja, embora a importância do corpo estivesse presente em outros períodos
históricos, será com a modernidade que o corpo passará a ser o centro de todo um complexo
sistema de disciplinas e cuidados e mais ainda, a partir dos anos de 1980 nos E.U.A e dos
anos de 1990 no Brasil, ele será cultuado.
Para entender melhor este mecanismo de ascensão do corpo a um patamar nunca antes
visto, formulei às mulheres duas perguntas: 1) Mudou a importância dada à estética?; 2)
Como era no passado? Os dados obtidos foram:
Gráfico 22 - Aumento da importância do corpo
Importância dada ao corpo com relação ao
passado
95%
5%
0%
o aumentou
aumentou um pouco
aumentou demais
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 125
Como podemos ver, 95% da amostra citou um aumento da importância dada ao corpo,
bem como a multiplicação das academias. um consenso de que aumentou a importância
dada ao corpo, tanto no que se refere á busca pela saúde, quanto pela estética. Algumas
afirmam que um exagero nesta busca da beleza, o que aponta para o processo de culto ao
corpo, que abordaremos no próximo item. Vejamos as falas:
“Ah, mudou muito. Antigamente era muito mais raro. Hoje tem academia em tudo que é
canto e todo mundo faz, é raro [não fazer], hoje até quem tem baixa renda, eu conheço
gente que trabalha em casa de família e faz academia, então hoje todo mundo ligado
pra este lado, antes não, era raro, hoje todo mundo está buscando um corpo mais
perfeito” (Mulher 1, 30 anos)
“Nossa, demais, é uma neurose, chega a ser uma neurose. Eu acho que é... A mídia que
faz isso né, todo mundo acha super importante o corpo, eu acho.” (Mulher 3, 29 anos)
“A importância aumentou muito, eu acho que por causa das informações que estão se
multiplicando a cada dia, assim, você liga o rádio, estão falando do corpo, tem
vinculação com a sexualidade, de você ter que atrair alguém, então é todo mundo, é um
ciclo, assiste a televisão, tão comentando, na internet, estão comentando, aí você vai num
grupo de pessoas, tocam no assunto, ‘olha o corpo dela’, você tá comentando um assunto
de novela, está sempre em evidência, em demasia (...) As pessoas estão dando muita
importância, está virando um problema muito grande” (Mulher 5, 22 anos)
“Exageradamente, uma preocupação excessiva com o corpo em detrimento da
formação intelectual , com certeza” (Mulher 23, 48 anos).
“Aumentou muito, a estética aumentou muito, você que hoje tem maiores empregos, o
público está muito voltado para a estética. Você vai ao cabeleleiro, estética mesmo,
clínica, cirurgia plástica, como aumentou, o Brasil é considerado o país que tem maior
índice de pessoas que fazem cirurgias plásticas por estética, então aumentou muito,
muito maior, eu acredito que muito maior” (Mulher 24, 18 anos).
“Eu acho que aumentou com certeza, nossa, aumentou muito, acho que foi colocada
mais em função da mídia, as pessoas na televisão, se mostrarem o mais na televisão,
assim... E o que acontece, televisão você acha que certo, que tem que ser igual,
todo mundo admira, todo mundo quer fazer (...) todo mundo quer tá copiando, tá,
levando uma pessoa que não gostasse de academia, ou que nunca tentasse fazer
nenhuma há. vinte anos atrás, hoje fica olhando na televisão que é importante e
começa a fazer com certeza absoluta” (Mulher 27, 18 anos)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 126
“(...) relacionado com a mídia, então o que é uma exarcebação não desta
percepção do corpo como todo, mas uma exarcebação no sentido estético e físico, não é
o homem em sua completude, é o homem fragmentado. É o físico, não é o emocional, as
questões que são fundamentais para a alma não fazem parte desta estética que é a mídia,
cada vez as pessoas vêem mais, elas se ouvem menos, cada vez elas se dão menos, então
é bem o homem fragmentado, o homem estético, é o homem físico. É um homem máquina,
é um homem que você põe coisas, você tira coisas (...). Mas o holístico, o homem
completo, não é percebido pela mídia” (Mulher 30, 51 anos)
“Aumentou bastante. Tanto que hoje tem silicone, operação de barriga, enfim, tem
aumentado muito, eu acho. Eu acho não, eu tenho certeza. A freqüência à academia
também tem aumentado, porque hoje todo mundo quer o corpo perfeito” (Mulher 32, 33
anos)
“Aumentou. A própria mídia faz com que você, principalmente a mulher, antigamente o
homem não era tanto, agora começou a também ser o homem, mas a mulher tem muita
cobrança. É difícil você ver, pode reparar, antigamente o pessoal falava: "nossa a pessoa
fuma!" era vista como uma coisa assim errada, hoje em dia também: "você não faz nada,
fica o dia inteiro sem fazer exercício, ela não pratica nenhum, é nenhum esporte, então é
um lado negativo, acho que tem a cobrança.” (Mulher 51, 34 anos).
“Eu percebo. Eu acho que mais por conta da mídia. Eu acho que sempre teve esta
cobrança né, mas hoje o povo está mais aparente...mais despido né...hoje você anda mais
à vontade, e isso te...você se cobra mais” (Mulher 60, 40 anos)
As falas apontam para um cenário onde os cuidados com
o corpo são centrais. É preciso ir ao cabeleleiro, à ginástica, às
clínicas de estética. O corpo adquire uma importância nunca
vista em outros períodos históricos, a ponto de algumas das
entrevistadas se referirem a ela como uma neurose. não é
possível, em vários grupos sociais, entabular uma conversa
que não toque em assuntos referentes ao corpo. O corpo virou
assunto primordial: como “malhar” passou a ser parte de um
estilo de vida, o aderir à prática significa não partilhar um
universo de valores e, até mesmo, não ter assunto. Se no
passado o ócio, como defendia Aristóteles, era privilégio dos
abastados, hoje ele tem que ser preenchido com alguma
atividade física. Na religião do culto ao corpo, a preguiça é um pecado mortal. As
Figura 3 - A beleza como
obrigação
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 127
entrevistadas dizem também que hoje é a aparência que conta para se conquistar um parceiro.
Ser uma mulher inteligente é menos importante do que ter um belo corpo e a beleza não é
um direito, mas um dever, como ilustra a reportagem da revista da folha (Figura 3, Revista
folha 03/09/2000)
Neste contexto, de acordo com Maruska Freire Rameck (2001), o corpo deve ser visto
como um indicador segundo a perspectiva de Charles Sander Pierce, para quem a semiótica
seria a doutrina formal dos signos, onde signo é algo que permanece em alguém, substituindo
alguma coisa. A divisão básica dos signos se faz entre três categorias principais:
1) Ícones: Signos que se assemelham àquilo que significam, da forma como a
fotografia se assemelha ao objeto fotografado; o ícone é um sinal que se
refere ao objeto que denota, em virtude de certas categorias que lhe são
próprias.
2) Indicadores: Signo cujo significado se esclarece mediante efeitos que seu
objeto nele produz, como a sombra pode ser um ‘indício’ da posição do sol;
o indicador é sinal que se refere ao objeto que denota em virtude do fato de
que é realmente afetado pelo objeto.
3) Símbolos: signo que se associa a objetos graças a convenções especiais, tal
como se com as palavras; o símbolo é signo que se transforma em signo
porque como tal é entendido.
O corpo seria um indicador, uma marca social, porque se a mulher é bonita (e bonita
aqui significa magra e torneada), revela que ela é bem resolvida e bem sucedida
47
. Em nome
da manutenção ou conquista deste indicador, e incentivadas pela mídia, as mulheres aderem á
atividade física. Mesmo aquelas que o gostam de ginástica se sentem impelidas á tentar se
aproximar dos modelos corporais veiculados, acreditando que esta adesão pode lhes conferir
status, melhores oportunidades afetivas e de trabalho.
As entrevistadas comentaram que no passado a preocupação com o corpo era menor
48
, o
corpo estava menos visado, menos exposto, e os critérios para que um homem escolhesse uma
47
E até mesmo, bem equilibrada. Inúmeras matérias de jornal ou revistas reforçam a associação entre magreza e
equilíbrio emocional, como podemos ver no seguinte exemplo: “Ela emagreceu 17 kg e se tornou um
exemplo. Débora teve que mudar seus hábitos para perder peso. Hoje, magra e equilibrada, ajuda outras
pessoas a vencer a luta contra os quilinhos a mais.” (matéria da revista “Corpo”, outubro de 1999).
48
De setenta mulheres, somente duas afirmaram que suas mães e avós se preocupam com a aparência: olha, eu
venho de uma família que sempre se preocupou, então isso pra mim já era parte de uma educação. Minha
avó fazia ginástica, minha avó se preocupava, minha mãe se preocupava eu sempre me preocupei, então
eu acho que faz parte da educação, como te ensinam a comer, te ensinam a fazer ginástica, te ensinam a
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 128
companheira também eram outros. Além disto, como alguns autores ressaltaram, a mulher,
depois de casada, tendia a se preocupar mais com a família e abandonar os cuidados com o
corpo:
“Há algumas décadas atrás o padrão de beleza da mulher era ser uma boa mãe,
encontrar uma pessoa para casar, tinha que ter uma cinturinha, quadril largos porque
isto é ideal de mulher para que ela possa gerar filhos, produzir uma família pra da
continuidade a geração (...), antigamente era bem diferente , então não tinha esta busca
constante pela a beleza pelo o corpo ideal então hoje em dia, este negócio de academia,
cada vez mais as pessoas procuram personal, procuram a academia, procuram atividade
física, mesmo que seja ao ar livre, que não tinha antigamente” (Mulher 54, 26 anos).
“Por que não tinha a mídia, não tinha esta exposição, os homens também não
procuravam a mulher linda, maravilhosa, eles viam mais por dentro da pessoa, e hoje,
realmente, elas vêem mais a pessoa por fora” (Mulher 62, 27 anos).
“Bom, tinha que ser uma boa dona de casa ... você ... sabendo cozinhar direitinho
tinha mil pontos. Hoje os valores mudaram, o corpo conta bem mais” (Mulher 47, 40
anos)
“Muito. Porque acho que muda um pouco ... o que uma mulher teria que ter há 50 anos
atrás para ser atraente para um homem, né? Ela deveria saber bordar, deveria saber
cozinhar, deveria saber cuidar da casa, hoje não, uma mulher atraente para o homem é
uma mulher com bunda dura, que não tem celulite...” ( Mulher 50)
“Eu percebo assim, eu vejo que hoje os cuidados estéticos que existem né, são muito
maiores que na época em que minha mãe era adolescente, tanto que antigamente, na
época de nossos avós, até na época da minha mãe, a mulher casava e relaxava né, então
era muito comum ter mulheres casadas que "matronavam”, ficavam gordinhas, aquele
corpo de mãezona mesmo. Porque não se importavam, passavam a não ligar mais para
isto, de uns tempos para a mulher começou a se preocupar mais, hoje não importa a
idade que ela tem, né”. (Mulher 40, 32 anos)
“Ah, eu acho que naquela época não. Porque na época da minha mãe, não era tanto
deste jeito, a mulher era ligada na família, tinham que cuidar da casa, do marido, lógico
que elas deviam tentar alguma coisa, mas de não ser tão neuróticas quanto as mulheres
de hoje” (Mulher 25, 19 anos)
estudar. Eu acho que é uma parte da educação. Eu acho que toda criança tem que aprender também a ter
uma atividade física, a saber que é importante cuidar do corpo” (Mulher 39).
a minha avó, imagina, nasceu em 1920, ela tem cuidado até hoje, minha avó não tem uma pinta de sol na mão,
ela trabalhava na roça, ela fazia luvinhas, para ela não tomar sol...” (Mulher27)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 129
As falas das mulheres trazem novamente à tona as questões assinaladas no item 4.1 -
( Sentido das práticas corporais e da beleza: reflexões históricas), mostrando como a mudança
de valores se deu no cotidiano delas mesmas e de suas antecessoras. Mostram que o corpo
feminino, antes considerado sem tanta importância, alcança no presente o centro da atenções.
Igualmente, ressaltam que no passado o corpo era mais escondido pelas roupas, sendo
possível disfarçá-lo mais, até fazendo uso de espartilhos, o que não acontece hoje:
“As roupas eram diferentes, eram tão compridas né, em 1800, com saia comprida,
corpete, manga bufante, ninguém conseguia ver se ela tinha barriga ou não tinha,
colocava um espartilho, apertava tudo, tava tudo certo, se escondia mais. Hoje não, no
Rio cultua muito mais estética, as pessoas vivem de biquíni, como é que não vão pensar
mais no corpo se ele está mais exposto, né?” (Mulher 8, 25 anos).
“Eu acho que não tinha tanta exposição do corpo, talvez por isso elas não dessem tanta
importância, não tinha tanta facilidade de academia, e não tinha tanta cobrança
também” (Mulher 9, 27 anos).
com certeza ... porque ... hoje a gente tem ... uma cobrança muito maior, as mulheres
valorizam muito isto, antigamente eu acho que não. As roupas eram diferentes, os
costumes eram diferentes, antigamente era vestido, tudo coberto, sabe, uma outra
preocupação, hoje o, hoje é totalmente diferente (...) propaganda de cerveja então,
nem se fala né, mulher de biquíni, só”. [risos] (Mulher 10, 18 anos).
Na percepção das mulheres a cobrança pelo corpo perfeito também aumentou muito
relativamente ao passado:
“Imagina, minha mãe começou a fazer academia agora, ela nunca fez na vida dela,
começou agora, minha avó nunca fez, acho que no tempo dela nem havia academia (...)
Em todos os aspectos, não havia esta preocupação com o corpo” (Mulher 1, 30 anos)
“Acho que era um pouco menos, não tinha esta neura, sabe, das pessoas quererem ficar
em forma, gordurinha aqui...Acho que dá pra ver isso pelo modelo de mulher” (Mulher
3, 29 anos)
“Porque não tinha esta cobrança, eu acho assim, não tinha um padrão de beleza, não
tinha um estereótipo, ah, o bonito é ser magra, assim, assim” (Mulher 19, 51 anos)
“Não via. Eu acho que no relacionamento com o corpo as exigências hoje são muito
maiores, até pra procurar emprego você tem que estar com esta questão resolvida, ficou
tudo mais difícil, eu acho. E também no Brasil, é mais forte aqui do que nos outros
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 130
países, os europeus não têm este culto ao corpo o grande, os EUA, têm regiões onde
eles cultuam o corpo, mas como o Brasil, países tropicais, nas regiões com praia esta
questão com o corpo é sempre maior.” (Mulher 32 ).
“Não, eu acho que a beleza não era tão importante no passado. Eu acho que a beleza
era, nasceu bonita, tudo bem, não nasceu, não fazia nada para mudar. Hoje em dia tem
“n” coisas, a pessoa muda, quando a pessoa tem vontade, força de vontade, condição
financeira, a pessoa muda. A pessoa tem como melhorar. Antigamente, a pessoa nascia
do jeito que era, se aceitava melhor. Hoje em dia você tem silicone, tem que pegar
peso, você tem que fazer com que o músculo cresça, sabe uma neurose até. Chega a ser
até exagero. Eu acho que antigamente era uma coisa mais normal, hoje em dia esta
extrapolando” (Mulher 51, 34 anos).
Um ponto merecedor de destaque é que as informantes percebem que no passado, as
mulheres aceitavam mais o corpo que tinham. É claro que também se empenhavam, como
vimos com Del Priori, Sant’Anna, Schump, Proust e Vincent, em melhorar sua aparência, mas
cada época fabrica suas próprias exigências e o que é suficiente para uma, não é para a
seguinte. Com todo o aparato técnico à disposição do público feminino e, principalmente, da
própria importância que o corpo atingiu, as mulheres urbanas acreditam que podem e devem
construir seu próprio corpo, alterando desde detalhes como adiposidades, até retirando
costelas para afinar a cintura. O corpo se tornou mais moldável e será a cultura que fornecerá
os novos moldes. Malhá-lo se tornou uma necessidade, ou, como diria Proust, “Mais do que
as identidades sociais, máscaras ou personagens adotadas, mais até do que idéias e
convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa. Portanto, já não
existe vida privada que não suponha o corpo. A verdadeira vida não é mais a vida social do
trabalho, dos negócios, da política ou da religião: é a das férias, do corpo livre e realizado”
(Proust, 1992: 105-6).
Eu iria além e diria que mais do que tudo isso, o corpo virou uma religião, um culto
permanente e diário, que se desenrola nos templos de mármore, vidro e ferro das academias
de ginástica, e cujos mentores são a mídia, os personal trainer, os nutricionistas, os cirurgiões
plásticos.
É sobre este culto ao corpo que nos deteremos nas páginas que seguem.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 131
5 - O culto ao corpo: Produção de si mesmo, estetização da vida
cotidiana e espetáculo.
“No social todo culto é hipócrita; na intimidade, ele é verdadeiro.”
(Mulher 21, 44 anos)
Neste capítulo, faremos uma discussão sobre o fenômeno do culto ao corpo, procurando
especificar sua datação, tanto para autores que o estudaram, quanto para as mulheres
entrevistadas.
Em seguida, mostraremos como as entrevistadas pensam e se relacionam com o
processo de culto ao corpo e também como o justificam. Analisaremos as principais
justificativas que as mulheres pesquisadas citaram para explicar o culto ao corpo, e que são:
A importância do momento presente, da técnica e do esforço do indivíduo.
A importância do corpo no mercado de trabalho e na conquista de parceiros
afetivos.
A exposição do corpo.
Os modelos de beleza e o culto à perfeição.
A competição e a cobrança social.
Dois pontos serão analisados separadamente, devido ao peso que as próprias
entrevistadas deram a eles e à quantidade de informações que eles reúnem, a saber: a relação
entre corpo perfeito e identidade e a importância da mídia no processo de culto ao corpo.
5.1 - O CULTO AO CORPO.
5.1.1 - ENTENDENDO E DATANDO O PROCESSO DE CULTO AO CORPO.
Estar bela, malhada, sentir-se bem consigo mesma. Não ter gordurinhas sobrando. Ter
um corpo rígido, cabelos e pele impecáveis. Ser admirada por sua beleza ou por seu corpo em
forma. Ter um corpo perfeito. Encaixar-se nos padrões de beleza massificados. Cultuar o
corpo, desejá-lo belo, mas, ao mesmo tempo, malhá-lo. Submetê-lo a esforços físicos para que
ele desabroche em sua melhor forma.
Estas falas, todas nativas, apontam para um processo central das últimas décadas (1980-
2000), que é o culto ao corpo. Embora seja quase impossível estabelecer com certeza quando
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 132
as expressões “culto ao corpo” e “cultura do corpo” apareceram pela primeira vez, numerosos
antropólogos, sociólogos e historiadores vêm se utilizando destes termos para designar um
comportamento onde o corpo figura como elemento central e definidor de identidades. Mais
do que ser apenas um meio, o corpo transforma-se no próprio fim, ou, como diria Maffesoli, o
que “parece desconcertante atualmente é que o corpo é tomado em si mesmo; há uma espécie
de culto ao corpo que ganha cada vez mais importância na vida social. Veste-se o corpo,
cuida-se do corpo, constrói-se o corpo, e é neste sentido que se pode falar de um culto ao
corpo como sendo (um pouco por todo lado do mundo) uma das marcas deste hedonismo”
(Maffesoli, 1998).
Como em todo culto, temos, por um lado, a ideologia que o alimenta (e seus
mecanismos de veiculação e sustentação) e, por outro, seus atores. No caso do culto ao corpo,
“Body-building” ou Bodybuilder” são os termos genéricos utilizados em academias de
ginástica e musculação para designar aqueles que, por meio de exercícios, pesos e aparelhos
procuram “construir” seu corpo, deixando-o magro, definido, musculoso e rígido. Nestes
termos, várias categorias aparentemente diversas estão englobadas e, em geral, elas são usadas
tanto para homens quanto para mulheres, independentemente da idade. Embora seja mais
usada para designar aqueles que freqüentam assiduamente academias de ginástica, tem sido
empregada também por modelos e atrizes que buscam o corpo magro, que as próprias
mulheres afirmam que o adianta apenas ser magra, mas é preciso também ter um corpo
trabalhado. Em outras vezes, o termo “Bodybuilder” é substituído pelas mulheres
entrevistadas por “malhados (as)” e o processo por “malhação”.
Sempre que falarmos aqui em cultura do corpo ou culto ao corpo, usaremos estes
termos, em especial os mais nativos deles, que são “malhados (as)” e malhação”. Em
alguns momentos, quando o objetivo for falar dos distúrbios de anorexia ou bulimia, faremos
uso também da classificação “mulheres bem magras”.
Independentemente dos termos, de fato o corpo e o trabalho muscular estão em toda
parte. Segundo Courtine, foi-se o tempo em que ele estava restrito aos estádios e ringues de
luta; hoje ele aparece a todo instante pelas telas de cinema, pela televisão e, principalmente,
nas ruas: “Entre a multidão de passantes, os bodybuilders destacam-se por sua forma de
andar: braços afastados, cabeça enfiada no pescoço, peito abaluado, rigidez, balanço
mecânico (...) O corpo do bodybuilder pretende tirar todo o benefício do peso no campo do
olhar, saturá-lo de massa muscular. Impor-se no olhar alheio. O músculo marca. Ele é um
dos modos privilegiados de visibilidade do corpo no anonimato urbano das fisionomias. O
body-builder não anda; ele conduz seu corpo exibindo-o como um objeto imponente”
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 133
(Courtine, 1995: 82, 83). Entre as mulheres, também é fácil identificar quem é ou não
“malhada” pelo modo imponente com que estas andam, pelas roupas, normalmente mais
justas e que evidenciam os contornos e por decotes, fendas, ombros à mostra, além do olhar,
normalmente entre o sedutor e seguro e pela imponência da postura. O desejo deste corpo
feminino magro e definido e a cultura visual que irá se desenvolver a partir dele, nos lembra
Courtine, é muito antigo, mas explodiu nos E.U.A definitivamente a partir de 1980, quando
ocorreu um desenvolvimento considerável do mercado do corpo magro e musculoso e do
consumo de bens e serviços ligados à sua manutenção, além de todo um aparato da mídia que
nos reforça o tempo todo como este corpo é desejável e necessário. Para ele, todas estas
práticas de gerenciamento do corpo, que florescem a partir de 1980, são sustentadas por uma
“obsessão dos invólucros corporais: o desejo de obter a tensão máxima da pele; o amor pelo
liso, pelo polido, pelo fresco, pelo esbelto, pelo jovem; ansiedade frente a tudo que na
aparência pareça relaxado, franzino, amarrotado, enrugado, pesado, amolecido ou
distendido; uma contestação ativa das marcas do envelhecimento no organismo. Uma
negação laboriosa de sua morte próxima” (Courtine, 1995: 86).
No Brasil, o fenômeno do culto ao corpo explode nos anos de 1990, ou seja, dez anos
após seu início nos E.U.A.
Este processo de culto ao corpo não é alvo apenas dos pesquisadores: entre as
entrevistadas, em vários momentos, foi citada de forma espontânea, a expressão “culto ao
corpo”, seja para criticá-lo, seja para reforçá-lo enquanto mecanismo fundamental de
construção da identidade. Quase todas estão familiarizadas com a expressão e com o processo
em si e surpreendentemente, muitas foram precisas em datá-lo:
“Olha, eu digo...[pensa]. Mais ou menos, de uns quinze anos pra cá. Mas acho que hoje
está mais forte do que há 15, 20 anos atrás” (Mulher 1, 30 anos)
“Há uns dez, quinze anos, por aí” (Mulher 6, 19 anos)
“A estética é uma coisa de uns dez anos” (Mulher 16, 36 anos)
“Olha, dos anos 90 pra aumentou. É porque antes eu também não era muito ligada,
mas eu acredito que dos anos 90 pra cá deu uma guinada, uma aumentada, ou esmais
nítido, as pessoas estão falando mais. Mas eu acho que é maior esta ênfase dada ao
corpo” (Mulher 22, 32 anos)
“Sempre houve, a humanidade sempre manipulou isto eu acho, sempre houve ideal
estético em todas as fases, eles mudaram, mas eu acho que de dez anos pra é maior
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 134
por conta do envolvimento exagerado com a indústria farmacêutica, indústria de
cosmético, com a indústria de roupa, de bens de consumo, como de roupa mesmo”
(Mulher 23, 48 anos)
“Eu não sei, hoje eu tenho 33 anos, eu tenho percebido isto de uns quinze anos pra cá,
até uns quinze anos atrás as pessoas não davam tanta importância pra atividade física,
para o corpo em si, sempre deram, mas de uns quinze anos pra cá tem aumentado
bastante” (Mulher 32, 33 anos)
“Começou na década de 80, depois desta década começou a busca pelo o corpo, que
começou a surgir estas novas tecnologias, o mercado do modelo crescendo mais,
começou a busca das adolescentes, esta busca das adolescentes foi até mais recente, eu
vi uma matéria na “Veja” da semana passada, estes casos de anorexia, bulimia, que isto
influencia muito as adolescentes que vêem na TV, a mídia também cresceu:
antigamente não era tão claro pra gente o que acontecia em outro país, não tinha esta
globalização, hoje em dia não, a gente sabe tudo o que acontece e cada vez mais as
crianças e adolescentes têm acesso à cultura de outro país, isto está influenciando o
modo de vida das pessoas” (Mulher 54, 26 anos).
“Olha, eu acho que...grave mesmo, de uns 5 anos pra cá, insuportável, mas tem
vindo de um tempo aí, quanto, uns dez anos, oito, eu acho um exagero, é o comércio. Tem
gente assim, fazendo plástica como quem arranca um dente (...) Coisa com o rosto
também, tem uma série de senhoras da minha idade, eu vou fazer 58 este ano, as
sessentonas estão todas com a cara igual, eu acho assim uma cara de barbies, o botox,
aquela boca, são todas muito semelhantes, loirona.” (Mulher 56, 57 anos).
“Começou dez anos, ‘ah, eu vou pra academia pra perder peso’, e corre, corre, está
naquela busca incessante, tipo meu marido mesmo, está cinco anos, nunca fez com
regularidade, mas agora faz para manter o peso ou para perder peso” (Mulher 63, 42
anos)
As mulheres entrevistadas indicaram que houve um aumento da importância dada ao
corpo entre os últimos 5 e 15 anos, o que compreende o período de 1990 a 2005
49
, exatamente
o mesmo percebido entre os pesquisadores da área. Isto se explica por várias razões, mas, de
modo geral, as mulheres entrevistadas sentem, literalmente na pele, este desabrochar da
cultura física. Muitas não faziam atividades físicas antes deste período, mas se sentiram
motivadas a fazê-lo nos últimos quinze anos, e/ou assistiram outras pessoas do seu círculo de
49
É claro que este processo se prolongará ainda por muito tempo, mas o corte temporal foi o ano de 2005,
quando foram realizadas as últimas entrevistas de campo.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 135
relações se iniciando na “malhação”. Também percebem o culto ao corpo através do aumento
do número de academias e pelo fato de que se exercitar e cuidar da aparência virou assunto,
está na mídia, nas conversas, permeia todo universo das entrevistadas. Percebem que a mídia
aumentou o número de publicações destinadas ao corpo, bem como a exibição de mulheres
bonitas nas novelas e/ou em outros programas televisivos.
Veremos, no item a seguir, como as mulheres explicam e lidam com este processo de
culto ao corpo.
5.1.2 - EXISTÊNCIA DO CULTO AO CORPO E SUAS JUSTIFICATIVAS PARA AS ENTREVISTADAS
Quando questionadas se percebem um processo de culto ao corpo e por que ele ocorre,
de imediato a grande maioria (88%) afirmou, sem titubear, que sim:
Somente 9% das entrevistadas responderam “mais ou menos”, dizendo que o processo
de culto ao corpo pode depender de grupo social, não sendo dominante em todos eles:
“Eu acho que mais ou menos. Por exemplo, no ambiente da academia isto é mais
evidente, no meu local de trabalho isto não existe. No meu ambiente de trabalho são 12
mulheres, todas na faixa dos 30/40, nenhuma fez cirurgia plástica e aqui na academia, no
grupo que a gente convive muita gente já fez cirurgia plástica, pelo menos alguma. Então
eu acho interessante, dependendo do grupo isto é mais importante ou menos importante.
Eu percebo isto, as pessoas aqui querem, a maioria, nem todas, mas as pessoas que têm o
hábito de vir com muita freqüência acabam tendo um culto ao corpo, à estética, muito
maior do que as pessoas com as quais eu convivo fora da academia” (Mulher 35).
Gráfico 23 - Culto ao corpo
Você acha que podemos falar atualmente de um culto
ao corpo?
88%
3%
9%
sim
não
mais ou menos
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 136
“Depende, mais ou menos...Eu acho que a classe média alta se preocupa muito com isso
e dá muita importância ao corpo, aqui no Brasil, e esquece de ver outras coisas,
enquanto que em outros países não é assim, é completamente diferente, não tem esta
importância que a gente , não tem. Meu filho morou um ano e meio em Londres e ele
ficou impressionado, ele falou “Mãe, aqui não tem disso”, é uma coisa muito engraçada,
não tem, Mirela, não tem, principalmente as pessoas depois de uma certa idade, não se
preocupam muito, não é só isso, a gente vê e acha que as pessoas vivem até melhor, sabe
eu tenho uma ir dentista, e hoje, a primeira coisa que as pessoas procuram é a
estética, é clareamento, é aparelho, é tudo (...)” (Mulher 38, 48 anos)
No entanto, a maioria (88%) das entrevistadas reconhece sua existência, e dentre as
pessoas que responderam sim, muitas já elecaram, de forma espontânea, as razões para isto.
Percebe-se que parte das mulheres passa a viver em função disto, procurando emagrecer
e se submeter ás plásticas. No que este processo se diferencia da cultura física iniciada da
década de 1920? Em vários aspectos, como veremos, mas em linhas gerais, o culto ao corpo
atual se diferencia do passado principalmente em termos de ênfase. Como vimos, a beleza
sempre foi importante, mas ganha uma dimensão avassaladora após os anos de 1980. Vários
motivos explicam este fenômeno: a globalização, as melhorias técnicas na área de cosméticos,
alimentos e aparelhos de ginástica, os recursos imagéticos e sua penetração em todas as
classes sociais, o fato da mulher cada vez mais ingressar no mercado de trabalho e ter renda e
autonomia para se dedicar a investimentos estéticos, dentre outros.
Não será nosso objetivo aqui elencar e explicar exaustivamente todos os motivos do
culto ao corpo, mas sim debater alguns deles e mostrar como o corpo vai assumir um lugar
privilegiado nas referências simbólicas de nossa cultura. Segundo Del Priori, “Uma
radicalização compulsiva e ansiosa a empurrou nos últimos dez anos, e a segue empurrando
para a tríade abençoada pela mídia: ser bela, ser jovem, ser saudável! Graças à supremacia
das imagens, instaurou-se a tirania da perfeição física. Hoje, todas querem ser magras, leves,
turbinadas. Num mundo onde se morre de fome, grassa uma verdadeira lipofobia” (Del
Priori: 79).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 137
Ter uma mesa farta deixou de ser motivo de orgulho e alguns dos indicadores deste
extremado culto à forma física são a geladeira e as prateleiras da dispensa vazias
50
. São
comuns reportagens televisivas ou escritas que, à semelhança dos reality shows, invadem a
residência de famosos e mostram como estes aderem à parca alimentação, exibindo geladeiras
sem nenhuma comida calórica, apenas com água, yogurtes, saladas, como mostra a Figura 4.
Amalgamadas no discurso, aparecem diversas variáveis, dificultando um pouco o
trabalho analítico de classificá-las e ordená-las. No entanto, acreditando, como Lévi-Strauss,
que toda ordem é melhor do que o caos, procurei encontrar os principais fios condutores de
cada uma delas. Aos poucos, alguns foram se mostrando centrais, como por exemplo, a
importância da beleza no mercado de trabalho.
Quando questionadas se percebem um processo de culto ao corpo e porque, obtivemos
as seguintes classificações:
50
E o mais curioso, é que a ditadura do eterno regime se produz justamente no seio da chamada “sociedade da
abundância” ( Sahlins, 1968 ), quando a sociedade não só produz o necessário à sua sobrevivência, mas ao
contrário, caracteriza-se pela constante produção de excedente. Ver M. Sahlins, La première société
d’abondance”, in: Les Temps Modernes, outubro de 1968.
Figura 4 - Geladeiras vazias e perfeição física
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 138
a) IMPORTÂNCIA DO MOMENTO PRESENTE, DA TÉCNICA E DO ESFORÇO INDIVIDUAL.
Uma, entre várias entrevistadas, afirma: “Você vê pessoas que se drogam, tomam
anabolizantes, esteróides, pelo corpo, e esquecem da saúde, isto também é um culto ao corpo,
porque esquecem que amanhã isto pode prejudicar muito, é um culto ao corpo, porque não
pensam no que vai fazer mal, pensam no agora, ficar bem bonita agora, mas depois eles
vão ver as conseqüências, porque pensam no agora, no que tão fazendo agora (Mulher
24, enfatizando a palavra em negrito).
Esta fala aponta para dois pontos importantes: o primeiro que o culto ao corpo está
ligado ao que Maffesoli chamou de presenteísmo (Maffesoli, 1998), ou seja, a demasiada
primazia do presente na contemporaneidade: vive-se para o agora, para o instante imediato; a
tradição, tão rica no período anterior à contemporaneidade, é descartada e o futuro está
demasiado longe para se pensar nele. Nas conversas informais com as entrevistadas, muitas
reforçaram este dado, quando questionadas sobre as conseqüências de atitudes como regimes
extremos, bronzeamento artificial, uso de drogas para emagrecer ou mesmo de anabolizantes,
afirmando que não vale a pena se preocupar demais com os seus efeitos nocivos em longo
prazo, que o importante é estar bonita agora. O outro ponto que merece destaque é que a
entrevistada aponta para um dado que se repetirá e é fundamental para se entender a
modernidade e o processo de culto ao corpo: a questão da técnica.
Três outras entrevistadas (escolhidas entre outras) ressaltam este ponto:
“Culto ao corpo? Eu acho que hoje em dia, bastante...tem cirurgia plástica, né? Botox.
Essas coisas acabam deixando a pessoa mais ligada, né?” (Mulher 60, 40 anos)
“As salas de musculação, se você for ver, o que tinha antigamente e o que tem hoje, hoje
você tem aparelhos que você põe a chave e ele te diz o que você tem que fazer, a
tecnologia auxilia, dos aparelhos de musculação, e mesmo de som, hoje a coisa é muito
mais rica do que quando eu dava aula” (Mulher 14, 34 anos).
“Hoje você tem muitos recursos, se vo quiser melhorar o teu corpo, tem muita coisa
aí, a plástica, nossa, é uma febre. Você pode ver isso, tem demais, você querendo
melhorar você tem condições para fazer isso, é você querer. As mulheres são mais
independentes. E quando você é mais independente, você trabalha, você tem que estar
bem com você, você trabalha, então você tenta melhorar o que? Você. Pra mostrar pras
pessoas e pra você. Pra você tá bem. É importante.” (Mulher 12, 48 anos)
Courtine (1995) reforça a importância da técnica e do comportamento regrado na
construção corporal do bodybuilder após os anos de 1980. Segundo ele, o desenvolvimento do
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 139
mercado do músculo e do consumo de bens e serviços destinados á manutenção do corpo,
além de toda uma tecnologia do suor (“hight-tech sweat”), são alguns dos itens que
diferenciam as práticas atuais das antigas práticas de musculação e que neste sentido, marcam
um processo de culto ao corpo diferente de outros processos ligados ao corpo no passado.
Segundo ele, a tônica da atualidade é que é preciso “sofrer se distraindo: a sofisticação
eletrônica do material quer fornecer novos meios para favorecer a constância exigida pela
disciplina e combater a dor do esforço e também o tédio da rotina” (Courtine,1995: 84).
Outra pesquisadora, Sylvie Malisse
51
(Malisse: 160, apud Del Priori, 200:91), afirma
que, a partir dos anos de 1970, junto com as bonecas Barbie chegaria ao Brasil o body
bussiness, ou seja, máquinas e técnicas do corpo que promoveriam um markenting de
vivências corporais e passaríamos de uma estética feminina à uma ética feminina, ética que
obrigaria a mulher a responsabilizar-se por seu próprio envelhecimento e a consumir produtos
e cnicas para evitá-lo. A mulher passa a ser responsabilizada por sua imagem e cobrada por
ela, reforçando assim estereótipos e construções de gênero. Ela incorpora que uma das suas
responsabilidades, enquanto mulher, é ser/estar bonita.
Esta associação entre técnica e markenting corporal é claramente visível na academia
de ginástica Cia Athlética. um grande investimento no aparato técnico, seja dos
equipamentos de ginástica em si (esteiras, transport, bicicletas, aparelhos de musculação),
seja de televisores e circuitos integrados de televisão que permitem monitorar todo o ambiente
da academia. Recentemente, a academia adquiriu esteiras com monitor de televisão de tela
plana acoplado, ou seja, é possível caminhar na esteira assistindo à televisão, fixada na altura
certa dos olhos e é individual, cada esteira tem a sua. Você pode sintonizar o canal que quiser
e se exercitar/distrair ao mesmo tempo. Nas academias mais sofisticadas, as máquinas de
exercício têm entrada para uma chave própria de cada aluno, que registra todas as
informações sobre o que ele deve fazer e do que efetivamente foi feito, além da supervisão
constante dos instrutores. Tudo isto parece nos dizer que a tecnologia para obtenção de um
corpo perfeito está disponível, você o a utiliza se não quiser. E pior, também só o
conquista um corpo perfeito se não quiser. Desta forma, atribui-se a conduta do aspirante a
portador do corpo perfeito conseguí-lo ou não. A estética se vale do discurso da ciência e se
legitima por ele, como mostra a Figura 5.
51
Sylvie Malisse, “A la recherche du corps ideal culte minin du corps dans la zone balnéaire de Rio de
Janeiro”, Cahiers du Brésil Contemporain, 31, sem data.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 140
Outro pilar que sustenta a ideologia do corpo
perfeito é que o mesmo passa pelo esforço do
indivíduo, ou seja, a ênfase de que o indivíduo sozinho,
utilizando-se de aparelhos, pesos, muita ginástica,
alimentação e produtos químicos pode construir seu
corpo ideal, tão veiculado e reforçado pela mídia. Ou
seja, ele não precisa e nem deve se conformar com o
que Deus lhe deu”, que, com seu esforço, ele pode
corrigir o que não corresponde ao padrão cultural de sua
época e lugar. Estamos na era da tecnologia do suor
(high-tech sweat) e, através dela, acredita-se que
podemos escolher o corpo que queremos ter: ‘Você
pode se tornar a pessoa que sonha ser’, dizem os body-
builders. Você pode desafiar ao mesmo tempo o inato e o adquirido e fazer de você um
outro” (S. Fussel, 1991: 73). Como pretendo demonstrar, não é tão simples assim, pois, na
verdade, não sei se temos tantas escolhas, que temos que seguir os padrões de corpo
estabelecidos pela sociedade.
Mas, de todo modo, a ideologia que se vende aos adeptos do culto ao corpo é que o
indivíduo, ele e somente ele é quem vai prestar contas ao olhar crítico e hierarquizante de
seus pares, além de se submeter ao escrutínio da fita métrica, da balança e do espelho em um
processo que exige dele uma conduta ascética, racional e individualista. E mais, além de ser
produto do esforço individual, passa pela conquista de um corpo que só ele vai ter e,
posteriormente, da forma física como veículo de afirmação de status, conquista de parceiros
sexuais em mesmo nível estético e inserção social. Goldenberg e Ramos também apontam
que, para se atingir a forma ideal e expor o corpo sem constrangimentos, é preciso investir na
força de vontade e na autodisciplina, como reforçam, inclusive, as revistas de estética.
É como se a possibilidade de construir um corpo ideal, com o auxílio desta tecnologia
do suor se confundisse com a construção de um destino, de uma obra. Kélh (2002) cita um
entrevistado, freqüentador de academias de ginástica: “Hoje eu sei que posso traçar o meu
próprio destino”, associando o aumento de seu volume muscular à conquista de respeito por
si mesmo. Outras entrevistadas também ressaltam que o indivíduo pode e deve recorrer a
todos os recursos técnicos disponíveis para a obtenção do corpo perfeito:
Figura 5 - Tecnologia e corpo
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 141
“Passa muito pelo esforço do indivíduo. Eu não acho que passa um pouco. Depende de
mim se eu quero ter um corpo magro e saudável ou não. Tanto o homem quanto a
mulher, hoje é feio quem quer, hoje todo mundo usa aparelho nos dentes, todo mundo
tinge o cabelo... Antigamente diziam “Não, não vou usar aparelho, é muito caro, não é
possível pra minha pessoa”, hoje é você querer que é possível sim, você tem que
investir, isto tem que estar claro pra você.” (Mulher 64, 49 anos).
“Exige vontade, exige disciplina, exige perseverança, porque às vezes, você cansada,
você não tá com a nima vontade de vir, exige perseverança,você fala, ‘não vou ir,
nem que eu peque um pouco mais leve’, vai da insistência. Ginástica... se você o
insiste, se você não coloca uma vontade, você não faz, você vem um dia, fica duas
semanas sem vir...” (Mulher 49, 27 anos)
“Pra conquistar o corpo que você quer exige esforço, é inevitável, por isso que eu acho
que ginástica, pra quem começando, ela é...é difícil, não é fácil, tem que trabalhar o
esforço, tem que tornar isso um hábito na sua vida, tem que ir contra a preguiça, contra
o desânimo, porque é cansativo, exige muito. Não é muito fácil, ela tem que ser
gradativa, se esforçando, adquirindo o hábito, seu esforço vai fazer diferença, você vai
sentir, vai aumentando o seu grau de ginástica, sua capacidade, tem que ter paciência,
persistência, eu acho que aí o exercício se torna um hábito, você não pode mais viver
sem, mas tem que ter esforço, é difícil. É, mas você conquista sim” (Mulher 20, 33 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 142
b) IMPORTÂNCIA DO CORPO NA OBTENÇÃO DE PARCEIROS AFETIVOS E NO MERCADO DE
TRABALHO:
Outro motivo fundamental para que haja um culto ao corpo é, segundo as entrevistadas,
a importância que o corpo assumiu na obtenção de parceiros afetivos e melhores empregos:
Vemos que 11 % declararam que a aparência física influi pouco. Para 29% ela é
importante na escolha e para 59%, beleza e aparência são relativas na escolha dos parceiros.
No entanto, estas porcentagens devem ser vistas com algumas ressalvas, principalmente a
faixa de 59%, que responderam “mais ou menos”.
Isto se deve a vários motivos, que puderam ser detectados com as entrevistas
gravadas. Algumas mulheres responderam “mais ou menos” porque já eram casadas há algum
tempo, muitas conheceram seus maridos e se apaixonaram, ainda que eles não fossem
considerados por elas bonitos. Outras responderam que mais ou menos no questionário
fechado, mas depois na entrevista admitiram que a aparência física conta muito:
“Ficava chato responder isso, me senti fútil, preferi por só mais ou menos (Mulher 70, 30
anos)”,
Na escolha de parceiros afetivos? Ah, acho que todo mundo tenta dizer que não, mas
no fundo você não vai querer uma pessoa horrível, acho que é legal e tal a
Gráfico 24 - Aparência física na escolha de parceiros afetivos
Você acha que a aparência física interfere
na escolha de parceiros afetivos?
11%
59%
1%
29%
pouco
mais ou menos
bastante
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 143
personalidade, é isso que conta mesmo, mas também não pode ser uma pessoa muito feia.
Tem que ter uma atração física também” (Mulher 5, 22 anos)
“Eu acho que num primeiro momento até sim, mas quando a pessoa vai se conhecendo,
não é tudo. Mas num primeiro instante a aparência conta bastante” (Mulher 1, 30
anos)
“Conta. Eu acho que pra mulher sim né? Eu acho que na primeira impressão é o que
conta. A beleza conta muito, depois não... A beleza é mais importante do que no passado.
Hoje em dia... se tem uma mulher bonita e uma mulher feia eles vão pra bonita primeiro.
Eu não tenho muita dúvida. Por isso que tem esses problemas todos nas adolescentes.
Elas já se sentem muito cobradas. Muitas meninas já colocando silicone nos seios,
porque elas sentem a necessidade disso” (Mulher 7, 39 anos).
“É mais ou menos importante porque eu dou bastante valor ao ser humano. Eu gosto de
conhecer mais interiormente uma pessoa. É “mais ou menos” porque à primeira vista a
aparência tem certa importância assim, de você...pelo menos pra você se... Como é que
se diz... Se enquadrar. Não enquadrar, ficar mais relaxada, mais a vontade, que você se
identifica” (Mulher 31, 54 anos)
“Total! O que vende é a imagem, né? Você pega uma mulher com 100 quilos, quem vai
chegar perto desta mulher? Ela pode até arrumar um namorado, mas pra ela arranjar
este cara muitas vezes vai trabalhar com ela, vai conviver com ela, ele vai conhecer
outros valores, muitas vezes o cara está muito carente, ou ele tem problemas de auto-
estima, é muito difícil você ver um cara bem resolvido com uma tranqueira do lado (...)
quando a mulher é gorda, mal -arrumada, mas porque? Porque estão casados, às
vezes até por questões financeiras mantém [o casamento]. Mas eu acho que é muito
importante. Para o homem principalmente, acho que o físico conta mais para o homem
do que para a mulher, muito mais, muito mais, é mais fácil você ver uma mulher com um
homem feio do que um homem com uma mulher feia” (Mulher 34, 33 anos).
Por outro lado, várias mulheres foram enfáticas na opinião de que a aparência conta
muito na escolha dos parceiros:
“Para eu escolher alguém, a parte física importa. Eu não quero uma pessoa que não faça
nada, que seja gorda, que não goste de esporte, porque não vai me acompanhar, eu sou
uma pessoa esportista, que gosta de estar sempre fazendo alguma coisa, então nesse
aspecto me atrapalharia uma pessoa que não pudesse me acompanhar. O que eles
pensam de mim é realmente importante, porque eu me esforço pra estar dentro de um
equilíbrio.” (Mulher 39, 58 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 144
“É, na escolha dos parceiros, eu sempre digo pras adolescentes que o homem não vai
atrás da mulher pela beleza interior, ele depois descobre a beleza interior, se ela é,
intelectualmente satisfatória pra ele. Mas a primeira coisa que chama atenção, é o físico,
sem dúvida, se olha pra mulher, alguma coisa te encanta (...) O cara vai olhar pra
matrona? Dificilmente. Eu acho que não, é querer se enganar dizer que o homem vai
atrás da beleza interior, do mesmo jeito que a mulher também não vai. Quando a gente
olha pra um cara, a gente se é um gato, depois quando ele abre a boca, você sai
correndo, não satisfaz, mas a primeira coisa que te chama atenção é a beleza física (...)”
(Mulher 44, idade não declarada).
“Olha, no relacionamento afetivo, com o meu marido nem tanto porque ele já me
conheceu gordinha, aliás, nos dois estávamos gordinhos quando casamos (...) mas hoje
um cobra o outro mais para estimular o outro a não deixar cair a peteca (...) (Mulher 28,
35 anos).
“Eu acho que ‘no vamos ver’ [no momento do intercurso sexual] não, mas depois na
hora do banho, você vai fazer alguma coisa interfere um pouco, “puxa, a minha mulher é
uma gata”, isto interfere, eu acho que sim. que tá, não precisa ser maravilhosa, tem
que ajeitada, é isso que eu acho. A pessoa não tem que linda maravilhosa pra dar
tesão pro marido, você tem que tá bem(...)” (Mulher 55, 44 anos).
“Para encontrar um companheiro eu acho que sim. É quase um p-requisito” (Mulher
19, 51 anos)
Vale lembrar que hoje o contato corporal entre os parceiros é muito mais intenso e
direto do que nas décadas anteriores. Na década de 1920, um rapaz e uma moça que
iniciassem um namoro tinham pouco contato sico antes do casamento, sendo vigiados por
parentes, em geral, da moça. Conversava-se muito antes de um envolvimento mais físico, ao
contrário do que ocorre hoje. Se algumas décadas atrás as afinidades morais, intelectuais e
mesmo de assuntos comuns podiam a compensar detalhes da aparência, hoje isto é bem
mais difícil de ocorrer. As pessoas jovens se encontram em “baladas”, onde o corpo e a
aparência figuram como primeiros mediadores. É de praxe “ficar” logo no primeiro encontro,
sendo, portanto, mais difícil “abstrair” o corpo do outro. Desta maneira, os padrões corporais
acabam tendo maior importância que tinham no passado, pois funcionarão como “iscas”,
atraindo ou não potenciais parceiros.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 145
Percebemos também nas falas que a beleza é hoje uma espécie de capital simbólico que
agrega representações de sucesso e de status, ou, como definiu Pierce, um “indicador”
52
de
pessoa bem-sucedida. A beleza vira mercadoria, passível de ser comprada através de diversas
técnicas, e mais do que tudo, desejada, contemplada. Todos querem ser belos e/ou, ter ao lado
pessoas belas. Hoje, ter um corpo malhado é um sinal de status e, num cenário em que os
casamentos não são mais arranjados como eram na aristocracia, nem dependem tanto de
nomes e sobrenomes. Em tempos de culto ao corpo, apela-se para a beleza. Ou, como diria
uma das entrevistadas:
“Às vezes, não é nem papo, nem é conversa, nem é isso que a pessoa tem pra te oferecer,
se você anda com uma pessoa bonita as outras pessoas te olham de uma maneira
diferente, se a pessoa é bonita elas te olham diferente. No meu caso conta [a aparência
na escolha dos parceiros], eu sou honesta em dizer, no meu caso conta, com certeza”
(Mulher 10, 26 anos)
A pesquisa questionou também a importância da aparência física no mercado de
trabalho. Para 59% das entrevistadas, uma associação direta entre aparência e mercado de
trabalho:
52
Ver discussão sobre os signos enquanto marcadores sociais no item 4.2.4 -- Importância do corpo: Presente e
passado.
