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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
C
LÁUDIA PACHECO VITA
A opacidade da suposta transparência: quando “amigos”
funcionam como “falsos amigos”
Dissertação de Mestrado apresentada como
requisito para a obtenção do grau de Mestre no
Programa de Pós-Graduaçao em Língua
Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-
Americana do Departamento de Letras Modernas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas.
Orientadora: Profa. Dra. Neide T. Maia González
São Paulo
2005
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II
“Si cerráis la puerta a los errores,
también quedará afuera la verdad.”
R. Tagore
“Não confio nele.
Somos amigos.”
B. Brecht
A José Virgilio
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III
Agradecimentos
A Neide T. Maia González, que mais que uma orientadora competente
e dedicada, é uma inspiração para mim.
A Adrián Pablo Fanjul e Ucy Soto, cujas valiosas sugestões me levaram
a voltar a refletir sobre questões do trabalho e enriquecê-lo.
À minha família e aos Vita, minha segunda família, pelo incentivo, amor
(e paciência) durante esse período de elaboração da pesquisa.
A Cássia Panizza, Edina Lima e Mônica Santarelli, amigas que me
ajudaram, do Brasil, no que foi necessário em meu período de estância na
Espanha.
A meus alunos, que me permitem refletir sobre esse fascinante
processo que é aprender uma língua estrangeira.
Aos colegas de profissão e de pesquisa, cujas interlocuções me
permitem pensar constantemente a língua espanhola e sua aprendizagem por
brasileiros.
IV
Resumo
Neste trabalho, tratamos de uma imagem que circula em nosso país
sobre o espanhol e sua aprendizagem, segundo a qual os chamados “falsos
amigos” constituem as principais dificuldades para o brasileiro que deseja
aprender essa língua estrangeira. Partimos de uma hipótese de Celada &
González (2000) de que tal modo de interpretação desse processo foi inaugurado
por Nascentes (1939) quem, por sua vez, recolheu em seus estudos muitas das
impressões do senso comum de sua época a esse respeito. Tal tradição norteou e
em grande parte norteia ainda muitos trabalhos científicos no Brasil a respeito do
ensino e da aprendizagem do espanhol, os quais se baseiam, como a
interpretação tradicional que lhes dá suporte, nos pressupostos teóricos do
modelo da Análise Contrastiva em sua versão forte. Primeiramente fazemos uma
análise dos termos mais comuns em circulação (falsos cognatos,
heterosemánticos, falsos amigos), mostrando que não fazem necessariamente
referência a fenômenos da mesma natureza, e posteriormente questionamos a
idéia corrente de que os falsos amigos seriam o grande vilão da aprendizagem do
espanhol por brasileiros. Nossa proposta nesta pesquisa é tratar a aprendizagem
do espanhol por brasileiros e a formação de sentido de outra perspectiva teórica,
que nos permita observar fatores que oferecem restrições às línguas e que atuam
na produção dos efeitos de sentido no contato desses dois idiomas; esses fatores
serão, essencialmente, a história e as representações sociais.
Palavras chave: falsos amigos, imaginário, Análise Contrastiva, história,
representação social.
V
Abstract
The present investigation refers to the traditional perception that exists
in Brazil about the Spanish language and its learning by Brazilians. In such
perception, the uttermost obstacle that any Brazilian must overcome in his process
of learning the Spanish language are the denominated “false friends”. According to
Celada & González (2000), such perception has been introduced in Brazil by
Nascentes (1939), in whose work one is able to find most of the common sense
and common lore opinions about the learning of the Spanish language by
Brazilians. Such perception has ever since dominated most of the Brazilian
academic investigation about the teaching and learning of the Spanish language,
which theoretic basis can be found in the “strong” version of the Contrastive
Analysis. This investigation begins with the analysis of the terms most commonly
used by the academic investigation (such as false friends, false cognates,
heterosemánticos), in order to demonstrate that such terms do not refer to the
same phenomena. In the sequence, the perception that the “false friends” are the
greatest villain in the learning of the Spanish language by Brazilians is put in doubt.
The final objective of this investigation is to study the process of learning of the
Spanish language by Brazilians, and from another theoretic perspective, to analyse
the production of meaning that allows to determine the factors (specially history
and social representation) which restrict the languages, and influence the
production of the meaning in the contact between Brazilian Portuguese and
Spanish.
Key words: false friends, imaginary, Contrastive Analysis, history, social
representation.
