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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
ANA CRISTINA MENESES DE SOUSA BRANDIM
CURSO DE MESTRADO EM HISTÓRIA
COTIDIANO, NARRATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO
NA TERESINA DOS MEADOS DO SÉCULO XX
ANA CRISTINA MENESES DE SOUSA BRANDIM
TERESINA-PI
2006
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ANA CRISTINA MENESES DE SOUSA BRANDIM
COTIDIANO, NARRATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO
NA TERESINA DOS MEADOS DO SÉCULO XX
Dissertação apresentada como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em História do
Brasil, ao Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Piauí.
Orientador: Prof. Dr. José Luiz Lopes Araújo
Co-orientador: Prof. Dr. Edwar de A. Castelo Branco
TERESINA-PI
2006
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Brandim, Ana Cristina Meneses de Sousa
Cotidiano, narratividade e representação na Teresina
dos meados do século XX. / Ana Cristina Meneses de
Sousa Brandim. Teresina: UFPI, 2006.
170p.
Dissertação (Mestrado) em História. UFPI.
1. xxxxxxxxxxx. 2. xxxxxxxxx. 3. xxxxxxxxxx. I. Título.
xxxxxxx
C.D.D – xxxxx
ANA CRISTINA MENESES DE SOUSA BRANDIM
COTIDIANO, NARRATIVIDADE E REPRESENTAÇÃO
NA TERESINA DOS MEADOS DO SÉCULO XX
Dissertação apresentada como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em História do
Brasil, ao Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal do Piauí.
Aprovada em: _____ /_____/ _______
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Luís Lopes Araújo - UFPI
Orientador
____________________________________________________________
Prof. Dr. José Borzacchiello da Silva - UFC
Examinador
____________________________________________________________
Prof. Dr. Francisco Alcides do Nascimento - UFPI
Examinador
Menina-mulher
desvirginada por um velho,
um tal Jorge, em Domingos;
e por outro, não asco, Velho Monge
amar-ante(s)-mente;
resplendor da Imperatriz e seus casarões da Estrela,
hoje,
tuas erupções de concreto despontam verticalmente
como se pedisse redenção ao Criador,
numa prece neofuturista.
[…]
Tua geografia te desenha tesuda
em teus braços a se estenderem do Satélite ao Sacy;
extensas pernas pretas tracejadas de amarelo
correm fugidias para a vizinhança,
os pulmões Itararé e Mocambinho Oxigenam o resto do corpo,
teu coração bombeia as zonas erógenas dos seios shoppings;
tua Cabeça-de-Cuia transpassada pela ponte metálica
quer vingar-se em Timon,
o louco passado da Ex- e o ciúme porto-sal não apoquentam agora,
tuas simetrias vielas são entrecortadas
pelo colóquio erótico dos veios d’água do Poty com o Parnaíba
num beijo ecologicamente excêntrico.
sem Delta nem Capivara,
fora das Sete Cidades,
apenas Verde Cap,
cidade Luz
e calor.
Nilson Cordeiro Ferreira
Professor de Língua Portuguesa, poeta e ensaísta
A Deus, Criador e Pai.
À minha mãe, que sentiu os horrores
dos incêndios em Teresina, e a meu pai, que
foi mais um dos vários imigrantes atraído,
pelo brilho da cidade grande. Ambos
sentiram seus espaços e temporalidades se
modificarem e presenciaram a construção de
várias cidades.
A Sergio Brandim, por permitir que
eu estivesse a seu lado, falando
incansavelmente de uma Teresina de
cronistas e literatos, construída, reconstruída,
demolida e refeita.
AGRADECIMENTOS
A Deus, a Jesus, e a Nossa Senhora, meus orientadores e guias espirituais.
Ao Prof. Dr. José Luís Araújo, meu orientador, que topou esta
caminhada, por seus ensinamentos, esclarecimentos e paciência.
Ao Prof. Dr. Edwar Castelo Branco, meu co-orientador, que, de certa
forma, sempre esteve presente, contribuindo com suas valiosas opiniões.
Ao Prof. Dr. Francisco Alcides, que, assim com eu, busca, nos labirintos
desta cidade, caminhos e resposta para ela.
À Profa. Dra. Shara Jane Adad, professora e amiga, que, busca perceber
como se dão esta cartografia do conhecimento e as marcas que ficam em nossos corpos.
À Professora Maria Cecília Nunes, que, com seu fôlego incansável,
mostrou-me aquilo que eu desejo para minha vida, que é esta capacidade de não só estudar e
escrever sobre história, mas também fazer parte da história de todos os que por ela passam.
A meus colegas da Universidade Estadual do Piauí, que, durante a
pesquisa, muitas vezes ministraram aula em meu lugar para que este trabalho pudesse ir
além.
A meus alunos, que foram, muitas vezes, ouvintes e interlocutores sobre esta
cidade em eterna construção.
A meus colegas de Mestrado, que, por ter sido a primeira turma, sempre
direcionaram todos os olhares, dúvidas e angústias sobre si próprios.
A todos os meus professores, que, neste momento, se fazem, mais do que
nunca, presente (e presentes) em minha vida.
A alguns professores, em especial, por, ao longo do percurso, terem se
tornado, mais do que mestres, fiéis companheiros.
A Alcebíades e Conceição, por todas as informações e comentários feitos
sobre o trabalho, durante as nossas saídas na noite desta cidade.
A Sergio Brandim, por permitir-me ficar a seu lado, falando
incansavelmente de uma Teresina de cronistas e literatos, construída, reconstruída,
demolida e refeita.
A meus irmãos, sogro e sogra, cunhados e cunhadas, que me dão o enorme
prazer de fazer parte desta grande família, que sempre acreditou que educação é o
mecanismo de mudança deste mundo.
Toda longa jornada sempre se faz com pessoas que possibilitam, em algum
momento, que ela se torne mais amena; por isso, a todas estas pessoas, que me
acompanharam ou me conduziram, meu eterno e sincero muito obrigada.
RESUMO
Trata sobre diferentes discursos que foram articulados sobre a cidade de Teresina,
principalmente em meados do século XX, no que diz respeito a sociabilidades costumes e
cotidiano. Analisa os vários “saberes” e “dizeres” que partiram dos urbanistas, cronistas,
poetas, romancistas, entre outros, no sentido de detectar uma polifonia sobre a cidade e sua
importância para a delimitação de um sentido de urbano e urbanidade. Procura cartografar as
várias cidades que foram viabilizadas, através da sobreposição desses discursos: a cidade
visível e invisível; a cidade higiênica e a cidade marginal; a cidade antiga e moderna; a cidade
como espaço de cultura e história. Propõe uma forma inovadora de aproximação entre
História e Literatura, no que diz respeito a uma formulação imagética, com a intenção de
revelar aspectos sociais e culturais presentes nas mudanças e permanências da nossa cidade.
Conclui que a cidade é um campo onde vivem e justapõem-se várias narrativas e imagens,
formulando um painel complexo onde se articulam sentidos, idéias, representações e
discursos.
Palavras-chaves: Cidade. Literatos. Discursos. Imagens. Cultura.
RESUMEN
Trata sobre los diferentes discursos que fueron articulados sobre la ciudad de Teresina,
principalmente en mediados del siglo XX, en lo que dice respeto la sociabilidades, costumbres
y cotidiano. Analiza los varios saberes y ditos que partieron de los urbanistas, cronistas,
poetas, romanticistas y otros, en el sentido de detectar una polifonía sobre la ciudad y su
importancia para la delimitación de un sentido de urbano y urbanidad. Búsqueda cartografiar
las varias ciudades que fueron viables a través de la sobreposiçión de ese discursos: la ciudad
visible e invisible; la ciudad higiénica y la ciudad marginal; la ciudad antigua y moderna; la
ciudad como espacio de cultura e historia. Propone una forma innovadora de aproximación
entre Historia y Literatura, en lo que dice respeto a una formulación de imagénes, con la
intención de revelar aspectos sociales y culturales presente en las mudanzas y permanencias
de nuestra ciudad. Concluye que la ciudad es un campo donde viven y se yuxtaponen varias
narrativas e imágenes, formulando un cuadro complejo donde se articulan sentidos, ideas,
representaciones y discursos.
Palabras-llave: Ciudad. Literatos. Discursos. Imágenes. Cultura.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1
Conjunto de Mapas sobrepostos (de baixo para cima): a) mapa atual de
Teresina; b) mapa da fundação da cidade; c) marcos de delimitação do
terrotório de Teresina à época da fundação ............................................
26
Foto 2
Praça Marechal Deodoro no início do século XX ...............................
29
Foto 3
A cidade sob o fogo: modernização e violência policial em Teresina
(1937-1945) .........................................................................................
36
Foto 4
Arco decorativo alusivo ao Centenário de Teresina, Praça Pedro II,
1952 .....................................................................................................
40
Foto 5
Visão interna da Favela Morro da Garrincha .......................................
49
Foto 6
Detalhe da Praça Pedro II, na década de 1940 .....................................
57
Foto 7
Detalhe da Praça Pedro II, em 2002 ....................................................
58
Foto 8
Coluna da Hora, Praça Rio Branco ......................................................
59
Foto 9
Praça Rio Branco na década de 1940 ...................................................
70
Foto 10
Demolição do prédio da esquina das Ruas Senador Teodoro Pacheco
com Riachuelo, atual prédio do Banco Rural ......................................
77
Foto 11
Troca-Troca .........................................................................................
116
Foto 12
Idosos conversando na Praça Rio Branco ...............................................
135
Foto 13
Comércio de Prostituição da Rua Paissandu ..........................................
140
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................
13
CAPÍTULO I USOS DA CIDADE: MAPAS, LEIS E PLANOS
ESTRUTURAIS COMO ESFORÇOS DE FIXAÇÃO DA CIDADE ..........
21
CAPÍTULO II CONTRA-USOS DA CIDADE: A NARRATIVA
LITERÁRIA COMO SUBVERSÃO DA CIDADE .......................................
55
2.1
Fragmentos, restos e passagens: uma análise entre lugar e memória em
Teresina ...............................................................................................................
55
2.2
A cidade e o cronista: a dissolução de lugares ....................................................
68
2.3
Mudanças e permanências: os olhares dos cronistas ..........................................
82
CAPÍTULO III USO-FICCIONAL: A SÍNTESE DOS ESPAÇOS
MARGINAIS DA CIDADE NA OBRA “MEIA-VIDA” DE OTON
LUSTOSA ..........................................................................................................
110
3.1
Lugares marginais: uma cartografia literária ......................................................
110
3.2
Painéis de Teresina na obra de Oton Lustosa .....................................................
141
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...........................................................................
153
REFERÊNCIAS ................................................................................................
161
INTRODUÇÃO
Eu simplesmente andava pelas ruas, percorria-as,
e procurava traçar uma cartografia que formasse
um mapa subjetivo. Acredito que andar é
dialogar com os espaços, é misturar minhas
pegadas com todas aquelas que imprimiram
um significado ao asfalto ou às pedras do
calçamento da cidade.
As ruas que me levam a uma cerimônia importante no centro da cidade foram
pensadas dentro de um mapa certinho, onde não devia haver escapatórias para ruelas, becos,
inclinações. Tornava-se prazeroso contemplar os cortes bem desenhados, que davam a cidade
um “ar europeu”, um gostinho de viver em um esquema onde tudo podia ser precisamente
visualizado, e, em caso de perigo, prontamente sufocado. Porém, as ruas me revelam que essa
intenção racionalizadora foi mudada com o tempo, pois a confusão dos pedestres, o aumento
do número de automóveis, o surgimento de vendedores ambulantes, a necessidade dos
semáforos para conter a desordem do trânsito indicam-me outras apropriações e
ressignificações que foram imputadas àquele espaço central.
As ruas enfeitiçam o olhar, por isso faz-se necessário seguir as orientações do
mapa subjetivo, traçado na intenção de evitar a perda, posto que os traçados urbanos nos
orientam para direções alhures que não são a que guardo no meu íntimo nem nas minhas
construções oníricas. Elas são os portões mágicos que podem levar para outras dimensões; são
como palavras abertas a vários sentidos e prontas para serem desvendadas.
As ruas em que, nesse momento, trafego levam-me a um local significativo, pois
vou ao encontro de um monumento histórico, a Igreja Matriz de Nossa Senhora do Amparo,
assistir a uma missa do dia 13 de maio, onde se comemora a aparição de Nossa Senhora de
Fátima. A solenidade está marcada para o meio-dia, e observo que a Igreja está lotada, os fiéis
se acotovelam em busca de melhores lugares, pois aqui também se riscam cartografias, no
sentido de ficar mais próximo ao Sagrado. Os crentes cantam, rezam, emocionam-se,
comungam, recebem bênçãos e partem de volta para suas rotinas cotidianas e profanas.
A mim ainda resta apreciar, do alto da Igreja, a beleza estética dos prédios que
compõem o conjunto arquitetônico da atual Praça Marechal Deodoro, conhecida como Praça
da Bandeira (antiga Praça da Constituição), onde se registra o início da fundação da cidade.
Hoje esse logradouro encontra-se modificado de suas antigas funções, e é permanentemente
invadido por uma legião de corpos significados por sua situação de pedintes; além daqueles
considerados pelo discurso utópico como “meninos e meninas de rua”, e dos grupos de
prostitutas e garotos de programas. Esses seres ordinários mostram-me que a cidade, como
espetáculo cultural, é permanentemente modificada, atualizada, pelos passos de uma
infinidade de caminhantes como eu.
Posso observar o símbolo existente na porta principal da Igreja de Nossa Senhora
do Amparo, ele me aponta para o marco zero da cidade. Mas será que é possível demarcar
esse ponto? Lembro de uma pergunta feita por Walter Benjamin (1994
a
), onde propõe a
interrogação: São os homens que habitam a cidade ou é a cidade que é habitada pelos
homens?
Será que os homens com seus ternos bem passados e alvejantes que burilavam
conversas no antigo Bar Carvalho (Praça Rio Branco) poderiam responder a essa indagação?
Li que era um estabelecimento requintado, que servia impecáveis pratos, em porcelana e
cristais importados, feitos por um cozinheiro espanhol de nome Gumercindo. O que será que
esses cavalheiros que se encontravam para debates em prolongados diálogos responderiam à
minha pergunta? Imagino que responderiam com risos, gargalhadas, pois a cidade lhes
pertencia. Eles a conheciam como a palma da mão; sabiam onde encontrar as melhores opções
para seus encontros sociais, onde poderiam travar polêmicas ou mesmo redigirem cartas e
telegramas, entregando-as ali mesmo para o despacho que era realizado pelos empregados do
estabelecimento.
Vale destacar que a cidade ferve, são 13h30min e a lembrança desse
estabelecimento comercial fez-me sentir vontade de flutuar sobre a cidade para poder vê-la do
alto, mais alto ainda que o adro da Igreja, e assim poder olhar com mais intensidade todos os
seus lugares. Porém, sei que é ali, entre a selva de ruas e prédios, que poderei alcançá-la, fazê-
la minha, incontestavelmente minha. Assumo-a como objeto de minha pesquisa, pois o
consigo parar de refletir como Teresina foi pensada, imaginada, traçada. De que modo os
espaços que a constituem foram tomados de tensão, que se somam desde o início de sua
construção 153 anos. Assim, pensei em buscar alguns de seus segredos, artimanhas, teias
de enredos, no sentido de desalinhá-los para entender como essa cidade tornou-se um
simulacro de novidades e tradições, ora mergulhada em profundo saudosismo, ora aliada a
uma vontade irremediável de participar de novos conceitos, valores e práticas “modernas”.
Sob este aspecto, desejei-a, tornando-a objeto de meu estudo, das minhas
pesquisas; embora também tenha sido vítima de suas manobras, dos seus vícios, de suas
permanentes inquietações. Nesse contexto, objeto e pesquisador tornaram-se duas
engrenagens diversas, contudo, necessitando movimentar-se em consonância, sob o risco de
um atrapalhar o movimento do outro. Senti muitas vezes que o brilho intenso do meu objeto
de estudo forçava-me ininterruptamente a voltar, a retroceder no tempo, no sentido de escapar
dos feitiços de uma história do tempo presente. Deste modo, procurei buscar nos vários
discursos, que tentavam capturar a imagem de Teresina, uma forma de penetrar a cidade, nas
entrelinhas que a constituem. Penso que trabalhar com categorias temporais seja um eterno
retorno a um tempo saturado de sentidos que foi impresso por aqueles que a viveram.
Confesso, tentei falar de uma Teresina que sentia uma dor profunda pela perda de seus
referenciais, dos seus lugares, principalmente nas três últimas décadas do final do século XX.
Mas algo me impeliu, em diversos momentos, a retroceder, assim como o anjo da História de
Walter Benjamin, com seus olhos escancarados e asas abertas voltados para o passado. Dessa
forma, empenhei-me em compreender como se deram as ruínas que estavam dispersas aos
meus pés, tentei articular uma imagem do passado, pois esse “só se deixa fixar, como imagem
que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994, p.
224).
Ao buscar compreender aspectos dessa ruína, empreendi uma armadilha, no
sentido de apropriar-me de algumas reminiscências “tal como ela relampeja no momento de
um perigo” (BENJAMIN, 1994
a
, p. 224). Tracei uma rota, utilizando-me de uma estratégia
conhecida como “montagem por contraste e superposição” (PESAVENTO, 1995), na qual
procurei alinhar várias representações de Teresina, aquelas que falam da cidade visível e
invisível, legal e ilegal, antiga e moderna, histórica e cultural. Fui tomada por uma súbita
simpatia pelos personagens e sujeitos que atravessaram minhas análises e que traziam a marca
de serem homens ordinários, capazes de subverter os códigos de uma visibilidade, na tentativa
de ir à busca das cordas da história. Esses atores justapostos são os cronistas, poetas,
personagens de uma ficção, personagens reais perdidos na multidão, mas que foram
registrados pela lente do jornal, ruas, avenidas, bairros, praças, monumentos, prédios,
mulheres, lugares e sujeitos marginalizados, eventos, costumes, sociabilidades, sensibilidades.
Esses atores foram fragmentos recolhidos na intenção de aproximar-me de um imaginário
coletivo de uma época, pois a intenção foi estabelecida pela cumplicidade com a figura do
historiador-detetive. Esse opera como “[...] Freud ou Sherloc Holmes [...] recolhendo os
sintomas, indícios e pistas que, combinados ou cruzados, permitem oferecer deduções e
revelar significados” (PESAVENTO, 1995, p. 287).
Essas reflexões ajudam-me a pensar a cidade, em como poderia organizá-la para
melhor compreender suas teias discursivas, que pudessem mostrar painéis de sua vitalidade,
posto que ela cresceu, avantajou-se para todos os lados. O centro comercial, histórico da
cidade está abarrotado de pessoas e mercadorias. Homens e objetos em busca de um lugar,
travando competições pelas poucas sombras que ainda restam de uma cidade que foi
conhecida por sua exuberância vegetativa, mas que atualmente o é por outros signos, que lhe
passaram a designar, como, por exemplo, possuir um complexo de serviços de saúde e
educação, por exemplo.
Deixo o adro da Igreja e dirijo-me ao Arquivo Público do Piauí, no prédio
conhecido por “Casa Anísio Brito”. Ao subir os degraus que dão acesso à sala de pesquisa,
fico a pensar naquele monumento revelador de uma época de nossa história; registro
arquitetônico que guarda documentos que assinalam aspectos de nossa relação com aqueles
que não mais existem. Porém, ficaram registrados por sua produção, pela capacidade que
tiveram de traduzir em palavras, atos, e também em silêncios suas impressões sobre as mais
diferentes formas de lidarem com suas convenções simbólicas, também conhecidas como
“realidade”.
Ao entrar na sala espaçosa, peço alguns jornais e livros que me ajudarão a
conhecer um pouco mais das sutilezas do meu objeto de pesquisa. A cidade material, que,
pouco, deixei lá fora, juntamente com seus prédios de arquitetura avantajada, ou o, se
dispersam em letras, em palavras, em períodos, em textos. Escolho entre tantas fontes aquelas
que me ajudarão a confeccionar minha pesquisa, minha dissertação. Procedo à leitura e
organizo o que me interessa, dispensando aquilo que naquele momento não ajudaria para
visualizar melhor meu objeto.
Passo a confeccionar meus textos, descartando e priorizando outras idéias,
fragmentos, pensamentos, teorias... Devo ser prudente na escolha dos vieses de entendimento
da minha pesquisa, sob o perigo de perder-me nesse labirinto de papéis e palavras.
Invento a minha cidade e tento encontrar os enredos que a montaram e a
articularam. Porém, a minha invenção, como pesquisadora e historiadora, é detida, limitada,
pelo acervo teórico que me assiste e pelos documentos que escolhi; como, por exemplo, as
crônicas, os jornais, as revistas e cadernos especializados em matéria sobre Teresina, poemas,
anais da Academia Piauiense de Letras, fotografias antigas e recentes de Teresina, além da
ficção que me permitiu mostrar outras cidades, superpostas sobre aquelas consideradas
“reais”.
Pude observar nesses documentos que a cidade moderna existe enquanto desejo,
novidade, realização de formas múltiplas de portar-se, alimentar-se, vestir-se, entre outras
modificações, principalmente aquelas que se dão no campo das idéias. Essa cidade provisória
existe sob as bases de uma cidade nostálgica, antiga, perdida em sua arquitetura colonial e nas
lembranças daqueles que a vivenciam como reminiscência. No confronto dessas oscilações e
perturbações, na superposição de temporalidades distintas, apreendemos alguns homens e
mulheres que se sentiram desenraizados de seu tempo, de sua época, obrigados a testemunhar
a violência da perda de suas referências urbanas, temporais, de costumes e valores. Eles
gritaram, proferiram sentenças, denunciaram ante os perigos” trazidos pelos ventos do
“progresso” e da “modernidade”.
Visando perceber como essa rede fez vibrar um conjunto simbólico de questões
como identidade, memória, poder, discursos, representação, imaginário etc., optei por
trabalhar com o registro literário, no sentido de captar significações, percepções das rupturas e
permanências que existem na confecção de uma cidade. Estes registros estão carregados dos
conhecimentos acumulados pelas gerações passadas.
Posso perceber que o conjunto dessas idéias necessita ser organizado, de forma a
demonstrar um painel articulado das minhas intenções de pesquisa. Recorto, articulo idéias,
sugiro problematizações, misturo os meus documentos a um recorte teórico que escolhi, tanto
por aproximação como por entender que fariam latejar redes de significados, fazendo
multiplicar os sentidos. Dessa forma, sistematizei meu objeto de estudo em três capítulos que,
na minha concepção, formulam de maneira significativa os esforços em capturá-los e
demonstrá-los.
No primeiro capitulo “Usos da cidade: mapas, leis e planos estruturais como
esforços de fixação da cidade”, busquei demonstrar a construção visível da cidade, desde sua
criação, evoluindo por algumas temporalidades, no intuito de demonstrar os discursos
“legais” que foram cristalizados e utilizados como artifícios, no sentido de conter a desordem,
o caos”. Trata-se de um vôo sobre as várias tentativas históricas de formulação de uma
cidade disciplinada, artificial, “fabricada” com o intuito de oferecer a seus citadinos um lugar,
uma territorialidade, uma localização funcional.
No segundo capítulo “Contra-usos da cidade: as falas dos literatos como
subversão da cidade”, dialoguei com a poesia e principalmente com as crônicas, no intuito de
perceber como a cidade prevista nos códigos, nas leis e nos planos estruturais foi
cotidianamente implodida, sacudida, posta em desalinho pela linguagem delirante daqueles
que buscavam revirá-la, compreendê-la. A cidade dos poetas e dos cronistas está atravessada
por um sentimento de perda ante a impetuosidade implacável da modernidade. Os literatos
que desfilam nesse capítulo são termômetros para entendermos como se viabilizou uma
cidade invisível existente apenas como imagem e reminiscências.
No terceiro capítulo Uso-ficcional: a síntese de uma cidade marginal na obra
Meia-Vida de Oton Lustosa”, procurei traduzir uma cidade existente em uma obra de ficção,
mas atropelada por uma infinidade de discursos que tentam “coagular” a imagem de uma
cidade, de uma Teresina nos idos da década de 1980. As imagens articuladas pelo autor nos
dão conta de espaços e sujeitos marginalizados pela fadiga da condição que encerram como
corpos marcados e significados, tanto pelo discurso da cidade utópica, quanto pelo discurso
dos cronistas. Apesar de o autor sugerir uma empatia com esses lugares e sujeitos existentes
em sua obra, busquei articular outras compreensões, fazendo com que sua obra fosse rasgada,
tencionada para outros sentidos, em uma vontade que se revelou instigante e capaz de
multiplicar outras cidades.
Essa trajetória foi vasculhada pelo olhar daqueles que me ajudaram a construir
essa dissertação, nas conversas, nos debates, no exame de qualificação. Finalmente está
pronta, ou, como gostaria de dizer, quase pronta; pois, como construção teórico-metodológica,
não poderia, nem tenho a intenção de querer, que seja finalizada. Está, sim, aberta a
discussões, críticas, possibilidades… nunca acabada. Contudo, o que construí é fato e não
posso negá-lo, apenas convidá-los a apreciar como um conjunto de fotografias sobre a cidade
de Teresina, enviesadas por uma costura teórica e marcada por uma vontade, a de perceber
como a minha cidade foi historicamente pensada, traduzida.
Afinal, sei das dificuldades que uma análise que se pretende o abrangente pode
causar. Mas também a intenção de propor leituras, somente algumas a mais para o
reconhecimento da nossa historiografia; além, é claro, de, através dessa leitura, propor uma
caminhada pela cidade, visto que, após todos os caminhos que me foi possível percorrer,
reafirmo o desejo convidá-los a percorrer aqueles que resolvi traçar. São apenas alguns,
porém labirínticos, com atalhos e interdições, são corredores através dos quais proponho
caminhos.
CAPÍTULO I – USOS DA CIDADE: MAPAS, LEIS E PLANOS
ESTRUTURAIS COMO ESFORÇOS DE FIXAÇÃO DA CIDADE
Todas as cidades guardam seus segredos, seus destinos, sua forma de comunicar-
se com seus habitantes e, acima de tudo, mostram-se como um enigma a ser desvendado de
acordo com o olhar de quem as observa, podendo ser um caleidoscópio de escolhas, assim
como o é de problemáticas. Dessa forma, um dos campos de análise que perpassa o
entendimento da cidade é aquele preocupado com sua definição enquanto questão; ou seja,
com os enredos que foram montados e articulados por um saber ou por vários saberes
cruzados em uma tentativa de solucionar os problemas decorrentes de sua administração.
Nesse sentido, a preocupação com a análise da cidade moderna pressupõe que
possamos identificar os mais diversos discursos
1
que permitiram sua visualização, tanto como
materialidade quanto imagem, pois essas foram as maneiras indissociáveis de possibilitar uma
“escrita” da cidade, bem como de seus lugares e práticas, criando uma infinidade de tensões
sobre qual seria a melhor forma de inscrevê-la em uma ordem que fugisse ao que era
considerado caos, confusão e amontoamento, qualidades essas que desqualificavam a cidade,
mas que nem por isso deixaram de fazer parte dessa.
1
A expressão “discurso” é central nessa análise e refere-se às práticas que se tornam modo de pensamento, com
sua lógica, estratégia, evidência e razão própria. Ver: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo:
Loyola, 2001.
Conforme dito anteriormente, “uma cidade, antes de aparecer na realidade, existe
como representação simbólica” (PESAVENTO, 2002, p.262). Tal afirmação traduz uma
concepção que perpassa uma forma de entendimento do urbano, pois a cidade é uma imagem,
antes de tudo, idealizada, e, como tal, obedece a critérios configurados pelos vários sentidos
que lhe foram sendo atribuídos.
Diante dessas premissas, é possível dizer que Teresina não ficou indiferente a essa
tentativa de elaborações conceituais e mentais ao longo de sua existência. Como cidade
planejada, obedeceu a critérios e racionalidades próprios de sua época, utilizando soluções
que haviam sido testadas ou não, em níveis nacional e internacional, fortificando ainda mais o
mito atribuído, a partir do final do século XVIII, aos aspectos urbanísticos, utilizados na
tentativa de configuração de uma “civilidade” que tinha na organização urbana sua melhor
forma de existência.
A literatura, por meio da preocupação dos autores com a cidade enquanto
“questão urbana”,
2
formulou significativas contribuições para o entendimento das
formulações imagéticas das nações, no século XIX, especialmente naquilo que diz respeito às
formas de pensar e conceber o urbano. Deste modo, essas idéias foram objetivadas a partir de
diferentes instrumentos, tais como: anais, revistas especializadas, leis, decretos, códigos,
textos jornalísticos, manuais, conferências, que multiplicaram e fizeram circular
representações sobre a cidade ideal ou desejável.
Se essas representações existiram e foram ampliadas ao longo do tempo, no
sentido de saciar o desejo por parte daqueles que buscavam solucionar os mais diferentes
problemas urbanos, utópicos ou não, é possível questionar-se: Sobre quais medidas essas
diretrizes interferiram ou justificaram a criação e transferência da Capital da Província do
2
SALGUEIRO, Heliana Angotti (Org.). Cidades capitais do século XIX: racionalidade, cosmopolitismo e
transferência de modelos. São Paulo: EDUSP, 2001. p. 9-17.; BRESCIANI, Maria Stella Martins. (Org).
Imagens da cidade: século XIX e XX. São Paulo: Marco Zero, 1996. & SCHORKE, Carl E. Pensando com a
história: indagações na passagem para o modernismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Piauí para outros locais, que não a “decadente” Oeiras? Como esses saberes projetaram um
ideário urbano que se mostrou eficaz e duradouro na fabricação de uma cidade? Qual a cidade
fundada? Sob quais bases essa cidade assentou-se?
Perseguindo esses questionamentos e procurando esclarecê-los, tentaremos
analisar primeiramente os diversos vetores históricos que serviram de explicação para o
processo de definição e redefinição do espaço urbano de Teresina, procurando entender como
esse espaço foi criado, modelado e remodelado, buscando empreender uma cirurgia que se
mostrou eficaz no sentido de estabelecer limites, criar posições, destacar legislações, proibir
alguns usos e sentidos.
Notadamente esse se constituiria, a princípio, um trabalho hercúleo,
principalmente se objetiva empreender uma análise, nesse capitulo, de como a cidade-
conceito, ou seja, aquela criada pelo discurso urbanista (CERTEAU,1994), foi
progressivamente sendo desenhada e redesenhada pela vontade “urbanizante”, que atribuía
aos processos programados e combinados da sociedade a possibilidade de uma boa
administração. Mas, ao tempo em que se mostra uma tarefa árdua, tal empreitada permite
desconfiar das versões que, ao longo da história, foram sendo impressas sobre o nosso
processo de constituição urbana, na medida em que se faz necessário “problematizar tudo
aquilo que é posto como inquestionável, não aceitando nada como natural ou imutável, que
existe desde sempre e para sempre” (CASTELO BRANCO, 2005, p. 34).
Dessa forma, entendemos que o ideário da cidade-capital possivelmente estava
entranhado nas concepções de José Antônio Saraiva,
3
ao transferir a capital da Província da
“antiga” Oeiras para a margem do rio Parnaíba, nas terras da fazenda da “Chapada do
Corisco”:
3
Conselheiro José Antônio Saraiva (Santo Amaro-BA, 1823; Salvador-BA, 1895). Estadista, ministro e
parlamentar. Em 1850, foi nomeado presidente da Província do Piauí, tomando posse em setembro de 1850 e
dirigiu-a até março de 1853, quando transmitiu o governo ao vice-presidente Simplício de Sousa Mendes.
Fundou a cidade de Teresina com a transferência da sede de Oeiras.
Reconhecendo a condição da capital da província, a cidade de Oeiras,
resolveu o Sr. Saraiva edificar uma outra nas margens do rio Parnaíba, e,
apesar das dificuldades que se lhe opunham, apesar dos interesses locais
coligados que haviam embaraçado e contrariado intenções semelhantes de
alguns de seus antecessores, conseguiu a necessária autorização da
assembléia provincial. (SISSON, 2000, p. 35).
A definição de um espaço em detrimento de outro provém de uma série de saberes
que foi sendo expandido e aceito como verdade, fazendo com que alguns locais, a exemplo
de Teresina, tenham sido preferidos em relação a outros, conforme ficou constatado com
relação à antiga capital de Oeiras, tendo em vista que essa não mais atendia às exigências e
questões que perpassavam a reflexão urbano-territorial no século XIX. A “cidade racional”
deveria invocar atributos de salubridade, centralização geográfica e econômica e necessidade
de circulação:
[...] situada em terras pouco férteis e distantes do principal escoadouro
natural do território piauiense o rio Parnaíba não correspondia mais as
necessidades exigidas para uma cidade capital, cuja administração tinha
expectativas diferentes com relação ao papel que um centro urbano de tal
porte deveria desempenhar no contexto considerado. Com população pobre,
sem maiores perspectivas do que gravitar em torno do decadente comércio
do gado reflexo da situação econômica porque passava a província
Oeiras encontrava-se em franco processo de estagnação, processo que se
reproduzia igualmente na maioria dos pequenos núcleos urbanos piauiense.
(ABREU APUD FAÇANHA, 1998, p. 47).
A necessidade de um espaço higienizado, produtivo e centralizado, com vistas a
atender a um contingente considerável de pessoas e mercadorias, fez parte de um pensamento
próprio da segunda metade do século XIX, revelador da necessidade de romper com os
modelos coloniais, interessados em regenerar o tempo, utilizando novas formas de
aplicabilidade do urbanismo, próximos aos modelos europeus e da idéia de “civilidade”.
Neste sentido, a construção de Teresina, um acontecimento aparentemente local,
circunscrito à esfera de ação do Conselheiro Saraiva, revela-se exemplar, para entendermos as
implicações existentes entre urbanismo e arquitetura no final do século XIX no Brasil, além
de indicar uma forma de transferência dos modelos europeus, tão fecundos nas idéias
acadêmicas brasileiras daquele período.
Tais perspectivas são importantes para que possamos entender as projeções e os
modelos que permitiram a fundação de Teresina, e como essa foi representada nas concepções
urbanísticas, interessadas em oferecer uma visibilidade especifica:
Esta proposta de mudanças trouxe no seu bojo uma novidade, que foi o
planejamento da estrutura da cidade, isto é, foi concebido um plano de
construção da nova capital. Ao contrário de outras aglomerações urbanas que
surgiram espontaneamente, o “plano” de construção de Teresina previa sua
extensão, seu ponto central - a Igreja do Amparo a partir do qual deveriam
se orientar todas as outras medidas de demarcação da cidade de Teresina e o
traçado das ruas em linha reta, cruzando-se umas com as outras, dando-lhes
a forma de um tabuleiro de jogo de xadrez. (NUNES, 1999, p. 96).
A planta da cidade em forma de “tabuleiro de xadrez” associa geometricamente
duas forças opostas: o quadriculado e a diagonal, que orientam os sentidos inscritos em um
desejo de regularidade. A demarcação do patrimônio territorial de Teresina tendo como
marco zero a Igreja de Nossa Senhora do Amparo e medindo 1.500 braças para o sul e 1.500
braças ao norte, circunscritas a um plano que indicava as ruas, praças, instituições públicas,
cemitério, Casa da Pólvora previa um sistema baseado em um mapeamento que “era
consagrado pela tradição para as cidades novas (provavelmente devido à facilidade do
loteamento), funcionando, na prática, durante todo o século XIX” (SALGUEIRO, 2001,
p.155).
Foto 1 Conjunto de Mapas sobrepostos (de baixo para cima): a) mapa atual de
Teresina; b) mapa da fundação da cidade; c) marcos de delimitação do terrotório de
Teresina à época da fundação.
Fonte: Iracilde M. Moura Fé, 2000.
O modelo utilizado na planta da nova capital registrava também uma preocupação
com a localização funcional dos espaços, sendo possível percebermos que o centro urbano foi
designado para a construção de prédios significativos, para o poder público e religioso, além
de ser local residencial das famílias abastadas vinda de Oeiras e dos prósperos comerciantes
da “antiga” Vila do Poti. As zonas mais distantes foram habitadas por uma população pobre.
Essas intenções já eram perceptíveis nos discursos fundadores de Saraiva:
Não me ocupo em descrever as vantagens e belezas da localidade porque V.
Excia. me acreditará nesse ponto sem ouvir razões, e pela planta conhecerá
que a Vila se começará muito regularmente. Nessa planta fiz uma mudança
e foi fazer sair na grande praça três ruas em lugar de duas, formando três
quarteirões dos dois que existem na mesma planta. Os seis quarteirões da
grande praça estarão ocupados por belas casas, antes do ano, porque pessoas
muito abastadas vão principiar suas moradas e um desses quarteirões tem
todos os alicerces para uma grande propriedade, que seu dono promete
acabar antes de seis meses. (SARAIVA apud CHAVES, 1996, p. 166-167).
Essa distribuição funcional do espaço remete-nos a uma idéia de maquiagem da
imagem urbana, através da qual os discursos fundadores da nova capital promoveram uma
distribuição espacial que se tornou uma tônica, utilizada tanto no sentido de oferecer modelos
para outras formas de intervenções na cidade, como também no sentido de informar uma
representação urbana, baseada em uma tentativa de manter separadas as “confusões” advindas
da aproximação dos corpos “estranhos” e das práticas nocivas a uma “boa convivência”.
Essa construção da cidade mostrou-se adequada dentro dos preceitos de uma
imagem moderna, pois atendia a um conjunto de idéias básicas, advindas da experiência
urbana européia da segunda metade do século XIX, a qual correspondia às necessidades de
salubridade, centralidade e mobilidade:
Saraiva respondia que o, entendendo que sem a presença do governo à
margem do Parnaíba, dificilmente se conseguiria esse intento.
Preponderaram as razões apresentadas por aquele estadista: situação cômoda
e agradável; possibilidade de tirar a Caxias todo o comércio com o Piauí;
proximidade de Parnaíba, podendo servir ao desenvolvimento da navegação;
mais fáceis relações políticas e comerciais com a corte e demais centros de
civilização do Império; ponto de convergência de zona própria para
agricultura, assegurar conveniente direção aos produtos agrícolas; finalmente
a nova vila do Poti era a única localidade que prometia florescer à margem
do Parnaíba e habilitar-se em menos tempo passar a capital da província
(SARAIVA apud CHAVES, 2005, p. 28).