Gráfico 25 - Aparência e Mercado de Trabalho
A aparência física influi no mercado de trabalho?
5%
1%
59%
35%
pouco
mais ou menos
bastante
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 146
No mercado de trabalho a beleza também se torna um poderoso atrativo, ou, como
disseram as entrevistadas, quando não é decisiva
53
, ao menos, abre portas:
“Realmente a beleza abre mil portas (...) Existem vários tipos de beleza, o que é belo pra
mim, às vezes pra você não é. Mas a beleza importa e numa entrevista de emprego ela
conta” (Mulher 45, 43 anos).
“Ela é o cartão de visita, então acho que você tá fazendo entrevista pro trabalho, você,
eu acredito nisso, se você não legal esteticamente, você não se cuida, você passa
desleixo, você é obeso, você passa uma coisa negativa, pô o cara não se cuida, então isso
deve influenciar no trabalho (...) eu acho que isso, isso ajuda muito” (Mulher 49, 27
anos).
“No mercado de trabalho eu acho que a aparência influencia bastante. Eu vi até
reportagem na televisão de pessoa gorda que não consegue emprego. Eu não digo que
tenha que ter um corpo perfeito, escultural, nada disto, mas tem que ter alguma coisa”
(Mulher 52, 48 anos).
“Olha, eu nunca tive experiência, pois eu sempre fui patroa né. Eu nunca trabalhei pra
ninguém. Então eu não vivo esse dia a dia para saber, mas eu acho que sim. Pelo que eu
observo, eu acho que deve ser muito importante a aparência” (Mulher 31, 54 anos).
“Ah sim, eu não achava tão importante, mas eu tenho uma amiga que...ela não é bonita
(...) e ela foi recusada, não aceitaram ela no trabalho dizendo que ela é feia, então assim,
é muito importante, não pela beleza mas pela maneira que você vai se apresentar.
Uma pessoa bem vestida, uma pessoa bem arrumada que sabe falar direito e tá bem com
o corpo, sabe, magra, com certeza tem mais oportunidade (...)” (Mulher 41, 19 anos)
“No mercado de trabalho influi. As pessoas obesas... Hoje em dia é considerado uma
discriminação até. Mas influi”. (Mulher 7, 39 anos)
“A aparência influi “mais ou menos” no mercado de trabalho. Porque não adianta você
ser muito bonito e não saber falar direito, não saber se expressar (...) Mas a aparência
conta mais hoje pra arranjar um emprego do que no passado” (Mulher 12, 48 anos)
53
Segundo informações de uma comissária de bordo que trabalha para uma empresa de aviação brasileira, a
direção da mesma informou aos seus funcionários, em especial, para as funcionárias, que o novo uniforme
seria confeccionado somente até a numeração 42 e deu um prazo de três meses para que as funcionárias
acima desta numeração reduzissem seu peso, sob pena de demissão ou diminuição da escala de trabalho
das que não se adequassem à nova silhueta.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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As falas ressaltam que ter corpo e rosto bonitos é tão importante quanto ser competente,
pelo menos num primeiro momento. Escolhe-se o candidato também se levando em conta sua
apresentação pessoal; assim, duas pessoas com a mesma formação não têm necessariamente a
mesma chance, o de melhor aparência vence a disputa. Pode ser que depois o empregador
perceba que não foi uma boa escolha e que faltam outros atributos ao funcionário, e até o
demita. Se o trabalho envolver atendimento ao público, a beleza se torna ainda mais
importante, pois se acredita que ela vai atrair o cliente, que depois, pode se interessar pelo
produto.
Se o trabalho desenvolvido estiver ligado ao corpo, como no caso dos professores de
ginástica, esteticistas, nutricionistas, terapeutas corporais, etc, ele é fundamental, muitas
entrevistadas disseram que o corpo é o próprio cartão de visitas e que ter um corpo malhado
lhes confere legitimidade profissional:
“Eu acho que a aparência influi sim no mercado de trabalho. Eu acho que as pessoas
que dizem que não, não estão sendo verdadeiras. Eu fui fazer uma vez uma entrevista
numa academia e a gerente falou assim pra mim: ‘Veio uma outra professora de balé,
mas ela era gorda’, ela nem quis saber o currículo da professora. Ela foi muito clara, ela
falou que não tinha contratado a pessoa porque ela era gorda, na academia tem isso,
vendedora...” (Mulher 22, 32 anos)
“Eu trabalho com saúde, então pra mim, professora de educação física, é muito
importante este cuidado como o corpo, a gente vende um pouco disso, não é você ter um
corpo bonito que você vai se tornar uma profissional bem qualificada, mas acho as
pessoas que vem em busca de nós, elas buscam um pouco disso, elas se espelham na
gente(...) se você cuida ou não do seu corpo, isto influencia muito” (Mulher 54, 26 anos).
“Também. Acho que as pessoas não vão chegar e contratar qualquer pessoa, de qualquer
jeito é ... o corpo, eu como faço educação física, é o meu cartão de visita, entendeu. Meu
corpo para o meu aluno vai ser meu cartão de visitas, então acho que é importante para
o mercado de trabalho.” (Mulher 10, 18 anos).
“Ah, eu acho, imagem é tudo, pelo menos na minha profissão; por exemplo, eu pelo
menos não consigo ser tratada por uma pessoa... feia, digamos. Eu não conseguiria ser
tratada por um terapeuta gordo demais, que fosse descompensado, aporque a minha
linha é terapia corporal (...) É muito difícil você contatar um personal gordo, se você
soubesse que a pessoa tem um currículo muito bom, porque imagem é tudo” (Mulher 34,
33 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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“Da educação física, com certeza. Influi tanto a aparência, como a idade . Então a
professora, ou o professor, se ele não tiver um shape, ele é o espelho, é como se fosse
num nutricionista e ele fosse obeso, então a nossa profissão é um espelho, nossa, se essa
pessoa não se cuida, eu não quero ficar igual, é a primeira coisa que a pessoa pensa né,
então eu acho que é importante” (Mulher 59, 39 anos).
Mas, de todos os motivos que tentam explicar o culto ao corpo, os mais significativos,
ao meu ver, se relacionam aos seguintes temas: exposição do corpo, existência de modelos de
beleza, culto à perfeição, competição e, sobretudo, a mídia.
c) EXPOSIÇÃO DO CORPO.
A intensa exposição do corpo foi largamente citada e 53% da amostra julgou-a
exagerada e 43% julgou intensa, o que totaliza 96% da amostra. Um total quase inexpressivo
(3%) acha que o corpo está mais ou menos exposto:
As entrevistadas afirmam:
“Acho que até por conta da exposição do dia-a-dia, a pessoa está mais exposta, as
roupas, blusinha curtinha, regatinha, calça mais apertada, em função disto” (Mulher 2,
31 anos)
“Existe sim. Eu acho que conforme foi se mostrando o corpo, foi diminuindo a roupa,
você vai cuidando mais do corpo, você vai a praia e os biquínis cada vez menores, as
Gráfico 26 - Exibição do corpo
Você acha que hoje a exibição do corpo
é...
3%
43%
53%
0%
1%
pequena
mais ou menos
intensa
exagerada
outros
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 149
pessoas mostram cada vez mais o corpo, então você tem que estar em ordem pra que todo
mundo olhe pra você e veja e digam “olha, toda trincada”, como dizem. A mídia
contribui muito. Sempre alguma coisa de estética. Sempre. Eu acho um exagero isso,
não precisa. Não tem como ser perfeito. Daí vai sair, vai extrapolar o humano. Vai
começar a colocar aqui, tirar ali, pra quê ? ” (Mulher 7, 39 anos).
“Eu acho que é mais a exposição que tem hoje em dia e não sei...é você querer...se
igualar, ou ficar parecida, você sempre tem uma referência e acho que hoje em dia está
muito exposto isso, tá bem exposto, todo mundo anda pelado...” (Mulher 18, 23 anos)
“Pode. Porque você que uma pessoa magra hoje tem mais chance em tudo, até na
roupa, você vai à loja, do 40 pra cima quase não tem, todo mundo tem que ter assim o
corpo da Gisele Bündchen, no momento é isso, eu acho assim, muito, não é uma falta de
respeito, mas é uma pena que eles peguem com relação a isso, não vejam os outros”.
(Mulher 62, 27 anos).
De fato, basta observarmos ao redor para constatarmos que as roupas estão cada vez
menores, e não apenas roupas de banho, as roupas cotidianas diminuíram progressivamente de
tamanho. Se nos remetermos aos séculos anteriores aos séculos XX e XXI, esta mudança é
radical. Mas mesmo se reduzirmos o universo da comparação aos últimos dois séculos, temos
o advento da mini-saia nos anos sessenta e nos anos setenta o biquíni de duas peças, que
utilizado por Leila Diniz chocou boa parte da sociedade da época (que, para aumentar a
polêmica, utilizou-o estando grávida). Comparado aos biquínis de hoje, ele seria, no mínimo,
considerado gigantesco. Dos anos de 1990 pra cá as calças de cintura baixa fazem total
sucesso e a cada ano, estão mais baixas. Os tamanhos diminuem nas lojas, como dizem duas
das entrevistadas:
“Os números das lojas de roupa estão sempre cada vez menores, cada vez que você
chega lá a numeração é menor, é menor, é menor” (Mulher 62, 27 anos)
“Por que se você está toda flácida, você vai às lojas e as lojas têm sempre manequins
menores, você vai, acha a roupa linda, mas você não consegue entrar, porque realmente
as roupas vão diminuindo, hoje o estereótipo é o da mulher magra, das modelos, magras,
magérrimas.” (Mulher 37, 33 anos).
A indústria da moda diminuiu e apertou o tamanho das roupas e, ao mesmo tempo,
associou a elas uma áurea de beleza; então, quando a mulher vai às compras, se precisar de
tamanhos um pouco maiores, precisa recorrer a lojas especializadas. Foi-se o tempo em que
aqueles considerados obesos precisavam comprar roupas em lojas que lhes fornecessem
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 150
um tamanho adequado. Devido à estas mudanças nos padrões das roupas, é possível que
mulheres não obesas, dentro de uma média de peso e altura considerados “normais”, não
consigam comprar roupas “G” em lojas de departamento, pois o G” de hoje é semelhante ao
“P” de dez anos atrás. Segundo Proust, “mostra-se cada vez mais o corpo: cada etapa desse
desnudamento parcial começa provocando certo escândalo, depois se difunde rapidamente e
acaba se impondo, pelo menos entre os jovens, aumentando a distância das gerações (...)
Mostrar os seios e as coxas deixa de ser indecente. E nas cidades, durante o verão, vêem-se
os homens de bermuda, camisa aberta ou tronco nu. O corpo não é apenas assumido e
reabilitado: é reivindicado e exposto à visão de todos” (Proust, op.cit.: 105).
Além disto, há uma correlação entre o fato do Brasil ser um país tropical sendo,
portanto, maior aqui a exposição do corpo, incentivando o culto ao corpo, como bem indicam
as mulheres:
“Eu vou muito aos Estados Unidos e eu vejo isso perfeitamente, o que eu vejo de gente
mais gorda, mais obesa, só que lá a preocupação com o corpo e com a auto-estima não é
tanto como no Brasil, talvez por ser um país tropical, onde as mulheres estão com menos
roupas, mais expostas, é mais quente, o brasileiro é um povo mais sensual, então eu sinto
isso, da auto-estima ter crescido com relação ao corpo, a valorização do corpo, mas isso
é uma coisa muito forte do Brasil” (Mulher 16, 36 anos)
“Eu fui para Londres e ... nas danceterias a menina que chama a atenção ela não é
aquela magra, pelo contrário. Eu vi uma gordinha dançando(...), tinha várias magras e
ela não tava nem ai, por que quem estava de estilosa, uma postura mais alegre era a
gordinha, que dançava melhor, mais solto, mais desencanado, aqui você não isto.
Aqui, aqui a estética é mais forte, eu acho que o padrão é mais rigoroso (...) Um país
tropical, é ... não sei, talvez a intimidade, a cultura, é outro jeito, não sei” (Mulher 26, 18
anos).
“É uma coisa meio, não sei, falando do Brasil, eu conheço um pouco porque eu viajo,
nos lugares que eu conheço não é tão assim, aqui a gente um valor exagerado,
exacerbado com o corpo, acho que tem a ver com este culto da juventude e da beleza.
Aqui no Brasil existe essa sensualidade, é país tropical, então o corpo está sempre
exposto (...) a gente cultua a beleza física...tudo! A juventude e a beleza. Aqui a beleza e
a juventude contam muito para se ter um companheiro” (Mulher 31, 54 anos)
“No Rio cultua muito mais estética, as pessoas vivem de biquíni, como é que não vão
pensar mais no corpo se ele está mais exposto, né?” (Mulher 8, 25 anos)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 151
O que percebo é um círculo vicioso: como as roupas estão menores e o corpo está na
ordem do dia, este fica mais exposto. Ora, o que é mais visível, pelo menos na nossa cultura,
deve ser mais bonito, então a maior exposição do corpo faz com que ele se transforme em
alvo das atenções e, portanto, num objeto cultuado. Cultua-se a aparência e/ou beleza e
investe-se em mecanismos para se alcançar o padrão de corpo veiculado, seja através da
malhação, seja através de dietas. que, uma vez alcançado este formato de corpo, o que
fazer com ele? Escondê-lo? Pelo contrário: na medida em que o corpo vai ficando mais
bonito, você também quer expô-lo mais. Este é um dos pontos centrais da cultura do corpo e
central para nossa reflexão. Como a identidade é sempre um mecanismo construído no embate
de relações, o que eu sou e o que eu penso de mim o existem independentemente do modo
como os outros me vêem e, ao fazê-lo, não me vêem, mas me avaliam. Então o corpo
malhado é fundamental para a auto-estima das pessoas, para que elas se sintam, como dizem
as entrevistadas, “bem consigo mesmas”, mas isto alcança sua real importância se visto e
admirado pelos outros, daí a necessidade de exposição.
Ou seja, se é verdade que a exposição leva a um culto ao corpo, o contrário também é
verdadeiro: faz parte da própria ideologia do culto ao corpo que o mesmo é plástico, passível
de ser remodelado com exercícios e dietas e que, quando isto acontece, o corpo passa a ser
passível de exposição. Aliás, é ainda mais complicado: para boa parte das entrevistadas o
corpo só pode ser exposto se estiver malhado:
“Eu gosto de estar sempre com uma roupinha de ginástica bonita, eu gosto de por a
roupa e ver que ela está bonita no meu corpo, não pode estar com banha sobrando aqui e
ali” (Mulher 65, 61 anos).
“É muito bom quando dizem no vestiário ‘Você com um corpão, bonita’. Quando a
gente está se trocando, dá pra ver todos os detalhes, uma amiga te diz isso, a gente já
fica melhor, porque tão te vendo inteira, sem uma máscara ou uma roupa que te cobre as
imperfeições, você vai ficar mais satisfeita.” (Mulher 43, 39 anos).
“Eu acho que à medida que o corpo melhora, a gente vai descobrindo [no sentido de
tirar a roupa] mais ele. Quando a gente começa, quer esconder um pedaço da barriga,
mas depois, você vai vendo que tá melhorando, que já não tem mais barriga, você vai se
expondo. A gente começa com aquela camisetona grandona (risos), você vai
diminuindo o tamanho dos tops e se mostrando mais” (Mulher 69, 45 anos)
“Quando eu chegava na academia, ficava insegura com meu corpo e não tirava a
camiseta, nem nas aulas! Depois que a barriga foi ficando definida, comecei a sair do
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 152
vestiário só de top e calça de lycra. Aí eu fiquei mais sequinha e mallhada e hoje eu ando
de top e shortinho!!!” (Mulher 68, 34 anos).
“Eu não ficava só de top até melhorar. Quando eu não estava vindo na academia, eu não
gostava de tirar a camiseta, eu tinha bastante gordura lateral, mas foi melhorando, eu fui
perdendo a vergonha e tirando a camiseta, hoje eu não tenho problema de usar short, top
ou calça” (Mulher 1, 30 anos)
“Aumentou bastante a exposição do corpo, e você tem que estar malhado para expor”
(Mulher 2, 31 anos)
“Eu acho que conforme foi se mostrando o corpo, foi diminuindo a roupa, você vai
cuidando mais do corpo, você vai à praia e os biquínis cada vez menores, as pessoas
mostram cada vez mais o corpo, então você tem que estar em ordem pra que todo mundo
olhe pra você, veja e digam “olha, tá toda trincada.” (Mulher 50, 26 anos)
É interessante notar que em todas as falas aparece praticamente a mesma idéia, ou seja,
de que o corpo deve estar pronto para ser exibido, no sentido de estar “malhado”o suficiente.
Esta visão do corpo é profundamente diferente da idéia professada por Bakthin (1987), que
considera o corpo medieval em sua essência inacabado, contento em si imperfeições e falhas,
e estando, da mesma forma que o mundo, em permanente construção. Ele não era limitado por
uma fachada externa perfeita (ver item 3.2.Idade Média e Corpo). Nada mais distante da
concepção atual que postula que o corpo deve ser exposto só quando estiver bonito o
suficiente para isso. A idéia de “pronto” remete aqui à idéia de perfeito, como veremos a
seguir.
d) MODELOS DE BELEZA E CULTO À PERFEIÇÃO.
Outro dado que aparece nas entrevistas e que confirma a dificuldade de estabelecer a
ordem dos fenômenos é a questão da perfeição, muitas vezes citada para se explicar o próprio
culto ao corpo.
“Existe uma cultura da perfeição. Voque hoje o perfil dos que malham mais é o
jovem. E eles não só malham como vão pra cirurgia plástica, põem silicone” (Mulher 10,
26 anos).
“Ah, muita cultura da perfeição. Existe, nossa, muito, muito. Ainda mais em quem faz
ginástica, quer que a pessoa que esteja do lado seja perfeita, hoje em dia está todo
mundo malhando, até de madrugada, tenho amigos que trabalham o dia todo e são
triatletas, e muitos cobram das esposas que trabalham, que têm filhos e não conseguem ir
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 153
á academia, enchem o saco delas, cobram muito delas porque são gordinhas, tem
celulite. Eu vejo muito na minha turma que as mulheres são cobradas para estarem bem”
(Mulher 14, 34 anos).
“Total cultura da perfeição, total, enlouquecedora. Elas fazem as plásticas porque elas
acham que vão ser mais amadas e elas fazem e percebem que não são mais amadas
por causa disto, e começam mil paranóias, tipo, “mudei meu corpo e a pessoa que eu
amo não me ama mais por causa disto”, ou “não reconheço o meu corpo”, depois tem
que ter um trabalho de reconhecimento do corpo (...) mas acho que não é na questão de
colocar ou não prótese, a questão é que as pessoas acham que ter um corpo melhor ou
mais bonito é garantia de amor” (Mulher 34, 33 anos).
“Vive uma cultura da perfeição. Infelizmente vive. A mulher tem que ser maravilhosa,
tem que ser Daniella Cicarelli, é bem isso” (Mulher 38, 48 anos).
“Se não existisse uma preocupação com a perfeição não haveria tanta gente fazendo
cirurgia, plásticas, lipoaspiração, lipoescultura, eu acho que assim, uma coisa ou outra,
uma pessoa que não tenha nada de peito, esteja se sentindo mal, quer se sentir bem, tudo
bem que ela coloque, mas tem coisas que chega a se mutilar (...)” (Mulher 41, 19 anos)
“Esta busca da perfeição, o que influencia muito isso é a publicidade, que a gente tem
hoje, você vai a qualquer avenida, você a quantidade de outdoor, o mercado
publicitário cada vez mais investe em mulheres bonitas para poder divulgar os seus
produtos (...) isto influencia muito a busca perfeição, a busca pelo ideal, pelo corpo”
(Mulher 54, 26 anos)
“Aqui na academia é demais, pelos espelhos que a gente tem na academia, a
quantidade de espelhos que a gente tem aqui é absurdo” (Mulher 57, 28 anos).
“Existe hoje uma cultura da perfeição, demais, nunca está bom. Você se propõe a treinar
bastante, a comer direitinho, mas você sempre vai olhar no espelho e achar alguma coisa
que não está boa, se você não tiver muita ocupação, toma muito do seu tempo, então se
você tem muito tempo pra pensar numa coisa só, acho que ela toma uma direção
exagerada, uma neurose (...) principalmente para quem tem poder aquisitivo alto. As
mulheres querem sempre mais, eu acho que tem um exagero sim” (Mulher 5, 22 anos)
Podemos perceber que no processo de culto ao corpo, meio e fim se confundem,
tamanha é a supremacia dos modelos estéticos. É preciso estar bela, ou até mais do que bela,
perfeita. E o que é ser perfeita? Uma das entrevistadas (Mulher 14, 34 anos) diz que os
próprios maridos cobram a perfeição das esposas, mas estas são gordas, têm celulite. Então,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 154
por oposição, a mulher perfeita é a magra, sem celulite. E também sem estrias. Com seios
duros, levantados e grandes. Com o corpo malhado e tonificado, com nádegas arredondadas e
firmes. Cabelos impecáveis, rosto sem rugas. Pele uniforme, lisa. Cintura fina. Ou seja,
mulheres com um corpo e um rosto que nunca envelhecem, apesar da idade; o perdem as
formas, mesmo depois de vários filhos; cujos cabelos são sedosos e brilhantes, mesmo com o
passar dos anos. A cultura da perfeição dissolve as marcas do tempo e proclama o triunfo da
técnica e da padronização sobre o eu: se o seio caiu, levante-o com plásticas, você pode ter
um seio melhor do que tinha aos 18 anos. Com botox, você se livrará das rugas de expressão;
você malhou bastante, mas não conseguiu uma cintura de pilão? É só tirar as costelas! O
corpo da atriz de televisão é o que você sempre quis? É possível com plásticas. Engordou por
causa dos filhos e a rotina não permite exercícios? Faça de madrugada. Somos compelidas a
alcançar um padrão estético que muitas vezes o tem nada a ver com a estrutura do nosso
físico, ou com a nossa idade: é o padrão das modelos, ou, como disse uma entrevistada, temos
que ser todas iguais a Daniella Cicarelli (modelo e atriz de televisão). A beleza está na mídia,
na moda, nos outdoors e, mais que um direito, é hoje um dever. A feiúra constrange,
envergonha. Isola. Ou, como diria a mulher 11, “a sociedade discrimina quem é feio, quem
tem um corpo feio”. E como os parâmetros estão cada vez mais altos, qualquer detalhe é o
bastante para que sejamos vistos como não-perfeitos: uma gordurinha ínfima sobrando, dois
ou três quilos a mais, um bumbum com um pouco de celulite e alguma flacidez, vincos na
pele, seios tamanho médio... Ser saudável e bonita não basta, é preciso ser perfeita. Mesmo
que para isso seja preciso recorrer a plásticas, como diz uma das entrevistadas:
“Para algumas criaturas virou neurose, se retalham todas e saem tentando lipoescultura,
para modificar tudo” (Mulher 42, 66 anos).
Algumas entrevistadas reforçam a existência destes padrões estanques de beleza e a
influência dos mesmos no processo de culto ao corpo:
“Eu acho que sim, total. É um padrão de beleza pra massacrar né, eu acho que as
meninas sofrem muito com isso, porque a brasileira não tem este corpo que é exigido, de
quadril estreito, elas querem diminuir o quadril, aumentar peito, bem diferente do
corpo da brasileira, eu acho que é um padrão de beleza que faz as mulheres sofrerem
muito” (Mulher 19, 51 anos).
“Com certeza, com certeza. Com certeza você tem hoje um padrão estético que é um
padrão físico (...) que faz com que a maioria de nós, mulheres, todos nós, alguns tem uma
graça divina que não se deixam tocar por isso, mas a maioria das pessoas de alguma
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 155
forma se sente tocada. Se você não está dentro deste padrão que na verdade é retocado
pela mídia, você... está excluído.” (Mulher 30, 51 anos)
“Acho que estas manequins muito magrinhas, as meninadas, até as velhas querem ficar
lindas, maravilhosas, e também os muitos recursos que a gente tem, plásticas, peeling,
massagens, botox, tudo isso leva a pessoa a ficar, a querer ficar cada vez mais jovem,
não ficar velha” (Mulher 55, 44 anos).
“Eu acho que são os padrões, você tem modelos magérrimas, a mídia mostrando
mulheres sensuais, nos comerciais, na TV, então você estabelece padrões e quem está
fora deste padrão não é aceito socialmente, então eu acho que vem daí, de ser aceito
socialmente. E quem estabelece este padrão é muito a comunicação” (Mulher 16, 36
anos)
“É, tem muita gente que passa 24 horas pensando, ‘ah, eu não posso comer isso porque
vai engordar, vai para a barriga, vai para o culote’, (...) tem mulher que passa o dia
inteiro comendo fruta, tomando sopa, tomando água, porque tem que emagrecer, tem
que emagrecer, não é assim” (Mulher 25, 19 anos)
uma evidente descartabilidade de pessoas que pareçam envelhecidas ou “fora de
esquadro” e uma luta constante para dissimular os indícios corporais que atestem este
afastamento da juventude ou do padrão que caracteriza o corpo perfeito. Talvez esta busca do
corpo “perfeito”, aliada à percepção de que ele possa ser algo construído, sejam algumas das
razões não só da preocupação de uma faixa etária mais jovem com o corpo, mas inclusive
para o aumento da freqüência da terceira idade nas academias de ginástica, como comprovei
através da pesquisa de campo.
Featherstone (1992:170) afirma que a cultura do consumidor prende-se a uma
concepção autopreservacionista do corpo que encoraja os indivíduos a adotarem estratégias
instrumentais para combater a deterioração e a decadência, e agrega a essa concepção a noção
de que o corpo é um veículo do prazer e da auto-expressão. Neste sentido, Debert (1999: 21)
afirma que os idosos possuem maior disponibilidade para o consumo e que parte deste
potencial é aplicado na transformação corporal, que esta auxiliaria à construção de uma
auto-imagem e de um reflexo mais positivo de si para a sociedade envolvente. De toda forma,
disciplina e hedonismo se combinam na medida em que as qualidades do corpo são tidas
como plásticas e os indivíduos são convencidos a assumir a responsabilidade da sua própria
aparência. A publicidade, os manuais de auto-ajuda e as receitas dos especialistas em saúde
estão empenhados em mostrar que as imperfeições do corpo não são naturais nem imutáveis e
que, com trabalho corporal disciplinado, pode-se conquistar a aparência desejada; as rugas ou
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 156
a flacidez se transformam em indícios de lassitude moral e devem ser tratadas com a ajuda de
cosméticos, da ginástica, das vitaminas, da indústria do lazer.
Sabino (s/d) afirma que nas academias brasileiras o consumo de anabolizantes e a
prática constante de exercícios físicos fazem parte do processo de construção ritual da pessoa,
cuja lógica central passa pela transformação física do corpo.
Falar em “ritual” remete-nos à clássica obra de Turner, O Processo Ritual (1974), em
que o autor nos mostra que uma das chaves centrais para o entendimento de qualquer cultura
reside nos ritos, que os mesmos são indícios para a compreensão de pensamentos,
sentimentos e relações entre os nativos e o seio de suas comunidades. Entre os vários ritos
sociais, destacam-se os chamados “Ritos de Passagem”, ou seja, ritos que acompanham toda
mudança de lugar, estado, posição social de idade” (Arnold Van Gennep, 1960, apud Turner,
1974). Tais ritos caracterizam-se por três fases: 1) Separação, 2) Margem, ou limem e 3)
Agregação. A primeira fase marca o afastamento do indivíduo (aqui chamado de “neófito”) de
um determinado grupo ou ponto fixo na estrutura social. A segunda, marca o processo de
transição, quando o neófito inicia o lento aprendizado das regras, valores e linguagem do
grupo ao qual quer ascender. A terceira fase consuma a passagem e reintegra o indivíduo no
grupo, fazendo com que o mesmo assuma os direitos e deveres de sua nova posição.
Quando analisamos o campo da academia de ginástica, também podemos perceber que a
mesma configura-se como tribo urbana, cuja ética está calcada na estética corporal e que
vêem em seus corpos esculpidos uma marca de status e diferenciação social. Quando
questionadas se as “malhadoras” assíduas poderiam ser vistas como uma tribo urbana, 75%
responderam que sim:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 157
Os motivos alegados para esta associação foram:
“O culto ao corpo vira até uma tribo. Eu acredito. Porque se você não estiver dentro, pra
algumas pessoas tá, se você não estiver dentro, você é excluída. É exclusão social. Então
tem muita gente que está dentro desta tribo para não ser excluída” (Mulher 48, 40 anos).
“Eu acho que depende do grupo que você está, entendeu? Da faixa etária, do sócio
econômico, de repente você vai numa favela, lá não importa se você está gorda ou se está
magra, você faz parte da comunidade ali de outro jeito, e de repente num lugar como a
Cia Atlhética, de repente aqui pra você ser mais aceita você tem que ter um corpo
melhor” (Mulher 57, 28 anos)
“Culto ao corpo sim. Tem muita gente que malha pra isso, pra você na moda né, pra
você estar dentro deste culto ao corpo, que vira até uma tribo, né?” (Mulher 49, 27 anos)
Ou seja, dentro da tribo dos malhadores, podemos perceber claramente as fases descritas
por Turner: As mulheres, ao ingressarem em uma academia, desejam, em sua maioria,
construir um corpo magro e levemente musculoso, para se separarem e se contraporem ao
grupo das “não-malhadas”, “gordas”, “desleixadas”. Elas querem sentir-se integradas e aceitas
em uma sociedade que valoriza a forma física como referencial de status e sucesso. Ela
Gráfico 27 - Malhadores como uma tribo urbana
O público que faz atividades físicas
regulares pode ser visto como uma tribo
urbana?
75%
18%
3%
4%
sim
não
mais ou menos
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 158
tentará, a partir de então, adequar seu corpo à forma correspondente dos novos papéis que
deseja assumir. Assim, ela separa-se do grupo das sedentárias, o que corresponde à primeira
fase do processo ritual, qual seja, a “separação”.
Durante a segunda fase, ela encontra-se num processo de “liminariedade”. Ela ainda é
uma neófita e precisa aprender as regras do grupo, que no caso, envolve praticar exercícios
com regularidade, consumir produtos específicos, manter uma dieta alimentar, conhecer o
nome das aulas, enfim, socializar-se no campo da musculação e dos outros setores das
academias. O processo é permeado de rituais, que envolvem vestimentas, condutas, dialeto
próprio, enfim, toda a manipulação de um universo instrumental e simbólico, que não está
livre nem mesmo da consagrada “eficácia simbólica” (Lévi-Strauss, 1991), ou seja, do
poder, que é próprio do rito, de atuar sobre a realidade agindo sobre a representação que estes
indivíduos fazem da realidade. Quem é adepto de exercícios físicos sabe que a simples
realização do treino previsto já dá ao praticante a sensação de ter melhorado seu corpo, ainda
que ele saiba que os resultados não são tão rápidos assim e exigem regularidade. Mas, ao
menos, ele sente que fez a sua parte quanto ao corpo, é como dizem as entrevistadas, “uma
missão cumprida”. Pelo menos, ele não poderá ser rotulado de “fraco”, desleixado”: ele
“luta” (já que uma verdadeira cruzada contra as adiposidades) para mudar o seu corpo e
empenha-se para isso, o que, no limite, lhe confere até fibra moral, segundo os valores
postulados pela ideologia do corpo perfeito.
Na terceira fase, “agregação”, ela é consagrada ao papel de “malhadora”: suas atitudes e
seu próprio corpo atestam que ela agora é uma “nova mulher, que não se conformou com o que
Deus lhe deu, correu atrás, batalhou, ficou mais bonita e mais segura” (Mulher 70, 30 anos).
O corpo malhado lhe conferirá uma nova identidade, um novo lugar no seio da
comunidade a qual ela pertence, como podemos comprovar a seguir.
e) COMPETIÇÃO E COBRANÇA SOCIAL
A preocupação com o corpo, a importância que ele alcançou no mercado de trabalho,
nas relações afetivas e na relação das mulheres consigo próprias e com os outros, e a
existência de padrões corporais muito evidentes introduzem no sistema duas variáveis
importantes: a competição e a cobrança social. Muitas mulheres se referiram a elas ao falar do
culto ao corpo:
“Ah, eu acho que entra muita coisa, é... insatisfação pessoal, as pessoas começam a se
cuidar, a ficar mais bonitas, existe aquela coisa, um clima de competição, você hoje
uma pessoa bonita, bem arrumada, com um corpo legal, transada, (...) porque que eu não
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 159
vou ficar também? Então isso mexe com o ego, alimenta aquela coisa de você querer
ficar igual, ficar parecido, conseentemente o culto ao corpo que eleva a auto-estima,
uma coisa ligada na outra” (Mulher 46, 42 anos).
“As pessoas hoje estão muito ligadas ao material, são muito competitivas, infelizmente,
eu fui uma adolescente gordinha e eu ... sempre fui feliz em relação a isto. Agora hoje em
dia eu vejo que a meninada mais gordinha fica em depressão (...) o apego ao físico é
muito maior” (Mulher 47, 40 anos).
“Eu acho que as pessoas se comparam muito hoje em dia, a comparação tá muito
grande, “se você tem, eu quero mais do que você, vou pra academia porque tenho que
ficar melhor do que ela”, em todos os sentidos, depois pela parte do corpo também, acho
que antes era material, agora também é pro lado corporal da coisa” (Mulher 61, 29
anos).
Creio que, como o corpo se transforma ele próprio em uma mercadoria rentável,
passível de ser desejado, exposto, comprado, e como veremos com Debord, a modernidade
instaura um culto à mercadoria, nada mais coerente que ter um corpo perfeito adquira tanta
importância quanto ter bens, sejam eles móveis ou imóveis. Como já foi tido, o corpo se torna
um capital, mais um elemento no circuito das trocas econômicas e sociais e a competitividade
do mundo dos negócios se transfere para o corpo. Até porque, como este corpo perfeito custa
muito dinheiro, ele não é para todos: é só para aqueles que podem pagá-lo (embora, enquanto
marca de sucesso, seja desejo da classe “baixa”). O corpo instaura assim, no roll das
diferenças, mais uma, a estética. Num cenário como o nosso, em que a falta de dinheiro pode
levar ao descrédito social e a noção de cidadania passa pela inserção no mercado de consumo,
inferiorizando as pessoas mais pobres e privando-as, muitas vezes do acesso à saúde e à
alimentação, instaura-se mais uma clivagem, a da aparência física. Esta, inclusive, é
indissociável da própria clivagem econômica, pois o corpo perfeito custa muito dinheiro,
requer alimentação diet sempre mais cara que a comum -, cirurgias plásticas
54
, tratamentos
estéticos que correspondem a vários salários mínimos, roupas de ginástica de griffe... Através
do corpo reafirma-se mais uma exclusão social: o corpo malhado nas academias, como
comentou Boltanski (1979), é diferente do corpo do trabalhador, que é um meio para a
atividade e não um fim em si mesmo, que deve ser conquistado via malhação. Nas camadas
superiores da hierarquia social, diminui o volume do trabalho manual em favor das atividades
intelectuais, fazendo com que os indivíduos alterem o sistema de regras que regem suas
54
Embora revistas e cirurgiões plásticos ofereçam cirurgias plásticas em doze parcelas, é inegável que o acesso à
elas é maior entre as mulheres das classes média-alta.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 160
relações com o corpo, dedicando a ele cuidados mais atentos e específicos. Uma maior
preocupação com a manutenção da forma física e da valorização da graça”, maleabilidade e
flexibilidade corporais são mais comuns e intensas nos segmentos abastados do que nas
camadas menos favorecidas economicamente. A valorização da magreza é mais intensa nas
camadas superiores. Nos segmentos subalternos, para os quais a força muscular desponta
como um atributo de maior valor, muitas vezes o magro é visto como “fraco”. A diferença na
terminologia é interessante e comprova esta idéia: pessoas de maior peso (mais “cheias”) são
chamadas de “gordas” entre as classes sociais mais abastadas e de “fortes” entre os menos
favorecidos. Daí que duas pessoas da mesma corpulência física serão consideradas magras
entre os pobres e gordas entre os ricos.
Além do mais, o trabalho muscular aqui não está ligado ao trabalho rotineiro dos
trabalhadores braçais, não está a serviço do sustento familiar mas se configura como um
marcador de classe e da maior capacidade de despender tempo e dinheiro com os cuidados
estéticos.
Portanto, se o corpo de uma pessoa for mais malhado do que o de outra, em termos
hierárquicos, a primeira ganha. Ou, como diz Del Priori, “A indústria cultural ensina às
mulheres que cuidar do binômio saúde-beleza é o caminho seguro para a felicidade
individual. É o culto ao corpo na religião do indivíduo
em que cada um é simultaneamente adorador e adorado.
Mas o culto não é para todos. O tal corpo adorado é um
corpo de ‘classe’. Ele pertence a quem possui capital
para freqüentar determinadas academias, possui
personal trainer, investe no body fitness; este corpo é
trabalhado e valorizado até adquirir as condições ideais
de competitividade que lhe garanta assento na lógica
capitalista. Quem não o modela está fora, é excluído”
(Del Priori: 92).
Não importa se ganho de status, de dinheiro, de
empregos ou de sucesso afetivo, o que importa é que
através do corpo mais malhado a pessoa pode afirmar-
se como superior à outra, mais competente, mais capaz,
mais plenamente realizada. O corpo bonito literalmente pode fornecer mais sucesso
econômico, mesmo para aquelas que não são modelos, como exemplifica a Figura 6, a
aparência define o sucesso ou fracasso pessoal. Ele vende uma imagem de positividade e de
Figura 6 - Aparência e sucesso
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 161
sucesso que pode se converter em ganhos efetivos. Ou, então, ele também pode fazer vender
cosméticos, roupas, cirurgias e outros itens. Na medida em que se cria uma necessidade, que é
ter o corpo perfeito, é preciso também disponibilizar os meios para alcançá-lo, e estes custam
dinheiro, fazem a economia girar. A ideologia do corpo perfeito cria demandas, e num país
capitalista, demandas são vitais para o sucesso da economia. Pode-se comprar tudo hoje em
dia, de cosméticos à prótese de glúteos. Vivemos em uma permanente vitrine de corpos e não
demorará o dia em que compraremos, junto com os produtos de limpeza no supermercado,
uma prótese de silicone, ou, como diria uma das entrevistadas:
“Então, eu acho que a gente pode pensar em vários fatores, políticos, econômicos,
sociais, culturais, pensar, por exemplo, no econômico: o corpo entra em uma linha de
produto de consumo, atualmente as mulheres compram peito, compram bunda, compram
a perda de culote, o corpo hoje acho que é bem de consumo. Como você fala ai do corpo,
tipo se o corpo está mais exposto, eu acho que exposto tem vários sentidos né. Exposto
como tela, se você for pensar nos piercing, nas tatuagens, das plásticas, e exposto porque
está desvelado mesmo, está à mostra” (Mulher 50, 26 anos).
É sabido inclusive que muitas mulheres, principalmente as que estão na mídia, fazem
troca de prótese de silicone porque enjoaram do tamanho ou resolveram que alguns mililitros
a mais fazem uma grande diferença. Submetem-se à uma operação plástica não para corrigir
algum defeito estético muito pronunciado, mas porque a moda pede seios de “X” centímetros.
E é uma busca sem fim, já que a própria idéia de perfeição contém em si mesmo a eterna
renovação.
Vejamos algumas falas nativas:
“Talvez seja por futilidade, só que esta futilidade já virou (...) , vamos dizer assim, uma
cultura. Então hoje a mídia também viu que o que todo mundo gosta de ver na televisão é
um rosto bonito, um corpo bonito, às vezes fala um monte de asneira, ou só aparece uma
bunda na televisão dançando, é o que ibope para eles né, a gente esta em um país
capitalista, precisa ganhar dinheiro, cada uma faz o que faz” (Mulher 26, 18 anos).
“Ah, eu acredito que seja...[ela pensa]... a futilidade mesmo, as pessoas estão mais fúteis
hoje, o capitalismo, pra vender...se você for mais fútil, compra mais rápido” (Mulher 29,
54 anos)
“Eu acho que são as indústrias. Do eternamente jovem são as indústrias de cosméticos,
sem sombra de dúvida, agora de corpo, não sei quem definiu este padrão, sem quadril,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 162
sem bunda, sem peito, ou com peito agora, porque as modelos, elas são magras, mas
agora colocam peito, então fica aquela coisa...” (Mulher 19, 51 anos)
Quando falamos no processo de culto ao corpo, percebemos que a presença de modelos
corporais e a busca da perfeição caminham juntas com a competição, mas também com a
cobrança social, assinalada em várias falas:
“Hoje, quando você entra numa conversa qualquer, a pergunta básica que surge é ‘você
faz algum esporte, faz academia”, então o corpo passou a ser uma coisa assim, ‘ah, é o
corpo’, ‘o que importa é a cabeça’, hoje mudou. E as pessoas valorizam mais o corpo”
(Mulher 2, 31 anos)
“É uma cobrança social. Antigamente não fazia parte do assunto, você encontrava as
pessoas, ninguém perguntava para você: ‘você faz exercício? Hoje em dia faz parte,
‘você faz alguma academia, você corre’? Sabe, faz parte do dia a dia das pessoas, então
isto é cobrado. Agora muitas pessoas começaram a fazer exercícios por causa disto. Se
ela fala "ah eu não faço ginástica", ela já é vista de uma outra forma: "nossa, essa ai não
faz nada”, sabe? é eu acho que as mulheres estão muito neuróticas, elas, entre elas até
colocam, elas não fazem isto por causa do marido, é entre elas. Elas competem, acho que
isto é muito ruim” (Mulher 51, 34 anos).
“Acho que pode falar num culto ao corpo e você vê muito isso aqui na academia. (...) Tá
muito exagerado. Eu vejo a discriminação, eu conheço muita gente que faz triatlon, e
falam, ‘Olha, aquela tem uma gordurinha a mais, tem que ser perfeita’.” (Mulher 14, 34
anos)
“Eu acho que a sociedade, principalmente a mídia tem cobrado muito isso. Tem cobrado,
então as pessoas começam a querer ser igual, ‘ah eu quero ser igual a manequim que
aparece na televisão’, isso faz a pessoa desenvolver este excesso de preocupação
estética”. (Mulher 40, 32 anos)
Como percebemos nas falas, malhar virou tema de conversas, virou assunto. Em
entrevista á revista Boa Forma, a atriz Carolina Ferraz observou que: “Brinco com as minhas
amigas que preciso fazer uma plástica, só para ter assunto”
55
. Se você não pratica algum
esporte, ou não faz atividade física, corre o risco de ser olhada pelos outros de modo
depreciativo, como se a sua falta de atividade física ou de não preocupação com isso refletisse
uma certa lassidão moral, uma preguiça condenável em tempos de exaltação das formas e dos
movimentos. uma cobrança para que, ao menos, façamos nossa parte quando se trata do
55
Revista Boa Forma, editora Abril, março de 2002.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 163
corpo e isso significa fazer exercícios, ou como disse Perrot (1998), “No espaço público a
mulher tem quase um dever de beleza (...) A burguesia reproduz este modelo segundo uma
divisão dos papéis sexuais que delega às mulheres a ostentação do luxo e do lazer” (Perrot,
1998: 22).
Vale perguntar, no caso de nossas mulheres, cobrança de quem? Eu diria que
generalizada, dos maridos ou companheiros, das outras mulheres, de si mesmas e da
sociedade como um todo.
Algumas ressaltam que a cobrança por um corpo perfeito é interna, mas destacam
também a influência da mídia e da sociedade mais ampla:
“Eu me cobro. Meu marido sempre acha que está bom. Eu me cobro porque eu detesto
pôr uma roupa e ficar feia, eu gosto de manter as coisas que eu tenho, que eu gosto, eu
detesto comprar roupa maior” (Mulher 19, 51 anos)
“Eu faço porque não tem jeito, eu sou obrigada. Se eu pudesse estar em casa sentada eu
estaria, não estaria aqui. Eu não gosto de atividade física”.
A cobrança, segundo ela, vem de todos os lados e, indiretamente, até do marido. Ela diz:
“Ele é um exemplo, acorda às 5 horas da manhã, vai todo dia pra academia, chovendo
ou fazendo sol. Então ele é um grande incentivador meu a não parar”.
Outras mulheres são mais explícitas quanto à cobrança (e o apoio) dos maridos ou
companheiros, afirmando que começaram a malhar por causa disto:
“A imagem que meu marido tinha de mim me incomodava há uns três anos atrás, que ele
achava que eu tinha que emagrecer. Eu era muito sedentária, foi depois de um dia que
ele falou, eu tava comendo e bebendo líquido ao mesmo tempo, então ele falou para
com isso, você só engordando’, então eu falei opa, péra aí, tenho que emagrecer, foi
depois disso, juro pra você, eu mudei radicalmente. Eu procurei um endocrinologista,
comecei a fazer uma dieta, reeducação alimentar, e mantive isso, emagreci e comecei a
fazer ginástica. Não que ele não gostasse do meu corpo, mas ele viu que eu não tava me
cuidando né, então me incentivou a mudar” (Mulher 49, 27 anos).
“Meu marido me apóia e cobra muito. Quando não vou à academia ele pergunta ‘Não
vai porque?’ Porque eu gosto muito de tomar sol também, ‘não, você tem que malhar’.
Na alimentação a gente também se pega muito no pé” (Mulher 43 )
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 164
“Para agradar o seu parceiro, deixar o seu parceiro...os dois terem um relacionamento
mais...não sei, acho que como o meu marido também é da área, então a gente vive esta
febre de corpo, então a gente se cobra muito e acho que pelo nosso estilo de vida
mesmo” (Mulher 59, 39 anos).
Aqui, a cobrança está ligada às construções de gênero, que atribuem à mulher os papéis
de bonitas, atraentes, bem como da referida atitude reflexa (Saffioti, 1979)
56
, por meio da
qual os homens exigem, mas também se beneficiam da aparência embelezada de suas
companheiras.
Um outro relato é muito emblemático para se pensar a questão da cobrança: Mulher 13,
de 59 anos, mudou de uma das unidades da Cia Atlética, a unidade da rua Kansas
57
para a
unidade do shooping Morumbi, e ela comenta sobre o peso que a beleza e o corpo tem de
acordo com estes dois locais:
“Com relação aos padrões da mídia, primeiro tem a idade , o aspecto cronológico é
fundamental, eu mesmo não revelava minha idade [59], tinha vergonha da minha
idade, até que chegou um momento astrológico em que você conscientiza a idade. eu
mudei da Kansas, vim para e falei a minha idade e nem por causa disto caiu o mundo
entendeu? E até me permiti engordar alguns quilinhos. Na Kansas existe uma cobrança
muito grande neste sentido, eu não sei se você conhece a Kansas? (...) É onde a
‘Feiticeira’ treina, onde treina esta que casou com o Mike Jagger, então existe um culto
ao corpo lá excessivo, tanto da parte dos homens, como das mulheres, gatos e gatas”.
Eu pergunto a ela se a pressão pelo corpo perfeito é maior na Kansas” do que na
unidade do Morumbi e ela diz:
“Muito mais! E aí, os mortais, os normais, saem de lá, você não encontra uma gorda
treinando lá de jeito nenhum, você se sente mal de ficar gorda , onde tem gente
bonita. Beleza é uma obrigação, se você quer participar desta sociedade que é a
dos jovens , [freqüentadores de] Maresias [praia de Maresias, litoral Norte], você tem,
no mínimo, de ter um ponto alto na parte do corpo” (Mulher 13, 59 anos)
Ou seja, o corpo, a magreza, a juventude passaram a ter tanta importância na nossa
cultura que inibem as pessoas de procurarem uma academia de ginástica se elas não estão
perto da perfeição! É uma cultura claustrofóbica, que ao mesmo tempo em que nos empurra
56
Ver discussão no item 2.2.2 Perfil sócio-econômico. Renda, Estado Civil e Exercício da Profissão.
57
A academia de ginástica Cia Atlhética tem várias unidades dispersas pela cidade de São Paulo (e também por
outros estados) e, destas, a unidade da rua Kansas foi eleita como a predileta dos famosos, principalmente,
daqueles que estão na mídia, como atores, atrizes e apresentadoras de programas televisivos e, que buscam
conquistar e/ou reforçar seu status.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 165
para a necessidade de “malhar”, também exclui do mundo das “malhadas” aquelas que ainda
não chegaram lá, mas que estão procurando ao menos “entrar em forma”. É como se houvesse
academia para “sarados” e academias para não “sarados”, unidades corretas para uns e não
para outros! Será que os obesos precisam fazer ginástica em casa e se matricularem na
academia quando estiverem magros? Quando puderem, enfim, desfilar seus corpos sarados e
se auto-afirmarem por ele?
Dois outros depoimentos evidenciam a cobrança social e sua relação com o
estabelecimento de modelos corporais e, conseqüentemente, da necessidade de se ter um
corpo perfeito.
“Sim, o tempo todo, a gente é cobrada, vo olha no espelho, e o que você busca é uma
imagem que te impuseram para ser buscada, então o que tem de excesso, ou de diferente
em relação ao que padroniza como bonito incomoda, que eu não consigo preencher
este ideal. Isto gera frustração” (Mulher 23, 48 anos).
“As mulheres estão preocupadas com um padrão social porque hoje a sociedade, a
mídia mesma, ela exige que a mulher seja perfeita, tenha um corpo perfeito, seja bonita,
cheirosa... A gente teve um congresso agora, na nossa área de educação sica. E meu
marido é muito querido, eu também sou muito conhecida...Bem, tem um ano e quatro
meses que eu tive o último filho e eu tô voltando agora, e aí eu ouvi um comentário assim
‘Nossa, eu não sei como ela não tem ciúmes do marido, que é uma pessoa tão querida’ ,
eu fiquei pensando, “Eu também não sou um tribufu, eu muito bem comigo mesma”.
Então é aquele lado, ela teve filho, ela ainda não perfeita, então você tem que
perfeita, as pessoas não te dão um prazo. Você tem que ta perfeita ali, aquela hora.”