VI
Resumen
En este trabajo, tratamos de una imagen que circula en nuestro país
con respecto al español y su aprendizaje, según la cual los llamados “falsos
amigos” constituyen las principales dificultades para el brasileño que desea
aprender esa lengua extranjera. Partimos de una hipótesis de Celada & González
(2000) de que ese modo de interpretar el proceso lo inauguró Nascentes (1939),
quien , a su vez, recogió en sus estudios muchas de las impresiones del sentido
común de su época sobre ese tema. Esa tradición viene inspirando desde hace
mucho diversos trabajos científicos en Brasil con respecto a la enseñanza y
aprendizaje del español, los cuales se basan, de la misma manera que la
interpretación tradicional que les da sustentación, en los supuestos teóricos del
modelo del Análisis Contrastivo en su versión fuerte. Primeramente hacemos un
análisis de los términos que se usan más comúnmente (falsos cognados,
heterosemánticos, falsos amigos), mostrando que no se refieren necesariamente a
fenómenos de idéntica naturaleza, y posteriormente cuestionamos la idea
corriente de que los falsos amigos serían el gran enemigo del aprendizaje del
español por parte de los brasileños. Nuestra propuesta en esta investigación es
tratar el aprendizaje del español por brasileños y la formación de sentido desde
otra perspectiva teórica, que nos permita observar los factores que ofrecen
restricciones a las lenguas y que actúan en la producción de los efectos de sentido
en el contacto de esos dos idiomas; dichos factores serán, fundamentalmente, la
historia y las representaciones sociales.
Palabras llave: falsos amigos, imaginario, Análisis Contrastivo, historia,
representación social.
VII
ÍNDICE
I. INTRODUÇÃO.................................................................................................................................1
II. A ANÁLISE CONTRASTIVA.......................................................................................................... 9
II.1. O SURGIMENTO DO MODELO E SEUS PRESSUPOSTOS .................................................10
II.2. AS CRÍTICAS AO MODELO ..........................................................................................13
II.3. A SOLUÇÃO PARA O IMPASSE: O MODELO LINGÜÍSTICO GERATIVISTA E AS PESQUISAS
EMPÍRICAS
......................................................................................................................17
II.4. A ANÁLISE DE ERROS (OU VERSÃO FRACA DA ANÁLISE CONTRASTIVA).........................19
II.5. O PAPEL DA LÍNGUA MATERNA A PARTIR DESSAS MUDANÇAS ......................................22
II.6. NOSSA ABORDAGEM DO PROCESSO DE APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS....26
III. ORIGEM DOS CONCEITOS DE FALSOS AMIGOS, FALSOS COGNATOS E
HETEROSEMÁNTICOS E A TENDÊNCIA ATUAL DE APLICAÇÃO DESSAS NOÇÕES EM
ESTUDOS SOBRE E/LE..................................................................................................................28
III.1. AS ORIGENS DOS CONCEITOS NA LINGÜÍSTICA ..........................................................30
III.1.1. Falsos amigos...........................................................................................30
III.1.2. Falsos cognatos........................................................................................30
III.1.3. Heterosemánticos .....................................................................................31
III.1.4. Busca pelos conceitos em dicionários de Lingüística...............................32
III.1.5. A Lingüística Histórica e o Método Comparativo......................................36
III.1.5.1. A Lingüística Histórica.................................................................................... 37
III.1.5.2. A história das palavras e sua representação para os falantes....................... 38
III.1.5.3. Método Comparativo ou Reconstrução Externa............................................. 39
III.1.5.4. As diferenças e semelhanças entre as línguas românicas............................. 42
III.1.5.5. As referências aos chamados “falsos amigos”............................................... 43
III.2. A APLICAÇÃO DESSES CONCEITOS AO ESTUDO DO ESPANHOL COMO LÍNGUA
ESTRANGEIRA EM NOSSO PAÍS
..........................................................................................48
III.2.1. O Conceito de homónimos heterosemánticos em Antenor Nascentes.... 48
VIII
III.2.2. O conceito de heterosemánticos no Manual de Idel Becker....................51
III.2.3. Linguistics Across Cultures (Robert Lado, 1957) ..................................... 53
III.3. TENDÊNCIA PREDOMINANTE ATUALMENTE DA APLICAÇÃO DESSES CONCEITOS EM
PESQUISAS SOBRE A APRENDIZAGEM DO E
/LE ...................................................................58
III.3.1. Uma dissertação de Mestrado..................................................................58
III.3.2. Um artigo científico ...................................................................................63
III.3.3. Guia para Estudantes Brasileiros de Espanhol........................................66
III.3.4. Um dicionário de “falsos amigos”..............................................................68
III.4. MOSTRAS DO IMAGINÁRIO DO BRASILEIRO COMUM SOBRE O ESPANHOL....................73
III.5. REGULARIDADES CONSTATADAS E A NOSSA PERSPECTIVA DE ABORDAGEM DO TEMA .. 77