Mesmo devendo obedecer a essas referências modernas, faz-se necessário
esclarecer que, durante o processo de construção da cidade, não houve um controle eficiente
em sua realização, durando, portanto, mais do que o tempo previsto para sua efetivação
(COSTA FILHO, 1988, p.22). Entretanto, o que queremos salientar é que este processo
marcou uma conjuntura urbana que significou uma tentativa de, como em outros lugares,
“aumentar a mobilidade, obedecer ao máximo às ligações funcionais, respeitar o equilíbrio da
centralidade para fazê-lo funcionar melhor” (LEPETIT, 2001, p.60).
Essas considerações, a principio, permitem que possamos entender que a
idealização de Teresina e sua posterior concretização urbana pertenceu a uma conjuntura na
qual podemos ressaltar a importância dada à transferência dos modelos europeus; porém, essa
tarefa mostrou-se indissociável das transformações e dos diferentes reempregos que foram
sendo implantados, diante das necessidades e das lógicas próprias que iam sendo orientadas
pelas práticas locais.
Nesse caso, é possível salientar que a cidade, enquanto artifício e molde, passa a
ser uma imagem racional, prevista nos mapas e nas localizações funcionais, provenientes, em
alguns casos, de um arsenal teórico e estratégico, na maioria das vezes, transferidos de outros
lugares. Porém esses serão sempre adaptados, mas também deslocados, pois o processo de
apreensão da cidade é determinado também por suas lógicas internas. Entender esses
mecanismos é enxergar as fraturas existentes entre o modelo idealizado e as condições de
existência, onde se revela um mundo de desejos, de representações e expectativas,
mobilizador de um número ilimitado de significações para os mais diferentes sujeitos.
Essas representações foram viáveis em virtude da ampliação dos saberes, a partir
da segunda metade do século XIX, quando se pôde constatar uma preocupação com a
especialidade profissional e técnica. O desenvolvimento da figura do especialista, nesse
período, passou a significar e a definir os rumos da administração aliada ao discurso da
cientificidade, sendo utilizado largamente pelos ideais urbanísticos (TOPALOV, 1996, p. 36).
Podemos constatar essas discussões no relatório apontado por Saraiva, ao tempo de sua
viagem de apreciação da navegabilidade do rio Parnaíba:
Permita que eu, sem ser profissional em tais matérias, aventure sobre essa
navegação algumas idéias que me foram sugeridas pela viagem e
informações que obtive estudando suas dificuldades e as causas pelas quais
semelhante navegação se não tem desenvolvido. O rio Parnaíba, do lugar
denominado Mulato, onde me embarquei, até a cidade do mesmo nome,
percorre uma extensão de 130 léguas pouco mais ou menos:Em toda esta
distancia conserva no tempo da mais rigorosa sêca um leito profundo que se
presta facilmente até à navegação a vapor. Os obstáculos que se devem opor
a essa navegação são os seguintes: 1- Mudança anual no canal do rio; 2-
Grande correnteza; 3- Baixios; 4- Pedras no leito do rio. São esses os
obstáculos que esmorecem e definham a navegação do Parnaíba. (SARAIVA
apud CHAVES, 1998, p. 168).
Assim, a construção da cidade visível necessitou de um aparato de racionalidade,
articulado à preocupação com os lugares, seus entraves e facilidades, ou com qualquer forma
que fugisse às noções de beleza e funcionalidade. Deste modo, ao utilizar os saberes do
mestre João Isidoro da Silva e França e do engenheiro João Nunes de Campos (NUNES,
1981, p.102), na construção de prédios públicos centrais na nova Capital, as implantações dos
valores urbanísticos mostraram-se essenciais na projeção da sociedade que se desejava
implantar; do mesmo modo, esses valores possibilitaram os códigos pelos quais viriam a
interferir na forma como os indivíduos conduziriam suas ações marcadas pelo gosto do
“novo” e suas implicações com as idéias de “civilidade” e “progresso”.
Foto 2 – Praça Marechal Deodoro no início do século XX.
Fonte: Arquivo Público.
Portanto, era justificável a preocupação de Saraiva quando incentivou “[…] a
beleza e a estética dos prédios públicos do centro da cidade” (NUNES, 1981, p.107), fazendo
uma leitura que se traduziu em uma vontade capaz de transpor as fronteiras que se mostraram
preocupadas ou tentaram, sem sorte, seu impedimento. A nova Capital deveria traduzir os
recentes ideais de moradia, saúde, e de demonstração de poder, produzindo uma “[...] tomada
de consciência, própria do tempo, de que era preciso romper com o passado, fazer
transformações como as que ocorriam por toda parte, adotar medidas modernas de urbanismo,
próximas daquelas dos paises do “mundo civilizado” (SALGUEIRO, 2001, p.136).
Foi sob o golpe desses saberes e a envergadura do discurso-utópico que as
imagens da cidade foram sendo traçadas e tornaram-se atrativas para um número considerável
de pessoas que para aquele centro eram atraídas. Segundo as pesquisas de Abreu, em 1854,
havia oito mil habitantes em comparação com um ano antes da fundação –1851 quando
viviam na Chapada do Corisco somente 49 pessoas (1983, p.10) .
Daí refletirmos que o discurso urbanístico e de modernidade,
4
ampliados na
efervescência do pensamento urbano do século XIX, foi capaz de interferir e atrair a cada ano
um contingente considerável de pessoas em busca da realização dos seus mais distintos
sonhos, fazendo com que as representações da cidade-conceito, dos mapas, e das localizações
tenham sido partilhadas de diversas formas pelos que viam neste “modelo” a capacidade de
concretização dos seus desejos.
Desta forma, a cidade-capital cumpria sua função ao transformar-se em um centro
de atração, devido aos aspectos que demonstravam a sua visibilidade adquirida com uma
topografia acentuada além da construção de monumentos administrativos e religiosos na
área central do sítio, que se tornavam focos importantes e facilitadores de uma empatia com o
projeto de uma nova Capital.
4
Sobre modernidade enquanto fluxo intenso de desintegração e renovação, é interessante perceber as análises de
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
O plano arquitetônico inicial, em forma de “tabuleiro de xadrez”, com o tempo,
cedeu lugar a outras topografias, fazendo com que os limites fossem ampliados, o que
decorreu do fato de que “às vezes o tabuleiro de xadrez universal, antigo e racionalizante,
impropriamente se acomoda à paisagem, não conseguindo evitar as interrupções de ruas, os
barrancos, os fundos de vale não tratados” (MARX, 1980, p.46). Segundo Lima, a primeira
expansão oficial do sítio urbano de Teresina deu-se em direção à zona Norte, após a
“desativação do cemitério primitivo no Alto da Jurubeba e após a construção do cemitério São
José […]. Esta correspondeu à primeira quebra na planura do relevo, ao transpor um vale
(grotão) com grandes blocos de pedras roladas” (2002, p.187).
Se a planura do sitio inicial dava lugar às transgressões, fazia-se necessário,
perenemente, ancorar regras e limites, suficientes para manter o fortalecimento dos ideais de
racionalidade e planejamento; para tanto, foi importante o uso de posturas municipais,
códigos, decretos, portarias, além de
proibições com penas, multas e prisões tornavam-se medidas utilizadas no
decorrer do processo de ação civilizadora que passaram por questões tais
como: limpezas externas das casas pois pelo menos uma vez no ano os
proprietários eram obrigados a caia-las; a proibição do uso de ceroulas a
quaisquer pessoas que transitasse pelas ruas; proibição de enterrar cadáveres
na Igreja; deixar gado vacum ou cavalar, cães e porcos soltos pelas ruas e
praças; lavagem de roupa nos poços públicos do centro da cidade; andarem
embriagados pelas ruas; fazerem vozearias, tumultos, algazarras ou
proferirem palavras obscenas ofensivas à moral. (ARAÚJO, 1996, p. 64).
Tais medidas, adotadas no início da existência de Teresina, revelam uma
preocupação com o espaço urbano e seu consumo
5
pelos mais diferentes sujeitos. Por sua vez,
a elaboração de normas prescritivas de utilização dos espaços denotou um viés de percepção
da cidade, que passou a pensá-la e classificá-la a partir da utilização e projeção de vários
saberes, tais como: o médico, o higienista, o urbanista, o jurídico, entre outros.
5
Para Certeau, o “consumo” é sempre astucioso, disperso e silencioso, se tivermos como pressuposto o “uso”
que é sempre uma produção racionalizada e barulhenta. Ver: CERTEAU, Michel. Práticas de espaço. In: A
invenção do cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis-RJ: Vozes. 1994. p. 169-217.
Esses domínios, ao cruzarem-se passaram a ter lugar na espacialidade da cidade,
além de comunicarem outras formas de apreensão do Outro, formando um “corpus” de
conhecimento, ao inscrever o humano em categorias prévias de entendimento, formulando
“saberes” que previam um arcabouço de idéias sobre o que fosse urbano e sobre as melhores
formas de apreendê-lo. Uma dessas formas de saber alinhavada, desde o início da
transferência da capital de Oeiras para Teresina e ampliada sob o cânone da racionalidade e
do planejamento, foi o pensamento higienista, na medida em que esse saber
[...] está plenamente constituído, impondo também parte das coordenadas a
outro novo domínio de conhecimento o urbanismo. Em seus começos, a
idéia sanitária alia a teoria médica do meio ambiente às possibilidades da
técnica para, modificando áreas consideradas insalubres, evitar a eclosão dos
surtos epidêmicos que voltaram a devastar a Europa nos anos de 1830.
(BRESCIANI, 1996, p. 44).
As disposições desses saberes unidas à idéia de beleza e estética foram
prerrogativas inerentes ao planejamento e à construção da cidade-conceito. Segundo Araújo
(1996, p. 63), essas normas de higiene foram fartamente exploradas, no sentido de manter as
conveniências urbanas, como a exigência de serem as ruas “limpas todos os sábados por seus
habitantes sob multas de 500 réis” (Id. ibid.). Dessa forma, concordamos com Bresciani
(1996, p. 46), que esclarece:
O urbanismo nasce no interior de uma intenção racionalizadora da
materialidade da cidade e se impõe como domínio de saber que possibilita
articular a potencialidade de crescimento imprevisível (todos seus conflitos
incluídos) como o horizonte finito da cidade. (1996, p. 46).
Sob este aspecto, a necessidade de regular um imprevisível “caos urbano” foi uma
das principais tônicas que nortearam o pensamento e a cultura urbana implantada em
Teresina. A certeza de uma concepção estética funcionalista, capaz de solucionar todos os
“males sociais” perpassou o desejo de um ambiente que fosse, na medida do possível,
disciplinado para conter a “desordem humana. Essa “leitura” racionalizadora do espaço
constituiu uma das principais facetas que nortearam o viver e a prática urbana em Teresina,
como também guiou outras que tiveram sua lógica urbana atravessada por um imaginário
social capaz de elaborar regras, no sentido de indicar o que uma sociedade deveria ser ou
não. Esse imaginário social, como se sabe é
[...] uma das forças reguladoras da vida coletiva, porque é através dele que
uma coletividade designa sua identidade, elabora uma certa representação de
si, estabelece a distribuição de painéis e das posições sociais, exprime e
impõe crenças comuns e constrói uma espécie de código de ‘o bom
comportamento’, designadamente através de modelos formadores, tais como
o do ‘chefe’, o ‘bom súdito’[…] e poder-se-ia acrescentar, especificamente
constrói o código do modo de vida urbano. (SOUSA apud BAZCKO, p.
108).
Esses códigos estão representados, em nossa análise, através das representações
gráficas, como, por exemplo, os mapas e os diversos saberes que foram sendo utilizados,
visando o controle da vida coletiva, criando uma gama de legislações, no sentido de moldar
os indivíduos aos espaços. Essas normativas que tinham como pressuposto a criação de um
elo entre os mais variados desejos e a necessidade de manutenção de uma ordem; somente
existente devido à predisposição e à aceitabilidade de outrem. Uma outra face visível dentro
dessas perspectivas foi a utilização da força e da violência como marcas utilizadas para
ajudar na construção das imagens da cidade ordenadora.
Araújo faz uma análise das instituições assistencialistas que, utilizando um
programa panóptico (Foucault,1999), criou uma série de dispositivos que visavam “educar os
meninos pobres e tinham também, entre os seus objetivos, ordenar o espaço urbano de
Teresina, auxiliando, assim, no controle da pobreza da Província” (1995, p. 87).
Desse modo, as preocupações em sanear o espaço, livrando-o de todas as
“poluições”, isto é, de tudo aquilo que prejudicava a visibilidade da cidade e dos seus lugares,
assumiram em muitos momentos uma faceta cruel, pois era necessário investir em
dispositivos que pudessem adequar os sujeitos aos padrões, normas e condutas estabelecidos
pelo poder vigilante e disciplinador. Disto decorreu que
pelo imaginário dos teresinenses perpassava a ânsia por uma cidade
‘progressista’ e ‘civilizadora’. Daí a preocupação de limpar as ruas e os
locais onde os homens e mulheres pobres, os órfãos, os mendigos e os
loucos viviam. Neste contexto, foram criados, além do colégio dos
Educanados Artífices, outras instituições assistenciais, como o Colégio dos
Órfãos, a santa casa de Misericórdia, o Asilo dos Alienados e proposta a
criação do Asilo de mendicidade […] Essas obras, muito embora
apresentassem um atendimento diferenciado, tinham um objetivo comum:
organizar o espaço urbano da cidade e controlar sua população miserável,
mantendo, dessa forma, Teresina como a imagem de ‘cidade higiênica e
civilizada’. (ARAÚJO, 1995, p. 102).
Mapear essas trajetórias definidoras e produtoras de poder
6
caracteriza visualizar,
no âmbito do discurso, as diversas formas de manutenção e controle da sociedade e do espaço,
além de serem relevantes para o entendimento de como algumas instituições inscreveram um
conjunto de códigos e disciplinas que se estenderam ao longo do corpo daqueles que foram
taxados de “delinqüentes”, ou daqueles que necessitavam ser maximizados para a produção,
legitimando-se, assim, a necessidade de um arsenal de meios coercitivos e punitivos.
Os aprimoramentos desses saberes e das práticas punitivas foram essenciais,
conforme demonstram as posturas municipais de 1867, para a definição dos lugares e das
interdições referentes aos aspectos visíveis das moradias, pois essas deveriam apresentar-se
sob os aspectos referentes ao asseio e à limpeza, demonstrando uma preocupação com a
existência dascasas de palha” e a necessidade de serem paulatinamente trocadas por telhas,
que serviam para demonstrar e significar o corpo físico de seus moradores em um imaginário
preocupado com a localização e a fixação dos seres e dos lugares.
Desse modo, a cidade-conceito figura enquanto permanência e desejo,
necessitando constantemente de vigilância, por parte daqueles que viam (e vêem) nas
pequenas brechas urbanísticas um motivo de constante preocupação. Essa vontade de saber,
de fornecer limites, de indicar sentidos e interdições foi responsável pela censura dos “corpos
estranhos” dentro de uma organização imagética urbana.
6
Para Foucault, o “poder” é um emaranhado de posições, onde não podemos detectar uma centralidade; sendo
assim, esse se apresenta difuso e complexo. Ver: FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 15. ed. Rio de
Janeiro: Graal, 2000.
Segundo Nascimento (2002, p. 213), houve algumas posturas, como as criadas
nos anos de 1867 e 1910, que proibiam em seus artigos a construção das casas de palha em
zona urbana. Esses dispositivos legais, enquanto expressões do poder municipal, tinham a
finalidade de “limpar paulatinamente a zona urbana de construções que levassem a palha e o
talo de coco” (Id. ibid.).
Os anos de 1866 e 1910, foram historicamente marcados pela utilização da
iluminação pública a querosene e pela implantação da iluminação elétrica respectivamente.
Esses símbolos da modernidade favoreceram uma forma mais refinada de exposição das
pessoas aos locais públicos, agravando ainda mais a preocupação com a visualização e a
estética dos lugares, que, na sua grande maioria, negavam ou frustravam na prática os
projetos daqueles que desejavam a cidade mais racional e funcional.
No código de Postura de Teresina aprovado em 1939, estava implícita a proibição
ao uso da palha, apontando como adequada à cobertura das casas materiais que não fossem
fáceis de deteriorar ou de provocar combustão. Essas restrições, aliadas às definições de um
lugar para as moradias populares nas zonas suburbanas, apontam “[...] um certo elitismo.
Separa ricos e pobres, quando indica onde se podem ou não construir casas populares. A
legislação tem a pretensão de afastar os pobres para longe da zona central da cidade”
(NASCIMENTO, 2002, p. 225).
Essa constatação deixa transparecer que “sempre existe uma cidade ideal dentro
ou sob a cidade real, distinta desta como o mundo do pensamento o é do mundo dos fatos”
(ARGAN, 1998, p. 73). Mas esse dilema mostra que a cidade é uma construção preocupada
largamente com sua visualização, sendo necessário determinar uma infinidade de regras que
tornem o seu conjunto reconhecível e fácil na prevenção dos problemas. A busca por uma
fisionomia da cidade não atrapalhou a concentração de dispositivos, que, em muitos casos,
revelaram-se autoritários e segregadores; pelo contrário, mostrou um campo fértil pronto a ser
utilizado caso houvesse necessidade.
Dessa forma, os freqüentes e violentos incêndios ocorridos na parte periférica de
Teresina, durante as décadas de 30 e 40 do século XX, mostraram-se espectros de um quadro
desolador, onde se pôde constatar a utilização do fogo como mecanismo de destruição de uma
quantidade considerável de casas de palha, fazendo com que uma parcela significativa
daquelas pessoas passasse a viver em estado de absoluta miséria, dependendo em muitos
casos da caridade de outras. Dessa forma, podemos acrescentar que a intencionalidade ou não,
que atravessou os discursos de culpabilização por esses atos, não escondem, aliás, que as
casas de palha “poluíam a visão da cidade desejada, a cidade dos sonhos” (NASCIMENTO,
2002, p. 308).
Foto 3 A cidade sob o fogo: modernização e
violência policial em Teresina (1937-1945).
Fonte: Aureliano Müller. In: NASCIMENTO, 2002.
Nesse jogo entre o visível e o invisível, foi reveladora a necessidade de utilização
dos símbolos considerados modernos, mostrando-se uma permanente estratégia utilizada no
sentido de “fazer crer” que a construção e a projeção da cidade-desejo
7
era possível, mesmo
em meio às oscilações econômicas que fizeram parte do painel piauiense, demonstrando ser
possível um esforço significativo no sentido de oferecer ao espaço urbano atrativos
condizentes com sua situação de cidade-capital.
Por conseguinte, desde o final do século XIX e as primeiras décadas do século
XX, nos foi possível perceber a vontade que incluía uma
política de saneamento e desobstrução das ruas, possibilitando ampliar a
circulação de pessoas e mercadorias. As vielas estreitas deveriam ser
substituídas por largas avenidas e por praças urbanizadas onde as
sociabilidades refinadas pudessem fruir sem embaraços. (CASTELO
BRANCO, 2002, p. 308).
A inserção da cidade nos modelos e ditames das experiências ocorridas em outros
centros urbanos, em nível nacional ou em nível internacional, revela uma atitude de ruptura
com os padrões considerados antiquados ou ultrapassados, com relação aos que não
estivessem próximos daqueles considerados civilizados ou de “bons modos”. Essa postura, no
entanto, mostrou-se historicamente limitada, pois “o passado e as formas de sociabilidades
tradicionais vivas e reais, no cotidiano, estavam ali próximos, mostrando a realidade e os
limites da inserção da urbe no mundo moderno” (CASTELO BRANCO, 2002, p.308).
Porém, se Teresina mantinha-se limitada por suas condições reais de existência,
com claros impedimentos típicos de uma cidade que ainda continha rastros coloniais, faz-se
importante que possamos observar os desejos, os ideais e objetivos que iam significando o
espaço urbano. Nesse sentido, a construção de uma infinidade de valores passou a significar
os espaços como “bom”, “civilizado”, “próspero” e condizente com um gosto estético cada
7
A expressão “cidade-desejo” refere-se a uma das facetas da cidade, aquela que designa a maneira como
subjetivamos a nossa cidade a ponto de transformá-la em nosso mundo, fazendo-a tensionar entre a cidade do
discurso utópico e aquela que desejamos.
vez mais refinado, conforme atestaram os jardins, cinemas, cafés, coretos, arborizações, em
detrimento daqueles marcados pelas noções de desleixo e “incivilidade”, conforme estavam
expostos: a sujeira, a insalubridade, os odores nauseabundos, que se alastravam por rios
pontos da cidade nas primeiras décadas do século XX.
Se a busca pela obtenção desses sabores refinados ganhava a cada dia um
diversificado grupo de consumidores, atentos às novidades trazidas pelos recentes magazines,
periódicos, mostruários, manuais, jornais, e outros, devia-se ao fato de que essas
sociabilidades impulsionavam uma forma de “ver” a cidade, enquanto espaço de apropriação
das mais diversas formas de convivência, responsável em agregar e atrair uma parte
considerável de oportunidades e desejos.
Mas se essas apropriações da cidade tornaram-se uma tendência subjetivada na
vontade de participação em alguns lugares da cidade e em determinadas formas de
sociabilidades, cada vez mais presentes no cotidiano de um número significativo de pessoas,
fazia-se necessário que o espaço urbano
8
também acompanhasse essas perspectivas; sendo, ao
mesmo tempo, metáfora e materialização de um conjunto de possibilidades, capazes de reunir
e atrair as virtudes e os vícios condizentes com o desenvolvimento dos “monturos” da
vaidade, ou seja, a cidade como expressão de onde prolifera domínio e fascínio.
Nesse sentido, diante da maximização na orientação da aparência, foi necessária a
busca pelas extrapolações aos limites territoriais do que era denominado, na véspera do
centenário do aniversário da cidade, de antigo Plano Saraiva, pois a planta racional e alinhada,
muito havia perdido suas definições, e não acompanhava os desejos e projeções de um
viver urbano moderno, além de mostrar-se em desalinho, em confusão, dentro dos moldes de
uma cidade planejada e organizada. Era necessário rever, assim, as brechas, os buracos, os
8
O espaço urbano refere-se a um conjunto fragmentado e articulado da cidade onde podemos perceber os
diferentes reflexos e condicionantes sociais. Ver: CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo:
Ática, 1999.
locais infames que fugiam aos traçados perpendiculares; era preciso ampliar os antigos locais
e territorialidades conhecidas, condensar uma imagem frente as intempéries da cidade-usual.
9
Se, por um lado, o poeta H. Dobal refere-se a uma cidade ainda intocada, no
percurso de um centenário, pela especulação imobiliária (NUNES, 1995, p. 209), por outro
lado, não se pode dizer que já não acontecesse no seu seio as armadilhas e o desejo fervilhante
de tornar-se sempre outra. Esse fato tornou-se perceptível devido às várias propostas de
reformulação do espaço, acrescentadas pelo engenheiro Luís Pires Chaves; propostas que
visavam novas adaptações ao “antigo” traçado, com medidas onde incluíam a reformulação da
Avenida Antonino Freire, além de um novo redimensionamento da largura das ruas, que,
segundo Nascimento, apresentavam três problemas: edificação, arborização e circulação
(2002, p. 140).
As comemorações do centenário da cidade (MENDES, 2002, p.7) passaram pela
vontade de mover-se em meio aos desejos de uma nova qualificação urbana, que incluía uma
demonstração à população e aos visitantes uma imagem da cidade, que passava por sua
inserção nos tempos “modernos”. Assim, foram perceptíveis na construção dessa visibilidade
as melhorias ou remodelações implantadas na Praça Saraiva (onde a estátua do Conselheiro
Saraiva foi erguida, em uma clara menção aos projetos e ideais que deveriam continuar, bem
como a manutenção da memória de uma cidade organizada), além da inauguração do Hotel
Piauí, um ícone da modernidade para o período, construído diante da necessidade de receber
viajantes e pessoas que vinham por diferentes motivos de trabalho a Teresina.
9
Uma outra faceta da cidade é aquela que dominamos de cidade-usual, ou seja, aquela que se caracteriza por
apresentar-se em contraste com as definições, normas e racionalidade da cidade-conceito. É aquela que se abre
ao “consumo” dos urbanistas, sem preocupar-se com os “usos” que são designados.
Foto 4 – Arco decorativo alusivo ao Centenário de Teresina, Praça Pedro II, 1952.
Fonte: Aureliano Müller. In: Revista Teresina Ontem e Hoje, jan. 2002.
Tais ideais progressistas e urbanísticos, implantados com a função de promover
arranjos e rearranjos estéticos na materialidade da cidade, e com uma preocupação em definir
saberes, em sua grande maioria estão ligados a uma necessidade de qualificar uma
“desordem”, ou seja, são projeções racionalizadas nas quais o importante é responder às
questões estéticas, sem levar em conta o impacto social (CHOAY, 2003, p.8-9). Com base na
realidade estudada, podemos dizer que foram esses princípios que influenciaram uma visão do
urbano, relevado a um conflito entre aqueles que assumem a administração da cidade, de
forma a afastar os “perigos” que possam torná-la inadequada aos padrões de uma
racionalidade técnica, e aqueles que a praticam sem necessariamente “ler” todos os seus
códigos de proibições e permissões.
Assinale-se que àquele que ignorasse esses códigos estavam reservadas variadas
punições criminais e posturais, bem como lugares como o Sanatório Meduna, inaugurado em
1954, dois anos após as festividades do centenário de Teresina, e que tinha como “pacientes”
uma quantidade de pessoas taxadas de loucas e insanas, e que, em sua grande maioria, eram
consideradas “deslocadas sociais”, pois não se encaixavam nos perímetros (ou parâmetros) da
cidade-ideal,
10
nem participavam euforicamente da construção da cidade-conceito. Assim,
para os “delinqüentes”, “vagabundos”, e outras subjetividades errantes que insistiam em
dilapidar o patrimônio público, foi construído um sólido monumental, com “oito pavilhões,
dois tios, um edifício com dois andares e 120 leitos” (TAVARES, 2000, p.75). A
monumentalidade servia para marcar e assinalar com a clausura e o tratamentos de choque
quão “irracionais” eram aqueles que se mantinham distantes da “leitura legal” da cidade.
Entre as preocupações estéticas urbanas e a variedade de maneiras para sustentá-
las, a cidade-conceito foi adquirindo bases e estruturas que moldavam a construção de uma
cidade moderna, a qual, com o tempo, tornou-se um centro de referência para aqueles
ofuscados pelo brilho fugaz das oportunidades e concretizações dos seus sonhos relacionados
ao trabalho, educação, saúde e habitação. Esses atrativos foram eficazes para a confecção de
uma “metrópole”, somente existente ao nível do imaginário, conforme puderam demonstrar as
propagandas veiculadas pelo governo estadual na década de setenta do século XX, dando
ênfase e intensificando uma política habitacional, além da modernização do sistema viário e
da preocupação com estudos para a elaboração do planejamento e ordenação da cidade.
A monumentalidade do Sanatório Meduna, na década de 1950, indicava o destino
das grandes obras que seriam implantadas no Piauí, principalmente com o surto
desenvolvimentista do “milagre brasileiro”. A ferocidade, o arrojo, e um bom investimento
em propaganda e marketing foram indispensáveis para a invenção de uma “metrópole” e a
definição de um gosto que incluía a participação nas aventuras do que era considerado,
naquele momento, sinal visível da entrada da Capital aos domínios da modernidade, fazendo
10
O que articulamos como “cidade-ideal” é apenas uma extensão subjetiva da cidade-utópica. É ainda a
maximização da vontade de racionalidade.
circular entre a população a constatação de que, para ser moderno, eram necessários
investimentos “megalomaníacos” em obras que mostrassem uma visibilidade, que denotassem
a grandiosidade que Teresina, desde seu plano inicial, estava determinada a ser.
O aumento considerável na materialidade da cidade, devido ao surto
desenvolvimentista, foi responsável por um notável investimento em estradas, asfaltamento e
urbanização das principais vias públicas, telecomunicações (com a entrada no ar da TV Rádio
Clube em 1972), energia elétrica (com a criação de um Terminal de Petróleo em Teresina), e
fomentos à indústria e ao turismo. Segundo um balanço do jornal Meio Norte de 12/03/2005,
nos anos 1970 houve, em Teresina, a realização de obras, tais como: o alargamento da
Avenida Frei Serafim, a ampliação da Miguel Rosa, a construção do Estádio Albertão, da
Maternidade Evangelina Rosa, do Terminal de Petróleo, da ponte do Poti, além, do
asfaltamento do centro da cidade, da ampliação do Hospital Getúlio Vargas e da reforma da
Praça Pedro II. A bonança de tais obras e os altíssimos investimentos consolidaram a imagem
de Teresina como “cidade-futuro”, slogan inclusive utilizado em recente propaganda do
governo municipal, notabilizando sua vocação de cidade “racional” e esteticamente moderna.
A maquiagem da cidade-capital atraiu levas de pessoas que aqui começaram a
aportar, tanto vindas de outras cidades interioranas como também de outros centros urbanos.
Com isso, o fluxo considerável de imigrantes provocou um inchamento desordenado em todas
as direções, sendo visível a presença desse contingente em áreas que foram subtraídas dos
perímetros da cidade-conceito. Assim, houve a busca por locais comoas pontes, as margens
das lagoas e dos rios Poti e Parnaíba, as praças, os leitos de ruas, os morros, os terrenos
baldios; as matas fechadas e distantes tornaram-se viáveis, seja pelas facilidades de ocupação
(estão fora do controle urbano), seja por circunstancias aleatórias” (LIMA, 2003, p. 40).
Porém era notório, nas matérias jornalísticas, que, aliadas às altas estatísticas
populacionais, somavam-se elevadas taxas de desemprego e falta de moradia; dessa forma, a
construção de uma “metrópole imaginária” somente existiu enquanto desejo, ou mesmo,
enquanto vontade de participação em um mundo que refazia e desfazia os seus códigos
urbanos com uma grande velocidade. Isso foi capaz de sistematizar formas multifacetadas de
existência, multiplicando as formas de vivência, como pôde ser demonstrado por
um progressivo e irreversível processo de verticalização, com o crescente
aumento de enormes edifícios que passavam a ocupar, intensamente, espaços
vazios, em áreas nobres da cidade, conjugando à construção de conjuntos
habitacionais nos lugares mais longínquos da periferia, alterando
sensivelmente a paisagem. (LIMA, 2003, p. 48).
Por sua vez, a imagem da cidade foi confeccionada em meio a um emaranhado de
conflitos e tensões; teias onde se pode observar, por um lado, a presença de discursos que
viabilizam e oportunizam uma visibilidade da cidade com seus planos e planejamentos; e, por
outro lado, a presença de um contingente considerável de pessoas que reivindicam a
participação nessa trama, seja para utilizá-la enquanto estratégia para futuras lutas,
subvertendo seus códigos, seja para consumi-la como matriz e vitrine do novo, da novidade.
Esse conflito assinala uma forma de percepção da cidade, o que nos estimula a
dizer que o estudo cultural da cidade eminentemente valoriza os sonhos, os desejos daqueles
que procuram oferecer uma determinada face da cidade frente ao caos, representado pelo
projeto da modernidade que a tudo assimila (PESAVENTO, 2004). Deste modo, os projetos
urbanísticos primam por projetar e congelar uma imagem frente aos devaneios e frivolidades
da modernidade. Mas é importante que possamos observar:
Nem tudo o que é programação projeto e planejamento é urbanismo; mas
nem por isso se pode dizer que o urbanismo representa apenas um
determinado setor no âmbito da programação global, que é, ou deveria ser, a
norma pragmática de todos os regimes políticos democráticos. Seu campo de
operação é toda a esfera social e nem esta porque, a rigor, a realidade que
a disciplina urbanística assume como estruturável e se propõe estruturar é o
mundo inteiro considerado oiké, habitação do homem. (ARGAN, 1998, p.
212).
Dessa forma, os diversos planos e planejamentos estabelecidos com o objetivo de
organizar as confusões, o caos urbano, foram sendo implantados com o propósito de corrigir
as falhas, as brechas decorrentes da falta de preparação para uma explosão populacional.
Dessas investidas, ficaram visíveis o Plano Diretor Integrado (PDLI) de 1969, e o Plano
Estrutural de Teresina (I PET) de 1977, além do II Plano Estrutural de Teresina (II PET) de
1988. Estes planos assinalavam projeções que visavam realizar, no campo espacial da cidade,
transformações ao definir os fluxos, estabelecer configurações, indicar locais, zoneamentos e
densidades populacionais.
Sobre os problemas urbanos e a ocupação espacial de Teresina na década de 1970,
pudemos perceber que
a ocupação de Teresina, naquela época, era caracterizada pela concentração
de atividades no centro urbano, definindo um modelo radioconcêntrico com
intenso fluxo de interesses e conseqüente congestionamento de um único
pólo. Do ponto de vista da configuração espacial, a urbanização foi realizada
segundo um modelo de crescimento urbano extensivo, isto é, de crescimento
nas margens da cidade […] com um centro, e uma periferia tentacular em
contínua expansão. (DIAS, 2003, p. 22).
Para contornar esses “problemas estruturais”, foi necessária a utilização de
soluções que se mostraram tendentes a delimitar áreas de conflitos e a estimular novas
direções, principalmente para a zona Leste da capital, porém, a proposta geral objetivava
a descentralização da dinâmica urbana […] muita intensa no centro da
cidade, incentivando-se a ocupação da zona leste a fim de evitar a o atual
estrangulamento das funções urbanas entre os dois rios. Nesse sentido, era
proposto um modelo em que fossem estimulados pólos de interesse
interligados pelos sistemas viários. Este, por sua vez, definiria setores
urbanos que funcionariam como módulos de planejamento e delimitariam os
diversos tipos de zonas. Residencial, comercial e de serviços, industrial,
institucional e de proteção ambiental. (DIAS, 2003, p. 23).
Essa cirurgia urbanística contribuiu de forma efetiva para um novo
dimensionamento do viver urbano em Teresina, com o aumento sensível do crescimento
vertical; este condicionado entre outras razões por uma legislação que sugeriu um aumento da
taxa de ocupação de 40 hab/ha para 70 hab/ha. O crescimento vertical, impulsionado por esse
aumento da taxa de ocupação urbana e pelos direcionamentos do II PET, foi motivo de
frenéticas discussões que versavam sobre sua importância ou não para o desenho urbano de
Teresina, historicamente marcado pelo uso da horizontalidade.
Nesse contexto, Gerson Castelo Branco,
11
em entrevista a “Cadernos de Teresina”,
afirmou ser essa alternativa um absurdo para a Capital, devido à imensa quantidade de
espaços que ela possuía, além de ser um problema para o aspecto da ventilação. Mas, embora
não fosse a favor do processo de verticalização, o arquiteto assinalou que a solução poderia
ser viável, desde que houvesse uma legislação capaz de promover uma setorização do
crescimento (1988, p. 5).
Sob um outro ponto de vista, o arquiteto e urbanista Cledson Evangelista
12
relacionava o processo de verticalização a “uma tendência cultural, pois envolve a segurança,
a moda de morar em apartamento, o acesso e a infra-estrutura. Se em Teresina a cidade tende
para o horizontal é mais oneroso” (1988, p.11).
Esse debate em torno da problemática da verticalização refletiu um momento
circunstancial em Teresina, com a adaptação aos novos conceitos e propostas urbanísticas,
que envolviam a utilização de práticas e estratégias visíveis/invisíveis por parte daqueles que
detinham o poder e o saber de realizar tais modificações no espaço, interferindo na
“rugosidade da cidade”. O Estado e suas teias complexas eram (são) um dos principais
calculadores e direcionadores de localizações, com o intuito de regular o traçado da cidade e
promover a abertura de “novos” logradouros, além de adotar uma legislação apta a promover
de forma mais eficiente essas interferências. O estado capitalista, segundo Lobato Corrêa, cria
e dota “mecanismos que levam à segregação, pois […] os grupos de renda mais elevados
11
Gerson Castelo Branco cursou a Escola de Artes Plásticas de Salvador. Seus trabalhos merecem destaque no
livro “Arte no Brasil” de Oscar Niemeyer e nas revistas Veja, Arquitetura e Construção. Projetou na cidade de
Parnaíba (PI) a Praça da Graça e várias residências.
12
Cledson Evangelista é formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Bennete no Rio de Janeiro. Em
Teresina, acompanhou importantes projetos na área de arquitetura industrial e comercial.
residem em imóveis mais caros localizados em bairros onde o preço da terra é mais elevado”
(1999, p.26).
Urbanistas e arquitetos imaginam espaços, volumes, estética, e problemas de
funcionalidade, custos, preferência dos clientes, entre outras atividades de cunho técnico e
organizacional. Dessa forma, sua criação não está livre de suas concepções, de seu ser no
mundo, posto que sua prática está inserida em um determinado contexto espacial e temporal;
logo, podemos dizer que suas construções interferem no congelamento de alguns espaços da
cidade. Harvey (2004, p. 262), referindo-se ao arquiteto, afirma que esse
molda espaços de modo a lhe conferir utilidade social, bem como
significados humanos e estéticos/simbólicos. O arquiteto plasma e preserva
lembranças sociais de longa duração e se empenha em dar forma material
aos anseios e desejos de indivíduos e coletividades. O arquiteto luta por abrir
espaços para novas sensibilidades, para futuras formas de vida social. (Id.
ibid.).
A constante remodelação do espaço em Teresina, nas últimas décadas do século
XX, provocou uma euforia imobiliária, levando a um crescimento da construção civil.
Segundo Rego,
Em meio a grande recessão que afetou todos os setores da economia e que
reduziu os investimentos no Estado a quase zero, o setor da construção civil
é um dos que tem se arriscado e feito grandes investimentos. No ano
passado, as empresas construtoras foram as que mais movimentaram
dinheiro no Piauí, perdendo apenas para o Estado. Foram aplicados 830
bilhões de cruzeiros, a preço de hoje, no setor imobiliário em 1991. (O DIA,
27/10/94).
