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ADRIANO LIMA DRUMOND
A IMAGEM DA NAÇÃO PORTUGUESA EM A QUEDA DUM ANJO,
DE CAMILO CASTELO BRANCO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE
2007
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ADRIANO LIMA DRUMOND
A IMAGEM DA NAÇÃO PORTUGUESA EM A QUEDA DUM ANJO,
DE CAMILO CASTELO BRANCO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
-Graduação em Estudos Literários da Faculdade
de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Teoria da Literatura.
Área de Concentração: Teoria da Literatura
Linha de Pesquisa: Literatura, História e
Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius de
Freitas
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
BELO HORIZONTE
2007
2
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À memória de Francisco de Assis
Chateaubriand Bandeira de Melo, que doou
à Universidade Federal de Minas Gerais
vasto e valioso acervo camiliano.
3
AGRADECIMENTOS
Nestes primeiros meses de 2007, completam-se seis anos que pesquiso Camilo
Castelo Branco. Esta dissertação encerra uma etapa de convivência com a obra do
Romancista de Ceide etapa iniciada entre 2001 e 2003, na graduação em Letras pela
UFMG, sob orientação do professor doutor Paulo Motta Oliveira e com financiamento
do CNPq.
Como mestrando, foram outros dois anos, durante os quais obtive auxílios das
mais diversas naturezas, todos indistintamente importantes para mim. Isso posto,
gostaria de agradecer:
ao professor doutor Marcus Vinicius de Freitas, orientador neste trabalho, mestre
e amigo;
à CAPES, que financiou parte desta pesquisa;
ao professor doutor José Américo de Miranda Barros, quem com bastante zelo
ajuda-me na carreira acadêmica – também um mestre e amigo;
à professora doutora Maria Cecília Bruzzi Boëchat, quem também se tanto
presta a ajudar-me profissionalmente, e confortou-me em certos momentos críticos
outra mestra e amiga;
ao professor doutor José Clécio Basílio Quesado, tão solícito ao remeter-me seu
livro Garrett, Camilo, Eça: entre Quixote e Sancho, o qual figura na bibliografia desta
dissertação;
à professora doutora Sandra Maria Gualberto Braga Bianchet, o apoio
profissional e as consultas de etimologia latina;
4
ao professor Antônio Orlando O. Dourado Lopes, outras consultas de etimologia
latina;
a Geraldo de Freitas Drumond, Vania Helena Lima Drumond e Mariana Lima
Drumond, família que eu tanto amo;
a Maria Aparecida de Araújo, colega na graduação, na substituição, no mestrado,
e amiga em tudo;
a Leysen Aytakova, a agradabilíssima convivência por seis meses, no decorrer
dos quais dedicou à minha paixão pela Literatura Portuguesa entusiasmos e incentivos.
Спасибо, Леся!
a André Yukio Kamei Mori, colega de camilagem;
a Jara Lima Pinheiro, a versão para o inglês do resumo desta dissertação;
a Maria Angélica Amâncio dos Santos, a revisão da versão para o francês;
a Wilhelm Richard Wagner, o equilíbrio que sua música proporcionou-me nestes
últimos meses.
5
RESUMO
Neste trabalho, analiso a imagem da nação portuguesa que Camilo Castelo
Branco delineou em A Queda dum Anjo, romance publicado em 1865. Para
tal, discuto teóricos da nação Renan, Hobsbawm, Bhabha, por exemplo e
me baseio em informações históricas sobre o contexto de meados do século
XIX, refletido pela narrativa camiliana. Calisto Elói, protagonista de A
Queda dum Anjo, é lido como símbolo de Portugal, nação dividida em duas
temporalidades: o velho e o novo, o antigo e o moderno. O conflito entre
essas duas temporalidades marca a própria modernidade do romancista
Camilo Castelo Branco e do fenômeno da nação, o qual se tornava na época
um influente paradigma político-cultural.
RÉSUMÉ
Dans ce travail, j’analyse l’image de la nation portugaise, celle que Camilo
Castelo Branco a veloppé dans A Queda dum Anjo (La Chute d’un Ange),
roman publié en 1865. Dans cette étude, je présente des théoriciens de la
nation Renan, Hobsbawm, Bhabha, par exemple et met en évidence les
informations historiques sur le contexte de la moitié du XIX siècle, contenus
dans le récit de Camilo. Calisto Elói, le protagoniste d’A Queda dum Anjo,
est perçu comme un symbole du Portugal, nation divisée en deux
temporalités: le vieux et le nouveau, l’ancien et le moderne. Le conflit entre
ces deux temporalités signale la propre modernité du romancier Camilo
Castelo Branco et du phénomène de la nation, que se devenait un influent
paradigme politique culturel à l’époque.
6
ABSTRACT
In this work I analyse the image of the Portuguese nation delineated by
Camilo Castelo Branco in A Queda dum Anjo (The Fall of an Angel), novel
published in 1865. In order to do so, I discuss theoreticians of the nation
Renan, Hobsbawm, Bhabha, for instance and base myself on historical
information about the context of 19
th
century reflected by the Camilian
narrative. Calisto Elói, protagonist of A Queda dum Anjo, is read as symbol
of Portugal, nation divided into two temporalities: the old and the new, the
ancient and the modern. The conflict between these two temporalities marks
Camilo Castelo Branco’s own modernity and the phenomenon of nation,
which was becoming, at that time, an influent political-cultural paradigm.
7
A IMAGEM DA NAÇÃO PORTUGUESA EM A QUEDA DUM ANJO,
DE CAMILO CASTELO BRANCO
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..............................................................................................11
CAPÍTULO 1: a nação, a nação portuguesa e a literatura
portuguesa no século XIX.....................................................................23
1.1) a idéia de nação......................................................................................24
1.2) construção da nação portuguesa no século XIX....................................36
1.3) a nação portuguesa e a literatura portuguesa no século XIX.................50
CAPÍTULO 2: nação portuguesa: entre o velho e o novo Portugal..........59
2.1) o velho e o novo Portugal: dicotomia(s) do romance............................60
2.2) espaço provinciano x espaço urbano..................................................... 62
2.3) bases sociais do Antigo Regime x ordem burguesa.............................. 69
2.4) economia agrária (feudal) x economia industrial (capitalista).............. 75
2.5) convenções sociais x paixão e amor......................................................80
2.6) linguagem castiça x linguagem corrompida.......................................... 85
2.7) literatura clássica x literatura romântica................................................95
2.8) considerações finais.............................................................................104
CAPÍTULO 3: Calisto Elói: um Portugal em queda?..............................107
3.1) contexto histórico-cultural e simbologia de Calisto Elói.....................108
3.2) Calisto Elói: Portugal do esplendor à decadência pelo progresso?
130
3.3) Calisto Elói e a nação moderna........................................................... 148
8
CONCLUSÃO..............................................................................................152
BIBLIOGRAFIA..........................................................................................157
1) camiliana (a): do autor............................................................................158
2) camiliana (b): sobre o autor....................................................................158
3) teoria da nação em geral......................................................................... 160
4) sobre história e cultura portuguesas........................................................161
5) literatura portuguesa em geral................................................................ 163
6) teoria e crítica literárias.......................................................................... 164
7) outras referências bibliográficas.............................................................165
9
Se os deixarmos a eles [os deputados de
Portugal] jurar e mentir à sua vontade, a
monarquia portuguesa daqui a pouco não terá
mais realidade no mapa-múndi que a ilha
Barataria do Miguel de Cervantes, ou as ilhas
beatas do poeta Alceu!
Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo
Irá perder-se aquela alma [o protagonista do
romance], aquele exemplar marido, aquele
sacerdote e glorificador dos clássicos
lusitanos?
Camilo Castelo Branco, A Queda dum Anjo
10
INTRODUÇÃO
11
Em torno de 1925 período de efervescência nacionalista em toda a Europa –,
comemorava-se em Portugal o primeiro centenário de nascimento de Camilo Castelo
Branco. Ainda com base na crítica impressionista e biográfica típica da segunda
metade do século XIX –, livros, artigos, conferências celebravam o Romancista de
Ceide
1
em apreciações como esta de Archer de Lima, referente ao Livro Negro do
Padre Dinis: “Eu não sei que alta comoção possuem certas páginas deste livro, e como
Portugal fala nessas figuras que Camilo trouxe para a vida [...]”.
2
Ou esta de Luís de
Almeida Braga: “Poucos livros, como êsses [de Camilo], darão o sentimento dum
contacto tão directo e imediato com a alma portuguesa. O que faz a beleza de tais
romances, é sentir-se dentro deles viver e palpitar a luz e a voz de Portugal”.
3
A concepção de que a obra camiliana refletiria uma alma nacional, ou uma
portugalidade, não era então recente. Já o amigo do romancista
4
Vieira de Castro frisava
“a nacionalidade dos tipos e das cenas que [Camilo] descreve”.
5
O espanhol Miguel de
Unamuno, em 1907, afirmaria: “Portugal parece la patria de los amores tristes y la de
1
Ainda hoje não se resolveu a polêmica em torno da grafia do topônimo São Miguel de Seide ou Ceide,
referente à cidade em que Camilo morou na última parte de sua vida. Em textos do próprio escritor, lêem-
se ambas as realidades gráficas da palavra.
2
LIMA, 1925, p. 13.
3
BRAGA, 1923, p. 21.
4
Nesta dissertação, chamarei Camilo romancista, e A Queda dum Anjo romance. Sabemos das muitas
vezes evanescentes fronteiras entre o romance, a novela e mesmo o conto. As narrativas camilianas, via
de regra, promovem essa dificuldade de classificação. Jacinto do Prado Coelho prefere para elas o termo
‘novela’. José Régio as enquadra na categoria ‘romance’, sem pretender entrar em rigores classificatórios.
Para esse poeta e crítico, “Camilo despreza quaisquer receitas do género. Em última análise, criou o seu
romance”. (RÉGIO, 1980, p. 88.) O termo escolhido por Régio abarcaria, no caso do escritor oitocentista,
vários outros gêneros: “O romance de Camilo participa do folhetim, participa do panfleto, participa da
crónica, participa do comentário, divagação ou confissão pessoal, participa [...] do que geralmente
chamamos novela, e até do que, num sentido técnico fixado, geralmente chamamos romance.” (RÉGIO,
1980, p. 88-9.) Jacinto do Prado Coelho, posto que prefira classificar as narrativas camilianas como
novelas, ressalta que algumas apresentam “aspectos comuns ao romance”, e situa A Queda dum Anjo
“numa zona intermédia” desses dois gêneros. (COELHO, 2001, p. 435.) Em época em que pouco se
procurava demarcar as distinções entre as três espécies de narrativa em prosa, Camilo Castelo Branco
escreve nos dois últimos parágrafos de A Queda dum Anjo: “Eu, como romancista, lamento que ele [o
protagonista] não viva muitíssimo apoquentado, para poder tirar a moralidade deste conto. // Fica
sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao céu número de almas mais vantajoso que a
novela do ano passado.” (CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.) Ao que parece, para o escritor, o termo
‘conto’ designaria genericamente toda e qualquer narrativa; novela, o enredo e romance, a forma da
narrativa. Dadas a variação de opiniões acerca da classificação de suas obras e a preferência do autor,
decidi chamar Camilo romancista, e a obra aqui analisada romance.
5
CASTRO apud FERRO, 1966, p. 131.
12
los grandes naufragios. // Hay, a este respecto, una obra portuguesa honda y
ahincadamente representativa de pasión dolorosa. Es el Amor de Perdição, de Camilo
Castello Branco.”
6
Unamuno intitulará os portugueses de “un pueblo suicida”, pensando
nos exemplos de Antero de Quental, Soares dos Reis e no de Camilo.
7
Não pôde
conhecer os mesmos fins de Mário de Carneiro e Florbela Espanca.
8
Se essa
concepção relativa à obra camiliana não constituía novidade em 1925, seis décadas
depois a encontraremos ainda num crítico do porte de Eduardo Lourenço. Em “Situação
de Camilo”, Lourenço começa por dizer: “Três sílabas. Tanto basta para nomear o mais
popular e mais português dos nossos criadores modernos.”
9
Na introdução de A Ideia de
Portugal na literatura portuguesa dos últimos cem anos, livro publicado em 1989,
António Quadros colocará o autor oitocentista entre
[...] os que naturalmente, por assim dizer inconscientemente projectam alguma
ou algumas das faces poliédricas do ser pátrio, pela autenticidade ôntica e
existencial do seu estilo, dos seus cenários, das suas imagens ou das suas
personagens, verdadeiras transcrições de um real vivido e metaforicamente
reproduzido no espelho da ficção ou da poesia [...].
10
O que legitimaria o lugar de Camilo Castelo Branco como um grande ou o
maior escritor a expressar sua nacionalidade, conforme querem os autores mencionados
acima? Se o historiador intergaláctico de Hobsbawm “conclui que os últimos dois
6
UNAMUNO, 1944, p. 10.
7
Cf. UNAMUNO, 1944, p. 82-89.
8
É conhecido o ideário baseado numa hispanidad de Unamuno – integrante da Geração de 90 –, que veio
a tomar a si a tarefa de insuflar ânimo patriótico numa Espanha abalada pela derrota, em 1898, na guerra
contra os Estados Unidos em nome de interesses econômicos sobre Cuba. Vale mencionar também
Teixeira de Pascoaes, no que tange aos propósitos da Renascença Portuguesa – a que pertenceu o poeta
de restaurar a auto-estima nacional de um país que ainda se ressentia do Ultimatum inglês de 1890 e se
desiludia com a república recém-proclamada. Pascoaes, dentro desse pathos e daqueles propósitos,
publicou textos de Camilo Castelo Branco na Revista Águia e escreveu ainda uma biografia do
romancista, O Peninente.
9
LOURENÇO, 1994, p. 219.
10
QUADROS, 1989, p. 18. (itálicos do autor. Neste trabalho, itálicos de citações pertencerão sempre ao
autor; a mim, os negritos.)
13
séculos da história humana do planeta Terra são incompreensíveis sem o entendimento
do termo ‘nação’ e do vocabulário que dele deriva”,
11
naturalmente também deveria
estar a par desses mesmos dados para compreender o juízo dispensado ao romancista
português.
A nação tal qual modernamente a concebemos constitui fenômeno
desencadeado nas décadas finais do século XVIII, que se instaura ao longo do XIX e
ganha força renovada durante as quatro primeiras décadas do XX. A Revolução
Francesa de 1789, destacadamente, condiciona seu aparecimento, ao destronizar o
paradigma sociopolítico do Ancien Régime e declarar iguais todos os homens e acima
dos interesses dinásticos os do povo. Povo, segundo a ideologia revolucionária, não
mais denominava o terceiro estado da sociedade estamental; em povo tornavam-se
todos os franceses, unificados e identificados na idéia de nação. A essa transformação
de ordem sociopolítica correspondiam transformações de ordem cultural, que
repercutiram na Europa, no Ocidente, no mundo. Nos Estados Alemães, influenciaran o
pensamento de Herder, Hegel e Savigny. Esses filósofos vieram a operar com o
conceito de Volksgeist, o ‘gênio de um povo’ que se manifestaria nas produções
culturais como marca de uma identidade coletiva. Contrário à concepção clássica de
arte universalista, o conceito refletia o anseio romântico pela individualidade nacional e
engajamento nas causas da nação. Segundo Eduardo Lourenço,
De pura presença geográfica, natural, lugar de um destino certo ou incerto entre
vida e morte, a Pátria converte-se em realidade imanente da qual cada cidadão
consciente é solidário e responsável. Assim como no domínio político lhe é
pedido que directa ou indirectamente a assume pelo voto, assim culturalmente,
o que a Pátria é ou não é, interpela o escritor com uma força e uma urgência
antes desconhecidas. Cada escritor consciente da nova era escreverá, como
Fichte, o seu pessoal discurso à sua nação, cada um se sentirá profeta ou
11
HOBSBAWM, 2002, p. 11.
14
mesmo messias de destinos pátrios, vividos e concebidos como revelação,
manifestação e culto das respectivas almas nacionais.
12
Certamente a modernidade literária que o romantismo promove e lega como
episteme a posteriores estéticas afina-se com a modernidade do próprio fenômeno da
nação. Desse modo, muitas vezes a literatura encontra-se a serviço desta, ou antes,
funciona como aparelho ideológico para legitimá-la. Em Portugal, ao lado de um
político como Passos Manuel, que na década de 1830 reformou as instituições
educacionais, vários escritores oitocentistas interessaram-se pela instrução pública.
Alexandre Herculano empenhou-se a favor do ensino primário proporcionado a toda a
população portuguesa; António Feliciano de Castilho divulgou seu método de leitura, e
entre os conferencistas do Casino Lisbonense, em 1871, Adolfo Coelho proferiu
“Sobre o Ensino”.
A modernidade de Portugal como nação coloca-se indissociavelmente ligada à
idéia de sua decadência, mazela que preocupa a políticos, a estudiosos de diversas
áreas, às sucessivas gerações de escritores portugueses. Eduardo Lourenço, em “Da
Literatura como Interpretação de Portugal”, texto de 1975, dirá que “A partir de Garrett
e Herculano” e pelo menos até Fernando Pessoa, Portugal, enquanto realidade
histórico-moral, constituirá o núcleo da pulsão literária determinante. A tal ponto, que
nos parecem in-significantes ou de pouco relevo aquelas obras em que essa motivação
confessa ou oculta está ausente”.
13
Esta última frase explicita, ademais, o poderoso
lastro impresso pela questão nacional no juízo sobre as obras produzidas no período
entre as primeiras décadas do século XIX e as primeiras do XX... E todavia, em 1998,
Eduardo Lourenço lançará para além de Fernando Pessoa a sobrevivência da pulsão de
problematizar a nação portuguesa:
12
LOURENÇO, 1991, p. 82.
13
LOURENÇO, 1991, p. 80-1.
15
[...] desde as invasões napoleônicas até ao definitivo estabelecimento da
Monarquia Constitucional (1834), Portugal discute-se. Por conta do que é ou
foi, por conta do que não é e quer ser: um país europeu, com o mesmo ou
análogo modelo político e cultural corrente na Europa. Desde então, de uma
certa maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram de se
discutir.
14
Nessa infatigável trajetória de discussão, insere-se a própria obra de Lourenço.
Atestam-no Labirinto da Saudade, Mitologia da Saudade, A Nau de Ícaro, Nós e a
Europa, ou as duas razões e outros vários títulos de sua autoria. Em 2004 José Gil
ofereceu contundente contribuição à permanência do debate: Portugal, Hoje: O Medo
de Existir. Nesse livro, assim descreve um certo “país da não-inscrição”:
Em Portugal nada acontece, [...] quer dizer, nada se inscreve – na história ou na
existência individual, na vida social ou no plano artístico. Talvez por isso os
estudos mais sólidos e com maior tradição em Portugal sejam os que se referem
ao passado histórico, numa vontade desesperada de inscrever, de registar para
dar consistência ao que tende incessantemente a desvanecer-se (e que, de
direito, se inscreveu já, de toda a maneira – mas onde?).
15
Neste trabalho, proponho, situando Camilo Castelo Branco dentro desse
panorama de discussão e de construção nacional, analisar a imagem da nação
portuguesa delineada em A Queda dum Anjo romance publicado em volume em
dezembro de 1865. o me interessará tomando as palavras de António Quadros
citadas anteriormente a ‘projeção’ ‘natural’ ou ‘inconsciente’ do ‘ser pátrio’ nessa
obra e, segundo o crítico português, presente em outras obras camilianas. Procuro aqui
apontar ainda nas palavras de Quadros para um “outro grau de consciência e de
14
LOURENÇO, 1999, p. 103-4.
15
GIL, 2005, p. 15.
16
entendimento”, no qual os escritores “se dirigem directamente à essência do ser pátrio,
procurando surpreendê-lo e transmiti-lo em termos simbólicos no seu amplo movimento
temporal, na sua teleologia, nos seus momentos axiais, no seu tecido de arquétipos, de
paradigmas, de mitos e de ideias-força”.
16
Embora o crítico não enquadre Camilo nesse
‘grau de consciência e de entendimento’ (de fato, a obra camiliana como um todo não o
revela), creio que A Queda dum Anjo é, nessa perspectiva, um romance à parte. Nele o
autor parece dirigir-se ‘diretamente à essência do ser pátrio’, conforme explicita
António Quadros.
17
Numa malha narrativa satírica e irônica, A Queda dum Anjo conta a história de
Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda, o morgado da Agra de Freimas, habitante
da região nortenha portuguesa de Miranda. O protagonista abandona os estudos de
latinidade realizados num seminário em Braga, por lhe pedir a mãe, viúva, que a
ajudasse na administração da casa e demais propriedades. Conveniências familiares
levam-no a desposar sua prima Teodora Figueiroa – também morgada, uma mulher, nos
dizeres do narrador, “ignorante mais que o necessário para ter juízo”
18
e “mais feia do
que pede a razão que seja uma senhora honesta”.
19
O enlace matrimonial vem a resultar
na constituição da maior riqueza da região, e a vida simples e os hábitos parcimoniosos
do casal auferem prosperidade. Enquanto fica a esposa a cuidar dos serviços
domésticos, Calisto Elói passa o mais do tempo em sua biblioteca, herdada de
numerosos e ilustres parentes eclesiásticos, a ler alfarrábios. O protagonista, de nítido
cariz quixotesco, refugia- -se num exagerado passadismo, rejeitando sua
contemporaneidade, a qual julga corruptora da moral cristã-católica e dos valores que
acredita autenticamente portugueses. Nessa concepção de vida motivo para ser tido,
16
QUADROS, 1989, p. 18.
17
Eduardo Lourenço também exclui Camilo Castelo Branco da trajetória da literatura portuguesa ‘como
interpretação de Portugal’ entre Almeida Garrett e Fernando Pessoa.
18
CASTELO BRANCO, 1986, p. 840.
19
CASTELO BRANCO, 1986, p. 883.
17
ironicamente, como o anjo referido no título do romance –, o morgado domina a língua
latina e a grega, conhece a fundo a literatura e a história da Antigüidade Clássica e do
Portugal de até os seiscentos, é um monárquico- -absolutista. Orgulhoso de sua
remotíssima fidalguia, anterior à primeira dinastia portuguesa, Calisto mostra-se
competente e impiedoso genealogista das mais afamadas famílias do país. Quando
preside a Câmara Municipal de Miranda, defende retorno a leis extintas havia
setecentos anos. Rejeitada e tomada às gargalhadas sua proposta, decide não relacionar-
se nunca mais com política. Muda de idéia, porém, quando, admirada sua retórica e
saber por conterrâneos e evocado a deveres patrióticos, candidata-se para deputado.
Eleito, deixa esposa e casa e vai residir em Lisboa. Depara uma capital bem
diferente da que lhe descrevem seus amados autores do século XVII. Tenta morar em
bairro onde lhe garantem haver vários monumentos de interesse arqueológico. Todavia,
nada encontra, além de um lugar imundo tanto literal quanto moralmente. Chega a
escorregar e cair numa poça de lama, e por isso recebe a galhofa de uma vizinhança
composta de prostitutas e marinheiros. Nessa cidade, Calisto também aspirará um ar
fétido e se intoxicará ao beber a água de uma fonte, aos quais um velho livro atribui
características benfazejas à saúde. No Parlamento, suas idéias retrógradas, o modo
antiquado com que fala e se veste provoca risos e curiosidade não de outros
deputados, mas de pessoas que vão ouvir os discursos como se fossem ao teatro.
inclusive, em cenas transcorridas na casa de representação nacional, o emprego de
indicadores textuais de falas e atitudes típicos de peças dramatúrgicas. O protagonista aí
lutará contra gastos públicos com superfluidades, contra a linguagem repolhuda do
arqui-rival Dr. Libório, deputado pelo Porto. Zelará pela retidão moral da filha adúltera
de um amigo... Até que o anjo principiará a cair. Conquanto casado, apaixona-se pela
primeira vez (o personagem é um quarentão) por Adelaide, filha solteira daquele
18
mesmo amigo, o desembargador Sarmento. O sentimento atém-se às fronteiras do
platonismo. Mas o morgado já manifesta sinais de transformação: passa a trajar à moda,
troca o rapé pelo charuto. Mais tarde conhece Ifigénia, uma linda viúva brasileira,
recém-chegada do Brasil. Os dois relacionam--se amorosamente e chegam a passear em
público como casal. Embora Teodora descubra e se esforce para dar fim ao adultério e
às outras mudanças de comportamento do marido, Calisto rende-se de vez à
modernidade. Professa o liberalismo; viaja com a amante para a França, país modelo de
luxo e progresso; torna-se barão. Essa queda, anunciada no título do romance, também
resulta na queda da esposa Teodora no jogo de sedução de Lopo da Gamboa, primo
desta e apenas interessado na riqueza de sua parente. Ambos os novos casais, frutos de
uma ruptura com a moral, têm filhos e, para o lamento irônico do narrador, parecem
encontrar a felicidade.
Em A Queda dum Anjo, o narrador, a partir da ironia e da sátira, delineia os
contornos de uma nação dividida entre o velho e o novo, o tradicional e o moderno. De
um lado, o espaço provinciano de Miranda, a estrutura sócio-econômica de base feudal,
a cultura greco-latina e de autores clássicos portugueses. De outro lado, o espaço urbano
de Lisboa, as transformações políticas, sociais promovidas pelo liberalismo, a cultura
romântica de influência francesa. Não compreendemos a contraposição dessas duas
temporalidades, sem observarmos a própria modernidade em que o romance de Camilo
Castelo Branco se situa. Trata-se da modernidade do próprio fenômeno da nação,
cindida entre um passado que aponta para uma origem histórica nacional e a vitalidade
manifesta no afastamento desse tempo que se foi.
20
A modernidade sinalizada, por
exemplo, pelo Iluminismo e pela Revolução Francesa de 1789 institui um paradigma
onde o tempo transcorre linearmente, impelido por um jogo de causas e conseqüências,
gerando o progresso histórico. A episteme romântica – base das estéticas que sucederam
20
Cf. BHABHA, 2003, p. 206-7.
19
ao romantismo no século XIX e mesmo XX –, surge orientada por esse paradigma,
assim como se dá dentro dele o fenômeno moderno da nação.
Discutir a imagem de uma nação européia, como Portugal, delineada num
romance de meados do século XIX, como A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo
Branco, envolve observar os primeiros passos desse fenômeno político-cultural que é a
nação, e como a literatura cumpriu seu papel de construtora nacional. Para iniciar essa
discussão, dividi o ‘Capítulo 1’ (“a nação, a nação portuguesa e a literatura portuguesa
no século XIX”) em três seções. Na primeira (1.1), procuro conceituar a idéia de nação,
contextualizando-a historicamente. Recorro a autores como Lord Acton, Ernest Renan –
situados no século XIX –, Otto Bauer, Anthony Smith, Benedict Anderson, Eric J.
Hobsbawm e Homi K. Bhabha estudiosos pertencentes ao século XX, alguns dos
quais também ao XXI. Para o caso específico de Portugal, na segunda seção (1.2), colho
informações, entre outros, dos historiadores oitocentistas portugueses Alexandre
Herculano e Oliveira Martins e dos mais recentes António Sérgio, Joel Serrão, Oliveira
Marques, José Mattoso. À luz desses autores, abordo a questão da nação portuguesa no
século XIX, privilegiando o período entre as primeiras décadas e a de 1860. Por fim, na
terceira seção (1.3), reflito sobre a relação entre Portugal e a literatura portuguesa dos
oitocentos. O texto mais importante nessa parte do capítulo será o do crítico português
contemporâneo Eduardo Lourenço: “Da literatura como interpretação de Portugal”.
Faço notar que nesse trabalho de Lourenço existe um quase silêncio acerca da obra
camiliana, excluída, portanto, da trajetória que iria de Almeida Garrett a Fernando
Pessoa de problematizar Portugal.
No ‘Capítulo 2’ (“nação portuguesa: entre o velho e o novo Portugal”), a partir
da observação da modernidade da narrativa camiliana como um todo, e
especificamente em A Queda dum Anjo –, analiso as dicotomias enfeixadas na
20
dicotomia do velho e do novo Portugal, presentes no romance de 1865. Na seção 2.1,
apresento o percurso semântico da palavra ‘moderno’, com base em texto de Antoine
Compagnon, e dialogo com o artigo “Situação de Camilo”, de Eduardo Lourenço,
objetivando explicar o lugar duplo de A Queda dum Anjo: entre o velho e o novo, entre
o antigo e o moderno. Seguem-se seis seções, dedicadas cada uma à análise de uma das
dicotomias verificáveis no romance, a sabê-las: 2.2) espaço provinciano x espaço
urbano; 2.3) bases sociais do Antigo Regime x ordem burguesa; 2.4) economia agrária
(feudal) x economia industrial (capitalista); 2.5) convenções sociais x paixão e amor;
2.6) linguagem castiça x linguagem corrompida; e 2.7) literatura clássica x literatura
romântica. Nesse passo da dissertação, retomo vários autores citados anteriormente,
além de citar outros autores. Concluem o capítulo as “considerações finais”, na seção
2.8, transição para o ‘Capítulo 3’.
No ‘Capítulo 3’ (“Calisto Elói: um Portugal em queda?”), detenho-me no
protagonista do romance de Camilo Castelo Branco, no intuito de compreendê-lo como
símbolo da nação portuguesa. Constituem esse último capítulo da dissertação três
seções. Na primeira (3.1), observo o personagem dentro de intertextos variados: a) com
vestígios biográficos do próprio autor; b) com o Portugal da época em que o romance
foi escrito e publicado; c) com personagens de extratexto (do próprio Camilo, D.
Quixote e Sancho Pança, Fausto); d) com o mito sebastianista; e) com o imaginário
religioso português; f) com o personagem histórico D. Miguel. A partir dessa
articulação intertextual, explicitarei a carga simbológica de Calisto Elói, no que tange à
representação da nação portuguesa. Na seção 3.2, discuto mais propriamente o
significado desse símbolo. Tratar-se-ia, de fato, de uma nação que veio do esplendor à
decadência pelo caminho do progresso, conforme sugere a trajetória do personagem de
A Queda dum Anjo? Nesse passo do trabalho, opero principalmente com os conceitos de
21
decadência e de progresso, dentro do contexto oitocentista de Portugal. Cotejo Camilo
Castelo Branco com autores portugueses precedentes em termos de geração
(Almeida Garrett e Alexandre Herculano) e posteriores (os integrantes da Geração de
70: Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins), para compreender melhor a
idéia de decadência e de progresso em A Queda dum Anjo. Com base nas conclusões
alcançadas a partir dessa discussão, creio responder à pergunta enunciada no título do
capítulo. Por fim, na seção 3.3, sintetizo a imagem da nação portuguesa projetada pelo
percurso de Calisto Elói, articulando-a com a idéia de nação como ‘comunidade
imaginada’, abordada no ‘Capítulo 1’.
Não segui metodologia – ao menos, no rigor do termo –, ao executar a leitura do
romance de Camilo Castelo Branco aqui proposta. Direcionado pelos objetivos de
trabalho, o processo dissertativo ateve-se à análise da obra eleita como corpus de
estudo. A partir dessa análise, procurei integrar a obra dentro de um diálogo com textos
teóricos sobre a nação, textos historiográficos sobre Portugal, sobre cultura portuguesa e
textos literários.
22
CAPÍTULO 1:
A NAÇÃO, A NAÇÃO PORTUGUESA E A LITERATURA
PORTUGUESA NO SÉCULO XIX
[...] the ‘end of the era of nationalism,’ so
long prophesied, is not remotely in sight.
Indeed, nation-ness is the most
universally legitimate value in the
political life of our time.
Benedict Anderson, Imagined
Communities
Eis aqui …………………………………
…………………......... o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
Luís Vaz de Camões, Os Lusíadas
Aqui o mar acaba e a terra principia.
José Saramago, O ano da morte de
Ricardo Reis
1.1) A IDÉIA DE NAÇÃO
23
Em maio de 1882, Ernest Renan proferia na Sorbonne “Qu’est-ce qu’une
nation?”, que se tornaria um dos textos mais citados e discutidos entre os estudiosos da
nação. Nele Renan destacava o para a época inusitado fator do esquecimento na
formação das nacionalidades, argumentando que “l’essence d’une nation est que tous les
individus aient beaucoup de choses en commun, et aussi que tous aient oublié bien de
choses”.
21
O ano de 1882 integra um período iniciado na década de 1870, quando,
segundo Eric J. Hobsbawm, “o número dos movimentos nacionalistas aumentou
consideravelmente na Europa”.
22
O discurso propalado por esses movimentos, que no
mais das vezes se esqueciam de importantes dados históricos, pretendia basear-se na
antigüidade senão no a-historicismo da nação, além de legitimar-se, via de regra, numa
suposta homogeneidade e estatismo étnico, cultural e lingüístico.
Entre os poucos a objetivar uma teoria ontológica da nação durante o século
XIX, Ernest Renan afirmava: “L’oubli, et je dirai même l’erreur historique, sont un
facteur essentiel de la création d’une nation, et c’est ainsi que le progrés des études
historiques est souvent pour la nationalité un danger”.
23
Nessa perspectiva, a nação
revelava-se um fenômeno recente, não natural, construído com base num sistemático
esquecimento de fatos históricos. A unidade identitária, em suas múltiplas
manifestações concluímos na leitura de “Qu’est-ce qu’une nation?” –, não existiria
num a-priori; seria formada por um ato anterior de violência, esquecido no presente.
Quanto à unidade política nacional, comenta Renan: “L’investigation historique, en
effet, remet en lumière les faits de violence qui sont passés à l’origine de toutes les
formations politiques, même de celles dont les conséquences ont été les plus
bienfaisantes. L’unité se fait toujours brutalement [...].”
24
Quanto à unidade religiosa
21
RENAN, 1997, p. 15.
22
HOBSBAWM, 2003, p. 207.
23
RENAN, 1997, p. 13.
24
RENAN, 1997, 13-4.
24
da nação: diferentemente do que deveria ocorrer na Antigüidade, “Il n’y a plus de
masses croyant d’une manière uniforme. [...] Il n’y a plus de religion d’État; on peut
être français, anglais, allemand, en étant catholique, protestant, israélite, en ne
pratiquant aucun culte”.
25
Quanto à sua unidade étnica: “La considération
ethnographique n’a donc été pour rien dans la constituition des nations modernes”,
26
pois La vérité est qu’il n’y a pas de race pure et que faire reposer la politique sur
l’analyse ethnographique, c’est la faire porter sur une chimère. Les plus nobles pays,
l’Angleterre, la France, l’Italie, sont ceux le sang est le plus mêlé”.
27
Quanto à sua
unidade lingüística:
La langue invite à se réunir; elle n’y force pas. Les États-Unis et l’Angleterre,
l’Amérique espagnole et l’Espagne parlent la même langue et ne forment pas
une seule nation. Au contraire, La Suisse, si bien faite, puisqu’elle a été par
l’assentiment de ses différentes parties, compte trois ou quatre langues.
28
Não problematizarei o juízo de valor – hoje, facilmente contestável – com o qual
Ernest Renan opera, ao qualificar Inglaterra, França e Itália como países entre “os mais
nobres”. Assinalo, sim, o questionamento à idéia de pureza racial concernente a sua
própria validade, face a estudos genéticos mais avançados. Citando Stuart Hall:
“Conceitualmente, a categoria ‘raça’ não é científica. As diferenças atribuíveis à ‘raça’
numa mesma população são tão grandes quanto àquelas encontradas entre populações
racialmente definidas. ‘Raça’ é uma construção política e social.”
29
25
RENAN, 1997, p. 28
26
RENAN, 1997, p. 21.
27
RENAN, 1997, p. 21.
28
RENAN, 1997, p. 24-5.
29
HALL, 2003, p. 69. O autor explicita que hoje se costuma distinguir as categorias ‘raça’ e ‘etnia’.
Aquela basear-se-ia em diferenciações biológicas, manifestadas pelo fenótipo, ao passo que esta basear-
-se-ia em diferenciações culturais. (Cf. HALL, 2003, p. 89-71.) Acerca de ambas as categorias,
entretanto, Hall considera: “[...] o racismo biológico e a discriminação cultural não constituem dois
sistemas distintos, mas dois registros do racismo. Na maioria das vezes, os discursos da diferença
biológica e cultural estão em jogo simultaneamente. No anti-semitismo, os judeus eram multiplamente
racializados por razões biológicas, culturais e religiosas.” (HALL, 2003, p. 71.)
25
Também importa considerar, para além da não-exclusividade ou da diversidade
de idiomas vernáculos em rios exemplos de nação, o fato de que, conforme pontua
Hobsbawm,
As línguas nacionais são sempre [...] construtos semi-artificais e, às vezes,
virtualmente inventados, como o moderno hebreu. São o oposto do que a
mitologia nacionalista pretende que sejam as bases fundamentais da cultura
nacional e as matrizes da mentalidade nacional. Freqüentemente, essas línguas
são tentativas de construir um idioma padronizado através da recombinação de
uma multiplicidade de idiomas realmente falados, os quais são, assim,
rebaixados a dialetos [...].
30
O historiador de Nações e Nacionalismo ainda chama a atenção para outros
dados relativos ao elemento lingüístico como promovedor da unidade identitária
nacional:
[...] uma língua comum, exatamente por não ser naturalmente gerada mas sim
construída especialmente quando é impressa –, adquire uma nova fixidez
que a faz parecer mais permanente e portanto (por uma ilusão de ótica) mais
“eterna” do que realmente é. D a importância não apenas da invenção da
imprensa [...], mas também dos grandes padronizadores e depuradores que
aparecem na história culta de toda língua cultural, depois do surgimento do
livro impresso.