IV. A IMAGEM DE QUE TRATAMOS E A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM E SIGNIFICAÇÃO EM
QUE SE BASEIA ..............................................................................................................................81
IV.1. A LÍNGUA COMO NOMENCLATURA: O REFERENTE COMO DESENCADEADOR DA
SIGNIFICAÇÃO
.................................................................................................................81
IV.1.1. A linguagem como interpretadora e classificadora do mundo material: o
deslocamento do significado do referente para a linguagem.............................. 84
IV.1.2. O caráter relacional dos signos................................................................88
IV.1.3. O valor lingüístico considerado em seu aspecto conceitual ....................90
IV.1.4. Relações sintagmáticas e relações associativas.....................................93
IV.1.5. As possibilidades combinatórias: podemos combinar as unidades da
língua de maneira livre?.......................................................................................95
IV.2. A COMBINATÓRIA LÉXICA .........................................................................................97
IV.2.1. Existe relação entre essas combinações “habituais” e a fraseologia? ..100
IV.2.2. A proposta de Bosque (2004): a análise das restrições semânticas que os
predicados impõem a seus argumentos............................................................103
V. COMPLEMENTANDO O CORTE SAUSSUREANO: O TRATAMENTO DO SENTIDO NO
ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO...............................................................................................111
V.1 SENTIDO E INTERDISCURSO.....................................................................................113
V.2. AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ...............................................................................122
IX
V.3.
AS PALAVRAS TÊM SENTIDOS OU VALORES? PENSANDO AS PALAVRAS DENTRO E FORA
DOS ENUNCIADOS
..........................................................................................................126
VI. CASOS EM QUE SUPOSTOS “AMIGOS” SE REVELAM “FALSOS AMIGOS”...................128
VI.1. CASO 1: O LÉXICO E O DESLIZAMENTO DE SENTIDO .................................................129
VI.1.1. Descrição e análise da situação.............................................................130
VI.1.2. As possíveis causas do desencontro de sentidos..................................132
VI.1.3. Por que houve problemas para a intercompreensão?...........................146
VI.1.4. Houve transferência por parte do brasileiro?.........................................148
VI.1.5. Buen servicio: buscou-se dar-lhe a força de uma expressão de
despedida?.........................................................................................................149
VI.1.6. Algumas reflexões sobre a combinatória léxica.....................................157
VI.2. CASO 2: A SINTAXE ATUANDO COMO FALSA AMIGA”?..............................................159
VI.2.1. Descrição e análise da situação.............................................................160
VI.2.2. As possíveis causas do desencontro de sentidos..................................161
VI.2.2.1. A sintaxe.......................................................................................................161
VI.2.2.2. Restrições semânticas distintas....................................................................162
VI.2.3. O cruzamento de distintas restrições sintáticas e semânticas...............173
VII. CONCLUSÕES.........................................................................................................................176
VIII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.......................................................................................179
1
I. INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu de nossas observações (como professora de
espanhol como língua estrangeira – E/LE para aprendizes brasileiros) das
intuições que os alunos (e até mesmo as pessoas que nunca passaram pelo
estudo formal do espanhol) têm sobre essa língua estrangeira e sobre o que é
necessário fazer para aprendê-la. É parte do cotidiano dos professores de E/LE
para brasileiros ouvir frases de seus alunos que costumam demonstrar uma
crença muito forte a respeito da enorme semelhança entre a sua língua nativa e a
língua alvo. A maioria desses aprendizes também chega com convicções sobre os
aspectos da língua, normalmente aspectos gramaticais ou lexicais, em que estão
situadas as diferenças, vistas como dificuldades de aprendizagem, as quais
justificariam o estudo do espanhol. Um desses aspectos, freqüentemente
mencionado, são os falsos amigos
1
, tidos por vezes como os únicos grandes
causadores de problemas no âmbito lexical, muito temidos por causa da crença de
que, nesse caso, a dificuldade se manifesta como mal-entendido.
Ao longo de nossa experiência docente, pudemos notar que essa
imagem dos falsos amigos aparecia com grande freqüência nesses relatos de
alunos e era (e ainda é) reforçada constantemente por piadas que circulam, por
quadros humorísticos, por propagandas de escolas de idiomas, por parte da
imprensa escrita e até mesmo por professores dessa língua estrangeira e por
alguns trabalhos científicos de nosso país, o que contribui para a manutenção
dessa idéia.