Este painel apontado por Rego nos informa que, aliados ao Estado, outros
promotores imobiliários aproveitaram-se das novas oportunidades e tônicas urbanísticas, no
sentido de forjarem novas e atrativas condições para algumas áreas da cidade, principalmente
a zona Leste, que passou a ser preparada com o intuito de atrair vários investimentos,
passando a ser vista e calculada sob a perspectiva de uma “área nobre”. A valorização da
área da zona Leste fez parte de um conjunto de ações criadas e recriadas continuamente,
principalmente através do uso da propaganda, indicando-nos que a cirurgia urbanística reforça
e expande a segregação espacial. Assim, a cidade-zoneada é decidida e imposta enquanto
localização, indicando, mesmo que de forma utópica, os usos e ocupações do solo urbano.
As diretrizes e estratégias de ocupações do solo, dirigidas preferencialmente para
a zona Leste, segundo o artigo 19 do II PET de 1988, bem como as restrições de crescimento
para as zonas Sul (devido à topografia acidentada e à proteção ao manancial de abastecimento
d’água) e Norte (a existência de lagoa e áreas alagadiças) intensificaram uma vontade de
potência, pois criavam possibilidades em meio ao esquadrinhamento urbano; favoreciam o
eclipse de uns lugares em detrimento de outros. Esse dinamismo implantado pela sede da
especulação imobiliária e pelo gosto às novas sensibilidades estéticas, como o uso da
verticalização indicava, facilitou a criação de um imaginário favorável a perceber nessas
recentes estratégias uma forma viável de manterem-se distantes de uma série de medos
materializados na imagem da pobreza, da sujeira, das doenças, da violência.
Em um recente estudo, Adad (2004) buscou cartografar os itinerários daqueles que
foram colocados à margem da cidade-conceito os jovens de ruas e detectou a seguinte
imagem da cidade com relação aos seus espaços de disciplina e o constante medo sentido
diante da idéia de desordem:
Ruas e avenidas que foram idealizadas e planejadas para afastar os pobres e
maltrapilhos de suas vias de visibilidade. Esquemas disciplinares foram
montadas para constranger, com seu poder, as misturas, as multidões que
vagueiam pelos seus espaços, recorrendo a separações múltiplas,
individualizantes. Fechá-las, enclausura-las, para bem melhor analisa-las e
reparti-las, foram as medidas. Para além dessa disciplina palavra de ordem
– lê-se um medo latente de tudo que não se encontre nos eixos, um terror aos
‘contágios, às revoltas, aos crimes, à vagabundagem das pessoas que
aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem, no caos. (Ibid., p.
40).
O fragmento pontua uma problemática moderna existente ao longo dos vários
projetos urbanos, no caso, a construção e reconstrução da paisagem aliada à proliferação do
medo a qualquer coisa que fugisse à idéia de ordem ou os direcionamentos impostos pelo
saber urbano que definia padrões, buscando uma exatidão, além da regularidade das pessoas,
do espaço e das mercadorias, demarcando, quando possível, as barreiras, os limites, os
territórios. Destaque-se que essas intervenções são necessárias, tendo em vista que “nada do
que é urbano pode ser estranho, sob pena de sua intervenção tornar-se precária ou ineficaz.
Todos os componentes urbanos, todos os seus lugares, objetos e elementos devem estar sobre
controle e sob seu controle” (MACHADO,1978, p.260, grifo nosso).
A urbanização mostrou-se eficaz no sentido de conter os problemas advindos da
falta de uma estrutura que assegurasse o mínimo necessário à convivência entre seus usuários;
afastando males que historicamente fazem parte do discurso da cidade moderna. Assim,
observou o secretário de habitação José Maria Vasconcelos no período de implantação do II
PET:
Urbanizar as favelas (assegurou) é a maneira mais econômica e higiênica
para se enfrentar a questão urbana, pois a transferência dos favelados de uma
área para outra é mais onerosa e cria problemas para os favelados e para o
próprio poder público. (O DIA, 26/27/04/1987, p. 2).
Essa postura demonstra a importância dada tanto aos aspectos organizacionais dos
lugares da cidade como articula via discurso uma idéia que aproxima confusão,
amontoamento, falta de higiene à população pobre e favelada, criando, em meio ao discurso,
uma cidade viciosa; pois existe, enquanto uma gangrena, apta a ser curada a urbanização é
uma saída ou estirpada, conforme demonstraram todas as ações realizadas no sentido de
banirem essas transgressões”; podemos citar, como exemplo, as ocupações desautorizadas,
incidindo em derrubadas de casas ou mandados para desocupações. Tais atitudes confirmam o
desejo, a idealização, existente desde o traçado do Plano Saraiva, onde o discurso, à época,
orientou-se sob a égide da linearidade, da disciplina e da higienização.
Foto 5 – Visão interna da Favela Morro da Garrincha.
Fonte: LIMA, 2003.
As costuras na cidade não são realizadas sem antes fortalecer as bases que
sedimentam as posturas, os hábitos e os costumes da população, favorecendo uma
determinada maneira de relacionar-se como os “vícios” da cidade, conforme podemos notar
na denúncia a seguir:
Nos conjuntos habitacionais, não parece haver respeito pelo direito aos
vizinhos. Quase sempre o lixo é atirado nas ruas sem qualquer cautela ou
reserva. Assim como as águas servidas. E nas cercas ou muros, inclusive os
da frente, a roupa é levada e exposta, mesmo as íntimas afeiando o visual,
enquanto enxugam. (O DIA, 14/03/1987, p. 4).
A imagem dos conjuntos habitacionais, da sua população e de seu cotidiano é
mostrada de forma degradante pelo artigo jornalístico, justamente porque enfatiza e legitima
todo um processo polissêmico, construído em torno da classificação e redução dos lugares e
das pessoas que habitam as franjas da cidade ou em qualquer outro onde o discurso da cidade
ideal alcançou.
Dessa forma, além do registro jornalístico, outros instrumentos auxiliaram na
busca pela desinfecção da cidade, conforme registra o Código de Posturas de 1988, no qual
podemos perceber a preocupação com a higiene e conservação das vias públicas (Capítulo II),
com o lixo domiciliar, público e de resíduos sólidos especiais (Capítulo III), com a higiene
das habitações (Capítulo VII), com a higiene da alimentação (Capítulo VII) e também com a
higiene dos estabelecimentos (Capítulo IX).
A cidade pensada como um grande hospital também foi responsável pela
elaboração de normas interessadas em rastrear as anomalias, os riscos de uma contaminação
coletiva ou as possíveis brechas epidemiológicas, capazes de propagar ameaças a um espaço
que devia tender a ser profilático. Assim, medidas como a vigilância epidemiológica,
isolamento domiciliar ou hospitalar, notificação compulsória de doenças, vacinação
obrigatória, saneamento e desinfecção, presentes no Código de Posturas de 1988, mostraram-
se saídas viáveis e de competência da saúde pública, no sentido de conter qualquer agente
propagador de doenças ou enfermidades. Por sua vez, a preocupação com a desodorização do
espaço mostrou-se conveniente diante de uma postura vigilante da cidade-conceito, pois era
(é) a forma mais viável de manter distante os possíveis agentes prejudiciais, invisíveis e
amorfos, prontos para infectar e prejudicar a visibilidade da cidade.
Contudo, não eram somente os “inimigos invisíveis” que demoliam os planos da
cidade-conceito, outros agentes denunciados nos jornais também “dificultavam” o bom
andamento da cidade, como ficou demonstrado com a fila de mendigos que destruía a beleza
da praça Marechal Deodoro (O DIA, 04/05/1981). As caixas de papelão utilizadas como
abrigo, por uma mulher, pareceram aberrantes, para o cenário próximo ao Centro
Administrativo de Teresina. Vale lembrar que a referida mulher foi indicada para ir morar na
Colônia (O DIA, 16/06/81), e a árvore centenária arrancada e queimada por exigência da
Prefeitura, posto que deixava a cidade mais feia (O DIA, 12/01/81). As casas de palha
derrubadas pela Policia Militar, no conjunto Ilhotas, contribuíram para deixar mais de
quarenta famílias sem teto (O DIA, 28/05/87); as “construções ilegais” foram motivo de
despejos na Vila da Paz (O DIA, 01,02/ 02/87).
Frente a esses “obstáculos” detectados pela leitura da cidade idealizada, foram
realizados outros movimentos visando à construção e modernização do espaço urbano; outras
“cidades” foram fundadas, para implodir com o que era considerado incongruente e feio aos
olhos acostumados e treinados para o belo, notadamente aquilo que dizia respeito a uma
imagem de “ordem” e “funcionalidade”. Assim, foram incentivadas as utilizações de alguns
conceitos, mediante a participação em alguns lugares, como o de “status”, para os que
participavam da sociedade do Jockey Clube, o de requinte para os clientes preferenciais do
Mon Bistrô e do Mon Buffet, além daqueles que sugeriam personalidade, como, por exemplo,
os clientes do Tarrafas Piano Bar e do Rio Poty Hotel; todos esses lugares fundavam novos
hábitos de lazer e consumo, no final da cada de XX em Teresina, contribuindo para a
incorporação de maneiras diferenciadas de lidar com as imagens de conforto e elegância.
Dessa forma, tanto as medidas de urbanização dos bairros periféricos como a
criação de uma cidade vertical e os incentivo às noções de “novos” hábitos e condutas
tornaram-se saídas viáveis, desde que observados os “bons modos”, a higiene, o bom convívio
com os outros moradores. No caso da moradia verticalizada, mostrou-se, na sua grande
maioria, ser o da impessoalidade e da distância. Nesse caso, enquanto a cidade viciosa,
anárquica, ia sendo desfeita, através de uma série de discursos que a subtraía, a cidade-
conceito ou a cidade planejada construía seus locais de luzes e soberania, ao utilizar-se de
várias estratégias, com o intuito de assegurar o lugar ideal. Para tanto, implantou “ilhas de
prosperidade”, sob os monturos da cidade viciosa, com o surgimento de edifícios e lugares
que se impunham pelos novos estilos arquitetônicos, utilizando bons acabamentos e uma alta
tecnologia, além de contarem com uma nomeação sugestiva de refinamento e status, como
sugerem os edifícios Renoir, Portinari, Leonardo da Vinci, Jardim Europa, Vila Borghese,
Paladium, Casablanca, entre outros.
Por conseguinte, se a cidade viciosa é desqualificada via imagens e discursos, a
cidade-conceito é marcada pela vontade de permanecer no território dos códigos, nas
espacialidades conhecidas, principalmente aquelas que são resultado de um planejamento ou
do que é formalizado nos zoneamentos, nos recuos e afastamentos, nas circulações verticais,
horizontais, oblíquas, nos limites dos bairros e dos centros de atividades comerciais,
industriais, hospitalares.
Essa cidade-robotizada, na medida em que procura imprimir e oferecer aos
transeuntes a indicação dos espaços que devem ou não ser trafegados ou respeitados, funciona
sob tensão, pois, ao tempo em que proíbe, sanciona e legitima, sofre, por parte dos
caminhantes ou daqueles que subvertem seus códigos, uma série de rupturas, lesões,
maximizando sua existência fragilizada, haja vista que a atualização das práticas coloca-se
como um campo de ação sempre pronto a desmascarar as brechas, os becos, os esconderijos,
as ruelas e todo um arsenal de rupturas que compõem as engrenagens da cidade.
Neste sentido, a cidade-conceito somente existe enquanto projeção, modelo ou até
mesmo enquanto desejo, não somente por parte daqueles que a delineiam, mas também por
parte daqueles que buscam encontrar no discurso da ordem e da funcionalidade subterfúgios
capazes de manterem-se longe daquilo que foi desqualificado pelo discurso médico-higienista
e penal. O modelo de uma forma de conceber o urbano ignora os deslizes e as transgressões
efetuadas pelo homem ordinário,
13
ou seja, por aqueles que subvertem a ordem e a noção de
cidade pensado pelo poder público e privado.
A cidade-capital, ao ganhar notoriedade pelo discurso utópico de centralização e
disciplina, efetuada pelos rios saberes utilizados por Saraiva e seus incentivadores, tornou-
se um palco sensível de representações e discursos, pois ampliou a uma carga infinitesimal o
poder de pensar uma ordem para os lugares e as coisas, haja vista que os mapas e os discursos
urbanísticos criaram uma cidade visível completamente esfacelada em uma série de micro
preocupações em oferecer-nos uma localização fixa, e sobretudo capaz de dotar-nos de um
conjunto de condutas viáveis e aceitáveis dentro de uma lógica funcionalista e, acima de tudo,
preocupada em manter-nos dentro de um planejamento.
A naturalização dos códigos, das leis, dos planos estruturais existe enquanto
medidas impostas no sentido da manutenção de uma “ordem”, sendo essa uma miragem capaz
de ser alcançada devido à imposição de uma série de restrições aos “usos” da cidade. Dessa
forma, o espaço urbano é pensado e articulado sob a influência de uma série de discursos que
permeiam uma vontade de solucionar os problemas decorrentes de uma ordem administrativa
da cidade.
Os obstáculos existentes entre a cidade ideal e a realizada continuamente por um
contingente de passos nervosos e arriscados perpetuam uma luta travada sob os palcos de
inscrição do urbano, efetuando a compreensão de que uma cidade comporta em sua essência
uma série de outras cidades, fragilizando, mas não desmoronando, a cidade utópica dos
planos, das leis e das investidas em condutas que passem a expressar uma visibilidade daquilo
que é considerado “civilizado”, “refinado” e esteticamente aceitável. Afinal, entre o “dito” e o
não “dito” fundam-se uma ou várias cidades, cortadas pela vontade de expressar uma imagem
que é constantemente modificada, anarquizada pela confluência de vários saberes e dizeres.
13
Para Certeau, o homem ordinário é aquele que inventa e reinventa seus códigos, suas táticas, suas práticas.
Ver: CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis-RJ: Vozes. 1994. p. 169-217.
Por fim, ao perseguir essas idéias, visamos analisar os discursos e os contra-
discursos, que incidem sobre a cidade, delineando algumas narrativas como eixos centrais, na
busca de perceber os conflitos, as rachaduras, as incongruências entre o dito e o percebido por
outras instâncias, como a literária, por exemplo, que poderemos ver nos próximos capítulos.
CAPÍTULO II – CONTRA-USOS DA CIDADE: A NARRATIVA
LITERÁRIA COMO SUBVERSÃO DA CIDADE
Toda memória vai-se perdendo sem música,
sem palavras, preparo um réquiem, pranteio esta
cidade, substituída por outra estranha ao seu
passado.
H. Dobal
2.1 Fragmentos, restos e passagens: uma análise entre lugar e memória em
Teresina
14
Nesse capítulo procuramos estabelecer uma percepção das relações existentes
entre lugar e memória e suas inflexões no pensamento sobre o urbano, em Teresina, no limiar
do século XX. Para desenvolver esse objetivo, procuramos enfocar as análises referentes às
categorias memória
15
e lugar,
16
para mostrar como essas foram indispensáveis à compreensão
das múltiplas possibilidades do viver urbano, visto que essas ora se distanciam, ora se
confluem, na percepção sobre a cidade, influenciando a perspectiva literária. Deste modo,
entendemos memória como um contingente constante de fluxos que permite a lembrança e o
esquecimento, em face da trajetória fugaz da modernidade. O lugar, nessa problemática, induz
14
Essa subdivisão já foi parcialmente publicada na obra “Coisas de Cidade” sob a organização de José Gerardo
Vasconcelos e Shara Jane Holanda Costa Adad. Fortaleza: UFC, 2005. (Coleção Diálogos Intempestivo, 24).
15
Segundo Pierre Nora, a memória “é sempre suspeita para a história, cuja verdadeira missão é destruí-la e a
repelir” (1988, p. 9). Para Lê Goff, a memória “é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade,
individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na
febre e na angústia” (2003, p. 469).
16
Para Pierre Nora, o estudo dos lugares é importante por interceptar dois movimentos que lhe dão sentido: o
historiográfico com um retorno à reflexão e o movimento histórico, com o fim de uma tradição da memória
(1988, p. 12).
a uma idéia de pertencimento e identidade, mas também é fragmento, resto, ilusão
cambaleante em um tempo de brevidades, responsável por unir passado e presente.
De início, para essa análise, procuramos destacar principalmente os pressupostos
teóricos do estudo sobre a problemática dos lugares e da memória, realizado por Pierre Nora
(1993), e as reflexões de Walter Benjamin (1994) acerca da perda significativa da arte de
narrar, ocasionando uma ruptura no ato de lembrar, provocando a falência das experiências
comuns, tornando os indivíduos solitários e desenraizados do seu tempo. Ambos traçaram
suas inquietações, no que diz respeito à vertigem que homens e mulheres foram obrigados a
se permitirem, no sentido de aliviar o peso das infinitas transformações, aceleradas, tanto pela
perda de referenciais de lugares de memória,
17
como pela substituição da narração, das
conversas, dos contatos entre as gerações.
Dessa forma, a imagem da cidade de Teresina, condensada nesse capitulo, será
visualizada no sentido de permitir um contato com a memória-fragmento, termo esse que se
refere aos cacos, elos de sentidos, mas não de continuidade, e sim de relampejos da memória
dos narradores escolhidos para essa abordagem. A cidade, nessa apreensão, será encarada
como um artefato, possível de ser esculpida pelas várias narrativas e tentativas dos literatos
em segurar o tempo em suas mãos, devido à força das constantes mudanças. A cidade, sob tal
perspectiva, transforma-se em um mapa rebelde a planejamentos e ordenações; melhor
dizendo, são os lugares invisíveis da memória que estabelecem suas prioridades. Assim, não
há uma busca sofrível pela cidade-utópica, mas por uma cidade subjetiva, invisível e impressa
de sentidos, que não deve ceder frente aos obstáculos das idéias de “progresso” e “novidade”.
Nesse sentido, uma das imagens que perpassa Teresina é aquela influenciada pelo
olhar do literato, enquanto narrador das vivências e dos sentidos culturais do urbano. O poeta
17
A expressão lugares de memória refere-se ao entendimento de que esses historicamente “nascem e vivem do
sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários,
organizar celebrações […], porque essas operações não são mais naturais” (NORA, 1998, p.13).
H. Dobal,
18
em entrevista a Cineas Santos (1993), refere-se à sua cidade do passado, aos usos
constantes da Praça Pedro II, onde se reunia com os amigos para discutir filosofia, poesia,
política. Nos dias atuais, esse espaço, possui outros significados impressos pelos passos
nervosos dos transeuntes, que a transformaram em local de passagem. Porém, à noite, ainda é
testemunha de outras modalidades de “encontros”, marcados por conversas animadas, em
torno dos bares ou na ardente busca de companhia para o restante da noite.
Foto 6 – Detalhe da Praça Pedro II, na década de 1940.
Fonte: Acervo Aureliano Müller. In: Revista Teresina Ontem e Hoje, jan. 2002.
A praça, que tinha como objetivo principal o encontro, a conversa demorada, o
namoro ingênuo, transformou-se em encruzilhada; momento efêmero em que o caminhar
ritualiza um breve encontro com o pretérito, significado pelos inúmeros relatos que lutam em
atravessá-la oferecendo vieses de identidades. Essa possibilidade de não fixação de forma
contínua é uma das características das praças, pois seu uso é esporádico, ou o que poderíamos
chamar de “territorialidade móvel”, tendo em vista que contempla uma “forma de apropriação
18
Hindemburgo Dobal Teixeira nasceu em Teresina, em 1927, e pertenceu à “Geração de 45”, no Piauí; foi
responsável pela renovação temática da literatura piauiense. Publicou um caderno de letras denominado
“Meridianos”, onde promoveu uma renovação estética na literatura piauiense.
do espaço de forma temporária e irregular no tempo, mas que guarda uma territorialidade
marcante no plano simbólico” (CARLOS, 2000, p. 80).
Foto 7 – Detalhe da Praça Pedro II, em 2002.
Fonte: Revista Teresina Ontem e Hoje, jan. 2002.
AColuna da Hora”, marco referencial da Praça Rio Branco, na cada de 1940,
por indicar aos transeuntes o tempo, a hora, era também no período da juventude do poeta
H. Dobal o principal “expositor” de idéias e críticas; essas eram “coladas” em sua estrutura
metálica, em uma época na qual era parca a utilização da imprensa. Nos dias atuais,
fantasmagoria de passagem,
19
assiste aterrorizada e surda ao barulho severo, vindo de
inúmeras buzinas, do grito rouco dos camelôs, do som agitado dos carros de anúncios; mas
ainda permanece viva, nos silenciosos acordes da memória fervilhante do som das conversas
desgastadas pelo tempo, daqueles que burilam lembranças, sentados nos bancos.
19
Refiro-me a “fantasmagoria de passagem” aos lugares que se tornaram restos, ruínas que se dispersaram em
meio à volatilização do tempo; marcas que resistem ante a intempérie do tempo presente.
Foto 8 – Coluna da Hora, Praça Rio Branco.
Fonte: Foto feita pela autora, Teresina, abr. 2006.
Nesse sentido, queremos pontuar que a memória-fragmento tornou-se uma via
imprescindível, frente ao processo de aceleração da história, pois consegue unir tempo e
espaço no resgate das lembranças; daí sua importância para aqueles que as têm como uma das
possibilidades de compreensão frente às agitações e acelerações do mundo moderno. Assim,
as referências emotivas da Praça Pedro II e da “Coluna da Hora” são marcos de nostalgia, mas
também de memória para aqueles que, de forma acentuada, como H. Dobal, viveram uma
Teresina mais tranqüila e de limites bem restritos. As lembranças, as reminiscências possuem
uma ligação muito íntima com os espaços, posto que os monumentos e os lugares imprimem
porções de identidade, estabelecem elos entre o passado e o presente.
Nesse turbilhão de “agoras”, caracterizado pela intensidade e brevidade, em
oposição a uma noção de continuum histórico, segundo as análises de Benjamin (1994),
podemos dizer que a memória, antes enamorada da história pela narração, liga-se aos lugares,
em vista da trajetória da modernidade, imprimindo a estes a falsa noção de serem os últimos
bastiões, as últimas imagens, em face da desagregação e das esperanças frustradas,
possibilitando, deste modo, uma experiência visceral para a maioria de seus habitantes.
Os lugares tornaram-se pertinentes pela condição que encerram enquanto
vestígios, aplacando o processo de aceleração da história e da perda identitária, cristalizando a
memória, fazendo-a reencarnar, em meio ao processo de esfacelamento; pode-se dizer que “há
locais de memória porque não meios de memória” (NORA,1993, p.7). A Praça Pedro II, a
“Coluna da Hora” são restos de um tempo; subsistem enquanto lugares de memória, enquanto
passagens e fantasmagorias existentes; se “vivêssemos verdadeiramente as lembranças que
eles envolvem, eles seriam inúteis” (NORA,1993, p.13).
Nesse caso, torna-se perceptível que a vocação para a amnésia, o volúvel, o
contingente, a brevidade, tudo isso faz parte de uma essência do sujeito moderno, vitimado
por sua condição de solitário e desorientado, diante do fluxo da modernidade, que se tornou
ao mesmo tempo cruel e sereno, pois ser moderno traduziu-se em
experimentar a existência pessoal e social como um torvelinho, ver o mundo
e a si próprio em perpétua desintegração e renovação, agitação e angústia,
ambigüidade e contradição: é ser parte de um universo em que tudo o que é
sólido desmancha no ar. (BERMAN, 2000, p. 328).
Essa dispersão do sujeito em meio ao ser e não ser, característica da vida
moderna, possibilitou um complicado sentimento de orientação, pois ao tempo em que
desejamos ser “modernos” e suas implicações com relação ao “novo”, ao constante espírito
de movimentação também fossilizamos nosso ser nesse turbilhão, através de nossos pactos
secretos com os lugares e os seres.
Nessa perspectiva, entendemos o processo de descaracterização da cidade de
Teresina, sentida mais arduamente nas três últimas décadas do século XX, como um processo
desencadeado a partir da constatação de não mais pertencer a uma cidade provinciana e
pacata, devido as transformações e alterações radicais da fisionomia urbana, provocando a
morte, uma metáfora de passagem para outro momento, estágio solvente da modernidade, que
constantemente nos ameaça, mas imprime na alma a possibilidade de múltiplas significações,
fazendo com que haja infinitos espasmos de renascimentos.
Desta forma, podemos observar no poema post card 57/77 de Paulo Machado,
20
a
busca em traduzir, em externalizar sua percepção sobre as transformações ocorridas no
processo de consumo de alguns locais da cidade. A imagem traçada, em um dos tercetos aqui
retratado, condensa significados em uma percepção fisionomista da cidade:
Nos canteiros da av. frei serafim
os cupins construíam suas casas
fiando estranha quietude.
Nos canteiros da av. frei serafim
putas acenam com gestos medidos
a fome é mais forte que o medo. (MACHADO, 2001, p. 24).
No poema, o jogo frenético das palavras acessa dois sentidos implícitos o
bucólico e o social. No primeiro enfoque, a imagem dos cupins “construindo” e “fiando” faz
referência a uma boa dosagem lírica de um fragmento da cidade, estranha a um processo
vertiginoso de mudanças. O sentido social grita, no segundo grupo de tercetos, indicando uma
interrupção do caminho, uma força capaz de converter, diante do “acenar de prostitutas”,
outros usos e significados para a avenida, diante de uma situação tornada grave o aumento
populacional e sua face de miséria.
Essa visibilidade da cidade abre perspectivas para entendermos o sentido
conferido pelo poeta para as diferentes relações existentes entre o que designa presente e toda
a sua aura de encantamento fugidio; e o passado com suas relíquias, valores e parâmetros
conhecidos. Em uma análise literária dos dez pares de tercetos que compõem o poema, a
20
Paulo Henrique Couto Machado nasceu em Teresina, no dia 23 de julho de 1956. Fez incursões pela ficção,
ganhando o concurso de contos e participando de antologias poéticas. Publicou dois livros, “Tá pronto seu
Lobo?” (1978) e “A paz do pântano” (1982).
poetisa Graça Vilhena
21
aponta para a preocupação do poeta em conferir significados para a
“relação homem/cidade”, pois acredita que
fica claro nos versos que, na verdade, o que supunha progresso para a cidade
não passa de um engodo, pois não é construído com a preocupação voltada
para o elemento humano, e sim para representações que, presas às
aparências, nos fazem supor que a cidade se desenvolveu satisfatoriamente.
(2002, p.175).
Essa lacuna no presente, representada pela ausência dos antigos espaços” que
deixaram de existir enquanto materialidade, tornou-se espectro pronto a ser iluminado pela
lente daqueles que iam provando desse sentimento de perda, provocado pela onda da
novidade e do “progresso” que ia invadindo as “antigas” noções e certezas, fazendo com que
a percepção desse sentimento fosse bem mais entendido como uma “desconstrução da cidade,
que vai, aos poucos, desumanizando-se em uma flagrante decadência, não no conjunto
físico, mas principalmente no humano e cultural” (VILHENA, 2002, p.176).
Além da confrontação passado/presente existente nas entrelinhas dos cuidadosos
tercetos, é importante também avaliar a dimensão utilitária existente no poema de Paulo
Machado; pois, conforme observa Walter Benjamin (1994), os ensinamentos, os conselhos
tornaram-se antiquados, exatamente porque as narrações, as experiências deixaram de ser
partilhadas.
Contudo, nessa reflexão, queremos também observar que, enquanto para
Benjamin (1994) a memória é a musa da narrativa, para Pierre Nora ela é oposta à história:
a memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela
está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do
esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável, a
todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas
revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta
do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo
vivído no eterno presente, a história, uma representação do passado. (NORA,
1993, p. 9).
21
Graça Vilhena é poetisa, contista, professora de Redação e Literatura.
Logo, podemos perceber que a separação entre memória e história estaria no
vértice da problemática dos lugares, pois, se a construção da memória é sempre um devir, um
fluxo de reminiscências, fluida pelos espasmos de lembrança e esquecimento, os lugares, por
sua vez, passaram a cumprir a missão de ser monumentos de passagem, resquícios perdidos
de sua origem, bastiões sagrados que foram selecionados em detrimento de outros, recolhidos
pela nebulosidade do tempo, através da e do machado das experiências explosivas do ato
de transformar o eterno em etéreo.
Sob esse enfoque, vale enfatizar que houve uma supervalorização de alguns
resquícios materiais do passado, bem como a sensação de desconforto em o possuir alguns
que passaram a ser sinônimos de memória; essas construídas sob uma narrativa que teve como
uma das principais características a formulação de um saudosismo, refletido nas
representações literárias, que, em sua grande maioria, reservaram um profundo sentimento de
identidade com os lugares, favorecendo a percepção desses como fósseis impregnados de
sentidos ante a destruição das reminiscências e da eficaz “arte de narrar”, conforme abordou
Walter Benjamin (1994).
Na concepção do supramencionado autor, a arte de narrar entrou em via de
extinção, devido à perda coletiva e artesanal da transmissão das experiências, após o
surgimento de outras formas de narrativas, como o romance e a informação jornalística, por
exemplo. Dessa forma, a morte das narrativas de cunho “doméstico” provocou a brevidade do
lembrar, tornada exterior e necessária pelo ato da rememoração, obrigação que passou a ser de
cada indivíduo preocupado em apropriar-se de um passado, de uma reminiscência, conforme
podemos observar nas lembranças de Durvalino Filho (2005), quando se refere aos quintais
que foram, com o passar do tempo, suplantados por outros meios de diversão. Assim
relembra:
O quintal da minha casa era um universo. Naquele tempo as
famílias criavam galinhas e patos e marrecas e porco e carneiro e capote em
seus quintais. E um mundo de passarinhos pousava no de umbu-cajá, no
pé de goiaba, no pé de ata, nas mangueiras sombrias, no pau d’arco, no pé de
serigüela e nas bananas indecentes e seus imensos mangarás. Decerto que,
por vezes, não era nada agradável pisar em merda de galinha bem entre os
dedos, mas rapidamente esfregava-se o pé no tronco cascudo do umbuzeiro e
vupt!, voava-se para as galhas mais altas de onde víamos os telhados e os
poucos prédios da antiga cidade verde [...] Constato agora que junto com a
infância perdida, perdi também os meus quintais. Teresina era verde por
causa deles, que foram sendo tragados pela fúria voraz das motoserras e pela
frieza quente do concreto, que de aparente não tem nada: é uma brutal
realidade a afastar minhas lembranças pra bem longe, para “um tempo que
ficou pra trás”, como diz a canção do Paulo e do George Mendes. (MEIO
NORTE, 16 jan. 2005).
Convém destacar que essas narrativas, além dos poemas, como post card 57/77,
são registros que iluminam um processo de perda subjetivada, diante da fúria das mudanças
trazidas pelas intempéries relativas a um fragmento temporal; e têm como salutar o ato de
incensar fantasmas, de denunciar os perigos da inevitável transformação e da velocidade da
modernidade. Diante desse viés, lembramos da advertência de Berman, quando diz que “o
processo de modernização, ao mesmo tempo em que nos explora e nos atormenta, nos impele
a apreender e a enfrentar o mundo que a modernização constrói e a lutar por torná-lo nosso
mundo” (1986, p. 330).
Destaque-se que, nas últimas décadas do século XX, as diversas formas de
“perigo” foram representadas pelas constantes demolições de alguns lugares em Teresina, em
virtude dos investimentos na abertura de avenidas, construções de edifícios residenciais ou
não, estacionamentos, pontes, locais de lazer etc., levando a diversas manifestações contrárias
a esse processo de descaracterização da cidade, fazendo com que houvesse formas inventivas
de denunciá-las, como podemos visualizar nesse poema:
Outros costumes tu possuis, agora,
Tens estátuas, cinemas, tens barulhos
Adeus, minha Chapada, vou-me embora
Que meus sonhos de outrora são entulhos (João Ferry)
A poesia tem um “gosto amargo” e uma dose de desespero frente à constatação de
que a fisionomia de sua cidade antiga transpõe suas limitações e sentimentais percepções.
Porém, a importância dessa poesia está relacionada com as imagens que o poeta traça ao
fornecer lampejos da sua memória diante da irremediável experiência sofrida frente às
inúmeras transformações, possibilitando-nos perceber as condições sensíveis da memória
afetiva e suas relações com uma diferente percepção do urbano.
Tendo em vista essas considerações, fazem-se importantes algumas
considerações: Essas impressões dos literatos poderiam ser entendidas apenas como
recordações, no sentido atribuído por Benjamin? Nesse sentido, os literatos não somente
descreveriam as percepções das mudanças urbanas como de fato se apresentaram, mas como
foram capturadas pela memória involuntária,
22
traduzidas em palavras?
Os signos (as impressões) que trazem o que foi teriam apenas a função de
recriar um passado pessoal?
Tais indagações servem para que possamos entender as relações existentes entre
as estruturas narrativas literárias e entre espaço e memória. Dessa forma, balizamos que, se
Proust atribui um valor inestimável à memória involuntária, com traços fortemente voltados
para o indivíduo e sua percepção pessoal, ativada pelas experiências empíricas infantis,
Benjamin, ao contrário, prefere a fusão existente entre a recordação pessoal e a social, como
realizou Baudelaire em suas andanças por Paris, onde o que buscou acessar, além da memória
involuntária, foram as relações estabelecidas e evocadas pelas impressões deixadas no espaço.
O espaço do flâneur de Baudelaire está totalmente disperso na imagem da cidade,
é nesse espaço que encontra sua compreensão para o entendimento dos labirintos, dos vazios,
das passagens, assim, prefere a memória topográfica
23
pois essa não visa apenas:
22
Segundo Deleuze, a memória involuntária, existente nas ressonâncias da obra de Proust, caracteriza-se por
apresentar-se como uma sensação somente perceptível enquanto diferença interiorizada a partir de dois poderes:
a diferença no antigo momento e a repetição no atual (2003, p. 15-17).
23
A memória topográfica, analisada por Bolle (2000), refere-se às imagens espaciais captadas pelas experiências
sensíveis, visando à reconstrução dos espaços pelos espaços, assim como realizou Baudelaire com relação a
Paris e Walter Benjamim sobre sua Infância em Berlim.
a reconstrução dos espaços pelos espaços, mas estes são pontos de referência
para captar experiências espirituais e sociais [...] lugares e objetos enquanto
sinais topográficos tornam-se vasos recipientes de uma historia da
percepção, da sensibilidade, da formação das emoções. (BOLLE, 2000, p.
335-336).
Nesse sentido, avaliamos que a escrita literária, contida nos poemas e nas
crônicas, expressa uma vontade de deciframento da floresta de símbolos da cidade, de realizar
uma correlação entre memória e espaço, realizando uma cidade que não se encontra fundada
nos mapas e nos projetos arquitetônicos, mas sim nos recônditos da memória e das
lembranças, atribuindo sentidos perante a efêmera experiência da materialidade da cidade.
Aparar os choques e bloquear (se possível) os acessos a uma não-experiência com relação ao
sentido de perda parece ter se tornado a missão daqueles que articularam em suas teias de
papéis a fisionomia da cidade, em uma busca incessante para alertar sobre os perigos da
ampliação dos “restos” que se acumulavam maciçamente frente aos olhos, pois, como nos
adverte Benjamin,
a reminiscência funda a cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos
de geração em geração. Ela corresponde à musa épica no sentido mais
amplo. Ela inclui todas as variedades de forma épica. Entre elas encontra-se
em primeiro lugar a encarnada pelo narrador. Ele tece a rede que em ultima
instancia todas as histórias constituem entre si. (1994, p. 211).
À luz dessas considerações faz-se importante assinalar algumas observações, a
principio:
a) As categorias lugar e memória servem como atributos de significados,
impressos pela abordagem teórica de Nora e Benjamin, no sentido que apontam
para a importância que os lugares passaram a ter em virtude da aceleração do
tempo moderno. Porém, se para Nora, os lugares são fragmentos, passagens, uma
construção sempre preste a ruir, se não fosse pela prontidão dos indivíduos que
buscam cultivá-los como salvaguarda da memória, para Benjamin as duas
categorias mantêm relações de interesse, através da apropriação das imagens da
cidade, de forma a produzir uma “iluminação” dos cacos, dos textos” impressos
na cidade.
b) As abordagens de Nora e Benjamin são “caminhos” preferíveis para o
entendimento das relações entre lugar e memória, pois ambos realizam a difícil
missão de analisar os “escritos” da cidade, que, a todo o momento, sofrem
ameaças, ao tempo em que ameaçam as experiências e a memória dos literatos.
c) A forma de abordar as transformações urbanas, ocorridas no final do século
XX, tanto em nível material como em nível sensível, é o resultado de um
entendimento que envolve um papel de detetive, investigando e mostrando
possibilidades, posto que entendemos, assim como Benjamin, que se deve acabar
com o narcótico de escrever uma história preocupada em mostrar como ela de fato
aconteceu (BOLLE, 2000, p. 64).
d) As categorias analisadas são necessárias por possibilitarem uma compreensão
das imagens urbanas, realizando umaleitura” a partir daqueles que a fizeram em
um momento de limiar, de “perigo”; sendo estas “vozes” importantes para
empreendermos um discurso polifônico da cidade.
e) A literatura enquanto fonte para a história abre uma oportunidade riquíssima,
não de dizer verdades, mas de apontar para mundos conhecidos e desconhecidos;
abre possibilidades de conhecer aspectos de “verdade”, tocando em pontos
nevrálgicos, em sensibilidades, em fatos muitas vezes irrelevantes, mas que dizem
o amorfo, aquilo que está implícito nas entrelinhas das construções discursivas.
2.2 A cidade e o cronista: a dissolução de lugares
A perda de referências e a dissolução de lugares de memória permitiram aos
indivíduos uma suposta necessidade de elaboração de uma consciência, que se mostrou menor
diante de uma significativa participação consciente e em mais uma relutância em manter a
ruína, a memória-fragmento. Assim, no desdobramento dessa vontade, surgiu, segundo Pierre
Nora (1993), o homem-memória,
24
capaz de sintetizar, em uma descrição solitária, elos que
permitissem a criação de uma idéia de pertencimento, de identidade com os fragmentos da
cidade.