31
Vemos que a imprensa constituiu um dos principais fatores que condicionaram o
advento da nação, uma vez que proporcionava uma ilusória impressão de um registro
uniforme e estático. Cabe aqui sublinhar o papel da veloz expansão comercial, no século
XIX, das letras impressas não apenas no suporte livro, mas também nos jornais e nas
revistas veículos de notícias e idéias dirigidos a um público cada vez mais amplo. O
30
HOBSBAWM, 2002, p. 70-1.
31
HOBSBAWM, 2002, p. 77.
26
contemporâneo teórico da nação Benedict Anderson, o qual a denominou ‘comunidade
imaginada’, pensando nas “Origens da Consciência Nacional” (título do terceiro
capítulo de seu livro Imagined Communities), defende: “Nothing served to ‘assemble
related vernaculars more than capitalism, which, within the limits imposed by grammars
and syntaxes, created mechanically reproduced print-languages capable of
dissemination through the market.”
32
Em parágrafo imediatamente abaixo, afirma que as
letras impressas
[...] created unified fields of exchange and communication below Latin and
above the spoken vernaculars. Speakers of the huge variety of Frenches,
Englishes, or Spanishes, who might find it difficult or even impossible to
understand one another in conversation, became capable of comprehending one
another via print and paper. In the process, they gradually became aware of the
hundreds of thousands, even millions, of people in their particular language-
field, and at the same time that only those hundreds of thousands, or millions,
so belonged. These fellow-readers, to whom they were connected through print,
formed, in their secular, particular, visible invisibility, the embryo of the
nationally imagined community.
33
Retomarei adiante as reflexões de Anderson. Mas, afinal, como Ernest Renan
explicou a existência das nações modernas, algo “d’assez nouveau dans l’Histoire”, e,
portanto, “L’Antiquité ne les connut pas”?
34
Numa altura em que Friedrich Nietzsche
postulava que a verdade não existe senão como imposição de uma ‘vontade de
potência’,
35
na Conferência de Maio de 1882 Renan propunha:
32
ANDERSON, 1991, p. 44.
33
ANDERSON, 1991, p. 44.
34
RENAN, 1997, p. 10.
35
Günter Abel, em “Verdade e Interpretação”, escreve sobre Nietzsche: “[...] a verdade não é ‘dada’, em
si e preestabelecida; ao contrário, ela é ‘criada’ por meio de processos de determinação de signos e de
interpretações. Aqui ‘descobrir’ e ‘produzir’ vão de mãos dadas. A ‘verdade’, segundo Nietzsche, é o
nome para a ‘vontade de denominação que em si não tem fim. Ela é, nesse sentido, uma ‘palavra’ para a
‘vontade de potência’”. (ABEL. In: MARTON, 2005, p. 181-2.)
27
Une nation est une âme, un principe spirituel. Deux choses qui, à vrai dire, n’en
font qu’une, constituent cette âme, ce principe spirituel. L’une est dans le passé,
l’autre dans le présent. L’une est la possession en commun d’un riche legs de
souvenirs; l’autre est le consentement actuel, le désir de vivre ensemble, la
volonté de continuer à faire l’héritage qu’on a reçu indivis.
36
Em contestação a muitas das teorias nacionalistas, em pleno vigor em sua época,
Renan salienta: “Nous avons chassé de la politique les abstractions métaphysiques et
théologiques. Que reste-t-il, après cela? Il reste l’homme, ses désirs, sés besoins.
37
E
numa percepção típica da modernidade, observa: Les volontés humaines changent;
mais qu’est-ce qui ne change pas ici-bas? Les nations ne sont pas quelque chose
d’eternel. Elles ont commencé, elles finiront.”
38
De fato, a modernidade constitui a
instauração de um paradigma onde ocorre um jogo entre o velho e o novo, o passado e o
presente, com base no qual a nação fenômeno moderno se sustenta. A vontade,
então sujeita a essa contingência transformadora, constrói e legitima os laços da unidade
nacional, por conseguinte, sujeitos a essa vontade em incessante devir. Desse modo,
segundo Stuart Hall, a cultura – um alicerce da ideologia nacionalista –
[...] não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós
fazemos das nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em
qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de
formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se
tornar.
39
Às vésperas da Primeira Guerra Mundial conflito, aliás, de notórias
motivações nacionalistas –, Otto Bauer verificava também a mutabilidade do que
denominou, em perspectiva essencialista, entretanto, o ‘caráter nacional’. Segundo esse
36
RENAN, 1997, p. 31.
37
RENAN, 1991, p. 33.
38
RENAN, 1991, p. 33.
39
HALL, 2003, p. 44.
28
autor, afinado com o marxismo, “Os membros de uma nação ligam-se por uma
comunhão do caráter num período definido; de modo algum a nação de nossa época está
ligada a seus ancestrais de dois ou três milênios atrás”.
40
Adiante, Bauer esclarece: “Para
nós, portanto, a nação não é uma coisa rígida, mas um processo de transformação
cuja natureza é regida pelas condições em que as pessoas lutam por suas necessidades
vitais e por se manter.”
41
Fica, pois, evidente a condição de devir da nação moderna,
assim como a própria idéia de modernidade em que esse fenômeno político- -cultural
se situa implica um processo de renovação.
De fato, embora se defendesse nos séculos XIX e XX a existência antiga senão
apriorística das nações, estas, segundo Hobsbawm, caracterizam-se, sobretudo, por sua
modernidade.
42
O autor informa que, no Dicionário da Real Academia Espanhola,
Antes de 1884, a palavra nación significava simplesmente “o agregado de
habitantes de uma província, de um país ou de um reino” e também “um
estrangeiro”. Mas agora [naquela data] era dada como “um Estado ou corpo
político que reconhece um centro supremo de governo comum” e também “o
território constituído por esse Estado e seus habitantes, considerados como um
todo” – e, portanto, o elemento de um Estado comum e supremo é central a tais
definições, pelo menos no mundo ibérico.
43
Adriano Moreira, tomando a França como típico exemplo da Europa, pontua
que, “na Idade Média, um homem deveria sentir-se primeiramente cristão, depois
burguinhão, e finalmente francês, em sentido inteiramente diferente do actual”.
44
Nem a
divisão feudal da sociedade nas três classes estamentais (clero, nobreza e povo), nem a
universalidade da identificação pelo cristianismo exprimiam o princípio de
40
BAUER. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 47.
41
BAUER. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 62.
42
Cf. HOBSBAWM, 2002, p. 27.
43
HOBSBAWM, 2002, p. 27. Com o sintagma em negrito quero frisar antecipadamente algum detalhe
sobre a especificidade do percurso da nação portuguesa no século XIX, que abordarei na seção seguinte.
44
MOREIRA, 1999, p. 312.
29
nacionalidade que os discursos nacionalistas bem posteriores postulariam. A idéia de
povo – ou seja, de uma população que se sinta unificada por uma consciência nacional –
pôde aparecer necessariamente com a deterioração do paradigma de uma sociedade
européia de contornos ainda feudais em fins do século XVIII. Em conhecido texto de
1862, Lord Acton já distinguia:
No antigo sistema europeu, os direitos das nacionalidades não eram
reconhecidos pelos governos nem afirmados pelo povo. O interesse das famílias
reinantes, e não os das nações, regia as fronteiras; e a administração era
conduzida, em geral, sem nenhuma referência aos desejos populares.
45
Esses diferentes contextos políticos pontuam por si a modernidade da nação.
Para Acton, a propósito, a teoria da nacionalidade expressaria ao lado das teorias da
igualdade e do comunismo anseios de remediar as injustiças sociais tão ressentidas na
nova era a que a Revolução Francesa de 1789 teria dado início.
46
Igualmente tendo em
vista a Europa, Benedict Anderson, mais de um século depois de Lord Acton, ve
como motivo da origem da nacionalidade a busca de um lenimento para um desconforto
existencial:
The century of the Enlightenment, of rationalist secularism, brought with it its
own modern darkness. With the ebbing of religious belief, the suffering which
belief in part composed did not disappear. Disintegration of paradise: nothing
makes fatality more arbitrary. Absurdity of salvation: nothing makes another
style of continuity more necessary. What then was required was a secular
transformation of fatality into continuity, contingency into meaning. As we
shall see, few things were (are) better suited to this end than an idea of nation.
If nation-states are widely conceded to be ‘new’ and ‘historical’, the nations to
45
ACTON. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 25.
46
Cf. ACTON. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 23-5.
30
which they give political expression always loom out of an immemorial past,
and, still more important, glide into a limitless future.
47
Tanto Lord Acton quanto Benedict Anderson enxergam no século XVIII o
século do Iluminismo e da Revolução Francesa uma época que condicionou o
surgimento da nação moderna e das ideologias nacionalistas. Sabemos que aquela
corrente filosófica e aquele episódio revolucionário são fatores fundamentais da queda
do paradigma sócio-econômico-político-cultural ligado ao Antigo Regime e da
consolidação de um novo paradigma em termos sociais, burguês; em termos
econômicos, capitalista; em termos políticos, liberal; em termos culturais, romântico;
em termos epistemológicos, cientificista. Sobre a relação entre o romantismo literário e
a nação, discorrerei na última seção deste capítulo. Convém, todavia, citar esta
passagem de Acton, onde se explicita a importância do envolvimento de um e com a
outra:
Por volta de 1830, a literatura também contribuiu para a idéia nacional. “Foi a
época”, diz Mazzini, “do grande conflito entre a escola romântica e a clássica,
que poderia com igual veracidade ser chamado de conflito entre os partidários
da liberdade e os da autoridade.” A escola romântica foi atéia na Itália e
católica na Alemanha, mas, em ambos os lugares, teve o efeito comum de
incentivar a história e a literatura nacionais.
48
À medida que se desmantelava o mundo clássico do Antigo Regime, baseado
numa concepção de unidade universal (a divisa, referida por Luiz Costa Lima, do estado
absolutista de “um Deus, um rei, uma lei”
49
), uma ordem de particularizações
se instaurava. Dentro dessa nova concepção, cada vez mais se assinalavam diferenças
47
ANDERSON, 1991, p. 11-2.
48
ACTON. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 34.
49
COSTA LIMA, 1984, p. 72.
31
identitárias, que, aliás, no caso europeu, o contato e o convívio com as populações
nativas de África, Ásia e América acentuavam. Pois, como di Otto Bauer, “O
conhecimento da vida estrangeira é precondição de qualquer consciência nacional”.
50
Benedict Anderson destaca três ‘raízes culturais’ da nação moderna: 1) os laços
promovidos pela irmanação religiosa; 2) a integração sociopolítica constituída pelos
reinos dinásticos; 3) a mudança nas apreensões do tempo.
51
A unidade que a religião e
as dinastias promoviam nos vários reinos europeus durante o Antigo Regime teria sido
concebida, a partir de fins do século XVIII, e principalmente no XIX e XX, como marca
anterior de identidades nacionais. A mudança nas apreensões do tempo viria a permitir
que assim se concebesse. Anderson pontua que “the mediaeval Christian mind had no
conception of history as an endless chain of cause and effect or of radical separation
between past and present”.
52
Devemos recordar que o fenômeno moderno da nação, que
se disseminou amplamente no hemisfério ocidental no século XIX, situa-se no contexto
da ‘ascensão do discurso histórico’.
53
A história ascendia, porque se integrava ao
paradigma cientificista da época, e dessa forma colocava-se como fruto de uma pesquisa
de documentos e de fatos, pautada em métodos científicos. Tratava-se, sobretudo, de
uma compreensão teleológica do mundo, consoante uma “crença otimista no avanço da
humanidade”.
54
Nessa narrativa histórica, os homens do presente ligavam-se por laços
identitários aos homens do passado, ligação que reforçava osnculos entre os homens
do presente circunscritos a determinado espaço, o espaço que se defendia ser o da
50
BAUER. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 67.
51
Cf. ANDERSON, 1991, p. 9-36.
52
ANDERSON, 1991, p. 23. Benedict Anderson parafraseia a informação de Bloch, o qual “observes that
people thought they must be near the end of time, in the sense that Christ’s second coming could occur at
any moment”. (ANDERSON, 1991, p. 23.) Um dos sermões da “Primeira Dominga do Advento”,
proferido em 1652 por Padre António Vieira, ilustra essa apreensão do tempo explicitada por Bloch,
conforme texto de Anderson: “[...] o dia do Juizo não está longe: está tão perto como o dia de ámanhã, e
como o dia de hoje, e como esta mesma hora em que estamos: Venit hora, et nunc est.” (VIEIRA, 1945,
v. I, p. 78.)
53
Cf. COSTA LIMA, 1984, p. 113-30.
54
COSTA LIMA, 1984, p. 37.
32
nação. Com efeito, ainda no campo da mudança das apreensões do tempo, Benedict
Anderson reflete sobre a noção de simultaneidade. Informa o autor:
What has come to take the place of the mediaeval conception of simultaneity-
along-time is [...] an idea of ‘homogeneous, empty time’, in which simultaneity
is, as it were, transverse, cross-time, marked not by prefiguring and fulfilment,
but by temporal coincidence, and measured by clock and calendar.
Why this transformation should be so important for the birth of the imagined
communities of the nation can best be seen if we consider the basic structure of
two forms of imagining which first flowered in Europe in the eighteenth
century: the novel and the newspaper.
55
A simultaneidade que se configura nesse tempo ‘homogêneo e vazio’, medido
pelo relógio e pelo calendário, abarca acontecimentos múltiplos ocorridos num mesmo
espaço, com pessoas distintas que não se conhecem, e provavelmente nunca se
conhecerão. Entretanto, as narrativas ficcionais e jornalísticas, florescidas na Europa
setecentista e em franca expansão nos oitocentos, promoviam e disseminavam a
consciência dessa simultaneidade. De modo que, segundo Anderson, The idea of a
sociological organism moving calendrically through homogeneous, empty time is a
precise analogue of the idea of the nation, which also is conceived as a solid community
moving steadily down (or up) history”.
56
Eis, afinal, uma das principais razões que
levaram o autor norte-americano a definir a nação como uma ‘comunidade imaginada’.
Pois “the members of even smallest nation will never know most of their fellow-
members, meet them, or even hear of them, yet in the minds of each lives the image of
their communion”.
57
Anderson chega a frisar ainda que “all communities larger than
55
ANDERSON, 1991, p. 24-5.
56
ANDERSON, 1991, p. 26.
57
ANDERSON, 1991, p. 5.
33
primordial villages of face-to-face contact (and perhaps even these) are imagined.
Communities are to be distinguished, not by their falsity/genuineness, but by the style in
which they are imagined”.
58
Anderson também atribui ao recenseamento, aos mapas e aos museus o papel de
grandes promovedores do imaginar a comunidade nacional.
59
Mas de que maneira todas
essas informações veiculadas por livros, jornais, revistas chegariam a uma maior
camada da população, no século XIX, e mesmo na Europa, com um significativo índice
de analfabetismo? Interessado no processo de formação das consciências nacionais, o
estado político percebeu a importância de promover o ensino público. Nas palavras de
Hobsbawm,
Naturalmente, os Estados iriam usar a maquinaria de comunicação,
crescentemente poderosa junto a seus habitantes sobretudo as escolas
primárias – para difundir a imagem e a herança da “nação” e inculcar a adesão a
ela, bem como ligá-los ao país e à bandeira, freqüentemente “inventando
tradições”, ou mesmo nações, com esse objetivo.
60
Entre os teóricos da nação mais recentes e mais importantes, Homi K. Bhabha
opera com os conceitos de pedagogia e performance para discuti-la em termos de sua
temporalidade. Bhabha explica como se articulariam o passado e o presente na idéia de
povo-nação:
[...] o povo consiste em “objetos” históricos de uma pedagogia nacionalista, que
atribui ao discurso uma autoridade que se baseia no preestabelecido ou na
origem histórica constituída no passado; o povo consiste também em “sujeitos”
de um processo de significação que deve obliterar qualquer presença anterior ou
originária do povo-nação para demonstrar os princípios prodigiosos, vivos, do
58
ANDERSON, 1991, p. 6.
59
Cf. ANDERSON, 1991, p. 163-85.
60
HOBSBAWM, 2002, p. 112.
34
povo como contemporaneidade, como aquele signo do presente através do qual
a vida nacional é redimida e reiterada como um processo reprodutivo.
61
Seria dúplice, ou cindida, portanto, a temporalidade da idéia de povo. De um
lado, sua condição de objeto situado no passado, de que o discurso nacionalista extrai a
autoridade da suposta origem nacional, com o fito pedagógico. De outro lado, o povo
como sujeito, situado no presente, que manifesta sua vitalidade identitária ou sua
presença performática a partir da obliteração com o passado. Aqui a performance do
povo está em consonância com o paradigma da modernidade, no qual a idéia de
progresso, de contínua renovação, ou ainda de ruptura com o passado, revela um caráter
redentor.
Bhabha, para pensar a nação, recorre a sua experiência de imigrante (indiano que
morou na Inglaterra) e ao fato emblemático de que, em meados do século XIX, tanto
ocorriam grandes movimentos migratórios quanto eclodiam mais sistematicamente
movimentos nacionalistas no Ocidente.
62
Influenciado ainda por trabalhos de Jacques
Derrida, principalmente no que tange ao conceito de ‘diferância’, Homi Bhabha cunha o
trocadilho ‘DissemiNação’. Uma vez que a performance constitui uma cisão de um
presente enunciativo com o passado pedagógico, o autor observa:
O problema não é simplesmente a individualidade” da nação em oposição à
alteridade de outras nações. Estamos diante da nação dividida no interior dela
própria, articulando a heterogeneidade de sua população. A nação barrada
Ela/Própria [It/Self], alienada de sua eterna autogeração, torna-se um espaço
liminar de significação, que é marcado internamente pelos discursos de
minorias, pelas histórias heterogêneas de povos em disputa, por autoridades
antagônicas e por locais tensos de diferença cultural.
63
61
BHABHA, 2003, p. 206-7.
62
Cf. BHABHA, 2003, p. 198-9.
63
BHABHA, 2003, p. 209-10.
35
Em suma: a nação é fruto de um paradigma da modernidade, construída e
disseminada ao longo do século XIX, legitimada com sua suposta historicidade ou até
naturalidade. Na próxima seção, vejamos como o processo ocorreu no Portugal
oitocentista.
1.2) CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO PORTUGUESA NO SÉCULO XIX
O historiador contemporâneo José Mattoso esclarece algo que ilustra bem o
perigo à nacionalidade colocado pelo ‘progresso dos estudos históricos’, conforme
asseverara Ernest Renan em 1882:
Ao contrário do que tentaram demonstrar as doutrinas nacionalistas dos anos
[19]30 a 60, baseadas, de resto, em conceitos positivistas e românticos
muito anteriores, não é possível encontrar vestígios coerentes de uma
nacionalidade portuguesa antes da fundação do Estado.
64
Segundo Mattoso, o mais próximo do fenômeno nacional, antes de Portugal
existir, não passava de pequenas e fugazes “formações políticas tendencialmente
autonômicas na faixa ocidental da Península Ibérica (em paralelo, de resto, com
formações análogas noutras regiões peninsulares), que se verificaram desde a pré-
-história até o século XII”.
65
O historiador destaca que a formação da consciência
nacional portuguesa, assim como a de outras partes do Ocidente, amparou-se em
ideologias do romantismo e do positivismo, as quais juntas atravessaram e
predominaram no século XIX.
Nessa altura, a história exerceu um papel ambíguo em relação ao fenômeno da
nação. Segundo Anthony D. Smith, “Os historiadores aparecem com destaque entre
64
MATTOSO. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 31.
65
MATTOSO. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 31.
36
seus criadores e devotos; mas também lideraram a tentativa de avaliá-lo e compreendê-
-lo”.
66
Na própria conferência de Renan na Sorbonne, encontramos tanto um autor
preocupado em tratar seu assunto com “la froideur, l’impartialité la plus absolue”,
67
quanto uma postura apologética, uma vez que “l’existence des nations est bonne,
nécessaire même. Leur existence est la garantie de la liberté, qui serait perdue si le
monde n’avait qu’une loi et qu’un maître”.
68
Precede ao exemplo do francês Renan o do
português Alexandre Herculano, romancista, poeta e também historiador. Cumpre dizer
que ele foi, em Portugal, um dos primeiros historiadores no sentido moderno da palavra.
Embora entusiasta das idéias liberalistas e, com base nestas, de um ideal de pátria-
-nação, na “Introdução” do romance histórico O Bobo, de 1843, Herculano informava o
seguinte sobre o contexto das origens de seu país, tematizadas nessa obra:
As províncias então libertadas do jugo ismaelita não tinham ainda, digamos
assim, senão os rudimentos de uma nacionalidade. Faltavam-lhes, ou eram
débeis grande parte dos vínculos morais e jurídicos que constituem uma nação,
uma sociedade. A ascensão do rei aragonês no trono de Leão não repugnava aos
barões leoneses por êle ser um estranho, mas porque a antigos súditos do nôvo
rei se entregavam de preferência às tendências e alcaidarias da monarquia. As
resistências, porém, eram individuais, desconexas, e por isso sem resultados
definitivos, efeito natural de instituições públicas viciosas ou incompletas. O
conde ou rico-homem de Oviedo ou de Leão, da Estremadura ou de Galiza, de
Castela ou de Portugal, referia sempre a si, às suas ambições, esperanças ou
temores os resultados prováveis de qualquer sucesso político, e, aferindo tudo
por êsse padrão, procedia em conformidade com êle. Nem podia ser de outro
modo. A idéia de nação e de pátria não existia para os homens de então do
mesmo modo que existe para nós.
69
66
SMITH. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000. p. 185.
67
RENAN, 1997, p. 8.
68
RENAN, 1997, p. 33.
69
HERCULANO, 1967, p. 12.
37
A passagem desmente, conforme se pode observar, a antigüidade da nação. Nos
séculos XI e XII, que demarcam o período de fundação de Portugal, não a nacionalidade
do governante legitimava seu governo, mas, sim, relações dinásticas e acordos entre a
nobreza de maior influência política. Lembremo-nos dos habituais casamentos, até pelo
menos o século XIX, entre reis, rainhas, príncipes, princesas de distintas nacionalidades;
das batalhas entre reinos, onde os nobres guerreiros rivais cumprimentavam-se, e no
mais das vezes compartilhavam de um desprezo pelos populares, conquanto estes
integrassem seus respectivos exércitos.
Ao desferirem duro golpe sobre as estruturas sociopolíticas do Antigo Regime, a
prática e a ideologia da Revolução Francesa condicionaram o advento da moderna
concepção de nação. De acordo com a Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão, o novo regime deveria pautar-se nos interesses da classe burguesa, que
significariam
[...] a vontade geral do “povo”, que era por sua vez (uma significativa
identificação) “a nação francesa”. O rei não era mais Luís, pela Graça de Deus,
rei de França e Navarra, mas Luís, pela Graça de Deus e do direito
constitucional do Estado, rei dos Franceses. “A fonte de toda a soberania”, dizia
a Declaração, “reside essencialmente na nação”.
70
Como em outras partes da Europa, a corte, a nobreza em geral e o clero
portugueses recebiam temerosos as notícias do processo revolucionário francês. Em
Portugal, o medo atingia patamares tais, que “Os próprios imigrados que chegavam a
Lisboa, procurando emprego, nobres escapados à guilhotina, até eles levantavam
suspeita”.
71
70
HOBSBAWM, 2005, p. 21.
71
FRANÇA, 1999, p. 26.
38
Embora Dona Maria I, rainha entre 1777 e 1792, implantasse severa censura à
veiculação de idéias iluministas e revolucionárias em Portugal e nas colônias
portuguesas, não tardariam a chegar ao país conseqüências contundentes da Revolução.
Em 1799, o General Napoleão Bonaparte assume o governo francês, apoiado por uma
burguesia interessada na estabilidade política, ausente no Terror de Robespierre, e
alcançada por contínuas intervenções do exército. Também em correspondência às
expectativas e anseios burgueses em conquistar um mercado para além das fronteiras
francesas, Napoleão procura prejudicar a rivalidade industrial e comercial da Inglaterra
com um bloqueio que contornasse todo o continente europeu. Para impor a realização
desse projeto, a França inicia uma série vitoriosa de guerras contra países desobedientes
ao bloqueio. Sem pretender confrontar o até então invencível exército francês e
tampouco a poderosa marinha britânica, D. João VI adia o máximo possível
manifestar--se colaborador ou não dos intuitos napoleônicos. As estreitas ligações
comerciais e diplomáticas entre Inglaterra e Portugal acabam por pesar na decisão do
príncipe regente de aliar-se aos ingleses. Em 1807, na iminência de uma invasão
francesa apoiada pela Espanha, a família real e a corte lusitanas seguem o conselho da
Inglaterra de abandonar o país e refugiar-se no Brasil, instruindo a população a o
resistir ao avanço das tropas comandadas por Junot.
Se o processo revolucionário levou a França a fornecer ao mundo “o primeiro
grande exemplo, o conceito e o vocabulário do nacionalismo”,
72
o expansionismo
napoleônico contribuiu grandemente para fomentar sentimentos nacionalistas na
Europa. Ao ocupar e até destituir monarquias, como fez à própria aliada Espanha,
entregando a coroa de Carlos IV ao irmão José Bonaparte, Napoleão revelava-se um
invasor tirano contra o qual cumpria lutar, em nome não mais apenas, como antes, de
uma legitimidade dinástica, mas também de uma legitimidade nacional. O estado
72
HOBSBAWM, 2005, p. 9.
39
francês via-se, pois, tima da irradiação de suas próprias idéias revolucionárias.
Irradiação que, no caso de Portugal, se deve observar com cautela. Segundo Teresa
Bernardino, a fuga da família real e da corte lusitanas traduziria uma precária
penetração no país de conceitos como nação, pátria e povo gerados e difundidos pela
Revolução Francesa.
73
A autora ainda informa outro dado sobre a infra-estrutura
portuguesa que comprometia a existência de uma integração nacional:
[Nas regiões rurais, predominantes no país] O contato entre populações mesmo
pouco distantes era muito limitado. E se isso se passava nos campos, as ligações
entre os que produziam e os que consumiam eram ainda mais difíceis. Daqui se
conclui que as populações deviam ter uma débil noção de nacionalidade. A sua
pátria era fundamentalmente a vida ou aldeia onde tinham nascido.
74
De qualquer forma, a ocupação francesa entre 1807 e 1810 condicionou, como
em outros países europeus, o surgimento de sentimentos nacionalistas em Portugal.
Embora D. João VI instruísse a população a não reagir com qualquer violência à
invasão das tropas napoleônicas, acabou havendo conflitos de mundividências entre os
portugueses em sua grande maioria com uma mentalidade de contornos medievais, de
educação tradicionalmente católica – e os estrangeiros – que levavam idéias
revolucionárias de aversão ao clero apostólico e às estruturas do Antigo Regime –.
salientei anteriormente, citando Otto Bauer, a importância do “conhecimento da vida
estrangeira” como “precondição de qualquer consciência nacional”.
75
José-Augusto França assinala que a saída do contingente real e cortês derroca o
momento em que “O ‘velho Portugal’ começa [...] o seu processo de desintegração”.
76
O
73
Cf. BERNARDINO, 1986, p. 25.
74
BERNARDINO, 1986, p. 63.
75
BAUER. In: BALAKRISHNAN (org.), 2000, p. 66-7.
76
FRANÇA, 1999, p. 28.
40
autor ainda se refere, como sintoma dos novos tempos, à nova postura perante a figura
do rei que o episódio então inédito na história portuguesa fomentou:
A primeira caricatura política portuguesa comentou o acontecimento; surgiu
então um género que conhecerá grande sucesso, sob o regime liberal. Era, em
certa medida, o anúncio dos tempos novos em que os reis deixavam de ser coisa
sagrada. Não se cortou, é certo, a cabeça do pobre regente D. João, mas ela foi
impiedosamente ornamentada com enormes cornos assaz alusivos. No seu
maldoso retrato da corte portuguesa, a duquesa de Abrantes não deixará de dar
razão ao caricaturista – mas o que importa é aperceber, por detrás da anedota, o
fim possível de um mito.
77
A dessacralização do rei revelava sua fabilidade e passibilidade de
questionamento público como administrador do país. O rei convertia-se em cidadão.
Entretanto, essa transformação de ordem política em Portugal aonde mal a ideologia
revolucionária tinha chegado ocorria a passos lentos. A ausência do príncipe regente
não repercutia como traição à pátria, conceito pouco conhecido nas terras lusitanas.
Segundo Teresa Bernardino,
[...] a saída do soberano para o Brasil não suscitou a animosidade da
generalidade da classe culta portuguesa nem tão-pouco do povo “miúdo”. O
apelo constante das gentes ao príncipe [em poemas, cantigas, discursos e
manifestações orais recorrentes durante a ocupação francesa] faz pressupô-lo. O
Brasil, como colônia, era parte integrante do território nacional. O rei tinha-se
apenas deslocado para uma parcela desse território com o fim de
salvaguardar a honra da monarquia. O seu acto revestiu-se, pois, de uma
intenção patriótica e era um indício de prudência aos olhos dos
contemporâneos. Além disso, não havendo uma distinção tida entre os
conceitos de realeza e de pátria, não se concebia como ser fiel à segunda sem o
ser à primeira.
78
77
FRANÇA, 1999, p. 28.
78
BERNARDINO, 1986, p. 196.
41
Vimos que José-Augusto França interpreta a fuga da família real e da corte como
o início do desmantelo das estruturas do ‘Velho Portugal’, típicas do Antigo Regime.
Com efeito, a presença do príncipe regente na então mais importante colônia
portuguesa, somada às cláusulas do acordo com a Inglaterra de que se deviam abrir os
portos brasileiros ao comércio internacional, levaram o Brasil a ser alçado à condição de
reino unido a Portugal e Algarves. Essa situação, que prenunciava a independência do
território americano, constituiu mais uma motivação para se exigir o retorno de D. João
VI, expulsos os invasores franceses desde 1810. A perda da colônia comprometeria
ainda mais as finanças públicas e as bases comerciais frágeis de um país que assumia,
desde meados do século XVI, lugar periférico no cenário político-econômico europeu.
Ameaçado com a destituição da coroa portuguesa e pressentindo um Brasil
independente, o príncipe regente retorna a Portugal, deixando seu filho mais velho, D.
Pedro, para garantir a continuidade dos Braganças no governo brasileiro.
A família real chega ao país em 1821, quando havia eclodido no ano anterior um
movimento revolucionário, chefiado por Manuel Fernandes Tomás, de diretrizes liberais
e constitucionalistas. A revolução, concentrada em seu início em agosto no Porto, mas
em setembro disseminada em Lisboa, elegera um Soberano Congresso Constituinte e
seus participantes redigiram os princípios legislativos de uma constituição, que entraria
em vigor em 1822. Nesse ano, o país perdia, definitiva e oficialmente, sua colônia nas
Américas. António Sérgio observa sobre a relação entre ambos os fatos coevos:
A independência do Brasil, proclamada por D. Pedro, foi o acto profundamente
revolucionário. O caso agora era gravíssimo, porque destruía os alicerces da
economia nacional. A Constituição de 1822 é uma ingênua vestimenta, debaixo
da qual a sociedade continua como a aí: não se lhe tocara nas fontes vitais;
agora, porém, ou voltava o Brasil a ser colónia, alimentando a metrópole com
42
as suas riquezas (o que não passava de uma quimera), ou, se não voltasse,
tinha--se de organizar a metrópole para a sua auto-suficiência, e, para isso, de
modificar profundamente as condições jurídicas da produção.
79
Se D. João VI, mesmo a contragosto, jura fidelidade à Carta de 22, D. Carlota
Joaquina e o infante D. Miguel recusam-se a fazê-lo. Ambos passam a buscar apoio
entre o clero e a nobreza, no intuito de revogar a Constituição. Em 1823 encabeçam o
golpe da Vilafrancada e em 1824 o da Abrilada, após o quê, D. João VI vê-se impelido
a exilar o filho rebelde como medida pacificadora.
Falecido D. João em 1826, sem este indicar sucessor à coroa, advém dilema de
graves conseqüências. Quem seria o novo rei: D. Pedro, imperador do Brasil havia
quatro anos, ou D. Miguel, exilado em Viena? Legitimistas, favoráveis ao infante,
asseveravam que a primogenitura não mais favorecia D. Pedro, uma vez que ele traíra o
reino ao proclamar a Independência Brasileira em 1822. Liberais, favoráveis ao outro
pretendente, temiam um reinado de D. Miguel, defensor do absolutismo monárquico e
do clericalismo, contra os quais os revolucionários de 1820 (denominados vintistas)
tanto vinham lutando. O Conselho de Regência, também na esperança de reaver a ex-
-colônia americana, decide-se por indicar D. Pedro. O imperador do Brasil, todavia,
abdica à sucessão em favor de sua filha, D. Maria da Glória. Sendo ela muito jovem
ainda para tornar-se rainha, seu pai procura solucionar o problema fazendo-a casar-se
com D. Miguel, o qual assumiria a regência até a maturidade da esposa. Além disso, D.
Pedro envia a Portugal uma nova constituição, cujas bases conservadoras
comprometiam as reformas políticas conquistadas pelos vintistas.
80
D. Miguel tanto jura
fidelidade à Carta redigida pelo irmão quanto desposa a sobrinha. No entanto, a
anuência converte-se logo em novo golpe. O infante, “sujeito a pressões constantes,
79
SÉRGIO, 1979, p. 133.
80
D. Pedro, como definira também na Constituição Brasileira de 1824, colocava acima dos poderes
executivo, legislativo e judiciário o moderador, exercido pelo monarca.
43
oriundas de todos os grupos sociais e, principalmente, dos seus conselheiros mais
chegados”,
81
proclama-se em 1828 rei absoluto. Mais um passo retrogradava assim a
estrutura sociopolítica portuguesa.
82
E uma violenta guerra civil entre 1828 e 1834
travar-se-ia: de um lado, miguelistas, grande parte da população do país; de outro,
liberais, perseguidos pelo governo, muitos exilados, mas enfim reunidos e organizados
por D. Pedro, que abdicara em 1831 ao trono brasileiro e requeria o trono português.
O embate entre os dois irmãos e seus respectivos partidários ganha dimensão
simbólica na leitura de autores como José-Augusto França. Este na Guerra Civil o
choque do novo Portugal, representado pelas idéias liberais, com o velho Portugal,
representado pelo conservadorismo miguelista.
83
Todavia, o choque não se restringe aos
anos de 1828 a 1834, mas parece estar profundamente arraigado no percurso do país
pelo século XIX. Se D. Pedro vence D. Miguel, e torna-se o rei D. Pedro IV de
Portugal, a morte que o abraçaria dentro de apenas quatro meses após a vitória
poderia simbolizar a efetividade de um empate entre as forças renovadoras e
conservadoras. Embora 1820, nas palavras de José-Augusto França, tenha sido “a
condição sine qua non da definição do novo século”
84
português, o país em termos
econômicos e sociais pouco havia avançado. Numa estrutura ainda eminentemente
agrária durante os oitocentos, a concentração da posse de terras nas mãos de quem ou as
cultivava com ineficácia ou as mantinha improdutivas constituía resistente entrave ao
desenvolvimento capitalista. Políticos como Mouzinho da Silveira e posteriormente
81
MARQUES, 1986, v. III, p. 11-2.
82
Em Portugal Contemporâneo, Oliveira Martins conclui que “A história de D. Miguel repetia a da
República Francesa – ao avesso”. (MARTINS, 1953, v. I, p. 177.) De fato, o ‘Terror’ miguelista vitimava
justamente os liberais ou os que se julgassem suspeitos de o serem. O historiador descreve a reação dos
idólatras do rei, ao saberem-no doente: “[...] desabafava o povo com os cacetes, vendo em tudo indícios
de liberalismo. O desgraçado a quem algum se lembrava de pôr subtilmente nas costas um M [de
malhado, alcunha atribuída os liberais portugueses], a giz, voltava a casa espancado, senão morto. Ter
uma flor na casaca, o anel em certo dedo, dois botões de colete desabotoados, eram indício de malhadice,
causa certa de espancamento. Ninguém se atrevia a vestir uma casaca azul, e eram denunciados os
mercadores que usavam nos seus livros papel dessa cor.” (MARTINS, 1953, v. I, p. 174.)
83
Em A Brasileira de Prazins, romance publicado em 1882, o narrador camiliano refere-se a um
periódico miguelista de nome O Portugal Velho. (Cf. CASTELO BRANCO, 1988 (a), p. 696.)
84
FRANÇA, 1999, p. 36.
44
Joaquim António de Aguiar dedicaram-se a solucionar os problemas com razoáveis
resultados, seja por meio de reforma tributária no que tangia a privilégios
tradicionalmente concedidos à nobreza e ao clero, seja por meio do confisco de terras
pertencentes a essas classes e seu leiloamento. Tais transformações, no entanto, não
poderiam surtir o efeito esperado, na medida em que a mentalidade portuguesa afinava-
-se pouco com uma visão empresarial, tipicamente capitalista. Segundo Amadeu
Carvalho Homem, “A nova burguesia liberal” classe que as reformas buscavam
beneficiar – ainda
aspirava à nobilitação, mantinha um ideal de riqueza predominantemente
centrado nos bens fundiários, especulava improdutivamente, amarrava-se o
melhor que podia aos nichos da administração pública e conservava sob
suspeita o valor da iniciativa individual, então decididamente vitoriosa nas
paragens européias mais desenvolvidas. O que o liberalismo significou, no
exterior, de libertação de forças produtivas, cristalizou, em Portugal, no
modesto cadinho de uma simples transferência de título de propriedade.