No entanto, ao menos em nossas observações informais, a previsão
de dificuldade com os falsos amigos “clássicos” nem sempre se confirmava
na prática, já que esse léxico nem sempre era de fato tão problemático nem era o
1
Outros conceitos, tais como falsos cognatos e heterosemánticos aparecem, como sinônimos, nas
falas dos alunos, na mídia impressa e digital e em trabalhos científicos. Em nosso trabalho, sempre
que necessitarmos fazer referencia a esse léxico, utilizaremos o conceito de falsos amigos; a
justificativa dessa escolha, bem como a discussão desses conceitos se fará no subitem III.5. e no
capítulo III respectivamente.
2
único aspecto problemático para os aprendizes. Além disso, havia casos em que
os alunos apresentavam problemas, normalmente mal-entendidos, com palavras
que não integram as listas mais freqüentes e os diversos dicionários
dedicados aos “falsos amigos”, contrariando a visão do senso comum de que,
com exceção dessas palavras problemáticas, todas as outras, por serem muito
semelhantes às palavras correspondentes em sua língua materna, não levariam a
problemas na comunicação.
Nossas constatações empíricas e informais foram enriquecidas e
estimuladas ao termos contato com alguns trabalhos, entre outros que
contribuíram para o desenvolvimento de nossa pesquisa, que traziam reflexões
novas sobre o já tão discutido tema dos “falsos amigos”, como o de Kulikowski &
González (1999) e especialmente os de Celada (1999) e Celada & González
(2000), nos quais esta pesquisa acabou por se basear.
Tais trabalhos trazem uma reflexão sobre os estudos da língua
espanhola no Brasil e sobre as representações mais freqüentes dessa língua em
nosso país, além de proporem meios de se lidar com essa moderada proximidade
entre as duas línguas. Especialmente no texto de Celada & González (2000), que
trata detalhadamente da representação dos “falsos amigos”, descobrimos que
essa mesma imagem de nossos alunos sobre semelhança/facilidade e sobre a
necessidade do estudo das diferenças causadoras de erros (freqüentemente
representadas pelos “falsos amigos“) norteou e norteia até hoje muitas pesquisas
científicas sobre o espanhol no Brasil. No texto, as autoras explicitam o caminho
que, de forma geral, seguiram os estudos sobre a língua espanhola por aqui e
oferecem hipóteses para as origens e causas da perpetuação desse modo de
interpretar essa língua estrangeira em nosso país.
Tais hipóteses nos levaram a compreender melhor a relação entre a
imagem de nossos alunos e a imagem que permeia muitos estudos sobre o
espanhol no Brasil, já que a linha de pesquisa que deu origem a esse modo de
interpretação da língua espanhola por aqui valeu-se muitas vezes, como se verá,
de imagens que circulavam no senso comum a esse respeito.
3
Nesse trabalho, as autoras relatam que essa imagem que considera os
falsos amigos um dos “vilões” da aquisição/aprendizagem dessa língua
estrangeira tem estreita relação com um modo de interpretação do espanhol - que
provavelmente surgiu, no âmbito das pesquisas, num modelo de estudo de caráter
contrastivo bastante tradicional do espanhol e do português, iniciado por Antenor
Nascentes (1934/1939) e divulgado em grande escala para os aprendizes de
espanhol pelo Manual de Idel Becker
2
(1967), partidário de tal linha de pesquisa -
em que o pressuposto é o de que a língua espanhola é muito parecida ao
português
3
e, conseqüentemente, muito fácil para o aprendiz luso-falante.
Bastaria, então, concentrar os esforços de estudo nas poucas diferenças
existentes entre essas duas línguas, tidas como as que causariam dificuldades.
Isso porque, como tal interpretação seguia o modelo teórico da Análise
Contrastiva em sua versão forte, o processo de aprendizagem era visto – e por
vezes ainda é - como um processo de formação hábitos, de modo que as partes
semelhantes nas duas línguas não exigiriam a formação de novos hábitos para a
língua estrangeira, bastando transferi-las da língua materna do aprendiz, e as
partes diferentes deveriam ser cuidadosamente discriminadas, já que se pensava
que com essa informação fosse possível prevenir a transferência dessas
estruturas da língua materna para a língua a ser aprendida, - o que caracterizaria
interferência - responsável pelos erros dos aprendizes. Essa necessidade de
prevenir os erros ao determinar as diferenças entre duas línguas tão semelhantes
impulsionou (e ainda impulsiona) pesquisas ao longo de muito tempo em nosso
país.