O peso de uma memória-individual, ante a fragilidade de uma memória nacional,
favoreceu o surgimento dos homens-memória, pois, “quando a memória não está mais em
todo lugar, ela não está em lugar nenhum, se uma consciência individual, numa decisão
solitária, não decidisse dela se encarregar” (NORA,1993, p. 18) .
Arimathéia Tito Filho
25
é, possivelmente, nesse contexto, exemplo significativo
desse homem-memória, que procurou fazer de sua trajetória um percurso de lembranças,
oferecendo elos de identidade, cruzando suas experiências e imagens, com restos, cacos de
lembranças esparsas; comungando sua trilha histórica, em um processo latente de construção
de um cais da reminiscência. Em “Tempos de Memória”, relembra a Teresina de sua infância,
onde existiam apenas:
A memória individual, neste trecho de A. Tito Filho, encarrega-se de fazer uma
solda, um pastiche, uma cola, entre as erupções do passado e do presente, oferecendo
fragmentações necessárias à construção de uma identidade,
26
em uma dança fantasmagórica
do lembrar, mesmo sabendo que, na experiência moderna, diariamente projetamos o nosso
viver em meio à diferença, ao criar, deformar e selecionar as nossas lembranças.
24
Homem-memória é o singular retirado da expressão homens-memória utilizada por Pierre Nora, quando se
refere à atomização da memória geral, onde homens particulares fazem de suas memórias uma trajetória de
significados para outros.
25
José de Arimathéia Tito Filho (Barras, 1924. Teresina, 1992) era historiador, cronista, jornalista, professor, e
foi presidente da Academia Piauiense de Letras (APL).
26
Segundo Woodward, a identidade é relacional, ou seja, marcada pela diferença, e tem sua emergência no
processo histórico que estabelece sua marcação simbólica (2000, p. 12-14).
Ainda prosseguindo com seu roteiro sentimental, o cronista descreve o lazer
noturno da cidade, relembra que “a elegância da noite, estava na Praça Rio Branco andança
na praça, rapazes num sentido, moças noutro sentido, namoro de olhos, olhares que falavam e
diziam tudo” (TITO FILHO, 2002, p. 25). A noite, além dos olhares e namoricos, segundo o
cronista, era reservada também para atitudes mais inocentes, como as brincadeiras de roda
nas calçadas“, até que a usina elétrica apitasse ou que a polícia militar cornetasse: nove horas,
hora de dormir casados e solteiros [...] exceto nos dias de baile e forró. Forró das pipiras
desejadas e das curicas também.” (2002
a
, p. 26).
Foto 9 – Praça Rio Branco na Década de 1940.
Fonte: Acervo Aureliano Müller. In: Revista Teresina Ontem e Hoje, jan. 2002.
Essas descrições sociais e culturais da cidade são percebidas antes de 1939,
quando o cronista deixa a cidade e volta em meados de 1949, segundo estimativa feita pelo
próprio A.Tito Filho, deparando-se com outra Teresina, como narra na sua crônica Teresina
na distância”, onde analisa que:
a cidade cresceu e melhorou, e vai atravessando a faixa da pequena para a
média cidade. Está quase toda calçada. O nível das residências evoluiu
tremendamente, no estilo, no conforto, no material com que são construídas.
A casa de palha foi chutada para os subúrbios longínquos e tende a
desaparecer. (TITO FILHO, 2002
b
, p. 24).
As impressões e imagens do cronista diante de uma fratura temporal revelam as
incongruências da fisionomia urbana, apontam uma cidade expandida em termos materiais,
tendo que constantemente ressignificar seus espaços. Porém, o que desejam é articular tempo
e espaço, através de suas memórias, construindo um lugar de encontros, onde inscreve seu
processo de identidade, pois a memória “[...] aproxima, faz mover/retroceder o tempo. É o
campo do irredutível, é o que permite ao passado aproximar-se enquanto há o que se recordar.
O passado se enlaça no atual e conserva a vivacidade cambiante que significa uma ausência
em presença” (CARLOS, 2000, p. 82).
Dessa maneira, a cidade provinciana, saudada nos poemas e nas crônicas, vive de
uma certa forma dentro da cidade do presente, vislumbrando a cidade do futuro, pois essa
existe como projeção, imagem, possibilidade expressa em uma dança fantasmagórica, visto
que os espaços “não apenas podem justapor-se, mas compõem, interpõem, se chocam, mas
cada fragmento revela também particularidades, pois se movem em função de estratégias”
(CARLOS, 2000, p.81).
Sob este aspecto, a expansão dos limites da restrita cidade foi sentida pela
sensibilidade do olhar minucioso do cronista, que, ao descrever um mapa subjetivo, mistura
sua experiência pessoal aliada às novas dimensões que iam surgindo, realizando um encontro
na aceleração das temporalidades urbanas. Para o referido cronista:
Teresina enveredou pela Vermelha, pela estrada de São Raimundo, antiga
estrada do gado, pelo Porenquanto e conquistou o Poti Velho, dominando o
Teso Duro do Desembargador Vaz da Costa, e o Poti Novo, cujas águas
atravessam para situar-se também entre os babaçuais da outra margem.
(TITO FILHO, 2002
b
, p. 25-26).
A rua, vetor identitário para o cronista, mistura-se a outras experiências visuais,
bem distantes daquela em que servia como espaço para as brincadeiras de roda. Assim como
os monumentos, as ruas também são lugares de memória, frente à imagem moderna, onde
passaram a simbolizar “tudo o que havia de encardido, desordenado, apático, estagnado, gasto
e obsoleto tudo aquilo que o dinamismo e o progresso da modernidade deviam deixar para
trás” (BERMAN, 2000, p. 300-301).
Contudo, as ruas e os bairros, para o cronista, impõem-se de outros valores, seus
antigos nomes estão cheios de lembranças, são resíduos e detritos que teimam em existir pela
capacidade de terem sido reapresentados em uma outra temporalidade pela narrativa, como
podemos perceber nesse fragmento:
Saudade dos bairros velhos, a Barrinha, a Vermelha, o Mafuá, o Buraco
da Velha, o Barrocão, os Cajueiros, a Baixa da Égua, São Raimundo,
Piçarra, Poti Velho, Teso Duro, Porções, Noivos, Catarina, São Joaquim,
Matadouro, Pirajá, Estrada Nova, Pacatuba saudade das ruas de outros
nomes Amparo, Glória, Estrela, Negros, Fio, Grande, Bela nomes que
se transformaram em homenagem. (TITO FILHO, 2002, p.72) .
As “antigas” denominações das ruas e de alguns bairros citados pelo cronista
fazem circular fantasmas; aboná-las de sua condição “natural”, tirá-las, sepultá-las, tudo isso
provém da vingança ignóbil daqueles que não se sentem identificados com esses espaços de
“saudade”. Os modernos traçados urbanos juntamente com seus novos ideais estéticos,
guiavam-se por outros referenciais, bem diferentes daqueles da cidade do passado, com seus
nomes e espacialidades provincianos.
A amplitude espacial também foi sentida pela experiência sensório-motor do
cronista, pois não apenas as novas denominações das ruas e de alguns bairros indicavam um
aumento na materialidade da cidade, mas também o corpo e suas percepções emotivas. Então
adianta que Teresina “já não pode ser vadiada a ou de bicicleta [...] não poças e
regatos nas ruas para gáudio dos moleques, nem as casinhas no fundo do quintal que eram o
sinal pungente da sua antiga pobreza rural” (TITO FILHO, 2004, p. 24).
Os sentimentos, as emoções sentidas ante a descaracterização da cidade
provinciana foram sistematicamente transformadas em uma escrita que continha uma clara
atitude de inviabilizar a construção de uma “outra cidade”, que se erguia a passos largos,
fazendo com que o cronista A. Tito Filho denunciasse constantemente essas mudanças:
Veja que nossas ruas se enriquecem de espigões desnecessários. Certas
mentalidades acham que o progresso corresponde a edifícios para os céus
[...] os espigões contrastam violentamente com as construções humildes. Os
espigões são manchas que agridem o urbanismo da cidade. (REVISTA
PRESENÇA, 1983, n. 16, p. 22).
A observação do literato está ligada a uma forma de urbanismo que se expandiu
diante de um contexto moderno o urbanismo progressista caracterizado, conforme
Harouel, pela existência de
edifícios públicos gigantescos que dominam imensos espaços vazios [...] à
base de volumes geométricos simples[...] Esse modelo urbanístico sofreu
diversos protestos e recusas pois cada vez mais nossa sociedade recusa as
caixas de habitação e o concreto que invade e que agride a cidade antiga e
desnatura os espaços rurais. (2004, p. 127-128).
A posição de recusa do cronista ante a inevitabilidade do urbanismo moderno,
27
devido à evolução demográfica e tecnológica que empreendeu uma aceleração nas
possibilidades materiais de multiplicação das artes do cimento e do ferro, possibilitou um
forte engajamento presente, tanto na crônica, como também na poesia:
Perto do rio Poti
há um pé de angico
um pé de angico
Perto do rio Poti
Havia um pé de angico
Havia um pé de angico
Foi arrancado pela mania de modernização
Ou foi por causa de alguns bêbados motorizados?
Em Teresina
A noite é companheira e cúmplice
De homens e tratores. (SANDES, 1994, n. 23, p. 72).
27
Sobre o urbanismo moderno e progressista, ver as análises de CHOAY, Françoise. O urbanismo. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
Essas “vozes” destoantes do processo veloz das transformações urbanas são
testemunhas das mudanças que se operavam ao nível mais imediato das consciências. O
sentimento da perda foi impresso pela linguagem que passou a desempenhar a função de fazer
crer uma determinada concepção da cidade, de fazer circular “velharias”, como uma forma de
irromper com o presente, de perpetuar o efeito do fantasma, de forjar um tempo que se
deveria manter conhecido, evitando-se possíveis “estranhamentos”. Como em um grito de
desespero, no sentido de apanhar o tempo com as mãos, de mantê-lo sob freios.
O processo de descaracterização da cidade não era apenas um fato de conotações
restritas ou observáveis somente em termos de amplos espaços, era possível que esse fato
fosse de encontro com a própria experiência doméstica do cronista, como atesta sua
indignação diante da desfiguração da sua casa na Rua Eliseu Martins, que ficara de herança
para os familiares de sua madrasta; dessa forma desabafa:
Hoje me proibir de andar pelas imediações dessa casa de esquina, ampla e de
relativo conforto. Dói-me o espírito vê-la como está dividida em vários
compartimentos comerciais. A sala onde meu pai lia e escrevia brilhantes
sentenças jurídicas agora expõe calcinhas íntimas, sutiãs e mais que seja.
Tudo se repartiu em lojas de variado tipo. A chamada sala de visitas, em cuja
cadeira se sentou gente importante, como José Américo, está desfigurada,
serve de venda de tintas. As mangueiras frondosas desapareceram. (TITO
FILHO, 19/08/1988, p. 4).
Nesse sentido, podemos afirmar que tanto os pés de angico da poetisa Glória
Sandes, como a antiga casa de A. Tito Filho, redefinida em outros padrões, alheios aos
sentimentos do cronista, são “restos”, “espectros” que teimam em existir; pois, segundo as
análises de Certeau e Giard, consistem em “abrir uma profundidade no presente, mas não tem
mais o conteúdo que provê de sentido a estranheza do passado” (1994, p.192). Esses
“fantasmas” são, nesse sentido, delinqüentes,
28
posto que existem em uma outra conotação,
invertendo os códigos de uma plasticidade moderna, realizando e identificando outros signos,
desafiando aqueles que se propõem “atuais” ou “inovadores”.
28
Para Certeau (1999), delinqüente é aquele que se caracteriza por viver nos interstícios dos códigos, onde esses
os desmancha e desloca-os, inventando outras maneiras de viver.
Esses estranhos “restos” delinqüentes são códigos que presumivelmente acessam
outras temporalidades e formas de elaborações urbanas; “ruínas” que a modernidade evita
olhar, pois são espelhos do desgaste; “brotoejas” em uma cidade estranha aos conceitos
urbanísticos do passado; são “espectros que rondam o urbanismo” (CERTEAU;
GIARD,1994, p.190). Nesse caso, a linguagem literária cumpre a função de inverter o tempo
dessas “ruínas”, possibilitando acessar outras virtuais possibilidades de entendimento,
propondo que passado e presente sejam cruzados, em uma perspectiva inovadora, no intuito
de tornar possível o conhecimento dos sujeitos e dos objetos diante da fluidez dos “usos”, que
vão se estabelecendo durante o curso do processo histórico.
Essa visível despreocupação com o tempo, unindo passado e presente, em uma
explicação sem obrigação de verificação, é própria da narrativa utilizada pela crônica, pois
esta é plenamente “substituída pela exegese, que não se preocupa com o encadeamento exato
de fatos determinados, mas com a maneira de sua inserção no fluxo insondável das coisas”
(BENJAMIN, 1994, p. 207).
Por sua vez, a narração do cronista redime o passado e possibilita um encontro na
reminiscência, estabelecendo uma intensa colisão, marcando lugares de memória, pois estes
possuem “um lugar duplo; um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua
identidade e reconhecido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de
suas significações” (NORA, 1993, p. 27). O cronista da urbe elabora suas metáforas, tendo
como direcionamento suas perspectivas, sua visão apurada e astuciosa em atribuir sentido às
coisas e as pessoas que, na maioria das vezes, passam despercebidas devido à aceleração do
tempo moderno, pois a crônica:
entre todas as formas épicas é aquela cuja inclusão na luz pura e incolor da
história escrita é mais incontestável . E no amplo espectro da crônica, todas
as maneiras com que uma história pode ser narrada se estratificam como se
fossem variações da mesma cor. (BENJAMIN, 1994
b
, p. 209).
Dessa maneira, entendemos que os referenciais emotivos do cronista foram
substituídos por uma experiência carregada de sentidos, pois dizem e anunciam uma época,
elaboram elos que nos permitem entrar em contato com os clamores daqueles que sentiram
mais arduamente seus valores e sentidos espaciais serem substituídos ante a velocidade do
vento das transformações:
Fico a pensar na ambição dos homens. O dinheiro torna vil quem o
ambiciona e o tem como deus. Pois está a que ponto relegarem a memória
de Arimathéa Tito, meu pai, um dos mais admiráveis juízes do Piauí, reto,
caráter sem nódoa, homem de bem, pobre, humilde, mas dedicado servidor
de sua terra, havendo ocupado vaga no Tribunal de Justiça e lecionando na
velha faculdade de direito. (TITO FILHO, 20/08/88, p. 4).
Testemunha de um processo de desterritorialização, o cronista percebe de forma
sensível suas mutações pessoais aliadas às mutações espaciais. O seu sentimento de
desenraizamento, com relação à própria localização, em um tempo e espaço modificados
velozmente, era atribuído pela forma como se via em meio a um processo em que se
verificava o deslocamento ou dissolução de fronteiras, pontos de referência, tendo em vista
que as relações, os processos e estruturas globais na modernidade fazem com que “tudo se
movimente em direções conhecidas e desconhecidas, conexas e contraditórias” (IANNI, 2002,
p. 95).
Foto 10 Demolição do prédio da esquina das Ruas Senador
Teodoro Pacheco com Riachuelo, atual prédio do Banco Rural.
Fonte: Revista Presença, 1987.
Por conseguinte, corpo e espaço vibram em uma batalha contra o processo de
individualização e insensibilização, causada pela prática de um mercado imobiliário
preocupado em investir em uma cidade que apresentava tendências para uma intensa
especulação imobiliária, devido à existência de grandes extensões de terra e falta de uma
política de preservação patrimonial, fazendo com que “antigos” prédios, casarões e
estabelecimentos comerciais fossem suplantados pelas “novas” necessidades e formas de
viver urbano, como atestaram os grandes estacionamentos construídos sobre as bases dos
escombros da “antiga cidade. O cronista ainda insiste em denunciar outras
descaracterizações, conforme podemos verificar:
Demoliu-se o tradicional café Avenida, onde homens ilustres se
encontravam para palestração amistosa. Hoje o local serve de
estacionamento de automóveis. Quanta desafeição a uma comunidade
acomodatícia e inconsciente dos seus direitos. (TITO FILHO, 20/08/88,p. 4).
Prenhe da idéia de sua posição privilegiada de denunciante e intelectual,
29
não
poupou, muitas vezes, rixas aos políticos de prestígio, como foi o caso em que apontou, de
maneira entusiástica, a forma grosseira e covarde como um conjunto de herança histórica o
29
Segundo análise de Albuquerque Junior, o intelectual é “aquele que, ao contrário do erudito, não desempenha
apenas o papel de legitimador do regime ou de analista, mesmo crítico, da ordem a partir e em nome da qual ele
fala [...]; o intelectual busca intervir nos destinos de seu país, de sua nação ou de sua classe social, em nome de
uma universalidade de princípios e valores” (2005, v. 3, n.6, abril) Fortaleza: Departamento de História da UFC.
prédio que alojava a antiga Secretaria de Fazenda, a Faculdade de Direito, a Diretoria das
Obras Públicas, a Chefia de Polícia – foi demolido para:
a bestialógica construção de um centro administrativo desnecessário […]
pois sem dinheiro para terminar o elefante branco, vendeu-se o arcabouço ao
ministério da Fazenda, que concluiu e nele assentou vários dos setores
administrativos. Proeza de herói, a do conterrâneo Helvídeo Nunes. (TITO
FILHO, 20/08/88, p. 4).
O tom irônico dirigido ao governador Helvídio Nunes resultou em uma nota de
explicação, contida no jornal de circulação mensal da Academia Piauiense de Letras (APL),
onde o ex-governador e também ex-senador expôs que, ao renunciar ao governo, em maio de
1970, deixou uma infra-estrutura prévia, inclusive para a construção de elevadores, além de
dinheiro em banco, sendo dessa forma impossível culpá-lo pela venda do “esqueleto” ao
Ministério da Fazenda (NOTÍCIA ACADÊMICA,1988, n. 36, p. 9).
Em resposta à celeuma, o cronista adverte que:
[…] o governo não tinha necessidade de demolir esse conjunto arquitetônico
e levantar na área um elefante para abrigar repartições públicas que
poderiam ser levantadas noutros locais de Teresina, inclusive
descentralizando-se os órgãos administrativos e evitando-se a concentração
de pessoas e veículos em área central (TITO FILHO, NOTÍCIAS
ACADÊMICAS, 1988, n. 36, p. 9).
Essa ênfase combativa contra o que designava de “abusos contra a cidade” era
vigente devido à consciência que tinha em ser uma espécie de “arauto” contra o sentimento de
acomodação e falta de sentido de cidadania, que, para o cronista, procedia da maior parte da
população, revelando, assim, uma postura intelectual aliada a uma atitude política. Sevcenko
(2003), ao referir-se às tensões literárias na Primeira República, analisou que:
[...] no Brasil, esses intelectuais postavam-se como os lumes, os
representantes das novas idéias de acordo com o espírito da época, a indicar
o único caminho seguro para a sobrevivência e o futuro do país. Seu orgulho,
o do papel que se arrogavam, beirava a soberba quando advertiam a nação
vacilante em seguir-lhes os passos, de que ‘ela corre hoje em dia riscos os
mais sérios se não souber ver a hora e não tiver a energia necessária para
colocar-se como exigem os seus problemas vitais’. (Ibid., p. 102).
Dessa maneira, guardadas as devidas proporções em termos de um efetivo
combate contra os riscos e os perigos trazidos pelos “novos tempos”, o que houve, de uma
certa maneira, foi uma disposição enfática em denunciar as conseqüências que uma nova onda
de urbanização estava promovendo, ao descaracterizar o espaço urbano, tornando a cidade
indiferente aos olhos daqueles que ainda viam-na como possuidora de uma “alma” e estrutura
arquitetônica diferente.
O cronista A. Tito Filho mostrou-se sempre contrário à transfiguração urbana,
preferindo o passado, o idílico, em detrimento da novidade, do progresso que destrói os
resquícios da “antiga” cidade. Essa atitude mostrou-se coerente com relação aos aspectos da
urbanização recorrente no século XX, pois se no século XIX a concepção do espaço estava
relacionada com um ideário higiênico e sanitário, as dificuldades empreendidas pela
urbanização moderna diziam respeito à construção de toda uma infra-estrutura que se
mostrava preocupada com as exigências dos deslocamentos dos grandes sólidos para conter o
aumento populacional, freqüentemente em detrimento do humano e de toda a sua carga
histórica (CHOAY, 2003, p. 288-289).
Essa particularidade induziu a um certo tom amargo de saudosismo e de apego
aos valores que se acreditavam confiáveis, contribuindo para uma produção literária em que a
imagem de Teresina é freqüentemente mergulhada em um tempo que se apresenta bucólico, à
espera de um retorno idílico ao passado; retorno esse que se mostra sempre à espreita, nos
momentos de comemoração ou de afirmação de uma identidade frente às idéias de espaço
planejado e disciplinado.
Esse eterno vir-a-ser é um reflexo do olhar poetizado sobre a capital, onde o
discurso literário pretendeu com toda a sua carga emotiva trazer-lhes sempre um lugar seguro
que, não raro, mostrou-se ser o da memória, o da busca pela cidade que estava prestes a se
extinguir; onde a salvação passava pela necessidade de preservação e tombação do
patrimônio. Dessa forma, o cronista continua sua vocação mnemônica, referindo-se a outros
espaços que foram suplantados:
E os sobrados dos azulejos amarelos, na rua Bela (Teodoro Pacheco),
esquina da rua Boa Vista (Rui Barbosa)? Mandou construí-lo o fazendeiro
José Félix Alves Pacheco, que não se trata do poeta simbolista do mesmo
nome. Para os serviços veio mestre-de-obras de São Luís, que assentou os
azulejos portugueses. Demoliram-no em 1969 no lugar se fez o espigão
chamado Palácio do Comércio, destinado quase a aluguel de salas.
Se Alberto Silva levantou o Albertão, estádio de futebol sem platéia o seu
figadal inimigo Dirceu Arcoverde devia efetuar cousa igualmente
monumental e levantou o Verdão, determinando o fechamento de vias
públicas com que mais uma vez aleijava a cidade.
Desapareceu a casa de Antonino Freire. Os calçadões liquidaram a praça Rio
Branco, recanto agradável de tradição. João Mendes Olímpio de Melo,
prefeito, deformou o Teatro 4 de Setembro no primeiro centenário de
Teresina. A querida casa de espetáculo tinha, de cada lado área ampla
arborizada, de inconfundível beleza. Anulavam-se e no lugar surgiu casa de
bebidas e comidas arrendada […] A estalagem passou a boteco de segunda
classe com o correr dos anos. A imponente área plantada do outro lado foi
cedida pelo prefeito Agenor Almeida a comerciantes que no local mandaram
construir certa espelunca de dois andares. No térreo instalou-se venda de
pastéis e bolos, na parte superior funcionava jogatina permanente. (TITO
FILHO, O DIA, 21-22/08/88, p. 4).
Podemos perceber, nessa crônica, que o patrimônio arquitetônico de Teresina é
definido pela carga de sua herança histórica; neste sentido, os vestígios de uma arquitetura
colonial (os sobrados, os azulejos) passaram a ser ansiados como registros de uma época, e,
por vezes, aliados a um sentimento de identidade, de pertencimento. Esse tipo de relação, com
base no medo em desfazer-se de coisas, onde se pressupõe valor histórico, parece estar
posicionado dentro de um dos paradigmas politico-culturais de preservação do patrimônio
urbanístico,
30
analisado por Canclini, como “tradicionalismo substancialista”, pois
representam aqueles que
julgam os bens históricos unicamente pelo valor que têm em si mesmos, e
por isso concebem sua conservação independentemente do uso atual.
Consideram que o patrimônio está constituído por um mundo de formas e
objetos excepcionais, onde não contam as condições de vida e trabalho de
quem os produziu. (1994, p. 103).
30
Os outros paradigmas políticos culturais de preservação do patrimônio apontados por Caclini (1994) são o
mercantilismo conservacionista e monumentalista e finalmente o participionista.
Nesse contexto, o cronista percebe a cultura como um viés preso aos monumentos
e às formas de conservação e defesa dos bens históricos, contribuindo para uma visão
“tradicional” de pensar o patrimônio, visto que parte, inicialmente, da perspectiva desse,
enquanto valor simbólico, em si, não levando em consideração que estes, assim como as
cidades, se transformam, ou, dito de outra forma, o cronista não percebe que
[...] toda cultura é resultado de uma seleção e uma combinação, sempre
renovadas de suas fontes [...] é produto de uma encenação, onde se elege e
adapta o que se vai apresentar, de acordo com o que os receptores podem
escutar, ver e compreender. As representações, desde os relatos populares
aos museus, nunca apresentam os fatos, nem cotidianos nem transcendentais:
são sempre representações, teatro, simulacro. (CANCLINI, 1994, p. 112).
Deste modo, alguns intelectuais, acadêmicos ou o, fizeram uso constante de
posições conservadoras, no que diz respeito, aos valores, idéias e modificações de
sensibilidades que iam surgindo na cidade. Estamos denominando de conservador(a)
qualquer atitude que busque explicações em atos ou feitos do passado, apontando-os como os
indicadores verdadeiros, fetichizando-os como valores que estariam acima de qualquer
referencial, hostilizando, portanto, novos paradigmas, pois o contrário sabe “que os objetos
adquirem e mudam seu sentido em processos históricos, dentro de diversos sistemas de
relações sociais e submetidos a construções e reconstruções imaginárias” (CANCLINI,1994,
p. 111).
É principalmente sob esse duplo enfoque que buscamos analisar as crônicas, no
sentido de transpô-las, registrando os vários sentidos que circulam entre o escrito literário e as
formas de pensamento; e, principalmente, procurando mostrar o que elas revelam, apontam,
manifestam, enquanto imaginário de uma época, buscando um entendimento plural e cultural
do urbano. Além das modificações na materialidade da cidade, buscamos compreender as
fissuras, as fendas, que caracterizam sensibilidades em seus processos de modificações e
permanências.
Os relatos das crônicas fixam posições, constroem conteúdos e sentidos, fazem
aparecer um arranjo cultural, extratos de vivências, modos de pensar e sensibilidades; operam
com estratégias, tentando aproximar-se de um imaginário coletivo de uma época. São formas
de apresentar um “dado”, bastando, para tanto, recolhê-los como sintomas e indícios,
conforme apontou Carlo Ginzburg (1991 p.143-145).
2.3 Mudanças e permanências: olhares dos cronistas
Em uma crônica denominada “O Entrudo” (O DIA, 10/02/1988, p. 4), A. Tito
Filho faz uma comparação entre as festas carnavalescas antigas e atuais, realizadas em
Teresina. Nos carnavais antigos, demonstrou que havia banhos dos foliões em gamelas, tinas
e barris, além da presença de aspectos que considerava incivilizado”, como a tradição de se
jogar papel picado, bisnagas de água perfumada, e aquelas “pouco higiênicas”, além de
vinagre; sendo essas atitudes consideradas grosseiras. As festas carnavalescas modernas eram
representadas pelas práticas “indecentes” dos “blocos dos sujos” que desfilavam na avenida
Frei Serafim, e que, segundo a descrição do cronista, brincavam “aos empurrões, brigas,
fantasias insossas, cunhãs de peito de fora, nádegas desenfreadas, muito sapatão. E cachaça”
(TITO FILHO, O DIA, 10/02/1988, p. 4).
A comparação feita entre o antigo “Entrudo” e o “Bloco dos Sujos” antecipam
uma visão das imagens que o cronista julga condenáveis, pois o de encontro ao que
considera “baixos instintos e grosserias”, “doses de maus bitos”, unidas à condenação da
exposição dos corpos. Essas formas “degradantes” pelas quais a sociedade teresinense poderia
chegar.
Porém, essas exposições “deprimentes” poderiam ser substituídas pelo que o
cronista designou de “bons carnavais”, onde esses se identificavam com a sofisticação do
carnaval parisiense. Dessa forma, o uso de máscaras, as brincadeiras realizadas entre os
mascarados, ao descerem e subirem às ruas, constituíam, segundo o cronista, formas
civilizadas de participar do carnaval com as “maravilhosas batalhas de confete, a fina rodela
de papel colorido, lançado aos punhados pelos foliões uns aos outros, homens e mulheres”
(TITO FILHO, O DIA, 10/02/1988. p. 4).
A imagem do que seria um “bom carnaval” é o referencial para o que o cronista
designa de bons modos ou “civilizados”, nesse sentido, contribui para a elaboração de um
conjunto de opiniões sobre o que deve ser considerado aceitável ou não, fazendo circular, via
narrativa, uma quantidade de idéias sobre a cidade ordenadora e idealizada. Porém, essas
formas refinadas de comemoração, no entender do cronista, foram substituídas pelos
[...] bailes luxurientos, despudorados no Rio registraram-se cenas de sexos
explícitos nos salões de vergonheira sem conta. Sodoma e Gomorra da
Bíblia são pinto na presença de tanta corrupção moral que a sociedade
consente porque cala -, e tudo se fotografa para as reportagens de revista
pornográficas. Na terra carioca agora, a escola de samba, espetáculo de
milhares de figurantes, um luxo, milhões de cruzados nas avenidas dos
sambódromos. […] Nas escolas de samba impera o peito de fora e os fios-
dentais. Mas os bumbuns são dignos de ver e admirar, ao contrário dos de
Teresina, murchos e caídos. (Tito filho,O DIA, 10/02/1988, p. 4).
Outro cronista, José Eduardo Pereira,
31
lamenta a aprovação no Congresso
Constituinte do fim absoluto da censura, pois, para esse, os espetáculos de carnaval exibidos
pela televisão atrapalhavam a educação moral de crianças e jovens, tendo m vista que as
emissoras,
[...] sem consultar as famílias que estão em casa com seus filhos, querendo
ver o bonito carnaval, decidem que o bonito do carnaval é a luxúria explicita,
o das mulheres despudoradas que saem nas noites festivas, ostentando o
fio dental, que nasceu para a semi-nudez das praias, ou os tecidos
transparentes que mostram, encenado uma dissimulação, a intimidade dos
corpos, como se estivessem nos pródromos de um ato sexual, que de fato
sugerem. (PEREIRA, O DIA 18/02/1988, p. 4).
31
José Eduardo Pereira (Realengo-RJ, 1929; Teresina-PI 1993). Jurista, professor, jornalista e escritor. Exerceu
funções publicas e escrevia diariamente sobre os mais variados assuntos, principalmente no campo da
Sociologia, Economia, política, e temas sociais. Foi marcante sua presença no jornal “O DIA” onde dividiu com
A.Tito Filho a escrita de algumas crônicas com o título de “Notas Esparsas”.
O fragmento da crônica aponta que, em plena “abertura política”,
32
com a escrita
da Carta Constitucional, ainda resistia uma forma de relação com o corpo, que partia de várias
matrizes, indo em vários movimentos discursivos, do corpo polido (dos clubes e bailes de
máscaras) para o corpo sujo (dos blocos de ruas), excedendo-se no corpo censurado (pelas
críticas daqueles que “observam”).
Diante dessas considerações, nos é possível dizer que a crônica aponta para a
existência de novas maneiras, expressões, sociabilidades, hábitos. Assim, mesmo por trás das
interdições, das proibições, revela-se um movimento social em busca de um lugar, identidade
e espaço, como demonstraram aqueles que faziam a exposição de seus corpos e das facetas de
gênero, passando a formular discursos mais pontuais, exatamente porque buscavam escapar
das identificações superficiais ou de qualquer tipo de determinação.
Assim, a nudez, o uso de biquínis “cavadíssimos”, como o modelo “asa-delta”,
“fio dental”, invadiram a moda-praia e as avenidas, nos períodos de carnaval, na década de
1980, bem como a utilização dos adesivos coloridos, que poderiam ser encontrados em
formato de flores ou borboletas, substituindo de forma bem “livre” a parte de cima do biquíni,
o que trazia ao “corpo censurado” novas e diversas formas de mostrar-se, de aventurar-se por
outras situações e inquietações (ALZER; CLAUDINO, 2004, p. 286).
Essas conquistas foram inesquecíveis, pois abalaram os conceitos morais da
sociedade conservadora brasileira, recentemente saída das “prisões” do período ditatorial,
33
multiplicados pela experiência do cinema, principalmente aqueles da safra brasileira que
procuravam endossar as problemáticas mais recentes com relação às condutas e valores
sociais. Filmes como “Menino do Rio”
34
contribuíram para uma geração em busca do corpo
32
A redemocratização é o período referente ao fim da ditadura militar, que corresponde ao governo de José
Sarney, entre os anos de 1985 a 1989.
33
O período ditatorial é também conhecido como “anos de chumbo”, entre 1964 a 1985, quando os presidentes
eram eleitos entre o corpo militar do alto escalão brasileiro.
34
Um dos filmes emblemáticos da década de 1980 resume-se na história de Ricardo Valente, um jovem que
ganha a vida fazendo prancha de surf e se apaixona por uma garota da alta sociedade, mas que tem grande
atração pelo pai do rapaz.
sadio, da entrega às “aventuras” em alto-mar, ao sabor das pranchas de surf. A geração “pop”
identificou-se com tais possibilidades, que envolviam um mercado de consumo altamente
rentável. E, em 1984, o filme “Bete Balanço”
35
propôs à juventude um mundo alternativo de
possibilidades, regados a muito rock e drogas (ALZER; CLAUDINO, 2004, p. 280).
Todas essas projeções nacionais sacudiram os cinemas em termos de público, e
tinham como objetivo-alvo os adolescentes e jovens, que viam nessas oportunidades a
possibilidade de mostrar suas grifes e vestuário, Tais como: a calça Fiorucci desbotada ou
Ustop, além das calças baggy e semi-baggy, ou mesmo, as meias coloridas, usadas pelos
meninos e meninas; e os tênis Montreal ou All-Star, além dos Kichutes e das Melissas
(ALZER; CLAUDINO, 2004, p.280-282).
O giro nacional não estava de qualquer forma desvinculado das produções
internacionais; filmes como “Blade Runner”,
36
“E.T: o extra-terrestre”,
37
e a trilogia “De Volta
para Futuro”,
38
além da alta tecnologia em efeitos especiais, propunham uma preocupação
com “mundos” diferentes e uma relação espaço/tempo que fugiam das idéias até então
conhecidas e procuravam explodir com dimensões e perspectivas até então formuladas.
Porém, se os cinéfilos (ou não!) podiam viver e experimentar outras sensações,
embriagando-se de novas possibilidades, visualizando novas perspectivas de mundo,
dividindo novos símbolos de consumo, poderiam também abrir o jornal e deparar-se com
textos restritivos, como na crônica “Repensando a Moral Social”, onde o cronista José
Eduardo Pereira mostra seu ponto de vista sobre o homossexualismo, afirmando que:
35
Com a trilha sonora musical do grupo Barão Vermelho, o filme refere-se à fuga de Bete para o Rio de Janeiro
em busca de seu sonho de ser cantora.
36
O filme refere-se ao começo do século XXI, onde uma corporação desenvolve robôs fortes e ágeis, quase tão
inteligentes quanto os seres humanos, esses são chamados de replicantes e são quase tão inteligentes como os
humanos.
37
Lançado em 1983, o filme de Steven Spielberg conta a história de um alienígena perdido na terra, que recebe
ajuda para voltar ao seu planeta de origem.
38
A trilogia conta a história de Marty, um jovem que viaja para o passado através de uma máquina do tempo
criada por um inventor maluco.
O que vemos agora: a liberação total. Nem me digam que restrições de
qualquer ordem quem é homossexual, seja veado ou sapatão, usa e abusa de
seus instintos nos trejeitos exibidos, no agarrado nojento da parceira passiva.
Ninguém quer saber do convencional ou entende por convencional aquilo
que limita a nudez, a exibição das partes mais íntimas, a mostra das carícias
dos amantes, que já não é mais o bem que se desfruta à sombra do jardim, na
penumbra do poste da praça, nas alcovas. (PEREIRA, O DIA, 14, 15,
17/02/1988, p. 4).
Embora parta de um posicionamento “conservador”, o cronista adianta, portanto,
que mudanças vêm ocorrendo com relação à família e a sociedade:
Não podemos tapar o sol com a mão. É verdade os tempos mudaram. A
moral social é outra. A família também não é a mesma de quando a dona de
casa não trabalhava fora e cuidava dos filhos as quase vinte e quatro horas
do dia, submissa ao sistema patriarcal, enquanto inapta, ao machismo do
marido. Filhos nascidos de lares onde marido e mulher dividem a direção da
família e o orçamento doméstico […] vêem os pais à hora de dormir, e
estes não tem tempo de acalentar o seu sono com histórias de trancoso,
sob a maciez do lençol dividido. (PEREIRA, O DIA, 14,15, 17/02/1988, p.4).
É perceptível pelas advertências do cronista a maneira como alguns valores
passaram a ser questionados, exatamente porque deixaram de ser óbvios ou enquadrados em
papéis tradicionais, precisando ser legitimados pelo discurso do intelectual; pois, como analisa
Stuart Hall,
[…] as identidades são construídas dentro e o fora do discurso […] nós
precisamos compreende-las como produzidas em locais históricos e
institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas
específicas, por estratégias e iniciativas específicas (2000, p.109).
Dessa forma, o movimento de deslocamento do sujeito, seu descentramento dos
discursos rígidos e lógicos, sua “aventura” ou incursão por outras possibilidades tornavam
urgente a busca por conhecê-lo e imprimir significados, enquadrado-os, como fez o cronista
Pereira, quando classifica o movimento homossexual e os define pelos adjetivos de “abuso
dos instintos” e “trejeitos”, além de irem “contra o convencional” e a favor da “liberação
total”.
Em uma crônica intitulada “Mulher”, A.Tito Filho parte de uma posição “natural”
de sua identidade enquanto homem e passa a analisar e a construir através de “categorias” e
“significados” o perfil da mulher; assim declara impetuosamente:
Até Fides Angélica, de que me orgulho, esteve na televisão para dizer que as
colegas do antigo sexo frágil querem mais coisa. Que mais? ganharam até
o dia internacional, que os machacás nunca obtiveram. Rabos-de-saia dos
mais variados tipos abandonaram faz muito tempo o seu lugar certo,
incontestável, o lar. Não acedem mais lenha, soprando brasa, nem fazem
doces nos tachos caseiros. Usam farda, fumam, jogam, bebem uísque. (TITO
FILHO, O DIA, 12/03/1988, p. 4).