85
Mesmo a denominada Regeneração, que Rodrigo da Fonseca, João Carlos de
Saldanha e Fontes Pereira de Melo fizeram executar a partir de 1851, ateve-se a atingir a
superfície infra-estrutural, na promoção de obras públicas, como a construção de
estradas, ferrovias, cabos telegráficos ademais, financiadas por vultosas dívidas
internas e externas. Desse modo, o atraso econômico de Portugal mantinha-se e ia-se
mantendo para além do século XIX:
Na primeira metade dos oitocentos, o país era dos mais pobres da Europa, com
um rendimento per capita provavelmente 40% ou menos do inglês e entre 50%
e 60% do nível atingido então por economias periféricas do Norte da Europa
como a Dinamarca ou a Suécia. A partir daqui e até à Primeira Guerra Mundial,
85
HOMEM. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 346.
45
a economia portuguesa cresceria de forma sustentada, mas a um ritmo que ficou
bastante aquém da expansão internacional que entretanto ocorria e o fosso, que
existia, foi-se cavando cada vez mais fundo. Os portugueses acabariam por
ficar certamente mais ricos ao longo destas décadas, o acréscimo no seu
rendimento real cifrou-se entre os 40% e os 65% mas, como se figura, a sua
posição relativa tinha decaído acentuadamente. Em 1913, o produto nacional
per capita era cerca de 30% da média de um conjunto de 19 países que à época
se poderiam considerar avançados.
86
A nação portuguesa, em termos modernos, constrói-se justamente em
consonância com uma aguda consciência desse lugar periférico, em contraste com os
anteriores sucessos históricos, como exemplificavam a heróica fundação do Estado
português em confronto com Castela, as expansões e descobertas ultramarinas. O atraso
econômico de Portugal constitui questão bastante complexa. Segundo Jaime Reis,
debate-se o tema desde pelo menos o século XVI.
87
Ao observar bibliografia da década
de 1970 para sobre o assunto, esse autor pontua as causas mais assinaladas pelos
estudiosos para o atraso: distribuição das terras, junto à pobreza de recursos
naturais;
88
baixo conhecimento técnico e elevado índice de analfabetismo entre a
população, o que impedia obter-se resultados mais eficientes na agricultura, base da
economia portuguesa;
89
restrição do mercado consumidor interno e concorrência no
mercado consumidor externo
90
. Essas condições, entre outras, levaram Portugal a
situar--se na retaguarda do avanço econômico empreendido pelas potências ocidentais;
atraso tão sentido e ressentido no século XIX, quando a idéia de decadência nacional se
instala de maneira recorrente nas discussões sobre o país.
Na seção 1.1, referi-me ao fato de que, nas palavras de Luiz Costa Lima, “o
louvor da História tivera como forçoso acompanhamento a crença otimista no avanço da
86
REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 320-1.
87
Cf. REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 319.
88
Cf. REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 322-4.
89
Cf. REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 324.
90
Cf. REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 324-5.
46
humanidade”.
91
Quando o discurso histórico, sob a suposta égide da verdade, evoca a si
foros científicos, propondo o decorrer da História como um jogo linear de causas e
conseqüências, esse paradigma impõe a idéia de progresso. Cabe acrescentar que a
própria idéia de progresso traz consigo a inerente faceta antitética da decadência. Joel
Serrão esclarece:
[...] o conceito de progresso (e, portanto, também o de decadência), quando
referido ao plano temporal em que se processa a evolução histórica,
apresenta visos de utilização inteligível se for conexionado com a atividade da
ciência e com as consequências técnicas desta decorrentes [...].
92
Importa observar que o entrelace ideológico do progresso, da ciência de que o
discurso nacionalista se constituía em meados do século XIX, resultou num
entendimento da nação, nas palavras de Hobsbawm,
não apenas como nacional mas também como ‘progressista’, isto é, capaz de
desenvolver uma economia, tecnologia, organização de Estado e força militar
viáveis, ou seja, como algo que precisava ser pelo menos territorialmente
grande. Acabava sendo, na realidade, a unidade ‘natural’ do desenvolvimento
da sociedade burguesa, moderna, liberal e progressista.
93
Ao cotejar os fins do século XVIII (quando haviam ocorrido a Independência
Norte-Americana e a Revolução Francesa) e os cem anos depois (quando se comemorou
o centenário desses eventos), Eric J. Hobsbawm discute o fosso abissal cavado ao longo
desse período entre países pobres e ricos, juntamente a uma mudança paradigmática:
91
COSTA LIMA, 1984, p. 113.
92
SERRÃO, 1965, p. 28.
93
HOBSBAWM, 1996, p. 130.
47
No século XVIII, os europeus podem ter achado o Celeste Império [da China]
um lugar realmente muito estranho, mas nenhum observador inteligente o teria
considerado, em qualquer sentido, uma economia ou civilização inferiores à
européia, e menos ainda um país “atrasado”. Mas, no século XIX a defasagem
entre os países ocidentais, base da revolução econômica que estava
transformando o mundo, e os demais se ampliou, primeiro devagar, depois cada
vez mais rápido.
94
Segundo Hobsbawm, o alto desenvolvimento tecnológico tanto de aplicação
industrial quanto de aplicação bélica levou alguns países à necessidade e também à
possibilidade (o autor diz ‘facilidade’) de subjugar econômica e militarmente outros
países que não acompanhavam tal desenvolvimento.
95
Exemplifica essa situação o
Ultimatum inglês de 1890, que exigiu aos portugueses a retirada do território entre
Angola e Moçambique. Dado o poderio armamentista da Inglaterra, anuiu-se à
exigência sem qualquer efetiva oposição.
Numa busca mais refinada de localizar a pobreza e a riqueza do mundo no
século XIX, o historiador utiliza justamente Portugal para ilustrar que, mesmo na
Europa bloco mais desenvolvido –, havia países mais adequadamente classificáveis
àquela época como pobres. Eis sua descrição de Portugal: “[...] era pequeno, débil e
atrasado segundo qualquer padrão da época, praticamente uma semicolônia britânica; e
apenas o olhar da poderia discernir ali indícios significativos de desenvolvimento
econômico”.
96
O atraso econômico de Portugal, verificado no cotejo com especialmente
Inglaterra, França e Alemanha, revelava-se também no declínio do vasto império
português desde os quinhentos. Esse atraso frente ao ideal de progresso resultou na
angustiante percepção de decadência de Portugal manifesta por intelectuais (escritores,
94
HOBSBAWM, 2003, p. 32.
95
Cf. HOBSBAWM, 2003, p. 32-3.
96
HOBSBAWM, 2003, p. 36.
48
historiadores, políticos) do século XIX. Entre os fatos mais destacáveis e
cronologicamente mais próximos que teriam fomentado essa percepção no imaginário
português, Joel Serrão cita “a influência decisiva da independência do Brasil (1808-22)
e do ultimato inglês (1890) em momentos fundamentais da história do século passado [o
XIX] a experiência liberal vintista e a primeira revolução republicana”.
97
Referentemente à questão da decadência em Portugal, devemos ainda frisar que esta se
divide em “duas questões diversas, embora conexas”: “1) a da regressão económica,
técnica e científica que se teria seguido ao início do colapso do império luso-oriental (a
partir dos meados do século XVI); 2) a da ideologia decadentista que na consciência
desse facto lançaria as raízes”.
98
Neste trabalho não me interessará discutir o primeiro
ponto, mas, sim, na medida em que se diferenciam, quase exclusivamente o segundo.
Perceber, compreender e buscar solucionar essa decadência integrará o projeto de
construção da nação moderna portuguesa. E as mais célebres gerações de escritores
pertencentes ao século XIX (a de Garrett e Herculano e a Geração de 70 são as mais
significativas nesse aspecto) exemplificam como a literatura e a história tiveram o
propósito e o poder de traçarem e executarem esse projeto que modificava as relações
sociais, políticas, econômicas e culturais em todo o mundo.
1.3) A NAÇÃO PORTUGUESA E A LITERATURA PORTUGUESA NO SÉCULO XIX
Se a nação é imaginada, conforme Benedict Anderson, ou inventada, conforme
Eric Hobsbawm, ou ainda narração, conforme Homi Bhabha, fica fácil aproximá-la da
idéia de ser literário. Essa aproximação mostra-se mais pertinente, na medida em que
97
SERRÃO, 1965, p. 31.
98
SERRÃO, 1965, p. 31.
49
observamos o papel da literatura no projeto de construção nacional. Ademais, Bhabha
levanta este ponto:
De muitos, um: em nenhum outro lugar essa máxima fundadora da sociedade
política da nação moderna sua expressão espacial de um povo unitário
encontrou uma imagem mais intrigante de si mesma do que nas linguagens
diversas da crítica literária, que buscam retratar a enorme força da idéia da
nação nas exposições de sua vida cotidiana, nos detalhes reveladores que
emergem como metáforas da vida nacional.
99
Literatura e crítica literária a serviço do discurso da nação. Até que ponto este
trabalho, ao pretender apontar e analisar a imagem da nação portuguesa em A Queda
dum Anjo, de Camilo Castelo Branco, não participaria de um endosso à existência de
uma portugalidade, isto é, de uma identidade cultural portuguesa? Procurei aqui
equacionar dois problemas: 1) a nação como algo não “natural, fundamental e
permanente”,
100
pois se trata de uma ‘comunidade imaginada’ com certas características
situadas dentro de um certo espaço de tempo; 2) Camilo Castelo Branco como escritor
do século XIX, que, em princípio, acreditou numa essência nacional portuguesa. Se, por
um lado, a teoria possibilitou-me um olhar desconstrutor sobre o fenômeno político-
-cultural da nação, por outro lado, devo compreender o romance escolhido para objeto
de estudo dentro do contexto de sua época.
Em “Da Literatura como Interpretação de Portugal”, Eduardo Lourenço analisa o
significado da trajetória da produção literária portuguesa, a partir de meados do século
XIX. Almeida Garrett e Alexandre Herculano liberalistas e românticos inauguram a
modernidade de uma escrita que se relaciona “de uma nova ou inovadora maneira” com
a pátria. Trata-se de uma
99
BHABHA, 2003, p. 203.
100
HOBSBAWM, 2002, p. 27.
50
[...] motivação mais radical e funda (pelo que significa como ruptura) de toda
ou quase toda a grande literatura portuguesa do século XIX. O que desde
Garrett a estrutura no seu âmago, é o projecto novo de problematizar a relação
do escritor, ou mais genericamente, de cada consciência individual, com a
realidade específica e autónoma que é a Pátria. E como o laço próprio que une
o escritor, enquanto tal, à sua Pátria, é a escrita, a problematização dessas
relações é antes de tudo problematização da escrita, nova ou inovadora maneira
de falar a Pátria escrevendo-a em termos específicos, como o autor das Viagens
[na minha Terra] o fará com sucesso raro. A partir de Garrett e Herculano,
Portugal, enquanto realidade histórico-moral, constituirá o núcleo da
pulsão literária determinante.
101
A diferença entre a literatura anterior e a produzida pelos dois autores do
romantismo português a Fernando Pessoa, como quer o ensaísta, baliza-se de acordo
com características sociopolíticas de cada bloco periodológico de produção. Embora
Luís de Camões, em Os Lusíadas, e António Vieira, em História do Futuro,
102
por
exemplo, coloquem Portugal no âmago temático dessas obras, Lourenço esclarece que o
“interlocutor ideal” desses autores
[...] é a cristandade em geral, a sociedade universalmente concebida, ou, com
mais medíocre alcance, a confraria restrita dos letrados (humanistas, ou não). A
relação dos autores com a realidade colectiva enquanto simbolizável, era vivida
sem autêntica interioridade. “Portugal” não é ainda apreendido como realidade
histórica, em sentido próprio, e muito menos mortal, ou susceptível de morte.
103
101
LOURENÇO, 1991, p. 80.
102
Nessa obra, escrita após o fim da União Ibérica, António Vieira profetiza Portugal como concretizador
do Quinto Império do Mundo. Maria Leonor Buescu, organizadora de uma edição desse livro, chama a
atenção para a seqüência das línguas pelas quais se expressam seus textos proféticos: “[...] por que razão a
sua última peça se encontra em latim [?] E a resposta parece estar na própria proposta universalista da
História do Futuro que começa por ser Esperanças de Portugal e acaba por apontar para Império do
Mundo: começa, pois, por encontrar uma forma de expressão limitativa o português para terminar
numa forma de expressão que, por definição, seria universal.” (BUESCU. In: VIEIRA, 1982, p. 16.)
103
LOURENÇO, 1991, p. 81.
51
O reino de um rei representante de Deus na Terra e eterno na continuidade
dinástica torna-se, na passagem do século XVIII para o XIX, em Pátria-Nação,
“realidade imanente da qual cada cidadão consciente é solidário e responsável”.
104
Solidariedade e responsabilidade desse jaez impelirão Garrett, em “atitude inaugural e,
de algum modo, matricial,
105
a pensar o país num processo de busca identitária. Se
cada cidadão pertencia ao todo nacional, descobrir Portugal implicaria a descoberta da
própria identidade individual do cidadão. Nas palavras de Eduardo Lourenço:
De pura presença geográfica, natural, lugar de um destino certo ou incerto entre
vida e morte, a Pátria converte-se em realidade imanente da qual cada cidadão
consciente é solidário e responsável. Assim como no domínio político lhe é
pedido que directa ou indirectamente a assume pelo voto, assim culturalmente,
o que a Pátria é ou não é, interpela o escritor com uma força e uma urgência
antes desconhecidas. Cada escritor consciente da nova era escreverá, como
Fichte, o seu pessoal discurso à sua nação, cada um se sentirá profeta ou
mesmo messias de destinos pátrios, vividos e concebidos como revelação,
manifestação e culto das respectivas almas nacionais.
106
Pensador reformista, entusiasta dos ideais do liberalismo, Garrett escreve textos
político-historiográficos (Portugal na Balança da Europa, de 1830, por exemplo) e
textos literários, como o romance Viagens na Minha Terra, de 1843, e a tragédia Frei
Luís de Sousa, do mesmo ano. Nessas três obras, interfere estrutural e ideologicamente
uma consciência preocupada com os destinos da nação portuguesa, com seu lugar
presente e futuro no andamento civilizatório. Integrante da geração a que pertence
Garrett, Alexandre Herculano produz textos historiográficos, literários, políticos de
importância fundamental, impelido pelos mesmos ideais e interessado na mesma busca
empreendida pelo autor de Folhas Caídas. Ambos os eminentes autores românticos
104
LOURENÇO, 1991, p. 82.
105
LOURENÇO, 1991, p. 83.
106
LOURENÇO, 1991, p. 82.
52
“são heróis, ou participaram numa gesta de libertação aureolada de heroísmo e, apesar
das decepções futuras, confiam no ideal liberal que ajudaram a implantar no País”.
107
Segue-se a conhecida Geração de 70. o fervor patriótico e liberalista haveria
esmaecido em frívolas poses. O grupo de Antero de Quental direcionamuitas de suas
críticas a esse espírito tornado ‘patrioteiro’ e, em postura diversa da de Garrett e
Herculano, penetrará nesta ontológica floresta interrogativa: Quem somos? O que
somos? Como nos tornámos no que somos, povo atrasado, inculto, desistente,
sonâmbulo, inconsciente, sem outro futuro que o de um vago projecto imperial
esvaziado de conteúdo?
108
Em Eça de Queirós, Ramalho Ortigão e Antero de Quental
notadamente, a anterior verve heróica de ser português lugar a um acutilamento
impiedoso nessa nacionalidade. As Farpas, as Conferências do Casino Lisbonense,
ocorridas em 1871, registram a mudança brusca de tom e de viés por parte dessa
intelligentsia lusitana. Com bases intelectuais positivistas, crêem como deus maior no
progresso, cujo andamento vertiginoso empreendido por França, Inglaterra e Alemanha,
acusam Portugal de não acompanhar. Heréticos num país de predominância católica, os
asseclas desse ideário civilizatório fizeram-se de implacáveis inquisidores desse mesmo
país.
Não observarei aqui a continuidade do que Eduardo Lourenço aponta e discute
em seu texto. Detenho-me em período mais circunscrito ao ano de 1865, data de
publicação de A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco. Deixarei de lado,
portanto, as últimas manifestações da Geração de 70 perante o Ultimatum inglês de
1890 e o que Guerra Junqueiro, António Nobre, e depois Teixeira de Pascoaes e
finalmente Fernando Pessoa estes dois situados no século XX produziram com o
foco na problematização ontológica de Portugal.
107
LOURENÇO, 1991, p. 87.
108
LOURENÇO, 1991, p. 91.
53
Eduardo Lourenço, em seu texto, não contempla o lugar de Camilo Castelo
Branco na tradição literária portuguesa de problematizar Portugal.
109
Dedica-lhe apenas
estas poucas linhas, entre travessões, compartilhadas com o autor de As Pupilas do
Senhor Reitor:
Justamente, é com a Geração de 70 em geral, mas sobretudo graças à obra de
Eça de Queirós após uma desdramatização da consciência literária como
obcecada pelo estatuto da realidade nacional, tal como as obras de Camilo e
Júlio Diniz de diversa mas paralela maneira representam que nós
entramos em cheio no segundo grande momento [...] da história da nossa
autognose moderna.
110
Nessa visão, Camilo nem teria instaurado a reflexão sobre um Portugal
histórico-político, como o fizeram Garrett e Herculano, nem teria executado uma
ruptura na linha dessa abordagem reflexiva dos precedentes, como o fizeram cada um
a seu tempo – a Geração de 70, Teixeira de Pascoaes e Fernando Pessoa. Lourenço situa
o romancista entre a fase heróico-patriótica dos primeiros românticos, engajados em
causas liberalistas, e a fase cáustica e antipatrioteira de Antero e companheiros.
Coloca--o, pois, o crítico numa espécie de intervalo sem importância nessa trajetória da
literatura portuguesa de pensar Portugal.
Acredito que a vastíssima obra camiliana não manifesta, de fato, preocupação
sistemática e consistente com a realidade nacional, como ocorre com os demais
escritores elencados e analisados por Lourenço. No entanto, aspectos predominantes
109
Em “Portugal como Destino”, Eduardo Lourenço associa a história portuguesa à compreensão que
desta expressou a literatura nacional. Nesse texto, o autor enxerga em Camilo um Portugal não
precisamente histórico, mas colocado em plano transcendente sustentado pela paixão de seus
personagens. Dessa forma, “A sua intenção não é de mudar Portugal, contribuir para renovar o seu modo
de ser e ainda menos de o pensar. O seu desígnio de encenar a vida portuguesa como teatro de
sentimentos, palco de conflitos entre o dever e a fatalidade, o bem e o moral. esse subjetivo e
desconhecido retrato de Portugal de paixões e como paixão lhe interessou.” (LOURENÇO, 1999, p. 110-
1.)
110
LOURENÇO, 1991, p. 89.
54
não podem, legitimamente, responder pelo todo; principalmente no caso de Camilo.
Defender essa visão a partir de A Queda dum Anjo caberá aos capítulos seguintes desta
dissertação.
1865, quando Camilo Castelo Branco publicou o romance, é uma data
importantíssima para a história portuguesa. Nesse ano, noticia José-Augusto França
ocorreu “a primeira exposição industrial internacional do Porto [que] coroou o prudente
período determinado pela Regeneração, enquanto uma nova geração de poetas-
-estudantes contestava esta prudência, numa retumbante polémica ideológica”.
111
A
polêmica ficou conhecida como a Questão Coimbrã, e nela Camilo tomou parte ativa,
intervindo com o artigo “Vaidades Irritadas e Irritantes”, onde defende o amigo António
Feliciano de Castilho dos ferinos ataques desferidos pelo jovem Antero de Quental. A
Questão Coimbrã, mais que um episódio de caráter literário, consistiu em ensaio geral
para as Conferências do Casino Lisbonense, realizadas seis anos após. em “Bom
Senso e Bom Gosto” artigo ao qual responde o de Camilo –, Antero referia-se a um
“ignorado canto da terra, a que ainda se chama Portugal”,
112
pois quem pensa e sabe
hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é Paris, é Londres, é Berlim”.
113
Nessa célebre polêmica, opunham-se: de um lado, escritores consagrados, que
defendiam a permanência de ideais estéticos românticos, mas que traíam procedimentos
neoclássicos, como Castilho, Camilo e Pinheiro Chagas; estes representavam ainda o
protecionismo de valores culturais que se colocavam como autenticamente lusitanos
de outro lado, jovens escritores, estudantes em Coimbra, que postulavam a renovação
ou mesmo revolução intelectual, literária, sociopolítica no país, com base no modelo das
grandes potências européias; integravam este grupo Antero, Teófilo Braga, futuros
componentes da Geração de 70. Travava-se, uma vez mais, o embate entre o velho e o
111
FRANÇA, 1999, p. 8.
112
QUENTAL, 1973, p. 282.
113
QUENTAL, 1973, p. 290.
55
novo Portugal,
114
a exemplo da Guerra Civil empreendida, cerca de 30 anos atrás, por
miguelistas e liberalistas. Sobre o significado desse recorrente choque de forças
conservadoras contra forças modernizadoras, Joel Serrão afirma:
A polémica multissecular entre castiços e estrangeirados, entre messianismos
de estirpe vária (como, por exemplo, o sebastianismo) e esforços de
actualização cultural e técnica, não é mais, em última instância, que um aspecto
[da] percepção do desajustamento entre o tempo português e o europeu
transpirenaico.
115
Durante a década de 1860, com efeito, Portugal passa por mudanças em sua
fisionomia infra-estrutural e jurídica que revelam a preocupação por parte de políticos
em fazer ingressar o país na marcha do progresso.
116
Em 1863, extinguem-se os vínculos
de propriedade; em 1864, alcança-se a marca de mais de 2000 km de fios telegráficos
instalados, além de se realizar o primeiro recenseamento populacional
117
com base em
métodos científicos; em 1866, inauguram-se as ligações ferroviárias com a Europa
além-Pireneus.
118
Vale observar que a década de 1860 insere-se no período que Eric J.
114
Na década de 1860, quando Camilo publicou A Queda dum Anjo, outras partes do mundo, além de
Portugal, vivenciavam o confronto entre o velho (ou a tradição) e o moderno (ou o progresso). Aqui me
refiro a dois exemplos importantes: a) o dos Estados Unidos, onde durante a Guerra de Secessão de
1861 a 1865 o Norte em pleno vigor capitalista combate o Sul agrário e escravocrata; b) o da Rússia,
onde eslavófilos defendiam a tradicional estrutura social, política e econômica em conformidade com os
valores da Igreja Ortodoxa e os ocidentalistas, que propunham para o país a adoção do modelo da Europa
industrializada.
115
SERRÃO, 1965, p. 30.
116
São pertinentes, no que se refere a essa discusão sobre a década de 1860, as seguintes considerações
tecidas por Hobsbawm: “Em torno de que girava a política internacional entre os anos de 1848 e 1870? A
historiografia ocidental tradicional tem pouca dúvida a esse respeito: era em torno da criação de uma
Europa de Estados-nações. Podia haver considerável dúvida sobre a relação entre essa faceta da era e
outras que estavam evidentemente em conexão com ela, tais como o progresso econômico, o liberalismo
e talvez até a democracia, mas nenhuma sobre o papel central da nacionalidade.” (HOBSBAWM, 1996,
p. 125-6.)
117
Conforme vimos na seção 1.1, Benedict Anderson coloca o censo, ao lado de mapas e museus, como
importante base para fomentar-se, no século XIX, as consciências nacionais, destacadamente nos países
colonizados, onde, por exemplo, não correspondente ao longo histórico das dinastias européias. O
autor assinala que “The fiction of the census is that everyone is in it, and that everyone has one – and only
one – extremely clear place. No fractions”. (ANDERSON, 1991, p. 166.)
118
Os empenhos da Regeneração colocam o país ibérico dentro de um contexto de transformações de
âmbito verdadeiramente mundial nesse período. Eric J. Hobsbawm apresenta os seguintes números
relativos à malha de ferrovias época, símbolo de progresso) em outros países em situação sócio-
-econômica mais semelhante à de Portugal: “Em 1845, fora da Europa, o único país ‘subdesenvolvido’ a
56
Hobsbawm denomina a ‘Era do Capital’, quando “uma nova palavra entrou no
vocabulário econômico e político do mundo: ‘capitalismo’”,
119
mundo que então “se
tornou capitalista e uma minoria significativa de países ‘desenvolvidos’ transformou-se
em economias industriais”.
120
Sabemos que Portugal não se enquadra nessa ‘minoria
desenvolvida’. As mudanças acima elencadas não eliminaram, nem aparentavam
pretender eliminar de todo o atraso econômico português. Ainda dentro do panorama de
100 anos depois, Vitorino Magalhães Godinho o qualifica Portugal como um país
urbanizado, ao menos quanto ao critério da porcentagem da população concentrada nas
cidades. Segundo o pesquisador, mesmo Lisboa apenas minimamente situar-se-ia na
categoria de ‘grande cidade’.
121
Informado pelo Atlas de Portugal de Amorim Girão,
Godinho fornece os seguintes dados referentes à distribuição populacional portuguesa
no ano anterior à publicação de A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco:
Em 1864, com efeito, a capital tem 190 000 habitantes, o Porto 80 000, e acima
de 20 000 não encontramos mais nenhuma; sòmente cinco entre 10 000 e 20
000, que são Braga (a única a aproximar-se desse máximo da categoria),
Coimbra, Évora, Setúbal e Elvas, estas quatro a rasar o mínimo. Aglomerados
com população entre 4 000 e 10 000, registam-se doze Tavira, Aveiro,
Castelo Branco, Viseu, Portalegre, Bragança, Guarda. Nestes dezanove
aglomerados com mais de 4 000 habitantes vivem ao todo 411 600 – não chega
a 11% da população total, entrando Lisboa com 5,5%. Cabem à capital e à
cidade do Douro conjuntamente 270 000 habitantes, enquanto os dezassete
restantes aglomerados totalizam tão-só 140 000. Mesmo para o século XIX,
estes números demonstram uma fraquíssima urbanização.
122
possuir uma milha que fosse de estrada de ferro era Cuba. Em 1855, havia linhas em todos os cinco
continentes, apesar de na América do Sul (Brasil, Chile, Peru) e na Austrália serem dificilmente visíveis.
Em 1865, a Nova Zelândia, a Argélia, o México e a África do Sul tinham suas primeiras estradas de
ferro e, por volta de 1875, enquanto Brasil, Argentina, Peru e Egito tinham perto de mil milhas ou mais
de trilhos, Ceilão, Java, Japão e mesmo o remoto Taiti já tinham adquirido suas primeiras linhas”.
(HOBSBAWM, 1996, p. 86.)
119
HOBSBAWMN, 1996, p. 19.
120
HOBSBAWMN, 1996, p. 54.
121
Cf. GODINHO, 1977, p. 28-30.
122
GODINHO, 1977, p. 30-1.
57
O embate entre as facetas coexistentes do velho e do novo Portugal, a que a
idéia de decadência nacional se relaciona intimamente, exprime a própria modernidade
do país. No próximo capítulo, veremos como Camilo Castelo Branco pensou, na
palavras de Joel Serrão, esse “desajustamento entre o tempo português e o europeu
transpirenaico”;
123
como, em A Queda dum Anjo, se traça, ademais, a trajetória
autognóstica da nacionalidade portuguesa, a partir de elementos narrativos que
pretendem refletir uma conjuntura histórica, contemporânea do autor, enfim, a imagem
da nação portuguesa camiliana.
CAPÍTULO 2:
NAÇÃO PORTUGUESA: ENTRE O VELHO E O NOVO
PORTUGAL
Ó tempos patriarcais!... Com que saudade
Eu, filho destas eras pataratas,
Invejo os meus avós!
Vivíeis pendurados dos rabichos,
Virtudes portuguesas!
O rabicho caiu, caístes vós.
123
SERRÃO, 1965, p. 30.
58
E agora... ai! Que desmancho, que toleimas,
Que gente, que nação, e que costumes
Os teus, ó Portugal!
Se há civilização, é só nos lumes,
Nos lumes-prontos só:
E, se teimam que há luz, é infernal!
Camilo Castelo Branco, Coração, Cabeça e
Estômago
[...] é o progresso às portas da Idade Média.
José Saramago, Viagem a Portugal
2.1) O VELHO E O NOVO PORTUGAL: DICOTOMIA(S) DO ROMANCE
No primeiro capítulo de Os Cinco Paradoxos da Modernidade, Antoine
Compagnon traça o percurso semântico da palavra ‘moderno’. Segundo o autor, por sua
vez amparado em Hans Robert Jauss,
[...] modernus aparece, em latim vulgar, no fim do século V, oriundo de modo,
“agora mesmo, recentemente, agora”. Modernus designa não o que é novo, mas
o que é presente, atual, contemporâneo daquele que fala. O moderno se
distingue, assim, do velho e do antigo, isto é, do passado totalmente acabado da
cultura grega e romana.
124
Durante os séculos medievais, o ‘moderno’ se distingue do ‘antigo’, mas a este
não se opõe. Para a época, a novidade advém de certa corrupção de uma origem ideal.
Tal concepção, legitimada senão produzida pela doutrina cristã, poderia encerrar-se na
124
COMPAGNON, 2003, p. 17.
59
máxima de Vincent de Lérins: non nova, sed nove”, isto é, “não o novo, mas de novo”.
O conceito toma o significado contemporâneo, marcando o próprio surgimento da
modernidade, esta em consonância com a invenção do progresso, ou do paradigma que
o institui. ‘Moderno’, assim, passa a pressupor “Uma concepção positiva do tempo, isto
é, a de um desenvolvimento linear, cumulativo e causal”, de um tempo aberto “para um
futuro infinito”.
125
‘Moderno’ despe-se de sua anterior carga semântica negativa de
corrupção face ao ideal que os antigos representariam, e passa a conotar (ou denotar?)
uma melhoria alcançada por meio da superação de algo que se torna, ao ser superado,
passado.
A idéia de um embate entre o velho e o novo, entre o antigo e o moderno
sintetiza a estrutura diegética de A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco. Aliás,
não apenas desse romance, mas de sua obra como um todo. Segundo Eduardo
Lourenço,
[...] Camilo tem um no mundo antigo da monarquia absoluta que não
acabava de agonizar perante os seus olhos, mundo de que se afinal o
verdadeiro cronista se não o romancista, e o outro, no mundo novo de um
liberalismo que não escapará nunca aos seus sarcasmos e às suas invectivas.
126
O comentário generalizante sobre a narrativa camiliana diz muito,
especificamente, do livro que procuro aqui analisar. A Queda dum Anjo caracteriza-se
por uma série de dicotomias enfeixadas na dicotomia maior: a de um velho e de um
novo Portugal. Eis o cerne da imagem da nação portuguesa que Camilo Castelo Branco
delineia em seu romance. Neste polarizam-se, em correspondência respectiva à
dimensão antiga e à moderna: 1) espaço provinciano x espaço urbano; 2) bases sociais
do Antigo Regime x ordem burguesa; 3) economia agrária (feudal) x economia
125
COMPAGNON, 2003, p. 19.
126
LOURENÇO, 1994, p. 220.
60
industrial (capitalista); 4) convenções sociais x paixão e amor; 5) linguagem castiça x
linguagem corrompida; 6) literatura clássica x literatura romântica.
Sabemos que A Queda dum Anjo é uma narrativa satírica e irônica. A leitura
dessa obra depara-nos risos destinados tanto a um quanto a outro pólo de cada
dicotomia explicitada acima ou seja o narrador camiliano ri do velho, mas também
do novo Portugal. Trata-se de postura sintomática dos tempos nos quais viveu o
romancista. A modernidade, que pressupõe uma marcha progressista, havia instaurado
uma noção de que o presente separa-se do passado, pois aquele se faz a partir da
superação deste. Essa noção motiva o riso satírico e irônico no romance de Camilo: o
narrador satiriza e ironiza o apego de Calisto Elói ao passado. Mas, contraditoriamente,
motiva-o também um tom nostálgico, que lamenta o avanço da modernidade e a
conseqüente digamos assim perda do passado. Talvez estranharemos menos a
postura ideológica de Camilo Castelo Branco em si contraditória, mas em coerência
com sua época –, se lermos estas palavras de Compagnon:
Todos os artistas modernos, desde os românticos, se viram divididos, por vezes
dilacerados. A modernidade adota facilmente uma postura provocante, mas seu
interior é desesperado. Não sejamos tentados pela miragem da síntese;
mantenhamos as contradições, por natureza insolúveis; evitemos reduzir o
equívoco próprio ao novo, como valor fundamental da época moderna.
127
Busquei adotar os conselhos do autor francês, ao analisar A Queda dum Anjo.
Respeitei em Camilo as contradições e seus pontos insolúveis, sem querer, portanto,
alcançar uma coerência forçada na visão de mundo e, especialmente, na imagem da
nação portuguesa delineada no romance. Afinal, nas palavras de Maria de Lourdes
Ferraz, Expressando a impossibilidade do certo, do verdadeiro, do absoluto, como
127
COMPAGNON, 2003, p. 15.
61
dados únicos da realidade, o ironista [e, de fato, o é o narrador camiliano] expressa
sobretudo o conflito, a crise”.
128
2.2) ESPAÇO PROVINCIANO X ESPAÇO URBANO
Na ‘Introdução’ deste trabalho, tive oportunidade de sintetizar o enredo de A
Queda dum Anjo. Trata-se da transformação metaforizada na imagem da ‘queda’ de
um fidalgo interiorano português, exageradamente apegado a valores antigos de seu país
e de moral católica muito rígida o ‘anjo’ anunciado no título do romance em um
homem que, impelido por sentimentos adúlteros, vive os costumes de sua época, ou
seja, dos meados do século XIX. um fator importantíssimo que condiciona esta
transformação: o deslocamento de Miranda para Lisboa, que o cargo de deputado exige
ao protagonista Calisto Elói. Dentro, pois, da dicotomia do velho e do novo Portugal,
temos a do espaço provinciano mirandense e a do espaço urbano lisboeta.
Em Miranda, ou mais precisamente na aldeia de Caçarelhos, Calisto Elói nasce e
vive até eleger-se deputado e transferir-se para a capital portuguesa. Ainda em sua terra
natal, embora sem nenhum sentimento amoroso mútuo, casa-se com sua prima Teodora;
como ele, uma provinciana rica e aristocrata. Ambos levam uma vida bastante simples e
monótona: a mulher, cuidando dos afazeres domésticos, e o marido, passando o mais
das horas retirado em sua biblioteca a ler velhos compêndios. Em vista dos costumes do
protagonista antes de render-se à modernidade que encontrará em Lisboa, o narrador
ironicamente chamará Miranda, ao fim do romance, de “fragmento paradisíaco do
Portugal velho”.
129
128
FERRAZ, 1987, p. 20.
129
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.
62
A comparação de Miranda com o paraíso, assim como a de Calisto com um anjo
enredam-se na ironia disseminada pela narrativa. Na esfera privada, o casamento entre
esse personagem e Teodora ocorre por uma mera conveniência familiar: a de unir os
morgadios. O casal mantém a certo momento do livro uma relação impoluta, mas a
preço de uma vida sem amor e sem graça. No décimo capítulo (“O coração do
homem”), o narrador noticia e comenta:
Calisto, ao outro dia da primeira noite de esposo, por volta das sete horas da
manhã, estava a ler a Viagem à Terra Santa, por frei Pantaleão de Aveiro; e,
à mesma hora, a noiva andava de sobre um catre de pau-preto rendilhado,
com uma vassoira de giesta, a limpar teias de aranha do tecto.
[...]
Ora, deste começo de amores, infiram V. Ex.
as
o restante daquela doce vida!
130
Na esfera pública, a província nortenha portuguesa também não se apresenta
muito digna de ser intitulada pelo menos ao da letra ‘fragmento paradisíaco’. O
entusiasmo dos mirandenses com a candidatura do morgado da Agra de Freimas não se
por sua vocação política, mas por sua erudição e fala desenvolta. Uma e outra
impressionam os conterrâneos, embora estes pouco entendam delas.
Quando chega a Lisboa o espaço do novo Portugal –, Calisto Elói espera ver-
-se numa cidade tal qual descrita por seus alfarrábios, ou seja, uma Lisboa do velho
Portugal. O personagem, aliás, procura residir no bairro de Alfama, porção da antiga
Lisboa”, para onde se dirige acreditando que “a cada esquina havia um monumento à
espera de arqueólogo competente”.
131
Entretanto,
130
CASTELO BRANCO, 1986, p. 883-4.
131
CASTELO BRANCO, 1986, p. 851.
63
Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os
lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele
desastradamente escorregara, e donde saíra mal limpo, e assoviado por marujos
e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de
Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de
Lisboa, que devia ser a ínclita Ulisseia de Luís de Camões!
132
Suja, mal-cheirosa, povoada de mulheres de aspecto doentio – eis a cidade que o
deputado mirandense encontra, desencontrada da Lisboa colhida de seus clássicos.
