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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA HISPANO-AMERICANA
CORTÁZAR E ANTONIONI: ENCONTRO SOB UM OLHAR
Iára Kastrup Schlaepfer
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Literatura Hispano-
americana, do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, para obtenção do título de Mestre em
Letras.
Orientador: Prof. Dra. Laura Janina Hosiasson
São Paulo
2007
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA HISPANO-AMERICANA
CORTÁZAR E ANTONIONI: ENCONTRO SOB UM OLHAR
IÁRA KASTRUP SCHLAEPFER
___________________________________________________________
ORIENTADOR: PROF.DRA. LAURA JANINA HOSIASSON- USP
____________________________________________________________
PROF. DRA. ANA CECÍLIA OLMOS -USP
____________________________________________________________
PROF. DRA. MIRIAM GARATE – UNICAMP
SÃO PAULO
2007
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DECLARAÇÃO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE
Através deste instrumento, isento meu Orientador e a Banca Examinadora de
qualquer responsabilidade sobre o aporte ideológico conferido ao presente trabalho.
________________________________________
AGRADECIMENTOS
Meus agradecimentos às grandes amigas mulheres pela compreensão,
carinho e estímulo.
RESUMO
Neste estudo propomos uma leitura interdisciplinar, confrontando a trajetória e o
encontro de dois olhares, a saber: de um lado, o olhar do escritor belga-argentino
Julio Cortázar (1914/1984), e, do outro, o do cineasta italiano Michelangelo
Antonioni (1912), e dado às divergências consideráveis que existem entre as duas
linguagens, buscaremos encontrar o ponto onde nos parece que acontece o diálogo
das poéticas do autor e do diretor. Ao postular a aproximação entre a palavra e a
imagem, o olhar é eleito como questão nuclear, transitando ainda pelo erótico e a
personagem feminina.
PALAVRAS CHAVE: CORTÁZAR, ANTONIONI, OLHAR, ERÓTICO, MULHERES
ABSTRACT
In this study we propose an interdisciplinary interpretation that evaluates the
trajectories and convergence of two looks: on the one hand, the view of the Belgian-
Argentinean writer Julio Cortazar (1914/1984), and on the other, the view of the
Italian film director Michelangelo Antonioni (1912). Given the considerable
incongruities between the two languages, we aim to find a poetical meeting point at
which the dialogue between the writer and the director can be established. By
postulating a convergence between word and image, the gaze is chosen as the core
issue, transiting also through the erotic and the feminine character.
RDS KEY: CORTÁZAR, ANTONIONI, GAZE, EROTIC, WOMEN
DEDICATÓRIA
Ling: “la muerte echó los dados
y la profundidad de los cielos exulta
por la noche que sobre mí se desploma”.
Bataille
SUMÁRIO
BREVE APRESENTAÇÃO 09
11 CAPÍTULO 1
1.1 PROPOSIÇÕES E FUNDAMENTOS TEÓRICOS 11
1.2 O CARÁTER DE UMA ÉPOCA: OS ANOS 60 18
42 CAPÍTULO 2: CONSTRUINDO O OLHAR
2.1 A QUESTÃO DO OLHAR 42
2.2 JULIO CORTÁZAR 44
2.3 MICHELANGELO ANTONIONI 68
2.4 O FEMININO EM ANTONIONI E CORTÁZAR 88
94 CAPÍTULO 3: ENCONTRO DOS OLHARES
3.1 “LAS BABAS DEL DIABLO” E BLOW UP : A PROBLEMÁTICA DE
CÓMO NARRAR
94
3.2”LAS BABAS DEL DIABLO” E BLOW UP: O FEMININO E O ERÓTICO 107
114CAPÍTULO 4: CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 126
9
BREVE APRESENTAÇÃO
Acreditamos que num momento em que as questões referentes às fronteiras
entre as diversas produções e manifestações artísticas se tornam difusas e se
ampliam, faz-se pertinente uma apresentação mesmo que sucinta, dos problemas
das relações entre Literatura e Cinema.
Neste estudo propomos uma leitura interdisciplinar, confrontando a trajetória
e o encontro de dois olhares, a saber: de um lado, o olhar do escritor belga-
argentino Julio Cortázar (1914/1984), e, do outro, o do cineasta italiano Michelangelo
Antonioni (1912), e dado às divergências consideráveis que existem entre as duas
linguagens, buscaremos encontrar o ponto onde nos parece que acontece o diálogo
das poéticas do autor e do diretor. Ao postular a aproximação entre a palavra e a
imagem, o olhar é eleito como questão nuclear, transitando ainda pelo erótico e a
personagem feminina.
Essencialmente se trata de um encontro que se faz sob a égide da razão e da
finalidade do olhar. Ressaltamos, porém, que uma teoria completa do olhar (sua
origem, sua atividade, seus limites, sua dialética) fica além do nosso propósito. O
que se pretende aqui, é traçar um itinerário das poéticas, e o elo entre elas para
culminar com o confronto da história do conto “Las babas del diablo” (1959) com o
filme Blow up (1965).
De um modo geral, as considerações aqui apresentadas se caracterizam pela
articulação entre a interpretação histórica de uma época (os anos 60) e o olhar dos
dois artistas, com a finalidade de perceber o detalhe, o instante e o modo peculiar no
qual acontece o encontro deste olhar.
Sabemos que inúmeros são os estudos teóricos comparativos entre o conto
de Cortázar e o filme de Antonioni que em sua maioria, privilegiam a análise do
protagonista e a dialética radical entre olhar e representar a realidade. O modo
peculiar pelo qual cada crítico olha e representa esta realidade e sua articulação
particular entre obra e contexto, justificam a pluralidade de abordagens analíticas,
que, no entanto, ora privilegiam a análise literária em detrimento da análise fílmica e
ora o contrário. Assim sendo, o que propomos aqui é buscar o encontro entre as
duas linguagens, sem no entanto, privilegiar uma ou outra, tentando mergulhar em
10
cada uma das duas poéticas para encontrar o cruzamento delas. É então, à procura
desse diálogo que este trabalho se lança.
Este estudo está dividido em quatro capítulos, cada um abordando um ponto
de convergência entre Antonioni e Cortázar. Após o primeiro capítulo introdutório, o
capítulo dois, trata da questão do olhar e da impossibilidade de narrar e o reflexo
dos anos 60 presente nas duas obras. Pretende-se demonstrar que tanto para
Antonioni como para Cortázar, a impossibilidade de narrar constitui o centro da
problemática de suas poéticas. Explora-se a dificuldade de narrar presente nas
obras dos dois autores, analisando os contos “Ciclismo en Grignan”, “ La Noche de
Saint Tropez”, “Silvia”, “Usted se tendió a tu lado” e “La Señorita Cora”, de Cortázar
e os filmes Cronaca di um amore, L´avventura, La Notte, L´eclisse, Deserto Rosso,
de Antonioni , mostrando através destas análises como se configura a problemática
do olhar e a presença do feminino, para chegar finalmente à análise comparativa
das duas principais obras: “Las babas del diablo”, de Cortázar e Blow Up, de
Antonioni.
O capítulo três revisa a questão do feminismo e do erótico, através da
análise dos mesmos contos e filmes. Este capítulo explora o feminino e o erotismo,
contextualizando a nova mulher que surge nos anos 60, mostrando como ocorre
esta transformação nos contos de Cortázar e nos filmes de Antonioni, apontando
para a personagem feminina como o principal ponto de confluência do diálogo entre
Antonioni e Cortázar.
No quarto capítulo desenvolvem-se as considerações finais.
11
CAPÍTULO 1
1.1 PROPOSIÇÕES E FUNDAMENTOS TEÓRICOS
A adaptação de obras literárias para a tela é procedimento tão antigo quanto o
próprio cinema, contudo uma breve reflexão das palavras de Jean Mitry - “o romance
é uma narrativa que se organiza em mundo, enquanto o filme é um mundo que se
organiza em narrativa”
1
- nos dá uma idéia do delicado problema colocado pela
passagem de uma linguagem à outra, pois mesmo as adaptações mais
escrupulosamente miméticas, há sempre uma “tradução”- “uma traição criativa”,
segundo Robert Escarpit -, da expressão literária à expressão fílmica. Na maioria
dos casos a transposição para o cinema é uma re-criação, e o “tradutor” realiza uma
obra pessoal e se manifesta não como “ilustrador”, mas como um verdadeiro criador:
inspira-se numa obra literária, mas, sem a preocupação de continuar fiel à letra,
repensa seu tema e lhe confere uma visão pessoal, às vezes completamente
diferente da do romancista, cumprindo, assim, o dito por Bela Balasz: “o adaptador
deve usar a obra existente apenas como matéria prima, considerando-a sob o
ângulo específico de sua própria forma de arte, como se fosse a realidade bruta; não
tem de se ocupar da forma já conferida a essa realidade.”
2
Sob o impacto da invenção dos Irmãos Lumiére, em 1895, o que realmente
nunca se poderia prever é que o cinema se transformasse em um meio de ficção, de
histórias contadas através de imagens em movimento tornando o filme uma máquina
de contar histórias. O encontro do cinema com a narratividade é um fato que nada
tinha de necessário, mas que tampouco é ocasional.
Foi justamente na medida em que o filme integrou elementos da narração
que o cinema começou a elaborar os princípios da narrativa cinematográfica. O
entendimento uniforme das imagens só vai ocorrer quando o cinema se transforma
em espetáculo produzido sob condições industriais que resulta em filmes atrativos
para um público de maior poder econômico. A transição de uma atividade quase
artesanal e circense para uma estrutura industrial de produção e consumo deve-se à
1
Citado por Gerard Bétton in Estética do Cinema, São Paulo, Martins Fontes, 1983, pg.115.
2
Citado por Gerard Bétton, op.cit. pg.117.
12
incorporação de parcelas de público mais elitizadas que vão exigindo cada vez mais
a intromissão da narrativa na realização cinematográfica.
O grande desafio do cinema, a partir desse momento é satisfazer o
gosto da platéia em que domina a classe burguesa, acostumada com o fio narrativo
dos romances da época: os filmes passam a contrabandear a narrativa do romance
para o cinema, garantindo assim a sobrevivência da indústria que estava nascendo.
Inumeráveis são as narrativas no mundo. Sob formas quase infinitas, como
aponta Barthes, a narrativa é sustentada pela linguagem articulada, oral ou escrita,
pela imagem, fixa ou móvel, pelo gesto ou pela mistura ordenada de todas estas
substâncias; ela está presente no mito, na lenda, na epopéia, na história, na
tragédia, no drama, na comédia, na pantomima, na pintura, no vitral, no cinema, nas
histórias em quadrinhos, no fait divers, na conversação.
3
O primeiro mandamento do contador de histórias é a objetividade, que
consiste em ter um mundo para contar. A base do narrador é a experiência, uma
palavra carregada de significados. Na língua alemã, por exemplo, temos Enfahrung,
que procede de fahren e de farht – viagem-, o que nos aponta “experiência” como
um viajar pela vida, Aqui, é entendida como uma vivência do narrador “face a“
determinado acontecimento em um universo conhecido, envolvendo sentido, razão e
memória: um misto de “catharsis”, “mathesis “e “mnéme” com a devida mediação do
sujeito. A experiência na sua realidade concreta torna-se coerente através da
categoria do sentido. Essa unidade é que, através da memória, vincula o que foi
vivido à vivência.
O sentido exige uma forma configurada pela narrativa, ou seja, só o que é
narrável é compartilhável. Para que se dê um sentido à própria vivência, é
necessário organizar a sucessão de vivências numa experiência narrável.
Essa articulação se dá pela biografia, pela memória e pela
intersubjetividade. O romance é a forma literária da época moderna que mostra
essa articulação. Como disse G. Lukács, o romance é a busca de sentido para algo
que não tem sentido dado pela forma. Esse sentido portanto, tem que ser colocado
3
Em “Introdução à análise narrativa” in Análise estrutural da Narrativa – pesquisas semiológicas –.
Rio de Janeiro, Ed. Vozes, 1971, pg.19.
13
pela própria forma da narrativa, na medida em que ele supõe um princípio de
organização baseado na memória, na biografia, e nas relações entre sentido.
Se na tradição da narrativa, contar é contar alguma coisa que aconteceu, é
como diz Walter Benjamin
4
, transmitir uma experiência extraída da própria
experiência ou da experiência recebida de outro, deduzimos que o narrador conta as
histórias daquilo que sabe por ter vivido ou por ter ouvido e para que dê um sentido
à própria vivência, necessita organizar esta sucessão de vivências numa experiência
narrável. Mas à medida que a sociedade se moderniza e a troca de experiências se
rarefaz, os narradores se afastam gradativamente deste postulado, e o que se narra
então, é a impossibilidade de narrar uma história. A narrativa portanto, configura-se
não como um relato em que o narrador expõe a sua experiência, mas como observa
Silviano Santiago, dá mais um passo no processo de rechaço e distanciamento do
homo narrator, e “se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres,
fatos e incidentes e não por um olhar introspectivo que cata experiências vividas no
passado.”
5
O assunto da narrativa certamente é muito amplo, complexo e inesgotável e
por isso nos limitaremos a tratar somente de uma questão básica: como narrar? ,
mesmo porque – veremos – tanto em Antonioni como em Cortázar, trata-se de
problema medular.
COMO NARRAR?
Os historiadores do cinema estão de acordo em considerar que o cinema
narrativo se impõe no período compreendido entre 1910-1915, aproximadamente.
Filmes como Enoch Arden (D.W. Griffith, 1911), Fantomas (Louis Feuillade, França,
1913), Cabiria (Giovanni Pastroni, Itália, 1914), A Batalha de Gettysbeurg, (Thomas
Ince, USA, 1914) e sobretudo O Nascimento de uma Nação (D.W.Griffith, USA,1915)
figuram entre as primeiras narrações cinematográficas: narrações de certa extensão
que recorrem a processos especificamente cinematográficos. É justamente no
desenvolvimento de sua técnica narrativa que o filme como um gênero autônomo se
impõe.
4
As idéias aqui desenvolvidas têm como base os argumentos de Walter Benjamin em seu conhecido
texto “O narrador”, em Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1987.
5
Em “O Narrador Pós-Moderno”, Nas Malhas da Letra, Rio de Janeiro, Rocco, 2002, pg.50.
14
O cinema narrativo clássico se desenvolveu nos estúdios de Hollywood nas
primeiras décadas do século XX. É chamado clássico devido à sua influência
duradoura sobre o cinema americano e mundial. Pode ser definido como um sistema
de regras e convenções que controlam a narrativa – personagens individuais como
agentes causais, tempo subordinado à estrutura causa-efeito, tendência à
objetividade e a resolução de conflitos no final. A técnica cinematográfica também se
desenvolveu de modo a servir a uma narrativa linear. Alguns autores têm
questionado a divisão entre cinema-clássico e outros, ponderando que “sistema de
cinema-clássico” é uma abstração, na medida em que cada filme excede o sistema e
não pode ser reduzido a este, ou que mesmo criticando-se os princípios da narrativa
e do cinema narrativo, esta narrativa não pode ser totalmente abandonada pelo
cinema de vanguarda.
6
Na literatura, essa questão tal qual a coloca o filósofo Theodor W. Adorno em
seu ensaio sobre a posição do narrador no romance contemporâneo, leva ao
problema da possibilidade da narrativa, problema esse que vem desde o final do
século XIX, atravessa toda a narrativa literária do século XX e aparece ainda como
uma questão em aberto no nosso século XXI. Será possível narrar quando é
impossível narrar? As raízes históricas desse problema geral são tão vastas e
complexas que nem seria possível discuti-las agora, mas, supondo-se que narrar
seja possível, há uma série de problemas que se colocam para o narrador, entre os
quais, um essencial: o problema do ponto de vista.
Entendemos como ponto de vista, a relação entre o narrador e o narrado, ou
a enunciação e o enunciado. Trata-se, portanto, da articulação entre aquilo que é
contado e o ato de contar. Essa articulação é o centro do ponto de vista e é também
aqui o que denominamos olhar.
Escolher uma voz narrativa ou um ângulo de visão implica numa escolha
articulada com a visão do mundo, escolha essa nada inocente, porque se sabemos
que o narrador é aquele que “conta o que sabe”, do ângulo que escolheu, mas com
a rarefação da experiência, podemos dizer que se cria um mal-estar da narrativa
registrado tanto na teoria quanto na prática dos narradores, e a isso, de algum
6
A explicação de cinema clássico foi explicitada por Roberto Franco Moreira, em um curso sobre “As
estratégias narrativas do cinema clássico”, ministrado em Comunicação e Estética do Audiovisual,
ECA/USP, em 2003.
15
modo, vem juntar-se também a desconfiança quanto à rachadura entre o discurso
narrativo e os fatos narrados, entre o discurso e a história. Em síntese, narrar é a
arte de impossibilidades.
Um dos modos de se compreender a própria arte do narrar no caso de “Las
babas...” e de Blow up , é constatando que tanto um como o outro existem para falar
da incomunicabilidade, da impossibilidade de expressar experiências através de
palavras. A incomunicabilidade é, então, recoberta pela densa relação estabelecida
pelo olhar.
A QUESTÃO DO OLHAR
Muitos filósofos falaram sobre o olhar ou a partir dele, mas é Aristóteles que
citamos. Em Sobre a Alma lemos:
É porque a vista (óphis) é o sentido mais desenvolvido, a palavra imaginação (phantásia)
tira seu nome da luz (pháos), porque sem a luz (phótos) é impossível que seja vista (esti
ideín)”.
7
Esti ideín: ver é olhar para tomar conhecimento e para ter conhecimento.
Esse laço entre ver e conhecer, de um olhar que se tornou cognoscível e não
apenas expectador desatento, é o que o verbo grego eidô exprime. Eidô: ver,
observar, examinar, fazer ver, instruir, instruir-se, informar, informar-se, conhecer,
saber – e no latim, da mesma raiz, vídeo – ver, olhar, perceber e viso - visar, ir olhar,
ir ver, examinar, observar.
O pensamento parece nascer do olhar. O laço interno entre ver e conhecer
aparece já na abertura da Metafísica, quando Aristóteles escreve sobre o privilégio
do olhar sobre os demais sentidos.
Quando Merleau-Ponty escreve: “ver é, por princípio, ver mais do que se vê,
é aceder a um ser latente. O invisível é o relevo e a profundidade do visível”
8
,
adentramos em um campo que se desdobra até o âmago da nossa questão primeira,
ou seja, o que é ver? o que é visível? estaria a impossibilidade de narrar atrelada ao
olhar?
7
Citado por Marilena Chauí em “Janela da Alma, Espelho do mundo”, O Olhar. São Paulo,
Companhia das Letras, 1988, pg. 35.
8
Citado por Adauto Novaes em “De olhos vendados”. O Olhar, op. cit. pg.14.
16
O cinema também acolhe em sua história o olhar, uma história do olhar
sobre o mundo e do olhar do mundo, que como frisa Jacques Aumont, é uma
“fórmula ambígua que dá a entender que o mundo nos contempla (olhar é ser
olhado)”
9
. Ver e mostrar são indissociáveis, mas como transformar em realidade o
que se vê? Aumont acredita e afirma que “entre a imagem do filme, fabricada e
pensada, e a realidade, há o visível e o visual. É nessa “zona” vasta e vaga que os
cineastas trabalham, cultivando a arte de ver e de contemplar ou domando as
imagens produzidas por seu “imaginário”.
10
Mas, voltemos ao aspecto essencial da nossa proposta, esse encontro de
olhares no centro de uma história.
Para onde se dirige o olhar primeiro? Para um outro olhar, um olhar que é o
ponto nodal da tecedura do mistério: é o espaço aberto pelo olhar da personagem
feminina que provoca e evoca em sua abertura uma possível confluência entre
Cortázar e Antonioni. Dominados pelo sortilégio desse olhar, arrastados pela
sedução do caminho indicado por ela, nasce o presente estudo que é,
essencialmente, sobre o encontro de um olhar que varre as complexas energias da
sociedade e da cultura de uma época – os anos 60 – e propõe um conjunto de
novos conceitos, conceitos esses cujos ecos apontam para uma renovação estética,
que atingirá tanto a literatura quanto o cinema. Ou seja, cada fragmento de cada um
dos discursos desta época expressa uma verdade essencial sobre o homem ou a
sociedade pós-moderna.
Se para o diretor de cinema Michelangelo Antonioni o “negócio é narrar com
imagens” e para Julio Cortázar a escritura é “uma arma secreta”, o que se apresenta
de imediato é uma reflexão sobre o próprio ato de contar através das palavras. O
que buscaremos mostrar é que essa impossibilidade de narrar está atrelada ao olhar
e que tanto para um como para outro, se constitui como centro problemático da
própria poética.
Para tal, veremos como o olhar na obra de Antonioni substitui as palavras e
desempenha papel fundante na constituição da própria narrativa. Em Cortázar,
faremos uma pequena viagem do “sêmen ao sema” pelo labirinto construído por
alguns de seus textos, tanto teóricos como ficcionais. Veremos um Cortázar
9
AUMONT, Jacques. As teorias dos cineastas. São Paulo, Papirus Editora, 2004, pg.132.
10
Op. cit. pg. 80.
17
conhecedor do sentido falho e falível das palavras, que se debate dentro delas,
constituindo uma poética que é uma busca incessante de uma solução para o
impasse criado.
Finalmente, a mulher. “Filtro sutil da realidade” para Antonioni e grão
transgressor do desejo para Cortázar, a personagem feminina será, com seu olhar,
ponto de confluência do diálogo das duas poéticas.
AS OBRAS DE ANTONIONI E CORTÁZAR COMO REFLEXO DOS ANOS 60
O chão onde pisam Antonioni e Cortázar, e de onde extraem as respectivas
poéticas, está minado pela incerteza e a solidão. Ver, olhar, viver e expressar a
mudança direta e cotidiana instaurada pela transgressão ao institucionalizado na
modernidade é, em uma primeira instância, projetar as angústias, contradições e
questionamentos do homem da época que se segue.
Portanto, faz-se necessário que reconheçamos tanto na obra de Cortázar
como na de Antonioni, a convergência dos questionamentos gerados pela época dos
sessenta.
Na literatura e no cinema assistimos a um ataque frontal às técnicas
clássicas; nada acontece segundo a velha concepção, ou melhor, tudo acontece de
acordo com a própria experiência, com uma nova formulação. Questiona-se o
leitor/espectador. A escritura rompe com o tempo linear, com o olhar realista e com o
ponto de vista do narrador. A câmera testemunha os fatos, rodeia-os, delineia-os,
mas não os explica, não conclui – em suma, não está manejada pelo escritor ou pelo
pensador. Godard ultrapassa o estágio da “narração”, e leva o cinema ao impasse
da narrativa. O filme moderno sendo um objeto absoluto é uma obra que pode ser
percorrida em qualquer direção.
No centro desta época, observamos a produção de novas contraculturas e
formas alternativas que emergem representadas por novas vozes, vozes minoritárias
e até então isoladas, que fomentam a libertação das diferenças e das diversidades e
explodem como uma multiplicidade de racionalidades: minorias étnicas, religiosas,
culturais ou estéticas, configurando, assim, um perfil particular na noção de
experiências, de mentalidades, de costumes e da sexualidade. Dentro deste
questionamento, nos interessa observar a voz feminina que traz com ela o corpo e
sua sexualidade. Por meio de movimentos radicais, a mulher começa a revoltar-se
18
contra aquilo que considerava práticas opressivas das sociedades patriarcais
contemporâneas e de seus consortes, o que resulta em um alto momento da
corporalidade sexual e erótica. O corpo é colocado em cena como lócus da
transgressão, do delírio e do transe, através das experiências da droga e do sexo, e
esse culto ao corpo abre espaço para uma sexualidade mais livre, passo definitivo
para a escalada social do bissexualismo.
Dentro deste contexto dos anos sessenta, existem pontos de convergência
importantes entre a obra de Antonioni e Cortázar. Estes pontos serão explorados
separadamente através da análise de contos de Cortázar e dos filmes de Antonioni,
explorando o que foi apontado na Introdução.
1.2 O CARÁTER DE UMA ÉPOCA: “OS ANOS SESSENTA”
Inicialmente, pretendemos esclarecer o que representa neste trabalho a
expressão “anos 60”. Entendemos esse período não em seu sentido cronológico
mas como uma “época” , que segundo Claudia Gilman
11
, se define como um campo
onde a história das idéias são publicamente dizíveis e aceitáveis e gozam da mais
ampla legitimidade e escuta em certo momento da história.
O período em questão, também chamado por norte-americanos e europeus
como “os sessenta”, compreende de 1959 até 1973/1976, e está marcado por um
clima de protesto fundado na perda do otimismo que marcou o começo do século
XX.
Este otimismo, tendo como pano de fundo a afirmação do sistema capitalista
e propiciado por um desenvolvimento científico e técnico sem precedentes, não
bastou para livrar o mundo da fome, da violência e das desigualdades, gerando uma
inconformidade sem precedentes no âmbito sócio-político e cultural.
Não é difícil apontar o ano de 1945 como o começo da mudança. Com a
Segunda Guerra Mundial, a humanidade teve a certeza de que o mundo estável e
repartido que os vencedores tinham construído de acordo com suas conveniências,
11
GILMAN, Claudia. “Los sesenta/setenta considerados como época” in Entre la pluma y el fusil,
Buenos Aires, Siglo XXI, 2003. Neste livro diz ela: “podría decirse que, en términos de una historia
de las ideas, una época se define como un campo de lo que es públicamente decible y aceptable –
y goza de la más amplia legitimidad y escucha – en cierto momento de la historia, más que como
un lapso temporal fechado por puros acontecimientos, determinado como un mero recurso ad
adventa”
19
não era mais tão seguro nem equilibrado. A bomba trazia consigo a inexorabilidade
da destruição total, e o Holocausto com sua “limpeza étnica”, formam as duas caras
de uma mesma moeda que foi lançada ao ar.
Surge então uma época contraditória e incerta, caracterizada principalmente,
por um radical questionamento de grande parte do pensamento tradicional e da
ordem social ocidental. Historicamente, grande parte desta contestação parecia vir
pela mão de uma nova geração, a juventude que, empurrada pelo vento da
contestação e convertida em uma força social crescente, submetia à sua visão
crítica os valores das sociedades constituídas e formulava alternativas político-
sociais que expressavam os desejos de mudança dentro da sociedade.
O sincronismo e o caráter das mobilizações dos jovens na Europa ocidental
(Paris, Berlim, Frankfurt e Milão) e nos Estados Unidos, apesar de coincidentes em
muitos pontos, tiveram dimensões, formas e conseqüências diferentes entre si, mas
todas, sem exceção, expressavam um rechaço ao autoritarismo e ao próprio
conceito de autoridade em qualquer das práticas: política, social, econômica,
cultural, internacional ou familiar, ao mesmo tempo que denunciavam a ordem
estabelecida, em nome da liberdade.
Por mais polifacética que pareça esta produção, sua maior influência se
manifesta em uma moral crítica aos dogmas estabelecidos, e para nós, mais
importante que os feitos são as suas interpretações, como afirma o filósofo Gianni
Vattimo.
O mundo das minorias
Guerras, revoluções, revoltas, rebeliões, lemas e ilusões. A onda
contestatória tem início. Lutas pelos direitos civis das comunidades negras nos
Estados Unidos (que desembocariam no grande movimento Black Power anos mais
tarde); passeatas anti-nucleares e ações pacifistas; lutas pela ecologia e por uma
organização mais humana da sociedade com o repúdio ao paradigma hegemônico
produtivista e, é claro, uma revalorização da autonomia pessoal. Surgem,
emblematicamente, os controvertidos “beats”
12
e os hippies.
12
Para alguns, como a mídia, os “beats” geralmente eram associados com uns caras desarrumados
e malucos, de sandália e tocando bangô. Para nós a palavra “beats” era associada a um interesse
comum pela natureza, pela ecologia, pela exploração da mente, por um aprofundamento da
experiência o que é uma tradição antiga se você lembrar de um Thoreau ”MCCLURE, Michel. “O
20
No Festival de Woodstock Music & Art Fair, quinhentas mil pessoas, em três
dias de música, repudiam a intervenção militar norte-americana no Vietnã e clamam
pelo fim da guerra com o lema “Paz e Amor”. Reivindicam, também, a liberação
sexual e o uso das drogas.
O resultado destes acontecimentos foi desigual, como aponta Pedro Martinez
Lillo
13
. Os projetos de transformação social e política defendidos pelo
comportamento contestatório desta juventude fracassaram. Os governos retomaram
o controle, procedendo à “restauração da ordem”. Com exceção da França (e assim
mesmo por pouco tempo), a estabilidade institucional esteve sempre garantida. Por
isto, os acontecimentos gerados por esta juventude, que tem o ápice no ano de 68,
são fenômenos de rebeldia, ou “rebeliões
14
,” como os chama Octávio Paz, que não
podem confundir-se com um processo revolucionário.
Porém, este transcurso não passou despercebido dos políticos responsáveis
que auspiciaram um novo ciclo de reformas a fim de restaurar um novo consenso
social. Visto por outra ótica, o movimento de 68 abriu uma brecha nas sociedades
em termos culturais, de mentalidades e comportamentos, que só seriam sentidos à
longo prazo. O acesso massivo de um crescente número de jovens ao ensino
universitário, permitiu que se formasse uma consciência própria e diferenciada de
identidade, configurando um coletivo social potencialmente autônomo diante de uma
maioria adulta.
Para Jesus Ibañez, “mayo de 68 triunfó mediante su fracaso porque fracasado
como revolución triunfó como reforma”
15
leão rebelde da poesia norte-americana”, em entrevista à Rodrigo Garcia Lopes. Disponível em
http//paginas.terra.com.br/artePopbox/mcclure.htm. Acesso em janeiro 2006.
13
GARCÍA DE CORTÁZAR (org.). “1968-1973: El final del recreo”. El Siglo XX. Diez Episodios
decisivos. Madrid, Alianza Editorial, (1999), 2000, pg.194.
14
Pensamos aqui na gradação feita por Octávio Paz que diferencia um termo do outro. Diz ele: “En
Corriente Alterna he descrito las diferencias entre revolución, revuelta y rebelión. El ejemplo clásico
de revolución es todavía la Revolución francesa y no sé si sea lícito aplicar esta palabra a los
cambios sociales que han ocurrido en Rusia, China, y otras partes, por más profundos y decisivos
que hayan sido. Uso la palabra revuelta para designar los levantamientos y movimientos de
liberación nacional de Tercer Mundo y de América Latina (en un sentido estricto esta última no
pertenece al Tercer Mundo), y rebelión para los movimientos de protesta de las minorías raciales,
liberación femenina, estudiantes y otros grupos en las sociedades industriales o en los sectores
modernos de las naciones subdesarrolladas”. “Revolución, Eros, Metaironía”, en Los hijos del limo,
Barcelona, Seix Barral, 1974, pg.200.
15
Citado por Pedro Martínez Lillo: “1968-1973:El Final del Recreo” in El Siglo XX, Diez episodios
decisivos. Madrid, Alianza Editorial, 1999,pg.195
21
Literatura-política na América Latina
No contexto das reflexões sobre a cultura, podemos observar que no campo
político-social as mudanças ocasionadas pela formação de ditaduras e de governos
totalitários
16
na América Latina servem como base para uma nova reflexão no
campo intelectual. A produção cultural desta época sofre uma crescente politização
analisada por Gilman como preocupada em apagar as fronteiras entre arte e política:
El sociólogo conservador Daniel Bell se refiere a la producción cultural de los
sesenta en estrecha coincidencia con los parámetros con los que Peter Bürger caracteriza
los rasgos principales de las vanguardias históricas: “un esfuerzo para borrar de una vez por
todas las fronteras entre el arte y la vida y por fusionar el arte y la política.(...) Oscar Terán
resume en una frase la marca de esos años como la de una convicción creciente pero
problemática del periodo: que la política se tornaba en la región dadora de sentido de las
diversas prácticas, incluida por cierto la teórica”.
17
No plano latino-americano, a Revolução Cubana (1959) parece materializar o
pensamento de intelectuais e políticos de esquerda, com a proposta de uma nova
ordem social e uma nova cultura revolucionária. A adesão plena ao regime de Fidel
Castro, parecia inabalável, mas a realidade repressiva nos conflitos político-sociais
que se seguem durante a década, principalmente no caso Padilla, afetam não
somente o próprio projeto revolucionário em si, mas também a postura dos
intelectuais latino-americanos que pensaram em Cuba como modelo utópico.
No entanto, um aspecto positivo que devemos lembrar foi o da Casa das
Américas e os prêmios por ela outorgados, que defendia e ampliava o lugar do
intelectual em uma comunidade de cultura. Como aponta Halperín Donghi
18
cualquiera que fuese el juicio que la situación mereciera, ella permitía a la nueva literatura
hispanoamericana identificarse con la fresca excitación de ese que parecía como un nuevo
comienzo, sin sufrir las consecuencias potencialmente más peligrosas de esa identificación”.
16
Com o acirramento da “Guerra fria”, aumentaram as preocupações dos Estados Unidos em relação
aos países latino-americanos, o que favoreceu a entrada em cena dos governos militares, dando
um caráter continental à ideologia da “segurança nacional”. Na América Latina, ocorre então, o
avanço acelerado das ditaduras militares;1962: forças armadas peruanas impediram a posse de
Haya de la Torre; 1963: militares dominicanos impediram a posse de Juan Bosh; 1964:no Brasil,
golpe militar que derrubou o presidente João Goulart e na Bolívia é deposto o presidente Paz
Estensoro; 1966 militares ocupam o poder na Argentina; 1968: novamente os militares assumem no
Peru.
17
GILMAN, Claudia. “Los sesenta/setenta considerados como época” in Entre la Pluma y el Fusil,
Argentina, Siglo XXI, 2003, pg.41.
18
HALPERÍN DONGHI, Tulio. “Nueva narrativa y Ciencias sociales hispanoamericanas en la década
del sesenta”, in Más allá del Boom: Literatura y Mercado., 1984, pg.148.
22
Assim, pela primeira vez, os escritores latino-americanos da época em
questão, viam suas obras serem exibidas nas vitrines “de Caracas à Buenos Aires”,
de “Santiago do Chile à Bogotá”, ao mesmo tempo que asseguravam a esses
escritores uma presença pública constante.
Mas, por outro lado, os escritores se encontravam pressionados pelos setores
revolucionários militantes que exigiam uma literatura fundada na noção de
compromisso com a revolução, cujo propósito era conscientizar politicamente a
sociedade e sua própria criação.
Diante de tal situação, uma articulação entre a obra específica e a
participação efetiva numa marcha de rumo cada vez mais incerto, está longe de ser
simples.
No contexto histórico-social, os tópicos que caracterizam este período,
segundo Monica Tamborenea
19
, são a ampliação do público leitor, a modernização
deste mesmo público, a internacionalização da cultura com a articulação do local e o
cosmopolita, a profissionalização do escritor, e o “boom” das editoras.
Mas vejamos primeiro, o que acontece dentro da Literatura.
A tradição da ruptura
A literatura hispano-americana durante o século XX sofre, segundo Emir
Rodriguez Monegal
20
, “três rupturas”: a primeira, na década de 20, que
corresponderia à época da Primeira Guerra Mundial com as Vanguardas. A
segunda, na década de 40, com o impacto da Segunda Guerra Mundial e a Guerra
Espanhola, que traria mudanças significativas no campo cultural. Finalmente, a
terceira ruptura que estaria vinculada à revolução Cubana e aos conflitos políticos-
sociais que dela decorrem. Para ele, questionar é o que distingue sobretudo a obra
destes anos. Um radical questionamento da própria obra, de sua estrutura e de sua
linguagem; questionamento da escritura e do papel criador do escritor; questionamento do
meio, do livro e da tipografia; questionamento total”.