Tais diferenças a serem detectadas se concentrariam essencialmente
no nível do léxico, como se verifica no Manual de Idel Becker, em que o autor
atribui as maiores dificuldades entre o espanhol e o português às divergências
2
Consultamos a 51ª edição, de 1967.
3
Ao fazer essa afirmação, Nascentes se vale do enunciado “como toda a gente sabe”, o que
demonstra o entrelaçamento das reflexões do estudioso da linguagem com as idéias do senso
comum. (1934:3, apud Celada, 2000:16).
4
léxicas, especialmente aos chamados heterosemánticos, ao dizer que eles
“constituyen la parte más difícil en el conocimiento simultáneo del español y el
portugués” (apud Celada & González, 2000:13-14). Outros estudos também
deixam transparecer essa ênfase no léxico, conforme explicita Celada (2000: 8):
“Las viñetas de las que partimos (...) nos permiten designar una imagen que sobre tal
lengua circula de forma masiva en dicho país. Su presupuesto es que el español y el
portugués son lenguas muy parecidas y, al discurrir sobre esa semejanza, los que
reproducen tal visión citan estudios lingüísticos que afirman que el 90% de las
palabras de cada una de ellas tiene equivalentes idénticos o muy parecidos en la
otra. El ‘problema’, siguiendo su línea de razonamiento, está en el 10% restante,
pues en este espacio ‘se esconden’ los vocablos conocidos como falsos amigos. La
diferencia está fundamentalmente instalada, por lo tanto, en el plano lexical y más
precisamente en esos cognados que, cuando se desconocen, encubren la
posibilidad de una ‘trampa’ pues, por su apariencia – que desde esa misma
perspectiva se define como ‘falsa’- pueden prestarse a malentendidos.” (o grifo é
nosso)
Celada (ibid.: 9) afirma que o fato de que as diferenças entre essas
duas línguas fossem medidas considerando apenas seu vocabulário revela uma
crença de que “(...) tener acceso a una lengua es ‘tener acceso a las palabras’”, e
que por isso “(...) nos creemos capaces de alcanzar su ‘dominio’ mediante el de su
vocabulário. (Mannoni, 1982:84, apud Celada, 2000:9) Ainda se referindo às
reflexões de Mannoni, Celada (ibid.) observa que o sujeito dessa concepção, além
de privilegiar o léxico, considera que o universo da linguagem coincide com o
universo das coisas, buscando o sentido do lado dos referentes. Esse sujeito,
continua Celada, é um “sujeito pragmático”, ou seja, movido por uma necessidade
de homogeneidade lógica, encara uma língua como um conjunto de coisas-a-
saber que expressa um mundo semanticamente estabilizado. (Pêcheux, 1990: 3 e
54, apud Celada, 2000:9).
As conseqüências desse modo de ver as línguas e a linguagem, afirma
Celada (ibid.), são que o brasileiro, em geral, seja movido por uma “sensação de
competência imediata”, que o leva a fazer uso do espanhol sem ter passado por
5
nenhum tipo de estudo formal. Claramente, essa imagem – que coincide com a
imagem de nossos alunos - reduz o espanhol a uma metonímia quase nunca
questionada. Em função disso, tal imagem adquiriu grande força, o que explica por
que a primeira versão da Análise Contrastiva (com o conceito de língua sobre o
qual se apóia), orientada para o ensino, continuou (e continua) baseando muitas
reflexões sobre a língua espanhola no Brasil, apesar de que seus pressupostos
tenham sido superados ou pelo menos relativizados. Do mesmo modo, ao ser
constantemente reforçada, essa idéia se manteve também no senso comum.
Nota-se, portanto, um trabalho de retroalimentação permanente entre a
representação do espanhol no senso comum, de caráter reducionista, e muitos
dos estudos de caráter mais acadêmico que sobre ele se fazem.
Os conceitos de língua como uma nomenclatura e de sujeito pragmático
propostos por Celada (ibid.) para essa representação dos falsos amigos que existe
em nosso país nos ofereceram um caminho possível para buscar responder à
pergunta: por que essa previsão de dificuldades/mal–entendidos, falando-se
especificamente do léxico, nem sempre se confirma na prática?