133
Outra situação humorística, de sabor picaresco, que a discrepância entre a descrição dos
livros do personagem e a capital que este vê, é esta:
[...] como a água do chafariz de El-Rei aclarava o órgão vocal, e Calisto, à força
de berrar ao do açude e das azenhas, estava um tanto rouco, mandou buscar
um barril daquela salutífera água, que o Mendes de Vasconcelos compara à das
fontes Camenas. Bebeu à tripa forra o deputado, e teve uma dor de barriga
precursora de febres quartãs. Valeu-se ainda do seu clássico, e por conta dele
mandou buscar à Pimenteira outro barril de água, a qual, diz o citado autor, se
busca para os doentes de febres.
134
No Parlamento a esfera pública lisboeta –, vemos a política se fazer segundo
interesses particulares, e nos pronunciamentos mais desfilam rebuscamentos de
linguagem do que se apresentam idéias para bem se administrar o país. Importa
sublinhar que o próprio Calisto Elói não foge completamente a esse contexto.
132
CASTELO BRANCO, 1986, p. 851.
133
Entre os sonetos humorísticos de Nas Trevas (obra de Camilo Castelo Branco publicada em 1890),
um intitulado “Aromas”, cujos tercetos transcrevi abaixo:
Há povos que se nutrem só de flores,
É Camões quem o diz. Também Lisboa
Vapora fragrantíssimos odores.
Mas eu não sei dizer-lhes, meus Senhores,
Se os tais cheiros são coisa má ou boa:
Sei que é deles que vivem os autores. (CASTELO BRANCO, 1989, p. 914.)
134
CASTELO BRANCO, 1986, p. 852.
64
Na esfera privada, temos o adultério como o emblema da degeneração moral em
Lisboa. No décimo primeiro capítulo (“Santas ousadias!”), no propósito de salvaguardar
a retidão dos costumes, o protagonista chega a aconselhar Catarina personagem com
quem não tem grande intimidade a deixar de trair o marido. No décimo segundo (“O
anjo-custódio”), convence o amante dela, D. Bruno de Mascarenhas, a dar cabo da
relação extraconjugal. Mas ironicamente o morgado logo se apaixonará por Adelaide,
irmã de Catarina. Se nesse caso o adultério não se consuma, pois não reciprocidade
de sentimentos, o marido de Teodora depois se renderá aos encantos de Ifigénia
belíssima viúva brasileira, que viera do Brasil a Portugal para conseguir uma pensão
negada pelo governo de seu país. A traição de Calisto enseja a de sua esposa, seduzida
pelo primo Lopo da Gamboa, meramente interessado na fortuna da parente.
Lisboa comparada no romance à Babilônia
135
revela, por um lado, uma face
de aparência civilizada, luxuosa, moderna, mas por outro, uma face moralmente
degenerada, tanto no âmbito político quanto no social. A Queda dum Anjo também
sugere outra comparação: entre a capital portuguesa e a França. O deputado portuense
Dr. Libório adversário de Calisto Elói toma o país transpirenaico como modelo de
civilização e modernidade a ser seguido pelo país ibérico. O ponto nevrálgico da
argumentação do personagem é o luxo:
O orador: Que é o luxo? [...] Oh! o luxo, o luxo, Senhores, é marco miliário
de civilização, a pomba que se volita da arca, e se vai espanejando de asas por
céus e terras além, recobrada de pavores primeiros, e saltitando de frança em
frança. Oh! que rejúbilos de coração para quem fadado lhe foi de cima o
entender a amar, que o compreender é amar, na frase incisiva e galharda de
Vítor Hugo!
135
Em outro soneto humorístico de Nas Trevas, Lisboa Bucólica”, Camilo chama a capital portuguesa
“lusa babilônia”. (CASTELO BRANCO, 1989, p. 915.)
65
Sr. Presidente! O coração da França, o encéfalo, o grande nervo da França é o
luxo. E eu estive na França, Sr. Presidente; fui-me para me reverberarem nos
cristais de alma os lumes daquela perla de Ofir! Ai! a França!
136
O deputado mirandense opõe-se enfaticamente às instâncias do colega do Porto,
alegando a pobreza de Portugal, incompatível com superfluidades, e defendendo os
valores autenticamente nacionais. Nessa perspectiva, poderíamos fazer a seguinte
correspondência, proposta por José Clécio Basílio Quesado: Miranda representaria
Portugal; Lisboa, a Europa transpirenaica.
137
integrado na modernidade do novo
Portugal, e ainda motivado pela perseguição da esposa, Calisto foge com a amante
Ifigénia para Paris. No último capítulo (“Saldo de contas conjugal”), o narrador
informará: “O passeio à Europa limpou-lhe do espírito as teias: é bom desempoeirar os
olhos com a viração salutar dos ares de França e Itália.”
138
Curiosamente e trata-se de
um costume entre os iberos –, a frase parece desmentir o fato geopolítico de Portugal
pertencer ao continente europeu. Quando lhe informam que o marido e a amante
viajavam pela Europa, Teodora faz esta pergunta sintomática: “– Onde é a Europa?”.
139
A interrogação mais do que assinala a caricata ignorância da personagem; expressa a
sensação coletiva de que Portugal um país periférico desde séculos o participa do
continente, onde se situam grandes potências industriais, comerciais e científicas.
Em A Queda dum Anjo, Camilo Castelo Branco encena ainda dentro do
embate entre o velho e o novo Portugal a admiração pelos países de além-Pireneus,
principalmente pela França, e a valorização do que é português à revelia do status de
inferioridade do país ibérico no Ocidente. No artigo “Portugal-França ou a comunicação
assimétrica”, Eduardo Lourenço assevera: “Não que fugir. A cultura francesa, o
136
CASTELO BRANCO, 1986, p. 877-8.
137
Cf. QUESADO, 2ª. ed. a ser publicada, p. 67; p. 74.
138
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1002.
139
CASTELO BRANCO, 1986, p. 998.
66
francesismo, é que são o horizonte inelutável da nossa cultura oitocentista imprensa,
livro, imagem, moda ou música, tudo chega ou passa ‘via Paris’.”
140
Em contrariedade a
esse contexto, nas palavras do mesmo autor, “A reação processou-se sob a bandeira de
um nacionalismo arcaizante, de costas voltadas a um presente cultural vanguardista de
coloração francesa, incompatível segundo os seus actores com as exigências do nosso
génio próprio”.
141
Nesse ponto, o caso do Romancista de Ceide é significativo. Foi
grande leitor da literatura francesa e notáveis ressonâncias desta em sua produção
literária. Porém, Jacinto do Prado Coelho informa que Camilo
Em juízos críticos ou simples alusões displicentes, com frequência deformou os
autores franceses sujeitando-os a um estreito ponto de vista pessoal,
encarando--os de preferência pelo lado anedótico, acentuando defeitos de
pormenor e parecendo muitas vezes ignorar o que têm de superior. [...] Paris
figurava-se-lhe uma autêntica Sodoma.
142
Na seção 2.7 deste capítulo, tratarei mais detalhadamente sobre a questão da
literatura francesa em A Queda dum Anjo. Aqui saliento a ambígua postura de Camilo
Castelo Branco ademais, comum a vários intelectuais portugueses da época perante
a França como pólo de irradiação cultural. De alguma maneira, essa ambigüidade
reflete-se no romance de 1865, uma vez que nele tanto o espaço provinciano o velho
Portugal quanto o espaço urbano o novo Portugal são alvos da ironia e sátira
camiliana.
Ainda dentro dessa discussão sobre o espaço e a nação, a figura de Ifigénia
destaca-se também por a personagem ser brasileira. O morgado da Agra de Freimas
afasta-se do velho Portugal e aproxima-se do novo Portugal que se quer afrancesado, ao
140
LOURENÇO, 1994, p. 135.
141
LOURENÇO, 1994, p. 135.
142
COELHO, 2001, p. 115.
67
apaixonar-se pela viúva recém-chegada do Brasil. Salientei no ‘Capítulo 1’ a ferida
econômica que a independência da colônia americana abriu em Portugal. Em A Queda
dum Anjo, a traição à metrópole parece reverberar na traição de Calisto Elói com
Ifigénia ao Portugal até então representado pelo protagonista.
A propósito, é notória não apenas a sátira camiliana ao brasileiro isto é, o
emigrante português que torna do Brasil enriquecido –, mas também o fato de que
“Camilo não tinha simpatias pelo Brasil (conforme transparece de vários escritos seus,
especialmente do Cancioneiro Alegre)”.
143
No “Preâmbulo” da primeira edição
brasileira de Coração, Cabeça e Estômago, o editor fictício não deixaria entrever, pela
ironia, a indisposição de Camilo Castelo Branco com o Brasil, especificamente no que
diz respeito à literatura deste país? “Silvestre [o personagem-narrador do romance], em
poesia, era vulgar; e a poesia vulgar, mormente na pátria dos Junqueiros [sic], dos
Álvares de Azevedo, dos Casimiros d’Abreu e dos Gonçalves Dias, é um pecado
publicá-la.”
144
Guilhermino Cesar, pensando no tipo do brasileiro, propõe esta razão
para a antipatia de Camilo pelo Brasil (e também pela África): “Repugnava-lhe à
sensibilidade o meio bárbaro, inculto, propício aos aventureiros que ocultam a
consciência, com as moedas surripiadas ao suor alheio[...].”
145
Eu acrescentaria a
hipótese de um ranço colonialista por parte do Romancista de Ceide.
2.3) BASES SOCIAIS DO ANTIGO REGIME X ORDEM BURGUESA
O primeiro capítulo (“O herói do conto”) de A Queda dum Anjo apresenta o
protagonista Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda como um rico aristocrata
provinciano, nascido a 1815 em Caçarelhos, aldeia localizada na região de Miranda.
143
CESAR, 1969, p. 56.
144
CASTELO BRANCO, 1984, p. 733.
145
CESAR, 1969, p. 56.
68
Logo nas primeiras linhas do romance, o narrador informa mais detalhadamente sobre a
origem nobiliárquica do também conhecido como morgado da Agra de Freimas:
Seu pai, também Calisto, era cavaleiro-fidalgo com filhamento, e décimo sexto
varão dos Barbudas da Agra. Sua mãe, D. Basilissa Escolástica, procedia dos
Silos, altas dignidades da Igreja, comendatários, sangue limpo, bom sangue
no tempo do Sr. rei D. Afonso I, fundador de Miranda.
146
Além de ostentar orgulhosamente sua fidalguia, Calisto Elói revela amplo
conhecimento da genealogia das mais importantes famílias lusitanas:
Sobre castas e linhagens, coisa que ele tirasse a limpo não dava pega a dúvida
nenhuma. Ia ele desenterrar geração sepultada setecentos anos, e provar
que, na era de 1201, D. Fuas Mendo casara com a filha de um mesteiral, e D.
Dorsia se havia sujado casando mofinamente com um pajem da lança de seu
irmão D. Paio Ramires.
147
O conhecimento rende ao personagem sérias inimizades em Miranda, por este
apontar, na família de muitos aristocratas da região, avoengos não pertencentes à
nobreza. No sétimo capítulo (“Figura, vestido e outras coisas do homem”), o conde de
Reguengo, ao saber que o ilustre parente Calisto Elói encontrava-se em Lisboa, resolve
visitá-lo. Entretanto, acaba não sendo bem-vindo, pois o erudito deputado mirandense
distingue-se do outro Barbuda, “infamado na página eterna de Duarte Nunes”,
148
lida
pelo próprio conde a pedido de Calisto. Ambos, a seguir, põem-se a discutir em defesa
da pureza nobiliárquica de seus respectivos ramos genealógicos e assinalam
mutuamente ancestrais que os maculariam. Conquista a vitória na discussão o sábio
protagonista, ao lançar mão deste argumento:
146
CASTELO BRANCO, 1986, p. 839.
147
CASTELO BRANCO, 1986, p. 840.
148
CASTELO BRANCO, 1986, p. 869.
69
Discutamos esses pontos graves voltou serenamente o morgado da Agra,
tomando rapé. – A décima segunda avó de V. Ex.ª, Jerónima Talha, era judia de
Sesimbra, e esteve como cuvilheira dos sobrinhos de um Heitor de Barbuda
com quem casou. Sua tresavô enviuvou sem filhos e casou com um filho do
capelão. Deste matrimónio nasceu seu avô Luís de Almeida de Barbuda, que foi
o primeiro conde do Reguengo. Reconciliemo-nos, Sr. Conde, pelo que respeita
ao sangue de coito danado, se V. Ex.ª quer emparelhar o filho do padre com a
abadessa de Vairão, tia da mulher de Nuno Álvares Pereira por Alvins.
O conde ergueu-se acendido em raiva, e disse:
No que não podemos emparelhar, Sr. Calisto, é na tolice. Vou-me embora,
com a vergonha de ter aqui vindo.
Não acudiu Calisto Elói que eu é que me hei-de forrar à vergonha de
dizer que V. Ex.ª veio cá.
149
O enredo de A Queda dum Anjo transcorre em meados do século XIX, ou mais
precisamente, às portas de 1860. Temos esse dado, porque o narrador noticia a data de
nascimento de Calisto (1815) e por este, no tempo do enunciado da narrativa, ter
quarenta e quatro anos. No ‘Capítulo 1’, vimos que no início da década de 1850
Portugal começa a passar pela Regeneração – série de transformações empreendidas por
políticos como Fonseca Magalhães, Saldanha e Fontes, que vieram a conferir ao país
fumos de progresso. Tomemos 1865 como o tempo de enunciação da narrativa, pois
neste ano Camilo Castelo Branco escreve e publica seu romance. Em 1865 discutia-se a
questão dos morgadios que Mouzinho da Silveira procurara extinguir em 1832, mas
apenas extintos cerca de 31 anos depois por lei, consumada no código civil de 1867.
150
O morgadio constituía um entre vários remanescentes legislativos do Antigo Regime em
149
CASTELO BRANCO, 1986, p. 869.
150
Cf. QUESADO, 2ª. ed. a ser publicada, p. 75.
70
Portugal. Nesta estrutura sociopolítica de bases feudais, somente duas das três classes
detinham os privilégios: clero e nobreza. O vínculo de propriedades que o morgadio
estabelecia, a concentração de terras pouco ou nada produtivas nas mãos da Igreja e da
aristocracia eram alguns dos graves obstáculos ao desenvolvimento capitalista
português. Desde 1820, momento da Revolução Liberalista, as mentes mais afinadas
com o pensamento burguês procuravam eliminar os resquícios do Antigo Regime em
Portugal. Neste contexto situa-se A Queda dum Anjo, romance que contempla – tanto no
tempo do enunciado, quanto no da enunciação – o embate entre o novo e o velho.
Inserido, ou antes, integrado num ambiente provinciano o antigo Portugal –,
Calisto representa as duas camadas mais elevadas da pirâmide social no Antigo Regime:
a nobreza e o clero. De efeito caricaturesco, apropriado numa narrativa satírica, a
extensão hiperbólica de seu nome (Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda)
151
reflete a sobrevivência de um tempo em que a ascendência aristocrática impunha uma
superioridade social, via de regra marcada por usufruto de privilégios e prestígio. A
sátira ao personagem apegado a sua origem nobiliárquica muito antiga e ao passado
remoto de seu país decorre de uma mundividência do narrador, ao menos em princípio,
moderna. Para operarmos com conceitos de Homi Bhabha, esse riso satírico, que alveja
o protagonista de A Queda dum Anjo no que concerne a seu passadismo, efetiva-se a
partir de uma obliteração performática com o passado.
No que parecem concordar os historiadores, no século XIX, havia em Portugal a
hegemonia de uma mentalidade avessa à plena lógica capitalista. De modo que, segundo
Amadeu Carvalho Homem,
151
Sobre “A Sorte em Preto”, primeira novela de Cenas da Foz, obra publicada em 1857, Jacinto do
Prado Coelho comenta: “[...] a nobreza de sangue, que noutros lugares Camilo respeita pelas qualidades
que ainda conserva, é aqui alvo de troça, a começar nos antropónimos: assim o pai de Hermenegilda
chama- -se, muito simplesmente, Pantaleão de Cernache Telo Aboim de Lencastre Maldonado e Sousa
Pinto de Penha Almeida...”. (COELHO, 2001, p. 199.)
71
A nova burguesia liberal aspirava à nobilitação, mantinha um ideal de riqueza
predominantemente centrado nos bens fundiários, especulava
improdutivamente, amarrava-se o melhor que podia aos nichos da
administração pública e conservava sob suspeita o valor da iniciativa
individual, então decididamente vitoriosa nas paragens européias mais
desenvolvidas. O que o liberalismo significou, no exterior, de libertação de
forças produtivas, cristalizou, em Portugal, no modesto cadinho de uma simples
transferência de título de propriedade. [...] Alheios a qualquer tradição de
iniciativa econômica particular e molecularmente refratários ao risco de
negócios, estes usufrutuários do conservadorismo cartista procuraram as
posições mais confortáveis no pequeno mundo da administração pública.
Fizeram-se caciques e “notáveis locais” em razão de sua comprovada
incapacidade de se fazerem empresários capitalistas de vistas largas.
152
A informação acima revela a dimensão da força das estruturas sociais no país
muito ainda semelhantes às do Antigo Regime, num momento em que na Europa além-
-Pireneus o comércio e a indústria progrediam a passos largos. Em A Queda dum Anjo,
temos o caso exemplar do professor de instrução primária e ex-sargento de milícias Brás
Lobato. O personagem requer ao conterrâneo eleito deputado Calisto Elói que lhe
consiga um hábito de Cristo. Tratava-se de uma condecoração com foros nobiliárquicos
concedida pelo Estado, muitas vezes mediante pagamento e/ou influência junto ao
governo. Outros títulos, aliás, de maior importância, como o de barão e visconde,
podiam ser conquistados da mesma forma. Celebrizou-se na época a quadra popular:
“Foge, cão, / Que te fazem barão! / Mas para onde, / Se me fazem visconde?...”
Mesmo Camilo Castelo Branco em grande parte de sua vida e obra, crítico desse tipo
de nobilitação tornou-se, graças a suas próprias solicitações, Visconde de Correia
Botelho. O fato mereceu charge de Rafael Bordalo Pinheiro em Pontos nos ii e sátira de
Eça de Queirós veiculada em A Província, jornal de Oliveira Martins. Também Calisto
Elói, o anjo caído, obtém o título de barão fato que, dentro da visão camiliana,
152
HOMEM. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 346.
72
atestaria a queda do personagem. António Sérgio, a propósito, propõe que a figura do
barão, no Portugal do século XIX, era o sintoma da ‘perversão’, do ‘falseamento’ do
projeto revolucionário de Mouzinho da Silveira.
153
Como tipo literário, era um “novo-
-rico, feito à custa de especulações e da exploração sistemática do povinho”.
154
Estas palavras de Joel Serrão contextualizam o ambiente sociopolítico em que
viveu o romancista de Anátema:
Não obstante a igualdade política dos cidadãos, proclamada na Carta
Constitucional, as ordens sociais [do Antigo Regime] mantinham-se,
funcionalmente, idênticas a si mesmas. Em meados do século passado, quando
Camilo começava a levar por diante o seu projecto pessoal [de ser escritor], a
sociedade portuguesa compartimentava-se, ainda, bem claramente, em clero,
nobreza e povo.
155
Em referência à condição da nobreza e do clero na sociedade portuguesa do
período, escreve Serrão:
O clero, mesmo que nalguns casos liberalizado”, ou em vias disso, continuava
a ser o severo guardião da estabilidade estrutural da sociedade portuguesa.
Quanto à nobreza, ela era ainda nos meados do século passado [o XIX] não só o
ornamento natural da instituição monárquica, mas também o alvo mais tentador
da aspiração social daqueles burgueses que pelo enriquecimento logravam
emergir da vasta camada popular.
156
153
Cf. SÉRGIO, 1979, p. 138-9.
154
SÉRGIO, 1979, p. 139. No décimo terceiro capítulo de Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett
escreve: “O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova. // Menos na graça... //
Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação. // O barão (Onagrus baronius, de
Linn., l’âne baron de Buf.) é uma variedade monstruosa, engendrada na burra de Balaão, pela parte
essencialmente judaica e usurária da sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim das
Plantas, pela parte franchinótica e sordidamente revolucionária do seu carácter.” (GARRETT, [1963], v.
I, p. 62.)
155
SERRÃO, [1975], p. 226.
156
SERRÃO, [1975], p. 226.
73
Na figura do morgado da Agra de Freimas, o narrador concilia a nobreza de
antiga origem e o catolicismo (expresso tanto nas diretrizes e rigores morais do
personagem, quanto em sua ascendência familiar), como dois elementos do velho
Portugal. Uma vez que Calisto Elói defende que seus valores e sua condição social
traduzem a mais autêntica identidade nacional, as estruturas sociopolíticas do Antigo
Regime expressariam para o personagem a verdadeira nacionalidade portuguesa. Em
outras palavras, para o protagonista antes da queda, o velho Portugal é o verdadeiro
Portugal.
Acerca dessa suposta confluência da nacionalidade portuguesa e as bases do
Antigo Regime, a título de curiosidade, vale lembrar além do miguelismo no século
XIX os movimentos contra-revolucionários em Portugal a partir do início do século
XX. Eram manifestações nacionalistas contemporâneas de outras sucedidas em outras
partes da Europa, como na França –. Seus partidários defendiam o fim do regime
republicano, implantado em 1910, e o retorno à monarquia, pois julgavam-na o sistema
político mais em conformidade com os costumes supostamente autóctones.
157
Em
Genealogia do Pensamento Nacionalista, Fernando Campos contesta inclusive a
acusada matriz estrangeira a Action Française para o surgimento de movimentos
portugueses quejandos, como o Integralismo Lusitano e a Ação Realista Portuguesa. Em
prefácio a Camilo contra-revolucionário, antologia de passagens desse autor, publicada
no centenário de seu nascimento (1925), Fernando Campos refere-se às incoerências e
contradições da vasta obra camiliana em seu conjunto. Entretanto, fervoroso contra-
-revolucionário, assevera: “Todavia, a nossa convicção inabalável é que a verdadeira e
157
Curiosamente, cerca de um século antes, o nacionalista Giuseppe Mazzini propunha como sistema de
governo para uma Itália unificada (“La Giovane Italia”) a república, rechaçando a monarquia, uma vez
que “ce régime n’a jamais correspondu à la tradition italienne (qui est essentiellement républicaine)”.
(AUDIER. In: MAZZINI, 2002, p. 16.)
74
autêntica directriz espiritual de Camilo se contém nestas suas páginas católicas e
reacionárias [recolhidas no volume].”
158
2.4) ECONOMIA AGRÁRIA (FEUDAL) X ECONOMIA INDUSTRIAL (CAPITALISTA)
Ainda no século XIX, o país dividia-se, pois, entre um mundo medieval e um
mundo moderno, que a dicotomia economia agrária e economia industrial em A Queda
dum Anjo representa. O casal Calisto Elói e sua prima Teodora, inicialmente, ilustra em
linhas caricaturescas o funcionamento desse Portugal arcaico. Leiamos os três
parágrafos abaixo:
Unidos os dois morgadios, ficou sendo a casa de Calisto a maior da comarca; e,
com o rodar de dez anos, prosperou a olho, tendo grande parte neste incremento
a parcimónia a que o morgado circunscreveu seus prazeres, e, por sobre isto, o
génio cainho e apertado de D. Teodora.
Remenda teu pano, chegar-te-á ao ano, dizia a morgada de Travanca; e,
aferrada ao seu adágio predilecto, remendava sempre, e cerzia com perfeição
justamente admirada entre a família, e falada como exemplo na área de quatro
léguas, ou mais.
Enquanto ela recortava o fundilho ou apanhava a malha rota da peúga, o marido
lia até noite velha, e adormecia sobre os in-fólios, e acordava a pedir contas à
memória das riquezas confiadas.
159
Os dois personagens primos, cujo casamento os torna a família mais rica de
Miranda distanciam-se completamente em seus hábitos de uma sociedade regulada
158
CAMPOS, 1925, p. 13-4.
159
CASTELO BRANCO, 1986, p. 840. Tomásia, personagem de Coração, Cabeça e Estômago, romance
de 1862, numa mesma ambiência campesina e remendando uma camisa, profere o ditado (ou, como
costuma denominar também Camilo, ‘anexim’) que virá a dizer Teodora, em 1866. (Cf. seção V da Parte
III da referida obra.)
75
por relações capitalistas. A elevada parcimônia de Teodora implica retenção de
consumo; o contínuo ócio intelectual de Calisto Elói, por sua vez, improdutividade
material. A grande prosperidade que vive o casal não integra o esquema econômico
típico do capitalismo, mas sim do modo de produção feudalista. Na “Introdução” ao
livro A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Max Weber esclarece mesmo que
O “impulso para o ganho”, a “ânsia do lucro”, de lucro monetário, de lucro
monetário o mais alto possível, não tem nada a ver em si com o capitalismo.
Esse impulso existiu e existe entre garçons, médicos, cocheiros, artistas,
prostitutas, funcionários corruptos, soldados, ladrões, cruzados, jogadores e
mendigos – ou seja em toda espécie e condições de pessoas, em todas as épocas
de todos os países da Terra, onde quer que, de alguma forma, se apresentou, ou
se apresenta, uma possibilidade objetiva para isso.
160
À estrutura sócio-econômica de bases feudais encontrada na aldeia de
Caçarelhos, contrapõe-se o mecanismo capitalista mais atuante nas áreas citadinas de
Portugal. Se Calisto Elói é um nobre provinciano, herdeiro de antiga riqueza, favorável
ao absolutismo monárquico, seu adversário na Câmara dos Deputados Dr. Libório
nasceu no Porto,
161
um dos poucos centros urbanos portugueses, e lembremos, onde
eclodira a Revolução Constitucionalista de 1820.
162
O personagem portuense não tem a
fidalguia, nem a riqueza transmitida por várias gerações. Também é rico, mas em
decorrência destes motivos esclarecidos no nono capítulo (“O doutor do Porto”):
O progenitor de Libório era um tendeiro, que entrara na estrada franca da
fortuna próspera, criando de sua cabeça, para uso de galegos e carretões
madrugadores, um misto saboroso e alcalino de licores, que ainda hoje
160
WEBER, 1981, p. 4.
161
É conhecida a verve satírica camiliana, presente em numerosas obras, direcionada à cidade do Porto.
162
No contraponto de Calisto Elói, recordo que Miranda posicionara-se, ao lado de Chaves, Vila Pouca de
Aguiar, Moncorvo, Vinhais e Bragança, como pólo de resistência patriótica à ocupação francesa entre
1807 e 1810. (Cf. BERNARDINO, 1986, p. 156.)
76
sustentam o crédito e primazia. Afora isto, inventara o pai do doutor a
aguardente de nabos.
163
Dr. Libório, portanto, pertence originalmente a um extrato social mais baixo, de
que ascende financeiramente, graças aos esforços industriais e comerciais de seu pai.
Cumpre observar a incipiência capitalista que a família do personagem portuense
representa, mesmo nas regiões urbanas portuguesas. O setor de bebidas alcoólicas
constituía na época importante e tradicional parcela do que o país produzia e exportava.
Não se trata, pois, de uma industrialização significativa, se comparada às potências
capitalistas européias. Hobsbawm fornece os seguintes números sobre máquinas-a-
-vapor – símbolo nos meados do século XIX de avanço industrial:
Na Suíça foram instaladas 34 máquinas em 1850, mas em 1870 havia quase
mil; na Áustria o número subiu de 671 (1852) para 9.160 (1875), aumentando
de mais de 15 vezes os HP. (Para comparação, um país europeu realmente
atrasado como Portugal ainda tinha umas poucas 70 máquinas totalizando
1.200 HP em 1873.) O total da força a vapor da Holanda multiplicou-se por
trinta vezes.
164
Em A Queda dum Anjo, a situação se agrava, na medida em que o filho do
próspero criador da aguardente de nabos foge à carreira do pai. Mediocremente,
bacharela-se em Direito, não para advogar, mas para com maior facilidade ingressar na
política. Quanto aos dotes políticos do personagem, o narrador no primeiro parágrafo
do nono capítulo ironiza:
Dr. Libório de Meireles [...] reunia os predicados que nos outros países ou
passam despercebidos, ou são solenizados pela irrisão pública; mas, em
163
CASTELO BRANCO, 1986, p. 875.
164
HOBSBAWM, 1998, p. 68.
77
Portugal, tais predicados alçam o homem ao cume da escala política, e dão-lhe
escolta de absurdos propícios até onde o parvo laureado quer guindar-se.
165
Por meio de sua linguagem demasiado figurada, e nesse aspecto luxuosa, o
deputado portuense profere na Câmara:
Oh! o luxo, o luxo, Senhores, é o marco miliário de civilização, a pomba que se
volita da arca, e se vai espanejando de asas por céus e terras além, recobrada de
pavores primeiros, e saltitando de frança em frança.
Sr. Presidente! O coração da França, o encéfalo, o grande nervo da França é o
luxo.
166
Destaco os jogos paronímico e polissêmico do trecho. A palavra ‘pomba’, que
metaforiza o luxo, soa muito semelhantemente à palavra ‘pompa’, sinônimo de luxo.
Dr. Libório constrói a imagem de uma pomba “saltitando de frança em frança”, ou seja,
literalmente, de copa de árvore em copa de árvore. O significante ‘frança’, porém, acaba
por contaminar-se com o significado ‘França’, país que para o deputado do Porto
emblema o luxo. Esses recursos presentes na fala do personagem não parodiariam o
discurso agudo do século XVII, visto por seus críticos como ‘luxuoso’?
no sexto capítulo (“Virtuosas parvoiçadas”), Dr. Libório solicitara subsídios
ao teatro lírico do Porto. Indignado em saber que os cofres públicos subvencionavam o
teatro em Lisboa, no qual assistira horrorizado à peça Lucrécia Bórgia, de Victor Hugo,
Calisto Elói imediatamente protesta frente à solicitação do colega. Destaca a pobreza do
país, onde “o mestre-escola ganha cento e noventa réis por dia” e se expendem
anualmente “algumas dúzias de contos para sustentar comediantes, farsistas,
165
CASTELO BRANCO, 1986, p. 875.
166
CASTELO BRANCO, 1986, p. 877-8.
78
funâmbulos e dançarinas impudicas”.
167
Ao lhe questionarem o argumento, afirmando
que a subvenção assinalava civilização, o deputado mirandense contesta: “A civilização
[...] canta e dança, enquanto três partes do País choram”.
168
O mecanismo econômico capitalista não funciona plenamente no Portugal
delineado em A Queda dum Anjo, o que reflete a situação histórica do país. Conforme
lemos no romance, mesmo nos centros urbanos, como Porto e Lisboa áreas,
naturalmente, de maior índice de industrialização –, teria ocorrido apenas um exíguo
florescimento empresarial, além de um progresso quase apenas traduzido pelo luxo.
Esse luxo recobriria a condição de pobreza nacional.
2.5) CONVENÇÕES SOCIAIS X PAIXÃO E AMOR
O casamento de Calisto Elói com sua prima Teodora também se caracteriza por
relações sociais típicas do Antigo Regime. Bem de acordo com velhas leis e costumes, o
matrimônio une duas pessoas de mesma classe, no caso nobres e morgados: Calisto, da
Agra de Freimas, e Teodora, da Agra de Travanca. O enlace não se realiza motivado por
amor entre os cônjuges, aspecto que reforça ainda mais o caráter arcaico dos
personagens e da região que habitam. No décimo oitavo capítulo (“Vai cair o anjo!”),
Calisto Elói, já deputado em Lisboa e rendido pela primeira vez a uma paixão que sente
por Adelaide, explica a esta sua relação com a esposa:
– [...] Eu já disse a V. Ex.
a
que minha prima Teodora entendeu no sumo rigor da
expressão a palavra “casamento”. Casamento deriva de casa. Senhora de casa e
para casa é que ela é. E eu assim a aceitei e assim a prezo.
– Mas o coração... – atalhou Adelaide.
167
CASTELO BRANCO, 1986, p. 861.
168
CASTELO BRANCO, 1986, p. 863.
79
O coração, minha Senhora, ninguém nos disse que era necessário à
felicidade doméstica. Tanto sabia eu o que era coração, como aquela criancinha,
que sua Ex.
ma
mana tem nos braços, sabe o que é sensação do fogo. Ora veja
como ela está estendendo as mãozinhas inexperientes para a chama das velas...
Se as tocar, que dor não sentirá ela?
169
No ponto da narrativa onde se insere a passagem citada, o protagonista está às
portas de sua drástica transformação, quando abandona suas convicções contra a
contemporaneidade e nesta se integra. Metaforiza essa metamorfose do personagem a
imagem-título do romance ‘a queda dum anjo’ –, que o título do capítulo anuncia: “O
anjo vai cair!”. Calisto, no trecho acima, confessa não ter conhecido o amor com sua
esposa Teodora. Não se casaram impelidos por essa razão que as razões sociais de sua
terra, conforme coloca Camilo, teimavam em desconhecer ou ficar-lhe indiferentes.
Calisto Elói conhece Adelaide em Lisboa e apaixona-se, deixando-se levar por emoções
românticas que sua sensibilidade clássica, evidenciada em suas leituras contumazes,
desconhecia. Veremos na seção 2.7, que, de fato, a literatura do romantismo,
marcadamente francês, constitui em A Queda dum Anjo propaganda de comportamentos
moralmente recrimináveis.
170
De um casamento sem maiores afeições que o respeito por sua esposa, Calisto
Elói emigra para uma tentativa fruste de seduzir Adelaide, apaixonado que estava por
ela, e em seguida apaixona-se e vê-se correspondido por Ifigénia. A “queda” do “anjo”,
anunciada no título do romance, portanto, é fundamentalmente uma transformação
moral. A imagem do anjo, símile do protagonista na sua primeira fase, sugere o que o
169
CASTELO BRANCO, 1986, p. 923.
170
Carl A. Hanson, em Sociedade e Economia no Portugal Barroco, informa sobre o jurista e diplomata
português Duarte Ribeiro da Macedo. Este, um entusiasta colbertista, tomava a França como modelo
político-econômico a ser seguido por seu país. Entretanto, no que tange aos costumes da sociedade
parisiense, “Em 1670, por exemplo, ele escrevia a um amigo, detalhando o comportamento ‘libertino’ das
mulheres francesas. Numa carta posterior, ele acusava fortemente os maridos franceses de serem tão
passivos e as liberdades femininas eram tão extremas, que os homens não conseguiam manter a ordem
nas suas próprias casas sem recorrer à lei.” (HANSON, 1986, p. 142.)
80
narrador explicita: as “fibras virginais no [seu] coração”,
171
a simplicidade de seus
costumes, de sua linguagem (ao menos quando comparada à repolhuda” do rival na
câmara, Dr. Libório). A ausência de amor pela esposa, no início recíproca, não significa
inclinação ao adultério, mesmo da parte de ambos. O décimo capítulo (“O coração do
homem”) esclarece os sentimentos de Teodora perante o casamento imposto pela
vontade da família:
A noiva deixou-se ir pela mão do pai à casa do esposo. Não ia alegre nem triste.
Tanto se lhe dava casar com o primo Calisto como com o primo Leonardo.
Logo que o pai lhe consentiu que levasse para Caçarelhos umas três dúzias de
galinhas e parrecos, que ela criara, não lhe ficou na casa natal coisa para sérias
saudades.
172
Ainda nesse capítulo, quanto ao marido: “Discorreram anos, sem que o morgado
tivesse de perguntar à sua consciência a explicação do mínimo alvoroto de sangue na
presença de mulher estranha”.
173
Ambos os personagens condicionam-se perfeitamente
ao casamento convencional. Entretanto, não devemos compreender a aura angelical que
envolve esse seio familiar ao da letra. ironia neste excerto, no qual o narrador
comenta a vida conjugal do morgado da Agra de Freimas e Teodora: “Vida para
invejar! Paraíso em que Deus se esqueceu de mandar o anjo do montante de fogo vedar
a entrada!”
174
Ou neste outro excerto: “Das virtudes conjugais de Teodora até me treme
a pena somente de escrever isto para encarecê-las! Duvide-se da pureza das onze mil
virgens, antes de maliciar suspeitas daquela matrona, em tudo romana, do puro estofo
das Cornélias, Pôncias e Árrias.”
175
171
CASTELO BRANCO, 1986, p. 883.
172
CASTELO BRANCO, 1986, p. 883. Segundo nota de Pedro A. Pinto à edição de A Queda dum Anjo
pela Organização Simões, ‘parreco’ é o “Modo como no interior de Portugal se chama ao marreco”.
(PINTO. In: CASTELO BRANCO, 1953, p. 194.)
173
CASTELO BRANCO, 1986, p. 884.
174
CASTELO BRANCO, 1986, p. 884.
175
CASTELO BRANCO, 1986, p. 885.
