Em torno de 1925 – período de efervescência nacionalista em toda a Europa –,
comemorava-se em Portugal o primeiro centenário de nascimento de Camilo Castelo
Branco. Ainda com base na crítica impressionista e biográfica – típica da segunda
metade do século XIX –, livros, artigos, conferências celebravam o Romancista de
Ceide
1
em apreciações como esta de Archer de Lima, referente ao Livro Negro do
Padre Dinis: “Eu não sei que alta comoção possuem certas páginas deste livro, e como
Portugal fala nessas figuras que Camilo trouxe para a vida [...]”.
2
Ou esta de Luís de
Almeida Braga: “Poucos livros, como êsses [de Camilo], darão o sentimento dum
contacto tão directo e imediato com a alma portuguesa. O que faz a beleza de tais
romances, é sentir-se dentro deles viver e palpitar a luz e a voz de Portugal”.
3
A concepção de que a obra camiliana refletiria uma alma nacional, ou uma
portugalidade, não era então recente. Já o amigo do romancista
4
Vieira de Castro frisava
“a nacionalidade dos tipos e das cenas que [Camilo] descreve”.
5
O espanhol Miguel de
Unamuno, em 1907, afirmaria: “Portugal parece la patria de los amores tristes y la de
1
Ainda hoje não se resolveu a polêmica em torno da grafia do topônimo São Miguel de Seide ou Ceide,
referente à cidade em que Camilo morou na última parte de sua vida. Em textos do próprio escritor, lêem-
se ambas as realidades gráficas da palavra.
2
LIMA, 1925, p. 13.
3
BRAGA, 1923, p. 21.
4
Nesta dissertação, chamarei Camilo romancista, e A Queda dum Anjo romance. Sabemos das muitas
vezes evanescentes fronteiras entre o romance, a novela e mesmo o conto. As narrativas camilianas, via
de regra, promovem essa dificuldade de classificação. Jacinto do Prado Coelho prefere para elas o termo
‘novela’. José Régio as enquadra na categoria ‘romance’, sem pretender entrar em rigores classificatórios.
Para esse poeta e crítico, “Camilo despreza quaisquer receitas do género. Em última análise, criou o seu
romance”. (RÉGIO, 1980, p. 88.) O termo escolhido por Régio abarcaria, no caso do escritor oitocentista,
vários outros gêneros: “O romance de Camilo participa do folhetim, participa do panfleto, participa da
crónica, participa do comentário, divagação ou confissão pessoal, participa [...] do que geralmente
chamamos novela, e até do que, num sentido técnico fixado, geralmente chamamos romance.” (RÉGIO,
1980, p. 88-9.) Jacinto do Prado Coelho, posto que prefira classificar as narrativas camilianas como
novelas, ressalta que algumas apresentam “aspectos comuns ao romance”, e situa A Queda dum Anjo
“numa zona intermédia” desses dois gêneros. (COELHO, 2001, p. 435.) Em época em que pouco se
procurava demarcar as distinções entre as três espécies de narrativa em prosa, Camilo Castelo Branco
escreve nos dois últimos parágrafos de A Queda dum Anjo: “Eu, como romancista, lamento que ele [o
protagonista] não viva muitíssimo apoquentado, para poder tirar a sã moralidade deste conto. // Fica
sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao céu número de almas mais vantajoso que a
novela do ano passado.” (CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.) Ao que parece, para o escritor, o termo
‘conto’ designaria genericamente toda e qualquer narrativa; novela, o enredo e romance, a forma da
narrativa. Dadas a variação de opiniões acerca da classificação de suas obras e a preferência do autor,
decidi chamar Camilo romancista, e a obra aqui analisada romance.
5
CASTRO apud FERRO, 1966, p. 131.