As modificações com relação ao gênero, ao modelo burguês de casamento e da
família entram em declínio, a partir dos anos de 1960, segundo Almeida e Weis (1998),
quando houve o conflito de duas gerações, uma que tomou o poder político e pretendia
combater os “males” contra a dissolução dos costumes tradicionais, e, a outra, que
denominada de geração pós-guerra, chegava à idade adulta e procurava refletir sobre esses
sistemas “tradicionais” (Ibid., p. 399).
Para Almeida e Weis, a geração classe-média do baby boom estava interessada na
contestação da moralidade sexual […] a exemplo do que acontecia nos
Estados Unidos e Europa […] no caso das mulheres, o repúdio aos
comportamentos tradicionais, ‘pequenos burgueses’, se faziam em nome de
um ideal de autonomia que deveria se realizar não apenas como
possibilidade de viver livremente a paixão e as pulsões sexuais. Isso tudo
também estava fortemente associado à idéia de existir no mundo para além
da vida doméstica, por meio da realização profissional, da independência
financeira que o trabalho poderia assegurar e, por último porém o menos
importante, da atividade política. (1998, p. 400-401).
Dessa forma, se na crônica Fides Angélica, então presidente da Ordem dos
Advogados, secção do Piauí, representava um exemplo de onde a mulher poderia chegar,
ampliando suas conquistas, o nosso cronista, com todos os seus clichês”, se enquadraria
muito bem na geração daqueles que achavam melhor controlar através do discurso, da
ideologia, da castração. Isso ainda foi percebido quanto tentou responder o questionamento:
“que mais deseja a mulher?”
[...] arrebanhou noventa por cento dos empregos. Nas repartições, existem
dez homens para cem mulheres e destas poucas dão duro, trabalham. As
outras semelham uma festa de periquitos em manga madura: fofocam.,
Cinqüenta por cento vivem de licença. Muitas e muitas diariamente põem
vestidos novos, um luxo. Os homens raros exercem chefia. Os demais
poucos, uns dez, no máximo, frustrados, cabisbaixo, raquítico, caras
chupadas, roupa tipo bate-e-enxuga, fundilhos puídos, sem o antigo topete de
macho ficam nos seus respectivos cantos, taciturnos, mal-arranjados.
(TITO FILHO, O DIA, 12/03/1988, p. 4).
As representações sobre o papel da “mulher” e do “homem”, e a clivagem que
cortou e definiu esses campos de saber são próprias da linguagem, que faz aparecer os relatos.
Para Certeau, “o relato não é apenas uma descrição, mais que uma fixação, é um ‘ato
culturalmente criador’; ele realiza o que diz, o relato é fundador do espaço pois desloca e
supera limites” (1994, p.209). Assim, podemos observar que o cronista, ao inverter os papéis
de “mando” entre os gêneros, situa de forma degradante a figura masculina, como se esta ao
perder seus referenciais “naturais” entrasse em estado de caos. O cronista instaura também,
através do relato, discursos que criavam um efeito de verdade, como o que assemelhava as
mulheres trabalhadoras à imagem de fofoqueiras. Estas produções de representações são
importantes analisar-se, pois,
[...] as percepções do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa dos outros [...], as lutas de representação têm
tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção
do mundo social, os valores que são os seus, o seu domínio. (CHARTIER,
1990, p. 17).
Na próxima crônica nos é possível visualizar, mais uma vez, a idéia do cronista
com relação à emancipação feminina em Teresina, enquanto campo e disputa de poder, e
perceber como esse movimento foi representado pela lente do cronista:
Acabou-se a supremacia do nero masculino. Ensinou-se durante anos
seguidos que o masculino tinha supremacia sobre o feminino. Dizia-se o
brasileiro é obrigado a ter vergonha e brasileiro envolvia os dois tipos.
Sarney mesmo liquidou o mandamento e reconheceu o feminino com direito
ao primeiro lugar, usando sempre o vocativo Brasileiras e Brasileiros.
Nos dias que correm o chefe do casal está representado pela mulher.
Retornou-se ao matriarcado. Jamais se viu a supradita com tanto prestígio e
forma de mandar. As donas se metem em todos os assuntos, inclusive
naqueles para os quais não são chamadas. Discutem besteiras colossais.
Lêem mediocridades. Fumam. Consomem muito álcool, chegam a grandes
pileques. Foi-se a virgindade – e raríssimas mantém o fogo sagrado.
Se machismo era o poder de mando incontestável por parte do gajo,
feminismo deve tomar outra significação. Justamente a de domínio completo
do varão, pela mulher, machona de corpo e alma médica, advogada,
prefeita, deputada, senadora, jornalista, policial, romancista, motorista de
ônibus, assaltantes, maconheiras. (TITO FILHO, O DIA, 25/03/1988, p. 4).
A crônica demonstra que o espaço privado, antes “campo de atuação” das
mulheres, estava por um fio, pois o cronista tenta voltar no tempo, ao buscar reprimir
aspectos que se haviam tornado corriqueiros, no que diz respeito à progressiva carreira
feminina, ao ocupar funções até então marcadas pelo universo masculino, fazendo com que
perceba, nessa condição, uma gradativa diminuição no campo do trabalho para os homens.
Dessa forma, a “interferência feminina” no espaço público parece ter sido realizada não sem
antes uma ferrenha disputa de poderes, nos quais persistiam valores conservadores.
Nesse sentido, as crônicas são ricas de significados, pois externam fatos e
conflitos existentes, tanto no espaço privado quanto no público. São resultados da vivência e
da interlocução do cronista com o social, com o seu lugar de discurso, utilizando uma das
várias formas de “dizer”, mas que pela riqueza e poder de detalhes tornam-se um meio
essencial e importante de análise histórica.
As impressões do cronista, com relação aos reflexos do movimento feminista,
39
e
o tom sarcástico com relação à liberação feminina partem de um discurso conservador
empenhado, mesmo em pleno clima de redemocratização, em denegrir e ridicularizar a
imagem feminina, recurso esse utilizado por aqueles que viam nesses artifícios um
instrumento para combater os avanços do sexo feminino. Segundo os dados contidos no artigo
“Pisando no Sexo Frágil”, Raquel Soihet aponta que “em 1973, apenas 30,9% da população
39
Movimento social surgido nos anos 1960, nos países mais desenvolvidos, e, conforme Hobsbawn, podemos
perceber que “o primeiro e mais impressionante exemplo dessa nova consciência de gênero foi a revolta das
mulheres tradicionalmente fiéis nos países católicos romanos (Brasil, grifo nosso) contra doutrinas impopulares
da Igreja, como foi mostrado notadamente nos referendos italianos em favor do divórcio (1974) e de leis de
aborto mais liberais (1981)” (2000, p.306).
economicamente ativa eram do sexo feminino. Mas em 1999 elas já representavam 41,4% do
total. Receber salários iguais, no entanto, ainda é tabu” (NOSSA HISTÓRIA, 2004, n. 3, p. 20).
Deste modo, nos indagamos em que sentido essas relações, às vezes tratadas como
coisa do “passado”, ou banalidades, quando o estudo é o espaço da cidade, ajudam ou
refletem o urbano? Como essas imagens contribuem para a análise cultural do urbano?
Sabemos, a principio, que a cidade é um palco de imagens, atravessadas
continuamente por uma clivagem de discursos, operando em rios sentidos e fazendo criar
sentidos culturais, tendo em vista que as “obras literárias em prosa ou verso têm contribuído
para a recuperação, a identificação, a interpretação e a crítica das formas urbanas”
(PESAVENTO, 2002, p. 13). As crônicas e os cronistas são considerados, a partir de sua
inserção na arena das polêmicas e conflitos de sua contemporaneidade, como sujeitos e
personagens das histórias que contam, vivendo portanto o seu tempo como indeterminação,
como incerteza” (ENGEL, 2004, p. 54).
Acreditamos que o urbano é o palco da experiência moderna; nesse sentido, a
cidade é o lócus privilegiado da ação social e de suas lutas incessantes diante das
transformações capitalistas, e das mudanças de matrizes simbólicas, devido às transformações
identitárias da cidade, que significa “sobretudo que a cidade é formulada como problema e é
pensada e expressa como discurso e como imagem” (PESAVENTO, 2002, p. 158).
Dessa maneira, realçamos que as diferentes imagens que atravessam a cidade
servem como indícios, cacos, que podem indicar mudanças e permanências, como a crônica
seguinte, onde podemos perceber as transformações femininas e sociais, tendo como
direcionamento às imagens utilizadas no vestuário da mulher teresinense:
Muitos anos atrás as donas usavam vestidos no mocotó, também dito osso
gostoso, que ia até o gogó. Por baixo desses cinco metros de fazenda botava
calça tipo samba-canção, abotoada dos dois lados, e por cima desse sungão
bem fofo havia três anáguas, uma combinação e um corpete. Algumas
usavam chapéu e luvas. Sinceramente, dificílimo que aparecessem as mãos e
somente se viam pedaços do rosto. Uma vitória retumbante do machismo,
que não permitia olhares profanos nas carnes de suas deusas.
Grande conquista esteve no fato de chegar o vestido ao meio da canela,
pescoço de fora, manga meio quarto. Nos anos 20 Gabrielle Chanel
modernizou certos aspectos da situação. Na década de 30, voltou-se um
bocado a autoridade. Ombros almofadados. As filhinhas de Eva se
masculinizaram.
Ainda perto de 1940 as meninas de Teresina eram acompanhadas, na rua, de
dois ou três gajos sensuais, quando a calça samba-canção, primeira cobertura
dos possuídos., marcavam o vestido atravessando as defesas naturais das
anáguas e combinações. Para onde a garota ia, os machacás seguiam atrás,
olhos cúpidos e boca aberta.
Durante a guerra de Hitler os vestidos se tornaram funcionais. De 1940 em
diante, houve a revolução de Dior, que queria voltar a padrões antigos.
Pernas escondidas. Feminilidade. Próximo dos anos 60 apareceu a moda
unissex. E de 60 em diante, a estilista Mary Quant revoluciona a moda com a
minissaia, que mostrava a perna toda. Chegou-se à era dos exploradores da
moda. E a moda enlouquece as fêmeas. Calças boca-larga, cigarettes, t-
shirts, camisetas, punk, santo Deus. Quantos processos novos se criam para
que as mulheres gastem dinheiro a rodo. Cada dia mais explorada se a
vaidade feminina. (TITO FILHO, O DIA, 16/03/88, p. 4).
A perspectiva da moda é um interessante termômetro para que possamos perceber,
não obstante os exageros e as ironias do cronista, de que maneira o corpo e a forma de vesti-lo
ou camuflá-lo testemunham uma época e sua forma de elaboração acerca de condutas e
valores. A vaidade feminina “fala” muito da maneira como as mulheres puderam ou não lidar
com seu corpo, e como essas relações eram vistas e entendidas pela sociedade.
Desta forma, desde a moda do “vestido no mocotó”, com suas “anáguas” até as
revolucionárias minissaias de Mary Quant, em meados de 1965, a moda variou e ajudou a
desnudar tabus, como também a diminuir a amnésia coletiva da sociedade, pois proporcionou
(e proporciona) uma forma irremediável de um “eterno retorno” do mesmo, fazendo com que
o antigo volte sempre de forma atual.
Afinal, concordamos que a moda qualifica a cidade, pois essa é o reduto de suas
práticas; é sobre seus muros, suas passagens, ruas e avenidas que cria o seu estilo, revelando
os reflexos de sua criação histórica e cultural. Simples e práticas, versáteis ou estruturadas,
elegantes ou não, as roupas personificam a alma da cidade, pois a revela em todos os seus
detalhes.
O cronista observa que a variedade de estilos utilizados em sua época termina por
explorar a “vaidade feminina”; porém, o que detectamos é que a revolução iniciada de forma
massiva, por Saint Laurent, Paco Rabanne, Mary Quant, Oscar de la Renta, e outros,
possibilitou a rápida difusão da moda atual a partir da explosão das revistas femininas, das
lojas de departamentos, dos shoppings e da publicidade altamente rentável (LAVER,2003,
p.265).
Apesar da preocupação do cronista de que as mulheres terminassem por abolir
“completamente os vestidos”, no final da década de 1970 e início da década de 1980, houve
uma busca cada vez maior pelo estilo tipo “masculino”, com o uso de ternos, jaquetas e
conjuntos bem comportados”, além do uso de camisas e calças, em maior escala, para as
mulheres que avançavam profissionalmente em redutos antes “exclusivos” dos homens.
Os “gastos com as plásticas” ou o “reboco” do corpo, sobretudo das faces, vista
por A. Tito Filho como a forma encontrada para gastar dinheiro, que as mulheres andariam
nuas, refletem um período, apontam para uma nova sensibilidade a preocupação
“exagerada” como o aspecto físico fazendo circular uma necessidade cada vez maior com
relação ao consumo de acessórios, maquiagem, penteados e bijuterias. Segundo Mello e
Novais (1998), os hábitos de limpeza pessoal, na sociedade do final do século XX, seguiu-se à
modernização da beleza, sobretudo das mulheres; assim,
[...] o rouge foi sendo preterido pelo blush, o de arroz pelo compacto,
as máscaras caseiras de beleza, de abacate, de pepino, de camomila etc.,
pelos modernos cosméticos, pelos cremes de limpeza, que substituíram o
leite de rosas e o de colônia, pelos hidratantes, esfoliantes, rejuvenescedores,
da Max Factor, Helena Rubinstein, Elizabeth Arden, ou da Avon, para as
classes populares. (1998, p. 568-569).
A globalização,
40
esse surto da universalização do capitalismo, propagado com
maior êxito no fim do século XX, favoreceu a emergência de uma sociedade global, e assim
ofereceu “modelos” ditatoriais e fugazes de moda, atravessando muros e fronteiras. Porém,
mesmo com a velocidade dessas informações, conservou-se uma certa “independência” com
relação aos modos e rituais que cada cidade criava, com suas formas próprias de articular às
novidades, modificando e inventando outras formas de códigos, como as narradas pelo
cronista.
Porém, se a moda serve para demonstrar transformações e sensibilidades na
conduta feminina, segundo o registro do autor, a forma que cada classe a consome também
serve para indicar importantes mudanças:
A chamada alta costura, de empresários inteligentes, costureiros que gastam
fortunas em publicidade, faz que as fêmeas enlouqueçam. Criaram-se os
clubes sociais e de uísque, sob capa de caridade cristã, para desfile de
vestidos caríssimos, comprados a peso de ouro, nas butiques que enriquecem
as proprietárias. Gastando a rodo, a mulher do soçaite precisa de muito
cobre, finanças fortes, a fim de que acompanhe a moda e sustente o hobby
alegre dos comes e bebes e recepções festivas.
A classe média, sem renda, sem as cousas da barriga, compram os panos nos
queimas das lojas vendedoras, custando os olhos da cara tirando o dinheiro
contado para os pirões de cada dia, não pode sustentar os desejos de três ou
quatro mocinhas que reclamam dos pais sandálias, desodorante, xampu e
tecido de cetim, fora jeans e us-top, que elas vêem noite após noite nos
anúncios de televisão (O DIA, 21/03/1988, p. 4).
A televisão, nesse cenário de fascínio comercial, exerceu uma profunda influência
sobre as mudanças de sensibilidade, observadas com grande impacto a partir da década de
1950, quando veio para o Brasil, pela iniciativa de Chateaubriand, sendo visceral também
para a expansão dos movimentos sociais na década de 1960, como o Movimento Negro, o
Feminino e o Pacifista. A emergência de uma realidade televisiva provocou um choque que
mobilizou uma quantidade enorme de mercadorias, que passaram a fazer parte e a transformar
40
Segundo as análises de Santos, a globalização é o “resultado das ações que asseguram a emergência de um
mercado dito global, responsável pelo essencial dos processos políticos atualmente eficazes [...] e possuem
alguns fatores como: a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a
existência de um motor único na história, a mais-valia globalizada” (2005, p.23-24).
cotidianamente os “hábitos, as maneiras de julgar, eleger, sentir e perceber a vida em
sociedade” (ZENHA, 2000, p. 237).
A geração arte-pop”
41
inebriava-se com as inúmeras futilidades que iam sendo
criadas; e, de certa maneira, compartilhavam da necessidade e da vontade de consumi-las,
mesmo que a maioria dessas “novidades” não fosse acessível a todos os segmentos sociais,
conforme demonstrou a crônica; mesmo sabendo-se que essa forma de consumo não se
apresentasse tão superficial, devido às influências criativas, o que tornou a idéia de uma
passividade televisiva pouco provável, embora tenha sido essa a forma ressaltada pela
maioria, segundo se pode observar na seguinte crônica:
[...] Pouco a pouco desaparecem os agradáveis piqueniques de familiares e
amigos, pobres e ricos, substituídos pelos americanizados coquetéis
residenciais ou nos clubes, nos quais o soçaite se delicia nos salgadinhos
sem gosto, enfeitados de rodelinhas de azeitona e salsicha, o tira-gosto da
moda após cada taleigada (taleigada mesmo) de uísque gelado. Instituiu-se a
civilização dos enlatados. As danças típicas sumiram-se. se dança nos
dias que correm, cada homem e cada mulher, separadamente, ou homem
com homem e mulher com mulher, pinotando ou caretando que nem macaco,
na barulheira e histerismo do roquenrol. Não se bebem mais cajuínas, sim
coca-cola., expressão de progresso das coletividades patrícias. A panelada de
bucho e tripa e a mão-de-vaca, comida de sustança na confecção de macho
verdadeiro, cederam lugar aos perfumados estrogonofes. O cinema tem
fundamento na violência. Criança não ouve mais as encantadoras estórias
das vovós bondosas. Educam-se nos xôs da xuxas. O texto é um só, no
Brasil: bumbum de fora, pornografia no ar. A linguagem de gatos e gatas e
até de mestre qualificados vigora, deformada, no ie-iê da nação toda. TU e
VOCÊ são pronomes idênticos. A novela orienta a juventude, a maturidade ,
a velharia para o desrespeito recíproco. Pais e filhos se xingam. O bicheiro
tem “status” e aos estudantes serve de exemplo a uma carreira de conforto
e de conquista amorosas fáceis. Dinheiro a rodo lucram os profissionais da
esperteza. Muitos homens de variado tipo usam brinco nas orelhas e difunde,
a usança pela tevê.
A televisão brasileira, de propriedade dos espertos, dos tubarões de
publicidade, praticam verdadeiro crime espiritual. UNIFORMIZANDO o
Brasil. Música, cantoria, cozinha, vestuário, usos, hábitos, costumes,
estórias, sexo, brinquedos infantis, livros, teatro, cinema, perfume, linguajar,
lendas, modos de mentir, diversões – tudo, mais alguns anos, estará bitolado.
Educação para comprar, para gastar dinheiro na aquisição de quanta
impostura a indústria fabrique. Afeto um só: presente para a mãe, para o
namorado, para o pai, para cada classe do dia que a inteligência dos
negociantes aponta. As cousas e práticas regionais desaparecem a cada
41
A geração “art-pop” desenvolveu-se com o movimento da Pop Art, que tinha um apelo voltado para a cultura
comercial, onde essa era sua fonte inesgotável, com a utilização de materiais fotográficos, publicidade,
ilustrações de revistas e histórias em quadrinhos.
instante. Não se mostra arte, nem se educam as coletividades, senão num ou
noutro programa que as platéias recusam. A deformação é geral. O Brasil
ingressou no caminho da civilização empacotada. (TITO FILHO, O DIA,
19/05/1988, p.4).
Se a imagem de “empacotamento” sobreveio em relação ao de “uso” ou
“criatividade” é porque essas são dispersas e difusas, implícitas na “substituição de valores”
descritas pelo cronista, pois as mudanças observadas com relação à alimentação, as danças,
bebidas, costumes e outros obedecem às transformações culturais. Na opinião de Certeau,
para que haja verdadeiramente cultura, não basta ser autor de práticas
sociais, é preciso que estas práticas sociais tenham significados para àqueles
que a realizam […] pois cultura não consiste em receber, mas em realizar o
ato pelo qual cada um marca aquilo que outros lhe dão para viver e pensar.
(1995, p. 9-10).
Mas, se as mudanças detectadas pelo cronista parecem ser “uniformizadas” pelo
poder da mídia televisiva, asseguramos, no entanto, que essas apontam para uma rica rede de
significados que podem ser entendidas enquanto vibrações de uma época, testemunhas
míticas e dispersas na apreensão de códigos diferentes, que demonstram novas” ao olhar do
cronista, mas que pelos nossos referenciais, mais recentes, não mais têm o mesmo valor,
tendo em vista que se infiltraram de forma decisiva em nossa sociedade, apesar de terem se
transformado em outras formas inventivas de uso e consumo.
A impressão, a imagem narrada pelo cronista é, acima de tudo, uma descrição dos
valores e das sensibilidades vigentes, em um fim de século, em Teresina, onde as antigas
sociabilidades perdem espaço para as “modernas” expressões sociais e culturais, como o
“rock-pop”, difundido pela parceria com símbolos do mercado nacional e internacional,
segundo atestaram os eventos do “Rock in Rio” (1985) ou “Hollywood Rock” (1988), que se
tornaram movimentos sedutores e monumentais para uma geração que procurava nas letras
musicais e nas formas de protesto formas de expressar suas angústias, conflitos e desejos.
O consumo dos “americanizados coquetéis”, “enlatados”, “estrogonofes”,
“uísques”, “coca-cola”, destacados pelo cronista, revelam a permutação de signos e
mensagens em uma sociedade global”, porém essa globalidade não significou (e nem
significa) apenas convergência e integração, mas também
mostra-se visível e incógnita, presente e presumível, indiscutível e fugaz,
real e imaginária. Ela está articulada por emissões, ondas, mensagens,
signos, símbolos, redes e alianças que tecem os lugares e as atividades, os
campos e as cidades, as diferenças e as identidades, as nações e as
nacionalidades. (IANNI, 2000, p. 218-219).
Destacamos, então, que todas as formas culturais apontadas pelo cronista, como
estando “bitoladas”, indicam outros referenciais e possibilidades de entendermos as múltiplas
variações existentes em uma sociedade, os múltiplos discursos, como os do cronista, que, ao
assegurar que as “tradições” deram lugar a “novas” experiências, enfatiza o seu lugar de
discurso, enquanto intelectual e participante de um status quo privilegiado, astuto observador
das transformações que aconteciam com uma parte da sociedade que, ao sabor das inovações,
procuravam marcar seu diferencial, sua exclusividade, seu status, trocando suas “antigas”
práticas, como “piqueniques” e até a “cajuína” (símbolo do localismo), por outras formas de
se mostrar, como os requintados “coquetéis residenciais ou nos clubes”, que passaram a ser
regados à coca-cola e uísque (símbolos da penetração do capitalismo internacional), além dos
“perfumados estrogonofes”.
O tom de denúncia utilizado pelo cronista aponta fragmentos de uma
ambivalência, conseqüências de uma sociedade moderna ou pós-moderna,
42
como alguns
prefeririam, da aceitação e da incorporação de um sistema de contradições, da fluidez com
que as relações e os valores ainda recentes apresentam sinais de maturidade e decadência.
Essa volatilização do tempo e do espaço produz sensações adversas, marcadas pela constante
incerteza ou mesmo pela falta de uma experiência anterior que possa promover uma base
42
Segundo a definição de Maffesoli, a pós-modernidade se caracteriza por ser uma “sinergia de fenômenos
arcaicos com o desenvolvimento tecnológico” (2004, p. 22), daí a retomada de grandes temas explicativos da era
moderna, tais como Estado, Instituição, Espaço etc.
segura. Assim, as diferentes situações são marcadas pela instabilidade, como essas retratadas
pelo cronista:
O convite partiu desse conterrâneo inteligente e dedicado, jornalista de bom
conceito, José Carlos Alencar, de “O Globo” do Rio. Almoço no Hotel Rio
Poty eu, minha mulher Delci Maria e os confrades José Forte Filho e Iara
Osana. Um dia especialíssimo em restaurante CINCO ESTRELA, que
perde para os SEIS, SETE e OITO ESTRELAS de Fortaleza. Fomos
recebidos à porta da vistosa e revolucionária hospedaria por um almirante,
de capacete brilhoso. Reconheci nele meu bom compadre Chico Bico,
metido numa impecável fardação. Enfiamos na primeira sala; depois noutra e
assim percorremos umas seis, ricamente aparelhadas, com cavalheiros e
cavalheiras aos cochichos, pelos cantos, na parecença de que tramavam um
golpe para ganho de eleição prefeitural. Em todas, muitos homens fardados à
moda russa, batendo continência para nós os convidados. Gostamos do
maravilhoso recepcionamento. Por fim atingimos o imenso salão onde
funciona o restaurante, de mesas enfeitadas, tudo limpo, convidativo, grau
dez. tomamos umas das mesas. Chegou ao nosso território de bom gosto, de
toalha alvíssima, galhetas de todo tipo, um cidadão de casaca, lapela
brilhantes, gravata borboleta. O paletó semelhava batina de padre velho,
comprido como o quê. Então houve os cumprimentos de praxe do
funcionário hoteleiro, tipo saudável, gentil, sacerdotal a quem a coleguinha
Iara Osana, depois de benzer-se, pediu a bênção. Fomos agora cercados por
cinco graduados, cada um de comprido livro parecido com partitura de
orquestra sinfônica. Tratava-se do MENU. De mim estava abismado. Andei
por Fortaleza e Rio de Janeiro e habitei pensão ordinária de restaurante,
sem luxurias e confortações. Julgava-se no céu, num ambiente novo,
despoluído, em que me sentia bem, compensado da dura vida de assalariado
tipo classe média de degrau inferior.
Abrimos os livros das refeições. E cada qual de nós ficou a fazer que lia,
calado, passando o rabo do olho pelo companheiro. (TITO FILHO, O DIA,
09/08/1988, p. 4).
A variedade de símbolos compartilhados na modernidade, com suas múltiplas
possibilidades, inovações e renovações, incentivou a construção de espaços que passaram a
significar refinamento, status, oferecendo à cidade formas mais concretas de um possível
“progresso”. Porém, essas novidades não são sentidas sem antes a constatação da perda de
outros referenciais, detectados pelas frágeis penas das reminiscências frente à destruição dos
ventos que traziam as mudanças. Acrescente-se que o ato de lembrar, segundo Proust, permite
um mecanismo associativo, entre as sensações presentes por um lado, e as sensações
passadas por outro, formando um conjunto que ressuscita sob a ação da sensação presente
(2003, p.53). Assim o cronista prossegue com suas memórias:
Lembrei-me dos meus antigos e recentes momentos nos restaurantes de
Teresina. Vieram-me à mente o Gumercindo, criador do filé de chapa, que,
se trabalhasse em França, teria ganho o Prêmio Nobel de comedoria; o João
Bebé, o Ludgero, o Filomeno, exímios na arte das feijoadas com pé de porco
e rabada à Toinha Área Leão. Recordei-me do frege do DOUTO,
especialista em panelada e mão-de-vaca, muita pimenta, cachorro gafentos
brigando por debaixo das mesas para a agarração das ossadas que a gente
limpava nos dentes, limpinhos de dar prazer, depois de engolir com boa
farinha o tutanão inteiro, que escorria gordurento pelos cantos da boca. Não
pude também esquecer o velho e bom Pedro Quirino, que enriqueceu e se
retirou do ramo e cujo cozinheiro preparava uma língua que a gente comia
em dobro como bispo em desobriga. Amanhã eu conto o resto. (TITO
FILHO, O DIA, 9/08/1988, p. 4).
As lembranças descortinadas pelo cronista aludem a uma cidade sensível e
invisível, existente no subterrâneo dos blocos de uma cidade material, evidenciada somente
pelos sentidos, pois, “sob a cidade fisicamente tangível, descortinam-se cidades análogas
invisíveis, tecidos de memórias do passado, de impressões recolhidas ao longo das
experiências urbanas” (MATOS, 2002, p. 35).
O registro do cronista sobre sua experiência no restaurante do Hotel Rio Poty,
símbolo emblemático do progresso e do “status”, é também percebido sob o olhar da
empolgação, da limpeza, da constatação da brancura das toalhas de mesa, do tom cordial e
diferencial dos funcionários, reforçando a impressão desse de encontrar-se em um ambiente
“novo”, “despoluído”, compensando-o, como faz questão de dizer, “da dura vida de
assalariado”.
Entendemos que isso acontece haja vista que os espaços contribuem para um
processo de identidade, conspiram na ilusão de promoverem sentimentos de reconhecimento,
fazendo com que as pessoas se sintam pertencentes a um projeto secreto de progresso; logo, a
tônica para o sentimento de conforto também passa a ser balizada pela participação em
ambientes que denotem grandiosidade, novidade e, acima de tudo, que marque a “diferença”.
Assim, Teresina inverte de alguma forma sua alegoria de provincianismo, tão
encantadoramente poetada em prosa e verso, e passa a simbolizar outras realidades, segundo
narra o cronista Pereira:
Constatamos que, a cada novo ano, ela [Teresina] mais cresce e se
desenvolve, realmente progride e adquire foros de uma grande cidade, que,
segundo já ouvimos de quem sabe o que diz, é das cidades que apresenta um
dos maiores índices de crescimento populacional do país, na hora presente.
É verdade que o progresso é ruinoso para com as boas coisas do passado,
que a gente conheceu, viu e conviveu, e que, no intimo, gostaríamos que
jamais desaparecessem. Como imaginar que as ruas estreitas da cidade
continuassem sendo mão e contra-mão, com esse incalculável número de
veículos que trafegam agora ruidosamente? Era gostoso, como acontecia
quando aqui chegamos, em final de 1952, poder ficar sentado, em bate-papo
alegre, numa mesa do Bar Carvalho, bebericando café, pacientemente
servido pelos garçons engravatados! Ou, desejando mudar de papo, dar uma
pequena esticada até o Bar Avenida, no prédio da Câmara municipal que foi
demolido para dar lugar ao estacionamento privativo do Luxor Hotel Piauí,
ouvindo ao lado o diálogo incompreensível dos carcamanos em sua roda
diária naquele local. De barato, a gente podia ouvir a conversa telefônica dos
usuários da Radional, que para se comunicarem com outros centros tinham
que gritar a todo pulmão, exceto segredos e assuntos reservados, que sem
dúvida vazavam da cabine, numa dependência do mesmo prédio do Hotel.
A turma dos bate-papos de hoje não é mais dos homens ativos daquele
tempo, que hoje, homem ativo não pode mais se dar ao luxo de perder horas
sentado nalguma mesa de bar ou café. As solicitações da sobrevivência
reclamam ação ininterrupta, nos gabinetes e oficinas de trabalho. (O DIA,
9/08/88, p. 4).
As sensibilidades observadas pelo cronista, com relação ao alargamento das ruas,
em virtude do símbolo da modernidade (o automóvel) e seus labirintos, representado pelo
tráfego, ou mesmo a mudança com relação ao trabalho e à percepção do tempo, que se parece
tornar mais agressivo, diminuindo inclusive as oportunidades de conversa em bares e cafés,
denotam uma percepção interessante das mudanças visíveis no cotidiano de uma cidade, que,
devido às inúmeras reformulações urbanas, passou a ganhar novos delineamentos, fazendo
com que suas percepções se polarizem, como continua a demonstrar o cronista:
Surgiram muitos e melhores restaurantes, mas nenhum com a simplicidade
do mesmo Bar e Restaurante Carvalho, com o filé a cavalo do mestre
Gumercindo, ou o fígado acebolado do Bar Acadêmico, que ainda sobrevive,
ou a galinha famosa de Julia Pastora.
A merenda, da antiga rua Coelho neto que nos traz à lembrança as figuras
dos irmãos Castelo Branco (Antonio e Osvaldo), o bar do compadre Ofir, na
rua da Glória, onde também se jogava bilhar e sinuca. O Bar Dragão, que
ficava ali na rua Simplicio Mendes, que hoje é calçadão, em frente à Lobrás,
o Bar Carnaúba que cedeu lugar a ampliação do Theatro 4 de Setembro, a
sorveteria americana, na esquina do lado do mesmo Theatro, o bilhar do
Chico Doca, tudo isto foi desaparecendo, como os cabarés da Rua Paissandu
e da Palha de Arroz, onde fica hoje a majestosa praça da Costa e Silva.
Teresina cresceu mesmo. que muita coisa não melhorou com o tempo.
Assim como o Mercado Central, que ao invés de acompanhar a marcha do
tempo, degradou-se na infectude e transbordem internas, para as ruas
laterais, agredindo a bela paisagem do Parque da Bandeira. Ou as suas
praças mais nobres, que viraram terreiros de barracas sujadoras, de
vendedores de fritos e caldos mal cozidos, que o povão come, bebe e ajuda a
sujar mais o chão das calçadas violentadas na sua real finalidade.
A Teresina que nós conhecemos quando aqui chegamos não é a mesma.
Nem podemos dizer que está pior. A luz das ruas não mais se apaga com o
toque da corneta do Quartel da Polícia. Nem se bebe mais água barrenta.
Mas ela ainda reclama muito amor dos seus filhos. Especialmente daqueles
que têm presença na mesa das decisões políticas. Crescer não é bastante.
Mais importante é crescer com dignidade. (TITO FILHO, O DIA, 16-
17/08/1988, p. 4).
Essa tensão permanente entre os valores “novos” e “antigos” é característica de
uma sociedade marcada pela sacralização de seus costumes, subordinados a virtudes que
prevêem um duplo, realizado pelo entendimento de que,
historicamente, a modernidade resulta e avança por meio da tensão
permanente entre o conjunto de valores mercantis, utilitários, propriamente
capitalistas, e o outro conjunto de valores, fundamentados seja religiosa, seja
secularmente. Mais ainda: são os valores modernos não mercantis, não
capitalistas que, corporificados em instituições (a democracia de massas, a
escola republicana, as igrejas, a família cristã etc.) põem freios ao
funcionamento desregulado e socialmente destrutivo do capitalismo.
(MELLO e NOVAIS, 1998, p. 607).
Tais perspectivas demonstram um jogo de espelhos; de um lado a cidade é vista
enquanto lugar dinâmico, mutável, mas também se apresenta carregada de sinais, impressões,
lembranças, criando e associando possibilidades, formando um referencial afetivo e
sentimental, posto que a cidade é uma apreensão dos sentidos, conforme observa Bresciani, na
qual
[...] se agregam lembranças, contatos físicos, histórias recontadas, trajetos
repetidos, encontros e visões inesperados. Cidade-experiência da formação
de territórios subjetivos, menos correspondendo a delimitações
administrativas, fortemente conformada na interssubjetividade das relações
pessoais, na rotina diária que nos faz ler a cidade e nos sentir ‘em casa’ na
nossa cidade. (2004, p. 138).
Os “territórios subjetivos” possibilitam-nos entender essas mudanças materiais e
imateriais que ocorrem na cidade, como fazendo parte de uma trama na qual os sujeitos
apropriam-se de fragmentos, de restos de um passado, costurando-os, para inventarem novos
referenciais, dando sentido a outras práticas, fazendo com que sua caminhada se torne um elo
de identidade, possível de ser conhecido, mesmo sabendo que essas nunca estariam salvas da
total destruição, ante a vulnerabilidade do tempo e das situações, conforme comprovou o
próprio cronista:
Como vos vinha narrando meus queridos e raros leitores, eu, minha mulher,
os jornalistas José Fortes Filhos, Iara Osana e José Carlos Alencar estávamos
bem refestelados nas cômodas cadeiras do restaurante do Hotel Rio Poty,
majestosa e revolucionária pousada teresinense, de CINCO estrelas
superada por hospedaria cearense, em Fortaleza, que vai de SEIS a OITO
estrelas. Os elegantes funcionários, ricamente fardados, como contei, nos
forneceram o CARDÁPIO, escrito em francês, idioma que só o companheiro
citado por último conhecia, pois visitou Paris e arredores. Os outros, os
convidados, nada sabiam desse linguajar estranho. Eu ainda me lembrava de
uns verbos que o saudoso mestre Álvaro Ferreira conjugava, ensinando a
gente a usar a língua alheia, e fazendo um bico com a boca nascida com ele
nas terras piauiense de Piripiri. Eu me recordava do verbo ETRE, para citar
um. De francês, conheci Jean Le Lonnes, generoso, educado, que comia
pouco, no bom sentido, e deixou viúva a querida amiga Isaura Le Lonnes.
Era grande a apertação de nós quatro, o convidado de José Carlos, na escolha
das comedorias. A coleguinha Iara Osana perguntou ao patrício de fraque se
havia refresco. O ilustre MAITRE, na paciência costumeira, logo lhe
aconselhou um POISSON e a garota aquieceu no palpite. No regresso ao lar,
nós todos num automóvel, ela soube que POISSON significava PEIXE,
conforme traduziu José Carlos, o anfitrião, Comeu sem saber.
José Carlos deu preferência a DINDONNE AUX, feito em vinha-d’alhos e
milho verde rosado.
O bom guia orientava com gentileza, amável e risonho. Procurei junto a ele
saber de que jeito era o prato chamado PETIT L’AMOUR VERA FISCHER.
Atencioso, me explicou. Tratava-se de iguaria finíssima, de sabor
paradisíaco, feito de carne assada passada em ovos, pensaste, meus
raríssimos leitores, que seja comer um filé VERA FISCHER, de carne macia
foi quase antropofágico.
Comer é uma arte, uma atitude racional e filosófica. Todos apreciam comer
aquilo de que gostam, como uma buchada de carneiro, por exemplo. Quando
mininote eu gostava de comer galinha de quintal. Se houvesse rosbife tipo
BRUNA LOMBARDI. Vós o Comereis? Claro que sim. os que se
alimentam de líquidos e os que comem mordendo a carne e penso que por
esse motivo a gente morderia alegremente a belezoca da Xuxa.
Apreciei a bóia do Hotel Rio Poty. Gostosa. [...] Antigamente as mulheres se
fartavam de doces de tacho, sentadas em esteiras dentro dos quartos
residenciais. Acabavam diabéticas. Os homens não comem mais como no
passado, andam sempre de fastio, repugnando as gostosuras.
