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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Educação
A GENTE É MUITA COISA PARA UMA PESSOA SÓ:
desvendando identidades de professoras de creches
Tereza Cristina Monteiro Cota
Belo Horizonte
2007
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TEREZA CRISTINA MONTEIRO COTA
A GENTE É MUITA COISA PARA UMA PESSOA SÓ:
desvendando identidades de professoras de creches
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação
em Educação da Ponticia Universidade Católica de
Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Dra. Magali de Castro
Belo Horizonte
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Cota, Tereza Cristina Monteiro
C843g A gente é muita coisa para uma pessoa só:
desvendando identidades de professoras de creches. / Tereza Cristina
Monteiro Cota. Belo Horizonte, 2007.
122f.
Orientador: Profa. Dra. Magali de Castro.
Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, Departamento de Educação.
Bibliografia.
1. Creches. 2. Professores - Formação. 3. Identidade
social. 4. Educação de crianças. 5. Sociologia educacional. I. Castro,
Magali de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Departamento de Educação. III. Título.
CDU: 371.13
Bibliotecária : Patrícia Maria Gonçalves CRB 6/1826
TEREZA CRISTINA MONTEIRO COTA
A GENTE É MUITA COISA PARA UMA PESSOA SÓ:
desvendando identidades de professoras de creches
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Educação da
Ponticia Universidade Católica de Minas Gerais e aprovada em 1º de fevereiro de
2007, pela Banca Examinadora constituída pelas professoras:
___________________________________________________________________
Profa. Doutora Magali de Castro (Orientadora) - PUC MINAS
___________________________________________________________________
Profa. Doutora Is Assunção de Castro Teixeira - UFMG
___________________________________________________________________
Profa. Doutora Anna Maria Salgueiro Caldeira - PUC MINAS
Ao Pedro Victorio
e ao João Victor,
grande e verdadeiro amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus pelas bênçãos recebidas em minha vida e, em especial no tempo
do Mestrado.
À minha mãe, mulher de grande força e determinação. Sem o seu apoio seria muito
dicil vencer essa etapa.
Ao meu pai (in memorian), por ter nos ensinado a lutar pelos sonhos.
À Maria, pela dedicação de sempre.
Aos meus filhos, pela doce e calorosa companhia, como também pela compreensão
sofrida de minha ausência.
Aos meus familiares que me apoiaram e me acolheram, respeitando as minhas
decisões, a minha gratidão eterna.
Ao Victor, pelo grande apoio.
À professora Dra. Magali, pela confiança e cumplicidade nessa caminhada.
Às professoras Dra. Ana Casasanta, Dra. Leila Mafra e Dra. Sandra Tosta pelas
contribuições durante a elaboração do projeto de pesquisa.
A Fátima R. T. Salles Dias e Marília G. Mata Machado da Pró-Reitoria de Extensão
da UFMG, pela valiosa colaboração na coleta de dados sobre o Programa
Emergencial.
A Ana Dirce, Cleonice, cia, Joana e Neusa, pelo tempo doado e pela
disponibilidade em me atender, tornando possível este trabalho.
Aos amigos e amigas do Mestrado pelo tempo que convivemos: na sala de aula, nos
momentos do café, na praça, nas alegrias e na dor do adeus ao Fred. Em especial: a
Cida, amiga de viagens e de trajetória, a Cátia, pelo incentivo sereno, a Cynthia e
Núbia, grandes companheiras.
À Reitoria, Pró-Reitoria e Diretoria da Área de Educação do UnilesteMG pelo apoio e
incentivo à formação docente.
Aos Coordenadores, amigos e amigas dos cursos Normal Superior, Pedagogia,
História e do Núcleo de Educação Virtual do Centro Universitário do Leste de Minas
Gerais pelo apoio.
Aos amigos e amigas da Escola Estadual João XXIII, em especial Maristela e
Rosália pela atenção e amizade.
À Banca Examinadora, composta pelas professoras Dra. Inês Assunção de Castro
Teixeira e Dra. Anna Maria Salgueiro Caldeira pela compreensão diante das
limitações do tempo.
Aos Diretores da Superintendência Regional de Ensino de Coronel Fabriciano pela
atenção às minhas solicitações.
A Patrícia, Lúcia, Brígida, Mônica, Toninho, Jailson, Letícia, Thaís, Lorena, Nathália
e Jamily pela atenção e cuidado com o João Victor e o Pedro Victorio em minha
ausência.
Às secretárias do Programa de Pós-Graduação da PUC/MG, Valéria e Renata pela
prontidão em nos atender.
Olhar para trás, após uma longa caminhada, pode fazer perder
a noção da distância que percorremos. Mas, se nos detivermos
em nossa imagem, quando a iniciamos e ao término,
certamente nos lembraremos de quanto nos custou chegar até
o ponto final, e, hoje, temos a impressão de que tudo começou
ontem [...].
João Guimarães Rosa
RESUMO
Esta pesquisa buscou identificar possíveis traços e processos identitários de
trabalhadoras de creches, constituídos em suas trajetórias de vida e de trabalho.
Mulheres denominadas crecheiras, recreadoras, monitoras ou assistentes, com
experiência de trabalho em creches e pré-escolas nos últimos dez anos e que, com
isso, puderam acompanhar as discussões sobre o atendimento escolar às crianças
de 0 a 6 anos, de acordo com a atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional. O meu interesse pela investigação sobre a identidade de trabalhadoras de
creches surgiu da minha atuação em cursos de formação de professores de creches
e pré-escolas, particularmente no Programa de Formação de Professores da
Educação Infantil, em nível médio, desenvolvido em parceria com universidades do
Estado de Minas Gerais que compõem o Programa Minas Universidade Presente.
O desejo pelo tema surgiu, quando deparei com a seguinte problemática: as próprias
mulheres que atuam no cuidado e educação das crianças de zero a três anos não
conseguiam definir o que realmente eram nas comunidades educativas onde
atuavam. Parti do pressuposto de que elas não se percebiam como professoras de
educação infantil e, dessa forma, questões se colocavam para mim: Quem são
essas mulheres, professoras da infância, que trabalham no cuidado e na educação
das crianças no interior das creches? Como essas trabalhadoras se percebem no
espaço de trabalho? Para responder a essas questões, foi utilizada a abordagem
metodológica da História Oral. Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa.
Foram utilizadas entrevistas abertas, através das quais foram recolhidos e
registrados os depoimentos orais de cinco trabalhadoras de creche. Os relatos orais
se constituíram na principal fonte de pesquisa, entretanto foram consultadas fontes
documentais, tais como os documentos oficiais sobre o Programa, a atual Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional e outros documentos legais. Além dos
dados documentais, realizei entrevista aberta com membros da Pró-Reitoria de
Extensão da UFMG, responsáveis pela coordenação geral do Programa. Os dados
obtidos através de entrevistas abertas foram analisados à luz de referencial trico
sobre construção da identidade profissional das trabalhadoras de creche (Claude
Dubar, Antônio Nóvoa, Bernard Lahire), habitus feminino (Pierre Bourdieu) e
questões de gênero (Michelle Perrot). A pesquisa permitiu a identificação de quatro
traços identitários das trabalhadoras de creche: a atitude maternal, acompanhada de
uma não diferenciação entre as atividades domésticas e profissionais, a origem
familiar de baixa renda e escolarização que determinaram as precárias condições
socioculturais e econômicas na trajetória das trabalhadoras, a deficiência na
formação sica, o que motivou a sua inserção no Programa Emergencial e o
sentimento de pertencimento a um grupo específico: sentem-se como professoras
de creche e não como professoras da educação infantil.
PALAVRAS-CHAVE: trabalhadoras de creche; traços identitários; trajetória de vida
e de trabalho.
ABSTRACT
This research is intended to identify possible traces and processes of identity from
life and work experience as nursery home female workers. These women called
nursery teachers, entertainers, monitors or assistants with work experience in
childcare and pre-school houses during the last ten years were able to attend
meetings to discuss issues about school attendance of children between 0 to 6 years
of age, according to the current Policies and National Education Base. My interest in
investigating the identity of the nursery home female workers came from my
experience in vocational training courses for nursery and pre-school teachers,
especially in the Chil Education Teacher Formation Program, at secondary level, in
partnership with the State of Minas Gerais Universities that form the Minas
Universidade Presente Program. The desire for the theme appeared when I faced
the following problem: the women themselves that were involved in taking care of
and educating children of 0 to 3 years of age were not able to define what they really
were in the educational communities where they worked. I took it for granted that
they didnt consider themselves as child teachers. Hence, some questions came to
my mind: who are these women, child educators that take care of and educate those
children in the nursery homes? How do these workers see themselves in the market?
To answer these questions, the Oral History methodology approach was used.
Therefore, it is a qualitative research. Open interviews were used through which oral
statements of five nursery home female workers were collected and filed. The oral
statements formed the main source of research. However, documentation such as
official files on the Program, the current Policies and National Education Base, and
other legal documents were used. Besides the documentation data collected, an
interview with the Pro-Rectory members of UFMG Extension School, who are
responsible for the general coordination of the Program, was carried out. The data
from the open interviews were analyzed in the light of theoretical reference over the
professional identity construction of the nursery home women workers (Claude
Dubar, Antônio Nóvoa, Bernard Lahire), feminine habitus (Pierre Bourdieu) and
gender aspects (Michelle Perrot). The research reveled four identity traces of the
nursery female workers: maternal attitude with no difference between domestic and
professional activities. The family origin with low income and low schooling that
determined the precarious socio-cultural and economic conditions in their work and
life experience. And the deficiency of basic formation, which motivated them to get
involved in the Emergency Program. The workers of the nursery home feel that they
are not valued as teachers, and so they have created a category classifying them as
nursery home teachers, not as child education teachers.
Key Words: nursery female workers, identity traces, work and life experience.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Identificação das Mulheres que participaram da Pesquisa .................26
QUADRO 2 - Proposta Curricular do Programa Emergencial ...................................57
LISTA DE ABREVIATURAS
CEB - Câmara de Educação Básica
CEE - Conselho Estadual de Educação
CNE - Conselho Nacional de Educação
FAFIDIA - Faculdade de Filosofia e Letras de Diamantina
FAT - Fundo de Amparo ao Trabalhador
FEPESMIG - Fundação de Ensino e Pesquisa do Sul de Minas
FUNREI - Fundação de Ensino Superior de São João Del Rei
LDBEN - Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
PLANFOR - Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador
PUC/MG - Ponticia Universidade Católica de Minas Gerais
SEE - Secretaria de Estado da Educação
SERVAS - Serviço Voluntário de Assistência Social
SETASCAD - Secretaria de Estado, da Assistência Social, da Criança e do
Adolescente
UEMG - Universidade do Estado de Minas Gerais
UFMG - Universidade Federal de Minas Gerais
UFV - Universidade Federal de Viçosa
UFU - Universidade Federal de Uberlândia
UNILESTEMG - Centro Universitário do Leste de Minas Gerais
UNIMONTES - Universidade Estadual de Montes Claros
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO..............................................................................................13
1.1. O feminino e a educação para a infância......................................................15
1.2. Os limites do trabalho nas creches................................................................18
1.3. A pesquisa implementada.............................................................................21
2. ABORDAGENS E ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS...............................23
3. REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................32
3.1. Identidade: percorrendo algumas abordagens..............................................32
3.2. A identidade feminina: memória do privado...................................................37
3.3. Identidade profissional: uma análise em Claude Dubar................................40
3.3.1. Identidade para si e Identidade para o outro..........................................41
3.4. Reflexões sobre o conceito de habitus..........................................................44
4. O PROGRAMA EMERGENCIAL NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DAS
TRABALHADORAS DE CRECHES......................................................................50
4.1. A proposta e as percepções sobre o Programa Emergencial........................52
5. DA INFÂNCIA AO TRABALHO NA CRECHE: HISTÓRIAS VIVIDAS E
CONTADAS..........................................................................................................61
5.1. A trajetória de Ana Dirce: Gosto muito de criança.......................................62
5.2. A trajetória de Cleonice: Eu sou professora................................................65
5.3. A trajetória de cia: O trabalho na Educação Infantil foi o maior desafio..68
5.4. A trajetória de Joana: Ser professora é a realização de um sonho.............73
5.5. A trajetória de Neusa: Creche é vício..........................................................78
5.6. Analisando as trajetórias: questões relativas à mulher, escola e trabalho
na creche..............................................................................................................84
6. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DAS
TRABALHADORAS DE CRECHE........................................................................89
6.1. Professoras ou trabalhadoras de creche?.....................................................91
6.2. O sentido do cuidado.....................................................................................95
6.3. O trabalho nas creches e o conceito de habitus............................................99
6.4. Um olhar para o corpo das trabalhadoras de creche...................................101
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................104
REFERÊNCIAS..................................................................................................109
ANEXOS.............................................................................................................118
ANEXO A Ficha de identificação dos atores....................................................118
ANEXO B Eixos de edição das entrevistas com os atores da pesquisa..........119
ANEXO C Eixos de edição das entrevistas com membros da coordenação
geral do Programa Emergencial Pró-Reitoria de Extensão da UFMG.............122
13
1. INTRODUÇÃO
Se as identidades sociais são produzidas pela história dos indivíduos,
elas tamm são produtoras de sua história futura.
Claude Dubar
Esta pesquisa buscou identificar possíveis traços e processos identitários
de trabalhadoras de creches, constituídos em suas trajetórias de vida e de
trabalho. Mulheres denominadas crecheiras, recreadoras, monitoras ou
assistentes, com experiência de trabalho em creches e pré-escolas nos últimos
dez anos e que, com isso, puderam acompanhar as discussões sobre o
atendimento escolar às crianças de 0 a 6 anos, de acordo com a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9394/96). Essas mulheres viveram no
cenário da educação infantil, quando esta passou a fazer parte da educação
sica, instaurando uma nova concepção de educação para a infância.
O meu interesse pela investigação sobre a identidade de trabalhadoras de
creches
1
surgiu da minha atuação em cursos de formação de professores de
creches e pré-escolas, particularmente no Programa de Formação de Professores
de Educação Infantil, em nível médio, desenvolvido em parceria com
universidades do Estado de Minas Gerais que comem o Programa Minas
Universidade Presente
2
. O desejo pelo tema surgiu, quando deparei com a
seguinte problemática: as próprias mulheres que atuam no cuidado e educação
das crianças de zero a três anos não conseguiam definir o que realmente eram
nas comunidades educativas onde atuavam. Parti do pressuposto de que elas
não se percebiam como professoras da educação infantil e, dessa forma,
questões se colocavam para mim: Quem são essas mulheres, professoras da
1
Na pesquisa refiro-me às mulheres investigadas como trabalhadoras de creche, considerando,
de acordo com Dubar (1998, p.7), que a função exercida por elas no interior das creches é
reconhecida como ocupação assalariada comum (como os operários e empregados)”, não se
caracterizando, portanto, como profissionais da educação infantil.
2
O Programa foi desenvolvido em parceria com as seguintes instituições de Ensino Superior:
UFMG; UNIMONTES; UFV; UFU; UNILESTEMG; FEPESMIG/UEMG; FAFIDIA/UEMG; PUC/MG;
FUNREI.
14
infância, que trabalham no cuidado e na educação das crianças no interior das
creches? Como essas trabalhadoras se percebem no espaço de trabalho? Na
verdade, o que demonstravam era um desconhecimento das atribuições
específicas de cada funcionário das creches: ao mesmo tempo, cuidavam das
crianças, da creche e das tarefas que implicavam o educar. Dessa forma,
[...] as funcionárias se apoiavam na função de provedoras de cuidados
sicos e asseguravam-se desse papel através da rotina
excessivamente automatizada e de seu resultado imediato: a criança
engordando, tornando-se mais limpa, bonita e bem-comportada
(HADDAD, 1993, p.63).
Questões como essas me mobilizaram para o delineamento do objeto de
estudo, ficando como pergunta central: Quais são os possíveis traços e processos
identitários de trabalhadoras de creches, constituídos em suas trajetórias de vida
e de trabalho? Nesse sentido, tornaram-se pertinentes reflexões sobre a relação
entre a trajetória pessoal e a experiência de trabalho de tais mulheres, num
resgate da memória individual e coletiva desse grupo.
Torna-se importante ressaltar que a creche, como um dos espaços da
educação sica, não será objeto de análise nessa pesquisa, mesmo assim
buscarei contextualizá-la no cenário da educação infantil, como forma de
corroborar a sua importância como instituição que, historicamente, atende às
crianças pequenas.
Sabemos que pensar na educação infantil hoje, século XXI, no que diz
respeito ao atendimento em creches e pré-escolas, exige uma contextualização
dos espaços ocupados pelo sexo feminino, através das professoras que atuam
nas salas de aulas da educação infantil e das séries iniciais do ensino
fundamental. Esses espaços são demarcados, quase exclusivamente, no campo
da docência, pela presença de mulheres: sujeitos socioculturais e históricos,
com experiências individuais e coletivas (TEIXEIRA, 1996, p. 183).
15
1.1. O feminino e a educação para a infância
Na história da educação brasileira, importantes mudanças impulsionadas
pelos vesgios da urbanização marcaram a sociedade no final do século XIX e
estimularam a criação de novas frentes de trabalho. Assim, exigiam uma mão-de-
obra mais bem qualificada, o que aumentava a demanda por instrução.
Uma dessas mudanças foi a saída dos homens do magistério para outras
frentes de trabalho mais rentáveis, o que fez crescer a demanda de mulheres que
buscavam no magistério outra função, além das responsabilidades da casa e da
igreja. Nesse ínterim, cresce o mero de professoras no ensino primário e, ao
final do século XX, vimos uma presença marcante das mulheres na sala de aula.
Desse modo, pode-se falar da feminização do magistério.
Para muitos a presença da mulher na sala de aula sugeria insensatez, pois
não parecia confiável entregar a educação nas mãos de mulheres, uma vez que
eram percebidas como inferiores, tanto do ponto de vista do sexo, como do
intelecto. Cabia aos homens, sujeitos reconhecidos socialmente, de potencial
legitimado, atividade de tamanha responsabilidade (LOURO, 2001).
Diante dessa afirmação, reporto-me a Perrot (1988, p. 177), numa
denúncia ao processo de exclusão da mulher na constituição de sujeito de
direitos. Ela coloca como pensamento socialmente construído que aos homens, o
cérebro (muito mais importante do que o falo), a inteligência, a razão lúcida, a
capacidade de decisão. Às mulheres, o coração, a sensibilidade, os sentimentos.
Era uma nova ordem que se estabelecia e, com ela, uma importante questão: o
que significava, para a sociedade da época, conceder espaços para a mulher no
sistema educacional brasileiro? Seria possível deixar a educação de meninos e
meninas nas mãos de mulheres, até então com uma formação que contemplava
os ideais de esposa, mãe e dona-de-casa?
É importante lembrar que a inserção da mulher na educação não a
afastava das responsabilidades domésticas,
foi tamm dentro desse quadro que se construiu, para a mulher, uma
concepção do trabalho fora de casa como ocupação transitória, a qual
deveria ser abandonada sempre que se impusesse a verdadeira missão
feminina de esposa e mãe. O trabalho fora seria aceitável para as moças
16
solteiras até o momento do casamento, ou para as mulheres que
ficassem sós - as solteironas e vvas (LOURO, 2001, p. 453).
Surgiu, em meio a essas e tantas outras questões, uma visão romantizada
do papel da mulher no magistério. A presença feminina na sala de aula teria um
tom maternal. A candura e a delicadeza, somadas à maternagem, pareciam de
grande valia na educação das crianças. Ilustrando esse argumento, Almeida
(2004, p. 75), afirma que as jovens brasileiras cresceriam com destino
profetizado de serem esposas, mães e, em caso de necessidade, professoras.
Não é por acaso que o conceito de cuidar ganha força de expressão no
magistério. Feminilidade, mulheres e cuidado são palavras que, ao longo do
tempo, auxiliaram na compreensão do ocio de professora.
Foi nessa direção que Carvalho (1999), numa análise que pretendeu
discutir as questões de gênero e o trabalho docente nas séries iniciais do ensino
fundamental, problematizou o sentido de ser mulher professora, reconhecendo
ser esta uma atividade realizada, sobretudo por mulheres. Por essa razão o
sentido e as dimensões do cuidado foram analisados criteriosamente
3
.
Sabemos que a ação do cuidar é muito forte na educação de crianças. É
impossível desarticular o educar do cuidar na educação infantil. Isso porque falar
da infância implica em falar das necessidades da criança, que sugerem o zelo e a
atenção do adulto. Não é por acaso também, que o olhar maternal é cobrado às
professoras da infância. As temáticas que envolvem noções de cuidados são
prementes nos cursos de formação de professoras para a infância: o toque, o
contato sico, a relação de troca no processo de socialização das crianças entre
si e com os adultos, como também a necessidade do diálogo e das regras de
convivência.
Tudo isso faz parte das discussões que buscam garantir o sentido do
cuidado no interior das instituições que atendem às crianças de zero a seis anos,
o que não significa a defesa de que para ser professora da infância tenha de ser
mãe ou incorporar uma relação maternal, simplesmente pelo parentesco desse
trabalho com as atividades domésticas (VIEIRA, 2003, p. 11).
3
Faço referência aqui ao trabalho de CARVALHO, Marília Pinto de. No coração da sala de aula:
gênero e trabalho docente nas séries iniciais. São Paulo: Xamã, 1999.
17
Socialmente, a presença feminina nos espaços da assistência foi
historicamente demarcada. O trabalho feminino, segundo as abordagens de Pena
(1981), referia-se às ocupações das mulheres e as mais adequadas eram as
carreiras sociais. Como exemplos, os serviços de enfermeira, professora infantil e
assistente social, porque não comprometiam a capacidade reprodutiva das
mulheres em termos fisiológicos, psicológicos e sociais. Talvez, por essa razão, a
docência nas escolas dos países ocidentais, na virada do século XIX para o
século XX, era exercida, na sua maioria, por mulheres (ALMEIDA, 2004; LOURO,
2001; CARVALHO, 1999). Nesse sentido, podemos dizer que o século XX assistiu
ao acesso das mulheres na educação, preferencialmente, na educação de
crianças, como também a presença delas nos movimentos e lutas pelo
reconhecimento e pela ocupação dos espaços blicos.
[...] O reconhecimento da cidadania feminina, no Brasil, consistiu sempre
num processo mais longo que o da masculina. Seu direito ao voto
somente lhe foi concedido após 1930; na família, sua submissão diante
do elemento masculino esteve consolidada no Código Civil desde 1916 e
seu caminho ao trabalho coletivo foi sempre obstruído, fosse por sua
dependência na família, fosse pelas várias peças legais que restringiram
seu acesso ao mercado de trabalho. (PENA, 1981, p. 145)
No Brasil, principalmente a partir do século XX, conforme imeras
pesquisas sobre a feminização do magistério, essa presença se consolidou no
campo da educação para a infância (entendendo a infância como etapa de
atendimento de zero a dez anos de idade). Foi também no início desse século
que, no Brasil, surgiram as creches, acompanhando a estruturação do
capitalismo, a crescente urbanização e a necessidade de reprodução da força de
trabalho composta por seres capazes, nutridos, higiênicos e sem doenças
(HADDAD, 1993, p. 24).
Segundo Louro (2001) e Almeida (2004), nos dois primeiros terços do
século XX, permaneceu de modo muito forte, uma visão de mulher associada à
maternidade e ao ocio de professora, em que o espaço escolar manteve um tom
doméstico. Podemos dizer que foi-se delineando ao longo dos anos um perfil de
educadora baseado no conceito de feminilidade e maternidade.
18
1.2. Os limites do trabalho nas creches
Cada vez mais as mulheres vêm buscando tanto a possibilidade de
conciliar o trabalho profissional com a vida doméstica e com a criação de filhos.
De acordo com Cerisara (1996, p. 74), as relações entre casa-creche-escola
constituem-se como diferentes cerios em que se desenvolvem ações de
cuidado e de educação de crianças, tanto no universo privado quanto no blico.
Porém, as questões que se colocam são: por que falar sobre o processo de
construção da identidade profissional das professoras de creches? Será que as
mulheres que lidam, diariamente, com a função de cuidar e educar as crianças de
zero a três anos de idade, sendo o trabalho resultado de anos de experiência,
podem ser reconhecidas como professoras?
Para que se constitua uma identidade profissional, é preciso ter como
base a identidade pessoal dessas mulheres, construída historicamente
dentro de uma ocupação socialmente desvalorizada - a educadora de
crianças de 0 a 6 anos relacionada diretamente ao universo feminino
desvalorizado em relação ao que se convencionou chamar de universo
masculino, cujo modelo de trabalho é tido como racional ou técnico e
onde predominam relações de impessoalidade nos espaços públicos
(CERISARA, 1996, 47).
Depreende-se que a identificação profissional das trabalhadoras de creche
está fortemente vinculada à construção de gênero, colocando em questão os
papéis das mulheres, legitimados socialmente. Na discussão sobre gênero, no
que diz respeito à construção simlica e cultural das mulheres, é importante
destacar a relevância das pesquisas que apontam os silêncios e revelam as
condições do trabalho feminino no campo da educação (MEYER, 2003).
Segundo Kramer (2005, p. 38), a identidade profissional é um tema amplo,
nem sempre fácil de analisar e, no caso da educação infantil, ainda muito a ser
explorado. Dessa forma, reafirmo que essas mulheres são silenciadas e, para
melhor definir o sentido desse silêncio, é preciso compreendê-lo como a memória
do privado, tal como escreveu Perrot (2005, p. 33): no teatro da memória, as
mulheres são uma leve sombra. E, quando remetemos à professora da educação
infantil, atuando em creches, essa sombra torna-se, por vezes, quase
impercepvel.
19
Nesse sentido, torna-se importante ouví-la e conhecer suas histórias, seu
percurso de formação, sondar suas inquietações e compreender as trajetórias
percorridas. Será que essas professoras estão satisfeitas com o trabalho docente
nas creches? Se pudessem optar, permaneceriam nesse nível de ensino? Será
que são, de fato, professoras?
De acordo com Borba (2001, p. 34), a formação da identidade ultrapassa a
dimensão do pessoal, na medida em que o ator busca sua singularidade,
compreendendo sua ação estratégica e comunicacional no espaço em que atua.
Borba, referendada em Claude Dubar, trabalha com o conceito de articulações
identitárias, que podem ser compreendidas por saberes práticos, técnicos,
profissionais e ou teóricos.
Já, segundo Silva (2001, p. 9), é preciso considerar que a identidade
profissional, em qualquer campo, é uma construção, ou seja, não é algo que
exista pronto e acabado, mas que se faz nas relações com as diversas pessoas e
instituições envolvidas.
Daí, um novo modelo das formas identitárias cruza o espaço prioritário de
investimento e de reconhecimento. Não se trata apenas de identidades no
trabalho, mas de formas de identidades profissionais no seio das quais a
formação é tão importante quanto o trabalho, os saberes incorporados tão
estruturantes como as posições do ator (DUBAR, 1997a, p. 46).
Dubar trata de duas lógicas importantes para pensarmos nas condições
das trabalhadoras de creche, daquelas que fazem do trabalho um ganha-pão e
daquelas que sentem-se mobilizadas pelo trabalho e gostam de assumir
responsabilidades. Ao assumirem responsabilidades com o cuidar e o educar,
acabam por associar o trabalho à própria condição da mulher numa relação direta
com o doméstico, com o privado.
Quanto a essa percepção, o cuidado tem um sentido cultural para as
trabalhadoras de creche. Poderíamos então falar de habitus feminino? Na medida
em que, para as mulheres, as dimensões do cuidar são relacionadas à sua
constituição como pessoas, caberia destacar que os sistemas de disposições
duráveis - estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas
estruturantes de acordo com o meio social dos sujeitos - podem confirmar a
prática incorporada do cuidar no âmbito do trabalho nas creches. (BOURDIEU,
20
1983).
Para ilustrar essa afirmação, tomo como exemplos as colocações de Ana
Dirce e Joana
4
, nas quais estão expressos os sentidos da maternagem e a forte
relação que têm com o cuidar das crianças pequenas:
Em dois mil eu comecei a trabalhar com carteira assinada. E eu estou lá
até hoje. Eu acolho bem as crianças e tenho o maior prazer em trabalhar
com elas. Eu entendo muito o lado das crianças. Eu tenho muito amor
por elas, muitas até me chamam de mãe. Então, às vezes, as outras
colegas não gostam do jeito que as crianças me tratam, elas sentem
cmes e falam com as crianças: “Ela não é sua mãe, não. Eu falo
assim: ô, fulana, mas não precisa falar assim com as crianças não.
“Venha cá com a tia Dirce [...] e ponho a criança no colo. Mas você não
vai tolher uma criança, não é mesmo? (Ana Dirce, 11/04/2006 )
Igual ao que aconteceu comigo. No início eu tive colega que entrou na
creche e tinha grande dificuldade. Diferente de mim, com a minha
experiência, mesmo sendo serviçal, eu tinha experiência com criança.