21
19
TAMBORENEA, Monica Maria. Julio Cortázar .Todos los fuegos el fuego. Buenos Aires, Librería
Hachette, 1986, pg.15
20
Rupturas da Tradição” in América Latina em sua Literatura, São Paulo, Ed.Perspectiva, 1979,
pg.131.
21
MONEGAL, Op.cit., pg.135
23
Dentro desta ruptura e do “questionamento da herança imediata” de que fala
Monegal, é onde uma tradição exausta é posta em questão, revalorizada, reduzida ou
aniquilada em muitos de seus postulados e em seu lugar uma nova estimativa, uma nova
tradição entra em vigor”.
22
E dentro desta nova tradição que entra em vigor, se
configura uma nova realidade literária cujo eixo é o desenvolvimento da consciência
latino-americana que postula de um lado, uma unidade de raiz e destino para a
região, e por outro, estender o direito de ingresso na história universal. Articular o
local com o cosmopolita, estendendo assim sua preocupação para além das
fronteiras locais do homem e de seu país para um âmbito mais universal.
Assim, o aspecto que melhor caracteriza a literatura desta época é a
coexistência dos elementos regionais, locais ou típicos com elementos universais ou
genéricos, e a oposição entre objetivismo e subjetivismo, ou melhor, entre realismo
objetivo e outros níveis de realidade.
O conceito de realidade apresentou importantes transformações. A corrente
narrativa comprometida dos anos 20 difere em alguns aspectos fundamentais da
realista/naturalista dos finais do século XIX, onde a convicção de que a única
realidade verdadeira é a externa. Entretanto, tais modificações não chegam a
ocasionar uma “ruptura” decisiva no processo de geral de representação da
realidade e as dicotomias do tipo realidade/imaginação e realidade/sonho,
continuam persistindo.
Na literatura, especialmente nos romances, a fusão de tempo e espaço na
narração e a percepção difusa da realidade, assim como os distintos pontos-de-vista
do narrador (ou narradores), junto com a simultaneidade dos gêneros, leva à ruptura
das técnicas clássicas, abolidas por uma absoluta liberdade tanto em estilo, como
em forma e fundo. As relações entre olhar- tempo- espaço na literatura fazem um
ataque ao tempo linear do ponto de vista histórico e ao olhar realista que analisa o
exterior, o ordena e hierarquiza e lhe dá sentido. A realidade e a ficção dividem o
mesmo espaço-tempo, assemelhando-se à técnica da montagem no cinema.
A realidade que transparece então, nas obras deste período é “mítica, lúdica,
alegórica, legendária ou simplesmente cotidiana”, e por este caminho, afirma Rubén
Saguier,
22
MONEGAL, Op.cit., pg.136
24
o discurso literário se impregna de ambigüidade que exige a participação , a
cumplicidade do leitor; a obra se converte assim numa criação pessoal a ao mesmo tempo
multitudinária, como é possível ver, sobretudo na obra de Julio Cortázar, que obriga seu
interlocutor a manter constantemente a guarda, com sua linguagem ubíqua, de tira-e-põe, e
com as múltiplas experimentações expressivas que realiza”.
23
Queremos destacar aqui a questão do “realismo”, ponto importante de
discussão nesta época. Como diz Gilman, a questão não era tanto negar o rótulo
“realismo” e sim “eliminar el carácter prescriptivo” de sua definição. O que ocorreu foi
então uma “resemantización que conservaba la palabra “realismo”, porém a
separava da estética realista e sua carga normativa.
24
Logo, esse modo de pensar a estética do gênero novelístico se expresó
mediante la consigna “zonas más hondas de la realidad”, que se convirtió en un caballo de
batalla de la valoración crítica, junto con la noción de autenticidad, de impronta sartreana. Es
sorprendente el énfasis con que se acumularon las acepciones del “realismo” para describir
la producción que irrumpió con fuerza en la escena literaria a partir de, para poner un hito,
La región más transparente (1958) y Rayuela (1963) (y sin minimizar el impacto de novelas
como Pedro Páramo, de 1955, y El siglo de las luces, de 1962). La apuesta terminológica a
favor del realismo fue notable, ya se hablara de “nuevo realismo”, “realismo de hoy en día”,
“zonas más hondas de la realidad”, “exploración de las capas del real”, etc.
25
Um outro tópico apontado por Tamborenea e que consideramos relevante
neste trabalho é o momento designado como “boom”. Por isto faremos, a seguir,
algumas considerações a respeito.
23
SAGUIER, Rubén Bareiro. “Encontro de Culturas”, in América Latina em sua literatura, Perspectiva,
1979, pg.14.
24
Como decía por ejemplo Evtushenko, el realismo podía tener centenas, si no miles, de formas
diferentes, y también podía ser figurativo y no figurativo. Ese realismo desbordante, sin fronteras,
crítico, experimental, formalmente cuidadoso, temáticamente sin restricciones y peculiarmente no
basado en el mensaje, sirvió de fundamento particular al programa novelístico. Valiéndose de
Auerbach, Della Volpe y Garaudy, Jaime Rest describía esa estética como un realismo de intención
crítica, altamente consciente del artificio de la forma, cuyo modelo podía ser perfectamente Bertolt
Bretcht. Para aclarar equívocos, Rest distinguía dos tipos de realismo: uno, que se pretendía
superar, ilusorio e inútil a los fines de la reflexión, ya que “distraía” e “hipnotizaba”. El otro, en
cambio, encarnaba la nueva racionalidad artística y era crítico y novedoso. Según esta fórmula, que
subrayaba los valores formales de la obra (puesto que la perfección formal “no está remida con la
precisa descripción y crítica del ámbito social”), “realista es el creador cuya obra permite evaluar las
condiciones objetivas de la sociedad en que vive aun cuando formalmente distorsione la apariencia
externa del mundo”. GILMAN, Claudia. in Entre la Pluma y el fusil, 2003, pg.316.
25
GILMAN, Claudia. Entre la pluma y el fusil, pg. 317.
25
O “boom” na literatura
“Dado que yo mismo me encuentro algo embarcado en ese navío
que llamamos boom, no deseo sino una cosa: ¡que
algún día olvidemos esa palabra!”
J. Cortázar
“Lo que se llama boom y que nadie sabe exactamente
qué es- yo particularmente no lo sé – es un conjunto de escritores,
tampoco se sabe exactamente quiénes, pues cada uno tiene su propia lista,
que adquirieron de manera más o menos simultánea en el tiempo,
cierta difusión, cierto reconocimiento por parte del público y de la crítica.
Esto puede llamarse, tal vez, accidente histórico.
Ahora bien, no se trató en ningún momento,
de un movimiento literario vinculado por un ideario estético, político o moral”
M. Vargas Llosa
Para tratarmos deste polêmico assunto, nos limitaremos a apontar a opinião
de alguns críticos e a posição de Cortázar dentro deste momento, mas podemos
adiantar pelo menos dois fatores que ficaram como marcos desse período de
consagração de alguns autores latino-americanos. Um deles se refere à influência
do mercado editorial, visto aqui como propulsor do boom. E o outro é a posição do
leitor.
Para Angel Rama
26
, a expressão de Vargas Llosa “accidente histórico”,
remete à um segundo plano a questão do ângulo social e econômico peculiar de
qualquer processo de difusão massiva e estas forças transformadoras que geram
novas situações
27
, e, conseqüentemente, uma nova forma de consciência por parte
do público Por isto, destaca nas palavras proferidas por Cortázar no Coloque de
Royaumont, a aparição de um novo público leitor e sua busca de identidade.
26
RAMA, Ángel. “El Boom en perspectiva” publicado in Más allá del Boom: Literatura y Mercado,
1984, pg.60.
27
Diz ele: “El citado avance de los medios de comunicación que no sólo se tipificó en los “magazines”
sino marcadamente en el desarrollo de la televisión, los medios gráficos de la publicidad, el nuevo
cine, también deben verse en relación a esas fuerzas transformadoras que generan su nuevo
público y entre ellas es obligatorio reconocer la incidencia del aumento demográfico, del desarrollo
urbano gracias a la evolución del terciario, del notorio progreso de la educación primaria y
secundaria y sobre todo, de la industrialización de la posguerra que enquistó en América plazas
evolucionadas que reclamaban equipos más dotados que antes, cambios todos ellos cuyas
limitaciones y cuya fragilidad son de sobra conocidas”. Op. Cit., 1984, pg.60
26
“Finalmente, ¿qué es el boom sino la más extraordinaria toma de conciencia por parte del
pueblo latinoamericano de una parte de su propia identidad? ¿Qué es esa toma de
conciencia sino una importantísima parte de la desalienación? (…) Aparece, entonces, en
estos últimos quince años, el hecho incontrovertible, innegable, de lo que se conoce como
boom (es lamentable que para definirlo se hayan servido de una palabra inglesa). En el
fondo, todos los que por resentimiento literario (que son muchos) o por una visión con
anteojeras de la política de izquierda, califican el boom de maniobra editorial, olvidan que el
boom ( ya me estoy empezando a cansar de repetirlo ) no lo hicieron los editores sino los
lectores y, ¿quiénes son los lectores, sino el pueblo de América Latina? Desgraciadamente
no todo el pueblo, pero no caigamos en las utopías fáciles. Lo que importa es que haya
sectores que se hayan dilatado vertiginosamente y que hayan obrado el milagro increíble
por el cual un escritor de talento de América Latina, que en los años 30 hubiera difundido
con tremenda dificultad una edición de 2000 ejemplares ( los primeros libros de Borges se
vendieron a 500 ejemplares) de golpe se convierte en autor popular con novelas como Cien
años de soledad o La casa verde o cualesquiera de las novelas que estamos leyendo y que
ya se están traduciendo al mundo entero”.
28
David Viñas marca todo esse processo como “un itinerario que va de la
euforia a la depresión”
29
que tem como eixo central o mercado (latino-americano,
espanhol e dos Estados Unidos), onde o desarrollismo latinoamericano de lo 60 había
presentido que los novelistas podían trocarse por mercancía. Desde ya: mercancía en tanto
exportable y lucrativa”. (...) Esto es: los novelistas de América Latina se iban convirtiendo, en
su sentido más fuerte, en patrióticas divisas”
30
Ao final de uma análise deveras crítica,
conclui dizendo que el aporte más considerable con que contribuyó la nueva narrativa
latinoamericana ( una vez superado el petardismo del búm tan espectacular como episódico)
es la concepción y realización de textos como alteridad reconocida. De la escritura como
otredad dialectizada. No simplemente como un deseo, sino como un desear ser deseado.
28
Paris, setembro de 1972: “(...)José Miguel Oviedo: “Cortázar a cinco rounds” en Marcha, AXXXIV, N.
1634, Montevideo, 2/marzo/1973. También Ernesto Gonzáles Bermejo: Conversaciones con
Cortázar, Barcelona, Edhasa, 1978. (Citado por Ángel Rama, op. cit. 1984, pg.61)
29
Data esse itinerário – “del búm al crash” - a partir do começo da década de 60 ( “momento
caliente”) ao início dos anos 70 (“momento frío). O começo seria visto “desde una conyuntura
impregnada de fervor “ ( y de intenso activismo que fue definiéndose paulatianamente por un
notorio voluntarismo) até os 70 “en lo que a América se refiere se me parecen connotados por um
ritmo más pausado y necesariamente más analítico”. “Pareceres y digresiones en torno a la nueva
narrativa latinoamericana”. Más allá del Boom: Literatura y Mercado, 1984, pg.13
30
Op. cit., pg.22
27
Caráter publicitário e comercial de uma sociedade de consumo ou não, o
boom contribuiu para fortalecer os laços entre os países da América Latina e
principalmente uma forma de comunicação e presença entre os escritores e leitores,
independente da imagem de arbitrariedade na seleção de nomes, onde cada um
“tem sua própria lista”, como disse Vargas Llosa.
À parte, a ruptura – ou busca de novas estruturas – na linguagem, uma
transgressão de estilos contra o “grande estilo”, numa mescla de níveis narrativos,
que marca por um lado, um regresso decisivo à cotidianidade, e, por outro, a
liberdade de ridicularizar os moldes retóricos da narração tradicional e respeitosa
dos estilos bem definidos e dos pontos de vista demarcados.
E como corolário, o papel do leitor que exige outra forma de presença, um
leitor “para quien lo literário es parte de la vida y no del ocio, parte de la política y de la
historia.”
31
Cortázar e a literatura política
Dentro desse contexto, apesar de conivente com os ideais da Revolução
Cubana, a posição de Cortázar se faz muito clara quando se propõe a tratar os
temas que formam parte das responsabilidades humanas -sua fé política e social
32
-
com dignidade, mas se nega a fazer uma literatura didática ou de combate,
preservando o que para ele, se chama, simplesmente, literatura.
Muitos críticos leram nessa posição adotada por Cortázar um esnobismo
cultural, um afastamento dos problemas do qual toda participação era,
obrigatoriamente, regimentada.
Pouco antes de morrer, em janeiro de 1984, Cortázar seleciona artigos seus
dispersos em jornais e revistas assim como em palestras e congressos, que têm
31
CORTÁZAR, Julio. “El lector y el escritor bajo las dictaduras en América Latina” in Argentina años
de alambradas culturales, 1984, pg.82
32
Na célebre polêmica com Collazos, Cortázar dizia: “El signo de toda gran creación es que nace de
un escritor que de alguna manera ha roto esas barreras (las barreras políticas del presente
histórico) y escribe desde otras ópticas, llamando a los que por múltiplas y obvias razones no han
podido aún franquear la valla, incitando con las armas que le son propias a acceder a esa libertad
profunda que sólo puede hacer de la realización de los más altos valores de cada individuo”. E
completa: “…Una literatura que merezca su nombre es aquella que incide en el hombre desde
todos los ángulos (y no pertenecer al tercer mundo, solamente o principalmente en el ángulo
sociopolítico), que exalta, lo incita, lo cambia, lo justifica, lo saca de sus casillas, lo hace más
realidad, más hombre…”
28
como teor a denúncia dos crimes cometidos pela junta militar argentina e também
reflexões sobre as obrigações de um intelectual diante da situação política. Tais
escritos foram reunidos e publicados por Saúl Yurkievich em Argentina: Años de
alambradas culturales, Tais textos compreendem um período de 1973 à 1983, e
nos dão uma visão clara de sua “mirada hacia abajo”, da problemática história da
literatura latino-americana desta época, desde a posição do escritor diaspórico,
passando pela função dos livros na sociedade, pela literatura, e chegando,
finalmente até ao leitor moderno: suas exigências e suas necessidades.
Analisando retrospectivamente a literatura da época dos sessenta, diz
Cortázar:
“En la obra de escritores como Neruda, Astúrias, Carpentier, Cardenal, García Márquez,
Vargas Llosa y muchos otros, el lector encontró más que poemas y más que novelas y
cuentos, sin que esos libros contuvieron necesariamente mensajes explícitos. Encontró
signos, indicaciones, preguntas más que respuestas, pero preguntas que ponían el dedo
en lo más desnudo de nuestras realidades y de nuestras debilidades; encontró huellas de
la identidad que buscamos, encontró agua para beber y sombra de árboles en los caminos
secos y en las implacables extensiones de nuestras tierras alienadas. Pero además
encontró a los autores en ese terreno de hermandad y de contacto que el lector reclama y
que ellos, los escritores que he citado y tantos otros, le dieron y le siguen dando por
caminos y por conductas que tocan a su responsabilidad de latinoamericanos, de
individuos inmersos en una historia que asumieron y asumen sin regir ninguna de sus
responsabilidades como escritores y como individuos”.
33
Entender a tomada de posição que envolve uma cisão entre o escritor e o
indivíduo, como faz Cortázar, é sem dúvida o primeiro passo para aportar na
literatura desta época, representada por uma mudança profunda e efetiva na
consciência do escritor latino-americano, em suas relações consigo mesmo, com
sua ocupação e com seu público.
33
“El lector y el escritor bajo las dictaduras in América Latina”Argentina: Años de alambradas
culturales (org. Saul Yurkievich) ,Buenos Aires, Munich Ed. 1984, pg.89.
29
CINEMA
De Griffith a Antonioni, o cinema é essa arte potencial nascida de uma
tecnologia oitocentista, produto da primeira revolução industrial e revolucionária.
Responsável pelos modos de representação e comunicação na sociedade,
curiosamente, se inscreve dentro da modernidade sem no entanto questionar as
rupturas propostas pelas outras artes, acabando por refugiar-se em um classicismo
que põe em crise sua modernidade originária. Apontar uma oposição entre cinema
moderno e cinema clássico, e observar a negação da decupagem clássica contida
em Antonioni, Godard ou Straub, é certamente dizer algo, mas é dizer pouco. E o
referencial marcado pela polaridade entre naturalismo, realismo crítico e neo-
realismo é, sem sombra de dúvida, insuficiente para dar conta das transformações
que se realizaram na década de 60 na sétima arte.
Antes dos anos 60, o cinema já havia incorporado vários elementos frutos da
tecnologia como o som, a cor, a ampliação da imagem, a versatilidade de
equipamentos, a sensibilidade das películas e em diferentes tipos de especulação
na estrutura, em especial, na área da fala – diálogos, monólogos, voz off, etc- ,mas
a montagem era ainda utilizada para organizar uma forma orgânica de narração,
para criar uma ilusão objetiva onde a classe média encontrava facilmente uma
projeção de sua ideologia no relato.
Enquanto a pintura e a escultura se agitam em infindáveis pesquisas que
atingem a raiz de seu gesto ou do seu projeto artesanal, enquanto o romance e o
teatro se debatem num beco sem saída e a poesia tenta sobreviver com uma sintaxe
espacial, teóricos realistas como Bela Balasz e Siegfried Kracauer, defensores de
uma estética realista pela própria natureza da máquina - que trazia em si a vocação
mimética-, adotam como padrão uma série de fórmulas que as outras artes já
haviam superado. O cinema acompanha naturalmente o evoluir da segunda
revolução industrial.
Entre 1959 e 1960, os diretores François Truffaut e Jean-Luc Godard - críticos
da revista Cahiers du Cinema - e Alain Resnais, lançam filmes que irão abalar o
público em geral e despertar entre os críticos uma acirrada polêmica, que se
prolongaria por toda a década. Incorporados ao movimento, os nomes de escritores
do noveau roman - a corrente literária criada na França a partir de 1950 que muda
os códigos do romance e cujos representantes maiores são Robbe-Grillet, Michel
30
Buttor, Nathalie Sarraute, Marguerite Duras - se incorporam ao movimento. Nasce a
Nouvelle Vague .
Podemos adiantar que este novo cinema ultrapassa o estágio da “narração”,
ou melhor, que o filme moderno sendo um objeto absoluto, uma obra que pode ser
percorrida em qualquer direção vai expulsar, de certa forma, a narratividade
constitutiva do filme clássico. Acontece o “esfacelamento da narração”, como disse
Christian Metz
34
.
Mas antes de seguirmos com o relato das transformações, propomos um
parêntese para resumir as características do nascimento da modernidade
cinematográfica a partir do neo-realismo.
Neo-Realismo
1945: ano de eclosão de um movimento que floresceu na Itália em torno da
Segunda Guerra Mundial. Concordam os mais destacados historiadores como Mario
Verdone, Guiseppe Ferrara, Raymond Borde e André Bouissy, Guy Hennebelle,
Vittorio Spinazzola, Pietro Pintus, Bruno Torri e Lino Micciché , que o marco inicial do
neo-realismo é o filme Roma Città Aperta (1944-45), de Roberto Rossellini, mas
como frisa Mariarosária Fabris
35
, não se pode determinar o tempo de duração da
temporada, nem os diretores ou mesmo os filmes que podem assim ser chamados,
“No que diz respeito às datas fundamentais do neo-realismo, se 1945 marca sua revelação,
1946 já o vê transformado numa etiqueta; se em 1948 atinge seu ápice, em 1949 já está
reduzido a uma fórmula e não consegue sobreviver além de 1955-1956, anos em que o
cinema italiano passa por uma profunda crise.”
Mas, não se trata somente de uma questão de datas. O que nos interessa é
apreender uma estética. A estratégia maior desta estética, será um cinema que
caminha nas ruas, que observa a realidade e que se concentra no real humano e
social e que a partir deste fato banal capta uma significação especial através de um
olhar “paciente e insistente”, porque ela pode conter muitos “ecos e reverberações”,
pode conter inclusive tudo aquilo de que nós necessitamos. Em cada “pedaço” de realidade
estão contidos todos os ingredientes capazes de nos revelar o que podemos saber sobre o
real na sua totalidade. Ou seja, cada fragmento representa o todo; o expressa. E uma
34
METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo, Perspectiva, 1972.
35
FABRIS, Mariarosaria. O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano, São Paulo: EDUSP, 1996, pg.123.
31
verdade essencial sobre o homem ou a sociedade pode ser alcançada desde que eu saiba
perceber o detalhe, o instante, de modo peculiar.”,
como diz Ismail Xavier.
36
Nas palavras de Ismail Xavier reconhecemos ao fundo a “filtragem do real”
proposto por André Bazin, que com esta expressão faz uma comparação com a
fotografia. A fotografia mantém a integridade do real recortado; ela não decompõe tal
recorte nem o reconstrói, ela o capta em bloco. Assim, o olhar neo-realista seria a
realização deste modelo baziniano no nível da captação da essência da realidade.
Bazin foi o mais sutil intérprete do neo-realismo. Co-fundador e cérebro
fundamental dos Cahiers du Cinema, surgidos em 1951, vê a reprodução fotográfica
como “celebração”, onde, reproduzindo e fixando o existente, a fotografia devolve o
objeto à nossa atenção e ao nosso amor – que em termos bazinianos seria dizer “ao
nosso conhecimento”. Cinema, então, não forneceria apenas uma imagem
(aparência do real), mas seria capaz de constituir um mundo “à imagem do real”. O
cinema configura a manifestação de um estilo de câmera, de uma nova narração,
que não se apresenta como discurso construído “tijolo por tijolo” (Kulechov), mas
como descoberta de uma realidade virgem, que o olhar vai encontrando e
explorando.
Fabris em seu livro aborda o trabalho de Guy Hennebelle que através de
uma visão global dos principais temas e filmes do movimento procura estabelecer
um denominador comum entre os vários diretores que o integraram e uma série de
preocupações que os reuniram, tais como a denúncia do fascismo e a exaltação da
ação dos Partigiani; o subdesenvolvimento do Mezzogiorno; o desemprego das
cidades; os problemas sociais do campo; o abandono da velhice e a condição da
mulher estão entre os mais destacados.
37
Ainda seguindo Guy Hennebelle temos os principais elementos estilísticos: a
recusa dos efeitos visuais (superimpressão, imagens inclinadas, reflexos,
deformações, elipses), caros ao cinema lá onde os irmãos Lumière o tinham
deixado: uma imagem acinzentada, segundo a tradição do documentário; filmagem
em cenários reais; uma certa flexibilidade na decupagem implicando um recurso
freqüente à improvisação, como decorrência da utilização de cenários reais; a
utilização de atores eventualmente não-profissionais, sem esquecer, no entanto, que
36
XAVIER, Ismail. “O Realismo Revelatório e a Crítica à montagem”, in O Discurso Cinematográfico,
a opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984, p.60.
37
FABRIS, Mariarosaria. O Neo-realismo cinematográfico italiano, São Paulo, EDUSP, 1996, pg.129.
32
o neo-realismo se valeu de intérpretes famosos como Gina Lollobrigida, Sofia Loren,
Folco Lulli, Anna Magnani, Silvana Mangano, Guilietta Masina, Amedeo Nazzari,
Alberto Sordi, Paolo Stoppa, Raf Vallone e Elena Varzi, só para citarmos os italianos;
a simplicidade dos diálogos e a valorização dos dialetos, que levou diretores como
Visconti e Emmer a usá-los, na ilusão de transmitir ao público uma imagem
verdadeira da Itália, sem intermediários, sem tradução; a filmagem de cenas sem
gravação, sendo a sincronia realizada posteriormente, o que tornava possível uma
maior liberdade de atuação; a utilização de orçamentos módicos: o cinema social de
alto custo não existe, caso contrário, deixa de ser social.
38
Segundo Ángel Quintana, o neo-realismo de raiz fenomenológica contribuiu
para recuperação da modernidade perdida do cinema, quando Rosselini filmando
junto com Bergman, percebeu que (…) filmar es dar cuenta de un mundo que no ha
producido la cámara”.
39
O grande sonho estético da crítica marxista proposto por Lukács em sua
Estética, era que, para conseguir transformar-se em arte, o cinema deveria
descrever o mundo buscando a sua essência e os personagens deveriam
transformar-se em seres conscientes de suas reivindicações sociais. Rocco e i suoi
frattelli, 1960, de Visconti, vem a ser a materialização da grande utopia realista: a
integração da experiência estética com a experiência social. Na representação
simbólica de uma família prototípica, descreve-se o problema da imigração ao
mesmo tempo que se universaliza o problema, construindo um drama social
representativo do problema dos emigrantes europeus quando se enfrentam com a
crueldade dos problemas do novo universo neo-capitalista.
Mas depois, a segunda revolução industrial, ao final dos 50, vem provocar uma
profunda crise, concentrando-se no individual. No começo dos 60, esta crise começa
a afetar as formas de representação e, como define Ítalo Calvino, El hombre se dirige
hacia la única parte no programada del universo: la interioridad, el self, la relación no
mediatizada entre la totalidad y el yo” .
40
38
Op. Cit., pg.130
39
QUINTANA, Angel. “El nuevo cine italiano en la encrucijada de la Modernidad (1959-1961), em El
Cine Italiano 1942-1961, del neo-realismo a la modernidad. Barcelona, Paidós, 1997, pg.201.
40
Citado por Angel Quintana, em El Cine Italiano, 1942-1961, del neo-realismo a la modernidad,
1997, pg.203. Citado primeiramente em Guido Aristarco, Su Antonioni, Roma, La Zattera di Babele,
1988.
33
Assim sendo, sobre a reflexão da interioridade, vem a reflexão sobre o papel do
sujeito diante do mundo, e logo acaba por se converter, no cinema, em uma reflexão
sobre a própria representação, gerando a crise da objetividade narrativa.
O cinema de vanguarda dos anos 60
A época dos sessenta é, também no cinema, como dissemos, um instante de
ruptura em que as constantes de uma repisada sintaxe entram em xeque.
Ruptura com uma concepção tradicional de continuidade, pelo desprezo para
com uma idéia de sincronização imediata entre o corte e o diálogo. Movimentação
incessante da câmera, e a cada movimento, uma descoberta. Ruptura com o modo
de atuação dos intérpretes: os atores não estão para representar, mas representam
para estar. O personagem não evolui classicamente. Seus atos e palavras são, à
primeira vista, contraditórios porque não se definem em termos de narração. A
naturalidade e o cotidiano do neo-realismo que tinham uma vinculação narrativo-
literária, serão definitivamente abolidos.
A França dos anos 60 herdava a reconstrução de um cinema deteriorado pela
segunda guerra mundial, por Hitler, por Vicky. A expressão Nouvelle Vague é
paradoxal, segundo Michel Marie
41
, porque está historicamente associada a uma
época precisa da história do cinema francês ao redor dos anos 59-60, mas a
expressão atravessa as décadas e aqueles que saíram da revista “Cahiers du
Cinema” dos anos 50, como por exemplo Claude Chabrol [ com os filmes Lê Beau
Serge (1959); Les cousins (1959); Jean-Luc Godard, Erick Rohmer, Jacques Rivette
e François Truffaut, e de um ponto de vista diferente, Alain Resnais e Marguerite
Duras com Hiroshima Mon Amour (1959)] são ainda referência do cinema
contemporâneo e apesar de constituir um conjunto mais ou menos delimitado, é
impossível enumerar os pontos em comum que reúnem tantos autores e obras. Em
1962, Truffaut chegou a dizer de maneira provocativa que o único traço em comum
dos autores da Nouvelle Vague era a prática do jogo de bilhar.
Mas, no ano de 1959, o Festival de Cannes é o festival da Nouvelle vague.
Recebe a Palma de Ouro Marcel Camus, com o filme Orfeu Negro. O prêmio de
41
MARIE, Michel . “Nouvelle vague”, em La Fábrica Audiovisual, Buenos Aires, FADU, 2000,
pgs.56/57
34
melhor diretor vai para François Truffaut e Hiroshima Mon amour recebe a
consagração internacional.
Ainda que os filmes da Nouvelle Vague só tivessem tido êxito durante duas ou
três temporadas (inclusive na França), filmes como A bout de Souffle (1959) de
Jean-Luc Godard, Hiroshima mon amour (1959) e L’Année Dernière a Marienbad
(1961) de Alain Renais e, Lês 400 coups (François Truffaut) serão referência para
os jovens cineastas ingleses, tchecos, polacos, brasileiros, italianos, alemães e
canadenses. Os anos 60 serão os anos da Nouvelle Vague em todo mundo.
Godard, com seu filme de características nitidamente reflexivas, repensa a
narração cinematográfica, com uma montagem totalmente descontínua. Leva ao
limite o raciocínio da ruptura entre o homem e o ser, entre o autor e o ser, entre nós
e o mundo. Uma ruptura já abordada pela literatura, mas até então nunca pelo
cinema. Michel Marx cita a Deuleze, que dizia:
En el método Godard, no hay asociación. Para una imagen dada, se trata de elegir otra
imagen que inducirá un intersticio entre ambas. No es una operación de asociación sino de
“diferenciación” como dicen los matemáticos, o de “desaparición” como dicen los físicos. El
intersticio está en primer lugar con respecto a la asociación. La película deja de ser
imágenes encadenadas, una cadena ininterrumpida de imágenes, esclavas unas de otras y
que nos esclavizan. Es el método del “entre”. Y es esto lo que acerca Godard a un escritor
(y pone en peligro al “guionista profesional de la profesión” ).
42
Resnais, chamado de o “cineasta do tempo e da memória”, com Hiroshima...
e Marienbad.. , revoluciona o tempo cinematográfico. O sentido literário de narrativa,
de “contar uma história”, com um escalonamento de começo-meio–fim é destroçado,
principalmente no emprego de diálogos anti-figurativos e vozes paralelas às
imagens, que tornam impossível deduzir, em termos literários, uma história e muito
menos a tradicional moral da fábula. Presente, passado e futuro se anulam uns aos
outros com a abolição de um estágio cronológico. Tudo nestes filmes decorre num
tempo de espaço e, em concomitância, num espaço de tempo. Os travellings cortam
e penetram, inaugurando um espaço que não é o tipicamente ficcional e, não
existindo assim esse tempo clássico da ficção – o faz de conta -, também a
42
Michel Marx, “El guión, tentativa de cercar um movimiento fluctuante”, em La Fábrica Audiovisual,
Buenos Aires, FADU, 2000, pgs. 64-65.
35
sucessão das imagens e a sua duração isolada ganham uma projeção peculiar e
adstrita à realidade do filme em si. Em paralelo, a faixa sonora – música, ruído e
vozes – estabelece, em seu transcorrer, outra esfera de operação dialética, se auto-
reabastecendo ao contato com as imagens motoras. São monólogos e diálogos
descontínuos, tendo como fundo musical o predomínio de um órgão barroco-
wagneriano.
43
Antonioni e o cinema dos 60
Roland Barthes escreveu em 1980 um texto intitulado Cher Antonioni, em que
elogia a visão artística de Antonioni sobre o mundo moderno:
Muchos toman lo moderno como una bandera de combate contra el viejo mundo, contra
sus valores comprometidos; para usted, lo moderno no es el término estático de una fácil
oposición; lo moderno es, por el contrario, una dificultad activa para poder seguir los
cambios del tiempo, no sólo en el nivel de la gran historia, sino en el interior de esa pequeña
historia de la que la existencia de cada uno de nosotros constituye la medida”.
44
É com esta visão que Antonioni realizará seus primeiros filmes da década de
sessenta. Partindo de uma pequena história entranhada no cotidiano para mostrar o
sentimento de vazio em sua globalidade, reacende os argumentos sobre a
necessidade de um cineasta recorrer a idéias ou temas que, a priori, lhe garantam
uma participação ativa no universo, e com o abandono da “gramática
cinematográfica”, produz um cinema livre, onde a “desdramatização”, é uma das
características.
43
Como muito bem analisa José Lino Grünewald, “Resnais absorve todo um legado de recursos já
cristalizados em obras de vulto e devolve-os noutro vibratum de espaço-tempo. (...) Presente
passado e futuro se anulam uns aos outros, desprendendo a fixação romântica de um tempo, para
a totalidade se oferecer, em circuito reversível, como um auge de intensificação do presente, o que
propicia o momento em seu máximo de vitalidade. Em Hiroshima..., não existe uma história
discernível na velha tradição literário-discursiva. Ao contrário do habitual, em que uma série de
efeitos simboliza uma história, um fato, no caso de Resnais é a própria história que se esvazia num
entrecortar e simboliza um tudo ou nada – um jogo de oposições, uma dialética de contrastes”. Um
Filme é um Filme O cinema de Vanguarda dos anos 60 (org.Ruy Castro) São Paulo, Editora
Schwarcz, 2001, pg.51.
44
Roland Barthes, “Cher Antonioni”, em A.A.V.V., Cher Antonioni, Roma. Ente Autonomi di gestione
per Cinema. (O texto foi publicado originalmente em Cahiers du Cinema, 311, Paris, maio de 1980).
Citado por Angel Quintana em “El nuevo cine italiano” (1959-1961), El Nuevo Cine Italiano del
Neorrealismo a la modernidad, 1997, p.212.
36
Nada acontece segundo a velha concepção; ou tudo acontece de acordo com
a própria experiência, com uma nova formulação. Não existe um argumento no
sentido clássico, que compreenda uma narrativa. Não há um motivo, portanto, e sim
um entrosamento de motivos, isoladamente heterogêneos, que se reúnem para
implicar uma duração essencial que não é adjetiva a nada que seja exterior a ela
mesma. A dedução discursiva de uma história aqui em nada auxiliará na
compreensão de seu sentido. A câmera testemunha os fatos, rodeia-os, delineia-os,
mas não os explica, não conclui – em suma, não está manejada pelo escritor ou pelo
pensador. É puro cinema, como afirma Grünewald.
Por fim, Antonioni introduz em suas obras procedimentos estilísticos paralelos
aos da literatura contemporânea experimental, cujo resultado é a perda do equilíbrio
sobre o qual se baseava o mecanismo do relato. Estes procedimentos eram caros a
Robbe-Grillet e a Alexandre Klüge que abandonaram a literatura para seguir a
carreira cinematográfica, onde entreviam, entre outras coisas, a possibilidade de
uma expressão mais livre da realidade e um meio para um contato mais rápido e
imediato com o público.
Lembramos em especial as obras de autores como Cesare Pavese, autor de
Tra donne sole e Albert Camus, que sem dúvida deixaram nele uma marca profunda,
apesar de Antonioni ter declarado em um debate em Bologna:
“Muchas veces se me asemejó a Cesare Pavese, pero debo decir que me siento
muy lejos de él. Su conocimiento de los hombres y de las mujeres era un conocimiento más
abstracto, más poético que real. Mis impresiones vienen siempre de los hechos, de datos
precisos de la realidad. En cierto sentido, mis films son más autobiográficos que los libros de
Pavese. Por otra parte, el hecho que Pavese haya puesto fin a su vida de manera tan
trágica, mientras yo continúo rodando películas, me parece totalmente significativo”.
45
Pensando na estreita relação de Antonioni com a literatura, não se pode
deixar de mencionar que no filme L’Avventura, entre os livros da personagem Ana,
está Suave é a noite de Scott Fitzgerald. Além de textos literários, há também os
45
DI CARLO Carlo . “Vedere con un occhio nuovo”, in Carlo Di Carlo, Michelangelo Antonioni, Roma,
Bianco e Nero,1964. Citado por Franca Napolitano Lojacano, “Modernidad de Michelangelo
Antonioni” in La Realidad Obstinada, Buenos Aires, 1992, pg.195.