(Mulher 59, 39 anos)
Quais as implicações desta cobrança pelo corpo perfeito na construção da identidade
feminina? Será que podemos falar de uma estetização da vida cotidiana no universo de nossas
entrevistadas, bem como associar a figura do bodybuilder ao do dândi do século XIX ?
São estas as questões que procuraremos analisar no item seguinte.
5.2 - CORPO PERFEITO, ESTETIZAÇÃO DA VIDA COTIDINA E IDENTIDADE
Como ter um corpo perfeito passou a ser uma preocupação central para que a mulher se
sinta aceita e valorizada, as exigências sobre os cuidados com o corpo aumentaram. A mulher
passa a se sentir cada vez mais responsável pela aquisição deste corpo, que ela é
incentivada a crer que pode conquistá-lo através da malhação, das plásticas e de outros
recursos. Ela própria quer ser perfeita porque em última instância, isto significa ser aceita,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 166
fazer parte de um sistema social em que o corpo figura como um mecanismo de status, ou nas
palavras de Sabino, “As relações sociais ficam dependentes da forma ostentada pelo corpo”
(Sabino, 2000: 64). As minhas entrevistadas dizem:
“Eu acho que ninguém gosta de se sentir à margem da sociedade, todo mundo quer estar
ali no meio, quer ser, entre aspas, normal, todo mundo busca ser aceito pela sociedade,
ser bem visto, ser comentado, admirado” (Mulher 5, 22 anos)
“Acredito que por isso, pelo bem estar que as pessoas sentem quando estão esteticamente
melhores, esteticamente mais bonitos, elas se sentem melhor socialmente, acho que por
isso” (Mulher 24, 18 anos).
Nestas falas percebemos que o corpo é importante para a mulher também do ponto de
vista da inserção social, fazendo com que, ao se alcançar os padrões estéticos de magreza,
juventude e tônus muscular, a mulher se sinta mais pertencente ao grupo ao qual ela almeja
pertencer. O corpo lhe confere, além de um incremento na auto-estima, uma identidade social:
“Eu acho que eu estou muito bem, só que eu quero a perfeição, o que com a minha idade
vai ser difícil. Se eu estivesse com 25 anos, tiraria de linha. Mas comparando com
pessoas que eu conheço, as filhas do meu marido, uma tem 31; a outra 35, se você for
comparar eu dou de dez a zero nas duas. Então, quando você encontra alguém que
nunca fez exercício, você a diferença, o braço não tem torneado. Pra minha idade,
filha, tá maravilhoso” (Mulher 65, 61 anos)
“Malhar se tornou parte do meu estilo de vida. Gosto quanto sinto os sculos
aparecendo, mais coragem de por uma calça cintura baixa. Hoje não consigo pensar
em parar a academia, a ginástica está ligada à minha identidade, eu preciso dela para
me sentir bem, programo as outras atividades em função da academia” (Mulher 68, 34
anos)
“Sim, com certeza pelo menos, malhar faz parte da minha vida, a partir do momento que
você começa malhar, que você conhece amigos, faz um grupo, a malhação, a ida pra
academia se torna uma coisa prazerosa e faz parte do cotidiano da vida, malhar é um
modo de vida” (Mulher 54, 26 anos).
“É, eu acho que realmente está ligado à auto-estima, eu me aceito e procuro melhorar,
eu percebo hoje que eu sou magrinha, eu sou muito mais olhada e admirada por homens
e mulheres com relação ao tempo que eu era adolescente. Eu também não era uma
gordinha feliz, porque tem gente que é gordinha e é bem resolvida, eu não era, porque
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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com dez quilos a mais não é a imagem que eu tenho de mim, a imagem que eu tenho de
mim, a que reflete o meu interior, é esta que está aqui” (Mulher 28, 35 anos).
A aparência sica reveste-se de uma importância muito grande, a ponto de influenciar
o relacionamento da mulher consigo mesma e com os outros.
Somente 4% da amostra afirmou que a aparência física é pouco importante, ao passo
que 14% a consideraram mais ou menos importante. a maioria, 82%, considerou-a muito
importante:
É interessante observar que das três mulheres (4%) que responderam “não”, duas
parecem de fato o se importar com a aparência, enquanto uma não a considera importante
para si, mas acha que ela é importante para os outros:
“Eu sou tão pouco ligada nisso que eu nem reparo” (Mulher 33, 35 anos)
“Eu nunca fui uma pessoa assim de me cuidar, nunca fui de passar creme, arrumar
cabelo, fazer unha, é você ver, minhas unhas são horríveis, eu jogo bola, eu uso
chuteira, eu tenho calo no pé, eu nunca fui de me importar”(Mulher 57, 28 anos)
“Pra mim, como pessoa, não conta nada. Mas na sociedade, acabam excluindo quem é
gordinho, justamente nas escolas de ballet, tem crianças que são mais gordinhas e são
rejeitadas pelas próprias crianças, deixam ela de lado, dizem, ela não consegue, ela é
gorda’” (Mulher 22, 32 anos)
Gráfico 28 - Importância da aparência física
O quão importante é a aparência física para
você?
4%
14%
82%
pouco importante
mais ou menos
importante
muito importante
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 168
Um relato interessante, dentre aqueles que indicam uma relativa importância do corpo,
foi o seguinte:
“Na verdade, como eu mudei muito a minha personalidade,o corpo não malhado, ele me
irrita, só que eu não vivo em função do corpo, (...) porque eu acho que eu tenho mais pra
oferecer do que o próprio corpo (...). Ele não é fundamental na minha vida, não é mais o
número um, então eu não sou dependente do meu corpo, eu sou dependente da minha
cabeça hoje em dia. Eu queria que ela coordenasse o meu corpo, eu queria dar menos
importância para algumas coisas e mais para outras, o meu problema não é com o meu
corpo, é com a minha cabeça.” (Mulher 53, 29 anos).
A entrevistada acrescentou que já se sentiu “escrava do próprio corpo”, teve problemas
de relacionamento por isso, entrou em depressão, mas depois fez terapia e relativizou suas
opiniões. No entanto, percebemos que na sua fala ainda uma tensão quanto ao corpo, um
desejo de que ele fosse menos importante do que na verdade é.
Dentre as que consideram a aparência física muito importante, podemos ressaltar as
seguintes falas:
“É, eu acho que a coisa da aceitação passa pelo corpo sim. Não tem tanta preocupação
de mostrar que a pessoa é inteligente, de eu mostrar que eu também sou, minha intenção
é atrair por alguma coisa do corpo, cabelo, ou é músculo a mais, estar magra, você
tenta passar alguma coisa do seu corpo pra chamar a atenção” (Mulher 5, 22 anos)
“É o que conta hoje em dia, tanto que o pessoal vive de estética, o vínculo disto é a TV, a
academia cada vez mais voltada” (Mulher 10, 26 anos).
“Eu nunca consegui alcançar os meus objetivos, eu nunca consegui ficar com o corpo
definido, mas mudou no sentido de eu não perder este corpo, mas eu não tô num ponto de
estar feliz com o meu corpo. Mas o corpo é muito importante. Eu acho que a pessoa
precisa se sentir forte, firme; se ela não se sente, se ela não se encontra, não tem como
ela entrar no corpo do outro” (Mulher 34, 33 anos).
“O corpo te dá mais auto-confiança, acho que você fica mais... segura de si” (Mulher 3,
29 anos)
Segundo Proust, “De fato, o corpo se tornou o lugar da pessoa. Sentir vergonha do
próprio corpo seria sentir vergonha de si mesmo. As responsabilidades se deslocam: nossos
contemporâneos se sentem menos responsáveis dos que as gerações anteriores por seus
pensamentos, sentimentos, sonhos e nostalgias; eles os aceitam como se lhes fossem impostos
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 169
de fora. Em contraposão, habitam plenamente os seus corpos: o corpo é a própria pessoa.
Mais do que identidades sociais, máscaras ou personagens adotadas, mais até do que idéias e
convicções, frágeis e manipuladas, o corpo é a própria realidade da pessoa. Portanto, já não
existe mais vida privada que não suponha o corpo. A verdadeira vida não é mais a vida
social, do trabalho, dos negócios, da política ou da religião: é a das rias, do corpo livre e
realizado” (Proust, op.cit: 105-106).
Concordo quase que integralmente com Proust, exceto por um ponto: o autor parece
acreditar que, que o corpo é fundamental na construção da própria identidade - como aliás,
é também meu ponto de vista -, sentir vergonha dele é quase que inaceitável, pois seria sentir
vergonha de si mesmo. Mas o problema é justamente este: o culto ao corpo instaura uma
contradição, pois se o postulado de que o corpo é central para a construção do eu, também
nos diz que este corpo não é qualquer corpo, é o corpo malhado e, como vimos, mais do que
isso, ele é o corpo perfeito, que por definição é inatingível. Por mais que as mulheres
tenham recursos financeiros para se submeterem às plásticas - e não são todas que os têm -,
isto nunca será o suficiente, pois nenhuma delas pode parar o tempo, e o culto ao corpo da
atualidade quer congelar o tempo, quer anular sua passagem. Portanto, é impossível, pela
rigidez atual dos nossos parâmetros e pela própria dinâmica do processo, encontrar esta total
plenitude de satisfação das mulheres consigo mesmas. Mesmo as modelos e atrizes, que são
as referências das mulheres comuns, estão insatisfeitas com sua aparência; entre o restante da
população “64 % gostariam de mudar alguma coisa no cabelo, 50% não estão satisfeitas com
seu peso e 20% gostariam de perder mais de dez quilos” (Del Priori: 84)
Dentre as entrevistadas, o que percebi é que muitas mulheres sentem vergonha de seus
corpos, os quais, segundo uma avaliação dia seriam considerados bonitos (são
proporcionais com relação á altura, m tônus muscular) porque os padrões estéticos estão
muito rígidos e a idéia de perfeição está incutida na cabeça das pessoas, dificultando uma
plena aceitação de seus corpos.
Esta vergonha do corpo imperfeito pode ser vista no dia-a-dia, mas adquire especial
sentido em três contextos especiais: 1) no vestiário feminino; 2) em situações de nudez, em
especial, com os companheiros; 3) nas praias e/ou piscinas, que envolvem o uso de trajes de
banho.
O vestiário feminino é um campo privilegiado de investigação, ao qual, graças à
benesse do gênero, a pesquisadora pôde ter livre acesso. Embora seja impossível gravar
entrevistas no espaço exíguo do mesmo, lá se descortina muito dos sentidos e relacionamentos
da mulher com o seu corpo e, principalmente, com o corpo das outras. Como diz a sabedoria
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 170
popular, mulher repara mesmo é em mulher”. Lá, podemos ver as mulheres que têm
vergonha de seu corpo e evitam despir-se na frente das outras, recorrendo a toalhas para
disfarçar as trocas de roupa, bem como aquelas que, em vez de caminhar, literalmente
desfilam nuas pelo vestiário. Também vemos que as mulheres procuram desvendar os
“segredos” corporais das outras e chegam a fingir que estão pegando alguma coisa no armário
para “conferir” se a outra tem celulite, se é flácida, se têm seios tão firmes quanto parece
quando estão de top. Depois comentam com as amigas o corpo de beltrana”, e em geral
falam mal dele. Sábias aquelas que se cobrem...
também reside um personagem central nas tramas do culto ao corpo: a balança. Às
vezes “vilã”, noutras mocinha”, as mulheres não passam incólumes por ela. Pesam-se, ficam
alegres quando perdem peso, tristes em outros momentos, pois se peso ideal significa gordura
a menos, também pode significar perda de massa muscular.
A nudez também é importante no relacionamento com o parceiro; na verdade, bem mais
do que o declarado no questionário fechado. Neste, quando questionadas se a aparência física
interfere no desempenho sexual, 24% disseram mais ou menos, 24% disseram que sim e 47%
disseram que não
“Ah, hoje, este aspecto de desnudar eu não estou mais tão preocupada porque eu
acho que eu estou melhor hoje em dia, o que me incomodava mais era o peito caído, e eu
fiz a plástica, eu mais satisfeita, então eu não fico mais... Mas determinada posição
[sexual] um peito caído fica feio, então realmente pode atrapalhar”(Mulher 47, 40 anos).
“É que realmente eu nem pensei neste lado que você está me perguntando do peito, que
eu não tinha. Mas a minha auto estima se elevou muito com relação a isso [ter colocado
Gráfico 29 - Aparência e desempenho sexual
Você acha que a sua aparência física pode
atrapalhar o seu desempenho sexual?
5%
47%
24%
24%
sim
o
mais ou menos
o respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 171
prótese de silicone], a relação com o meu marido, porque eu não gostava, tipo, na
relação [sexual] eu deitada parecia uma tábua de passar roupa” (Mulher 1, 30 anos)
“É, eu fico incomodada com relação a algumas partes, barriga, coxa, eu não sou
totalmente adepta da luz acesa, mas eu acho que é mais coisa da cabeça da mulher do
que do homem” (Mulher 9, 27 anos)
“A minha sorte é que eu tenho um marido que é dez, ele é uma pessoa muito bacana,
mas às vezes, como eu disse, eu deixo de dançar pra não me expor, eu não deixo te ter
relação para não me expor, mas eu me sinto acanhada em algumas situações por causa
do meu corpo. Acontece muitas vezes. Eu poderia ser muito mais solta, mais desinibida
se eu tivesse um pouco melhor” (Mulher 32, 33 anos)
Ainda a respeito da nudez diante do parceiro, 39% afirmaram que sentem vergonha em
se desnudar por causa da preocupação com a aparência, enquanto 58% dizem que não se
sentem constrangidas
Conversando com as mulheres, elas também relativizaram os dados do questionário
fechado, à semelhança do que aconteceu com as perguntas sobre a importância da aparência
na escolha de parceiros e no desempenho sexual:
“Ah, eu morro de vergonha, do meu corpo todo (...) Eu não consegui responder à
pergunta do que eu acho mais bonito no meu corpo, eu fiquei imaginando, imaginando e
Gráfico 30 - Nudez e corpo
Relação com a nudez
58%
39%
3%
0%
não sente
dificuldades em se
desnudar
se desnuda, mas se
preocupa com sua
aparência
evita que o parceiro a
observe desnuda
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 172
não soube responder. Infelizmente, eu gostaria de ser, assim, bem diferente” (Mulher 5,
ênfase dela)
“Sim, sim por causa ... esse problema que eu tive de princípio de anorexia, acho que
ficou um coisinha aqui na minha cabeça e é uma coisa minha mesmo. Eu não me sinto
completamente à vontade, mesmo namorando há muito tempo.” (Mulher 10, 18 anos).
“Quando eu me desnudo eu me preocupo com a minha aparência porque eu sou uma
mulher de 51 anos, então é óbvio que o meu senso estético e o meu senso crítico estão
acima, infelizmente, de questões assim, do homem fragmentado, ou seja, apesar de eu
perceber isso, eu não consigo me abster desta preocupação” (Mulher 30, 51 anos)
“Ah, sempre me preocupa a minha aparência, sempre me incomodou. Eu sou ligada em
manter o peso, deixar a perna durinha, a barriga, me incomoda, tanto que quando eu tive
bebê, eu tava fora do peso e você fica com aquela barriga meio flácida devido à
gestação, sempre me incomodou, mais a mim do que a ele.” (Mulher 45, 43 anos)
Somente uma entrevistada afirmou, categoricamente na entrevista gravada, não sentir
nenhuma vergonha de expor seu corpo ao parceiro:
“Nenhuma vergonha. Acho até engraçado algumas mulheres dizerem que o
conseguem tirar a roupa de luz acesa, se cobrir na relação, eu acho que quando você
está com alguém você tem que ter a maior intimidade possível, então eu não tenho
nenhum tabu com o meu corpo, muito pelo contrário” (Mulher 16, 36 anos)
Segundo Goldenberg (2004), a preocupação com um padrão específico de corpo tem
atrapalhado a vida sexual tanto de mulheres quanto dos homens, embora os segundos não se
importem tanto com a forma dos seus próprios corpos, incomodando-se mais com as
insatisfações femininas. Um de seus entrevistados afirmou: “Muitas vezes estamos no meio da
transa, no maior clima e ela pergunta: estou gorda? Ou insiste em transar no escuro para eu
não ver o corpo dela. Perco totalmente o tesão” (Homem, 35 anos, solteiro, engenheiro). A
autora também cita mais duas pesquisas, uma do Journal of Sex Research, que entrevistou 200
mulheres universitárias e concluiu que um terço da amostra, independentemente de serem
magras ou gordas, preocupam-se com a imagem corporal que seus parceiros fazem delas
durante o ato sexual. A outra pesquisa, coordenada por Camita Abdo, do projeto sexualidade,
Hospital das Clínicas, entrevistou 3.000 homens e mulheres, de todas as classes sociais. A
pesquisa apontou que 35% das mulheres pesquisadas alegam falta de libido, e o motivo
apontado é a angústia de não corresponder à mulher de corpo perfeito que aparece nas revistas
e propagandas de TV. (Goldenberg, 2004: 43-4).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 173
Segundo Thébaud (s/d), os movimentos de revalorização da sexualidade e do desejo
feminino são acompanhados de uma pressão normativa em prol dos modelos de aparência,
inspirados pelas modelos e atrizes de televisão. A publicidade vende-lhes os meios para
alcançar a beleza, mas, fundamentalmente, vende-lhes representações de si próprias.
É justamente isso o que a presente pesquisa percebeu. As mulheres, inclusive aquelas
casadas muito tempo, vivem uma situação curiosa: devido ao tempo de relacionamento, a
tendência seria diminuir o pudor frente ao parceiro, por causa da intimidade que os anos lhes
conferem; no entanto, como o corpo embora bonito - passou por transformações e não
corresponde aos modelos de perfeição, as mulheres ficam mais constrangidas frente aos
parceiros do que ocorria no passado. Se por um lado ocorreu uma maior erotização da
sociedade brasileira, que vem reclamando mais liberdade sexual às mulheres, incentivando-as
a buscar o prazer, a investir em técnicas de sedução (no passado mal vistas), por outro lado,
surge um novo algoz do desejo feminino: os padrões estéticos rígidos e inalcançáveis. Diante
das mulheres perfeitas que aparecem na mídia, as mulheres comuns” não se reconhecem e,
portanto, também não se aceitam. Daí a necessidade de suplantar esta “normalidade” por meio
da malhação e, principalmente, das cirurgias plásticas.
A exposição do corpo na praia ou em piscinas é outro fator de constrangimento para as
mulheres, porque nestas situações, além do parceiro, outros homens e, sobretudo outras
mulheres vão estar observando o corpo uns dos outros, a cobrança pela perfeição tornando-se
ainda maior e as mulheres temendo os comentários negativos sobre sua aparência, ainda mais
se a exposição ocorrer na presença de conhecidos e amigos. Em enquête realizada entre suas
leitoras, a “revista dieta já”, perguntou: “Você dispensa programas como ir à praia ou a uma
festa por causa do excesso de peso?” tendo 51,5% responderam sim” e 48,5% responderam
“não” ( Dieta já. Ano VIII – maio de 2004 ).
Das entrevistadas, 3% chegam a não ir à praia, ou vão com roupa comum e alegam ter
esquecido o biquíni, para não se sentirem constrangidas a expor um corpo que não se
assemelha ao corpo veiculado nos meios de comunicação. 65% vão à praia e não têm pudores
quanto à exposição do corpo, e 31% cobrem as partes do corpo de que não gostam:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 174
Muitas também alteraram suas respostas por ocasião da entrevista gravada:
“Não, não, eu não vou por um biquíni se eu tiver gorda, vou por um maiô. Então as
pessoas na praia, na rua, nas academias, escondem... tem sempre um ridículo que vai
né? Mas eu acho que mudou, as pessoas escondem sim” (Mulher 2, 31 anos)
“É, na praia, assim, eu não vou deixar de tomar sol porque eu me acho gorda, nem nada,
mas se tem alguém em que eu esteja interessada, eu não mostro a perna, eu tenho
estrias, isso me incomoda bastante, então eu coloco a canga assim do lado, pra cobrir
um pouco, mas eu não deixo de fazer as coisas que eu gosto por causa disto, eu dou
uma disfarçada” (Mulher 6, 19 anos)
“É que eu tenho um lado racional muito forte, então se é pra ir pra praia e ficar com
neura é melhor não ir. Quando eu era bailarina, eu já tive muito problema com peso, eu
cheguei a não ir ou ia, mas não levava o biquíni, arranjava uma desculpa, e eu tinha
um corpo super normal, mas a minha concepção do meu corpo era de que ele estava
imenso, porque as meninas com quem eu fazia aula estavam secas, esturricadas, então o
meu ponto de referência era muito baixo. Eu chegava a ir pra praia de calça jeans, de
camiseta, minha mãe me levou para o psicólogo, tudo, pra eu ter uma noção, uma
melhor percepção do meu corpo.” (Mulher 8, 25 anos).
“Na praia um pouquinho de receio sim. Não vou dizer pra você que vou por fio
dental porque o vou. Porque eu tenho vergonha por não estar com um corpo tão
perfeito, eu gosto de perfeição, como não tem, eu coloco uma coisa que não vai mostrar
tanto quanto uma garota perfeita usaria.” (Mulher 15, 31 anos).
Em ocasiões como praia e piscina, você...
0%
3%
1%
31%
65%
evita estes locais
frequenta, mas fica de short e
camiseta
cobre as partes do corpo das
quais não gosta
usa trajes de banho sem se
incomodar
o respondeu
Gráfico 30: Exposição do corpo em praias e/ou piscinas
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 175
Duas das entrevistadas davam muita importância ao corpo, mas alegam que de tão
vitimadas pelo processo mudaram suas posições e hoje tentam ter uma relação mais tranqüila
com o corpo:
“Eu evitava piscina, praia, nossa, tudo! Não queria nem sair na rua, usava camiseta.
Hoje não, é normal, até porque eu tento emagrecer (...) Antes eu deixava que isto
atrapalhasse a minha vida, mas hoje não” (Mulher 24, 18 anos)
“Se eu fico à vontade na praia, eu coloquei que fico, mas no início eu não ficava. Eu
acho que era imaturidade, também, da minha parte, hoje eu não, eu não me incomodo,
eu tenho muita estria, isso sempre me incomodou, eu ia pra praia e usava short. Acho
que era por causa da idade mesmo viu, você vai amadurecendo e... talvez dando
importância para o que é realmente importante...” (Mulher 53, 29 anos)
Uma das entrevistadas afirmou que sente tanta vergonha do corpo que não vai à praia:
“Ah, na praia eu não vou. De biquíni, jamais. Se eu tiver que ir, jogar um vôlei, eu já
vou de propósito de calça, de top, ou vou de roupa normal, pra ter uma desculpa, ‘ah, eu
vim só pra jogar’, eu já sou tímida, eu sou gordinha, então eu evito” (Mulher 5, 22 anos)
A fala da Mulher 5, embora não tenha sido a única neste sentido, é emblemática, pois
ela é professora de educação física e apresenta um corpo trabalhado pela ginástica. Além do
mais, ela tem 1,69 e 58 kgs, 22 anos. Tem um peso adequado para a idade, o tem nada que
possa ser interpretado como defeito físico e que possa gerar algum tipo de constrangimento.
No entanto, como os padrões de beleza físicos atualmente estão muito rígidos, exigindo-se da
mulher um corpo muito magro e muito malhado, isso acaba distorcendo a imagem de pessoas
que, no passado, seriam consideradas totalmente “normais”, mas que hoje, diante dos modelos
de beleza, acabam se vendo ou sendo vistas como fora dos padrões aceiveis de uma cultura
do corpo perfeito.
31 % das entrevistadas responderam que vão à praia ou piscina, mas que procuram
cobrir as partes do corpo que não gostam:
“Na minha cabeça é muito importante a aparência sica. Hoje em dia eu faço terapia,
faço um monte de coisa porque isto me influenciava muito, eu não tinha coragem de tirar
a roupa na frente de ninguém, tinha vergonha de ir pra praia, colocar um biquíni.”
(Mulher 61, 29 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 176
“Tenho vergonha. Eu uso maiô. Eu já não uso mais biquíni. Usava biquíni até bem pouco
tempo. De uns 4 anos, mudou o meu corpo, eu não uso mais. Porque eu não gosto de
mostrar a barriga. Eu não me sinto bem. Você se cobra isso, estar perfeita. Minha
barriga não está mais perfeita, está cheia de celulite” (Mulher 31, 54 anos)
“Eu sou apaixonada por praia e por sol. Mas jamais fico de biquíni porque tenho
flacidez nos glúteos, que ginástica nenhuma resolve. Se eu estiver com conhecidos, não
entro no mar na frente deles para não ter que andar com a bunda balançando.
Procuro um lugar mais isolado e, mesmo assim, se tiver uma pessoa por perto, mesmo
que eu não conheça, fico com vergonha da flacidez. Perdi a conta de quantas vezes
entrei no mar de canga.”(Mulher 68, 34 anos)
“É que na praia eu sinto mais a coisa de você estar na passarela, todo mundo olha
assim, na praia, então eu tenho uma vergonha às vezes de tirar a roupa e ficar de
biquíni, eu sempre cubro a parte que eu não gosto, que é barriga e coxa. Em lugar com
muita gente eu não me sinto à vontade” (Mulher 62, 27 anos).
No entanto, é curioso que quando questionadas se gostam ou não do corpo, as opiniões
ficaram um pouco divididas, pois 57% afirmaram que sim e 39% responderam “mais ou
menos”. Só 3% respondeu que não.
Talvez isto se deva ao fato de que muitas mulheres malham intensamente e
conquistaram o corpo que queriam, ampliando, portanto, o índice de satisfação com o próprio
corpo. Muitas também tiveram acesso à cirurgias plásticas estéticas e com isso passaram a
Gráfico 31 - Gosta do próprio corpo
Você gosta do seu corpo?
3%
1%
39%
57%
sim
não
mais ou menos
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 177
gostar mais do própria corpo. Dentre as que responderam mais ou menos (39%), os principais
motivos são algumas gorduras localizadas ou mesmo excesso de peso:
“Eu nem gosto, nem desgosto. Eu sei que tem alguns pontos pra melhorar, eu malho
bastante pra tirar algumas gorduras laterais, gorduras localizadas, mas enfim, nunca
tive problema. Como eu sou magra, tem hora que eu queria ter mais bunda, precisava
perder um pouco de barriga, então tem algumas coisas que precisam melhorar, mas eu
não tenho porque não gostar dele” (Mulher 1, 30 anos)
“É, eu continuo não gostando muito, mas não é mais aquele negativo que eu tinha,
agora eu tentando, eu comecei a aceitar, vendo que eu emagrecendo, eu
aceitando, começando a gostar, é isso” (Mulher 62, 27 anos).
“Porque não é, concorda, perfeito. Tem algumas coisas que tem que melhorar, mas...
Perfeito, certinho é de uma jovem né? Que tem tudo no lugar, eu tive dois filhos, né?
Antes de eu ter neném eu era diferente, né?” (Mulher 52, 48 anos)
“Às vezes eu me incomodo se eu estou um pouco gorda, alguma coisa assim me
incomoda. Dependendo do grupo em estou, aqui na academia eu me sinto assim, meio
fora do padrão, porque é um pessoal mais malhado, mais forte, assim entendeu? Sem
gordura, e eu na minha família já não é esse padrão, no clube onde eu sou sócia também
não tem esse padrão, todo mundo no culto ao corpo, é o padrão família, então eu
me sinto bem, e aqui às vezes eu não me sinto tão bem, depende mais do lugar onde eu
estou” (Mulher 57, 28 anos)
Uma fala muito interessante é a da Mulher 8, que declarou que hoje está mais infeliz
com o corpo, embora ele tenha melhorado, porque ele se tornou uma preocupação antes
desconhecida:
“Eu gosto da estrutura do meu corpo, mas eu tenho incômodo com a gordura localizada
(...) Eu tive 8 Kgs a mais (...) e achava que eu tava ótima, nunca nem pensei, eu
comecei a emagrecer, o dia que eu fiz a comparação das fotos, eu não acreditava, ‘nossa,
como eu fiquei deste tamanho e o tinha percebido?’. Então hoje, eu muito mais
infeliz com o meu corpo do que com dez quilos a mais porque hoje eu tenho mais
preocupação com ele. Hoje eu penso muito mais nele do que antes, antes eu tava
desencanada.” (Mulher 8, 25 anos)
Como entender a importância que as mulheres atribuem aos cuidados com o corpo?
Para Kélh (2002), foi-se o tempo em que os discursos religiosos, filosóficos ou morais
orientavam a vida da coletividade. Hoje são as ciências biológicas que orientam os valores da
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 178
indústria do corpo, a ponto de Sfez, no seu artigo “Saúde Perfeita é a utopia do final do
século” (1995) e na sua tese A Saúde Perfeita (1996), proclamar a morte das utopias da
comunicação em favor das utopias do corpo. O cuidado de si volta-se para a produção da
aparência, segundo a crença há muito difundida de que a qualidade do invólucro muscular,
a textura da pele, a cor dos cabelos, o volume do corpo atestam o sucesso de seus
proprietários. Courtine acredita que todas estas práticas de gerenciamento do corpo que
florescem a partir de 1980, são sustentadas por uma “obsessão dos invólucros corporais: o
desejo de obter a tensão máxima da pele; o amor pelo liso, pelo polido, pelo esbelto, pelo
jovem; ansiedade frente a tudo que na aparência pareça relaxado, franzino, machucado,
amarrotado, enrugado, pesado, amolecido ou distendido; uma contestação ativa das marcas
do envelhecimento no organismo. Uma negação laboriosa de sua morte próxima” (Courtine,
1995: 86). Para o bodybuilder, construir um corpo que atenda aos padrões de sua época
constitui ao mesmo tempo uma obrigação e uma marca de identidade. O corpo trabalhado é
um dado essencial de um estilo de vida que irá diferenciá-lo de outros grupos. Se por um lado
dor, disciplina, regras rígidas de alimentação, conduta e treino, também o prazer de
perceber o corpo desabrochando a partir do próprio esforço: “Além do sentimento de cansaço
e plenitude corporal amiúde vivaz que ele proporciona, o treino é, ele mesmo, sua própria
recompensa, quando o lutador consegue dominar um gesto difícil, que oferece a sensação
nova de ter redobrado sua potência, ou quando obtém uma vitória sobre si mesmo.
(Wacquant, 2002: 88).
Como vemos, a tônica principal do universo dos bodybuilders diz respeito à necessidade
de produzir a si mesmo, produção esta que passa primeiramente pelo corpo e, ademais,
depende deste corpo como um dos mecanismos de status e diferenciação. É claro que a
preocupação com o corpo é muito antiga, e como veremos mais adiante, Foucault (1985)
comentará que os gregos eram adeptos da cultura de si. No entanto, acredito que determinadas
razões para o culto ao corpo que se vive hoje possam remontar à modernidade. Sabe-se que
algumas das características centrais que definem a modernidade são a estetização da vida
cotidiana, o predomínio da técnica e a busca incessante da racionalidade. Para Featherstone
(1995) é possível falar da estetização da vida cotidiana em três sentidos:
1) através das subculturas artísticas que produziram os movimentos dadaístas,
surrealista e da vanguarda histórica, a partir da primeira Guerra Mundial, que procuravam
apagar as fronteiras entre arte e vida cotidiana;
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 179
2) a estetização da vida cotidiana pode designar o projeto de transformar a vida numa
obra de arte, pondo em evidência as questões esticas;
3) o terceiro sentido da estetização da vida designa o fluxo veloz de signos e imagens
que saturam a trama da vida cotidiana na sociedade contemporânea.
Para o presente trabalho, nos interessam particularmente o segundo e o terceiro sentidos
propostos por Featherstone.
Foucault (1986: 41-2) concorda com a concepção de modernidade de Baudelaire, na
qual a figura central é o ndi, que faz do seu corpo, seu comportamento, seus sentimentos e
paixões, sua própria existência, uma obra de arte. Em “O Pintor da vida moderna”, Baudelaire
diz: “Assim ele vai, corre, busca. O que procura? Seguramente, este homem, tal como eu o
retratei, este solitário de uma imaginação ativa, viajando através do grande deserto de
homens, tem um objetivo mais elevado do que de um vadio, um objetivo mais elevado do que
o prazer fugitivo da circunstância. Ele procura aquela coisa que nos permitirá designar a
modernidade” (Baudelaire, 1864: 334). Nesta concepção, o homem moderno é o homem que
procura inventar a si próprio. Imerso na multidão, o dândi se movimenta, mais do que isto, ele
desfila. Se por um lado ele está dissolvido na multidão, por outro, também se destaca dela.
Baudelaire estava consciente de que a multidão, com seu fluxo veloz de corpos, era ao mesmo
tempo o local de encontros mudos e o palco do processo de decodificação e interpretação da
aparência das outras pessoas.
O ndi era um ser humano dotado de um corpo, cuja aparência e conduta transmitiam
impressões e signos legíveis aos que estavam ao seu redor. Vestuário, estilo, tom de voz
58
,
expressão facial, maneiras, porte e modo de andar, volume do corpo, peso, tudo isso
constituiu o estilo do dândi e o diferenciava da multidão. Também Simmel e Benjamim
mostraram como a paisagem urbana ficou estetizada e encantada, graças à arquitetura, aos
outdoors, vitrines, mas, sobretudo pelas pessoas reais que se movimentavam por estes
espaços: indivíduos que se munem de roupas, penteados, ou que adotam formas específicas e
estilizadas de movimentar ou aprumar seus corpos.
A proximidade entre o dândi do século XIX e o bodybuilder da atualidade, ao meu ver,
é inegável. Para ambos, o estilo de vida é fundamental, e um dos principais cenários em que
este estilo se revela é no próprio corpo e nos mecanismos de sua construção. Tanto quanto
para o dândi, para o bodybuilder seu corpo é como uma escultura e uma escritura que ele
58
A respeito da importância da voz, ver a tese de Doutorado de Maruska Rameck, 2001, indicada na bibliografia.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 180
mesmo tem que esculpir e inscrever. Músculos que aparecem sob a pele, mecanismos para
firmá-la e deixá-la lisa, sempre lutando contra as marcas do tempo, formas corporais
determinadas por um padrão esguio, cuidadosamente calculado e contido, roupas justas que
evidenciam esta construção, são estes os referenciais dos bodybuilders. E da mesma maneira
que o dândi, ao mesmo tempo em que o bodybuilder circula imerso na multidão, também
tenta diferenciar-se dela, ser olhado, admirado. Seu passeio pelas ruas, pelos shoppings, pelas
praias é também seu desfile, permanentemente reconstruído a cada sessão de ginástica, a cada
alimento calórico não ingerido. Cuidar do corpo deixa de ser unicamente uma questão de
saúde para ser uma questão de estética, um passaporte para a auto–afirmação.
No universo pesquisado, estes mecanismos são muito evidentes: basta olhar ao lado e
eles estão claramente visíveis. As mulheres da academia Cia Atlhética procuram se
diferenciar através de seus corpos esculpidos, roupas de grife, conduta, gestos. Muitas levam
os filhos e são acompanhadas pelas babás dos mesmos, que são facilmente distinguidas das
freqüentadoras: as primeiras usam geralmente roupas brancas, normalmente calçam chinelos
de dedo, muitas usam toucas ou têm os cabelos presos, quase sem maquiagem, roliças de
corpo ou mesmo obesas. Vale lembrar Rodrigues, que comentou como a modernidade
legitimou espaços de confinamento dos pobres pelos burgueses e definiu o tratamento a que
estes deveriam ser submetidos quando freqüentassem, para a conveniência da elite, os
ambientes desta última: “Por esta via, entende-se que coisas tão aparentemente ingênuas,
inofensivas, ‘racionais’ e ‘funcionais’, como os aventais das cozinheiras e arrumadeiras (...),
as luvas dos mordomos, as toucas das babás, os bonés e chapéus de padeiros e entregadores
...acabassem tendo uma função ritual e significantemente implícita e inconfessada,
terminando como instrumentos simbólicos de marcação de distanciamento e de separação
sociais” (op.cit: 170).
Os corpos dos bodybuilders estão permanentemente em construção, mas também em
exibição, são corpos mensagens, que falam pelos sujeitos. Verdadeiros outdoors, produtos, e
ao mesmo tempo, veiculadores da cultura do corpo, o que nos remete a outros pontos centrais
da própria modernidade: estamos falando, em ambos os casos, do fluxo veloz de imagens e
signos que saturam a vida cotidiana e a transformam num espetáculo permanente. Basta um
simples passeio às ruas para que tenhamos a sensação de estarmos imersos num mundo de
imagens que veiculam os valores centrais de nossa época. Aliás, nem precisamos sair de casa:
as imagens nos chegam pelo computador, pela televisão, pelos jornais e revistas que
assinamos, entre outros meios.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 181
Assim, quando indagamos sobre o processo de culto ao corpo, é impossível dissociá-lo
da mídia, como veremos a seguir.
5.3 - MÍDIA E ESPETÁCULO NO CULTO AO CORPO: O CORPO MIRAGEM.
Na etapa de construção do projeto de pesquisa, já tinha percebido que a mídia teria
papel central na cultura do corpo, mas, por estratégia de pesquisa, resolvi esperar o decorrer
do campo, por medo de acabar induzindo os resultados. Mas mesmo quando eu não falava da
mídia com as mulheres, estas o faziam por mim e ao investigar as brechas que as próprias
entrevistadas davam, chego a conclusão de que a comunicação é um dos pilares do atual culto
ao corpo. A importância dada ao corpo é tão grande que Lucien Sfez
59
chegou a proclamar a
substituição do culto à informação por uma “religião” biogenética, calcada na “utopia do
corpo”. No entanto, acredito, ao contrário de Sfez, que a comunicação está vivíssima, e mais,
é a grande aliada e ao mesmo tempo veiculadora desta utopia do “corpo perfeito”. O desafio
para mim está em procurar descobrir como estes dois pilares muitas vezes se entremeiam,
precisam disto para sobreviver e mais, dizem muito a respeito da concepção de pessoa e de
valores centrais à nossa sociedade.
Quando questionadas sobre a relação entre mídia e culto ao corpo, a esmagadora
maioria, 96% afirmou que sim, a mídia influi no processo de culto ao corpo. Absolutamente
nenhuma mulher respondeu que não, e apenas 4% da amostra responderam “mais ou menos”:
59
Sfez, Lucien - “Saúde Perfeita é utopia do final de século.”; In: O Estado de São Paulo, 7 de outubro de 1995,
n.788, ano 16.
Gráfico 32 - Mídia e culto ao corpo
A mídia contribui para a idéia de culto
ao corpo?
96%
4%
0%
sim
não
mais ou menos
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 182
As mulheres por mim entrevistadas sempre mencionam a leitura de revistas ligadas à
aparência física, como “Boa Forma”, “Dieta Já”, entre outras, e assinalam que a mídia auxilia
a propagar o culto ao corpo:
“Eu acho que a mídia influencia em tudo, nas revistas, na televisão, em tudo quanto é
lugar. Muito. Você aquela perfeição. Eu acho também que não se pode chegar ao
exagero, mas na televisão você aquele corpo, aquele cabelo. A mídia bombardeia a
gente com imagens, então você tem que trabalhar a cabeça pra você não chegar a se
sentir feia, se sentir mal” (Mulher 43, 39 anos).
“Mais uma vez a mulher, coitada, se escrava do culto ao corpo, o que é uma pena, a
gente luta, luta, luta e mais uma vez a mídia... Eu não vou fazer cirurgia de peito por
causa da estética, mas muitas estão fazendo, nós estamos sendo massacradas pela
mídia.” (Mulher 69, 45 anos).
“Pode. Também por isso. Acho que tá tudo englobado e a mídia é a grande culpada.
essa é minha conclusão. Porque, hoje em dia eu acho que a mídia tão em cima assim
... mostrando modelos, magras lindas, maravilhosas, né, é o modelo da mulher atual
agora, magrinha, então é um sinal assim de beleza né, e as mulheres valorizam muito
isto.” (Mulher 10, 18 anos) .
“Porque na mídia você vê o que? Estética, mulher bonita, mulher sarada, homens fortes,
com corpos delineados, então o pessoal vai atrás da moda. Hoje estética é moda”
(Mulher 10, 26 anos).
“Tem uma cultura do corpo, tanto é que senão não teria tanto outdoor com moça de
biquíni, a academia coloca uma pessoa com um corpo bonito, qualquer produto que você
vai vender, mesmo que não tenha ligação direta com o corpo, a pessoa que tá na
propaganda tem um corpo bonito, beleza virou mercadoria, virou básico, necessário...”
(Mulher 8, 25 anos)
“Percebo, por causa da mídia. A mídia explorou muito o bumbum perfeito, o cabelo
perfeito, o peito perfeito.” (Mulher 15, 31 anos)
“Pode, pode sim, um estímulo enorme para que se cultue estes padrões estéticos
de juventude, que levam consigo a magreza, para que se seja feliz, está claramente
vinculado a felicidade a isto na mídia. A mídia tem influência muito grande tanto
incentivando um ideal de beleza quanto incentivando o uso de produtos para que
alcance miraculosamente este ideal” (Mulher 23, 48 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 183
“Hiiii, totalmente! A mídia é umas das que mais influencia para pirar a cabeça das
mulheres. Com o conceito de beleza, de quase tudo que há, para mim é bem claro.”
(Mulher 58, 27 anos)
“Mídia, em primeiro lugar mídia. Você tem padrões de beleza de acordo com os séculos
e a tendência do ser humano é se igualar, o ser humano não gosta de ser diferente, na
grande maioria das vezes ele quer ser igual à sociedade, e aí, no oba-oba, você vai na
leva além da saúde” (Mulher 44, idade não declarada).
“Eu trabalhei numa matéria outro dia, do Gabeira, e ele começou a fazer as pessoas
pensarem um pouco mais sobre isso, isto no finalzinho da década de 70. Realmente as
pessoas começaram a buscar exercícios, isto foi estourar mais de uns tempos pra cá,
mas acho que ele que deu um toque porque ele fazia ginástica, ele corria, ele começou
esta coisa de culto ao corpo e as pessoas pegaram carona na idéia e foram.” (Mulher 46,
42 anos)
Um dado interessante sobre a influência da
mídia e que foi comentado de maneira espontânea
por três entrevistadas é que o culto ao corpo veio na
esteira dos grupos de pagode e axé, como o “É o
Tchan” e com a valorização do corpo semi-desnudo
e malhado das personagens “Tiazinha” e
“Feiticeira”
60
( Figura 7 ) . Em todos estes casos, o
corpo era claramente um fetiche, no sentido de ser
exposto como perfeito e alvo dos desejos
masculinos
61
. Criou-se todo um clima de erotização
que passava pela exposição de corpos “malhados” e
que contribuiu para a divulgação de um padrão de
60
Em 1999, a Rede Globo de Televisão criou dois personagens que rapidamente se difundiram por revistas, e
mais, no imaginário da população. “Feiticeira”, o personagem de Joana Prado, aparecia em geral com
roupas de odalisca ou biquíni e sempre com um véu cobrindo parte do nariz e a boca. “Tiazinha”,
personagem de Susana Alves, aparecia numa versão light de sadomasoquista, com lingerie preta, máscara
nos olhos e chicote. Ambas tinham grande apelo erótico e viraram “fetiches” e/ou símbolos sexuais.
61
A este respeito, Lauretis (1994) comenta que diversas teóricas feministas escrevendo sobre a sexualização
das mulheres no cinema e nas propagandas, desenvolvendo descrições e críticas dos discursos psicosocial,
estético e filosófico, subjacente à representação do corpo feminino enquanto lugar primeiro da sexualidade
e do prazer visual. Ela indica para uma melhor compreensão do tema o trabalho de Stephen Heath,
“Narrative Space”, in: Questions of cinema, Bloomington, Indiana Univ. Press, 1981).
Figura 7 - Feiticeira
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 184
corpo que, por sua vez, invadiu as casas via televisão ou através de revistas como a
“Playboy”, a Sexy” e a “Boa Forma”. Aliás,
justamente na época de explosão destes grupos e das
personagens citadas, Joana Prado
62
saiu na capa da
Revista Boa Forma, cuja chamada de capa era O
feitiço do corpo perfeito”.
Em outra capa, Figura 8, desta vez da “revista
corpo”, temos a chamada “Fique gostosa como
elas”, com a exibição da modelo Luma de Oliveira,
também muito citada como referencial de beleza. Se
associarmos a capa com a fala da própria modelo,
enfatizando que considera a plástica uma aliada,
temos a clara associação entre
modelos/plásticas/mídia exercendo forte impacto
sobre o imaginário de mulheres comuns.
Até mulheres que não faziam ginástica
sentiram-se ameaçadas por estas imagens de mulheres sedutoras, que poderiam enfeitiçar seus
companheiros e roubar-lhes a atenção. Aderir à malhação, para algumas destas mulheres, foi
uma tentativa de diminuir a distância entre elas, simples mortais, e as “gostosas” da televisão:
“Eu acredito. Eu acho que muita gente nega. Mas eu acho que tem isso, tem nas novelas,
em todo lugar. Não é só o sexo, é mostrar o corpo, aí eu acho que acaba sim, virando um
culto. Eu acho que começou na época daquele grupo ‘É o tcham’, que começou a dar
ênfase na mulher mostrar o bumbum, ficar dançando daquele jeito, depois veio a
Tiazinha, a Feiticeira, tudo isso contribuiu para que todo mundo se ligasse mais no
corpo, no visual, na gostosona, malhar pra ficar durinha.” (Mulher 22, 32 anos)
“Eu acho que de 1990 pra cá, aumentou muito, quando, o Luciano Huck colocou,a
Tiazinha e a Feiticeira na televisão rebolando, e aí todo mundo, eu não fazia academia,
comecei fazer nessa época, e o professor tinha a playboy da feiticeira, e eu tinha um
namorado nessa época, que ficava babando pelas formas da feiticeira, eu ficava
possessa. Então eu ia pra academia, pedia a playboy do filha da mãe, colocava no chão e
ficava olhando pra ela e me matando numa academia. E eu falava filha da puta vou
ficar igual a você. Aí, o que acontece, a gente tem a nossa própria personalidade, só que
62
Aliás, Joana Prado escolheu a academia pesquisada, a Companhia Athlética como seu espaço da malhação,
ela freqüenta a unidade Kansas e de vez em quando, aparece na unidade Shopping Morumbi.
Figura 8 - Mídia e modelos de beleza
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 185
o meio também influencia. Tem pessoas que sempre foram apaixonadas por atividade
física, sempre fizeram, e outras que começaram por conta disso, eu fui uma das que
começaram por causa da mídia” (Mulher 53, 29 anos)
“Olha, eu acho que uns dez anos atrás, porque quando eu comecei aqui tinha uma
certa... estava um buchicho destes grupos de pagode, de axé e Carla Perez, e
começou o ‘boom’, de uns dez anos pra cá, começou esta coisa de culto ao corpo, de
estética” (Mulher 15, 31 anos)
Featherstone afirma que a centralidade da manipulação comercial das imagens,
mediante publicidade, mídia, exposições, performances e espetáculos da trama urbanizada da
vida diária, determina, portanto, uma “constante reativação de desejos por meio das
imagens” (Featherstone, 1995: 100). De tanto ver o corpo malhado exposto, seja no dia a dia,
seja na mídia, acostumamo-nos a desejá-lo, e de tanto desejá-lo, ele se tornou vital para nós.
Baudrillard retoma este aspecto, afirmando que as imagens têm um papel novo e central
na cultura de consumo. Para Baudrillard, a concentração, a densidade, a abrangência da
produção de imagens na sociedade contemporânea nos empurra para uma sociedade
qualitativamente nova, o mundo simulacional, no qual se aboliu a distinção entre realidade e
imagem, estetizando-se a vida cotidiana. Tudo se transforma em espetáculo, como já diria
Debord: “Toda a vida das sociedades nas quais reinam as modernas condições de produção
se apresenta como uma imensa acumulação de espetáculos. Tudo o que era vivido
diretamente tornou-se uma representação” (Debord,1992: 13). Debord percebe que o
espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação entre pessoas, mediada por
imagens. Também enfatiza que “o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de
toda vida humana. Ele se apresenta como uma enorme positividade, indiscutível e inacessível.
Não diz nada além de ‘o que aparece é bom, o que é bom aparece” (Debord, 1992: 16).
No que se refere à cultura do corpo na contemporaneidade, a imagem é central, primeiro
porque toda cultura do corpo passa por imagens reais do corpo, projetadas como espetáculos
e, segundo, porque as imagens veiculadas pelos meios de comunicação são indissociáveis
deste processo de desejar e construir um corpo ideal.
Sabemos que as imagens são formas privilegiadas de recorte, apreensão e organização
do real e do imaginário. Através dos múltiplos elementos que põem em cena, as imagens
constroem idéias, contam histórias, enfim, registram tempos, lugares, sentimentos. Assim
como um "fato social total" (Mauss, 1974), condensam uma série de eventos e
representações. No universo dos bodybuilders, proliferam revistas específicas destinadas aos
cuidados com o corpo. Revistas de fisiculturismo, “Boa forma”, “Dieta-Já”, “Corpo”, são
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 186
alguns dos exemplos. Além destas, é evidente o quanto a preocupação com o corpo tomou
conta de várias outras revistas como “Veja”, “Época” e de jornais diários como “Folha de S.
Paulo”, “Estado de São Paulo”, etc.
As revistas citadas o prenhes em imagens que priorizam corpos considerados bonitos.
Além disto, é comum fotos que contrastam situações chamadas de “antes” e “depois”. As
fotos do “antes” são imagens corporais de mulheres que eram gordas e infelizes”; as do
“depois” mostram imagens destas mesmas mulheres, agora “magras e bonitas, através do
produto “X” ou da clínica tal”. Vincula-se felicidade à beleza e, por sua vez, beleza à
magreza. Estas imagens são cruciais na construção e reafirmação de alguns modelos
corporais, bem como da representação de gênero a eles associada. Segundo Lauretis (op.cit),
os termos para uma construção de gênero ocorre através de tecnologias (como o cinema, a
televisão, as revistas) e discursos institucionalizados com o poder de “controlar o campo do
significado social e assim, promover e implantar representações de gênero”(Lauretis, op.cit:
228).