4
Como já mencionamos, a Análise Contrastiva Tradicional teve muitos
de seus pressupostos superados ou relativizados, entre outras razões, pelo fato
de que muitas de suas previsões, feitas com base na comparação superficial das
línguas, foram derrubadas ao se proceder a estudos empíricos que buscavam
testar sua veracidade. Provavelmente, isso ocorreu pelo fato de se ter ignorado a
advertência de Robert Lado
5
(1972) – autor da máxima de que os indivíduos
tendem a transferir hábitos da língua materna à língua estrangeira, afirmação que
4
Essa afirmação, conforme já mencionamos, baseia-se em nossas observações empíricas
informais que, a nosso ver, oferecem pistas contundentes de que as previsões elaboradas pelo
primeiro modelo contrastivo, previsões essas presentes também no senso comum, nem sempre se
confirmam na prática. Essa contradição motiva que se pense a aprendizagem de línguas (e do
léxico especificamente) a partir de outra perspectiva, que em nossa pesquisa será a discursiva. No
entanto, é necessário observar que não descartamos a necessidade de que se faça uma pesquisa
quantitativa que possa medir como e onde se dão os problemas de aquisição do espanhol por
brasileiros no âmbito lexical. Neste trabalho, portanto, não nos dedicaremos à verificação de como
se dá a aquisição do léxico (tanto dos falsos amigos “clássicos” como das palavras tidas como
fáceis), posto que não é esse o nosso objetivo nesta pesquisa.
5
Consultamos a 2ª edição brasileira da obra Linguistics Across Cultures (1957).
6
levou a essa “corrida” pela determinação das diferenças – de que essa lista de
diferenças deveria ser interpretada como uma lista hipotética, que necessitaria
passar por uma validação empírica. Ou seja, a possibilidade de que houvesse
contradição entre esse tipo de previsões e a realidade já havia sido mencionada
por Lado – o que foi confirmado pelos modelos teóricos posteriores –, cujas
afirmações foram consideradas parcialmente.
Como tal modelo não alcança a explicação dessa contradição, optamos
pelo caminho que sugerem Celada e González (2000) no trabalho em que nos
baseamos, o que nos leva a considerar a questão do ponto de vista discursivo.
Voltando à situação que inspirou nossa pesquisa, poderíamos dizer,
então, que essa representação do espanhol, que considera os falsos amigos a
metonímia das razões pelas quais o brasileiro deve estudá-la (González, 2000:6),
organiza a língua – tida como lista de palavras – numa estrutura bipolar
indissociável assim dividida: um pólo, onde estariam as dificuldades de aquisição
e os mal-entendidos, representado pela lista mais freqüente dos falsos amigos; e
outro, que abrangeria todo o restante do léxico, caracterizado pela grande
semelhança ou até mesmo identidade com as palavras correspondentes do
português e, conseqüentemente, pela transparência e facilidade.
Para buscar explicar por que essa imagem nem sempre se confirma na
realidade, desvincularemos semelhança = facilidade/sucesso na comunicação e
diferença = dificuldade/mal-entendido, vendo as dificuldades de aquisição e mal-
entendidos de perspectivas diferentes das da representação.
Explicaremos, na medida do possível, o porquê de que nem sempre as
previsões de dificuldade e de facilidade se dêem como as descreve o sujeito
dessa imagem ao considerar a linguagem e sua aquisição/aprendizagem como
fenômenos complexos, já que esse modelo permite a explicação para fatos de
aquisição de língua estrangeira que um modelo que considera a linguagem como
algo linear e passível de explicações únicas não seria suficiente. Ver a aquisição
como algo dinâmico e complexo significa aceitar que esta se dá pela ação
7
conjunta de vários elementos, sejam eles internos ou externos ao aprendiz. Um
desses diversos elementos é o da distância construída pelo aprendiz (Kellerman,
1979 apud González & Kulikowski, 1999), o que põe por terra a importância da
diferença ou semelhança objetivamente verificáveis. Assim, não se pode predizer
onde o aprendiz terá facilidade ou dificuldade devido à impossibilidade de prever
como o sujeito lidará com a semelhança ou a diferença. Portanto, pensando
especificamente na aquisição/aprendizagem do léxico do espanhol por brasileiros,
as dificuldades – ou facilidades – podem estar tanto nas palavras tidas como
“amigas” quanto nas “falsas amigas”, dependendo de quem aprende.
Com relação aos mal-entendidos, normalmente atribuídos apenas aos
falsos amigos, o olhar discursivo permite uma explicação para o fato de que eles
se dêem, na prática, também com as palavras tidas como semelhantes. Para essa
linha teórica, o equívoco é constitutivo da linguagem – basta observar e se nota
que convivemos diariamente com ele ao usarmos nossa língua materna – e, como
tal, não se pode reservá-lo exclusivamente a uma parte do léxico ou da língua.