37
textos filosóficos, que iam de L’être et lê néant (O ser e o nada) de Jean Paul Sartre
às obras dos mestres da escola de Frankfurt.
A abordagem cinematográfica de Antonioni vai influenciar toda a geração de
60 no contexto internacional e também na Argentina de Cortázar, como aponta
Cláudio España:
“El aporte del cine de Antonioni fue vasto y cierto movimiento cinematográfico
emergente de preocupaciones culturales argentinas hacia 1960 le debe mucho: La cifra
impar, de Manuel Antín, por ejemplo, que bebió su estructura y los filos del relato en un
texto de Cortázar, pero se comunicó con
el receptor a través de espacios lentos y tiempos
vacíos, y valgan los adjetivos en contraste con los sustantivos, porque la ironía del casi
juego barroco de contrastes fue otra constante de entonces”.
46
Para terminar, citamos outra vez Godard: “En el fondo, podríamos decir que el
período anterior al 68 se caracterizaba por falta de ilusión, y que luego viene un periodo más
largo, caracterizado por la ilusión”.
A mulher no cinema e na literatura: o corpo feminino.
Na história da evolução da personagem feminina na literatura e no cinema,
Michele Coquillat, segundo Noel Burch,
47
é a primeira que põe em evidência o
esquema que desde os românticos preside a imagem feminina, esquema no qual “la
heróica trascendencia masculina se construye sobre la inmanencia bovina de las
mujeres, ontologicamente atrapadas en la contingencia, ineluctablemente sumisa al
peso de una sociedad conformista.”, e estas mulheres, “anti-heroínas”, portanto,
produzem uma espécie de letargia nociva da qual o criador masculino deve escapar
ou sucumbir como o jovem Werther, condenado primeiro à impotência artística e
depois à morte por causa do amor funesto à uma mulher. Assim, durante muito
tempo, a tendência era a de vincular a mulher à dicotomia virtude x pecado: de um
46
ESPAÑA, Cláudio , “Antonioni, precursor del cine sobre el hombre en crisis”, in La Realidad
Obstinada, Buenos Aires, 1992, pg.199.
47
Noel Burch , “Efectos perversos de la noción de autor”em La Fábica Audiovisual .Buenos Aires,
FADU, 2000, pg.11.
38
lado, supostamente positivo, a ingênua ou a heroína; de outro, supostamente
negativo, a vamp, a femme fatale,
48
a pecadora.
A "femme fatale" é, classicamente, uma personagem feminina do cinema noir.
Mulheres ambíguas e misteriosas, sedutoras e não raro cruéis, que usam e abusam
dos homens para depois descartá-los. O estereótipo do noir é claramente bíblico: os
homens são diretos, claros e objetivos em suas ações, e as mulheres são ambíguas
e misteriosas. Os homens representam a razão e, quando se tornam dissimulados,
normalmente estão sob influência feminina. Já a mulher é a representação clássica
do pecado
49
. O bem ou o mal: a mulher poderia pecar, até mesmo em cenas de
vigoroso realismo – mas depois desabaria sobre ela o formalismo punitivo de uma
arquitetura moral. É preciso, então, fugir desta mulher.
A imagem da mulher como símbolo do perigo vigente durante o século XIX,
segundo Andréas Huyssen
50
, era a representação dos medos e ansiedades
provocados pela modernização e os conflitos sociais. Neste estudo “Mass culture as
woman”, Huyssen comenta que o discurso político, psicológico e estético do começo
do XIX, atribui, sistematicamente e de maneira obsessiva o fenômeno da cultura de
massas, sua arte e literatura ao gênero feminino, enquanto a cultura nobre, tanto a
tradicional como a moderna, se inscrevem claramente no território da atividade
masculina. Esta polarização sexuada como símbolo das contradições sociais será,
ainda, retomada ao final do XIX, quando então, as mulheres parecem alcançar uma
presença mais efetiva nos espaços de atuação social tradicionalmente masculinos.
48
A cena de abertura de Femme Fatale mostra uma mulher nua - Laure Ash (Rebecca Romijn-
Stamos) - sobreposta à imagem de Barbara Stanwyck durante o clímax de Pacto De Sangue (Double
Indemnity, 1944), de Billy Wilder, quando Phyllis (Stanwyck) hesita antes de matar Walter Neff (Fred
MacMurray), homem que ela seduziu e convenceu a participar de um assassinato. O roteiro de Pacto
De Sangue foi baseado no livro Double Indemntity In Three Of A Kind, de James M. Cain, também
autor de O Destino Bate À Sua Porta (The Postman Always Rings Twice) e roteirista. Cain é um dos
autores do chamado "realismo" americano dos anos 30: uma literatura urbana, repleta de detetives
durões (hard boiled) e mulheres sedutoras (femmes fatales), que deixava explícita a situação dos
EUA durante a Grande Depressão. Após adaptados para as telas, os livros de autores como Cain,
Raymond Chandler e Dashiel Hammett ficaram conhecidos "literatura noir".
49
Vale a pena lembrar de Paola (Lucia Bosé), personagem em Cronaca di un amore (1950), e como
Antonioni trabalha este estereótipo de uma maneira anti-convencional.
50
Andreas Huyssen, em “Mass culture as woman” Em After the Great Divide. Bloomington and
Indianapolis, Indiana University Press,1986
39
Ao início do século XX, ainda que a mulher passe a simbolizat os novos
tempos, não perde totalmente o caráter de figura enigmática e terrível, como foram
as Salomés e Judithes do final do século:
“The fear of the masses in this age of declining liberalism is always also a fear of woman, a
fear of nature out of control, a fear of the unconscious, of sexuality, of the loss of identity and
stable ego boundaries in the mass”. (1986:52)
Huyssen, em “The vamp and the machine: Fritz Lang’s Metropolis
51
,
argumenta que os textos modernistas tendem a relacionar as máquinas com as
mulheres, deslocando ou projetando seus medos na tecnologia onipotente e os
medos patriarcais à sexualidade feminina, e mostra que historicamente a tecnologia
se relacionou com a sexualidade feminina quando a máquina começa a ser
percebida como uma entidade ameaçadora capaz de uma destruição vasta e
incontrolável. Na literatura deste século, a vida humana aparece vulnerável ao poder
potencial de destruição massiva da máquina.
O filme Metrópolis (1926) de Fritz Lang, é um exemplo clássico : combina uma
celebração à eficiência tecnológica com um temor do poder da tecnologia para
destroçar a humanidade e colocar-se fora de controle. Esta resposta dual se
expressa no filme em termos sexuais: um robot com forma de mulher representa a
tecnologia e simultaneamente alude a uma ameaça poderosa. O robot se distingue
pela sua sexualidade franca: essa é a maneira sedutora com a qual se faz estalar
uma revolta caótica.
A simbolização da modernidade na figura feminina, está representada tanto
em seu aspecto exterior como por suas atitudes de independência e ousadia, mas
vem marcada, principalmente, pela transformação na aparência física com os
cabelos mais curtos e roupas que deixam as pernas descobertas, e acaba por ser
problemática já que rompe com o lastro de uma tradição fortemente arraigada nos
estereótipos, que se choca com esta transformação . A nova imagem feminina e o
novo status da mulher na sociedade reclamam uma atenção especial, e a resposta
masculina diante dessas novas mulheres será, constantemente, uma dualidade
entre a atração e o rechaço, a fascinação e a repulsa.
51
Em After the Great Divide. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press,1986.
40
A visão que a literatura vanguardista e seus representantes majoritariamente
masculinos oferecem das mulheres através de suas personagens femininas está
impregnada pela oscilação do sentimento da época, que se divide entre o otimismo,
a confiança e a utopia futurista, o pessimismo, o temor e o desarraigo no mundo da
modernidade. As mulheres dos textos vanguardistas são essencialmente figuras
transgressoras que constantemente se negam a dobrar-se ao ideal imperativo de
mulher e ao ideal novelesco de heroína que em grande medida, ainda estava
presente. Por um lado, essa negativa de encarnar o “ideal feminino” provoca o
desarraigo dos personagens masculinos que compartem suas aventuras, ao mesmo
tempo, seduzidos e assustados, e por outro, leva a pagar um alto preço por infringir
a norma estabelecida. Em muitos romances, por seus ousados comportamentos,
muitas personagens femininas terão como companhia final a solidão, a loucura ou
até a morte.
Porém, a encarnação crítica do moderno nas personagens femininas, permite
também que o protagonista masculino se conscientize de uma situação velada e
opressiva: a realidade de um mundo degradado ao qual renuncia junto com os
convencionalismos burgueses. A figura feminina como ruptura da norma, permite,
deste modo, denunciar um passado tradicional e decadente ao qual se deve rebelar
e então, o emocional clássico da heroína romântica, sensível e indefesa, é
substituído por atitudes transgressoras. A sedução segue sendo uma constante, mas
a mulher seduz sem sentimentalismos, e mostra uma ausência de sentimentos que
choca com a idéia de fragilidade emocional feminina tradicional.
O corpo é colocado em cena pela contracultura como lócus da transgressão,
do delírio e do transe, através das experiências da droga e do sexo, segundo Ana
Lúcia de Castro.
52
; e o culto ao corpo abre espaço para uma sexualidade mais livre.
Na década que avança surge para o corpo um novo conceito de peso. As curvas
voluptuosas femininas dadas como padrão de beleza nos cinqüenta, na figura
emblemática e glamurosa de Marilyn Monroe, cedem lugar ao conceito de magreza.
Modelos famosas como Twiggy e Verushka padronizam a “cara-de-fome” e instituem
o vício do peso.
52
CASTRO, Ana Lucia. Culto ao corpo, Modernidade e Mídia, Unicamp. Disponível no site
www.efdeportes.com
41
A luta pelo divórcio e o aborto já aceitos em vários países, a pílula
anticoncepcional e o ingresso acelerado da mulher no mundo profissional,
ocasionam um vôo imprevisto e se convertem em senhas de identidade do século. A
mulher, administrando seu próprio corpo, abre espaço para o projeto radical da
emergência do movimento feminista e da revolução sexual que marcaria inclusive
uma nova organização da família e das empresas. O feminismo passa a ser parte
dos novos discursos teóricos em todo mundo e, por meio de outros movimentos
radicais, a mulher começa a revoltar-se contra aquilo que considerava práticas
opressivas das sociedades patriarcais contemporâneas e de seus consortes.
É no ano de 1956, que Roger Vadim debuta com uma obra de fortíssimo
impacto: Et Dieu créa la femme porque ao mesmo tempo que lança um novo tipo de
mulher – na figura de Brigitte Bardot – oferece uma imagem renovada da
personagem feminina no cinema ao colocar em primeiro plano a sua emancipação
sexual. Estava aberta a porta para a liberação sexual no cinema.
42
CAPÍTULO 2
CONSTRUINDO O OLHAR
2.1 A questão do olhar
“On ne voit pas toujours ce qu’on regarde,
mais on regarde toujours ce que l’on voit”
La Palisse.
Não vemos sempre aquilo que olhamos, mas olhamos sempre aquilo que
vemos. É uma verdade de La Palisse, que não pode ser contestada por ninguém.
Para ver é necessário olhar, mas é preciso não esquecer que ver é um ato de
fantástica complexidade: se olhar é ao mesmo tempo sair de si e trazer o mundo
para dentro de si, ver é realizar esse mundo através da relação entre as coisas e nós
mesmos e a complexidade está em que, apesar do fato do mundo exterior ser real e
de podermos descrevê-lo na sua integridade, o “realismo” é vulnerável na sua
representação.
O jogo instituído por esse binômio - o olhar e o mundo - contém uma magia que
não envolve apenas a mera visualidade. Essa magia consiste em que o olhar abriga
espontaneamente a crença em sua atividade, isto é, a visão depende de nós, nasce
em nossos olhos, mas é e em sua passividade que ela depende das coisas
externas, as que nascem lá fora, no reino da representação do real. A partir deste
itinerário ziguezagueante somos então remetidos aos jogos infindavelmente
multiplicadores e espelhantes da imaginação.
Pensemos no olhar do artista: a visão que não é só fruto do ver, mas uma
posição, uma idéia, um ponto de vista sobre o mundo. É um olhar que se infiltra na
realidade e que afirma a representação como uma operação sobre o real, ou ainda,
que (trans)forma essa realidade.
Já é lugar comum apontar as profundas transformações que alteraram o
modelo de olhar/ver o mundo desde o fim do século XVII. O olhar solitário, todo-
poderoso e desesperadamente limitado se volta e se modela no século XIX nas
máquinas e nos espetáculos fundados sobre sua ubiqüidade e sua mobilidade. O
43
olhar moderno se firma na fascinação pela tecnologia, para em seguida, se nublar
de silêncio e mergulhar no vazio da frustração.
53
A gênese do processo criativo em cada autor no ato da escritura é de critério
muito particular, basta lembrar nomes como o de Eliot, Keats, Valéry, Poe, Brecht,
Borges e tantos outros.
Examinando a gênese do processo criativo de Cortázar e Antonioni,
encontramos o olhar da criação estilística, Em ambos, no olhar, a tendência
“wittgenstiana”. Diz Antonioni:
Quando não sei o que fazer começo a olhar. Existe uma técnica também para isso, ou
melhor, existem várias. Eu tenho a minha. Que consiste em remontar de uma série de
imagens a um estado de coisas. A experiência me ensina que quando uma intuição é bonita
ela também é certa. Não sei por quê. Wittgenstein sabia.
54
Dessa realidade, ambos extraem o invisível e o revelam através de uma
estrutura que está além das aparências:
“O que não sei responder quando alguém me pergunta como nasce um filme é justamente
como se dá o próprio nascimento, o parto, o insight, os três primeiros minutos(...)
Uma manhã acordo com algumas imagens na cabeça. Não sei de onde vêm, como e por
quê. Nos dias e nos meses seguintes elas voltam e eu não posso fazer nada, não faço
nada para mandá-las embora. Fico olhando para elas e mentalmente faço anotações que
depois passo para um bloco”(...) “um material que acaba se tornando um estorvo se o
filme não é feito. Escrevo para livrar-me dele. Sou portanto um diretor que escreve, não
um escritor.”
55
Cortázar, construtor extremamente hábil e lúdico, joga com todas as
possibilidades da linguagem na criação narrativa de seus contos e ao mesmo
53
AUMONT, Jacques. O olho interminável, São Paulo, Cosac & Naify, 2004,pg.70
54
ANTONIONI, Michelangelo. “Aquele boliche no Tibre” in O fio perigoso das coisas e outras histórias.
Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira pg.65. O que nos diz Antonioni sobre Wittgenstein pode ser
explicado como das Mystiche ( o místico). “Existe com certeza o indizível. Isto se mostra, é o que é
místico. Ou ainda como escreve no prefácio do Tractatus, Lógico-Philosophicus reiterando ao longo
do livro até o final: (...) em geral o que pode ser dito, o pode ser claramente, mas o que não se
pode falar, deve-se calar”. Apud, Arrigucci, O Escorpião Encalacrado, São Paulo,Ed. Perspectiva,
p.27
55
ANTONIONI, Michelangelo. “O deserto do dinheiro” “in O fio Perigoso das coisas e outras histórias.
Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1990, pg.109.
44
tempo, obedece às leis internas de construção postuladas em seus diversos
escritos teóricos na recriação da ótica cotidiana. Vejamos.
2.2. JULIO CORTÁZAR
Se habla tanto de ti que eres como
una vasta nube de palabras, un juego de
espejos, una reiteración de fábula inasible.
J.Cortázar ( Los reyes)
O ano de 2004 provou que a obra de Cortázar continua suscitando o interesse
de estudos que tentam aprofundar-se na estrutura e no conteúdo de sua narrativa.
Nesse ano de comemoração dos 90 anos de seu nascimento (26/08/1914) e 20
anos de sua morte (12/02/1984), seus textos, que causaram na década de 60 uma
verdadeira revolução no mundo das letras, se vêem ainda despertando o exercício
da crítica, num diálogo aberto e incondicional, franqueado pelas “passagens” que
Cortázar formalizou com seus leitores e críticos.
Essas passagens, labirínticas e difíceis, nos são dadas através dos seus
próprios escritos teóricos, do seu “laboratório do escritor”, onde podemos “encontrar
todo o movimento que o escritor realiza em torno da sua concepção de obra e de
estilo” e numa série de associações e interações com sua obra ficcional, tentamos,
numa busca constante e cada vez mais profunda, a possibilidade de aceder ao
mundo de sua poética, mundo esse que tem como centro, o homem-e-sua-
circunstância
56
.
Pulsões, paixões, visões. Fios entrelaçados e justapostos que formam o
avesso do tapete que cobre a realidade empírica e o condicionamento histórico e
que, quando a descoberto, nos oferecem uma visão compacta do grande mistério do
destino do homem.
Todo estudioso de Cortázar sabe que adentrar em sua obra é, antes demais
nada, arriscar-se em um jogo de teias finas, dado o desafio que se reveste com um
56
A expressão é de Ricardo Piglia, em “Ficção e Teoria:o escritor enquanto crítico” (Travessia-
Revista de Literatura, n.33, UFSC, Ilha de Santa Catarina, ago.-dez.1996;p.47-59). Neste ensaio,
estabelece uma relação entre a prática de literatura e a reflexão sobre a literatura.
45
ar de sedutora intimidade pelo pacto firmado entre o autor e o leitor.
57
Temas
familiares e recorrentes , procedimentos reiterados no universo cortazariano dão, à
princípio, a sensação de que são pontes sistematicamente colocadas nos textos
para aportar na esfera do plausível, mas na verdade, essas pontes são apenas
tentativas de traduzir a emoção de um segundo do autor que está saturado de
desconcerto -entendido aqui como um obstinado anti-conformismo contra “La Gran
Costumbre”. Em cada um dos seus escritos buscamos a porta secreta que leva à
realização dessa emoção ou ao enigma do labirinto. Vejamos porque.
O intelecto e a sensibilidade de Cortázar estão fusionados num olhar que
procura captar da realidade o real - “jamais réel et toujours vrai” – e que são, em
seguida, fecundados nos temas que ele manipula em seus escritos, criando uma
realidade-outra que se oculta por trás da realidade aparente. Sua concepção da
realidade objetiva como máscara de outra realidade mais verdadeira, e das palavras
como formas integradas a esse mundo de aparências, geram um instigante processo
de dualidades, simetrias e correspondências. Na verdade, Cortázar usa a realidade
existente apenas como matéria prima, sem se (pre)ocupar, no entanto, com a forma
já conferida à essa realidade. O problema maior está no grau de identificação e de
atenção do leitor. É preciso estar disposto a ceder e a conceder a esse jogo de
contínua sedução exercido pelas palavras que agem como sereias irresistíveis, o
que nos pede o texto.
“Abrir la puerta y...”, nos incita Cortázar. Abrir a porta não é somente um verso
de uma canção da infância
58
é, sobretudo, deslizar entre o mecanismo binário típico
da razão humana “a fin de permitirnos vislumbrar la posibilidad latente de una
tercera frontera, de un tercer ojo”
59
para que possamos pensar e articular as
renovações propostas no terreno fantástico de seus relatos que podem livrar-nos da
monotonia e da inércia.
Cumplicidade, exige Cortázar: “¿qué le importaba a Van Gogh tu admiración?
Lo que él quería era tu complicidad, que trataras de mirar como él estaba mirando
57
“ (…) escribo desde un intersticio, estoy siempre invitando a que otros busquen los suyos y miren
por ellos el jardín donde los árboles tienen frutos que son, por supuesto, piedras preciosas” in “Del
sentimiento de no estar del todo” – La vuelta al día en ochenta mundos, T.I, 1986, p.32
58
A canção diz assim: “arroz con leche/ me quiero casar/ con una señorita/ de porte y tal/ que sepa
coser/ que sepa jugar/ que sepa abrir la puerta para ir a jugar/ Con ésta sí/ con ésta no/ con ésta
señorita mi caso yo”.
59
Cortázar,J. “El estado actual de la narrativa en Hispanoamérica”. Obra Crítica 3 (Ed. Saul
Sosnowski) Buenos Aires (1983), 1994, pg.100.
46
con los ojos desollados por un fuego heracliteano…”
60
ou seja, olhar além do valor
pragmático proposto pela ordem canônica; olhar e desfrutar o prazer que
proporciona a descoberta deste olhar.
Por isto, nós leitores de Cortázar, temos que ser “un lector dispuesto a
participar en el juego, a aceptar lo inaceptable, a vivir en un estado permanente de lo
que Coleridge llamaba “la suspensión de la incredulidad”.
61
Significativamente, o fantástico de Cortázar surge dentro de um plano de
cotidianidade, (o que Freud classificou como “das Unheimliche”)
62
, porque para ele
a irracionalidade está situada no seio do real, e assim, toda exploração da realidade
se revela passiva e é aceita sem indícios de rebelião. A verificação da
irracionalidade no seio do real provoca a quebra de um racionalismo vulgar e funda
uma realidade paralela, porosa, uma realidade-outra (paralaje verdadero) que se
fecha sobre si mesma. A realidade não é uma ordem dada de uma vez e para
sempre e sim múltipla e complexa. É uma ilha suscetível de transformação, segundo
os ditados do acaso – uma nova razão que pode abolir as fronteiras entre o real e o
imaginário. E como tal, deve haver algum ponto do tempo e do espaço, um “ponto
vélico”, - ponto de convergência dos desejos do narrador, do autor e do leitor- , que
permita uma conjunção favorável na qual as diferenças se anulem e resumam o
descondicionado.
Assim, Cortázar insiste num constante jogo dialético do desejo de ver além
das estabelecidas fronteiras da realidade, de aprofundar-se nela, de descobrir a
interioridade em que se alojam as psicologias, a busca da essência e onde o leitor
deve imaginar o trânsito da vida à ficção com a ambivalência do personagem. O
poeta deve cumprir a forma mágica do princípio de identidade e ser outra coisa. -“Si
un gorrión viene a mi ventana, participo de su existencia y picoteo las arenillas”-,
como teoriza J. Keats).
63
, e através deste “diante de si mesmo”, consumar
privilegiadamente o seu destino. No citado estudo “Para una poética”, Cortázar tenta
60
“Morelliana, siempre”, in La vuelta al día en ochenta mundos T.1, México, Siglo XXI Ed.
(1967),1986.
61
Cortázar, J. “El estado actual de la narrativa em Hispanoamérica, Obra Crítica 3, 1994, pg.96.
62
Deste conhecido estudo de Freud, nos interessa destacar que enquanto o Heimlich ( íntimo, do lar),
procura situar o leitor no terreno realista, o Umheimlich quebra essa realidade previsível da
convenção inicial, rompendo o falso pacto estabelecido no princípio da leitura e criando “de golpe”
um efeito inesperado.
63
Em “Para uma Poética”, Obra Crítica 2, 1994,p.278.
47
provar que existem atitudes comuns entre o poeta e o mágico. Para isso utiliza as
noções do antropólogo Lucien Lévy-Bruhl sobre a mentalidade pré-lógica. Entre
essas, a que mais nos interessa é a chamada “ley de participación”: “La esencia de
la participación consiste, precisamente, en borrar toda dualidad; a despecho del
principio de contradicción, el sujeto es a la vez él mismo y el ser del cual participa”,
que indica talvez, que a auto-realização só é possível através de uma espécie de
cisão binária; um processo no qual o indivíduo poderia dividir-se em duas metades,
observar-se, interpretar-se e unificar-se outra vez, como aponta o crítico Alfred J.
Mac Adam
64
. O fenômeno da “dualidade” aparece em muitas de suas obras e está
longe de ser uma representação alegórica dos lados positivo e negativo da natureza
humana, tampouco uma representação de esquizofrenia (duplicação da
personalidade), como sugerem alguns críticos.
Perguntado por sua obsessão pelo “doble” em seus relatos, Cortázar
declarou:
“Jung podría hablar de una especie de arquetipo porque no se olvide que los dobles -no sé
si explícitamente en el sistema de Jung pero, en todo caso en las cosmogonías, en las
mitologías del mundo- el doble, los personajes dobles, los mellizos ilustres: Rómulo y Remo,
Cástor y Pólux, los dioses dobles, son una de las constantes del espíritu humano como
proyección del inconsciente convertida en mito, en leyenda. Parecía que el hombre no se
acepta como una unidad sino que, de alguna manera, tiene el sentimiento de que
simultáneamente podría estar proyectado en otra entidad que él conoce o no conoce pero
existe. Me pregunto -poniéndome a inventar un poco- si aquellas fantasías de Platón sobre
los sexos no tienen también un poco que ver con esto. Platón se preguntaba por qué hay
hombres y mujeres y sostenía que, originalmente había uno solo que era el andrógino, que
luego se dividió en dos. El amor sería, simplemente, la nostalgia que tenemos todos de
volver al andrógino. Cuando buscamos a una mujer estamos buscando a nuestro doble,
queremos completar la figura original. Estos temas reaparecen en múltiples cosmogonías y
mitologías, y siguen habitando en nosotros.”
65
Temas recorrentes como sua preocupação (claramente borgiana) pelo mundo
dos sonhos, sua intuição de uma radical incomunicabilidade entre os seres, sua
64
Mac Adam, Alfred J. “La torre de Dánae”, Revista Iberoamericana, s/n p.457
65
Entrevista à Ernesto Gonzáles Bermejo. “Conversaciones com Cortázar” Disponível no site
www.ciudadseva.com
48
constatação da existência de um estado de afasia semântica, entendendo por tal,
esse embotamento do sensorial, o intelecto e a sensibilidade como resultado de uma
manipulação e instrumentação abusivas da linguagem são procedimentos reiterados
em sua produção.
66
Os artigos críticos que Cortázar escreveu durante os anos 40 e os primeiros
anos da década de 50 são o produto de uma análise da tradição literária, nos quais
Cortázar pretendia encontrar os rasgos essenciais do investigador no investigado:
Si la novela clásica relató el mundo del hombre, si la novela del siglo pasado se preguntó
gnoseológicamente el cómo del mundo del hombre, esta corriente que nos envuelve hoy
busca la respuesta al por qué y al para qué del mundo del hombre.
67
Lograr respostas para estas perguntas induz a uma busca problemática. Uma
leitura mais acurada da narrativa cortazariana permite detectar como se apresenta
em muitos de seus contos o questionamento da escrita, e geralmente essas
preocupações estéticas encarnam em protagonistas-narradores que utilizam a
primeira pessoa: “Axolotl”, “acaso va a escribir sobre nosotros, creyendo imaginar un
cuento va a escribir todo esto sobre los axolotl”;
em “Reunión”: Ahora esto que cuento
pasó hace rato... Después hay como un hueco confuso... Ya no hay mucho que contar”;
‘Manuscrito hallado en un bolsillo” e Ahí pero dónde, cómo: No sé como decirlo”. Y si
insito es porque no puedo más… que escribiéndolo por lo menos lucho contra lo
inapresable… fijar con alguna salmodia lo que se te va yendo”. (grifo nosso)
Os estudos sobre Julio Cortázar proliferam: encontramos artigos que tratam
dos temas recorrentes em sua obra, análises ilhadas de contos específicos ou de
seus romances; encontramos também vários livros que tentam dar uma visão
panorâmica do homem Julio e de sua produção literária, incluindo às vezes,
perspectivas ou pontos de vista muito peculiares do crítico que escreve, gerando
polêmicas intermináveis.
E é por isso, que aos vinte anos de sua morte, a aventura continua: porque
sempre “ acosa la oscura intuición de que algo excede a sus obras, de que al cerrar
66
Trata-se aqui de uma adaptação das palavras de Juan Carlos Curutchet em Julio Cortázar o la
crítica de la razón pragmática, Ed. Nacional, Madrid, 1972.
67
“Situación de la novela”, in Obra Crítica 2, 1994, pg.222.
49
la maleta de cada libro hay mangas y cintas que cuelgan por fuera y es imposible
encerrar(…)”.
68
Assim, cúmplices que somos uns dos outros e do autor, abdicamos da
alternativa no instrumental crítico substituindo “ou” por “e” e acrescentamos mais
uma invasão ao mundo da linguagem de Cortázar, esse mundo limítrofe do
“extranjero y lo hostil”,
69
seguindo seu olhar sobre a realidade que o circunda,
rasgando a pele da sua literatura, mapeando seus territórios sem, no entanto, violar
o estranho e adverso de sua obra.
Para tanto, vamos tentar mapear a história de um olhar, um olhar que nasce
na candura da infância, atravessa lembranças, recebe a influência deste ou daquele
autor, capta em gestos inocentes carícias carregadas de erotismo, percorre o
labirinto do desejo, a noção do duplo, as passagens, as galerias, que nos contará
um pouco de sua história e delineará na fisionomia definitiva de sua obra de
narrador do mundo adulto, para chegar até o conto “Las babas del diablo”, do livro
Las armas secretas(1959).
70
Dos cinco contos reunidos em Las armas secretas, podemos considerar “Las
babas del diablo”, como o mais complexo: os contrapontos espaço- temporais, a
narração que não segue uma clara seqüência temporal; a noção de simultaneidade;
a presença do duplo e do fantástico e, é claro, o porquê e o para que da história
contada.
68
Obra Crítica, T.1, 1994, p. 42
69
Diz Cortázar: “El lenguaje es como la piel de la literatura, su limite tras el cual, para decirlo con una
imagen de Neruda, “ lo extranjero e lo hostil allí comienza” Obra Crítica, T.1, 1994, p.52
70
Posteriormente, em 1966 in Los Relatos (3)- Pasajes, numa compilação feita pelo próprio autor,
compilação essa que não segue uma ordem cronológica , já que como diz Cortázar, “Maurice
Blanchot demonstrou que o tempo-calendário pouco tem que ver com o tempo do laboratório central:
presumido seria o escritor que acreditasse haver deixado para definitivamente para trás uma etapa de
sua obra. Em qualquer página futura, pode estar a nossa espera uma nova página passada, como se
ficasse algo por dizer do ciclo que acreditávamos anterior, ou como se, depois de haver tirado todas
as gravatas velhas para agradar a nossa amada esposa no dia das bodas de prata, descobríssemos
que pusemos, que horror!, a gravata de bolinhas presenteada por aquela noiva que depois não se
casou conosco”.Nota do Autor em Final do Jogo, Tradução de Remy Gorga Filho.Rio de Janeiro, Ed.
Expressão e Cultura 3ª edição, 1974, pg.198.
50
JULIO CORTÁZAR: O COMEÇO
“Desde muy pequeño asumí con los dientes apretados
esa condición [ paralaje verdadero ] que me dividía de mis amigos y a la vez
los atraía hacia el raro, el diferente, el que metía el dedo en el ventilador.”
La vuelta al día en ochenta mundos
Creo que puede afirmarse sin temor a equivocarse que todo niño,
excepto en los casos en que una educación implacable lo aísle
a lo largo del camino, es esencialmente gótico.
Obra Crítica 3
O universo fantástico do menino Julio se forma em Bánfield, subúrbio de
Buenos Aires, onde chega aos quatro anos vindo da Bélgica onde nasceu. Sob os
olhares femininos da mãe, da tia e da irmã vive uma infância singular. A casa onde
vivia com corredores e escadas mal iluminados, com um porão ameaçador, e
principalmente, com uma biblioteca predominantemente européia (mas que continha
também Horácio Quiroga), cria uma atmosfera “gótica”. As brincadeiras comuns do
mundo infantil são então substituídas por leituras que despertam nele uma grande
atração pelo mundo da imaginação e da fantasia. Da vocação para o excepcional e
o mágico, nasce uma predisposição para questionar a realidade cotidiana e
enriquecê-la com elementos fantásticos e oníricos.
71
Surge daí, seu alto grau de engenhosidade lúdica: jogos de palavras,
anagramas, palíndromos, charadas, que somados aos rituais infantis e aos sustos
trabalhados,
72
formam uma escritura que segue o caminho do jogo porque Cortázar
71
Cada vez que veo las bibliotecas donde se nutren los niños bien educados, pienso que tuve
suerte; nadie seleccionó para mí los libros que debía leer, nadie se inquietó de que lo sobrenatural
y lo fantástico se me impusieron con la misma validez que los principios de la física o las batallas
de la independencia nacional.” “Notas sobre el gótico en el Río de la Plata”, Obra Crítica 3, 2004,
p.81.
72
“Curiosamente, esa familia tan dada a propagar las más horrendas historias de miedo y de terror,
mantenía también el culto del valor viril, y así desde muy pequeño se me obligaba a realizar
expediciones nocturnas dirigidas a templar mi hombría y mi habitación se convertía en una
buhardilla iluminada por un cabo de vela al final de una escalera donde el miedo, vestido de
vampiro o de fantasma, me aguardaba siempre”. Op. Cit. Pg.81
51
sabe que é só através desse jogo que poderá roçar o sentido dessa outra realidade
que quer comentar.
Aos três anos, o cantar de um galo que corta a madrugada, o faz sentir pela
primeira vez, o sentimento do abandono
73
algo que hoy puedo llamar mortalidad y que
en ese instante era sentir por primera vez el ser como despojamiento desolado
, e esse
sentimento de solidão é o mesmo que sentirá quando foi professor na província de
Chivilcoy (de 1939 à 1944) e Bolívar
74
, nos ministérios europeus onde trabalhou
como tradutor
75
. Será o mesmo que reinará livremente desde seus primeiros contos,
como “Bruja” (Revista Correo Literário,1944) e “Casa Tomada” (Los Anales de
Buenos Aires”, 1946 – então sob a direção de Jorge Luis Borges ).
Das lembranças da estação de ferro de Bánfield, somamos mais três histórias
que apontam para momentos da infância, para os rituais infantis, histórias que
ecoarão na obra do autor. A primeira trata das “cerimônias”
76
, onde já se configura o
jogo. A outra trata da ruptura do estável, onde os olhos do menino Julio,
acostumados à ordem imutável, testemunham um dia a troca de uma locomotiva,
77
.
73
Além do sentimento de abandono, segundo Adele Galeota Cajati, em “Continuidad de los
Bestiarios” este cantar é também parte do “bestiário autobiográfico” de Cortázar que inclui ainda
las langostas hacia los años 30 en una estancia de la provincia de Buenos Aires, el sueño del
Banto en la pubertad, las ranas y las hormigas en 1942 en Misiones, los insectos durante el verano
de 1972 en la casa de Saigon...” -Lo lúdico y lo Fantástico en la obra de Cortázar, Madrid, 1986:45
74
Durante esos casi once años que Cortázar pasó dedicado a enseñar fuera de Buenos Aires, leyó a
la mayoría de los autores que influyeron en su estilo y en su forma de pensar y de ver al mundo.
Leyó a Alfred Jarry, de quien no sólo admiraba su obra sino también su actitud personal, por
haberse dado cuenta de que hasta las cosas más graves pueden ser explotadas por el humor; a
Borges, que con su obra le dio una lección de estilo y de economía de medios; a Roberto Arlt, que
desde joven le había impresionado por su forma de captar la vida cotidiana de Buenos Aires; a
Cocteau, que con su obra “Opio”, le abrió las puertas al conocimiento de la novela contemporánea;
A Keats, que significó para Cortázar una de las más altas cimas de la poesía. Leyó también a Poe,
Homero, Gracilazo, Virginia Wolf, Rimbaud, Mallarmé, Dickens y muchos otros autores”.Arango
Toro, In Un tal Cortázar, 2001, pg.29
75
No texto “ Noches en los ministerios de Europa”, ecoa toda essa atmosfera que recobriu a infância
de Cortázar. La vuelta al día en ochenta mundos. 1986, pg.113.