Então no meu caso, por eu ser mãe e ter experiência, eu conseguia fácil.
Agora, para a pessoa que vai entrar na creche e que não tem
experiência, não sendo mãe, fica difícil. (Joana, 26/09/2006)
O conceito de habitus pode explicar as relações entre as práticas dos
sujeitos, seus modelos de comportamento, modos de falar, de vestir e os
condicionantes sociais que adquiriram e continuam a adquirir na família, na
escola, no trabalho, nos grupos dos quais participam, ou seja, processos
particulares de internalização de todas as influências sociais que recebem desde
a infância. A posição social que o indivíduo ocupa, bem como os símbolos, as
crenças, os gostos, as preferências que caracterizam essa posição social, são
incorporadas pelos sujeitos, o necessariamente de forma consciente, tornando-
se parte da natureza do próprio indivíduo, constituindo-se num habitus. A partir
dessa matriz geradora de ações, os indivíduos agem de acordo com um senso
prático, adquirido no momento histórico em que vivem.
Quanto à construção das identidades profissionais, Dubar (2005, p. 130)
discute a dimica das identidades sociais e profissionais como um processo,
simultaneamente estável e provisório, de sucessivas identificações, que se
constroem na articulação entre trajetórias vividas pelos sujeitos e transações
4
Ana Dirce e Joana são trabalhadoras de creche, mulheres que participaram desta pesquisa.
21
objetivas que ocorrem nos processos relacionais, nos vários contextos de
socialização. Nesse sentido, a constituição das identidades estão relacionadas
pelo sentimento de pertença ao grupo, no qual o sujeito começa a agir como os
outros, assumindo pessoalmente as atitudes, as linguagens, a trajetória e o
projeto do grupo.
1.3. A pesquisa implementada
Nesta pesquisa, com o objetivo de analisar os possíveis traços e processos
identitários construídos pelas professoras de creche em suas trajetórias de vida
e trabalho, optei pelo estudo das trajetórias de cinco trabalhadoras de creche,
atuando nesse nível de ensino desde os anos de 1990.
A partir da questão inicial: como se dão possíveis traços e processos
identitários de trabalhadoras de creches, constituídos em suas trajetórias de vida
e de trabalho, outras questões foram sendo delineadas:
Quem são as mulheres trabalhadoras, que cuidam e educam as crianças
das creches?
Existem traços identitários das mulheres trabalhadoras de creches (marcas
comuns a essa categoria)?
Essas mulheres estão satisfeitas com seu trabalho? Se pudessem optar,
permaneceriam nesse nível de ensino?
Essas trabalhadoras se percebem como professoras da Educação Infantil?
Qual a influência de um curso de formação emergencial no processo
identitário dessas mulheres, que cuidam e educam as crianças pequenas?
Partindo dessas questões, a pesquisa tem como objetivo central analisar
traços e processos identitários de trabalhadoras de creches, constituídos em suas
trajetórias de vida e de trabalho e como objetivos específicos:
22
Caracterizar as mulheres, trabalhadoras de creche, considerando seu
contexto sócio-econômico e cultural;
Identificar e analisar suas concepções sobre o seu ocio dentro das
creches;
Identificar aspectos e fatores comuns que podem indicar traços identitários
neste grupo de mulheres, quanto ao seu universo de trabalho;
Identificar e analisar aspectos relacionados à construção e incorporação de
habitus por essas mulheres, em suas possíveis implicações com seu
contexto sócio-econômico e cultural e com a participação no Programa
Emergencial.
A partir desta introdução, que constitui o item 1, onde apresento as
informações sicas sobre a pesquisa realizada, a dissertação foi organizada em
cinco capítulos. No primeiro capítulo (item 2), apresento a abordagem e as
estratégias metodológicas, bem como a caracterização das mulheres que
participaram da pesquisa. No segundo capítulo (item 3), apresento o referencial
trico que sustenta esta pesquisa, discorrendo sobre conceitos de identidade,
construção identitária, como também sobre a teoria de habitus.
No terceiro capítulo (item 4), faço uma incursão pelo Programa
Emergencial, com a intenção de caracterizá-lo e assim, de forma sucinta, faço
algumas reflexões sobre a educação nas creches.
No quarto capítulo (item 5), apresento a contextualização dos sujeitos da
pesquisa. Tento tecer alguns fios da história de cada uma, a partir dos fragmentos
de relatos de Ana Dirce, Cleonice, cia, Neusa e Joana.
No quinto capítulo (item 6), estão as análises que dão corpo ao tema que
propus desvendar, sobre a construção da identidade profissional das
trabalhadoras de creche.
Nas considerações finais procuro sintetizar algumas reflexões,
contribuições que julgo importantes para que possamos melhor compreender o
universo das mulheres professoras de creche.
23
2. ABORDAGENS E ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS
Contar uma história é operar por exclusão, é selecionar e ordenar os
acontecimentos de acordo com o sentido que se lhes quer conferir e que
se quer conferir à própria história.
Verena Alberti
Para a realização da pesquisa sobre os traços e processos identitários de
trabalhadoras de creches, constituídos em suas trajetórias de trabalho e no
Programa Emergencial, optei pela abordagem metodológica da História Oral.
Trata-se, portanto, de uma pesquisa qualitativa.
De acordo com Bogdan e Biklen (1994, p. 55), a pesquisa qualitativa
envolve a obtenção de dados descritivos, obtidos no contato do pesquisador com
a situação estudada, enfatiza mais o processo do que o produto e se preocupa
em retratar a perspectiva dos participantes.
Segundo Castro (2005, p. 33), na História Oral
os relatos pessoais são filtrados pelo tempo e pelos percursos
individuais. Esse método baseia-se na técnica de entrevista aberta,
através da qual são recolhidos e registrados os testemunhos orais. Ele
nos acesso à realidade, sem a exclusão do particular, do marginal e
das rupturas, que normalmente escapam aos trabalhos quantitativos e
mesmo às análises qualitativas orientadas por questões pré-definidas.
Este estudo foi desenvolvido com cinco mulheres que tinham em comum a
participação no Programa Emergencial para habilitação em nível médio -
modalidade normal - do professor de Educação Infantil em exercício, de creches e
pré-escolas (municipais e comunitárias) da região do Vale do Aço - Minas Gerais;
mais especificamente, com um grupo de mulheres que atuaram, nos últimos 10
anos, como educadoras de creches, tamm conhecidas como crecheiras,
recreadoras ou monitoras. Esse recorte se deu em função do interesse em
pesquisar um grupo que estivesse atuando na Educação Infantil, desde a
promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/96,
que constituiu um marco na educação infantil do país, transformando-a em
primeira etapa da escolarização formal.
24
Essa pesquisa enquadra-se nos estudos de História Oral, na medida em
que a memória será primordial para a compreensão do percurso histórico-
profissional das entrevistadas. De acordo com Inez (2004, p. 22), a história oral
possibilita uma imersão do pesquisador no universo dos sujeitos pesquisados
buscando interpretações não solitárias, mas sustentadas na visão e na versão
dos sujeitos sobre suas experiências. Nesse sentido, lembrança puxa
lembrança (BOSI, 2004, p. 39), o que torna possível a leitura do passado para
que possamos melhor compreender o presente, historicamente construído.
Constatei, concordando com Oliveira (2001), que o trabalho com a
oralidade e com a sistematização das histórias relatadas pelos sujeitos da
pesquisa desvelaram, ao longo das conversas, saberes construídos nas
trajetórias de trabalho, tecidas nos tempos vivenciados em creches.
O momento da entrevista foi movido por um nervosismo inicial, pois a
presença de um gravador indicava uma escuta, uma presença (THOMPSON,
1992, p. 264). As entrevistadas se viam com a possibilidade de falar de si, de
serem ouvidas e, de certa forma, contar as angústias e as alegrias relativas ao
trabalho e ao contexto do privado. Em muitos momentos a emoção compunha o
cenário tanto para elas como para mim. Mesmo sabendo que a condição de
pesquisadora me exigia um distanciamento, naquele momento vivia as
dificuldades e as limitações para impor tal distanciamento. Controlar essa
ansiedade foi um importante exercício.
Foi possível perceber que cada uma das entrevistadas demonstrava uma
certa gratidão pelo meu trabalho. A minha presença sugeria que algm se
preocupava com elas. Era visível a tensão nos quinze minutos iniciais da
entrevista. Havia um desejo de estar falando a coisa certa, como se fosse
possível estabelecer coisas certas. Estava bem clara a tentativa de todas em não
permitir escapar nenhum detalhe daquilo que julgavam importante. Foi realizado,
sem qualquer restrição, mais de um encontro com cada uma das entrevistadas, o
que acabou por corroborar, de maneira espontânea, as falas anteriores.
Num primeiro momento, a contextualização sócio-econômica e cultural
tornou-se importante, à medida que resgatava parte da história das mulheres,
sujeitos da pesquisa:
25
[...] a maioria dos historiadores orais precisa pelo menos saber quando o
informante nasceu, qual a ocupação de seus pais, onde moravam, se
tinha ou o irmãos e irmãs, seu nível de instrução, carreira profissional,
filiação religiosa e política, se for o caso, se era casado ou não. Se era,
quando casou, com quem e se tiveram filhos. (THOMPSON, 1992, p.
283)
Como afirmado anteriormente, a investigação foi realizada com
trabalhadoras de creche que participaram do Programa Emergencial. Esse
programa teve início no ano de 2001, por iniciativa das Instituições de Ensino
Superior integrantes do Programa Minas Universidade Presente, e se encerrou no
ano de 2005. Tal iniciativa veio atender às novas exigências legais para formação
de professores para a primeira etapa da educação básica, uma vez que a atual
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9394/96, determina sua
formação em nível superior. Admite-se porém, como formação mínima, o
magistério em nível médio. Mesmo diante dessa exigência legal, é possível
encontrar uma realidade bastante diversificada em todo o país, em relação aos
profissionais que atuam na pré-escola (CAMPOS & CRUZ, 2006, p. 16). É
verdade, portanto, que no interior das creches um número significativo de
mulheres com baixo nível de escolaridade. Muitas delas começaram atuando
como voluntárias e, aos poucos, passaram a fazer parte do quadro de
funcionários da instituição. Isso justifica o mero de trabalhadoras que o
possuem a habilitação mínima exigida e, em muitos casos, nem mesmo o ensino
fundamental completo. No ano de 2005, o programa foi concluído e as alunas
receberam o certificado de conclusão do curso nível médio modalidade
normal.
Para a escolha das mulheres participantes da pesquisa, foi feito um
levantamento das mulheres/trabalhadoras de creches freqüentes ao Programa,
utilizando uma ficha de identificação (ANEXO A). Das 90 mulheres de duas
turmas, cinco foram selecionadas. O critério utilizado foi o tempo de trabalho na
educação infantil. Considerei aquelas que estavam atuando nas creches nos
últimos dez anos. Em seguida, foi feito contato com as escolhidas para a
apresentação da intenção da pesquisa e discussões em torno de sua
implementação.
Foram utilizadas entrevistas abertas, através das quais foram recolhidos e
registrados os depoimentos orais das professoras. Os relatos orais se
26
constituíram na principal fonte de pesquisa, entretanto foram analisados alguns
documentos, como os documentos oficiais sobre o Programa. Além dos dados
documentais, realizei uma entrevista aberta com dois membros da Pró-Reitoria de
Extensão da UFMG, responsáveis pela coordenação geral do Programa. A
entrevista foi realizada na sala da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, em
14/12/2006, perfazendo um total de duas horas, o que possibilitou uma visão
maior e mais consistente sobre o Programa Emergencial (ANEXO C).
As trabalhadoras selecionadas atuam em creches distintas, localizadas nas
cidades de Ipatinga, Coronel Fabriciano e Timóteo, desde os anos 1990, de
acordo com a indicação no Quadro 1. Elas se sentiram honradas com o convite
para participarem da pesquisa e declararam a opção pela divulgação dos nomes
próprios, justificando que sentem orgulho de quem são e do que fazem e, por
isso, não gostariam do anonimato. Optei por utilizar apenas o primeiro nome, sem
referência ao sobrenome e às creches onde atuam.
Quadro 1
Identificação das Mulheres que participaram da Pesquisa
Nomes Idade Tempo de Serviço na
Educação Infantil
Localização da
creche
Ana Dirce
Cleonice
cia
Joana
Neusa
57 anos
41 anos
45 anos
48 anos
47 anos
11 anos (desde 1994)
12 anos (desde 1993)
13 anos (desde 1992)
14 anos (desde 1991)
12 anos (desde 1993)
Coronel Fabriciano
Ipatinga
Ipatinga
Timóteo
Ipatinga
Fonte: Fichas preenchidas pelas entrevistadas em outubro de 2005
As entrevistas foram transcritas, editadas e analisadas à luz dos aportes
tricos e contextuais, de acordo com os seguintes eixos de análise
5
(ANEXO B):
A trajetória das professoras, da infância ao ingresso na creche;
A construção da identidade profissional das trabalhadoras de creche;
5
Chamo de eixo de análise a organização da entrevista, de acordo com possíveis categorias de
análise após feita a transcrição. Esses eixos auxiliam no processo de transcriação da entrevista.
27
A percepção dessas trabalhadoras sobre o próprio ocio;
Influência de um curso de formação emergencial no processo identitário
dessas mulheres.
A realização das entrevistas deu-se entre janeiro e setembro de 2006. Para
cada uma foram feitos dois encontros, com duração de uma hora em cada
encontro. Esse tempo de uma hora foi estabelecido, por causa do visível
esgotamento após os 45 minutos de entrevista. Associei esse desgaste ao fator
emocional. Ana Dirce e Neusa se destacaram pelo desejo de falar. Elas
anunciavam que precisavam de mais tempo para relatar situações que julgavam
importantes. A primeira entrevistada foi Neusa, depois Ana Dirce, cia, Cleonice
e, finalmente, Joana.
As entrevistas aconteceram em locais variados. A primeira entrevista
realizada foi com Neusa, em janeiro de 2006, em minha casa, por opção da
própria entrevistada, pois julgava que teria maior liberdade para falar. Estávamos,
ela e eu, muito ansiosas e a tensão era notada pelo suor das mãos e por uma
certa aflição ao falar. A primeira entrevista foi feita em gravador comum, utilizando
fitas cassetes. O segundo encontro foi realizado na própria instituição onde Neusa
trabalha, por opção dela, numa sala utilizada para as oficinas de artes. Na
segunda entrevista com Neusa, já utilizei gravador digital, sendo a entrevista
gravada posteriormente em Compact Disc. Para todas as outras entrevistas, foi
utilizado esse mesmo procedimento.
Ana Dirce preferiu que as entrevistas fossem feitas em sua própria
residência, sempre pela manhã. Ela me recebia como uma visita, algm
importante e, por isso, a família dispensava uma atenção especial para mim. Ela
se emocionou muito durante as entrevistas. Paramos várias vezes para que
pudesse secar as lágrimas e se refazer, emocionalmente, para continuar.
Nesses momentos, a relação do entrevistador com o entrevistado ganhava
uma outra dimensão. A possibilidade de participar da vida da pessoa provoca
uma certa cumplicidade, o que cria um laço de presença (LE VEN et al., 1997, p
216) e, diante de uma fala, de um relato, havia sempre um pedido de confirmação
daquilo que diziam. Em todas as entrevistas pode-se perceber, com muita
freqüência, as expressões Não é mesmo? Você sabe, não é?, comprovando,
assim, essa relação. Por essa razão, sentia que todas elas buscavam o meu
28
semblante, para verificar se havia um sinal de aprovação para o que falavam.
Buscavam um sorriso ou um movimento de cabeça como uma sinalização para
que pudessem continuar.
Na história oral, existe a geração de documentos (entrevistas), que
possuem uma característica singular: são resultados do diálogo entre
entrevistador e entrevistado, entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o
historiador a afastar-se de interpretações fundadas numa rígida
separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a buscar caminhos
alternativos de interpretação. (AMADO & FERREIRA E, 2005, p. xiv)
Os dois momentos de entrevista realizados com cia foram em sua
própria casa. Ela dedicou o seu tempo, pela manhã, para me atender. No
segundo encontro, a mãe de cia estava presente e fez questão de participar da
entrevista, dando depoimento sobre a escolarização dela, dos filhos e do marido.
Foi um momento muito rico, pois não só se confirmava muitos dos depoimentos
da própria cia, como também confirmava, para mim, a consistência das fontes
orais.
A história, como toda atividade de pensamento, opera por
descontinuidades: selecionamos acontecimentos, conjunturas e modos
de viver, para conhecer e explicar o que se passou. Uma entrevista de
história oral o é exceção nesse conjunto. Mas nela uma vivacidade,
um tom especial, característico de documentos pessoais. É da
experiência do sujeito que se trata; sua narrativa acaba colorindo o
passado com um valor que nos é caro: aquele que faz do homem um
indivíduo único e singular em nossa história, um sujeito que efetivamente
viveu e, por isso vida a as conjunturas e estruturas que de outro
modo parecem tão distantes. (ALBERTI, 2004, p. 14)
Cleonice e Joana também preferiram que as entrevistas fossem realizadas
na casa delas. Como moram em região mais periférica, o grande problema que
encontrei foi o acesso às residências.
No caso de Cleonice, um fator que dificultou muito na hora dos relatos foi a
linguagem, uma vez que ela ficava muito ansiosa por causa de sua gagueira.
Durante todo o tempo, as frases eram curtas, reduzindo sobremaneira os relatos.
Posteriormente à edição e transcrição, foi feita a transcriação das entrevistas de
Cleonice. Dessa forma, a fragmentação da fala em virtude da gagueira o
aparece nos excertos selecionados para esta pesquisa.
29
De acordo com Melo e Tosta, tornam-se relevantes os relatos orais para os
estudos de trajetórias, considerando a oralidade como importante fonte de
construção e reconstrução histórica:
a pesquisa com fontes orais, apoiando-se em pontos de vista individuais
ou coletivos, expressos nas entrevistas, estão legitimadas como fontes
(seja por seu valor simbólico), incorporando, assim, elementos e
perspectivas às vezes ausentes de outras práticas históricas porque
tradicionalmente relacionados apenas a indivíduos como a
subjetividade, as emoções ou o cotidiano (MELO e TOSTA, 2004, p. 5).
Joana mostrou muito entusiasmo com a pesquisa e esforçava para não se
esquecer de nenhum fato importante. Disse em vários momentos que era muito
bom poder contar a sua história, o que contribui para a riqueza dos detalhes dos
fatos narrados. Durante as entrevistas, aproveitou para denunciar as condições
em que se encontrava a instituição onde trabalha. Ela me pedia para, se fosse
possível, encaminhar as denúncias à Prefeitura Municipal.
Foi muito interessante constatar o envolvimento das entrevistadas. O rigor
de cada uma para que os fatos fossem ordenados corretamente. A fala
(interrompida, sussurrada, alterada) que mediava a história narrada (fragmentada,
inconclusa, ora alegre, ora sofrida) e a emoção eram importantes componentes
de filtragem da importância dos fatos: o que era mais ou menos importante vinha
acompanhado de um sorriso, de lágrimas, de olhares dispersos, como quem
procura entender o que acabou de falar. A mudança brusca de assunto também
sinalizava para os fatos. E pela história contada temos a sensação de que as
descontinuidades são abolidas e recheadas com ingredientes especiais:
emoções, reações, observações, idiossincrasias, relatos pitorescos (ALBERTI,
2004, p. 14).
Paralelamente às entrevistas, foi feita análise de alguns documentos, para
caracterizar o Programa Emergencial e compreender melhor os depoimentos das
entrevistadas. A análise da legislação específica foi de grande importância, na
medida que permitiu contextualizar as informações prestadas pelas entrevistadas,
dando subsídios para desvelar aspectos novos em seus depoimentos.
Segundo Ludke e André,
30
os documentos constituem tamm uma fonte poderosa de onde podem
ser retiradas evidências que fundamentam afirmações e declarações do
pesquisador. Representam, ainda, uma fonte natural de informação.
Não são apenas uma fonte de informação contextualizada, mas surgem
num determinado contexto e fornecem informações sobre esse contexto.
(LÜDKE & ANDRÉ, 1986, p.39)
Foram analisados os seguintes documentos relativos ao Programa
Emergencial:
Relatório geral elaborado a partir dos relatórios encaminhados pelos
coordenadores do Curso nas instituições de Ensino Superior
participantes, intitulado Curso de Habilitação do Educador Infantil
FAT 2001 arquivo da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG.
Relatório do Programa Emergencial para Habilitação em nível médio
modalidade normal do professor de Educação Infantil em exercício
(2000 2003) - arquivo da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG.
Também foi analisada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
Lei 9394/96 e os seguintes documentos legais:
Parecer nº 04/2000. CNE/CEB, 16 de fevereiro de 2000.
Dispõe sobre as diretrizes operacionais para a educação infantil. Trata
de vários aspectos normativos para a educação infantil, a serem
considerados pelos sistemas educacionais, a partir da aprovação da
LDBEN 9394/96.
Parecer nº 1072/2000. CEE, 26 de outubro de 2000.
Examina proposta de implementação do Programa Emergencial para
Habilitação em nível médio modalidade normal do professor de
Educação Infantil em exercício a ser ministrado por instituições de
Ensino Superior do Programa Minas Universidade Presente.
Parecer nº 546/ 2001. CEE, 26 de junho de 2001.
Examina consulta formulada pela Secretaria Executiva do Programa
Minas Universidade Presente referente à operacionalização do Programa
Emergencial para Habilitação em nível médio modalidade normal do
professor de Educação Infantil em exercício
Portaria nº 414/2001. SEE, 23 de junho de 2001, p. 02, col. 02 e 03.
Dispõe sobre o acompanhamento do funcionamento e a expedição de
documentos escolares referentes ao Programa Emergencial para
Habilitação em nível médio modalidade normal do professor de
31
Educação Infantil em exercício a ser ministrado por instituições de
Ensino Superior do Programa Minas Universidade Presente
Portaria nº 1070/2002. SEE, 26 de janeiro de 2002, p. 02, col. 02.
Dispõe sobre o acompanhamento e expedição de documentos escolares
referentes aos cursos ministrados de forma descentralizada por
instituições escolares vinculadas ao Sistema Estadual de Ensino.
.
32
3. REFERENCIAL TEÓRICO
O ato da interrogação, que institui uma demanda, autoriza e encoraja a
explicitação das intenções tricas e de tudo o que as separa das visões
concorrentes [...]
Pierre Bourdieu
3.1. Identidade: percorrendo algumas abordagens
Na tentativa de compreender os processos identitários das trabalhadoras
de creche, parto da perspectiva apontada por Claude Dubar, pensando-a no que
diz respeito à dimensão pessoal e profissional na construção de identidades no
interior das creches. Dessa forma, compreendo as identidades sociais e
profissionais como um processo onde ocorrem sucessivas identificações, que se
constroem e se articulam durante as trajetórias percorridas pelos atores.
Segundo Melo e Tosta (2004), a identidade é uma categoria pluridisciplinar,
objeto de investigação em vários campos do conhecimento, como História,
Psicologia, Antropologia, Filosofia, dentre outros. O conceito de identidade surge
a partir da compreensão das relações socioculturais. Para a Psicologia Social, a
identidade é construída através da interação com o outro e, para a Antropologia, a
identidade surgiu da necessidade de se compreender e explicar conflitos, bem
como as relações desiguais entre grupos.
Dessa maneira, por se tratar de um tema amplo, podemos ter definições
variadas, de acordo com os variados construtos teóricos. Mesmo não os
utilizando como aporte desse trabalho, situo alguns trabalhos nos quais o conceito
de identidade é desenvolvido:
a) O trabalho de Hall (1997, p. 8), discorre sobre as identidades no
contexto da modernidade. Para ele, as identidades modernas estão sendo
descentradas, isto é, deslocadas ou fragmentadas. Ele busca avaliar se existe
uma crise de identidade na chamada modernidade tardia. Hall compreende a
identidade como um processo em andamento e aponta alguns pressupostos para
o processo de descentração da identidade do sujeito, na modernidade. Dessa
forma, o sujeito está fragmentado e carece de uma organização que lhe possibilite
uma melhor inserção na sociedade, bem como a compreensão de si mesmo.
33
b) No olhar da Antropologia, encontramos em Poutignat (1998) uma análise
do trabalho de Fredrik Barth sobre identidade étnica, no qual ressalta que
porque as identidades tornam-se endossadas, novas formas de
comportamento tenderão a ser dicotomizadas: poder-se-ia esperar que
as restrições sobre os papéis fossem exercidas de tal modo que os
indivíduos relutariam em agir sobre novas maneiras, com medo de que
estes novos comportamentos pudessem ser inadequados a uma pessoa
com sua identidade [...] (POUTIGNAT apud FREDRIK BARTH,1998, p.
189)
Nessa direção, também encontramos o trabalho de Oliveira (1976, p. 44)
quando trata do caráter relacional das identidades, no qual afirma que num sujeito
pelo menos duas identidades, o que ele considera por identidade
complementar. Para ilustrar, Oliveira apresenta o exemplo do médico em suas
relações: o médico com o colega médico, o médico com o paciente, o médico com
a esposa, etc. Para cada situação, em cada contexto, esse sujeito se posiciona de
uma forma. O contexto determinará, muitas vezes, a sua ação, o que não significa
que seja ação previsível ou planejada. Nesse sentido, o conceito de inconclusão
do homem, pode nos ajudar a compreender esse processo: seres inacabados,
inconclusos, em e com uma realidade que, sendo também histórica, é igualmente
inacabada (FREIRE, 1987, p. 72).
c) Na Psicologia Social, Ciampa aponta o conceito de diferença e
igualdade:
Sucessivamente, vamos nos diferenciando e nos igualando conforme os
vários grupos sociais de que fazemos parte: brasileiro, igual a outros
brasileiros, diferente dos estrangeiros (s os brasileiros somos...
enquanto os estrangeiros são...) homem ou mulher (os homens são...
enquanto as mulheres são) [...] O conhecimento de si é dado pelo
reconhecimento recíproco dos indivíduos identificados através de um
determinado grupo social que existe objetivamente, com sua história,
suas tradições, suas normas, seus interesses, etc.(CIAMPA, 1989, p .63)
Nóvoa (1992, p. 16) trata a identidade do professor como processo
identitário, caracterizado por construções e reconstruções em tempos diversos,
que se fazem necessárias para a assimilação das mudanças. Estar hoje o
significa estar amanhã. Nessa perspectiva, em que fala de uma dada condição do
professor no processo identitário, Nóvoa trabalha com o conceito AAA: A de
Adesão, A de Aão e A de Autoconsciência (grifos do autor): A adesão significa
34
a incorporação de atitudes e valores em prol do desenvolvimento das
potencialidades do aluno. A ação implica na melhor escolha para atuar com os
alunos e se fazer reconhecido e finalmente, a autoconsciência diz respeito à
reflexão sobre a própria ação, na medida em que a mudança e inovação
pedagógica estão intimamente dependentes deste pensamento reflexivo.
Diante dessas colocações, tento mostrar a complexidade do tema
identidade, o que pressupõe trabalhar com conceito amplo, diante da pluralidade
de definições. Sendo assim, parto da premissa de que as identidades das
trabalhadoras de creches não podem ser analisadas como tema fechado ou
prescritivo.
Se cada indivíduo é capaz de construir a sua própria identidade social, a
partir da pertença aos grupos em sua trajetória, nos percursos vividos, é possível
afirmar que a noção de identidade implica uma multiplicidade de movimentos, ora
homogêneos (de acordo com o grupo), ora plurais (relativos às reconstruções
dentro do grupo). Se efectivamante a identidade implica alguma constância, o
se trata, no entanto, duma repetição indefinida do mesmo, mas antes dialética,
por integração do outro no eu, da mudança na continuidade (VIEIRA, 1999, p.
58).
É possível entender, tamm, o conceito de identidade em Lahire (2002, p.
36), no que se refere às trajetórias dos atores. Para Lahire, o ator em sua
trajetória ou, simultaneamente, no curso de um mesmo período de tempo,
participa de universos sociais variados, ocupando aí posições diferentes: na
família, no trabalho, nos grupos sociais:
Poder-se-ia, consequentemente, aventar a hipótese da incorporação, por
cada ator, de uma multiplicidade de esquema de ação que se organizam
tanto em repertórios como em contextos sociais pertinentes que
aprendem a distinguir e muitas vezes dar nome através de suas
experiências socializadoras anteriores. (LAHIRE, 2002, p. 37)
Compreendida dessa maneira, a socialização representa, um processo de
identificação, de construção da identidade, ou seja, de pertencimento e de
relação (DUBAR, 2005, p. 24). Nesse sentido, falar dos processos de
socialização torna-se relevante para entender a polissemia das entrevistadas. As
experiências vividas no âmbito familiar, na convivência socializadora com os
35
pares consangüíneos (pais, irmãos, tios, avós...), o que é concebido por Berger &
Luckmann (2005) como socialização primária, marcam o início da trajetória dos
atores e, no decorrer da trajetória, a socialização secundária, forjada nas
relações fora do âmbito familiar (escola, igreja, trabalho...). Nesse processo de
socialização, incorporam-se atitudes e hábitos que se organizam e se expressam
nas ações nos mais variados contextos.