Constrói, através da formas midiáticas, a representação da mulher como bonita,
preocupada com a aparência, que “se cuida”, que é admirada por homens e mulheres por seus
atributos físicos.
O processo de construção destas imagens é altamente fecundo para análise. Nas fotos
que representam o “antes”, as mulheres aparecem desfocadas, desarrumadas, às vezes com
um olhar vazio e uma postura displicente. o parecem nada felizes. Nas fotos do “depois”,
graças a recursos como maquiagem, enquadramento da foto, ângulo em que a mulher é
fotografada, enfim, após produção imagética, estas mulheres aparecem bonitas, com roupas
sensuais, sorridentes. Numa palavra: felizes. É claro que parte do resultado final de uma
imagem depende de vários elementos extra-imagem, de aspectos ligados à intenção que o
produtor da imagem tinha, mas no caso destas fotos de antes e depois, cabe uma provocação.
Boa parte da “impressão de felicidade” pode ser uma construção, mas será que estas mulheres
não estão de fato mais felizes? Se, como afirmava o outdoor de Diet Shake, visível nas ruas de
São Paulo no verão de 2003, “felicidade é entrar num vestido P”, realmente a informação
corrente parece afirmar que, na medida em que estas mulheres emagreceram, a percepção de
si e do mundo se modificou na proporção direta em que elas conseguiram atingir o padrão de
beleza da sua época. Também foi demonstrado pela pesquisa de Goldenberg e Ramos que a
exigência da boa forma não se limita às atrizes ou modelos: “Por intermédio do cinema, da
televisão, da publicidade e de reportagens de jornais e revistas, a exigência acaba atingindo
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 187
os simples mortais, bombardeados cotidianamente por imagens de rostos e corpos perfeitos.”
(Goldenberg e Ramos, 2002: 26).
Tais imagens induzem a correlação entre obter o corpo perfeito e alcançar a felicidade.
A publicidade surge neste processo como uma espécie de operador totêmico (Rocha, 1995), e
as formas perfeitas como totens midiáticos. Sabino (2002) concorda com Rocha e diz que :
“Tal como um ‘selvagem’ sabeidentificar o comportamento e a aparência de uma pessoa
do cdo urso ou da Águia, podemos identificar, pela aparência ou conduta, alguém que é
marombeiro ou se dedica regularmente ao mundo da musculação e das academias” (Sabino,
2002: 145).
É claro que falar da influência dos meios de comunicação na construção de modelos
corporais da nossa época levanta polêmicas: sabemos que, principalmente a partir de 1980,
vêm surgindo novos enfoques sobre a interação entre recepção e comunicação
63
. Esses novos
enfoques questionam a relação de predomínio do emissor sobre o receptor, enfatizando que as
mensagens são resignificadas pelos receptores, que, dessa forma, deixam de ser uma tabula
rasa” e passam a interagir no sentido da mensagem. Assim, é claro que nem tudo o que é
veiculado pelos meios de comunicação é aceito pelos receptores: tenho acompanhado as
discussões sobre o padrão de corpo perfeito que aparecem em Revistas como “Época”, “Veja”
e no jornal “Folha de S. Paulo”, por ocasião do referido desfile “Morumbi Fashion”. Tem
sido comum nos números mais recentes destas revistas o embate entre pessoas que
contribuem para formação de opinião e que discutem se as modelos brasileiras devem seguir
os padrões ditados para as modelos internacionais, que, em média, são mais altas e magras do
que as mulheres brasileiras. Alguns especialistas da área clamam a altos brados que é preciso
modificar este padrão, resgatar a sensualidade das curvas femininas”, “escapar da tirania da
magreza”. No entanto, estes discursos não são incorporados pela maioria. As mulheres que
aprenderam a relacionar o corpo magro com o corpo bonito o esquecem a lição assim tão
facilmente.
De toda maneira, mesmo que algumas imagens sejam refutadas, a característica
espetacular da nossa sociedade se mantém e, da mesma forma que na modernidade, “o
espetáculo constitui o modelo atual dominante na sociedade (...). A linguagem do espetáculo
63
Com relação à mídia, é importante destacar que a partir de 1980, vêm surgindo novos enfoques sobre a
interação entre recepção e comunicação. Estes novos enfoques questionam a relação de predomínio do
emissor sobre o receptor, enfatizando que as mensagens são resignificadas pelos receptores, que, desta
forma, deixam de ser uma “tabula rasa” e passam a interagir no sentido da mensagem. Assim, é claro que
nem tudo o que é veiculado pelos meios de comunicação é aceito pelos receptores, como atestam as
discussões travadas no mundo da moda, que oscilam entre o culto à magreza e as novas tendências que
pedem a modificação este padrão, num “resgatar da sensualidade das curvas femininas”.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 188
é constituída de sinais da produção reinante, que são ao mesmo tempo a finalidade última
desta produção” (Debord, 1992: 14-15). Para os bodybuilders, o corpo representa ao mesmo
tempo um projeto em si, uma vez que a identidade e auto-estima parecem passar cada vez
mais pela aquisição de um corpo perfeito e uma marca de distinção, representante de um
estilo de vida, para os outros.
Falar em estilo de vida nos remete a Bourdieu, mais especificamente à sua obra La
Distinction (1979), em que ele afirma que a preferência por certos bens culturais funciona
como um marcador de classe. Quando o autor analisa a pequena burguesia surgida com a
modernidade, ele afirma que tal segmento tenta se diferenciar de outros grupos, como os
camponeses e agricultores (que tendem a adotar uma visão do mundo pessimista e nostálgica),
adotando uma visão de mundo progressista. O conceito de habitus aparece na sua obra para
descrever o conjunto de disposições que determinam os gostos e caracterizam esta camada
social. Ele emprega tal conceito para designar as disposições inconscientes, esquemas
classificatórios, preferências explícitas e evidentes para a noção que o indivíduo tem da
adequação e validade de seu próprio gosto por certas práticas e bens culturais. É de suma
importância para este trabalho destacar que o habitus não opera apenas no plano da
cognoscibilidade cotidiana, mas está inscrito no corpo, manifestando-se no seu tamanho,
forma, volume, nos modos de sentar, comer e beber, no grau de estima pelo corpo. Bourdieu
chega a afirmar que o corpo é a materialização do gosto de classe: o gosto de classe está
corporificado” (Bourdieu, 1974).
Mauss nos alertava que sobre o corpo imprimem-se marcas e técnicas sociais, idéia
reforçada por Rodrigues (1983) ao afirmar que o corpo humano é permanentemente afetado
pela ocupação profissional, religião, estrutura de classes e etc. Para ele, a estrutura social
encontra-se simbolicamente expressa no corpo e a atividade corporal nada mais faz senão
torná-la expressa. Para Certeau (1994) as gramáticas sociais do poder induzem e suscitam as
pessoas a corrigir um excesso ou déficit corporal. É assim também que determinados tipos de
produtos postos à disposição do público, graças a estratégias comerciais, modelam os corpos
impondo-lhes uma forma e um tônus que têm o valor de uma carteira de identidade. Neste
sentido, a análise de Bourdieu dos habitus da nova pequena burguesia nos mostra que para o
pequeno-burguês era fundamental, enquanto membro de uma classe social específica, adotar
uma postura corporal que o diferenciasse, por exemplo, do burguês. Enquanto este último
revelava um sentimento de bem-estar e segurança com relação ao seu corpo, o pequeno-
burguês estava inquieto com ele, observando-se e corrigindo-se constantemente. É por este
motivo que o pequeno-burguês sente-se atraído por técnicas de manutenção corporais, por
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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esportes, por comidas saudáveis, por academias de ginástica, enfim, por dispositivos que
tratam o corpo enquanto um signo para os outros, e não como um instrumento, remetendo-nos
à distinção dos signos segundo o modelo de Pierce
64
.
Entre as mulheres urbanas da atualidade, o corpo malhado” funciona da mesma
maneira: as mulheres entrevistadas, quando alcançam o corpo magro que desejam, ou
enrijecem grupos musculares, sentem-se próximas ao mundo das mulheres que elas admiram,
sentem-se pertencentes a um grupo seleto, que é caracterizado, entre outras coisas, pelo poder
“cuidar de si”, pelo sinal de que “não se entregam às tentações alimentares de uma maneira
desregrada” (Mulher 68, 34 anos), enfim, correspondem aos padrões corporais da sociedade em
que vivem. Nas academias, ao adquirir um corpo “malhado”, o (a) aspirante a bodybuilder vai
sendo consagrado a um novo papel. Esses ritos vão demarcando as posições entre dominados
e dominantes, entre aqueles que são, como dizem os informantes “fortes, saudáveis e
bonitos” e os que são “fracos, doentios e feios”. Neste sentido, é possível repetir, com
Bourdieu que as instituições são “atos de magia social”, pois criam a diferença ex-nihilo”
(Bourdieu, 1996:100).
Vimos, portanto, que é impossível falar de identidade feminina entre as mulheres
urbanas sem nos remetermos às relações que estas estabelecem com seus corpos. O corpo
será, ao mesmo tempo, suporte e substrato da identidade Seja na conquista de parceiros, ou de
melhores empregos, a auto-estima, fundamental para a construção de uma identidade positiva,
passa pelo corpo. O corpo passa a ser essencial para que a mulher se sinta bem consigo
mesma, pertencente à sociedade mais ampla e valorizada porque soube aproveitar bem os
recursos técnicos na construção de um corpo bonito. Mesmo que em outras esferas a mulher
tenha adquirido sucesso e prestígio, aos olhos dos outros e de si mesmas, se elas não
conquistarem também um corpo ao menos bonito, serão consideradas em déficit. Isto nos leva
a pensar que, como em qualquer processo, em especial aqueles que se desenvolvem sob as
contradições de uma sociedade que se pretende moderna, o culto ao corpo traz em seu âmago
conquistas e retrocessos por parte dos envolvidos no processo. Se ele é positivo porque
restabelece os laços das mulheres com o que de mais individual e primário, ou seja, o
corpo; também representa inúmeros perigos, que serão alvo de nossa atenção a partir de
agora. Veremos no próximo item, como a supremacia do corpo perfeito pode levar ao
contrário da construção de uma identidade: ao aderir a modelos de beleza padronizados, pode
ocorrer uma recusa do próprio corpo, caso ele não se encaixe nos modelos fornecidos. Pode
provocar também uma perda de identidade no sentido de que as marcas do tempo e das
64
Ver discussão na pg 127, item 4.2.4 -.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 190
próprias características genéticas podem ser apagadas e reduzidas através de cirurgias
plásticas, dissolvendo marcas constitutivas do eu e substituindo-as por formas e feições
padronizadas. Pode levar também à dissolução física total, gerando distúrbios alimentares que
podem levar ao esfacelamento da personalidade e, em casos mais graves, á morte. E por fim,
o culto ao corpo contém em si um caráter de exclusão e desconfiança com respeito àqueles
que não são como nós, que não se encaixam nestes padrões estéticos de nossa era.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 191
6 - A Polissemia do Corpo.
“Os problemas mais graves da vida moderna derivam da
reivindicação que o indivíduo faz de preservar a autonomia e a
individualidade de sua existência face às esmagadoras forças sociais, da
herança histórica, da cultura externa e da técnica de vida”
(Georg Simmel)
“Ser moderno é viver uma vida de paradoxo e contradição. É sentir-
se fortalecido pelas imensas organizações burocráticas que detêm o poder
de controlar e destruir comunidades, valores, vidas; e ainda sentir-se
compelido a enfrentar estas forças, a lutar para mudar o seu mundo,
transformando-o em nosso mundo”
(Marshal Berman)
Vimos que o corpo é um dos principais suportes da nossa existência e identidade, a
ponto de Keleman sugerir que em vez de falarmos “Penso, logo existo”, deveríamos dizer:
“Eu sou corporificado; portanto, experencio que sou” (Keleman, 2001:26). De fato, é a
experiência da corporificação que nos a dimensão de estarmos vivos. Ela nos dá a
percepção de um passado corporificado, de uma vida histórica e de um presente, experiência
esta universal. Sabemos também que nosso corpo não repousa simplesmente no domínio da
biologia, muito pelo contrário. Enquanto matriz e suporte de significados, ele é extremamente
complexo e diversamente pensado através do tempo e da história. “Cada sociedade tem seu
corpo, assim como ela tem sua língua”, diria Michel de Certeau (1982). E, do mesmo modo
que a língua, o corpo está submetido à gestão social tanto quanto ele a constitui e a ultrapassa.
Não é possível falarmos de corpo sem nos darmos conta que a concepção do que seja um
corpo esteticamente perfeito é sempre uma construção cultural que varia de acordo com as
diversas sociedades existentes, variando, portanto, historicamente. Sant’Ana (1995) reforça
que o corpo, enquanto resultado provisório das convergências entre técnica e sociedade,
sentimentos e objetos, pertence menos à natureza do que a história: “Memória mutante das
leis e dos códigos de cada cultura, registro das soluções e dos limites científicos e
tecnológicos de cada época, o corpo não cessa de ser (re) fabricado ao longo do tempo. Pois
o corpo é, ele próprio, um processo” (Sant’Ana, 1995: 12).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 192
Portanto, o corpo contém de imediato um caráter polissêmico. Ele é alvo de inúmeros
mecanismos para alcançá-lo, tais como a freqüência e o tipo de atividades físicas realizadas; a
alimentação e os suplementos alimentares. Sobre o corpo serão impostas práticas ascéticas e
as mulheres serão consideradas as agentes principais para o sucesso ou fracasso deste corpo,
como veremos no sub-item 6.1.
Estes processos e a própria relação com o corpo também engendrarão dinâmicas que a
um tempo, se aproximam e se opõem. Isto ficará claro na discussão realizada no sub-item
6.2.1, em que discutiremos como no processo de culto ao corpo, ascese e hedonismo
caminham de mãos dadas.
Além disto, outras contradições emergem da cultura do corpo. Se a busca pelo corpo
perfeito é fundamental para a auto-estima e para a identidade feminina, também pode ameaçar
esta identidade, levando à padronização e aos distúrbios alimentares, como veremos no item
6.2.2.
6.1 - MECANISMOS PARA A OBTENÇÃO DO CORPO PERFEITO
Afirmar que o corpo pertence à história nos coloca diretamente no cerne da questão: são
inúmeros os trabalhos, dentro da sociologia, da antropologia e de várias outras disciplinas,
que se voltaram para a tensão entre os mecanismos de liberdade individual e de sujeição
social. Este tema é caro para todas estas ciências, e ao longo do tempo, foi abordado das mais
diferentes maneiras, sendo que uma delas constitui a análise das relações entre corpo,
identidade e sociedade.
Hoje em dia, fala-se muito do culto ao corpo e dos motivos que diferenciam este
processo de outros mecanismos de adoração do corpo no passado. Questiona-se, entre outros
pontos, se o culto do corpo atestaria um movimento de triunfo do indivíduo, de domínio sobre
o próprio corpo ou se seria mais uma forma de manipulação e de controle social, inscrita no
corpo. Ou, recolocando a questão no âmbito das discuses sobre a identidade, é possível
questionar em qual medida o corpo pode ser, ao mesmo tempo, um dos pilares da construção
do eu, ou um fator de frustração diante dos rígidos padrões estéticos e, também, veículo de
homogeneização e padronização das diferenças. São questões polêmicas e talvez um dos
caminhos para abordá-las seja olhar mais atentamente para o processo de culto ao corpo que
vivemos hoje.
vimos que para os bodybuilders o corpo é central no processo de construção ritual da
pessoa. É por meio de seu adestramento na ginástica e do gerenciamento de recursos estéticos
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 193
que o corpo vai se tornar um capital simbólico, um troféu a ser exposto e mesmo um
diferenciador de status entre aqueles que malham e os sedentários.
Uma vez em consonância com os padrões estéticos difundidos pela sociedade, que no
caso das mulheres, envolvem magreza, tônus muscular e seios avantajados, o corpo será
cultuado e glorificado.
Quais os referenciais simbólicos que orientam esta cultura e as práticas a ela
associadas? Um deles é o da imagem apolínea, ou seja, é o corpo dos deuses da Antigüidade
clássica que serve de modelo para os bodybuilders. Nas minhas pesquisas de campo, este
dado fica claro: várias das mulheres entrevistadas disseram querer “se parecer com uma deusa
grega” (Mulher 68, 34 anos), “A Gisele Bündchen é uma grega” (Mulher 2, 31 anos). É comum
também que as mulheres se refiram aos homens “sarados” e, portanto, considerados bonitos,
como “deuses gregos”. Que idéia elas fazem do corpo dos deuses? Onde se apóia este
referencial? Esta questão foi colocada às mulheres, ao que elas afirmaram “ter lido a expressão
em revistas, junto com a foto de mulheres bonitas” (Mulher 70, 30 anos). Questionei-as sobre a
imagem em questão e elas disseram tratar-se de mulheres bem magras, com seios firmes,
nádegas bem desenhadas, pele sem manchas e com aparência firme. Parece-me que as
mulheres queriam indicar uma proporcionalidade nos traços corporais, o que contribuía para
que tais mulheres fossem chamadas de deusas” e que, no final, acabasse ocorrendo a
associação “deusa” = mulher com corpo bonito.
Vernant (1989) afirma que a expressão “corpo dos deuses” remonta ao período arcaico
grego, quando não eram conhecidas as distinções corpo/alma e natural/sobrenatural. O corpo
humano era visto como tendo a necessidade de reproduzir o corpo dos deuses. Deuses e
homens faziam parte de um mesmo universo de sentido, embora exibissem diferenças. O
corpo humano era percebido em sua efemeridade, enquanto o corpo dos deuses não perecia.
Mas havia sempre a tentativa de se chegar ao esplendor de Deus, esplendor este que seria
manifesto quando o corpo fosse como deveria ser, ou seja, radiating, youth, vigor and
beauty, similar to a god, like unto the Immortals” (Vernant, 1986: 28). Para que o corpo
atingisse estas qualidades e se aproximasse do corpo dos deuses, artefatos como maquiagem,
jóias, roupas e outros adornos sobre o corpo, além de uma pele que parecesse lisa, polida,
firme e jovem, eram fundamentais. Havia um “supercorpo”, que envolvia perfeição e beleza,
testemunho da imortalidade: “If the gods are immortal and imperishable, it is because, unlike
men, their corporality possesses, by nature and even in the very heart of nature, that constant
beauty and glory with the social imagination shihver to in vente for mortals when they no
longer have a body to display their beauty or an existence that can win them glory. Living
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always in streng and beauty, the gods have a superbody: a body made entirely and forever of
beauty and glory”( ibidem, id. pg 34). O corpo divino deveria ser, ao mesmo tempo, pesado e
leve, etéreo, impalpável, devendo se parecer com uma estátua de materiais nobres. A
identidade individual passava pela aquisição de um nome e pelo próprio corpo. O corpo era
visto como substrato da identidade e marca de pertencimento e de distinção: “There has never
been a man without a name, whether he is noble or peasant, everyone receives one at time of
bird. Similarly, it is the body that gives a subject his identity, by distinguishing him from all
of his peers throught his appearance, his physiognomy, his clothing and insignia” (ibidem, id.
pg 40).
No nosso caso, as mulheres urbanas também acreditam que este corpo “malhado” seja
indício da perfeição e fundamental para a construção de uma identidade altamente valorizada
neste período histórico e na nossa cultura, que é a identidade de “malhadora”. Mas elas não
estão interessadas na imortalidade diante dos deuses e nem no ingresso ao paraíso celestial:
estão preocupadas com uma outra forma de imortalidade, a alcançada pelo sucesso atestado
no corpo e pelo corpo, não para a aprovação divina, mas para a aprovação de seus pares, que
podem ser tanto os parceiros afetivos, quanto a família, os amigos, o restante da sociedade.
Sucesso este que também conduz à imortalidade, pois se cristaliza nos olhares e nas formas
midiáticas como fotografias e vídeos. Se a mulher em questão for “VIP” (very important
people) e/ou famosa, o sucesso de seu corpo e de si mesma pode se eternizar em revistas,
comerciais de televisão e até mesmo no cinema.
Um outro ponto deve ser destacado relativamente ao universo simbólico dos
bodybuilders, pois é fundamental para que se alcance este sucesso corporal. Sabino percebe
que após 1980 ocorre o surgimento de um novo ethos, que ele chama de ascético, e que se
caracteriza pela profunda preocupação de integração aos valores constitutivos da cultura
dominante, combatidos anteriormente pelos grupos da contracultura. Isto ocorreria tanto no
plano do simbólico quanto no das práticas, caminhando no sentido de uma estética corporal
que valoriza o cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de valores relacionados a
este cultivo. Ou seja, estaríamos vivendo “um processo de construção do corpo onde a forma
física apresenta-se como atitude não desviante” (Sabino, s/d: 5).
Turner (1974) mostra que a recompensa pelo corpo ascético não é a salvação espiritual,
mas a aparência embelezada, um eu mais disputado. Na mesma linha de raciocínio,
Baudrillard destaca que o culto higiênico e dietético, bem como a obsessão pela juventude,
elegância e feminilidade, associados ainda com práticas sacrificiais, suplantam a importância
da alma: “O Mito do prazer que o circunda tudo hoje testemunha que o corpo se tornou
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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objeto de salvação. Substitui literalmente a alma, nesta função moral e ideológica”
(Baudrillard, s/d: 136).
Se, no ideário místico e religioso, as concepções sobre a vida sóbria e temperada tinham
como referência uma defesa contra as tentações da carne, a subjugação do corpo através das
rotinas de manutenção corporal é a precondição para a conquista de uma aparência mais
aceitável, para a liberação da capacidade expressiva do corpo. Neste sentido, Del Priore
(2000) afirma que “Diferentemente de nossas avós, não nos preocupamos mais em salvar
nossas almas, mas em salvar nossos corpos da desgraça da rejeição. Nosso tormento não é o
fogo do inferno, mas a balança e o espelho” (Del Priori, 2000: 52). Como o corpo perfeito é
colocado, estrategicamente, segundo Novaes
65
(1997: 22), como estando ao alcance de todas,
ele traz em si a culpa caso não seja conquistado. É preciso exercitá-lo até o limite para
expiar a própria culpa da não-perfeição, ou de uma refeição mais calórica, de um desvio de
conduta. E o algoz do corpo em pecado por não ser perfeito é o espelho, tanto o de vidro
quanto o de carne e osso das pessoas nas quais nos miramos em busca da perfeição. Hoje, ser
belo é ser aceito e valorizado e isso passa pelo trabalho árduo e pelo comportamento ascético
frente ao corpo.
Wacquant afirma a respeito do boxe: “O que de imediato choca é seu caráter
repetitivo, árido, ascético: suas diferentes fases repetem-se ao infinito, dia após dia, semana
após semana, com ínfimas variações” (Wacquant, 2002: 78).
Sabino, Turner e Wacquant, ao falarem de comportamento ascético, obviamente estão
retomando os trabalhos de Max Weber, em especial A Ética Protestante e o Espírito do
Capitalismo (1904). Weber procurou mostrar que as sociedades modernas e ocidentais se
distinguiam das demais sociedades do passado tanto enquanto lócus do saber quanto do
capitalismo. Segundo ele, a racionalidade, a técnica e um ethos específico, que ele chamou de
ascético, seriam fundamentais seja para o triunfo do capitalismo, seja para o progresso da
ciência e caracterizariam o mundo moderno: “O processo de racionalização no campo da
ciência e da organização econômica determina indubitavelmente uma parte importante dos
ideais da vida da moderna sociedade burguesa. Foi esta racionalização que deu à
reformada sua tendência ascética” (Weber, 1989: 50, 82). Não será possível aqui detalhar a
obra de Weber, mas é importante frisar que a idéia de auto-controle, bem como o sentimento
65
Novaes afirma que a estratégia da mídia é inteligente, pois se as revistas de plásticas em geral dialogam com
mulheres das classes econômicas mais privilegiadas, por outro lado, os canais de TV “Shoptime”, os
catálogos, as lojas de departamento e cosméticos, bem como os planos populares de cirurgia plástica em
12 parcelas sem juros fazem com que as mulheres mais pobres acreditem que esta promessa de beleza é
para todas e não apenas para a elite.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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da obrigação em realizar tarefas e munir-se da técnica e da ciência como aliadas, vão aparecer
fortemente no universo dos bodybuilders.
Na maioria das vezes, este processo de construção ritual da pessoa é dolorido: os
tratamentos estéticos produzem dor, e mesmo os exercícios, principalmente aqueles que
envolvem força muscular, deixam o corpo dolorido. Injeções de botox nos músculos faciais,
choques elétricos na estimulação russa, injeções de colágeno pra preenchimento dos sulcos,
mesoterapia, entre outros, produzem sofrimento físico em prol do próprio físico, que depois
dos tratamentos pelo menos segundo as promessas ascende a uma nova e melhor forma.
Isto sem falar da plástica, que devido à manipulação dos tecidos, cortes e pontos, produz
dores por semanas, e às vezes, por meses. Estamos aqui muito distantes dos tratamentos de
beleza da década de 1920, que perto destes, podem ser considerados paliativos e leves, que
envolviam, em sua maioria, exercícios moderados e, principalmente, cremes e poções que
disfarçavam a feiúra (Sant’Anna, 1995). Distantes também da idéia veiculada nos anos de
1960 de que era possível e desejável se embelezar sem dor, com prazer. Aqui, ainda que o
prazer exista, ele advém da dor, ou melhor, da eficácia simbólica - e real - de ver, através do
empenho, uma nova identidade aflorar apesar e por conta do esforço, pois entre os
informantes é corrente a frase “se o músculo está doendo, está crescendo” e, além disto, é o
sofrimento infligido ao corpo que faz com que os rituais sejam o que são, já que os indivíduos
aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos
tiverem sido os rituais iniciáticos a que se submeteram (cf. Clastres, Turner, 1974).
Segundo Travaillot (1998) o exercício, além de conferir essa imagem de um corpo
empreendedor, conquistador, ativo, também aproxima as noções de beleza, forma e saúde.
“‘Nada de beleza sem saúde. Nada de saúde sem exercício’. É a religião do esforço,
adotando um modelo de escola, mas sob um regime não escolar, alegre e erotizado”
(Travaillot, 1998: 154).
Vimos que a beleza passa a ser responsabilidade feminina: a construção do corpo
perfeito passa pelo esforço do indivíduo e é preciso fazer o que for para que o corpo perfeito
seja alcançado. É muito comum nas aulas de ginástica que se faça referência à necessidade de
fazer o corpo sofrer, para o seu próprio bem: “Força, ânimo, vai estar todo mundo pronto
para o verão, interno de coxa e bumbum durinho” (balé clássico, 23/05/2005); “judia do
abdômen, vamos deixar ele trincado” (aula de abdômen, 7/06/2005);Dói, mas é bom! Tudo
duro agora, bumbum e perna, sem moleza” (aula de body pump, 08/08/2005) . A etnografia
revelou também que, para as entrevistadas, realizar um “treino puxado” (termo nativo) é
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 197
também purificador, na medida em que expia culpas (ligadas ao consumo de alimentos
considerados calóricos), raiva, mágoas e outros sentimentos:
“Quando eu estou com muita raiva ou mágoa adoro socar e socar o Bob [boneco usado
nas aulas de boxe]. Saio suada, cansada, mas tão aliviada...” (Mulher 69, 45 anos).
“Exige muito esforço. Nada vem de graça. Eu preciso fazer os dois, ginástica e
alimentação. Não adianta a pessoa malhar, malhar, malhar e não cuidar da
alimentação. É uma dieta eterna. E a malhação é eterna também. Não é...É como eu
digo: é um dia a menos no resto da minha vida. Eu malhei um dia a menos do resto da
minha vida, porque a gente malha a vida inteira. Tem que malhar” (Mulher 7, 39 anos).
“Ai, muito difícil, muito difícil que eu malho há quase 4 anos e assim, melhorei muito, só
que é muito difícil, é muito lento o processo, e exige muito esforço. Qualquer paradinha
que você dá, qualquer descansadinha, você perde tudo o que você ganhou. Todos os
músculos, toda a definição, muita gente diz que a musculação é uma atividade muito
traiçoeira, porque você se mata, se mata, se mata e depois uma paradinha que você
você perde tudo o que você ganhou” (Mulher 10, 18 anos).
“Ter resultado exige um sacrifício, não vou dizer pra você que é fácil vo se manter
magra, existe uma escolha, ou você come um pão de queijo, ou você toma a sua xícara de
chá verde, o pão de queijo é uma satisfação imediata, o chá verde é em longo prazo.
Existe uma disciplina, e tem que ser rígida, porque a oferta de comida e de guloseima é
muito grande, então você tem que ser muito disciplinada, eu reconheço que sou muito
disciplinada”. (Mulher 28, 35 anos)
“Malhar exige disciplina, fazer ginástica exige disciplina, porque malhar...você tem que
ter uma continuação, então você tem que ter uma disciplina para você saber coordenar
as atividades com o seu ritmo de vida, com seu ritmo de trabalho, de sono, de
alimentação, tudo exige uma disciplina, você fazer uma dieta, digo fazer dieta não aquela
coisa rigorosa, buscar, um cardápio certo.” (Mulher 54, 26 anos).
Quando analisamos os universo da academias de ginástica, fica claro a um olhar atento
que o processo de culto ao corpo está permeado de rituais onde o autocontrole é fundamental:
uma rotina a ser seguida desde que o bobybuilder acorda: o que comer antes do treino,
durante e depois dele, quais exercícios fazer, com qual potência e séries de repetições, enfim,
toda uma série de comportamentos ascéticos em que tudo é racionalmente calculado para
atingir um fim específico, qual seja: a construção do corpo perfeito. “Ter disciplina” passa a
ser uma mensagem constante nos meios publicitários e vai encontrando eco nos discursos de
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 198
pessoas anônimas, como nossas entrevistadas. Como ilustra a Figura 9, é possível e necessário
conquistar disciplina:
E neste processo, é fundamental que o indivíduo
observe, julgue a si mesmo e estabeleça os canais para
melhorar o que for preciso, seja na intensidade do treino,
seja na alimentação.
Talvez alguns ingredientes desta ascética poção
mágica que pode levar indivíduos não malhados a
malhados sejam a freqüência à academia e o tipo de
atividade realizada, alimentação, o uso de suplementos
alimentares e cirurgias plásticas.
6.1.1 - ROTINA DE EXERCÍCIOS FÍSICOS
falamos da rotina dos exercícios no capítulo 4,
em especial no item 4.2.2 - (Freqüência e tipos de
atividades Físicas) para mostrar como nos deslocamos da idéia de ginástica leve introduzida
nos anos de 1920, para a de malhação intensa após os anos de 1980, mas precisamos retomá-
la aqui, pois ela é fundamental nas idéias de disciplina e de ascese.
Vejamos alguns dados etnográficos:
“Segundas, quartas e sextas eu faço de 50 a 60 minutos de aeróbico, depois vou para
aula de ‘bodypump’, depois para o ‘bodybalance’. De terça e quinta, ‘bodystep’, é uma
aula super bacana, coreografada, super puxada, pauleira, antes eu vou à musculação
fazer um pouco de braço, de perna, depois da aula faço 30 minutos de ‘transport’.
Geralmente dá três horas por dia, seis dias por semana.” (Mulher 65, 61 anos).
“Eu fico 4 horas aqui [na academia] todos os dias. Eu faço ‘Jump Fit’, dança do ventre,
musculação, é só. E alongamento e flexibilidade” (Mulher 69, 45 anos).
“Eu malho de segunda à sexta, quatro horas por dia. Segunda, quarta e sexta, uma hora
de aeróbico no ‘Crossramp’, depois musculação para membros inferiores e dança do
ventre. Às terças e quintas, abdômen, musculação para membros inferiores e
‘spinning’”.(Mulher 68, 34 anos).
“Eu faço muita coisa: faço yoga, faço step, faço abdominal, faço alongamento, faço
spnning, faço musculação, eu faço bastante coisa. É claro que em dias alternados, o
Figura 9 - Disciplina e beleza
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 199
faço tudo num dia só, faço em dias alternados, mas faço tudo isso. Tem dias que eu
exagero, quando eu vejo que engordei” (Mulher 7, 39 anos).
Os relatos acima mostram que para o bodybuilder é muito importante ter uma rotina
bem estabelecida na academia, que inclui diferenciar os membros superiores dos inferiores
para maximizar o treino, comparecer toda semana e sempre se exercitar por no nimo duas
horas.
um rigor com relação às atividades que devem ser desenvolvidas e a observação
comprovou-me que de fato as mulheres seguem a rotina descrita à pesquisadora. Também é
possível perceber que as mulheres entrevistadas falam um dialeto próprio, dificilmente
compreendido por um leigo, ainda mais porque a maioria dos termos provém do inglês, assim
como algumas das aulas
66
: transport, bodypump, bodybalance, bodyjump, crosramp,
transport, fitness, bodysistem.
As entrevistadas afirmam que não vivem mais sem fazer algum tipo de atividade física;
ela é quase uma droga, vicia. Se nos anos de 1960 os hippies utilizavam drogas (como por
exemplo a maconha) como uma forma de romper com a sociedade mais ampla, agora as
mulheres utilizam a ginástica (e também produtos para emagrecer, anabolizantes, hormônio
do crescimento) para se integrarem ao sistema. Várias mulheres enfatizaram que mesmo nas
férias procuram compensar a ausência da academia. Vejamos alguns dos relatos:
“Hoje não, acho que eu sairia correndo no meio da Avenida 23 de maio, assim, que nem
uma louca. Quando eu viajo também, imagina. De manhã cedo, eu tenho a sorte do meu
marido me acompanhar. A gente anda na praia, corre, e isto é todo dia.” (Mulher 69, 45
anos).
“Eu me peguei fazendo bíceps com garrafa de coca-cola e insistindo em tomar o
controle do pedalinho no parque para exercitar as pernas. Se tivesse que sair da
academia, faria ginástica em casa, na rua, em qualquer lugar. Quando viajo, a regra é
sempre caminhar muito e subir e descer encostas de morros! Eu sou viciada em
ginástica” (Mulher 68, 34 anos).
“Eu me considero viciada em ginástica. Faz tão parte do meu estilo de vida que quando
eu viajo, a minha preocupação é se a cidade tem alguma academia de ginástica,
entendendo [risos] Eu preciso de ginástica1 [enfática]. Até eu morrer, se Deus quiser, eu
66
A academia Cia Atlhetica está credenciada para dar aulas do Programa “BodySistem”, que é patente dos
E.U.A Os professores precisam fazer cursos de especialização e as aulas são padronizadas e sinconizadas
com as dos E.U.A, tanto no que diz respeito aos nomes e movimentos, quanto à música. As aulas seguem
conjuntos específicos de músicas e repetições, chamados de “mix”, e estes podem mudar quando isto
ocorre no país de origem.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 200
vou estar com 80 anos aqui, fazendo ginástica, é a melhor coisa da vida” (Mulher 65, 61
anos).
“Nas férias eu fui pra praia e o que eu fiz, que eu não tenho academia lá, é acordar,
dar uma boa caminhada, correr, nadar, eu aproveito o mar, dou umas braçadas,
danço...Eu até relaxo, como, bebo, mas depois é sagrado queimar”.(Mulher 43, 39 anos)
Isto se justifica por várias razões: pela necessidade de construir um corpo ideal e mantê-
lo, pelo fato da ginástica estar tão incorporada à vida das mulheres que se equipara a escovar
os dentes ou tomar banho todos os dias, pelos mecanismos de compensação entre comer, se
distrair e manter as formas corporais... Comenta-se mesmo que a ginástica e o controle
alimentar estão de uma tal forma incutidos no ethos feminino que não ir á academia ou comer
em excesso dá culpa:
“O que falta é tempo, mas quando eu não venho eu fico mal, eu acho que eu tô
perdendo, até porque aqui não é barato. E segundo, que o corpo, o seu corpo pede, para
você comer mais tranqüila, pra você ficar mais tranqüila com seu consciente. Eu dou 100
por cento de importância à academia” (Mulher 67, 29 anos).
“Se eu tiver um compromisso à tarde, eu não venho, eu troco, eu venho de manhã, agora
se eu não venho mesmo, no outro dia eu procuro compensar. Mas eu não gosto de faltar.
Parece que vofica se auto-punindo, ‘ai Meu Deus do céu, porque que eu não fui’. A
mesma coisa a alimentação, eu saio fora durante o final de semana, então de segunda à
sexta eu fico no grelhado, na salada, e se eu tenho um compromisso que me tire da dieta,
no outro dia eu tenho que compensar” (Mulher 69, 45 anos).
“Para eu não vir à academia só quando eu estou muito doente, do contrário, minha filha,
eu estou todos os dias aqui, inclusive aos sábados!!!” [enfática] (Mulher 65, 61 anos).
“Se eu não for eu fico péssima. Me sinto culpada e sem energia pra nada. Fico até de
mau-humor. Evito muito faltar e quando falto, fico me torturando.” (Mulher 68, 34 anos)
“Todas, todas têm culpa quando comem demais ou não fazem ginástica. Todas, a lei da
compensação, não fui ontem hoje vou fazer o dobro, não fui treinar, hoje não vou comer,
ou comi demais tenho que treinar muito hoje, segunda feira a academia lota... Culpa
depois de comer é comigo e com qualquer outra pessoa, come e depois fala, eu não
precisava ter comido tudo isso’” (Mulher 8, 25 anos)
Wacquant, em seu magistral livro Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de
boxe (2002), também fala do comportamento ascético entre os lutadores de boxe: “A ascese
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 201
coletiva, cujo mestre-de-obras no ginásio é Deedee, é construída à imagem de sua vida
pessoal espartana: levantar cedíssimo, dormir cedo, alimentar-se à base de legumes cozidos,
peixe fresco e carne magra (frango e peru), jamais tomar ‘pop’ [refrigerante] nem comer
doces, raramente tomar um copo de bebida alcoólica e fazer uma visita ao médico a cada seis
meses” (Wacquant, 2002: 128). Wacquant mostra que o desenvolvimento bem-sucedido de
uma carreira no boxe supõe uma gestão rigorosa do corpo, uma conservação meticulosa de
cada uma de suas partes, enfim, um gerenciamento racional do capital específico que os
recursos físicos representam: “O gym é, também, uma escola de moralidade, no sentido
Durkheimiano, isto é, uma máquina de fabricar o espírito de disciplina, a ligação com o
grupo, o respeito ao outro, assim como a si mesmo, a autonomia da vontade. O caráter
monástico, senão penitencial, do ‘programa de vida’ do pugilismo faz do indivíduo sua
própria arena de desafio e convida-o a descobrir a si mesmo” (Wacquant, 2002: 32).
No universo das mulheres pesquisadas, também é perceptível que a academia de
ginástica parece fechar-se sobre si mesma, como diria Wacquant, numa espécie de “ilha de
ordem e virtude”, onde não se discute política, religião ou qualquer outro assunto que não
diga respeito à academia. Fala-se do corpo, da vida pessoal, dos mecanismos de aceitação, e,
principalmente, da vida que se desdobra naquele cenário: das dietas alimentares, do peso, da
porcentagem de gordura corporal, de massa gorda versus massa magra, do novo treino puxado
passado pelo instrutor, da dor que se manifesta no corpo após o treino...Mas fala-se também
da satisfação em perceber o corpo sendo moldado, construído, admirado tanto pelos colegas
de treino quanto pela sociedade envolvente (amigos, família e meros desconhecidos que
lançam olhares aprovativos às mulheres quando cruzam com elas nos mais variados espaços.).
Simmel (1976) também destaca que por sociabilidade podemos entender os processos puros
de associação que têm seu fim neles mesmos, estas formas de interação social no limite
desprovidas de conteúdo ou dotadas de conteúdo socialmente anódinos.
6.1.2 - ALIMENTAÇÃO E SUPLEMENTOS ALIMENTARES
Outro elemento central citado pelas mulheres na construção do corpo e da identidade de
“malhadora” é a alimentação, que segundo elas, deve ser muito regrada. Embora a relação
com o peso tenha mostrado que metade da amostra está satisfeita com seu peso, ainda assim
as mulheres fazem regimes para emagrecer. Como vimos com Elias (1990) e Rodrigues
(1999)
67
, na passagem da Idade Média para a Moderna temos uma mudança de sensibilidade
quanto às questões alimentares e corporais, sendo que um dos indícios desta mudança refere-
67
Ver capítulo 3, sub-item 3.3, discussão sobre a modernidade.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 202
se à questão do controle. Se na Idade Média banquetear-se com alimentos calóricos era sinal
de status e de alegria vitoriosa, na Moderna isto assume um caráter de culpa, já que a
modernidade reforça as sanções frente ao corpo. Para Elias, temos uma mudança na própria
estrutura da personalidade, que pressionada por sanções sociais externas, desenvolve
mecanismos de autocontrole mesmo quando o indivíduo encontra-se sozinho em casa:
“Impulsos que prometem e tabus e proibições que negam prazeres, sentimentos socialmente
gerados de vergonha e repugnância entram em luta no interior do indivíduo” (Elias: 1990:
189).
As mulheres da Cia Atlética, por mim entrevistadas, dizem exatamente isso. Controlam
o que comem e o quanto malham porque sentem culpa quando comem demais ou deixam de
fazer um exercício. Se o alimento, em especial o calórico, pode fornecer prazer, também
suscita a culpa e se malhação produz endorfina e, portanto, prazer, também exige esforço e
dor. Mesmo que ninguém esteja vendo, o policiamento é intenso, parte da própria pessoa e faz
parte até dos momentos de lazer, como as férias.
A pesquisa mostrou que 59% das entrevistadas fez ou faz algum tipo de controle
alimentar:
Os depoimentos comprovam os dados do gráfico:
“Eu sou muito chata comigo mesma, eu me cobro muito, então se eu como alguma coisa
errada às vezes, eu acho que eu vou engordar. Na verdade é aquele negócio, você
come com culpa (...).Eu fiz uma dieta e eu tinha que parar de comer doce, eu podia
Gráfico 33 - Regimes
Você faz ou fez regimes para
emagrecer?
59%
41%
sim
o
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 203
comer de vez em quando, mas aí eu decidi que não ia comer nunca mais e hoje em dia eu
não consigo comer, se eu comer, eu passo mal” (Mulher 4, 18 anos)
“Regime eu sempre fiz, depois que eu comecei a treinar eu fiz dieta, pra ganhar massa,
aumento de proteína, diminuição de carboidrato, já fiz várias dietas da moda (...) se você
quiser saber eu sei todas” (Mulher 18, 23 anos).
“Eu para falar a verdade eu cheguei a fazer dieta algumas vezes, hoje em dia (...) o
que faço é alimentação saudável, comer balanceado, eu tenho que calcular quanto de
proteínas, carboidratos, vitaminas que eu posso comer em cada refeição (...) Agora eu
acho que a gente vive em busca do bem-estar, quando chega final de semana, você vai
sair com os amigos, comer uma pizza, eu acho que tem que comer, você não tem que
ficar em busca desta alimentação e ficar sem o prazer de comer um doce, uma pizza,
beber um vinho.” (Mulher 54, 26 anos).
“Assim de não comer totalmente não, mas evito carboidrato à noite, uma coisa assim,
sabe, balanceada (...) Mas por exemplo, eu não gosto de sair durante a semana porque a
gente come o que não deve, e não pode, sair da linha de final de semana e olhe lá”
(Mulher 69, 45 anos).
“Pode parecer besteira, mas eu sinto culpa, se eu comer demais. Eu me alimento bem,
como de três em três horas, mas é uma barra de cereal, uma salada de frutas, uma
salada, eu procuro não comer gordura, fritura, arroz, feijão, batata, nada disso, a não
ser final de semana”.(Mulher 67).
“Dieta, eu vivo de dieta [ela estava comendo uma fruta depois de um treino de 4 horas].
Mas não sou escrava, se eu tiver que comer um doce, eu vou comer, mas só um
pedacinho. Não a torta inteira. É o excesso que faz mal. Mas como eu faço muita
ginástica, eu posso me dar o luxo de comer, eu não passo vontade.” (Mulher 65, 61 anos)
Dentre as entrevistadas, é elevado o número de mulheres que já tomaram alguma
medicação para emagrecer:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 204
79% das mulheres declararam terem tomado algum tipo de “fórmula” ou remédios
industrializados. Elas dizem:
“Eu já fiz todos os regimes possíveis, inclusive com fórmulas para emagrecer. tomei
muita anfetamina e vários outros remédios que foram proibidos depois. Quando como,
penso assim: este pedacinho de carboidrato, com este de proteína vai fazer crescer meu
músculo...”. (Mulher 68, 34 anos).
“Já fiz dieta várias vezes, agora não estou fazendo, mas to precisando fazer. tomei
remédio pra emagrecer.” (Mulher 2, 31 anos)
“É, eu fiz regime pouco tempo, agora. Tomei remédio porque eu trabalho de segunda
a segunda e se eu diminuísse a parte nutricional eu não ia ter disposição para o trabalho,
então eu tive que acelerar o processo com remédio. Tive os efeitos colaterais normais, os
esperados, sabe, dilatação das pupilas, sudorese demasiada, minha mãos ficavam
geladas, dava umas vertigens, escurece tudo” (Mulher 5, 22 anos)
“É, eu tomei. Quando eu entrei na musculação, na nutricionista eu tomei um pra
queimar gordura, é um tal de C.L.A, que falam, tomei, e eu melhorei muito, você toma
ele, você se exercita e você vai queimando gordura (...) Nossa, eu melhorei bastante”
(Mulher 12, 48 anos)
Gráfico 34 - Medicação para emagrecer
Tomou ou t oma al guma medi cação par a
emagr ecer ?
1%
20%
79%
s i m
não
não r es pon deu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 205
Sempre me espanta que em nome da beleza, da perda de peso, aceitemos nos submeter
aos efeitos colaterais tão bem descritos pela Mulher 5 - dos remédios para emagrecer.
Tememos um infarto, nos empenhamos em fazer tudo que a medicina aconselha, fazer
atividade aeróbica e diminuir a ingestão de gorduras. Mas deliberadamente, através dos
remédios para emagrecer, elevamos os batimentos cardíacos a ponto de termos insuficiência
respiratória e mesmo infartos. A maioria deles contém anfetamina, que vicia em dias e é
muito nociva para o organismo, gerando um desequilíbrio hormonal muito grande, bem como
taquicardia e depressão. É sabido também que provoca danos no cérebro e ocasiona distúrbios
como anorexia e bulimia
68
. Mas, em nome de alguns quilos a menos, aceitamos os riscos. É
que na verdade, a leitura é outra. o se trata de meros quilos perdidos. Trata-se de fazer as
pazes com o espelho e, portanto, consigo mesma. Trata-se de se sentir integrada e, portanto,
aceita. Trata-se de ascender, via corpo, ao grupo das bonitas e bem sucedidas. Trata-se de
existir, numa cultura em que beleza e magreza se associam, sendo pré-condição de
felicidade...
Percebe-se claramente, através das entrevistas e das observações de campo, que a
ingestão de alimentos é feita de modo meticuloso, visando proporcionar nutrientes para que o
músculo trabalhado se recupere, mas evitando qualquer alimento calórico que possa resultar
em adiposidade e dificultar a visualização dos músculos.
Aliás, músculo é uma palavra que é dita a todo instante na academia, pois tanto os
homens quanto as mulheres estão muito preocupados em fazer com que eles aflorem e a
procura pela atividade de musculação se menos por gosto e mais por necessidade, como
ressaltaram as falas já analisadas. Todos os bodybuilders trocam receitas de suplementos
alimentares e em algumas conversas em surdina lançam mão de termos incompreensíveis até
alguns anos atrás, como anabolizante, proteína sintetizada, hormônio do crescimento, entre
outros. É muito comum ver as mulheres com garrafinhas com líquido colorido, normalmente
um suco acrescido de proteínas ou carboidratos que potencializam o trabalho muscular. Os
homens, menos discretos, carregam potes imensos de produtos como MegaMass e vários
outros, e fazem sua “poções mágicas” na lanchonete.
68
Por ocasião da pesquisa, duas das entrevistadas vieram conversar com a pesquisadora, pois queriam tomar
remédios para emagrecer e precisavam da opinião de alguém que entendesse do assunto (já que o mesmo é
parte da pesquisa). Foram alertadas sobre os sintomas e riscos e ambas procuraram um médico e iniciaram
o tratamento. Alguns dias depois, voltaram a falar com a pesquisadora, dizendo que se sentiram tão mal
que desistiram da medicação; segundo elas, “os sintomas não compensam, eu prefiro os meus quilos a
mais”.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 206
No entanto, no cenário um ator escondido: o
anabolizante. Proibido por lei, considerado droga, é capaz de
fazer com que os músculos cresçam muito rapidamente e de
modo muito ostensivo, mas também pode levar, entre os
homens, ao câncer de fígado e próstata, à impotência sexual, à
agressividade, à cirrose hepática e a vários casos de morte.
Acontece com o anabolizante a mesma coisa que ocorre com o
preconceito racial: as pessoas dizem que existe racismo no
Brasil, mas o são preconceituosas; da mesma forma, fala-se
de anabolizantes, mas ninguém assume que ministra, nem os
alunos que os tomam. Até porque como o discurso da saúde e o
da estética se misturam, não é interessante assumir que em
função da estética seja possível tomar substâncias que minem
a saúde e possam até matar. Além do mais, como vivemos o
culto do esforço, é fundamental que os músculos adquiridos sejam vistos como resultado do
trabalho árduo e não do uso de substâncias ilegais. Ocorre com os anabolizantes algo
semelhante ao que acontece com a
cirurgia plástica para as mulheres:
sempre vai ter alguém dizendo que os
músculos, ou os seios grandes no caso
das mulheres, são de “mentira”,
“foram comprados”, ou que a pessoa
optou “pelo caminho mais fácil”. Uma
cintura fina conquistada com
exercícios tem maior valor simbólico
na tribo dos malhadores do que aquela
conquistada com a retirada de costelas.
Do mesmo modo, músculos
conquistados com malhação e dieta
são mais bem vistos do que aqueles
conquistados com anabolizantes, fazendo-
se de seu uso um tema cercado de tabus e
que, muito lentamente, abre-se ao
pesquisador.