O Hotel Rio Poty me deliciou com um filé tipo Vera Fischer, de carne macia
passada em ovos, o que nem é bom pensar, valeu a pena. (TITO FILHO, O
DIA, 12/08/1988, p. 4).
O contraste alimentar entre os cardápios da “antiga” cozinha e os “novos”, além
de indicar mudanças na perspectiva histórica, aponta para substanciais construções e
reatualizações culturais. As diferenças de “menu” classificam e rotulam posições, estabelecem
particularidades, mostram, por meio de seus consumidores, a gama de relações que permeiam
uma sociedade através da alimentação. As práticas e o consumo de alimentos estão no cerne
da produção cultural, mas também obedecem aos critérios temporais e espaciais, na medida
em que sua elaboração, variedade, sofisticação necessitam de um número cada vez maior de
ingredientes, às vezes, disponíveis pelo avanço tecnológico e científico, disponibilizado
nas grandes capitais pelos símbolos da modernidade no caso da crônica o Hotel Rio Poty
ou por uma rede ampla de estabelecimentos antenados e conectados com os produtos
disponíveis em larga escala pelas grandes metrópoles.
A feitura dos pratos e seus ingredientes diversificados, bem como os nomes
refinados que recebem dão a esses um caráter de “diferença”, passam a significar não a sua
essência, enquanto alimento, ao contrário, personificam uma virtude, um estado de
embriaguez, em razão do envio de seus degustadores para outras relações e formas de
comportamento, contribuindo para um sentimento de pertencer a uma outra realidade, na qual
o importante é inebriar-se em convulsões por uma sempre e outra vontade de participação em
um mundo moderno e fugidio.
Porém, se Teresina entrava no “rol” das grandes cidades, via exuberância e
elegância de alguns dos seus locais, além das maneiras requintadas em servir e alimentar-se,
como nas grandes capitais nordestinas e alhures, também apresentava seus males, no que diz
respeito à concentração da população em áreas de grande densidade, causando problemas com
relação ao aspecto urbano, social, econômico e político. Esse quadro pode ser notado pelo
olhar atencioso do cronista Pereira que relata:
Tenho dito e repetido que Teresina possui apenas progresso material. De
longuíssima data vegeta no mais tristes e insolentes atrasos urbanísticos.
Constroem-se mansões nos bairros ditos luxuosos, onde os marajás afrontam
a miséria das habitações desumanas, mas nessas áreas inexiste um metro de
esgoto. Ainda a cidade se serve dos matos adjacentes ou de buracos
residências para os aperreios fisiológicos.
Urbanizar significa civilizar. A urbanização compreende um conjunto de
processos materiais, espirituais, psicológicos, bom gosto e outros, que
tornam as comunidades aprazíveis, de forma que a gente nelas se sinta feliz,
satisfeito, no gozo de permanente bem-estar. (O DIA, 07/09/1988, p. 4).
Dessa forma, torna-se perceptível que o pujante progresso material, realizado
através da abertura de avenidas, pontes, hotéis, prédios requintados, além dos zoneamentos de
luxo, não favoreceu de modo viável uma modificação com relação aos aspectos sociais,
oferecendo condições decentes de moradia, por exemplo, para a maioria da população. Os
conjuntos habitacionais populares mostraram-se, ao contrário dos confortáveis prédios que
iam sendo construídos nas zonas luxuosas, como o Jockey e Ilhotas, sem nenhuma
criatividade arquitetônica ou artística, a própria exteriorização da representação do que seja
povo e pobreza; embora, segundo Harouel, a proliferação dessa maciça produção habitacional
tenha, “sob certo ponto de vista, sido insatisfatório, ao menos assegura à grande massa da
população o benefício das principais conquistas da técnica moderna tanto no sanitário quanto
no econômico” (2004, p.128).
Não obstante esse ganho, em termos de acesso sanitário e tecnológico, a forma de
habitação mostrou-se, em sua grande maioria, desumana e responsável por um caos urbano,
ao privar os indivíduos de formas positivas de acesso à educação, a arte, a política e seus
sentidos relacionados à ética, cidadania, além de formas sociabilizadoras que promovessem a
integração dos indivíduos e não sua dissolução.
Por sua vez, quando o cronista cita “urbanizar” significa “civilizar”, e propõe que
essa atitude seja ampla e de variações “materiais”, “espirituais”, “psicológicas”, até de “bom
gosto”; suscita que os problemas necessitavam não apenas de soluções arquitetônicas
simplistas, como presumiram e executaram os governos de Petrônio Portela (1963 –1966),
Alberto Silva (1987 – 1991), Dirceu Arcoverde (1975 – 1978), Lucídio Portela (1979 – 1983),
Hugo Napoleão (1983 1986; 2001 2002), que construíram em torno de 50 mil unidades
habitacionais, para uma população de cerca de 250 mil habitantes, segundo as estatísticas de
José Eduardo Pereira (O DIA, 05/11/88, p. 4), mas que se mostraram ineficientes para
diminuir os problemas recorrentes de infra-estrutura, que a utilização massiva de materiais
“baratos” e de pouca “garantia” favorecia o agravamento das condições urbanas e humanas.
As inúmeras denúncias populares ecoadas pelos meios de comunicação davam
testemunho de uma cidade impaciente com seus problemas de moradia, que se mostraram em
um curto espaço de tempo uma operação de paciência, ao lado do convívio com um tédio
urbanístico, reforçado pelos sentimentos de insegurança e falta de perspectivas. Com base
nessa realidade, vale questionar: o que fazer quando um conjunto inaugurado em dezembro
de 1980 (Conjunto Itaperu) apresenta no início de janeiro de 1981, problemas estruturais, com
paredes que apresentavam mais ou menos 10 cm de rachadura? (O DIA, 20 /01/1981, p. 6).
Essas indagações, recorrentes aos mutuários à época, indicavam a superficialidade com que o
governo Estadual e a Prefeitura tratavam o problema da habitação popular.
Em outra crônica “Pombais”, A. Tito Filho, aponta de forma contudente para a
instituição, que, segundo o cronista, era uma das responsáveis pela difusão do sistema
habitacional e a forma como operava:
José Eduardo Pereira, inteligente e culto, jornalista arguto e atualizado,
tratou, nesta página, faz dois ou três dias, dos conjuntos habitacionais de
Teresina, e trouxe à baila angustiantes problemas relacionados com a cidade.
Um sobre quem administra a capital do Piauí, o outro a respeito das
casinholas que uma multimilionária companhia de habitação constrói para
auferir lucros inacreditáveis à custa da perversidade com os pobres. Parece
que se trata de órgão de banqueiros nacionais ou financiadores
internacionais. Não sei. (O DIA, 6-07/11/1988, p. 4).
O importante nessa crônica, críticas à parte, é perceber como se elaboravam a
imagem dos conjuntos habitacionais e a representação dos seus moradores e de suas
problemáticas:
Observa-se o caso desses conjuntos em que residem os humildes parias de
Teresina e os milhares que, vindos do interior, fogem ao tristíssimo quadro
da zona rural e das comunidadezinhas mortas, cada vez mais pobres e sem
condições de vida. Nessas centenas e centenas de casinholas, todas do
mesmo jeito, se alojam famílias de cinco, seis ou mais pessoas. Com pouco
tempo esses POMBAIS passam a favelas e se enriquecem de biroscas,
prostíbulos, freges, botecos, boca-de-fumo e crimes. Meninas que ainda não
mestruaram já constituem raparigagem. Os últimos tipos residenciais
receberam o nome de EMBRIÃO constituído de saleta, quarto e banheiro.
Só. Nessas residências os casais se relacionam sexualmente depois da
última novela, quando a filharada consegue dormir. Se um menino ou
menina acorda arregala os olhos na presença do espetáculo dos pais pelados.
Esses conjuntos habitacionais são feios, casas emendadas umas nas outras.
Alguns felizardos ganham fortuna na venda de terrenos para que nestes se
levantem esses prediozitos que ofendem a dignidade de todos os enteados de
Deus, filhos da injustiça dos homens maus, os banqueiros, e dos políticos de
boa fé, que apenas agravam problemas comunitários. (TITO FILHO, O DIA,
6-7/11/1988, p. 4).
Os adjetivos utilizados pelo cronista, tais como “casinholas”, “pombais”,
“embriões”, “prediozitos”, servem como referenciais negativos que marcavam e denegriam a
imagem dos conjuntos habitacionais, mostrando sua face monótona, serial, sem qualquer
motivação humanitária. Podemos dizer que os problemas urbanos detectados advêm de uma
prática política que perpassou o imaginário daqueles que viam na transferência da população
pobre para as franjas periféricas a forma mais eficaz de conter a “desorganização” e o
aumento populacional, além de manter sob vigilância os “medos” sociais como a violência, as
drogas, definindo os “agentes perigosos” e suas artimanhas.
As várias temáticas tratadas pelo cronista A. Tito Filho e por seu colega de
trabalho José Eduardo Pereira no jornal “O DIA” demonstram o crescimento urbano e suas
variáveis em Teresina no final do século XX, anunciando a complexidade da sociedade e sua
incursão irreversível no projeto da modernidade. Porém, esse salto na modernidade esconde a
fragilidade de sua existência, pois essa se mostrou contraditória e, acima de tudo, segregadora.
Embora pareça que os valores capitalísticos são compatíveis para todos, capta e delega a
poucos as oportunidades de uma vida material segura, ainda que se mantenham acesas, em um
grau infinito de possibilidades, as subjetivações, criando redes dispersas e variadas de
consumo.
As diferentes temáticas observadas e registradas pelos cronistas ganham
relevância, tendo em vista que a cidade moderna é o lócus privilegiado para que possamos
entender os caminhos dos discursos, sendo esses importantes termômetros para avaliarmos os
sentidos que vão sendo impressos aos monturos da cidade moderna. As crônicas, no entanto,
são indícios que permitem visualizar aspectos de “verdades” existentes nos labirintos da
cidade. Essas permitem acessar imagens em suas dimensões variadas, formulando um
mosaico que “fala”, posto que mostra interfaces de uma mesma experiência urbana. Por outro
lado, se as crônicas são legitimadoras e divulgadoras de faces da cidade, é porque permitem
uma “iluminação” aos moldes de Walter Benjamin, pois o cruzamento dos cacos presentes
nas crônicas através de traços, sinais, discursos com o “eu-subjetivo” do cronista faz
aparecer elos de leituras e de representações (PESAVENTO,1995, p. 280-281).
Nesse sentido, queremos enfatizar que as leituras metafóricas auferidas pelas
crônicas cumprem uma missão teórico-metodológica de amplitude, pois entendemos, assim
como Pesavento, que “a tarefa do historiador seria captar a pluralidade dos sentidos e resgatar
a construção de significados que presidem o que se chamaria a ‘representação do mundo’”
(1995, p.280). Nesse contexto, buscamos “ler” a cidade, através das crônicas, como uma das
possibilidades de entendê-la enquanto construção de significados que operam, a rigor, na
construção do pensamento social e cultural.
Por sua vez, os cronistas A. Tito Filho e José Eduardo Pereira, apesar de
criticarem com veemência a cidade e alguns de seus aspectos como o urbanismo, por
exemplo tornaram-se distantes daquilo que proferiam, enxergavam o urbano através de
conceitos morais preestabelecidos, legitimando, muitas vezes, uma hierarquia conservadora e
seus valores elitistas; viam o social como uma presença caótica em que deviam através de
sua missão “civilizadora apaziguar os conflitos, amenizando as profundas rachaduras
sociais.
Os cronistas, nesse sentido, não obstante suas posturas conservadoras e a certeza
do seu papel social de intelectuais, mostraram-se significativos para a compreensão das
tensões e dos embates que marcaram a cidade de Teresina. Seus escritos “fundam uma
cidade, fornecendo códigos de legitimidade, que são buscadas no passado, enquanto
instâncias seguras ante o desmoronamento e fragilidade da modernidade. Portanto, a nossa
intenção foi problematizar os cronistas de maneira a fazê-los falar de suas intenções,
dissecando-os, no sentido de entender suas astúcias e representações, avaliando suas
produções, não no sentido de dizerem ou mostrarem o “real”, mas como possibilidades de
entrar em contato com “apreensões” do que seria entendido como real.
Os supramencionados cronistas, ao materializar a proximidade entre história e
literatura, cumpriram uma função estratégica nessa análise, pois permitiram o contato com os
fragmentos de cotidiano e narrativas que revelam uma cidade, fazendo com que essa seja uma
experiência marcada pelo individual e o coletivo. Sabemos que é nos interstícios desses
campos que se abrem possibilidades de entendimento sobre os dizeres, as impressões que
marcam e significam uma determinada maneira de estabelecer uma relação de conhecimento
com a produção da memória e as percepções das transformações dos espaços, das formas de
sociabilidade e da cultura urbana em Teresina.
Por conseguinte, a crônica e a história podem ser consideradas “lugares de
memória”, segundo a definição de Pierre Nora (1993), posto que se constituem espaços
materiais, simbólicos e funcionais, onde a memória é constantemente elaborada, reelaborada e
interpretada. Crônica e história, diferentes na abordagem, são formas de escrita que se
preocupam com a passagem do tempo e a memória de um grupo ou sociedade por meio da
seleção proposta pelo filtro do tempo presente.
Por isso, tanto os cronistas quanto os historiadores desempenham o papel social
de intérpretes da memória coletiva, produzindo uma escrita social diante da interpretação dos
aspectos relacionados às sensibilidades existentes entre o vivido pelo cronista e o captado pela
lente do historiador, diante da sofreguidão de mostrar um dado, tirando-lhe da “escuridão”
que ameaça o silêncio do esquecimento. Afinal, historiadores e cronistas buscam iluminar
fatos ou aspectos que foram intimamente selecionados, em vista da escolha que realizam
diante dos monturos da experiência humana.
CAPÍTULO III – USO-FICCIONAL: A SÍNTESE DOS
ESPAÇOS MARGINAIS DA CIDADE NA OBRA “MEIA-VIDA” DE
OTON LUSTOSA
3.1 Lugares marginais: uma cartografia literária
outra forma de revelar aspectos imagéticos com relação ao cotidiano,
narratividades e representações de Teresina, em meados do século XX; trata-se daquela que
diz respeito às formas sub-reptícias e invisíveis de difusão existentes nas obras românticas de
ficção;
43
essa fluente e inquietante forma de expressão que forma às idéias, tornando-as
volúveis, ricas e impregnadas de uma infinidade de signos e significados.
Concordamos com Saussure (LECHTE, 2002) quando este busca uma explicação
para a linguagem, enquanto atos de significados que podem ser compreendidos dentro da
organização sociocultural que lhes deu sentido, tornado-se, assim, textos passíveis de leitura e
interpretação. Deste modo, o discurso literário é importante para que possamos visualizar as
representações sociais, buscando outras formas de analisá-las, visto que percebemos que o ato
de narrar, de dramatizar uma determinada realidade antecipa tendências sociais, problemas,
desafios. Na opinião de Antunes, o artifício literário:
[...] embora tenha realizado a escolha de uma única
possibilidade de mimese em detrimento da potencialidade infinita
43
O romance ficcioso costumbrista foi utilizado como uma das frestas discursivas que revelam imagens sobre
Teresina. A obra “Meia-vida” (1999) é o romance de estréia de Oton Lustosa, e tem como cenário a cidade de
Teresina com seus espaços e personagens “marginais”.
existente antes da concretude do texto -, ele tende a recuperar a
infinitude e a totalidade perdida através do processo de semiose
ilimitada que instala a cada leitura. (2002, p. 129).
A obra “Meia-Vida” de Oton Lustosa,
44
escolhida para a nossa análise, serve, a
princípio, como meio de informação sobre as múltiplas facetas de alguns espaços marginais
de Teresina, plasmados pelo olhar do literato, ao dar-lhe forma, conteúdo, pluralidade de
sentidos, estabelecendo com o leitor uma comunicação via linguagem, que se deforma diante
das múltiplas possibilidades de “leituras”, produzindo uma imagem, uma representação do
cotidiano teresinense e de suas práticas. São essas nervuras que pretendemos captar, mesmo
sabendo das dificuldades de limitar as interpretações, extrapolá-las ou negligenciar alguns
fatos que seriam capitais para o entendimento da obra.
Nesse caso, é importante esclarecer que a obra literária em questão, ao contrário
de ser encarada enquanto visualização do “real”, reconstrução de “verdades”, cumpre uma
função muito mais simples e prazerosa, ao permitir o contato com uma possível face da
cidade, com aquela referente às sensibilidades, sociabilidades que apontam para sentidos,
justapõem idéias, possibilitam metáforas e acessam tempos e práticas que existem
enquanto reminiscência, enquanto projeção do autor diante da arte de narrar e registrar.
Segundo Pesavento:
os relatos literários nos colocam diante das cenas urbanas
que reconstituem uma possibilidade de existência do social,
expressando as forças em luta, os projetos realizados e as propostas
vencidas, aquilo que se concretizou e aquilo que poderia ter sido, mas
não ultrapassou o nível do projeto, do sonho e do ‘desiderato’. (2002,
p. 14).
44
Mário José Lustosa Torres (Parnaguá-PI, 1957). É magistrado e membro da Academia Piauiense de Letras
(APL), além de outras entidades culturais.
Este talvez seja o ponto nevrálgico pelo qual o historiador se aproxima do viés
literário, tendo em vista que este constrói um painel de possibilidades, uma forma de
qualificar o mundo, além de permitir um contato com personagens que estabelecem uma
sintonia fina com os sujeitos do nosso cotidiano; pois são criados a partir dos contatos sociais,
das lembranças dos literatos, enfim da raiz humana, com todas as suas bondades e maldades,
felicidades e angústias, certezas e temores. Sevcenko, referindo-se às relações entre história e
literatura, diz que compreender e analisar as referências literárias lhe possibilitou “pensar uma
história dos desejos não consumados, dos possíveis não realizados, das idéias não
consumidas” (2003, p. 30).
Além dessa consideração, acrescenta, ainda, outro fator estranhamente
perturbador, que seria a vinculação dos marginalizados na literatura, pois eles formaram o
fundo humano de cujo abandono e prostração se alimentou a literatura” (2003, p. 31).
Ora, decantar essas expressões, ativar as veias abertas que refluem esses viveres
são a preocupação central de quem tem a obra literária como um documento a mais, como
uma plausibilidade diante da busca de um entendimento plural, ao procurar entender o
humano através de suas várias nuances, de concorrer para um enfoque polissêmico de
abordagem do “real”.
45
Desta forma, o nosso interesse é por uma abordagem cultural, na qual
os sujeitos são pensados como produtores e receptores de cultura em termos de polifonia. Para
Barros, pensar a Cultura em termos de polifonia é:
buscar as suas múltiplas vozes, seja para identificar a
interação e o contraste entre extratos culturais diversificados no
interior de uma mesma sociedade, seja para examinar o diálogo ou o
45
Com o processo de descentramento do objeto e do sujeito, nas abordagens históricas, houve uma reavaliação
do que fosse considerado “real”. Esse ganha status de discurso, sendo assim uma ‘ficção autorizada’ por aqueles
que articulam várias narrativas e imprimem verdades (PESAVENTO, 2002, p. 12-14).
‘choque cultural’ entre duas culturas ou civilizações distintas. (2004,
p. 73).
Sendo assim, torna-se possível
entender a literatura como uma possibilidade que
se abre para o entendimento das múltiplas ações
dos sujeitos, que não podem ser pensados de
forma singular, inflexível, mas como
construtores de significações, ao imprimir
imagens e discursos diversos, realizados pelos
diferentes olhares e lentes. Essas lentes
permitem-nos conhecer um dado, garimpar
aspectos visíveis ou o, formular
problematizações, conhecer nesgas do passado,
articulando-as ao presente em um tensionamento
que se abre para rupturas e permanências.
Pensar em termos culturais abrange desafiar o “dito” e perder-se nas teias ilusórias
do discurso, buscando formular painéis sempre prestes a se diluírem, mas que permitem o
contato com registros, sensibilidades, práticas e vivências, que, na literatura, é significada
pelo capital simbólico do autor. Essas considerações são importantes, pois, segundo Oliveira,
“se é verdade que a verdade não existe e que não é possível aprender o passado como ele
realmente aconteceu, o que resta para a História é lidar apenas com o plausível” (2003, p. 88-
89).
Porém, esse plausível obedece, no debate historiográfico, a propostas, percepções
e formas de abordagens diferentes, com base em fontes e metodologias adequadas ao “métier”
do historiador; onde um “leitor comum” veria tramas e enredos; o historiador buscaria acessar
os códigos que traduziriam um contexto circunstancial de uma época; onde a busca recaísse
na densidade ficcional de personagens, o historiador estaria interessado nas ações, nas
variações de identidades e emoções que recuperariam os tipos de uma determinada sociedade
ou época; onde a ênfase transita pela percepção de uma trajetória temporal, o historiador
mantém seu interesse na multiplicidade temporal, na percepção de como os sujeitos
interpretam e dão sentido ao tempo; onde o interesse apontasse para novidades, modas,
alterações de valores e conceitos, o historiador estaria interessado nas rupturas e permanências
de uma época; os atos, gestos, linguagens, demonstrariam para o historiador as riquezas
culturais de um dado momento.
Nessa perspectiva, gostaríamos de esclarecer que a obra literária analisada, no
presente capítulo, permitirá, a principio, uma forma de acessar as inúmeras representações
utilizadas por Oton Lustosa, no sentido de revelar um painel compreensivo de alguns
problemas que aconteceram em Teresina, nas últimas décadas do século XX, tais como,
drogas, violência, prostituição, migração, subemprego, luta por participação política, aspectos
sociais conservadores e outros.
A obra “Meia-Vida” tem como eixo central as vivências subterrâneas, áridas, de
uma variedade de tipos, anti-heróis, conforme observou o crítico literário Cunha e Silva Filho,
em artigo no jornal Meio Norte (09/07/2000), explicando que tal nomeação diz respeito
àqueles que vivem a esmo pela narrativa, à busca de sonhos, sempre a um meio caminho de
darem certo, impedidos pelas limitações de um cotidiano amorfo, sem perspectivas,
dificultados pelas condições miseráveis que lhes foram oferecidas.
Dessa maneira, a obra “Meia-Vida” projeta uma dramaticidade, em que o
interesse pelo tipo social recai sobre uma massa de desfavorecidos, postos à margem por um
projeto virulento de apatia por aqueles que representam uma série de males, tais como a
pobreza, a sujeira, a ociosidade, são esses, no dizer do autor, os cambembes, encontradiços,
por nas praças, nas esquinas, nas feiras, nos subúrbios, nos guetos, nas favelas, nas
ribanceiras, nos brejos e nas grotas” (LUSTOSA, 2001, p. 99).
Oton Lustosa constrói uma trama aos moldes dos romances regionalistas da
década de 30 do século XX, onde sujeito e natureza se comprimem em uma busca visceral por
existência, imprimindo muitas vezes um tom agressivo, naturalista, e de poucas escapatórias
diante de um sistema social e político castrador. Mas, ao invés de comungar com esse olhar,
buscaremos perceber os discursos que posicionam Teresina e sua população, diante desse
quadro nostálgico e estarrecedor, mostrando as possíveis fissuras existentes na narrativa
lustosiana, não no sentido de plasmar uma idéia, mas de permitir a extrapolação da
linguagem, que essa, como nos aponta Tronca (2002), é delirante no sentido que se abre
para infinitos vieses de compreensão, deslocando para outros múltiplos sentidos.
Nesse contexto problemático, vamos tentar analisar como a cidade, através do
ângulo do escritor, é pensada, imaginada e posicionada, nos idos da década de 1980,
cumprindo diferentes funções, de acordo com a carga emocional de cada personagem. Apesar
de o espaço urbano registrado pelo autor ser o centro histórico e seu entorno, além daqueles
marginais, situados nas proximidades dos cabarés da Rua Paissandu e do Morro do
Querosene, é importante que possamos observar também os lugares imaginários, a cidade
subterrânea e as resistências que perpassam uma ficção de contorno neo-realista.
46
Embora o
perfil dramático da obra apresente um quadro estigmatizado da sociedade nordestina,
visamos perceber de que modo o olhar do literato se debruça e cria uma face, uma impressão,
uma imagem, sobre os territórios escondidos e amorfos, subtraídos na construção da cidade-
conceito.
46
O Neo-realismo é uma corrente artística surgida no Ocidente nos anos 30 do século XX. O programa neo-
realista encontra-se ligado aos princípios do Realismo, sujeito a uma perspectiva marxista. Na literatura, o neo-
realismo afirmou-se no início dos anos 1940, com uma abordagem voltada à temática dos desfavorecidos e
humildes.
É oportuno esclarecer que as imagens tecidas por Oton Lustosa, em seu romance,
apresentam uma possibilidade de “leitura”, que, ao cruzar com outras argüições textuais,
possibilitarão ampliar e justificar comentários, formulando uma outra cidade, porém,
mantendo a idéia principal da obra e fazendo-a tencionar entre os limites impostos pelo autor
e a abertura para outras dimensões interpretativas. Assim, queremos enfatizar que o trabalho
proposto não está circunscrito a um olhar de crítica literária, tampouco de especialista, ao
literato Oton Lustosa e sua produção acadêmica. As análises propostas são apenas uma
incursão histórica nos campos da literatura, no anseio de, ao tocar sensibilidade existente em
um viver ficcional, que sejamos capazes de lidar com perspectivas, representações; uma
poeira fina, mas sintomática, para delinear uma Teresina e suas aventuras em um fim de
século.
Diante dos cenários escolhidos pelo autor, o comércio do Troca-Troca é
possivelmente aquele de onde fluem as principais tramas da narração. Surgido aleatoriamente
com o objetivo de realizar vendas e trocas de objetos usados dos mais diferentes tipos, teve
seu espaço transferido para Avenida Maranhão, onde passou a funcionar embaixo de
figueiras, sem nenhum tipo de cobertura mais apropriada. Resistiu à situação até a
inauguração, em fevereiro de 1985, durante o exercício do Prefeito Freitas Neto, de uma
estrutura de oito abóbadas suspensas por um sistema de nove colunas, possibilitando uma
paisagem mais moderna e prática para aquela forma de comércio. Essa projeção arquitetônica
tem garantido àquele espaço uma forma de repercussão na memória social, por ter sido
amplamente utilizado em imagens poéticas, fotográficas, publicitárias, que lhe vão conferindo
significados.
Foto 11 TROCA-TROCA Fonte: Revista Teresina Ontem e
Hoje, jan. 2002.
Mas, além desses significados atribuídos, o comércio do Troca-Troca é
possivelmente uma metáfora de vidas rarefeitas pela condição de sobrevivência que encerra.
Espaço reservado, na narrativa lustosiana, para os personagens mais plasticamente bem
montados, em relação ao perfil psicológico e dramático; como, por exemplo, D. Mundica
(mãe do protagonista central Santino; e de outros dois personagens, o drogado Beição e a
prostituta Elizete); o vendedor Zezão; além do vagabundo Belim.
Para fazer o registro literário do Troca-Troca, o autor utiliza-se de diversos
relatos, que circulam no sentido de aproximar o signo do seu significado. Essa operação é
necessária, pois as impressões articuladoras e definidoras de um lugar são travadas, no âmbito
da linguagem, com o objetivo de induzir o leitor a elaborações e combinações, transformadas
em uma “operação de caça”.
47
Logo, narrar um lugar é contribuir para designá-lo, construindo
identidades que passam a colaborar para uma série de enunciações.
[...] os lugares são histórias fragmentárias e isoladas em si, dos passados roubados
à legibilidade por outro, tempos empilhados que podem se desdobrar mas que estão ali antes
como historias à espera e permanecem no estado de quebra-cabeças, enigmas,enfim
simbolizações enquistadas na dor ou no prazer do corpo. (CERTEAU, 1994, p. 189).
Esses lugares existentes na produção literária de Oton Lustosa, como o mercado
do Troca-Troca, ganham vida e celebram com outras interpretações um repertório de dizeres,
enigmas somente decifrados por aqueles que ousarem entendê-los, devido à utilização de um
depósito de metáforas, memórias, sensibilidades, valores, gestos, indicadores de um acervo
cultural. Uma dessas imagens com relação ao Troca-Troca refere-se à chegada dos vendedores
ao amanhecer, traçando um ritual suspendido de sua esfera cotidiana pela forma como o
autor condensa o fragmento:
Daí a pouco, quando o sol principia, beijando
timidamente a cidade e seus edifícios, muitos são chegados.Uns
trazem bicicletas bem polidas, sarapintadas, remendadas com soldas
traiçoeiras e vernizes de trapaça, prontinho para a troca. Outros
chegam com pencas de relógios de pulsos de todas as marcas: suíças,
japonesas, americanas...São relógios vistosos, mostradores furta cor,
vidros bem lustrados. (1999, p. 9).
Podemos notar que, junto aos sujeitos da narração, desfilam objetos-fetiches,
48
quase tomando a posição de destaque em relação a esses, pois realizam e fazem aparecer o
47
É uma designação de Michel de Certeau sobre a arte contida no binômio escrita/leitura, instaurador de poder
sobre a pluralidade indefinida das “escrituras” produzidas através de diversas leituras.
48
A expressão “objetos-fetiche” refere-se ao tema da alienação, desenvolvido por Walter Benjamin, com relação
às mercadorias que se tornaram objetos de desejo e consumo no capitalismo.
lugar, invertem posições e se destacam. São vitrines expostas em um período marcado pela
aventura do consumo. Deste modo, marcas como: Hollywood, Seiko, Monark, Avon,
Duloren, Grendene etc. destacam-se, em vários momentos da obra, sempre indicando a
importância que essas passaram a desempenhar na vida diária das pessoas. As marcas são
signos que imprimem fragmentos de identidade; pois, como explica Woodward, “os sistemas
simbólicos fornecem novas formas de se dar sentido à experiência das divisões e
desigualdades sociais e aos meios pelos quais alguns grupos são excluídos e estigmatizados”
(2000, p.19).
No Brasil, as ultimas décadas do século XX possibilitaram um fluxo de
mercadorias, realizado de forma extraordinária, permitindo o acesso irreversível aos produtos
de consumo, imediato ou não, transformando a maneira de vestir-se, alimentar-se, comportar-
se, morar, viajar, e principalmente na fabricação de padrões específicos de hábitos e atitudes.
Esse comércio foi responsável pela utilização de grandes investimentos em publicidade e
propaganda. É o período de culto ao corpo, enquanto lugar simbólico da própria imagem, que
passou a ganhar novas feições esculpidas pela crescente indústria de cosméticos e das
academias, tornando possível as transformações e fragmentações do sujeito em novas
possibilidades.
A ilusão, o fetichismo das mercadorias e a transfiguração do novo em eternos
retornos constituíram uma problemática que contaminou Baudelaire, ainda no século XIX,
quando esse se referiu aos artigos produzidos em massa e sua relação com a mística do
“novo”, representando uma “qualidade independente do valor de uso da mercadoria e que
parece atribuir às coisas uma nova dignidade. O novo é a quintessência da falsa consciência,
cujo agente infatigável é a moda” (BENJAMIN, 1987, p. 76).
Essas considerações são importantes por nos permitir analisar o cenário do Troca-
Troca como um simulacro das realizações comerciais efetuadas em Teresina; pois, ao tempo
em que expõe publicamente suas mercadorias, também permite a embriaguez por parte dos
consumidores fascinados pela possibilidade do idêntico e pela sede da experiência do novo,
ou do “quase” novo. Essa experiência reflete como espelho a imagem de uma sociedade que
propõe suas astúcias para sobreviver, reinventando uma prática milenar que é a troca ou a
venda de produtos diariamente; fazendo “falar” àqueles que minam as burocracias comerciais
e produzem formas inventivas de comercializar. Essas formas podem ser observadas no trecho
a seguir:
[...] mecânico de mãos finas, dedos longos, que fuma o
seu cigarro Hollywood e vai ganhando os seus trocados. Coloca sobre
o olho direito uma espécie de lupa e, manuseando pivôs,
microengrenagens, vai aprovando e reprovando máquinas e marcas
[...] Na sua rústica oficina expõe relógios recuperados, todos
trabalhando certinho, com vidros dos mostradores bem limpinhos e
sem arranhões. Custam pouco, são relógios de segunda mão. Faz
trocas, vende pulseiras. Pequenos consertos não cobra: - ‘Nada não...
Dá aí o do cigarro!’ (LUSTOSA, 1999, p. 9-10).
O fragmento torna possível verificar as formas dispersas e ordinárias do cotidiano
de troca e venda, realizadas na feira do Troca-Troca, anunciando formas combinatórias, feitas
tanto ao arrepio das convenções comerciais, como àquelas realizadas, através de documentos
oficiais como a nota fiscal. Essa peculiaridade do mercado informal, ou seja, esse meio
caminho entre a legalidade e a ilegalidade trouxe várias vezes para os feirantes uma
aproximação com a idéia de marginalidade. No trecho a seguir, o vendedor Zezão expõe de
forma pontual sua imagem, como forma de diferenciar-se daqueles que utilizavam
mercadorias roubadas no comércio:
Enrolada não! Tem nota fiscal. Não vendo...É do uso!
branda, soberbo. Expõe os cacaréus: garupeiras, pedais, selins, coroas
aros, quadros, correntes, guidões, raios...Tudo usado; comprado de
uns e de outros, nas oficinas, nas sucatas, ali mesmo na feira do Troca-
troca. Deposita a mercadoria sobre um plástico preto que estende no
chão. Compra e vende relógios também. Negócio direito, não faz troca
com ladrão. Produto seu é de primeira [...] Não é homem de trapaça.
Negócios à vista, no dinheiro. (1999, p. 10).
O personagem Zezão encarna de forma apoteótica o sujeito que assimilou o
discurso da moral, do trabalho; dessa forma, procurou definir suas estratégias frente às
inúmeras elaborações que o qualificam como marginal, diante de um imaginário tendente a
localizar as funções desempenhadas por “bons” e “maus”. Esse personagem serve para
mapear e denunciar casos que foram significativos na trajetória do comércio informal em
Teresina, mais precisamente no mercado do Troca-Troca. Ressalte-se que ficção e realidade
podem ser bem tênues, como podemos constatar no trecho de uma entrevista de José Sales,
ex- relojoeiro do Troca-Troca, ao jornal “O Dia”:
[...] disse que trabalhava no Troca-troca mais de 5
anos, trocava e vendia relógios e dava para ir sustentando a família.
Infelizmente, de vez em quando, a policia chegava lá e dizia que eles
tinham um relógio roubado, mas isso faz parte dos riscos dos
negócios. Eles o compravam sabendo que era roubado. Ninguém
era burro para se meter num problema, mas a policia não acreditava e
pensava que eles também eram ladrões. (O DIA, 16/06/83, p. 9).
Tais constatações não constituem novidade, a importância em considerá-las
refere-se às possibilidades de entendermos as representações que perpassam a cidade, como
estas são elaboradas, sentidas e, acima de tudo, como os mais diferentes sujeitos se utilizam
dessas para elaborar outros códigos, resistindo e passando a “jogar” com as disciplinas, os
valores, transformando e desenhando outras realidades. Essa possibilidade existe sob os
contornos da cidade; aparentemente é uma forma astuciosa, tendo em vista que demonstra as
práticas cotidianas inventivas. Assim, interessa-nos observar as “espertezas sutis e as táticas
de resistência, através das quais o homem ordinário se apropria do espaço, inverte objetos e
códigos, usando-os à sua maneira” (CERTEAU, 1997, p.273).
Uma outra imagem que perpassa o comércio do Troca-troca, atribuindo-lhe uma
feição, diz respeito às narrações referentes aos pratos alimentares feitos e servidos por D.
Mundica, personagem que simboliza os aspectos maternos e a luta para criar os filhos,
sobrevivendo das vendas de caldos e quitutes naquele espaço:
D. Mundica cuida em acender o fogareiro para requentar
o caldo que prepara em casa, à base de carne moída, corante, urucum,
cebola picada, tomate e pimenta-do-reino. Um caldo reforçado pela
manhã sobe a moral. Entre os feirantes muitos são fregueses cativos
da cozinheira. Adoram a iguaria fervente: ovos quebrados dentro,
pimentinha da boa, malagueta assanhada...Uma golada de água fria
por cima para refrescar. Pronto! Que café da manhã!
(LUSTOSA,1999, p. 11).
Além dos saborosos caldos, faz parte da culinária da feirante a feitura da
panelada, vendida principalmente aos domingos, quando há maior movimentação:
Cinco quilos de bucho e tripas ali estão dentro de uma
bacia de alumínio. Logo ao cair da noite receberão tempero e muito
fogo. Pela manhã , no caldeirão friinho, debaixo de uma nata de
gordura coalhada, serão panelada apetitosa, a ser vendida em pratos de
cinco mil para os feirantes e freqüentadores do Troca-troca. No
balaio, alem das vísceras, leva cebolas, tomates, pimentas-de-cheiro.
(LUSTOSA, 1999, p. 16).
Além dos caldos e da panelada, outras iguarias também são apontadas na
narrativa; quais sejam: pata de vaca, chambaril e carne-na-rola. Toda essa dieta alimentar,
além de demonstrar parte da culinária servida no Troca-Troca, atribui-lhe significações, ao
defini-la em uma experiência degustativa e olfativa; nesse caso, os relatos nos permitem ir
além do objeto do comércio, fazendo com que esse ganhe vida, através dos pratos servidos
por D. Mundica. As vísceras e partes “menos nobres” do gado, servidas na alimentação dos
comerciantes do Troca-Troca, ilustram relações culturais, pois são possibilidades frente a uma
dieta alimentar restritiva, por conta das variações no preço dos alimentos, fazendo com que
grande parte da população utilize sobras e restos em uma conjugação lendária, em que
escolher, combinar e preparar fazem parte de uma ação criadora, buscando resistir frente às
inúmeras restrições. Segundo Luce Giard, toda escolha da prática alimentar:
depende de uma soma de fatores positivos e negativos,
fatores por sua vez dependentes das determinações objetivas do tempo
e do lugar, da diversidade criadora dos grupos humanos e das pessoas,
da contingência indecifrável de micro-história. (1996, p. 252).