Para Lahire (2002), um ator plural é o produto da experiência - precoce - de
socialização em contextos sociais múltiplos e heterogêneos. Ao longo de sua
trajetória, participou de universos sociais variados, ocupando aí posições
diferentes. Pode-se pensar na hitese de incorporação de uma multiplicidade de
esquemas de ação, de bitos que se organizam em repertórios. Repertórios de
esquemas de ação são conjuntos de sínteses de experiências sociais que foram
construídas ou incorporadas durante a socialização anterior nos âmbitos sociais.
O sujeito aprende e compreende que aquilo que se faz e não se diz num contexto,
não se faz e se diz em outro contexto. O sentido das situações é mais ou menos
incorporado. Os esquemas incorporados não são todos necessários em todo o
tempo e em todos os contextos. Eles estarão disponíveis para as diferentes
possibilidades de uso. As transferências dos esquemas são raramente
transversais ao conjunto dos contextos sociais, mas efetuam-se no interior de
cada contexto.
Dubar (2005) fala de eixos de identificação do ator: a) eixo diacrônico
ligado a uma trajetória subjetiva e b) eixo sincrônico, ligado a um contexto de
ação e uma definição de situação. Assim, as identidades são relativas a uma
época histórica e a um tipo de contexto social. Entendida dessa forma, a
identidade não é dada, de uma vez por todas, no nascimento: é construída na
infância e reconstruída no decorrer da vida (DUBAR, 2005, p. 25).
O pertencimento a um grupo e, sucessivamente, a outros grupos sugere
sucessivas socializações, a partir do que se pode chamar de traços gerais: a
linguagem, os valores sicos, os modelos essenciais de relações, bem como os
hábitos comuns.
A identidade se no campo relacional e, segundo Dubar (2005, p. 97), as
abordagens culturais e funcionais da socialização enfatizam uma característica
essencial da formação dos indivíduos: ela constitui uma incorporação das
36
maneiras de ser (de sentir, de pensar e de agir) de um grupo. Esse grupo, no
entanto, relacionando-se com outros grupos, poderá estabelecer, com cada um,
comportamentos de identificação com um grupo e outro. O autor discute a
dimica das identidades sociais e profissionais como um processo
simultaneamente estável e provisório. Dubar (2005, p. 135) afirma que a
identidade nunca é dada, ela sempre é construída e deverá ser (re)construída em
uma certeza maior ou menor e mais ou menos duradoura. Segundo ele, a
construção da identidade faz-se na articulação entre os sistemas de ação que
propõem identidades virtuais e as trajetórias de vida, no interior das quais se
constroem as identidades reais, estando essas de acordo com os espaços
sociais. Nesse processo, ao longo da trajetória vivida, pode-se perceber a
construção da identidade para si que tipo de homem (ou de mulher) você quer
ser” e da identidade para o outro designações oficiais de Estado,
denominações étnicas, regionais, profissionais, até mesmo idiossincrasias
diversas, que definem que tipo de homem (ou mulher) você é. Nessa
perspectiva, constroem-se alguns conceitos de identidade: a) Identidade
numérica: estado civil, códigos de identificação, etc; b) Identidade genérica:
membro de um grupo, de uma categoria, de uma classe; c) Identidade social
virtual: aquela conferida a uma pessoa e d) Identidade social “real: que a
pessoa atribui a si mesma (DUBAR, 2005, p. 137).
Nesta investigação, trabalho com o conceito de construção de identidade
como um processo, apoiada em Dubar. Busco enfatizar, como categoria de
análise, o papel da família nessa construção, considerando a condição de famílias
pobres, nos quais as depoentes estão inseridas. Parto do pressuposto de que a
família deve ser considerada na busca pelas marcas identitárias das mulheres
trabalhadoras de creche. É necessário entender de onde elas vêm, ou seja, sua
origem familiar. O papel da família pode ser analisado à luz de Bourdieu (2004a),
que a considera geradora de tensões e contradições. O pai é o sujeito e o
instrumento de um projeto que, estando inscrito em suas disposições herdadas, é
transmitido inconscientemente, em e por sua maneira de ser”. Nesse sentido,
para Bourdieu,
herdar é transmitir essas disposições imanentes, perpetuar esse
canatus, aceitar tornar-se instrumento cil desse ‘projeto’ de
37
reprodução. A herança bem-sucedida é um assassinato do pai,
consumado a partir de sua própria injunção, uma superação dele
destinada a conservá-lo, manter seu projeto de superação que, enquanto
tal, está na ordem das sucessões. A identificação do filho com o desejo
do pai como desejo de ser continuado, faz o herdeiro sem história.
(BOURDIEU, 2004a, p. 232)
No caso das trabalhadoras de creche, além da herança familiar, das
práticas incorporadas na infância e no decorrer da trajetória de vida, também
uma herança do universo feminino, que sentido aos traços privados
(PERROT, 2005, p. 29), socialmente aceitos e instaurados no cotidiano dessas
trabalhadoras.
3.2. A identidade feminina: memória do privado
O que dizer sobre a trabalhadora de creche? Quem são as mulheres que
cuidam e educam as crianças pequenas no interior das creches? Na construção
do meu objeto de pesquisa, essas questões estiveram presentes. Inicialmente,
proponho que pensemos na profundidade da expressão de Beauvoir (1980, p. 9)
quando afirma que ningm nasce mulher, torna-se mulher”. Além dessa
afirmativa, outras tantas construções sobre o universo feminino. Perrot (1988,
p. 168) escreveu que a natureza da mulher tem dois pólos: um maternal e
benéfico e o outro, maléfico, origirio de Eva
6
. Essas e tantas outras instauram
discussões sobre o feminino, problematizando sobre a moral doméstica, segundo
a qual a mulher é quem cuida e o homem é quem produz.
Não é meu intento dissertar sobre as teorias que amparam o discurso
sobre o feminino ou sobre as incursões feministas. Porém, nesse trabalho, onde
as minhas análises estão concentradas no sentido de desvelar as identidades de
trabalhadoras, no tocante ao trabalho feminino nas creches, julgo necessário
enfocar a base dessas inquietações.
6
Referência à personagem bíblica de Eva, a primeira mulher criada por Deus, a partir de uma
costela de Adão, o homem.
38
Se considerarmos que o mundo público, sobretudo o econômico e o
político, historicamente foi preenchido pelos homens (PERROT, 1988), de se
pensar também que, no campo do trabalho, as profissões ou ofícios mais
rentáveis tiveram a presença significativa do masculino. A história também
demarcou o lugar da mulher pobre, da mulher negra, da mulher burguesa: de
uma postura em que se acreditava na possível identidade única entre as
mulheres, passou-se a uma outra, em que firmou a certeza de múltiplas
identidades (SOIHET, 1997, p. 277).
Quando trato do trabalho nas creches, falo de uma presença de mulheres
que buscam o trabalho para ajudar no sustento da casa, ou mesmo para garantir
esse sustento. O que vemos no espaço das creches é o corpo feminino ocupando
o lugar do zelo, da maternidade e do benéfico. Cuidar das crianças simboliza uma
continuidade das práticas domésticas. De acordo do Chodorow (2002, p. 25), a
maternação das mulheres determina a sua posição principal na esfera doméstica
e cria base de diferenciação estrutural das esferas domésticas e blicas.
Nos relatos apresentados a seguir, estão esboçadas as concepções sobre
o trabalho, bem como sobre o ambiente doméstico que se materializa na ação
efetiva dessas trabalhadoras. Sem intenção de generalizar, os depoimentos falam
por si só. Para as entrevistadas, o trabalho doméstico, mesmo que não queiram, é
de total responsabilidade delas.
Na primeira colocação, uma tentativa de se compreender a situação,
considerando o que é socialmente legitimado.
O meu marido trabalhava muito, mas em 1995 já havia se aposentado. E
o homem aposentado fica mais dependente, né? Fica mais dependente,
quer mais carinho. Porque ele trabalhou [...], agora quer ser cuidado.
(Ana Dirce, 11/04/2006)
Temos também um desabafo, sufocando um desejo de romper com o que
está instalado. Há uma certa indignação e, também, a presença da dificuldade em
desconstruir o que está solidificado na compreensão social.
Eu vejo por experiência própria. É dicil ser mulher. É dicil. A gente tem
que ser mãe, tem que ser tudo, né? Mesmo quando o pai está junto tem
que se desdobrar... As mulheres têm casa e, têm o serviço de fora. Em
casa tem que atender o marido. A mulher trabalha mais que o marido,
né? O marido chega em casa, vai para a televisão descansar. E a mulher
39
chega e ainda tem que fazer a janta, cuidar dos filhos, olhar o dever da
escola. Tudo isso é papel da mulher, né? A gente até poderia estar
dividindo essa tarefa, só que é muito dicil. (Cleonice,16/05/2006)
Percebo que não uma aceitação passiva da situação, mesmo porque as
condições e as dificuldades em conciliar o trabalho doméstico com o trabalho fora
de casa exigem outra compreensão acerca da submissão doméstica, o que leva a
pensar sobre a divisão sexual do trabalho. É, sobretudo, a análise em termos de
divisão sexual do trabalho que permite demonstrar que existe uma relação social
específica entre os grupos de sexo (KERGOAT, 1996, p. 20 ).
Por que quem tem que lavar, passar, cozinhar tem que ser só mulher.
Fui criada assim, mas não concordo. O homem tem que estar nessa.
Aqui em casa se depender de mim funciona assim. É dicil colocar os
homens para ajudar a fazer o serviço de casa, porque eles foram criados
para não aceitar essa situação. (Joana, 26/09/2006)
Buscando outros exemplos retirados das entrevistas, sinalizo para a
compreensão, das trabalhadoras investigadas, sobre a rotina da dupla jornada,
apontando para a posição assumida pelos companheiros, o que demonstra uma
afirmação de que às mulheres cabem as obrigações no âmbito doméstico.
Na minha vida, em todas as reuniões de escola meu marido nunca foi.
Nunca participou das reuniões de escola das filhas. Nunca participou de
uma reunião, mesmo quando eu trabalhava. Eu falava pra ele que eu
trabalhava na creche, e falava pra ele assim: “Eu não posso faltar ao
serviço. Mas ele não ia. Aí eu tinha que pedir a outra pessoa,
normalmente uma vizinha. Isso era conflito no meu casamento, porque
eu cobrava muito dele. Eu falava pra ele que eu sempre fui mãe e pai pra
minhas filhas. (Neusa, 18/04/2006)
Bom, eu acho que o trabalho do homem é menor. Porque o homem a
preocupação dele é com aquele trabalho lá. Saiu de manhã, foi trabalhar,
ele não precisa se preocupar nem com a sua roupa. Eu creio que seja a
maioria o é, Tereza? Não precisa se preocupar com um almoço. A
roupa lavada, passada e tal. O trabalho dele é aquele , não é? E eu
acho assim que há uma diferença muito grande nessa situação aí. Para
a mulher é mais dicil. Ela sofre mais para trabalhar fora. É mais
complicado, porque a mãe, ela se preocupa mais. Eu não sei, mas acho
que a maioria dos pais deixa mais responsabilidade para as mães.
(cia, 12/05/2006)
Nesse contexto em que uma presença sica da mulher no trabalho
doméstico, percebe-se que outras questões podem surgir, no que diz respeito à
40
construção identitária. Considerando em Perrot (2005, p. 470) que homens e
mulheres são também identificados por seu sexo, mesmo que consideremos
novas posturas, novas abordagens não seria prudente negar essa afirmação.
3.3. Identidade profissional: uma análise em Claude Dubar
Segundo Dubar (2005, p. 221) a renovação da sociologia das profissões
se acelerou com a crise dos anos 1960 (Estados Unidos) e 1970 (Europa
ocidental). O problema do desemprego, com relação à população mais jovem,
fez emergir discussões sobre o acesso e o reconhecimento profissional. Dubar
trabalha com os conceitos de identidade para si e identidade para o outro, o
que chamou de teoria sociológica da identidade, para discutir o processo de
socialização dos atores no contexto do trabalho e das profissões.
Nesta pesquisa, busco analisar a construção de identidades profissionais
de trabalhadoras de creche. É nesse sentido que, seguindo as construções dentro
da sociologia de Dubar, farei uma análise refletindo se as trabalhadoras de creche
podem ser consideradas como profissionais ou não. Percebo que é um tema
pouco explorado e algumas pesquisas
7
em torno de objetos semelhantes não
problematizaram, de maneira direta, essa questão.
Cerisara (1996) buscou identificar aspectos que pudessem contribuir para
elucidar o processo de construção da identidade das profissionais de educação
infantil, a partir de dados empíricos obtidos junto a auxiliares de sala e
professoras que trabalham nas creches. Segundo a autora, as profissionais
destas instituições foram pensadas a partir da forma como estas profissões têm-
7
Refiro-me a duas pesquisas consultadas:
SILVA, Isabel de Oliveira e. Identidade profissional e escolarização de educadoras de creche
comunitária: histórias de vida e produção de sentidos, 1999. 246 f. Dissertação (Mestrado em
Educação). Belo Horizonte: UFMG/FaE.
CERISARA, Ana Beatriz. A construção da identidade das profissionais de educação infantil; entre
o feminino e o profissional, 1996.184 f. Tese (Doutorado em Educação). São Paulo: USP/FE.
41
se constituído historicamente. O objetivo do trabalho foi compreender como se dá
a influência das práticas femininas domésticas na prática profissional das
mulheres que trabalham em creches e pré-escolas.
Silva (1999) trabalhou com história de vida de três mulheres, trabalhadoras
de creches da cidade de Belo Horizonte. O objetivo foi o de desvelar os
significados referentes ao próprio trabalho, entendidos enquanto mediações para
apreensão dos sentidos atribuídos pelas mulheres à sua ação profissional.
3.3.1. Identidade para si e Identidade para o outro
A análise sobre o conceito de trabalho e de profissões possibilitou a
reflexão sobre as condições de acesso e permanência das trabalhadoras nas
creches.
Dubar (2005) traz o conceito de identidade para si e identidade para o outro
(conceito que retomo nesse momento). A identidade para si, construída na esfera
subjetiva, a partir do entendimento de si mesmo, que, no âmbito do trabalho,
poderá ser forjada a partir das próprias experiências e na aquisição do que Dubar
chama de saberes práticos. Para as trabalhadoras de creche, as experiências
domésticas e a maternagem são fundantes na construção da identidade para si, o
que para Mello representa uma ausênica de profissonalismo: a condição feminina
é, portanto, na minha interpretação, um dos elementos que garante a perpetuação
do senso comum, no qual predominam o amor, a vocação e a ausência de
profissionalismo (MELLO, 1982, p. 70).
No caso das mulheres investigadas, a identidade construída na esfera
subjetiva o possibilita a ascensão profissional. Nem mesmo a posição que
ocupam, considerando a sua formação, garantirá evolução profissional dentro das
creches. Para as entrevistadas, isto ficou bem claro. O Programa Emergencial
(representando a formação) contribuiu para a permanência no emprego e não
para alavancar uma carreira dentro da creche. Nesse sentido, a posição que
ocupam é meio estática. Com base nesse argumento e nas entrevistas, alguns
42
marcadores identitários poderão ajudar a desvendar os possíveis traços e
processos identitários das trabalhadoras de creche investigadas:
Ausência de uma formação profissional, com base na qualificação para
o trabalho;
Pouca ou nenhuma perspectiva de ascensão no trabalho;
Origem familiar de baixo nível de escolaridade (considerando a partir
da entrevista, a escolaridade dos pais, dos irmãos e dos esposos);
Base de referência do trabalho na aprendizagem doméstica e na
maternagem: valorização do cuidar e do saber tomar conta da
criança.
Compreende-se ainda melhor a significação da estabilidade na
identidade social dos assalariados: é o reconhecimento pela empresa e,
mais ainda, pela sociedade, da legitimidade de sua existência tal como
são (identidade para si), ou seja, tal como foram produzidos por sua
socialização inicial e tal como se produziram por meio dela. Essa
identidade sica foi definitivamente reconhecida pelo acesso a seu
emprego, com o qual se identificaram então. Atentar contra o emprego é
atingir a integridade de seus ocupantes. (DUBAR, 2005, p. 267)
A partir da colocação de Dubar a respeito do setor empresarial, pode-se
inferir sobre o desejo de reconhecimento profissional das trabalhadoras,
considerando a profissão professor
8
. Assim, pelo reconhecimento do outro,
pudessem (re)construir sua identidade e sentir-se professoras da educação
infantil.
Qual é a identidade das trabalhadoras de creche para os gestores das
creches e para o Sistema Municipal de Ensino? De fato, elas são professoras ou
não? Conforme me disseram durante as entrevistas, todas continuam recebendo
o salário mínimo. Segundo elas, salário de creche. Assim, com a qualificação
exigida
9
, falta-lhes reconhecimento profissional. Sua identificação, até mesmo na
carteira de trabalho não chegou ao status de professora. Saíram da categoria
crecheira para monitora. De monitora para educadora de creche. Na verdade, a
8
Faço referência à expressão utilizada por NÓVOA, Antônio. Os professores e suas histórias de
vida. In: NÓVOA, Antônio (org.). Vidas de Professores. Porto: Editora Porto, 1992.
9
A LDBEN 9394/96 define o profissional da Educação Infantil como professor, estabelecendo
que sua formação far-se-á em nível superior [...] admitida como formação mínima para o exercício
de magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental a
oferecida em nível médio, na modalidade Normal . (Art. 62).
43
qualificação através do Programa trouxe para todas elas uma gratificação para a
auto-estima, mas em pouco alterou suas condições de trabalho. Segundo Dubar
(2005, p. 316), a identidade para o outro é atribuída com base na atividade
profissional e nos status sociais oficiais, objetivados na esfera social.
No posicionamento quanto aos salários, pude perceber alguns elementos
que correspondem à realidade homogeneizada das trabalhadoras, no que diz
respeito ao reconhecimento profissional:
A remuneração equivalente ao salário mínimo, considerando uma
jornada de seis a oito horas diárias de trabalho;
A compreensão de que, pela remuneração, se configura a manutenção
do baixo reconhecimento profissional: O salário do educador, hoje, o
é aquele salário que deveria ser, mas melhorou. Na minha carteira eu
era monitora. Minha carteira passou para educadora [...].
A percepção de que ainda não se consolidaram como professoras da
educação infantil: “Não tem funcionária da creche com carteira assinada
como professora”.
Vejamos o que dizem as mulheres entrevistadas a esse respeito:
O salário do educador
10
, hoje, não é aquele salário que deveria ter, mas
melhorou. Na minha carteira eu era monitora. Minha carteira passou para
educadora, parece-me que foi em dois mil e três. Mas antes era
monitora, foi registrada como monitora. Ficou até 2003 e depois passou
para educadora, mesmo atuando como professora. E todas as carteiras
eram de educadoras. Não tem funcionária da creche com carteira
assinada como professora. Em todas as creches conveniadas, as
professoras são registradas como educadoras. (Neusa, 18/04/2006)
Eu recebo o salário mínimo. É salário mínimo, agora a gente tem um
acréscimo de dez por cento. Tipo um incentivo, não sei se é incentivo
que a gente fala. Vamos supor que se é trezentos, vai para trezentos e
trinta... ai tem o desconto, esse negócio. Para todos, mas as novas
contratadas é que têm diferença. Porque elas são contratadas por hora,
depois vai se igualando com a gente. Então vão se igualando para não
ter mais diferença... a diferença que tem é por causa do abono. (Ana
Dirce, 11/04/2006)
10
uma variação de salário de acordo com as Prefeituras das cidades de Coronel Fabriciano,
Timóteo e Ipatinga. Segundo a informação das entrevistadas, o menor salário é o mínimo vigente
e o maior, é o mínimo vigente mais uma gratificação, que varia de 10% a 30% sobre o salário.
44
Na verdade, o nosso salário melhorou. A gente recebeu um valor baixo
muito tempo, depois houve essa melhoria de salário. A gente recebia
duzentos e oitenta reais, muito tempo salário mínimo. Não sei se era
duzentos reais na época, eu o me lembro direito. Mudou. E hoje, por
exemplo, ele está quatrocentos e cinqüenta, me parece, na carteira, ou
quatrocentos e setenta, um negócio assim, na carteira. No caso, é bruto.
O que eu recebo, que eu não tenho salário família, eu recebo
quatrocentos e trinta e oito. Quer dizer, eu recebi o último foi
quatrocentos e trinta e oito. Líquido. Então, assim, passa de um salário,
hoje o sario é ... foi para trezentos e cinqüenta. Passa, mas não chega
a um e meio não, não é? Então, pelo menos, saiu aquela questão de
menos de um salário. Então, assim, eu soube que teve um aumento aí
de 4% mas eu... Não existe essa relação, porque o sario mínimo subiu
o nosso tamm vai subir. (cia, 12/05/2006)
Para Dubar (2005, p. 330), a construção das identidades profissionais é,
portanto, inseparável da existência dos planos de emprego-formação [...].
Compreendida dessa forma, as trabalhadoras de creche vivem uma tensão em
busca de reconhecimento profissional. Aspiram por fazer parte do grupo de
professoras da infância e o Programa Emergencial possibilitou-lhes a
aproximação desse grupo. Porém, verifica-se que essa aproximação é um
processo e, como tal, carece de tempo para refazer a identidade para si e
assimilar as mudanças impostas pela identidade para o outro. A identidade para o
outro pressupõe:
Reconhecimento profissional;
Pertencimento a um grupo, categoria ou classe, reconhecidos
socialmente;
A possibilidade de ascensão profissional;
A competência técnica (reconhecida e valorizada).
Nesse processo de construção, encontramos no conceito de habitus, pistas
para a definição das identidades construídas pelas trabalhadoras de creche.
3.4. Reflexões sobre o conceito de habitus
O francês Pierre Bourdieu, de acordo com Nogueira e Nogueira (2004), foi
uma das grandes presenças da Sociologia do século XX, com reconhecimento
mundial. Autor de uma importante teoria dos campos de produção simlica, o
45
sociólogo procurou explicar que as relações de força entre os agentes sociais
apresenta-se sempre na forma transfigurada de relações de sentido. A violência
simlica, outro grande tema da sua obra, não era considerada por ele como um
puro e simples instrumento a serviço da classe dominante, mas como algo que se
exerce também através do jogo entre os agentes sociais.
Na análise sobre a educação, Bourdieu se destaca como importante teórico
e, ainda, segundo Nogueira e Nogueira (2004, p. 12), teve o mérito de formular, a
partir dos anos 1960, uma resposta original, abrangente e bem fundamentada,
trica e empiricamente, para o problema das desigualdades escolares.
Entre os muitos conceitos elaborados por Bourdieu, tomarei para análise o
conceito de habitus, para tentar compreender as relações que se estabelecem no
interior das creches, sobre o sentido do cuidado apreendido pelas trabalhadoras
de creche na relação de trabalho com as crianças pequenas.
Compreendo a complexidade da obra de Bourdieu e não é minha intenção
nesta pesquisa discorrer sobre a profundidade da mesma. Nesta investigação,
utilizo o conceito de habitus, tratando especificamente do habitus feminino para
compreender o processo de incorporação do cuidado em relação ao trabalho com
as crianças na creche. Busco através da noção de habitus a compreensão do
sentido da maternagem para as trabalhadoras de creche.
Para Bourdieu, uma força simlica que impulsiona as relações entre
homens e mulheres em ações mediadas pelo habitus de cada agente.
Compreender as regras do jogo, muitas vezes, significa posicionar-se em campos
demarcados socialmente. Assim, o habitus como o sentido do jogo é jogo social
incorporado, transformado em natureza. Nada é simultaneamente mais livre e
mais coagido do que a ação do bom jogador” (BOURDIEU, 2004b, p. 82).
Dessa forma, pensar na história do trabalho nas creches significa
considerar todo um percurso histórico de construções sobre homens e mulheres,
compreendendo para tal que, ao longo da formação da mulher para o magistério
foi também construída a idéia de que a natureza da mulher, com base no instinto
de mãe, era a sustentação do cuidado e assistência nas creches.
O habitus, palavra latina utilizada pela tradição escolástica, que traduz a
palavra hexis em Aristóteles, significando disposição adquirida do corpo e da
alma, é tratado por Bourdieu como estrutura geradora da prática, indicando ao
46
mesmo tempo um sistema de esquemas de percepção e apreciação das práticas.
Tal noção, segundo Bourdieu (1989, p. 61), permitia-lhe “romper com o paradigma
estruturalista sem cair na velha filosofia do sujeito ou da consciência.
Uma das gêneses do conceito de habitus em Bourdieu está em Durkheim,
que compreende o habitus como um estado geral dos indivíduos, estado interior e
profundo, que orienta suas ações de forma durável (DUBAR, 2005; LAHIRE,
2002).
Segundo Lahire (2002), Durkheim tratou desse conceito considerando duas
situações singulares: as sociedades tradicionais e os internatos. Quanto às
sociedades tradicionais, considera o grupo realizando, de maneira regular, uma
uniformidade intelectual e moral onde tudo seria comum a todos. No caso dos
internatos, emprega o conceito a intento da noção cristã como uma forma de
educação que englobaria a criança integralmente como influência única e
constante. O que aparece como uma crítica em Lahire, considerando a
pluralidade do ator.
Conseqüentemente, os indivíduos só podem ter disposições sociais
gerais, coerentes e transponíveis de uma esfera de atividade a outra
prática, ou de uma prática a outra, se e somente se - suas experiências
sociais forem sempre governadas pelos mesmos princípios. (LAHIRE,
2002, p. 25).
Dubar também se posiciona sobre o conceito de habitus em Bourdieu.
Segundo Dubar (1997b, p. 67), o habitus definido como processo puramente
social e quase mágico de socialização [...], parece excluir qualquer possibilidade
de mudança social. Dessa maneira, se cada ator reproduzisse estritamente
aquilo que aconteceu então as condições que engendraram os habitus manter-se-
iam imutáveis pela prática saída desses habitus. Com essa posição, Dubar
dialoga com Lahire (2002, p.18) no que se refere ao conceito de pluralidade do
ator social: os atores não são feitos do mesmo molde.
Dessa forma, tanto Dubar (2005) quanto Lahire (2002) confirmam a
historicidade dos atores sociais, com hábitos heterogêneos no processo de
socialização, sem desconsiderar as construções passadas para reelaboração do
presente, o que significa que as identidades são construídas num jogo dialético
entre passado e presente.
47
Por sua vez, o conceito de habitus em Bourdieu opera como produto da
história, produzindo práticas individuais e coletivas, em conformidade com os
esquemas elaborados, historicamente:
Para compreender todas as implicações da noção de habitus idéia pela
qual tentei demonstrar que se podia escapar das alternativas estéreis do
objetivismo e do subjetivismo, do mecanicismo e do finalismo [...]. A
prática poderia ser definida como um resultado do aparecimento de um
habitus, sinal incorporado da trajetória social. (BOURDIEU, 1983, p. 45)
Entendido dessa maneira, o habitus, portanto, funciona como mecanismo
que orienta a ação, sendo produto das relações sociais no processo de
socialização dos atores, e acaba por assegurar a reprodução dessas relações. A
apropriação pelos atores das normas de conduta, ações e valores sociais, acaba
por adequar suas ações à realidade objetiva da sociedade.
Considerar que a prática se traduz por uma estrutura estruturada
predisposta a funcionar como estrutura estruturante, esclarece sobre a noção de
habitus, compreendendo-a não somente como a interiorização das normas e dos
valores, mas também como os sistemas de classificação que preexistem às
representações sociais (ORTIZ, 1983, p. 16). Nesse sentido o habitus se
apresenta como social e também individual e pode ser compreendido como:
um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando
todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma
matriz de percepções, de apreciações e de ações e torna possível a
realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às
transferências analógicas de esquemas. (BOURDIEU, 1983, p. 65)
Segundo Setton (2002, p. 20-21), ohabitus não pode ser interpretado
apenas como sinimo de uma memória sedimentada e imutável; é também um
sistema de disposições construído continuamente [...], sujeito a novas
experiências.
Para Dubar (1997b, p. 71) a socialização, segundo Bourdieu, ao assegurar
a incorporação do habitus, produz a pertença de classe dos indivíduos, ao mesmo
tempo que reproduz a classe enquanto grupo que partilha o mesmo habitus”.