Além disso, especificamente quando há duas línguas em contato, não se pode
ignorar que se cruzarão determinações sócio-históricas distintas, que podem levar
a sentidos diferentes para as interlocuções em que falantes provenientes de
culturas distintas estejam envolvidos. E essas restrições diversas também não
podem ser reservadas a uma parte da língua e do léxico. É preciso ressaltar que
não queremos dizer que os falsos amigos não possam levar a dificuldades de
aquisição ou a mal-entendidos, mas o que questionamos é que estes sejam
atribuídos fundamentalmente a essa parte do léxico.
Em função dessas reflexões, chegamos a outro questionamento, que
constitui a pergunta principal de nossa pesquisa: se aceitarmos que tanto as
palavras semelhantes como as diferentes
6
podem levar a dificuldades de aquisição
6
É interessante notar que tal representação, além de ver a língua, neste caso a espanhola, como
uma nomenclatura, reduz também o léxico ao subdividi-lo essencialmente em apenas duas
categorias: a) palavras iguais ou semelhantes na forma e nos significados e b) palavras iguais ou
semelhantes na forma, mas diferentes nos significados. Se pensarmos em diferenças
objetivamente observáveis, pode-se questionar essa divisão, já que há palavras que não entrariam
8
e a mal-entendidos
7
, pode-se dizer que há, necessariamente e a priori, “amigos”
nas línguas? Quando dizemos “amigos nas línguas”, aludimos a palavras (ou
estruturas) que seriam equivalentes nos idiomas e que, por isso, poderiam ser
transferidos para a língua estrangeira sem problemas.
Assim, nosso objetivo principal, nesta pesquisa, é fundamentar
teoricamente nossa hipótese de que não existem palavras (e estruturas) a priori
“amigas” ou “inimigas”, por meio de uma perspectiva transdisciplinar. Como forma
de fundamentar empiricamente essa hipótese, analisaremos casos em que uma
palavra e uma estrutura, que não integram as listas clássicas de falsos amigos,
levam a mal-entendidos.
em nenhuma dessas duas categorias, às quais não se faz referência, tais como as palavras com
formas diferentes e com significados diferentes nas duas línguas ou palavras com forma diferente e
significados semelhantes.
7
Ao constatarmos que as palavras semelhantes também podem ocultar valores e sentidos
diferentes nas duas línguas, parece-nos pertinente pensar, a nosso ver, que a explicação que se
usa mais comumente para definir os falsos amigos - palavras semelhantes formalmente, mas que
possuem um significado ou significados diferentes nas duas línguas - se aplicaria também às
primeiras. Daí nosso questionamento a respeito da relevância desse conceito.
9
II. A ANÁLISE CONTRASTIVA
Conforme expusemos na introdução, na imagem da língua espanhola
que tem circulado entre nós, que atribui as principais dificuldades de
aprendizagem aos falsos amigos, parece ressoar um modelo de estudo
contrastivo bastante tradicional do espanhol e do português, iniciado por
Antenor Nascentes (1934/1939)
8
e divulgado em grande escala para os
aprendizes de espanhol pelo Manual de Idel Becker (1967), partidário de tal linha
de pesquisa que põe em prática essa linha de trabalho e metodologia. Tal modelo
tinha como base a Análise Contrastiva em sua versão forte, a qual foi
posteriormente muito criticada e teve muitos de seus pressupostos relativizados
ou abandonados. Isso, no entanto, não impediu sua larga utilização até os dias de
hoje em nosso país, fato que demonstra a força que esse modelo adquiriu entre
nós. Trataremos agora do nascimento da Análise Contrastiva, de seus
pressupostos, das críticas que levaram a seu declínio e das soluções encontradas
imediatamente após elas. Em seguida, faremos um breve “histórico” dos lugares
que ocupou a questão do papel da língua materna nos estudos sobre
aprendizagem de línguas estrangeiras desde o declínio da Análise Contrastiva
tradicional – e do fenômeno da transferência – até o momento em que tal
fenômeno ressurgiu redefinido. Por último, apontaremos quais perspectivas
teóricas nortearão nosso trabalho, bem como o lugar dado à língua materna nelas.
Fazer tal percurso é um modo de entender as bases e a evolução do
modelo de análise que marcou a imagem do espanhol no Brasil que é nosso
objeto de estudo. Além disso, permite-nos explicitar as razões pelas quais, ao
menos do nosso ponto de vista, não se justificaria que até os dias de hoje seja
utilizada a sua primeira versão.