76
Cuando iba yo solo, iba saltando. Es sabido que los niños gustan de imponerse ciertos rituales:
saltar con un pie, con los dos pies… Mi laberinto era un camino que yo tenía trazado, y que
consistía principalmente en cruzar de una vereda a la otra a lo largo del camino. En ciertas piedras
que me gustaban yo daba el salto y caía sobre esa piedra. Si por casualidad no podía hacerlo o me
faltaba el salto, tenía la sensación de que algo andaba mal, de que no había cumplido con el ritual.
Varios años viví obsesionado por esa ceremonia, porque era una ceremonia” (Luís Harss, “Julio
Cortázar o la cachetada metafísica” in Los nuestros, Buenos Aires, Sudamericana, 6ª ed., 1975,
p.266
77
De niño era más sensible a lo maravilloso que a lo fantástico y fuera de los cuentos de hadas creía
con el resto de mi familia que la realidad exterior se presentaba todas las mañanas con la misma
puntualidad y las mismas secciones fijas de La Prensa. Que todo tren debía ser arrastrado por una
locomotora constituía una evidencia que frecuentes viajes de Bánfield a Buenos Aires confirmaban
tranquilizadoramente, y por eso la mañana en que por primera vez vi entrar un tren eléctrico que
52
A mutação da realidade cotidiana desencadeia um choro convulsivo, mas inicia um
processo que rompe a cotidianidade e lhe dá a certeza de que toda situação
fundamental é reversível, o que estimula uma recriação da ótica cotidiana. A terceira,
uma semente daquilo que mais tarde seria chamado fantástico.
78
No seu mundo doméstico-literário- um mundo totalmente livre- além de uma
literatura de “baja calidad”, entram também Victor Hugo ( de Han de Islandia y El
hombre que ríe) e Edgar Allan Poe
79
, escritores que o levam a escrever um poema
lúgubre e necrófilo , baseado em “O Corvo”. Mas, pela mesma porta, entram também
Fu Manchú “y otros subproductos del género terrorífico” .
Mas Cortázar ultrapassa os limites dos temas derivados desta literatura
tradicional,
80
e escreve “Cuello de gatito negro” y “No se culpe a nadie”, por
exemplo, onde o tema já tão conhecido e explorado das “partes separadas do corpo
parecía prescindir de locomotora me eché a llorar con tal encarnizamiento que según mi tía Enriqueta
se requirió más de un cuarto kilo de helado de limón para devolverme al silencio.” “Notas sobre lo
gótico en el Río de la Plata”, Obra Crítica 2,1994,pg, 77
78
De mi realismo abominable de esa época da una idea complementaria el que soliera encontrar
monedas en la calle mientras paseaba con mi tía, pero sobre todo la habilidad con que después de
haberlas robado en mi casa las dejaba caer mientras mi tía miraba una vidriera, para precipitarme
luego a recogerlas y a ejercer el inmediato derecho a comprar caramelos. En cambio a mi tía le era
muy familiar lo fantástico puesto que jamás encontraba insólita esa repetición demasiado frecuente y
hasta compartía la excitación del hallazgo y algún caramelo.” La vuelta al día en ochenta mundos.T.1,
1986, pg.70
79
En una imaginación un poco excesiva como la mía, los cuentos de Poe cayeron como tormentas,
me hicieron mucho daño y mucho bien al mismo tiempo. Daño en el sentido de que me
traumatizaron (…) Pero paralelamente con esa dimensión negativa, hay lo positivo, y es que los
cuentos de Poe me mostraron a mí por primera vez el mundo de lo fantástico. Poe fue el primer
escritor que me mostró que la realidad no es tan sencilla como nos lo explican las maestras, sino
que hay muchas otras cosas”. “Cortázar narra cómo empezó a escribir”. OSORIO, Manuel. Citado
por Arango Toro em Un tal Cortázar, 2001, pg.24.
80
Pensamos aqui em um exemplo bem conhecido: as partes separadas do corpo humano. A
denominação é de Louis Vax. Diz ele: “Del mismo modo que, en lugar de integrarse a la
personalidad humana, la sexualidad o la agresividad liberadas pueden llevar una especie de vida
independiente que escandaliza al hombre en cuanto ser racional, diversas partes del cuerpo
humano que se liberan de la dirección central, comienzan a gozar de una vida independientemente.
En un cuento de Nerval, una mano encantada, que posee una sorprendente habilidad para la
esgrima, ha dejado de servir al hombre. Es ella quien lo domina, primero salva su vida, y
finalmente, provoca su perdición. Nos acercamos al tema de la posesión: el hombre ya no es libre;
alguien mora en él, habla por su boca, actúa por medio de sus manos.
El tema de la mano que goza de una vida independiente lo hallamos en la obra de Sheridan Le Fanu,
La sede de la casa roja, donde la mano continúa viviendo separada del cuerpo, aterradora, pero
inofensiva; lo encontramos también en un cuento de Maupassant, titulado precisamente” La mano”
donde la misma se halla encadenada a una pared. Encuentran estrangulado a quien la tenía
prisionera; la mano, entretanto, ha desaparecido. Si fue ella quien lo mató, es algo que no sabemos
con seguridad. Pero en una narración de Harvey,” La bestia de cinco dedos”, ha sido la mano, sin
duda alguna, quien ha estrangulado a la víctima” VAX, Louis. Arte y Literatura Fantásticas. Buenos
Aires, Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1965, pg.26.
53
humano” toma novos rumos. Seus contos mesmo vinculados aos motivos
tradicionais, ingressam em uma nova ordem.
É nessa realidade que se desenrola a narrativa fantástica de Cortázar, uma
literatura que ainda não possui uma definição, pelo menos, uma que satisfaça ao
autor. Acreditar no fortuito, descartar a causalidade, aceitar as coincidências, acatar
o sentimento lúdico com uma imaginação que vá além de toda temática verificável
pela razão ou pela “realidade”, e, principalmente, acreditar que o “mistério no se
escribe com mayúscula como lo imaginan tantos narradores sino que está siempre
“entre”, intersticialmente.
81
Um tema de Cortázar, que acreditamos, foi pouco tratado e que, no entanto,
se apresenta constantemente, é o erotismo. Em Último Round, Cortázar lamenta a
ausência do eros ludens na literatura escrita em língua espanhola e sua denuncia
recai sobre a incapacidade dos autores em geral (inclusive dele) de integrarem-se na
existência do erótico, fomentando tabus e eufemismos e utilizando um excesso de
puritanismo que dilui e falseia a clara eloqüência erótica de um olhar, de um gesto,
de uma intenção (às vezes apenas perceptível na extremidade dos dedos). Para ele,
esse comportamento não é senão a demonstração de uma pureza, na verdade,
insuportavelmente alienada.
82
O Cortázar que nosso olhar procura e que iremos trabalhar é um Cortázar
imbuído de um olhar expressivo que, diante do impasse gerado pelo fracasso da
linguagem para revelar os meandros da sexualidade, instaura uma moral que exige
o gozo como forma libertadora dos antagonismos e desencontros e postula a
liberação de Eros das múltiplas regras ascéticas impostas pelo cristianismo e pela
“Gran Costumbre”
O que une os textos aqui trabalhados é uma observação minuciosa,
perversamente erótica do desejo humano, dada pelo narrador. Ao analisar ditas
obras, veremos como dentro da diversidade natural do olhar, existe um olhar erótico
que, além de sua vicária singularidade, se apresenta sustentado pela transgressão.
Constataremos, então, que ao burlar a convenção do desejo puro, os excessos se
tornam verdadeiros dispositivos da sexualidade e da crueldade e terminam por gerar
um conflito também no campo lingüístico. Chegaremos, por fim, à realidade do
81
Cortázar in “La muñeca rota”, Último Round, T.1, pg. 261.
82
“En toda mi obra no he sido capaz de escribir una sola vez la palabra concha, que por lo menos en
dos ocasiones me hizo más falta que los cigarrillos.” Ultimo Round, T.2 1984, pg. 83.
54
desejo, “una realidad sin interposición de mitos, religiones, sistemas y reticulados”.
De Bataille apreendemos a experiência do excesso, onde “o sentido último do
erotismo é a morte”, que acreditamos abarca a finalidade e a razão do erótico
contido no olhar cortazariano.
Cortázar sintetiza o erotismo em uma fórmula: erotismo= sexo + inteligencia,
ojos + inteligência, lengua + inteligência, dedos + inteligência, pituitária +
inteligencia
83
, excluindo o amor convencional, propiciando assim, um sexo culturado,
sexo elaborado: de la sexualidad glandular a la mental; de la sexualiudad fisiológica
a la universal: del semen al sema. Uma jornada que se constitui plenamente do olho
à glândula pituitária cujo caminho é traçado por uma lógica prudente, a inteligência.
Nesta jornada, o amor, a ternura, a tristeza, a naturalidade que subjazem em
seus contos eróticos não cambiam de tom. Cortázar agrupa erotismo e palavra mas,
veremos que há um preço a ser pago ao “abrir a porta e sair para brincar nos jardins
eróticos”, quando a sedução é excessiva, “car cette langue qui nous recouvre les
yeux, c´est en s´emparant d´elle que l´on voit.
84
Em A História do Olho, de Bataille, os desvios obscenos, escatológicos e
finalmente sanguinolentos de dois jovens apontam para três maneiras de excesso
da sedução: delírio sexual, frenesi blasfemo e furor homicida. O que nos leva à
conclusão de que a sedução extrema é contígua ao horror. Segundo Bataille, o olho
é sedução – pois nada é tão atraente como ele no corpo dos animais e dos homens
– e é ao mesmo tempo perversão, “guloseima canibal”
85
. Sob esse aspecto, o olho
poderia ser aproximado ao objeto cortante, cuja aparência provoca igualmente
reações agudas e contraditórias.
Seguindo o dito pelo poeta Luis Cernuda,porque el deseo es una pregunta
cuya respuesta nadie sabe”, passemos ao comentário dos contos.
83
Em Último Round, T.2, 1984,pg.58
84
FAYE, Jean Pierre .Citado por Cortazar, op. cit. pg.84.
85
A expressão é de Stevenson, tomada por Bataille, A História do olho, 2003, pg.100
55
Más cosas hay en una bicicleta de las que imagina tu filosofía, Horacio.
J. Cortázar (Último Round)
A epígrafe de “Ciclismo em Grignan”, tomada de Bataille
86
, estabelece um elo
entre o livro A Historia do Olho e a cena que constitui o relato
87
. A ação do conto se
faz sob a ação do olhar do narrador que catalisa o erótico a partir da imagem de
uma adolescente que se desloca livianamente en la silla de la bicicleta”,
O olhar do narrador , até então entretido em observar as meninas no meio da
praça, não tarda em focar-se na ciclista. Bruscamente vi”, diz o narrador. “la silla de la
bicicleta, su forma vagamente acorazonada, el cuero negro terminando en una punta
redondeada y gruesa, la falda de liviana tela amarilla moldeando la grupa pequeña y ceñida,
los muslos calzados a ambos lados de la silla pero que continuamente la abandonaban
cuando el cuerpo se echaba hacia delante y bajaba un poco en el hueco del cuadro
88
A partir daí, o olhar se encarrega de relacionar a atitude da ciclista com um
ato de desejo espontâneo que busca a realização do prazer solitariamente, (…)La
chica seguía apoyándose y alejándose rítmicamente de la silla, una y otra vez la gruesa
punta negra se insertaba entre las dos mitades del joven durazno amarillo, lo hendía
hasta dónde la elasticidad de la tela la dejaba, volvía a salir, recomenzaba”. (grifo nosso).
O procedimento de tomada de distância do narrador permite expressar no
movimento entre as nádegas da jovem ciclista e o selim de sua bicicleta, algo que
supera em sugestão erótica as tantas palavras que pretendam substituí-lo. O pudor
de Cortázar recobre as palavras (como no caso das palavras grifadas).
(…) el goce estaba presente aunque no tuviera dueño, aunque la chica no se diera cuenta
de ese goce que se volvía risa, frases sueltas, diálogo de amigas; pero algo en ella lo sabía,
su risa era la más aguda, sus gestos los más exagerados, estaba como salida de sí misma,
entregada a una fuerza que ella misma provocaba y recibía, hermafrodita inocente buscando
la fusión conciliadora, devolviendo en follaje estremecido tanta savia primera”
86
« Elle se branlai sur la selle avec une brusquerie de plus en plus forte. Elle n’avait donc pas plus
que moi épuisé l’orage évoqué par su nudité. G. Bataille (Histoire de l’oleil ).
Publicado originalmente em 1928, sob o pseudônimo de Lord Auch, é a novela que marca a estréia
do escritor no mundo das letras. « A criação da História do Olho marcou o fim de um silêncio e o
nascimento de um escritor ( Eliane Robert Moraes, «Um olho sem rosto », in História do Olho, Cosac
& Naify, 2003.
87
No texto “Cristal con una rosa dentro”, Cortázar explica essas coincidências fortuitas que precipitam
uma cadeia de acontecimentos não relacionados entre si, onde o sujeito é tomado de surpresa.
88
Todas as citações do conto “Ciclismo en Grigan” foram tiradas do livro Último Round, 1985 pgs.22-
26
56
A narrativa finaliza no gozo do corpo, invocando a pureza da “hermafrodita
inocente” no propósito de suas manipulações mais primitivas. A exploração dos
sentidos da ciclista, desdobradamente, cala aos sentidos do narrador que explora
uma sensualidade que “busca a fusión conciliadora”, dela no gozo do corpo per
angostam viam , e dele na narrativa, porque sabemos que a verdade da palavra
nunca é erótica. Para ser erótica – no sentido ocidental e pejorativo da palavra- é
preciso acrescentar-lhe um sentido que a verdade em si não tem, por isso o narrador
constrói uma verdadeira metafísica do olhar que compreende desde a simples
contemplação até o gozo final.
Veranee como lo que usted realmente es, o
en todo caso aprenda mirando a los que ya son.
J. Cortázar, (Último Round)
Mulher, máquina, olhar: a mesma tríade de “Ciclismo en Grignan” está
presente em “La noche de Saint-Tropez”
89
. Mais uma vez, o olhar capta a “ilusão de
um instante” e trama o relato que está estreitamente relacionado com a ordem do
olhar e da perspectiva erótica.
Sentado na coberta de um iate, “puesto de observación privilegiado”, o
narrador segue veloz a frenética excitação do “ir y venir privado de sentido” das
“muchachas semidesnudas”, dos homossexuais “narcisos lânguidos”. É uma
diversidade de pieles y lenguajes y risas y músicas, sin un otro fin que un fin de noche
menos monótono que ayer, que el de perfeccionar acaso una experiencia arrasadora, un
grito entre labios mordidos o drogas liberadoras, la escondida ansiedad que mueve esa
serpiente sin cabeza ni cola atada a su propia recurrencia”
O cais é o lugar da sexualidade, uma sexualidade que possui uma essência
primitiva e dissolvente que contamina e se manifesta como contrária à sexualidade
imposta pelos padrões. A narrativa segue este olhar, abolindo a pontuação (com
exceção da vírgulas, pequeno espasmo), e o léxico empregado está diretamente
relacionado com o ápice do desejo sexual: o orgasmo. “Saint-Tropez de noche resbala
89
Todas as citações do conto “La noche de Saint-Tropez” foram tiradas de Último Round, Tomo II,
1985, pgs.192-196
57
y fluye como un licor seminal, una interminable lentísima eyaculación que fluye y resbala de
los muelles a los yates, de las calles al muelle (…)
No meio deste caos noturno, surge um objeto que será o ponto de confluência
do desejo que estabelece, enfim, uma relação com a conjuntura sexual: uma
motocicleta Harley Davidson, un minotauro plateado (...) una máquina diseñada para
domar el espacio y el viento (...) una silla de cuero rojo como um enorme corazón horizontal
.
As imagens vão sendo tecidas obedecendo ao mesmo ritmo da visão do cais.
Numa sucessão de sentenças descritivas, a moto é o ponto de ordem na desordem
humana que a circunda e admira: los hombres apreciando el doble caño de escape, el
tamaño del motor incrustado en el vientre genital del toro de plata, la mujer oscuramente
excitada por una máquina que la llevaría a um goce de hoteles de lujo” (...).
Um olhar
impregnado de fantasia erótica demarca pilotos, passageiros, espectadores.
E a moto, recogida en si misma como un rencor pronto a rugir y a lanzarse contra la
multitud” (...), é “codiciada, acariciada, violada, masturbada por ojos, manos, pelos,
espaldas, nalgas de los que la contemplan, giran en torno de ella, bromean, fingen
despreciarla o conocerla íntimamente, fingen ignorarla mientras la adoran, se prosternan
ante ella, bajo ella, se someten a su dominio (...)”
Nestes dois primeiros relatos o que nos interessa destacar é o olhar erótico
do narrador. A eleição do olhar como campo semântico para a configuração textual
está em função do desejo, e a narração avança a partir do momento em que o
desejo é ativado em função do objeto visado, objeto este que pode ser tanto uma
adolescente ou uma moto Harley-Davidson. Não há conflito lingüístico no plano da
narração porque não há transgressão no plano do desejo. A solidão e a fascinação
estão irmanadas no olhar do narrador que submete o desejo à rigidez do olhar. O
objeto concentra em si uma ação auto-suficiente, erótica, que modela e conclui
perfeitamente a fórmula “ojo+inteligencia”.
Vaya a saber cómo hubiera podido acabar algo que ni siquiera
tenía principio, que se dio en mitad
y cesó sin contorno preciso, esfumándose al borde de otra niebla.
J. Cortázar (“Silvia”)
Dentro da linha que buscamos, “Silvia”, apresenta uma outra construção do
erótico que oscila na representação do desejo petrificado e o desejo realizado.
Apesar de sua aparente simplicidade, talvez seja um dos contos mais
complexos de Cortázar, porque primeiro, é como “una invitación a un viaje que solo
58
puede cumplirse en territorios fuera de todo territorio”
90
, quando se sobrepõe à
realidade do mundo que vivemos e aponta para a realidade de um mundo interior
que oferece as mesmas dimensões do sonho, este “instante sin tiempo”, esta
“névoa” à qual pertence Silvia.
Segundo, porque concomitantemente à misteriosa figura de Silvia, aparece no
texto uma constelação de nomes do mundo das artes- músicos, pintores, escultores,
ensaístas, filósofos, escritores, que estão ligados por um elo comum: suas propostas
inovadoras dentro do campo das artes, propostas estas que questionam e rompem
com a rigidez das formas.
En todo caso hay que empezar… como diz o narrador, portanto vamos a
trama:
Dentro de uma vida rotineira, num churrasco com amigos, o narrador-
protagonista, Fernando, vê Silvia yo estaba sentado entre Borel y Raúl, y en torno a la
mesa redonda bajo el tilo se sucedían Javier, Magda y Liliane: Nora iba y venía con
cubiertos y platos.”
Fernando estranha o fato de que não a tenham apresentado a ele,
mas justifica: estaba en una edad difícil, se negaba a entrar en el juego de los grandes,
prefería imponer autoridad o prestigio entre los chicos agrupados junto a la tienda verde”
O olhar então passeia pela imagem que vê: Vi sus muslos bruñidos, unos
muslos livianos y definidos(…) , las pantorrillas quedaban en la sombra al igual que el torso
y la cara, pero el pelo largo brillaba de pronto con los aletazos de las llamas, un pelo
también de oro viejo, toda Silvia parecía entonada en fuego, en bronce espeso”(….) La
minifalda descubría los muslos hasta lo más alto…
Irresistivelmente fascinado pela adolescente, seu interesse aumenta,:
imposible preguntar quién era Silvia, por qué no estaba entre nosotros, y además el fuego
engaña,
quizá su cuerpo se adelantaba a su edad…” E entre comentários sobre
Roubaud e as experiencias de Xenakis, de longe, segue a silhueta de Silvia
“el fuego
desnudaba las piernas y el perfil, adiviné una nariz fina y ansiosa, unos labios de estatua
arcaica... . (…)“Sentí que si alguna cosa deseaba saber en ese momento era Silvia, saberla
de cerca y sin los prestigios del fuego, devolverla a una probable mediocridad de
muchachita tímida o confirmar esa silueta demasiado hermosa y viva como para quedarse
en mero espectáculo”(…)
Até que chega Graciela – uma das crianças – e esclarece que Silvia é uma
amiga dela e das demais crianças. A mãe, Nora, escuta e intervém: “¿Por qué no te
90
Todas as citações do conto “Silvia” foram tiradas de Los relatos (1)- Ritos, 1985, pgs.127-138.
59
volvés con los chicos y dejás en paz a Fernando? Si se pone a hablarte de Silvia vas a tener
para rato.” ¿Por qué?, pregunta Fernando. “Porque desde que la inventaron nos tienen
aturdidos con su Silvia”
, diz Javier, pai de Álvaro.(grifo nosso)
Mas, mesmo assim, Fernando insiste e convida os mesmos amigos para um
jantar em sua casa uma semana depois. Ali, em determinado momento, vê outra vez
Silvia: “La puerta de mi dormitorio estaba abierta, las piernas de Silvia se dibujaban sobre la
colcha roja de la cama (…) me acerqué al dormitorio, vi a Silvia durmiendo en mi cama, el
pelo como una medusa de oro sobre la almohada. Entorné la puerta a mi espalda, me
acerqué no sé cómo, aquí hay huecos y látigos, un agua que corre por la cara cegando y
mordiendo, un sonido como de profundidades fragosas, un instante sin tiempo,
insoportablemente bello. No sé si Silvia estaba desnuda, para mí era como un álamo de
bronce y de sueño, creo que la vi desnuda aunque luego no, debí imaginarla por debajo de
lo que llevaba puesto, la línea de las pantorrillas y los muslos la dibujaba de lado contra la
colcha roja, seguí la suave curva de la grupa abandonada en el avance de una pierna, la
sombra de la cintura hundida, los pequeños senos imperiosos y rubios”
“Silvia abrió los ojos, se sentó en el borde de la cama; tenía la misma minifalda de la primera
noche, una blusa escotada, sandalias negras. Pasó a mi lado sin mirarme y abrió la puerta”.
Assim como Sílvia entra em seu mundo, sai. O protagonista solitário que saiu
de sua rotina, volta para ela e reencontra de novo sua solidão. Silvia agora é
somente “una ausencia que puebla mi casa de hombre solo”.
À primeira vista, o que salta aos olhos é o caráter estatuário de Silvia. Desde
uma perspectiva iconográfica, apresenta uma interessante oposição entre duas
formas antagônicas de representação do corpo humano: como estátua (não
podemos esquecer que o protagonista Fernando diz que tem a seus cuidados uma
“estatuilla de las Cícladas”,
91
) e corpo como fonte de sexualidade.
Como uma estátua pedestre, Silvia, apresenta músculos brilhantes e
definidos, um cabelo longo dourado, um nariz fino; como uma estátua jacente- a
posição em que Silvia é descrita quando está na cama de Fernando-, a suave
curva dos quadris e os seios “imperiosos” nos remetem ao tema do nu feminino
deitado da “Vênus Durmiente” De frente ou de perfil ela se parece a uma estátua,
91
Estas estátuas encontradas nas Ilhas Cícladas e grande parte do Mar Egeu (4500 e 2000 adc),
mediam entre 10 a 150cm, eram encontradas em sepultamentos e eram conhecidas como “La
dama blanca” por causa da cor. Estas informações foram tiradas do site
www.anarkasis.com/eróticon.
60
mas manifesta, ao mesmo tempo, uma falta total de rigidez. Seus movimentos
associam com perfeição a mobilidade com a imobilidade.
Sílvia é forjada pelo fogo, palavra freqüente no texto que condensa uma forte
sexualidade. Simbolicamente, o fogo transmite uma intenção de purificação e luz,
mas também está ligado para o movimento de vai-e-vem da técnica primeira para a
obtenção do fogo, que aponta para a imagem do movimento da relação sexual.
92
A naturalidade com que o narrador aceita Silvia em seu mundo mesmo depois
de saber que não passa de uma “invenção lúdica” das crianças e a certeza que não
a verá mais porque é preciso que estejam todos juntos ( ele e as quatro crianças) se
sobrepõe à realidade do mundo que ele vive, mas Silvia pertence ao mundo da
névoa, como disse o narrador, mundo que permite a realização do impossível, do
vedado. Daí que sua consumação / realização seja totalmente vedada ao mundo
normal. Em “Para una espeología a domicilio” diz Cortázar: Hay que aprender a
despertar dentro del sueño, imponer la voluntad a esa realidad onírica de la que hasta ahora
sólo se es pasivamente autor, actor y espectador”
93
.
Falamos anteriormente do rol de nomes que fazem parte da unidade
narrativa. Além do narrador Fernando (que curiosamente leva marcas
autobiográficas do autor – um argentino que vive em Paris e seu conhecimento
crítico pelas artes em geral) temos quatro crianças (Graciela, Álvaro, Lolita e o
pequeno Renaud), seis adultos ( o casal Raul e Nora Mayer ( pais de Graciela), o
casal Javier e Magda (pais de Álvaro e Lolita), e o casal Liliane e Jean Borel
94
, pais
de Renaud), todos eles “personagens” do mundo de Sílvia.
Mas, há um elenco de nomes do mundo das artes- músicos, pintores,
escultores e escritores
95
, e todos esses artistas postulam uma interligação osmótica
92
Conforme Dicionário de Símbolos, CHEVALIER Jean, GHEERBRANT Alain.Rio de Janeiro, José
Olympio Ed. 1982, pg.442.
93
Último Round, 1984, pg.172.
94
Além de ser o único personagem com sobrenome, Jean Borel é um nome que remete à vários
homônimos: um Jean Borel relojoeiro, um Jean Borel(1868-1946) fundador do grupo de esperanto,
um Jean Borel (1933) médico imunologista, inventor da substância ciclosporine A, usada no
transplante de órgãos, e também o sobrenome de Adrien Borel o psicanalista de Georges Bataille..
95
Eric Dolphy, americano( 1928-1964), jazzista,os franceses Jean-Pierre Faye (1925), filósofo,
ensaísta, escritor; Philippe Sollers (1936) Fundador da Revista Tel Quel; Francis Ponge (1899-1988),
poeta; Jean Tardieu (1903-1995) radialista, poeta, dramaturgo; Jacques Roubaud (1932) matemático,
tradutor, crítico ensaísta, poeta, e finalmente, Iannis Xenaquis (1922-2001) arquiteto, matemático e
músico. Todas essas referências sobre os artistas citados foram tiradas do www.google.com
Uma outra referência é sobre a imagem das crianças junto ao fogo, “como em los grabados de Héctor
Malot o de Dickens”. Malot (França, 1830-1907) e Charles Dickens (Inglaterra, 1812-1870)
61
entre as artes, fundindo música, literatura, matemática, filosofia entre si. Dos dois
grandes romances mencionados - La casa verde (1965), de Mario Vargas Llosa e
Cien años de soledad de Gabriel García Márquez – extraímos a marca de uma nova
estilística, representativa do grande questionamento do boom dos sessenta. Mais
adiante encontramos menção aos uruguaios Juan Carlos Onetti (1902-1964) e
Felisberto Hernández (1909-1994), dois grandes nomes da literatura hispano-
americana, sendo que esse último tem um conto famoso- “Hortências”, onde
também nos deparamos com a temática da estatuária. A pintura não poderia ficar de
fora, e então temos o argentino Julio Silva, grande amigo e colaborador de Cortázar
em pelo menos dois grandes livros: Último Round e Silvalandia, e, finalmente o
inglês Graham Sutherland, pintor neo-figurativo.
Todas estas referências que circulam e se inter-relacionam dentro da unidade
da narrativa proporcionam um sistema de relações conexas com o erotismo e a
arte de narrar, se tomamos a narrativa como um movimento do desejo em função
de um objeto esquivo, e este objeto esquivo como Silvia. O narrador ao aliciar na
narração a imagem de Sílvia, se bifurca em dois caminhos. Petrificadas, - Silvia e a
narrativa- nada dizem, mas como corpo de desejo, a menina-mulher e as
experiências florescidas no campo da arte autenticam o erótico da busca. É da
unidade destes dois momentos, portanto, que se constitui o enunciado da fórmula
“lengua + inteligência”.
“Sexo + inteligencia” é dentro das fórmulas apresentadas a mais complexa
porque o sexo se apresenta reproduzido em imagens transgressoras, e ao
transgredir a norma social o narrador transgride também a norma lingüística,
problematizando o contar.
El filo del límite, ¿qué filo, qué límite? …
¿Cuál era el límite, cuál era realmente el límite?
J.Cortázar
No jogo da vida, no apetite da vida, no impulso irracional
para a vida existe uma espécie de maldade inicial:
o desejo de Eros é uma crueldade,
pois passa por cima das contingências.
Antonin Artaud
romancistas importantes do século XIX, que tinham sempre em seus romances personagens
crianças, principalmente Dickens, que chega a fazer deles heróis como Oliver Twist.
.
62
Desde o título “Usted se tendió a tu lado”
96
, notamos no mecanismo
discursivo do narrador uma “transgressão lingüística” com a presença na mesma
frase de dois pronomes ( usted, tu) , que além de sugerir uma simultaneidade que
está no núcleo temático - o desejo da mãe pelo filho - reforça a idéia de uma
transgressão, tanto à norma sintática como à norma social.
97
.
O conto trata de um triângulo conflitivo - Roberto, um adolescente de 15 anos,
a mãe Denise, e a namorada Lílian. Cada personagem ocupa dentro do texto um
lugar- limite, duplo, ambíguo, entre dois pólos incompatíveis: a razão e o desejo.
No tema explorado aqui - o conflito gerado pelas relações idílicas entre mãe-
filho-namorada -, o que nos interessa , principalmente, são as lembranças evocadas
através da pergunta que abre o conto: “¿Cuándo lo había visto desnudo por última vez?”
No campo lingüístico, esse “lo”, é claro se refere à Roberto, mas a partir daí, o
narrador cria uma ambigüidade na instância narradora onde os pronomes
vos/usted” se misturam, configurando um sistema narrativo instável. Este narrador -
um “yo” oculto que dialoga com “usted” e “vos”- reproduz de maneira alucinante o
que pensam e sentem Denise e Roberto, como se eles se expressassem
diretamente, gerando para o leitor uma certa dificuldade em identificar “quem” ou “a
quem se fala”.
No campo temático se flagra o instante que faz cair o fio do limite entre o
menino e o homem:
Roberto en la ducha, un masaje en la rodilla lastimada, imágenes que no habían
vuelto desde vaya saber cuándo, en todo caso meses y meses desde la última vez desde
que lo había visto desnudo; más de un año, el tiempo para que Roberto luchara contra el
rubor cada vez que al hablar le salía un gallo, el final de la confianza, del refugio fácil entre
sus brazos cuando algo dolía o apenaba; otro cumpleaños, los quince, ya siete meses atrás,
y entonces la llave en la puerta del baño, las buenas noches con el piyama puesto a solas
en el dormitorio, apenas si cediendo de tanto en tanto a una costumbre de salto al
pescuezo, de violento cariño y besos húmedos, mamá, mamá querida, Denise, mamá o
Denise según el humor y la hora(...).
96
Todas as citações do conto “Usted se tendió a tu lado” foram retiradas de Los Relatos 2- Juegos,
1985, pgs.90-99
97
É importante frisar que a idéia da “ transgressão lingüística” foi tirada de um estudo feito por
Milagro Esquerro, “Alguien que habla por ahí: de los efectos de la enunciación en dos cuentos de
Alguien que anda por ahí”, publicado em Lo lúdico y lo fantástico en la obra de Cortázar, 1985,
pg.119.
63
Toda a trama (a iniciação sexual de Roberto) é atravessada ora pelas
lembranças – cada vez mais freqüentes e particulares da mãe- ora pelas cenas do
presente da enunciação dadas por um narrador que omite os pronomes que
acompanham a forma verbal, configurando, como dissemos, um sistema narrativo
instável.
Estas imagens, lembranças comuns à quase todas as mães servem, no
entanto, de matriz para à situação ambígua em que se encontra Denise: de um lado
quando fantasia e organiza a primeira relação sexual de Roberto com sua namorada
Lílian
98
, e de outro, quando se sente rival de Lílian
99
.
O devaneio de Denise, que se desenrola relatando eventos da infância traz
uma marca significativa, cuja matriz está em uma cena datada quando Roberto tinha
então sete anos:
“A los siete años habías llegado una tarde de la escuela con un aire avergonzado, y
usted que nunca lo apuraba eneros casos había esperado hasta a la hora de dormir te
enroscaste en sus brazos, la anaconda mortal como le llamaban al juego de abrazarse antes
del sueño, y había bastado una simple pregunta para saber que en uno de los recreos te
había empezado a picar la entrepierna y el culito, que te habías rascado hasta sacarte
sangre y que tenías miedo y vergüenza porque pensabas que a lo mejor era sarna, que te
habías contagiado con los caballos de don Melchor”
Aparentemente, a cena em si não traz a carga erótica/cruel de que falamos,
mas no desenrolar do relato, outras lembranças de Denise aparecem e ratificam o
corpo de Roberto “boca abajo”. É como se a entrada no campo do desejo só se
viabilizasse a partir do evento de dor/crueldade. Esta cena tão banal quanto íntima,
traz uma espécie de efeito de eco e, na cena da gruta, a superposição da mãe sobre
a imagem da namorada é significativa já que retorna à cena do “boca abajo”:
“Rechazar la idea aunque cada vez más difícil en la duermevela, medianoche y un mosquito
aliado al súcubo para no dejarla resbalar al sueño. Encendiendo el velador, bebió un largo
98
“Un par de chiquilines, y precisamente por eso te estoy hablando, porque si te acostás con Lilian
esta noche o mañana es seguro que van a hacer las cosas como chambones que son”(…) ,
“quiero decir que ni vos ni ella van a tener el menor cuidado, bobeta, y que el resultado de este
final de verano es que en una de esas Úrsula y José Luís se van a encontrar con la nena
embarazada. ¿Entendés ahora? (…)
99
“Usted se sentía bien así sola, pero de golpe algo así como tristeza, ese silencio civilizado, esa
película que solamente ellos iban a ver.
64
trago de agua, volvió a tenderse de espaldas; el calor era insoportable pero en la gruta haría
fresco, casi al borde del sueño usted la imaginaba con su arena blanca, ahora de veras
súcubo inclinado sobre Lilian boca arriba con los ojos muy abiertos y húmedos mientras vos
le besabas los senos y balbuceabas palabras sin sentido, pero naturalmente no habías sido
capaz de hacer bien las cosas y cuando te dieras cuenta sería tarde, el súcubo hubiera
querido intervenir sin molestarlos, simplemente ayudar a que no hicieran la bobada, una vez
más la vieja costumbre, conocer tan bien tu cuerpo boca abajo que buscaba acceso
entre quejas y besos, volver a mirarte de cerca los muslos y la espalda, repetir las
fórmulas frente a los porrazos o la gripe, aflojá el cuerpo, no te va a hacer daño, un chico
grande no llora por una inyección de nada, vamos.” (os grifos são nossos)
E qual o limite, qual o verdadeiro limite para narrar uma história erótica? A
dúvida outra vez atua como mediadora, porque mesmo transgredindo a norma
lingüística, a narrativa se realiza.
A questão do limite não parece estar nas mãos de um simples desejo. Um
desejo que rompe os limites impostos pelos tabus, um desejo que prazerosamente
se inicia no olhar de uma mãe sobre um filho, mas que foi forçado a calar-se ou
manter-se nos cantos obscuros de uma consciência conciliada com seus próprios
limites, que se erotiza com o passar do tempo e termina sem que conheça o
“verdadeiro limite”:
“Todavía era posible que uno de esos días la puerta del baño no estuviera cerrada con llave
y que usted entrara y te sorprendiera desnudo y enjabonado y de golpe confuso. O al revés,
que vos te quedaras mirándola desde la puerta cuando usted saliera de la ducha, como
tantos años se habían mirado y jugado mientras se secaban y se vestían.