81
Não se trata de ironia que desminta ou coloque em dúvida a fidelidade do casal,
mas de ironia oriunda de um narrador que, numa narrativa satírica, ridiculariza seus
personagens. A passagem acima frisa o choque entre um mundo antigo em que vivem
Calisto e Teodora com um mundo da contemporaneidade, onde se teria tornado
inverossímil tamanha castidade e fidelidade. No cimo primeiro capítulo (“Santas
ousadias!”), o protagonista, deputado em Lisboa, ouve boatos sobre o adultério da filha
de seu amigo desembargador Sarmento. Ao lastimar muito pesaroso essa situação ao
outro amigo e colega na Câmara, abade de Estevães, este
[...] desfechou-lhe na cara uma estralada de riso civilizado, e disse-lhe:
Ora o morgado tem coisas! V. Ex.
a
parece que caiu, pouco, de algum
planeta! Olhe que Lisboa não é Miranda, meu amigo. Se o morgado tem de
espantar-se por cada caso destes que chegar ao seu conhecimento, a sua vida na
capital tem de ser um permanente ponto de admiração!... Deixe andar o
mundo...
176
O choque temporal (mundo antigo x mundo novo) é também espacial (Miranda
x Lisboa), o que apontei no esquema de equivalências das dicotomias que o romance
estabelece. Na cena acima, o abade tacha seu interlocutor de alienígena, tão ingênuo se
mostra perante atitudes freqüentes na capital, espaço onde o ‘mundo anda’. O fato de o
personagem ser um abade acentua o caráter extraterreno ou angelical de Calisto, mais
indignado e espantado com o adultério que o religioso, a quem deveria caber a função
de zelar pela moral e bons costumes. A passagem evidencia outra possível ramificação
de dicotomia: o ambiente onde a virtude reina (o espaço rural representado por
Miranda) e o ambiente onde seria hegemônico um padrão moral heterodoxo,
condicionado pelo avanço civilizatório presente no espaço urbano, representado por
176
CASTELO BRANCO, 1986, p. 886.
82
Lisboa. Contudo, o abade argumenta de modo a combalir a pureza moral do mundo
antigo que seu interlocutor encarna:
[...] se o amigo pôde ler sem horror as infâmias das saturnais, e os mistérios
da deusa Bona, e quejandas protérvias dos antigos tempos, como pode
espantar--se do que ouve dizer da filha do desembargador Sarmento, que, afinal
de contas, pode estar inocente do crime que lhe assacam?! Não a V. Ex.
a
filha cuidadosa, mãe estremecida, e esposa honesta na aparência? a ouviu
defender teses da moral do adultério? Que lhe importa a V. Ex.
a
o que se passa
lá na vida particular da mulher?
177
Multiplicam-se e confrontam-se as mundividências em A Queda dum Anjo. Com
astúcia, Camilo Castelo Branco faz o leitor deparar-se com opiniões opostas, sim, mas
com sua parcela respectiva de pertinência. Não teria havido uma impoluta moral nas
eras passadas, como quer Calisto Elói. O Abade lhe aponta exemplos de “protérvias”
relatadas nos alfarrábios do morgado. A propósito, no segundo capítulo (“Dois
candidatos”), vemos o mestre-escola, de parceria com o boticário, a castigar a
perversidade dos imperadores romanos”.
178
Por outro lado, se a atualidade tanto se
desmoraliza, ela apresenta uma outra moral possível, a das aparências, as quais
resguardariam a harmonia familiar e social. O abade aconselha Calisto:
Faça como eu: lamente as misérias dos homens, e viva com eles, sem
participar-lhes dos defeitos; porque, meu nobre amigo, se a gente vai a rejeitar
as relações das famílias, justa ou injustamente abocanhadas pela maledicência,
a poucos passos não temos quem nos receba.
179
177
CASTELO BRANCO, 1986, p. 887.
178
CASTELO BRANCO, 1986, p. 844.
179
CASTELO BRANCO, 1986, p. 887.
83
Em perspectiva semelhante, no vigésimo segundo capítulo (“Outro abismo”), D.
Tomásia, vizinha do deputado mirandense, virá a falar-lhe nestes termos sobre a graça e
beleza de Ifigénia: “Mulher assim!... Os homens às vezes, por mais asneiras que façam,
têm desculpa!...”
180
Logo que alcança, não regenerar a Sra. Catarina, filha do desembargador
Sarmento, mas convencer seu amante, D. Bruno de Mascarenhas, a afastar-se dela, “o
anjo custódio” enamora-se de Adelaide, filha solteira do mesmo desembargador. Eis
quando se inicia sua queda. Calisto passa a ser um adúltero em potencial, se o não é
na medida em que se sente apaixonado por outra mulher. Sem encontrar
correspondência a seus sentimentos em Adelaide, pela qual atualiza seus trajes e certos
costumes, o morgado encanta-se pela fulgurante beleza da viúva brasileira Ifigénia.
Amado por ela, passam a viver juntos. A essa altura, o personagem está de todo
convertido à modernidade.
2.6) LINGUAGEM CASTIÇA X LINGUAGEM CORROMPIDA
Se a narrativa de A Queda dum Anjo institui a idéia de nação, seu suporte o
objeto livro, a letra impressa dissemina essa idéia. Primeiro escritor português que se
noticia a viver do comércio de suas obras, Camilo Castelo Branco atuou no papel de não
apenas construtor, mas também divulgador da moderna ‘comunidade imaginada’
portuguesa. Benedict Anderson assinala a importância de três fatores que teriam
condicionado o nascimento das consciências nacionais:
What [...] made the new communities imaginable was a half-fortuitous, but
explosive, interaction between a system of production and productive relations
180
CASTELO BRANCO, 1986, p. 941.
84
(capitalism), a technology of communications (print), and the fatality of human
linguistic diversity.
181
A literatura ocidental no século XIX não escapou ao toque desse Midas
econômico, que tudo transmuta em produto comercializável. A obra camiliana interage
com o universo capitalista em mais de um aspecto destacável. Por um lado,
ambicionando a maior vendagem possível de seus livros, o romancista vê-se impelido
freqüentemente a render-se ao gosto médio do público. Por outro lado, muitas vezes
também opera um jogo irônico, dentro da narrativa ficcional, com o horizonte de
expectativa dos leitores da época e com as exigências dos editores de seus romances. As
crescentes quantidade e velocidade no comércio de jornais, revistas, livros – veículos da
letra impressa consolidavam a noção espaço-temporal de simultaneidade,
desencadeada pelo desenvolvimento e expansão da imprensa na Europa, e no Ocidente,
a partir do século XVI. Ao circularem por espaços distintos (desde casas, cidades a
regiões distintas) e por tempos também distintos, os vários exemplares, e às vezes suas
edições, promoveriam percepção entre os leitores de pertencimento a uma coletividade
homogênea, isto é, a uma ‘comunidade imaginada’ nacional. Dificilmente viria a existir
essa percepção, se não tivesse havido uma vernacularização promovida pelo
desenvolvimento da imprensa aliado ao do capitalismo. Para Benedict Anderson, cento
e quinze anos após a prosperidade da indústria e do comércio das letras impressas, nas
cinco primeiras décadas do século XVI, o mercado dirigido então primordialmente a
leitores de latim tornara-se saturado. Sequiosos por um público-alvo maior, mas
desconhecedor da língua latina, os mercadores teriam visto nos idiomas vernáculos
fonte para novos lucros.
182
Nosso Midas não poupava de seu toque nem as linguagens
181
ANDERSON, 1991, p. 42-3.
182
Cf. ANDERSON, 1991, p. 38.
85
verbais. Segundo o autor norte-americano, a indústria e o comércio de letra impressa
formaram as bases para o surgimento das consciências nacionais de três maneiras:
First and foremost, they created unified fields of exchange and communication
below Latin and above the spoken vernaculars. Speakers of the huge variety
Frenches, Englishes, or Spanishes, who might find it difficult or even
impossible to understand one another in conversation, became capable of
comprehending one another via print and paper. In the process, they gradually
became aware of hundreds of thousands, even millions, of people in their
particular language-field, and at the same time that only those hundreds of
thousands, or millions, so belonged. […]
Second, print-capitalism gave a new fixity to language, which in the long run
helped to build that image of antiquity so central to the subjective idea of the
nation. […]
Third, print-capitalism created languages-of-power of a kind different from the
older administrative vernaculars. Certain dialects inevitably were ‘closer’ to
each print-language and dominated their final forms.
183
O caso de Portugal e, por conseguinte, de Camilo Castelo Branco requer,
entretanto, balizarem-se certas diferenças de contexto. No ‘Capítulo 1’, vimos a
precariedade do desenvolvimento capitalista português. Somava-se a esse fato o elevado
índice de analfabetismo em meados do século XIX, no país: mais de 80% da população,
segundo Jaime Reis.
184
Joel Serrão, em “O inferno não é uma fábula”, discorre sobre
essa problemática situação com a qual o Romancista de Ceide teve de lidar, desde
quando publicou um de seus primeiros romances:
O povo, quando Camilo dava a lume o seu Anátema, constituía à roda de 90%
de toda a gente portuguesa, mas não era para ele, evidentemente, que o
183
ANDERSON, 1991, p. 44-5.
184
Cf. REIS. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 324.
86
romancista se propunha escrever. É que esses 90% da gente portuguesa nem
sabia ler nem tinha poder aquisitivo da estranha e desnecessária mercadoria que
era o livro.
185
Bases sócio-econômicas no século XIX ainda ligadas ao Antigo Regime, e
traduzidas por um baixo grau de dinamismo mercantil, restrito universo de efetivos
consumidores, enorme contingente de analfabetos essa realidade não permitia
fomentar-se amplamente a consciência nacional no país.
186
José Mattoso noticia que
[...] a população analfabeta em pleno século XX deixa de constituir mais da
metade do povo português. É preciso, portanto, esperar até uma época bem
recente para poder admitir uma efetiva difusão da consciência nacional em
todas as camadas da população, e em todos os pontos do seu território.
187
O fato é que o nacionalismo por via lingüística que Camilo Castelo Branco e
outros escritores oitocentistas portugueses puderam promover circunscreveu-se a
“comunidades de letrados, unidos através de fronteiras políticas e geográficas pelo uso
de uma língua estabelecida da alta cultura e por sua literatura”.
188
Camilo notabilizou-se (e isto não fugiu aos olhos de seus contemporâneos) por
escrever dentro de uma concepção lingüística hoje envelhecida no ‘mais autêntico’
vernáculo. Sua linguagem obedeceria rigorosamente a normas gramaticais da época e a
185
SERRÃO, [1975], p. 227. Não pensaria o narrador-autoral de Vinte Horas de Liteira (romance de
1864) na questão do analfabetismo em Portugal ao desfechar este comentário? “[...] o ximo favor
que um português pode receber do Céu, é endoudecer, na véspera de fazer-se escritor público!
(CASTELO BRANCO, 1985, p. 1139.)
186
Em O Encoberto – obra publicada em 1904 –, Sampaio Bruno já observava o problema, lamentando-o:
“[...] verdadeiramente e no rigor do termo, não uma pátria portuguesa, porque não existe comunicação
afectiva entre os que sabem e os ignorantes, os quais, entre nós, são-o por completo e em absoluto.”
(BRUNO, 1983, p. 138.) Algumas linhas adiante, o autor explicita a importância da história para a
formação de uma consciência nacional: “Haverá com efeito, para a nacionalidade portuguesa, coisa mais
triste assim do que esta: que o povo portuguêso leia a história de Portugal? // Ia-me esquecendo que o
povo português não sabe ler.” (BRUNO, 1983, p. 138.)
187
MATTOSO. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 40.
188
HOBSBAWM, 2002, p. 126-7.
87
modelos de estruturas abonadas por autores clássicos, como Camões, Bernardes, Frei
Luís de Sousa. Ramalho Ortigão afirmou sobre o autor de Amor de Perdição:
Camilo pertence ainda ao período das responsabilidades clássicas. O seu
vocabulário é talvez o mais copioso que existe em escrita portuguesa. Os seus
giros de locução, as suas cadências de frase, as suas formas sintáxicas, o
equilíbrio e o ritmo da sua prosa tem a fluência, a harmonia e a limpidez
literária das obras magistrais. A sua língua, como a de Castilho e de Latino
Coelho, é um desenvolvimento da língua de Vieira e de Bernardes. Êle é o
derradeiro dos filintistas, e pelo lado técnico, a sua obra literária ficará como o
último protesto contra a progressiva decadência e próxima dissolução da pureza
acadêmica do nosso idioma.
189
Em sua modéstia irônica de narrador-autoral,
190
no décimo capítulo (“O coração
do homem”), Camilo Castelo Branco diz, acerca de Calisto Elói:
Da maior e talvez única dor literária da sua vida, fui eu causa. Calisto,
pernoitando em não sei que solar de damas dadas à leitura amena, pediu algum
livro, e deram-lhe um romance meu. Consta-me que deixou o volume com as
margens anotadas de galicismos e manchas de toda a casta. Imaginem
quantas punhaladas eu dei naquele lusitaníssimo coração!
191
O personagem do romance patriota provinciano, orgulhoso de sua antiga
ascendência aristocrática e de toda uma antiqualha relacionada ao país recrimina no
189
ORTIGÃO, 1945, v. I, p. 276. O depoimento claro está assenta-se na visão de língua típica da
época.
190
José Clécio Basílio Quesado, sobre o trecho a seguir, considera: “O leitor atento da obra camiliana
sabe muito seguramente que ‘galicismos e manchas de toda casta’ não são impropriedades em que a
linguagem bastante castiça do autor seja pródiga. Sendo assim, se por um lado este comentário serve para
reforçar o anacronismo do personagem, por outro não deixa de se dirigir principalmente aos críticos de
Camilo que o espicaçavam com alfinetadas das mais diversas ordens, configurando-se deste modo, sob a
forma do ataque, mais uma defesa prévia do autor.” (QUESADO, 2ª. ed. a ser publicada, p. 66.) O
narrador de A Brasileira de Prazins, obra publicada em 1882, “Entre as diversas moléstias significativas
da minha velhice”, situará “o amor aos livros antigos”. (CASTELO BRANCO, 1988 (a), p. 677.) Adiante
atribuirá às ratazanas o papel de “colaboradoras roazes do galicismo na ruína da boa linguagem
quinhentista”. (CASTELO BRANCO, 1988 (a), p. 679.)
191
CASTELO BRANCO, 1986, p. 884.
88
romancista, o próprio Camilo, os galicismos e o que como outras impurezas,
“manchas”, da língua portuguesa.
192
Trata-se de um lance caricato, construído pelo
exagero que envolve Calisto Elói, marcado por um adjetivo pátrio no superlativo
sintético: “lusitaníssimo”.
No décimo sétimo capítulo (“In Liborium”), o protagonista também protestará
contra a linguagem rebuscada utilizada pelo colega e adversário Dr. Libório:
Sr. Presidente, a mim faz-me tristeza contemplar a ribaldaria com que os
belfurinheiros de missangas e lantejoulas adornam a língua de Camões,
despojando-a dos seus adereços diamantinos. [...]
É forçoso, Sr. Presidente, que a linguagem castiça vá com a Pátria a pique?
193
Gostaria de deter-me algumas linhas nessa última frase da citação acima. Calisto
Elói aqui distingue duas lutas que empreende: uma, pela manutenção da “linguagem
castiça”; outra, para impedir que “a Pátria a pique”. Essa distinção não implicaria
uma cisão entre linguagem e mundo (metonimizado na imagem da pátria)? assinalei
na ‘Introdução’ o parentesco do protagonista de A Queda dum Anjo com o de Dom
Quixote, de Cervantes. No ‘Capítulo 3’, desenvolverei o comentário acerca dessa
proximidade. Aqui quero ressaltar como o que Michel Foucault diz sobre a narrativa
cervantina funciona para a narrativa de Camilo. Pois também nesta “le langage [...]
rompt la vieille parenté avec les choses, pour entrer dans cette souveraineté solitaire
d’où il ne réapparaîtra, en son être abrupt, que devenu littérature”.
194
Mas a consciência
desse rompimento creio devemos atribuí-la mais ao narrador camiliano que a seu
personagem. A cisão entre linguagem e mundo, em A Queda dum Anjo, atesta, aliás, a
192
Na comédia D. Miguel, Rei de Portugal, do brasileiro Roberto Athayde, a personagem Carlota
Joaquina, frente a linguagem ‘abrasileirada’ de seu filho Miguel, profere: “É a honra de Portugal que
periga se alguém fere a gramática!” (ATHAYDE, 1998, p. 39.)
193
CASTELO BRANCO, 1986, p. 916.
194
FOUCAULT, 1966, p. 62.
89
própria ironia dessa narrativa. Para Maria de Lourdes Ferraz, a ironia apossada de
uma ‘autonomia formal’ –
[...] processa-se quando mal se começa a adivinhar a inevitabilidade de a
literatura ser linguagem, quando se começa a perceber que a obra literária não é
só, ou sobretudo, uma interpretação/representação (mimese) do universo (real
ou poético), mas, mais do que isso, um modo peculiar de a linguagem
form(ul)ar um universo; a própria linguagem é o mundo.
195
Essa concepção da relação entre linguagem e mundo, e ademais eivada de uma
percepção irônica, atesta a modernidade da literatura e, especificamente, de A Queda
dum Anjo.
Embora o morgado de Agra de Freimas diferencie a luta em prol da “linguagem
castiça” e a em prol da “Pátria”, o personagem parece acreditar que, de alguma forma,
resguardar a língua portuguesa da decadência seria salvar Portugal. E assim, ao luxo que
tanto combate como deputado em Lisboa, nos primeiros capítulos, o morgado da Agra
de Freimas oporá a simplicidade em favor do mais amplo entendimento possível por
parte da nação:
Eu direi a V. Ex.ª qual eloquência considero necessária nesta casa da Nação: é a
eloquência que a Nação entenda. A arte de bem falar, ars bene dicendi, é o
estudo da clareza no exprimir a ideia. Os afectos, as galas da linguagem, que
lhe tolhem o mostrar-se e dar-se a conhecer dos rudos, não é arte, é tramóia,
não é luz, é escuridade.
196
À linguagem do protagonista simples, castiça, pautada por autores clássicos –,
corresponde sua visão ligada às tradições nacionais. O Calisto anterior à queda expressa
195
FERRAZ, 1987, p. 19.
196
CASTELO BRANCO, 1986, p. 918.
90
a recorrente e ansiosa auto-afirmação das nações modernas, as quais, segundo Eric
Hobsbawm,
[...] com toda a sua parafernália, geralmente afirmam ser o oposto do novo, ou
seja, estar enraizadas na mais remota antigüidade, e o oposto do construído, ou
seja, ser comunidades humanas, naturais’ o bastante para não necessitarem de
definições que não a defesa dos próprios interesses.
197
Como traço de sua rendição à modernidade, o morgado da Agra de Freimas vem
a não ‘andar’ “por muito longe da frase arroubada do Dr. Libório de Meireles”.
198
À guisa de apêndice a essa seção, as linhas seguintes tratarão de um aspecto
curioso do romance de Camilo. A Queda dum Anjo uma narrativa em prosa dispõe
de uma particular estrutura, presente em cenas que transcorrem na Câmara dos
Deputados. Grande parte dos diálogos e debates ali realizados apresenta-se em forma
teatral. No nono capítulo (“O doutor do Porto”), por exemplo, temos:
O presidente: Peço ao ilustre deputado que se abstenha de usar frases não
parlamentares.
O orador: Tomo a liberdade de perguntar a V. Ex.ª se as locuções repolhudas
do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê de se me
dizer onde se estudam aquelas farfalhices. (Vozes: Ordem! ordem!)
199
Lélia Parreira Duarte, em “A Tessitura irônica de A Queda dum Anjo, de Camilo
Castelo Branco”, destaca a relação formal dessas passagens com o funcionamento
farsesco da política em Portugal, segundo a sátira do romance.
200
Tanto no Parlamento
predomina o fingimento de interesses pelas causas do país quanto esse recinto “tem a
197
HOBSBAWM. In: HOBSBAWM e RANGER (org.), 2002, p. 22.
198
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1002.
199
CASTELO BRANCO, 1986, p. 879.
200
Cf. DUARTE, 1993, p. 89.
91
o aspecto de um teatro, [a]onde as pessoas vão para distrair-se de ‘pensares
melancólicos’. Alguns espectadores dormem enquanto outros se divertem ou comentam,
risos e aplausos e ‘farfalhices’ [...]”.
201
Passagem contundente a esse respeito
localiza--se no quinto capítulo (“Estreia parlamentar de Caliso”). O abade de Estevães
explica ao protagonista, irritado com o juramento que lhe exige a Câmara, que
[...] os representantes da Nação, conquanto jurassem fidelidade à religião
católica apostólica-romana, eram aliás ateus; jurando fidelidade ao rei,
injuriavam-no nas gazetas; jurando fidelidade à Nação avexavam-na de
tributos, e alguns a queriam fundir na Espanha. Comédia e comedoria!
exclamava o abade. Se os deixarmos a eles jurar e mentir à sua vontade, a
monarquia portuguesa daqui a pouco não terá mais realidade no mapa-múndi
que a ilha Barataria do Miguel de Cervantes, ou as ilhas beatas do poeta
Alceu!
202
A sátira do romance focaliza o vazio do discurso, que impressiona e convence os
ouvintes no mais das vezes, ignorantes pela mera opulência retórica, conforme
exemplificam os pronunciamentos do Dr. Libório.
203
No segundo capítulo (“Dois candidatos”), o equívoco do mestre-escola produz
um jogo paronímico que denuncia a ausência de “autonomia nacional”:
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos
entremezes do Entrudo, exclamou:
Aquilo [referência a Calisto Elói] é que dava um deputado às direitas! Um
homem assim, se fosse a Lisboa falar ao rei, as contribuições haviam de acabar!
201
DUARTE, 1993, p. 89.
202
CASTELO BRANCO, 1986, p. 856.
203
Segundo José-Augusto França, “[...] durante os anos 40 ser orador [em Portugal] era uma condição
sine qua non para poder fazer política; o marquês de Fronteira recusou meia dúzia de vezes a presidência
do conselho ou uma pasta ministerial por não se sentir capaz de sustentar um duelo oratório no
Parlamento, e não (achava ele) porque lhe faltassem as qualidades necessárias para governar...”
(FRANÇA, 1999, p. 170.)
92
Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro observou o mestre-
-escola –, os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não haveria rei nem
professores de instrução primária (observem a modéstia da gradação!), nem
tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido repetidas vezes no Periódico dos Pobres, as palavras
autonomia nacional. Faltou-lhe desta feita a memória, lapso que não destoou
em nenhumas orelhas, exceptuadas as do boticário, que resmungou:
– Anatomia nacional!
– Que é?! – perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
– Parece-me que é asneira! – respondeu o outro com certa indecisão.
204
Em referência às cinco primeiras décadas do século XIX, Oliveira Marques
noticia o seguinte contexto histórico evocado por A Queda dum Anjo:
[...] o País dispunha de pouca autonomia própria, dependendo antes da
ordem européia geral, tal como fora estabelecido pelo Congresso de Viena
(1815). Até à cada de Cinquenta, a Inglaterra, a França, a Áustria e, de
certa maneira, a Espanha controlaram Portugal, exactamente como
controloram a maioria dos outros países europeus pequenos.
205
Adiante também esclarece:
[...] eram os próprios Portugueses quem solicitava a protecção e a intervenção
estrangeiras nos seus negócios internos; isso aconteceu em 1823, 1824, 1828-
34 (tanto de Liberais como de Absolutistas), 1836 e 1847. Embora essa
intervenção fosse requerida, geralmente, do lado conservador, receoso de ser
apeado pelos movimentos radicais, os Esquerdistas também se não mostraram
204
CASTELO BRANCO, 1986, p. 845.
205
MARQUES, 1986, v. III, p. 34.
93
inteiramente isentos de culpa. Sempre que a Espanha, a França ou a Inglaterra
demonstravam qualquer simpatia pelos seus princípios, ei-los que
prontamente suplicavam o apoio das potências.
206
Chamo a atenção para outro detalhe quanto ao trecho extraído logo
anteriormente de A Queda dum Anjo: o fato de ser um homem relacionado com farsas
teatrais carnavalescas (os ‘entremezes do Entrudo’) que aponta em Calisto um
“deputado às direitas” danifica a seriedade de sua observação.
Podemos ver nessa teatralidade em que Camilo Castelo Branco insere o
ambiente político português o tempo duplo e cindido da pedagogia e da performance
conceituadas por Homi K. Bhabha. A sátira ao fingimento na mara dos Deputados,
por um lado, pressupõe valores positivos; no caso, a verdade, a sinceridade, o efetivo
engajamento nas causas da nação. Por outro lado, recrimina o desvio dessas normas na
conduta de personagens e da sociedade que o romance representa. Eis a duplicidade, a
cisão que respectivamente a pedagogia e a performance manifestam na imagem que
Camilo delineou de Portugal. Calisto Elói, em seu quixotesco combate às mazelas da
modernidade, assume o papel pedagógico atuante sobre o presente performático. Nesse
sentido, o protagonista contraposto a seu adversário Dr. Libório, e ao fim do romance
contraposto a si mesmo, após sua queda, constituem a narração da nação portuguesa em
A Queda dum Anjo.
2.7) LITERATURA CLÁSSICA X LITERATURA ROMÂNTICA
Em dois momentos de A Queda dum Anjo, Calisto Elói explicita as razões de sua
arcaica concepção legislativa, coerentemente afinada com o universo clássico em que
vive antes de sua transformação, mais ao fim da narrativa. No primeiro capítulo (“O
206
MARQUES, 1986, v. III, p. 35.
94
herói do conto”), o personagem contesta o argumento do avanço da humanidade,
emitido pela Câmara Municipal de que é então presidente: Pois se caminhou [...],
não caminhou direita. Os homens são sempre os mesmos e quejandos; as leis devem
ser sempre as mesmas.
207
No quinto capítulo (“Estreia parlamentar de Calisto”), ao
dizer-lhe o abade de Estevães que seu discurso soara extemporâneo, responde o
protagonista: A verdade é de todas as horas [...].”
208
As assertivas em negrito
recordam uma das basilares leis da arte clássica – a da tipificação –, assim explicada por
Anatol Rosenfeld e J. Guinsburg:
[...] a arte clássica não quer diferenciar e individualizar, seu propósito é sempre
chegar ao geral e ao pico. Na pintura e na escultura, sua busca é a do
universal. Na literatura, esquiva-se de descer a distinções psicológicas, muito
minuciosas. Em todas as suas formas de expressão, tenta fixar o universalmente
humano.
209
A universalização que Calisto Elói imprime ao que pensa sobre a verdade, o
homem e as leis colide com a concepção da transitoriedade cada vez mais frenética
que a modernidade instaura. Ao descrever o vestuário do personagem, no sétimo
capítulo (“Figura, vestido e outras coisas do homem”), o narrador considera: “A gola e
portinholas da casaca eram sérias de mais para estes tempos em que um homem se veste
hoje à moda, e daqui a um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado.”
210
Na
medida em que a moderna busca pelo novo implica o paradoxal envelhecimento deste, a
modernidade constitui o espaço, por excelência, das contradições, dos conflitos, das
207
CASTELO BRANCO, 1986, p. 842.
208
CASTELO BRANCO, 1986, p. 858.
209
ROSENFELD e GUINSBURG. In: GUINSBURG (org.), 1999, p. 375.
210
CASTELO BRANCO, 1986, p. 866. Em Coração, Cabeça e Estômago, dirá Silvestre da Silva: “Pelo
modo como o homem e o amor estão feitos neste tempo, três meses de ausência correspondem àqueles
dilatados anos dos amores da Idade Média, que traziam da Palestina à castelã saudosa o coração leal do
seu cavaleiro. [...] Agora, é mais íntimo e devorante o amor, mais combustível o coração; a chama, batida
por variados ventos, ateia-se mais enfurecida, e o elemento dos afectos volatiza-se rapidamente.”
(CASTELO BRANCO, 1984, p. 771.)
95
dicotomias. Estética em consonância com essa condição, dificilmente conseguimos
definir o romantismo senão pelo contrataste com ou o anterior neoclassicismo ou o
posterior realismo.
211
No universo clássico, o tempo digamos com extravagância é o
da atemporalidade; não se anseia fazer o novo, mas fazer de novo, conforme o princípio
da imitatio.
212
O classicismo de Calisto Elói revela-se também em seu domínio do latim e do
grego e em seu amplo conhecimento de História e Literatura Antigas. Várias vezes, o
personagem recorre à citação de frases latinas, e mesmo o narrador lança mão do
recurso, por exemplo, no título dos capítulos décimo quinto, “Ecce iterum Crispinus”;
décimo sexto, “Quantum mutatis”; décimo sétimo, “In Liborium”, e vigésimo, “Proh
dolor!...”. Também na dedicatória do romance, existe trecho em latim; esta máxima de
Catulo: “Donat cum egenus diviti / Retia videtur tendere”.
213
A exegese camiliana
costuma apontar afinidades entre o Calisto Elói antes da transformação e o romancista
português, o qual por motivos semelhantes via em António Feliciano de Castilho, além
de um amigo, um mestre. Jacinto do Prado Coelho informa como o poeta cego
recepcionou o romance que analiso:
[...] Castilho vibrou de entusiasmo com a figura [de Calisto]: “Se me permite
citar-lhe um excelente modelo do que eu apeteço, cito-lhe A Queda dum Anjo,
onde tantas sãs doutrinas e boníssimas vêm artificiosamente disseminadas
acerca da linguagem, da eloquência, de como se hão-de ler e imitar os
clássicos, etc.” (carta de 10 de Janeiro de 1866). Claro: o que preocupava
Castilho era, mais ou menos, o que preocupava os teóricos da poesia do
211
Cf. VIZZIOLI. In: GUINSBURG (org.), 2002, p. 137.
212
Afrânio Coutinho esclarece: “A imitação era regra retórica e pedagógica por excelência, e não se
confundia com plágio. O princípio normativo da imitação dos modelos foi admitido pacificamente pelos
mestres da retórica heleno-romana, não como um processo inferior, mas como uma disciplina formadora
através da qual se emulavam as virtudes dos grandes autores. [...] De imitação da natureza, concebida
como o motor gerador das coisas, o espírito normativo dos romanos transformou o conceito em disciplina
retórica de imitação de autores modelares, que, nos tempos modernos, se confundiram com os clássicos
antigos, isto é, em vez de ir à natureza, imitavam-se os que haviam, de modo excelente, imitado a
natureza.” (COUTINHO, 1968, p. 85-6.)
213
CASTELO BRANCO, 1986, p. 835.
96
Arcadismo: o problema do purismo, o problema da imitação, as leis da
eloquência. Mas a convivência entre Castilho e Camilo não é mero fruto do
acaso: havia entre eles afinidades palpáveis. Ouvindo Calisto Elói, julgamos
ouvir Camilo expondo as suas ideias estéticas eivadas de setecentismo,
atacando a poesia semcunho português’, aconselhando ‘o trato indefesso com
os mestres da língua’ [...]. Por outro lado, a linguagem vernácula de Calisto,
com fortes ressaibos a Manuel Bernardes e Frei Luís de Sousa, é a
linguagem em que toda a novela está escrita [...].
214
De fato, o protagonista se respalda em diversos autores clássicos portugueses
para duelar oralmente na Câmara dos Deputados com o Dr. Libório. Antes de sua
queda, o morgado da Agra de Freimas recorda em seus hábitos e características certos
preceitos neoclássicos: o de fugere urbem, ao habitar uma região campesina (Miranda);
o de aurea mediocritas, ao levar uma vida simples, sem dispêndio da riqueza; o de
contenção emocional, no caso do personagem, seguido exageradamente, pois este nem
ao menos até então sentira paixões por mulheres, tampouco angústias existenciais.
O afeto que Calisto manifesta pela língua portuguesa – digamos – clássica e pelo
latim trai uma tradição literária quinhentista que se encontra expressa em Os Lusíadas,
de Camões.
215
O personagem de A Queda dum Anjo, no décimo sétimo capítulo (“In
Liborium”), toma Quintiliano para exemplo de ‘arte de bem falar’, isto é, a “clareza no
exprimir a idéia”.
216
Em sua epopéia, Camões solicita às Tágides um “estilo
grandíloquo”, que se alcançaria por meio de empréstimos do latim, e também
“corrente”, na preocupação por parte do enunciador épico de expressar-se o mais
214
COELHO, 2001, p. 213.
215
No oitavo capítulo de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, uma cena ilustra bem o feixe
dicotômico presente em A Queda dum Anjo: cidade / língua francesa / literatura moderna x campo /
latim / literatura clássica. Recém-chegados de Paris – a capital do Ocidente oitocentista – à região serrana
de Tormes, Jacinto, o ‘Príncipe super-civilizado’, e seu amigo José Fernandes refestelam-se com a
comida ali preparada. O narrador-personagem conta: “Mirando, à vela de sebo, o copo grosso que ele
orlava de leve espuma rósea, o meu Príncipe, com um resplendor de optimismo na face, citou Virgílio: //
Quo te carmina dicam, Rethica? Quem dignamente te cantará, vinho amável destas serras? // Eu, que
não gosto que me avantagem em saber clássico, espanejei logo também o meu Virgílio, louvando as
doçuras da vida rural: // Hanc olim veteres vitam coluere Sabini... Assim viveram os velhos Sabinos.
Assim Rómulo e Remo... Assim cresceu a maravilha do mundo!” (QUEIROZ, 1950, p. 175.)
216
CASTELO BRANCO, 1986, p. 918.
97
inteligivelmente possível.
217
Acrescento que, na célebre estrofe 33 do primeiro canto de
Os Lusíadas, nus mostra-se favorável aos portugueses, pois a língua falada por estes
“Com pouca corrupção crê que é a Latina”.
218
Em contrapartida, Calisto Elói sabe “o
francês muito pela rama”
219
e desconhece quase de todo a literatura romântica expressa
nesse idioma. A exemplo desse fato, o personagem trava o seguinte diálogo, no décimo
primeiro capítulo (“Santas ousadias!”):
– A Sr.ª D. Catarina já leu Homero?
– É romance? – disse ela.
Romance ou fabulário de alta moral lhe havemos de chamar; não romances
de uns que, de oitiva o sei, por aí empestam a sociedade. [...]
Fez Calisto uma longa pausa, e prosseguiu, interpolando os dizeres com
algumas pitadas, que solenizavam a gravidade das falas.
Ninguém devera casar sem muito ler e sem aplaudir aqueles preceitos do
casamento escritos pelo eminentíssimo Plutarco.
– Não conheço – disse a dama... – Li Le Mariage, de Balzac.
– Não sei quem é; deve ser francês.
220
Conforme vimos na seção 2.5, longe de sentir as efusões sentimentais
românticas, Calisto esposa sua prima Teodora por mera obediência a convenções sociais
e conveniências familiares. Quando em Lisboa apaixona-se pela primeira vez, por
217
Cf. CIDADE, 1968, v. II, p. 68-73.
218
CAMÕES, 1997, p. 79.
219
CASTELO BRANCO, 1986, p. 840.
220
CASTELO BRANCO, 1986, p. 889.
98
Adelaide, nela inspirado escreve seu primeiro poema, todavia de nítida dicção
neoclássica:
Senhora de grão primor,
Meu amor,
Formosíssima deidade,
Arde meu peito em saudade,
Quem fui ontem, não sou hoje;
Minha alegria me foge,
Se vos olho.
Havei de mim piedade;
Sede minha divindade;
Não leveis a mal que eu chore,
Contanto que vos adore,
Gentil e nobre menina,
Como Camões a Cat’rina
E como Ovídio a Corina.
221
O morgado da Agra de Freimas começa por rechaçar, tanto como receptor
quanto como produtor, a literatura de sua contemporaneidade. Ao passo que os antigos
– Homero e Plutarco, por exemploforneceriam modelos morigerantes, autores coevos
ao personagem, como Balzac, promoveriam a corrupção moral. Dr. Libório também em
seus discursos cita duas vezes o romântico francês Victor Hugo,
222
autor da peça
Lucrécia Bórgia, contra a qual o protagonista se indispõe no sexto capítulo (“Virtuosas
parvoiçadas”).
221
CASTELO BRANCO, 1986, p. 905.
222
A primeira vez, no nono capítulo (“O doutor do Porto”): “Oh! que rejúbilos de coração para quem
fadado lhe foi de cima o entender e amar, que o compreender é amar, na frase incisiva e galharda de
Vítor Hugo!” (CASTELO BRANCO, 1986, p. 878.) A segunda vez, no décimo quinto capítulo (“Ecce
iterum Crispinus...”): “Que farte me hei despendido em razões que superabundam no caso em que me
empenho, de parçaria com Vítor Hugo, e com quejandas lumieiras que esplendem na vanguarda desta
caravana da humanidade, que se vai demandando a Meca da perfectibilidade.” (CASTELO BRANCO,
1986, p. 909.)
99
No vigésimo quarto capítulo (“A mulher fatal”), arrebatado pela beleza de
Ifigénia, Calisto chega a expressar-se de maneira que recorda
[...] a passagem de um romance, que se não preza de muito verosímil. Porém,
como quer que a viúva do general Ponce de Leão fosse grandemente lida em
novelas francesas, o caso não lhe pareceu tão extraordinário como ao leitor e a
mim, quando mo referiram.
223
No desfecho de A Queda dum Anjo, o próprio narrador discute os propósitos
aliás, insistentes na narrativa camiliana de moralizar. Essa discussão passa por outro
preceito neoclássico, sobrevivente em grande parte da obra do Romancista de Ceide: o
docere cum delectate. Nas palavras de Jacinto do Prado Coelho, em A Queda dum Anjo,
ocorre “o escândalo metafísico da ausência de castigo”,
224
pois o protagonista
apaixonado por Ifigénia abandona a esposa, e, apesar de adúltero, consegue encontrar a
felicidade. Confessa o narrador:
Eu, como romancista, lamento que ele não viva muitíssimo apoquentado, para
poder tirar a limpo a sã moralidade deste conto.
Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao Céu número
de almas mais vantajoso que o do ano passado.
225
223
CASTELO BRANCO, 1986, p. 954. Em A Filha do Doutor Negro, romance de 1864, o narrador
camiliano refere-se a George Sand e Frédéric Soulié e demais romancistas franceses como “capitalistas da
imaginação corrupta”. (CASTELO BRANCO, 1985, p. 795.)
224
COELHO, 2001, p. 374.
225
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005. No “Prefácio” de O Esqueletoobra, como A Queda dum Anjo,
também publicada em 1865, mas anteriormente a esta –, o narrador-autoral Camilo Castelo Branco
discorre: “Enquanto à influência do romance nos costumes, estou mais que muito desconfiado de que o
romance não morigera nem desmoraliza. // Porém admitida a ponderação que lhe alvidram os exortadores
dos pais de família, o sei decidir como se há-de escrever o romance fautor da moral. São dois os
expedientes: levar os personagens viciosos ao despenhadeiro; ou criar anjos num paraíso sem serpente. //
[...] // São estes os romances que moralizam, ou os outros? É a minha dúvida.” (CASTELO BRANCO,
1985, p. 1165.) A Queda dum Anjo parece misturar os dois expedientes referidos, uma vez que cria um
anjo num paraíso em verdade, não propriamente sem serpente (Miranda) e leva o personagem, por
fim, ao despenhadeiro (a queda do protagonista em Lisboa). Esse terceiro expediente empregado na
narrativa sobre Calisto Elói parece atestar a permanência da dúvida confessada por Camilo, senão atestar
mesmo a impossibilidade de o romance morigerar.
100
A frustração quanto ao propósito de ridendo castigat mores reaparecerá na
“Advertência da Segunda Edição”, de 1873:
O autor cuidou, quando escreveu esta novela, que alguma intenção
moralizadora se transluzia da contextura da história. Hoje, por lho haver dito
um amigo franco, está persuadido que o seu livro não morigerou; mas também
não escandalizou ninguém. Isto é consolativo, ainda assim.
226
O fim de A Queda dum Anjo e sua “Advertência” declaram, eivados de ironia, a
impossibilidade de se corrigirem os costumes, mesmo pelo riso da sátira. Nessa
perspectiva, o universo clássico, onde se propunha o docere cum delectate, esfacela-se à
medida que se instaura a modernidade, regida por contínuas transformações. A sátira e a
ironia direcionadas tanto a um Calisto apegado ao passado quanto a um Calisto
modernizado não definem um espaço de verdade única e séria para os tempos
modernos.
Calisto Elói rejeita a literatura contemporânea, isto é, romântica e defende a
literatura clássica como a autenticamente lusitana.
227
Friso que, antes de sua queda, o
protagonista, quando se depara com autores contemporâneos, estes são franceses. A
exceção seria o próprio Camilo. Porém, como vimos na seção 2.6, Calisto observa-lhe a
linguagem corrompida. Acerca da influência cultural estrangeira na capital lusitana,
Oliveira Marques fornece dados ilustrativos:
226
CASTELO BRANCO, 1986, p. 837.
227
Em O Pré-Romantismo Português, Zenóbia Collares Moreira noticia caso similar na França, onde a
crítica literária do início do século XX indispõe-se com o romantismo, por considerá-lo produto de
influência estrangeira notadamente inglesa e alemã. Entretanto, na própria época defendeu-se que
destacados nomes franceses ou francófonos contribuíram para a consolidação da estética e ideologia
romântica no país. (Cf. MOREIRA, 2000, p. 19-30.)
101
Uma estatística das peças de teatro apresentadas no Teatro Nacional de D.
Maria II, de Lisboa, entre 1845 e 1910 (de acordo com os números de Matos
Sequeira), mostra facilmente o predomínio das traduções sobre a produção
portuguesa. De cerca de 1300 peças representadas, menos de um quarto foram
de autores nacionais.
228
Mas também o contraste entre as exaltações a Lisboa lidas em clássicos
seiscentistas e a degradação da capital que Calisto encontra assinalará a degradação de
Portugal no presente. No quarto capítulo (“Asneiras da erudição”), lemos:
Por fins de Janeiro, chegou Benevides de Barbuda a Lisboa, e alugou casa no
bairro de Alfama, por lhe terem dito que, naquela porção da Lisboa antiga, a
cada esquina havia um monumento à espera de arqueólogo competente.
Ao cabo de três dias, Calisto mudou-se para rua mais limpa, supondo que os
lamaçais de Alfama haviam tragado os monumentos, lamaçais em que ele
desastradamente escorregara, e donde saíra mal limpo, e assoviado por marujos
e colarejas, seus vizinhos mais chegados. Mau agouro! A primeira quimera de
Calisto, seu tanto ou quanto científica, atascara-se na lama daquela parte de
Lisboa, que devia ser a ínclita Ulisseia de Luís de Camões!
229
A propósito, o que sucede em A Queda dum Anjo também sucede em Viagens
na Minha Terra, de Almeida Garrett. Nesse romance de 1843 (anterior ao de Camilo
cerca de 23 anos, portanto), à degenerescência estilística da literatura corresponde a
degradação física da paisagem nacional:
Este é o pinhal da Azambuja?
Não pode ser.
228
MARQUES, 1986, v. III, p. 136.
229
CASTELO BRANCO, 1986, p. 851.
102
[...]
Por quantas maldições e infernos adornam o estilo dum verdadeiro escritor
romântico, digam-me, digam-me: onde estão os arvoredos fechados, os sítios
medonhos desta espessura?
Pois isto é possível, pois o pinhal da Azambuja é isto?
230
2.8) CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir desse olhar panorâmico sobre A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo
Branco, tivemos a imagem de uma nação fraturada. Dois Portugais coexistem na
narrativa: o velho e o novo, dicotomia que enfeixa uma série de correspondências
dicotômicas explicitadas e analisadas neste capítulo. Caberia aqui perguntar: mas que
nação não apresentaria fraturas, uma vez que a homogeneidade nacional decorre de um
esquecimento de traços heterogêneos? De fato, a pergunta procede. Entretanto, a
narrativa camiliana explicita a fratura da nação que delineia. Não quero, com o que
acabo de dizer, dar a entender que Camilo não torna uma essência a idéia de nação, e
especificamente de uma nação portuguesa. Sua obra como um todo endossa e divulga
uma portugalidade, e, no caso específico de A Queda dum Anjo, o Romancista de Ceide
discute essa identidade nacional a partir das duas temporalidades o velho e o novo, o
antigo e o moderno encenadas pelas dicotomias a) espaço provinciano x espaço
urbano; b) bases sociais do Antigo Regime x ordem burguesa; c) economia agrária
(feudal) x economia industrial (capitalista); d) convenções sociais x paixão e amor; e)
linguagem castiça x linguagem corrompida; f) literatura clássica x literatura romântica.
230
GARRETT, [1963], v. I, p. 27.
103
Ao aplicar no romance a proposta de Homi Bhabha para compreender o
funcionamento do discurso da nação, observei que a sátira e a ironia voltadas ao
Portugal arcaico manifestam a obliteração performática do passado. Esta, aliás, não
ocorre apenas na enunciação, mas também entre os personagens que vêem Calisto Elói
como um homem anacrônico e risível, quando atua no papel pedagógico baseado na
autoridade do passado tido como nacional. Por outro lado, sabemos que a sátira e a
ironia do narrador também alvejam o protagonista quando este adere às idéias e aos
costumes da modernidade. Fruto de uma percepção nostálgica, esse procedimento por
parte do narrador parece manifestar sua faceta pedagógica, pois esse riso lamenta a
degenerescência dos pressupostos valores portugueses. Assim, um narrador fraturado
cindido entre o velho e o novo narra uma nação fraturada cindida entre essas duas
temporalidades –.
A dicotomia do velho e do novo Portugal em A Queda dum Anjo inscreve o
passado no presente. Essa inscrição acaba por provocar fissuras no presente, ou na
modernidade da nação portuguesa ali delineada. Na medida em que o antigo e o
moderno convivem no espaço nacional, o moderno dessa nação trai seu lugar de país
atrasado na marcha progressista, empreendida mais efetivamente por países como
Inglaterra e França. A este último, aliás, vincula-se o novo Portugal, metonimizado na
cidade de Lisboa. No romance de Camilo, a influência francesa acentuada no século
XIX ocorre em diversos âmbitos: social, político, lingüístico, literário. Contudo, o
modelo da França conduz à corrupção da sociedade (hipócrita e praticante de
adultérios), dos políticos (preocupados com questões supérfluas), da língua
(contaminada por galicismos), da literatura (inverossímil e cheia de maus exemplos
morais). Calisto, ao combater o afrancesamento de Portugal, revela conceber a
autenticidade identitária portuguesa moralmente impoluta e, portanto, superior. Eis a
104
base de seu discurso nacionalista. Não por acaso o personagem procura vivenciar os
tempos longínquos: neles encontra-se o esplendor de Portugal, sua glória como povo
desbravador de mares, descobridor e colonizador de terras... e no presente – em meados
do século XIX Portugal, havia pelo menos trezentos anos, situava-se à periferia do
mundo.
No próximo e último capítulo, abordarei o protagonista de A Queda dum Anjo
como símbolo dessa nação portuguesa fraturada em duas temporalidades.
105
CAPÍTULO 3:
CALISTO ELÓI: UM PORTUGAL EM QUEDA?
– [...] Assim todo completo, com o bem, com o
mal, sabem vocês quem ele me lembra?
– Quem?
– Portugal.
Eça de Queirós, A Ilustre Casa de Ramires
O que antes não se sabia, o que hoje se sabe, se
poderia saber uma reversão, um retorno, em
qualquer sentido ou grau, não é absolutamente
possível.
Friedrich Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos
Mas os que resistiram em nome da tradição
foram derrotados.
Eric J. Hobsbawm, A Era do Capital
3.1) CONTEXTO HISTÓRICO-CULTURAL E SIMBOLOGIA DE CALISTO ELÓI
106
Críticos têm insistido na semelhança do protagonista de A Queda dum Anjo, o
Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda,
231
com seu autor Camilo Castelo Branco.
Jacinto do Prado Coelho observa que “Em Camilo havia, na verdade, um Calisto Elói
devoto de prosas velhas e genealogias, admirador duma simpleza clara e lapidar,
rabugento ante modernismos ‘civilizadores’”.
232
Óscar Lopes sublinha ainda “uma certa
proximidade paradigmática” entre o pré-nome do personagem e o do romancista.
233
Ao
lado desse lastro autobiográfico na confecção da figura do morgado da Agra de
Freimas,
234
podemos acrescentar um contexto que Camilo denuncia e ironiza na crônica
“Tesouro de Sábios”, publicada no jornal A Revolução de Setembro, a 11 de abril de
1861.
235
Trata-se de um disseminado gosto por citações latinas no Portugal da época,
236
– gosto compartilhado por Calisto Elói e pelo próprio Camilo Castelo Branco.
D. João de Castro, em célebre artigo sobre A Queda dum Anjo, aponta um
contemporâneo do escritor oitocentista como inspiração para o herói desse romance.
Nas palavras de Túlio Ramires Ferro,
Segundo D. João de Castro, o modelo, vivo, do herói camiliano foi um fidalgo
muito conhecido em Braga, Domingos de Barros Teixeira da Mota, que era
senhor da casa vincular da Cruz, situada no concelho de Celorico de Basto.
Homem austero, apreciador de genealogias e cronicões, e adepto de D. Miguel,
Domingos de Barros, que estava casado com uma senhora muito feia e muito
231
Lélia Parreira Duarte propõe acerca do nome completo do personagem: “[...] Calisto é o superlativo de
kálos, sendo portanto, o mais belo; Elói é o escolhido, o eleito, além de lembrar Eloim, nome que
substitui muitas vezes o de Jeová no Pentateuco e poderia ser visto como indicador de um ser que está em
contato com Deus. Silos lembraria o grego síros (sátira, poema satírico, paródia); refere também tulha,
depósito, de onde a idéia de armazenamento e/ou entulhamento de riquezas e de erudição. Benevides,
como o texto explica, seria aquele que vive bem, sendo etimologicamente o que bem; e Barbuda é
família importante, com brasão, armas e timbre.” (DUARTE, 1993, p. 83.)
232
COELHO, 2001, p. 213.
233
LOPES, 1991, p. 57.
234
Quanto ao antagonista Dr. Libório, segundo Alexandre Cabral, “O autor identifica claramente o
personagem. É o retrato perfeito do seu amigo antigo e depois adversário António Aires de Gouveia”.
(CABRAL, 1989, p. 536.)
235
Cf. CASTELO BRANCO, 1990, p. 1246-50.
236
Em Viagens na Minha Terra, Almeida Garrett havia escrito, entre parênteses, que “a bossa
proeminente hoje é a latina”. (GARRETT, [1963], v. I, p. 32.)
107
rica, mundanizou-se em contacto com a vida elegante de Lisboa, onde se
instalou quando o elegeram deputado.
237
De fato, os dados biográficos do aristocrata português e a trajetória do
personagem de A Queda dum Anjo coincidem em muitos pontos, embora falte na vida
do primeiro o registro de um adultério, o que motiva no segundo as conhecidas
transformações.
238
Cerca de três anos antes de A Queda dum Anjo, Camilo publicou O Bem e o
Mal, em que aparece um personagem com características impressionantemente muito
semelhantes às de Calisto Elói. Padre Praxedes de Vila Cova, conta-nos o narrador,
[...] sobre ser virtuoso, era grande letrado; a sua ciência, porém, atrasara-se
dous séculos na história do espírito humano.
[...] sabia de cor Aristóteles e Platão. Filosofia, Física, História Natural,
Gramática, Lógica, Metafísica, Poética, Meteorologia, Política, e mais um
centenar de ciências todas lhas ensinaram os dous sábios de Estagira e Atenas.
Na opinião dele, a inteligência do homem, depois de Platão e Aristóteles,
envelhecera, ou fingira remoçar-se com atavios de ouropel e pechisbeques, sem
quilate na experimentada mão de um sábio.
Era padre Praxedes copiosamente lido em livros portugueses anteriores ao
século XVII, e possuía os melhores nas suas ponderosas estantes de castanho.
Da época dos Senhores Reis D. João V e D. José I pouquíssimos volumes, e
esses mesmos estremados do ouro puro dos clássicos, se honravam de prender-
-lhe a atenção.
239
Além da leitura contumaz de autores tão antigos, ao lado de um desrespeito
senão indiferença pelo conhecimento contemporâneo, outra coincidência entre padre
237
FERRO, 1966, p. 114-5.
238
Cf. FERRO, 1966, p. 115.
239
CASTELO BRANCO, 1985, p. 9-10.
108
Praxedes e Calisto Elói se destaca. Se o morgado da Agra de Freimas terá uma parentela
de “altas dignidades da Igreja”
240
e haverá em sua casaonze retratos, que tinha de onze
avós”,
241
o personagem de O Bem e o Mal tivera “ao certo que seus derradeiros anos,
muitos ou poucos, ali [na residência paroquial] seriam vividos ao da sepultura dos
seus onze antepassados”
242
, todos os quais eclesiásticos. O detalhe da repetição do
número onze de um romance para o outro parece reforçar ainda mais a existência de um
‘parentesco’ entre os personagens, ou ainda de um arquétipo camiliano.
Mas talvez o parentesco do protagonista de A Queda dum Anjo que mais salte
aos olhos seja o com Dom Quixote. O próprio narrador do romance, a propósito das
pretensões de Calisto de salvaguardar a moral do casamento de D. Catarina, no primeiro
parágrafo do décimo segundo capítulo (“O anjo-custódio”), sugerirá a semelhança:
“Santa audácia! Bizarra índole de antigo cavaleiro, que abriga no peito a generosidade
com que os heróis dos Lobeiras, Cervantes, Barros e Morais se lançavam às
aventurosas lides, no intento de corrigir vícios e endireitar as tortuosidades da humana
maldade!”
243
Acerca da proximidade entre Calisto e D. Quixote, porém, no que
concerne à suposta loucura desses personagens, João Camilo dos Santos adverte:
240
CASTELO BRANCO, 1986, p. 839.
241
CASTELO BRANCO, 1986, p. 843.
242
CASTELO BRANCO, 1985, p. 12.
243
Não extraí o trecho da edição em todas as outras vezes utilizada – a da Lello & Irmão de 1986, volume
V das Obras Completas de Camilo Castelo Branco. Esta, conforme esclarecem os editores, baseia-se na
edição de 1873 a segunda de A Queda dum Anjo “porque é a única em que o autor declara que
procedeu à sua revisão. Entendemos não considerar definitivas as alterações que encontramos na 3ª.
edição, a tal chamada definitiva, tendo em atenção a sua data 1887 e as condições de vida e de produção
literária de Camilo nesse período dramático”. (Advertência à nossa edição. In: CASTELO BRANCO,
1986, p. 1007.) No caso do trecho extraído, não lemos o nome de Cervantes, conforme a referida edição
da Lello & Irmão de 1986. Os críticos que pontuam a semelhança entre Calisto Elói e D. Quixote
freqüentemente recorrem a essa passagem, querendo com ela indicar a consciência por parte do narrador
dessa semelhança. o se costuma, no entanto, observar esse problema ecdótico nos trabalhos sobre o
romance. De fato, Lobeira, Barros e Morais são autores que se celebrizaram pelo gênero de novelas
cavaleirescas justamente satirizado por Miguel de Cervantes em Dom Quixote donde um certo
estranhamento em o nome do escritor espanhol figurar entre os daqueles no trecho. Naturalmente, esse
fato não contraria o caráter quixotesco do protagonista de A Queda dum Anjo. Dada a tradição em citar a
passagem com o nome de Cervantes, citei-a também desta forma, tendo consultado as seguintes edições:
Organização Simões, de 1953; Europa-América, da década de 1970; Parceria A. M. Pereira, de 1979;
Lello & Irmão, de 1981; Ediouro, da década de 1980, e finalmente, pela editora brasileira Ática, de 1997.
Entre todas, não há variações no trecho transcrito.
109
[...] se a loucura de D. Quixote é um facto em geral admitido pela crítica
cervantina, no caso de Calisto não parece que se possa falar de loucura. O
contraste entre uma visão do mundo e um comportamento que aparecem como
originais (distinguindo como “diferente” aquele que os encarna) e a visão do
mundo e comportamento da maioria não implica forçosamente que haja perda
da razão.
244
De qualquer maneira quixotesco, Calisto exemplifica a ampla ressonância
cultural do livro de Miguel de Cervantes no século XIX português. Para esse fato o
estudo Garrett, Camilo, Eça: entre Quixote e Sancho, de José Clécio Basílio Quesado, o
de Maria Fernanda Abreu, Cervantes no Romantismo Português: cavaleiros andantes,
manuscritos encontrados e gargalhadas moralíssimas, e outros chamam a atenção.
em 24 de agosto de 1848, na gazeta Nacional, Camilo publicara uma crônica à guisa de
conto intitulada “Cavalheiro Andante do Século 19”. Conforme Maria Fernanda Abreu
noticia, esta teria sido a primeira criação ficcional do escritor oitocentista com base no
personagem cervantino.
245
Igualmente a D. Quixote, o narrador-personagem desse texto
satírico, após leitura de narrativas sobre feitos épicos medievais, resgata uma donzela
raptada por um sargento de telégrafo.
246
Como se pode observar, aqui também se
chocam o antigo representado pelas leituras de textos da Idade dia e o novo
representado pelo tempo em que vive o narrador-personagem, a modernidade que o
telégrafo emblema –.
Em Viagens na Minha Terra, de 1843, Almeida Garrett explicara a marcha da
civilização, ou seja,para nos entenderem todos melhor, o Progresso”,
247
lançando mão
dos protagonistas das peripécias narradas em D. Quixote:
244
SANTOS, 1992, p. 50.
245
Cf. ABREU, 1994, p. 273-6.
246
Cf. CASTELO BRANCO, 1990, p. 23-27.
247
GARRETT, [1963], v. I, p. 16.
110
[...] dois princípios no mundo: o espiritualista, que marcha sem atender à
parte material e terrena desta vida, com os olhos fitos em suas grandes e
abstractas teorias, hirto, seco, duro, inflexível, e que pode bem personalizar-se,
simbolizar-se pelo famoso mito do Cavaleiro da Mancha, D. Quixote, o
materialista, que, sem fazer caso nem cabedal dessas teorias, em que não crê e
cujas impossíveis aplicações declara todas utopias, pode bem representar-se
pela rotunda e anafada presença do nosso amigo velho, Sancho Pança.
248
O trecho pertence ao segundo capítulo da obra, onde o narrador esclarece: “[...] a
minha obra é um símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se
mete em tudo e com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.”
249
Assim como
se utiliza das figuras de Quixote e Sancho para ilustrar o mecanismo dialético do
progresso o embate entre a força espiritualista e materialista –, o próprio romance
funciona como ‘explicação’ simbológica da “situação cultural, política e social de
Portugal”, segundo a excelente leitura de Helder Macedo.
250
Ao analisar a novela “A
Menina dos Rouxinóis”, inserida no romance, Macedo propõe:
As duas personagens motrizes da sequência romanesca o Frei Dinis e Carlos
um absolutista e o outro liberal. Cada um deles representa D. Quixote e
Sancho Pança em fases diferentes das suas vidas. Frei Dinis, que começou por
ser “materialista” porque presa das paixões, espiritualizou-se através do
remorso no frade austero em que veio a tornar-se; Carlos, após ter lutado pelos
ideais do liberalismo, corrompeu-se e cedeu à matéria ao tornar-se barão.
251
Também o protagonista de A Queda dum Anjo se enquadra nessa fórmula. Na
primeira fase de sua vida, é absolutista, defensor de rígida moral cristã-católica, mas
depois “presa de paixões” converte-se ao liberalismo e torna-se barão. O
248
GARRETT, [1963], v. I, p. 16-7.
249
GARRETT, [1963], v. I, p. 16.
250
MACEDO, 1979, p. 17-8.
251
MACEDO, 1979, p. 18.
111
personagem camiliano encarna, pois, num momento o espiritualista Quixote, e
posteriormente o materialista Sancho. João Camilo dos Santos opera noutros termos,
mas o resultado de sua leitura do romance corresponde ao exposto acima. Segundo o
crítico, “Calisto, evoluindo e adaptando-se enfim, permite a Camilo pôr em cena a
transição do Portugal antigo para o Portugal moderno”, e sendo assim, A Queda dum
Anjo é a história dessa transição”.
252
José Clécio Basílio Quesado concilia os dois
aspectos da leitura:
Caído do “fragmento paradisíaco” de Miranda na babilônica Lisboa de usos e
costumes novos, Calisto Elói é [...] a figuração de um povo que, no seu projeto
de descaracterização político-econômica e cultural, se descompassou entre o
passado e o presente, entre a sua tradição milenar e os influxos de uma
modernidade mal urdida. [...] É, enfim, mais uma reduplicação de ficção lusa
do idealismo quixotesco lançado nas vertigens abissais do materialismo de
Sancho.
253
Se podemos aproximar Calisto Elói de D. Quixote e Sancho Pança pelo jogo
dicotômico tanto entre o antigo e o moderno quanto entre o ideal e o real, pensando
neste último, Fidelino de Figueiredo enxerga no protagonista do romance de Camilo o
arquétipo fáustico:
Calisto Elói [...] é [...] o eterno intelectual que concebe da vida e do mundo só a
pequena parte que o livro lhe denuncia, e que exercita do espírito a pequena
parcela que é a inteligência. O protagonista é um deslocado, [...] mas é também
um pouco o Fausto. Vindo a Lisboa, como deputado, o meio transforma-o; e
esta transformação é um caso da influência do meio, precipitando um anjo, mas
é também a revelação da verdadeira vida a quem nunca a exercitara, é também
o gostar do sentimento do amor, da conformação com o seu tempo e com o seu
meio, por quem não supunha na vida do coração tão amplos limites. De sorte
252
SANTOS, 1992, p. 57.
253
QUESADO, 2ª. ed. a ser publicada, p. 60.
112
que esse Calisto Elói é uma forma satírica, romântica, camiliana acima de tudo,
do eterno tema do conflito entre a vida ideal e a real, da tardia opção pela
segunda. E à longa lista de expressões literárias do tema do Fausto [...] a
accrescentar a de Camilo, pelo romance satírico.
254
Marshall Berman destaca em Fausto o outro embate entre o velho e o novo
que vemos Calisto Elói também representar. “O Fausto de Goethe: a tragédia do
desenvolvimento”, primeiro capítulo de Tudo que é sólido desmancha no ar, de
Berman, principia com esta frase: “Desde que se começou a pensar em uma cultura
moderna, a figura de Fausto tem sido um de seus heróis culturais.”
255
O personagem,
especificamente na obra goethiana, encarnaria os anseios transformadores, manifestados
nas Revoluções Francesa e Industrial, sobre uma sociedade de estruturas feudais. Nesse
aspecto, Fausto terá “uma ressonância especial em países social, econômica e
politicamente ‘subdesenvolvidos’”.
256
Berman lê o percurso fáustico, segundo o colocou
o poeta alemão, como uma tragédia do desenvolvimento, onde um provinciano mundo
de ingenuidade e pureza lugar a um mundo de bem mais amplos horizontes morais,
em contínuas transformações, em acelerado progresso.
Portugal situa-se, no período em que se publica A Queda dum Anjo, entre os
países de precário desenvolvimento social, econômico e político, referido por Berman.
E o arquético fáustico, conforme atesta o romance de Camilo Castelo Branco,
manifestou-se, de fato, no imaginário português. Se Mefistófeles conduz Fausto às
transformações de trágicas conseqüências – uma vez que estas implicam a destruição da
ingenuidade e pureza
257
–, também o narrador camiliano utiliza a imagem demoníaca
254
FIGUEIREDO, 1946, p. 244-5.
255
BERMAN, 2005, p. 43.
256
BERMAN, 2005, p. 49.
257
Também podemos aproximar o casal Calisto e Teodora, pertencentes ao romance de Camilo, do casal
Filemo e Báucia, que figura no Fausto de Goethe como resquício de um mundo antigo ilhado e
perturbador em meio a um mundo moderno. Se a morte de Filemo e Báucia simboliza a vitória definitiva
da modernidade vitória em que um tom de lamento em decorrência dessa morte –, a separação
adúltera de Calisto e Teodora simboliza o mesmo, e a vitória da modernidade em A Queda dum Anjo não
deixa de ter o tom lamentoso. Jacinto do Prado Coelho comenta: “A derrota de Calisto aos pés do
113
para simbolizar o percurso do morgado da Agra de Freimas rumo a destino similar.
Basta reparar no título do terceiro capítulo, “O demónio parlamentar descobre o anjo”;
do décimo quarto, “Tentação! Amor! Poesia!”; do vigésimo nono, “O demónio em
Caçarelhos”; do trigésimo primeiro, “Vence o Demónio! Choram os anjos”; do
trigésimo quinto, “A felicidade infernal do crime”. Destaco ainda outro ponto de
contato relevante. Nas palavras de Berman,
Como muitos homens e mulheres de meia-idade que vivem uma espécie de
renascimento, Fausto sente seus novos poderes como poderes sexuais; a vida
erótica é a esfera na qual ele aprende inicialmente a viver e agir. Após algum
tempo na companhia de Mefisto, Fausto se torna radiante e excitado. Algumas
das mudanças decorrem de elementos artificiais: roupas chiques e charmosas
(ele nunca havia ligado para a própria aparência; até então, todo o seu
rendimento era convertido em livros e instrumentos) e poções mágicas da
Cozinha da Feiticeira, que fazem Fausto parecer e sentir-se trinta anos mais
jovem.
258
Semelhantemente, Calisto Elói homem de meia idade viverá suas mudanças
a partir do afloramento tardio de sua sexualidade. Aliás, sua paixão por Adelaide
motivá-lo-á a vestir roupas mais modernas e sedutoras, a tornar-se mais esbelto e
rejuvenescido. Em seguida, a bela viúva Ifigénia quem parece corresponder aos
sentimentos do deputado mirandense leva-o a perder-se definitivamente: o adultério é
consumado e Calisto, modificados seus hábitos e trajes, adere ao ideário do partido
liberalista português. A propósito, no vigésimo quinto capítulo do romance
(“Perdido!”), ao citar uma cena de Vilhalpandos, de de Miranda, em que um
personagem declara seu amor a Fausta, Calisto Elói ouve de Ifigénia: Fausta!... é um
nome lindo [...].”
259
Não seria expressivo que justamente uma mulher que contribui para
modernismo citadino é, para o leitor compreensivo, uma derrota dolorosa.” (COELHO, 2001, p. 212.)
258
BERMAN, 2005, p. 59.
259
CASTELO BRANCO, 1986, p. 958.
114
a queda do protagonista camiliano aprecie a versão feminina do nome de Fausto
possível alusão à comunhão entre o lendário personagem e Mefistófeles? Acresce que o
próprio Calisto, pelo novo corte de barba, adquire inclusive feição mefistofélica. No
trigésimo capítulo (“Como ela o amava!”), sua esposa Teodora comenta seu novo
visual: “– Como tu estás mudado! Não me pareces o meu homem!... Corta essas barbas;
por alma de tua mãe, corta-me essas barbas, que pareces o Diabo, Deus me perdoe!...”
260
A modernização de Calisto Elói concretiza o vaticínio metafórico do título do
romance: o anjo imagem de espiritualidade e ascese cai, isto é, materializa-se,
ficando, conforme conclui o narrador, “simplesmente o homem, homem como quase
todos os outros, e com mais algumas vantagens que o comum dos homens”.
261
O
adultério, em nome do qual o personagem converte-se num político de ideário
progressista, afeito ao luxo e à boa aparência, como na cena bíblica do pecado de Adão
e Eva no paraíso, constitui uma queda num mundo onde o tempo corre célere, e a tudo
confina dentro do processo de morte e transformação.
O titânico canteiro de obras que Fausto leva a construir para renovar o mundo,
no livro de Johann Wolfgang von Goethe, encontra paralelo histórico no Portugal da
segunda metade do século XIX. No ‘Capítulo 1’, referi-me à Regeneração, empreendida
por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Francisco de Saldanha Oliveira e Fontes Pereira de
Melo. Esses estadistas portugueses promoveram o que Amadeu Carvalho Homem
denomina “a experiência do capitalismo possível”, cujas forças concentraram-se em
fomentar a criação de infra-estruturas materiais.
262
Marshall Berman, a propósito,
salienta que, “Nos assim chamados países subdesenvolvidos, planos sistemáticos para
um rápido desenvolvimento significam em geral a sistemática repressão das massas”,
como “espremer até a última gota a força de trabalho das massas ‘os sacrifícios
260
CASTELO BRANCO, 1986, p. 979.
261
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.
262
Cf. HOMEM. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 346-7.
115
humanos sangram, / Gritos de desespero cortarão a noite ao meio’, como se diz no
Fausto”.
263
No que tange ao caso português, Carvalho Homem noticia os sacrifícios
sofridos amplamente pelas camadas populacionais mais pobres em decorrência de
pesados tributos que financiavam a reforma fontista:
A filosofia de tributação dos governos regeneradores seguiu os trilhos da
ortodoxia liberal, uma vez que recorreu à gama dos impostos indiretos,
incidentes sobre o consumo, e evitou onerar os rendimentos gerados pelos
capitais privados. Ficou para a história o juízo emitido por Fontes Pereira de
Melo, quando o confrontaram com as reclamações dos setores sociais mais
fragilizados pelo agravamento tributário: “O povo pode e deve pagar mais”.
264
D. Quixote, de Cervantes, e Fausto, de Goethe, representam o dilema a que o
século XIX assistiu entre o novo e o velho, também entre o ideal e o real. Obras
fundamentais para a literatura oitocentista no Ocidente, e especificamente em Portugal,
elas colaboram para a compreensão de A Queda dum Anjo e de Calisto Elói como
símbolo da nação portuguesa imaginada por Camilo Castelo Branco. As semelhanças
apontadas anteriormente desse personagem com seu autor, com a figura histórica de
Domingos de Barros Teixeira da Mota, com outro personagem camiliano de O Bem e o
Mal e sua sintonia com a ‘bossa latinista’ também assinalam sua força simbológica. Em
tais semelhanças, observamos, de um lado, um arquetípico apego a estruturas sócio-
-culturais antigas, e de outro lado, uma perspectiva modernizadora, cujo confronto
caracterizaria a portugalidade, em A Queda dum Anjo. Veremos adiante por quais outros
elementos da constituição do protagonista do romance de 1865 Camilo procurou
representar Portugal.
263
BERMAN, 2005, p. 86.
264
HOMEM. In: TENGARRINHA (org.), 2001, p. 347.
116
Alguns parágrafos acima, referi-me ao mito da queda de Adão e Eva como
intertexto no romance camiliano. aqui um detalhe importante a considerar: Calisto
Elói cai porque se apaixona – como nunca lhe ocorrera antes –: primeiro por Adelaide e
depois por Ifigénia. O enredo reproduziria a interpretação de que Eva, após comer o
fruto proibido, teria sido a responsável imediata pelo pecado de Adão. Em outras
palavras: a mulher conduziria o homem à queda. Leiamos o seguinte trecho situado no
vigésimo segundo capítulo (“Outro abismo”), no qual Calisto Elói explana à senhora
viúva D. Tomásia Leonor, que lhe informava da beleza da jovem brasileira, também
viúva, Ifigénia de Teive Ponce de Leão:
As paixões do amor!... Nem os grandes sábios, nem os grandes santos se
isentaram delas. Somos todos de quebradiço barro; somos uns pucarinhos de
Estremoz nas mãos infantis das mulheres. O tributo é fatal: quem o não pagou
aos vinte anos, há-de pagá-lo aos quarenta, e mais tarde, quando Deus quer...
Deus ou o Demónio, que eu não sei ao justo quem fiscaliza estes mal-
-aventurados sucessos de amor, que a história conta e a humanidade
experimenta cada dia...
265
Na passagem, o protagonista compara o amor provocado por uma mulher a uma
tentação (divina ou demoníaca
266
) que desvia os homens – dentre os quais, até mesmo os
mais sábios e santos da diritta via”. Em livro dedicado ao período português entre
fins do século XVIII e início do XIX, Teresa Bernardino informa que “A mulher
265
CASTELO BRANCO, 1986, p. 941.
266
Ifigénia, denominada no título do vigésimo quarto capítulo de A Queda dum Anjo a mulher fatal’ –,
seria anjo ou demônio? A pergunta, ou a dúvida que o romance não resolve, mostra-se, aliás, lugar-
-comum no romantismo ocidental. Forneço dois exemplos: no poema “L’Homme”, dedicado a Lord
Byron, de Lamartine, lemos: “Toi, dont le monde encore ignore le vrai nom, / Esprit mystérieux, mortel,
ange ou démon (LAMARTINE, 1952, p. 27.); e em trecho de O Conde Lopo, de Álvares de Azevedo,
dedicado a George Sand: “Fada ou mulher, anjo ou demônio, és bela!” (AZEVEDO, 2000, p. 392.) A
propósito, Túlio Ramires Ferro, em Tradição e Modernidade em Camilo, frisa: “O título da novela de
Camilo é exactamente o mesmo que Lamartine escolheu para um episódio em verso (La Chute d’un
Ange) duma epopéia simbólico-filosófica do destino humano”. (FERRO, 1966, p. 116.) O crítico também
destaca entre “a novela de Camilo e o episódio versificado de Lamartine [...] vários elementos
novelescos” em comum. (FERRO, 1966, p. 116.)
117
continuava a ser o símbolo do pecado, da tentação, do demónio, como na Idade
Média”.
267
Notemos que D. Tomásia exerce papel fundamental na precipitação do
morgado da Agra de Freimas a esse ‘outro abismo’ passional. Ela descreve a beleza, a
elegância de Ifigénia com tanto enaltecimento e entusiasmo para o protagonista, que
chega a confessar: “– [...] Mulher assim!... Os homens às vezes, por mais asneiras que
façam, têm desculpa!...”
268
Antes de conhecer a brasileira, Calisto está apaixonado
por ela o fato sugere que talvez D. Tomásia tenha verdadeiramente tentado o
protagonista.
269
A uma terceira viúva coubera também fazer Calisto desviar-se de seu
caminho: trata-se de sua própria mãe, quem, logo após a morte do marido, desagrada-se
com a “projetada formatura” do filho nos estudos de latinidade no seminário
bracarense”.
270
O narrador de A Queda dum Anjo também personifica Lisboa, onde se
corrompe o protagonista, na figura de uma mulher, conforme vemos nos vocativos que
se emparelham na responsabilidade da queda de Calisto, no décimo nono capítulo (“Ó
mulheres”) “Ó Lisboa!...// Ó mulheres!...”
271
–, e na perífrase prosopopaica para a
capital portuguesa esta “princesa dos mares”
272
–, no vigésimo capítulo (“Proh
dolor!...”).
uma constante referência a seres extraterrenos, típicos do imaginário
judaico--cristão, no romance de Camilo Castelo Branco. Encontramos ‘anjos’,
267
BERNARDINO, 1986, p. 113.
268
CASTELO BRANCO, 1986, p. 941.