Já para Lahire (2002), o contato com uma pluralidade de mundos sociais
heterogêneos e contraditórios produz um ator com o estoque de esquemas de
ações ou bitos não homogêneos e não unificados e com práticas que variam
48
segundo o contexto social no qual esteve o sujeito, ou seja, todo o indivíduo
mergulhado numa pluralidade de mundos sociais está sujeito a princípios de
socialização heterogêneos e, às vezes, contraditórios. A experiência de
pluralidade dos mundos, em nossa sociedade ultra diferenciada, tem chance de
ser precoce. Desde a socialização primária e secundária (familiar e escolar) os
sujeitos estão vivendo, simultânea e sucessivamente, situações sociais
diferenciadas.
Para Bourdieu (2003b, p. 191), o habitus corresponde ao sistema das
disposições socialmente construídas que, enquanto estruturas estruturadas e
estruturantes, constituem o princípio gerador das práticas, o que equivale dizer
que o fundamento objetivo de condutas regulares faz com que os atores se
comportem de uma determinada maneira em dadas situações, de acordo com as
condições do lugar e do momento. Assim, a prática geradora dessas disposições
adquiridas e socialmente construídas é própria do ator social, que estabelece uma
apreensão ativa do mundo, constrói sua visão de mundo, mas essa é operada por
esquemas classificatórios, até mesmo determinantes de suas ações.
De acordo com Lahire (2002), Bourdieu o acentuou a excepcionalidade
do contexto histórico estudado. Portanto, não relativizou a unicidade, a
durabilidade e a transponibilidade dos esquemas ou das disposições constitutivas
do bito. A teoria do habitus se construiu a partir de um modelo de sociedade
com fraca divisão de trabalho e com fracas diferenciações, e foi adaptado para
fazer o estudo de sociedades com forte diferenciação (no sentido da
fragmentação). No entanto, Lahire concorda que pode existir um universo familiar
composto de adultos coerentes entre eles, que exercem seus efeitos
socializadores sobre as crianças de maneira regular, sistemática e durável.
Até aqui busquei contextualizar o conceito de habitus, apontando, inclusive,
algumas críticas a esse conceito. Agora, me deterei ao conceito de habitus
feminino, que tem sua explicação nas discussões sobre a dominação masculina
em Bourdieu.
Partindo do pressuposto de que na divisão sexual e familiar do trabalho, a
mulher, historicamente, ficou com a responsabilidade pelo cuidado de filhos e
filhas, bem como do esposo e da casa e que aquelas que buscaram a inserção na
creche pelo trabalho, encontraram as condições propícias para a continuidade
49
das proposições domésticas (CHODOROW, 2002), é possível pensar que as
estruturas adquiridas na maternagem foram estruturantes das concepções de
trabalho nas creches.
A constância do habitus que daí resulta é, assim, um dos fatores mais
importantes da relativa constância da estrutura sexual do trabalho: pelo
fato de serem estes princípios transmitidos, essencialmente, corpo a
corpo, aquém da consciência e do discurso, eles escapam, em grande
parte, às tomadas de controle consciente e, simultaneamente, às
transformações ou a correções [...]; além disso, sendo objetivamente
orquestrados, eles se confirmam e se esfoam mutuamente
(BOURDIEU, 2003a, p. 114).
O habitus feminino não só pode justificar o posicionamento das
trabalhadoras de creche, como tamm reforça as dificuldades para
profissionalização dessas trabalhadoras. Nessa direção, se no âmbito das
creches uma certa manutenção da solidariedade e integração comuns no seio
da família, o zelo, o cuidado, a proteção, conjuga-se a essa situação o fato de
que, sendo doméstico, o trabalho na creche não tem um valor de mercado que
justifique melhores salários.
Nas colocações de cia e Ana Dirce uma justificativa desse
posicionamento:
A gente tem aquele cuidado, porque na verdade a gente não vai ser só
aquela mãezona, assim só de cuidar. É gico que a gente tem que
preocupar com os dois lados, estar cuidando e educando, não é? Na
hora do banho, por exemplo: tudo isso a gente tem que fazer com
carinho. Lavar bem lavadinho, não é? Secar e conversar com a criança,
isso é tamm o nosso papel. (cia, 12/05/2006)
Eu acolho bem as crianças e tenho o maior prazer em trabalhar com
elas. Eu entendo muito o lado das crianças, eu tenho muito amor por
elas. Muitas até me chamam de mãe e mesmo que eu saiba que não sou
a mãe, cuido como se eu fosse. (Ana Dirce, 04/04/2006).
Assim, o habitus feminino, nas condições sociais de sua realização,
contribui para a manutenção das condições objetivas do trabalho com as crianças
no contexto das creches, bem como sustenta a concepção das trabalhadoras
sobre o cuidado e atenção à criança pequena.
50
4. O PROGRAMA EMERGENCIAL NO CONTEXTO DA FORMAÇÃO DAS
TRABALHADORAS DE CRECHES
O programa foi ótimo, ótimo mesmo, pena que demorou muito tempo
para estar acontecendo. Para mim foi muito bom, porque eu só tinha a
prática e não tinha a teoria, entendeu? Muita coisa foi clareada para
mim. (Neusa, 18/04/2006)
Inicio este capítulo fazendo uma breve reflexão sobre as creches,
instituições que historicamente tornaram-se responsáveis pela assistência.
Legitimadas pelo sentido do cuidado e, mais tarde, conjugando o cuidar ao
educar, buscam atender, de forma integral, a criança pequena. Sobre o cuidar e o
educar, ainda há muito para se questionar.
Em seguida, apresento o Programa Emergencial com seus objetivos e
intenções. Foi como docente deste programa que situei as mulheres de minha
pesquisa. Foi participando dele que me senti provocada com a presença de
mulheres que buscavam, para além da qualificação, o reconhecimento pelo
trabalho que exerciam no interior das creches.
Com o propósito de apresentar breve reflexão sobre as creches, pontuo
algumas questões mais gerais sobre o contexto delas, sem qualquer intenção de
fazer um levantamento da história da educação infantil no Brasil
11
.
As creches surgiram paralelamente ao processo de industrialização do
país, como espaço de atendimento às crianças pobres, com a finalidade de
assegurar assistência a elas, enquanto as mães iam para as fábricas, como
também para atender às crianças em estado de abandono ou mesmo aquelas
não cuidadas pelas mães (OLIVEIRA, 2002; KUHLMANN, 1998; DIAS, 1997).
Hoje, como primeira etapa da educação sica, a educação infantil passa a
ser reconhecida como espaço de educação para as crianças pequenas e, com
isso, a creche, instância de atendimento à criança de zero a três anos, ganha
maior visibilidade, pelo menos em âmbito legal. Isso porque as creches ainda são
socialmente reconhecidas como o espaço de atendimento à criança pobre, no que
11
Para maior aprofundamento sobre a história da educação infantil no Brasil ver KUHLMANN
JÚNIOR, Moisés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Editora
Mediação, 1998.
51
se refere ao cuidado e educação, mais o primeiro do que a segunda, o que
contribui para a manutenção de concepções historicamente demarcadas: jardim-
de-infância para os ricos, que não poderia ser confundido com os asilos e creches
para os pobres (KUHLMANN, 1998, p. 84).
Ao persistir o tom de filantropia, como se o atendimento às crianças fosse
um bem ofertado à população e não um direito adquirido, dentro das bases legais,
de sugerir também que creche e pobreza ainda caminham lado-a-lado, no
cenário da história da educação brasileira.
As dez anos de promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, que ampara legalmente a primeira etapa da educação sica, ainda
convivemos com o fato de que a educação infantil passou a ser sinimo de luta.
Não vidas de que nesses anos muitas mudanças ocorreram. Há uma
consciência da necessidade de buscar o apoio público para as regulamentações
necessárias, a promoção da melhoria dos espaços e a consolidação da
capacitação dos profissionais.
É nesse contexto que educação passou a ser vista como oposto da
assistência(KUHLMANN, 1998, p. 84 grifos do autor). Se, de um lado, residem
as tensões provocadas pela necessidade de alteração do quadro historicamente
estruturado, por outro, emerge a necessidade de promover ações efetivas para
viabilizar essas mudanças.
A subordinação do atendimento em creches e pré-escolas à área de
Educação representa, pelo menos no nível do texto constitucional, um
grande passo na direção da superação do caráter assistencialista
predominante nos programas voltados para essa faixa etária. Ou seja,
essa subordinação confere às creches e pré-escolas um inequívoco
caráter educacional. (CAMPOS et al. 2001, p. 18)
Nesse novo milênio, ainda convivemos com problemas no que se refere à
qualidade de atendimento nas creches, não só pelas condições materiais, como
também pela desqualificação profissional. O Programa que apresento no texto
seguinte representa uma proposta que abrange apenas o Estado de Minas
Gerais, podendo constituir-se como exemplo das dificuldades que anteriormente
mencionei.
52
4.1. A proposta e as percepções sobre o Programa Emergencial
A educação infantil, nos últimos anos, tem passado por algumas
importantes mudanças e, por conseguinte, passa a ser mais discutida nos meios
acadêmicos, tanto pelos pesquisadores como pelos representantes da infância
nos movimentos e fóruns de educação infantil. Temas como a formação de
professores para a infância e a criança como sujeito de direitos ganharam maior
visibilidade nos últimos anos, sendo intensificados também os debates sobre a
importância de um profissional mais bem preparado para atender à proposta da
educação e cuidado da criança pequena. Isso que pode ser comprovado pelo
relatório que apresenta os resultados da Consulta sobre Qualidade da Educação
Infantil, através da Campanha Nacional pelo direito à Educação, com a
participação do Movimento Interfóruns da Educação Infantil do Brasil, onde se
constatou que:
Ao mesmo tempo em que cresce a demanda por acesso à pré-escola e à
creche, os problemas de falta de qualificação do pessoal, de infra-
estrutura material precária, de dificuldades na comunicação com as
famílias e de falta de orientação pedagógica adequada continuam a ser
detectados em creches públicas, conveniadas, comunitárias e
particulares. (CAMPOS & CRUZ, 2006, p. 13)
É importante ressaltar que, desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996, quando a educação infantil passou a fazer parte do processo
educacional e, conseqüentemente, do sistema de ensino, instaurou-se uma nova
concepção de educação para a infância, tendo como finalidade: o
desenvolvimento integral da criança até seis anos de idade, em seus aspectos
sico, psicológico, intelectual e social, em complementação à ação da família e da
comunidade (Lei 9394/96, art. 29). Naturalmente, a preocupação predominante
entre os educadores e legisladores tem-se dirigido às crianças, propondo
discussões para um novo olhar sobre a infância e a educação, no Brasil e no
mundo. Dessa forma, é possível afirmar que
está havendo um esfoo mundial pela educação. Esse esfoo é tanto
maior e mais urgente em países pobres, nos quais a melhoria da
educação é condição fundamental para erradicar a miséria e a violência.
53
Por isso, é que vem ampliando-se a consciência cida da importância
da educação infantil e o reconhecimento da criança como sujeito de
plenos direitos para com a qual o poder público e a sociedade têm
compromisso. (ZANNINI, 2002, p.19)
Se evidências de que uma grande preocupação com a melhoria da
educação infantil, é verdade, tamm, a escassez das pesquisas que apontam as
condições das trabalhadoras de creche e pré-escolas. As creches ainda são
consideradas como espaços assistenciais do tomar conta da criança pequena,
lembrando que as condições de trabalho e salário anunciam um descaso com as
professoras de creche.
A legislação prevê um conjunto de medidas que dizem respeito ao
funcionamento, às condições de trabalho e à qualificação dos profissionais que
atuam nessa etapa da educação sica:
as orientações adotadas na LDB quanto à formação dos professores,
inclusive os de educação infantil, abrem um abismo ainda maior entre o
perfil do professor escolar, aí incluída a pré-escola, e o educador leigo,
melhor dizendo, a educadora leiga da creche, cujas condições de
trabalho e salário, somadas à extrema desigualdade social da população
brasileira, configuram um tipo de ocupação que dificilmente atrairá
jovens que conseguem uma escolaridade maior. (CAMPOS, 2002, p. 30)
O direito ao atendimento à criança é amparado inclusive pela Constituição
da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 208, inciso IV:
atendimento em creche e pré-escola às crianças de zero a seis anos de idade,
como responsabilidade do Estado, em consonância com os municípios. A questão
do atendimento e oferta da educação infantil está novamente em pauta nos
meados da primeira cada do século XXI, a partir da inclusão da criança de seis
anos no ensino fundamental. De fato, estamos distantes de resolver os problemas
mais emergentes, no que diz respeito ao atendimento, como também à proposta
de qualificação das trabalhadoras que estão nessas comunidades educativas. O
Programa Emergencial foi uma iniciativa que buscou contemplar essas questões.
A proposta do programa surgiu da demanda pela formação do professor
da educação infantil. Formação não, capacitação de quarenta horas. Na
verdade esperava-se a capacitação, com cursos de quarenta horas com
o financiamento do FAT. (Membro da Coordenação Geral do Programa
Emergencial da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, 14/12/2006)
54
O Programa Emergencial, de acordo com o relatório elaborado pela
comissão da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG (2003, p. 2), responsável pela
coordenação geral do curso, foi definido como uma proposta articulada, a partir da
demanda dos municípios, entre as instituições de Ensino Superior do Programa
Minas Universidade Presente, Secretaria de Estado da Educação SEE/MG,
Secretaria de Estado do Trabalho, da Assistência Social, da Criança e do
Adolescente SETASCAD/MG e Prefeituras Municipais do Estado de Minas
Gerais, visando a melhoria da qualidade do trabalho desenvolvido junto às
crianças de 0 a 6 anos e suas famílias nas creches e pré-escolas do Estado de
Minas Gerais, através da habilitação em nível médio modalidade normal do
professor leigo”
12
em exercício que atuava nessas instituições. É importante
destacar que o Programa também atendeu, em alguns municípios, de acordo com
as possibilidades de vagas, aos professores da educação infantil, que embora já
tivessem o diploma do Curso Normal de Nível Médio ou Magistério de 1º grau (1ª
a 4ª séries), buscavam a capacitação.
O curso de habilitação do Educador Infantil foi desenvolvido com
recursos do Fundo do amparo ao Trabalhador FAT (provenientes de
convênio da SETASCAD/MG com o Governo Federal, Ministério do
Trabalho e Emprego Plano Nacional de Qualificação do Trabalhador
PLANFOR), do SERVAS
13
e com apoio das prefeituras municipais, das
instituições de ensino superior envolvidas, de algumas creches e pré-
escolas e de alguns patrocinadores mais pontuais. No ano de 2001,
foram realizados 27 cursos, com carga horária de 248 horas, em 15
cidades pólo, envolvendo 77 municípios e atendendo, aproximadamente,
1200 alunos. (Relatório geral de fevereiro de 2002, p. 01- arquivo da Pró-
Reitoria de Extensão da UFMG)
Através do programa vislumbrou-se a possibilidade de promover uma ação
que pudesse contribuir com a formação, em caráter emergente, de professores,
coordenadores e dirigentes de educação infantil, em exercício nas creches e pré-
escolas blicas e privadas, para que esses pudessem completar a escolaridade
12
De acordo com o relatório, entende-se por professor leigo ou não-habilitado da educação infantil
aqueles que, estando no exercício da docência junto a crianças de 0 a 6 anos em creches e/ou
pré-escolas, se encontram sem a habilitação para o magistério.
13
Instituição civil, de direito privado, sem fins lucrativos, que tem como objetivo promover e
executar ações em Minas Gerais.
55
mínima exigida por lei, para ocupação dos referidos cargos nas instituições de
atendimento às crianças pequenas.
A proposta destinava-se a atender as trabalhadoras assalariadas, em risco
social no que diz respeito à empregabilidade. Esse grupo, na sua maioria
absoluta, era composto por mulheres das mais variadas idades, advindas das
camadas populares e que constituíam o quadro de funcionários das creches e
pré-escolas do setor público e privado de setenta e sete municípios do Estado de
Minas Gerais.
Era quase insignificante a presença de homens, porque s nhamos
em torno de mil e duzentos professores e o blico era essencialmente
formado por mulheres [...]. O Programa tinha essa idéia: ao invés de
formar pessoas novas, ou seja, sem experiências, pretendia-se
aproveitar as pessoas que estavam com a prática, não é? Valorizar
esse pessoal que tinha uma história nas creches e habilitá-los. Então
esse foi o objetivo maior. . (Membro da Coordenação Geral do Programa
Emergencial da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, 14/12/2006)
O Programa teve como objetivo geral habilitação na modalidade Normal,
em caráter emergencial, por prazo determinado (até 2007), dos professores leigos
de creches e pré-escolas em exercício, oferecendo-lhes parte dessa habilitação
através de aproveitamento e complementação de estudos em educação infantil,
tendo em vista garantir a empregabilidade desses profissionais e a construção de
sua cidadania. Seus objetivos específicos eram:
Complementar a escolaridade básica dos professores de educação infantil,
de modo que atinjam o nível mínimo exigido pela LDBEN nº 9394/96;
Propiciar o desenvolvimento de conhecimentos, valores, habilidades e
competências sicas, específicas e de gestão, exigidas pelo novo
conceito de educação infantil, de creche e da criança como cidadã;
Melhorar a qualidade dos serviços prestados por creches, pré-escolas e
similares, de modo que cumpram sua função de cuidar e educar crianças
de zero a seis anos
14
.
Diante dos objetivos apresentados, o programa buscava contribuir para a
habilitação, na modalidade normal, das professoras de creches e pré-escolas, em
14
O objetivo geral e os específicos aqui apresentados foram retirados do relatório que compõe a
documentação do arquivo da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG referente ao programa.
56
exercício, tendo em vista garantir a permanência dessas trabalhadoras nos
empregos, bem como favorecer a construção da cidadania desses sujeitos.
Era intenção valorizar as trabalhadoras que já atuavam nas creches,
considerando inclusive como carga horária do curso, seiscentos e sessenta horas
de prática de ensino comprovada, de acordo com a proposta encaminhada ao
Conselho Estadual de Educação de Minas Gerais, para aprovação do programa:
Para a oferta imediata do curso, priorizamos formar professores de
educação infantil em exercício, que cursaram ensino médio em outra
modalidade que não a Normal. Incluem-se ainda os professores que
cursaram ou estejam cursando o nível superior mas que o tenham o
magistério. Nos casos em que as vagas não sejam cobertas com a
clientela anteriormente descrita, poderão ser incluídos professores com
ensino médio incompleto ou apenas com ensino fundamental completo.
Nesses casos, a certificação para o presente curso dependerá da
conclusão do ensino médio. Assim, pressupõe-se neste Programa que o
Ensino Médio poderá ser realizado por meio de estratégias diversas tais
como: curso de suplência cumprido de forma complementar ou de forma
articulada ao conteúdo específico da habilitação - modalidade Normal; ou
ainda por meio do exame unificado. (Arquivo da Pró-Reitoria de
Extensão da UFMG grifos no documento original)
O curso, perfazendo um total de 1600 horas, foi proposto para ser
desenvolvido em regime de alternância, em três módulos de 120, 440 e 380
horas, respectivamente, num período de dois anos e meio, iniciando em 2001. No
entanto, segundo a coordenação geral do curso em Minas Gerais, essa proposta
de organização foi alterada no que diz respeito ao tempo, em função das
dificuldades inerentes ao financiamento. Alguns grupos contaram com o apoio das
Prefeituras e puderam dar seqüência ao curso em dois anos e meio, outros
terminaram os módulos no final de 2005.
O programa foi voltado para formação de professores, mas por detrás
um compromisso político com a educação infantil, com uma proposta de
melhoria da qualidade do atendimento das crianças na creche e pré-
escola. Quando a gente vai para um município e põe as meninas
[referindo-se às alunas do Programa] fazendo uma pesquisa desse
município, da prefeitura, etc., acabou divulgando a educação infantil,
valorizando a educação infantil. Os municípios, as comunidades
acabaram se envolvendo com a questão da educação infantil. Então,
assim, foi muito rico. Um dos objetivos era esse. Era valorizar, criar
condições, criar leis para valorização da educação infantil... (Membro da
Coordenação Geral do Programa Emergencial da Pró-Reitoria de
Extensão da UFMG, 14/12/2006)
57
A organização dos conteúdos e a carga horária do curso foram propostos
da seguinte forma:
Quadro 2
Proposta Curricular do Programa Emergencial
Conteúdos Carga horária
Aspectos sociais, históricos e políticos da educação infantil 24h
O professor de educação infantil 88h
Um olhar sobre a infância 48h
Múltiplas linguagens formas de interação com a natureza e
com a cultura
120h
Organização e gestão do trabalho de cuidar e educar as
crianças de 0 a 6 anos em creches e pré-escolas
120h
Prática de ensino orientada 540h
Prática de ensino comprovada 660h
TOTAL 1600h
Fonte: Relatório da Pró-Reitoria de Extensão/UFMG Coordenação Geral do Curso
Além do objetivo geral do Curso, primava-se também pelo desenvolvimento
das habilidades sicas, específicas e de gestão exigidas pelo novo conceito de
infância, visando possibilitar uma análise crítica das trabalhadoras, no que diz
respeito ao trabalho no contexto histórico e político da educação infantil, bem
como a reflexão do papel profissional articulado à sua inserção social e cultural.
Nesse sentido, o Programa, de certa forma, refletia sobre temáticas que
buscavam problematizar a questão da construção da identidade profissional de
trabalhadoras de creche, através de discussões sobre as condições de trabalho
dentro das creches, como também uma reflexão sobre a organização da
educação infantil nos municípios, o que resultou num trabalho apresentado pelas
trabalhadoras acerca da realidade que vivenciavam nas cidades onde atuavam.
Utilizo a expressão trabalhadoras por se tratar de um grupo essencialmente
feminino, mas é preciso registrar que contava com uma pequena representação
masculina inferior a um por cento do total. O mero de participantes foi estimado
58
em mil e duzentos, nos setenta e sete municípios. Porém, ainda não foi feito um
levantamento para confirmação desse mero, visto que, no percurso, houve
evasão.
s, na realidade, ainda não fizemos um levantamento geral sobre os
resultados do Programa que terminou pouco tempo, menos de um
ano em alguns municípios. s estamos articulando um Seminário para
fazer essa avaliação geral. Então, assim, nem todos os responsáveis nos
enviaram o relatório final. Nós não temos esse retorno. Por exemplo, o
total de evasão, a questão dos salários (se houve melhorias). O que
houve em termos de valorização... Estamos planejando esse Seminário
para o início de 2007, onde pretendemos fazer um fechamento geral,
com dados gerais de todas as instituições de ensino superior que
participaram do Programa. (Membro da Coordenação Geral do Programa
Emergencial da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG, 14/12/2006)
O Programa contribuiu para as discussões sobre o trabalho nas creches a
partir da retomada do sentido da mão-de-obra desqualificada, cujo trabalho o
impõe expressividade social, tanto pelos salários inferiores, como pela
inexistência de qualificação profissional. Foi possível perceber que as
trabalhadoras entrevistadas nesta pesquisa têm uma clara percepção dessa
situação.
Olha, eu comecei a conquistar o meu espaço depois que eu comecei
fazer o terceiro ano científico. Aí quando eles [referindo-se aos gestores
da creche] viram que eu já estava no primeiro ano e depois no segundo.
Aí eu comecei a conquistar o meu espaço. Eu mostrava para eles que
havia muitas que só tinham o magistério e a diferença era muito
pequena. Então eu mostrava para eles que eu estava igual a elas. o
precisava mais de ser explorada. (Joana,19/09/2006)
Na creche a gente o se considerava professora, achava que nhamos
a obrigação de fazer aquilo ali. E foi mudando assim, porque com os
cursos que a gente foi fazendo, sabe? E tamm a gente começou a ver
que precisávamos de valorização. (Neusa, 18/04/2006)
s temos a carteira assinada como monitora, mas a nossa atuação é
como professora. Inclusive quando a gente vai fazer os periódicos eles
questionam essa questão, porque muitos não sabem o que significa ser
monitora. O pessoal da clínica, sabe? Mas pra gente foi colocado que
somos monitora. Porque monitora tem outros serviços além daqueles
das professoras. É diferenciado, sabe?[...] (Ana Dirce, 11/04/2006)
Pude perceber que, para o grupo, está evidente que, socialmente, para o
outro, elas são menos que professoras. Mesmo que digam que as consideram
como professoras da educação infantil, estão conscientes de que não gozam
59
desse status. Têm clareza dessa condição e parece haver uma certa
conformação com essa realidade.
Para Ana Dirce, Cleonice, Lúcia, Joana e Neusa, a participação no
Programa foi muito importante. Na verdade, ficou evidente que, aliado às
construções no que diz respeito ao conhecimento ou à possibilidade de avançar e
refletir sobre a própria prática, o curso permitiu que elas se sentissem mais
valorizadas no espaço de trabalho, mais seguras em relação ao emprego e mais
conscientes sobre a própria atuação nas creches.
O Emergencial foi bom demais! Várias coisas que eu, às vezes, sabia,
eu aplicava, eu entendia, era só refoar. Embora eu soubesse na
prática, precisava reforçar na teoria, passo a passo da educação. (Ana
Dirce, 11/04/2006)
Nossa, para mim no dia da minha formatura no Emergencial, agora eu
sou professora mesmo. Agora eu posso dizer que eu sou, não é?
(Cleonice, 16/05/2006)
Eu gostei daquele curso... eu guardo com cuidado as apostilas... E, de
vez em quando, eu dou uma lida e fico pensando assim: Como pode
tanta coisa escrita e a gente cada vez que você abre é coisa nova. Não
é tão repetitivo assim. Valeu, porque é claro que a gente trabalhava
muito tempo na educação infantil. Muita coisa a gente já sabe, mas às
vezes a gente não coloca em prática. E assim eu gostei. Foi muito bom!
(cia, 12/05/2006)
Eu gostei demais do curso. Ele me ajudou muito. o estou lembrada de
tudo, me esqueci do nome agora no momento, mas eu só sei que teve
muita coisa. Uma coisa boa tamm que eu aprendi no emergencial foi
que me ensinou muito como a trabalhar em creche. O que me
desenvolveu mais no meu trabalho foi aprender as dinâmicas. E aqueles
trabalhos com fantoches? Que beleza! Então, aquelas dimicas,
aqueles trabalhos me ajudaram demais da conta. (Joana, 19/09/2006)
Assim eu tinha a prática eu já gostava e o Programa veio para
confirmar isso, com a teoria, sabe?... Ah, com certeza, o Programa
Emergencial foi ótimo pra gente. (Neusa, 18/04/2006)
De acordo com a coordenação geral do programa, o curso causou alguns
impactos importantes. Em relação aos alunos, além da auto-estima, serviu como
incentivo para que retornassem a estudar e buscassem elevar a escolaridade.
Como exemplo, das cinco trabalhadoras que entrevistei, duas estão fazendo o
Curso Normal Superior. Em relação às instituições de educação infantil, o curso
possibilitou reflexões sobre os desafios e as potencialidades que se apresentam
no contexto atual, orientando sobre as propostas e as legislações vigentes acerca
60
da educação infantil e do profissional que atua nessa primeira etapa da educação
sica. Em relação às instituições de ensino superior que participaram do
programa, fez fomentar discussões sobre a infância e, finalmente, em relação aos
setores governamentais, principalmente, no âmbito municipal, houve maior
envolvimento com as políticas para a educação infantil, no sentido do
cumprimento de seu papel constitucional referente ao atendimento à criança de
zero a seis anos e à formação e valorização de seus profissionais.
Durante a entrevista pude perceber que para as alunas, a oportunidade de
participação de um curso vinculado a uma instituição de ensino superior, acabou
por dar maior credibilidade ao Programa. De acordo com os relatos elas se
sentiam valorizadas por estarem num espaço acadêmico e isto tinha reflexos no
interior das creches: sentiam-se mais valorizadas, mais confiantes no próprio
trabalho.
Torna-se relevante compreender e colocar em discussão o trabalho
feminino com suas especificidades, sem cair na aceitação passiva de que há
trabalhos cabíveis aos homens e às mulheres, de forma distinta (KERGOAT,
1996). Julgo importante propor esse questionamento, embora não seja intenção
desta pesquisa discutir sobre a divisão sexual do trabalho.
61
5. DA INFÂNCIA AO TRABALHO NA CRECHE: HISTÓRIAS VIVIDAS E
CONTADAS
As mulheres maternam. Em nossa sociedade, como na maioria das
sociedades, as mulheres não apenas geram filhos. Elas assumem a
responsabilidade inicial pelo cuidado das crianças, dedicam mais tempo
a bebês e crianças do que os homens [...].