Assim, as séries de associações alimentares, além de oferecerem definições a um
lugar, estabelecendo elos de identidade, permitem observar as múltiplas relações ocultas sob
uma rede infinita de códigos diários, que, não raro, definem modos de vida, comportamentos
e valores. Deste modo, gestos e atitudes, tais como “lamber os beiços” (p.11), “arrotar” (p.12)
ou “aproveitar o que se derrama pelas beiradas” (p.11), “assoprar” (p.11), embora não sejam
consideradas práticas “educadas” ou “refinadas”, indicam toda uma forma de relacionar-se
com os alimentos, principalmente os que fazem parte do cardápio de D. Mundica, que não
pressupõem, à primeira vista, regras para comer; estão liberados das etiquetas e transitam
“livres” entre os personagens da feira.
O que queremos salientar com relação aos alimentos servidos na feira, de acordo
com a narrativa, é que permitem significações e, acima de tudo, estabelecem maneiras de
fazer.
49
Isto é sintomático para que possamos entender uma película das capacidades
inventivas da cozinha teresinense. Sabe-se que cozinhar envolve um volume complexo de
circunstâncias e de dados objetivos, em que se confrontam necessidades e liberdades, uma
confusa mistura que muda constantemente e através da qual se inventam táticas, se projetam
trajetórias, se individualizam maneiras de fazer (GIARD, 1996, p. 271).
Dessa maneira, enfatizamos que o mercado do Troca-Troca, apesar de sua
singularidade, expõe e vivencia o múltiplo, é um microcosmo que contém amostras da
“realidade”, da convivência de uma classe pobre com relação aos processos de consumo e
sobrevivência. As trocas e as vendas feitas ao calor das “práticas ilegais”, bem como as
estratégias alimentares demonstram um consumo e indefinições de uma forma de viver
permeadas de sutilezas e táticas. São viveres sub-reptícios que tangenciam um cotidiano
49
A expressão “maneira de fazer” refere-se às práticas existentes dentro de uma cultura ordinária, o que Michel
de Certeau atribuiu como “artes de fazer”, devido à invenção de técnicas e um estilo existente nas operações
cotidianas.
subterrâneo e amorfo, existente na narrativa enquanto representações do que seja um
“mercado” e do que seja “popular”.
Torna-se visível nessas considerações que o registro literário condensa fragmentos
do urbano, fazendo circular imagens, contribuindo para um imaginário social; acreditamos
que as imagens de Teresina são resultados significativos desse processo. Para Oton Lustosa,
ao delinear um “dado” (o mercado do Troca-Troca), esconde-se toda uma rede infinitesimal
de significados, como acontece com todos aqueles que estão preocupados em narrar a prisão,
e não a fuga, as estratégias e não as táticas, a produção e não o consumo.
A imagem de alguns espaços marginais de Teresina, recorrente na literatura
lustosiana, possui sinais visíveis de degradação, depreciação, e aridez, contaminando os
personagens que passam a também não possuir espaços de fuga, criando-se um labirinto de
estereótipos.
o estereótipo é um olhar e uma fala produtiva, ele tem
uma dimensão concreta, porque além de lançar mão de matérias e
formas de expressão do sublunar, ele se materializa ao ser subjetivado
por que é estereotipado, ao criar uma realidade para o que toma como
objeto (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1999, p. 20).
Tanto as crônicas quanto as imagens que perspassam a obra lustosiana estão
repletas de estereótipos, assinalando imagens sobre Teresina e contribuindo para a formulação
de “dizeres”, normalmente esclerosados pelos artifícios que criam um conjunto de
narratividades, nas quais as representações dos sujeitos e dos espaços estão marcadas por um
sentimento agudo de nostalgia e por uma profunda espera por melhores condições, somente
realizáveis em um possível futuro. Assim, sujeito e espaço estão afogados em arsenais de
produção discursiva, onde, não raro, oscilam entre a busca por um estado de coisas “puras” e
a aridez de um tempo presente, sufocado pelas expectativas de um futuro sem projeções.
Dessa forma, estamos preocupados em escavar a narrativa lustosiana e perceber
como Teresina é formulada enquanto imagem discursiva, buscando capturar os deslocamentos
de sentidos não expressos, mas formulados implicitamente em uma cortina de legitimidades e
naturalizações,
50
como demonstra o fragmento a seguir:
vem um garoto. Traz uma estranha bandeja de tábua, a tiracolo, presa ao
pescoço por um fio de náilon. Ali conduz duas garrafas térmicas, copinhos
de plásticos justapostos em forma de tubo. Mesa posta debaixo do queixo, o
garoto, com as mão livres, separa um copinho, abre a garrafa... Enche-o. O
mecânico pega, delicadamente, a xícara de bebida. Sorve-a deliciando-se.
uma moeda pro menino. Puxa da algibeira, sem tirar fora o maço, um
cigarrinho Hollywood, que logo acende e traga cheio de prazer. Vocês
agora inventaram vender café nestas porcarias! (LUSTOSA, 1999, p. 14).
O consumidor do cafezinho é Nilson Relojoeiro, personagem que condensa uma
postura frente às mudanças sensíveis de hábitos e atitudes, porém essas imagens estão
impregnadas de estereótipos, posto que estão visualizadas em um discurso ajustável, no qual
sujeito/simples/popular é claramente identificável com padrões incivilizados. A narrativa
ainda acrescenta os comentários do personagem Zezão, um dos comerciantes da Feira do
Troca-Troca na ficção:
Prefere copos de vidro, enxaguados, desses onde se bebe
cachaça ou cerveja. Lapada de quatro dedos!. Copinho... Frescura...
Coisa de grã-fino!Não concorda com a mudança de hábitos. Bote aqui
um neste copo de vidro, que eu não sou passarinho para beber de gota!
(LUSTOSA, 1999, p. 15).
O fragmento exposto nos aponta para algumas considerações. Primeiro, o sentido
explícito com relação às mudanças de hábito, existente como tensão entre as ameaças que nos
poderiam tragar de forma irremediável, e os jogos realizados frente à dissipação das certezas.
A segunda consideração recorrente aponta para os sentidos de identidade que simples objetos
(como um copinho plástico) conferem ao definir padrões de comportamento “copinho...
frescura... coisa de grã-fino!” - (p. 15). Nesse sentido, as idéias de identidade e diferença vão
se combinando e moldando uma rede infindável de afirmações, passando a conceber certas
padronizações de gênero “Prefere copos de vidro, enxaguados, desses onde se bebe cachaça
50
O que designamos de “naturalizações” diz respeito aos discursos que se foram acumulando como verdades,
onde apenas o ato arqueológico de escavar a contrapelo é capaz de realizar uma “iluminação”, esclarecendo o
que já estava cristalizado, dando-lhes outras abordagens.
ou cerveja” (p. 15) que são entendidas como significados compartilhados. Dessa forma,
como nos diz Tomaz Tadeu da Silva,
[...] identidade e diferença partilham uma importante
característica: elas são o resultado de atos de criação lingüistica. Dizer
que são o resultado de atos de criação significa dizer que não são
“elementos” da natureza, que não são essências, que não são coisas
que estejam simplesmente aí, à espera de serem reveladas ou
descobertas, respeitadas ou toleradas. A identidade e a diferença têm
que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo
natural ou de um mundo transcendental, mas de um mundo cultural e
social. (2000, p. 76).
As imagens que aproximam pobre/ incivilidade/ sujeira são discursos criados, no
sentido de fazer crer uma ordem” cravada em uma realidade que a permitiu, definindo
profundamente as relações sociais e culturais possíveis, inventando uma rede infinita de
verdades, formulando atitudes, modos de pensamento sobre uma sociedade e sobre seu povo.
Assim, a literatura, através da linguagem, corporifica sentidos expressos na cidade, marcando
suas fronteiras e diferenciações, pois o poder lingüístico de incluir e excluir, classificar e
desclassificar, nomear e esquecer é uma operação realizável na camada discursiva literária, e
Constitui possivelmente a porção mais dúctil, o limite
mais extremo do discurso, o espaço onde ele se expõe por inteiro,
visando reproduzir-se, mas expondo-se igualmente à infiltração
corrosiva da dúvida e da perplexidade [...] Essa é a razão porque ela
aparece como um ângulo estratégico notável, para a avaliação das
forças e dos níveis de tensões existentes no seio de determinada
estrutura social. (SEVCENKO, 2003, p. 28).
A abordagem literária, seu arsenal de significações, sua liberdade de criação o
estão desvinculados de uma “realidade” social, de um ser-no-mundo, pois (re)apresentam
configurações existentes em todas as mediações da vida humana, articulando, via discurso,
convenções e dogmas. Mesmo a análise ficcional tem como ponto de partida esquemas
conhecidos pelo autor, sua imaginação não é uma imaginação descompromissada com a
realidade em que vive e com o conjunto de valores e posturas do qual compartilha.
Entendemos que o espaço do Troca-Troca ou qualquer outro existente na narrativa
lustosiana somente existe enquanto formulação, enquanto definição articuladora de um lugar.
Esse lócus apropriado pela escrita literária enverga-se de sentidos. Na verdade, o comércio
retratado por Oton Lustosa é uma multiplicidade de “dizeres” que ganham forma e conteúdo
pela criatividade do autor em mostrar, através de situações cotidianas, um jogo de imagens
que se cruzam e formam uma interpretação da cidade.
Dizer a cidade é percebê-la enquanto uma tensão dialética, possibilitada pela
circulação de uma infinidade de discursos e imagens que se deslocam continuamente,
dependendo do lugar onde se fala. As metáforas utilizadas para formular um “dito” sobre o
comércio e o espaço do Troca-Troca não estão de forma nenhuma desreguladas da visão do
urbano; formam com esse uma plausibilidade, pois a cidade “é um objeto de múltiplos
discursos e olhares, que não se hierarquizam, mas que se justapõem, compõem ou se
contradizem, sem, por isso, serem uns mais verdadeiros ou importantes que os outros
(PESAVENTO, 2004, p. 9).
Tendo como base essas reflexões e pontuando outras referências, vamos tentar
analisar aquelas que dizem respeito ao espaço existente em torno do Parque da Bandeira, onde
nos é possível perceber alguns dos espaços históricos de Teresina. Ali se encontram alguns
dos prédios mais antigos, remontando à própria fundação da cidade. Situados exatamente no
perímetro urbano do primeiro mapa funcional emforma de xadrez”, presentificam um mito
que foi compartilhado por aqueles que viam naquele espaço uma projeção da próspera “Vila
Nova do Poti”. Nos dias atuais, o que existe são fragmentos, onde alguns estão distanciados
de suas antigas funções primordiais, modificados pela rota do tempo, mas teimam em apontar
para uma mítica predestinação de prosperidade e funcionalidade.
Porém, a relíquia desse lugar não se resume apenas à escrita contida em suas
pedras, ela está visível nos registros daqueles que, ao longo do tempo, foram impregnando-a
dos mais variados sentidos, atravessando sua existência, com aqueles monumentos,
postulando uma rede de memórias. Se a escrita possibilitou multiplicar o “fantástico” contido
nas inúmeras possibilidades de articular um espaço foi porque escrever é
construir um texto que tem poder sobre a exterioridade da
qual foi previamente isolado que tem como função estratégica fazer
com que uma informação recebida da tradição ou de fora se encontre
coligida, classificada, implicada num sistema e, assim,
transformada; ou fazer que as regras e os modelos elaborados neste
lugar excepcional permitam agir sobre o meio e transformá-lo.
(CERTEAU, 1999 p. 225-226).
Na escrita fictícia existe uma atribuição de evidências, falas, imagens, delineando
sensibilidades, discursos, haja vista que o escritor “diz a cidade a seu modo; é o que se
chamaria um espectador privilegiado do social, capaz de traduzir, em forma literária [...], um
urbano que ‘poderia ter sido’ e que assume um ‘efeito do real’” (PESAVENTO, 2002, p. 14).
Em um percurso realizado por Santino (personagem central da ficção romanesca)
– que inicia com sua saída do comércio do Troca-Troca, passando pelo Parque da Bandeira, o
adro da igreja de Nossa Senhora do Amparo e a praça Rio Branco, e, daí para o Liceu
Piauiense, onde participaria de uma eleição para o grêmio escolar através de imagens,
subjetivadas por um mapa sentimental, pudemos realizar uma espécie de “flânerie”; juntando
os fragmentos de narração, com veias possíveis de explicação, posto que o olhar fisionomista
do personagem-narrador propõe-nos uma perambulação “imaginária” e delinqüente”, sob os
interstícios da escrita literária, formulando uma multiplicação dos sentidos depositados nos
lugares e nos sujeitos. Com isso, pretendemos quebrar as imagens estáticas e propor outras
variações, pois entendemos que a linguagem literária, por ser uma linguagem delirante e
transgressora, como aponta Tronca (2002), possibilita o seu elastecimento para outros vieses
de entendimento, visto que utiliza, para sua comunicação, o recurso da metáfora. Dessa
forma, daremos início a nossa caminhada:
Dez horas... Santino tem de ir-se. Haverá de passar na banca
Oásis e de com Chiquinho irão ao Liceu.[...] Atravessa a praça
Deodoro...Estudantes da rede pública, fardados, aos casais, folgam na grama
fresca. Namoram. Gazeiam aula (LUSTOSA, 1999, p. 43).
Andar pela Praça Marechal Deodoro (também conhecida por Parque da Bandeira)
é experimentar o corpo, é flertar um espaço pelas pulsações que chegam, vindo dos encontros
amorosos e das aproximações corpóreas, que nem sempre foram bem aceitas, como recorda
Moura (1996) em sua obra memorialista; onde registra que, em outras épocas, essa atividade
era severamente punida pela disciplina da professora de Educação Física da antiga Escola
Normal, pois essa buscava proibir o contato entre homens e mulheres. Porém, esses contatos
foram explodidos com uma juventude que aprendera, com a revolução sexual dos anos 1960 e
1970, outras maneiras de relacionar-se com o corpo, procurando subverter clichês ainda
existentes na sociedade, marcados ainda pelas exceções da ditadura.
Contudo, o grupo de namorados, visualizado por Santino, permite-se mostrar e
viver as rebeldias de uma geração delinqüente, ao meio caminho entre as lutas políticas e a
efervescência dos mitos da música, do corpo bulêmico e anoréxico, anunciados nas revistas de
moda, de cosméticos, entre outros. Essa busca narcisista, ampliada pelo discurso da beleza e
do corpo perfeito, levou à reprodução de estereótipos, tão comuns no boom da “geração corpo
saudável”, estimulada pela década de 1980, e reformulada no corpo cibernético e global da
década de 1990.
Esses corpos repletos de significados operam redes que marcam a especificidade
do sujeito; assim, as seqüências utilizadas pelo autor, tais como “folgam na grama fresca;
namoram; gazeiam aula” (p.43), produzem uma operação combinatória somente possível ante
o entendimento do “ser” estudante, significado dentro de um estágio desolador entre a
ausência de um perfil legítimo para o trabalho e a demanda de um mercado, que se havia
tornado mais competitivo, na busca de “controlar” produtivamente os desejos corporais.
Na seqüência de imagens depuradas por Santino, podemos perceber, ainda, outras
representações sociais:
Nas calçadas da igreja de Nossa Senhora do Amparo
prostra-se uma legião de pedintes: mulher de faces chupadas,
extremamente pálidas, cabelos desgrenhados, nódoas de sujeira pelo
rosto, tem ao colo uma criança magérrima, parece desfalecer. A mão
estendida: - Uma esmolinha, pelo amor de Deus... É para a criança.
(LUSTOSA, 1999, p. 43).
O autor, através da focagem do personagem/narrador, quer registrar detidamente
os aspectos “depreciativos” da figura do pedinte; trata-se de um recurso estilístico que busca
utilizar a linguagem cristalizando uma cena, dando a essa um caráter de “realidade”. Nesse
fragmento, as imagens se distanciam daquelas dos namorados deitados na grama. Agora o que
está em jogo é a elucidação de um fato tornado significativo em Teresina, com o aumento
considerável de pessoas que para se dirigiam em busca da conquista dos signos que
passaram a identificá-la possibilidade de emprego, melhores condições médicas e, acima de
tudo, a oportunidade de conseguir uma casa própria essa última evidenciada pelo
significativo aumento de moradias populares construídas, visando a diminuição das
“aberrações” sociais ou mesmo a proximidade com o corpo sujo, fedido e inapto para o
trabalho.
Se os jovens permaneciam inebriados com a multiplicidade de possibilidades de
serem rios sujeitos, ante o aumento de signos que permeavam os meios de comunicação,
arte e ciência, em um outro pólo aqueles que estavam distantes do imaginário febril
publicitário reorganizavam seus corpos debilitados e significados historicamente de forma
pejorativa para o trabalho ou para a mendicância.
Fora de um mercado de trabalho, que avançava sua preocupação com os processos
de especialização dos sujeitos, os mendigos ou pedintes faziam (e fazem) funcionar uma
cadeia de relações, transformando o corpo maltrapilho em ferramenta para um trabalho
marginal, mas, que elabora combinações, no sentido de burlar os mecanismos que o sufocam
em uma cadeia de discursos. Nesse sentido, ao estar sobre as calçadas da Igreja, passam a
utilizar-se dos códigos religiosos e “jogam” com um imaginário cristão influenciado pelas
simbologias do pobre, da caridade e do pecado; pois, no mundo guiado por símbolos, “sugerir
é freqüentemente mais importante que dizer, sentir que compreender, evocar que provar”
(PASTOREAU, 2002, p. 508).
Essas maneiras silenciosas e invisíveis de metamorfosear situações, de criar
nesgas de resistências diante de elaborações rígidas que aproximaram pobreza, sujeira e
contaminação, equações essas elaboradas desde a segunda metade do Século XVIII, prova
que uma gesta ambulatória constantemente reinventa suas práticas, jogando com as
representações e fazendo-as circular sob outros registros, posto que a figura social da pobreza,
mesmo destituídos de riqueza, poder e cidadania, não
estão privados das representações e dos sonhos: um potencial
simbólico que move suas experiências, na tentativa de mudar a vida e
vencer as privações e outras marcas diferenciadoras que os classificam
como pobres. (LIMA, 2003, p. 369).
Dessa forma, ao retirar a imagem-fragmento da pobreza narrada pelo personagem
Santino, de seu lugar-morto, perdido em uma narratividade que sempre marcou o lugar-
comum desses sujeitos delinqüentes, pois vivem nos interstícios da legalidade, fazendo-se
urgente “descobrir as espertezas sutis e táticas de resistências através das quais o homem
ordinário se apropria do espaço, inverte objetos e códigos, usando-os à sua maneira”
(CERTEAU,1997, p. 273).
Nesse sentido, é importante esclarecer que não estamos fazendo uma defesa aos
mecanismos históricos, políticos e sociais existentes em Teresina, que sempre permitiram e
contribuíram com formas de promover a marginalização, a segregação; estamos, antes,
preocupados em verificar as formas sub-reptícias que os sujeitos criaram para mover-se ante a
aridez dos discursos organizados, no sentido de “necrosar” uma face da pobreza. Desta
forma, é fácil verificar que o nosso objetivo, ao utilizar a obra fictícia de Oton Lustosa, não é
manter com a esta uma relação de afinidade, de cumplicidade, mas fazer com que sua
linguagem literária, suas palavras, suas imagens sejam esgotadas,
até violentá-las em seus atributos mais secretos,
pronunciar enfim o divórcio fatal entre o termo e o conteúdo
expressivo que estamos habituados a lhes reconhecer. Agora o
importante não é mais o dito (um conteúdo) nem o dizer (um ato), mas
a transformação e a invenção de dispositivos ainda insuspeitos, que
permitem multiplicar as transformações. (CERTEAU, 1994, p. 245).
Sensíveis a esse “projeto” certoniano, desejamos dialogar com o “dito” (a
narrativa lustosiana), não para mostrar-lhes seu lugar naturalizado, mas propor que as imagens
literárias lustosianas que “dizem” a cidade e suas problemáticas, na década de oitenta do
século XX, sejam significadas de uma outra maneira, provocando latências e possibilitando
outras leituras, contribuindo, assim, para o entendimento da cidade e das trajetórias dos
sujeitos e suas inquietantes escapatórias das teias urbanas.
Ainda seguindo os “passos” de Santino pela cidade, e procurando, em uma
dimensão analítica, fazer uma flânerie,
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vamos ao encontro de outras imagens:
No centro da praça [Rio Branco] o cenário enche os olhos: um
camelô vende meizinhas milagrosas, entre elas uma pomada que cura
reumatismos, artrite, erisipela, gangrena, picada de cobra venenosa e tira
qualquer tipo de dor [...] Fala sem parar... Frases de efeito. De repente abre
um caixote e dali retira uma cobra, o réptil parece enfezado e enrola-se como
fumo. O mercador ralha-lhe; o bicho compreende, vai estirando-se ...[...]
Causa pavor nos curiosos. Recolhida a cobra ao caixote, encerrada a
encenação macabra, o homem passa a vender os seus produtos: recolhe
dinheiro, passa trocos, entrega os vidrinhos sem embrulho algum com a
banha milagrosa. (LUSTOSA, 1999, p. 43-44).
Nessa aventura do “olhar”, passamos do “corpo-exposto” juvenil, para o “corpo-
significado” dos pedintes, indo ao encontro do “corpo-subterfúgio” daqueles que mobilizam
invenções para driblar a falta de emprego, deslocando sua criatividade em favor de fazer
“crer” , segundo a narrativa, que uma pomada possa curar tantos males diferentes,
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O Flâneur é um alegorista da cidade, que a percorre no sentido de deter suas significações espaciais e
temporais. Sabe farejar rastros, descobrir correspondências, identificar criminosos através dos indícios mais
invisíveis, pois é o detetive da cidade.
reinventando “usos”, através da capacidade de mobilizar as pessoas, utilizando-se de recursos
nada convencionais como uma cobra, por exemplo. Esta presentifica aspectos residuais de
uma publicidade popular marcada pela busca em manter a atenção dos pedestres, bem como
fazê-los participantes de uma teatralização ambulante.
Essas astúcias utilizadas pelo camelô diversificam os relatos da cidade invisível,
pois são estratégias que tentam inibir um quadro de decréscimo econômico que marcou o País
desde a década de 1980 até 1994 aproximadamente, provocando, segundo Alba Zaluar, efeitos
psicológicos na população, tendo em vista que se passou a não mais acreditar nas diversas
estratégias econômicas implantadas pelo poder público, aumentando, dessa forma, o
descrédito com relação às ações governamentais (2000, p.275).
Essa situação de flagrante fragilização econômica que assolou o Brasil e provocou
uma onda fracionária significativa na economia piauiense resultou em surtos de crises de
abastecimento alimentar, desemprego, falta de moradia, infra-estrutura, mostrando-se painéis
de uma dicotomia ampliada na década de 1980.
[...] o Brasil era um país de economia diversificada e
moderna, porém com instituições e tradições políticas e jurídicas
antigas, o que fez com que apresentasse não apenas uma das piores
distribuições de renda no mundo como também grandes desigualdades
no acesso à Justiça e na justiça distributiva. Estas últimas se revelam
quando pessoas são sistematicamente excluídas dos serviços,
benesses, garantias, pensados em geral como direitos sociais de
cidadania, oferecidos ou assegurados pelo Estado, ou ainda quando
não conseguem exercer direitos civis ou humanos, os chamados
direitos formais das Constituições nacionais e demais leis escritas ou
das declarações dos direitos universais do homem. (ZALUAR;2000,
p.275).
Por conseguinte, os descompassos entre o descrédito das ações governamentais,
entre legalidade e ilegalidade, oportunizaram uma “realidade surrealista”, somente encarada
através de formas sutis e inventivas da capacidade dos indivíduos de sistematizarem ações no
sentido de criar outras formas de sobrevivência, como essas narradas pelo
personagem/narrador Santino.
O vendedor de “meizinhas milagrosas” subverte os códigos de uma indústria
farmacêutica e oferece, para aqueles que não têm acesso a essa indústria, meios de curar seus
males. Registro de homem ordinário somente existe nas dobras de um discurso que privilegia
o progresso científico e sua produtividade, equacionando timidamente uma dupla realidade, o
contexto da diminuição e marginalização daqueles que vendiam remédios caseiros e a sua
relação com o crescimento vertiginoso de uma industria farmacêutica; pois “os remédios com
base nos produtos naturais, de origem vegetal ou animal por exemplo, os xaropes, os
reguladores femininos, os fortificantes –, foram sendo substituídos pelos farmacoquímicos”
(MELLO; NOVAIS, 1998, p. 572). Esse cenário levou a uma elevação da indústria de
laboratórios estrangeiros no Brasil, pois aqui existia a combinação de duas realidades
distintas.
[...] de um lado, as doenças do ‘progresso’, as cardiovasculares, a
hipertensão, o câncer, e outras doenças crônico-degenerativas, as ulceras de
estômago e as gastrites, o stress, etc, de outro persistiram as ‘doenças do
atraso’, antes de tudo as infecciosas, decorrentes, em boa medida, da
alimentação, como por exemplo, a diarréia. (Ibid., 1998, p. 573).
O itinerário realizado por Santino recupera ainda uma outra imagem da cidade,
aquela que se refere ao corpo-memória: “ao redor da banca Oásis velhotes aposentados e
outros vezeiros da praça [Rio Branco] lêem manchetes dos jornais” (LUSTOSA,1999, p. 44).
Esse fragmento do autor chega a ser apenas uma pincelada do olhar, mas traduz de forma
enfática a função sociabilizadora que essa praça desempenha para uma gama de idosos, que
para se dirigem com o intuito de tecer longas conversas, discordando, xingando,
defendendo e apoiando políticas e iniciativas, fazendo circular comentários sobre a economia,
política e outros assuntos de caráter local ou não; sendo esses também o alvo das manchetes
pelas constantes desigualdades que os apontam, por estarem excluídos dos principais direitos
indicativos de cidadania.
Foto 12 – Idosos conversando na praça Rio Branco.
Fonte: Revista Teresina Ontem e Hoje, jan. 2002.
A praça tornou-se um microcosmo para essa população, um espaço deliberativo,
no qual seus freqüentadores exercem parte de sua cidadania, ao socializar opiniões,
recordações, tramas; essas reminiscências que passam a ser vividas como fonte, mas que estão
ironicamente presas a um corpo-memória maltratado, violado pelas doenças, pelo discurso
que identifica seu “lugar” de velho, desvalido e, principalmente, sem função ativa no trabalho;
um ônus para o governo e, muitas vezes, para a família. Lamentavelmente, podemos
constatar:
Quando a memória amadurece e se extravasa lúcida, é através de um corpo
alquebrado: dedos trêmulos, espinha torta, coração acelerado, dentes falhos,
urina solta, a cegueira, a ânsia, a surdez, as cicatrizes, a íris apagada, as
lagrimas incoercíveis. (BOSI, 1998, p. 39).
Nesse sentido, a praça territoriza ao tornar-se espaço onde “minam” com o
discurso de inativos, analisando politicamente os fatos cotidianos, fazendo grupos, discutindo
as notícias que, ao embate com suas experiências: explodem” em fios, liberando sinais,
linguagens, fazendo com que uma “população analfabeta”, que vive e subsiste nesse
microcosmo, como sapateiros, mendigos, camelôs, também se aproprie desses relatos,
elaborando e reelaborando dizeres, pensamentos, práticas. Dessa forma, “o vínculo com outra
época, a consciência de ter suportado, compreendido muita coisa, traz para o ancião alegria e
uma ocasião de mostrar sua competência.Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos
atentos, ressonância” (BOSI, 1994, p. 82).
O final do percurso de Santino é o colégio Liceu, caminha com destino às eleições
do grêmio escolar, onde é candidato a presidente em uma das chapas:
Três lideranças despontam. A atual diretoria, encabeçada
pela presidenta Carlousa, candidata à reeleição, trabalha com afinco.
Cazuza, tipo grandão, marmanjo, cinco anos cursando o segundo
grau, quer arrumar-se na política estudantil [...] Santino é a terceira
alternativa [...]. Em verdade, ainda não havia saído em busca dos
votos. Era preciso fazê-lo, urgente. (LUSTOSA, 1999, p. 44-45).
Em um trajeto marcado por denúncias sociais, podemos afirmar que a participação
política estudantil, em sua efervescência na década de 1980, foi uma das formas possíveis de
equilibrar e oportunizar formas mais democráticas e resistentes de combate às situações
injustas e desestabilizadoras, registradas pela lente sensível do personagem Santino. Diríamos
que a vitória de Santino, como presidente do Centro Colegial dos Estudantes do Colégio do
Liceu, resume de forma apoteótica não só o percurso aos espaços, mas também a idéia de uma
cidade simbólica, que não está inscrita nos meandros de um mapa oficial, mas encontra-se
ritualizada e modificada pelos passos e pela experiência do cotidiano. A cidade material,
fabricada pela perícia estética dos urbanistas e planejadores, cede, frente às dobras, os becos,
as ruas inférteis ancoradas nas imagens que partem da descrição de Santino. Dessa forma:
a cidade, estrutura física que suporta referências e
fornece elementos para os símbolos e memórias coletivas, convive em
nosso imaginário com a cidade labiríntica e moldável das vidas
pessoais onde recordações compõem memórias sem lugar que fundam
a cidade simbólica, diversa e semelhante na forma como se
nomeada. (BRESCIANI, 1997, p. 13).
Desejamos enfatizar que a nossa “perambulação delinqüente” existe enquanto
armadilha para apreender as fissuras da cidade invisível, contida nos meandros da narrativa
lustosiana; nessa condição, a rota descrita pelo personagem/narrador faz parte de um percurso
ficcional, mas subjetivado pelo contato do autor com as imagens que possui sobre esses
espaços, cravado pelas significações, muitas vezes empenhadas em mostrar um retrato
estereotipado da cidade, à parte, a principio, de esquemas tradicionais.
Porém, essas análises do texto servem não para mostrar eixos de verdade, mas
para mostrar que o “engessamento” da imagem de Teresina, através da literatura, faz parte de
uma maneira estranha de como nos vemos e como atribuímos significados aos nossos hábitos
e práticas; pois, ao defender discursos e representações conservadoras e tradicionais,
reservamo-nos o direito de não saber quem somos. Provavelmente seja essa a dificuldade em
encontrarmos romances que tenham como cenário Teresina, demonstrando, dessa forma, a
ausência de debates que concorram de forma satisfatória para uma análise mais efetiva de
nossa identidade, não no sentido de serem fixados condutas, valores, sentidos históricos
“congelados”, mas para percebermos as nuances subjetivas que existem e moldam o viver
teresinense. Sob este aspecto, faz-se necessário ter coragem para dizer o que não foi dito, não
para dizê-las de uma outra forma mais correta, mas para que possamos deslocar os discursos
que espargem nossas dimensões culturais e espaciais de estereótipos, negando e calando
nossas audácias. É preciso, conforme lembra Durval Muniz, em sua análise sobre a invenção
do Nordeste, que saibamos avaliar
que mecanismos de poder e saber nos incitam a
colocarmos sempre no lugar de vítimas, de colonizados, de miseráveis
física e espiritualmente? Como, por meio de nossas praticas
discusivas, reproduzimos um dispositivo de poder que nos reserva o
lugar de pedintes lamurientos, produzimos e reproduzimos um saber
em que sentimos prazer de dizer e mostrar que somos pobre coitados?
Que masoquismo é esse que faz nos orgulharmos dessa discriminação,
que faz aceitarmos felizes o lugar de derrotados, de vencidos? E,
principalmente, o que leva uma classe dominante a se deleitar em
afirmar sua impotência e se assumir como subordinada e dependente?
(1999, p. 20-21).
Dessa forma, tendo em vista que sujeitos e espaços são codificados dentro de uma
narratividade e passam a operar como verdades, faz-se necessário também analisarmos como
as várias cidades existentes em uma cidade são também significadas, como em uma ópera,
onde personagens e cenários dualizam-se na representação de papéis, definindo suas ações
emotivas. Deste modo, os locais proibidos, como os que iremos analisar, também estão ricos
das imagens que povoam o imaginário literário; pois uma cidade condensa várias imagens que
fundam e extrapolam um corpo simbólico, é significada pelos vários conceitos que lhe o
atribuindo sentidos, formando seu arsenal de discursos, passando a traçar e a definir suas
representações.
Por sua vez, o literato O. Lustosa, em sua obra “Meia-Vida”, compõe um mosaico
onde se desdobram rias imagens da cidade; estas se dualizam na conceituação de legal e
ilegal, próspera e maldita, visível e invisível, lúcida e esquizofrênica. O urbano passa a atrair
categorias metonímicas ao designar feitos e características humanas, pois o “corpo simbólico,
a cidade urbanizada pode também, como os indivíduos, ser capaz de apresentar-se como
detentora de virtudes ou realizar atos condenáveis, ser portadora de positividade ou vilania”
(PESAVENTO,1997, p.26).
Os espaços marginais, como os antigos prostíbulos em decadência na Rua
Paissandu, também foram significados pelo discurso literário lustosiano, bem como a
descrição de seus usuários e de suas dimensões também decadentes. No trecho a seguir, o
autor descreve a sina que teve Elizete – irmã mais nova de Santino, filha da feirante Mundica:
As filhas viraram raparigas. Descuidada, manchas pelo
corpo, cicatriz de caco de vidro no rosto, uma delas, a mais nova, é
farrapo de mulher. Sobrevive da profissão de puta nos cabarés da rua
Paissandu, no centro da cidade. Prostíbulos em decadência, as lojas
invadindo a área, até banco abriu agências ali. Fregueses quase não há.
Beberrões sem dinheiro, mendigos boêmios, é o que ainda resta.
(LUSTOSA, 1999, p. 132).
Pela narração do autor, podemos inferir que espaços e sujeitos sofrem múltiplas
mutilações. Historicamente, a Rua Paissandu simbolizou toda uma época áurea de lazer; era o
principal “point” das noites febris, “o prolongamento dos fins de programa, a continuação das
farras iniciadas no Clube dos Diários, no Jockey [...], o refúgio dos inibidos, introvertidos. A
satisfação das taras, manias, neuroses. A demanda geral do prazer, da variação, do diferente”
(GARCIA, 1987, p.53).
A antiga zona boêmia de Teresina apresentava sinais de enfraquecimento, no final
do século XX, sufocada pelo crescimento comercial que necessitava de uma outra vizinhança
e não aquela que existia, estigmatizada e em estado de decadência, limitada pelo aparecimento
de outras formas de lazer que a cidade passava a proporcionar, essa foi constantemente
invadida por estabelecimentos em uma clara justificativa
e legitimação do crescimento e progresso da cidade. Erguem-se
prédios de arquitetura arrojada, outros mais simples, compondo um
panorama arquitetônico ambíguo, onde o velho e o novo opõem-se nas
imagens que fixam a memória coletiva. O espaço da prostituição [...] é
submetido a uma nova ordem com outra função social, ali
caracterizada pela homogeneização do comercio em expansão e, por
seguinte, espaço de valor imobiliário. (SÁ FILHO, 1997, p. 7-8).
As mudanças observadas na imagem da antiga zona boêmia são paradoxais, como
assim se revelam a de seus freqüentadores e moradores, distorcidos pelo forte apelo
metafórico que registra uma carga de decadência sobre o corpo da prostituta, carregado-a dos
sinais de padecimento (“manchas pelo corpo”, “cicatriz de caco de vidro no rosto”) e de sua
inadequação para uma vida sadia (“já é farrapo de mulher”). A plasticidade literária lustosiana
ajuda na confirmação e ancoragem da imagem da prostituta: “O seu bumbum arrebitado,
fundinho exposto, coxas roçando no vaivém das passadas. Os bicos dos peitos espetando a
malha da blusa, o umbigo à mostra. Batom escarlate pintado nos beiços carnudos”
(LUSTOSA,1999, p. 132).
Foto 13 – Comércio de Prostituição da Rua Paissandu.
Fonte: Acervo do Arquivo Público do Piauí, década de 1980.
A imagem socialmente produzida da prostituta condensa uma identificação
marginal que foi utilizada na própria “reformulação urbana”, pois a idéia de uma existência
corporal maléfica existente, a priori, no corpo da prostituta, serviu como pretexto legítimo
para a sua progressiva retirada de um espaço que se desejava higiênico e salubre, que deveria
ser portador de outros adjetivos mais “positivos”. Logo, nada mais condizente, em um
discurso urbanístico, do que a implantação de novas estruturas comerciais, que demarcassem
as fronteiras.
É notório salientar que esses registros feitos pelo autor pressupõem esquemas de
representação de um “real”, e demonstram que as imagens dos condenados sociais” são
ancoradas de maneira a justificarem a sua existência; dessa forma, espaços e sujeitos o
sendo significados e ajudam na confecção de um imaginário excludente. Na trama fictícia,
outros enredos também são desdobrados no sentido de anunciar a relação entre corpo e
cidade; são aqueles que denotam a relação entre viciado e espaços marginais, possibilitando-
nos entender alguns dilemas que sobrevieram dos graves efeitos da violência na sociedade
teresinense, nos idos da década de 1980. Assinale-se que o personagem-chave que desemboca
toda essa condição é Beição, filho de D. Mundica e irmão de Santino e Elizete.
3.2 Painéis de Teresina na obra de Oton Lustosa
O autor, através de sua narração romanesca, procura abordar um fato
inquestionável e problematizado de forma ampliada, a partir do final da década de 1970, com
a constatação do aumento da violência em Teresina causado entre outros fatores pela
maximização dos casos de consumo e tráfico de drogas. Beição é o personagem e a
“caricatura” do bandido sem nenhum escrúpulo, capaz de tentar estuprar a própria irmã, salva
na última hora pela investida de Santino, que, dias depois fez a seguinte reflexão:
‘Que tivesse sido preso! Assim pagaria pelo crime
cometido contra a própria irmã. Cumpriria pena... Minha mãe estaria
sossegada!’. Culpa-se pela proteção dada ao irmão tarado, que não lhe
tem nenhuma consideração e ainda lhe prometeu o mal: jurou-lhe
morte. (LUSTOSA, 1999, p. 24).