269
Embora o se trate propriamente de uma ‘fofoca’ tal como a conceitua Roland Barthes em
Fragmentos de um discurso amoroso, a situação em Sofrimentos do Jovem Werther, de Johann Wolfgang
von Goethe, que o teórico francês descreve, assemelha-se muito à que encontramos em A Queda dum
Anjo, de Camilo Castelo Branco: “Werther ainda não conheceu Carlota; mas, no carro que o conduz ao
baile campestre (que em caminho deve apanhar Carlota), uma amiga voz da Fofoca comenta para
Werther aquela cuja imagem irá em alguns instantes encantá-lo: ela está prometida, ele não deve
apaixonar-se por ela, etc. Assim a fofoca resume e anuncia a história futura. A fofoca é a voz da verdade
(Werther apaixona-se por um objeto que tem dono), e essa voz é mágica: a amiga é uma fada má, que,
aparentando desviar, prediz e incita.” (BARTHES, 2003, p. 201.) Distingue a ‘fofoca’ no romance do
escritor alemão da ‘fofoca’ no romance do escritor português o ‘modo comum’ que no primeiro ela
ocorre, ao passo que no segundo ocorreria de um modo mais especial. O efeito, entretanto, em ambas as
obras é o mesmo.
270
CASTELO BRANCO, 1986, p. 839.
271
CASTELO BRANCO, 1986, p. 928.
272
CASTELO BRANCO, 1986, p. 932.
118
‘demônios’ no título da obra, no título de seus capítulos, além de serem mencionados
reiteradamente no corpo da narrativa.
273
Calisto Elói em sua qualidade de parente de
remotos e ilustres clérigos, além de ele mesmo professar uma rígida moral católica
reporta-se ao grande poder sociopolítico e cultural da Igreja ao longo da história
portuguesa e durante o século XIX. Embora não se refira especificamente a meados do
século XIX, Teresa Bernadino fornece dados bastante ilustrativos dessa profunda
influência dos órgãos eclesiásticos em Portugal:
Como se verifica no Manuscrito da Livraria nº. 689 incluído no espólio da
Mesa Censória existente no Arquivo Nacional, as obras publicadas entre 1777 e
1800 abordavam os mais variados temas, mas os de carácter religioso
abrangiam um total de cento e seis títulos contra quarenta e três de história,
trinta e seis de teatro, línguas e ortografia. Os números poderiam continuar
sempre em sentido decrescente.
274
Vale a informação acima para compreendermos o significado do protagonista de
A Queda dum Anjo, na medida em que este, antes de cair, é “o anjo do fragmento
paradisíaco do Portugal velho”.
275
O trecho de Bernardino sugere como um léxico
bíblico soa bastante representativo desse ‘Portugal velho’ tão supersticioso, educado
amplamente na doutrina católica e temeroso à vigilância de um clero influente, que se
lhe impunha como intermediador de Deus.
273
Em cômputo que abrangeu o título do romance, títulos dos capítulos e o corpo da narrativa, encontrei a
palavra ‘anjo’ 25 vezes e ‘anjos’ 6 vezes; ‘arcanjos’, 1; ‘serafim’, 1, e ‘serafins’, 1 vez. A palavra ‘Deus’
aparece 29 vezes; ‘Senhor’ (nesta acepção), 1 vez; ‘Padre’ (também nesta acepção), 1 vez. ‘Jesus’, 2
vezes; Cristo, 2; ‘Jesus Cristo’, 1; ‘Filho’ (nesta acepção), 1 vez. ‘Espírito Santo’, 1 vez; ‘paraíso’, 3;
‘Éden’, 1. Desconsiderei a palavra ‘hábito de Cristo’, e ressalto as várias referências no romance a santos.
Contei a palavra ‘demônio’ 12 vezes e ‘demônios’ 3; ‘diabo’, 7; ‘Lúcifer’, 1; ‘inimigo de Deus’, 1; ‘chefe
dos rebeldes’, 1; ‘inferno’, 10. Entre os adjetivos, ‘paradisíaco’, 1 vez; ‘satânicas’, 1; ‘diabólica’, 1;
‘infernal’, 1. Esse recenseamento lexical destaca o estreito diálogo que A Queda dum Anjo trava com o
contexto religioso de Portugal.
274
BERNARDINO, 1986, p. 103.
275
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.
119
No primeiro capítulo (“O herói do conto”), de A Queda dum Anjo, ficamos
sabendo que o protagonista dedica-se à contumaz “leitura da copiosa livraria, parte de
seus avós paternos, e a maior parte dos doutores em Cânones, cónegos,
desembargadores do eclesiástico, catedráticos, chantres, arcediagos e bispos, parentela
ilustríssima de sua mãe”.
276
No capítulo seguinte (“Os dois candidatos”), o narrador nos
informa que Calisto Elói é mordomo de São Sebastião. No dia das festas em
homenagem a esse santo, alguns mirandenses escutam maravilhados o personagem falar
da degenerescência moral de sua época, e assim o incentivam a candidatar-se para
deputado. aqui um cruzamento da dimensão religiosa e da dimensão política pelo
qual se manifesta um dos elementos do caráter simbológico nacional do morgado da
Agra de Freimas. O fato de este ser mordomo daquele mártir cristão creio pontuar o teor
sebástico do protagonista. Reporto-me aqui ao célebre “Sermão de S. Sebastião”, de
Padre António Vieira, que intimamente se relacionou com o sebastianismo. Frente à
astúcia e à beleza retórica vieiriana, não resisto a citar a longa passagem abaixo, em que
dificilmente não enxergamos no relato sobre o santo alusão ao desaparecimento de Dom
Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, em 1578, e à crença em seu retorno como Rei
Encoberto:
277
276
CASTELO BRANCO, 1986, p. 839.
277
D. Sebastião nasceu a 20 de janeiro de 1554, ansiosamente esperado pelo reino havia duas décadas,
em decorrência de incertezas relativas à sucessão dinástica. Atribuíram-lhe, assim, o epíteto de ‘O
Desejado’, o qual daria continuidade à autonomia portuguesa perante a Espanha filipina. O menino cresce
entre conflitos de interesses de seus tutores, o tio-avô cardeal D. Henrique (favorável à permanência de
Portugal como monarquia autônoma), e de sua avó D. Catarina de Áustria (inclinada à união do reino à
Espanha, sob o domínio desta). Torna-se rei aos quinze anos, e cedo procura resgatar a antiga glória de
um país política e economicamente bastante enfraquecido e desprestigiado. Numa espécie de cruzada
moderna, o monarca, fervorosamente católico e com 24 anos, acompanha seu exército ao norte da África,
região atual do Marrocos. Inexperiente como comandante militar, com soldados numericamente muito
inferiores, os portugueses perdem a batalha contra os mouros, chefiados por Moulay Malik. O próprio D.
Sebastião desaparece, ao que tudo indica morto em combate. O rei, solteiro e casto, deixava sem herdeiro
direto o trono português. Assume-o seu tio-avô D. Henrique. No entanto, o problema da sucessão
permanecia, uma vez que D. Henrique era cardeal (não poderia, sem permissão papal, ter filho),
contava 66 anos e tinha uma saúde bastante debilitada. Sem alcançar a licença para casar-se, falece em
1580. maquinando a posse da coroa portuguesa desde pelo menos o reinado do sobrinho D. Sebastião,
o astuto rei espanhol D. Filipe II concretiza seus intuitos, auxiliado pela invasão por seu exército do país
vizinho, sem sofrer maiores resistências. Começava a União Ibérica, que duraria até 1640.
As controvérsias em torno do fim de D. Sebastião na batalha de Alcácer Quibir, em agosto de 1578,
possibilitaram a crença de que o rei pudesse não estar morto. Entre os que retornaram da campanha na
120
Oh milagre! Oh maravilha da Providência Divina! Na opinião de todos era
Sebastião morto: ominium opinione mortuum; mas na verdade, e na realidade
estava Sebastião vivo; vivum repertum: ferido sim, e malferido; mas depois das
feridas curado: Irene domi suae curavit: deixado sim por morto de dia na
campanha; mas de noite retirado dela: noctu jussit auferri: com vozes sim de
sepultura, e de sepultado: sepeliendi gratia; mas vivo, são, valente, e tão forte
como de antes era: confirmata valetudine. Assim saiu Sebastião daquela
batalha, e assim foi achado depois dela; na opinião morto, mas na realidade
vivo: opinione mortuum, vivum repertum. Atam a Sebastião a um tronco
(escusada diligência para quem estava mais atado a Cristo, mais preso na sua fé,
e mais seguro na sua constância), voam as setas, empregam-se os tiros,
despejam-se as aljavas, desaparece o corpo, pregam-se umas setas em outras
setas: quem não crerá que está morto Sebastião? Assim o crêem os bárbaros,
que se retiram; assim o crê o tirano, que está satisfeito; assim o choram os
amigos; assim o lamenta a Igreja; assim o geme e suspira a Cristandade; mas
que importa que Sebastião esteja morto na opinião, se estava vivo na realidade?
Isto é ser Sebastião o encoberto; porque encobriu a realidade da vida debaixo da
opinião da morte: opinione mortuum, vivum repertum.
278
Pregado esse sermão em 1634, naturalmente motivou o jesuíta não tornar
explícita a referência a D. Sebastião o governo da dinastia filipina em Portugal, que
duraria ainda seis anos. A alusão ao monarca desaparecido no norte da África transpõe
para o próprio nível do discurso sua condição de Encoberto, conforme a crença no
momento bastante disseminada no reino português. Recordemos que o sebastianismo se
origina de um grave contexto de ordem política: a iminência da perda da autonomia
África, “nenhum súdito poderia [ter assistido] à morte do soberano em combate sem se entregar ao
inimigo antes dele”, pois “Confessar ter sido testemunha de tal desventura era não pessoalmente
vergonhoso como ofendia a todo o corpo do reino e desonrava a todos os portugueses”. (HERMANN,
1998, p. 131.) O sebastianismo desenvolve-se num contexto onde a cultura popular portuguesa da época
conciliava à oficial católica elementos do judaísmo e da tradição céltica. (Cf. HERMANN, 1998, p.
177-88.) Esse sincretismo resultou, motivado ainda pela divulgação das trovas proféticas de Gonçalo
Annes Bandarra famoso sapateiro de Trancoso, que viveu no século XVI na crença de que D.
Sebastião estivesse vivo (mesmo em época quando a natureza não o permitia) como o Rei Encoberto,
exilado numa ilha encantada, donde retornaria a Portugal como messias salvador da pátria.
278
VIEIRA, 1945, v. VI, p. 342.
121
dinástica portuguesa para as mãos de D. Filipe I de Espanha, que veio a tornar-se
também D. Filipe II de Portugal.
No século XIX, imbuídos do fenômeno moderno da nação, muitos leram nos
sessenta anos da União Ibérica uma catástrofe nacional, um episódio sintomático da
decadência do país, perceptível desde meados do século XVI. Observo que, ainda no
segundo capítulo (“Os dois candidatos”) de A Queda dum Anjo, o mestre-escola
desastradamente diz ‘anatomia nacional’ em vez de ‘autonomia nacional’.
279
A troca de
uma palavra pela outra sugeriria a ausência de efetiva autonomia da nação portuguesa,
condição emparelhada à degradação moral nestas palavras de Calisto Elói, proferidas no
mesmo segundo capítulo do romance:
Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma
imperial! Os costumes de nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas,
que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já
não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais de sete séculos,
se emancipou da tutela das leis.
280
Calisto Elói apresenta um caráter sebástico, na medida em que se apega ao
passado glorioso do país e procura, à maneira de um salvador da pátria, resgatá-lo num
momento de decadência nacional. No que há de caricato no passadismo e nas pretensões
do personagem, Camilo expressaria, nas entrelinhas do romance, seu juízo sobre a
figura de D. Sebastião e sobre o sebastianismo. Na narrativa pouco conhecida “Um
Episódio de Alcácer Quibir”, em postura muito comum na sua época, o romancista
condena o monarca da dinastia de Avis, notadamente no que concerne à campanha
desastrosa no norte africano: “Vou ver o Portugal decrépito a jogar as armas de
mancebo, vou pensar na ideia de um homem, que pôde acabar com o edifício de
279
Cf. CASTELO BRANCO, 1986, p. 845.
280
CASTELO BRANCO, 1986, p. 844-5.
122
quatro séculos heróicos com a obra estupenda de umas poucas gerações de
gigantes.”
281
Nesse texto o autor lamenta o estado geral de degeneração em que enxerga
o país, como espécie de conseqüência nefasta das ações do monarca. Em 1890, publica-
-se a coletânea poética Nas Trevas. Entre os poemas aqui reunidos, encontra-se o soneto
intitulado “Alcácer Quibir”, onde mais uma vez Camilo recrimina D. Sebastião:
Verdugo, que esmagaste a Índia aos pés...
Eis aqui, Portugal, o que tu foste!
Repulsivo morfético d’Aoste...
Eis aqui, Portugal, o que tu és!
Os Gamas, Albuquerques e Sodrés,
Alçando a Cruz em sanguinoso poste,
Bradam ser Cristo o general da hoste,
Se os povos sangra o ferro português.
Terrível vai mostrar-se a Providência,
Arrancando das mãos da prepotência
A levantina raça acorrentada.
Índia, escrava gentil, espera um pouco...
Lá vem sobre Marrocos um rei louco...
Eis Alcácer Quibir! estás vingada.
282
Mais especificamente acerca do sebastianismo, Camilo Castelo Branco
manifesta-se nestas palavras, em “Um Episódio de Alcácer Quibir”:
Nobres e plebeus, curiosos e indiferentes sabem que D. Sebastião levou um
exército à África, e por ficou com ele em quartéis de Inverno, segundo uns
281
CASTELO BRANCO, 1988 (b), p. 51.
282
CASTELO BRANCO, 1989, p. 903.
123
à espera da trombeta do Juízo Final, segundo outros: e morto e bem morto
para nunca mais se erguer – é a minha opinião.
283
Essa opinião confirma-se no plano ficcional:
Sebastião de Resende, moço da câmara de el-rei, despiu camisa e ceroulas
para cobrir a nudez de um cadáver, desfigurado pelas feridas e todo
ensangüentado... diziam que este cadáver... era de el-rei D. Sebastião... Preso
com uma corda, e atravessado sobre uma mula foi levado à presença dos
poucos fidalgos que não morreram, para gemer o cativeiro... e quem sabe se
uma morte de afrontas... Todos os reconheceram... todos ajoelharam, e todos
bradaram por uma boca – Oh meu rei!...
284
No romance A Queda dum Anjo, no conto “Um Episódio de Alcácer Quibir” e
no soneto “Alcácer Quibir”, Camilo Castelo Branco paga tributo ao vultoso valor que o
sebastianismo ganhou na literatura portuguesa durante o século XIX e mesmo depois.
Embora a crença no retorno do rei D. Sebastião como salvador da pátria declineentre
os portugueses nos setecentos e venha a extinguir-se no início dos oitocentos, conforme
noticia Joel Serrão,
285
escritores como Almeida Garrett, Oliveira Martins, Eça de
Queirós, e no século XX, Sampaio Bruno e Fernando Pessoa, conferem ao fenômeno
importância histórica e ideológico-temática.
Garrett escreveu Frei Luís de Sousa, uma das obras-primas da dramaturgia
portuguesa, em 1842. A peça, encenada no ano seguinte, apresenta o grande motivo que
levou Eduardo Lourenço a enxergar no seu autor “o primeiro que configurou com gênio
o perfil de um Portugal ausente de si mesmo e esperando-se nessa ausência”.
286
Nessa
obra, D. João de Portugal pensado morto na batalha de Alcácer Quibir retorna ao
283
CASTELO BRANCO, 1988 (b), p. 66.
284
CASTELO BRANCO, 1988 (b), p. 77.
285
Cf. SERRÃO, 1983, p. 31.
286
LOURENÇO, 1999, p. 51.
124
país e encontra a esposa D. Madalena de Vilhena casada com Manuel de Sousa e mãe
de uma filha deste, Dona Maria de Noronha. A aparição do ex-combatente do exército
de D. Sebastião traz à tona a tragédia de um adultério involuntário, que impele
Madalena e Manuel (futuro Frei Luís de Sousa) a se entregarem à vida monástica e
Maria a morrer literalmente de vergonha. Nas palavras de José-Augusto França, D. João
é “sobretudo, se não somente, o representante ideológico do Passado”, sendo que
O Passado tem na peça um peso ameaçador; não estaele sempre presente no
destino da Pátria?
Nenhum clarão de esperança brilha no fim solene do Frei Luís de Sousa: o
mundo antigo esmaga o mundo novo quando este se constrói sobre um
equívoco – quer dizer, quando não chega a criar as suas próprias estruturas.
287
Posteriormente, em História de Portugal, Oliveira Martins promoverá o
sebastianismo, segundo Eduardo Lourenço, a posto de “manifestação típica do nosso
[dos portugueses] comportamento nacional”, de um mito cultural de ressonância
incomparável”.
288
O historiador, representante da Geração de 70, com efeito, afirmará
que o sebastianismo – “uma prova póstuma da nacionalidade”
289
lusitana – constituía no
seu surgimento
[...] uma explosão simples da desesperança, uma manifestação do génio natural
último da raça, e uma abdicação da história. Portugal renegava, por um mito, a
realidade; morria para a história, desfeito num sonho; envolvia-se, para entrar
no sepulcro, na mortalha de uma esperança messiânica.
290
287
FRANÇA, 1999, p. 118.
288
LOURENÇO, 1999, p. 47.
289
MARTINS, 1942, v. II, p. 80.
290
MARTINS, 1942, v. II, p. 83.
125
José de Paula Ramos Jr. considera Eça de Queirós “a última grande voz literária
do século XIX a pronunciar-se sobre o mito sebastianista”.
291
Nos romances A Ilustre
Casa de Ramires e A Cidade e as Serras, segundo o crítico, quanto ao sebastianismo,
Eça,
Em vez de considerá-lo como mortalha de um país que abdicara da História,
interpretou-o como possibilidade de renascimento pátrio, no contexto de
grandes processos históricos finisseculares, internacionais e nacionais.
Despindo-lhe os atributos propriamente místicos, representou-o como uma
espécie de plano de ação para o resgate da grandeza lusitana, mediante a
retomada de suas vocações tradicionais, responsáveis pelo brilho pretérito,
adaptadas às exigências históricas contemporâneas.
292
Sem pretender estender-me demasiado no século XX, transcrevo uma passagem
de uma das anotações políticas de Fernando Pessoa, muito apropriada ao que proponho
para interpretar o significado de Calisto Elói como símbolo da nação portuguesa:
No sentido simbólico D. Sebastião é Portugal: Portugal que perdeu a sua
grandeza com D. Sebastião, e que voltará a tê-la com o regresso dele,
regresso simbólico como, por um mistério espantoso e divino, a própria vida
dele fôra simbólica – mas em que não é absurdo confiar.
293
Vimos até aqui a importância cultural para a literatura portuguesa do século XIX
das figuras de D. Quixote e Sancho Pança, de Fausto e por último de D. Sebastião e o
mito sebástico.
294
Tais personagens e tal crença mítica envolveram-se num propósito de
291
RAMOS JR., 1996, p. 110.
292
RAMOS JR., 1996, p. 110-1.
293
PESSOA, 1979, p. 202.
294
Em verbete dedicado a A Queda dum Anjo, no Dicionário das Literaturas Portuguesa, Galega e
Brasileira, Jacinto do Prado Coelho aproxima o protagonista camiliano de Alceste, protagonista de O
Misantropo, de Molière. (Cf. COELHO, 1960, p. 652.) Túlio Ramires Ferro não apenas concorda com a
aproximação proposta por Coelho, como também aponta semelhança entre o Abade de Estevães, do
romance de Camilo, e Philinte, outro personagem da peça do comediógrafo francês. (Cf. FERRO, 1966,
p. 63.)
126
eminentes escritores de compreender, discutir (ou imaginar, construir) Portugal como
nação moderna. Maria Fernanda Abreu, aliás, a partir de prefácio de Pinheiro Chagas à
edição portuguesa de D. Quixote, descreve um certo processo de ‘quixotização’ de D.
Sebastião, confundido com o de ‘sebastianização’ de D. Quixote na produção literária
em Portugal, tanto oitocentista quanto novecentista.
295
A interseção dessas duas figuras
creio reforçar a importância delas dentro do projeto de autognose nacional apresentado
por parte da literatura portuguesa do século XIX (e como se nota, do XX também). Ao
pensar sobre a idéia de decadência peninsular ponto-chave de numerosos textos sobre
o Portugal e a Espanha do século retrasado –, Joel Serrão também recorrerá à obra-
-prima de Cervantes, “espelho de um povo que oculta o desencanto da miséria sob as
roupagens atávicas do orgulho e da ‘honra’”.
296
Serrão ainda afirmará:
A polémica multissecular entre castiços e estrangeirados, entre messianismos
de estirpe vária (como, por exemplo, o sebastianismo) e esforços de
actualização cultural e técnica, não é mais, em última instância, que um aspecto
dessa percepção do desajustamento entre o tempo português e o europeu
transpirenaico.
297
Calisto Elói incorpora a simbologia da nação, ao encenar o conflito entre o
antigo desse ‘tempo português’ e o moderno ‘desse tempo europeu transpirenaico’, a
partir do conflito entre ‘castiços e estrangeirados’, entre um pendor sebastianista e
‘esforços de actualização cultural e técnica’. Havemos de nos recordar, a propósito, do
que discorri acerca da Guerra Civil entre os anos de 1828 e 1834, que opôs liberalistas
liderados por D. Pedro e absolutistas favoráveis ao reinado de D. Miguel. O primeiro
lado representava o novo Portugal; o segundo, o velho. O monarca absolutista – apoiado
295
Cf. ABREU, 1994, p. 99-105.
296
SERRÃO, 1965, p. 31.
297
SERRÃO, 1965, p. 30.
127
pelo clero e pela maioria da população portuguesa (que professava o catolicismo) era
referido por seus defensores como D. Miguel-Arcanjo.
298
Acredito que Camilo Castelo
Branco atribui ao Calisto Elói representante do velho Portugal e inclusive, um
miguelista – o epíteto de anjo, querendo aludir ao infante que se proclamara rei absoluto
em 1828. Mas também cabe dizer que, além de D. Miguel ser “então o arcanjo que o
nome deixava adivinhar”, ele era tido por “D. Sebastião regressado do fundo dos
tempos para devolver a Portugal a glória do passado”.
299
Desse modo, se há, segundo
Maria Fernanda de Abreu, na literatura portuguesa do século XIX uma
‘sebastianização’ de D. Quixote ou uma ‘quixotização’ de D. Sebastião, há também uma
‘sebastianização’ de D. Miguel ou uma ‘miguelização’ de D. Sebastião, o que
exemplifica A Queda dum Anjo.
Sobre a tragédia Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, Paulo Motta Oliveira
interpreta o romeiro – que combatera na batalha de Alcácer Quibir – como “D. Miguel e
tudo que ele representa, um passado que, insepulto, vem a todo momento assombrar um
presente que não conseguiu se estruturar”.
300
Em A Cidade e as Serras, Eça de Queirós
também identificou, no protagonista Jacinto, D. Sebastião com D. Miguel como
salvadores da pátria. E Camilo Castelo Branco, em A Brasileira de Prazins,
ironicamente, faz um professor de latim recordar-se do caso dos três mais famosos
falsos D. Sebastiões frente o episódio histórico, narrado no romance, de um falso D.
Miguel, anos após o fim da Guerra Civil.
Todas as intertextualidades sugeridas por Calisto Elói aqui explicitadas e
analisadas destacam o caráter simbológico do protagonista de A Queda dum Anjo
como representante do Portugal imaginado por Camilo Castelo Branco. Trata-se,
298
Cf. FRANÇA, 1999, p. 58.
299
FRANÇA, 1999, p. 60.
300
OLIVEIRA, 2002, p. 80.
128
conforme salientei, de uma nação cindida entre duas temporalidades, porque apegada
ao passado, mas também ansiosa por modernizações.
Na próxima seção deste capítulo, observarei a relação da imagem da nação
portuguesa que o protagonista do romance de Camilo representa com a idéia de
decadência, à qual me referi linhas acima, ao citar Joel Serrão.
3.2) CALISTO ELÓI: PORTUGAL DO ESPLENDOR À DECADÊNCIA PELO
PROGRESSO?
A decadência de Portugal é uma idéia-chave na literatura portuguesa do culo
XIX. Almeida Garrett, Alexandre Herculano românticos da primeira geração –,
Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins – integrantes da Geração de 70e
outros buscaram as causas e as soluções para um estado degenerescente do país, que
antes fora tão glorioso em suas guerras, navegações, descobertas e demais conquistas. A
questão impunha-se de maneira grave a esses escritores, uma vez que na época a
ideologia da nação disseminava-se rápida e poderosamente pela Europa (e pelo mundo)
como forma de cada indivíduo conhecer-se a si mesmo, identificando-se com uma
coletividade. Vimos no ‘Capítulo 1’: a nação moderna pautava-se na outra idéia típica
da modernidade a de progresso. Esse paradigma e os modelos de países de além-
-Pireneus faziam ver o atraso de Portugal, onde o capitalismo e o liberalismo ainda
teimavam em não lograr efetivo êxito. A perspectiva históricatambém consolidada ao
longo do século XIX – ensejava o cotejo entre o antigo esplendor do reino português e o
lugar periférico de Portugal numa Europa que se modernizava a passos apressados.
Explicitei no ‘Capítulo 1’ que o conceito de progresso se nos esclarece na pressuposição
comparativa de seu contrário, isto é, se tivermos em vista a idéia de decadência e
vice--versa. Assim, Portugal era uma nação decadente, na medida em que se comparava
129
seu presente com seu passado, além de comparar-se seu presente com o de outras
nações. Construía-se a nação portuguesa no século XIX a partir, portanto, de um olhar
que se outrava temporal e espacialmente.
Dada a importância da idéia de progresso em A Queda dum Anjo, seria natural
que o romance abordasse a de decadência. Aborda-a, de fato.
António Manuel Bettencourt Machado Pires, em A ideia de decadência na
geração de 70, detecta algo no mínimo curioso:
Quando Camilo Castelo Branco, mais velho que Antero de Quental quase vinte
anos e na década de 70 com uma já larga bibliografia romanesca, escrevia n’“O
filho natural” (1876, in Novelas do Minho) as vicissitudes da família
Mascarenhas, estava a transpor para a ficção um quadro histórico-simbólico da
degradação da aristocracia portuguesa nos últimos três séculos. A página do
romancista recria literariamente o que Antero em 1871 afirmara, de certo modo
como filósofo da história, sobre a “decadência dos povos peninsulares nos
últimos três séculos”.
301
Em “O Filho Natural”, a decadência que assola a família Mascarenhas por
gerações, durante cerca de 300 anos, é de ordem primordialmente moral. Dentro da obra
camiliana, as Novelas do Minho anunciam adoção de elementos realistas-naturalistas.
302
O fato, em certa medida, reforça a pertinência da leitura de Machado Pires em assinalar
o diálogo entre a novela de Camilo e a célebre conferência de Antero, pertencente a uma
301
PIRES, 1980, p. 55.
302
Escritor de posturas ideológicas muitas vezes contraditórias, Camilo absorveu procedimentos
estilísticos da escola de Gustave Flaubert e Émile Zola, como em Eusébio Macário (1879) e A Brasileira
de Prazins (1882). Há, porém, certo tom paródico ao realismo-naturalismo nessas narrativas, além de o
autor, no “Prefácio da Quinta Edição” de Amor de Perdição, publicada em 1879, ironizar: “Ai! Quem me
dera ter antes desabrochado hoje com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrófulas à
face do leitor! Naquele tempo [da edição princeps do romance, de 1862], enflorava-se a pústula; agora, a
carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcisar
num espelho fiel.” (CASTELO BRANCO, 1989, p. 567.) Na dependência da vendagem de suas obras
para sobreviver, nas palavras de Jacinto do Prado Coelho, “Camilo cede, pois, à pressão da época, dando
vazão ao que nele de cepticismo, de tino prático, de gosto instintivo pelas realidades nuas e cruas,
enquanto, por outro lado, adopta uma linguagem desabusada, concreta, precisa [...]”. (COELHO, 2001, p.
317.)
130
geração, aliás, contemporânea daquele. Há, contudo, entre a perspectiva do Romancista
de Ceide e a de Antero diferenças salientes. Existem problemas em aplicar ou colher
quaisquer conceitos da obra camiliana, perfeita e coerentemente a toda esta aplicáveis.
Em prefácio à coletânea de excertos Pensamentos de Camillo, publicada em 1923,
Nuno Catharino Cardoso advertia: “[...] que contradições ha, de quando em quando,
nessas palavras escriptas em epocas tão diferentes!”
303
No mesmo romance A Queda
dum Anjo, onde, conforme bem destaca Óscar Lopes, manifesta “uma ironia tanto mais
eficaz quanto mais incerta de seus próprios padrões de demarcação”,
304
beira a
impossibilidade detectar uma verdade sem fissuras. Tanto o Calisto Elói símbolo do
velho Portugal quanto o Calisto Elói símbolo do novo Portugal enredam-se na profusa
malha irônica e satírica da narrativa. Ademais, Antero, mas também outros
componentes da Geração de 70, e antes destes Garrett e Herculano pensaram uma
decadência nacional remediável. Garrett e Herculano haviam acreditado na revolução
liberalista, embora viessem a com ela desiludir-se. Segundo Paulo Motta Oliveira,
[...] em obras tão diversas como o Bosquejo da história da poesia e língua
portuguesa [de Garrett], as Cartas sobre a história de Portugal [de Herculano]
e mesmo em Viagens na minha terra [de Garrett] encontramos [...] misto de
esperança de reerguimento e visão negativa sobre o presente. Mas, por vezes, a
realidade presente, por demasiadamente negativa, parece soçobrar a esperança e
surge então a imagem de um país sem possibilidade de futuro, por vezes imerso
em uma decadência de que ou não consegue se livrar ou a que retorna após um
período em que um reerguimento parecia possível. Neste caso podemos incluir
tanto Frei Luís de Sousa [de Garrett] como A voz do profeta [de Herculano] e,
em certo sentido, também alguns trechos das já citadas Cartas.
305
303
CARDOSO, 1923, p. VI.
304
LOPES, 1994, p. 58.
305
OLIVEIRA, 2002, p. 94.
131
Os integrantes da Geração de 70, desacreditados de um liberalismo que
apenas empreendia no país reformas superficiais, viram na Europa industrializada
modelo de civilização e almejaram um processo de ‘europeização’ de Portugal. Camilo
Castelo Branco, como seu personagem de A Queda dum Anjo, em política fora
miguelista. Embora posteriormente se afastasse dessa postura, o romancista não aderiu
propriamente ao ideário do liberalismo. Tampouco se entusiasmou com as causas
revolucionárias da Geração de 70 e sua reverência ao modelo transpirenaico de
civilização e sua parcela de desprezo pelas tradições nacionais. A propósito, o autor de
Amor de Perdição estaria ao lado de Castilho e Pinheiro Chagas contra Antero de
Quental, Teófilo Braga na Questão Coimbrã, em 1865.
À semelhança da novela comentada por Machado Pires, A Queda dum Anjo
depara-nos uma idéia de decadência primordialmente de ordem moral. Haja vista o
título do romance: Calisto é o anjo por sua postura ética, com base na qual se apega ao
passado, porque acredita que nele os costumes não eram corrompidos como os de sua
época. A obra denuncia o jogo de aparências que caracterizaria a política e a sociedade
portuguesas em meados do século XIX. Esse jogo revela-se, por exemplo, no fato de
que
[...] aquela mocidade esperançosa, eleita por Miranda e outros sertões lusitanos,
não sabia topograficamente em que parte demoravam os povos seus comitentes,
nem entendia que os aborígenes das serranias tivessem mais necessidades que
fazerem-se representar, obrigados pelo regímen da Constituição.
306
O mestre-escola Brás Lobato também exemplifica o jogo de aparências
denunciado no romance. Embora o personagem se mostre, no início, entusiasta da
eleição de Calisto para deputado, acabará por votar em si mesmo e manifestará o
306
CASTELO BRANCO, 1986, p. 847.
132
interesse principal em obter, por meio da influência política do conterrâneo eleito, um
hábito de Cristo. Testemunhamos a falsidade dos deputados, os quais, “conquanto
jurassem fidelidade à religião católica-apostólica-romana, eram aliás ateus; jurando
fidelidade ao rei, injuriavam-no nas gazetas; jurando fidelidade à Nação, avexavam-na
de tributos, e alguns a queriam fundir na Espanha”.
307
O romance também salienta o
descompromisso do jornalismo político com a verdade e seu tom verborrágico, em
nome de sua ideologia. Quando, no vigésimo quinto capítulo (“Perdido!”), o morgado
da Agra de Freimas afasta-se do Parlamento para dedicar-se à conquista de Ifigénia, o
narrador informa:
Era opinião geral que o deputado de Miranda, desgostoso do Governo e da
oposição, se retirara, convicto da fraqueza de seus ombros contra o colosso que
tombava sobre o dessangrado Portugal.
As gazetas realistas indigitavam Calisto como exemplo de peito ilustre e
invulnerável no marnel de febres podres em que ardiam e patinhavam
miseráveis ambiciosos. Deram-lhe, à conta disso, vários nomes gregos e
romanos, que lhe ajustavam tão a primor como a verdade histórica à legenda
das fabulosas virtudes da Grécia e Roma. A oposição liberal lamentava que as
medidas obnóxias e híbridas do Governo afugentassem da Câmara um deputado
como Benevides de Barbuda, a cuja alta inteligência e virtude repugnavam os
desatinos da camarilha. Calisto Elói lia estas coisas nas gazetas e dizia entre si:
– Como hei-de eu crer no que vejo escrito a respeito dos outros!...
308
Exemplificam ainda o jogo de aparências, em A Queda dum Anjo, as seduções
de Lopo da Gamboa, sempre interessado na fortuna de suas vítimas; o adultério de
Catarina e, por fim, a queda do próprio Calisto Elói, primeiro apaixonado
platonicamente por Adelaide e depois consumando o adultério com Ifigénia. Cumpre
307
CASTELO BRANCO, 1986, p. 856.
308
CASTELO BRANCO, 1986, p. 956.
133
ressaltar a afinidade semântica (além da etimológica) entre as palavras ‘decadência’ e
‘queda’.
Na “Conclusão” e na “Advertência da Segunda Edição” de A Queda dum Anjo,
o narrador-autoral revela sua preocupação morigeradora (embora eivada de ironia).
Estes dois parágrafos põem termo à narrativa:
Eu, como romancista, lamento que ele [Calisto Elói] não viva muitíssimo
apoquentado, para poder tirar a limpo a sã moralidade deste conto.
Fica sendo, portanto, esta coisa uma novela que não há-de levar ao Céu número
de almas mais vantajoso que o do ano passado.
309
Na edição de 1873, somos informados de que
O autor cuidou, quando escreveu esta novela, que alguma intenção
moralizadora se transluzia da contextura da história. Hoje, por lho haver dito
um amigo franco, está persuadido que o seu livro não morigerou; mas também
não escandalizou ninguém. Isto é consolativo, ainda assim.
310
Ambos os trechos acima apontam para um círculo vicioso (friso a ambigüidade
com que utilizo a expressão). Em nome da realidade do que acontecer no país, o
narrador conta uma história imoral; uma sociedade que não se escandaliza com uma
narrativa desse tipo expõe sua imoralidade; se não se escandaliza, como haveria de
‘endireitar-se’? A que postura esse contexto social conduziria um narrador
desacreditado de moralizar senão a uma postura irônica? Mas essa desilusão camiliana –
de não poder remediar uma decadência moral , essa ironia do narrador de A Queda
dum Anjo que corrói tanto o velho quanto o novo Portugal tem algo da desilusão irônica
309
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.
310
CASTELO BRANCO, 1986, p. 837.
134
de Garrett em Viagens na Minha Terra, algo do exílio desiludido de Herculano à Quinta
do Vale de Lobos, assim como a ironia da Geração de 70 e a desilusão desta mesma em
sua fase de Vencidos da Vida terão algo da ironia e da desilusão em Camilo Castelo
Branco.
Na célebre conferência de 27 de Maio de 1871, Antero de Quental explicará o
estado decadente da Península Ibérica de desde 300 anos no âmbito político,
econômico, científico, mas também no âmbito moral. Para o conferencista, após uma
fase de grande esplendor na região peninsular, a partir do início dos setecentos, uma
“improcrastinável decadência [...] Aparece em tudo; na política, na influência, nos
trabalhos da inteligência, na economia social e na indústria, e como consequência de
tudo isto, nos costumes”.
311
Adiante Antero reitera sua opinião, de que a decadência
moral ibérica derivou de outros processos degenerativos:
A Europa culta engrandeceu-se, nobilitou-se, subiu sobretudo pela ciência: foi
sobretudo pela falta de ciência que nós descemos, que nos degradámos, que nos
anulámos. [...]
Pelo caminho da ignorância, da opressão e da miséria chega-se naturalmente,
chega-se fatalmente, à depravação dos costumes. E os costumes depravaram-se
com efeito.
312
Ao lado do absolutismo como causa da decadência política, das conquistas
ultramarinas como causa da decadência econômica, “a transformação do Catolicismo,
pelo Concílio de Trento”
313
dirá o autor Da decadência moral é esta a causa
culminante!”