Figura 10 - Mario Forente
usuário de anabolizante
Figura 11 - Bonecos Falcon e Action Man
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 207
Normalmente ele vem á tona quando a pessoa que toma falece ou fica muito doente,
como foi o caso do estudante de publicidade e comerciante Mário Forente (Figura 10), de 21
anos, que, com 17 anos, passou a tomar anabolizantes, para “chegar mais rápido ao corpo com
que sonhava”. Em oito meses, ele ganhou 20 quilos de massa muscular, mas pouco tempo
depois começou a ter gripes constantes e dores abdominais e descobriu que seu fígado estava
se esfacelando por causa dos anabolizantes
69
.
Outra reportagem, desta vez publicada na revista “Veja” de 28 de novembro de 2001,
intitulada “A ciência da Boa Forma”, também comenta os perigos dos anabolizantes, bem
como mostra que a proporção dos bonecos Falcon (1974) e Action Man (2001) reflete a
mudança no padrão corporal masculino
70
(Figura 11).
69
Fonte revista tudo edição n
o
1 de 4 de fevereiro de 2001, pagina 32.
70
É interessante observar que, à medida que as mulheres emagreciam, os homens procuravam “malhar”para
parecerem mais fortes e encorpados. Talvez possamos relacionar tal fato a mecanismos de compensação
adotados pelos homens: com o progressivo ingresso da mulher no mercado de trabalho, os homens, em
parte, sentiram-se ameaçados em sua masculinidade e, uma das formas de auto-afirmação passa pela
conquista de um corpo que invoque atributos como força, potência e virilidade.
Figura 12 - Fisiculturismo e anabolizantes
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 208
No universo pesquisado, uma das entrevistadas afirmou ter ciência da existência de
anabolizantes na academia, e é curioso que ela inclusive falou dos bonecos citados na
reportagem acima:
“É, o anabolizante acaba com tudo, tanto a identidade como a personalidade da pessoa,
muda muito, aquela coisa de comparação. Eu acho que não vale a pena, acho que cada
pessoa tem o seu lado bonito, já pensou se fosse todo mundo igual? Seria um monte de
boneca, né? Um monte de Barbie, um monte de Bob. Acho que isso teve uma influência
muito grande, né, os bonecos mudaram a proporção, a proporção física dos bonecos
mudou. Então, antes era o Bob, né, hoje em dia é aquele boneco enorme” (Mulher 61,
29 anos).
Quando questionada se é comum o consumo de anabolizantes pelos freqüentadores das
academias, ela titubeou, mas afinal disse:
“Existe, muito. Existe, muitas academias... Hoje em dia tem muita fiscalização...
Esconde muito..., isso e aquilo, mas... Quando morreu de vez em quando, aparece um
morreu disso, morreu daquilo, mas não é...só a questão da morte, a morte morreu
acabou, entendeu? Eu acho que a questão é de...das conseqüências de...e das...seqüelas
que causa...” (Mulher 61, 29 anos)
Além dos anabolizantes, outro recurso conquistado com o apogeu da técnica para
potencializar a obtenção de músculos mais definidos e de manter a juventude é o hormônio
GH (sigla para “growth hormone”), produzido naturalmente no corpo humano pela hipófise
71
(glândula localizada na parte inferior do cérebro), mas que foi sintetizado pelos laboratórios
de bioengenharia. Ao contrário do anabolizante, ele não é proibido; a partir de 1994 a
substância foi liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas a venda só poderia
ser feita com prescrição médica e retenção da receita, depois de constatada a deficiência do
hormônio no organismo. Mas a substância vem sido contrabandeada dos E.U.A e não é
barata: ampolas suficientes para um mês saíam por R$ 2.000,00 no ano de 2001. A Revista da
Folha de 28 de Janeiro de 2001 fez uma sondagem sobre o assunto e colheu alguns
depoimentos sobre o uso deste hormônio, que na versão sintética é conhecido pela sigla HGH.
Até mesmo os donos de academia e instrutores de ginástica injetam a substância e ela é
comum antes do início dos campeonatos de fisiculturismo. Seu uso aumenta no verão, devido
a maior exposição do corpo. Uma das entrevistadas, de 19 anos, observou: “É o preço para
ficar com um corpo legal. Ainda mais no verão, que todo mundo quer se exibir. Por causa do
71
Este hormônio começou a ser usado por volta de 1970 para auxiliar crianças com problemas de naninismo e
era retirado da hipófise de cadáveres humanos.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 209
HGH, vou estar perfeita para passar o carnaval na praia. A mudança é nítida. Meu corpo
está mais bonito. Todo mundo me pergunta o que eu estou tomando. Eu digo que é
malhação”. Este depoimento reforça a idéia comentada de que é preciso ostentar um corpo
perfeito, mas evitar atribuí-lo ao uso de recursos potencializadores como as drogas sintéticas.
É preciso fazer acreditar que foi apenas o empenho do(a) malhador(a) que levou a este corpo
tão cultuado e desejado. No entanto, ocorre com o HGH o mesmo que ocorre com quase toda
as técnicas atuais de construção do corpo perfeito, a balança oscila entre “esconder” tais
procedimentos ( para fazer crer que o corpo foi conquistado com o empenho ) e “ostentá-
los”. Assumir procedimentos como plásticas, aplicação de hormônios, sessões de estética, etc
atesta duas condutas importantes do culto ao corpo:
1) Indicar status econômico, já que os tratamentos são caros e destinam-se
portanto, às classes abastadas.
2) Ostentar a adesão à ética corporal da perfeição física e pleitear o status
simbólico desta condição.
Desta forma como ilustram a seguintes figuras, comportamentos como injetar hormônio
na coxas, que poderiam ser considerados aberrantes a décadas atrás, são hoje realizados às
claras:
O hormônio, além de potencializar os músculos, também é responsável por deixar a pele
mais jovem e o cabelo mais bonito. Na reportagem citada, um usuário, arquiteto e decorador,
de 43 anos diz: “Uso por uma questão de prevenção. Quero manter meu visual sempre jovem.
Quero viver pouco, mas quero viver feliz”. O que podemos concluir com esta fala? Podemos
Figura 13 - Usuários de HGH
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 210
atribui-la à falta de instrução? Podemos dizer que isto é futilidade, coisa de quem não tem
nada melhor para fazer? Não é o caso. A pessoa em questão levanta às sete da manhã, deixa
os filhos na escola e vai trabalhar, saindo do escritório ás 20:00 horas. Depois vai para a
academia, malha por uma hora, diverte-se na noite, volta pra casa e aplica o hormônio por
volta das duas horas da manhã (como o organismo já produz este hormônio e seu pico de
produção ocorre das 22:00 às 3:00 horas, injetá-lo neste horário potencializa os efeitos da
substância). Acredito que o procedimento se deva mais à importância que a estética alcança
na atualidade, fazendo com que o corpo perfeito vire uma nova ideologia, ou como preferem
alguns, um culto.
A ciência e a técnica serão centrais no processo de constituição ritual da pessoa entre os
bodybuilders. Sabino (s/d) assinala que nas academias ocorre o uso de anabolizantes como
recurso para se chegar mais rapidamente à forma física desejada, mostrando como a técnica e
a ciência se infiltram no cotidiano dos bodybuilders. Os anabolizantes vão servir ao mesmo
tempo como potencializadores da performance muscular e como um rito de passagem: “Entre
os marombeiros um rito de passagem, ou como prefere Bourdieu, um rito de instituição,
no qual o uso da droga surge como um item crucial na transição do indivíduo de um status
para outro no campo da musculação (...) Este rito delimita a distribuição da autoridade no
interior do campo” (Sabino, s/d: 16).
6.1.3 - CIRURGIAS PLÁSTICAS
A maioria das mulheres tem uma relação dúbia com seu corpo: se, por um lado, estão
satisfeitas com as melhorias e as atribuem à ginástica e ao esforço pessoal, por outro, não
poupam recursos financeiros para alterar o que acham que deve ser corrigido. Os dados
também reforçam o quanto acnica tem impregnado os mecanismos de construção do corpo,
bem como atesta o crescimento do setor de cirurgias plásticas. Segundo uma pesquisa
recente
1
, realizada entre modelos, 100% das mesmas estavam insatisfeitas com seus corpos e
realizariam correções cirúrgicas, 96% fariam lipoaspiração e implante de silicone nos seios.
72
Se este descontentamento existe entre mulheres que são consideradas mais bonitas do que a
média da população, imagine entre nós, pobres mortais. Del Priori (2000) afirma que
“Anônimas, as que não são belas, simplesmente recusam seus corpos, tanto mais quanto
vivemos hoje a supremacia da aparência. A fotografia, o filme, a televisão e os espelhos das
academias dão à mulher moderna o conhecimento objetivo de sua própria imagem. Mas,
também, a forma subjetiva que ela deve ter aos olhos de seus semelhantes. Numa sociedade
72
Revista Galileu, n. 155, junho 2004.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 211
de consumo, a estética aparece como o motor do bom desenvolvimento da existência (...) A
feiúra é vivida como um drama. Daí a multiplicação de fábricas de ‘beleza’ cujo pior fruto é
a clínica de cirurgia plástica milagrosa” (Del Priori, 2000: 80).
Vejamos alguns dados relativos ao número de academias e habitantes em alguns países
e dados sobre o crescimento das cirurgias plásticas:
Relação do número de academias de ginástica e habitantes nos maiores mercados de
fitness (dados de 2003):
Tabela 4 - Academias x Número de habitantes
País População em
milhões
Número de
academias
E.U.A 288 18.200
Alemanha 82 6.000
Brasil 177 6.000
Reino Unido 58 3.700
França 60 3.000
Itália 57 2.000
Dados de 2003, Fonte: Jornal Folha de S. Paulo, 11 de fevereiro de 2004
.
Tabela 5 - Cirurgias plásticas por
habitantes
País Cirurgias por 100 mil
habitantes
Brasil 207 pessoas
E.U.A 185 pessoas
Europa 40 pessoas
Fonte: Sociedade brasileira de Cirurgia plástica
.
Na Revista “Veja”, de 06 de março de 2002, saiu uma reportagem de oito páginas,
intitulada “corpo à venda”, sobre os exageros da plástica. Ela confirma o dado de 350.000 mil
brasileiros operados em 2001, ou seja, em cada grupo de 100.000 habitantes, 207 foram
operados, mais do que o número de plásticas realizadas nos E.U.A, que no mesmo período
registraram 185 cirurgias por 100.000 habitantes. Segundo a pesquisa, o mercado da plástica
está em expansão: em sete anos, desde a edição do plano Real, o número de cirurgias plásticas
realizadas no Brasil cresceu 250%:
Relação entre o número de cirurgias plásticas e o ano:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 212
Segundo a pesquisa, em duas décadas, a idade dia dos operados brasileiros
diminuiu 20 anos:
Tabela 6 – Idade média dos
operados
Anos 80 55 anos
Anos 90 40 anos
2000 35 anos
Um dos problemas citados pela reportagem é que as cirurgias plásticas são anunciadas
como recursos simples, que quase não oferecem riscos, além de acessíveis a todos por meio
do parcelamento do valor. Mas não diz que, na verdade, como em qualquer cirurgia, os riscos
são, em vez de mínimos, muito elevados, podendo deixar seqüelas irreversíveis ou mesmo
levar à morte. A reportagem cita o caso de uma publicitária de 33 anos, 1,70 metro de altura,
58 quilos, 62 cm de cintura e 103 cm de quadris, mas que, insatisfeita com o seu corpo,
procurou a clínica de cirurgia plástica Santé, considerada uma das mais famosas e
freqüentadas por atrizes, para fazer uma lipoaspiração. A dona da clínica a incentivou a fazer
também uma plástica no abdômen, para eliminar a flacidez e as estrias causadas por duas
gestações. A publicitária aceitou: “Naquele momento, toparia qualquer coisa para sair de lá
com as formas perfeitas”. Mas, depois da operação, vieram os problemas, a pele ficou tão
esticada que ela não podia estender a barriga e também ficou com feridas em carne-viva. De
lá pra cá, teve que fazer mais três cirurgias para corrigir a primeira e tentar restaurar o
umbigo, que foi totalmente retirado por causa do estiramento da pele.
Gráfico 35 - Evolução das cirurgias plásticas ao ano
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 213
Outros exemplos citados pela mesma revista são elucidativos dos riscos e dos excessos
da cirurgia plástica, como o de duas mulheres que se submeteram a ela e tiveram seqüelas
ruins. A primeira, fez lipoaspiração na barriga
73
e a segunda, implantou silicone nos seios.
São numerosos os casos de
cirurgias plásticas mal sucedidas e
as denúncias de erro médico;
segundo o conselho Federal de
Medicina, aumentaram 35% de
2000 para 2001. Basta lembrar do
médico Denísio Marcelo Caron,
que embora não fosse cirurgião
plástico, prometia a perfeição por
R$ 7.100,00 reais, embora tenha
sido acusado da morte de cinco
mulheres em Goiânia e Brasília e
ainda responde por mais trinta e
cinco processos de imperícia.
Segundo pesquisas da Revista “Corpo a Corpo”, em enquête pública, foram colhidos os
seguintes dados:
“você pensou em fazer cirurgia plástica? 94% Sim; 6% Não. (setembro de
2003).
“você já tomou remédio para emagrecer? ” 61% Sim; 39% Não. (agosto de 2003).
Dentre as minhas entrevistadas, a porcentagem de mulheres que fizeram algum tipo
de cirurgia estética foi de 43%, sendo que as mais citadas foram redução de nariz,
lipoaspiração e prótese de silicone nos seios:
73
Revista Tudo, 04 de fevereiro de 2001.
Figura 14 - Cristina com 5 Kg a mais e a direita, na pior fase
das cicatrizes da lipo
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 214
Entretanto, quando questionadas se pretendem se submeter a cirurgias no futuro, a
porcentagem de mulheres adeptas da plástica sobe vertiginosamente, passando para 72%.
Somente 18% afirmaram categoricamente que não fariam plástica, ou por temer a cirurgia, ou
por condenarem o excesso de cuidados com a aparência que ela representa.
Gráfico 36 - Já fez cirurgia estética
Gráfico 37 - Pretende se submeter a cirurgia estética no futuro?
Você se submeteu a cirurgia
estética?
57%
43%
sim
não
Você pretende se submeter a cirurgia
plástica no futuro?
8%
18%
72%
1%
1%
sim
não
talvez
não sabe
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 215
Quando indagadas a respeito, as mulheres disseram:
“Minha mãe e irmã eram intelectuais e ao mesmo tempo belas, eu também valorizava
isso demais, as primeiras mesadas que eu recebia eu comprava em produto de beleza,
gastava uma fábula, assim que foi possível fazer algum tipo de plástica eu fiz, lipo,
pálpebra... Eu queria que na hora tirasse a roupa eu estivesse perfeita. Eu faria de
novo! [enfática]. Eu pus silicone, eu tudo, entendeu, agora eu quero fazer um
grande lifting, talvez eu faça uma lipo...”” (Mulher 13, 59 anos)
“Eu mudei o meu nariz, eu dei uma afinada porque eu tinha desvio de septo. Eu pus
prótese de silicone no peito. Se precisar, faço outras. Depois que eu tiver um filho, se
precisar, acho que nada me impede, pra gente melhorar, hoje existe tanta técnica, o
importante é a gente estar bem com a auto-estima, isto é fundamental.” (Mulher 43, 39
anos).
“Eu fiz plástica, lipoaspiração, você sabe, a celulite melhorou. Eu mudaria ainda mais.
Eu tenho que estar bem comigo mesma, se eu achar que devo fazer... Você sabe que eu fiz
outras plásticas, eu olhei, pensei, isto aqui não legal, então eu fiz e faria de novo”
(Mulher 65, 61 anos).
“Sim, com certeza, já fiz e vou fazer de novo [enfática]. Eu fiz seio, mas não pus silicone
não, eu só fiz sustentação e fiz uma lipo dos lados e abaixo da cintura, aquela gordurinha
localizada que eu não conseguia tirar na ginástica, então eu fiz sim! Se precisar, eu o
tenho medo não, o problema é o dinheiro. Não tenho medo de nada. A única
preocupação é você ir a um bom cirurgião” (Mulher 69, 45 anos)
“Com certeza absoluta faria plástica. Quero levantar os seios, fazer lipo na cintura, tirar
os culotes e guardei um dinheiro para fazer plástica na barriga se eu tiver filho.
com exercícios não se consegue um corpo perfeito” (Mulher 68, 34 anos).
“Coloquei prótese nos seios. Só. Me incomodava bastante. Mudou minha auto-estima,
porque eu não tinha [seio] Eu amamentei as minhas filhas até quase um ano, eu
tinha pouco, ai amamentando eu fiquei com nada, e aquilo me incomodava bastante, eu
não podia usar top sem enchimento, então pra mim era muito desagradável, na praia, eu
usava mas não gostava (...) Eu super satisfeita, eu sou outra pessoa” (Mulher 1, 30
anos)
Ser outra pessoa. Esta fala é emblemática. Primeiro porque, de fato, com a plástica a
identidade se modifica, já que ela está calcada no corpo. Segundo, porque atrelado á plástica,
temos um comportamento curioso de desinibição por parte das mulheres. Como elas estão
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 216
mais seguras da beleza de seu corpo, sentem-se mais à vontade para expô-lo. É uma cena
comum no vestiário feminino as mulheres mostrarem os seios operados umas para as outras.
Durante a pesquisa, presenciei duas cenas de desinibição e total felicidade com o novo corpo.
A entrevistada citada acima, Mulher 1, falou de sua plástica de seios, do quanto estava
contente e, no final, depois de encerrada a entrevista, eu comentei sobre a prótese,
perguntando se ela estava bem e se a cicatriz não a incomodava: ela chegou a puxar o top pra
me mostrar os seios, mas estávamos em pleno restaurante, foi por um triz, rimos muito.
Karen, dona de uma clínica de estética, que pôs implante de silicone, além de me mostrar os
peitos me fez tocá-los pra mostrar como eram rígidos. Del Priori (2000) comenta que quando
fotografou mulheres que tinham feito plásticas recentes estas estavam tão eufóricas com os
resultados a ponto de querer compartilhá-los com uma desconhecida.
Nenhuma das mulheres afirmou ter problemas quanto às cicatrizes, fato que também
chocou Del Priori (2000) em suas pesquisas. Minhas entrevistadas comprovam que a cicatriz
não é importante, diante da satisfação com as novas formas (vide, por exemplo, a fala de
Mulher 69). As mulheres tendem a minimizar as cicatrizes diante do apelo de formas mais
definidas, seios mais firmes ou diminuição da adiposidade. Na pesquisa de campo comprovei
que a existência de gordura localizada e de seios flácidos e/ou pequenos incomoda muito mais
do que estrias e cicatrizes. Se fosse possível, as mulheres ficariam também sem as segundas,
mas não sendo, optam pela remodelagem do corpo, ainda que tenham que adquirir cicatrizes.
Vejamos mais algumas opiniões sobre as cirurgia plásticas:
“Eu apoio, eu acho que tem que tem mais é que fazer, pra ficar mais feliz, pra ficar mais
à vontade, eu acho que se é pra ser mais feliz, tem que fazer” (Mulher 3, 29 anos)
“Então eu acho que é assim, é ela se sentir bem, eu acho que tudo tem limite. Se você for
fazendo, fazendo sem limites para atingir um auge, ou ficar parecido com alguém ou ser
mais que alguém, já é descontrole, que é fora da realidade, tem que ter o no chão.
A pessoa tem que ver o limite dela, até onde ela vai, e se sentir bem, ponto” (Mulher 26,
18 anos).
“Maravilhosa. pra ajudar, pra resolver, tem a corretiva, tem a estética, eu
acho que a gente não pode, como tudo, exagerar né, você tem que ver no que aquilo pode
te ajudar e também no momento de parar, porque tem mulheres totalmente desfiguradas,
que querem ter a pele mais esticada do que uma garota de 20 anos. Eu acho assim,
vamos corrigir, temos uma bolsinha [nos olhos] vamos. Tem uma gordurinha aqui,
vamos lipar, vamos, mas eu não vou querer ter o corpo, ou o rosto, eu acho mais
complicado o rosto com menos marcas do que deveria uma mulher madura. Hoje eu não
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 217
faria nunca no rosto, não sei se daqui dez anos eu vou querer fazer, vamos ver né,
quanto tempo eu vou resistir.” (Mulher 45, 43 anos).
“Não que eu seja contra. Eu sou a favor que você se sinta bem com seu corpo. Eu acho
válido, agora tudo tem seu limite, têm umas pessoas que perdem a noção do negócio e
acaba se tornando um vício. Mas eu considero a cirurgia plástica um complemento para
esta nova era da modernidade, as mulheres que trabalham, que tem dinheiro... e como eu
falei para você, por exemplo uma mulher que amamenta, que teve 3 filhos, que
amamentou, têm que fazer, isto mexe com a auto estima da mulher.” (Mulher 58, 27
anos).
Como é possível perceber as mulheres apóiam a plástica se esta for trazer satisfação
pessoal, se for contribuir para elevar a auto-estima.
Outro dado que apareceu entre as entrevistadas é que a cirurgia plástica estética surge
como um recurso aceitável e bem visto quando a mulher se valeu de todas as outras
possibilidades, fez exercícios, fez dietas, ou seja, se empenhou o bastante, mas o
conseguiu se livrar de uma ou outra gordura localizada, especialmente aquelas situadas na
cintura.
Neste contexto, a cirurgia plástica estética é um plus, uma espécie de prêmio que a
mulher se dá na conquista do corpo perfeito:
“Eu sempre fiz ginástica, eu fiz esportes, desde criança, que eu sempre tive uma
barriga, eu fui consultar um cirurgião plástico e ele falou ´olha, este tipo de gordura
localizada é uma herança genética, sua mãe tem, e isso não vai sair com ginástica
nunca´, e como eu sempre fiz exercício físico, a vida inteira, mas sempre tive aquela
dobra na barriga quando você senta (...). Eu fiz uma lipoaspiração, fiz no abdômen,
fiquei super feliz” (Mulher 16, 36 anos)
“Eu sempre malhei a sério, cuidei da alimentação e consegui melhorar muito o meu
corpo, mas os seios o tinham jeito, por mais que eu me empenhasse... Achei que eu
merecia me dar este presente, eu fiz e ainda faço a minha parte.” (Mulher 68, 34 anos)
“Eu sempre fui atleta, eu sempre tive aquele padrão certinho de musculatura, mulher
malhada, mas eu nunca tive muito seio, hoje isso me incomoda, depois de ter tido filho,
amamentei bastante... Então é a única coisa que às vezes, muda a minha auto-estima, e
eu gostaria ade fazer um implante, até pra melhorar esta minha auto-estima, eu acho
que eu mereço. Depois de um silicone eu vou ficar bem melhor!” (Mulher 59, 39 anos)
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 218
“Eu tenho uma gordura localizada na barriga que todos os médicos disseram que eu
não vou perder com a ginástica, é o meu biótipo (...) se eu pudesse fazer uma plástica eu
faria.” (Mulher 20, 33 anos)
Outra entrevistada reforça a idéia, mas afirmando não ser merecedora da plástica:
“Eu nunca fiz, porque que eu nunca fiz o certo, porque primeiro eu tenho que fazer a
minha parte, sinceramente, eu nunca falei, “ah, eu vou melhorar minha dieta, eu vou
treinar regularmente”, eu nunca tive disciplina...” (Mulher 34, 33 anos).
Neste caso, ela não se julga digna da plástica porque está embebida da idéia de que
precisa primeiro se esforçar com ginástica e alimentação, para depois fazer jus a este tipo de
intervenção.
uma entrevistada justifica a cirurgia plástica como um passo anterior e/ou
independente da ginástica:
“Eu fiz abdômen e busto. Maravilha, depois que você fez isto, a auto-estima é muito
mais rápida do que na ginástica. Os resultados são mais evidentes e se você souber
manter, a ginástica vai ajudar, mas o que resolve mesmo é a plástica, no meu caso foi,
porque eu tinha seio caído, barriga caída, a minha pele é muito flácida, se eu fizesse
ginástica ia levar 300 anos pra melhorar alguma coisa” (Mulher 55, 44 anos).
Outros dois relatos merecem destaque porque vêm de mulheres que farão fortes críticas
ao culto ao corpo, mas que se sentem compelidas a cair em tentação e aderir às práticas que de
início condenam:
“Faria , eu não tenho pressa nos seios, acho que não vou fazer , mas tenho quase
50 anos, não sei se quando eu tiver 60, se eu estiver muito abatida, acho que o
bombardeio da mídia interfere, você olha no espelho e se compara, a européia tem uma
facilidade maior pra envelhecer saudável, do que as brasileiras, que querem estar com o
rosto muito esticado, né, acaba pegando né?” (Mulher 23, 48 anos)
“Se eu pudesse eu faria na barriga, que tá mole. Eu nunca achei que eu iria fazer. Mas se
eu pudesse hoje...” (Mulher 21, 44 anos)
A maioria das mulheres apóia a plástica quando a mulher já teve vários filhos e
“necessita” levantar os seios caídos com a amamentação. Ou se a pessoa tiver seios
desproporcionais ao corpo, ou uma barriga excessiva. Aí a plástica é justificável.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 219
Mas a plástica é condenada se for para mudar detalhes insignificantes claro que a
definição do que é ou não insignificante varia de mulher para mulher) ou, por exemplo, para
adequar o tamanho dos seios às exigências da moda. É condenada também quando se
transforma em um vício, quando a mulher faz uma em seguida à outra e nunca se contenta,
neste caso as entrevistadas tendem a afirmar que a mulher em questão está com problemas
psicológicos”. Também se comentou que a decisão de operar deve ser sempre da própria
mulher, que ela não deve se submeter à plástica nem para agradar o marido e nem deixar de
fazê-la porque ele não quer. Neste ponto, a independência financeira feminina conta
muito: se a mulher trabalha ou mantém alguma fonte de renda, pode investir em si mesma
através da plástica sem ter que recorrer ao aval financeiro do marido. Caso contrário, ela tem
que convencê-lo a concordar e pagar a cirurgia. Algumas mulheres observaram também que
por terem suas cirurgias pagas pelos maridos, isto aumentou a cobrança deles para que elas
mantenham o corpo em forma. Uma das entrevistadas afirmou que o marido lhe deu um
ultimato dizendo-lhe que agora ela tem que se esforçar mais na ginástica e controlar a
alimentação, porque ele não lhe pagará outra plástica.
Em todos os relatos citados, há alguns denominadores comuns. Primeiro, o motivo
central alegado pelas mulheres para fazer a plástica é a auto-estima. Todas destacaram a
importância de se sentirem bem consigo mesmas, daí a necessidade de corrigir aquilo que as
incomoda.
Em segundo lugar, que, como vimos no item 4.2.3 -, a auto-estima está diretamente
ligada ao corpo, a perfeição sica aparece como um pré-requisito para o bem-estar e justifica
as intervenções cirúrgicas. Para amar-se é necessário ter um corpo perfeito.
Em terceiro lugar, dentre as cirurgias realizadas e/ou almejadas, as campeãs absolutas
são lipoaspiração (ou lipoescultura) e implante de silicone nos seios. Isto se explica porque,
como vimos, o modelo estético dominante em nossa época é caracterizado pela ausência de
gorduras, seios grandes e firmes e tônus muscular. Como o tônus muscular não pode ser
conseguido com cirurgias plásticas, a ênfase recai sobre os dois primeiros itens. Outra
cirurgia que vem sendo cada vez mais realizada no Brasil é a prótese de silicone nos glúteos,
que visa arredondá-los e levantá-los, mas que foi citada por uma entrevistada - “Glúteo,
mais glúteo. Peito nem tanto. Eu não gosto, a forma dele, é muito esparramado, não é um glúteo... É
um glúteo disforme” (Mulher 10, 26 anos) - embora existam suspeitas de que uma segunda
entrevistada a tenha realizado, sem contudo assumir.
Com relação ao uso de silicone nos seios, 84% aprovam seu uso:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 220
Segundo a historiadora Elizabeth Haiken (1997), a plástica se tornou aceita
publicamente nos EUA no século XX. De sua origem como cirurgia reconstrutora em
soldados feridos na guerra, ela acabou encontrando sua maior fonte de pacientes em
mulheres que queriam melhorar a aparência. Isto se deve em função de dois motivos
principais:
1) a crença de um vínculo fundamental entre auto-estima e aparência física;
2) a crença de que a aparência tem valor de mercado. Isto aliado as idéias (pós 1950) já
vistas de que as mulheres são responsáveis por sua beleza e que esta está ao alcance de todas,
reabilitou de vez a cirurgia plástica estética como um recurso aceitável.
E curioso: não só a habilita enquanto procedimento, mas também como uma prática que
não precisa ser escondida. As entrevistadas assumem suas plásticas, falam sobre elas, avisam
as colegas e os professores sobre o tempo em que ficarão afastadas e não dissimulam. Não se
vêem tentativas de despistar a ausência da academia alegando férias ou outros compromissos;
as mulheres falam abertamente: “semana que vem vou fazer lipo” ou “vou colocar peito”.
Isto com muita naturalidade. E se algum interlocutor insinuar, por exemplo, que os seios “não
são delas, o de mentira, o artificiais”, elas retrucam das mais variadas formas “são meus
sim, eu paguei por eles”, “são meus, mas melhorados”, “a cor do seu cabelo também não é
natural”, e por vai. Em algumas “tribos” da academia, ter passado por cirurgia plástica é
mais natural do que não ter se submetido a nenhuma; o que choca é mais a ausência do
silicone do que sua presença. Embora a discussão sobre a relação natural X artificial seja
muito complexa e fuja aos objetivos deste trabalho, é pertinente a análise de Sant’Anna. Esta
autora afirma que ainda nos anos de 1920 vigorava a idéia de que a mulher o precisava
Gráfico 38 - Apoio ao silicone
Você apóia o uso de silicone?
16%
84%
sim
não
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 221
necessariamente ser bela, mas fingir sê-lo. Nos séculos anteriores, esta dissimulação era
ainda mais possível com as roupas longas, com os espartilhos e anquinhas o marido
saberia o quanto esta mulher era ou não “verdadeira”. No século XX, com a progressiva
diminuição das roupas e o maior desvelamento do corpo, dissimular torna-se impossível e o
próprio corpo assume o lugar das roupas: ele deve ser firme, torneado, magro. Qualquer
detalhe anatômico é perceptível e se faz necessário corrigi-lo por meio da ginástica e das
cirurgias plásticas.
Edmonds (2002) assinala que a plástica é tão importante na vida do brasileiro que em
1999 a escola de samba carioca Caprichosos de Pilares levou para a avenida o samba-enredo
“No universo da beleza, mestre Pitangy”. O autor comenta que o samba, além de fazer supor
que a cirurgia plástica nas mãos de Pitangy seria uma prática democrática, oferecendo beleza
a ricos e pobres, também colocava a plástica como um misto de procedimento médico de alta
tecnologia, serviço de luxo ao consumidor e transformação psicológica, esta última,
enfatizada pelo próprio cirurgião: “o objetivo da cirurgia plástica é a harmonização do corpo
com o espírito (...) visando a estabelecer um equilíbrio interno que permita ao paciente
reencontrar-se, reestruturar-se, para que se sinta em harmonia com a sua própria imagem e
com o universo que o cerca” (Pitangy, Revista Brasileira de Cirurgia, março/abril, 1985, vol.
75, n 2, apud Edmonds, 2002: 215).
É sempre interessante reforçar que esta relação entre a cirurgia plástica e a psique é uma
estratégia eficaz para que o paciente o seja rotulado de vaidoso à semelhança da
associação que mencionei entre “malhação e saúde” X “malhação e estética” .
Um último ponto importante é que em sua análise sobre as cirurgias plásticas no Rio de
Janeiro, Edmond cita a observação de Sander Gilman (1999), registrada no livro Making the
Body Beautiful, em que este autor defende uma interpretação da cirurgia plástica como meio
de “passing” ou “impostura”, isto é, um meio de pessoas estigmatizadas se fazerem passar
por normais (ser aceito como o que não é) através das plásticas. Para ele, todas as plásticas
teriam este caráter de impostura. É interessante que Edmonds critica o conceito de impostura
e o faz por dois motivos: 1) porque ele evoca o conceito de normalidade, enquanto que para
muitas das mulheres que fazem plástica o desejo é de perfeição; 2) porque ele insinua que a
paciente está tentando, passivamente, amoldar-se a um grupo ou juntar-se a ele, enquanto que
muitas mulheres afirmam que fizeram a plástica por si mesmas, não se submetendo às
pressões sociais.
Concordo plenamente com o autor e comprovei com minhas pesquisas que de fato as
mulheres, quando se submetem à plástica querem se sobressair por suas formas, serem mais
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 222
admiradas por elas, e não apenas estar “na média”. Elas ambicionam um plus, que a
plástica pode proporcionar. É justamente este “algo a mais” que a torna vital na construção da
auto-estima e da identidade feminina. Já com relação ao segundo ponto assinalado por
Edmonds fazer plástica para si mesma e não para o outro -, coloco ressalvas, pois acredito
que a questão é mais complicada. A resposta dada à plástica é semelhante à resposta dada á
pergunta para quem malha” ? A primeira resposta é “para si mesma”, ou seja, totalmente
relacionada com auto-estima. Mas o que eu sou sempre remete ao modo como o outro me vê;
então, é sempre para os outros também. Trabalharemos melhor esta questão mais à frente; por
ora, quero apenas apontá-la.
As falas das mulheres entrevistadas também apontam que as cirurgias plásticas bem
como outros aspectos do culto ao corpo podem ser perigosas por estarem tão banalizadas
que acabam gerando o efeito contrário: em vez da mulher ficar mais bonita e se destacar das
demais, ela fica feia e padronizada. Ou, como colocou Mulher 56:
“Tem gente fazendo plástica como quem arranca um dente, não é assim, as pessoas não
estão procurando um profissional, vão atrás de qualquer um, é lógico que nem todo
mundo tem poder aquisitivo pra fazer tudo isso e assim vai. Coisa com o rosto também,
tem uma série de senhoras da minha idade, eu vou fazer 58 este ano, as sessentonas estão
todas com a cara igual, uma cara de barbies, o botox, aquela boca, são todas muito
semelhantes, loironas, eu olho e digo ‘Nossa, você tá ridícula’.” (Mulher 56, 57 anos)
É a beleza obtida a qualquer custo, a beleza que, em vez de libertar a capacidade
expressiva, escraviza, como um feitiço que se vira contra o feiticeiro. Tal crítica nos leva ao
cerne deste trabalho. Acredito que o corpo seja realmente central na construção do eu em
nossa cultura. Acredito também que, ao se voltar para os cuidados consigo mesma a mulher
seja capaz de se valorizar, elevar sua auto-estima. Ao adquirir um corpo que lhe prazer e
orgulho, ela faz deste um reduto que deve ser valorizado, cuidado. E isto pode ser positivo, já
que o corpo é nossa primeira e última morada, pelo corpo experimentamos quem somos e nos
relacionamos com o mundo. Mas quando o corpo é cultuado ao extremo, parte da positividade
se dissolve e o mesmo corpo que pode nos trazer conquistas e alegrias, também passa a ser
fator de frustração diante dos rígidos padrões estéticos e, ademais, lugar de homogeneização e
padronização das diferenças. Em vez de nos libertar, nos oprime. Em vez de nos integrar,
isola, a nós mesmos e aos outros, os que não se encaixam nestes padrões. Em vez de levar à
saúde e à identidade, pode levar à doenças, em especial aos distúrbios alimentares, que
fragmentam o eu e até matam.
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Imagem apolínea, ethos ascético, disciplina, conduta racional, individualismo. Parece
que na medida em que as discussões avançam, surgem mais perguntas do que respostas.
Elementos contraditórios parecem se mesclar, utopias se sustentam mais do que se
ultrapassam.
A partir de agora, tentaremos nos deter nas contradições do espetáculo de culto ao
corpo, que parece indissociável das próprias contradições da modernidade, palco onde se
desenrola.
6.2 - O ESPETÁCULO DO CULTO AO CORPO: CONTRADIÇÕES E DILEMAS.
6.2.1 - HEDONISMO, ASCESE E DISCIPLINAS.
Comecemos pelo debate tenso entre hedonismo X ascese. Um dos elementos centrais
que constituem ao mesmo tempo o universo da modernidade e o fenômeno do culto ao corpo
é a estetização da vida cotidiana, marcada pela necessidade de fazer da vida e de si mesmo
uma obra de arte, o que introduz mais um elemento na discussão: o hedonismo, central na
cultura narcísica que se desenvolve com a modernidade. O culto ao corpo, o prazer em
observar-se no espelho, a gestão rigorosa das formas, etc são elementos que, para alguns
teóricos, permitem falar de uma cultura narcísica. Segundo Courtine (1995), se esta posição
teórica puder ser admitida, seus melhores exemplos seriam o espetáculo e as práticas dos
bodybuilders, inteiramente absorvidas pela aparência do corpo e destinadas à confecção da
auto-imagem. Mas, em se tratando de algo tão polissêmico como o corpo, reduzir sua análise
à afirmação de uma cultura narcísica seria empobrecer a análise e ainda mais, uma vez que o
ambiente dos bodybuilders é altamente marcado pela disciplina e coerção, pode fornecer um
contra exemplo do que foi afirmado anteriormente. De fato, talvez, disciplina e hedonismo
convivam de alguma maneira no processo de culto ao corpo. Courtine compartilha desta
posição, afirmando que a geração pós 1980 tem um ethos que pode ser chamado de
“puritanismo ostentatório”, combinando numa prática, disciplina rigorosa com desejo de
exibição, autoprivação ascética com afirmação positiva do eu. Malhar o corpo, judiá-lo, levá-
lo ao limite, para depois mostrá-lo e adorá-lo. Trata-se de um comportamento hedonista
também porque a idéia de prazer será central na atual cultura do corpo: prazer de estar
consigo mesma; prazer em mostrar-se e prazer sexual, porque envolve a sedução do outro
pelo físico. Longe de corpos cobertos, as imagens na mídia tendem a correlacionar beleza,
exposição do corpo e sedução. Ao contrário da década de 1920, os corpos não estão mais
escondidos nem pelas roupas nem pelos preceitos cristãos, eles estão à mostra, desvelados.
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Courtine também defende que a idéia de metamorfose é essencial ao bodybuilder: É
possível um renascimento individual, que passa por uma conversão corporal. Essa idéia,
progressivamente, inscreveu-se no puritanismo americano sobre o corpo a partir do século
XIX, quando cuidar do corpo foi se associando à salvação da alma. Assim, durante o século
XIX, o interesse pelas práticas de gerenciamento corporal vai mudar o próprio modelo de
homem que se tinha até então: o homem magro, lido e esguio foi sendo substituído pelo
modelo musculoso e viril, referenciais que, embora modificados, chegaram também às
mulheres, que começaram a desejar um corpo mais trabalhado. A partir de 1860, inúmeras
academias de ginástica foram construídas nas cidades e, para os americanos, o corpo era
uma “nova fronteira”. Paralelamente, a medicina fez do movimento corporal um signo da
saúde, um modo fundamental de expressão da vida. Pouco a pouco, os aparelhos de ginástica
escaparam das academias e entraram nos lares, passando a ser um elemento da decoração
doméstica, uma peça colocada à vista. Impossível não lembrar de Benjamim, quando ele diz:
“Para o homem privado, o interior da residência representa o universo (...) O seu saloon é
um camarote no teatro do mundo” (Benjamin, 1985: 37). A casa é, ao mesmo tempo, o
refúgio e o espaço de expressão da personalidade, para si e para os outros. Ter os
equipamentos em casa atesta claramente a vinculação aos novos ideais estéticos aos quais se
deve aderir para conquistar status e reconhecimento social. É também a constatação de que
cuidar do corpo preenche ainda mais o cotidiano: “Lutar contra o tempo morto, a vacuidade,
a desocupação: esses prolongamentos da ética puritana da ‘tarefa’ marcaram profundamente
o desenvolvimento da indústria esportiva. O esporte torna-se um modo de vida” (Courtine,
1995: 94-95).
O ponto complexo é que construir um corpo não é apenas um exercício de disciplina,
mas provoca também o prazer e a exposição daquilo que foi construído, colocando este corpo
no cenário dos espetáculos, da cultura narcísica e do consumo de massa que os alimenta,
mesclando, desta maneira, ingredientes aparentemente opostos como ascese, hedonismo e
disciplina. Courtine mesmo diz que a cultura contemporânea do corpo é paradoxal, complexa
e recusa explicações unívocas, pois mescla uma forma de compromisso estabelecido com a
ética puritana, com o espetáculo e hedonismo de uma sociedade de consumo de massa.
Acredito também que temos, por um lado, uma postura calcada na lógica do
individualismo, da cultura ascética como construtora da identidade de “malhadora” e, por
outro lado, mecanismos de sujeição foucaultianos que aprisionam, uniformizam e restringem
os sentidos.
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Para Sabino (2002), hedonismo, ascetismo e disciplina caminham, no atual processo de
culto ao corpo, de mãos dadas. Ele afirma que enquanto a proposta racionalista dos religiosos
dos séculos XVI e XVII era disciplinar o corpo para libertá-lo das paixões, promovendo uma
estética da alma, a proposta racionalizante do saber leigo visa administrar as paixões para
controlá-las. Para ele, a estética da alma através do corpo reduziu-se apenas ao corpo,
ressaltando a disciplina o como elemento oposto ao hedonismo, mas como auxiliar deste:
“Tal aspecto pode ser percebido nos supermercados de imagens em expansão, em que os
super-heróis-produto são atores, cantores, modelos e atrizes, pessoas belas e bem sucedidas
que professam a ética e o credo da diversão e de um suposto ‘savoir vivre’, conquistado,
porém, com esforço ascético” (Sabino, 2002: 150).
Falar de um processo disciplinador inscrito no corpo nos remete diretamente a Michel
Foucault, principalmente às obras Vigiar e Punir (1978), A História da Sexualidade 1, 2 e 3
(1976-1984) e A Microfísica do Poder (1979).
No primeiro volume da História da Sexualidade, Foucault observa como a sexualidade,
comumente considerada como uma questão natural de mera divisão entre sexos, deveria na
verdade ser entendida como construída na cultura de acordo com os objetivos políticos da
classe dominante. O conceito de “tecnologia sexual” , definido como “um conjunto de
técnicas para maximizar a vida”, servia para explicitar as técnicas desenvolvidas pela
burguesia a partir do final do século XVIII visando assegurar sua hegemonia e criar
mecanismos de sujeição. Tais tecnologias se debruçavam, em especial, sobre quatro objetos
do conhecimento: a sexualização das crianças e do corpo feminino, o controle da procriação e
a psiquiatrização do comportamento sexual anômolo como perversão. Podemos aqui retomar
o conceito de gênero, analisado por Teresa Lauretis, como um mecanismo de poder e de
relações estabelecidas entre os sexos: “Pode-se começar a pensar no gênero a partir de uma
visão foucaultiana, que vê a sexualidade como uma ‘tecnologia sexual’, desta forma; propor-
se-ia que também o gênero, como representação e como auto-representação, é produto de
diferentes tecnologias sociais, como o cinema, por ex., e de discursos, epistemologias e
práticas críticas institucionalizadas, bem como de práticas da vida cotidiana”.(Lauretis,
1994: 208).
No universo pesquisado esta relação entre gênero e sexualização das mulheres fica
evidente, como podemos perceber nestas duas falas:
“Eu acho que a mulher é muito mais cobrada do que o homem com relação ao corpo. E
infelizmente a gente não consegue ser feliz se a gente tem um corpo muito em desacordo
com o que a gente acha bonito. A cobrança do corpo e a facilidade das academias,
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antigamente pra você fazer esporte, você tinha que procurar, era longe, não tinha a
preocupação com o culto do corpo, hoje não, você tem academia em qualquer bairro,
três, quatro, à disposição pra você fazer...” (Mulher 45, 43 anos)
“É muito importante, principalmente para as mulheres, para o homem não, porque o
homem, na nossa sociedade, ele tem que ser bem sucedido, charmoso, já basta. A mulher
não, se ela for bonita, é o que conta mais” (Mulher 47, 40 anos)
Outro ponto central da obra de Foucault para nossa discussão está no último volume da
História da Sexualidade O cuidado de si, quando o autor mostra que ao analisar os textos
dos primeiros séculos produzidos na Grécia, mais do que interdições sobre os atos sexuais, o
que aparece é “a insistência que convém ter para consigo mesmo; é a moralidade, a
amplitude, a permanência, a exatidão da violência que é solicitada; é a inquietação com
todos os distúrbios do corpo e da alma que é preciso evitar por meio de um regime austero
(...)” (Foucault, 1985: 46). Seria o que ele chamou de “cultura de si” e que, segundo seus
dados, estaria fortemente presente na cultura grega. O cuidado de si envolvia, por um lado,
um rigoroso treinamento e constituição corporal; e por outro, o cuidado com a alma, realizado
através da filosofia. Em Epicteto encontramos, segundo Foucault, a mais alta elaboração
filosófica deste tema: o ser humano é definido nos diálogos como o ser a quem foi confiado o
cuidado de si. “Coroando com razão tudo o quenos foi dado por natureza, Zeus nos deu a
possibilidade e o dever de nos ocuparmos conosco. É na medida em que é livre e racional que
o homem é na natureza o ser a quem foi encarregado do cuidado de si mesmo” (Cf. M.
spanneut, “Epiktet”, in Reallexikon für Antike und christentum).
O cuidado de si, para Epicteto, é um privilégio-dever, um dom-obrigação que nos
assegura a liberdade, mas ao mesmo tempo obriga-nos a tomar-nos nós próprios como objeto
de toda nossa aplicação. É enquanto mestre dos cuidados de si que Sócrates apresenta-se aos
seus juízes: Deus mandatou-o para lembrar aos homens que eles devem cuidar, não de suas
riquezas, nem de suas honras, mas deles próprios e de suas almas. Assim, para os Epicuristas,
a filosofia deveria ser considerada como o exercício permanente dos cuidados consigo. E
cuidar de si significava manter o corpo e a mente em constante exercício, aspecto ressaltado
também por Sennet (1997), para quem, na Grécia Antiga, cidadania, nudez e corpo em forma
eram indissociáveis: “A Grécia Antiga civilizada fez de seu corpo exposto um objeto de
admiração. Para o antigo habitante de Atenas, o ato de exibir-se confirmava sua dignidade
de cidadão. A democracia ateniense dava à liberdade de pensamento a mesma ênfase
atribuída à nudez” (Sennet, 1997: 30).
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O autor comenta também que as figuras escavadas em pedra nos “mármores de Egin”,
no Parthernon, retratavam pessoas jovens, exibindo corpos perfeitos e nus. A nudez tinha
total relação com a forma como os gregos concebiam o corpo, em especial o masculino, que
por ter a possibilidade de gerar e manter calor, não necessitava de roupas. Para os gregos, um
corpo musculoso nunca estava totalmente nu. Mas para que o corpo e a própria alma se
mantivessem aquecidos, duas práticas eram fundamentais: a primeira, exercitar o corpo nos
ginásios; e a segunda, aquecer a alma e a fala através da filosofia e da oratória: “O ginásio
modelava o corpo dos rapazes na última etapa da adolescência, quando a musculatura
começa a pressionar a superfície da pele, mas as características sexuais secundárias,
especialmente a barba, ainda eram pouco evidentes. Esse momento do ciclo da vida parecia
ideal para estabilizar o aquecimento corporal dos músculos” (idem, ibidem: 41).
Sennett também afirma que “o ginásio ateniense ensinava que o corpo era parte de
uma coletividade maior, a pólis, e que pertencia à cidade” (idem, ibidem: 42).
Foucault retoma esta discussão, questionando se a cultura de si desenvolvida no mundo
helenístico grego e romano seria reflexo de um individualismo, que confere cada vez mais
espaço aos aspectos privados da existência, aos valores da conduta pessoal e ao interesse que
se tem por si próprio. Para ele, a resposta seria paradoxal, já que a própria noção de
individualismo por vezes deixa de contemplar questões centrais e é indiscriminadamente
usada para realidades diferentes. Segundo o autor, quando se fala em individualismo, convém
distinguir três coisas:
1) a atitude individualista, caracterizada pelo valor absoluto atribuído ao indivíduo e
pelo grau de independência que lhe é atribuído em relação ao grupo ao qual ele pertence;
2) a valorização da vida privada (relações familiares, atividades domésticas e interesses
patrimoniais);
3) a intensidade das relações consigo, isto é, das formas nas quais se é chamado a se
tomar a si próprio como objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se,
corrigir-se, purificar-se e promover a própria salvação.
Sua conclusão é que “as exigências de austeridade sexual que foram expressas na
época imperial não parecem ter sido a manifestação de um individualismo crescente. Seu
contexto é antes de tudo caracterizado pela cultura de si” (Foucault, 1985: 48-9). Se a isto
acrescentarmos que o cuidado de si não requer apenas uma atenção difusa, mas todo um
conjunto de ocupações, de labor, requerendo, principalmente, a comunicação com o outro,
percebemos que, de fato, a cultura de si o constitui um exercício de solidão, mas uma
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prática social: “O princípio do cuidado de si adquiriu um alcance bastante geral: o preceito
segundo o qual convém ocupar-se consigo mesmo é em todo caso um imperativo que circula
entre numerosas doutrinas diferentes; ele também tomou a forma de uma atitude, de uma
maneira de se comportar, impregnou formas de viver; desenvolveu-se em procedimentos, em
práticas e em receitas que eram refletidas, desenvolvidas, aperfeiçoadas e ensinadas; ele
constituiu assim uma prática social, dando lugar a relações interindividuais, a trocas e
comunicações e até mesmo a instituições; ele proporcionou, enfim, um certo modo de
conhecimento e a elaboração de um saber” (Foucault, 1985: 50). Ela tomou forma em
estruturas institucionalizadas, que contavam com autoridades reconhecidas, que, por estarem
mais avançadas, conduziam os neófitos na prática dos exercícios, da mesma maneira que
fazem os instrutores de ginástica e os personal trainers da atualidade. Wacquant também
salienta este aspecto normalizador do comportamento quando descreve a academia de boxe:
O pugilismo é um conjunto de técnicas, no sentido que lhes atribui Mauss, isto é, de atos
tradicionalmente praticados por sua eficácia, um saber prático composto de esquemas
imanentes à prática. Disto resulta que o ato de inculcar as disposições que formam o boxista
relaciona-se, essencialmente, a um processo de educação do corpo, a uma socialização
particular da fisiologia, em que o trabalho pedagógico tem por função substituir o corpo
selvagem por um corpo acostumado, quer dizer, temporalmente estruturado e fisicamente
remodelado segundo as exigências próprias do campo” (Wacquant, 2002: 79).