Ao formular a idéia do personagem, de sua vilania e da violência que pôde
cometer contra a própria irmã, o autor propõe de forma contrária o perfil de Santino:
Relembra-se da maneira enfática com que ele, garoto
[Santino] botava para fora a sua força de vontade. Vendidos todos
os exemplares, o que fazia fardado, ia almoçar junto da e, na
feirinha do cais do Parnaíba. No fim da tarde relembra-se com
nitidez –, ainda envergonhado a fardinha azul-e-branco, voltava à
morada. Ajudava a mãe a transportar os instrumentos de trabalho:
panelas, pratos, colheres e a feira diária (carne-na-rola, tomates,
cebolas, farinha de mandioca, tripas, patas de vaca). (Id. ibid.).
A visualização do perfil de Beição é feita diante da contra-imagem do irmão e de
sua “boa” conduta. Esses referenciais possibilitam diferenciar os contornos entre os ideais
moralizadores e o seu inverso, resumidos na conduta violenta de Beto Beição. Em um outro
extremo, alguns relatos parecem oferecer uma justificativa para os atos violentos de Beição:
“a mulher, com os três filhos Alberto, Eleonora e Elizete –, vivendo em um barraco
miserável, na Favela do Querosene, passavam fome. Tarde da noite, embriagado, regressava o
traste ruim à dormida, para espancar a esposa e apavorar os filhos” (LUSTOSA, 1999, p. 25).
As imagens de violência saltam das narrativas e procuram denunciar, através dos
seus enredos, o aumento da proporção de famílias atraídas para a capital, mas que tiveram de
ocupar suas franjas periféricas, partilhando um cotidiano estarrecedor, como a falta de uma
série de medidas estruturais; por exemplo: saneamento básico, coleta de lixo, falta de
transporte, escolas e fornecimento de água e luz.
A violência familiar assume contornos gritantes quando se presencia a ausência
do estereótipo de marido que mantém a família às custas de seu trabalho fora do lar. Segundo
Aceli Magalhães, nas classes populares, o “homem pobre desprovido de poder e autoridade
nos espaços públicos não possuía recursos para corresponder ao papel de mantenedor da
família. Diante dessa impossibilidade real de exercício de poder, normalmente esses homens
eram acometidos de ‘crises de violência’” (2001, p. 23).
Diante dessa realidade, as mulheres da classe pobre, ao partilhar de um cotidiano
miserável, normalmente saem à procura de emprego, reagindo, utilizando-se de sua maior
“liberdade” de locomoção para formularem táticas de sobrevivência, como a personagem D.
Mundica, que passou a vender caldos na feira do Troca-Troca como forma de sustentar a
família.
Aliando-se, ainda, a essas considerações, um outro fio que se locomove paralelo
às narrativas é o aumento considerável dos usuários de drogas em Teresina, necessitando, para
esse consumo, em muitos casos, da prática do roubo, do assalto, como meios para pagar-lhe:
Indigna-se ao ser abordado por Beto Beição, filho de
Mundica, que lhe oferece toca-fitas, botijões de gás... abriu o olho
da mãe; tudo contou para Santino, o irmão bom, encaminhado na vida,
que um dia vai ser doutor ou político. (LUSTOSA,1999, p. 28).
A violência e suas práticas aprofundaram-se em uma sociedade inebriada com o
consumo de bens e mercadorias, estes indo desde itens “tradicionais” ou “folclóricos”, como
alguns preferiam, ao consumo de novos padrões comportamentais, muitos deles difundidos
maciçamente pelos meios de comunicação, como a televisão que passou a exercer influências,
indicando também quais seriam essas necessidades.
Olhou por olhar, não sentiu qualquer atração por aqueles
estudantes, sem dinheiro, lisos. Pior ainda: feios, magrelos. Por certo
moram na casa dos estudantes. – Uns lisos! – Volta a pensar [...] foi na
praça que Maria se deu bem. Arranjou um partidão sessentão. Tudo
lhe dá: perfume da Avon, calça de lycra, sutiã Duloren, sandalhinha de
correias trançadas e salto arrebitado, último lançamento da Grendene.
(LUSTOSA,1999, p.130).
O pensamento de Elizete encontra eco nas práticas do irmão “Beição”, ambos
procuram meios para alimentar a chama do consumismo capitalístico; ela, ao entregar-se à
prostituição, e o irmão às drogas e aos atos ilegais, como roubar e estuprar. Ambos são
personagens que encarnam a fragmentação da família e os reflexos da fragilidade das
instituições governamentais de controle, preocupadas apenas em deter, subjulgar e trancafiar
os “elementos” que destoam da “ordem”, não realizam projetos via comunidade que
possam prevenir tal quadro de infortúnio:
Viatura policial chega apitando estridentemente, com a
sirene ligada [...] Descem do veículo dois praças, um deles tem
cicatriz no rosto e traz em punho o cassetete de borracha. O motorista,
também policial, fica ao volante.[...] Procuram o Beto Beição.
Acabara de furtar toca-fitas de veículo estacionado nas imediações da
praça Deodoro. Um moleque lavador de carros deu a informação à
polícia. (LUSTOSA,1999, p. 29).
Logo, é possível percebermos a existência de um sistema policial profundamente
marcado pelo estigma da violência, tanto por ser herdeiro historicamente de um poder
disciplinador e vigilante, como por ainda estar enraizado nas entranhas das práticas macabras
do período do militarismo:
Beto invente desculpa. Um dos policiais agarra o
meliante com energia. O bicho sagaz tenta escafeder-se, recebe uma
bordoada na cabeça, desferida pelo militar com rosto desfigurado.
Beição, aos berros, chora como criança. Estrebucha, cai ao solo, os
policiais o imobilizam. O militar da cicatriz no rosto amiúda as
bordoadas e espanca impiedosamente o infeliz. Jorra-lhe sangue do
rosto, mija-se. Arrancam-lhe a camisa. O supercílio direito sangra.
Mundica vem ao socorro do filho [...]. Segura o punho do policial
suplica-lhe. O militar a encara e cessa a tortura. (LUSTOSA, 1999, p.
29).
A imagem traçada pelo literato libera uma questão peculiar sobre a cidade legal e
ilegal, pois esses contornos são invisíveis, porém, palpáveis pelo discurso repressivo do
aparato governamental. Embora a coerção localize e puna aqueles que estão inscritos às
margens da ilegalidade, não produz o cidadão, ao contrário, extirpa-o do “verdadeiro” viver
na cidade, relegando-o à criação de formas sub-reptícias de viver, como a formação de grupos
– as conhecidas “galeras” – ou mesmo de espaços particulares e alternativos, onde os “pactos”
silenciosos tornam-se enigmas e formas de parceria contra o outro – os “otários”:
Beto Beição é levado à cela. Dividirá o espaço com mais
dois foras-da-lei: um é usuário de drogas, fora apanhado em flagrante
soltando baforadas proibidas em plena praça Pedro II. Resiste em
apontar os cúmplices da traficância; o outro é um larápio esperto,
prefere agir na malandragem, aplicando contos nos otários que são
muitos por aí afora. (LUSTOSA, 1999, p. 32).
Torna-se visível nas considerações do autor que existe um equívoco que iguala o
viciado ao traficante, como se um fosse condição para outro, revelando ainda um preconceito,
quando responsabilizamos o usuário pela expansão da droga. Salvo à parte essa confusão, o
autor procura desenhar um outro personagem que não parte somente das classes populares, e
cria em contraste, um personagem também viciado em drogas e bebidas alcoólicas, o jovem
Julião Amorim, filho do vereador Cassiano Amorim. O autor traça a personalidade de Julião,
tendo como base às reminiscências do pai durante uma plenária na Câmara dos Vereadores:
Loucura! Julião, do alto dos seus dezoito anos ,
aprontou bastante. Sequer o curso colegial conseguiu concluir.
Freqüenta a escola por freqüentar. Faz do local de estudo o palco de
suas investidas sedutoras [...] Homenzarrão barbeado, saúde
explodindo nos lábios vermelhos. Altivo, o jeito político do seu pai.
Aparências... As aparências enganam! (LUSTOSA, 1999, p. 105).
Podemos observar, na narratividade lustosiana, a representação de Beição e
Julião como “produtos” narrativos que demonstram a explosão do mercado de consumo de
drogas e o aumento da violência. Esses personagens entregaram-se à revelia de qualquer
“ordem” estabelecida e operaram como fantasmagorias em meio aos seus objetos de fetiche,
pois a violência ronda a cidade-consumo, estabelecendo com ela uma série de elos
“macabros”, robotizando pessoas e injetando-lhes modismos, que, por sua vez, multiplicam-
se comparados ao poder de possuí-los.
Os padrões de comportamento, apesar de serem vistos como possibilidades de
generalizações, de formação de uma sociedade global, terminaram por desencadear a
transformação dos sujeitos em indivíduos egoístas, que vivem ao sabor dos “perigos” da
cidade, através da invenção de múltiplas defesas; como, por exemplo, o uso de aparências em
uma sociedade exigente, com relação ao consumo de uma série de novidades, que, em bem
pouco tempo, são modificadas por outras. Simmel (1971), referindo-se às relações entre
cidade e modernidade, propõe que a vida, nesta, provoca o que denominou de atitude blasé,
resultado da experiência moderna que imprime à consciência uma constante indiferença às
distinções; assim, um verdadeiro sentido de mesmice invade o citadino, onde antes,
sensivelmente, havia fascínio e envolvimento por coisas e pessoas, pois “estimula o sistema
nervoso do indivíduo até seu mais alto ponto de realização, de modo que atinge seu ápice”
(Ibid., p.17).
O caráter descrito por Simmel permite que vejamos a modernidade enquanto uma
experiência que implica uma relação espaço/tempo, mediada pelo efêmero, que provoca uma
constante consciência imersa no fluxo irreversível do tempo, o que Baudelaire designou de
transitório, fugidio e contingente. Porém, essa possibilidade citadina é bem diferente daquela
impressa pelo mundo rural:
Cassiano Amorim em seu tempo de juventude não se
portava como Julião. Criado na lida roceira, no seu tempo de jovem,
não experimentou rodopiar em quatro rodas, em riba de pista asfáltica,
para impressionar namoradas e por em risco a vida dos outros.
(LUSTOSA, 1999, p. 105).
Todavia, o eram somente as atitudes que se modificavam, as formas de
sociabilidade também eram mudadas, conforme as declarações do personagem Cassiano
Amorim:
Saudades daqueles tempos em que acompanhava
noivados a esta capital! Casimira ringindo nas pernas e nos peitos,
gravata a desfraldar, lunetas marrom-escuras em riba do nariz! [...]
Apresentava os noivos ao juiz, pagava as despesas do tabelião,
assinava de testemunha e dizia duas palavras de animação: Viva os
noivos! Regresso festivo, regado a conhaque de alcatrão. (LUSTOSA,
1999, p. 105).
A cidade-capital historicamente foi entendida como espaço de rebeldia, de
possibilidades, de vivências que iam além daquelas estabelecidas pelo meio rural. Dessa
forma, o urbano criou armadilhas que pressupunham conhecimentos, audácias, tendo em vista
que a variedade de seus feitiços autorizava dispositivos simbólicos, criando escolhas, entre
manter-se no recanto do conhecido ou permitir-se outro; porém não um outro diferente, mas
camuflado, perdido entre o conhecido e o dado a conhecer, apropriando-se festivamente de
novos lugares e possibilidades.
A ampliação dos cursos universitários, descrita pelo autor, é uma dessas
“possibilidades” que passam a ser visíveis enquanto investimento a ser realizado, em um
período de redemocratização das estruturas básicas da sociedade, no sentido de oferecer
oportunidades para o combate do atraso econômico e social, conseqüências dos períodos de
delírio do “milagre econômico” e ditatorial.
A narrativa lustosiana traçou a busca por capacitação, por parte do delegado
Padilha, como uma condição para ascender aos cargos de chefe dos delegados e, finalmente,
chegar a exercer a função de juiz; demonstrando, acima de tudo, que as oportunidades
passavam a depender de uma maior baliza e refinamento em estudos de graduação e pós-
graduação. No caso do delegado Padilha, a necessidade de formação em um curso de
graduação em Direito devia-se às novas sensibilidades com relação à violência e às formas de
combatê-las:
Muitos anos de carreira policial. Vontade de trabalhar
nunca lhe faltou; enfrentando dificuldades, é verdade. Mas vencendo-
as, a cada dia. Responsabilidade enorme pesando sobre os ombros.
Incontáveis crimes apurados, milhares de prisões efetuadas. Injustiças,
cometeu-as. De propósito, sim; por ignorância dos fatos e da lei,
também. [...] Certa vez surrou um homem. Dói-lhe por dentro
relembrar tão lastimável fato. Surrou com as próprias mãos. Relho,
umbigo de boi. O homem prostrado, de joelhos, mãos postas.
(LUSTOSA, 1999, p. 138).
A imagem desse fragmento literário aponta com muita sensibilidade as torturas
efetuadas, no período da ditadura, contra aqueles que, de alguma forma, se colocaram contra o
regime; e a resistência que teimava em sobreviver camuflada em uma militarização, que
pranteava atos abusivos e violentos contra a sociedade, principalmente contra aqueles
marcados socialmente em nome de uma disciplinarização:
Tinha de surrá-lo, era ladrão; escondia o produto dos
vários furtos e silenciava quanto aos receptadores. Lap! Embrulhado o
homem, vermelhou, incontinenti, o calombo na costa nua.
Acovardado, ao rés-do-chão, tinha as calças encharcadas de urina.
Mais uma lapada: Lap! (LUSTOSA, 1999, p. 139).
O enunciado aprendido pelo delegado Padilha, em seu curso universitário
“confissão sob tortura é nula” - (LUSTOSA,1999, p.139) fez com que revisse sua postura
profissional em nome dos “novos tempos” e da oportunidade de ser aprovado no concurso
para juiz de Direito. Porém o personagem deixa transparecer que a mudança ainda estava
longe de acontecer de forma efetiva, pois o longo tempo de militarização e policiamento da
sociedade brasileira causou irrefutáveis anomalias:
Os seus auxiliares [do delegado Padilha] nada entendem
de investigação sofisticada, com emprego de boas maneiras ou de
maneiras técnicas. Um deles tem o rosto marcado pela violência. Fora
prender um baderneiro na zona do meretrício do Querosene, recebeu
facãozada no rosto [...] É com gente assim que trabalha. Gente que
sabe o que é violência, tendo-a sentido na própria carne; sem
capacitação técnica para a função policial. Mesmo diante desta
realidade, um certo dia ordenou : - Não admito tortura! (LUSTOSA,
1999, p. 139).
Convém enfatizar que, através desses fios, o autor nos favorece um cenário da
cidade, bem como seus eixos e nervuras diante da propagação da violência e da construção de
uma cidade, onde o medo passou a ser uma moeda de troca, frente aos efeitos perversos
advindos do aumento do consumo de drogas e dos meandros da violência, visíveis tanto pela
situação causada pelo aumento populacional, como pela falta de uma política urbana que
levasse em conta o ônus de uma prática que se mostrou segregadora de espaços e pessoas.
Por outro lado, embora a cidade seja significada por um número ilimitado de
discursos, que a envolvem e fazem circular teias de “verdades”, toda forma de abordá-la é
uma forma limitada, posto que se apresenta como um constante desafio para quem deseja
conhecê-la e perscrutar-lhe os segredos. Uma das entradas possíveis à cidade, abordando uma
metáfora utilizada por Bresciani (2002), é aquela que mostra a cidade enquanto espaço de
sonhos e realizações, latente no sentido de indicar subterfúgio frente às problemáticas que a
rodeiam. Esses espaços detectados pela lente literária mostram, através de sua construção
estilística, as fraturas que expõem a cidade-sonho, imersa em um contexto de sublimação do
viver cotidiano de uma série de personagens “marginais” contidos na trama.
No capítulo "Formatura" o autor narra o deslumbramento de um simples
carroceiro (Francisco Carroceiro), que consegue, em meio a uma vida de dificuldades, formar
a filha no curso de Pedagogia da UFPI. Assim declara: “fez bonito! caminha altiva, queixo
empinado, olhar projetado para um plano superior. Seu pai, durante longos anos, sonhou com
aquela consagração. Agora, veste paletó e gravata” (LUSTOSA, 1999, p.108).
A realização do sonho educacional é uma das fendas possíveis, se levarmos em
consideração o contexto de “sacrifícios” existentes na profissão de carroceiro; esse
corresponderia provavelmente a uma metáfora daquele que recolhe, em uma cidade em
transformação, os seus restos, limpando-a daquilo que é excesso, "velho", ultrapassado.
Capta, como aves de rapina ao verem sua presa, os monturos que vão se formando na cidade,
que muda constantemente sua feição, recolhendo-as ao lixo.
Esse "obreiro" da materialidade, que trabalha silencioso no processo de
transformação urbana, não se identifica com "paletó e gravata"; esses símbolos do vestuário
marcam o diferencial na sua rotina, suspendem-na inusitadamente. A cidade é palco dos
desejos e da vontade de saciá-los; e foi através dos tempos sentida enquanto espaço de
realizações e das inúmeras possibilidades de extravasamento dos sentidos, fazendo com que
os citadinos vivam impregnados de “agoras”, termo benjamiano que se refere ao sentido de
vulnerabilidade e efemeridade da modernidade, delineando novas propostas, atitudes,
oportunidades, como a sentida por Maria Celeste:
Um nome será pronunciado em voz alta, que encherá de
orgulho e de emoção uma professora de vinte e três anos [...]
Levantar-se-á a filha de Maria das Dores, irá ao encontro do seu velho
pai e lhe tomará, novamente, a curva do braço. Chegando perante o
reitor, Francisco Carroceiro ficará por um instante de lado. Ela tomada
de inenarrável estado de espírito, estenderá a destra, jóia do grau
fulgurando no dedo anular, e naquela palma acolherá um tubinho de
papel decorado com laço de fita. (LUSTOSA, 1999, p. 109).
A cidade como espetáculo do caos é também fratura, ao permitir acionar nesgas
de sentidos, acionando uma quantidade ilimitada de simbologias, como a jóia anular e o
tubinho de formatura, que possuem a capacidade singular de transformar alhures em códigos
de significado, realizando uma espécie de alquimia, conferindo valores a condutas:
A diretora faz a chamada: o nome de Maria Celeste se
aproxima. Francisco Carroceiro, numa das cadeiras reservadas aos
padrinhos e madrinhas, aguarda o grande momento de ir ao encontro
da filha; juntos se dirigirem até a mesa para o recebimento do
diploma. ao redor homens e mulheres bem vestidos. Volta-se para
o seu corpo. Não acredita que seja ele, um simples carroceiro, que
esteja metido naquela fatiota, de colarinho e gravata. (LUSTOSA,
1999, p. 110).
Nesse capítulo denominado “Formatura”, existe uma preocupação em traçar os
aspectos subjetivos dos personagens, o que torna esse texto literário rico e
incomparavelmente mais próximo de um "real", fazendo com que o leitor, aos poucos, se
identificando com os personagens e sua carga emocional:
Pronto, é anunciado o seu nome. Levanta-se . Francisco
Pereira, o pai carroceiro, marcha ao encontro da filha. Forma-se
novamente o par. Este o grande momento. O coração do velho
carroceiro bate mais forte. Não se sabe se vai suportar tamanha
emoção. Era tudo o que queria na vida. (LUSTOSA,1999, p. 112).
O personagem Francisco Carroceiro e sua filha Maria Celeste subvertem a ordem
dos outros personagens, como um oásis em meio a um intricado enredo de vidas medianas;
revelam de forma extraordinária, através de uma forte carga emocional, as resistências e
microliberações, pois revelam o que os outros personagens esconderam um mundo onde é
possível a realização dos sonhos, mesmo vivendo-se em um cotidiano de sacrifícios:
Sobrevem-lhe a lembrança: a filha estudando, à noite, na
sala; ele no quarto da frente. Cismara, numa vigília massacrante.
Apesar do corpo alquebrado, um dia inteiro de trabalho pesado,
carregando e descarregando a carroça, o sono lhe chegara depois
que Celeste apagava a luz e se ia deitar. Pensando na filha:
professora...vai ensinar em colégio do governo...![...] A meninada o
respeitaria, onde quer que passasse com a sua carroça. (LUSTOSA,
1999, p. 112).
O sonho de ingresso e finalização de um curso superior fez com que Maria
Celeste, a filha de um simples carroceiro, também materializasse uma forma de transformação
urbana, pois foi responsável por inserir-se em um espaço público, redefinindo sua posição
enquanto mulher e portadora de uma capacidade intelectual capaz de organizar e direcionar
instituições de prestigio na cidade, como os estabelecimentos de ensino.
É válido ressaltar que esse movimento de configuração profissional, que deu à
narrativa lustosiana uma certa suavidade, foi possível em um período que tentava modificar os
seus códigos de acesso ao espaço universitário, onde as oportunidades começavam a ser vistas
como necessárias e democráticas em conseqüência de toda uma transformação que existira, no
que se refere à imagem feminina e sua entrada para o mundo do trabalho. Isso foi possível
devido às
transformações econômicas e sociais por que foi passando Teresina, nas
décadas de 1950 e 1960, criando condições para que as mulheres com
formação superior ingressassem no mercado de trabalho. Nesse período,
expande-se a rede escolar pública de ensino médio, gerando empregos nessa
área, como também a modernização da burocracia estatal cria oportunidades
de emprego nessa esfera. Desse modo, o setor público amplia o número de
empregos, tornando-se o grande empregador das mulheres, com formação
universitária, assim como dos homens. (CARDOSO, 2003, p. 229).
Essas transformações são possíveis porque a cidade, para além de sua
materialidade exposta, através do ferro e da argamassa, pulsa por meio dos sonhos, dos
objetivos traçados, realizados ou não; incita vivências, mesmo que essas sejam contraditórias
e ambíguas, mas principalmente enfatiza a inventividade cultural, tendo em vista que a cidade
é um caldeirão de articulações culturais, e, nesse sentido, é fragmentada, plural, entendida
como uma projeção de pensamentos e discursos que se vão constituindo, significando e
criando um imaginário urbano que abrange a produção e circulação de imagens, sejam essas
visuais, mentais, sejam verbais. Esta noção de imaginário mantém interfaces com a noção de
representação, esta, aliás, esclarecida por Chartier, o qual nos adverte que a História Cultural
tem "por principal objeto identificar o modo como em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade social é construída, pensada, dada a ler" (1990, p.16-17).
A perspectiva literária lustosiana, não obstante valorizar e ajudar na construção de
estereótipos, possibilita o entendimento de vários signos que permitiram a leitura de uma das
imagens de Teresina, pois os enredos entrançados nesse romance também apontam para uma
forma de desenraizamento, posto que se mostra como uma forma de luta contra o tempo e
uma tentativa de ultrapassar o dualismo da interioridade e da exterioridade. Na concepção de
Benjamin (1994), somente no romance ocorre uma reminiscência criadora, que atinge seu
objeto e o transforma [...], pois consegue separar o sentido e a vida e, portanto, o essencial e o
temporal” (p. 212).
Dessa forma, queremos pontuar que obra Meia-Vida também é um lugar, tanto
por conter as territorialidades inventadas pelo autor, como também por possibilitar leituras.
Esse lugar ficcioso existe como tensão, pois, ao tempo em que permite excessos, imaginações,
fugas, também funda uma cidade invisível, articulada com a própria experiência de urbanita
do autor que, também, assim como os cronistas, percebe as modificações efetuadas ao seu
redor, buscando conter, paralisar tempo e espaço em uma tentativa de captar um período e
suas peculiaridades mais marginais, escondidas e amorfas, se não fosse por sua decisão em
mostrá-las, enviesadas por uma narrativa que contém doses da experiência do autor ou de
outros; pois a escrita de um romance significa [...] levar o incomensurável a seus últimos
limites. Na riqueza dessa vida e na descrição dessa riqueza, o romance anuncia a profunda
perplexidade de quem vive (BENJAMIN, 1994, p. 201).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na tentativa de capturar algumas imagens que foram enviesadas, buriladas através
dos vários discursos que permitiram a “construção” da cidade de Teresina, dentro de uma
cadeia de significados, intentamos possibilitar uma visão panorâmica de onde se partiram
várias cidades, que não possuem, a princípio, uma ordem, estão dispersas, bastando articulá-
las no sentido de demonstrarem suas várias facetas. Desta forma, no dissertar entabulado nos
três capítulos, pudemos perceber o entrelaçamento de várias cidades, como a cidade visível e
invisível; a cidade higiênica e marginal; a cidade antiga e moderna; a cidade como espaço de
cultura e história.
A cidade visível é aquela existente nos planejamentos, mapas, códigos de
posturas, formulada enquanto idéia e moldura de uma materialidade. Sua apreensão somente é
possível diante de um conjunto, pois sua organização deve ser perceptível, seus espaços
devem ser vigiados, impregnados de imposições, sanções, zoneamentos, divisões espaciais,
recuos. A cidade-conceito ou aquela fabricada pelo discurso urbanístico confundiu-se com o
próprio processo de implantação da capital Teresina, que essa sofreu a síndrome das
cidades planejadas, no século XIX, articulando saberes ligados à exatidão de uma técnica.
Por sua vez, o saber médico e a técnica do urbanismo, enquanto ciência da
cidade, foram fundamentais na formação espacial de Teresina. Esse modelo proliferou como
teias na concepção de um imaginário, que via, na manutenção constante da ordem, da
disciplina, do saneamento, meios eficazes para conter os “excessos” àquilo que era taxado de
desordem, infortúnio, ameaça à cidade e a seus habitantes. A preocupação com a visibilidade
da cidade pôde ser demonstrada desde sua origem, com a construção de prédios e ruas que
demonstrassem funcionalidade e beleza. Essa linguagem rígida e lógica pôde ser percebida
através de seus discursos legais, organizados, de forma que mantiveram afastado tudo aquilo
que pudesse vir a impedir a construção dessa cidade utópica; tendo em vista que essa somente
existe enquanto um “dado”, pois é no processo de apropriação da cidade que se dão as
fissuras, os recortes, as transgressões.
Mapas, leis, planos estruturais, códigos de posturas, código de edificações, entre
outros, caracterizaram-se fundamentais para a elaboração da cidade como molde e registro,
onde todas as coisas deveriam ter o seu lugar e a sua funcionalidade. Dessa forma, a cidade-
conceito, fundada pelo discurso utópico e urbanístico, deveria reprimir todas as “poluições”
físicas e mentais que pudessem comprometê-la; assim, a construção de uma série de
estratégias científicas no sentido de evitar as diversas táticas dos usuários, esses devem
permanecer o mais anônimo possível.
No entrelaçamento dessa cidade visível, operou-se a construção de uma cidade
invisível, remediada pela subjetividade daqueles que articulam “dizeres” sobre a cidade. A
cidade invisível existe enquanto registro da memória. São as inúmeras evocações realizadas
no sentido de construir uma cidade, que somente existe como recordação, reminiscência.
Esses espaços, representados em nossa análise pela “Praça Pedro II”, da juventude de H.
Dobal ou pelos “quintais” das lembranças de Durvalino Filho, ou ainda aqueles existentes nas
inúmeras cidades articuladas pelas lembranças de A. Tito Filho e José Eduardo Pereira. As
invenções desses territórios subjetivos somente foram perceptíveis em contato com o
sentimento de que espaço e tempo haviam se modificado, diante da constatação de que uma
cidade estava sendo “perdida” devido ao processo de demolição de alguns lugares de
memória.
A construção de uma “outra cidade”, que se mostrava alheia aos valores e
condutas do passado, foi sistematicamente sendo denunciada por aqueles que sentiam a perda
de seus referenciais. Isso foi possível, posto que o sentimento de identidade está ligado aos
lugares, dando a esses a impressão de serem a única forma de ligação com uma temporalidade
e espacialidade que se acreditava estarem perdidas. Dessa forma, a cidade invisível
oportunizou uma forma de criação, pois conseguiu viabilizar passagens para uma outra
cidade, aquela vivificada pela memória. Essa capacidade permitiu a coesão de um grupo, que
a utilizava como forma de manter uma identidade que estava ligada aos espaços.
Sob este aspecto, queremos pontuar que enquanto a cidade visível é produzida,
enquanto espelho e simulacro de uma idéia de racionalidade e disciplina, a cidade invisível
existe como enxurrada de fragmentos, lembranças esparsas, que não são contidas pela
imposição de uma cidade-cenário. A cidade visível prefere mostrar-se, através de suas
denominações e novas paisagens urbanas. A cidade invisível é aberta a narrativas, mas
também suporta silêncios e interrupções. A cidade visível está preocupada com as avenidas,
com as ruas que dão acesso aos shoppings, às confrarias e a outros lugares que resumem os
“novos” espaços de sociabilidade. A cidade invisível prefere falar dos becos, das ruelas, das
praças com seus “antigos” coretos, das zonas marginalizadas, do cais.
No jogo frenético desses discursos conceituais, surge a cidade antiga e a moderna.
A cidade antiga vem acompanhada de uma série de simbologias que a legitima como lócus de
um passado que se mostra carregado de positivações, pois resume uma carga nostálgica, que,
no caso da nossa literatura, mostrou-se deliberadamente comprometida em mantê-la enquanto
ideal e baliza. Acidade antiga”, com sua arquitetura provinciana, sociabilidades, tradições e
costumes, permaneceu na memória daqueles que se sentiam frágeis perante a construção de
uma cidade moderna, que não temia ser visualizada por novos prédios, estabelecimentos
comerciais e industriais, pela criação de modernas estruturas hospitalares, de diversão entre
outros.
Os discursos definidores de “antigo” e moderno” existem como concepções,
tramadas por aqueles que os utilizam como forma de apropriação de estruturas, conjunturas,
no sentido de desenhar feições, estabelecer limites, indicar usos e legitimar discursos. Mas a
simples definição de “antigo” e “moderno” parte desses discursos; pois, na prática, o que há é
uma sobreposição de tempos, onde passado, presente e futuro encontram-se sob as edificações
da cidade, que suporta várias definições temporais e espaciais, fazendo com que essas sejam
cotidianamente significadas, ressignificadas, atualizadas.
Nesse sentido, a cidade “antiga” e a “moderna” são variações de uma mesma
cidade, são fantasmas que se encontram com seus algozes, em uma luta que excederá em
fragmentos e possibilitará a “cidade do futuro”. Essas tramas apontam no sentido de que
possamos perceber as coisas e os seres como estruturas modificáveis, possíveis de serem
reformuladas, no sentido de abrirem-se a outras possibilidades. A cidade é o palco dessas
modificações, permitindo a atualização de nossos sonhos desejos.
Na luta para a construção dessas cidades, com suas espacialidades e
temporalidades distintas, foram observadas a existência de outros territórios marcados pelos
discursos da legalidade e da ilegalidade. A cidade do discurso higiênico perpassou a
construção da cidade-conceito. A preocupação com a desodorização dos espaços implicou na
luta contra tudo aquilo que fosse uma ameaça à saúde. Assim, tanto os corpos como os
lugares deveriam ser vigiados sob o pretexto de evitarem-se o aparecimento de doenças e
similares.
Assinale-se que a cidade pensada como um grande hospital deveria conter a
difusão das doenças, dos contatos que se propagavam por contágio, das aglomerações
perigosas. Essas articulações deveriam prever também os agentes ameaçadores; deste modo,
todos aqueles que fugissem aos padrões determinados eram “logicamente” denunciados, seja
de forma camuflada como a imposição de um ideal de limpeza e beleza, realizado
constantemente pelos meios de comunicação, seja de forma efetiva com a retirada, as
demolições e as desocupações feitas pela polícia aos lugares considerados “ilegais”.
Teresina, como outras cidades brasileiras, construiu seus códigos urbanos com
base nessa justificativa da idealização higiênica, pois viabilizou teias de associações entre
pobreza/sujeira/ameaça em potencial, autorizada pelo discurso urbanístico, em que parcela
significativa da população foi constantemente sendo “empurrada” para as franjas da cidade ou
para os lugares considerados “ilegais”, escondidos da construção da idéia de “progresso”,
onde a visibilidade não deveria existir, e, se existisse, deveria ser para mostrar que essas
formas de habitação não deveriam ser imitadas. Porém, uma parcela considerável de nossa
população vive nessas zonas de interdições, vigiada pelos mais diferentes mecanismos, mas
fazendo-a tencionar, através de uma série de resistências, onde possivelmente investe esses
discursos, utilizando-os em seu favor.
Dessa maneira, a cidade marginal foi inscrita como subversão no discurso
articulado pela cidade visível. Foi posta como problema de polícia, conforme nos mostrou
Oton Lustosa (1999) em sua obra. A cidade marginal existe no discurso urbanístico, como
excesso, peso, necessitando ser constantemente domado, ou mesmo, extirpado. Ao contrário
da cidade visível, constituem seus pontos nevrálgicos as encostas, os bueiros, as zonas de
prostituição, as favelas, embaixo de pontes e viadutos. É perenemente utilizada nos discursos
legais e de vigilância, mas é evitada pelos discursos dos urbanistas e arquitetos, que estão
preocupados com a imagem da cidade, ou com o ideal de beleza, normalmente veiculado
pelos meios de comunicação específicos dessa temática.
A beleza arquitetônica que se propõe para a cidade não se estende aos meandros
da cidade marginal. O seu registro é evidenciado nos jornais, principalmente nas páginas
policiais, ou naquelas que visam tratar dos “problemas urbanos”. O discurso que viabilizou a
“marginalidade” do espaço foi historicamente transferido para seus sujeitos. Neste sentido,
tentou-se encontrar solução para esse “problema”, na construção de conjuntos habitacionais
que se mostraram sem nenhuma criatividade arquitetônica, revelando um cotidiano no qual
problemas estruturais foram constantes, além da falta ou utilização dos serviços
essenciais, tais como transporte, educação, saúde, entre outros.
Acrescente-se que esses painéis discursivos edificam uma cidade, criam redes e
naturalizações ao montarem esquemas interpretativos de um “real”. As questões técnicas e
conceituais estabelecem limites, restrições, mas não desarticulam a cidade como espaço
cultural e histórico. Sabemos que a cultura, em seu sentido amplo, sendo derivada de toda a
construção humana, propõe redes de liberações, pressupõe sujeitos que, mesmo sob os
códigos legais, tencionam e inventam suas práticas, minando ou assimilando condutas, no
sentido de “jogarem” com os direcionamentos previstos na cidade higiênica e disciplinadora.
O homem ordinário propõe seus códigos e inventa suas artimanhas, fazendo
“explodir” com os discursos que procuram conhecê-lo e vigiá-lo. Os arsenais culturais e
inventivos foram diversamente mostrados nessa dissertação, com o intuito de fazer pressão
sobre os discursos que foram habilmente montados para fazer crer que os sujeitos não
deveriam fugir das teias de construção da cidade-conceito. Mas a cultura nessa análise não foi
percebida apenas como essa soma de impressões, ela também fez parte da criação de uma
série de cidades que existem sob a visibilidade daquela que presenciamos pelos nossos
sentidos; tendo em vista que os vários discursos que tencionam na construção dessa cidade
são resultado do seu processo cultural e histórico.
A História está escrita nas pedras da cidade, mas também em suas construções e
destruições. A História perpassou todas essas cidades aqui mostradas, além das outras que
ficaram nas entrelinhas desse vôo imagético. A narrativa histórica foi a possibilidade que
animou nossas problematizações, possibilitando a confecção incerta e incompleta daquilo que
nos chega como fragmentos, isolados e destituídos da função que tinham no passado.
Dessa maneira, a cidade como espaço cultural e histórico permite transgressões,
mas também cria proibições. Logo, é nesse confronto que serão construídos os mecanismos
associativos que criam e fundam as cidades e seus sujeitos, como participantes, personagens
que articulam vividamente seus teatros de bonecos, além de fazerem movimentar as peças do
“antigo” tabuleiro de xadrez, que foi criado, como imagem/representação da funcionalidade,
por Saraiva e seus colaboradores, no intuito de construir uma cidade-panorama, simulacro
teórico e visual da cidade de Teresina.
Nesse sentido, as várias cidades que se cruzaram nessa perspectiva possibilitaram
significativas contribuições para a revelação de um corpus de conhecimento sobre Teresina.
Convém enfatizar que enviesaram possibilidades de “congelar” alguns painéis explicativos da
construção urbana, fazendo com que a formulação de uma certeza a cidade surgida após o
seu processo de descaracterização fosse desmontada para que se pudessem ouvir aqueles
que direcionaram suas forças no sentido de tentar “parar” o tempo, fazendo com que seus
corpos e mentes lutassem contra as “ciladas” que a cidade moderna poderia armar.
O cenário de mudanças espaciais e a ampliação do número de habitantes da
cidade, principalmente nas três últimas décadas do século XX, provocaram um estado de
tensão, que foi habilmente captado pela literatura local, possibilitando o conhecimento de
múltiplos sentidos que se mostraram importantes na apreensão dos processos de mudanças e
permanências, alem daqueles referentes ao processo de sensibilidade, costumes e valores. Mas
a literatura também serviu como estratégia e termômetro para que pudéssemos visualizar o
cotidiano de Teresina em meados do século XX, buscando em outras estruturas temporais
registros para o entendimento dos vários saberes inscritos na cidade; esses articularam
impressões que ficaram “tatuadas” na forma de percepção e compreensão de Teresina.
Por fim, gostaríamos de apontar que foi no cruzamento dessas várias cidades que
se deu a oportunidade de balizarmos acerca dos vários enredos que se articulam entre a idéia
de cidade-conceito e cidade cultural. A cidade formulada como questão nos propôs decifrar
várias cadeias de signos que foram jogados aos nossos pés em forma de narrativas e
representações. Localizar esses meandros discursivos foi elementar para que pudéssemos
perceber que a cidade cultural e histórica somente pode ser apreendida como tensão entre
aquilo que é dito, revelado e aquilo que é assimilado, transgredido. Acreditamos que a cidade
existe como materialidade e narrativa, necessitando escovar-se a contrapelo, para fazê-la falar,
gritar, gemer, e, assim, produzir uma multiplicidade de sentidos, como esses que procuramos
registrar com nossa lente e lupa de detetives da cidade.
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p.225-248.
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