Nancy Chodorow
Este capítulo é constituído pela apresentação das cinco trabalhadoras de
creche que participaram das entrevistas abertas realizadas entre janeiro e
setembro de 2006. O objetivo aqui é caracterizar essas mulheres, considerando
seu contexto sócio-econômico e cultural. Ao apresentá-las, procurei delinear, de
forma breve, o contexto familiar e a trajetória escolar de cada uma, apoiando-me
nos relatos das entrevistadas. Não é intenção fazer comparações entre os relatos,
mas é possível verificar semelhanças nos percursos vividos. Trata-se, portanto,
de respeitar as idiossincrasias das depoentes e, a partir das narrativas, selecionar
aquelas que pudessem contribuir para a apresentação dessas mulheres,
acreditando que a lembrança é a sobrevivência do passado. O passado,
conservando-se no espírito de cada ser humano, aflora à consciência na forma de
imagens-lembrança (BOSI, 2004, p. 53). A minha seleção, no entanto, é
arbitrária, pois o sujeito, dela o participa. Ao selecionar alguns fatos, deixo de
citar outros. Os cortes são necessários, mas lembremos-nos de que a história é
inteira.
Como sujeitos históricos, parto do princípio de que homens e mulheres são
sujeitos plurais que, de acordo com Lahire (2002, p. 22), socialmente, o mesmo
corpo passa por estados diferentes e é fatalmente portador de esquemas de ação
e bitos heterogêneos e até contraditórios. Assim, é possível afirmar que, ao
longo de suas trajetórias, participam e ocupam posições diversas em contextos
sociais múltiplos e heterogêneos. Vista dessa forma, a trajetória de vida de uma
pessoa, quando relatada à luz do presente, nos permite um olhar sobre certas
condições do outro, num dado tempo, entrelaçadas às relações sociais nas quais
estão ou estiveram inseridas.
62
5.1. A trajetória de Ana Dirce: Gosto muito de criança
Gosto muito de criança e, se eu fosse olhar por esse lado, teria mais ou
menos, uns onze filhos.
Ana Dirce, cinqüenta e sete anos, casada, quatro filhos, sendo três moças
e um rapaz. Foi criada numa família grande. Seus pais tiveram quatorze filhos e,
como seu pai era viúvo, tinha duas filhas do primeiro casamento. Assim,
somavam dezesseis filhos.
Os pais de Ana Dirce cursaram até a 2ª série do ensino primário. Segundo
ela, eles liam e escreviam sem maiores problemas, sendo que a leitura mais
apreciada era a Bíblia Sagrada. O pai de Ana Dirce tinha como trabalho o ocio
de barbeiro e cabeleireiro. Foi um barbeiro muito conhecido na cidade e tinha
como fregueses autoridades importantes da sociedade local. Além de barbeiro,
seu pai era operário da Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, onde trabalhou
durante muito tempo. Ana Dirce não soube dar detalhes sobre o trabalho de seu
pai na siderúrgica, também não se lembrou se ele chegou a se aposentar como
operário da Companhia. Na verdade, pareceu se importar mais com a sua função
de barbeiro e cabeleireiro, uma vez que falava com orgulho da competência do
pai e dos fregueses importantes que o procuravam.
O meu pai tinha, mais ou menos, a segunda série primária, só que ele
era muito dedicado a ler, gostava muito de ler. Ele Lia bastante a Bíblia e
os jornais. Ele se inteirava da área de política, não é? Sabia das coisas,
apesar de que, naquela época, não tinha televisão, mas através de rádio
a gente acompanhava alguns acontecimentos. A gente tinha importantes
conhecidos na cidade... meu pai tinha um envolvimento com esse povo
[referindo-se às pessoas que ocupam um lugar social privilegiado] A
minha mãe tinha a segunda série. Só que, no tempo que ela estudou,
era a professora quem ia em casa. Eles não tinham escola, a dificuldade
era grande. Ela ficou órfã ao nascer, sendo criada por outros, ora pela
madrinha, ora por uma amiga, ou até com uma vizinha, amiga da família.
A minha avó materna era índia. Era índia mesmo. E assim que a minha
mãe nasceu, depois de um parto dicil, parto em casa, muito dicil... a
minha avó faleceu.(Ana Dirce em 04/04/2006).
Ana Dirce lembra-se da família com carinho, porém é de seu pai que tem
melhores recordações. Segundo ela, sua mãe era uma pessoa cabisbaixa, que
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vivia pelos cantos da casa, chorando: ela tinha uma tristeza profunda”, o que faz
parecer um quadro de depressão.
Na infância, Ana Dirce recorda ter começado a trabalhar bem cedo,
cumprindo algumas tarefas domésticas destinadas às meninas: a gente
[referindo-se a ela e às irmãs] começou a trabalhar desde pequena. Com sete,
oito anos, já fazíamos café; aos nove anos já comecei a cozinhar.
A entrada na escola foi aos sete anos de idade, período em que a maioria
das crianças começava a freqüentar a escola primária. Não informa muita coisa
desse período, mas lembra-se da rigidez das professoras e de sua excessiva
timidez. Em seu relato, Ana Dirce afirma que chorava em qualquer situação. Tinha
um medo exacerbado das coisas e, às vezes, das pessoas. Enfrentou uma
postura rígida e intolerante de algumas professoras, o que contribuiu para
aumentar os seus problemas na escola, no que diz respeito à socialização. Como
era bastante arredia por causa da timidez, Ana Dirce encontrava dificuldades na
interação com as professoras e com os colegas. O relato apresentado a seguir
esboça bem essa situação:
Na escola havia professores que eu tinha medo. Eu, em especial, tinha
muito medo porque as pessoas, às vezes, não tinham esse contato
[referindo-se à prática dos professores] de deixar os alunos bem à
vontade. Era mais a professora mesmo que era o centro de tudo. Eu
tinha vergonha até para pedir para ir ao banheiro. Eu tinha medo e, às
vezes, quando estava chegando na escola... Foram poucas vezes, que
dava a hora e eu chegava atrasada um pouquinho. Quando eu chegava,
tinha a senhora que tomava conta do portão, que o podia ver a gente
chegando que ela fechava. Falava que passara da hora. Olha o que eu
fazia: eu voltava e, muitas vezes, ia pra casa de minha irmã mais velha,
que era casada. Outra hora, eu tinha medo de chegar em casa e ficava
no morro chorando de medo de chegar em casa e a mãe bater. Na
sala de aula, às vezes eu tinha vontade de ir ao banheiro, mas não tinha
coragem de pedir e uma coleguinha pedia à professora por mim. Só que
estava na hora do xixi sair. Aí a menina pedia e a professora falava:
Não, ela tem que pedir, porque ela tem boca... Aí ela não deixava e
acabava que eu abaixava a cabeça e fazia xixi na saia. Era aquele
constrangimento [...]. (Ana Dirce em 04/04/2006)
Ana Dirce, durante a entrevista, falou muito do pai. Ao falar dele, se
emocionou várias vezes. Foi seu pai o responsável pela continuidade de seus
estudos. As concluir a 4ª série, ficou sem estudar por uns quatro anos, voltando
aos quatorze anos de idade para fazer a 5ª série. Nessa época, ingressou no
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período noturno, pois tinha que ajudar nos trabalhos de casa e, assim, só era
possível estudar à noite.
Ao terminar o 1º grau (hoje ensino fundamental), deu início ao Curso
Normal de Nível Médio, curso que fez para realização de um sonho de seu pai
que queria vê-la professora, atuando nas escolas da região.
Ana Dirce concluiu o Curso Normal em 1971, mas não pôde participar das
festas e nem da formatura, por causa das condições econômicas da família. Foi
também em 1971 o falecimento de seu pai, logo no final de ano, coincidindo com
a formatura. Para ela, foi um momento de total desânimo para investir na sonhada
carreira de professora primária. Logo após o falecimento de seu pai, resolveu ficar
noiva e no ano de 1974, casou-se, acabando por adiar a entrada para a carreira
do magistério.
Eu estava toda desanimada com o término do Curso e, como eu era
mida, ficava toda constrangida... Como que eu ia participar da
formatura? E elas [referindo-se às colegas] resolvendo se iam de
uniforme ou de roupa e assim, eu nem de uniforme podia ir. O uniforme
era aquele que eu batia o ano todo e eu não ia ter coragem de ir,
mesmo se fosse de uniforme. Aí eu estava decidida por não ir à
formatura [...]. O meu pai dizia que sim, nem que fosse arrastada, mas
eu tinha que ir. Entrei para o quarto e fui rezar: Toma conta, meu Pai,
não deixa ele fazer isso comigo, não. Me levar arrastada pra minha
formatura... que feio, que vergonha! Ele não entendia que a roupa estava
velha e eu estava com vergonha, né? Todo mundo com roupinha
branquinha, novinha, de sainha preta. Então não fui mesmo [...]. No dia
dois de dezembro, quatro dias depois da formatura, o meu pai estava
sentindo dores no braço, não sei se era de angina... De vez em quando,
dava uma dorzinha nele, mas ele dizia que estava bem. Ele tinha
pressão alta, só que não gostava de ir ao médico. Ficava só deixando
para depois. Nas férias eu cuido disso, dizia ele, mas a dor pegou forte
e, de madrugada passou mal e morreu. Morreu no dia três de dezembro
de setenta e um. Foi tudo em seguida: a formatura e o falecimento
[nesse momento ela chorava, muito emocionada com as lembranças].
[...] .Ai eu desanimei total. Com a morte de meu pai não pensei mais. Ele
estava planejando onde eu ia trabalhar. Já tinha escola, tinha uma
professora formada, influente na escola, que ia tentar arranjar uma vaga
pra mim, porque naquele tempo não tinha esse negócio de concurso. Eu
me formei, eu desanimei de continuar, então parei e resolvi que iria me
casar. Em setenta e dois s ficamos noivos e em setenta e quatro s
nos casamos. (Ana Dirce, 04/04/2006)
Em janeiro de 1972, como tinha que ajudar a sua mãe no sustento da casa,
trabalhou como telefonista na empresa de Telecomunicações de Minas Gerais - a
antiga TELEMIG - onde recebia um salário mínimo. Ficou na função até o ano em
que se casou. Eu só consegui o emprego, porque tinha acabado de me formar
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relatou Ana Dirce. A partir do casamento passou a dedicar-se, exclusivamente, às
atividades domésticas.
Foi em meados dos anos 1990, que iniciou o trabalho na creche como
voluntária e, em 2000, teve, pela primeira vez, sua carteira de trabalho assinada
como funcionária da creche. Mesmo tendo o diploma do Curso Normal, sua
carteira foi assinada como monitora.
Segundo Ana Dirce, o Curso Normal a ajudou pouco no trabalho com
crianças, foi por isso que buscou o Programa Emergencial. Para ela, o Programa
Emergencial, iniciado em 2002, representava a possibilidade de capacitação, uma
vez que muito terminara o Curso Normal e, durante o curso, não havia
qualquer discussão sistematizada sobre a educação infantil, tema emergente dos
anos 1990. Para voltar a estudar em contou com o apoio dos filhos e do marido,
principalmente o apoio das filhas.
Seu marido concluiu a oitava série do ensino fundamental e se aposentou
como trabalhador da USIMINAS. Seus quatro filhos concluíram o ensino médio e,
posteriormente, fizeram um curso técnico. Uma das filhas fez o Curso Técnico em
Administração, a outra, Técnico em Patologia Clínica e a última, Técnico em
Enfermagem. O rapaz fez o curso Técnico em Segurança do Trabalho. Ela conta
que sempre incentivou os filhos a estudarem e fez o que de para que eles
tivessem oportunidade de concluir os estudos.
5.2. A trajetória de Cleonice: Eu sou professora
“Eu sou professora. O que está faltando é me aperfeiçoar mais, não é?
Cleonice, quarenta e um anos de idade, casada. Vive, atualmente, com
suas duas filhas, uma vez que seu marido encontra-se no exterior. Segundo
Cleonice, ele foi com a esperança de melhores condições de trabalho e, com o
dinheiro que conseguir, poderá terminar a construção da casa, como também
comprar um carro. Durante a entrevista, falou pouco de seu esposo, referindo-se
apenas ao fato de que ele não a incentivava a estudar. Seu marido fez até a
quinta-série do ensino fundamental e parou. Suas filhas estão no processo de
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escolarização sica. Para ela, o mais importante é poder estudar e melhorar
suas condições de trabalho, tanto para garantir a permanência no emprego, como
para garantir um salário melhor, mesmo sabendo que o trabalho na creche o
lhe garante um bom salário.
Quando criança, o de contar com a ajuda dos pais para as atividades
da escola. Embora seus pais saibam ler e escrever, não acumularam uma
experiência escolar satisfatória. O pai fez até o segundo ano primário e sua mãe,
até o quarto. O incentivo para que ela estude vem do pai, que sempre a ajudou no
cuidado com as filhas, para que pudesse conciliar o trabalho e os estudos.
Na entrevista, coloca que não teve uma infância dentro dos padrões
normais, pois começou a trabalhar desde os dez anos de idade. Trabalhava como
babá, para ajudar em casa. Recebia uma quantia irrisória pelo que fazia, mas,
ainda assim, era uma forma de ajudar aos pais, que não tinham as condições
ideais para sustentar os seis filhos. Cleonice é a terceira filha do casal.
Nasci em agosto de sessenta e cinco, na cidade de Belo Oriente, Minas
Gerais. A minha infância... eu acho que eu não tive infância, sabe? Foi
muito assim... iniciei meu serviço com dez anos de idade. Nessa idade
eu tive que sair para trabalhar fora, não é? Para poder ajudar a cuidar
dos meus irmãos. Então, foi assim uma coisa muito (...), mas [hesitou um
pouco] foi boa. Quer dizer, eu não tive aquela infância assim igual muitos
têm hoje, não é? De brincar. De passear. Mas foi boa, graças a Deus.
Meus pais nunca puderam me dar nada, mas eu vivia feliz, do mesmo
jeito. Não pedia, entendeu? Eu sabia que eles não podiam me dar. Mas
tamm [parou de falar e se emocionou. Ao retornar a falar, mudou
radicalmente de assunto]. (Cleonice, 16/05/2006)
Embora justifique que seu trabalho, ainda na infância, era necessário pelas
dificuldades da família, diz que sentia falta dos brinquedos e das brincadeiras,
sentia falta de fazer as coisas que toda criança faz”.
Cleonice fala de sua entrada na creche nos anos 1990 e diz o quanto o fato
de ter cuidado de crianças desde cedo a ajudou em seu trabalho. Atualmente, ela
trabalha no berçário e traz uma concepção de infância onde o brincar deve ser
respeitado. O seu discurso é penetrado pela proposta da educação infantil, em
que o brincar é uma exigência, o que tem um importante significado nas práticas
educativas.
Durante a entrevista, ela buscou situar alguns pontos que são inerentes ao
trabalho na creche, não só no que diz respeito ao brincar, como também sobre a
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educação e o cuidado, além da linguagem, o que considera como fundamental no
trabalho com as crianças. Fato surpreendente, visto que ela apresenta hesitação
ao articular as palavras, com demoras e/ou repetições de sílabas, provocadas
pela gagueira. De qualquer forma, considerei melhor não perguntar se isso
dificultava o trabalho com as crianças.
Assim, eu pensava que a linguagem oral não tinha muita importância.
Assim, não ajudava muito, não é? Na infância, com o bebê, eu vi que
ajuda demais. Você falando com o bebê desde pequeno... Eu trabalho
no beário, hoje. Eu vejo que a linguagem oral é muito importante na
vida, não é? Junto com o be, a gente falando junto com ele, repetindo
toda hora. (Cleonice, 16/05/2006)
Talvez, pelas suas limitações na hora de falar, ficava meio constrangida e
procurava dar respostas curtas, o que dificultava muito a nossa conversa,
considerando que, dentro da metodologia da História Oral, o entrevistador faz
poucas intervenções, deixando o sujeito investigado selecionar suas próprias
narrativas.
Cleonice tenta deixar claro que é segura naquilo que faz e gosta de
trabalhar com crianças. Reafirma, também, seu desejo de continuar estudando.
Terminou o Programa Emergencial no final do ano de 2005 e em 2006, começou
a fazer o Curso Normal Superior numa instituição particular da região.
Embora não tenha dito abertamente na entrevista, Cleonice demonstra um
certo desejo de buscar outras oportunidades de trabalho como professora: Eu
sou professora. O que está faltando é me aperfeiçoar mais, não é? Ela se refere
ao reconhecimento que se efetiva também através da formação. Razão pela qual
tem buscado continuidade nos estudos.
Para além do reconhecimento como professora, Cleonice almeja um
salário melhor e sabe que dificilmente o curso superior garantirá melhoria de
salário no âmbito das creches.
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5.3. A trajetória de Lúcia: O trabalho na Educação Infantil foi o maior
desafio
Começar o trabalho na Educação Infantil foi para mim o maior desafio.
cia, quarenta e cinco anos de idade. Tem dois filhos e está separada
quinze anos do seu único marido. No início de nossa conversa, ela falou de sua
infância no interior de Minas Gerais, numa cidadezinha chamada Tarumirim, mais
especificamente na zona rural dessa cidade.
cia é a segunda dos nove filhos de Dona Geni e Senhor José. Seu pai,
embora tenha participado do MOBRAL - Movimento Brasileiro de Alfabetização -
um programa de alfabetização de adultos, oferecido pelo regime militar no final da
cada de 1960, é analfabeto e mal escreve o próprio nome. De acordo com o
depoimento de cia, seu pai sempre lidou na lavoura, para garantir a
subsistência da família.
Sua mãe cursou até a quarta-série do ensino primário e foi, durante muitos
anos, professora leiga na zona rural onde moravam. Dona Geni visitava a filha
num dos dias em que eu a entrevistava e quis participar. Foi ela quem falou sobre
sua escolarização, bem como a do seu marido:
Eu nasci em mil novecentos e quarenta. Estudei, primeiramente, com a
minha mãe até a terceira série, depois nos mudamos para uma cidade
chamada Edgar de Melo. Foi que eu fiz a quarta série. Naquele tempo,
quando a criança sabia estudar o manuscrito [referindo-se a um livro
escrito à mão, com letras cursivas], ou seja, ler e escrever o manuscrito,
aí que a pessoa, digo, a criança podia ser formada na quarta série [...].
Então, a gente era professora e quem fazia isso é que era professora
formada [...]. Dei aula por dezessete anos, para primeira, segunda e até
a terceira série do curso primário. Para a criança do primeiro ano, havia
um quadro grande, onde eu passava a leitura... tudo era no quadro e as
crianças liam. E as crianças iam copiando e depois a gente ia ler com
eles. Lia no quadro. [...] Depois eu adoeci. Tive um problema muito sério
de pressão alta e coração... Aí eu fui afastada do serviço, não é? [...] E
fiquei como inativa, mas recebendo assim mesmo. E hoje eu estou com
sessenta e seis anos e eu sou aposentada mesmo. Meu contra-
cheque vem como eu sou aposentada pela prefeitura, como professora.
[...] Meu esposo tamm esteve na aula, mas o pai dele não deixava que
ele estudasse, além do mais, ele tamm tinha a cabeça meio dura. Ele
trabalhava muito, viu? Trabalhava na enxada desde novo. E apanhava
ainda... Hoje, ele escreve o nome dele, porque eu ensinei. Ele começou
naquele MOBRAL, mas não continuou. Ele não sabe ler não. (Dona
Geni, mãe de cia, em 12/05/2006).
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No entanto, a grande incentivadora de cia foi sua avó materna. Foi ela
quem alfabetizou as filhas e gerenciou a escola, onde a família (filhos e netos) e a
comunidade daquela região (zona rural) estudavam até a terceira série. Era a sua
avó quem oferecia uma intervenção positiva, não necessariamente pelo domínio
das práticas escolares, mas pelos domínios periféricos (LAHIRE, 2004, p. 26),
tanto no que diz respeito à autoridade que tinha sobre a família, como pelo fato de
conceber a escola como necessária na vida das pessoas.
Para cia, a sua infância foi feliz, viveu de forma simples junto à família e
pôde aproveitar, de maneira intensa, o momento das brincadeiras e os costumes
da região, como as festas religiosas, por exemplo. Para ela, os momentos de
brincadeiras são inesquecíveis:
[...] era uma época boa, gostosa, a gente tinha liberdade de correr, de
brincar... Na época de colheita de feijão, fazíamos aquele monte e
brincávamos em cima de pique esconde. A gente não tinha medo.
Interessante, a gente não tinha medo. Foi muito bom! Não nhamos
aquela coisa de só estar brincando com meninas, brincávamos tamm
com os primos. A gente brincava muito (...). Lembro-me da lua clara....
Havia dias em que a gente brincava até as nove horas ou mais. E o
terreiro na casa da minha avó era espaçoso [...] Havia muitas
mangueiras. Ainda hoje elas estão lá. E a gente brincava até tarde de
pique esconde, de roda. Hoje eu sou evangélica, mas a minha família
toda pertence à Igreja Católica, e, quando criança, depois de maiorzinha,
acompanhava as celebrações do culto à noite, e era gostoso demais!
Saíamos ao final das rezas e íamos, a turma toda, brincar. Cai no poço e
ra, uva e maçã eram as brincadeiras de que mais gostávamos [...].
(cia em 05/05/2006).
Além da família nuclear, aparecia em seu relato a boa convivência com os
demais familiares: os avós, os tios e os primos. Todos aparecem nos momentos
de socialização: finais de semana, festas familiares, escolares e religiosas, como
também nos comentários sobre as férias.
cia foi para a escola aos sete anos de idade e sua professora, nas três
primeiras séries do então ensino primário, foi sua própria tia, também professora
leiga, que atuava na alfabetização das filhas e sobrinhas na zona rural de
Tarumirim, juntamente com a avó de cia e outras tias. Pelo que conta, a
professora tinha muitas dificuldades e as crianças percebiam isso.
Eu creio que foi com sete anos que entrei para a escola. Lembro-me que
a professora da 1ª série era a minha tia... e ela tinha dificuldades como
professora. Ela tinha dificuldade e a gente percebia isso, não é? Quanto
70
à letra, a escrita o era tão legal e o meu sobrenome Fialho ela
colocava Fialha para eu escrever. Era eu quem tinha que corrigí-la,
entendeu? (cia em 05/05/2006).
Freqüentou até a 3ª série, na zona rural e mudou-se para região urbana,
para concluir a 4ª série. Lembra-se, com muito, carinho das festas organizadas
pela escola, como as comemorações do dia 07 de setembro. Quando cursou a 4ª
série, já estava com quatorze anos e só conseguira ir para a cidade, porque sua
tia morava lá e estava grávida. Portanto, precisava de uma pessoa para cuidar do
filho pequeno.
Tive muita dificuldade, porque eu tinha perdido muito tempo e a base era
fraca... A base, mas até que assim, a matemática e a leitura até que eu
conseguia, não é? Lia bem e da matemática eu tamm gostava. Tive
dificuldade, mas minha tia era professora e o marido dela era tanto
professor, como diretor da escola. Então, assim, eles me ajudaram
muito. Eles eram formados. Porque minha tia saiu para estudar fora e ela
fala mesmo que, se não fosse pela minha avó, ela não teria chegado
aonde chegou. Hoje, por exemplo, ela já é aposentada. Ela trabalhou no
Banco do Brasil em Valadares [na cidade de Governador Valadares]
por muito tempo, mas sempre falava que a minha avó chegava a bater
para ela subir a serra e ir para Itanhomi estudar. Ela subia chorando,
mas depois valeu a pena, porque ela trabalhou e ganhava bem. Depois
ela reconheceu que foi pelo esfoo da mãe dela, minha avó querida.
(cia em 05/05/2006).
As dificuldades foram aos poucos sendo superadas e, assim, pôde
continuar os seus estudos. Parou na 7ª série, com o propósito de se casar, já que
seu pai não concordava com o fato de continuar estudando e namorando: "ou
estuda, ou namora...", concluía ele. Naquele momento, a opção estava clara.
Casou-se no início da década de 1980. Seu marido concluíra a quarta série e
parou.
Ainda no início do casamento, mudou-se com o marido para a cidade de
Ipatinga. Seu filho mais velho tinha então três anos de idade e, nesse momento,
trabalhava apenas em casa. Logo em seguida, teve o seu segundo filho e viu sua
vida mudar, conforme seu próprio relato.
Casei-me. Tive meu filho mais velho, que hoje tem vinte e três anos e,
quando ele tinha três aninhos, eu me mudei aqui para Ipatinga. Aqui eu
não trabalhava fora... Depois que eu tive meu segundo filho é que eu
(...), quando ele tinha um ano e nove meses o pai, meu ex-marido, saiu
de casa. [começa a chorar] E o meu filho menor nasceu com vários
problemas. Hoje ele fez sete cirurgias. Você olha, não parece. Você
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nem percebe que ele fez tanta cirurgia. Graças a Deus, ele é assim,
esperto e inteligente. Ele nasceu com atrofia de bexiga. Não sei se você
ouviu falar em atrofia de bexiga. E com a bacia aberta, rnia, canal
de urina fechado. Então, assim, foram várias coisas, sabe? E quando...
[começa a chorar, mas pede para continuar] a primeira cirurgia que fez,
ele tinha nove dias. Eu pensava que era da bexiga. Eu pensava que era
para guardar a bexiguinha. Não. Eu cheguei ao hospital e o médico tinha
feito a cirurgia da bacia. Eu não sabia que ele tinha bacia aberta.
Quando eu cheguei e eu vi meu filho deitado com as perninhas para
cima, enfaixadas, perguntei para a enfermeira se ele tinha problema nas
perninhas tamm. Ela falou assim: não, ele fez cirurgia da bacia. E eu
não sabia. E a bexiga ficou exposta até dois meses. O primeiro banho
dado em meu filho foi quando ele tinha um mês. No dia em que ele
completou um mês, eu passei um pano molhado. E assim foi uma vida
[emociona-se]. E aí, até então, o marido estava junto. Ele me levava
para o hospital de manhã e eu ficava o dia todo e o filho mais velho, com
seis anos, em casa. Ele ia trabalhar. Ele ficava por aqui sozinho, com a
avó paterna. Às vezes, a minha mãe vinha para ficar uns dias. [...]. Então
foi uma luta muito grande. Eu agradeço muito a Deus por ter me dado
foas para eu superar [...]. (cia,05/05/2006)
Diante das dificuldades anunciadas, a vida de cia tomou um novo rumo.
Pela primeira vez, sentia a urgência de sair para trabalhar. Seria uma nova
batalha, visto que não tinha uma profissão, sequer terminara o ensino
fundamental. Na verdade, era o começo de uma nova vida: final de casamento, a
saúde do filho comprometida, uma casa para gerenciar:
Aí eu comecei a perceber a dificuldade que eu teria por não ter estudado
e por não ter um trabalho fora. E foi muito dicil. Porque, até então a
gente não vivia tão bem financeiramente, mas ele [referindo-se ao
marido] dava conta do recado... Então, foi aí que eu percebi a dificuldade
por eu não ter estudado. Só tinha até a sexta série. E eu fiquei naquela:
e agora, o quê que eu faço, sozinha, com dois filhos para cuidar, sem
estudo e sem emprego?[se emociona com as lembranças] Aí eu fiquei
naquela, "tenho que trabalhar, como que eu vou me sustentar?". Assim,
tive que começar a trabalhar. E como eu freqüentava a igreja
evangélica Presbiteriana e o pastor quis me ajudar... qüestão assim de
trabalho, não é? Então, iam abrir uma creche e ele me convidou para
trabalhar. E eu comecei na cozinha. Comecei em abril, em 1992. Eu
comecei na cozinha, mas ele [o pastor] quis me dar uma chance como
professora. E interessante que eu tive medo de não dar conta, sabe?
Cheguei a ficar assim preocupada. Ele falou: eu vou arranjar uma
turminha para você. Ah, mas eu falei assim: e agora, será que eu vou
dar conta? Foi a primeira coisa que me veio. Trabalhar com criança é
muita responsabilidade, não é? E aí eu não trabalhei nem dois meses na
cozinha e peguei uma turminha do maternal. Maternal, sabe? E eram
poucas crianças de início, mas foi uma experiência muito legal para mim.
E assim, percebi que eu tinha que estudar [...].(cia em 05/05/2006)
Com o ingresso ao trabalho, haveria de conciliar o trabalho na creche com
a tripla jornada: tarefas domésticas, acompanhamento diário do filho ao hospital,
72
volta à escola para concluir a educação sica.
Uma observação aqui é válida: para Montenegro (2001, p. 25), as creches
comunitárias, geralmente, esperam a participação da sociedade para a solução
de seus problemas e acabam institucionalizando a utilização de mão-de-obra
voluntária, gratuita ou sub-remunerada, geralmente feminina.
Com o passar dos anos, as dificuldades aumentavam. Era dicil continuar
a rotina, mesmo percebendo a importância de o parar de estudar, o que era a
condição para se firmar como professora da educação infantil.
cia buscou, nos filhos e na situação vivida, forças para persistir naquilo
que se propôs a fazer. Assim, se por um lado, parecia resignada com a situação,
ela também se sentia indignada com a sua condição, não só pelo abandono e
descaso do marido, como pela sobrecarga de trabalho e pela falta de
reconhecimento. Como ela mesma relatou: Não negava a luta, mas, por vezes,
senti no corpo as marcas do desgaste e o bater insistente do espírito de
desistência. Nesse sentido, tem a percepção do corpo-consciência
(TRINDADE, 2002, p. 70), que fala diante da situação vivida e que anuncia as
presenças, as (in)diferenças e, assim, a consciência.