Isto nos coloca diretamente no cerne da questão. foi dito anteriormente que falar em
corpo nos remete à tensão entre liberação individual, expressa entre outras coisas no cultivo
de si e na possibilidade de construir a seu modo o corpo perfeito, e os mecanismos de
sujeição, que podem ter se deslocado de seus cenários mais tradicionais para ocupar seu lugar
no controle do corpo do indivíduo. Tanto Foucault quanto Sennett apontam para os perigos
desta cultura exarcebada de si: “E, finalmente, o ponto de chegada dessa elaboração é ainda
definido pela soberania do indivíduo sobre si mesmo; mas esta soberania amplia-se numa
experiência onde a relação consigo assume a forma não somente de uma dominação, mas de
um gozo sem sentido e sem perturbação” (idem, ibidem: 72). Já Sennett aponta para os
perigos de modelos rígidos de perfeição corporal, que se por um lado integram o indivíduo
nos códigos culturais de sua cultura, também excluem os demais: “Imagens ideais do corpo
humano levam à representação mútua e à insensibilidade, especialmente entre aqueles que
possuem corpos diferentes e fora dos padrões. Em uma sociedade ou ordem política que
enaltece genericamente ‘o corpo’, corre-se o risco de negar as necessidades dos corpos que
não se encaixam no paradigma” (Sennett, 1997: 22).
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Se por um lado as práticas de transformação corporal, atreladas ao hedonismo, parecem
caminhar no sentido do individualismo, é também inegável que elas são indissociáveis de
condutas civilizadoras, pois no âmago da promessa de libertação do corpo, interiorizam-se
novas normas e estratégias de controle. Se somos livres para construir nossos corpos e nos
transformarmos na pessoa que queremos ser, também estamos sujeitados moralmente e
aprisionados pela ditadura do corpo perfeito. Rompemos com os espartilhos do passado,
queimamos sutiãs na década de sessenta, mas hoje é o próprio corpo, modificado por cirurgias
plásticas e por exercícios que se impõe ao olhar como rígido, duro, de formas cuidadosamente
contidas por um lado, e exarcebadas, por outro. Foucault (1979) afirma que “Como sempre,
nas relações de poder, nos deparamos com fenômenos complexos que não obedecem à forma
hegeliana da dialética. O domínio e a consciência de seu próprio corpo puderam ser
adquiridos pelo efeito do investimento do corpo pelo poder: a ginástica, os exercícios, o
desenvolvimento muscular, a nudez, a exaltação do próprio corpo...tudo isso conduz ao
desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado, meticuloso, que o
poder exerceu sobre o corpo das crianças, dos soldados, sobre o corpo sadio. Mas, a partir
do momento em que o poder produziu este efeito, como conseqüência direta de suas
conquistas, emerge inevitavelmente a reivindicação de seu próprio corpo contra o poder, a
saúde contra a economia, o prazer contra as normas morais da sexualidade, do casamento,
do pudor” (Foucault, 1979: 146).
O culto ao corpo que estamos vivenciando hoje, ao meu ver, atesta este paradoxo:
quanto mais proclamamos e somos seduzidos pela ideologia de que ter um corpo perfeito é
fundamental na constituição da nossa auto-estima e identidade, sendo um reflexo da nossa
possibilidade e direito de nos ocuparmos conosco mesmo, mais mergulhamos nas coerções
estéticas de nossa época, como atestam, entre outros fenômenos, a obsessão com a magreza, a
multiplicação de dietas, de revistas que proclamam a boa forma, a disseminação de cirurgias
plásticas e de lipoaspiração, as técnicas de rejuvenescimento...Ou, como diria Mulher 66:
“Uma coisa que me chama atenção em Los Angeles, você vai a um restaurante,
Hollywood está lá, é ridículo, são ts alfaces no prato e meu marido pagou uma fortuna,
mulheres super malhadas, cabelo sempre arrumado, não tem uma ruga, é como se não
tivessem idade, que pra mim, isto não é vida. Se cada ruga que a mulher tivesse ela
pudesse pintar de uma cor e isto a valorizasse, quando a gente estivesse toda pintada,
que interessante seria...mas aqui na Companhia Athlética, o culto ao corpo é o culto da
mulher desejada... A gente isso nas conversas do banheiro, na balança que todas
olham.” (Mulher 66, 44 anos).
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Foucault ressaltava, pelo menos desde a década de 1970, que para fazermos uma
genealogia da moral moderna seria preciso fazer uma genealogia do corpo: “Trabalhos nesta
linha visam mostrar a diferença entre as grandes transformações do sistema estatal, as
mudanças do regime político ao nível dos mecanismos gerais e dos efeitos de conjunto e da
mecânica de poder que se expande por toda a sociedade, assumindo as formas mais regionais
e concretas, investindo em instituições, tomando corpo em técnicas de dominação. Poder este
que intervém materialmente, atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos o seu
corpo e que se situa no nível do próprio corpo social, e não acima dele, perpasando a vida
cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micro-poder ou sub-poder” (Foucault,
1978: 198). Para Foucault, os poderes da sociedade moderna o estariam localizados em
nenhum ponto específico da estrutura social, mas sim diluídos como uma rede de dispositivos
que não permitiriam escape. A disciplina seria como um mecanismo difuso, mas altamente
eficaz, que permitiria, entre outras coisas, o controle minucioso das operações do corpo,
assegurando a sujeição constante de suas forças e lhes impondo uma relação de docilidade-
utilidade: “Através da exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde
produtos para bronzear até os filmes pornográficos... Encontramos um novo investimento que
não tem mais a forma de controle-repressão, mas de controle-estimulação: ‘Fique nu... Mas
seja magro, bonito, bronzeado!” (Foucault, 1979: 146). No cerne das técnicas disciplinares,
estão quatro estruturas: o controle do tempo, o tipo de organização dos espaços, a vigilância
constante e o registro contínuo dos conhecimentos (para que, ao mesmo tempo em que o
poder seja exercido, também se constitua um saber).
Todos os mecanismos descritos acima são visíveis no universo dos bodybuilders, tanto
no que se refere ao corpo malhado” quanto no tocante ao corpo extremamente magro que
também prolifera em tempos do culto ao corpo.
Controlar o tempo é fundamental para a construção do corpo perfeito: é preciso
observar uma freqüência à academia, tanto em termos de dias da semana quanto das horas
destinadas à atividade física. Os instrutores também ressaltam que é preciso respeitar
intervalos entre as ries de exercícios e se dedicar à atividades aeróbicas por pelo menos 40
minutos. Em termos de distribuição espacial, as academias consideradas de ponta
(“Companhia Athlética”, “Runner”, “Fórmula”, “Bioritmo”, etc) têm investido na visibilidade
dos espaços, fazendo uso de vidro e estruturas metálicas (como as galerias do século XIX, tão
bem descritas por Benjamin (1995)). Esta visibilidade cumpre várias funções: mostrar ao
público de fora deste circuito a imagens de corpos em construção, atestar o status de uma
parcela da população que pode despender tempo e dinheiro para cuidar do corpo, reforçar o
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próprio culto ao corpo, mas também visa o controle das atividades. Pelo vidro é possível ver o
que o interior esconde, perceber se os freqüentadores estão desempenhando corretamente as
atividades, ou o mais comum: os próprios bodybuilders se olham de soslaio, como se
estivessem apenas flanando o olhar, mas não nos enganemos, pois eles observam cada detalhe
da performance do outro, através dos espelhos, comparam resultados, comentam (geralmente
mal) daqueles que não parecem atentos ou disciplinados o bastante. Algumas entrevistadas,
por sinal, percebem esta competição e criticam o culto ao corpo por levar a esta necessidade
de estar sempre bem fisicamente e, de preferência, melhor que o outro:
“Vou pra academia porque tenho que ficar com o bíceps do tamanho do mundo, e... Eu
acho que as pessoas estão exagerando demais então... Hoje se submetendo a faca a...
Passar por cima de qualquer pessoa, passar por cima de tudo pra ficar melhor do que a
outra” (Mulher 61, 29 anos).
“Demais. Mas que tá, se você faz pra ficar bem consigo, você quer ser a melhor em
Pilates, eu ainda acho que é meio esportiva a coisa, mas não uma coisa em que as
pessoas ficam radicais, tomam tudo. Eu não gosto de ser fanática em nada, eu não sou
fanática nem politicamente, nem religiosamente, eu respeito muito o redor, eu tento ver
os dois lados (Mulher 56, 57 anos).
“Não é uma coisa espontânea, eu acho que isto é que está faltando no ser humano de
hoje (...) ninguém sabe mais quem é, todo mundo é igual, (...) eu até brinquei com a
minha irmã outro dia, a gente chegou numa loja, a minha irmã é loira. Cabelo chapinha.
Você olha de fora, você não sabe quem é quem, e todas são iguais, usam jeans, camiseta,
saltinho, silicone, jeans (...) não sei se isto é uma falta de personalidade, não é possível
que todo mundo seja igual, entendeu? Não é possível” (Mulher 51, 34 anos).
Também observam os alimentam ingeridos pelos outros e por si mesmos, numa
contagem de calorias que beira o surrealismo (muitos andam com cadernetas onde listam a
quantidade de margarina posta no pão - ambos diet, é claro -, colheres de açúcar, balas ou
chicletes, enfim, tudo o que foi consumido no dia). Como se não bastasse, foi dito que é
moda nas academias que o bodybuilder receba uma espécie de chave eletrônica que deve ser
inserida nos equipamentos de musculação e ginástica e que contém todas as informações do
que a pessoa tem que fazer naquele dia, incluindo o número de séries, de repetições e até o
grau de potência correto. Se qualquer um destes elementos for burlado, fica registrado na
chave. No final de um período de três meses, um dos instrutores acessa os dados e conversa
com o aluno a respeito de sua performance. Será que estamos muito distantes do panóptico de
Benthan, descrito por Foucault?
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Nesta “gaiola de ferro”, os sentidos da busca do corpo perfeito misturam-se e até
mesmo se opõem, enveredando ora pela realização pessoal, ora minando-a, como vermos a
seguir.
6.2.2 - PERIGOS DO CULTO AO CORPO: A PERDA DA IDENTIDADE, DISTÚRBIOS
ALIMENTARES E ESPELHAMENTOS.
a) A PERDA DO EU: IDENTIDADE OU IDENTIFICAÇÃO
Outras entrevistadas também alegam que seus principais motivos de crítica ao culto ao
corpo estão ligados ao perigo de se perder a identidade em função da necessidade - mais do
que da opção - de ser belas e de terem que se submeter a ideais estéticos estanques:
“Eu não sei se beleza é isso, porque eu não considero isso uma beleza, acho que ser bela
é você estar se sentindo bem, entendeu? Às vezes ela não esse sentindo bem, mas a
sociedade quer que ela fique daquela forma, então acho que isso pra mim não é beleza.
Eu acho muito feio esta coisa de botox. Hoje em dia as pessoas mudam a boca, as
pessoas mudam a testa, mudam a, a orelha, sabe, eu acho que não deve ser assim”
(Mulher 61, 29 anos).
“Pra conquistar um corpo perfeito... Eu vi uma vez aquelas aplicações pra fazer
colágeno nos lábios. É uma dor... Algumas rugas a gente deve aceitar... Eu acho que a
gente deve aceitar um pouco que o tempo vai passando, isso é parte da vida. É uma luta
contra isso... Eu acho que você tem que envelhecer bem, ter uma postura bonita, eu acho
que isso é mais válido do que um monte de...de uma cara. Eu acho que as pessoas
perdem a noção do que é estar bem. Eu acho que uma pequena plástica é uma coisa,
agora se transformar, se deformar, não vale a pena (...) A maioria das pessoas vão à
clínica de bronzeamento, se bronzeiam sem a menor noção do que isso pode ocasionar.
Eu vi numa reportagem perguntando se a pessoa sabe que pode causar câncer e ela
disse: “eu não nem ai, eu quero ficar bronzeada, eu quero ficar bonita”.” (Mulher 7,
39 anos).
Esta fala, além de apontar para a padronização, sinaliza também que, em nome da
beleza, as mulheres estão incorrendo em procedimentos como o bronzeamento artificial, que
estão na contra-mão da saúde, o que corrobora ainda mais que a saúde é mais uma desculpa
para os tratamentos, que têm por finalidade real a estética.
Ainda com relação à possível perda de identidade gerada pelo culto ao corpo, temos as
seguintes falas:
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“Eu acho que as pessoas estão perdendo a identidade mesmo, a idéia é a padronização,
você sai à noite você vê as menininhas, todas de 20 anos vestidas iguais, o cabelo é igual
(...), fisicamente também, a vontade de ter aquele perfil idêntico, eu acho isto lamentável,
porque a gente perde muito sendo todo mundo padronizado, todo mundo igualizado (...)
se você começa a querer ser tudo igual, padronizar tudo, você perde a possibilidade da
diferença que é muito enriquecedora” (Mulher 35, 36 anos).
“Você perde a personalidade, você perde um pouco, ou total. Eu, na época que eu fui pra
academia, me sentia toda gostosinha, e fui bem desejada por ele [pelo namorado], mas
depois eu vi que era uma relação muito vazia, e se a gente pensar no culto ao corpo
eu desisto dessa relação. Eu sou escrava de fazer a mão, de estar com o em ordem,
agora de ficar cultuando o corpo eu não sou mais escrava, o que me incomoda eu tento
por no lugar, mas não sou mais escrava disto” (Mulher 53, 29 anos).
“Eu acho que a tendência é perder [a identidade], aí você tem que (...) fazer é um
trabalho mais intelectualizado pra enxergar esta manipulação. A gente tem uma
manipulação muito intensa hoje em dia, do que ler, do que pensar, como agir, existe a
tendência a massificar, é mais interessante politicamente, é mais confortável pra quem
vende.” (Mulher 23, 48 anos).
Neste sentido, o culto ao corpo sempre jovem e belo passa a ser perigoso. Ele anula a
possibilidade da diferença, pois proclama a altos brados que ser bela hoje é ser magra, alta,
jovem, de cabelo loiro e liso, com a pele sem rugas e o corpo malhado. Concordo plenamente
com Del Priori, que alerta: “Mal se percebe que nossa sociedade valoriza não a identidade,
mas a identificação” (Del Priori,2000: 81).
Ou, como diria uma das entrevistadas, Mulher 21:
“É um mundo de competitividade, e é coisa de...é assim: ficar parecido, ficar igual,
padronizar e também competir, acho que as duas coisas vem juntas e vai depender do
objetivo em si, da deslocalização de uma pessoa, se ela vai usar mais uma ou outra.”
(Mulher 21, 44 anos).
Lembremos que Lévi-Strauss (1993) reforça os perigos do mecanismo de identificação,
discutidos primeiramente por Rousseau, “porque para conseguir aceitar-se nos outros (...) é
necessário, primeiro, recusar-se em si mesmo” (Lévi-Strauss, 1993: 44). Quando nos
colocamos como os únicos modelos possíveis, negamos a humanidade aos que o são como
nós. O culto ao belo opera mais um mecanismo de discriminação numa sociedade repleta
de desigualdades em todos os níveis, como é a nossa. Ser “malhada” passa a ser normal, e
“não-malhada”, o desvio. E entre as mulheres pesquisadas, que fazem parte da geração yuppie
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 234
pós anos 80, o desejo é ser aceita, integrada, e não desviante. Assim, a mulher passa a aceitar
sem muitas críticas o modelo de culto ao corpo. São poucas aquelas que, nas palavras de
Mulher 30:
“Têm uma graça divina que não se deixam tocar por isso”.
Esta fala aponta para algo interessante: embora a escolaridade possa ter alguma
influência na possibilidade de se enxergar a manipulação, o resolve o problema porque
podemos até perceber que o culto ao corpo fragmenta o homem, o manipula, mas não
escapamos disto:
“A gente não escapa do processo de fragmentação do homem. De jeito nenhum. Você faz
parte do processo. Está é a sua humanidade e a sua modernidade. Você é bombardeada
por isso, sabe que isso acontece, mas você não tem como se abster disso” (Mulher 30, 51
anos)
Durante o Mestrado
74
, várias vezes, defrontei-me com outro tipo de culto, o da
informação. Ao discutir a questão da discriminação e do estigma relativos a portadores de
deficiências físicas, ouvi inúmeras vezes que a solução para o fim do preconceito era simples,
bastava investir na informação. Acreditava-se piamente que o preconceito era resultado
apenas da falta de informação e que se as pessoas “comuns” convivessem com portadores de
deficiências e tivessem mais conhecimento sobre eles, os integrariam sem estigmatização.
Como seria bom se fosse tão fácil. Não se percebia que as idéias, preconceituosas ou não,
estavam fortemente incutidas na visão de mundo das pessoas que, por anos, foram
socializadas nesta cultura, cresceram ouvindo que havia padrões corporais de “anormalidade”
X “normalidade”.
O mesmo ocorre com o culto ao corpo e com uma de suas veredas mais alarmantes, a
anorexia e a bulimia. Como veremos, dentre as mulheres vitimadas por distúrbios alimentares,
temos universitárias das mais diferentes áreas do saber, de línguas, educação física e pasmem,
de nutrição. Todas sabiam
75
que se alimentar bem é fundamental, conheciam os distúrbios,
mas diante da supremacia dos modelos, no plano individual, acabaram incorrendo nos erros
que combatem no plano público dos discursos, o que nos leva á algumas considerações.
74
Dissertação de mestrado A projeção da deficiência”, Programa de s Graduação em Antropologia Social,
FFLCH, USP.
75
A frase é no passado mesmo pois uma das mulheres faleceu por causa da doença, antes do término deste
trabalho.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 235
Primeiro, que a modernidade só pode ser pensada nas contradições que lhe são inerentes
desejo de mudança X permanência; crítica ao consumo X consumismo desenfreado;
hedonismo X disciplina e o culto ao corpo não escapa disto. Podemos então criticar esta
supremacia do corpo, bradar pela necessidade (real) de desnaturalização dos padrões
corporais, alertar sobre suas conseqüências nefastas alienação, padronização das diferenças,
exclusão social mas será que de fato e sinceramente, escapamos totalmente dele? Será que
honestamente podemos ser críticos tenazes daquilo que nos bombardeia de forma tão direta,
seja na mídia, nas relações afetivas, seja em qualquer outro contexto em que o corpo e rosto
belos e esculpidos nos são apresentados como fetiches?
Miriam Goldenberg (2004) coloca a questão acima com muito bom humor, ao falar da
sedução do objeto. Löic Wacquant (2002) não escapou á sedução do boxe e, ao fazer uma
etnografia sobre uma academia de boxe nos E.U.A., transformou-se em “nativo”. Outro
exemplo que ela cita é de uma orientanda que pretendia estudar e criticar os concursos de
misses no Rio de Janeiro e acabou não participando dele, mas sendo escolhida como miss
cidade do Rio de Janeiro”. Este dilema de tentar pensar criticamente algo que nos incomoda,
mas que para nosso susto, nos atinge, foi vivido pela própria Goldenberg, que se propôs a
estudar e criticar o atual culto ao corpo e que até a publicação de um de seus livros, Nu e
Vestido (2002), “nunca tinha ido ao dermatologista, usado hidratante, filtro-solar e outros
procedimentos tidos como básicos”, mas que teve sua primeira ida ao dermatologista (em
função das exigências do campo) transformada “em uma cruel iniciação nesta cultura de
culto ao corpo (...) o especialista, ao me examinar, disse categoricamente: ‘Por que você não
faz plástica para tirar o excesso das pálpebras? Por que não coloca preenchimento nos
sulcos ao redor dos lábios? Você vai rejuvenescer dez anos!’ Seu tom imperativo me soou
como uma verdadeira acusação: ‘Por que você não quer ficar dez anos mais jovem? Você é
culpada por estar envelhecendo!’ Durante quase um ano vivi o dilema: faço ou não faço
plástica? Coloco ou não preenchimento nos sulcos dos lábios? Botox ou não botox na testa?
‘Ser jovem, magra e bela!’, o imperativo categórico de nossos dias. Tornei-me uma
verdadeira nativa desde então, aprisionada por um determinado modelo de corpo. Uma leve
esquizofrenia tomou conta de mim no início deste século XXI. Se, de um lado, analiso e
critico o atual culto ao corpo, de outro passei a ser uma fiel consumidora de caros produtos
dermatológicos (provavelmente ineficazes) e muitíssimo preocupada quando a balança
anuncia um quilo a mais.” (Goldenberg: 28/29).
Mesmo dentre as minhas entrevistadas, duas delas, muito críticas frente ao culto ao
corpo, pensam em ceder à tentação da plástica (Mulher 21 e Mulher 23). Uma delas, diz “não
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 236
sei por quanto tempo eu vou resistir à plástica” (Mulher 45, 43 anos). Outras dizem que não se
deveria dar tanta importância à beleza, mas “infelizmente este é o padrão” (Mulher 10, 18 anos).
Eu mesma, que neste exato instante escrevo esta tese, percebo todos estes mecanismos, até os
analiso e questiono, mas sou freqüentadora assídua de academias de ginástica, faço regimes
(quase sempre) e sonho com a lipoaspiração que, finalmente, me dará uma cintura de pilão.
Pode-se perguntar: trata-se de futilidade aderir a algumas exigências do culto à
aparência? Segundo algumas entrevistadas, sim:
“É, eu acho assim, a gente tá vivendo uma fase que tudo está sendo a coisa da estética. O
homem, o ser humano, é um ser estético, que busca o belo, isto desde que o ser é ser, mas
a gente está vivendo uma coisa assim do superficial. Então este culto à beleza (...) a
forma como está sendo cultuada pela mídia, pela sociedade, pelas celebridades, pela
superficialidade, arima, né, celebridades, superficialidade... A coisa da beleza é para
as pessoas aparentarem esta casquinha, então a gente vivendo uma época de coisas
plásticas. Nada natural, abaixo a natureza, realeza siliconizada, tudo plástico, tudo de
mentira, é um mundo de borracha, e as pessoas também estão ficando assim!!” (Mulher
21, 44 anos)
“As pessoas ficam muito superficiais, acho que fica muito mais difícil abordar algum
assunto mais profundo, porque elas estão extremamente ligadas ao corpo, à estética, ao
físico, acho que são pessoas que têm uma falsa felicidade, pessoas que não estão bem
consigo mesmo, que não têm relacionamentos profundos. Eu vejo que estas pessoas são
superficiais, a gente não pode contar com elas em situações difíceis, são coleguinhas,
vamos dizer assim, não são amigas” (Mulher 51, 34 anos).
Embora eu concorde com estas falas e também considere que quando a aparência física
passa a ser tudo na vida, em detrimento do espírito, do prazer de sentar à mesa com os amigos
e se fartar de tudo que for bom e engodativo nos colocamos em risco, não acredito que todas
que enveredem por este caminho sejam superficiais. A questão, por passar pela construção da
identidade, da auto-estima e da aceitação, é muito mais complexa. Ainda mais porque, como
vimos, para as mulheres, a auto-estima associa-se à identificação com o modelo de corpo
padrão sugerido pela mídia, sendo, portanto, padronizada, em vez de ser específica a cada
pessoa. Como afirmei e sustento, podemos perceber e criticar o processo, mas nem sempre
escapamos dele. Ter um corpo considerado feio, num cenário onde a feiúra exclui, o é
muito confortável. Podemos alegar que isto não nos interessa, que preferimos ser únicos em
nossa beleza, inteligentes, sensíveis, espiritualizados. Mas o olhar do outro vai nos dizer “tudo
bem, seja isto também! Mas te custa muito cuidar um pouco da aparência?”. Acho que
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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chegaremos a ponto de constituirmos, os “não-malhados, não siliconizados”, uma contra-
cultura, até mesmo um gueto. E se optarmos por esta via, teremos que assumir todas as
vantagens e também os ônus inerentes a nadar contra a maré.
b) O CULTO À MAGREZA: OS DISTÚRBIOS ALIMENTARES
Outra crítica ao culto ao corpo vem da Mulher 21 e caminha no sentido de se definir a
magreza como referencial de beleza. Segundo ela, as indústrias da moda, aliadas à mídia,
fazem com que cultuemos um corpo esquálido, que, para ela, é vendido como belo, mas na
verdade não o é:
“Eu assisti um desfile da “São Paulo Fashion Week”, com a minha irmã; a menina mais
gorda, pegando o meu braço, que eu tava magrinha na época, a coxa dela, não chegava
a 70%, do que é o meu braço na parte superior, eu olhava pra aquilo, as meninas
pareciam de cera e meninas assim de 13 (...). Eu fiquei olhando (...) e prestando muita
atenção no comentário das pessoas que estavam sentadas, jovens, eu na faixa dos 40,
pessoas mais jovens falando que aquilo era ridículo. É impressionante como as pessoas,
na intimidade, elas tem este discernimento, mas quando elas vão pra a coletividade elas
querem ser borrachas, o belo plástico, o belo fabricado. Então é um culto hipócrita, no
social todo culto é hipócrita, na intimidade ele é verdadeiro” (Mulher 21, 44 anos).
Entre aqueles que optam pelo corpo extremamente magro (principalmente as mulheres),
também podemos perceber os complexos mecanismos que, ao mesmo tempo em que liberam,
também aprisionam os sujeitos em formas corporais rígidas.
O culto à magreza inicia-se nos primórdios do século XX, embora se potencialize a
partir da metade do mesmo e tenha seu auge a partir dos anos de 1980, momento em que o
culto ao corpo e os modelos corporais a ele associados ganham maior visibilidade.
Para Philippe Perrot (1984), a mulher magra foi mais do que uma moda, foi o
desabrochar de uma mística da magreza, uma mitologia da linha, uma obsessão pelo
emagrecimento, tudo isso temperado pelo uso de roupas fusiformes (Philippe Perrot, Lê
travail dês apparences ou lês transformations du corps minin XVIII-XIX siècle, Paris:
Seiul,1984, pp 196/7, apud Del Priori, 2000: 66).
Como vimos anteriormente, esta mística da mulher magra vem da Europa e é
indissociável do ingresso feminino no mundo do exercício físico, seja sobre bicicletas, nas
quadras de tênis, nas aulas de dança, e isto nos anos de 1920. O corpo deveria ser esbelto,
leve e delicado. Inicia-se a perseguição e desprestígio do embonpoint, os quilos a mais, ainda
que discretos. Começamos a fase, segundo Lipovetsky (1997), da cultura lipófoba, o horror a
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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tudo que é mole, relaxado, gordo. Ser magra passa a ser sinônimo de ser ágil e de ter controle
sobre o seu corpo, elementos fundamentais da modernidade. E como é impossível exercitar-se
com roupas muito elaboradas, como anquinha e espartilhos, o corpo fica mais exposto e
visado do que a moda. A ditadura da moda se desloca para o corpo: moda e corpo foram
variando, ao longo do século XX, na razão inversa, ou seja, quanto mais a moda se
pluralizava em diversos estilos e tendências, mais o corpo se fixava em um novo ideal, o da
magreza. Ao longo do século XX, esta tendência é crescente. Década após década o padrão de
magreza é mais exigente. As estrelas do cinema dos anos 40/50 são mais gordas, mais
redondas do que as da era Twigg, e pós anos 60, mais retilíneas.
Nesta busca das mulheres pela magreza, dois tipos de distúrbios alimentares têm
entrado em cena nos nossos dias: a bulimia e a anorexia. Tais distúrbios passaram a ser mais
conhecidos após terem afetado pessoas famosas ou que estavam em evidência na mídia. A
princesa Lady Diana, a princesa Victória da Suécia, uma das participantes do Big Brother
Brasil (Leika), a cantora do grupo americano “The Carperts” são alguns dos exemplos mais
conhecidos.
Um outro exemplo veiculado pela mídia foi de
Melaine Antunes Bosi, que, em 1997, com quinze anos,
1m61, deu entrada no Hospital das Clínicas de São
Paulo, pesando apenas 30 quilos. Foi o desfecho de um
regime altamente restritivo, iniciado quando Melaine,
então com 18 anos, resolveu perder quatro dos seus 48
quilos, para “ficar como as modelos das revistas”.
Aliando dieta com excesso de exercícios, Melaine esteve
perto da morte e fala a respeito dos efeitos colaterais da
magreza extrema: Eu já não tina gordura alguma no
corpo. Vivia com frio e fraqueza. Perdi até o cabelo”.
A anorexia seria um “Distúrbio de personalidade
que se manifesta por extrema aversão ao alimento, que
resulta em perda de peso que chega a ameaçar a vida e
em geral ocorre nas mulheres jovens. É considerada uma enfermidade histérica, porém às
vezes se assemelha ou precede uma psicose. A mulher vitimada pela anorexia nervosa acaba
obsessiva pela magreza extrema, deixa de comer e pode vir a falecer.” (Stedman, 1979
76
).
76
O artigo não consta da bibliografia, pois, lamentavelmente, foi perdido pela pesquisadora e foi impossível
localizá-lo. Foram mantidas, no entanto, suas informações, pertinentes ao escopo desta pesquisa.
Figura 15 - Anorexia
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 239
A bulimia é outro distúrbio alimentar e leva a pessoa a ingerir em uma refeição enormes
quantidades de alimentos para depois, sentindo-se culpada, vomitar ou fazer uso de laxantes,
o que, além de desequilibrar o metabolismo, pode, em casos mais graves, levar à morte por
ruptura do estômago.
Também foi ressaltado em uma matéria jornalística que as dietas rígidas, a partir de
uma semana, podem causar danos cerebrais irreversíveis, afetando principalmente a memória
e o raciocínio, que comprometem de modo irreversível o córtex cerebral. (Jornal Nacional,
12/10/2002). Outra reportagem (Ciência Hoje, vol.28, número 164, setembro de 2000)
salienta que os distúrbios alimentares vêm alcançando índices epidêmicos e são responsáveis
pelo maior número de mortes entre todos os distúrbios psíquicos conhecidos. Em cada grupo
de dez pessoas doentes, uma se suicida ou morre em virtude de parada cardíaca e desnutrição.
É ressaltado também que a maioria dos pacientes vitimados pela anorexia nervosa evita
alimentar-se em público, contabiliza as calorias das refeições, faz exercícios compulsivamente
e mantém o peso corporal bem baixo. O perigo está no fato da pessoa portadora de anorexia
enxergar-se de forma distorcida, achando-se sempre gorda.
A psicóloga Maria de Lourdes Kalil (na reportagem acima citada) afirma que
geralmente as mulheres vitimadas pela anorexia nervosa são adolescentes, geralmente de
classe social mais alta e apresentam características psicológicas como ansiedade, depressão,
descontrole emocional e físico, intolerância à frustração, humor lábil e baixa auto-estima. Para
ela as causas do distúrbio são múltiplas, incluindo fatores ambientais, genéticos e, sobretudo,
comportamentais: “A pressão de uma sociedade cada vez mais competitiva, o estresse e
experiências de vida traumáticas, associadas ao culto do corpo perfeito, m levado muita
gente, a maioria mulheres, a maltratar seu organismo, seja passando fome ou comendo em
excesso”77.
Queiroz e Otta (2000) citam uma pesquisa norte-americana que indica que entre as
universitárias, 30% sofrem deste mal. A mesma pesquisa revela que os casos de anorexia
nervosa correspondem a 90/95 % dos distúrbios alimentares registrados. No entanto, este
ainda é um tema tabu: quem sofre de anorexia tende a esconder dos outros e a negar a si
mesma a doença, muitas temem não ser compreendidas ou serem julgadas fúteis, que, aos
olhos da maioria, estariam abrindo mão da comida por meros motivos estéticos (e isto num
país de famintos não é bem visto). Percebi também na pesquisa que as pessoas que não sofrem
da doença ou não convivem proximamente com pessoas portadoras de anorexia tendem a
77
Idem à nota anterior.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 240
considerá-la apenas como um transtorno psicológico, desconhecendo as implicações sociais
que levam a este distúrbio.
Outro dado importante é que 56% da amostra conhecem pessoas com estes distúrbios e
têm alguma história para contar a respeito:
As entrevistadas comentam sobre isso:
“Tem uma amiga minha da faculdade que teve bulimia, (...). Você tem que ter muita
personalidade pra não cair neste mundo (...). Tinha época que ela, chorando, ia pro
banheiro e punha o dedo na garganta, ela não queria fazer, mas pra ela, já era instintivo
(...). Ela é super magra, mas ela fica falando ‘Ah, eu sou gorda, eu sou gorda’, é uma
coisa que o tem muito sentido, a pessoa fica abalada psicologicamente, precisa de
tratamento.” (Mulher 4, 18 anos)
“Eu tive uma amiga minha, que jogava vôlei profissional comigo e ela se achou gorda, aí
ela começou a comer e ia ao banheiro e induzia o mito, em seis meses ela virou um
palito e teve que abandonar o vôlei, porque ela não tinha mais condição de treinar,
perdeu a força, ficou anêmica (...)” (Mulher 16, 36 anos)
“Minha prima com 12 anos, ela ficou magra, muito magra, ela queria dançar na
frente do espelho, e queria ter o corpo perfeito sempre achando que tava com uma
barriguinha a mais, chegou a levar em médico (...) para ela ouvir que precisava se
alimentar. Ela dizia tá bom e não comia nada, deixava o resto, a metade do nada e
achava que tava bom. Ela é alta e queria ter o corpo de modelo. Era essa a intenção
dela, era o modelo, ela sonhava com isso.” (Mulher 26, 18 anos).
Gráfico 39 - Conhecimento de pessoas com Distúrbio Alimentar.
Você conhece alguém que sofra de
distúrbio alimentar?
56%
43%
1%
sim
não
não respondeu
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 241
“Eu sei de uma cunhada, ela chegou a fazer tratamento, porque ela sumiu. Tudo que ela
comia ela vomitava, isto depois de muito tempo que a família começou a perceber, ela
falava que fazia regime, que a gente começou a perceber que ela comia, depois
de uns cinco minutos ela sumia, ficava no banheiro, isto causou um problema pra ela, de
estômago, ela quase teve que fazer uma cirurgia por causa disto” (Mulher 32, 33 anos)
“Uma que eu conheço tem esse problema, ela era gordinha e a mãe começou a colocar:
Ninguém gosta de gente gorda, você não pode ser gorda! Pára de comer!’ a menina ia
comer : Não coma!’ Resultado: essa menina com 20 anos ia parar no pronto-socorro,
volta e meia por ser desnutrida. Hoje ela está com 34 anos e não consegue engravidar
porque ela ficou com uma série de problemas. Então, se ela engravida, ela perde o bebê
devido à desnutrição” (Mulher 39, 58 anos).
“Sim, é muito triste. Era uma amiga minha que nem era gorda, era assim, normal, só que
assim, ela começou a pensar que ela tava gorda, começou a emagrecer, a fazer regimes
malucos. Hoje ela tem a minha altura [1,67] e ela não pesa 40 Kgs e vergonha, antes
ela ser o que ela era antes do que hoje, as pessoas olham pra ela e dizem ‘nossa , que
menina feia’, horrível, chega assim, a pele grudar no osso, horrível. Começou por
motivos estéticos, porque ela achou que não tava tão bonita, tão magra quanto ela
queria ser.” (Mulher 41, 19 anos)
“Eu conheço, uma (...). Ela teve anorexia, então ela sempre cultuou muito ser magra (...)
magro de mostrar os ossos, assim ela comia, sei lá, duas colheres de arroz, ela achava
que ela estava mal, o que ela fazia, ela tomava um remédio pra emagrecer, ela forçava
vômito, até um dia que ela passou mal, e essa minha amiga levou ela pro hospital (...).
Ela ficou internada duas semanas numa clínica”(Mulher 49, 27 anos).
“Conheço com bulimia, a pessoa não quer buscar uma ajuda achando que não é uma
doença (...). É amiga minha, ela não quer buscar ajuda achando que é uma coisa normal,
ou que uma hora ou outra ela não vai mais fazer isto, ela come vai ao banheiro sempre
tirar tudo que ingeriu (...). E anorexia a gente vê muito na academia, da gente saber que
a pessoa é por causa da magreza, a pessoa acha que está gorda, e está cada vez mais
magra, mais magra e não adianta você falar que a pessoa acha que não está doente e
não procura ajuda, é muito raro a pessoa que busca ajuda, psicológica, terapeuta,
médica, é muito raro” (Mulher 54, 26 anos).
Então, eu acho assim, que na adolescência isto é muito comum; quando eu estava no
terceiro colegial, todo mundo era obcecado em fazer regime, eu estudava em colégio
integral, então a gente almoçava no colégio, ficava sempre uma vigiando o que a outra
comia e isto acaba mexendo um pouco com a sua cabeça. Você começa a perceber,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 242
nossa, será que eu realmente gorda, será que eu preciso emagrecer, eu acho assim,
pressão da mídia ou da família, o meu pai sempre falava que eu era gordinha, eu não
gostava disso, então eu resolvi fazer uma dieta um pouco intensiva e você começa a
perder um pouco o controle, começa a emagrecer demais”. (Mulher 6, 19 anos).
Percebemos nas falas que já uma tentativa de interpretação das mulheres a respeito
do problema. Listei brevemente alguns pontos significativos - distorção da própria imagem;
ter muita personalidade para não cair neste mundo; cobrança pela perfeição; estética; mídia
querendo que você fique igual às modelos; corpo de modelo; críticas da mãe; ter um padrão
estético; se ver fora do padrão -, mas resolvi insistir na questão para ver se as mulheres
tendem a considerar a anorexia somente como um problema psicológico ou se percebem que
esta patologia, embora seja obviamente um transtorno psiquiátrico, é indissociável dos
modelos estéticos que a nossa sociedade produziu. Duas entrevistadas apontaram a
dificuldade de compreensão do problema por quem não o viveu; e a tendência perversa de
julgarmos a pessoa, ou de simplesmente afirmarmos que se trata de problemas psicológicos:
“No trabalho, na faculdade inclusive a gente mulher com bulimia, bom, é como eu
falei mais uma vez a gente volta a bater naquela mesma tecla do corpo e mente, é muito
fácil a gente falar da bulimia e anorexia como as pessoas falam, uma coisa que "o meu
deus, tão menina, que jeito, como ela pode fazer isto?" por favor, como se isto
dependesse somente dela, gente, ha muita coisa por trás, entendeu. Não é fácil tratar
uma pessoa com bulimia, precisa de tempo, dedicação, são pessoas que têm problema”
(Mulher 58, 27 anos).
“Era uma amiga minha, assim, ela nem mais viva, ela morreu com quinze anos...de
anorexia. e ela simplesmente...não queria mais...chegou num ponto que ela não queria
mais viver e foi. Eu tenho um trauma assim, eu respeito, se a pessoa tem isso, não dá pra
dizer assim, “ah, pirou”, porque não é fácil” (Mulher 62, 27 anos).
Questionei as entrevistadas sobre o que pensam da anorexia e da bulimia. As opiniões
caminharam mais no sentido de uma percepção de que as mulheres vitimadas por estas
doenças sofrem muita pressão da sociedade mais ampla e acabam não resistindo e fazendo de
tudo para alcançarem os modelos corporais. As entrevistadas percebem que é um problema de
difícil solução e que requer auxílio de especialistas. Muitas o solidárias com as mulheres
vitimadas, procurando entender os motivos que as levaram por estes caminhos. Mas algumas
entrevistadas também afirmam que estas mulheres têm uma personalidade fraca, pois se
deixaram levar demais pelos padrões que a mídia impõe:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 243
“Eu acho que este culto à perfeição do corpo, acaba levando pessoas mais inconstantes
emocionalmente para este tipo de situação, eu acho que é um pouco de falta... falta de
força de vontade, talvez um pouco de ignorância talvez, falta de apoio familiar, esta
pessoa deve se sentir muito insegura pra chegar neste tipo de extremo” (Mulher 35, 36
anos).
“Se você acha que você está gorda, você tem que fazer regime e não simplesmente
comer, comer e depois ir lá e por o dedo na garganta e vomitar (...) sabe, a gente precisa
se esforçar, não é simplesmente optar pelo lado mais fácil” (Mulher 4, 18 anos)
Outras mulheres tentaram explicar a anorexia relacionando-a com o mecanismo de
padronização do corpo e percebem sua vinculação com questões estéticas:
“Ah, a cultura da perfeição, com certeza, é o que leva muitas meninas a ficarem
anoréxicas, buscam a perfeição e acabam perdendo o controle e esta perfeição vai
mudando cada vez mais, sei lá, elas querem atingir um peso, 50 [kgs], e aí quando atinge
os 50, não aceita, quer ir para os 48, cada vez menos, chega uma hora que perde total o
controle e aí, ao invés de buscar a perfeição acaba atingindo uma coisa que não é
normal” (Mulher 6, 19 anos)
“Eu acho que é esta ditadura da magreza e da beleza, sem dúvida. Eu nunca ouvi falar,
nem quando eu era adolescente, nem da minha mãe se preocupar com o que eu comia
pra não engordar” (Mulher 19, 51 anos)
“O problema é que a meninada, hoje em dia, está envolvendo com essas coisas de
modelo esquelética, magrela, então ela quer isso, ela cresce com isso, aquela coisa
extremamente top, que acaba de certa forma levando ao mal, a anorexia...” (Mulher 20,
33 anos)
“Eu acho que é a culpa é da mídia mesmo, de mostrar tanta mulher magra, perfeita,
tudo no lugar, a pessoa pira, a pessoa que assim, cuida muito e tenta se espelhar em
outra pessoa, como numa modelo, eu acho que fica muito neurótica, acho que a mídia
influencia muito, revista, televisão, eu acho que é 100% da mídia” (Mulher 49, 27 anos).
“Eu acho que é a moda, essa coisa de TV, porque artista de TV tem 1,80m de altura e
pesa cinqüenta, então ela é linda (...) Têm umas modelos que se sentem muito mal, só tão
pelo trabalho, sabe? Então tem outras que se sentem super bem, querem emagrecer cada
vez mais, mas eu luto pra fazer de tudo pra que a pessoa mude, sabe, a cabeça, mas eu
acho que é isto que leva as pessoas, influência do dinheiro” (Mulher 61, 29 anos).
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“Foi muito por motivos estéticos. Isso foi dez anos atrás, mais até, 12 anos, mas ela
tinha muito medo, porque os pais eram obesos, e ela tinha medo de ser como eles, então
ela tava num mundo que ela não queria seguir eles, ela queria emagrecer e entrou
num processo... Ela também não se gostava, se achava feia, muito. Foi bem complicado.
Levaram ela embora um tempo, para o exterior, mas... Não teve jeito...” (Mulher 62, 27
anos)
É impressionante constatar que praticamente todas as entrevistadas apontaram para as
mesmas questões, todas ligadas á influência da mídia em disseminar o corpo das modelos, em
geral altas e magras, como um modelo de beleza para todas as mulheres. Como vimos, desde
o início do século XX e principalmente em suas últimas décadas, estabeleceu-se no
imaginário o vínculo entre magreza, beleza e felicidade. As modelos são a personificação viva
desta construção simbólica e embora também passem por crises de toda natureza, irradiam
uma áurea de glamour, dinheiro, parceiros bonitos, carreira, oportunidade de viajar... Elas
sintetizam tudo que a beleza pode oferecer em termos de sucesso e felicidade. Embora
humanas, imperfeitas e até insatisfeitas consigo mesmas, vendem a imagem da perfeição
física. Não è á toa que as meninas crescem com o sonho de serem modelos (e os meninos,
jogadores de futebol).
Também é preciso destacar a importância da moda, que cria roupas que ficam bem
em corpos extremamente esguios e tamanhos que diminuem de ano para ano e sujeitam as
mulheres a estarem perfeitas de corpo para expô-los, e isto significa estar magra. Remédios
para emagrecer, que num primeiro momento aparecem como temporários (apenas mais um
recurso para acelerar a perda de peso), podem viciar e gerar desequilíbrio hormonal e mental,
desencadeando a anorexia. A respeito da aparência e da moda Perrot comenta: “Os diktats da
moda comandam sua aparência, uma aparência cada vez mais interiorizada, indo das roupas
às formas do corpo e à textura da pele” (Perrot, 2005: 472).
As revistas “Boa Forma”, “Dieta Já”, “Pense leve”, “Corpo”, entre outras, fazem
chamadas dramáticas incitando a perda de peso; os regimes, cada vez mais drásticos,
proliferam e o controle alimentar é muito mais severo que no passado. Além do mais, ao
estamparem em suas capas mulheres que se encaixam nos padrões corporais descritos,
alimentam as representações do corpo “perfeito”, “bonito”, “modelo”, como podemos
facilmente perceber examinando algumas imagens:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 245
Olhando as chamadas principais, escritas em letras maiores do que as outras, as
expressões são, pela ordem das capas: “Barriga sequinha”, “Magra no inverno”, “Repita
conosco: Vou emagrecer!”, “Você viu? Todo mundo esaumentando os lábios!”, “Eu quero
Figura 16 - Capas das revistas "Corpo","Boa Forma" e “Dieta Já”
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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músculos”, “Malhação Mundial”, Última chamada! Perca até 4 quilos em 5 dias!”,
“Disciplina. Você têm? Quer ter? Conquiste a sua aqui”, Mais tratamentos! Para endurecer,
secar, esculpir” “Perca 5 Kgs por mês! Com a dieta do ciclo menstrual”, “Em 45 dias, 12 kgs
a menos!”, “Emagreça 7 Kgs antes do verão.”, “Acredite: é você quem manda na sua fome!” .
Embora não possamos aqui fazer detalhada análise das mesmas, que fugiria ao escopo
deste trabalho, podemos ver que alguns dos denominadores comuns são:
O tom enfático das chamadas e prescrições fez aumentar, à semelhança do
que Elias notou na passagem da Idade Média para a Moderna, ao comparar os
manuais de etiqueta. Os discursos se tornaram ainda mais imperativos e a sua
simples leitura, nos provoca um certo mal-estar, pois parecem nos dizer que, de
fato, somos as únicas responsáveis por comportamentos desviantes da ética da
malhação e do eterno regime.
O padrão corporal é o mesmo eleito pelas nossas entrevistadas como o
dominante nos círculos sociais e na mídia: a mulher “magra-malhada-
siliconizada”. Sem barriga, o muito musculosa, mas com tônus muscular,
seios grandes, bumbum empinado, cabelos bem tratados, rosto jovem.
A idéia de disciplina é constante, bem como a de que o exercício invade o mundo todo
(afinal de contas, é a “malhação mundial”). Assim, não aderir a ela é questão de escolha.
Poderíamos citar indefinidamente outros exemplos, mas estes já nos dão boa idéia do
corpo imaginário, vendido mensalmente através destas (e de outras) revistas, bem como da
veiculação da fórmula mágica: “magreza = beleza = felicidade”.
Outro aspecto que nos auxilia a entender a preocupação com a magreza é que uma
intensa cobrança social, dirigida até mesmo às crianças, pela aquisição deste modelo corporal.
Um relato de uma mãe cuja filha é um pouco mais cheinha, ilustra a questão:
“Os parentes dizem: ‘Diminui a quantidade de comida do prato dela’, ‘ela já gorda,
você vai dar doces para ela!?’... E ela só tem três anos de idade!” (Mulher 32, 33 anos)
Diante desta tirania da magreza, podemos entender porque mulheres com um peso
“normal” se sintam gordas e queiram se livrar dos quilos a mais” como quem se livra de um
estigma. Segundo uma pesquisa do Hospital das Clínicas de São Paulo, a faixa de idade de
meninas vitimadas pela anorexia caiu de 12-14 anos para 7-8 anos, momento em que a criança
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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ingressa no ensino fundamental. Isto se deve à comparação com as coleguinhas
78
e a maior
capacidade de discernir os modelos, sem falar nos programas infantis, que também são
apresentados por mulheres magras, malhadas.
Outro dado alarmante é que as interessadas em perder peso rapidamente podem se valer
da internet, rede em que comunidades que não apenas incentivam a perda de peso, mas
defendem a bulimia e a anorexia como um estilo de vida e fornecem dicas, tais como:
“pensar em coisas consideradas nojentas como cocô de cachorro na hora de comer”, para
transferir o nojo para a comida; “não comece a tentar vomitar usando toda a mão, basta o
dedo bem fundo na garganta”; “Você não deve comer sem se sentir culpada”; “Você não deve
comer algo que engorda sem se punir depois”; “Ser magra é mais importante que ser
saudável”; Você nunca está magra demais. Ser magra é a coisa mais importante do mundo”;
“Não engula, morda, mastigue e jogue fora”, e por vai. até apelidos carinhosos para as
doenças: a anorexia é chamada de “Ana” e a bulimia, de Mia”. Segundo duas revistas que
divulgaram a existência destes sites, “IstoÉ” (25/10/2002) e “Veja” (11/02/2004), estima-se
que no Brasil bulimia e anorexia afetem 100.000 adolescentes, dos quais 90% são garotas.
Algumas professoras de ginástica da Cia Atlhética afirmaram ter notado um aumento do
número de alunas portadoras de anorexia nos últimos tempos, embora isto ainda seja velado,
as mulheres raramente assumem o distúrbio, o que eclipsa um pouco a questão:
“Olha, eu te falei de quatro, mas eu lembrei de mais um. Aumentou muito com relação ao
passado, não de forma absurda, mas aumentou. Padrões estéticos, simplesmente, a
gordinha é sempre aquela que vai ser colocada de lado, tem que ser magrinha porque
este é o padrão de estética que a mídia exige, então algumas pessoas levam isso ao
extremo e acabam sendo anoréxicas” (Mulher 2, 31 anos)
“Eu acho que tem acontecido mais, o é comum, mas eu tenho percebido mais”
(Mulher 9, 27 anos).