Não há limite? Artaud diria que no jogo da vida, no apetite da vida, no
impulso irracional para a vida, existe uma espécie de maldade inicial: o desejo de
Eros é uma crueldade, pois passa por cima das contingências.
65
We´ll send your love to college, all for a year or two,
And then perhaps in time the boy will do for you.
The trees they grow so high
(Canción folkórica inglesa.)
100
Cortázar declarou uma vez que “La Señorita Cora” é o conto mais erótico que
já escreveu. E o que nos interessa é justamente detectar como e onde está este
erotismo. Como sempre, o foco principal não está no tema – o poder de sedução de
uma mulher sobre um adolescente – nem na construção dos personagens, nem na
fábula em si. O que resulta interessante, e que talvez sacie nossa curiosidade, é
como a sedução está disseminada no plano da enunciação.
O conto relata a história de Pablo, “un chico crecidito, que é internado num
hospital para se submeter a uma cirurgia de apendicite. A mãe do menino,
demasiadamente protetora, ao ver Cora, pensa: (…) enfermera con aires de vampiresa
y ese delantal ajustado, una chiquilina de porquería que se cree la directora de la clínica.”
101
Cora, a enfermeira , percebe o quanto sua presença perturba
emocionalmente o jovem Casi me daba pena verlo tan avergonzado, era la primera vez
que me tocaba atender a un muchachito tan joven y tan tímido, pero me seguía fastidiando
algo en él que a lo mejor venía de la madre, algo más fuerte que su edad y que no me
gustaba, y hasta me molestaba que fuera tan bonito y tan bien hecho para sus años, un
mocoso que ya debía creerse un hombre y que la primera de cambio sería capaz de
soltarme un piropo”.
Pablo, por sua vez, tece suas fantasias a respeito de Cora: Qué jóven es,
clavado que no tiene ni diecinueve años, debe haberse recibido de enfermera hace muy
poco. A lo mejor viene para traerme la cena; le voy a preguntar cómo se llama ”’,
e tenta
passar a idéia de que é mais maduro do que parece, e por isso guarda a fotonovela
que estava lendo quando Cora entra no quarto, porque mejor sería estar leyendo a un
libro de veras”...
Pouco a pouco, num jogo de olhares e gestos, tece-se a sedução: “(...) y
cuando abri los ojos le vi el pelo castaño pegado a mi cara porque se había agachado para
sacarme un resto de jabón, y olía a shampoo de almendra como el que se pone a profesora
100
A epígrafe que introduz o conto é parte de uma canção inglesa cujos versos resultam na trama do
texto e simbolizam a relação entre Cora e Pablo. A letra de Sarah Brightman encontra-se disponível
no site
http://www.amazon.com/trees-they-grow-so-high/dp/b000007PJB.
101
Todas as referências do conto foram tiradas de Los Relatos 2- Juegos, Alianza Editorial, 1985,
pgs.207- 227.
66
de dibujo, o algún perfume de esos, y no supe qué decir y lo único que se me ocurrió fue
preguntarle: “¿Usted se llama Cora, verdad?” Me miro con aire burlón, con esos ojos que ya
me conocían y que me habían visto por todos lados, y dijo; “La señorita Cora”.
A censura ao “tuteo”, dada pela resposta de Cora , que à princípio parece
uma tentativa de manter uma distância cerimoniosa, na verdade faz parte do jogo
de sedução que se arma. O corpo do jovem está à mercê de Cora: raspagem dos
pelos pubianos, medição de temperatura, injeções, supositórios, lavagem. Algo mais
forte a incomoda diante do corpo “tan bonito y tan bien hecho para sus años”, e Cora
sabe que algo está acontecendo, ora pelo “maldito calor que me sube por la piel”,
ora pelo prazer que sente ao vê-lo submisso, de bruços “(...) por una parte me hacía
gracia estarle viendo el culito a mi joven admirador, pero de nuevo, me daba un poco de
lástima de él, era realmente como si lo estuviera castigando por lo que me había dicho”.
Logo após a mal sucedida cirurgia, quando o estado de saúde de Pablo se
agrava, Cora sob a certeza iminente da morte dele cede, finalmente :
Llámame Cora”, le dije. “Yo sé que no nos entendimos al principio, pero vamos a ser tan
buenos amigos, Pablo”. Me miraba callado. “Decime: Sí, Cora”. Me miraba, siempre.
“Señorita Cora”, dijo después, y cerró los ojos. “No Pablo, no”, le pedí, besándolo en la
mejilla, muy cerca de la boca. “Yo voy a ser Cora para vos, solamente para vos”.
Estes dois últimos relatos, como vimos, apontam para o adensamento erótico
na mesma cena; um olhar feminino que desvenda a intimidade do corpo de um
adolescente transgredindo o simples desejo. Se no primeiro se questiona o limite,
em “La Señorita Cora” o limite está traçado, como disse Bataille, na morte.
Outro ponto em comum acontece no plano da enunciação. Vimos como em
“Usted se tendió a tu lado” a ambigüidade na instância narrativa desafia e transgride
às normas lingüísticas.
Aqui, em “La Señorita Cora”, o texto é construído a partir dos enunciados de
narradores diferentes. O discurso, assim, desliza sem marcas do sujeito da
enunciação onde cada um expõe, com sua própria voz, sua percepção do conflito,
às vezes dentro de um mesmo parágrafo.
A sedução constitui o primeiro passo para a realização de um desejo, mas é
invadida por um olhar que deflagra uma perversão. Tanto Denise, com suas
lembranças “del culito ensangrentado” de Roberto, quanto Cora com suas injeções,
67
lavagens e medições de temperatura em Pablito, rompem os limites quando nos
levam ao ponto central do “boca abajo”.
Mapeando o território erótico dos contos de Cortazar, tendo como bússola as
fórmulas dadas por ele do erotismo, podemos concluir que dentro desse universo, o
erótico feminino está calcado na perversão, segundo a fórmula de Jean
Baudrillard
102
.
Seguindo essa linha, produz-se então, uma espécie de contágio generalizado
dos atos perversos com a transgressão linguística, ou seja, na mesma proporção em
que as protagonistas transgridem a cadeia do desejo, a linguagem também
transgride as normas da linguagem. Logo, a perversão do outro seqüestrado pelo
olhar, leva concomitantemente, à desestruturação da linguagem ou ainda à
impossibilidade da narrativa.
Os olhares eróticos femininos vistos aqui, abrem espaço para a realização do
desejo através de um Eros cruel, batalliano, e por isto o narrador, incapaz de romper
aquilo que o sufoca, se emaranha nos fios da narrativa, problematizando o contar.
Como Cortázar mesmo declarou, a dificuldade de realizar o erótico através de
palavras – como tão bem o faz Bataille – o leva a realizar este erótico ora no campo
dos sonhos (“Silvia”), ora na relação objeto-sujeito (“Ciclismo em Grignan” e “La
Noche de Saint Tropez”), ora no limite (“Usted se tendió a tu lado”), e finalmente na
morte (“La Señorita Cora”), e mais adiante como veremos, em “Las babas del
diablo”.
A narrativa de Cortázar está povoada de imagens eróticas que abarcam uma
gama expressiva da sexualidade (incesto, estupro, homossexualidade, descoberta
sexual, etc.), mas o instinto sexual encerra um elemento demoníaco e destrutivo.
Transformando a sedução da mulher num enigma que aponta para a sexualidade
ligada à morte do objeto seduzido, a sexualidade se torna o lugar de questões sobre
o que pode e o que não pode ser conhecido. O que se apresenta, então, é o
fracasso da linguagem para dizer uma verdade inacessível contida no erótico.
Permanece, pois válida como vértebra na narrativa erótica de Cortázar essa busca
da palavra que justifique a experiência do olhar erótico.
102
Baudrillard diz que a perversão sexual “consiste no fato de não se poder apoderar do outro como
objeto de desejo na sua totalidade singular de pessoa mas somente no descontínuo: o outro se
transforma no paradigma das diversas partes eróticas de seu corpo com a cristalização objetual de
uma dentre elas”. Em “O sistema marginal”, O Sistema dos Objetos, 2002, pg.107
68
2.3. MICHELÂNGELO ANTONIONI
Michelangelo Antonioni nasceu em Ferrara - uma pequena cidade localizada
ao nordeste da Itália, que ele um dia descreveu como “uma cidadezinha
maravilhosa, antiga e silenciosa na planície de Pádua,” - em 29 de setembro de
1912.
Cresceu em uma Itália fascista. Estudou e se formou em Economia na
Universidade de Bolonha, e enquanto estudava, pintava e escrevia críticas
cinematográficas.
Em 1940 foi para Roma e esteve um breve período no Centro Experimental
de Cinematografia. Colaborou para a revista Cinema, que reunia grandes nomes do
vindouro movimento neo-realista, nomes como Roberto Rosselini, Federico Fellini,
Carlo Lizzani, Guiseppe de Santis e Luchino Visconti. Mais tarde trabalhou com
Rosselini, no roteiro do filme Un piloto ritorna (1942).
A experiência seguinte, ainda em 1942, foi um contrato na Scalera Film,
(França) onde trabalhou como assistente de Marcel Carné na rodagem de Les
visiteurs du soir. Sobre esta experiência, que muitos críticos afirmam ter sido
marcante no estilo de Antonioni, ele diz:
“mi pare sai stata sopravalutata. Carné, como uomo, è grigio e chiuso, dà molto poco della
sua personalità. Ho imparato alcuni accorgimenti tecnici, è vero, ma nulla piú.”
103
Antonioni volta à Itália em 1943 e começa a realizar seu primeiro curta-
metragem: Gente do Pó.
104
Em uma entrevista, declarará:
“Quando giravo il mio primo documentario, alla fine del ´42, Visconti girava Ossessione.
Gente del Po era un documentario sulla pesca, sul trasporto coi batteli, sui pescatori: uomini,
vale a dire, non cose e luoghi. Ero, senza saperlo, sulla stessa línea di Visconti. Mi ricordo
molto bene che il mio rammarico fu di non poter dare a questa materia uno sviluppo
narrativo, cioè di non poter fare un film a soggeto.”
105
103
Fabio Rinaudo, ( acura di) Foyer Antonioni, in “Cronache del cinema e della TV”, n.7, Roma,
dicembre 1955. Citado em Il Primo Antonioni, p.12
104
O documentário Gente del Po começou a ser rodado em 1943 mas a guerra obrigou a interrupção
dos trabalhos e por isso só pode ser finalizado em 1947.
105
Questions a Antonioni, ( in “Positif”, n.30, Parigi, 1959 )
69
Em contraposição ao documentário da época do regime fascista, que
incentivava o lado científico ou encorajava o “cinema delle cartoline”( um tipo de
documentário “cartão postal”, paisagístico, folclórico que se prendia na reprodução
inerte da realidade), ou ainda, a prática de esportes ou um “modelo de mulher”, e
cujo o único objetivo era a propaganda política, Antonioni procura uma realidade
despojada de mistificações, não contaminada por uma construção pré-fixada, tendo
o homem como centro.
Antonioni não ignorava que o cinema é, antes de tudo, uma indústria, e que o
autor pode cair na rede exigente dos produtores e comprometer totalmente a
liberdade da sua palavra, mas soube driblar a estrutura infernal dos processos
mercantilistas do cinema e criar um cinema próprio, uma escritura cinematográfica
com uma visualidade que ele escolheu abertamente.
Em abril de 1939, no número 68 de “Cinema” aparece um artigo intitulado Per
un film sul fiume Po, assinado por Michelangelo Antonioni. O artigo é ilustrado por
nove imagens que já apresentam uma indicação figurativa precisa do futuro diretor.
Segundo Carlo Di Carlo em Il Primo Antonioni,
“ Le canne intrecciate delle reti da pesca sottintendo un paesaggio delimitato da spazi con
rigore geometrico, dove l´uomo è presente, piccolo come un punto nella distesa dell´acqua
stretta dalla terra; file di alberi morti vicino a riva, presentimento del dramma quatidiano
dell´acqua: pescatori in attesa di affrontare l´estensione immensa del Po che ha l´aspetto di “
un paesaggio africano”; due barconi da pesca nella luce del tramonto e subito dopo, a
contrappunto, barche e vapori alla riva di Pontelagoscuro, fermi nel sole della mattina,
preparati a un´altra giornata di lavoro.”
106
Ao lado destas imagens, Antonioni escreveu :
I figli del Po, malgrado tutto, dal Po non hanno saputo sataccarsi. Hanno lottato, sofferto, ancora
lottano e soffrono, ma possono evidentemente far rientrare la sofferenza nell´ordine naturale delle
cose, rubandole anzi un incentivo alla lotta.”
107
106
Carlo Di Carlo, Il Primo Antonioni, Cappelli ed., Bologna, 1973, p.12
107
Citado por Carlo Di Carlo em Il Primo Antonioni, 1973, pg.12
70
Em Gente del Po a câmera marca com uma cadência longa o lento
movimento da “acqua dolce del Pó” em direção à “acqua amara dell´Adriatico”. A
voz off é usada com restrição e na verdade, são as imagens as que falam,
marcando o ritmo. O rio domina a paisagem e remete à vida do dia-a-dia dos
habitantes do Pó, onde tudo corre lentamente. A câmera captura esse movimento na
impassibilidade dos longos vazios dos barcos navegando, instituindo, assim,
relações entre as distintas seqüências. A valorização da monotonia do rio – que se
move mas é sempre o mesmo – reflete a indiferença para com o destino humano.
No lento movimento da câmera, a situação humana vivida, sem drama, sem
mensagem social.
A técnica de Gente del Po é relativamente convencional se pensamos em
cenários estáticos pontuados pelos tradicionais cortes e panorâmicas. No entanto, a
predileção pelo campo aberto- mudo, desolado - e a tonalidade - uma mistura de
cinzas- fazem com que a paisagem absorva o homem e mostre a vida dos homens
que vivem “tra el cielo e la palude”, problematizando e inovando a forma expressiva.
A montagem livre, com enquadres separados, quase ilhados, mostram cenas
que narram sem seguir a linearidade do tempo, e induzem com a descrição da
paisagem o mais profundo da condição humana.
Ao Pó Antonioni voltará dez anos depois (1957) para filmar Il Grido . Será uma
volta ao mundo cinza e desolado, à paisagem apática e selvagem do norte onde
vivem os operários do Pó. Desaparece a vida burguesa apresentada em Cronaca di
um amore (1950) e a idéia de que somente a classe alta seja representativa da
consciência da incomunicabilidade. Il grido é como um laço entre o já referido
documentário Gente del Po, e uma outra história, porque mostra homens e
mulheres comuns que tropeçam no desentendimento, no desencanto e na
incomunicabilidade.
108
E por trás destes homens e mulheres está a paisagem cinza
do rio Pó, indicando a desesperança e a caducidade dos sentimentos.
Perguntado por Miniccheri – responsável pelo Instituto Luce – por que
escolhera o Pó, Antonioni declarou:
108
O filme conta a história de Aldo, um operário, que após ser abandonado pela mulher, parte com a
filha e vagando de cidade em cidade se envolve com outras mulheres em busca de uma
estabilidade sentimental, uma resposta para seu vazio existencial.
71
“Il Po di Volano appartiene al paesaggio della mia infanzia. Il Po a quello della mia
giovinezza. Gli uomini che passavano sull’argine trascinando i barconi con una fune a passo
lento, cadenzato, e piú tardi gli stessi barconi trascinati in convoglio da un rimorchiatore, con
le donne intente a cucinare, gli uomini al timone, le galline, i panni stesi, vere case
ambulanti, commoventi.
Erano immagini di un mondo del quale prendevo coscienza a poco a poco. Accadeva
questo: quel paesaggio che fino ad allora era stato un paesaggiodi cose, fermo e solitario,
l’aqua fangosa e piena di gorghi, i filari di pioppi che si perdevano nella nebia, l’isola Bianca
in mezzo al fiume a Pontelagoscuro che rompeva la corrente in due, quel paesaggio si
muoveva, si popolava di persone e si rinvigoriva. Le stesse cose reclamavano un’ attenzione
diversa, una suggestione diversa. Guardandole in modo nuovo, me ne impadronivo.
Cominciando a capire il mondo attraverso l’immagine, capivo l’immagine. La sua forza, il suo
misterio. Appena mi fu possibile ritornai in quei luoghi con una machina da presa. Cosi è
nato Gente del Po. Tutto quello che ho fatto dopo, buono o cattivo che sia, parte da lì (...)
109
Em 1948, outro documentário: N.U. Netteza Urbana. Aqui se firma o código
estilístico de Antonioni do “fundo como signo lingüístico”, na opinião de Carlo di
Carlo:
“ Le immagini di N.U. saranno difficilida dimenticare negli anni a venire, non solo per il
cinema di Antonioni, ma per il cinema in generale. Introduzione precisa a ciò che il regista
intende per “paesaggio”, per “ambiente”, per “atmosfera”: quindi non decòr, ma fondo como
segno linguistico che “significa”, che “designa”.
110
A cidade é Roma: Piazza del Popolo, Piaza del Quirinale, San Pietro, Trinità
del Monti:
é a interação entre personagens e paisagem, uma paisagem italiana, não só
focalizada em seus elementos pitorescos, mas integrada como algo vivo e determinante à
ação”,
como diz Mariarosaria Fabris.
111
O filme começa ao amanhecer e acaba no crepúsculo, e nessa organização
temporal acompanhamos a jornada de trabalho dos varredores de rua. Em primeiro
plano, no começo do filme, observamos os varredores emergindo de vários pontos
da cidade de Roma. Pacientemente assistimos ao código de repetição da cena dos
109
Michelangelo Antonioni, Prefazione a “Sei Film”, Einaudi ed. Torino, 1964, p.16
110
Carlo di Carlo, Il Primo Antonioni, 1973, p.16
111
Mariarosaria Fabris, O Neo-Realismo Cinematográfico Italiano, Edusp, São Paulo, 1996, p.66
72
varredores em sua função, porque essas são as figuras que devem ser assinaladas.
É a força persuasiva da imagem:
.
“Nel corso di uma giornata, molta gente, molte cose e lavori si sfiorano che sembrano
consueti e noti e di cui si sa invece ben poco. Quel poco soltanto che sta a diretto contatto
con gli interessi e la vita di ciascuno di noi.
Tutto il resto ci è estraneo.”
112
Os trabalhadores aparecem, humildes, ora sozinhos, ora acompanhados de
um companheiro, varrendo, recolhendo o lixo, ou correndo atrás do caminhão para
despejá-lo. Aparecem também em momentos mais íntimos, comendo encostados
em um muro, descansando ou devorando com os olhos as lingüiças expostas numa
vitrine.
Mães com bebes resistindo à rudeza da fome, homens de olhos indiferentes,
olhares perdidos. Imagens tristes num filme composto praticamente de tempos
mortos. A temática é confiada ao capricho do olhar câmera diante da qual se movem
os humildes trabalhadores.
A voz off, como em Gente del Pó, é quase nula. Há um emprego funcional
dons sons onde a música atua como elemento estrutural e os ruídos como parte
integrante do processo de significação.
A leitura das fachadas das casas, da estrada, da praça deserta, das ruas
limpas e cruas da cidade, é fria. Esse é um olhar que aponta, provavelmente, para
uma reversão irônica de interesses: os homens necessários para a limpeza da
cidade e que nela trabalham, nos mostram, no olhar, uma cidade totalmente
indiferente a eles. Eles fazem parte da cidade sem, no entanto, participarem da vida
urbana. São os anônimos necessários.
A câmera de Antonioni distribui e articula essas imagens com uma textura de
luz e com uma beleza, que, estas imagens quando mostradas, desencorajam o fácil
argumento de um julgamento social. Há uma inflexível insistência do valor do puro
visual dado.
Nasce o olhar de Antonioni.
112
ANTONIONI, Michelangelo. “Roteiro de N.U.”, publicado em Il Primo Antonioni, 1973, p.32.
73
Nestes dois documentários, como dissemos, está o começo do estilo de
Antonioni: o valor semântico da imagem, o fundo como situação. Como aponta
Seymour Chatman sobre estes trabalhos:
“(...) the first of Antonioni’s labors with the movie camera was the ability to interrogate things,
the external worlds, people, and to make them reveal, through their external semblances,
their internal truths, their innermost sense, that which Antonioni himself was to call their
mystery”
113
Antonioni, como ele mesmo disse, além de examinar a relação entre
personagem e ambiente, adentra no personagem para diagnosticar tudo que há
passado:
fermarsi sul personaggio, dentro il personaggio, per vedere che cosa di tutto quello che è
passato – la guerra, il dopoguerra, tutti i fatti che ancora continuavano ad accadere e che
erano tanto importanti da lasciare um segno sulle persone, sugli individui – che cosa sai
rimasto di tutto questo dentro i personaggi, quali siano non dico le trasformazioni della loro
psicologia o del loro sentimento, ma i sintomi di quella evoluzione e la direzione nella qualle
cominciano a delinersi i cambiamenti e le evoluzione avvenuti nella psicologia e nei
sentimenti e forse anche nella morale di queste persone”
114
Aqui começa o cinema de Antonioni, o olhar que inaugura a narração através
das imagens e estimula o olhar do espectador a pesquisar, procurar, investigar o
verdadeiro sentido do homem e das coisas sob o mistério de suas aparências e que
serão as ferramentas para seu estilo narrativo maduro..
Cronaca di un amore (1950) é o primeiro longa-metragem de Antonioni. Com
um enredo tradicional, Antonioni radiografa o mundo da burguesia italiana
emergente naqueles anos, considerando-a tanto em si mesma, em seu ser, como
pelo que produz, e nos brinda com um cinema limítrofe entre o cinema clássico e o
que conhecemos como o “cinema de Antonioni”.
113
Seymour Chatman. Antonioni,or, the surface of the world. London, University of California Press,
1985, p.10.
114
Michelangelo Antonioni (colloquio con) La malatia dei sentimenti, in “Bianco e Nero”, Roma,
febbraio-marzo 1961, n.2-3, p. 71.
74
Cronaca di un amore transcorre no mundo da alta burguesia de Milão e relata
a história de um marido ciumento (Enrico), que depois de 07 anos de casado,
contrata um detetive para descobrir o passado de sua mulher (Paola). O detetive
descobre em Ferrara que Giovanna, amiga de Paola e antiga namorada de Guido,
morreu em estranhas circunstâncias. Prevenido por Matilda (uma amiga dos dois)
Guido viaja para Milão para encontrar-se com Paola, que não vê desde a morte de
Giovanna. O encontro serve para ressuscitar o passado de paixão. Ambos
reconhecem que a morte de Giovanna foi acidental, se reaproximam e acabam por
tramar a morte de Enrico. Guido espera por Enrico em uma estrada, mas o
assassinato não se consuma: Enrico, desesperado com o relatório que o detetive lhe
entrega, perde o controle do carro que dirigia em alta velocidade e morre. Paola
entra em pânico com a chegada da polícia - que foi avisá-la da morte do marido - e
foge para encontrar Guido que promete fugir com ela no dia seguinte, mas ao invés
de cumprir o prometido, parte sozinho.
Antonioni olha com atenção maníaca o mundo que descreve, e este olhar
passeia pelas ruas chuvosas de Ferrara e Milão com um procedimento novo na
relação câmera/ação. O luxo está presente em todo filme: desde o cenário (com
móveis de Ferdinando Sarmi e Elio Guaglino), até o figurino de Lucia Bosé (que usa
roupas assinadas por Ferdinando Sarmi e peles de Rivella), .
Desponta em Cronaca... um olhar que se afasta da estrutura clássica da
gramática cinematográfica (quando amplia os limites do gênero detetivesco “noir”) e
aponta, principalmente, para a contradição entre os sonhos de renovação cultural e
política do pós-guerra e a “aridez espiritual” da alta burguesia milanesa. Diz
Antonioni:
“Em Cronaca... eu analisava a condição de aridez espiritual e também um certo tipo de
frieza moral de algumas pessoas da alta burguesia milanesa. Precisamente porque eu
achava que a falta de interesse pelo mundo externo a elas, esse estar voltado para si
mesmos, sem um contra-ponto moral preciso, sem um mecanismo que fizesse surgir o
sentido da validez de certos valores, neste vazio interior havia um material suficientemente
importante para explorar.”
115
115
Documentário Michelângelo Antonioni, produzido pela RAI, em DVD. A Noite. Seleções DVD,
Versátil Home Vídeo, Manaus, 2004.
75
O tradicional enredo do triângulo amoroso - mulher, marido e amante -, com
a temática da luxúria, ciúme e dinheiro é a base do romance noir americano (ou
giallo em italiano, já que as capas dos romances deste gênero são amarelas e não
pretas como na França), mas o filme noir tradicional
116
demanda que esse enredo
se desenvolva passo a passo alternando suspense e surpresa. Em Cronaca... os
personagens dominam a narrativa, e como “contam” o que aconteceu e o que farão,
a ação é pouca e o suspense, a surpresa e a curiosidade são limitadas.
Encontramos uma longa seqüência de fatos relatados em que a ação é
substituída pelo “contar”: o dono da agência “conta” ao detetive a vida de Paola
Molon e sobre o marido de Paola, Enrico; pessoas que conheceram Paola “contam”
ao detetive sobre sua adolescência; Matilde “conta” –por carta - à Guido sobre a
investigação; Joy – a modelo- “conta” a Guido sobre o seu rompimento com Valério
–o vendedor de carros- e até um dos pontos centrais da trama - a morte violenta de
Giovanna – é “contada” pela empregada da jovem morta.
Ainda quando a ação ocorre simultaneamente à dramatização (como no
clímax do filme – a morte de Enrico) o impacto da cena é estranhamento mudo: não
temos um close do acidente com freadas, carro rolando e pegando fogo como nos
filmes tradicionais. O acidente é tratado com um ruído longínquo, seguido de um
piscar de luzes no horizonte. O final do filme nos é dado através do entrecruzamento
de três seqüências: Paola em casa esperando o telefonema de Guido, Guido
esperando na ponte por Enrico e Enrico dirigindo o automóvel. O procedimento
discreto das cenas compatibiliza a absoluta ausência de dramatização na tela com a
necessidade de evidenciar esse momento, “mostrando-o” mais do que “narrando”. O
ponto crucial é a imagem em primeiro plano do cadáver do marido. A “surpresa” da
morte de Enrico ( um cadáver “fake” que será outra vez explorado em Blow Up, mas
com outra intenção) é dada pelo impacto do todo criado pelas três seqüências, pela
brilhante cinematografia. Se o gênero enquanto tal se enfraquece, o filme se firma.
Antonioni subtraindo da imagem a função narrativa ( ou seja, a ação, propriamente
dita), instaura uma dialética entre a narrativa que vemos projetada na tela e a ação
116
Segundo Bordwell, in La narración en el cine de ficción, Barcelona, Ed.Paidós, 1985, pg.65, o
gênero detetivesco tradicional deve despertar o suspense, a surpresa e a curiosidade:
El género intenta crear curiosidad sobre acontecimientos pasados de la historia (por ejemplo, ¿quién
mató a quién?), suspense respecto a acontecimientos venideros, y sorpresa respecto a revelaciones
inesperadas tanto de la historia como del argumento”)
76
passada (ou futura) à qual essa narrativa se refere, o que vem a ser uma das
estruturas essenciais do filme.
Além disso, existem momentos privilegiados onde a palavra se torna
efetivamente ação, como no teatro filmado do passado. Estamos falando dos
encontros clandestinos entre Paola e Guido. Dentre eles, destacamos o encontro na
pensão onde vive Guido. Na pobreza da pensão, os amantes reconhecem que estão
felizes, mas reconhecem também que no meio desta felicidade está Enrico, assim
como no passado estava Giovanna. Guido propõe uma fuga, mas, Paola se recusa a
fugir com Guido porque ele é pobre e “no amor o dinheiro é tudo”. O retorcido de
linhas negras da cabeceira da cama remetem à uma teia de aranha.
117
Outro encontro e outra cena significativa é a que acontece na escadaria do
edifício Assicurazione Generali de Venezia. Ali, subindo os degraus, rodeada pelos
cabos do elevador e pelo corrimão da escada (outra vez as linhas negras retorcidas
que remetem à aranha e sua teia), Paola declara que odeia o marido e que, só com
a morte dele, ela e Guido poderão ser felizes.
Na pensão, o diálogo entre eles continua carregado de tensão.
E por último, na ponte. Eles planejam a morte de Enrico, conscientes da
enormidade do ato. O diálogo é uma troca de acusações, mas finalmente Guido
cede e se dispõe a matar Enrico nessa mesma noite.
Na narrativa lógica, o princípio de conexão é fundamental. O evento B é
contingência do evento A e ambos eventos contribuem para o entendimento da
história. Vimos como a causalidade, até certo ponto, está presente no filme: na
primeira seqüência temos um detetive vendo as fotos de Paola. Em seguida, vemos
o detetive em Ferrara perguntando sobre Paola a diversas pessoas. Concluímos que
este detetive está em Ferrara investigando a vida de Paola. Através da seqüência
causa/efeito dos primeiros encontros de Paola e Guido, chegamos a entender os
próximos eventos: o sentimento de culpa pela morte acidental de Giovanna, a luxúria
117
P.L.Thirard observou que nesta cena está o mecanismo fundamental do enredo. A figura de Paola
corresponde adequadamente , no sentido dramático, ao protótipo da “tueuse blonde”: “noire comme
láraignée, come l amante brune, vêtue de noir... elle tourne autour de l’amant, lui jette un sort ( le
jeu de sés doigts autour de sin cou e sur son visage) le prend dans ses filets », in M.Antonioni,
(Premier Plan, 15, p. 22 ). Lorenzo Cuccu, um dos maiores estudiosos de Antonioni, discorda,
afirmando que, a adoção a figura de Paola neste esquema dramático foi condicionada em parte por
exigência do produtor (Franco Villani), que queria o registro de uma “história” e Antonioni, sem um
narrador – no sentido de “inventor da trama”, buscou um fio condutor e um ponto de referência
seguro. Paola, no sentido dramático, não corresponde adequadamente à caracterização do
personagem “mulher fatal”.
77
dos amantes, a conspiração para matar Enrico, a morte de Enrico. Mas, por que
Enrico sente tanto ciúme de Paola a ponto de contratar um detetive para descobrir
seu passado? Nunca saberemos. Mais problemático, porém, é entender porque
Guido abandona Paola. A decisão de Guido de abandonar Paola no final, agora que
ela está livre e rica, quebra a convenção causal lógica da narrativa.
No noir americano, o casal assassino deve ser preso - o crime não compensa
e o espectador sabe disso. Cronaca apresenta uma moralidade que não rompe com
o gênero, mas introduz uma ambigüidade : o casal não causou realmente as duas
mortes. Eles apenas desejaram que Giovanna e Enrico morressem. Se fossem
culpados, eles poderiam ser apanhados, mas aqui são inocentes e livres.
Não fica claro se Paola será presa no final, embora fique óbvio que ela tema
isso. Não há lugar para o final feliz nem lugar para aquele senso implacável de
punição trazido pela justiça poética do velho melodrama. Antonioni ignora
deliberadamente a receita do final resolvido.
Para a crítica italiana de 1954, Cronaca, assim como outros filmes dos 50
(como Viaggio a Itália (1953) de Rossellini), por exemplo, representam a segunda
fase (ou fase psicológica) do neo-realismo italiano e, parafraseando Francesco
Bolzoni, em “Un ritratto di Antonioni”, o comportamento ansioso de Guido e Paola é
explicado como um descontentamento geral- com eles mesmos e com a sociedade
conformista que os circunda. Eles não podem relacionar-se uns com os outros,
resolver os problemas sociais, então sentem a fadiga, algo como a náusea
sartreana.
Já Seymour Chatman, afirma que Antonioni ultrapassa os limites do gênero
noir, como ultrapassa, também, um questionamento moral e psicológico da classe
burguesa enriquecida pelo “milagre econômico” na Itália pós-guerra. O filme noir de
Hollywood prima pela narratividade através da ação, enfocando mais a trama que os
personagens, enquanto aqui questões principais como “quem fez e quem ganha
com isso” ficam sem resposta: se o casal não é culpado das duas mortes por que
não terminam juntos? Por que Guido abandona Paola, justo agora que ela está rica
e livre?
Se em Cronaca o que se enfatiza é o estado psicológico dos protagonistas,
especialmente a culpa, o medo e a ansiedade que persiste mesmo que o fato seja
real ou não, já que o implacável destino dos amantes parece ser mais existencial do
que operativo, o fantasma da derrota dos personagens deve ser justificado e a
78
verdade mais oculta, compreensível. E embora mostre as falhas, a apatia e a
indiferença dos protagonistas, não nos diz porque eles se sentem assim.
118
Pensamos que o comportamento dos personagens não está modelado em
função da dramaturgia, nem em função da representação do “vazio existencial” da
sociedade italiana do pós-guerra. Claro está, que ambos fatores subjazem na
material fílmico, mas estão delineados somente em função do olhar da câmera, que
registra no gesto cotidiano e aparentemente insignificante (espécie de corporificação
da tese do cotidiano, tão cara ao neo-realismo) a mudança radical da condição moral
burguesa e o alto nível de imanência a qual está condenado o olhar”, como bem
frisa Angel Quintana:
‘El cineasta fija su mirada en la clase media y propone un proceso de
introspección que tiene como objetivo el descubrimiento de la crisis sentimental.
Antonioni considera que el cine debe plantearse la naturaleza de la mirada, los
problemas de implicación de la visión en el mundo real y la crisis permanente que
existe entre el mundo de la percepción y el mundo del conocimiento. Para el
cineasta, el problema fundamental reside en la compleja naturaleza del mundo real y
en alto nivel de inmanencia a que está condenada la visión. El cine está atrapado
por la superficie de las cosas, pero debe tener capacidad para trascenderla.”
119
Antonioni sabe que o cinema é uma arte fundamentalmente figurativa e que
por isso, sua representação formal é sempre uma aparência exterior da natureza e
dos indivíduos. Daí apresentar no material fílmico esta condição desprovida da ação
dramática para que possamos entrever claramente a interioridade das coisas.
Tradicionalmente, o espaço cenográfico – a paisagem – é um dos suportes da
narrativa, conferindo verossimilhança à ação e aos personagens e atuando como
indicador do “mood” dos personagens.
Como vimos nos documentários, Antonioni foi um inovador ao tratar a
paisagem e nesse primeiro longa-metragem, a paisagem (urbana e corriqueira) não
é só cenário ou atmosfera que reflete o caráter dos personagens, ou metáfora da
solidão dos indivíduos, ou ainda o back-ground realístico que dá verossimilhança ao
118
Seymour Chatman, Antonioni or the surface of the world , University California Press, London,
1985, pg.14.
119
QUINTANA, Angel. Op. cit. pg.149
79
filme noir. A paisagem aqui, condiciona e constitui um deslocamento da matéria
narrativa e uma organização para a forma da visão da relação que Antonioni
estabelece com o mundo.
Em Cronaca... desde os primeiros minutos, nos créditos, aparecem ao fundo,
as ruas movimentadas de uma cidade. As imagens de uma Milão chuvosa e cinzenta
que desliza silenciosa pela tela, a leitura das fachadas das casas, da estrada, da
praça, como vimos em N.U. também estão presentes aqui, belamente narrativas,
fluindo como signos dos acontecimentos.
A paisagem será, doravante para Antonioni, mais do que simplesmente um
fator coadjuvante na matéria fílmica. Nos próximos filmes, como veremos, a
paisagem será protagonista dentro de uma “outra” história.