O meu filho mais velho começou muito cedo a ficar sozinho, não é? Teve
que se virar. E hoje, graças a Deus, é homem casado e, assim, ele
começou a trabalhar cedo... O caçula ia comigo para a creche. E quando
eu estava trabalhando eu podia levá-lo comigo, mas assim aí, de
repente, eu tive que começar a estudar e eu ia e deixava os dois,
sozinhos em casa . E isso foi, muitas vezes, motivo de comentários,
porque eu saía e deixava os meninos. Mas não havia outro jeito. (cia,
05/05/2006)
As concluir o ensino médio, cia viu, no Programa Emergencial, a
possibilidade de poder ter o certificado que a tornaria apta para a docência na
educação infantil, o que, de certa forma, era imposto pela Lei nº 9394/96, que
declarava como obrigatória a formação em nível médio para atuação em creches
e pré-escolas e, por conseguinte, provocou uma corrida pela capacitação. Para
ela, o Programa seria um diferencial que possibilitaria a sua permanência na
educação infantil, garantindo-lhe, dessa maneira, o vínculo empregacio.
A legislação prevê, ainda, um conjunto de medidas que dizem respeito ao
funcionamento, às condições de trabalho e à qualificação dos profissionais que
atuam nessa etapa da educação básica. Torna-se importante lembrar também
73
que, historicamente, as creches têm como seu blico a população mais pobre,
muitas vezes associando esse fato à exigência de que as mães estivessem
trabalhando.
Pode-se observar, no que se refere à legislação, que
as orientações adotadas na LDB quanto à formação dos professores,
inclusive os de educação infantil, abrem um abismo ainda maior entre o
perfil do professor escolar, aí incluída a pré-escola, e o educador leigo,
melhor dizendo, a educadora leiga da creche, cujas condições de
trabalho e salário, somadas à extrema desigualdade social da população
brasileira, configuram um tipo de ocupação que dificilmente atrairá
jovens que conseguem uma escolaridade maior. (CAMPOS, 2002, p.
30).
Consciente das dificuldades vividas, cia anuncia que, apesar de tudo,
está feliz com o trabalho na creche. Atualmente, faz o curso Normal Superior, em
caráter semi-presencial. Emerge daí um desejo de poder melhorar suas
condições de trabalho.
cia também se empenha para ver seus filhos estudados. O mais velho,
23 anos, casado, não chegou a concluir o ensino médio, mas tem perspectiva de
retornar. O mais novo, 19 anos, mesmo com as limitações por causa de seus
problemas com a saúde, está cursando o ensino médio.
5.4. A trajetória de Joana: Ser professora é a realizão de um sonho
“Ser professora na creche é a realização de um sonho. Sonhei com isso
uma vida inteira.
Joana tem quarenta e oito anos de idade. Trabalha numa mesma creche,
desde 1992. São pelo menos quatorze anos de trabalho com as crianças de um
bairro da periferia de Timóteo. É nesse bairro que Joana mora e que, segundo
ela, com muito orgulho”, cuida e educa as crianças pequenas da comunidade. É
casada 32 anos e tem cinco filhos: duas moças e três rapazes. Cuida ainda de
mais duas crianças, um menino de oito anos e outro, de seis anos de idade. Na
verdade, eles são os órfãos de uma prima de Joana. Ela os assumiu como filhos.
74
A infância de Joana o foi aquela que se almeja para uma criança. Ela
trabalhou muito nesse período, pegando mesmo na enxada”, como ela relatou,
sendo um tempo muito duro para uma criança de oito anos de idade. Joana não
se lembra do tempo dos brinquedos, presentes ou passeios. Lembra-se das
brincadeiras inventadas com os seus irmãos, depois de cuidar da limpeza da
casa. Segundo Joana, a família morava numa pequena casa de sapé e, como não
havia brinquedos, improvisavam brincadeiras nos arredores da casa. Pelo que
conta, ela morava no perímetro urbano, bem próximo aos sítios que ficavam no
entorno da cidade. Nos morros, junto aos pastos, eram onde muitas das
brincadeiras aconteciam. Não nhamos brinquedo, só uma cabeça de boi. Eram
somente ossos [risos]. Era uma maneira de brincar, diferente. Era o que
nhamos.
Nas lembranças, apareceram também os dias de jornada nas roças da
região. Embora não morasse na zona rural, a sobrevivência da família, seus pais
e mais doze filhos cinco rapazes e sete moças era garantida pelo trabalho no
cultivo de pequenas roças, no plantio, principalmente, de feijão e milho, para os
proprietários de terra que moravam na cidade.
A minha infância foi uma infância assim muito dicil, eu tive muita luta na
infância, muita dificuldade, mas por outro lado tamm foi boa. É que eu
comecei a minha infância já trabalhando, porque os meus pais tinham
dificuldades para nos sustentar. Quando eu tinha sete anos de idade,
comecei a trabalhar para ajudar a minha família, para ajudar os meus
irmãos, ajudar a minha mãe a criar os meus irmãos, ajudar a cuidar da
roça. Então eu tive uma infância muito dicil e, quando chegou a época
da escola... aí, tive grandes problemas. (Joana, 25/09/2006)
Para ela, o trabalho era difícil e exaustivo, mas alega que a
responsabilidade adquirida desde criança se constituiu como um grande bem para
toda a sua vida. Era Joana quem cuidava dos irmãos pequenos, uma vez que a
sua mãe teve os filhos um atrás do outro. Ela afirma que não se lembra da casa
sem criança pequena. Dessa forma, não lhe sobrava tempo para estudar. Entrou
para a 1ª série aos dez anos de idade, sempre faltando muito às aulas, por causa
dos afazeres e responsabilidades com a casa, os irmãos e as empreitadas na
roça. Por várias vezes, sentiu-se discriminada pelos colegas e professores, por
ser pobre.
75
Joana se lembra de sempre chegar muito cansada na escola, às vezes,
sem se alimentar, com as dores da fome, ocasionada pelo fato de ficar horas sem
comer. Lembrou-se, também, com carinho, de uma servente que lhe guardava um
pouco da merenda da escola: Ah, ainda sinto o cheiro e o gosto do mingau que
ela me oferecia”. Das professoras, Joana recorda a rigidez e o jeito áspero de
tratar as crianças. Além do tratamento duro, os castigos corporais eram
freqüentes na sala de aula. Joana, sorrindo, diz que a escola não tinha muito
sentido para ela, naquela época. Sentia-se diferente no meio das crianças, uma
moçona no meio dos pequenos, além do imenso cansaço pela lida do dia-a-dia.
Para ela, a escola era indiferente aos problemas dos alunos, não havia
nenhum incentivo para que o aluno continuasse a estudar”. Nesse sentido, alega
que passava despercebida pelas professoras e chegava a se espantar quando
era percebida por alguma delas, normalmente era por algo de bom que fizera ou
pela dificuldade que apresentava na escola: na verdade, as pessoas ali sequer
sabiam quem eu era.
Na escola, enfrentava muitas dificuldades, não só por ser mais velha que
os colegas, e o seu tamanho indicava as diferenças na idade, como também por
não aprender o que a escola exigia. Não havia motivação para que ela
continuasse a freqüenta as aulas, mas naquela época essa não era uma questão
que a preocupava. A decisão por parar de estudar não representava um
problema, visto que seus pais não participavam de sua vida escolar.
Como mencionado anteriormente, seus pais eram lavradores e era da
lavoura que tiravam o sustento da família. Joana fala da mãe com muito carinho,
mas apresenta algumas restrições em relação ao pai que, para ela, deixou muito
a desejar no cumprimento dos deveres de um verdadeiro pai de família. Nesse
sentido, ela argumenta, a partir da concepção de pai provedor dentro da família
nuclear que, além de bons exemplos, o pai deveria garantir o sustento de seus
filhos e esposa.
Ela apresenta o seu pai como um homem rude e severo com todos de sua
casa, ao contrário da mãe, que é lembrada pelo exemplo de força e dedicação à
família. Nem o pai, nem a mãe freqüentaram a escola e sua mãe aprendeu a ler
pela Bíblia Sagrada. Ela lia, mas não escrevia. O pai mal lia e escrevia o próprio
76
nome. Segundo Joana, não havia qualquer incentivo para que ela e seus irmãos
se mantivessem na escola.
Olha, incentivar, incentivar... se eu falar que incentivava eu estou
contando mentira. Porque isso, antigamente a maioria dos pais não
fazia, não é? o dava muito valor para a escola, porque eles não
tinham, não sabiam nada. Eles próprios não sabiam nem escrever e nem
ler. Então, para eles, aquilo não tinha muito valor nada. Meu pai nunca
falava para a gente ir para a escola. A minha mãe é que ajudava um
pouco e nos orientava um pouco mais. Ficava foando para a gente
aprender alguma coisa. (Joana, 29/09/2006)
Os irmãos de Joana seguiram trajetórias diferentes na escola. Uma irmã
fez Ciências Contábeis de nível técnico e não trabalha. A outra terminou os
estudos depois de casada e, assim, concluiu o curso de Letras. Hoje ela é
professora concursada da rede municipal, numa cidade da região do Vale do Aço.
A irmã caçula, que fora criada como adotiva pela família de um médico da cidade,
fez Engenharia e hoje trabalha na capital mineira. Quando fala da irmã caçula,
Joana afirma que fez Doutorado mas, no decorrer da conversa, percebi que ela
fez, de fato, Pós-graduação Lato Sensu, num centro universitário da região.
Nesse sentido, Joana não compreende a organização acamica e, por isso, não
identifica corretamente o percurso de formação da irmã. Na verdade, isso não faz
parte do seu contexto. Ela se orgulha da condição da irmã, reconhece o valor do
estudo e julga dicil alcançar tal mérito. Os demais irmãos não concluíram os
estudos e pararam ainda nas séries iniciais do ensino fundamental.
Joana afirma que parou de estudar na 3ª série, no ano de 1958, por causa
de sua dificuldade com as atividades e tarefas escolares, como também pela
necessidade de ajudar em casa. De certo modo, como Lahire (2004) salienta,
como no caso de Joana,
podemos dizer que os casos de fracassos escolares são casos de
solidão dos alunos no universo escolar: muito pouco daquilo que
interiorizaram através da estrutura de coexistência familiar lhes
possibilita enfrentar as regras do jogo escolar (os tipos de orientação
cognitiva, os tipos de práticas de linguagem, os tipos de
comportamentos... próprios à escola), as formas escolares de relações
sociais. (LAHIRE, 2004, p. 19)
As sair da escola, Joana intensificou suas atividades para ajudar em
casa. Ela conta que vendia verduras na cidade e todo o serviço da casa era de
77
sua responsabilidade: eu vendi verduras, pelas ruas, até nos dias de me casar.
Foi nesse contexto que se casou, aos dezessete anos, com um homem de origem
simples.
Seu marido concluiu a 4ª série e nunca mais estudou. Sempre trabalhou
como pedreiro e, quando a entrevistei, ele estava afastado do serviço por
problemas de sde. Do casamento, nasceram os cinco filhos, sem muito espaço
entre um e outro, a exemplo da própria mãe. Quando seu filho caçula tinha oito
anos, Joana resolveu voltar à escola. Tinha o grande sonho de ser professora.
Naquela época, ano de 1994, sua entrada para o ensino regular seria
atravessada por problemas como a idade, as rotinas da casa e a própria
dificuldade para a inserção no ambiente escolar. Sem desistir, Joana concluiu a 8ª
série e teria mais uma batalha pela frente, na tentativa de concluir o ensino médio.
Para essa etapa, optou pelo supletivo e, em dois anos, concluiu o científico.
No entanto, ainda havia o sonho de se tornar professora da educação
infantil. Nesse momento, surgiu a possibilidade de freqüentar o Programa
Emergencial e, assim, a oportunidade de realização do sonho de ser professora
na creche onde atuava como trabalhadora de serviços gerais, cuidando
basicamente do cultivo da horta e da limpeza geral.
Eu entrei em noventa e dois. Eu entrei , trabalhando na horta,
mexendo com horta, capinando o quintal. Depois que me puseram lá
como auxiliar de serviços gerais. Só que a gente era muito discriminada.
Aí que aumentou mais a minha vontade de estudar e melhorar minha
condição. (Joana, 26/09/2006)
Mesmo como auxiliar de serviços gerais, conta que ajudava nas salas de
aulas, quando faltava algum professor e, aos poucos, foi garantindo a sua
permanência na sala de aula. Depois que concluiu o Curso Emergencial, passou
a trabalhar definitivamente com as crianças, como professora de creche.
78
5.5. A trajetória de Neusa: Creche é vício
[...] parece que creche é vício, sabe? Eu não conseguia sair dali.
Neusa, quarenta e sete anos, casada, três filhas, trabalhadora de creche
doze anos, é a mais velha dos quinze filhos de um casal do interior de Minas
Gerais. A escolarização, tanto do pai como da mãe, é o quarto ano do ensino
primário, o que hoje corresponde às séries iniciais do ensino fundamental. Os
avós maternos e paternos eram analfabetos, nunca freqüentaram a escola e
sempre moraram na zona rural, no interior de Minas Gerais.
Nos anos 1940, o pai de Neusa, com doze anos, saiu da zona rural, da
casa dos familiares, fugindo da ssima convivência com o padrasto. Ele buscou,
nos subempregos, a sobrevivência. Sem qualificação profissional, contou com a
ajuda de um senhor, dono de um posto de gasolina, que lhe ofereceu serviço e
moradia. Assim, ele trabalhou como frentista, seu primeiro trabalho, na cidade de
São Pedro dos Ferros (interior de Minas Gerais). Foi através desse trabalho que
começou a se interessar por carros, vindo a se firmar como motorista de
caminhão. Casou-se aos vinte e um anos com a mãe de Neusa, jovem de
dezenove anos. Fixaram moradia na zona rural do município de Jequiri.
As o casamento, que se efetivou no final dos anos 1950, o pai de Neusa,
que concluíra a 4ª série primária, passou a se dedicar ao trabalho rural, associado
às atividades de caminhoneiro. E a sua esposa, também com o primário
completo, além dos afazeres domésticos, atuava como professora leiga,
alfabetizando as crianças da região. Para isso ela não contava com qualquer
ajuda financeira, nem material. O atendimento às crianças era feito em sua
própria casa e a intenção era ensinar a ler e a escrever, uma vez que naquela
região o acesso à escola era dicil. Posteriormente, talvez pelas próprias
exigências do cotidiano, passou a dedicar-se exclusivamente aos cuidados com
os filhos, o marido e a casa. Quando lhe sobrava tempo, ainda que de forma bem
modesta, costurava para os familiares.
Percebe-se que a rotina da mãe de Neusa tinha um caráter essencialmente
doméstico, cuja concepção de mulher estava pautada na idéia do doméstico, com
79
responsabilidades no cuidado e educação dos filhos e do esposo, bem como no
zelo pela casa. Todavia, a idealização da vida privada, da família e do trabalho
doméstico correspondia a uma idealização das mulheres que seriam menos
competitivas, mais afetivas, mais relacionais, intuitivas e cuidadoras
(CARVALHO, 1999, p. 27 grifos da autora).
Devido às atribuições que a função de caminhoneiro exigia de seu pai,
Neusa mudou-se, ainda criança, com a família, para Itaperuna, interior do Rio de
Janeiro. Voltou a Minas Gerais aos sete anos, para a cidade de Mati, onde deu
início à sua vida escolar, conforme seu próprio relato. Ela não fez a pré-escola e,
portanto, começou a partir da 1ª série.
Meu nome é Neusa. Eu tenho 47 anos. Nasci em 28/02/1958 numa
cidadezinha de Minas Gerais, chamada Jequiri. Morei 4 anos e foi
onde ficou um pouco da minha infância. De , mudamos para o Rio de
Janeiro. Ficamos um tempo em Itaperuna e depois mudamos para
Matipó, Minas Gerais. Foi em Matipó que começou a minha vida escolar.
(Neusa, 18/01/2006)
Segundo seu depoimento, a vida foi dicil, mas não lhes faltavam as coisas
que julga como essenciais: a alimentação e os princípios da educação e do bom
caráter, o que pressupõe a valorização de uma ordem moral doméstica
(LAHIRE, 2004, p. 25). Ela coloca, emocionada:
Papai não tinha muito para dar à gente, mas nunca deixou a gente
passar falta do que comer. Nunca tivemos luxo, mas tivemos o principal:
papai nos deu educação e caráter. Ele foi um herói, porque criar uma
família tão grande e, graças a Deus, deu educação para todos. (Neusa,
18/01/2006)
Na sua narrativa, ela lembra das dificuldades vividas e fala um pouco de
sua inserção na escola. Ela se lembra do rigor da professora:na época era
aquela professora exigente, se você não fazia o que ela pedia, era régua... batia
mesmo. Em seu relato, coloca a questão da violência como algo corriqueiro para
a época, não faz qualquer menção à participação da família nesse processo.
Coloca, também, que o início da vida escolar fora interrompido por um fato
marcante: seu pai assassinara um homem e, sendo preso, obrigou a família a
mudar-se, novamente, para a cidade de Jequiri. Neusa e seus familiares
passaram a morar com os avós paternos, sendo que esses passaram a sustentar
80
a todos, esquecendo os velhos rancores e as mágoas impostas pela dicil
convivência entre seu pai e o padrasto. Para ela, foram tempos de grande aflição
e, com isso, um certo atraso na escola.
Ficamos na casa da minha avó até o meu pai cumprir a pena e ele
cumpriu tudo. Foi a julgamento e daí fomos para Raul Soares, no final
dos anos 1960. Em Raul Soares, continuei os meus estudos e fiz até a
6ª série. Em 1974, nos mudamos para Ipatinga. (Neusa, 18/01/2006)
As incertezas do momento e as dificuldades financeiras impunham à sua
mãe uma nova condição. Para garantir o sustento dos filhos e a continuidade de
uma vida digna, investiu no trabalho como costureira, o que teve um grande valor
para o orçamento da família.
No ano de 1974, Neusa e seus familiares chegaram à cidade de Ipatinga.
Nessa época, ela tinha dezessete anos. Ipatinga foi onde terminou os estudos até
o ensino médio. Trabalhava durante o dia e estudava à noite - rotina normal para
uma estudante pobre. Inicialmente, sentiu dificuldades na escola, repetiu a 7ª
série, mas seguiu em frente, terminando o Curso Técnico de Processamento de
Dados, numa escola da rede particular de ensino, no ano de 1979. Quem
custeava os estudos era a própria Neusa, além de ajudar também em casa,
fazendo valer o seu papel de filha mais velha. Ela afirma ter contrariado a vontade
de seu pai: o meu pai queria que eu fosse professora. Só que eu não queria ser
professora. É tanto que eu não fiz magistério, porque eu o queria ser
professora. Nesse sentido, apresenta uma postura de maior autonomia diante
das exigências do pai, o que se confirma tamm com o casamento.
Concluindo o ensino médio, foi para a cidade de Vitória, onde tentou uma
única vez o vestibular para o curso de Administração de Empresas, na
Universidade Federal do Espírito Santo, motivada por alguns amigos que haviam
se mudado para a capital capixaba. Como não conseguiu aprovação, voltou para
Ipatinga e logo, em 1981, casou-se, a contragosto do pai, com José, seu atual
marido que, como seu pai, também trabalhava como caminhoneiro, função que
exerce até hoje.
As o casamento, trabalhou no comércio e, com o nascimento das filhas,
assumiu, integralmente, as funções domésticas. Foi nesse tempo, nos anos 1990,
81
quando sua filha caçula tinha dois anos, que conheceu o trabalho em creches.
Neusa começou a participar de atividades no interior de uma creche comunitária
próxima à sua casa, como voluntária e, aos poucos, foi se constituindo funcionária
dessa creche, atuando no cuidado e atendimento às crianças de zero a seis anos.
[...] comecei a participar de pastoral familiar e fui conhecendo a
comunidade. Tinha essa creche perto de minha casa. Uma amiga, que
era da pastoral, minha vizinha tamm, me convidou para ir visitar a
creche e eu ia com ela para fazer um serviço voluntário. Antes, quando
eu comecei, a creche era uma casa normal e tinha uma cerca de arame
em volta. Você chegava e havia aquele monte de crianças. As
professoras que trabalhavam lá só ficavam batendo papo. Não tinha um
cuidado, sabe? Não tinha o educar. Só ficavam tomando conta. Aí
começamos a fazer um trabalho, mas o trabalho que a gente fazia era
o de chegar e pegar alguma criança, botar no colo, conversar, dar
carinho. A gente não sabia... Eu nunca tinha trabalhado com a
Educação Infantil. Ia ali para ajudar mesmo. (Neusa, 18/01/2006)
Naquela época, tanto para Neusa, como para grande parte das mulheres
trabalhadoras de creche, o trabalho com as crianças se dava na perspectiva do
atendimento às necessidades sicas, como: a higiene e a alimentação. Para
isso, determinava-se uma rotina diária, em que o cuidar se sobrepunha ao educar,
tanto pelo despreparo, como pelo que se espera do atendimento nas creches,
legitimado pelas famílias e pelos próprios funcionários.
Então em 1992, comecei a me interessar pelo trabalho com educação
infantil, comecei fazendo um trabalho voluntário. E, em 1994 que eu fui
trabalhar realmente numa creche.. Olha, comecei em 1994 a trabalhar
com a educação infantil e não sabia nada do trabalho na educação
infantil. Eu fui trabalhar como voluntária e comecei a gostar do trabalho
com criança [...]. (Neusa, 18/01/2006)
Neusa não se percebia como professora da educação infantil e foi, aos
poucos, aprendendo a lidar com a nova situação, ora pelo investimento pessoal,
através dos cursos de formação oferecidos pela Prefeitura Municipal, ora
contando com a ajuda de uma colega de trabalho mais experiente. Desse modo,
acabou por se consolidar como trabalhadora de creche.
Eu participava de todos os cursos que tinha. Então, tudo que era sobre a
educação infantil eu fazia. E, tinha uma colega que me ajudou muito
quando entrei. Ela fazia o Curso de Pedagogia e depois foi
Coordenadora Pedagógica. Ela nos ajudava e nos incentivava muito.
(Neusa, 18/01/2006).
82
De acordo com Campos (2002), mesmo com as orientações adotadas pela
legislação vigente, no que se refere à formação dos professores, ainda
convivemos com o problema da educadora leiga da creche, cujas condições de
trabalho e salário são precárias, acabando por garantir a permanência de
trabalhadores desqualificados nas instituições.
Surgindo como questões de fundo, algumas falas sugerem desabafos,
como quem abre levemente as cortinas da própria história e, com isso, acaba por
mostrar outras possíveis histórias. Trabalho doméstico ou profissional? Será
esse um trabalho que instiga reconhecimento? Nas memórias, uma realidade,
quando ela lembra que:
No início, quando eu entrei, as mães achavam que a gente era a ba
delas. Porque tudo na creche era assim: dar banho, cortar cabelo,
cortar unha, olhar piolho, passar remédio [...]. Quando eu entrei, na
sexta-feira, era considerado o dia de faxina nas crianças. O que
acontecia? A gente cortava as unhas das crianças, limpava o cabelo,
passava remédio de piolho. Aí, quando chegava sexta-feira à tarde, a
mãe pegava, ficava sábado e domingo com as crianças bem limpinhas e
cheirosas. Quando era na segunda-feira, a gente pegava a criança toda
suja. As mães não se preocupavam nem em dar um banho direito nas
crianças. Elas achavam que aquilo era a obrigação da gente. E a gente
mesmo fazia com que elas acreditassem nisso, porque a gente não fazia
nada para mudar. Então, a gente foi se conscientizando... a gente
mesmo. A gente virou e disse: isso não é papel nosso, não! Esse papel
de estar cortando unha, tirar bicho! A época de bicho que era terrível!!!
E a gente tinha que tirar. A mãe chegava de manhã e falava assim: Óh,
tia, o fulano tá com o cheio de bicho, vê se tira, tá? (Neusa,
18/01/2006)
Nota-se o caráter assistencialista no interior dessas comunidades
educativas, o que reforça o argumento de que, na educação infantil, no âmbito
das creches, o limpar, trocar, dar comida, acalmar e atender às necessidades
afetivas, torna-se cada vez mais visível, acabando por valorizar o cuidar em
detrimento do educar. Ainda que possamos compreender o cuidar como uma
importante tarefa no espaço das creches, será essa a função valorizada
socialmente como trabalho? Como decifrar esse fazer diário, quando o cuidado
permanece como uma proposta curricular específica, dirigida o só às famílias,
mas também às crianças das classes populares (KUHLMANN, 2001, p.54)?
Sobretudo, porque a própria família, de certa forma, aceita e acaba por deixar a
responsabilidade dos cuidados sicos dos filhos e filhas para as mulheres
83
trabalhadoras das creches. Isso nos leva a perceber que a representação do
trabalho da mulher no interior das creches segue as mesmas linhas de uma
representação histórica da mulher no interior das famílias: dedicação,
disponibilidade, humildade e submissão (LOURO, 2001, p. 454). Logo, espera-se
dessa trabalhadora a possibilidade de poder conciliar, de maneira tranqüila, a
dupla jornada de tarefas próprias do trabalho doméstico, tanto no trabalho, como
em casa. Para Neusa, é muito dicil você conciliar o trabalho com as tarefas
domésticas. Ela afirma que deixava a família para ficar com as crianças da
creche.
Neusa enfrenta essa dupla jornada, não só pela sua condição de mulher,
mas também porque, sendo seu marido caminhoneiro, tem uma curta
permanência em casa, o que acarreta mais responsabilidades no âmbito
doméstico. Mesmo sabendo da necessidade de dedicar maior atenção às filhas,
uma vez que se sente culpada pela ausência, anuncia o quanto a permanência na
creche, mesmo fora do horário, era constante em sua rotina:
Parece que creche é vício, sabe? Eu não conseguia sair dali não. É
muito dicil conciliar trabalho e família, porque eu deixava a minha
família pra ficar com eles . Deixava, sabe? Parece que creche é vício
mesmo. Olha parece que depois que você vai para a creche, você
esquece a sua vida pessoal... você deixa de lado a família. Você tem que
se policiar pra você o deixar seu filhos de lado. Quer dizer, minhas
filhas cresceram sozinhas. A mais nova quando fui trabalhar na creche
ela estava com 5 anos. Elas até cozinhavam, porque eu só ficava na
creche. Chegou a um ponto da mais velha falar assim: Ó, mãe, a
senhora não quer levar sua cama para a creche não?, porque eu só
ficava na creche e dava um cansaço muito grande... Se você o se
cuidar, acaba adoecendo. (Neusa, 18/01/2006)
Atualmente, Neusa trabalha como coordenadora de uma creche que
funciona como creche abrigo, por acolher crianças sob a guarda do Conselho
Tulelar. Crianças abandonadas ou que foram retiradas das famílias por causa de
maus-tratos.
Neusa valoriza a escola e incentiva as suas três filhas a estudarem. As
duas mais velhas, para orgulho da família, fazem curso superior e a opção o foi
pela área da educação. Uma faz Enfermagem e a outra Fisioterapia, numa
instituição particular da região. A filha caçula está no último ano da educação
84
sica. Embora afirme que gosta muito do que faz, Neusa diz, sem maiores
justificativas, que nunca incentivou as filhas a trilharem o caminho do trabalho em
creche.
5.6. Analisando as trajetórias: questões relativas à mulher, escola e
trabalho na creche
Partindo do pressuposto de que os relatos pessoais são filtrados pelo
tempo e pelos percursos individuais (CASTRO, 2005, p.33), os testemunhos
orais de Neusa, Ana Dirce, Cleonice, cia e Joana me permitiram um novo olhar
para as mulheres trabalhadoras, ora educadoras, ora crecheiras: assalariadas,
donas de casa, esposas, mães. No corpo, as marcas de suas origens: mulheres
pobres, guerreiras. São essas mulheres que cuidam e educam as crianças
pequenas, no interior das creches. Será possível deslindar os possíveis traços
identitários dessas trabalhadoras? Será possível penetrar no contexto dessas
mulheres, possibilitando pensar, efetivamente, no processo de construção da
identidade profissional desse grupo?
Todas elas foram incentivadas a contar sobre o percurso nas creches:
falaram das crianças, das pessoas, dos familiares, das alegrias e das
dificuldades. Embora não seja minha intenção fazer um estudo sobre a história de
vida, o resgate da própria história pelos atores possibilitou um confronto com a
polissemia das trabalhadoras que atuam nas creches. Não seria essa também, a
função social dos cursos de formação de professores? O relato de cada uma
sinaliza para uma compreensão mais consistente do contexto das creches.