Mas o que mais se destaca é que 10% das entrevistadas
79
(8 mulheres) assumiram ter
anorexia ou bulimia:
78
Segundo outra reportagem, veiculada na revista “Época” de 03 de novembro de 2003, a preocupação com a
aparência tem crescido entre as crianças. A pesquisa foi realizada com uma amostra de 1.503 meninos e
meninas de 6 a 11 anos das classes A, B e C de São Paulo, Curitiba, Rio de Janeiro e Belo-Horizonte pelo
canal de televisão infanto-juvenil Cartoon Network”. Entre as meninas, 65% são vaidosas, a ponto de
saírem de casa maquiadas e com unhas feitas. 44% delas teme ser gordinha e 14% consome produtos diet
e ligh (numa etapa do crescimento em que a alimentação é fundamental para o bom desenvolvimento da
criança). Uma das entrevistadas, de 11 anos diz que todo mundo da turma repara quando alguém
engorda”. Segundo o pediatra Gláucio Granja de Abeu, o comuns casos de anorexia no seu
consultório. O diretor da pesquisa Pablo Verdim afirma que “A pressão para seguir um padrão de beleza
continua forte”.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 248
Os depoimentos pertinentes à indagação foram dados, sobretudo os das mulheres que
sofrem com estas doenças, sem exceção, com forte tom emocional, como se tocássemos numa
ferida, que cicatrizada ou não, gera angústias:
“Eu cheguei a ter um pouquinho, cheguei a ter doença, eu fingia que comia, mas não
comia, pra emagrecer rápido, cheguei a ter a doença por causa disto, mas hoje...”
(Mulher 1, 30 anos)
“Sim, eu tive anorexia, depressão, bulimia, e isso atrapalhou todo o meu ciclo menstrual,
minha alimentação, eu não comia mais muitas coisa que eu tinha que comer, minha pele
ficou muito ruim, eu tive várias conseqüências por causa disto... [ela se emociona, o olho
lacrimeja]. Mas eu acabei me prejudicando e depois de muito tempo eu passei a
perceber que, meu, o vale a pena ficar tão magra, não tava tão bonito, eu tava com
uma imagem distorcida.” (Mulher 6, 19 anos).
“E eu me achava gordinha, eu tive anorexia, hoje eu não tenho mais, graças a Deus.
Eu queria ser magra demais, trabalhar em agência assim, eu via as meninas bem
magrinhas e eu também queria ficar daquele jeito, a qualquer custo, e eu acabei ficando
79
Os dados de distúrbios alimentares compreendem apenas os distúrbios anorexia e bulimia. o entraram na
estatística e nem foram analisados os depoimentos relativos à compulsão alimentar. Curiosamente, as
entrevistadas relutaram em assumir este distúrbio (só uma entrevistada afirmou tê-lo) , matizando-o por
expressões como “às vezes eu como demais”, ou “eu fico ansiosa e como”. Ficou, portanto, mais difícil
para a pesquisadora estabelecer, sem indicação das entrevistadas, as fronteiras entre sair da dieta e entrar
em quadro de compulsão alimentar. Numa época de rígidas coerções sobre dietas, é mais fácil para as
entrevistadas assumirem que comem menos do que deveriam, ou que vomitam o que comem, do que
assumir que comem demais.
Gráfico 40 - Possui distúrbio alimentar ?
Você sofre de algum distúrbio alimentar?
10%
85%
5%
sim
o
o respondeu
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doente. Fui tomar soro no hospital duas ou ts vezes, desmaiei, mas eu não sentia
fome, me tratando é que passou. É terrível, eu chorava, porque depois eu perdi o
meu guarda-roupa inteiro e não tinha mais como voltar, comendo mesmo e eu não
queria mais comer, mesmo assim, mesmo doente, mesmo sem roupa para vestir, eu não
queria engordar. Então eu comecei a ficar muito mal ... ai depois eu fiz um tratamento
psicológico tal e melhorei...” (Mulher 10, 18 anos)
“Na verdade foi, eu acho que a bulimia veio na Espanha, porque isto é doença emocional
(...), eu comia muito, muito, e depois vomitava. Foram 9 meses na crise. Quando eu
cheguei, eu ainda fazia muito isso, e é engraçado, não é porque você quer, é coisa que
você fala “meu...”. Agora, como a minha vida voltou ao normal, eu dando muitas
aulas de ginástica, não tenho mais... parei. não sinto mais nem vontade de
comer, nem vontade de vomitar” (Mulher 18, 23 anos).
“Antigamente eu tinha mais preocupação. Eu comia de manhã e passava o dia inteiro
mau, irritada, fazia muito mais exercícios, porque eu tinha comido. Agora eu não sei se
porque foi passando mais o tempo, eu dei prioridade para outras coisas na vida (...).
Antes eu comia, um exemplo, um pedaço de bolo de chocolate, eu ficava a tarde inteira
pensando, e a noite eu fazia ginástica aqui na academia e quando eu chegava em casa eu
fazia ginástica, de madrugada, porque eu tinha comido aquele pedaço de bolo (...)
Agora, porque eu cheguei na anorexia? Se eu tinha um padrão.. .Não tinha, mas eu não
sei, era uma competição comigo.” (Mulher 51, 34 anos)
“Eu sabia que tinha anorexia anos, mas demorei a aceitar o diagnóstico. Só parei
de tomar anfetaminas quando fiquei perto do infarto. Vivia doente, recusava qualquer
comida, praticamente vivia de água. Cheguei a pesar 42 kgs, mas me achava gorda,
queria mais remédio, queria malhar muito mais, mas não tinha forças. Todos diziam que
eu estava horrível de magra e muitas amigas ameaçavam me internar. Mas eu não via.
Hoje estou sem remédios, mas isto é uma faca de dois gumes: se por um lado a
respiração melhorou, a comida diminuiu ainda mais porque sem os remédios, corro mais
risco de engordar e é difícil manter 44 quilos quando se tem 34 anos.” (Mulher 68, 34
anos)
Percebe-se nestas falas que a relação com a comida, para portadoras de distúrbio
alimentar, é marcada por angústias e até por depressão, configurando–se como uma negação
da vida, visão totalmente oposta a dos medievais. Como destacou Bakhtin: “Uma refeição
não poderia ser triste. Tristeza e comida são incompatíveis” (Bakhtin, 1987: 247). Em vez do
ato de comer se constituir como uma forma de encontro do homem com o mundo, passa a ser
a negação do prazer (e do próprio mundo) em função de ideais estéticos.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 250
Retomo aqui a discussão sobre a escolaridade. Será que ela é tão determinante assim na
adesão ao culto ao corpo ou a padrões corporais como a magreza extrema? Qual o grau de
escolaridade das mulheres acima? Montei uma tabela para configurar um perfil mais nítido
das mulheres:
Tabela 7 - Escolaridade apenas das mulheres com Distúrbio Alimentar
Idade
Escolaridade
Área de
formação
Profissão Renda Altura
Peso
Mulher
1
30 Superior
completo
Economia Economista + de
5.000,00
1,68 52 Kgs
Mulher
6
19 Superior
incompleto
Relações
internacionais
Professora de
línguas
+ de
5.000,00
1,65, 56 kgs
Mulher
10
18 Superior
incompleto
Educação
Física
Orientadora 1.300 a
2.600
1,62 48 Kgs
Mulher
18
23 Superior
completo
Educação
Física
Professora de
ginástica
+ de
5.000,00
1,58 54 Kgs
Mulher
68
34 Pós-Graduação Humanas Professora
universitária
2600,00 a
5.200,00
1,58 45 kgs
Mulher
51
34 Superior
completo
Economia Não exerce + de
5.000,00
1,67 51 Kgs
Mulher
70
30 Superior
completo
Artes
Plásticas
Não exerce 2600,00 a
5.200,00
1,70 48 Kgs
Mulher
71
80
32 Superior
completo
Nutrição - - 1,70 45 Kgs
Como podemos ver, todas são escolarizadas; das oito, seis têm curso superior completo
e as outras duas estão terminando o curso superior. Três são da área biológica, sendo que uma
de nutrição e as outras duas, de educação física. Duas o estavam trabalhando no momento
da pesquisa, embora sejam formadas. São mulheres atuantes, que lêem, estão no mercado de
trabalho, têm acesso à informação. A maioria ganha bem, com renda acima de RS 5.000,00;
mas isto também não é determinante, pois outras duas se situam abaixo deste patamar. Então
o que faz com que uma mulher enverede por um caminho tão tortuoso? Volto a afirmar que
futilidade também não explica este comportamento. Falta de informação também não. Meros
distúrbios psicológicos? Também não acredito nesta explicação. Ao meu ver o que explica o
sacrifício e a dor, sobretudo emocional de passar por esta situação é a existência de rígidos
modelos corporais, da associação entre magreza e felicidade, da necessidade de aceitação que
todas nós, no nosso âmago partilhamos. Se perigos no processo de culto ao corpo, também
seduções... Sentir-se bela, desejada, olhada... Sem falar na sensação positiva de controle
sobre as pulsões, dentre elas, a fome, controle este que nos é apregoado como uma vitória do
80
Esta moça não chegou a ser entrevistada, pois faleceu em 2004, vítima de anorexia. Foram feitos apenas
alguns contatos com ela, mas superficiais. A entrevista foi marcada e estava prevista para final de 2004,
mas não chegou a ser realizada. Embora não tenhamos dados precisos sobre sua história, a mantivemos na
tese como um indicador de que a anorexia pode ser fatal.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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espírito sobre o corpo. Mas é claro que tudo isso é contraditório, pois somos tão fortes que
controlamos um impulso biológico – comer -, mas tão frágeis que mergulhamos de cabeça nas
coerções estéticas de nossa época e ficamos chafurdando no limbo, até que com muito esforço
e tratamento algumas conseguem alterar sua percepção do mundo e de si mesmas e se salvam,
enquanto outras morrem.
Como entender teoricamente os sentidos da opção pelo corpo extremamente magro?
A tendência à magreza é corrente no meio da moda, principalmente nos Estados Unidos
e na Europa. Recentemente aconteceram surtos de anorexia e bulimia na Argentina e na
Inglaterra. Este último país chegou a criar um código de conduta, segundo o qual as revistas
de moda deveriam exibir modelos de diferentes biótipos (Ciência Hoje, vol.28, número 164,
setembro de 2000). Segundo Del Priori, “As carnudas estrelas do anos 50, como Marilyn
Monroe, Sophia Loren ou Anita Ekberg, foram substituídas, nos anos 60, por criaturas
esquálidas. O modelo? Certa Twiggy, uma inglesa sardenta e seus epígonos: Kate Moss,
Claudia Schiffer, entre outras. Nossa época lipofóbica deixou pra trás o padrão de estética
burguês que associava riqueza e gordura. A estigmatização dos gordos e gordas é produto do
fosso cada vez mais profundo entre identidade social e identidade virtual (...). Nesta lógica, o
corpo precisa refletir o controle narcísico dos apetites, das pulsões, das fraquezas. Ai
daquelas que não se controlam frente ao prato de batatas fritas! Vencidas pela gula, as
gordas são consideradas perdedoras, inspirando, segundo pesquisadores, imagens ligadas à
‘piedade’ e ‘pena’. Tornar-se um saco de ossos parece o ideal da mulher contemporânea,
mulheres que habitam um mundo em que milhares morrem de fome. Regimes obsessivos
associados à estética do corpo multiplicam-se nas revistas femininas que consagram números
inteiros com terríveis títulos do tipo: ‘última chance antes do verão!’ O espelho retruca:
‘nunca bastante magra’. A retórica sobre a magreza não pode ser mais repressiva” (Del
Priori: 89/90).
No Brasil, está havendo uma incorporação deste modelo, e tão enfaticamente que, por
ocasião do Morumbi Fashion do ano de 1999, uma das produtoras de moda disse que gostaria
de lançar uma contra-proposta, e precisava de “modelos brasileiras que ainda tivessem peito e
bunda”, mas que estava muito difícil encontrá-las. Isto num país como o Brasil, onde as
mulheres, biologicamente, tendem a ter estas curvas, mas culturalmente, de uns tempos para
cá, vem sendo induzidas a perdê-las. Atualmente, físicos como os de Marta Rocha não fazem
tanto sucesso. Segundo Viana (2000), o culto às modelos e atrizes magérrimas provoca uma
mudança nos padrões sociais de beleza, pressionando as pessoas a rejeitar, mesmo que
inconscientemente, as formas generosas: “O modelo de beleza imposto pela sociedade atual é
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 252
de um corpo quase cadavérico” (Viana, Ciência Hoje, vol.28, número 164, setembro de
2000). Segundo a autora, esta tirania desvaloriza aspectos relacionados à saúde e à
constituição física da população brasileira, que, ao contrário da mulher européia, não se
caracteriza pela magreza. As tabelas de peso e de altura dos livros estrangeiros não se
adequam ao nosso perfil.
Mas o pior, ao meu ver, é que as mulheres brasileiras ademais de tentarem
desesperadamente aproximar-se do padrão estabelecido, também se esquecem que este corpo
padronizado é um produto social e passam a considerar natural associar magreza à beleza.
Esquecem-se de que, como nos alertava Mauss, onde acreditávamos ter a expressão de uma
naturalidade, existe a ação de técnicas que são produtos sociais. Ou seja, como nos mostra
Lucero (1995), a sociedade industrial consome avidamente tudo que se lhe apresenta e deixa
de refletir sobre isso, consumindo tudo que diga respeito ao corpo, produzindo assim o
chamado culto ao corpo. Desta maneira, não se pensa ativamente sobre estas práticas: o corpo
perfeito passa a ser um produto padronizado
81
e, como salienta Chagas (1995), a mídia sufoca
o singular, as formas alternativas de pensar o corpo
82
.
E esta massificação também serve às ideologias de controle, como diz uma das
entrevistadas:
“Massifica porque é melhor, né? O que na massa é mais fácil controlar, tudo que
diferencia é difícil de eu pegar, o que se massifica é fácil de eu conter, é fácil de eu
achar, ele ocupa muito espaço e demora mais pra fugir, não tem liberdade” (Mulher 21,
44 anos).
Outra entrevistada diz:
“Eu acho que esta é a questão da modernidade, quer dizer, você está sempre no pode,
não pode, no sim e no não, no que que eu sou, você despersonaliza, mas a função do
despersonalizar é ele ser um veículo de segurança do próprio homem, se eu bem, se eu
81
Na dissertação de Mestrado de Eliasna Pardo Chagas, intitulada “Educação Física: Reflexo das Concepções
Dominantes Sobre o Controle do Corpo Feminino” , UFSM, 1991, a autora, através da via teórica da
indústria cultural e da sua análise sobre a escola de Frankfurt, problematiza o corpo feminino e sua
utilização na lógica do mercado capitalista.
82
Numa das ocasiões em que a pesquisadora visitou uma clínica de estética para colher informações para o
projeto, algumas mulheres que estavam em tratamento começaram a comentar o quanto a atriz Cláudia
Gimenez estava gorda, e como ela tinha coragem de se deixar fotografar, como era absurdo ela afirmar em
revistas e entrevistas que se achava bonita, que era muito estranho ela o sentir vergonha de ser tão
gorda. Ou seja, para as mulheres da clínica, era inaceitável que Cláudia Gimenez se achasse bonita e fosse
assim considerada, demonstrando que, para estas mulheres, o único padrão de beleza é aquele
representado pelos corpos magros. A respeito do funcionamento do imaginário social da gordura e da
obesidade, ver o artigo de Claude Fischler “Obeso benigno, Obeso Maligno”, In: Políticas do Corpo,org.
Denize Berluzzi de Sant’Ana, São Paulo, Estação Liberdade, 1995.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 253
igual então eu não sou um desvio, então eu não tenho que me preocupar” (Mulher 30,
51 anos)
Assim, por mais que a magreza seja prejudicial à saúde, ela é confortável do ponto de
vista da aceitação, da possibilidade de desejo da mulher alcançar o corpo que ela aprendeu a
ver como bonito.
Alguns dados colhidos na pesquisa de campo podem nos auxiliar a compreender esta
tendência à magreza. Na busca deste modelo corporal, várias mulheres têm ingerido uma
quantidade de alimentos inferior às suas necessidades orgânicas, bem como dedicado muitas
horas por dia à prática de exercício, combinação que não é simples, pois os exercícios
potencializam um gasto de energia que, não sendo reposto porque as mulheres estão de dieta,
ocasionará fadiga, perda de concentração e memória, problemas gástricos e outros. Além
disto, a dinâmica dos exercícios pressupõe que eles sejam feitos ao menos três vezes por
semana durante algumas horas, implicando um longo período dedicado ao culto ao corpo.
Entre os depoimentos colhidos, alguns são alarmantes:
“Tomo água para disfarçar a fome. Não almocei antes de vir para cá. Vou tentar o
jantar. Comprei maçãs, vou comer uma antes de dormir (...). Nunca janto. No máximo,
almoço uma salada, às vezes um pouco de frango também. Muitas vezes, vou dormir com
fome, mas não ligo. Sinto-me magra, em forma. A beleza compensa o sacrifício. Se não
consigo dormir, levanto e tomo um copo de leite diet. Quero ficar em forma para o
verão” (Mulher 68, 34 anos).
As mulheres vitimadas pela anorexia afirmam que adoram ser magras, sofrem por ter
que comer, são freqüentemente hospitalizadas e não conseguem mais se pensar como bonitas
de outra forma que não seja através da magreza e, assim, não conseguem sair deste círculo
vicioso. Como vimos, são casos em que não basta ter acesso à informação para que o
comportamento se altere, uma vez que através de mecanismos de socialização e construção da
identidade, certos valores foram incorporados e fazem parte do universo simbólico a tal ponto
que dificilmente chegam a ser alterados. Em casos como estes, é preciso, antes de postular
que apenas a informação resolve, mudar a visão de mundo e reordenar as concepções
corporais femininas, processos complexos e demorados, para que possa surgir então uma
diferente imagem de si e dos valores fundamentais e uma posterior mudança de atitude.
Vários outros dados de campo apontam para o culto exagerado do corpo e da magreza,
além de comentários colhidos na imprensa, como está dito, por exemplo, na fala de uma das
organizadoras do Morumbi Fashion”: “quadris largos, nem pensar. O peso deve ser de 20
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 254
pontos a menos que a altura”. Ou seja, se uma mulher tem 1,73 (altura mínima neste meio)
não pode pesar mais que 51 quilos. “A cintura deve ter no máximo, 60 cm
83
. Tais afirmações
mostram o quanto a estética da magreza predomina neste meio
84
e são incorporadas por
mulheres comuns e aplicadas; então se uma mulher tem 1,60 m de altura, passa a acreditar
que para ser considerada bonita deve pesar no máximo 40 quilos, e isso é possível com
dietas rígidas, que muitas vezes induzem a casos de anorexia.
Ademais, como salientam Queiroz e Otta, na busca das mulheres por um corpo magro
elas acabam consumindo produtos tecnologicamente obtidos, tais como drogas para
emagrecer, ou recorrendo a práticas que podem melhorar sua aparência e auto-estima, mas
que também podem levar à patologia.
Bordo (1997) afirma que “O corpo magro da pessoa com anorexia apresenta-se
evidentemente como uma caricatura do ideal contemporâneo de esbeltez exagerada para as
mulheres, um ideal que apesar da resistência irônica das diferenças raciais e étnicas, tornou-
se a norma para as mulheres de hoje. Mas a magreza é apenas a ponta do iceberg, pois ela
exige por si mesma uma interpretação, que é desencadeada com a inscrição
dolorosamente literal no corpo da pessoa com anorexia das normas que regem a construção
da feminilidade contemporânea. Esta construção é um impasse que impõe ideais e diretrizes
contraditórias. Por um lado, nossa cultura apregoa concepções domésticas de feminilidade,
com a mulher como principal nutridora emocional e física. As regras dessa construção de
feminilidade exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si
próprias, e que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo de alimentação e cuidado
consigo mesmas (...) O controle do apetite feminino - por poder público, independência,
gratificação sexual - deve ser contido e o espaço público que se permite às mulheres deve ser
circunscrito, limitado” (Bordo, 1997: 26).
A autora também afirma que, em virtude de representações de gênero, ao mesmo tempo
em que continuam sendo ensinadas às mulheres jovens virtudes “tradicionalmente femininas”,
na medida em que elas ingressam em áreas profissionais, também precisam incorporar
valores e medidas “masculinas” desse âmbito - autocontrole, determinação, calma, disciplina
emocional, domínio etc. “Nossos corpos, quando nos arrastamos todos os dias para a
ginástica e resistimos ferozmente às nossas fomes e aos nossos desejos de mimar a nós
mesmas, também estão se tornando cada vez mais habituados com as virtudes “masculinas
de controle e autodomínio. As anoréxicas as perseguem com dedicação ingênua, inabalável.
83
Esta informação foi veiculada pelo Jornal “Folha de São Paulo”.
84
Informação da revista Época, Ano II, n 70, agosto de 1999, ed. Globo.
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Página 255
‘Energia, disciplina, meu próprio corpo me manterá andando’, diz a ex-anoréxica Aimée Liu,
lembrando-se dos dias em que passava fome, ‘combustível psíquico, não preciso de nada e de
mais ninguém. Serei pelo menos dona do meu próprio corpo, eu juro’” (Bordo, 1997: 26
apud Liu, 1979).
Mulher 70 diz algo muito parecido:
“Às vezes, depois de alguns dias comendo uma vez por dia, sinto fome, mas não me
importo porque sou mais forte do que ela. Não comer mesmo quando se tem fome ou
pior, desejo pela comida, requer muita força de vontade. Sei que posso moldar meu
corpo como eu quiser, depende muito mais de mim do que dos outros.” (Mulher 70, 30
anos).
A autora enfatiza os aspectos negativos da anorexia: “Funcionalmente, os sintomas da
desordem da anorexia isolam, enfraquecem e minam as afetadas; ao mesmo tempo,
transformam a vida do corpo num abrangente fetiche todo-poderoso, ao lado do qual todos
os objetos parecem pálidos e irreais”( ibidem, id.: 29).
Quais o as referências femininas destas mulheres que aderem à magreza extrema?
Uma das principais, como já foi dito, são as modelos da moda. Outras são as atrizes famosas.
Bordo afirma que “uma escala de representações e imagens contemporâneas tem codificado
a transcendência do apetite feminino e de sua demonstração pública do ideal de esbeltez em
termos de poder, vontade, possibilidade de sucesso na área profissional e assim por diante.
Essas associações são conduzidas pelas supermulheres magras do horário nobre da televisão
e dos filmes populares e promovidas em anúncios de propaganda e em artigos que aparecem
em revistas femininas, livros de dieta e publicações sobre o controle de peso.” (ibidem, id. pg
34).
Tais mulheres são apresentadas hoje em dia como divas da beleza e influenciam outras
a se aproximar deste padrão. um outro dado interessante apontado pelas entrevistadas:
muitas afirmam que sabem que os homens brasileiros ou estrangeiros preferem as mulheres
mais “cheias” como, por exemplo, Vera Fischer, bastante citada pelos homens como uma
mulher bonita. No entanto, elas preferem estar magras e elegem a atriz Carolina Ferraz, a
modelo Adriane Galisteu e a atriz Débora Secco (todas bem magras) como mulheres bonitas.
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Página 256
Mas a verdadeira ícone, a mais citada, foi Gisele Bündchen, que, segundo edição de
dezembro de 2001 da revista norte americana “W”, é citada como “referência universal de
beleza”.
Segundo Queiroz e Otta, homens com idade entre 18 e 85 consideram mulheres de peso
normal e com RCQ
85
baixo (0,70) especialmente atraentes, femininas e saudáveis. Desvios do
peso normal, tanto para mais quanto para menos, reduzem a atratividade. Os pesquisadores
afirmam que nas investigações em que compararam avaliações masculinas e femininas, foi
constado que o peso ideal feminino, aos olhos dos homens, é um pouco maior que aos olhos
das mulheres (Queiroz e Otta, 2000: 45). A pesquisa de Goldemberg (2004) obteve o mesmo
dado: “Doenças como a anorexia e a bulimia tornaram-se uma epidemia nos últimos anos,
em uma geração que cresceu tentando imitar o corpo de Cindy Crawford, Linda Evangelista,
Claudia Sciffer e, mais recentemente, da brasileira Gisele Bündchen. que os homens que
responderam ao meu questionário elegeram como suas musas Sheila Carvalho, Luma de
Oliveira, Luana Piovanni, Mônica Carvalho e outras ‘gostosas’ que estão longe das medidas
das mulheres magérrimas da passarela” (Goldemberg, 2004: 43).
85
RCQ significa relação cintura-quadril.
Figura 17 - Gisele Bündchen
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 257
As minhas entrevistadas percebem bem este divórcio entre o que os homens acham
bonito e o que elas querem alcançar:
“É sempre assim. Tanto é que meu ex namorado sempre falava quando eu falava "Ah, eu
preciso emagrecer, eu engordei", "imagina, você não tá, é coisa da sua cabeça". Os
homens acham que você legal, você é que se meio distorcida, você nunca está bem,
por mais que esteja você sempre quer emagrecer um ou dois quilos, nunca emagreceu o
suficiente, sempre tem que perder mais um pouco” (Mulher 5, 22 anos).
“Eu tive anorexia, cheguei a pesar 42 quilos e estava achando lindo, meu ex-marido
dizia, ‘Você está um horror de tão feia, a coisa mais sexy que eu vejo numa mulher é
quando ela põe uma calça mais apertada e salta aquela dobrinha do lado’. Eu querendo
secar e ele me implorando pra engordar” (Mulher 68, 34 anos).
“A mulher é sempre neurótica, quer estar sempre magra, magra, magra. O meu
namorado acha que a mulher tem que ter o que pegar, não pode ser muito magra. Ele
fala assim, que não tem graça mulher magra, ‘pra que eu vou namorar um esqueleto?’”
(Mulher 25, 19 anos).
Assim, o corpo esbelto, embora seja indicado pelas mulheres como um trunfo na
conquista de parceiros, agrada menos aos homens e mais, às próprias mulheres, sendo alvo e
mecanismo de competição entre elas.
Foi-se o tempo em que mulheres de formas abundantes eram os referenciais estéticos
valorizados. Goldenberg e Ramos citam Nélson Rodrigues, que muitas décadas atrás havia
notado a mudança no padrão estético, ainda mais evidente hoje. “A paisagem carioca anda
escassa de gordas. Não mais quadris monumentais. E, outro dia, um parteiro fazia-me a
confidência amarga: ‘bacias estreitas’” (Goldenberg e Ramos, 2002: 30). Estamos longe das
“encantadoras ancas femininas” descritas por Gilberto Freyre (1986). Hoje a gordura ou as
formas mais opulentas são vistas como desleixo, como falta do investimento pessoal em si
mesma, quase como um defeito que atesta uma falha no caráter, uma preguiça (hoje
condenável pela utopia do corpo perfeita e da “malhação”)
86
. Mulher 68 diz que:
“Não importa se os outros me acham muito magra. Eu não me sinto assim, acho que
estou sempre com uns quilos a mais do que deveria. Meu namorado traz doces e implora
para eu engordar, diz que acha que eu vou quebrar de uma hora para outra e ele tem
aflição. Se eu comer fico culpada e acho que estou gorda. Fico sempre dividida entre
86
Talvez, há alguns anos atrás, ser chamada de gostosa” fosse um elogio. Hoje, mulheres como Adriane
Galisteu afirmam: “Se me chamam de gostosa, fico deprimida. Me sinto coxuda, bunduda, gorda...”
(Revista da Folha, 3/9/2000).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 258
passar vontade e ficar gorda. Quando não resisto e como, tomo laxantes e desconto na
academia, fazendo várias horas de aeróbica.” (Mulher 68, 34 anos)
Segundo Fischer (1995), vivemos uma cultura lipófoba, caracterizada por uma rejeição
maníaca à obesidade. Até simpatizamos com alguns gordos, mas, no geral, suspeitamos deles:
“a fonte principal do paradoxo é que a imagem do gordo é profundamente ambivalente (...).
Através de nossos corpos passamos significados corporais muito profundos. Um dos mais
importantes é o seguinte: a corpulência traduz aos olhos de todos a parte de comida que nós
nos atribuímos, isto é, simbolicamente, a parte que tomamos para nós, legitimamente ou não,
na distribuição da riqueza social. Nosso corpo é um signo imediatamente interpretável por
todos de nossa adesão ao vínculo social, de nossa lealdade às regras de distribuição e
reciprocidade. Uma suspeita pesa, portanto, sobre os gordos. Mas se não podem emagrecer,
eles têm uma possibilidade de se redimir desta suspeita: precisam proceder a uma espécie de
restituição simbólica, aceitando desempenhar os papéis sociais que se esperam deles”
(Fischer, 1995: 70). O autor realizou uma pesquisa na França com 20 entrevistas sobre a
percepção da gordura masculina. Os retratos que emergiam das respostas confirmam a
existência de um duplo estereótipo do gordo. “O primeiro é o de um homem roliço,
extrovertido, dotado para as relações sociais, bancando voluntariamente o brincalhão,
contando histórias no fim dos banquetes, sofrendo provavelmente por sua corpulência em seu
foro íntimo, mas nada deixando transparecer. O segundo é bem diferente. É um doente ou um
depressivo, um egoísta desenfreado ou um irresponsável sem o controle sobre si mesmo. O
primeiro é um gordo simpático. O segundo, um obeso que suscita a reprovação, quando
não a aversão.” (Fischler, 1995: 71). É claro que cada cultura determina um limite para
distinguir as categorias de gordos, magros, obesos, mas a pesquisa concluiu que “Era preciso
sem dúvida, no passado, ser mais gordo do que hoje para ser julgado obeso e bem menos
magro para ser considerado magro” (Fischler, 1995: 79).
Em vez de vítimas de suas glândulas e de sua hereditariedade, a pesquisa revela que na
maioria dos casos eles são vistos como os únicos culpados por sua condição, pois a gordura
está ligada à falta de controle do apetite: sobre o gordo recai um julgamento moral. E o
inverso é verdadeiro: ser magro é, por oposição, ser controlado e, como vimos, nossa
sociedade valoriza o controle das pulsões, mais ainda se ele servir ao fim, hoje nobre, da
construção de um corpo perfeito. Sobre o gordo também recai o estigma de ser sedentário e
isto, numa cultura que tem valorizado ao extremo a atividade física, faz aumentar a culpa
sobre o gordo.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 259
Lembremos que Rodrigues (1999), ao discutir as mudanças de sensibilidade da Idade
Média para a Idade Moderna, já nos alertava que: “Os seres bem apessoados, os homens
limpos, banhados, penteados, os indivíduos atentos aos detalhes de seus corpos começaram,
de modo cada vez mais intenso e sofisticado, a ser considerados também como pessoas
confiáveis e aproximáveis, como gente com quem fosse possível fazer amizades, como seres a
quem se pudessem abrir as portas, com quem fosse admissível partilhar refeições, casar,
negociar... Em razão dos desdobramentos dessa história, estamos hoje fadados a reagir
visceralmente, com asco mesmo, contra aqueles que discrepem dos ditames desta
sensibilidade” (Rodrigues, 1999: 168).
Na mesma lógica de raciocínio, e numa época em que vigoram as lógicas de culto ao
corpo e a beleza, os feios, gordos, e flácidos nos aparecem hoje como displicentes. Nossa
sensibilidade os rejeita. Num tempo onde ser belo (ou pelo menos, tentar sê-lo) é um
imperativo e mais, passa pelo esforço do indivíduo, recusar-se ou não poder aderir a isso
aparece aos nossos olhos como falta de caráter.
Quando questionadas se existe alguma discriminação sobre o gordo, as mulheres
responderam:
“Há uma discriminação contra as pessoas obesas, mais do que no passado, muito mais.
Hoje ser obeso dá vergonha, mais do que no passado” (Mulher 16, 36 anos)
“Olha é muito difícil, a sociedade condena as pessoas fora do padrão. Tanto que existe
até um trabalho aí, com crianças obesas, que eles tinham cartas, uma era de
paraplégico, outra de débil-mental e uma carta de obesa e as crianças na faixa de 4-5
anos tinham que ler e escolher quem eles queriam que não fosse o seu amigo. O maior
número de crianças escolheu o obeso. Então a obesidade é um fator limitante, isto com
crianças que não tem conhecimento e não estão contaminadas com nada, que nós já
temos conhecimento e estamos contaminados, por informação, cultura, aspecto
pessoal, eles não, eles são considerados puros, preferem ter um amigo numa cadeira de
rodas do que um amigo obeso” (Mulher 45, 43 anos).
“Sim discrimina, a gente não quer ser preconceituoso (...) mas isto começa desde cedo,
nas aulas de esporte, na escola, na aula de educação física, o gordinho sempre excluído
do time, ele é sempre o último a ser escolhido (...) porque você vê que ele é discriminado
por causa da aparência dele, você não sabe se ele é um bom jogador ou não”” (Mulher
54, 26 anos)
“Muito. As roupas, hoje é tudo menor, as cadeiras, hoje em dia, é difícil eles arranjarem
uma cadeira de cinema, (...) eu acho que eles pensam pro lado da mídia, da estética,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 260
você tem que ser daquele jeito, então tudo é feito pra aquela pessoa” (Mulher 4, 18
anos)
Mas, porque cultuamos a magreza? Para as entrevistadas, a grande vilã é a moda. A ela
atribuem a redução do tamanho das roupas, gerando a necessidade da magreza extrema, bem
como o fato de que a roupa tem que aparecer mais que a própria mulher que a veste, e que
acaba sendo um mero cabide ambulante. Associa-se magreza à elegância e elegância à alta
costura. Tudo isto com o aval e incentivo da mídia e do capitalismo, que, ávidos por aumentar
os lucros, vendem não apenas, mas o próprio corpo, que pode ser comprado graças aos
investimentos em alimentação, cirurgia plástica, malhação, entre outros:
“Fizeram a gente cultuar a magreza porque antigamente não era assim, né... Desde a
época da Twigg que começou o culto à magreza, porque na verdade qualquer roupa que
colocasse nela caía bem. Então hoje em dia a alta-costura (...) faz as roupas para as
magras, eles querem uma mulher que seja reta na frente e atrás, e aí colocam uma roupa
nela que fica bem” (Mulher 7, 39 anos).
“As pessoa querem ser magras porque o comércio fez isso; por outro lado, “light” é
muito mais caro que o produto normal (...). Em termos do comércio da moda, quanto
menor a roupa, menos tecido eles gastam (...). Os números das lojas de roupa estão
sempre cada vez menores, cada vez que você chega a numeração é menor, é menor, é
menor, mas você não quer aumentar o mero da sua calça, você emagrece mais pra
você entrar no número da sua calça e não ter a sensação, mesmo que seja psicológica, de
que você aumentou, então é uma coisa que vai sendo obrigada aos poucos, sem a gente
perceber” (Mulher 8, 25 anos).
“Soube de uma grife de Paris, que assim, a pessoa mais rechonchuda gasta muito mais
pano, fora que tem que ficar fazendo muito mais ajustes, então esta coisa da alta-costura,
de uma certa maneira, pressionou esta coisa da magreza, tá, porque fica muito mais fácil
você montar um desfile com uma pessoa cadavérica, com uma coisa plástica, com um ser
plástico”. (Mulher 21, 44 anos).
“É a própria mídia, mulher tem que ser muito magra, porque que a manequim é magra?
Porque é onde tudo começou. Se a gente for analisar as mulheres, o padrão de beleza
feminino, é horrível, não tem nada de frente, nada de costas, mas porque que elas têm
que ser assim? Para poder aparecer a roupa, é um cabide ambulante que tem pernas,
para mostrar a roupa. A mídia começou por causa disto, na verdade ninguém estava
preocupado com o padrão de beleza feminino, estava preocupado em realçar a
importância de uma roupa. (...)” (Mulher 51, 34 anos).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 261
Nesta mesma linha de raciocínio, percebemos que talvez o culto à boa forma e sua
constante exibição enquanto espetáculo sejam menos o reflexo de uma aparente liberação
física e sexual do que indícios de uma nova moralidade, que prega a conformidade com um
padrão estético específico. Goldenberg e Ramos (2002) citam algumas reportagens de jornal e
revistas
87
em que mulheres (famosas ou não) afirmam que o problema de tirar a roupa diante
de câmeras ou parceiros não está no pudor de ficarem nuas, mas no medo de não estarem com
o corpo suficientemente bonito. Os pesquisadores citam alguns exemplos: “Não gosto de ficar
nua. Nem de biquíni. Tenho a impressão de que todo mundo está me observando, olhando
direto para a minha celulite” (administradora de empresas, 31 anos); “é mais fácil tirar a roupa
para um fotógrafo, com toda aquela produção, do que ficar nua a dois sem retoques” (Marisa
Orth, atriz, 37 anos), as mulheres que posam para a Playboy, hoje, são mais paranóicas com
o físico do que em qualquer outra época. Querem saber o que o computador pode retocar, se o
nariz vai sair daquele jeito, têm crise de choro” (Kaká Moraes, maquiador e produtor das
capas da Playboy).
As mulheres por mim entrevistadas confirmam este dado: expor a barriga, usar calças de
lycra coladas e na altura do púbis, os seios cobertos por tops minúsculos só depende de saber
se o corpo está “malhado” o suficiente para isso, não passa pelo pudor do corpo em si. Mesmo
com relação às roupas de banho, muitas afirmaram que não têm pudor em usar biquíni tipo
“fio-dental”, mas que não o fazem porque não estão com os glúteos firmes o bastante para
expô-los.
Em sua obra O processo civilizador (1990), Elias argumentou que é possível falar em
moral estética justamente no período da modernidade, que parecia apontar para uma liberdade
feminina nunca antes vista. Ele cita como exemplo a evolução dos trajes de banho, mostrando
que quanto mais expostos estavam os corpos, mais se exigia de homens e mulheres um auto-
controle no que diz respeito às suas pulsões, contrariamente ao que se passava quando o
decoro os mantinha escondidos. Vale ressaltar que na maioria das praias ou comunidades que
adotam o nudismo os freqüentadores também se valem de regras rígidas, punindo aqueles que
permitem o afloramento das pulsões fora dos códigos estabelecidos. Ou seja, pode-se dizer
que momentos de aparente relaxamento das regras, ocorrem na verdade dentro de contextos
em que alto grau de controle é esperado. Sendo assim, a aparente liberação do corpo, a ênfase
de que o indivíduo pode ter o corpo que quiser ter, os investimentos constantes na produção
do eu, podem sugerir seu inverso, apontando para um processo civilizador.
87
“Toda nudez será complicada” (O globo, 2/7/2000), “Ficar sem roupa, que delícia” (Cláudia, maio de 2001),
“Elas estão loucas” (Folha de São Paulo, 3/9/2000).
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 262
E como a ambigüidade parece ser indissociável do processo de culto ao corpo, adquirir
o corpo “malhado” ou “perfeito” conduz à inclusão da mulher no rol das mulheres felizes,
desejadas, de sucesso. No entanto, como os parâmetros estão muito altos, por mais que o
corpo esteja “malhado”, nunca é o suficiente, nunca nos parecemos com a moça impecável
dos comerciais de cerveja, de roupas, de cosméticos, de pasta de dente, de tudo... De tão
distante e inalcançável, o modelo leva à frustração, à negação do próprio corpo, à depressão...
Goldenberg observa que a preocupação com a aparência e com a juventude se tornou uma
obsessão entre as cariocas, provocando uma permanente insatisfação com o próprio corpo.
Para ela, o corpo de Leila Diniz era voltado para o prazer, para o livre exercício da
sexualidade; enquanto que o corpo de muitas mulheres hoje é mutilado e controlado e, até
mesmo, apesar do desvelamento do corpo, escondido, pois ele só pode ser mostrado se estiver
perfeito. É incrível como, de fator construtor de identidades, o corpo possa a ser também uma
prisão, cujos carcereiros podem ser a mídia, a moda, o olhar do outro, mas sobretudo, nós
mesmos, que de tão imersos no processo não o enxergamos, e quando o fazemos, também
dele não escapamos.
c) ESPELHAMENTOS: EM QUAIS ESPELHOS AS MULHERES SE MIRAM?
Outra contradição do atual culto ao corpo é que embora o corpo seja visto como
importante na conquista de parceiros afetivos, muitas vezes ele caminha na direção contrária
do desejo masculino. Como já afirmamos, para a maioria dos homens, mulheres muito magras
não são consideradas atraentes; no entanto, a busca pela magreza extrema é hoje muito
intensa, tanto entre modelos e atrizes quanto entre as pessoas comuns, a ponto de estas
mulheres sacrificarem até mesmo a saúde (e o desejo masculino).
Algumas mulheres chegaram a comentar a preferência dos homens por mulheres de
formas mais opulentas e a dissociação entre esta preferência e o modelo que faz sucesso entre
as mulheres. Comentam também que este o é um dilema simples de resolver: mesmo
sabendo que os homens gostam de mulheres “com carne para pegar”, as mulheres são
compelidas a serem magras; então, como lidar com isso? Uma das entrevistadas diz:
“Magra, mas com peito é o padrão que é estabelecido, e que as mulheres gostariam de
ter; e os homens, parece que eles acham legal, mas eles procuram a outra, mais
redondinha, porque talvez a escolha seja de muito tempo atrás. A procura é biológica,
né, o homem tem este instinto, a mulher mais redonda, vem aquela coisa de procriar
mais. Então tem este choque, de um padrão estabelecido que a mulher busca, vi muito
homem que olha a Gisele Bündchen., é a modelo mais bonita do mundo, e não acha ela
bonita, mas nós mulheres achamos ela bonita, gostaríamos de ser magras como ela,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 263
então é uma enxurrada de informações e de coisas que não fecham (Mulher 19, 51
anos) .
Nos questionários fechados perguntei às mulheres para quem elas se produziam. 46%
das mulheres entrevistadas assinalaram apenas para si mesmas; 19% assinalaram para si
mesmas e para as outras mulheres; 14% assinalaram para os homens e para si mesmas e 21%
assinalaram todas as opções:
Algumas das respostas obtidas foram as seguintes:
“Para mim. Eu tenho que estar bem comigo, olhar no espelho e me gostar, eu me arrumo
pra mim. Eu ponho uma calça, se eu acho que está me engordando, eu encosto”
(Mulher 65, 61 anos).
“Para mim. Eu gosto de estar bem magra, mesmo que as outras pessoas não gostem.
Meu parâmetro é a numeração 36, se eu couber nela, está tudo bem. Depois, pra outras
pessoas, porque hoje é muito importante você estar com um corpo bonito, ele é um
cartão de visitas, tem que estar malhado.” (Mulher 68, 34 anos)
“Pra mim mesma. Pra mais ninguém. Eu acho que é para eu me sentir bem comigo
mesma” (Mulher 4, 18 anos)
Gráfico 41 - Para quem você se cuida?
Para quem você se cuida?
14%
21%
46%
19%
para si mesmas
para outras mulheres e para
si mesmas
para os homens e para si
mesmas
para si mesmas, para os
homens e para outras
mulheres
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 264
“Ah, eu acho que ninguém vai dizer que não malha para si, é estranho eu dizer isso
porque eu malho pra mim mesma, porque a prova é que quando eu estou com ou sem
companheiro eu estou malhando igual” (Mulher 16, 36 anos)
“Eu malho muito pra mim, porque eu me sinto melhor, eu fico feliz, é lógico, eu fico
contente do meu marido achar que eu estou bem, que eu magrinha, me elogiar, sabe,
eu fico feliz” (Mulher 3, 29 anos)
“Pra mim mesma, para os outros e para o meu marido (...) Em primeiro lugar pra mim
mesma. O meu marido às vezes até pergunta ‘Nossa, você faz tanta academia, pra quem,
não é pra mim, é?’, eu respondo ‘É para mim!’” (Mulher 1, 30 anos)
“Eu acho, eu me cuido primeiro pra mim, mas eu acho inevitável você estar
simultaneamente se cuidando para os outros e também para os homens, porque se você
não es bem fisicamente, se você não se sente à vontade, você o vai ter um
relacionamento sexual saudável, e se você se sente mal fisicamente, você vai se sentir
inferiorizada frente às outras mulheres, as coisas estão meio intercaladas, mas acho que
em primeiro lugar a gente tem que estar buscando sempre pra si próprio” (Mulher 35, 36
anos).
“Em primeiro lugar eu malho pra mim, pra eu me sentir bem, pra mim mesma, depois
pro meu marido, depois pros outros, pra sociedade... É pra vo passar uma estética
legal, não mostrar desleixo, a moça acabou de, né, engravidou e engordou muito, então,
não se cuida, então...acho que é nesse, nesse ponto de vista assim, para a sociedade, pra
não deixar impressão de desleixo” (Mulher 49, 27 anos).
“Eu tenho isso como profissão, então desde pequenininha que eu gosto, mas eu acho que
de certa forma eu não vou me excluir disto [das mulheres malharem para as mulheres], a
gente sempre malha para os outros olharem, além de você se sentir bem, é para as outras
pessoas olharem” (Mulher 2, 31 anos)
“Tinha até uma propaganda, de uma academia, que as mulheres malham para outras
mulheres, preferem receber um elogio de mulher do que de um homem (...) eu
particularmente malho para mim, para o meu ego, eu sempre pratiquei atividade física
para melhora da minha auto estima e lógico que a gente malha para as outra pessoas
virem te elogiar, nossa você está mais bonita, nossa o seu corpo está bem; mas em
primeiro sempre é para mim, independente de eu estar com alguém ou não, de eu estar
namorando ou não, é para mim. ” (Mulher 54, 26 anos).
46% das entrevistadas afirmou malhar em primeiro lugar para si. Isto se explica por
causa da relação com a auto-estima, pelo prazer de ver seu corpo desabrochar. Poder fazer as
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 265
pazes com o espelho e gostar-se, através da malhação. Uma pesquisa da Avon grande
empresa de cosméticos obteve o mesmo dado: a maioria das mulheres entrevistadas disse
que se embeleza para si própria, e apenas 19% disseram que se enfeitam para os outros.
Segundo a mesma pesquisa, esse índice chega a 30% entre as italianas. O que é enfatizado na
matéria é o mesmo que se encontra nas falas das mulheres: é questão de auto-estima e,
conseqüentemente, de sedução. Aqui a auto-estima es diretamente ligada à própria
construção da identidade, até porque com a ginástica, vêm também outros cuidados com o
corpo, como tratamentos estéticos e alimentação, e tudo isso faparte dos mecanismos de
afirmação e construção do eu.
Mas, logo em seguida, aparecem os outros atores, a saber, os companheiros e as outras
mulheres: é importante estar bem em primeiro lugar consigo, depois com o companheiro. E
como as mulheres percebem a importância da beleza hoje para os relacionamentos afetivos, é
preciso também agradar o parceiro, fazer com que ele se orgulhe de ter uma mulher bonita ao
lado e também estar menos vulnerável à beleza de outras potenciais parceiras.
Já a resposta à questão “para quem você acha que as outras mulheres malham?” apontou
que 52% penam que as mulheres malham em geral para as outras mulheres, 15% acreditam
que a mulher malha para si, 13% entendem que elas malham para os homens e 20% marcaram
todas as opções:
Gráfico 42 - Para quem as mulheres se cuidam
Para quem as mulheres se cuidam
13%
52%
20%
15%
para si mesmas
para os homens
para as mulheres
todas as opções
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“Acho que para elas mesmas e uma parte para os outros. Existe uma concorrência
feminina até desagradável. É uma querendo pisar na outra. Por isso que eu coloco aqui
para as outras mulheres” (Mulher 3, 29 anos)
“Eu acho que é muito pra sociedade, a maioria. Algumas fazem operação ou malham
para elas mesmas, outras não, é completamente para a sociedade, pra se sentir bem na
sociedade, pra ser bonita e todo mundo olhar pra você. Acaba sendo pra se mostrar
(Mulher 4, 18 anos)
“A maioria das mulheres se preocupa com os homens que elas estão olhando, mas muitas
vezes elas são competitivas entre elas mesmas, tipo dentro da academia ela fica olhando
se ela está mais magra que a amiga, como ela está em relação às outras mulheres
também” (Mulher 6, 19 anos)
“Eu acho que a maioria das mulheres malha para outras mulheres, porque a gente vai
pra academia e você é muito olhada, de cima embaixo. Como a gente vê isso” (Mulher 7,
39 anos).
“Então, a gente acha que a gente malha pra gente, mas é mentira, porque o estereótipo
que a gente vive, não foi a gente que criou, então a gente acaba malhando para os
outros, porque senão um monte de coisa a gente ia relevar e deixar passar batido. Por eu
sou mulher eu sei, a gente vai num lugar, a gente sempre olha, sempre comenta, quando
a gente entra num lugar já está sendo observada” (Mulher 8, 25 anos)
“É uma cultura da aceitação social, de você estar dentro dos padrões, a mulherada que
se preocupa com estética faz isso muito mais para os outros, por isso que eu acho que é
uma cultura da aceitação dos padrões do que para ela mesma” (Mulher 16, 36 anos)
“Para as outras mulheres, mulher tem muito disto. Vive disputando, vive ali com a
mulher, a mulher ela tá sempre assim, entende? Às vezes a mulher se arruma mais para a
mulher que para homem” (Mulher 58, 27 anos).
52% afirmaram, sem titubear, que a mulher malha para as outras, reforçando as idéias já
vistas de competição feminina e da necessidade de ser aceita na tribo das malhadas”, o que
significa ser admirada e invejada pelas próprias mulheres. É sabido que as mulheres estão
muito bem informadas sobre os detalhes que precisam exibir para serem consideradas bonitas.
Embora os homens hoje já saibam o que é celulite, estria (provavelmente de tanto as mulheres
chamarem atenção para isso), estes itens são muito mais observados pelas mulheres. Se uma
mulher entrar na sala de aula de short, provavelmente o homem dará uma olhada geral nas
pernas dela e dirá se lhes agradam ou não; já a mulher é diferente, vai olhar primeiro no geral,
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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mas depois vai procurar os detalhes “Será que a perna dela vai balançar se ela andar? Se
cruzar as pernas, vai dar pra ver a celulite? É tá, legal, mas tem uma estria aparecendo!”.