As tomadas freqüentes de campos longos e meios campos mantêm uma
relação constante de foco entre o personagem e o fundo, e o recurso do plano
seqüência e do Jeu en profondeur, mantendo o foco, permite que os personagens se
movam livremente no espaço sem perder a determinação espacial do quadro e a
relação com o fundo. Duas cenas exemplares: a)Guido e Paola saem do planetário e
enquanto conversam, a câmera acompanha os dois pelo parque até que
desapareçam no fim da alameda.b)Guido e Paola na ponte de ferro, quando
planejam a morte de Enrico. Durante quatro minutos, em um único enquadre, a
câmera segue implacavelmente os dois, ora afastando-se, ora aproximando-se,
estabelecendo com a monotonia do campo, o perfil fugidio dos personagens.
Sobre esta técnica cênica, declara Antonioni, em Positif (n.30:1959)
“La técnica di Cronaca di un amore mi è venuta istintivamente. Quando, su um carrello,
preparavo l’inquadratura andavo spontaneamente verso il movimento di cui sentivo la
necessità. Ed era il bisogno di sentire i personaggi fuori dai momenti convenzionalmente
importanti per lo spettatore, di mostrargli ancora, quando tutto sembrava già detto”
120
A forma de montagem adotada é caracterizada por dois aspectos
fundamentais:
O primeiro, é a recusa do procedimento campo/contra-campo nas cenas de
diálogo. A câmera não se envolve com a situação dramática, permanece autônoma,
120
Citado por Carlo di Carlo em Il primo Antonioni, pg.16.
80
externa, e a escolha do material enquadrado não é a lógica da própria situação, mas
uma técnica que faz com que o espectador reajuste as suas expectativas, refaça a
escala de significações que se aplica ao enredo e pense em um conjunto mais
amplo de esquemas alternativos. O segundo aspecto, é a adoção da montagem
interna, na qual a sucessão de imagens, ou continuity do filme, é determinada por
longos planos fixos ou pelos movimentos da câmera.
Esta organização da matéria narrativa ( conexão da câmera de Antonioni com
os personagens e a situação enquadrada) , Lorenzo Cuccu define como “visione
estraniata”, ou seja, o método de representação em que se exclui a identificação por
parte do autor no confronto com a ação do personagem, e isto porque seu olhar
pousa sobre “um sentido” a decifrar, um sentido que não está representado no
material dramático. Assim, estranhamente, é o olhar que determina o material
dramático na técnica de tomada e não o contrário, e é esse olhar que ao final
constitui, em forma articulada e dinâmica, o selo distintivo do estilo de Antonioni.
Noel Bürch considera Cronaca di un amore, uma obra chave na recomposição
das estruturas narrativas.
121
A palavra veículo narrativo ou ação, em ambos os casos esse tratamento confere total
autonomia à câmera.(...) Antonioni compôs, entre suas personagens, que falam e a câmera,
que os vê falar, um tipo de relação que podemos melhor qualificar como balé, de uma
riqueza de e de um rigor sem precedentes. (...) Esse balé não se executa, evidentemente,
entre a câmera propriamente dita e as personagens, mas entre estas últimas e a extensão
da câmera no espaço, isto é, o quadro.
Por tudo que vimos, cabe aqui acrescentar uma refelexão do próprio
Antonioni sobre a função do olhar de um diretor cinematográfico:
Esiste uma legge psicologica la quale dice che a ogni moto dell’anima corrisponde un movente
esterno; scopire questi movimenti è il compito primo degli autori cinematografici
122
Fica claro que em Cronaca de un amore ele descobre esse movimento. A
motivação interna revelada em sua dinâmica estilística cinematográfica produz o
121
BURCH, Noel. in Praxis do Cinema, São Paulo, Ed. Perspectiva,1992, pg.100.
122
Citado por Carlo di Carlo in Il Primo Antonioni, pg.18.
81
caráter peculiar de sua obra. As inovações não param aí. Em cada filme surge um
novo discurso que constrói uma experiência da Obra de Arte e que abre as portas
para a fantasia, a própria significação do cinema.
A década de 60 é o grande marco do cinema de Antonioni. A trilogia
composta pelos filmes L’avventura (1960) La notte (1961) e L’eclisse (1962) é
conhecida como “la malattia del sentimenti” dada a temática base da
“incomunicação” que se repete ( e se renova) em cada filme. A trilogia, também,
firma o nome do diretor italiano no cenário da cinematografia ocidental como um dos
maiores inovadores da técnica discursiva.
Vimos que, desde a época que despontou como documentarista - com Gente
del Po e N.U.-, Antonioni percebeu a necessidade de buscar seu próprio caminho
para expressar uma realidade desumanizada, advinda daquilo que ele entendia
como a perda de sentido do mundo para o homem contemporâneo e,
consequentemente, a dificuldade de viver nesse mundo. E essa necessidade o levou
para além do realismo documental de Ladri di biciclette (1948) e de Umberto D
(1952)– para citar apenas dois extremos do cássico neo-realismo acadêmico- e
constituiu o que o próprio Antonioni chama de “neo-realismo interior”.
123
Como
resultado, o realismo do diretor, apesar de retratar o cotidiano de uma classe social –
a burguesia – e fazê-lo através de temas como o dinheiro e o trabalho, faz aflorar a
deteriorização fatal dos sentimentos
124
.
Temos aqui nestes três filmes, imagens que mostram uma nova modalidade
de olhar. Um olhar reflexivo que desloca o interesse do conteúdo da narrativa para a
123
Alfonso Sastre assim define esse neo-realismo interior: “La aptitud para fotografiar cosas sutiles
como la imposibilidad de decir algo a alguien, o el hecho de una extrañeza, de un aburrimiento:
esas realidades que se producen en su pequeño círculo social, o en la realidad interior: el hombre
aislado”. em “Antonioni: fotografia de una noche”.Nuestro Cine, n.1,Madrid, julio 1961, p.30,
124
Vale a pena reproduzir trechos do que Antonioni declarou em Cannes, na apresentação de
L’avventura:o há um mundo hoje porque há um desequilíbrio entre a ciência e a moral. A
ciência conscientemente se projeta sobre o futuro e na prática ela se nega a trazer reflexões sobre
o tal futuro. A moral é apenas um empedrado e estático conjunto de valores reconhecido por todos
nós. (...) Hoje um novo homem vem surgindo, com todas as hesitações de uma criatura que nasce,
mas o que há de trágico é que ele imediatamente se encontra diante dos velhos valores,
incongruentes com os sentimentos que carrega sobre os ombros. (...) Nesses últimos anos nós
examinamos, dissecamos e analisamos todos os elementos a ponto da exaustão e não
conseguimos uma solução, algo entre o homem moral e o homem científico(...). Meu filme não é
uma lição de moral ou sermão, mas sim um caminho em direção aos sentimentos, porque como eu
disse, nossos valores morais estão ultrapassados, nossos mitos e convicções estão
ultrapassados”...em DVD A Noite “Filme de Michelangelo Antonioni”, Versátil Home Vídeo, 2004.
82
própria narrativa. Ao apontar a câmera para o vazio – mar, muro, horizonte- ou se
deter em um objeto- portas imóveis, paredes com quadros- , Antonioni faz com que
o tempo diegético tradicional dominado pela ação, se torne pesado e mais lento
porque a câmera roda, em seu tempo clássico, mais espaços de tempo e de espaço
do que o abordado pelo cine tradicional. O ritmo também se afrouxa quando a
câmera abandona as ações e se concentra em espaços e tempos de não-ação -
outra idéia que contraria o cinema tradicional onde o “fazer” e o “acontecer” são
pontos obsessivos. Mas, principalmente, Antonioni, ao convidar o espectador a
entrar com seu olhar nesse mundo de imagens fílmicas, faz com que se ponha em
xeque o hábito de olhar sem refletir, sem incomodar-se. O olhar do espectador
passa a completar a obra num gesto de presença própria, e passa, portanto, a
participar do “processo transformador”, que, como vimos, caracteriza a década de
60.
Na opinião de Seymour Chatman essa “evocação visual do silêncio e do
vazio” que faz Antonioni, o vincula ao pintor De Chirico: (...) “principalmente se
pensarmos na evocação visual que o pintor faz do silêncio, do vazio (um vazio recente, onde
os rumores humanos ainda ressoam fora do quadro.”,
125
além de ratificar a indiferença
pela palavra, como declarou Tonino Guerra, um dos seus melhores roteiristas:
“Nos filmes de Antonioni as palavras resultam somente em um comentário, uma tela de
fundo para as imagens. Quando nas primeiras sessões de revisão do roteiro discutimos esta
ou aquela cena, tudo fica a cargo das palavras. Repetimos, modificamos os longos diálogos,
nos habituamos, por fim ao modo de falar deste ou daquele personagem. Depois, pouco a
pouco, as palavras caem e afloram os gestos, os movimentos dos personagens, as
indicações visuais sobre as quais se apóia cada vez mais a história do filme. Por último
caem também os diálogos mais belos, os que mais nos haviam encantado e sugestionado
ao aparecer”.
126
Podemos apontar o máximo desse processo em L’eclisse. Neste filme, o vazio
e o nada se apresentam com uma intensidade tal que reduz o conteúdo da história a
quase nada. Os tipos humanos se movem sob o signo do nada, em especial a
125
Citado por LOJACONO, Franca Napolitano. Modernidad de Michelangelo Antonioni in Realidad
Obstinada, Buenos Aires:Ediciones Corregidor, 1992 pg. 188.
126
Citado por LOJACONO, Franca Napolitano. Op. cit. pg.193.
83
protagonista Vittoria ( Monica Vitti) a quem a câmera segue sem parar, numa
espécie de seqüência única que é toda desalento, vazio, inexistência. “How can I
explain? These are days when it seems that holding a piece of cloth, a needle, a
thread, a book or a man are the same thing.” , diz Vittoria à Ricardo (Paco Rabal)
numa cena significativa que resume com perfeição a doença de Eros contida na
proposta estilística de Antonioni. O silêncio ronda os personagens que se olham
pateticamente. O único movimento é do ventilador, que com seu ruído mecânico
aumenta a monotonia da tomada. O personagem, funcionalmente, também se
monotoniza, como também tudo que o circunda. Antonioni esgota o personagem e é
como se nos dissesse: “Nada mais tenho a dizer. É inútil a história, o ícone, o
conceito, a anedota, a mensagem, o libelo. Deixo-lhes o que de fato existe, isto é, o
cinema, isto é, a forma”.
127
Se cada objeto diante da câmera adquire um sentido próprio e manifesta o
conteúdo do ambiente, ao mesmo tempo, delata uma ausência. Assim, a presença
do objeto conota a falta do humano, em um jogo de contrastes. Se pode dizer que
com os objetos, assim como com os espaços mortos e com os tempos inertes se
poderia fazer um outro filme, com um relato puramente conotativo, que acabaria por
declarar, mediante as ausências, uma presença interior. São vazios estáticos plenos
de significação. Pensamos aqui, como matriz, nos sete minutos finais de L’eclisse,
onde nos espaços em que outrora circulavam pessoas, aparecem totalmente
desertos, ou ainda em L’avventura, (com belíssima fotografia de Aldo Scarvada),
onde as ásperas rochas da ilha Lisca Bianca induzem nosso olhar a explorar
territórios improváveis da condição humana. Em tal situação, lembramos do que
disse Antonioni: Muitas vezes para entender é preciso olhar para o vazio, isolar os
próprios pensamentos”.
128
Em La notte, apesar dos personagens, socialmente situados, se moverem de
acordo com suas tendências e sentimentos, e, bem ou mal haver um desenlace
determinado para o enredo, o tratamento dado é despojado, e a maioria das
imagens, no sentido literário, é a mais neutra possível.
Outros pontos em comum com os primeiros trabalhos de Antonioni também
estão presentes na trilogia: em Cronaca de un amore, como vimos, Antonioni se
127
Conforme José Lino Grünewald, Um Filme é um Filme, 2001, pg.125.
128
Em O fio perigoso das coisas e outras histórias, 1990, pg.151.
84
vale do gênero noir para criar a base do desenvolvimento de outros sentimentos e
acontecimentos. Em L’avventura, mais uma vez, se vale dos dispositivos narrativos
da trama policial para contar a história do desaparecimento misterioso de uma jovem
em um cruzeiro pela costa de Nápoles
129
. À medida que a busca avança, os
personagens vão se desinteressando pela vítima e começam a desejar que ela não
volte a aparecer
130
. Sandro (Gabrielle Ferzetti) e Claudia (Monica Vitti) acabam por
dar vazão aos seus mais íntimos desejos e Claudia começa pouco a pouco a ocupar
o lugar de Ana. O filme é, nas palavras de Antonioni , um “giallo in reverse”, já que a
história não explica se Anna (Lea Massari), subitamente desaparecida, foi vítima de
um assassinato, de um seqüestro, de um acidente ou de um suicídio. O drama
central não consiste em encontrar a pessoa perdida, - embora a estrutura dramática
esteja centrada em torno do problema do desaparecimento da jovem e as
conseqüências deste ato – e sim em observar de que forma este fato reativa o
drama sentimental dos outros protagonistas. A câmera abandona o desfecho dos
fatos sem uma direção clara, mostrando que não interessa uma solução plausível.
Tanto em Cronaca... como em L’avventura, mesmo que, aparentemente, os
personagens tenham uma solução para seus problemas, são guiados pela
fatalidade, afundam em um espaço viscoso e desaparecem (física ou
metaforicamente).
Vimos como em Cronaca... a causalidade estava, até certo ponto, presente.
Aqui segundo Seymour Chatman, Antonioni substitui a causalidade pela
contingência. O fato A é contingente ao fato B porque estão unidos pela montagem.
Atenuada a relação entre os acontecimentos, faz-se necessário que o espectador
relacione as partes. O enigma fica então situado entre as imagens e cabe ao
espectador construí-lo mentalmente.
131
129
“Recuerdo muy bien como me vino la idea de L’avventura. Estaba en yate con unos amigos. Solía
despertarme antes que ellos y tomar asiento en la proa, en completo abandono. Una mañana me
puse a pensar en una muchacha que desapareció años atrás y de la cual no se supo nunca más. La
habíamos estado buscando por todas partes, día tras día, inútilmente. El yate navegaba hacia Ponza,
cercana ya. Y pensé: ¿ Estará allí? Eso fue todo. (Michelangelo Antonioni, Prólogo a la edición de los
guiones de La noche, El Eclipse y El Deserto Rojo, Madrid, Alianza, 1967, pg.8.
130
Palavras de Cláudia:“Alguns dias atrás só em pensar que Anna poderia estar morta, eu sentia que
iria morrer também. Agora, eu nem mesmo choraria. Temo medo que ela
possa estar viva. Tudo isso
está se tornando assustadoramente simples.
131
CHATMAN, Seymour. The surface of the world, 1985, pg.22.
85
Carlo Di Carlo afirma que L’avventura rompe com o potencial descritivo do
cinema, o que leva o diretor a um processo de depuração e concentração das
imagens: “Todos os detalhes se reduzem ao essencial, uma cena pode ser
construída em um plano só e assim, todo o movimento pode acabar se
desenvolvendo no interior do plano”.
132
Essa técnica, que já vimos em Cronaca...(na
cena de Guido e Paola na ponte quando tramam a morte de Enrico), em L’avventura
é uma constante. A imagem das rochas é tão perturbadora que eclipsa a solução do
enigma e se torna uma verdadeira aventura do olhar.
La Notte é a história de uma festa em que participam muitas pessoas, dentre
elas o casal que é responsável pelo eixo dramático do conflito. Como em Il Grido,
estão em xeque os sentimentos desgastados entre um homem e uma mulher:
Giovanni ( Marcello Mastroiani) é um escritor que não vê sentido em seu ofício num
universo em que o comércio substituiu a cultura. Lidia (Jeanne Moreau), sua mulher,
é uma intelectual, consciente e acuada no beco sem saída da relação. Na festa, a
relação se degenera. Giovanni tentará uma saída para o impasse flertando com
Valentina (Monica Vitti). Ao amanhecer, os personagens voltarão a encontrar-se no
gramado do campo de golfe e tudo se recompõe.
Na trilogia, os primeiros-planos (closeups) continuam escassos como nos
filmes anteriores. A utilização freqüente dos planos-sequência acabam por reduzir
tudo ao mesmo nível: homens, objetos e elementos naturais. A posição dos
personagens ao lado do quadro, deixando o centro vazio ou ocupado por elementos
da cena é mantida, assim como a ausência do campo/contra-campo que expressam
e firmam o continuum do diálogo. Às vezes temos a sensação de que não existem
protagonistas por trás das falas.
Cortes de efeito, com uma ausência quase completa de fusões e os
travellings e as panorâmicas, quando utilizados, correm numa fluência perfeita e em
precisa adequação com o desenvolvimento dramático, como em L’avventura quando
temos um travelling lateral na cena da viagem de Claudia e Sandro no trem.
Em 1964, Antonioni filma Il Deserto Rosso. Rodado numa temperatura de 15
às vezes 20 graus abaixo de zero, temos a cidade de Ravena, uma zona onde o
132
Carlo di Carlo, Il primo Antonioni, 1988, pg.26
86
desenvolvimento industrial substituiu a paisagem original dos pinheirais por um
deserto vítreo e onde parece ter desaparecido toda forma de vida
133
.
Podemos dizer que Il Deserto Rosso é um filme divisor de águas na obra de
Antonioni porque, ao mesmo tempo em que potencializa a temática da
“incomunicabilidade” e mantêm alguns aspectos estilísticos das primeiras obras-
como os diálogos descontinuados e as longas seqüências-, introduz um elemento
distintivo em sua apresentação: a cor. Melhor seria dizer, “uma aventura da cor”.
Como muito bem aponta Jacques Aumont , Antonioni define a cor para invertê-la em
prol do conjunto, da história e de sua atmosfera, e cita como exemplo as chamas
amarelo-limão das chaminés das fábricas sobre o cinza da paisagem de fundo.
134
Por sua vez, Antonioni afirma que filma em cores por razões práticas, porque
a personagem principal Giuliana (Mônica Vitti), é uma mulher neurótica e em
momentos de crise vê as cores da realidade de um jeito alterado, e depois porque a
cor exerceria também uma função narrativa. De todo modo, Antonioni altera a cor da
natureza para obter o efeito desejado, efeito esse que exprime o grau de isolamento
e angústia do personagem, conforme explica numa entrevista para a RAI:
"Porque o branco-e-preto é um meio que, por si só, altera a realidade. Quando as
cores são eliminadas, certas relações de claro-escuro, certas nuanças, certos tons se
alteram. Filmar em cores é uma maneira de levar esta realidade para outro plano, que é o
plano que acontece o filme, isto é, que representa a realidade do filme. A cor representa
com mais naturalidade a realidade, é por isso que, se eu quero usar uma paisagem ou um
ambiente interior com função narrativa, com função psicológica, tenho que inserir naquela
paisagem as cores que servem naquele momento psicológico para exprimir um determinado
estado de alma, para criar uma certa sugestão. Por isto senti necessidade de adulterar e foi
algo que me surgiu começando a filmar, não estava previsto intervir e adulterar, digamos,
esta realidade procurando adaptá-la aos objetivos da minha história. Barracas de
pescadores que estão abandonadas porque o peixe tem gosto de petróleo, porque os canais
133
É uma história que sai de uma idéia que tive vendo esta paisagem e me encontrando no meio de
uma situação de uma realidade absolutamente diferente daquela que estou acostumado a viver em
Roma. (...) Os pinheirais que eram a representação natural desses lugares estão morrendo
sufocados, justamente pelos expurgos das fábricas, pelos produtos químicos que chegam às águas
dos canais do pantanal e até pela fumaça que sai das chaminés e que às vezes o sol chega a cobri-
los totalmente.(...) E essa mudança representa também a mudança, digamos, técnica da nossa vida.
Um progresso que pouco a pouco vai condicionando a nossa existência, nossa psicologia, nossa
moral e nossos sentimentos” Entrevista RAI. DVD “A Noite”, 2004
134
AUMONT, Jacques. “Pintura e Cinema:p.s,p.s,p.s.” O Olho Interminável, 2004, pg.190
87
estão cheio de resíduos das fábricas, de espumas e de ácidos.. Portanto para dar esta
impressão, achei por bem, tingir tudo a minha volta com uma certa cor.”
135
O que nos interessa é que a cor, de fato, exerce no filme um papel
preponderantemente expressivo de efeitos simbólicos, fisiológicos e psicológicos,
muito distante do sentido padronizado e previsível da cor.
Logo após os créditos sobre um fundo cinza, sobrevém uma explosão de cor
nas chamas laranjas e amarelas expelidas pela chaminé da fábrica. Giuliana , a
protagonista, usa um casaco verde e caminha entre os destroços. O choque está na
cor do casaco que atua como substitutivo da cor da natureza que circunda a fábrica.
A câmera se detêm no cinza/negro da vegetação e explora os detritos. Do mundo
cinza que rodeia a paisagem desolada das ruínas e da névoa do rio (“todo filme de
Antonioni mostra a névoa”, segundo Aumont) produzindo uma atmosfera de
sufocamento, passamos para as cores quase saturadas do interior da fábrica de Ugo
(Carlo De Pra), marido de Giuliana. Aí as formas e as cores inundam a tela e é
impossível não sentir a conexão entre a realidade figurativa e a realidade literal.
Como bem disse Chatman, a cor aqui é também matéria narrativa que se desenrola
alternativamente entre o colorido “intenso” e o “discreto”., marcando como um signo
as mudanças que sofremos ante o progresso.
136
O vermelho figura sempre aqui e ali, simbolicamente, como a cor da paixão.
Mas na seqüência onde Giuliana vai procurar por Corrado no hotel, a cor vermelha
marca claramente a fronteira do dilema de Giuliana, movida por uma angústia que
não sabe explicar. “Há algo de horrível na realidade e eu não sei o que é...” O medo
a domina, um medo que não se explica e que se dirige para as fábricas, para as
pessoas, para as cores.Parece que lavei os olhos. Mas, o que devo ver?” -
pergunta Giulliana à Corrado.
Assustada, no meio de uma crise, ela pergunta se Corrado a ama e por que
se precisa tanto do outro. As listas vermelhas cortam a tela como se dividissem o
quadro e a mente de Giuliana, que após debater-se inutilmente, acaba por ceder à
Corrado.
135
DVD A Noite, 2004
136
Um estudo completo sobre a cor em Il Deserto Rosso pode ser encontrado em S.Chatman,
1985pg. 131.
88
A câmera se aproxima com tomadas instáveis e casuais de primeiros planos
e captura movimentos de cabeças, de braços, pés, cabelos, metonimizando a
personagem para ressaltar quão difícil se faz qualquer possibilidade de síntese da
realidade. É nesta cena que sai o mais belo close de Mônica Vitti. Ela está deitada e
lentamente a câmera chega aos seus cabelos. Ela se vira e por dois segundos seu
rosto enche a tela. Giuliana dorme.
Dentro da história cinza- arrebatada aqui e ali por explosões de cor – irrompe
uma história contada por Giulliana a seu filho, e é interessante observar que durante
o contar da história, a cor se padroniza. A bela ilha da Sardenha se mostra
previsivelmente paradisíaca. Não podemos deixar de pensar que esta história
ironicamente representa o que representou o uso da cor para Hitchcock, nas
palavras de Aumont “eu também seria colorista, se quisesse”.
137
Com Il Deserto Rosso, Antonioni propicia uma verdadeira erosão da
realidade. A cor “fabricada” por Antonioni reage aqui e ali dizendo o que
tradicionalmente seria dito com palavras. Mais uma vez predomina a imagem sobre
a palavra. Mais uma vez, a vitória do olhar.
2.4. O Feminino em Antonioni e Cortázar
A mulher é o filtro mais sutil da realidade
M.Antonioni
Essa frase de Antonioni nos leva a refletir como dentro das muitas funções
simbólicas e iconográficas que ela desempenha através das personagens femininas
na literatura e no cinema, a mulher se desdobra em imagens que apontam para as
transformações sociais, políticas, culturais ou sexuais.
O começo dos sessenta, como vimos, vem com grandes mudanças no
comportamento, já que os cinqüenta chegaram ao fim celebrando um grande
desenvolvimento consumista do pós-guerra. A ideologia da liberdade circula
internacionalmente e se manifesta em vários setores, mas é incontestavelmente no
corpo que a mulher se manifesta soberana. Máquina de prazer que materializa o
desejo, o corpo feminino escapa à sua imagem consciente e transcende sua imagem
social, pois é por excelência, eroticamente transgressor.
137
J. Aumont, O Olho interminável, 2004, pg.190
89
E por isto, o erótico pede para ser lido, não somente como espelho dos
questionamentos que a época ostentava publicamente, mas como uma
manifestação superior que inscrita nas mulheres, tinha sido forçada a calar-se ou
manter-se nos cantos obscuros de uma consciência conciliada com a lei.
E é ainda no campo do corpo, que aparece a grande “vedete”: a minissaia. De
todas as cores e tecidos a invenção da inglesa Mary Quant e do francês André
Courrèges revoluciona o figurino feminino. O “tubinho” inventado por Givenchi, toma
a cor branca e toques retos e futuristas à la Courrèges e é usado com botas de cano
alto ou baixo, verniz e meias coloridas. Surge a juventude “lollipop”, ou “pirulito”, que
usa e abusa das cores berrantes e tem o caráter infantil acentuado.
Para completar o “look”, cabelos longos, franjas, laquê e cílios postiços. A
imagem de “boneca”, de “manequim” se contrapõe ao desejo de
liberdade/autenticidade.
A pílula anticoncepcional, como dissemos, permite que a mulher administre o
seu próprio corpo, consumando a possibilidade e a liberdade de comparar e
escolher o gênero e o número de parceiros. Liberta da clausura do lar, a mulher se
lança na conquista do espaço exterior, mas paradoxalmente, o triunfo do exterior, do
que está fora de si, se volta contra o interior, sobre o “eu”, e implica numa constante
busca da harmonia entre esse corpo e a mente, o que virá a gerar uma consciência
da inconstância emocional. Pressionada pelas angústias da sociedade
contemporânea, a mulher neurotiza os sentimentos, tornando-os frágeis e
reversíveis.
É neste ponto, que começamos a reconhecer as mulheres de Antonioni.
Desde La signora senza camelie (1953) até Blow-up (1966), cada mulher de
Antonioni é a exposição de um modo de busca profunda – social e psicológica – da
realização de “algo” que se contraponha ao “nada” resultante do convívio humano,
tendo sempre à frente a consciência da inconstância emocional, da ausência de
felicidade ou alegria.
Le amiche (1955), baseado no romance Tra donne sole de Cesare Pavese, as
mulheres – Clélia, Rosseta, Momina, Nene e Mariella -, apresentam, pela primeira
vez a consciência feminina de que, por trás de qualquer evidência mínima de amor,
está o fastio, o desassossego e finalmente a certeza da condição de efemeridade
dos sentimentos. Neste filme cada mulher desponta como uma resposta à
caducidade dos sentimentos.
90
Na trilogia da “incomunicabilidade”, dos filmes L’avventura (1960), La notte
(1961) e L’eclisse (1962), as mulheres, conscientes de sua situação, embora não
consigam escapar dela, dominadas pela “nóia”, se apresentam como protagonistas
de uma solidão irremediável. Cláudia, Lídia e Vittoria são vítimas desta insatisfação,
deste tédio e deste vazio e registram a insatisfação e o tédio não através de seus
diálogos, mas através de seus silêncios, suas palavras silenciosas, um silêncio que
representa uma “dimensão negativa da palavra”.
138
A leitura de Antonioni destas mudanças na imagem e na identidade feminina
será construída em Blow up através da exploração dos corpos erotizados das
modelos, como Verushka que atua como ela mesmo no filme- e das meninas que
aspiram a mesma carreira. Nesse filme, as mulheres são despojadas de qualquer
identificação. Sem nomes, ou referências particularizantes, elas são a parte anônima
de uma realidade, operando a passagem de suas contingências particulares para
uma ordem universal.
É, principalmente, através do olhar de Mônica Vitti que Antonioni realiza sua
reflexão sobre a realidade, suas idéias sobre o seu tempo e se encontra com o olhar
do espectador, num gesto de presença própria. Segundo Cláudio España Monica
Vitti, é sua “atriz-fetiche”,( onde o ator se converte em frase do texto, ou no texto
mesmo. No trabalho do ator assistimos uma produção sobre o expectador, onde a
representação de uma idéia prevalece por cima da forma que o representa: a forma
é o ator; a idéia é a formalização que o transcende. Diz ele:
Vitti es un significante específico en el texto antoniano. Tras L’avventura, el rostro
retraído y muchas veces oculto debajo del pelo rubio y abundante, la mirada distante, la
deliberada posición del rostro delante de la cámara en actitud huidiza, recatada, contribuye a
subrayar el sentido de la “mirada” del espectador, que busca de la imagen una mayor
complicidad, la necesidad de que se le obsequie al ojo curioso de la audiencia la limpieza de
una cara femenina que parece negarse a exponerse.
Vitti es un icono significante en el cuadro de Antonioni, pero con un intento
deliberado de negación sustitutiva de iconicidad”.(…) Vitti es Antonioni y Antonioni – sus
films, si se prefiere- son un texto único cuya productividad reside en la comunicación entre
138
ANTONIONI, Michelangelo. “O silêncio” in O Fio perigoso das coisas e outras histórias, 1990,
pg.29
91
una obra y la otra (al fin y al cabo, la misma) y la confianza del realizador en las virtudes de
la percepción compartida.
139
Se Vitti representa o ícone significante de Antonioni, podemos dizer que Maga
representa a suma de várias mulheres de Cortázar. “La Maga”, personagem de
Rayuela (1963), foi segundo Julio Ortega la musa benéfica” das jovens da época “y
todas querían ser la Maga”(...)
“En los años 60, las chicas se identificaban con la Maga.”(…), y todos los hombres
querían buscar su Maga, la fantasía masculina de la mujer enigmática que se relaciona con
las fuerzas más intuitivas, con una sabiduría inocente”.
140
Como Antonioni, Cortázar, com a Maga, filtra a realidade da época pelos
olhos de uma mulher. Em sua reação intensa contra aqueles que vagam pelo mundo
da lógica e da abstração buscando respostas para a realidade imposta, sem nunca
entretanto conseguir, Maga é a própria resposta, daí seu desconcerto/acerto: Maga,
para Cortázar, é fruto do questionamento feminino desta época, e, ao mesmo tempo,
um elogio romântico do mito do eterno-feminino.
Maga aparece nas primeiras palavras de Rayuela: “¿Encontraría a la Maga?”,
se pergunta Horacio Oliveira e, a partir desta pergunta se constrói a mais conhecida
personagem feminina de Cortázar.
Todo o romance está impregnado pela figura de la Maga, seja na busca de
Horacio pelas ruas de Paris, através das lembranças, das cenas e até na figura de
Talita, “su doble”. Maga é uma mulher lúcida capaz de apreender com sua inocência
todo o absurdo do mundo.
Ao silêncio atordoado das mulheres antonionianas, o questionamento de
Maga. Maga é uma personagem com idéias próprias (apesar de ser vista como
“tonta” pelos outros personagens) que ousa transgredir as regras e opor-se àquilo
com que outros compactuam. Ela tem a coragem de fazer, dizer, questionar e
exprimir totalmente suas emoções.
139
ESPAÑA, Cláudio. “Antonioni, precursor del cine sobre el hombre en crisis”, in La realidad
obstinada, 1992, pg.206
140
ORTEGA, Julio. co-editor da versão crítica de Rayuela, publicada em Paris pela editora Archivos.
Comentário tirado de “La maga de Cortázar” La Nación Revista, 7 de marzo de 2004.
92
Mas as mulheres de Cortázar nem sempre estão em um estado de
disponibilidade para os milagres da causalidade, nem sempre despertam a
sensibilidade lírica. Em sua maioria, são símbolos de busca como Claudia de Los
Premios, a erótica Hélène de 62 Modelo para armar, Celina de “Las puertas del
cielo” ou Alina Reyes de “Lejana” - primeiro exemplo claro de “doble” na obra de
Cortázar –Também é interessante que o primeiro conto publicado de Cortazar,
“Bruja” (1944), tenha como protagonista uma mulher, Paula, que realiza seus
desejos com o olhar:
Y como aquella vez, concentra su deseo en los ojos, proyecta la mirada sobre la
mesa baja puesta al lado de la mecedora, toda ella se lanza tras su mirada hasta sentir de si
misma como un vacío, un gran molde hueco que antes ocupara, una evasión total que la
desgaja de su ser, la proyecta en voluntad...”
141
Paula ou Paulina, de “Bruja”, já traz em si a marca que será impressa em
várias outras protagonistas: o “doble” de Alina Reyes, a arte de tecer “los pullovers y
las manitas se amontonan en los armarios”, como Irene de “Casa Tomada” que “se
pasaba el resto del día tejiendo en el sofá del dormitorio”, o desdenhar dos “
pretendientes regulares”, e seus “antiguos cortejantes”, assim como Irene que
rechazó dos pretendientes sin mayor motivo”.
Paula também tem a ver com Delia, de “Circe”. Paula inventa, cria bombons
“brillo de mentas, de nueces polimentadas; oscura concreción del chocolate
perfumado(...) una fina pirámide de bombones, e Delia “de menta con una crestita
de nuez”, “el relleno y los baños de chocolate o moka”.
Mas Cortázar concede a algumas mulheres pouca esperança: Buenos Aires
inventa sus mujeres, las confina irónicamente en el barrio donde han nacido y donde
eligieron el shampoo y el marido. Los cruces y la propiedad siguen siendo horizontales”.
Na personagem Anabel, a busca de si mesmo através do feminino:
Agora que eu penso, quanta razão tem Derrida quando diz, quando me diz: não
(me) resta quase nada: nem a coisa, nem sua existência, nem a minha, nem o puro objeto
nem o puro sujeito, nenhum interesse de nenhuma natureza por nada, nenhum interesse, de
verdade, porque procurar Anabel no fundo do tempo é sempre cair de novo em mim
141
O conto “Bruja” de Cortázar aqui mencionado, está publicado em Lo lúdico y lo Fantástico en la
obra de Cortazar, Editorial Fundamentos, 1985, pg.305
93
mesmo, e é tão triste escrever sobre mim mesmo ainda que queira continuar imaginando
que escrevo sobre Anabel.”
142
(grifo nosso).
Citar o que representam todas as mulheres cortazarianas seria excessivo
neste estudo e fugiria do nosso propósito primeiro que é observar como dentro do
recorte feito, Cortázar configura o erótico através do olhar de suas personagens
femininas. Assim, omitiremos muitas delas, deixando-as porém, latentes nas
entrelinhas.
As mulheres Denise, Cora e Sílvia, a adolescente sem nome que atinge o
orgasmo solitariamente no selim da bicicleta, a mulher alegoricamente representada
na moto de “La Noche de Saint Tropez”, aqui apresentadas, são essenciais para a
compreensão do mundo erótico cortazariano, onde “mulher rubia”, sem nome,
enigmática, metonimizada em um par de olhos “dos ráfagas de fango verde” de “Las
Babas del diablo” coroa de sentido o nosso propósito.
142
Em “Diário para um conto”, Fora de Hora (Deshoras), Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1982.
94
CAPÍTULO 3
ENCONTRO DOS OLHARES
3.1- ‘Las babas del diablo’ e Blow-up: a problemática de como narrar
O conto Las babas del diablo, foi publicado pela primeira vez no livro As
Armas Secretas, em 1959, e posteriormente em Los Relatos 3 -Pasajes, numa
compilação feita pelo próprio autor.