É importante considerar que as imagens do passado são analisadas pelo
momento presente e aquilo que possa ter sido um grande problema numa dada
época, passa a ser analisado de maneira mais condescendente. Foram vários os
momentos em que cada uma refletia sobre um fato e dava uma opinião a respeito
de uma situação passada, às vezes julgando, às vezes concordando e, na maioria
dos momentos, a emoção estava presente.
A tentativa, nesse momento, parafraseando Arroyo (2004), é tentar
reconstruir as imagens quebradas do trabalho nas creches, percebendo que nos
85
relatos de cada entrevistada uma expectativa de que ainda têm muito o que
fazer por elas, para as crianças das creches e que o desencanto é menor do que
a esperança.
Percebe-se que a família desempenha importante papel na vida de cada
uma das entrevistadas. Nos relatos anunciam as dificuldades na família e na
escola. Lembrar da infância é lembrar da escola e lembrar da escola é lembrar
da infância e da adolescência (ARROYO, 2004, p. 84), o que implica também
lembrar da família. Nas lembranças de Cleonice e de Joana a necessidade de
trabalhar, ainda criança, para que pudessem ajudar em casa, ajudar a garantir o
sustento. Mesmo reconhecendo a infância como importante etapa na vida das
pessoas, o trabalho, ainda em tenra idade, não representou problemas para elas,
ao contrário, falam da importância de terem adquirido responsabilidade desde
cedo. Será que elas foram influenciadas a construir uma concepção de criança,
como sujeito de direitos?
A questão do casamento também anuncia uma questão familiar. No caso
de cia, o abandono da escola e a opção pelo casamento foram impostas pela
condição colocada pelo pai (ou estuda, ou namora) e, assim, acabou por apressar
uma decisão. Mais tarde, cia sente as conseqüências por não ter estudado.
A dedicação às tarefas domésticas e a valorização do marido,
ensinamentos que aprenderam com as mães e que concebem como essenciais,
cabendo a elas zelarem pela memória do privado, ligada à sua condição, ao seu
lugar na família e na sociedade (PERROT, 2005 p. 39). Em algumas passagens,
essa construção fica bem clara: Neusa dedica atenção ao marido, quando ele se
encontra em casa, em meio à rotina de idas e vindas de um caminhoneiro.
Cuidado este que nem sempre é possível dar às filhas.
Muitas vezes eu deixei as minhas filhas sozinhas... a minha filha que se
casou agora, ela começou muito cedo a cozinhar. É tanto que era assim,
com 12 anos, se eu não estivesse em casa, podia chegar qualquer um
em casa que ela ia para o fogão e fazia a comida. Porque eu estava lá
na creche e eu ficava muito... eu não cumpria o meu horário, sabe? Eu
ficava além do meu horário. O meu marido é caminhoneiro e ficava muito
tempo fora, mas o dia em que ele estava em casa, eu fazia o possível
para estar em casa. Às vezes, no final de semana, eu procurava não
mexer com nada para dar atenção a ele, mas a minha mesa da copa
ficava cheia do material de creche. (Neusa, 18/01/2006).
86
cia sente a ausência do marido na criação dos filhos ruim com ele, pior
sem ele. Joana também considera que o casamento fora essencial para a sua
vida. Enfim, a figura do homem é valorizada e, na maioria dos relatos, tanto o
marido como o filho foram descartados das atividades domésticas. A visão
androcêntrica é, assim, continuamente legitimada pelas práticas que ela
determina (BOURDIEU, 2003a, p. 44). Isto confirma que, socialmente, aceita-se
que os homens sejam duros, ambiciosos. É normal. Faz parte da moral
masculina a potência sica, o enfrentamento, o confronto e até a
violência viril se necessário ou não. Da menina, desde o maternal, se
esperam condutas de submissão, sensibilidade, carinho e dedicação.
(ARROYO, 2004, p.44)
Outro aspecto importante diz respeito ao fato de que, no interior das
famílias, o relacionamento com a leitura e a escrita aparece de forma sutil,
quando presente, surge pelo hábito ou necessidade da leitura da Bíblia Sagrada,
como prática reguladora da fé, imposta pela moral cristã. No entanto, outras
práticas sociais de leitura e escrita não se manifestam. A escola se apresenta
como um universo da cultura escrita (LAHIRE, 2004, p. 20) e dela também
emergem as dificuldades. Nesse sentido, na infância, as famílias das
entrevistadas têm pouco a contribuir, pouco a ensinar sobre o ato de ler e
escrever.
Na idade adulta, casadas, mães, é pela família que anseiam por trabalho e,
dessa forma, chegam ao trabalho na creche. Diante disso, emergem questões:
qual o modelo de profissional que as creches ajudaram a construir? O trabalho
na creche está ligado ao ideal de maternidade?
Quanto à escola, as experiências são variadas. Desde a infância as
dificuldades relativas ao acesso e permanência nas instituições escolares
estavam presentes. O contexto das dificuldades se instalava na falta de condições
para continuar os estudos, ora pelas limitações das ofertas de vagas nas escolas
públicas, ora pela necessidade de dedicar maior tempo para ajudar nas atividades
domésticas.
Para Joana, Cleonice e cia a escola sica o foi valorizada na infância
e na adolescência como condição para inserção social. Já na vida adulta a escola
representou para elas a possibilidade do trabalho remunerado. A conclusão da
87
educação básica era necessária para a conquista de um espaço de trabalho fora
do âmbito doméstico. Assim, foi através de programas supletivos que
conseguiram terminar o ensino médio.
Ana Dirce e Neusa, embora tenham percorrido a educação sica de
maneira mais ou menos regular, não seguiram carreira após concluí-la. Ambas
fizeram uma primeira opção pela dedicação exclusiva ao trabalho doméstico.
Dessa forma, foi no Programa Emergencial que todas elas buscaram a
realização do sonho de se firmarem como professoras de creche, mesmo para
Ana Dirce que havia concluído o Curso Normal no início dos anos 1970. Para
além do diploma ou certificação, o desejo do reconhecimento.
O trabalho na creche representa, hoje, a melhor opção de trabalho para
Ana Dirce (57 anos), Cleonice (41 anos), Lúcia (45 anos), Joana (48 anos) e
Neusa (47 anos), considerando não só a ausência de uma formação que
possibilite outras oportunidades, como tamm o tempo dedicado ao trabalho
nessas instituições. Todas começaram sem qualquer experiência com a educação
infantil e, com o passar dos anos, foram se consolidando como funcionárias nas
creches. Recebem mensalmente um salário mínimo vigente, acrescentado de um
valor que varia de trinta a cem reais, de acordo com a política salarial de cada
Prefeitura, o que, comumente chamam de incentivo ou abono salarial. É com esse
salário que ajudam no orçamento da casa e, no caso de cia, ela é responsável
pela manutenção e sustento da família.
Não cabe colocar a entrada na creche como uma opção, pelas razões já
apontadas nesse trabalho. Falar de opção significa poder de escolha e, nesse
caso, a entrada na creche foi uma possibilidade (talvez a única) de conseguir um
trabalho.
O fato de a creche ser considerada uma instância social onde as esferas
pública e doméstica se articulam, se chocam e se combinam de
diferentes formas pode ser visto como um ponto de vista fértil na análise
da identidade profissional destas trabalhadoras ou serve apenas como
alimento para uma atitude preconceituosa, que considera negativas
todas as combinações entre casa e escola, doméstico e público, familiar
e escolar? (CERISARA, 1996, p.76)
Hoje, afirmam que gostam muito do que fazem e que a educação infantil é
importante para todas elas.
88
Eu fiquei sabendo na igreja que eles precisariam de pessoas para
trabalhar. A creche começaria com muitas crianças. De início, para ver
se poderiam continuar, todos seriam voluntários. Só que no início eles
contrataram, ficharam as principais: a cozinheira e umas duas
assistentes. Eu comecei como voluntária e depois fui contratada como
trabalhadora de creche. (Ana Dirce, 11/04/2006)
Eu vendi verduras até nos dias de me casar. Depois, tive um patrão e fui
mexer com salgado. Eu era salgadeira, numa fábrica de salgado. Fiquei
por um tempo, por pouco tempo. Eu entrei como voluntária, em
noventa e dois, fazendo o trabalho na horta. Depois passei para auxiliar
de serviços gerais. Agora, educadora de creche. (Joana, 19/09/2006)
E eu comecei, em abril de 1992, na cozinha, depois tive uma
oportunidade de trabalhar diretamente com as crianças. Hoje, na
carteira, estou como educadora (cia,12/05/2006)
Quando eu comecei, em 1992, não era nem voluntária [...], pois ia só
mesmo para visitar e acabava ajudando. Eu não sabia nada de
educação infantil. Hoje eu gosto da educação infantil... Eu me defino
assim, mesmo não tendo magistério eu acho que eu tenho muito mais do
que muitas professoras que têm magistério e trabalham na creche [...].
Porque eu corri muito atrás, eu li muito, eu estudei muito. (Neusa,
18/04/2006)
Eu nunca tive intenção de trabalhar em creche, foi assim acontecendo,
de acordo com as necessidades. Hoje sou registrada como educadora
de creche. (Cleonice, 16/05/2006)
A entrada na creche, para cada uma, foi uma importante experiência e, no
percurso, puderam acompanhar as mudanças e as propostas de desenvolvimento
das instituições a partir das inovações impostas pela legislação. É correto afirmar
que nem tudo mudou e que a luta por condições melhores fomenta os
movimentos em prol da educação infantil. Todavia, essas trabalhadoras
enfrentam, cotidianamente, as tensões referentes às condições de trabalho, aos
baixos salários, às limitações na própria formação, entre outros.
O trabalho com crianças é respeitado e valorizado por elas. Todas
demonstraram entender a criança como sujeito de direitos, embora não tenham
superado, ainda, o modelo da assistência, uma vez que não só priorizam o
cuidado (atenção, proteção e apoio às necessidades sicas da criança quanto à
alimentação e higiene) como demonstram pouca compreensão teórica da
proposta pedagógica que articule educar e cuidar, embora nos relatos sobre a
prática o educar e o cuidar estejam associados.
89
6. A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE PROFISSIONAL DAS
TRABALHADORAS DE CRECHE
Parece que a identidade da professora da educação infantil ainda não se
consolidou como profissional, o que supõe uma competência especifica
como mediadora das aprendizagens e do desenvolvimento infantil.
Maria Malta e Silvia Cruz
Na introdução deste trabalho, anunciei que usaria a expressão
trabalhadora de creche, baseando-me em Dubar (1998) no que se refere à
diferença entre trabalho e profissão. Chego nesse ponto da dissertação com um
grande incômodo quanto a essa denominação. O que tudo indica é que, mantida
essa terminologia, acabo por endossar a afirmativa de que, no âmbito das
creches, as mulheres são trabalhadoras, o se constituem como professoras da
educação infantil.
Porém, uma vez que, para o exercício dessa função, a legislação vigente
exige uma formação mínima, conforme já mencionado em outros momentos deste
trabalho e, a partir da certificação, o grupo incorpora o status de professora, não
só pelo sentimento de pertença ao quadro de professores, mas também pela
constatação de que não somente cuidam como, na prática diária, educam as
crianças no interior das creches.
Nessa direção, são vários os autores que tratam dessa questão de
profissionalização da educadora da infância e acabam por inferir que a
profissionalização da educadora passou a ser considerada não apenas um direito
de acesso à formação adequada, como um fator de qualidade do atendimento à
criança pequena (CAMPOS & CRUZ, 2006; KRAMER, 2005; SILVA, 2001;
MONTENEGRO, 2001; NASCIMENTO, 2001; ARROYO, 2000
15
; CERISARA,
1996).
15
Embora a pesquisa do autor não esteja ligada diretamente à educação infantil, em ARROYO
encontramos problematizado a questão docentes-educadores, numa abordagem em que o autor
questiona a profissionalização docente, inclusive da professora e do professor da infância.
(ARROYO, Miguel. Ocio de mestre: imagens e auto-imagens. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000)
90
A profissionalização do professor é questionada por Enguita (1991) quando
afirma que o trabalho do professor primário não se caracteriza por trabalho
profissional. Para essa análise ele discorre sobre o conceito de competência
(qualificação técnica-acadêmica), vocação (chamada de caráter religioso), licença
(reconhecimento do Estado), independência (autonomia e gestão da própria
profissão) e auto-regulação (baseada na solidariedade grupal, na capacidade de
auto-regulação da profissão). O autor questiona em que medida compartilham os
docentes essas características (ENGUITA, 1991, p. 45) e afirma:
Os docentes vivem hoje, e desde muito, uma crise de identidade que
se tem visto refletida numa patente situação de mal estar e,
recentemente, em agudos conflitos em torno de seu estatuto social e
ocupacional, dentre os quais a polêmica salarial tem sido apenas a parte
visível do iceberg. Nem a categoria nem a sociedade em que estão
inseridos conseguem r-se de acordo em torno de sua imagem social e
menos ainda sobre as conseqüências práticas em termos de delimitação
de campos de competência, organização da carreira docente, etc.
(ENGUITA, 1991, p. 41).
Uma justificativa para se falar de identidade profissional das trabalhadoras
de creche pode ser amparada também pelas orientações do Conselho Nacional
de Educação, expressas no Parecer do CNE/CEB, sobre as diretrizes
operacionais para a educação infantil:
para fazer frente a (estas) exigências legais para a profissionalização
docente dos professores para a educação infantil, inclusive aqueles que
no momento são leigos, deverá haver intensa mobilização das
Universidades Públicas ou Privadas, Institutos Superiores de Educação,
Escolas Normais de nível médio, Secretarias, Conselhos e Fóruns de
Educação na criação de estratégias de colaboração, entre os vários
sistemas, possibilitando a habilitação dos profissionais, dentro dos
parâmetros legais. (Parecer CNE/CNB 04, fev. 2000, cap. II, inciso 3,
alínea d)
O que pude verificar, nesta investigação, foi a grande tensão instaurada
entre o real e o idealizado, não só pelo que prevê a lei, como pelo sentimento
expressado pelas trabalhadoras de creche em relação ao seu trabalho. Há uma
história e um sentido socialmente construído.
91
6.1. Professoras ou trabalhadoras de creche?
“A constituição da memória é importante porque está atrelada à
construção da identidade. Verena Alberti
Considerando que a identidade é um espaço de lutas e de conflitos, um
lugar de construção de maneiras de ser e de estar na profissão (NÓVOA, 1992,
p. 16 e 1995, p. 34), pode-se perceber que, quanto às trabalhadoras de creche,
uma grande indefinição dos papéis relacionados ao próprio trabalho. Se, por
um lado, se afirmam como professoras da educação infantil, por outro, uma
consciência de que o lugar que ocupam está aquém da docência: ser professora
da educação infantil e ser professora de creche não parece a mesma coisa. Na
verdade, o que verifiquei foi que não é o nível de ensino que determina a
condição de trabalho, mas é o espaço da creche que impõe essa condição. O que
quero dizer é que, mesmo trabalhando com crianças de cinco anos, elas se
reconhecem como professoras de creche e não da educação infantil, como se
fossem duas funções bem distintas. Mesmo que o trabalho na creche não se
restrinja ao grupo de zero a três anos, mesmo quando atuando com crianças da
pré-escola, identificam-se como professoras de creche, porque atuam no espaço
da creche, seja no berçário, seja com crianças de quatro, cinco ou seis anos. Por
isso, é importante se discutir o processo identitário, entendendo que a identidade
é relacional, construída nas interações, nos mais variados contextos e instituições
(DUBAR, 2005), considerando também que o homem não pensa isoladamente,
mas através de categorias engendradas pela vida social (OLIVEIRA, 1976, p.
33).
Segundo Nóvoa (1995) a crise da identidade dos professores foi objeto de
intensos debates nas últimas cadas do século XX. Para ele uma tensão
estabelecida entre o eu pessoal e o eu profissional. Ainda nessa direção, Teixeira
(1996, p. 185) argumenta que os professores são sujeitos concretos e plurais e
ainda, sintetizam e acumulam experiências, como também se fragmentam,
podendo constituir tanto quanto destituir e confundir identidades, o que sugere
que o eu pessoal se entrelaça no eu profissional, constroem e desconstroem
92
concepções, justificando assim as práticas e a própria condição sócio-histórica
das mulheres entrevistadas.
Dessa perspectiva, pode-se considerar que a identidade é uma construção
e, como tal, se faz na relação com o outro, e essa “relação precisa estar sempre
encarnada em pessoas e contextos reais (THOMPSON, 1987, p.9). Para Dubar
(1997b), nos anos 1960-1970, na Europa, a racionalização do trabalho provocou a
crise das identidades coletivas. O surgimento de novas categorias é
acompanhado do aumento do trabalho desqualificado. Nesse contexto, o trabalho
feminino representa uma fatia desse grupo de inclassificáveis. Hoje, no Brasil,
essa questão está colocada fortemente no âmbito do trabalho nas creches.
Conforme afirma Costa (1995, p. 16), são poucos os estudos que têm
penetrado o interior do mundo dos docentes e lidado com suas idiossincrasias,
com suas incongruências e contingências, com as condições concretas em que
esse processo se verifica. Compreendido dessa forma, o sentido que Joana dá
para seu trabalho ajuda-nos a pensar nessa construção:
Eu gosto, sempre gostei. Gosto mesmo é de trabalhar com criança,
como professora. Mas eu acho que ainda está pouco. Eu tenho vontade
de estudar mais e melhorar. Então eu ainda não estou com a turma que
eu queria. Porque a minha vontade é de trabalhar com criança de
terceiro período da Educação Infantil. E daí, que eu posso chegar a
ensinar a escrever, a ler, para que no dia de amanhã ela [a criança] me
veja e fale: Foi essa quem me ensinou. Essa foi a minha professora.
Porque eu ainda não estou satisfeita. Eu queria ficar é na série com a
criança. Porque quando você esta com uma turma só, o seu serviço, o
seu trabalho aparece. Você sabe como planejar, o que você vai levar.
Sabe como que vai ser o seu trabalho, né? Você levar ali tudo pronto,
entendeu? Do jeito que eu estou ainda está dicil. (Joana, 29/09/2006)
Dessa forma, podemos perceber que Joana fala de dois trabalhos distintos:
aquele que ela realiza na creche e um outro, que é o da educação infantil, onde
planejamento, atividades de leitura e escrita, entre outros que ela julga como
importantes para que haja reconhecimento de seu trabalho. Essa distância, a
coloca num lugar inferior, onde eu ainda não estou satisfeitae pode significar:
eu ainda não sou, de fato, professora.
Talvez possamos compreender essa situação, considerando que todo
corpo (individual) mergulhado numa pluralidade de mundos sociais está sujeito a
93
princípios de socialização heterogêneos e, às vezes, contraditórios (LAHIRE,
2002, p. 31).
Foi possível perceber que todas as entrevistadas têm para si um ideal de
professora para o trabalho com crianças. Apropriando-me do conceito de
marcadores identitários em Veiga-Neto, pontuei, a partir das falas de Ana Dirce,
Cleonice, Joana, Lúcia e Neusa, algumas marcas que elas apontam como
essenciais para uma professora da infância: o amor, a paciência e o carinho.
símbolos culturais que funcionam para diferenciar, agrupar, classificar e
ordenar inscrevem-se fundamentalmente no corpo. É sobretudo no
corpo que se tornam manifestas as marcas que nos posicionam: ser (ou
não ser) baixo, negro, magro, loiro, diferente, etc.; partilhar (ou não
partilhar) de tal costume, tradição, território, classe social, etc. (VEIGA-
NETO, 2002, p. 36)
Nos depoimentos, o amor traduz também uma concepção de criança,
entendida como sujeito de direitos, tema amplamente discutido no Programa
Emergencial. Na história de cada uma, percebe-se que viveram num outro
contexto de infância. Não só pela dificuldade das famílias como também pelas
limitações na própria condição de criança, exemplificado pelo trabalho precoce
inibindo um direito sico da criança relativo aos momentos reservados ao
brincar.
Os posicionamentos das cinco mulheres quanto à concepção do perfil da
professora de creche, podem ser analisados a partir da tessitura de
argumentações, articuladas de forma coerente, sugerindo uma lógica do ocio,
não definida pelo diploma, mas que acaba por delimitar as formas identitárias e os
sentidos do trabalho para essas mulheres (DUBAR, 1997a).
O amor aparece, assim, como um vínculo e se baseia no gostar e no saber
cuidar de criança, sugerindo que somente com um forte envolvimento é possível
trabalhar na educação infantil.
Ah, ela tem que ter muito é amor, viu? Tem que ter muito amor,
dedicação e respeito pelas crianças. Porque, primeiramente, você tem
que amar muito as crianças, não adianta você ir trabalhar só pelo
dinheiro. O mais importante é você saber que o seu trabalho esta indo à
frente. As crianças quando aprendem, falam com licença. A gente
trabalha no beário as boas maneiras, quando elas começam a
aprender... é tudo muito bonito, mas eu acho que você tem que ter muito
amor, porque se não tiver, você vai maltratar, você pode até estragar a
vida da criança. Porque, às vezes, uma palavra que você possa falar...
94
Tem que ter muito amor mesmo. Então eu falo para um monte de
menina novata: "ó, gente, você tem que fazer um trabalho gostando do
que vai fazer. Todo trabalho, se você não está gostando do serviço, não
sai bom não. (Ana Dirce, 11/04/2006)
O amor aparece novamente, agora juntamente com a formação. O amor
surge na expressão de Cleonice com uma concepção de homem: o homem o
é uma máquina qualquer, precisa de cuidados. Daí o cuidado surge novamente
dando tom ao trabalho com crianças.
Primeiro é o magistério que tem que ter, né? Ah, está acima de tudo, a
formação. Mas, se não tiver amor pelo que faz, não adianta insistir, o
vale a pena insistir. Se não for por amor... Lidar com o ser humano, que
não é uma máquina qualquer, um ser humano, uma criança... eu acho
que se não tiver amor e paciência tamm, fica dicil trabalhar na
creche.. Am do jogo de cintura para lidar com as crianças. (Cleonice,
16/05/2006)
Joana traz em sua fala a questão relativa ao limite, ao caráter disciplinar da
educação de crianças nos dias atuais. Mesmo que de forma velada, remete à
tolerância para se conseguir trabalhar com as crianças. A capacidade de dosar o
amor e a paciência pode ser apreendida nos cursos de formação. Por isso, é tão
importante para ela a formação. Percebe-se que o amor aparece como requisito
para a paciência.
Para ser professora de creche, hoje, basicamente, nós precisamos de
paciência, muita paciência, amor e assim, ter mais calma. Am de ter
uma formação boa. Eu acho mais importante, quanto mais estudar
melhor, sabe? (Joana, 29/09/2006)
Surge no relato de Lúcia o dom, como algo inerente ao trabalho com
crianças. Seria dom, missão ou vocação? Pelo senso comum, ecoa o caráter
vocacional das professoras, forjado na concepção de mulher-mãe-professora.
Talvez cia estivesse se referindo a isso, quando mencionou que o salário o
pode ser o mais importante. Ela fala de dedicação e de paciência, mas também
enfatiza a importância da formação.
Bom, primeiro creio que a pessoa tem que ter dom para trabalhar com a
criança. Ela tem que ser paciente, tem que ter disposição para este
trabalho. Porque na verdade não é fácil para quem quiser fazer um bom
trabalho. Não é fácil! Tem que ter busca constante. E ela tem que ter
paciência, o é? Muito carinho, ser prestativa e carinhosa. Então assim
95
ela tem que saber, tem que ter o dom para ser educadora, ser
professora. Porque eu creio que se a pessoa for fazer um trabalho só
pelo fato de salário, não . Ela tem que fazer um bom trabalho, tem que
ser um conjunto assim de muitas coisas: prestativa e carinhosa... (cia,
12/05/2006)
Neusa fala da opção pelo trabalho como algo que precisa ser verdadeiro,
que faça parte do querer. Ser verdadeiro pode significar permanecer ou não na
creche. Porém, o amor e a dedicação surgem novamente como marca identitária
das trabalhadoras de creche.
Eu acho que a professora da Educação Infantil tem que, primeiro ser
verdadeira consigo mesma. Tem que ter certeza do que esta fazendo.
Tem que ter iniciativa e criatividade. Então quer dizer, tem que gostar
mesmo. É uma coisa de dentro. De dentro mesmo, de gostar mesmo,
sabe? É o que eu falo sempre, não adianta você querer trabalhar na
Educação Infantil se você não gosta. Para trabalhar você tem que ser
sorridente, você tem que ser amiga. Tem que ser um pouco mãe. Você
tem que ser tudo para as crianças! (Neusa, 18/04/2006)
Nesse sentido, ser professora da educação infantil pressupõe gostar de
criança, expressado nas falas pelo sentimento de amor, aliado à paciência e ao
carinho, identificado na ação do cuidado. Elas também sinalizaram para a
necessidade da formação, sobretudo porque a partir do Programa Emergencial
passaram a adquirir (ao menos no âmbito do certificado) o status de
professoras. Fiquei me perguntando se elas, que buscam o reconhecimento
como professoras da infância, assumiriam que o trabalho com criança possa ser
também exaustivo, que demanda uma energia que muitas vezes lhes falta e que é
possível sonhar com outras possibilidades.
6.2. O sentido do cuidado
Cuidar e educar em geral são significados associados à prestação de
serviços pessoais a outros, mas os termos podem também ser empregados no
sentido de empatia, carinho, respeito, atenção, proteção, compaixão ou
compromisso com a comunidade. Uma das características do conceito de cuidado
é que ele transita entre as esferas da vida blica e privada, da família ao
96
mercado de trabalho. Há, sobretudo, também uma articulação entre feminilidade,
mulheres e cuidado (CHODOROW, 2000; CARVALHO,1999), o que significa que
o cuidado demarca, historicamente, a relação adulto-criança, ou melhor, a relação
mulheres-criança.
Ora, o tema educar e cuidar vem gerando muita polêmica na área da
educação infantil e é de grande interesse para as políticas públicas e
para a pesquisa. As creches passaram a ser vistas não só como um
lugar onde as mães que precisam trabalhar deixam os filhos e tiveram a
sua importância educativa reconhecida. (KRAMER, 2005, p. 54
destaque da autora)
Por isso mesmo, não provocam estranhamento os posicionamentos dos
atores, no que diz respeito ao trato e ao manejo das crianças.
Numa escolinha exige-se paciência, porque a criança depende da gente.
Temos que achar o lado certo, um jeito de mexer para que a criança
possa se ambientar no lugar. No local onde ela está, sabe? Que às
vezes até um estado emocional faz uma criança adoecer. uma febre
na criança e é um probleminha emocional. Então, a pessoa que não tem
experiência com criança, o sabe mexer com isso. Ela o sabe como
trabalhar isso aí né? Eu vi muitas colegas agindo de maneira incorreta.
(Joana, 26/09/2006)
Cabe-nos, então, perguntar se a paciência, o amor e a dedicação
declarados como essenciais para o trabalho com as crianças, são de fato marcas
identitárias dessas trabalhadoras de creche, ou pelo fato de serem legitimadas
socialmente, como inerentes ao trabalho com educação infantil, muitas vezes
impostas pelo sentido da maternagem, são assim apropriadas por essas
trabalhadoras, no momento em que trazem para si essas características.
O fato é que a grande ênfase da educação infantil, no contexto atual, está
na educação das crianças pequenas e não apenas no cuidado. O bimio educar
e cuidar tornou-se expressão corriqueira, quando se refere às propostas das
creches e pré-escolas. Todavia, o que pude perceber, diante das colocações das
entrevistadas, é que, para elas, a ênfase ainda está no cuidar. Não houve avanço
nesse sentido. De maneira geral o cuidado aparece como essencial e a educação
como algo secundário.
Embora as creches sejam compreendidas como um espaço reconhecido
da ação educativa, esse reconhecimento não se de forma homogênea. Através
97
dos relatos, percebe-se que esse reconhecimento não está muito claro para as
entrevistadas e, sem querer generalizar, faz parecer que essa é uma realidade
das trabalhadoras de creche. É importante lembrar que, no Brasil, as marcas da
servidão ainda estão muito presentes, o cuidado sempre foi delegado e
relegado àquelas pessoas com menor grau de instrução (KRAMER, 2005,
p.57). Isto nos remete ao contexto da criação das creches. Romper com essas
concepções não parece ser tão simples.
Dessa perspectiva, pode-se inferir, tamm, do ponto de vista
antropológico, de acordo com Oliveira (1976, p. 44 - 45), que as identidades são
forjadas no interior das relações sociais, no jogo dialético entre diferenças e
igualdades: seria supor que quem cuida é diferente de quem educa. Nesse
sentido, entendo que a identidade é um fenômeno que emerge da dialética entre
o indivíduo e a sociedade (BERGER & LUCKMANN, 1985, p.230). Assim,
[...] quando uma pessoa ou grupo se afirmam como tais, o fazem por
meio de diferenciação em relação a alguma outra pessoa ou grupo com
que se defrontam; é uma identidade que surge por oposição, implicando
a afirmação do s diante dos outros, jamais se afirmando isoladamente.