Percebo no vestiário feminino o quanto as mulheres reparam umas nas outras, chegando a
disfarçar, diminuir o ritmo para ver se a outra vai ficar nua e observar cada detalhe do
corpo da outra. É quase um escrutínio, detalhado, do corpo alheio.
A fala da Mulher 21 atesta bem os paradoxos desta cultura do corpo:
“É, normalmente assim né, eu malho pra mim né? Agora, se eu for responder entre as
outras mulheres, as mulheres se arrumam para as outras mulheres, depois elas se
arrumam para os homens, por último elas se arrumam para elas mesmas. É um mundo
de competitividade... É assim: ficar parecido, ficar igual e também competir (...)
(Mulher 21, 44 anos).
que ter um corpo perfeito passa pelos mecanismos de aceitação da pessoa para o
grupo e para si mesma, a necessidade de se igualar a um padrão de corpo, mas ao mesmo
tempo, como vivemos uma cultura da perfeição, também temos que nos destacar, é preciso ser
melhor do que os outros e neste caso, melhor do que as outras mulheres, e isto passa por ter
um corpo melhor do que o das outras. Orientados pela lógica do individualismo competitivo,
se por um lado padronizamos o corpo, também queremos nos diferenciar e competir através
dele. Neste complexo jogo de reflexos e espelhamentos, as outras mulheres se configuram
como um dos espelhos mais rigorosos. E os modelos que buscam alcançar também são os das
outras, sejam elas atrizes, sejam modelos ou mesmo a colega “mais sarada”. Para Del Priori, a
mulher é convertida em miragem, “ela não é o que se vê, mas o que se quer ver” (Del Priori,
2000: 94).
Tomando por referência as super-mulheres das capas da Playboy ou das atrizes de
destaque, almeja-se um corpo dificilmente alcançável, um corpo sem idade, sem as marcas do
tempo, esculpido como estátua de bronze ou rmore. Corpos que, muitas vezes, para
aparecerem na mídia, passaram por retoques como maquiagem corretiva, não só no rosto, mas
em todo corpo, além de recursos técnicos de manipulação de imagens como o programa
“fotoshop”, que permite retocar vários aspectos da imagem. Entretanto, tais mulheres são
exibidas como “naturalmente bonitas”, fazendo com que esqueçamos que são mulheres cujos
corpos foram construídos com malhação, mas também com os mencionados artifícios.
Passamos, pois, a acreditar que é possível alcançar esta perfeição, e que se não chegamos é
porque nos faltaram disciplina, recursos financeiros, força de vontade para modificar os
defeitos que a genética nos deu; mas que com mais uma plástica talvez pudéssemos chegar
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lá... Ou com mais um regime... Quem sabe com mais uma lipo, ou mais um botox... Uma
prótese de glúteos... Uma escova progressiva ou definitiva nos cabelos ondulados... Quem
sabe com vinte sessões de drenagem linfática, mais vinte de estimulação russa, mais vinte
injeções no abdômen para reduzir a gordura... E assim infinitamente, pois uma miragem traz
em seu bojo o inalcançável, e é isto que percebi por meio da pesquisa: a mulher deseja um
corpo que não é o seu.
Primeiro porque o corpo almejado é um modelo institucionalizado, padronizado e que
se pode, de uma certa maneira, comprar; segundo, porque o próprio corpo está sempre menos
malhado do que se gostaria que estivesse. E nem o olhar do companheiro, mesmo quando de
aprovação, pode salvar as mulheres deste aprisionamento de eterna e inalcançável perfeição.
Por mais que eles desejem mulheres de carne e osso, até com suas celulites e dobrinhas, as
mulheres não aceitam ser assim, elas querem estar esculpidas. Uma entrevistada disse:
“Quando a gente fala assim, ‘nossa, aquela mulher da Tv está com o abdômen rasgado’,
se você fala isso para seu namorado, ele fala assim ‘ela é tão feia, é legal ter onde
pegar’, mesmo assim você não confia nestas informações, a gente fala, quero ser magra,
não quero ter gordura, vendo como a mulher é, mesmo sabendo qual é o padrão que
as pessoas acham até mais bonito, mas mesmo assim a gente está com esta imposição de
ser magra e magra...” (Mulher 54, 26 anos).
Dirce deFreire Costa, psicanalista, observa: “Percebo uma tentativa, na maioria dos
meus clientes, de provar para suas companheiras que estão satisfeitos com seus corpos, que
chegam mesmo a achá-los belos. Mas eles não são sequer ouvidos, pois as suas afirmações
chegam aos ouvidos delas como um reles afago numa ferida narcísica, não podendo tais
afirmações serem consideradas como verdadeiras” (Costa, apud Del Priori, 97).
Assim, cabe perguntar: qual o espelho de beleza no qual estas mulheres se miram? Para
quem elas se produzem por horas a fio? Se a construção da identidade passa pelo encontro e
conflito com vários “outros”, quais são estes, no caso destas mulheres? A quem pertencem
seus corpos, tão duramente esculpidos? Como explicar condutas que parecem libertadoras,
mas que estão no registro da sujeição? Que parecem irracionais, mas estão investidas de
cálculo e de racionalidade?
Weber chamou nossa atenção para a racionalidade como uma das características da
modernidade, mas também afirmou que o destino de uma sociedade extremamente
racionalizada em termos técnicos, mas sem destinação social humana, é a gaiola de ferro o
aprisionamento, a falta de opção individual, a perda do sentido.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Em parte, Kélh parece ter razão ao afirmar que “o corpo malhado, sarado e siliconado
do novo milênio diz: sou um corpo malhado, sarado, siliconado. O circuito se fecha em si
mesmo. Parece a ética dos ‘cuidados de si’, pesquisada por Foucault. Mas não é. No Brasil
de hoje, em que o espaço público foi a um só tempo desmantelado e ocupado pela televisão, a
produção dos corpos é a produção da visibilidade vazia, da imagem que tenta apagar a um
tempo o sujeito do desejo e o sujeito da ação política. A cultura do corpo não é a cultura
da saúde, como quer parecer. É a produção de um sistema fechado, tóxico, claustrofóbico.
Nesse caldo de cultura insalubre, desenvolvem-se os sintomas sociais da drogatização, da
violência, da depressão. Sinais claros de que a vida, fechada diante do espelho, fica
perigosamente vazia de sentido” (Kélh, 2002: 18).
Além do mais, ao mesmo tempo em que o corpo malhado integra, ele também exclui,
primeiro a nós mesmos, que podemos não alcançar o padrão; depois, se o alcançamos, exclui
aos outros: feios, gordos, não-malhados, ou numa expressão: “os que não são como nós”.
Lembremos das palavras de Sennett comentando a exclusão promovida por imagens ideais do
corpo e das falas das entrevistadas, comentando que aqueles que se recusam a ingressar na
cultura do corpo são mal vistos, são relaxados, fracos, acomodados. Atestam fraqueza moral e
física e, por rejeitarem as idéias dominantes, acabam sendo excluídos, marginalizados.
De tanto contemplarmos, seja através da mídia, seja pelo espelho, acabamos quase que
enfeitiçados, ou nas palavras de Debord, hipnotizados pela imagem e miragem do próprio
espetáculo que nós mesmos criamos: “Quando o mundo real se transforma em simples
imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes de um
comportamento hipnótico (...)” (Debord, 1992: 24).
Como um veneno que nos contamina pelos olhos sem que o notemos, a cultura do corpo
infiltra-se em nós e, ao mesmo tempo, nos seduz e provoca.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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7 - Considerações Finais
(...) ainda existem muitas luas mortas, ou pálidas, ou obscuras
no firmamento da razão” (Marcel Mauss)
Cabe-nos ainda, à título de considerações finais, empreender uma breve síntese dos
elementos centrais à cultura do corpo.
Vimos que o corpo medieval constituía-se como hiperbólico, ruidoso, exposto e livre
em suas manifestações mais íntimas como escarros, flatulências, etc -, enquanto que na
modernidade o corpo progressivamente se torna verticalizado, silencioso, coberto,
disciplinado. E quanto à atualidade, quais são os padrões e concepções de beleza?
O primeiro ponto que devemos destacar é que hoje os modelos e sentidos da beleza,
bem como sua importância, retomam algumas idéias presentes nos períodos medieval e
moderno, mas também as suplantam. O modelo corporal hegemônico o é mais do corpo
hiperbólico e incontido dos medievais; mas, também não se reduz ao corpo verticalizado e
contido da idade moderna. É um novo corpo, que obedece a uma lógica também nova e que
mistura elementos contraditórios.
Quanto à forma, 63,75% da amostra elegeram o corpo magro e malhado como modelo
hegemônico de beleza. Embora este modelo possa ser resignificado de acordo com os vários
estratos da sociedade brasileira, não deixa de ser o corpo considerado ideal.
Pernas torneadas, seios e glúteos rígidos e ausência de barriga foram as características
corporais mais enfatizadas como referenciais de beleza. A estas se seguem a simetria e
firmeza do rosto, a ausência de rugas faciais, bem como o cuidado com os cabelos. Este
último deve ter brilho, sedosidade e ser, preferencialmente, loiro e liso. Vale destacar também
que as entrevistadas afirmaram que quando começam a malhar” e a ver os resultados do
esforço no corpo, tornam-se mais vaidosas, o que acaba refletindo no cuidado com o rosto,
cabelos e mãos. Desta forma, quando falamos em culto ao corpo, devemos ter em mente que
este processo não diz respeito apenas às formais corporais, mas a aparência de modo geral.
Entre as partes do corpo que as mulheres mais gostariam de mudar estão o abdômen e a
cintura (citados por 30% das entrevistadas), seguidos pelos seios; em especial, caso a mulher
já tenha tido filhos e amamentado. Os dois primeiros recursos para se alcançar o corpo
almejado são a estóica alimentação (que deve ser cuidadosamente controlada para dar
nutrientes ao músculo, mas sem estocar gordura) e a prática constante e disciplinada de
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exercícios físicos. Geralmente, uma das regras é consumir carboidratos e proteínas
(preferencialmente, grelhada) ao longo do dia e proibir o consumo dos primeiros à noite, bem
como evitar doces, refrigerantes e frituras. A mesa deixou de ser um lugar de fartura na
“tribo” das bodybuilders, passando a ser frugal e contida. É interessante notar também que
59% das entrevistadas faziam regime alimentar no decorrer da pesquisa; e 79% delas tomaram
alguma medicação para emagrecer.
Quando a alimentação controlada e a “malhação” não são suficientes, as mulheres
recorrem a tratamentos estéticos e/ou plásticas. É interessante notar que para as entrevistadas
a cirurgia plástica deve ser um recurso quando a mulher se empenhou nos treinos
físicos, mas mesmo assim, não consegui mudar algo que lhe incomoda no corpo. Muitas
alegam que embora tenham se esforçado muito, necessitaram recorrer às plásticas. Assim,
embora o número de cirurgias plásticas tenham crescido muito no Brasil - em 1994 eram
100.000 casos e em 2001 ultrapassam 350.000 (dados veiculados em reportagem da Revista
Veja, 06/03/2002) -, para as pesquisadas ela deve ser vista como um plus”, um presente que
elas se dão quando consideram que “fizeram a sua parte”. São justificadas, em especial,
quanto a mulher teve filhos e necessita, para maior incremento da auto-estima, levantar
e/ou enrijecer os seios, modificados pela amamentação; ou, resgatar as formas abdominais,
prejudicadas pela gravidez; ou quando o corpo apresenta características genéticas adquiridas
dos pais e que não se alteram com regimes e/ou exercícios. Por outro lado, são criticadas
quando viram uma espécie de “vício”: as entrevistadas não vêem com bons olhos aquelas que
fazem uma plástica seguida na outra. Condenam também quando a mulher (principalmente se
for de mais idade) faz inúmeras plásticas para ficar “eternamente jovem”, o que para as
entrevistadas, muitas vezes se compara à mutilações, gerando, ao invés de beleza, rostos
demasiadamente padronizados e despersonalizados. Mas, apesar destes pesares, 72% das
entrevistadas pretendem fazer lipoaspiração ou lipoescultura, bem como outras cirurgias,
como rinoplastia (diminuição do nariz), redução de bolsas sobre os olhos, implante de silicone
nos glúteos e nos seios. É curioso também que 81% apóiam o uso de prótese de silicone nos
seios, embora nem todas pretendam fazê-lo.
De todo modo, as opiniões o unânimes no que se refere ao motivo primeiro e último
de aderir às cirurgias plásticas: a auto-estima. Considera-se que se as cirurgias plásticas forem
um modo da mulher ficar mais satisfeita consigo própria, ela deve investir no processo,
mesmo quando não incentivada por seus companheiros e/ou por outras pessoas. Mas, como
parte das entrevistadas não exerce profissão (32,5%), estas têm que contar com rendas
advindas de outras situações (investimentos, heranças, aposentadorias) para bancarem suas
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cirurgias, ou recorrer ao apóio financeiro dos maridos. Este último ponto é significativo, pois
muitas mulheres que necessitam do aval financeiro do marido para se submeterem às plásticas
sentem-se ainda mais cobradas (por eles e por si próprias) em manter as formas corporais
adquiridas, aumentando, por conseguinte, à freqüência à academia e o controle da
alimentação.
A mulher não aceita mais “dissimular” a beleza corporal por meio de mecanismos
externos como corpetes e espartilhos, comuns entre as mulheres dos anos de 1920; agora o
corpo deve atestar em si mesmo a rigidez das formas, até porque as roupas se tornaram
menores e evidenciam mais os contornos.
Deve-se destacar também que devido à rigidez dos padrões estéticos de nossa época,
qualquer adiposidade, por mais ínfima que seja, é suficiente para minar uma percepção
positiva do corpo. Se por um lado, nossa época valoriza a exposição do corpo, também
enfatiza que o mesmo deve estar pronto”, “magro e malhado”, o que para as entrevistadas,
são eufemismos para “perfeito”. Assim, mulheres que poderiam ser consideradas “bonitas”
pelos padrões estéticos “médios”, consideram-se “feias” por portarem alguns quilos a mais do
que os ditados pelos meios de comunicação e, em especial, válidos para as modelos de moda.
A maioria das mulheres calcula seu peso ideal subtraindo vinte pontos com relação à altura,
desta forma, mulheres com 1,70 de altura acreditam que seu peso ideal dever ser de “mais ou
menos, 50 Kgs”. Além deste cálculo, esforçam-se para atingir baixo potencial de gordura
corporal, o que entre as mulheres, significa por volta de 16%. Além da gordura, temem
celulite, flacidez e estrias. É curioso também que para a grande maioria, marcas como estrias
incomodam mais do que as cicatrizes obtidas com as cirurgias plásticas. É claro que estas
últimas incomodam as mulheres, mas são vistas como uma espécie de “mal necessário”: é o
preço que devem pagar para obterem seios mais rígidos e/ou contornos melhor definidos.
Vimos igualmente os padrões estéticos acabam por influenciar tanto no uso de roupas
de banho, quanto nos momentos de nudez, seja frente à outras mulheres, seja com parceiros
afetivos. A vergonha por não portarem formas perfeitas muitas vezes leva à inibição das
mulheres, comprometendo a interação total com os companheiros, ou como disseram as
entrevistadas, evitando determinadas posições sexuais, mais pela vergonha de seus corpos
“imperfeitos” e menos por pudor.
Outro ponto importante é que distúrbios alimentares, como a anorexia e a bulimia se
tornaram mais conhecidos hoje em dia (56% das entrevistadas conhecem alguém que os
porta) e também, fazem mais vítimas do que no passado. 10% da amostra porta um destes
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distúrbios, que segundo reportagem da revista “Época” (03/11/2003), atinge crianças em
idade escolar.
Os motivos mais alegados pelas pesquisadas para os distúrbios acima citados são a
pressão social pelo corpo magro, a influência do mercado da moda, a valorização de atrizes
e/ou modelos magras, seja na televisão, seja em revistas ligadas ao corpo e/ou de informação
e a publicidade de modo geral.
Apontam também para a existência de sites na rede mundial de computadores (internet)
que promovem a anorexia e a bulimia como estilos de vida, veiculando, entre outras
mensagens, “que é mais importante ser magra do que ser saudável” e que “ser magra é a coisa
mais importante que existe”. Tais mensagens encontram eco e repercutem de forma
significativa no imaginário da mulher atual, gerando frustrações e minando a saúde.
Mas, o que deve ser ressaltado é que, mais do que a forma corporal, mudaram as
concepções e atitudes frente ao corpo.
Abandonamos as idéias higienistas de que a prática corporal ligava-se apenas à
manutenção da saúde e deveria ser “leve”, tanto na duração quanto na intensidade das práticas
corporais. Vimos que se comparado ao passado, o ritmo das atividades físicas pode ser
considerado intenso, vide que 44% das entrevistadas afirmou exercitar-se de 3 a 4 dias na
semana, e outros 44% o fazem mais de 5 vezes. Além da pressão social pelo corpo
“malhado”, podemos destacar que as entrevistadas também justificam a necessidade de
exercícios físicos devido ao sedentarismo inerente à constituição de sociedades modernas, que
ao disponibilizarem recursos como carro, elevador, empregada doméstica, equipamentos
eletrônicos, etc, acabam promovendo uma diminuição do gasto energético no dia a dia.
Longe dos modelos médicos e/ou higiênicos, o novo corpo apega-se cada vez mais ao
prazer e à sensualidade, e as mulheres temem sobretudo não terem os recursos para alcançar
os padrões de estética, do que a condenação moral e social da beleza por parte da sociedade
mais ampla. Na verdade, sentem-se impelidas e incentivadas por esta sociedade em fazê-lo.
Além do mais, de meio para a obtenção de maior controle emocional; ou, de
fortalecimento da nação, o corpo tornou-se um fim em si mesmo. Ele passou a justificar não
a educação física, mas toda e qualquer intervenção que possa melhorá-lo. Vários aspectos
atestam esta mudança. Entre eles, podemos destacar que 82% das entrevistadas consideraram
a aparência muito importante e 95% acreditam que a importância dada ao corpo aumentou
com relação ao passado. Com relação à influência da beleza no mercado de trabalho, 59%
consideram a aparência muito importante, ao passo que 35% a consideram “mais ou menos
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importante”. No tocante às relações afetivas, 29% a consideram muito importante na
aquisição de parceiros e 59%, “mais ou menos” importante. Já vimos também que nas
entrevistas estas duas porcentagens o relativizadas: as mulheres assumem que a beleza
conta muito mais do que declararam, mas que se sentiram inseguras para o afirmarem no
questionário fechado.
Cabe-nos também destacar que o corpo da atualidade é apreendido como absolutamente
moldável. O corpo dos medievais era visto como uma graça divina, como resultado da
herança genética, ou preso à teoria dos humores. As pessoas aceitavam mais o corpo que
tinham, e o modelo de beleza recaía mais sobre o corpo hiperbólico do que sobre o corpo
esguio. Com a modernidade, esta visão se altera, mas como vimos, subsistem as idéias da
ginástica como algo terapêutico ou relacionada à manutenção de formas corporais
existentes. Será somente na atualidade que o corpo será apreendido como maleável e de
inteira responsabilidade individual: a tônica dos bodybuliders reforça a todo instante que
podemos fazer de nós mesmos um outro”. Difundiu-se na atualidade a crença de que é
feio quem quer”, ou quem está excluído economicamente desta e de outras esferas sociais.
Se por um lado esta crença levou-nos à possibilidade de recorrer mais tranqüilamente à
tratamentos estéticos e/ou cirurgias plásticas, também operou um processo de culpabilização
da mulher, que passou a ser responsabilizada por assegurar sua cota de beleza. Entende-se que
a mulher moderna deve “fazer a sua parte”, o que significa, no mínimo, para as menos
abastadas, reduzir a ingestão de alimentos calóricos e exercitar-se. para as mais abastadas
sobe o nível das cobranças: além de controlar a alimentação e malhar, esta deve recorrer às
plásticas estéticas e a inúmeros tratamentos faciais, sob a pena de ser considerada
“desleixada”. Para a ideologia do culto ao corpo, não há felicidade fora da beleza.
Também vimos que não podemos incorrer no erro de creditar o processo de culto ao
corpo à idade, baixa escolaridade e/ou à falta de ocupação. Embora a pesquisadora tenha
percebido que as mulheres mais jovens (nas faixas etárias de 18-28 anos e de 29-39 anos)
enfatizem mais a estética, enquanto mulheres mais velhas (nas faixas etárias acima de 40
anos) tendam à enfatizar a saúde, isto não pode ser considerado regra determinante, visto que
muitas mulheres jovens enfatizando a saúde e criticando o culto ao corpo; quanto senhoras
que apontam motivos estéticos para a “malhação” e o hesitam em aderir às mais diversas
técnicas de culto ao corpo. A idade também não determina o ritmo das atividades, sendo
comum a presença de mulheres de 58-59 anos (Mulher 31, Mulher 65), ou de 63 anos (Mulher
42) em atividades como BodyPump, BodyJump, aeróbica e musculação. Com relação à
percepção de que o modelo de corpo hegemônico é o “magro-malhado”, podemos dizer que
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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ela ocorre em mulheres de todas as idades. a título de exemplo (salientaremos aqui só 10
depoimentos, de um total de 70), podemos encontrar esta referência em depoimentos de
mulheres entre 18-28 anos (Mulher 4, Mulher 26, Mulher 63), entre 29-39 anos (Mulher 2,
Mulher 9, Mulher 43, Mulher 59), bem como de mulheres entre 40-50 (Mulher 45) e entre
51-61 anos (Mulher 31, Mulher 39). Se analisarmos outros pontos centrais da pesquisa, como
a relação entre corpo e auto-estima, bem como a busca da perfeição e a relação entre corpo e
identidade, veremos que também ocorre esta distribuição entre várias faixas etárias.
Acredito que isto se deve ao fato de que os modelos corporais e a importância da beleza
se difundiram de tal maneira entre as mulheres urbanas de classe média-alta, que se
infiltraram por variados segmentos etários, como comprova a adesão da chamada “terceira-
idade” à atividade física, bem como da transmissão destas idéias e comportamentos de uma
geração à outra – como é o caso de mulheres entre 39-49 anos que, de tão assíduas à
academia, passaram o hábito às suas filhas; ou o inverso, de adolescentes que convenceram
suas mães e mesmo avós a aderirem à “malhação”. Novamente, cabe lembrar que mesmo
quando a saúde é o fator principal para justificar tal prática, a estética também se infiltra no
discurso e nas representações femininas sobre o corpo.
A escolaridade e o exercício da profissão também não se revelaram determinantes: 89%
das entrevistadas têm nível superior e 67,5% exercem profissão. Se lembrarmos também que
todas as mulheres vitimadas por anorexia ou bulimia (o que corresponde a 10% da amostra)
têm nível superior e, destas, somente duas não exercem a profissão, podemos perceber que o
culto ao corpo pode ser influenciado, mas não explicado por estas duas variáveis.
É que, na verdade, não se trata apenas da aquisição de formas corporais específicas, ou
de mera futilidade, mas de condutas ligadas à auto-estima e à identidade femininas: para 84%
das entrevistadas a prática regular de exercícios levou-as a se preocuparem mais com a auto-
imagem. O corpo funcionará assim, como um indicador de sucesso e status, diretamente
ligado à própria noção de pessoa. Assim, é preciso ser inteligente, ter profissão, ser boa mãe e
companheira, mas também se valer do capital simbólico da beleza, entendido pelas
pesquisadas como “um trunfo a mais” no sucesso pessoal e profissional.
De tão comum, podemos dizer que o culto ao corpo já se tornou parte da nossa cultura,
está ao nosso redor e nos suscita a pensar sobre ele, sob pena de sermos por ele tragados. No
universo pesquisado, 88% das entrevistadas acredita que podemos falar atualmente num
processo de culto ao corpo e só 9% o consideram “mais ou menos” presente em nossa
sociedade.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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Ademais, o corpo inscreveu-se definitivamente na lógica do individualismo
competitivo. Primeiro, porque como ressalta Rodrigues (1999), a característica primordial da
constituição da individualidade é o espelhamento de si em si mesmo, é o cuidado de si, a
atenção e policiamento das próprias condutas e pensamentos. Segundo, porque a competição é
inerente ao próprio processo de individualização, que os referenciais que me definem só
existem em íntima correlação e paradoxalmente, afastamento com os referenciais alheios:
para que o indivíduo se singularize, é preciso primeiro que ele se afaste dos “outros”. No caso
das nossas entrevistadas, a lógica é a de ao mesmo tempo se igualar aos modelos estéticos
pré-existentes, mas também, se diferenciar e competir através deles; tanto que para 52% da
amostra as mulheres se arrumam para serem vistas, admiradas e invejadas pelas próprias
mulheres.
Por outro lado, o culto do eu exige, como ressaltaram Elias (1990) e Rodrigues (1999),
uma atenção maior ao peso das convenções sociais e do teatralismo artificial sobre às
sensações imediatas, tornando o indivíduo menos resistente às pressões externas, que antes
eram exercidas sobre toda a sociedade e agora passam a ser exercidas sobre cada um de nós,
aumentando nossa vulnerabilidade à mídia e à opiniões alheias. Ou, como afirmou Rodrigues
(1999): “o indivíduo independente, autônomo e livre, absorve água quando pensa respirar e
acaba se afogando no oceano das regras de um sistema político e econômico, de uma cultura,
enfim, que o escraviza e que o obriga a ser exatamente assim: alguém que desempenha
compulsoriamente o papel de ser livre, autônomo, independente (...). O indivíduo acaba por
sentir em si o mal-estar silencioso, derivado da talvez mais hermética das prisões, aquela que
se constitui quando o homem passa a ser um carcereiro de si próprio, vivendo na ilusão de
ser livre. Mal-estar ruminante, que emerge inapelavelmente quando o ser humano se
transforma, para relembrar as muito sábias palavras de Montaigne, em ‘amo de si mesmo’”
(Rodrigues, 1999: 178-179).
Recontextualizando para o culto ao corpo, podemos resumir afirmando que somos
livremente obrigados a fazer ginástica, cultuar a magreza e a “malhação” e sonharmos com
próteses de silicone. Além é claro, de cabermos no tamanho P”, pois despreende-se que o
corpo da atualidade, além de domesticado e disciplinado, deve ser exposto.
Se nos primórdios da idade moderna engendravam-se as idéias de autocontrole físico e
mental, bem como de frugalidade, agora temos uma nova lógica: ascese e disciplinam
mesclam-se ao hedonismo e ao desejo de exibição e exposição do corpo. De nada vale, para a
nossa cultura, adquirir o corpo ideal se não for para mostrá-lo, tanto que para 96% das
entrevistadas a exibição do corpo hoje pode ser considerada intensa e/ou exagerada,
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reforçando a idéia de nossa sociedade como uma cultura narcísica (Lasch, 1979). Aumenta
progressivamente a quantidade de espelhos, bem como do prazer de neles buscar nosso
reflexo, ansiando por ver o corpo desabrochar. As roupas diminuem e exibir o corpo passa a
ser tão importante quanto conquistá-lo. Lembremos também que para Courtine (1995) a
geração pós 1980 caracteriza-se por um ethos que pode ser chamado de “puritanismo
ostentatório”, combinando numa só prática, disciplina rigorosa com desejo de exibição,
autoprivação ascética com afirmação positiva do eu. É preciso malhar” o corpo, judiá-lo e
levá-lo ao limite, para depois mostrá-lo e adorá-lo. Evidencia-se um comportamento
hedonista também porque a idéia de prazer secentral na atual cultura do corpo: prazer de
estar consigo mesma; prazer em mostrar-se e prazer sexual, porque envolve a sedução do
outro pelo sico. Longe de corpos cobertos, as imagens na mídia tendem a correlacionar
beleza, exposição do corpo e sedução. Ao contrário da cada de 1920, os corpos o estão
mais escondidos nem pelas roupas nem pelos preceitos cristãos, eles estão à mostra,
desvelados.
O corpo, se espetaculariza; e o espetáculo corporifica-se, está inscrito no corpo e ao
mesmo tempo, comanda-o. Nosso corpo não é mais o corpo coberto da modernidade e sim
o corpo desnudo, espetacularizado. Roupas menores e mais justas, bem como a nudez
invadem não o mundo privado das nossas entrevistadas mas o público, estão estampados
em outdoors, comerciais, novelas e outros produtos.
Sustentamos que mais do que proclamar a morte das utopias da comunicação em favor
das utopias do corpo (como propunha Sfez), podemos afirmar que hoje, mídia e culto ao
corpo entremeiam-se, constituindo verdadeiros ícones no entendimento de nossa cultura e
sensibilidade. Segundo as mulheres pesquisadas, a mídia é grande responsável na criação e na
consolidação dos modelos estéticos, tanto que 96% da amostra afirmaram que a mídia
interfere no processo de culto ao corpo.
Para finalizar o presente trabalho, gostaria de salientar que se as academias de vidro
lembram o panóptico de Bentlan, são também templos de consumo onde se vende a todo o
momento o corpo perfeito como uma mercadoria, que pode ser comprada por quem puder
pagar por todos os aparatos que o sustentam. O palco onde a modernidade se apresentava aos
olhos dos séculos XVIII e XIX era a cidade, urbanizada, vertiginosa, espetacularizada. As
galerias e lojas de departamentos estavam por toda parte, em sua maioria construídas em ferro
e vidro, num movimento de exposição do seu interior.
Segundo Benjamin (1985), elas eram “mundos de sonhos” da cultura de consumo,
materializações da fantasmagoria de que falava Marx: as novas galerias e lojas de
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departamento eram templos onde as mercadorias eram cultuadas como fetiches: “As
exposições universais constroem o universo das mercadorias. As fantasias de Grandville
transferem para o universo o caráter da mercadoria. Elas o modernizam. Inauguram uma
fantasmagoria a que o homem se entrega para se divertir” (Benjamim, 1985: 36).
Da mesma forma, vejo as academia de hoje como templos de consumo e exposição nos
quais o corpo perfeito aparece como um fetiche. Debord também demonstra que
modernidade, mercadoria e espetáculo estão atrelados, que “O espetáculo é o momento em
que a mercadoria ocupou totalmente a vida social” (Debord, 1992: 30). Segundo ele, “O
princípio do fetichismo da mercadoria, a dominação da sociedade por ‘coisas supra-sensíveis
embora sensíveis’, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é
substituído por uma seleção de imagens que existe acima dele” (idem, ibidem: 28).
Não são exatamente estas as características que encontramos no atual culto ao corpo?
Nunca se vendeu tanto a ideologia do corpo perfeito como hoje. E, atrelado a ela, todo um
mercado surgiu: clínicas de estética, nutricionistas, academias, lojas de suplementos, etc.
alguns anos atrás, era possível viajar para uma bucólica cidade de Minas Gerais, Caxambu,
hospedar-se em hotéis com excelente serviço gastronômico, participar de congressos
científicos e partir alguns dias depois transportando, além da carga intelectual, alguns quilos a
mais estampados no corpo. Hoje, até os hotéis menores oferecem uma sala de ginástica para
aliviar a consciência dos que se entregam às tentações da gula. Parece haver no ar um
sentimento de culpa quando estamos acima do peso ou ostentamos um corpo divergente dos
padrões estabelecidos.
Além disto, o próprio corpo se torna um capital rentável e sem fronteiras, cercado de
enormes investimentos de tempo e dinheiro, já que ele parece ser cada vez mais importante
para o sucesso pessoal e profissional. Ele se torna desejo, pois atesta triunfo, mas também se
transforma em espetáculo e, como tal, não escapa dos mecanismos de alienação e fetichismo
da mercadoria (Karl Marx, 1980). Debord salienta que “a realidade surge no espetáculo, e o
espetáculo é real. Esta alienação recíproca é a essência e a base da sociedade existente (...)
O caráter tautológico do espetáculo decorre do simples fato de seus meios serem, ao mesmo
tempo, o seu fim” (Debord, 1992: 15, 17).
vimos que o culto ao corpo da atualidade coloca-se como um espetáculo de corpos
construídos e diz a todo instante que, para sermos socialmente aceitos, temos que nos
preocupar com a aparência. Os meios de comunicação reforçam esta idéia e cada vez mais
somos levados a acreditar nela, buscando padrões corporais que hoje são vistos quase que
como naturais pelas pessoas. Raras vezes paramos para questionar esta busca desenfreada
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
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pelo corpo perfeito ou pela magreza extrema. Vamos apenas desejando-os e cultuando-os
como fetiches, fechando os olhos para os processos culturais de imposão de modelos que o
revestem. O espetáculo do corpo magro e “malhado” coloca-se ao mesmo tempo enquanto
desejo, propaganda do culto ao corpo e realidade.
Este corpo, ao mesmo tempo em que é um meio de ascensão e pertencimento social,
também é um fim em si mesmo, o grande objetivo de boa parte da população. Ele não está
vinculado, como era o caso no período arcaico grego, ao Estado, à possibilidade de derrotar
outras nações pelo esporte ou pela guerra, bem como de bem cuidar dos assuntos da pólis. Ele
parece fechar-se em si mesmo e nos escravizar.
Rodrigues afirmou que, na esteira do processo de fragmentação do corpo, acabamos por
criar um paradoxo: ao mesmo tempo em que o corpo ganha uma visibilidade sem precedentes
em outras épocas, esta sua excessiva visibilidade acaba por decretar sua inexistência: “A
lógica que cultua o corpo também o põe à distância, caracteriza o corpo como diferente do
ser humano que ele encarna e faz dele algo que se possui, como um objeto exterior. Ela
concebe o corpo como algo que se produz (...), algo que se pode vender e comprar (...).
Trata-se basicamente, de ‘ter’ um corpo, necessariamente no singular. Ter aquilo que
contorno a individualidade. ‘Possuir’ aquilo que me separa dos outros, do mundo e de mim
mesmo” (Rodrigues, op. cit: 180). E, de tão separados, perdemos a capacidade de nos
comunicar com nossos semelhantes ou receamos que o corpo nos traía: fingimos não ouvir
um rumor estomacal ou uma tagarelice dos orifícios e chegamos a pedir desculpas ao
aproximarmos em demasia de alguém desconhecido
88
. Para o autor, as transgressões das
regras e éticas corporais passam a expor o indivíduo ao risco simultâneo de vergonha íntima e
de ridicularização pública, ameaçando a perda do prestígio e da estima sociais e levando-o a
se desculpar e a punir-se em seguida. Presos à lógica que nós mesmos criamos, somos a um
só tempo, os transgressores da ética do corpo perfeito e os carrascos de nós mesmos. Uma das
entrevistadas diz a respeito da cobrança pelo corpo perfeito:
“Era uma cobrança interna pela perfeição física, ainda hoje, é principalmente
interna, mas teve o aspecto externo que me incomodou muito. Quando eu rompi um
relacionamento, que eu fiquei solteira, ai, quem é que vai me querer, eu não quero um
homem acabado de 58
anos, 60 anos (...). A cobrança que vem de fora é tremenda, as
mulheres que não seguem a cobrança se sentem muito envergonhadas e chegam a pedir
desculpa, ‘olha, eu sei que eu tô um lixo, ai meu Deus, eu não posso usar uma roupa desta’,
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É interessantíssima a análise de Rodrigues, que afirma que foi novidade para ele o fato das pessoas em Paris e
Londres, por volta de 1980, antes de se dirigirem à outras, utilizarem expressões como scusi!”,
“pardon!”, “excuse me!”. A este respeito, ver Rodrigues, O corpo na história, 1990.
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entendeu, eu acho que elas não podem usar certas roupas e acabam se sentido uma droga
como mulher e se desculpando por isso.” (Mulher 13, 59 anos). Ou seja, o indivíduo que
adere às lógicas do culto ao corpo é punido pela contracultura caso se sujeite, mas é punido
pelo restante da sociedade por não o fazer, ou nas palavras de Rodrigues, “por não se ter
deixado assujeitar” (Rodrigues, op. cit.: 187).
Neste cenário de cobranças estéticas a aparência se reafirma em todos os sentidos: mais
do que ter um corpo eternamente jovem (já que isto é biologicamente impossível), precisamos
parecer tê-lo. O que realmente conta é com o que nos parecemos, graças às maquiagens,
regimes, cirurgias plásticas e afins. Como disse uma vez Cindy Crawford, considerada ícone
internacional de beleza, “Antes de passar pelo menos duas horas com o maquiador e o
cabeleireiro, nem eu pareço com a Cindy Crawford” (Goldenberg e Ramos, 2002: 19).
A respeito, diria Debord (1992) que “A primeira fase da economia sobre a vida social
acarretou, no modo de definir toda realização humana, uma evidente degradação do ser para
o ter. A fase atual, em que a vida social está totalmente tomada pelos resultados da
economia, leva a um deslizamento generalizado do ter para o parecer (...) Ao mesmo tempo,
toda realidade individual tornou-se social, diretamente dependente da força social, moldada
por ela (Debord, 1992: 24).
Sobre o “verdadeiro eu”, um arsenal de cosméticos e tratamentos estéticos irá se
sobrepor, para que, finalmente, apareça o modelo de pessoa que a sociedade mais ampla julga
adequado. Vimos que nosso corpo, antes de ser um produto meramente biológico, é suporte
de identidades sociais, construídas pela cultura e reafirmadas por ela. Não corpo que seja
intocado pelas práticas culturais desta ou daquela sociedade, o que nos remete novamente à
Mauss, que associa a noção de persona latina a máscaras, máscaras trágicas, máscara ritual e
máscara ancestral. Epiceto, ao discutir a idéia de persona entre os gregos acrescentou a ela o
sentido moral, além do sentido jurídico; assim, de um sentido de testemunha, passou-se ao
sentido da consciência do bem e do mal. Segundo Mauss, “Epiceto guarda ainda o sentido
das duas imagens sobre as quais trabalhou esta civilização, quando escreve o que Marco
Aurélio cita: ‘esculpi tua máscara’, ‘impõe teu personagem’, ‘teu tipo’ e ‘teu caráter’,
quando lhe propunha o que vinha a ser nosso exame de consciência” (Mauss, 2003: 391).
Assim, sobre o corpo instauram-se máscaras sociais, revestimentos de símbolos, adornos,
maquiagem, que criam um personagem, um outro eu, diferente do que eu posso ser na
intimidade do meu lar.
Também basta uma análise atenta para percebermos que o processo de culto ao corpo
não se sustentaria sem um comportamento hipnótico, que leva as pessoas a aderirem a práticas
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como ginástica, sessões de estética ou mesmo uma aula de spinning (pedalar alucinadamente
uma bicicleta que não sai do lugar, subir e descer ladeiras imaginárias, todos ao mesmo
tempo, ao som de música “tecno” e luz negra). Observando o ambiente da academia do alto
da escada que leva à imensa sala espelhada dos equipamentos de aeróbica (bicicletas,
esteiras, etc) vi-me diante de uma fábrica de corpos: todos tentando se parecer com o modelo
difundido, todos hipnotizados, comprando suplementos, exercitando-se até a exaustão física,
sonhando em adquirir aparelhos eletrônicos abdominais, moldados pelas regras sociais de
uma cultura que nunca se afirmou tão fortemente na busca do corpo perfeito como hoje.
Como vimos, pode-se postular que a saúde orienta estas práticas, mas não nos
enganemos: ela é, na maioria dos casos, uma mera desculpa, já que as rotinas de contenção de
peso e mesmo a prática desenfreada de exercícios físicos certamente estão muito mais ligadas
à obsessão do corpo perfeito do que à manutenção à saúde. Contemplamos e desejamos
corpos que aprendemos a ver como belos e estamos dispostos a tudo para alcançá-los.
Afinal, os recursos técnicos estão ao alcance de quem puder pagá-los. É possível medir
com exatidão a taxa de gordura corporal e valer-se de várias tecnologias para combatê-la: os
alimentos industrializados fornecem tabelas de informações nutricionais; é possível pesá-los
com balanças caseiras e calcular exatamente quanto comer; a ciência nos disponibilizou
técnicas cirúrgicas para a obtenção de beleza; inibidores de apetite, proteínas sintetizadas,
anabolizantes... Sob o corpo é possível aplicar a mesma racionalidade que impregna todos os
setores da vida moderna.
Mas, como nos lembrou Max Weber, perigos nesta demasia racionalidade. Ela é
indissociável de dois processos: o desencantamento do mundo e a alienação.
Ao expulsarmos, em nome da razão, conteúdos emocionais e mágicos, tornamos o
mundo (e nossas vidas) desprovidas de encanto: passamos a viver em um mundo de matéria e
de seres que se encontram à serviço da humanidade, destinados a serem utilizados e
consumidos.
Neste processo de desencantamento do mundo, maior é o perigo da alienação; que
estamos condenados a realizar uma parte daquilo que deveríamos ser, sem outra esperança
de grandeza senão a de aceitar tal limitação.
Presos à ideologias estéticas embebidas de calcubilidade, os bodybuiders (e em especial,
as mulheres) chegam a sacrificar, pela estética, outras esferas da vida. Muitas delas abrem
mão de compromissos ou encontros com aqueles que não estão inseridos no universo da
academia. Recusam almoços ou jantares que possam comprometer as formas cuidadosamente
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construídas. Abrem mão dos prazeres da boa mesa e chegam a descartar parceiros que não as
apóiam na busca do corpo. Sabino (2002) reforça este dado com o testemunho de uma
entrevistada de 26 anos, advogada: “Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ou a
academia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de seis anos. Foi difícil, porque seis
anos não são seis dias. Eu venho para a academia seis vezes por semana, deixo de comer
uma porção de coisas para ficar com o percentual de gordura baixo e faço isso já tem quatro
anos (...)” (Sabino, 2002: 161).
Ou seja, se o corpo na atualidade pode ser um meio de atrair parceiros e promover
relacionamentos, também se transforma em próprio fim, e de tão cultuado em si mesmo,
afasta quem não adere às novas lógicas de culto ao corpo. Ou, como diria Debord, “A
alienação do espectador em favor do objeto contemplado se expressa assim: quanto mais ele
contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecer-se nas imagens dominantes da
necessidade, menos compreende sua própria existência e seu próprio desejo” (Debord, 1992:
24).
Segundo uma das entrevistadas, “Hoje você nem precisa ter tanta intelectualidade,
nunca pensei que quatro bolas no seu corpo, duas atrás, duas na frente, não deixa de ser o
país das bolas, fariam com que você fosse interessante, mas o mais preocupante é que nós
mulheres nos deixamos cair nisto e nos tornamos escravas, a mulher se submete a esta
pressão social (...) A mulher precisa fazer esporte, mas não deve se submeter à mídia, ao
poder masculino, de ser gostosa e não só culto ao corpo, porque senão, a gente vai ser
escrava da gente mesma...” (Mulher 66, 44 anos).
Neste sentido, Goldenberg (2004) afirma que a atual obsessão com o corpo tem levado a
muitos desencontros, frustrações e insatisfações, observando que talvez este seja o momento
de se pensar mais criticamente sobre os valores que determinam alguns comportamentos
femininos. Ela cita Naomi Wolf, que defende que as mulheres lutem pela mais básica das
liberdades: a de imaginar o próprio futuro e de ter orgulho da sua própria vida, demonstrar sua
lealdade para com a sua idade, seu corpo, sua pessoa e sua história: “A eliminação dos sinais
de idade dos rostos e corpos femininos deveria ter a mesma ressonância política que seria
provocada se todas as imagens de negros fossem clareadas, pois equivale a apagar a
identidade, o poder e o valor das mulheres”. (Wolf, apud Goldenberg, 2004: 43).
A lógica do culto ao corpo, se por um lado promove mecanismos de identidade, também
nos faz correr o risco de perder o valor ético das diferenças, gerando o aprisionamento e a
falta de opção individual e minando qualquer possibilidade de transcendência. Voltamos
assim, a idéia weberiana da “gaiola de ferro”: sobre o corpo depositam-se mecanismos de
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racionalidade técnica e padronização, mas sem que estes tenham destinação social humana.
Eles terminam exatamente onde começam: no próprio corpo.
E a saída, parece distante; pois quando a racionalidade passa a reger todas as esferas
sociais (científicas, econômicas, políticas), o único espaço que sobra é o da individualidade,
que se processa, entre outras instâncias, no erotismo. Mas, como haver saída no erotismo se,
no caso das entrevistadas, o corpo, veículo de prazer e liberdade, é também aprisionado por
uma lógica capitalista, sendo padronizado e normatizado? No limite, a cultura da perfeição,
aliada ao conhecimento técnico científico das cirurgias plásticas pode ir contra princípios
éticos, incitando às mulheres a regimes e plásticas talvez desnecessárias; ou mesmo
vendendo, sem se preocupar com as conseqüências, a ideologia e os riscos do culto ao corpo
perfeito. Como ficam a ética e o respeito às diferenças quando se postulam ideais estanques,
seja de credo religioso, seja corporal?
O que podemos concluir com relação à cultura do corpo na atualidade? Devido ao
caráter polissêmico do corpo, seu conhecimento é interminável, recolocando o tempo todo
tanto os limites sobre ele quanto os de nossa análise sobre suas representações.
Permanentemente em construção, processo cultural por excelência, o corpo suscita mais
questões do que respostas.
Portanto, encerro com uma pergunta: seriam os bodybuiders e adeptas da magreza
extrema os novos sujeitos de uma história permanentemente por escrever, principais agentes
de uma nova cultura do corpo? Ou seriam talvez os condenados da aparência, os novos
sujeitados de uma tirania do detalhe anatômico que a utopia do corpo incessantemente
produz?
Talvez possamos ver no culto ao corpo a modernidade se realizando, com todas as
contradições que a caracterizam: a técnica invadindo cada vez mais o mundo privado da casa
e do próprio corpo, permitindo uma mudaa corporal sem precedentes, mas também
prendendo homens e mulheres em templos de vidros (ou “gaiolas de ferro”...) moldados por
nós mesmos... Enveredamos por um processo de constituição de identidade calcado na
obtenção e exposição do corpo perfeito que, ao mesmo tempo em que nos singulariza e nos
diferencia dos outros, liberando nossa capacidade expressiva, também nos homogeneíza. Que
liberta formas que não precisam de suportes, sustentam-se por si só, mas que são fruto de
investimentos e disciplinas constantes. Que engendra novas moralidades, mas que nos faz
mergulhar cada vez mais no turbilhão de um mundo regido pela aparência, que, como já
destacavam Baudelaire, Benjamin e Debord, dilui as fronteiras entre realidade, arte, ficção,
aparência e espetáculo.
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No centro deste turbilhão, estamos nós, às vezes hipnotizados demais, às vezes
encarando a esfinge e tentando encontrar sentidos no caos.
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de Philippe Ariès e George Duby, São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
WACQUANT, Löic Corpo e Alma: Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe, Rio de
Janeiro, Relume Dumará, 2002.
WEBER, Max – A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, São Paulo, Livraria Pioneira
Editora, 1989.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 293
Reportagens
1. Revista Veja e Veja São Paulo
Veja, “Brasil, império do Bisturi”, 10/01/2001.
Veja, 17/01/2001.
Veja, 14/02/2001.
A ciência da Boa Forma: Depois de anos de estudo sobre o efeito da ginástica,
os especialistas ensinam como melhorar seu corpo em poucos meses”, Veja,
28/11/2001.
Os exageros da plástica: os avanços da cirurgia estética são incríveis, mas é
preciso evitar excessos”, Veja, 6/03/2002.
Veja, 11/02/2004.
O poder da forma: como o design, o estilo e a aparência se tornaram
fundamentais no mundo atual, definindo o sucesso ou o fracasso de pessoas,
empresas e produtos”, Veja, 11/02/2004.
Beleza a qualquer preço: Algumas mulheres chegam a gastar entre 6.000 e
15.000 reais por mês para manter a boa forma”, Veja São Paulo, 03 de julho de
2002.
2. Jornal Folha de São Paulo
Folha de São Paulo, 11/07/1999.
Folha de São Paulo, 12/04/2001.
Jornal Nacional, 12/10/2002.
3. Revista da Folha.
Elas estão loucas”, obrigação de ser linda: horas de academia, silicone e
regimes de fome alimentam a obsessão feminina pela perfeição”, Folha de São
Paulo, 3/9/2000.
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 294
O pico da vaidade: em busca de um corpo perfeito e da eterna juventude,
homens e mulheres recorrem ao GH, hormômio que pode causar doenças como
diabetes e hipertensão”, 28 de janeiro de 2001.
Revista da Folha, 28/01/2001.
Revista Tudo.
Vaidade pode matar: O drama de quem se arriscou por um corpo perfeito”,
Tudo, 04/02/2001.
4. Revista Época, Editora Globo.
Época, 25/5/2001.
Época, 20/08/1999.
Inteligência Turbinada”, Época, 03 de novembro de 2003.
5. Jornal O globo
Toda nudez será complicada” , O globo, 2/7/2000.
6. Revista Galileu
Revista Galileu, n. 155, junho 2004.
7. Revista Ciência Hoje
Ciência hoje, vol. 28, setembro de 2000.
8. Revista Boa Forma, publicação mensal, Editora Abril
Todas as edições de 1999 a 2005 (94 revistas), mas em especial as seguintes:
- Ano 15, n. 4, edição 154, abril 2000.
- Ano 17, n. 3, edição 177, março de 2002.
- Ano 17, n.11, edição 185, novembro de 2002.
9. Revista Corpo, publicação mensal, ed. Símbolo.
Todas as edições de 1999 a 2005 (94 revistas), mas em especial as seguintes:
Corpo e identidade feminina – Mirela Berger
Página 295
- Ano XII n.130, outubro de 1999.
- Ano XVII, n.181, janeiro de 2004.
- Ano XVII, n.186, junho de 2004.
10. Revista Dieta Já
Ano 6, n. 55, abril de 2001.
Ano 6, n. 57, junho de 2001.
Ano 6, n. 60, setembro de 2001.
Ano 7, n. 74, novembro de 2002.
11. Revista Plástica e Beleza
Ano 12, n.17, junho de 2002.
12. Revista Cláudia
Ficar sem roupa, que delícia”, maio de 2001.
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