A complexidade estrutural de Las babas del diablo, sua aparência de
incoerente fragmentação, impõe uma leitura lúdica e uma necessidade de arrumar
as peças como em um quebra-cabeças, onde o movimento de uma peça pode afetar
a posição ou a sorte de outra. Esse olhar, ou seja, essa espreita vertiginosa à qual
se submete o leitor de Cortázar, que acaba por desvendar o prazeroso mistério que
engendra o discurso.
A narrativa de “Las babas...” começa questionando-se, e o leitor se encontra
frente a uma história que não pode ser contada porque escolher uma forma de
contar significa excluir todas as outras. Seu narrador, um aficionado que conta
objetivamente a história que o comoveu interrompe seu relato questionando o
próprio contar.
“Nunca se sabrá como hay que contar esto, si en primera persona o en segunda,
usando la tercera del plural o inventando continuamente formas que no servirán de nada. Si
se pudiera decir: yo vieron subir la luna, o: nos me duele el fondo de los ojos y sobre todo
así: tú la mujer rubia eran las nubes que siguen corriendo delante de mis tus sus nuestros
vuestros rostros. Qué diablos.”
143
A função de Robert Michel, enquanto narrador-protagonista é comunicar o
conteúdo da história, mas o que temos aparentemente, é um narrador disperso que
se compraz em olhar nuvens e pombos, um narrador “puritano”, “porfiado” e
“bifurcado” que se detém em detalhes pouco importantes e que se diz... morto ao
143
A edição aqui utilizada é Los Relatos 3- Pasajes, Madrid, Alianza Editorial (1976), 1985 de onde
serão tiradas todas as citações. A fim de evitar repetições de notas colocaremos entre parênteses o
ano da edição e o número da página.
95
final do segundo parágrafo. (...) mejor que sea yo que estoy muerto, que estoy
menos comprometido que el resto.(...)(1985:205). A narração segue, passando da
terceira para a primeira pessoa como num contínuo, permutando-se como na frase
de Rimbaud, Je est un autre, até que ao final do quinto parágrafo admite: pero si
empiezo a hacer preguntas no contaré nada; mejor contar, quizá contar sea como
una respuesta, por lo menos para alguno que lo lea” (1985:207)
Mas a esse fotógrafo, Robert Michel, vamos relegar uma relevância maior do
que a que ele mesmo se outorga. Seu titubeio expressivo, sua dupla nacionalidade
(franco-chileno), seu duplo ofício (tradutor-fotógrafo) e ainda sua dupla ação na
história (testemunha e protagonista) contrastam notavelmente com a despojada
segurança com que desenvolve seu trabalho com a máquina fotográfica. Michel com
a Contax sabe que irá eleger “la imperceptible fracción esencial”, certo de “atrapar
por fim o gesto revelador, uma imagem que sintetize a essência dos milhares de
outros quadros que formam a tomada em questão. A “Contax” existe, portanto,
numa relação de profunda articulação do mundo perceptivo com o olhar-câmera.
Sua relação com a outra máquina é, ao que parece, distinta: a máquina de
escrever “sería la perfección que siguiera sola” (...) “se quedará petrificada sobre la
mesa con ese aire que tienen las cosas movibles cuando no se mueven’. (1985:205)
A visão da “Remington” desarticulada, petrificada, expõe com seu ar a necessidade
de movimentos e processos no âmbito do olhar-pensar.
A cada parágrafo do conto o leitor submerge em mais um detalhe da história
sem, no entanto, saber o que realmente aconteceu. Como reconstruir o acontecido,
se o narrador joga com todos os elementos estruturais da narrativa, pluralidade de
sujeitos, oscilando entre o passado e o presente e interrompendo a linearidade dos
fatos? Como contar se a história a ser contada tem a sua objetividade perdida na
subjetividade do narrador?
Em Blow up, esta situação é apresentada através dos cortes abruptos. O filme
se abre com ruidosos estudantes vestidos de modo extravagante, com a cara
pintada de branco (mimes), dentro de um jipe, em uma praça londrina cercada de
edifícios modernos. Corte. Um grupo de pessoas sai de um prédio cinza sinistro e
entre elas, o protagonista, Thomas. Corte. Outra vez o alarido dos mimes. Corte.
Thomas e mais quatro homens conversam. Corte. Outra vez os mimes.
Esta alternância configura a experiência de Thomas. Fotografar é o ofício de
Thomas, mas ele se realiza em dois âmbitos: o primeiro ligado ao mundo fashion,
96
mundo estreitamente ligado à beleza, pela composição de corpos femininos, de luz e
principalmente de fantasia. O segundo é um book da vida de Londres, não como um
registro social, mas como uma visão particular de um artista sobre a cidade.
O filme segue, então, numa sucessão de conflitos expostos de modo lacônico e
de olhares fragmentados, gestos e espaços desconectados, que implicam em
relações não localizáveis. Do ponto de vista do tempo, essa impossibilidade de um
“ver” unificado, está reforçada por saltos, bruscas mudanças de ritmo e elipses
temporais.
O filme mostra, desde o princípio, o olhar do fotógrafo identificado com o
objetivo de sua câmera, mas os cortes são feitos de maneira que o espectador não
vê o que o fotógrafo vê através das lentes da sua câmera. A montagem substitui os
planos do que o fotógrafo vê, pelo próprio fotógrafo vendo.
Antonioni numa entrevista dada à revista Playboy em 1967, assim resume
Thomas:
A experiência do protagonista não é sentimental nem amorosa; antes uma
experiência que se refere à sua relação com o mundo, com as coisas que encontra diante
de si.” (grifos nossos)
Nessa relação com o mundo, uma característica é a incomunicabilidade
acentuada. Nem sempre se mantém o continuum do diálogo: a uma pergunta não
sucede imediatamente um tipo de resposta esperado, dentro de uma lógica habitual
de construção dramática. Os personagens falam em recitativo uniforme, como a
demonstrar uma extemporaneidade e ao mesmo tempo inserem uma noção de
ausência. É assim na cena do antiquário com o vendedor, com os telefonemas e
como exemplo maior, a cena de Thomas e a mulher de Bill quando ele conta sobre o
morto do parque e mostra a fotografia. Ela olha e diz: “sembra quase um quadro di
Bill”. Ela deixa a foto de lado, e com uma expressão pensativa, pergunta: “Vuoi
aiutarme? Io no so cosa fare”. Na verdade está se referindo à sua situação com o
marido. Em seguida, fecha os olhos e depois sai. Thomas pega o telefone, fala com
Ron, seu editor, e marca um encontro para mais tarde. O olhar de Thomas passeia
indiferente pelas situações, sem fixar-se, sem expressar-se.
Por sua vez, as personagens de Cortázar vão sendo incorporadas ao relato
sem ruído, como se fizessem parte da paisagem. A mulher loura aparece no primeiro
parágrafo, desconectada da ação imediata e sua presença não tem mais relevo do
97
que as nuvens: “tú la mujer rubia eran las nubes que siguen corriendo delante de
mis tus sus nuestros vuestros rostros”. O rapaz aparece como parte de um casal que
Michel (o fotógrafo/tradutor) vê quando chega à pracinha, “y claro palomas...” O
outro personagem do triângulo também não faz ruído: “me hubiera gustado saber
qué pensaba el hombre del sombrero gris sentado al volante del auto detenido en el
muelle que lleva a la pasarela, y que leía el diario o dormía.” (1985:211)
Lentamente, os personagens crescem através de descrições particularizantes:
o rapaz, “pájaro azorado, ángel de Fra Filippo, arroz con leche”, o homem, numa
imagem demasiadamente clownesca e patética por um lado e demasiadamente
horrível por outro, “payaso enharinado.... los ojos metidos en lo hondo y los agujeros
de la nariz negros y visibles”, e a mulher loura através da rapacidade de seus
olhos, “sus ojos negros, sus ojos que caían sobre las cosas como dos águilas, dos
altos al vacío, dos ráfagas de fango verde. Y he dicho dos ráfagas de fango verde.”
(1985:209)
No filme, Thomas é “somente um fotógrafo”, como disse Antonioni, mas
carrega consigo toda a complexidade do homem moderno e da desordem do
mundo. O olhar de Thomas é um olhar recolhido no silêncio do “ilhamento”
144
imposto ao homem. Esse olhar, entretanto, parece adquirir vida quando por detrás
da lente de uma câmera fotográfica. Seus “blow-up” constituem a matéria fundante
de sua existência, mostrada pela câmera de Antonioni durante a primeira metade do
filme.
Tanto Thomas como Roberto Michel, têm que contar o que viram mediado
pela máquina fotográfica e dar “autenticidade” a este pedaço da realidade e para tal
necessitam buscar o que está além deste pedaço, como nos explica Cortázar:
Fotógrafos da la calidad de un Cartier-Bresson o de un Brassai definen su arte como
una aparente paradoja: la de recortar un fragmento de la realidad, fijándole determinados
límites pero de manera tal que ese recorte actúe como una explosión que abre de par en par
una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que trasciende espiritualmente el
campo abarcado por la cámara”
145
144
Expressão utilizada por Ítalo Moriconi Jr., em um ensaio sobre a obra de João Gilberto Noll:
“Tentando captar o homem-ilha”. Revista Matraga n.2/3, mar/dez 87, Publicação de Letras da
UERJ.
145
Em Obra Crítica /2 (Ed. Jaime Alazraki), Madrid, Santillana (1963), 1994, pg.371.
98
Precisam, portanto, constituir uma autenticidade a essa ação que, por não ter
o respaldo da experiência advinda da vivência, estaria desprovida de autenticidade,
como reza em W. Benjamin.
(…) es decir que el fotógrafo o el cuentista se ven precisados o a escoger y limitar
una imagen o un acaecimiento que sean significativos, que no solamente valgan por sí
mismos sino que sean capaces de actuar en el espectador o en el lector como una especie
de apertura, de fermento que proyecta la inteligencia y la sensibilidad hacia algo que va
mucho más allá de la anécdota visual o literaria contenidas en la foto o el cuento.”
146
.
Já podemos aventurar que a totalidade do conto é como a realidade outra que
uma foto trata de captar: o acontecimento restrito e significativo que projetará a algo
que vai muito mais além dela mesma. Fixar limites para transcender limites. Um
gesto maquinal tem que ser, na verdade, um ato especial, em que o real se mostre à
visão do sujeito, porque a imagem rígida destrói o fluir da narrativa.
No conto, Michel perambula pelas ruas de Paris e não há uma preocupação
por parte de Cortázar de retratar a realidade social do espaço. A Paris de Cortázar é
uma Paris literária: “Eran apenas las diez, y calcule que hacia las once tendría buena
luz, la mejor posible en otoño; para perder tiempo derive hasta la isla Saint –Louis y
me puse a andar por el Quai d’Anjou, mire un rato el hotel de Lauzun, me recite unos
fragmentos de Apollinaire que siempre me vienen a la cabeza cuando paso delante
del hotel de Lauzun ( y eso que debería acordarme de otro poeta, pero Michel es un
porfiado)”.(1985:207) Vale a pena esclarecer que o poeta em questão é
Baudelaire.
147
Marcy E. Schwartz enfatiza que uma das funções de Paris nos escritos de
Cortázar é a representação de um espaço para um confronto cultural e filosófico,
além de ter, como disse o próprio Cortázar, espaços fechados que se tornam lugares
de passagem, dos quais irrompe o mundo fantástico de seus contos.
148
146
Op. cit. pg.371.
147
Conforme Davi Arrigucci Jr. em O Escorpião encalacrado, 1973, pg.267.
148
Writing Paris: Urban Topographies of Desire in Contemporary Latin American Fiction. Albany, State
University of New York Press, 1999, pg.30.
99
No filme, aos 26 minutos, se dá o início da ação. Thomas está passeando por
um parque (Maryon Park, situado na Woolwich Road, New Charlton), fotografando a
paisagem que ilustrará seu livro sobre a cidade. O silêncio é quebrado somente pelo
barulho do vento nas folhas das árvores e o acionar compulsivo do obturador da
câmera fotográfica. Por oito minutos nosso olhar passeia pelo parque onde Thomas
trabalha fotografando a paisagem, pássaros e nuvens (e aí lembramos do narrador
do conto “ahora nubes. Y palomas). A câmera nos integra no lento passeio do olhar
de Antonioni. Aí Thomas vê um casal e fotografa. Pula a cerca e se esconde atrás
de uns arbustos em busca do ângulo ideal para fotografá-los (neste momento vemos
a cena através da lente da câmera do fotógrafo). A mulher vê Thomas e tenta
recuperar o filme. Discutem. Durante três minutos e trinta e quatro segundos vemos
o que Thomas viu. Um efeito curioso em algumas tomadas da cena do parque é o
espelhamento: A câmera de Antonioni olha para Thomas fotografando, enquanto
Thomas fotografa olhando diretamente para a câmera de Antonioni.
Para um melhor entendimento, faz-se necessário um detalhamento do que
Thomas viu nesta seqüência do parque:
1) Um casal – ele mais velho do que ela - subindo pela encosta do
gramado.
2) A mulher puxando o homem pela mão em direção a uma clareira do
gramado.
3) O casal, desta vez mais ao fundo do gramado.
4) O casal se abraçando e se beijando.
5) O casal separado e a mulher olhando para vários cantos do parque.
6) A mulher puxando o homem para baixo de uma árvore: se abraçam
e se beijam.
7) O casal vê Thomas e a mulher corre em direção a direção ele.
8) A mulher no topo da escada levanta a mão num gesto de defesa e
grita para Thomas parar.
9) A mulher corre de volta para a clareira.
10) A mulher pára por uns instantes sob a árvore, continua a correr até
que desaparece no meio dos arbustos ao fundo.
No conto, a ação da foto se desenrola a partir do parágrafo 11 (o conto tem
21). É um domingo 07 de novembro e Michel, após perambular pelas ruas de Paris,
100
se senta no parapeito do rio na ponta da ilha e se deixa envolver pelo sol. Vê um
casal e imagina um casal de namorados, mas ao constatar a grande diferença de
idades- “se parecía mucho más un chico com su madre”, e o comportamento de
ambos, se lhe configura uma cena de sedução. Fotografa a cena. A mulher exige
que lhe entregue o filme, eles discutem e o adolescente foge. Ele acredita ter salvo o
jovem das garras da mulher.
“Curioso que la escena (la nada, casi: dos que están ahí, desigualmente
jóvenes) tuviera como un aura inquietante. Pensé que eso lo ponía yo, y que mi foto,
si la sacaba, restituiría las cosas a su tonta verdad.” (1985:211)
(…) Metí todo en el visor (con el árbol, el pretil, el sol de las once) y tomé la
foto. A tiempo para comprender que los dos se habían dado cuenta y que me
estaban mirando, el chico sorprendido y como interrogante, pero ella irritada,
resueltamente hostiles su cuerpo y su cara que sabían robados, ignominiosamente
presos en una pequeña imagen química.” (1985:213)
O olhar que observa a cena conjetura sobre a vida do jovem inexperiente, “al
filo de los catorce, quizá de los quince, se lo adivinaba vestido y alimentado por sus
padres...” fabulando sobre o que acontece “...sin un centavo en el bolsillo...”
aconteceu e deveria acontecer com ele “el muchacho acabaría por pretextar una
cita, una obligación cualquiera, y se alejaría tropezando y confundido” (1985:211). E
sobre a mulher “monstruos ni siempre repugnantes", uma mulher que “invitaba a la
invención, dando quizá las claves suficientes para acertar con la verdad”. Elabora
portanto, mais do que o “narrável” em si, o próprio olhar, seu modo de ver,
constituindo uma atenção maior àquilo que teria passado desapercebido aos olhos
de qualquer pessoa do que o fato a ser contado. O que justifica a narrativa da cena
é a experiência do olhar, de como e porque se vê o que se vê.
É no centro do filme exatamente (58 minutos), na seqüência da ampliação
das fotos logo após a saída da “mulher do parque” de sua casa, que Thomas
pressente que há algo de estranho, algo que provavelmente ele assistiu mas não viu
na cena do parque. Por que a mulher o teria seguido até o estúdio para recuperar o
rolo do filme? Thomas tenta fazer emergir através de ampliações sucessivas aquilo
que escapou ao seu olhar na tomada das fotos. Thomas de Operator, passa a
Spectator.
101
Fotos ocupam a tela. Não há troca de plano ou movimentos de câmera que
deixem de fora o olhar do fotógrafo. Procuramos juntos com Thomas algo que
“aconteceu em off” enquanto fotografava no parque. Em cima do aparelho, 35
negativos, dispostos em 7 tiras de 5 fotos cada.
A primeira foto a ser ampliada é uma de plano aberto da mulher puxando o
homem pela mão. Em seguida, a dos dois abraçados - ele de costas para a câmera
e ela olhando para algo fora de campo; a terceira é a dos dois abraçados e a mulher
olhando na direção dos arbustos; a quarta é uma ampliação da cerca (entre a
vegetação se nota uma mancha como uma figura de um homem que se esconde
atrás da folhagem): a quinta é a da mulher com o braço levantado; a sexta é a da
mulher meio afastada, preocupada, com o homem segurando seu braço; e a última,
é a do casal olhando na direção da câmera do fotógrafo. A foto crucial é a terceira,
cujo resultado das três ampliações é uma olhada em diagonal. É este olhar que
instiga Thomas e o faz traçar uma linha partindo desse olhar em direção aos
arbustos. Surge então, um objeto sem um papel determinado na cena: o revólver.
É, portanto, seguindo a direção do olhar da mulher que Thomas chega à mão
que empunha o revólver. Na ampliação se revela um abstrato desenho de pequenos
pontos, onde o referencial da imagem é eliminado e o que resta é a visão da mais
pura subjetividade do espectador, porque pára aí. A mão que segura a arma é
cortada pelo limite do quadro. No curso destes 16 planos em que emerge o revólver,
as ampliações que Thomas faz se misturam com as ampliações feitas pela câmera
de Antonioni.
Algo fantástico aconteceu. Fantástico. Alguém tentava matar uma pessoa.
Salvei a vida dele”-,
diz Thomas para Ron, o editor.
Voltemos ao conto para encontrar a mesma “mirada”:
Pasaron varios días antes de que Michel revelara las fotos del domingo(...). El
negativo era tan bueno que preparó una ampliación; la ampliación era tan buena que hizo
otra más grande, casi como un afiche.(…) . De toda serie, la instantánea en la punta de la
isla era la única que le interesaba; fijó la ampliación en una pared del cuarto, y el primer día
estuvo un rato mirándola y acordándose, en esa operación comparativa y melancólica del
recuerdo frente a la perdida realidad; (…) Estaba la mujer, estaba el chico, rígido el árbol
sobre sus cabezas, el cielo tan fijo como las piedras del parapeto. (…) Los dos primeros
102
días acepté lo que había hecho, desde la foto en sí hasta la ampliación en la pared, y no me
pregunté siquiera por qué interrumpía a cada rato la traducción del tratado de José Norberto
Allende para reencontrar la cara de la mujer, las manchas oscuras en el pretil. La primera
sorpresa fue estúpida; nunca se me había ocurrido pensar que cuando miramos una foto de
frente, los ojos repiten exactamente la posición y la visón del objetivo (…) Desde mi silla,
con la máquina de escribir por delante, miraba la foto ahí a tres metros, y entonces se me
ocurrió que me había instalado exactamente en el punto de mira del objetivo. Estaba muy
bien así; sin duda era la manera más perfecta de apreciar una foto, aunque la visión en
diagonal pudiera tener sus encantos y aun sus descubrimientos.” (1985:214-215)
“Visión en diagonal” e “sus descubrimientos”. É interessante notar como este
olhar foi tão bem aproveitado no filme de Antonioni.
No filme, a campainha da porta toca. Entram as meninas e tem início um jogo
de risadas, sedução e sexo. A orgia sugerida nesta cena contrasta brilhantemente
com a seqüência da modelo Verushka. Na cena das meninas, onde o ato sexual
provavelmente acontece, a câmera de Antonioni se ausenta, deixando para o
espectador a fabulação do fato. O que vemos é o rasgar das roupas e dos painéis
que servem como fundo para as fotos, e concomitantemente, o ruído das risadas. Já
nas cenas do estúdio com a modelo Verushka, aos movimentos lentos das primeiras
tomadas – cortados e congelados pela câmera de Antonioni – se segue um aumento
do ritmo das tomadas das fotos que simula um ato sexual.
149
Após a saída das meninas, Thomas volta para as fotos, com uma lupa
examina a foto do parque - que não faz parte da seqüência anteriormente revelada-,
fotografa e amplia.
Numa nova seqüência de ampliações, vemos uma foto onde os grãos
explodem e deixam ver um corpo estendido no gramado. No abstrato desenho de
pequenos pontos, resultado destas sucessivas ampliações, o referencial da imagem
é eliminado e o que resta é o máximo do aumento: o nada. Um quadro abstrato –
como o de Bill, o pintor amigo de Thomas, quando pretende distinguir uma figura
humana no fundo difuso de uma pintura moderna. Olhar é um exercício lento, nem
sempre frutífero.
149
Notamos que o “pudor” de Cortázar com as palavras eróticas aparece em Antonioni com a imagem
erótica explícita.
103
Não há relação entre este nó e o resto do filme. Os quadros do parque não
coincidem com os negativos revelados anteriormente (há deslizamentos sutis,
alguns gestos modificados), e ainda, como encaixar ao mesmo tempo, na série de
fotos do parque, o plano do cadáver, já que quando este conjunto foi registrado o
homem ainda se encontrava vivo?
Esta montagem parece abrir outra linha de relato.
Com estes negativos, puros fragmentos de espaço, figuras flagradas num
gesto, num olhar, com a ampliação ou o detalhe do conjunto, as múltiplas linhas
narrativas podem ser constituídas e cada uma aparece como variante da outra.
A possibilidade de sentido varia de acordo com a ordem das figuras (qual será
o lugar da cerca?), da articulação das olhadas (o olhar da mulher se dirige para a
direita ou para a esquerda?) e da orientação dos gestos (onde colocar a figura
feminina quando ela levanta a mão como para defender-se?)
Cada linha é então uma série possível entre outras incompatíveis: preencher
o vazio e a busca de sentido é abrir-se a vários e múltiplos sentidos.
Thomas sai (sem a máquina) e no parque procura o local exato da foto.
Encontra o cadáver. É o corpo do homem da foto, mas a imagem é fake. Esse morto
de olhos desmesuradamente abertos, paralisado e maquinal, reduzido à mais pura
objetividade de uma câmera nos remete ao morto do conto, que, caído vê somente o
céu, o sol, as nuvens “y las palomas, a veces, y uno que otro gorrión”, tombado
fantasticamente no espaço da foto.
A relação entre a realidade capturada pela foto e a imagem do corpo morto é
a grande teia. Thomas deixa o parque correndo. Em casa, constata que os filmes e
os negativos foram roubados, com exceção de um: do cadáver.
Neste centro, o grande descentramento exercido sobre o filme porque
inscreve no temporal (um antes possível, um depois possível) a reserva de outra
história possível porém inalcançável, como ondas que se dispersam pelo resto do
filme. Esta seqüência inscreve outra história, ou o reverso da história...
Esta parada, esta inversão do trajeto narrativo, está ligada ao aparecimento
da fotografia: imobilidade, parada de gestos, indiferença pelo devir da
representação.
Nestes planos do centro se chega a anular a cor, a olhada, o movimento e o
ruído, que até este momento, serviam para inscrever as marcas do fotógrafo na
gênesis da fotografia. Restaura-se somente o som do vento e os ruídos das folhas.
104
Em princípio, esta montagem parecia abrir outra linha de relato (uma vez que
o interrompeu, podia recomeçá-lo) com a aparição efetiva do cadáver, mas o que se
confirma de noite quando Thomas encontra o cadáver, desaparece de dia e com ele
todo rastro de uma história. O cadáver não está mais aí...
Como estabelecer a série de fotos em uma linha narrativa? O filme tem, de
fato, uma linha narrativa, só que em seu centro está incluída esta atividade de
montagem que inverte as linhas que constituem a narração, algo como uma “mise
em abyme” em negativo. O instante da morte não está (a não ser como uma marca:
o negativo que sobrou depois do roubo) e não pode ter lugar na seqüência, portanto,
não há o que contar. A linha narrativa sofre fragmentações internas. O descompasso
entre o desenvolvimento cronológico do relato e sua interpretação lógica cria um
vazio não aceitável em um regime de relato clássico. Sua “história” terminaria, então,
no olhar da mulher.
Vejamos o final do conto, dando especial atenção no detalhe da paisagem e
no enquadre da mulher:
“Creo que el temblor casi furtivo de las hojas del árbol no me alarmó, que seguí una frase
empezada y la terminé redonda. Las costumbres son como grandes herbarios, al fin y al
cabo una ampliación de ochenta por sesenta se parece a una pantalla donde proyectan
cine, donde en la punta de una isla una mujer habla con un chico y un árbol agita unas hojas
secas sobre sus cabezas.
Pero las manos ya eran demasiados. Acababa de escribir: Donc, la seconde clê réside dans
la nature intrinsèque des difficultês que les sociêtês – y vi la mano de la mujer que
empezaba a cerrarse despacio, dedo por dedo. De mí no quedó nada, una frase en francés
que jamás habrá de terminarse, una máquina de escribir que cae al suelo, una silla que
chirría y tiembla, una niebla.”
(…)La foto había sido tomada, el tiempo había corrido; estábamos tan lejos unos de otros, la
corrupción seguramente consumada, las lágrimas vertidas, y el resto conjetura y tristeza. De
pronto el orden se invertía, ellos estaban vivos, moviéndose, decidían y eran decididos, iban
a su futuro; y yo desde este lado, prisionero de otro tiempo, de una habitación en un quinto
piso, de no saber quiénes eran esa mujer, y ese hombre y ese niño, de ser nada más que la
lente de mi cámara, algo rígido, incapaz de intervención.”
(…) De la mujer se veía apenas un hombro y algo de pelo, brutalmente cortado por el
cuadro de la imagen (….) (1985:216-217)
105
O narrador de Cortázar vê e detecta a imperceptible fracción ideal de um
momento de sedução, algo tão antigo como a própria história da vida. A mulher,
cujos olhos são “dos ráfagas de fango verde”, lhe dá o que imaginar. O narrador
poderia misturar o que viu com o que imaginou e extrair um “sentido”, para contar
uma história. Mas nada disso faz. Olha o jovem com a mulher, conjectura, fotografa,
e se diz morto. O que permanece é a fixidez de um olhar que observou alguém,
aquém ou além das palavras, no presente (ahora pasa una larga nube gris...), ou no
passado revivido pela lembrança ( era un domingo, 7 de noviembre...)ou ainda num
passado-presente (aún lo veo...)
Por isto não é casual que em “Las babas..., a possibilidade de uma liberação
verbal do contar, seja o centro da problemática. Suscitado por este espaço movido
pela transgressão, se descobre o jogo e o drama do narrador, isto é, a ruptura formal
com a narrativa clássica e a tentativa de contar uma história desenvolvem o debate
estético de um conto que se refaz a si mesmo a partir de sua negação enquanto tal.
O que morreu? O narrador? A narrativa não foi, porque a história aí está,
justificada pela experiência de um olhar que investe no próprio prazer de olhar. A
sabedoria exigida por aquele que vai contar, apresenta-se de modo invertido, pois
desvaloriza a ação em si enquanto objeto do saber e formula um apelo ao olhar do
leitor para que use a sua imaginação.
Silviano Santiago diz que este olhar “é desejo e palavra que caminham pela
imobilidade, vontade que admira e se retrai inútil, atração por um corpo que, no
entanto, se sente alheio à atração, energia própria que se alimenta vicariamente de
fonte alheia. Ele é o resultado crítico da maioria das nossas horas da vida
cotidiana”
150
Nesse sentido, a ação observada pelo narrador, se não pode ser contada, e o
não contar implica em um silêncio irmão da morte da narrativa, termina por ser
incomodamente “auto-suficiente”. As palavras não têm sentido porque já não existe
mais o olhar que elas recobriam.
O jovem fotografado por Roberto Michel pode morrer errando, ou morrer
acertando. De nada vale a “experiência” privada do narrador, responsável no
150
SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno” in Nas Malhas da Letra, Rio de Janeiro, Rocco,
2002, pg.59.
106
direcionamento da conduta. Palavras falhas e falíveis não darão conta do “sentido”
necessário para que a história se torne uma história “exemplar”, que coteje as
experiências sob uma forma mútua de conselhos, cotejo que seria semelhante ao
encontrado na narrativa “clássica” e que conduziria a uma “sabedoria prática de
vida”, e em virtude dessa “incomunicabilidade” da experiência se torna impossível
dar continuidade ao processo de aprimoramento do homem na sociedade.
Por isso, hoje – ao contrário do que pensava Walter Benjamin – não se pode
mais “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo
narrada”. As narrativas hoje, são por definição, quebradas.
151
Sempre a recomeçar.
Essa é outra lição que depreendemos de todas as grandes rebeliões que abalaram
os sessenta.
Para evitar o silêncio total, no entanto, cria-se um elo cúmplice entre a
narração e o leitor/ espectador sustentado pelo olhar. O que está em jogo não é o
surgimento de um novo tipo de ação, inteiramente original, mas a maneira de
encará-las. Podemos encará-las com a sabedoria da experiência individual,
intransmissível, ou simplesmente olhá-las. Não há, pois uma sabedoria vencedora,
privilegiada. “Há um conflito de sabedorias na arena da vida, como há um conflito
entre o narrador e a narração na arena da narrativa”.
152
A narrativa de hoje existe para falar da pobreza da experiência, como
dissemos, mas também da palavra enquanto processo de comunicação. O conto diz
o que o narrador olha: uma cena de sedução. O filme mostra o que o narrador olhou:
uma cena de sedução. Cortázar, especialmente em Las babas..., exibe seu
incômodo com as formas domesticadas da narrativa. A perda da voz narrativa ou o
ponto de vista, equivale a uma liberação, já que subverte, pelo menos, um dos
princípios centrais do humanismo da Ilustração: o poder da linguagem para
configurar o mundo.
O mundo que se torna cada vez mais problemático e seu destino cada vez
menos sujeito ao nosso controle, apresenta-se no filme de Antonioni, como um
questionamento sobre este próprio mundo, mesmo sob o perigo de nada dizer.
151
SANTIAGO, Silviano. “O narrador pós-moderno” Nas Malhas da Letra, 2002,pg.55.
152
SANTIAGO,Silviano. Pus cit. ,pg.55.
107
Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta por sua vez,
passa a ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar. Mas, como diz La Palisse,
nem tudo que se olha se vê.
3.2. “Las babas del diablo” e Blow-up: o Feminino e o Erótico
A seguir, tomaremos como base de referência para discussão, uma parte do
capítulo “Imagens da Imagem” do livro À Meia Luz. Cinema e Sexualidade nos anos
70 do sociólogo Paulo Menezes, onde fala das personagens femininas no filme
Blow-Up:
“Antonioni constrói as suas mulheres sempre como personagens sem vontades, confusas e
aparentemente imbecis. São meras imagens que alternam de maneira nem sempre sutil os
seus conteúdos: nunca sabem o que querem (como a vizinha e a dona da loja de
antiguidades), ou são
puro corpo destituído de ação ( como as modelos), ou acham que
estão conseguindo o que querem sem se dar conta da inutilidade de seus esforços ( como
as duas do ateliê e também a que vai buscar o filme). Todas mostram-se fúteis, nas
vontades ou nos motivos, na forma pela qual vêem e inserem no mundo: pelos vestidos,
pelo marido pintor, pelos “nepais” e pelos “marrocos”. Não sabem o que querem e quando
sabem nada conseguem. Não sabem para onde vão. Não possuem identidade própria nem
nada que as distinga uma das outras. Nenhuma delas nem ao mesmo tem nome. São
“pessoas”que se misturam e se reduzem às coisas que as envolvem, aos espaços nos quais
se encontram. São manchas a confundir ainda mais a marcha dos acontecimentos. São
aparições desconexas no fluxo dos acontecimentos que desviam nosso herói da busca
incessante de sentido. São duplos do quadro de Bill, onde em princípio nada se vê, e onde,
com alguma sorte, pode-se olhar bem e por fim encontrar alguma coisa que tenha sentido
no meio de tantos borrões. Mas que nunca se encontra. Parecem ser a expressão fugaz da
ausência de conteúdo, a materialização objetual de um grande vazio, a recorrência
incessante e inexorável de sua redução a menos do que nada. Com apenas uma pequena
exceção: a personagem vivida por Vanessa Redgrave. Ela é a única que parece apresentar
alguma vontade ao mesmo tempo que demonstra saber o que faz e o que quer, por mais
que, mesmo para ela, as coisas nunca saiam do jeito esperado. Além do que, ela também,
como as outras, vem assim como vai, sem deixar rastros ou pistas.”
153
153
MENEZES,Paulo.”Imagens da Imagem” (Blow-up, Michelangelo Antonioni, 1967) em À Meia-Luz
Cinema e sexualidade nos anos 70. São Paulo, Editora 34 Ltda, pgs.25/26
108
Nosso propósito não é desqualificar ou aprovar as idéias de Paulo Menezes,
porque cada autor é responsável exclusivo de seus pontos de vista, mas chama
atenção que o autor se proponha analisar a sexualidade dos 70 e que, como
sociólogo tenha deixado de mencionar os fenômenos da cultura da época em
questão, ponto importante para o entendimento da leitura de Antonioni do universo
feminino no filme Blow up.
Primeiro, lemos que no filme, segundo o autor, Antonioni constrói “as
(mulheres) personagens sem vontades, confusas e aparentemente imbecis”.
Pensamos que, na verdade, estas mulheres apontam para a problemática da
realidade circundante, filtrando, como o autor mesmo diz mais adiante, “a
materialização objetual de um grande vazio”, fruto da reflexão que faz Antonioni
sobre a modernidade no contexto social, que, como vimos nas palavras de Barthes,
não é uma luta contra o velho mundo, e sim poder seguir as mudanças do tempo no
interior dessas pequenas histórias em que a existência de cada um constitui a
medida. Além disso, é através destas mulheres que Antonioni descreve muito
concreta e imediatamente os novos parâmetros de comportamento e o novo gosto
surgido nos anos 60, explorando principalmente o corpo que se apresenta sobre
uma dualidade: fraco, enquanto objeto em si, mas poderoso enquanto objeto do
olhar masculino, porque sua força consiste em se saber olhado. Portanto, é a partir
do olhar de Thomas que as mulheres adquirem sua força. Em última instância, o
poder do corpo reside na consciência que tem de ser objeto do outro na política do
olhar. Olhar essa consciência é sentir o seu poder.
Sabemos que Antonioni delega à imagem a função de comunicar sua visão
do mundo porque, para ele, as imagens dizem mais do que as palavras. Assim, toda
carga da “incomunicabilidade moderna” é retratada através do esvaziamento das
personagens. Cada uma delas é apresentada como uma peça de um grande jogo, e
cabe ao espectador organizar e conectar as peças para captar a visão de Antonioni
sobre a realidade moderna.
Nenhuma delas nem ao menos tem nome”. E aí, salta aos olhos a questão
da particularidade: nomeando, particularizo. Deixando-as no anonimato, são
“pessoas”, são “mulheres”, são “gênero”, e como tal, uma representação social. Se é
dado a todas elas o mesmo tratamento, fica patente uma leitura do gênero e não
uma interpretação do comportamento de uma mulher em particular.
109
São aparições desconexas no fluxo dos acontecimentos que desviam nosso
herói da busca incessante de sentido”. Como no filme L‘avventura, a estrutura
dramática de Blow-Up está centrada em torno de uma busca: no primeiro, a de uma
pessoa desaparecida e no segundo o sentido de uma foto tirada em um parque. Mas
tanto num como noutro, o drama central não consiste em encontrar a pessoa
desaparecida, nem o sentido da foto, e sim em observar de que maneira este fato
reativa o drama dos demais personagens.