(OLIVEIRA, 1976, p. 36)
No decorrer das entrevistas, percebi também, o olhar crítico que
entrevistadas têm sobre as colegas de trabalho. Nota-se o sentimento de
desaprovação ao trabalho dessas colegas, por detectarem uma falta de cuidado e
zelo por parte delas em relação às crianças. É interessante que todas falaram da
intolerância e da falta de paciência de algumas, marcas que julgam prejudiciais ao
trabalho com as crianças:
Ah, o maior desafio que eu tive foi a luta pelo respeito com as crianças.
Porque houve tempos passados que colegas o respeitavam as
crianças. Talvez elas me vejam como antipática... eu entro no ser da
criança, no sentido do bem-estar da criança. Então houve coisa que
eu achava que era falta de respeito. A criança toma mamadeira, certo?
Passei por colegas que as crianças, às vezes, tinham vontade de mamar
e a colega vinha e falava que iria dá e guardava a mamadeira. Às vezes,
tomavam o bico e guardava em cima e não dava a criança. Olha, a
criança tem que ser respeitada. Você conversa, pede para guardar o
bico um pouquinho... A criança dá o bico, pois sabe que é para guardar
um pouquinho, para ela ir largando aos pouquinhos. Eu não sou desse
negócio, igual teve uma voluntária... A mulher chegava e ia
arrancando o bico da boca das crianças. Aquilo eu sentia... eu acho que
é uma agressão chegar e arrancar. Não é assim. É tudo conversado.
Você vai conversar para guardar o bico um pouquinho. É um convite. Se
98
a criança não quer, deixa. É como se tivesse arrancando um doce da
boca da criança. (Ana Dirce, 11/04/2006)
Eu sempre trabalhei com criança e acho que você não precisa, para
você conseguir a confiança de uma criança, você não precisa gritar, você
não precisa ser agressiva, mas, você saber ter domínio da sua voz e
saber conquistar a criança. Eu presenciei cenas de uma professora,
no tio, ela gritando, mas gritando mesmo. Ela me chamou e me disse
que uma criança tinha virado todos os brinquedos no chão e eu fui
conversar com a criança. Ah, porque que você fez isso, Mariana?
“Porque a tia deu o meu biscoito para os coleguinhas e não me deu. Aí
eu falei: “Você não pode fazer isso, você pega um biscoito de uma
criança e reparte com todas e não a ela... Foi por isso que a criança
ficou agressiva, não é? E vai pirraçar e vai gritar, vai desesperar e vai
perder o controle e você acaba perdendo o controle tamm. Então você
tem que conseguir a confiança das crianças, tem que saber lidar com
elas. (Neusa, 18/04/2006)
Para elas, ser professoras da educação infantil vai além da ocupação do
espaço de trabalho nas instituições e por isso requer competências que nem
todas que estão atuando nesse nível de ensino têm. Ao fazer críticas ao trabalho
de outras colegas, acabam por estabelecer alguns critérios de pertença ao grupo.
Traçaram um modelo de socialização onde as práticas devem ser
compartilhadas, o que leva à definição de identidade resultante de modelo único,
um padrão de comportamento para todos os envolvidos no processo. Desse
ponto de vista, elas esperam ser reconhecidas como professoras, porque se
enquadram num modelo que as habilita para a função. Sentem-se como
professoras de creche, porque, além da formação exigida, garantida pela
conclusão do Programa Emergencial, sabem desempenhar bem a função, na qual
valorizam, prioritariamente, o cuidado e o zelo pela criança.
Seria como dizer que as trabalhadoras de creche devem ser assim e não
de outra forma. O fato de estar num dado contexto implica em assumir posturas
que garantam a permanência nesse dado contexto. Percebe-se, nesse caso, a
utilização das mesmas bases do privado e do doméstico. Dessa forma é possível
falar, então, de habitus feminino? Dubar (2005, p. 136) problematiza essa
questão. Para ele, a identidade é o resultado a um só tempo estável e provisório,
individual e coletivo, subjetivo e o objetivo dos diversos processos de socialização
que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições.
99
6.3. O trabalho nas creches e o conceito de habitus
Pode-se afirmar, sem correr o risco de generalização, que o habitus no
campo feminino, determinado pela cultura, anuncia uma concepção de mulher
professora que vai ao encontro do modelo de mãe. Nesse sentido, o habitus pode
ser entendido como um conjunto de padrões de comportamento, pensamento e
gosto, que acaba por estabelecer um elo entre o coletivo e as práticas individuais.
O habitus adquirido através da inculcação familiar pode contribuir para
estruturação das experiências escolares, o que pode justificar a incorporação
pelas trabalhadoras de creche, do sentido do cuidado na perspectiva materna, no
fazer diário do trabalho com crianças. Segundo Bourdieu,
cabe aos homens, situados do lado exterior, do oficial, do direito, do
seco, do alto, do desconnuo, realizar todos os atos, ao mesmo tempo
breves, perigosos e espetaculares, como matar o boi, a lavoura ou a
colheita, sem falar do homicídio e da guerra, que marcam rupturas do
curso ordinário da vida. As mulheres, pelo contrário, estando situadas do
lado do úmido, do baixo, do curvo e do connuo, vêem ser-lhes
atribuídos todos os trabalhos domésticos, ou seja, privados e
escondidos, ou até invisíveis e vergonhosos, como o cuidado das
crianças e dos animais [...], os mais monótonos e humildes (BOURDIEU,
2003a, p. 41).
O habitus, entendido dessa forma, funciona como uma matriz de
percepção, orientação e de apreciação da ação que se realiza em determinadas
condições sociais. Através dele, o passado sobrevive no momento atual e tende a
subsistir nas ações futuras dos agentes sociais, num processo de interiorização
da exterioridade e de exteriorização da interioridade (BOURDIEU, 2004).
Para Bourdieu, o habitus está constantemente sendo formado nas práticas
do dia-a-dia dos sujeitos individuais, onde as pessoas o reproduzem
simplesmente seus sistemas de significado, elas também os produzem e os
utilizam. Algumas falas nos remetem aohabitus feminino, incorporado pelas
trabalhadoras de creche:
Eu acho que um homem não daria certo trabalhando na creche, porque,
não é discriminação não, mas não . A não ser que a creche fosse só
100
de homem tamm, né? [risos] Só de meninos. Eu acho assim as
dificuldades, porque trabalhar em creche, você vai precisar dar banho,
tem que dar banho em criança. Ali tem menino e menina. Para o homem
um constrangimento, né? E mesmo porque tamm, pensou
uma turma de menino e menina e um homem trabalhando lá? O homem
pegando numa criança, numa menina para dar banho? Eu acho que não
certo não (Joana, 26/09/2006).
Desde quando eu entrei na creche, mesmo com todas as dificuldades,
eu participava das salas. Às vezes, faltava um professor e eu
substituía. Eu não tinha a coisa [referindo-se à formação], mas eu tinha
experiência própria para cuidar de criança. Eu ajudava a cuidar, às
vezes, uma criança estava doente com febre, além de eu ter criado cinco
filhos, então tinha uma experiência muito grande, eu tamm tinha
cuidado tamm dos meus irmãos. (Joana, 26/09/2006)
O sentido que todas as trabalhadoras o ao seu trabalho diz muito do que
elas entendem como trabalho para a mulher. O trabalho que desenvolvem nas
creches acaba sendo uma extensão do doméstico, ou ainda, para muitas a
maternidade e o zelo são importantes para o trabalho que desenvolvem.
Compreendem a atividade como algo que envolva o amor, o cuidado e a atenção
às crianças, provavelmente, as condições ideais para se firmarem como
professoras da infância. É interessante observar que, mesmo diante da
necessidade de trabalhar para aumentar a renda familiar, a maioria começou
como voluntária, pois viam no espaço das creches a possibilidade de fazer o que
já realizavam no âmbito do doméstico e, assim, uma perspectiva de terem uma
atividade fora de casa.
Essa condição pode ser explicada pelo habitus feminino, como ação
geradora das práticas das trabalhadoras de creche, admitindo-se o saber-fazer
incorporado das experiências vividas como mulheres e como mães.
Não pretendo, no entanto, sugerir que a trabalhadora de creche seja um
ator homogêneo, que as experiências de mulher por si só expliquem a situação
presente, isso negaria a condição de ressignificar as práticas e agregar outros
valores e experiências à própria prática. Nesse caso, concordo com Lahire (2002,
p.47) que, quando o passado (incorporado) e o presente (contextualizado) são
diferentes. A articulação torna-se particularmente importante, quando o próprio
passado e presente são fundamentalmente plurais e heterogêneos. Negar essa
condição seria considerar a incapacidade de construção de práticas mais
101
profissionais de cuidado e educação dentro das creches. Nesse sentido, a
qualificação e o preparo acadêmico poderiam auxiliar nessa construção.
6.4. Um olhar para o corpo das trabalhadoras de creche
Procuro, nesse momento, destacar um ponto que considerei relevante nos
relatos das entrevistadas, além daqueles já mencionados no decorrer do trabalho:
a dimensão do corpo e do tempo para as trabalhadoras entrevistadas. Mesmo
não sendo o escopo desse trabalho tratar da corporeidade
16
, destaco as
condições corpóreas do grupo entrevistado: o corpo, que carrega o tempo vivido e
as dificuldades acumuladas, fala através das marcas que impõe ao sujeito,
considerando tamm que as entrevistadas têm idades entre quarenta e um e
cinqüenta e sete anos de idade.
Os problemas com a saúde e com a falta de tempo para si mesmas
aparecem de maneira pouco expressiva nas falas das entrevistadas, como se o
corpo não fizesse parte da própria identidade, como se não interferisse de
maneira direta no trabalho que exercem.
Quanto à percepção do próprio corpo, no exercício do magistério, os/as
docentes por suas histórias, por suas condições de trabalho e formação,
entre outras razões, costumam expurgar seus corpos de suas
preocupações, desconsiderando-os nos processos educativo-
pedagógicos (ARAÚJO, 2004, p. 104)
Joana fala de um período em que ficou de licença, mas não demonstrou se
preocupar com a situação. Não fez qualquer menção ao que ocasionou a licença.
Quando fiz uma intervenção, ela me disse que o motivo foi a hipertensão, mas
que isso em nada a atrapalha no dia-a-dia com as crianças. Nas colocações,
aparecem as dificuldades para o cuidado de si, quando expõem sobre as suas
condições em relação ao tempo e ao corpo:
16
Destaco o trabalho que analisa as condições e percepções de professores e professoras sobre
o seu corpo na função docente (ARAÚJO, Marlene de. Faces do corpo na condição docente: um
estudo exploratório, 2004. Dissertação - Mestrado em Educação - Belo Horizonte: UFMG/FaE)
102
Quando saí de licença, a minha maior preocupação foi com as crianças
que ficaram sob o cuidado de outros. (Joana, 26/09/2006)
Ana Dirce e cia falam da temporalidade no cotidiano doméstico e no
trabalho. Expressam as limitações do tempo diante da diversidade do sujeito
sociocultural.
Ultimamente, não tenho muito tempo não. Então, eu tiro o domingo para
dar uma relaxada mesmo. Igual às caminhadas que eu fazia, por
indicação médica, o horário do trabalho não tem permitido. (Ana Dirce,
11/04/2006)
Eu acho que na verdade, a gente é muita coisa para uma pessoa só.
Muito num tempo pequeno. Então a gente precisa do apoio de outras
pessoas. (cia, 12/05/2006)
O contato com as trabalhadoras, me permitiu alguns questionamentos,
indicadores de objetos para outras pesquisas, mas que considerei relevante
registrar neste trabalho, para reafirmar minha intenção de desvendar as
identidades dessas mulheres. Como reconstruir as identidades das mulheres,
trabalhadoras das creches, a partir da compreensão ou ressignificação do próprio
corpo? Como entender o corpo dessas mulheres em suas interações, interseções,
tensões, encontros e/ou desencontros com os corpos das crianças? Nas palavras
de cia, a dimensão dessas tensões:
Eu sei que fora a gente o pode deixar, por exemplo, os problemas
da gente se misturar com o trabalho, porque complica. Se você levar
consigo o peso, aquela angústia de casa, isso vai interferir no seu
trabalho [...]. Quantas vezes eu sentia vontade de descansar... se eu
pudesse eu não iria trabalhar, porque a criança exige da gente o corpo
inteiro. (cia, 12/05/2006)
Segundo Teixeira (2001), os corpos se expressam e, através dos
movimentos, das alterações e do próprio findar, revelam vida na trajetória do
tempo irreversível, o corpo simboliza o limite entre o eu e o outro, separando
assim a professora da criança. Que implicações nessa relação entre os
diferentes? Na creche, aqui entendida como locus dessa relação, podem ser
constatadas essas diferenças rítmicas. Cabe perguntar, que concepção têm as
trabalhadoras das creches a respeito de sua própria corporeidade? Como
percebem a relação entre seus corpos e o fazer pedagico?
103
Os corpos fazem o cotidiano das escolas. corpos humanos paradoxais,
contraditórios, humanos, demasiadamente humanos: insensíveis,
descontrolados, omissos, repetitivos, preconceituosos, vibrantes,
solidários, perversos, racistas, felizes, guerreiros, amorosos(...)
(TRINDADE, 2002, p. 85)
Para Trindade, nenhum corpo é assim ou assado, todos estão [...] estão
hoje diferentes de ontem, determinados pelo contexto em que estão inseridos.
Compreende-se que o corpo tem a flexibilidade imposta pelo tempo. O tempo
vivido influencia decisivamente nas reações correas, individuais e coletivas dos
sujeitos, crianças e trabalhadoras, no cotidiano das creches.
Se considerarmos as abordagens de Huberman (1992, p. 43),
localizaremos as trabalhadoras na fase em que corresponde à etapa de por-se
em questão, em que a própria busca pela formação tornou-se uma condição para
a permanência na creche. Por mais que o corpo cobrasse o ritmo imposto pela
rotina do trabalho diário e a capacitação à noite, haveria uma exigência maior
para que elas buscassem essa formação: a continuidade no emprego.
104
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As mulheres de hoje estão destronando o mito da feminilidade; começam
a afirmar concretamente sua independência; mas o é sem dificuldade
que conseguem viver integramente sua condição de ser humano.
Simone de Beauvoir
As primeiras questões que motivaram esta pesquisa surgiram quando eu
atuava como professora no Programa Emergencial nos anos de 2001 e 2002,
lidando diretamente com as trabalhadoras de creche da região do Vale do Aço.
Durante as aulas, nos debates sobre o professor da educação infantil, percebia no
discurso das alunas uma indefinição sobre a própria identidade. O olhar delas
revelava um sentimento de inquietação quanto à sua condição profissional. Essa
inquietação suscitava uma pergunta: O que somos afinal: professoras ou
crecheiras? Por outro lado, eu também não sabia como responder a essa
questão. Seria possível, durante o Curso, encontrar uma resposta? Percebia que
havia uma construção individual daquelas trabalhadoras sobre a concepção de
professor de creche, mas não era possível identificar essas questões somente
com as discussões nas aulas. Faltava uma inserção nas idiossincrasias das
alunas: um olhar mais denso para as questões que se apresentavam. Lembro-me
da felicidade das alunas com a possibilidade de freqüentar o curso. Hoje
compreendo que aquela felicidade revelava, de maneira implícita, um pedido de
resposta às professoras do Programa. Era como se dissessem: diga-nos o que
somos, e diremos quem podemos ser pelo que fazemos na creche
17
. Na verdade,
eu mesma me perguntava se as via como professoras da educação infantil ou se
tentava disfarçar a minha incerteza.
Quando iniciei esta pesquisa, o meu objetivo era tentar desvelar os
possíveis traços identitários das trabalhadoras de creche. Penso que aí residia a
minha incerteza anterior. Busquei, através das entrevistas, compreender os
possíveis traços e os processos de construção identitária das trabalhadoras,
constituídos em suas trajetórias de trabalho. Minha intenção foi apresentar as
análises, extraindo das próprias trabalhadoras suas histórias, seus sentimentos.
Para tal, optei pela História Oral. Nos fios das lembranças, nas lembranças
17
Parafrasenado voa (1995, p. 29), referência ao título de seu texto: Diz-me como ensinas,
dir-te-ei quem és e vice-versa.
105
inteiras, nas emoções, nas concepções construídas, fui construindo as minhas
próprias impressões. A fundamentação trica auxiliou no processo de
construção das análises e, a partir delas, o fechamento deste trabalho. Será
possível fechá-lo?
Recolhi importantes fragmentos das histórias de Ana Dirce, Cleonice,
cia, Joana e Neusa. A partir deles pontuei quatro marcadores da identidade
profissional dessas trabalhadoras, construídos na família, na escola, na creche e
no Programa Emergencial. Embora pareçam constatações óbvias, a pesquisa
aponta para uma temática pouco explorada. Falar da condição de professoras da
educação básica não é a mesma coisa que falar da condição de professoras de
creche, mesmo que atuando em creche estejam atuando na educação sica.
Julgo necessário falar de processo de construção identitária, bem como
possíveis traços identitários, num jogo de palavras que sugere rupturas e
continuidades. Compreendo, concordando com Nóvoa (1992), que o tempo é
fundante para refazer identidades e acomodar as inovações. E esse tempo não se
encerrou no momento das entrevistas. O tempo das trabalhadoras também o
foi contemplado. Não houve tempo, mas fica o desejo de investigar sobre a
temporalidade das trabalhadoras como importante marca identitária do grupo.
Quanto aos aspectos relativos ao trabalho doméstico e ao trabalho na
creche, constatei que essas mulheres misturam os papéis e acabam construindo
uma identidade profissional no âmbito do privado, acabando por reforçar que o
cuidar é de competência da mulher, exigindo para tal pouca (para não dizer
nenhuma) qualificação profissional e oferecendo baixa remuneração. Assim, o
primeiro possível traço identificado foi a atitude maternal revelada na defesa pela
paciência no trabalho com as crianças e pelo sentimento de amor por elas.
A paciência apareceu como uma sustentação para o trabalho. Ter
paciência com as crianças, ter paciência com o trabalho, ter paciência com os
outros colegas de creches. Percebi que paciência fora um sentimento que fez
parte da vida de todas elas: diante das dificuldades enfrentadas, dos desejos
sufocados, das esperas e que, no trabalho era cultivado como forma de também
vencer as dificuldades. Já o amor aparece como uma condição para se lidar dia-
a-dia com as crianças. Amor por elas e para elas. Não deixou vida que o
cuidado é a base do trabalho. Prioriza-se o cuidado, o zelo e a manutenção do
106
bem-estar das crianças, mesmo quando as condições sicas e materiais são
precárias, o que reforça o sentido maternal que o ao trabalho. Pergunto-me: se
retirar a mãe, fica a professora? Elas mencionam as noções de cuidado como
esteios para o trabalho: amar, cuidar, zelar, ajudar, proteger. Será então que se
esqueceram do educar? Não farei aqui um julgamento das concepções que elas
apresentaram, mas vejo que o educar para elas está imbricado no cuidado, por se
tratar de dimensões presentes na relação corpo a corpo com a criança: educam
quando cuidam. Quando cuidam da higiene, educam para o cuidado com o corpo,
quando cuidam, nos momentos de socialização, educam para a vida, quando
cuidam do afeto educam para as relações futuras. Aprenderam a cuidar, se
firmaram nessa condição feminina. Nessa perspectiva, a teoria do habitus
feminino poderá explicar a existência desse traço. Para Bourdieu (1993; 2003b),
sistemas de disposições duráveis e transponíveis, estruturas estruturantes,
funcionando enquanto princípios geradores de representações. Desse modo, o
cabe falar de dom ou vocação.
Um segundo traço que se definiu a partir desta investigação foi a condição
sociocultural e econômica das trabalhadoras. Todas são de origem familiar de
baixa renda e baixa escolarização. Filhas de pais analfabetos, analfabetos
funcionais ou apenas com o ensino primário, elas viveram no processo de
socialização familiar do pouco contato com a leitura e a escrita, considerando o
contato com os textos da Bíblia Sagrada. As condições familiares impuseram a
essas trabalhadoras o trabalho ainda na infância: o cuidado da casa, dos irmãos
mais velhos e em alguns casos, o trabalho doméstico fora do ambiente familiar
para garantia do recebimento de uma quantia - ainda que irrisória - que pudesse
ajudar na renda familiar. Falo de mulheres pobres com uma infância com
dificuldades. Ao desvelar esse traço foi possível constatar a semelhança do grupo
no que diz respeito às condições socioculturais.
O terceiro marcador identitário que se revelou foi a formação básica
deficiente desde a escolarização sica. No processo de escolarização sica
conviveram com rupturas, com dificuldades em torno da escola: falta de acesso,
repetência, opção pelo trabalho doméstico. Da escolarização na infância, as
lembranças são desagradáveis e a professora primária foi marcada pela rigidez e
pela violência declarada: lembranças de tratamento violento, agressões verbais e
107
discriminação contribuíram para que construísse um modelo de prática diferente
das experiências vividas na escola. Ana Dirce se lembra dos constrangimentos
que passou por causa de sua timidez e do tratamento austero da professora.
Joana se recorda da intolerância da professora com o fato da dificuldade
apresentada pela aluna. Cleonice fala das dificuldades para ir à escola. cia, que
teve uma escolarização em família é quem guarda as melhores lembranças do
ensino primário, no que se refere à socialização.
Algumas pararam durante esse percurso e o retorno à escola para
completar a educação sica aconteceu na idade adulta ou na adolescência, o
que, de certa forma, contribuiu para uma aceleração no processo e formação
final. Muitas fizeram a opção pelos projetos de aceleração dos estudos (supletivos
e outros), o que contribuiu para as limitações no momento de inserção no
mercado de trabalho. Uma outra constatação foi a de que o trabalho como
voluntárias marcou a entrada do grupo na creche.
É importante destacar que não trato do tema formação das trabalhadoras
de creche. Sequer recorro à bibliografia sobre a temática, porque o meu objetivo
era desvelar os possíveis traços identitários que contribuem para a construção da
identidade profissional das trabalhadoras investigadas. Não coube nesta pesquisa
falar de formação docente, visto que essa o constituía uma questão para esse
trabalho. Disso emergem outras questões: Para serem consideradas como
professoras de creche, bastariam a formação e a qualificação para o magistério?
O que mudaria a partir da formação? Haveria, de fato, uma valorização e uma
mudança expressiva no trabalho dessas trabalhadoras? Essas são questões que
a pesquisa o conseguiu contemplar, mas que sugere caminhos para outras
investigações. Percebo que lhes falta uma formação mais sistemática para as
dimensões do educar na educação infantil. É preciso considerar e valorizar a
experiência de cada uma, não foi por acaso que na proposta curricular do
Programa Emergencial reservou-se seiscentas e sessenta horas da carga horária
para prática de ensino comprovada, mas mesmo assim uma lacuna que
contribui para a desvalorização dessas trabalhadoras, pela ausência de
qualificação profissional. Na nossa condição de formadores, temos muito que
ensinar a elas, e igualmente, muito que aprender com elas.
108
Finalmente, foi possível inferir, diante dos significados expressos por elas,
a partir da experiência e do Programa Emergencial (o Programa provocou
reações diversas, construindo e desconstruindo concepções) que sua satisfação
com o trabalho na educação infantil é verdadeira, pelo menos no contexto atual
(não faço referência às condições e motivos que buscaram o trabalho nas
creches). Em contrapartida, reconhecem a desvalorização do seu trabalho e isso
contribuiu para que, o quarto marcador identitário fosse percebido na construção
da identidade para si. Elas demonstraram um sentimento de pertencimento a
um grupo específico: sentem-se como professoras de creche e não como
professoras da educação infantil.
Os resultados demonstram, ainda, que o desejo de serem reconhecidas
como professoras foi o que motivou o grupo a participar do Programa
Emergencial e tamm que uma dificuldade instalada para se romper com a
prática da assistência construída a partir da ênfase no cuidado. Mesmo com a
formação pelo Programa Emergencial não percebi com clareza, no grupo, uma
articulação mais consistente entre a teoria e os saberes práticos.
Acredito que os resultados desta pesquisa possam contribuir para fomentar
discussões sobre as políticas públicas para a educação infantil, podendo
contribuir também para garantir nos cursos de formação de professores um
posicionamento mais crítico sobre a diferença entre os papéis da profissional e da
mãe, bem como um olhar mais denso sobre o gênero feminino na educação e a
divisão sexual do trabalho em nossa sociedade.
109
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS. Pró-Reitoria de
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118
ANEXOS
ANEXO A Ficha de identificação dos atores
Dados de identificão
Nome completo: ........................................................................................................
Data de nascimento:..................................................................................................
Endereço: Av./Rua ....................................................................................................
N° ............. Aptº ............. Bairro: ................................... CEP: .........................
Telefone ou telefax: ........................................... E-mail: ........................................
Cidade: .......................................................... Estado: ............................................
Experiência Escolar
A - Ensino Fundamental - 1ª à 4ª série
Ano de conclusão: ..........................................
B - Ensino Fundamental - 5ª à 8ª série (antigo Curso Ginasial)
Ano de conclusão: ..........................................
C - Ensino Médio (Curso Cienfico)
Ano de conclusão: ..........................................
D - Ensino Médio: Habilitação Magistério
Ano de conclusão: ..........................................
E Outro. Qual? ...................................................
Ano de conclusão: ..........................................
Atualmente exerce a profissão docente na Educação Infantil ? ( ) Sim ( ) Não
Há quanto tempo atua na Educação Infantil? ........................................................
Você trabalha com crianças de que idade? ............................................................
Nome da Instituição:................................................................................................
Local (cidade): .........................................................................................................
119
ANEXO B Eixos de edição das entrevistas com os atores da pesquisa
PARTE 1: Quem são as mulheres trabalhadoras, que cuidam e educam as
crianças no interior das creches.
Lembranças da infância.
Lembranças da família.
Profissão dos pais.
Escolarização dos pais.
Lembranças da juventude e vida adulta: vida familiar anterior e atual e
interferências dela na atividade profissional e vice-versa.
PARTE 2: Os traços identitários das mulheres trabalhadoras de creches (marcas
comuns a essa categoria)
Relação com professores, trabalhadoras de creche e crianças na trajetória
familiar.
Relação com professores, trabalhadoras de creche e crianças na trajetória
escolar.
Perfil de uma trabalhadora de creche.
Características pessoais da trabalhadora.
PARTE 3: Percurso em relação ao seu trabalho
Onde trabalhava antes de entrar para a creche.
Quando e como ingressou na creche.
Opção pelo trabalho na Educação Infantil.
120
Trajetória no trabalho em creche: atuação, outros cargos que ocupou
dentro da creche, tempo de trabalho, jornada, fatos marcantes, conflitos,
dificuldades, colegas de trabalho, diretores, etc.
Contexto da política educacional na época em que ingressou na creche.
PARTE 4: Auto-percepção profissional: professora ou trabalhadora de creche?
Lugar que o trabalho com crianças ocupa em sua vida.
Maior desafio enfrentado em seu trabalho.
Auto-percepção profissional: competência, valorização, realização, etc.
Experiências dentro de sala de aula: lembranças da primeira aula, fatos
que definiram ou modificaram a conduta como educadora de creche,
dificuldades e alternativas encontradas, preparação de aulas, lembrança
dos alunos, conflitos, gratificações experiências que marcaram, desafios.
PARTE 5: Influência do curso de formação emergencial no processo identitário
dessas mulheres, que cuidam e educam as crianças pequenas.
Lembranças do curso emergencial: como foi realizado, fatos marcantes,
atividades desenvolvidas durante o curso que mais marcaram.
Dificuldades, atividades e disciplinas que mais agradaram e que menos
agradaram.
Professores, colegas, aspectos positivos e negativos.
Leituras que fazia durante o curso e auxiliavam no trabalho com as
crianças.
Percepção sobre o programa emergencial, em relação ao trabalho que
desenvolve hoje, no interior das creches.
121
PARTE 6: Percepção sobre a questão do gênero/relações sociais de trabalho
Percepções sobre o trabalho da mulher na sociedade.
Percepções sobre as condições da mulher no interior das famílias.
Percepções sobre o papel de homens e mulheres no mundo do trabalho.
122
ANEXO C Eixos de edição das entrevistas com membros da coordenão
geral do Programa Emergencial Pró-Reitoria de Exteno da UFMG
PARTE 1: O Programa
Proposta do programa
Público alvo
Amparo legal do programa
Financiamento
PARTE 2: Os participantes
Números de trabalhadores atendidos
Resultados sobre evasão no Programa
Características dos participantes
PARTE 3: Os objetivos do Programa
Resultados imediatos
Contexto da política educacional na época em que o Programa iniciou
Limitações ou dificuldades do programa
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