314
311
QUENTAL, [1982], p. 263.
312
QUENTAL, [1982], p. 267.
313
QUENTAL, [1982], p. 269.
314
QUENTAL, [1982], p. 270.
135
Apesar de a conferência de Antero ter provocado polêmica em sua época,
segundo já se bastante assinalou, ela
[...] não tem grande originalidade. Reconhece-se aí o pensamento de Herculano,
que dava como causa da decadência nacional “o absolutismo e o fanatismo”,
isto é, a centralização monárquica e a Inquisição. Como se sabe, a concentração
do poder, tanto político como religioso, fora sempre para Herculano a causa de
todos os males. [...] Para Herculano Portugal acabou ao mesmo tempo que a
dinastia de Avis, e os descobrimentos (como para de Miranda) foram uma
causa de decadência.
315
Alexandre Herculano, de fato, se havia preocupado com os costumes
degradados, vistos por ele como decorrência de outras degenerações. A obra de a de
Queirós também focaliza a questão moral: em O Crime do Padre Amaro (1875),
denuncia a corrupção das instituições eclesiásticas; em O Primo Basílio (1878), a
corrupção das instituições familiares; em A Ilustre Casa de Ramires (1900), a covardia,
a submissão de Gonçalo Mendes, símbolo de Portugal. Nas “Explicações da segunda
edição de 1883 de Portugal Contemporâneo, Oliveira Martins afirma:
Enriquecer é excelente, mas é apenas um meio: quando se torna um fim, em vez
de excelente, é péssimo. Antes pobres com ideias e carácter, do que chatins
vulgares e dinheirosos.
Ora eu desafio quem quer que seja a provar-me o nosso progresso intelectual e
moral. Eu vejo não vêem todos? uma decadência no carácter e uma
desnacionalização na cultura. Dos costumes políticos não falemos.
316
315
SARAIVA, [s.d.], p. 44-5.
316
MARTINS, 1953, v. I, p. 22-3. Túlio Ramires Ferro, em Tradição e Modernidade em Camilo, assinala
importantes e freqüentes afinidades ideológicas entre o romancista em A Queda dum Anjo e Oliveira
Martins. Para este – diferentemente de Garrett, Herculano, Antero e Eça –, a decadência não teria causas,
pois ela decorreria de uma exaustão natural do heroísmo português e espanhol. Em História da
Civilização Ibérica, lemos: “Assim como o excessivo trabalho consome o corpo, assim como o
demasiado esforço do pensamento esvai o cérebro dos homens, assim acontece aos povos que um dia
executaram uma grande obra ou viveram de uma ardente idéia. Que porém realmente digno, mais
136
Almeida Garrett, no pronunciamento “À Nação Portuguesa”, em Portugal na
Balança da Europa, de 1830, se referira à “vergonhosa indiferença em que, por
desmoralizados e corruptos, os Portugueses caíram e não ousam levantar-se”.
317
Todos os autores referidos acima pensaram o estado decadente do país não
apenas no âmbito econômico, político, mas também moral e mesmo cultural. Em A
Queda dum Anjo, a moral decai arrastando consigo estruturas políticas, econômicas,
culturais. Para o Calisto Elói anterior à queda anunciada no título do romance, Portugal
o Portugal da época do personagem é uma nação decadente nos seus costumes, nas
suas leis, na sua ordem política e econômica, na sua literatura. A causa que o morgado
da Agra de Freimas atribui a esse estado é o progresso. Por isso, em torno de 1860, o
protagonista aparece em público com toalete de 1820 e traja roupas à moda em 1833;
toma por modelo de linguagem castiça autores portugueses seiscentistas; insta a
vigência de leis revogadas havia sete séculos. Curiosamente, o personagem se indispõe,
na Câmara Municipal de Miranda, no primeiro capítulo (“O herói do conto”), contra o
“código de leis comuns de todo o território português” e contra o fato de que “desde
Afonso II se estatuíram leis gerais”.
318
Desse modo, Calisto compartilha do que pensa
Alexandre Herculano sobre o absolutismo monárquico e a unidade legislativa nacional
como causa da decadência portuguesa.
No primeiro capítulo (“O herói do conto”), lemos: “Calisto Elói de Silos e
Benevides de Barbuda queria que se venerasse o passado, a moral antiga como o
monumento antigo, as leis de João das Regras e Martim de Ossém, como o Mosteiro da
Batalha, as Ordenações Manuelinas como o convento dos Jerónimos.”
319
eminentemente nobre, do que isto, na vida dos indivíduos e das nações? Existimos para mais do que
produzir, consumir, e obscuramente voltarmos ao seio da natureza animal; não condenemos, pois, as
duras conseqüências do heroísmo.” (MARTINS, 1973, p. 302.)
317
GARRETT, [1963], v. I, p. 795.
318
CASTELO BRANCO, 1986, p. 842.
319
CASTELO BRANCO, 1986, p. 841.
137
Quando se elege deputado, Calisto prepara-se para ocupar o cargo desta forma:
Principiou, desde logo, o morgado eleito a refrescar a memória com as suas
leituras de história grega e romana. Era isto entroixar ciência e enfeixar flores
para o Parlamento. Depois, releu a legislação dos bons tempos de Portugal, a
fim de restaurar os costumes desbaratados, fazendo remoçar as leis, que haviam
sido o tabernáculo da moral humana guardado pelo temor de Deus.
320
O protagonista toma, pois, o passado como momento de esplendor nacional na
política e nos costumes. Expressivamente o narrador o compara a Demóstenes,
321
célebre orador da Grécia Antiga, a cuja história junto à de Roma o personagem
equivalerem os bons tempos de Portugal”. Mas em Lisboa espaço da
contemporaneidade, do novo Portugal –, a decadência aparece o apenas moral, mas
também fisicamente. Detectamo-la no mau-estado do bairro Alfama (lamacento,
povoado de prostitutas e marinheiros, onde não se encontram vários monumentos
antigos), no mau-cheiro da cidade, na qualidade ruim das águas, nas vozes roufenhas,
nos rostos de aspecto doentio das mulheres lisboetas.
Mesmo o Calisto Elói anterior à queda manifesta uma das facetas da decadência
da nação portuguesa que Camilo Castelo Branco imaginou. O personagem, no quarto
capítulo (“Asneiras de erudição”), confronta a leitura de seus clássicos com sua
experiência empírica para conhecer Lisboa. Os livros fornecem-lhe dados sobre a cidade
no século XVII, estimada e encarecida pelos autores. As percepções sensoriais, porém,
naturalmente deparam a cidade conforme ela é no presente: nada semelhante à descrição
320
CASTELO BRANCO, 1986, p. 849.
321
Almeida Garrett, no manifesto “À Nação Portuguesa”, de Portugal na Balança da Europa, utiliza para
epígrafe uma passagem de Demóstenes acerca do domínio do rei macedônio Filipe sobre a Grécia. O caso
de passividade e negligência de que o orador acusa os gregos como fatores condicionantes para a
subjugação ao estado estrangeiro serve a Garrett como exemplo e apelo aos portugueses, passivos e
negligentes face às mazelas sociopolíticas do país. Observo que o nome de Filipe da Macedônia, referido
na obra do escritor oitocentista, aludiria à dinastia filipina de Portugal, durante a União Ibérica. (Cf.
GARRETT, [1963], v. I, p. 765-7.) pontuei que no século XIX leram-se esses sessenta anos como um
período catastrófico de perda da soberania nacional.
138
lida nos alfarrábios. Não obstante, Calisto Elói dará exclusivo crédito a estes, ao dizer
perante o fartum de Lisboa: “– O meu clássico não podia mentir. Este mau cheiro é
desconcerto da minha membrana pituitária...”
322
Ou na convalescência, após ter ingerido
água de uma fonte enaltecida por um autor seiscentista:
está! exclamou Barbuda em solilóquio está explicada a minha dor
de barriga! Era destemperança no fígado.
O deputado acabava de ler o seguinte de Luís Marinho:
“Encareceu Plínio muito a água, que vinha a Roma da fonte Márcia, e Vitrúvio
a das fontes Camenas, porque nasciam quentes e eram saborosas ao gosto,
sendo por esta causa muito sadias e proveitosas para conservar saúde. E posto
que (sic) Luís Mendes de Vasconcelos queira que por estas propriedades tenha
a água do chafariz de El-Rei as mesmas qualidades, a experiência mostra que,
sendo suave no gosto, o não é nos efeitos, porque lhe atribuem os médicos a
destemperança do fígado, que muitas pessoas padecem, e de que procedem
várias enfermidades.”
323
Nos episódios narrados no quarto capítulo de A Queda dum Anjo, o protagonista
parece encenar a decadência das ciências em Portugal, baseadas em conhecimentos e
técnicas obsoletas. Dessa questão reclama Antero, em “Bom Senso e Bom Gosto”,
artigo do mesmo ano da escrita e da publicação do romance camiliano:
[...] quem pensa e sabe hoje na Europa não é Portugal, não é Lisboa, cuido eu: é
Paris, é Londres, é Berlim. Não é a nossa divertida Academia das Ciências que
revolve, decompõe, classifica e explica o mundo dos fatos e das idéias. É o
Instituto de França, é a Academia Científica de Berlim, são as escolas de
filosofia, de história, de matemática, de física, de biologia, de todas as ciências
e de todas as artes, em França, em Inglaterra, em Alemanha.
324
322
CASTELO BRANCO, 1986, p. 852.
323
CASTELO BRANCO, 1986, p. 853.
324
QUENTAL, 1973, p. 125.
139
Em “Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos três séculos”,
Antero de Quental retomará o problema:
A uma geração de filósofos, de sábios e de artistas criadores [anteriores ao
século XVI], sucede a tribo vulgar dos eruditos sem crítica, dos académicos,
dos imitadores. Saímos duma sociedade de homens vivos, movendo-se ao ar
livre: entramos num recinto acanhado e quase sepulcral, com uma atmosfera
turva pelo pó dos livros velhos, e habitado por espectros de doutores.
325
Embora o Calisto representante do velho Portugal encarne essa faceta da
decadência diagnosticada pelo próprio personagem no novo Portugal, suas peripécias
científicas sucedem-se em Lisboa. Desse modo, a questão das ciências portuguesas
decadentes também diz respeito à contemporaneidade nacional.
Conforme afirmei anteriormente nesta seção, o morgado da Agra de Freimas
responsabiliza o progresso pela decadência de Portugal, ou ainda, para o personagem, o
progresso significa decadência, e, principalmente, de costumes. No primeiro capítulo
(“O herói do conto”), o narrador noticia a relutância do protagonista em aderir ao
modo de vida moderno: “Em suma, Calisto era [...] incapaz de empecer a roda do
progresso, contanto que ele não lhe entrasse em casa, nem o quisesse levar consigo.”
326
Aliás, para o morgado da Agra de Freimas antes de sua rendição à modernidade, três
palavras formam um conjunto semântico ligado à idéia de decadência: ‘progresso’,
‘civilização’ e ‘luxo’. Sabemos da importância dos dois primeiros vocábulos tanto para
os românticos e liberalistas Garrett e Herculano, quanto para os integrantes da Geração
325
QUENTAL, [1982], p. 265. Essa crítica saíra da pena de Francisco de Melo Franco, no conhecido
poema herói-cômico Reino da Estupidez, de 1818. Na proposição, o poeta diz: “A molle Estupidez cantar
pretendo, / Que distante da Europa desterrada / Na Luzitania vem fundar seu Reino.” (FRANCO, 1992, p.
207.) As figuras personalizadas da Raiva, Superstição, Hipocrisia e Fanatismo acompanham a Estupidez a
Portugal, onde encontram sítio mais que apropriado para dominar. A última ainda, com quase unâmine
aquiescência e aplauso entre mestres e alunos, chega a tomar posse da Universidade de Coimbra.
326
CASTELO BRANCO, 1986, p. 841.
140
de 70. Ambos os grupos guiavam-se por ideais progressistas e civilizadores, e assim
buscavam fomentar reformas senão revoluções no país. Todavia, importa reparar que a
palavra ‘luxo’, em A Queda dum Anjo, irmana-se semanticamente com as outras duas, o
que acaba por comprometer o sentido elevado que estas tiveram em Garrett, Herculano
e na Geração de 70. No romance de Camilo, a idéia de ‘luxo’ imprime caráter de
superfluidade à idéia de ‘progresso’ e ‘civilização’ isto é estas duas ter-se-iam
efetivado entre os portugueses do século XIX apenas de maneira superficial, nas coisas
mais supérfluas. Disse e repeti que a Regeneração fontista ocorrida em meados de
oitocentos ateve-se a modificar Portugal em suas estruturas materiais, fazendo
realizarem-se obras públicas, sem pretender revolver o mecanismo sócio-legislativo e
econômico.
No sexto capítulo (“Virtuosas parvoiçadas”), o deputado mirandense abespinha-
-se, ao saber que os cofres do Estado de um país tão pobre como Portugal financiavam o
teatro em Lisboa. Alguns colegas no Parlamento replicam, argumentando que o teatro e
outros divertimentos constituíam a civilização. Ao que Calisto responde:
[...] A civilização que canta e dança, enquanto três partes do País choram. A
civilização dos civilizados que dizem: Coronemus nos rosis antequam
marcessant. A civilização do perdulário irrisório, que traja de luzente lemiste
no exterior, e aconchega da pele uma camisa surrada e fétida. Magnífica
civilização! Não sei de selvagens que no-la possam invejar, e queiram cambiar
conosco a sua selvatiqueza!
327
327
CASTELO BRANCO, 1986, p. 863-4. No nono capítulo (“O doutor do Porto”), Calisto di no
Parlamento: “Pois, Sr. Presidente, eu li que, em França, onde o luxo é maior, aí é menor, em proporção, o
número dos indivíduos ricos.” (CASTELO BRANCO, 1986, p. 880.) A frase do romance camiliano
recorda a de Garrett, no terceiro capítulo de Viagens na minha Terra: “E eu pergunto aos economistas
políticos, aos moralistas, se calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao
trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignomínia crapulosa, à desgraça invencível, à
penúria absoluta, para produzir um rico.” (GARRETT, [1963], v. I, p. 21.)
141
Calisto Elói, portanto, contesta a civilização de aparências, a pobreza mascarada
de luxo. Ainda na Câmara dos Deputados, o personagem contradiz o colega e opositor
Dr. Libório, que defende justamente o luxo como insígnia do progresso:
Se o Sr. Dr. Libório me não lançasse da sua presença com tamanho desamor,
havia de perguntar-lhe que artes e ciências progrediram entre os Sibaritas e
Lídios, povos que a mais elevado grau de luxo subiram. Havia de perguntar-lhe
porque foi que os Persas, acaudilhados por Ciro, cortados de vida áspera e
privada do necessário, subjugaram as nações opulentas. Havia de perguntar-lhe
porque foram os Persas, logo que se deram às delícias do luxo, vencidos pelos
Lacedemónios.
A suprema verdade, Sr. Presidente, a verdade que os arrebiques da retórica não
seduzem é que, à medida que os impérios antigos se locupletavam, o luxo ia de
foz em fora, e os costumes a destragarem-se gradualmente, e o pulso da
independência a quebrantar-se, e os cimentos das nações a estremecerem.
Depois era cair do Egipto, da Pérsia, da Grécia e Roma.
328
Fundamentado em sua máxima “A verdade é de todas as horas”
329
–, o
protagonista lança mão de célebres exemplos da História Antiga para endossar seus
ataques ao luxo do qual o colega do Porto faz apologia. Os exemplos colocados
assemelham-se aos do próprio Portugal. Pois o reino português não se dilatara num
vasto império com territórios na Europa, África, Ásia e América? Não se locupletou nos
séculos XIV e XV e, a partir de meados do século XVI, não começou a quebrantar-se, a
cair? Algumas páginas antecedentes à fala citada, Calisto já se tinha referido à época de
fausto do reino:
Sr. Presidente! Os conselheiros dos antigos reis de Portugal, homens de claro
juízo e ciência bastante, cortavam os abusos do luxo com pragmáticas, quando
328
CASTELO BRANCO, 1986, p. 880.
329
CASTELO BRANCO, 1986, p. 858.
142
os vassalos se desmandavam em trajos, regalos e ostentações ruinosas do
indivíduo, e, portanto, da cidade. O senhor rei D. Sebastião, que santa memória
haja, promulgou justas e rigorosas leis sobre o uso das sedas. E, naquele tempo,
Sr. Presidente, Portugal ainda se banqueteava com a baixela de oiro do Pegu;
ainda as redes das salas nobres estavam colgadas de gualdamecins e razes da
Pérsia. Era o Portugal, não robusto nem entusiasta, mas ainda sopitado das
embriagadoras delícias dos reinados de D. Manuel e D. João III.
330
Podemos reparar que, embora aferrado ao tempo pretérito de seu país, Calisto é
cônscio da decadência econômica portuguesa que tivera início nos anos de 1500.
Contudo, não existe reprimenda na passagem acima à moral entre os governantes de
Portugal na época. A decadência econômica não corresponde a uma decadência moral,
diferentemente do que ocorreria, segundo o personagem, em seu presente:
Lastimo este luxo que vejo em Lisboa! Por toda a parte, oiro, pedrarias, sedas,
veludos, pompas, vaidades! Parece que toda esta gente voltou ontem da Índia
nas naus que trouxeram as páreas do Oriente! Essas ruas estrondeiam de
carruagens, calechas e berlindas, como se cada dia se estivesse comemorando a
passagem do cabo Tormentório ou o descobrimento da Terra de Santa Cruz,
atirando às rebatinhas os tesouros que de lá nos vêm.
331
Em A Queda dum Anjo, também o se trata de pensar a decadência às voltas
com a idéia de excesso de civilização, como se deu com o pathos finissecular
332
em
vários escritores portugueses, entre os quais o Eça de Queirós do conto “Civilização”,
de 1892, e do romance A Cidade e as Serras (desenvolvido a partir do conto e
330
CASTELO BRANCO, 1986, p. 870-1.
331
CASTELO BRANCO, 1986, p. 871.
332
No terceiro capítulo “O ‘excesso de civilização e a neurose fim de século”, do livro A ideia de
decadência na Geração de 70, António M. B. Machado Pires escreve: “O homem moderno traz consigo
os estigmas de uma civilização que o definha, o empobrece fisiologicamente: a convicção era a de que os
progressos civilizacionais exigiam um alto preço o da actividade, do nervosismo exagerado, da
decadência da espécie. As palavras-chave que traduzem lapidarmente esta convicção são nevrose e
degenerescência. São conceitos que, afinal, confluem no sentimento geral finissecular de aniquilamento e
fim de raça, de intelectualismo corrosivo e pessimista, de seres ‘oprimidos pela covardia do esforço a
dispender [...], entes frustes da decadência’.” (PIRES, 1980, p. 127.)
143
publicado, postumamente, em 1901). Jacinto – protagonista de ambas as narrativas – é o
príncipe supercivilizado, que em Paris rodeia-se de toda uma parafernália altamente
tecnológica e de incontáveis livros e revistas sobre os mais diversos assuntos, pondo em
prática sua fórmula: máxima ciência x máxima potência = máxima felicidade. Contudo,
o personagem queirosiano acaba por imergir num profundo sentimento de tédio, de que
apenas se liberta, ao vir a habitar em meio à rusticidade da terra de seus ancestrais: o
interior de Portugal. Em A Queda dum Anjo, nem hipercivilização em Lisboa, e
tampouco Calisto Elói se entedia com o progresso que encontra na capital portuguesa.
Em mais um lance irônico da obra, o morgado da Agra de Freimas tornar-se-á
um moralmente decaído, afeito ao luxo, e assim um representante simbólico da
decadência da nação portuguesa.
Túlio Ramires Ferro chama a atenção para o quarto capítulo do romance
(“Asneiras da erudição”), onde se sucede um “acontecimento fortuito que funciona
como sinal premonitório ou preságio de futura tragédia: a queda de Calisto nos lamaçais
de Alfama, incidente picaresco aparentemente secundário mas na realidade carregado de
simbolismo”.
333
Segundo o crítico, a lama motivo primeiro para que o protagonista
caia e se suje em sentido literal, quando chega a Lisboa simbolizaria a imundície
moral desta cidade, que virá a contaminar e fazer cair, em sentido metafórico, o
deputado mirandense.
334
Como se trata da transformação de um anjo (o Calisto Elói do
início da narrativa) em homem (o Calisto Elói do desfecho), gostaria de pontuar, dentro
da leitura de Ramires Ferro, a etimologia fantasiosa, mas bastante difundida na época de
Camilo e ainda hoje, da palavra ‘humano’ como originada da mesma raiz da palavra
‘húmus’ – a qual podemos colocar, num mesmo conjunto semântico, ao lado de ‘lama’.
333
FERRO, 1966, p. 121.
334
Cf. FERRO, 1966, p. 111-2.
144
Também gostaria de reportar-me a outras duas passagens do romance que
prefigurariam a queda do morgado da Agra de Freimas. Umajá aqui referida na seção
3.1 pertence ao primeiro capítulo (“O herói do conto”), onde o narrador informa ter
Calisto desistido de doutorar-se no seminário bracarense, porque lho pedira a mãe
recém-viúva. A outra passagem situa-se no segundo capítulo (“Dois candidatos”), cujas
linhas iniciais são:
Desde o qual acidente [a rejeição das propostas retrógradas de Calisto na
Câmara Municial de Miranda], o morgado, convicto da podridão dos
vereadores em particular, e da humanidade em geral, prometeu a onze retratos,
que tinha de onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro
social com suas mãos impolutas.
335
Calisto Elói quebrará a promessa no próximo capítulo, intitulado “O demónio
parlamentar descobre o anjo”, ao ser convencido a candidatar-se para deputado. A
quebra dessa promessa feita perante os retratos dos ancestrais parece constituir um
passo sutil rumo à futura e mais drástica negação dos valores arcaicos postulados pelo
personagem.
A queda do anjo significa, conforme a crítica pontuou, a passagem do velho
para o novo Portugal. Este Portugal o do ‘progresso’, da ‘civilização’ e do ‘luxo’
instaura-se com a ruína da moralidade que Calisto Elói, nas primeiras páginas da
narrativa, pretende defender. De fato, o protagonista do romance camiliano de Cavaleiro
da Triste Figura converte-se em Sancho Pança o ideal degrada e torna-se real. Devo
frisar que mesmo o progresso efetivo, diferente do que ocorreria naquele país à esquina
da Europa, mesmo esse progresso verdadeiro seria uma tragédia mefistofélica em que os
antigos códigos morais têm de arrancar os próprios olhos... No novo Portugal, ilha
335
CASTELO BRANCO, 1986, p. 843.
145
Barataria onde Sancho é rei, reinam a hipocrisia, a falsidade dos personagens, e, por se
tratar de um romance moderno, a ironia e a sátira de seu narrador. Nessa perspectiva,
todo e qualquer progresso implicaria uma decadência moral; com efeito, um dos pontos
nevrálgicos de A Queda dum Anjo.
3.3) CALISTO ELÓI E A NAÇÃO MODERNA
Ao aderir à modernidade, Calisto Elói expressa o próprio paradigma moderno de
contínuas transformações. O personagem de A Queda dum Anjo transforma-se porque o
romance estruturado de acordo com a episteme romântica é uma obra moderna. De
fato, o narrador camiliano assume pertencer ao século XIX, na medida em que satiriza e
ironiza o “anjo do fragmento paradisíaco do Portugal velho”,
336
mas também
contraditoriamente ironiza e satiriza sua queda.
Se podemos interpretar a trajetória de Calisto Elói como a passagem do velho
para o novo Portugal, cabe acrescentar que A Queda dum Anjo também representa a
coexistência de aspectos tradicionais ou velhos com aspectos modernos ou novos na
nação que delineia. Essa simultaneidade de dois tempos no organismo nacional mostra-
-se complexa, porque ela no romance não se separa nitidamente em Miranda (o espaço
do passado) e Lisboa (o espaço do presente). Coexistem passado e presente, tradição e
modernidade, o velho e o novo tanto na província quanto na capital portuguesa fato
que percebemos no Calisto Elói desconjunto de ambos os espaços. Se, nos primeiros
capítulos que relatam sua estada em Lisboa, parecerá ter caído de algum planeta”,
337
segundo lhe diz o amigo Abade de Estevães, o protagonista não se sente muito menos
alienígena quando mora em Miranda. Sua reclusão mais do que espacial, existencial
336
CASTELO BRANCO, 1986, p. 1005.
337
CASTELO BRANCO, 1986, p. 886.
146
revela-se na completa dedicação à leitura reservada em sua biblioteca, e no
pronunciamento de despedida como presidente da mara Municipal, no primeiro
capítulo (“O herói do conto”): “– [...] eu despeço-me disto. Tenho o governo de minha
casa, onde sou rei e governo, segundo os forais da antiga honra portuguesa.”
338
A longa
passagem abaixo, pertencente ao nono capítulo (“O doutor do Porto”), também ilustra o
deslocamento do protagonista:
Calisto Elói ganhara consideração na Câmara e no País.
Os deputados governamentais acercaram-se dele, convidando-o em termos
delicados a aceitar, no banquete do progresso, o lugar que a sua inteligência
reclamava. Os deputados oposicionistas conjuravam-no a não levantar mão de
sobre os projectos depredadores com que a facção governamental andava
cavando novas voragens ao País.
O morgado da Agra respondia que estava descontente de gregos e troianos, e
acrescentava:
Não sei, por ora, de qual dos lados da Câmara se fala pior a língua pátria.
Tenho ouvido os quinhentistas “a la moda”, e os galiparlas. Todos ressabem a
ervilhaça; uns estão gafados de francesias, outros tresandam nos seus dizeres a
bafio, que os bons seiscentistas rejeitaram. Carecem de cunho nacional estes
homens.
339
O personagem apenas abandona a condição de desconjuntamento quando adere
completamente ao tempo da modernidade e fica residindo no espaço da modernidade
isto é – Lisboa.
Calisto Elói, portanto, funciona como símbolo de uma nação portuguesa espacial
e temporalmente fraturada – ela é o velho, mas também é o novo; ambas essas faces em
338
CASTELO BRANCO, 1986, p. 842.
339
CASTELO BRANCO, 1986, p. 881-2.
147
conflito entre si. Ademais, se o morgado da Agra de Freimas antes da queda não
pertence a sua época, por rejeitá-la, naturalmente não pertence também ao passado, pois
neste não vive senão psicologicamente. Verificamos, pois, que a nação do protagonista
é imaginada. Eis um dos paradoxos que, segundo Benedict Anderson, conduzem à
perplexidade senão à irritação os teóricos do nacionalismo: “The objective modernity of
nations to the historian’s eye vs. their subjective antiquity in the eyes of nationalists.”
340
Calisto fervoroso nacionalista encena a antigüidade da nação portuguesa, na
confluência de sua remota ascendência nobiliárquica e de seu apego ao passado.
Sublinho o tempo verbal utilizado, encena: o personagem inscreve esse tempo anterior
no presente. Esse fato resulta na caracterização que Homi K. Bhabha atribui à nação,
“articulada na tensão entre, por um lado, significar o povo como uma presença histórica
a priori, um objeto pedagógico, e, por outro lado, construir o povo na performance da
narrativa, seu ‘presente’ enunciativo, marcado na repetição e pulsação do signo
nacional”.
341
Pedagógico e performático, o protagonista de A Queda dum Anjo coloca o
problema de uma nação que apenas consegue vivenciar no âmbito livresco, isto é, no
âmbito ficcional e psicológico. Portugal acaba por constituir uma incômoda ausência no
presente espacial representado por Miranda e Lisboa.
Que dizer quanto ao Calisto Elói convertido à modernidade? Conforme pontuei
linhas acima, sua conversão atestaria o duplo ser da nação portuguesa: o velho e o novo,
o tradicional e o moderno. A transformação por que passa Calisto Elói também constitui
outro ponto de interesse nessa discussão referente à ontologia nacional. Sabemos que
ele abandona seu ideário passadista, associado a valores que julga autênticos de
Portugal, e toma postura progressista e aberta a influências estrangeiras. Interpretei o
personagem, tanto em um quanto em outro momento, como símbolo da nação
340
ANDERSON, 1991, p. 5.
341
BHABHA, 2003, p. 209.
148
portuguesa. Nessa perspectiva, o ser nacional representado pelo personagem mostra-se,
de fato, performático. A Queda dum Anjo ilustraria o que propõe Stuart Hall:
“Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à
nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma
questão de ontologia, de ser, mas de se tornar”.
342
Todavia, ressalto que em 1865 ano em que escreve e vem a publicar o
romance Camilo Castelo Branco participou ativamente da Questão Coimbrã. Com o
artigo “Vaidades Irritadas e Irritantes”, defendeu o amigou António Feliciano de
Castilho dos ataques do então jovem Antero de Quental. Nessa polêmica, portanto,
Camilo enfileirou-se no contingente dos castiços, contrapostos aos estrangeirados em
Portugal. Tanto o romance quanto a participação na Questão Coimbrã refletem um
escritor que sente opapel central da nacionalidade”
343
que se veio a verificar “entre os
anos de 1848 e 1870”.
344
Saliento, pois, que, em consonância com o que predominava
em sua época e em seu meio, Camilo Castelo Branco imaginou uma existência efetiva
da nação portuguesa, e assim procurou narrá-la em A Queda dum Anjo. Trata-se de um
olhar isento de sentimentos nacionalistas e extemporâneo da obra que a enxergou neste
trabalho como ilustrativa das teorias mais recentes sobre a nação.
342
HALL, 2003, p. 44.
343
HOBSBAWM, 1996, p. 126.
344
HOBSBAWM, 1996, p. 125.
149
CONCLUSÃO
150
A nação como fenômeno moderno marcou profundamente a política, a sociedade, a
cultura ocidental no século XIX. O discurso nacionalista, nessa época, propalava uma
idéia apriorística de nação, de modo que se dispensassem quaisquer reflexões teóricas
que a discutissem ontologicamente. Entretanto, autores entre os quais Ernest Renan –,
baseados em conhecimentos históricos, observaram como a nação não é natural, mas
algo situado na história, um constructo ideológico relativamente novo. No século XX e
mesmo XXI, Eric J. Hobsbawm, Benedict Anderson e Homi K. Bhabha contam-se
dentre os nomes que consolidaram o pensamento sobre a nação, assinalando-lhe o
caráter de coisa ficta.
Em Portugal, o fenômeno ocorreu num contexto gravemente problemático. O
Estado português, no início do século XIX, via-se abalado politicamente pela invasão
napoleônica e depois pela presença inglesa na administração nacional e
economicamente pela perda da colônia americana, em 1822. em 1820, conflagrara-se
uma revolução liberal, o que vinha a abalar as estruturas do Antigo Regime vigentes no
país. Desde então, Portugal vivenciou o conflito entre duas forças: a dos que
procuravam manter as bases sócio-político-culturais e a dos que tentavam transformá-
-las. O velho e o novo embatiam e embateriam, entre os portugueses, durante todo o
século XIX. Esse fato sinalizava a entrada de Portugal na modernidade, em que a idéia
de progresso impunha-se como paradigma, contra o qual não deixaram de lutar as vozes
conservadoras. O embate decorria, aliás, de uma consciência agudizada nos oitocentos:
a do país como nação decadente perante seu passado glorioso de guerras, navegações,
descobertas, e atrasada perante nações França, Inglaterra, Alemanha, notadamente
que empreendiam a passos muito mais largos a marcha industrial.
A literatura portuguesa oitocentista participou amplamente desse cenário de
construção nacional. Assumindo-se como ativos cidadãos, escritores destacáveis – como
151
Almeida Garrett, Alexandre Herculano, Eça de Queirós e Antero de Quental
problematizaram o ser e destino da Pátria-Nação lusitana. Nas palavras de Eduardo
Lourenço, já citadas neste trabalho: “Cada escritor consciente da nova era escreverá [...]
o seu pessoal discurso à sua nação, cada um se sentirá profeta ou mesmo messias de
destinos pátrios, vividos e concebidos como revelação, manifestação e culto das
respectivas almas nacionais.”
345
Embora o crítico, nesse texto “Da literatura como interpretação de Portugal” atribua
a Camilo lugar de nenhuma importância dentro da trajetória literária portuguesa de
problematizar a Pátria-Nação, vimos que A Queda dum Anjo coloca o contrário: ao
menos no romance de 1865, o autor revela-se preocupado em ‘escrever seu pessoal
discurso à sua nação’, e desse modo narrar uma lusitanidade. Também A Queda dum
Anjo contradiz, como caso particular, a observação generalizante de António Quadros
sobre o romancista português, de que sua obra como um todo não toca “a essência do
ser pátrio”, e não busca “surpreendê-lo e transmiti-lo em termos simbólicos no seu
amplo movimento temporal, na sua teleologia, nos seus momentos axiais, no seu tecido
de arquétipos, de paradigmas, de mitos e de ideias-força”.
346
Em A Queda dum Anjo, o
autor, mais do que ambienta o enredo em Portugal e lança mão de personagens
portugueses, ele problematizapor meio da sátira e da ironiao ser e destino da nação
portuguesa, chegando a simbolizá-la dentro dos termos requeridos por Quadros na
trajetória do protagonista Calisto Elói. Essa narrativa de 1865, pois, legitima o
inserirmos seu autor no longo percurso da literatura como interpretação de Portugal”,
observado e analisado por Eduardo Lourenço em 1975.
A imagem da nação portuguesa delineada no romance fundamenta-se, sobretudo,
no paradigma da modernidade assim como o próprio fenômeno da nação neste se
345
CASTELO BRANCO, 1991, p. 82.
346
QUADROS, 1989, p. 18.
152
assenta. dois Portugais na narrativa camiliana: o velho e o novo, o antigo e o
moderno. Ambos coexistem em conflito, e refletem as contradições vivenciadas no país
ibérico, afetado na época – como a maior parte do mundo – pelos tempos modernos. De
um lado, o espaço provinciano, as bases sociais do Antigo Regime, a economia agrária
de raízes feudais, as convenções sociais, a linguagem castiça, a literatura clássica. De
outro lado, o espaço urbano, a ordem burguesa, a economia industrial, a paixão e o
amor, a linguagem corrompida, a literatura romântica. Respectivamente, ambos os lados
formam a dicotomia dessa nação entre o velho e o novo, entre o tradicional e o
moderno.
Calisto Elói o protagonista do romance percorre, na sua trajetória diegética,
de um lado a outro: do árduo defensor do que acredita serem os autênticos valores da
identidade lusitana, ele cai no afrancesado barão que renega o próprio passado
símbolo do passado da própria nação. De fato, Calisto simboliza a nação portuguesa
delineada no romance. O personagem vincula-se a elementos que espelham o Portugal
enxergado por Camilo Castelo Branco: traços autobiográficos, parentesco com certo
contemporâneo do autor, semelhanças simbológicas com D. Quixote e Sancho Pancha,
Fausto, D. Sebastião, D. Miguel e aspectos da religiosidade portuguesa... A ironia e a
sátira direcionada a ambos os Portugais, a ambos os Calistos deriva de um autor
desiludido com a possibilidade de eficazes mudanças melhoradoras do país, mas ao
mesmo tempo que lastima a impossibilidade de retorno ao esplendor nacional
remotamente terminado. Narrar uma nação fraturada, cindida em duas temporalidades,
cabe a um narrador também fraturado, cindido entre o velho e o novo. Tais
características marcam a modernidade dessa narrativa camiliana.
Concluem A Queda dum Anjo considerações irônicas sobre o fracasso do
propósito da obra de morigerar. Com efeito, a questão moral destaca-se nas peripécias
153
de Calisto Elói. A frustração moralizante do narrador irmana-se com a derrota do
protagonista em corrigir os costumes da sociedade. Todavia, a queda do personagem
simboliza a queda de Portugal o apenas em termos morais (embora o faça
primordialmente), mas também em termos econômicos, lingüísticos, culturais. Desse
modo, o romance de Camilo aborda tema fundamental para a literatura portuguesa do
século XIX: a decadência da nação. No caso de A Queda dum Anjo, temos duas
percepções básicas dessa decadência: 1) a nação decai moralmente, porque a idéia de
progresso implicaria um abalo dos códigos morais antigos; 2) a nação decai política,
social, econômica e moralmente, porque o progresso no país não é efetivo, atendo-se a
alcances superficiais.
Se os teóricos mais recentes da nação pensam-na uma ‘comunidade imaginada’,
a nação portuguesa delineada por Camilo Castelo Branco também sugere esse
pensamento ao leitor de nossos dias. A queda de Calisto Elói traduziria a condição de
devir da identidade cultural na qual se baseia a idéia de povo-nação. Observei também
que, antes de render-se à contemporaneidade, o personagem cumpre papel pedagógico,
ao afirmar a existência de valores autenticamente lusitanos. Por outro lado, quando
Calisto se integra ao novo Portugal, podemos enxergá-lo como ilustração da
performance conceituada por Bhabha. O riso satírico e irônico do narrador dirigido ao
retrógrado morgado da Agra de Freimas parece também manifestar-se
performaticamente, ao passo que esse riso direcionado ao personagem modernizado
trairia propósitos pedagógicos.
Por fim, vale ressaltar, mais uma vez, que Camilo naturalmente não pensou, ou
talvez não tenha pensado que a nação não passasse de um constructo ideológico – ainda
mais para ele recente. Mas sabemos muito bem: as obras-primas transcendem seu
meio, sua época, e mesmo seu próprio autor.
154
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