Em Blow Up, a leitura de Antonioni das mudanças na imagem e na identidade
feminina será construída através da exploração de corpos sem nome, mulheres-
símbolo da época. É através destas mulheres que Antonioni descreve muito
concreta e imediatamente, como dissemos, os novos parâmetros de comportamento
e o novo gosto surgido nos anos 60. As jovens de caras pintadas da passeata “Not
war”, as “lollipops” que aspiram à frívola carreira do glamour, a moça do antiquário
que busca um caminho “out of nowhere”, que tanto pode ser Marrocos ou o Nepal, a
vizinha que copula sem amor e se deixa ver copulando, as mulheres que participam
das festas animadas pelas drogas e pelas orgias sexuais, são ao fim e ao cabo, a
transgressão da ideologia da liberdade - sufocada e oprimida durante tantos anos –
manifestada soberanamente no corpo. O corpo dispensa palavras, o continuum dos
diálogos, rompe o dogma, fonte de nossa cegueira. Por isso, Thomas impõe que as
modelos fechem os olhos. Mudas e cegas, seus corpos deverão falar por si sós, ou
melhor, a imagem abrirá o campo para o erótico e o corpo falará.
Tomemos a cena com a modelo Verushka. Quando Thomas entra, ela já está
esperando, e a troca de palavras entre os dois é fragmentada (palavras não
interessam). Na tomada da primeira foto, o que vemos pela lente da câmera de
Thomas (atenção, o fotógrafo Antonioni está por trás), é uma imagem de perfeita
plasticidade. Sobre um fundo negro recorta-se a figura da modelo. Uma pele branca
parcialmente coberta por um tecido negro e brilhante. Plumas invadem a lateral do
quadro. E ela, imóvel, exibindo um corpo que se apresenta dual: frágil enquanto
objeto em si e poderoso enquanto objeto do olhar; sexualizado como imagem,
falsamente possuído enquanto corpo.
Os “blow up” seguintes, com Thomas sobre ela, gritando Yes, yes, simulando
um ato sexual, concluem magistralmente esta cena silenciosa que se contrapõe à
110
cena da orgia com as meninas, onde provavelmente tudo acontece e a imagem
nada registra
154
, como já tivemos oportunidade de apontar.
Assim, a imagem dessas mulheres em Blow up está impregnada de
“realidade”. É importante notar que se geralmente, Antonioni exprime suas reflexões
através de um olhar feminino, Thomas, apesar de pertencer ao sexo oposto, traz em
seu olhar “o filtro” feminino do qual Antonioni sempre se vale para revelar seu próprio
olhar- observador do mundo que o cerca.
Já dissemos que para Antonioni as imagens dizem mais do que as palavras,
logo toda carga da “incomunicabilidade moderna” presente em Blow up está também
retratada através do esvaziamento do particular das personagens femininas. A
ausência do “nome” é uma passagem do plano pessoal para um outro plano,
impessoal, que excede o particular para abarcar o universal.
A personagem vivida por Vanessa Redgrave, sem dúvida é a grande exceção
e, arriscaríamos dizer que esta mulher condensa em si o grande espaço aberto para
o início do diálogo que propomos entre Antonioni e Cortázar. Vejamos.
No conto de Cortázar, temos “la mujer rubia”:
Sem nome no conto assim como no filme, ela aparece já no primeiro
parágrafo do conto, o que indica tratar-se de um elemento relevante, como ensina
Cortázar - “tomen ustedes cualquier gran cuento que prefieran y analizen su primera
página. Me sorprendería que encontraran elementos gratuitos, meramente
decorativos”.
155
Aparentemente desconectada da ação imediata, sua presença não
tem mais relevo do que as nuvens, mas, lentamente, vai crescendo:
“(...) de la mujer recuerdo mucho mejor su cuerpo que su imagen. Era delgada y
esbelta, dos palabras injustas para decir lo que era y vestía un abrigo de piel casi negro,
casi largo, casi hermoso. Todo el viento de esa mañana le había pasado por el pelo rubio
que recordaba su cara blanca y sombría – dos palabras injustas – y dejaba al mundo de
pie y horriblemente solo delante de sus ojos negros, sus ojos que caían sobre las cosas
como dos águilas, dos saltos al vacío, dos ráfagas de fango verde. No describo nada, trato
más bien de entender. Y he dicho dos ráfagas de fango verde”. (1985:209) (grifo nosso)
154
Como já comentamos anteriormente, é flagrante o zelo que Antonioni tem pelas cenas “eróticas”.
Em nenhum de seus filmes o sexo resplandece na tela, embora esteja insinuado. Esta cena com as
meninas, por exemplo, nos remete a outra orgia, a de Il Deserto Rosso , que apesar de mostrar os
casais juntos na cena, não os víamos “em ação”.
155
“Algunos aspectos del cuento”, in Obra Crítica 2, 1994, pg.372
111
Na descrição da mulher nada é fortuito. A repetição do “casi” e das “dos
palabras injustas” destaca e caracteriza a incerteza que se desprende da palavra ao
tentar descrevê-la. Porém, entre estas palavras e a imagem o narrador busca
entender “las dos ráfagas de fango verde”. Qual o estatuto, afinal, deste olhar?
Veremos que a mulher “esa mujer invitaba a la invención, dando quizá las claves
suficientes para acertar con la verdad.”…
Um jogo de sedução é armado pela mulher que, aos olhos do narrador
ingressa no terreno erótico, profetizando uma “aura inquietante.”:
(…) La mujer empezaría a acariciarle la cara, a despeinarlo, hablándole ya sin voz, y de
pronto lo tomaría del brazo para llevárselo. (…)ahora la mujer había girado suavemente
hasta poner al muchachito entre ella y el parapeto (…) parecía como cernida sobre él (su
risa, de repente, un látigo de plumas). La mujer avanzaba en su tarea de maniatar
suavemente al chico, de quitarle fibra a fibra sus últimos restos de libertad, en una lentísima
tortura deliciosa.(…) (1985:212)
A foto é tirada e o narrador imagina “los finales posibles”en una lentísima tortura
deliciosa”:
(…) puse en orden la escena, los besos burlones, la mujer rechazando con dulzura las
manos que pretendían desnudarla como en las novelas, en una cama que tendría un
edredón lila, y obligándolo en cambio a dejarse quitar la ropa, verdaderamente madre e hijo
bajo una luz amarilla de opalinas, y todo acabaría como siempre, quizá, pero quizá todo
fuera de otro modo, y la iniciación del adolescente no pasara, no la dejaran pasar, de un
largo proemio donde las torpezas, las caricias exasperantes, la carrera de las manos se
resolviera quién sabe en qué, en un placer por separado y solitario, en una petulante
negativa mezclada con el arte de fatigar y desconcertar tanta inocencia
lastimada.(1985:213)
Porém a sedução da mulher sobre o adolescente, toma pinceladas de
perversão:
(...) aquella mujer no buscaba un amante en el chico, y a la vez se lo adueñaba para un fin
imposible de entender si no lo imaginaba como un juego cruel, deseo de desear sin
satisfacción, de excitarse para algún otro, alguien que de ninguna manera podía ser ese
chico”.(…) ahora la mujer le hablaba al oído, y la mano se abría otra vez para posarse en su
112
mejilla, acariciarla y acariciarla, quemándola sin prisa. (…) esa mujer no estaba ahí por ella
misma, no acariciaba ni proponía ni alentaba para su placer, para llevarse el ángel
despeinado y jugar con su terror y su gracia deseosa.(…) (1985: 217)
Para o narrador, a mulher é a “máquina” que seduz, que corrompe, e
principalmente, é a única que sabe para quem realmente seduz. Transformando a
sedução da mulher numa perversão e atravessando com um Eros cruel todo o
relato, apresenta o que seria a própria morte (dele e da narrativa).
Conjugados, mulher e morte revelam uma das linhas de força do pensamento
de Bataille, onde a morte é a única saída possível para o desejo exarcebado. A
última imagem do narrador de “Las babas..”, olhando para o céu comprova nossa
idéia. Não seria esse último olhar uma resposta à sua expectativa do inexprimível ao
qual só se chega por meio da ruptura e do dilaceramento? “Encontrei-me diante
daquilo que – imagino- eu sempre esperara: assim como a guilhotina espera a
cabeça que vai decepar.”
156
No filme ela aparece, pela primeira vez, quando Thomas fotografa em um
parque. É portanto, no olhar da mulher do parque que Thomas procura a resposta
estampada na foto, para tudo aquilo que “já foi”, como diz Barthes. O mistério que
ronda a presença feminina não pode ser revelado pela foto, mesmo que se amplie
incansavelmente esse instante. Ao seguir a linha do olhar proporcionado pela
mulher, para ver o que ela olha, ele se depara com um outro mistério. O revólver. A
experiência do ocorrido ontem que a mulher observa é uma visão do passado no
presente.
A mulher, portanto, em Blow up é mais do que do que um filtro sutil da
realidade. Além de transcodificar os discursos destes anos sobre a comunidade, o
amor, a livre expressão da sexualidade, o individualismo e a revolta,
metaforicamente, sua imagem é associada a segredos, a algo que permanece
obscuro atrás da máscara, infranqueável ao olhar.
O tratamento da antagonista, esta personagem feminina sem nome no conto
e no filme, concentra em si o grande núcleo unificador das duas histórias, porque é
ela aquela que realmente vê e, principalmente, é a única que sabe a resposta do
156
BATAILLE, G. A História do olho, São Paulo, Cosac & Naify, 2003,pg.116.
113
mistério da foto. E é sob o olhar desta mulher que Cortázar e Antonioni se
encontram.
114
Capítulo 4
Considerações Finais.
Concluindo nosso estudo evocaremos certos momentos buscando
complementar nosso objetivo. Recapitularemos o que foi dito até então -sem
entretanto refazer passo a passo o caminho trilhado- e faremos algumas
considerações sobre o conto e o filme que julgamos pertinentes no intuito de
avançar um pouco mais no labirinto, no nó de relações possíveis entre os dois..
Num primeiro momento, após ler o conto de Julio Cortázar, “Las babas del
diablo” e assistir ao filme de Michelangelo Antonioni, Blow up , a impressão de
conjunto é conflitiva. Se é possível afirmar que existe um diálogo entre elas, ele se
dá em determinados níveis, sendo que em outros, elas não se comunicam com tanta
facilidade. Poderíamos dizer que uma das formas de comunicação entre elas se
estabelece quando as duas estruturas –a narrativa e a cinematográfica- trabalham o
tema da ruptura do clássico conceito de realidade fundado na (re)construção do
mundo como representação do real e quando questionam a relação da
representação com o visível. Paradoxalmente, a distância entre elas surge, porque
justamente a partir desses mesmos temas, brotam especulações instigantes,
diversas, típicas da peculiaridade da linguagem que cada um dos autores manipula.
Tanto “Las Babas del Diablo” como Blow up, podem ser vistos como o esforço
de um artista para textualizar uma experiência vivida a partir da tomada de uma foto
aparentemente insignificante de um casal. A foto revela algo da realidade, de um
momento que o fotógrafo não viu enquanto ele fotografava, mas que verá
posteriormente, ao revelar os negativos.
Teoricamente, uma seqüência de fotografias sobre um mesmo evento conta a
história do fato registrado quando é percebida em seu conjunto. Na medida em que
apresentam uma seqüencialidade lógica, mostrando a transformação de um fato
desde o estágio inicial até o final, as imagens introduzem a possibilidade de
recuperar a ocorrência que a ela subjaz. Entretanto, o acontecimento projetado nas
imagens, embora veraz, é representação que resulta da seleção de um fotógrafo,
115
que apresenta as cenas optando entre os diversos elementos que estavam
dispostos diante do seu olhar.
“El fotógrafo opera siempre como una permutación de su manera personal de
ver el mundo por otra que la camera le impone insidiosa”, diz Cortázar, logo, se o
que Thomas e Michel viram estava mediado pela lente da máquina fotográfica, tudo
nos leva a crer que o que foi registrado pela câmera e que deve ser relatado
trasciende espiritualmente el campo abarcado por la cámara” e que dentro deste
fragmento químico - a foto- está registrada uma “realidade” que sobrepassa a
verdade. Se os fotógrafos só possuem essa ação fragmentada e cristalizada em
uma foto, fica claro que todo o resto é fabulação, hipótese.
Partindo da concepção de que a fotografia é um documento de certa forma
falível se não acompanhado do conhecimento lateral do fato registrado pelos
múltiplos significados que pode conter, chegamos ao binômio revelação x engano,
como nos aponta Ismail Xavier.
157
Estaríamos então diante de um puro engano?
Uma outra voz – a de Roland Barthes - se faz necessária para que se abra
espaço para a mais uma reflexão sobre esta fotografia:
“Observei que uma foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções):
fazer, suportar, olhar. O Operator é o fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos
jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado
é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom
grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz,
uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda
fotografia: o retorno do morto”.
158
Operator, Spectator e Spectrum: é a partir da mudança de posição de
operator a spectator tanto do fotógrafo do filme como do fotógrafo do conto que
surge a impossibilidade da narrativa, porque a narrativa do registro fotográfico deve
ajustar-se ao imperativo da verdade e o que temos aí, desde o princípio, é um
157
Sobre a leitura da verdade contida numa foto, tomamos Ismail Xavier, que exemplifica o binômio
revelação x engano baseado na evidência empírica trazida pela imagem da foto no caso da
testemunha Macarthy. Na foto se vê o réu e ao seu lado e alguém indexado na caça às bruxas.
Diante da resposta positiva da testemunha o advogado mostra uma foto maior em que aparece
num dos cantos a dupla anteriormente vista na foto menor. Entendemos logo que a primeira foto é
um recorte da segunda. “Cinema: revelação e engano”, em O Olhar e a Cena,2004, pg.31.
158
BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de janeiro, Ed. Nova Fronteira, pg.20.
116
“conflito de olhares” mediados pelas máquinas, a saber, a do fotógrafo (Contax) a do
escritor ( Remington) e a do diretor ( câmera) quando vão em busca da história
oculta de um crime.
O centro da questão portanto, está na tomada desta foto que desperta a
verdade da matéria para o enredo policial, a solução do enigma e a sedução do
mistério. A hipótese de um crime vai além, num desdobramento metafórico depois
que cessa a narrativa possível. Frente a esta realidade, a fotografia se apresenta
com seu antagonismo de capacidade e impotência: capacidade para descobrir a
verdade e impotência para modificá-la.
Distinguem-se, porém, nesse último aspecto, os dois relatos : enquanto o
narrador do conto narra para entender eventos dos quais participou como
testemunha e protagonista, porque se não contar, este texto corre o perigo de
petrificar-se (assim como a foto) , o texto fílmico evidencia a reflexão estética que
perpassa o processo criativo de Antonioni. Os silêncios que cobrem o ato de narrar
fazem parte do desafio que deve ser respondido pelo espectador. O narrador narra
para também para mostrar a fragilidade da imagem.
O texto escrito se desenvolve diante das fabulações perversas de um
narrador “bifurcado”,” fruto do conflito das máquinas – Contax e Remington - O
questionamento da linguagem – “la piel de la literatura” - anseia ultrapassar seu
próprio limite, mas entre hesitante e excitada se expõe a uma constante
transgressão da objetividade do discurso. Como resultado do encontro do olhar das
lentes da câmera e o “acontecimento” fica uma imagem que funciona como uma
descrição cênica capaz de abordar com maior intensidade os aspectos da sedução
do adolescente pela mulher.
Na primeira vez que o jovem foge, o leitor guiado pelo narrador não tem
dúvida de que ele está salvo. Quando na ampliação a cena se repete, e o rapaz cai
nas “babas do diabo” a sensação é de terror. O impacto decorre do fato de que são
ultrapassados os limites da realidade. Surpresa e clímax coincidem, colocando o
fantástico no lugar esperado como desfecho.
No filme a falta de uma foto no conjunto implica algo além da dúvida: será que
capturou realmente o morto na série de fotos? Existe realmente um revólver por trás
dos arbustos ou é uma sombra, um artifício da fotografia? Naquela tarde, o homem
foi ou não foi assassinado? Enquanto a presença do cadáver no final significaria a
morte de um indivíduo, a ausência deste permite apenas desempenhar a própria
117
morte, figurando-a em um objeto, vale dizer, conjurando-a no simbolismo do próprio
objeto. O morto demanda indiferença à morte da narrativa, e ao mesmo tempo é o
silêncio da significação, o que mais uma vez demonstra o caráter artificial da obra
que recusa a totalidade fechada já que a imagem tende para além de si mesma,
podendo reproduzir-se infinitamente. O morto acaba se transformando, assim, no
corolário da busca infrutífera do verdadeiro.
Está implícito tanto no conto como no filme o problema da realidade da foto,
seu caráter equívoco, multifário, escorregadio. Michel assiste a um pedaço da vida
sem elaborar nem limitar enquanto passeia pelas ruas de Paris. E quando elege a
fração ideal, esse pedaço se torna complexo, irreduzível, que fotografado e
congelado no tempo, se falsifica.
Como a incógnita se sobrepõe à verdade, a história continua aberta. Não há
como decifrar o enigma, logo não há uma experiência que possa ser partilhada e
portanto não há como contar. Essa variação do gênero narrativo serve para revigorar
o fantástico do conto.
Como então, narrar essa história?
Já tivemos ocasião de exemplificar como Antonioni elabora por meio de suas
imagens um regime onde predomina o olhar sobre o contar. Através dessa
experiência, constatamos que esse olhar reorganiza a captação sensível do instante.
Ao procura “contar” a cena da tomada da foto no filme a palavra se cala. Após
contemplar longamente as fotos do parque como uma câmera, em uma atitude
ambígua de aproximação e distanciamento onde a câmera de Antonioni se funde na
câmera do fotógrafo, surge um olhar tão espectante como a atitude das
personagens e quando realmente precisa ver, a ampliação nada representa. Só lhe
resta, portanto, mostrar.
A seqüência final do filme brinca com a natureza inconstante da “verdade” da
imagem fotográfica: os mimes jogam tênis com uma “bola imaginária ( já que não
vemos a bola), e Thomas é convidado a participar do jogo quando a bola é jogada
fora da cerca. Thomas joga o jogo imaginário lançando a bola de volta para a
quadra. Neste momento o som da bola aparece e parece confirmar sua presença,
completando o sentido da ilusão.
118
A incapacidade de transmitir a experiência e a narrativa que nasce da
substituição da palavra pela imagem, em Cortázar e Antonioni configuram a
incapacidade de narrar que se reflete nos silêncios e termina no olhar da mulher.
No meio desse campo, assim, somos convidados a repensar as posturas
tradicionais das teorias da “realidade”, e tal como Thomas, levados a lembrar que
existem muitas formas de olhar para o mundo “real”.
Diante das configurações de olhares, nosso terreno é mais restrito e se
estrutura , em parte, na produção do olhar enquanto gênesis da poética dos autores
em questão. É talvez a experiência da transgressão de Cortázar na linguagem
escrita e a de Antonioni na linguagem fílmica que atualiza a relação proposta de um
encontro.
Na busca da história oculta de um crime, o mistério corre por conta da mulher,
personagem que quebra a lógica do senso comum. Em princípio,
espectadores/leitores estão de acordo sobre o que é a história ou que fatores
obscurecem ou convertem em ambígua sua construção. Mas quando vemos o
resultado das fotos, essa ação é uma representação que nos leva a inferir um novo
acontecimento: é a mulher no silêncio eloqüente de sua presença que transforma a
tomada banal de uma foto num assassinato. Essa mulher fotografada, assinala
antes a falta de elementos que justifiquem a narrativa do que sua presença. Para
preencher as lacunas o narrador desenvolve todo um discurso que extrapola o
campo de visão da foto.
Poderíamos dizer que esta mulher invoca um elemento mais alto: a verdade
que se esconde por trás do olhar. Se instaura assim, uma tensão entre ver e olhar.
O olhar trata de fornecer uma base sólida à linguagem, o que na verdade se
revela uma tarefa inglória, infinita e infrutífera, um processo de perpétuo deferimento
em que um sentido remete a outro e este, por sua vez, a mais um e assim por
diante. Nesse sentido, o momento em que o fotógrafo contempla as fotos da mulher
é o momento revelador. Submissos ao olhar da mulher, promove-se a primeira
descontinuidade e o espectador/leitor aceita a convenção de que algo vai acontecer
daí para diante. Só que a história cessa, denunciando a falsa impressão de
realidade que aí ganha forma.
Por sua vez, nos olhos da mulher se desenha a voragem avassaladora da
sedução e se semantiza, igualmente, a força que captura o leitor e a importância
119
dele no processo de significação. A leitura dos olhos enigmáticos da mulher, que a
princípio eram um misto de sedução e mistério se mostra nesse novo contexto
diabólico e ela passa a soar como maldição.
A vasta arena onde se confrontam as poéticas de Cortázar e Antonioni traz
para o centro a questão do olhar – título e tema deste estudo- um olhar obstinado,
cujo prestígio foi reconhecido por Bataille.
Seguindo o que diz Martín Cuccorese, a figura do olho “es la figura del ser
que no es más que la transgresión de su propio límite” já que demarca a fronteira
del adentro y del afuera del cuerpo”
159
.
A sexualidade é terreno comum no trabalho de Cortázar, um espaço por
onde circula a problemática de sua realização conjugada a uma mais vasta: a
descolocação da linguagem resultante da crise do pensador ocidental, aliciado às
regras da “Gran Costumbre”.
Cortázar alcança o erótico via Bataille. O limite questionado ¿cuál es el
límite el verdadero limite?” , como vimos em Usted se tendió a tu lado, onde
linguagem e sexualidade estão ligadas por uma forma comum, o erotismo ao cruzar
com o limite imposto pela linguagem se mostra violentamente transgressor e sobre o
espaço aberto opera como uma glorificação da sexualidade, porém, este momento
que rompe os limites é o momento da mais pura violência, que entretanto encontra
nas palavras de Focault um respaldo “nada es negativo en la transgresión”. Nesta
medida, a transgressão não é negativa nem positiva, ela é a afirmação da cisão.
Para não adentrar na turbulência filosófica da morte de Deus, diremos
somente que Foucault afirma que a transgressão nos textos de Bataille nos reenvia
a pura transgressão que protege toda tentativa de encontrar uma linguagem para o
pensamento do limite.
A relação especular dos olhares invadem as narrativas, evidenciando não só
a concretização do desejo erótico transgressor dos narradores ( e personagens) mas
sugerindo também ao leitor uma maneira inédita de encarar a realidade.
A percepção da escrita como mescla de prazer e engano é presença
constante, uma aliança misteriosa e complexa. Aparentemente opostos, escritura e
erotismo unem-se através de um jogo perverso propiciando ao leitor o prazer da
159
Em Prefacio a la Transgresión, Argentina, Ediciones de Minuit, 1993 pg.27.
120
transgressão e atenuando a ressonância ameaçadora que tal sentimento causa em
nossa vida cotidiana.
A sedução que está disseminada por todo o texto do conto expressada
através da fabulação do narrador, paralelamente, na narrativa fílmica está
manipulada, mascarada, omissa ou recoberta por uma sensualidade fria. Neste
ponto, a presença da atriz Vanessa Redgrave é perfeita: seu corpo esquálido, ícone
referencial das mulheres da época, agrega o objetivo de Antonioni, ao mesmo tempo
que desagrega o “glamour” da sedução.
Apesar de serem distintas suas linguagens e apesar da diferença do nível de
complexidade de suas concepções estruturais, é possível estabelecer pontos de
convergência entre o filme de Antonioni e o conto de Cortazar.
Segundo Chatman, os pontos que justificam as relações coincidentes entre o
conto e o filme são várias:
160
O fotógrafo surpreende um casal; .
A diferença de idade entre eles;
A mulher se irrita e tenta reaver o filme;
O fotógrafo se recusa a entregar o filme
O fotógrafo pensa ter salvo a vida de alguém;
O fotógrafo descobre que as coisas são piores do que pensava e ficam cada vez
piores.
A história é um quebra-cabeça; a dificuldade de montar uma narrativa com as fotos
tiradas.
A ampliação ou ampliações desaparecem e os fotógrafos sofrem com o resultado
(Michel termina catatônico e Thomas desaparece).
Acreditamos que mais importante que apontar as semelhanças e/ou
diferenças é buscar o trabalho de deciframento do texto, a apreensão do sentido
polivalente das imagens que garantam a unicidade da cena.
Em Blow up essa concretude se torna visível a partir da tomada de
elementos de natureza visual presentes no conto: a névoa cinza, o silêncio, a
flanerie do fotógrafo, e o “temblor casi furtivo” das folhas. A seqüência de imagens
de Thomas caminhando acompanhado somente pelo ruído do vento nas árvores,
envolve o espectador, primeiro porque reiteram o estilo de Antonioni e depois porque
160
Em Antonioni, or, the surface of the world, London, 1985, pg.139.
121
configuram o ritmo do conteúdo formal específico – a tomada da foto- remetendo-o
ao texto escrito.
Ainda seguindo Chatman, temos a questão do título:
Segundo ele
161
, o conto de Cortazar deveria chamar-se “por um triz”, que,
“significa uma expressão idiomática”. Talvez Chatman ignore que “las babas del
diablo” -como explica o próprio narrador no conto- , bem poderia chamar-se “los hilos
de la Virgen”. Além de uma relação antitética do bem e do mal, analogicamente o
título nos remete aos cabelos da mulher loura. Nesse sentido, o título original, “Las
babas del diablo”, concentraria, portanto, a dualidade da significação inerente ao
caráter sedutor da mulher loura e simultaneamente a rede no qual o jovem
inexperiente é agarrado.
Blow up, título escolhido por Antonioni, também abarca uma gama de
significações que convergem para um mesmo ponto: explosões de sólidos, de luz
(flash), de raiva, ampliação de fotos, como também em uma gíria típica dos 60 e
atualmente em desuso, uma “explosão” de gozo resultante de uma relação sexual
apressada.
Blow up é um filme de múltiplas intensidades: mesmo quando narra, nos
lança para além de um contar história característico de uma arte de representação
(tradicional), porque “desarrola una sucesión de estados del espíritu que se deduce
del pensamiento, sin que este pensamiento reproduzca la sucesión razonable de
hechos”, que “actúa directamente sobre la materia gris del cerebro” como no cine de
Antonin Artaud.
Para Artaud, o cinema implicava uma subversão total dos valores, um
“trastoque completo de la óptica, de la perspectiva, de la lógica”. Assim, reivindicava
filmes “fantasmagóricos”, “poéticos”, “psíquicos”, filmes que triturassem as coisas do
coração e do espírito, “hasta conferirles la virtud cinematográfica que hay que
buscar”. O cinema de Artaud atravessa décadas e chega até Passolini no “cinema
poesia”, constituindo um solo fértil de questões de todo um cinema do pós-guerra.
Para o grande cineasta soviético Dziga Vertov (1896-1954), mostrar a
verdade na tela significa produzir um discurso através da organização de “
161
Seymour Chatman /Paul Duncan (Ed.) Michelangelo Antonioni A Filmografia Completa, Itália,
Taschen, 2004, pg.100.
122
fragmentos extraídos do real visível”. A câmera é uma espécie de olho mecânico:
"eu sou um olho. Um olho mecânico. Eu, a máquina, mostro-lhe o mundo da maneira
que apenas eu posso ver. Libertei-me hoje e para sempre da imobilidade
humana."
162
A montagem marca a intervenção do realizador na reorganização das
imagens, instaurando entre elas relações que serão responsáveis pelas
significações produzidas pelo filme no seu conjunto – a rede de relações permite
tornar visível o invisível, ou seja, perceber a estrutura que está além das aparências.
Antonioni, como uma máquina de pensamento, tudo isso absorve e o que
deseja é, em última análise, agir através do olhar sobre a consciência do real,
provocando assim uma nova figuração do espaço, e conseqüentemente, uma
transformação da consciência e das mentalidades.
Portanto, o que temos aqui, além da concepção física do espaço-tempo que
também se pode buscar em Cortázar, é, como já dissemos, o grande tema da
representação da realidade. A realidade inalcançável, por um lado, e a incapacidade
da imagem de representá-la, por outro, que estão presentes na estrutura do filme e
repetimos, nas ferramentas da ilusão de cada um dos artistas: do contista, a
máquina de escrever; do fotógrafo a câmera fotográfica; dos mimes, as raquetes de
tênis e a bola, do cineasta, a sua câmera.
O filme Blow up se move, diferentemente de Las Babas... , num universo
onde as relações sociais estão misturadas. Olhares que deslizam de maneiras
determinadas pelos códigos fundamentais dos gloriosos anos 60, que sem dúvida,
descobriram o parentesco entre questionamento e transgressão, entre sexualidade
e erotismo, entre palavra e silêncio e exerciam seus próprios efeitos figurais e
discursivos, disseminando imagens e ideologias contraculturais à medida que o
público adotava imagens, estilo, moda e atitudes por eles difundidos.
Octávio Paz afirma que a vanguarda de 1967 repete os feitos das posturas
de 1917, que por sua vez tomam do Romantismo algumas afinidades: são rebeliones
contra la razón, sus construcciones y sus valores; en ambos el cuerpo, sus pasiones y sus visiones
162
Fragmento da citação de um artigo escrito em 1923 por Vertov. Apud Tânia Pellegrini "Narrativa
Verbal e Narrativa Visual: possíveis aproximações" in Cinema, Literatura e Televisão. São Paulo,
SENAC Ed., 2003 pg.19.
123
erotismo, sueño, inspiración – ocupan un lugar cardinal; ambos son tentativas por destruir la realidad
visible para encontrar o inventar otra – mágica, sobrenatural, superreal.”
163
A falta de descrédito en un futuro que con ellos no comenzaba el mundo, pero no sabían si no se
acabaría con ellos; habían atravesado el nazismo, el estalinismo y las explosiones atómicas en el
Japón” (...) Fue una generación que aceptó la marginalidad y que hizo de ella su verdadera patria”
164
Para esta geração a linguagem será a matéria vital: ruptura ou busca de
estruturas, por um lado, um regresso decisivo a cotidianidade da linguagem, ao seu
imediatismo; por outro lado, uma transgressão de estilos – marcando-os, para burlar-
se do “grande estilo”, ou para que o “baixo” estilo se burle de si mesmo, e por último
uma mescla dos níveis narrativos. E aí encontramos Vargas Llosa em Los
cachorros, La Casa verde, Conversación en la catedral; Cortázar em muitos contos,
em 62 modelo para armar, García Márquez em várias passagens de Cien años de
soledad, Severo Sarduy em De donde son los cantantes e Cobra; Donoso em El
obsceno pájaro de la noche. Com esta liberdade se ridicularizaram os moldes
retóricos da narração tradicional e respeitosa dos estilos bem definidos, dos pontos
de vista demarcados, etc, no. afã de reunir os pedaços esparsos do homem mutilado
para encontrar uma nova integridade para o humano.
Conforme dito no começo deste estudo, críticos renomados privilegiam a
análise comparativa entre “Las Babas del diablo” e Blow-Up a partir do campo que
atuam como críticos em detrimento do outro. Acreditamos que Chatman no livro The
Surface of the world. (1985:139),incorre numa interpretação, para não qualificar de
errônea, diremos, singularmente reduzida do conto de Cortazar:
“Summarizing the story is not easy, and interpreting it is even more difficult. It is a very open text. My
own interpretation is that Michel suffers a schizophrenic episode, probably in response to homosexual
conflicts of his own. (Projection, here made literal in the blow-up-become-holografic-movie, is a
standard symptom of schizophrenia)” (…) “Michel is rendered catatonic; Thomas literally disappears”
Pelo dito, Chatman parece ignorar o gênero “fantástico” presente no conto. O
gênero fantástico nasce a princípios do Século XIX com o romantismo alemão, mais
precisamente com Hoffmann, (Der Sandmann) , onde os personagens e as imagens
163
PAZ, Octavio. "Revolución/Eros/Metaironía", em Los hijos del Limo, 1974, p.145.
164
Op. cit. pg.193
124
da tranqüila vida burguesa se transfiguram em aparições grotescas, diabólicas,
aterradoras como nos pesadelos. Com Borges, Bioy Casares e Cortázar,
principalmente, o insólito se generaliza e o relato descentraliza a bifurcação
antinômica das probabilidades externas da explicação do Mal, por isso temos um
“suspense ambigüo” no enredo.
Conferir ao protagonista do conto, Michel, um comportamento mental
baseado na esquizofrenia / catatonia é descartar a complexidade do gênero
fantástico. É verdade que as relações entre o “fantástico” e as doenças mentais têm
o mesmo ponto de partida: os sentimentos de “estranheza” diante do mundo exterior.
Existe uma curiosa correspondência entre os protagonistas dos contos fantásticos
com os paranóicos e esquizofrênicos, é certo, porém o abuso da “interpretação
psicanalítica”, faz com que o personagem perca a sua característica primeira de
“duplo” , ponto fundante no conto fantástico.
A temática do “duplo” é uma constante do espírito humano como projeção do
inconsciente convertida em mito, em lenda. Nas cosmogonias , nas mitologias do
mundo, desde Narciso, passando por gêmeos ilustres como Rómulo e Remo, Cástor
e Pólux o duplo está problematizado no Romantismo, se torna complexo no
Surrealismo, já que agrega ao homem a dimensão do mundo dos sonhos e do
inconsciente.
O tema do “duplo” aparece sutilmente em “Bruja” (1944), primeiro conto de
Cortazar e em Bestiário, primeiro livro de contos de Cortazar em “Lejana”. A partir
daí se torna uma constante e se manifesta em muitos momentos. Está em “Una flor
amarilla”, em “Los pasos en las huellas”, em “Axolotl”, em “Las armas secretas”, está
também em “La noche boca arriba” e é claro em Rayuela, onde a Maga é capaz de
fundir-se diretamente com o que vê, de entrar em comunhão com o que vive, sem
precisar da lógica ,e continua sendo ela mesma, como se além do seu destino
normal, conhecido, participasse de um outro destino fragmentariamente. Não se
trata, então de um problema da divisão de personalidade, e por conseguinte, de
esquizofrenia, e sim de um enriquecimento de possibilidades vitais, negadas de
participar de dois destinos.
125
A condição de duplo “vem quase sempre denunciar a ilusão das aparências
que conferiam ao homem uma identidade, revelando o abuso da suposta integridade
que o constituía” , afirma Eliane Moraes
165
O duplo aqui além disso, é o responsável pelo foco narrativo e é ele que nos
reforça a ambigüidade da narrativa: temos um narrador em terceira pessoa, objetivo,
maquinal, e um narrador em primeira pessoa, flaneur, distraído. Esta duplicidade na
narração remete ao paralelismo analógico entre o fotografar e o contar, e equivale
a um comentário da própria forma de narrar adotada no texto.
Finalizando, algo mais em comum entre as duas grandes obras, que está
presente no plano do enunciado: uma ruptura do postulado canônico, uma
apropriação irônica de um gênero tradicional, o gênero noir, ou seja, Antonioni traz
em Blow up um gênero híbrido já explorado antes em Cronaca di un amore (1950) e
L’Avventura (1959), como vimos. Em Cronaca há uma coexistência de dois desejos
de assassinato – no passado e no futuro- que acabam descaracterizando o gênero.
Em L’Avventura, a história não explica se Anna, subitamente desaparecida, morreu
num acidente ou suicidou-se no meio dos rochedos.
Os questionamentos e as interrogações estão longe esgotar-se. As obras aqui
estudadas merecem muito mais. Nossa margem entre imaginação e realidade é
estreita e resulta daquilo que olhamos, mas o que existe entre seres e coisas pede
mais, pede um olhar que exceda o parecer.
165
A fábula inumana”, em O corpo impossível. São Paulo, Ed. Iluminuras, 2002, pg.30.
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