8
É importante ressaltar que os estudos de Nascentes partiram de uma imagem que já circulava no
senso comum em sua época – a de que o espanhol é muito parecido ao português, o que
demandaria apenas o estudo das poucas divergências -, imprimindo a ela um caráter mais
científico.
10
II.1. O surgimento do modelo e seus pressupostos
O modelo da Análise Contrastiva – que pertence à Lingüística
Contrastiva, disciplina essa que se insere no âmbito da Lingüística Aplicada - fez
parte dos estudos sobre ensino-aprendizagem de língua estrangeira e se
instaurou nos Estados Unidos mais fortemente a partir dos anos 40, tendo também
grande tradição na Europa. Fundamentou-se especialmente nos trabalhos dos
norte-americanos C. Fries (1945) e R. Lado (1972), professores da Universidade
de Michigan, que propunham a comparação sistemática de duas línguas: a língua
nativa do estudante e a língua a ser aprendida. Com o contraste das duas
línguas, afirmavam ser possível determinar as diferenças e as semelhanças entre
elas e, com isso, seria possível prever as áreas de dificuldade e os erros que o
estudante poderia cometer.
Os resultados dessas comparações seriam usados para a correção e
preparação da programação, do material didático e das técnicas de instrução,
como afirma Fries (1945:9, apud Gargallo, 1993:33):
“Los materiales más eficientes son aquellos basados en una descripción científica de
la lengua que vamos a estudiar, cuidadosamente comparada con una descripción de
la lengua del estudiante.”
Tratava-se, como observa González (1994:43), de uma análise
contrastiva pedagogicamente orientada, cujo objetivo primeiro não era tanto a
explanação teórica que fornecia a respeito da aprendizagem de uma segunda
língua, mas muito mais a sua utilidade como instrumento na preparação de
currículos para o ensino de línguas.
Essa primeira versão da Análise Contrastiva teve como pressupostos
teóricos, no âmbito da psicologia da aprendizagem, o behaviorismo, ou
comportamentalismo, ou empirismo e, no âmbito lingüístico, a taxonomia ou o
estruturalismo. (Vandresen, 1988:75). Ao assumir esse ponto de vista teórico, tal
modelo vê a aprendizagem como um processo de formação de hábitos, em que os
fenômenos lingüísticos são definidos por conceitos como estímulo-resposta,
11
imitação, transferência positiva e negativa e repetição. Assim, as partes
semelhantes nas duas línguas não exigiriam a formação de novos hábitos para a
língua estrangeira, bastando transferi-las da língua materna do aprendiz -
transferência positiva -, e as partes diferentes deveriam ser cuidadosamente
discriminadas, já que se pensava que com essa informação seria possível prevenir
a transferência dessas estruturas - o que caracterizaria interferência ou
transferência negativa -, responsável pelos erros dos aprendizes. Essa
necessidade de prevenir os erros ao determinar as diferenças entre as línguas
levou a que se fizessem comparações sistemáticas de todos os níveis do sistema
(fonológico, gramatical, lexical e cultural) da língua do aprendiz e da nova língua a
ser ensinada/aprendida, seguindo o modelo estruturalista.
Conseqüentemente, essa hipótese gerou as seguintes dicotomias:
semelhança=facilidade vs. diferença=dificuldade. Robert Lado, no seu livro
Linguistics Across Cultures (1972), em que continua a linha de pesquisa iniciada
por C. Fries (1945) e proporciona os instrumentos necessários para as
comparações, confirma essas dicotomias (1972:14-15):
“Supomos que o aluno que entra em contato com uma língua estrangeira achará
algumas das suas propriedades muito fáceis e outras extremamente difíceis. Os
elementos que forem similares à sua língua nativa serão simples para ele e os que
forem diferentes serão difíceis. O professor que já tiver feito a comparação da língua
estrangeira com a língua nativa dos alunos saberá melhor quais são os problemas
reais da aprendizagem e poderá melhor tomar medidas para ensiná-los.” (o grifo é
nosso).
Tais dicotomias, como salienta Lado, teriam grande influência para o
ensino, já que o professor que soubesse onde se encontravam as diferenças e as
semelhanças nas duas línguas em questão em determinado processo de
aprendizagem teria mais condições de prever onde ocorreriam - e onde não
ocorreriam - problemas para esses aprendizes e poderia, antes mesmo de que
eles ocorressem, pensar em maneiras de solucioná-los.
12
Reinava, então, a suposição de que as comparações entre as línguas
permitiriam definir de antemão o grau de dificuldade que determinada língua
estrangeira ofereceria para o aprendiz de determinada língua materna, surgindo aí
o conceito de distância interlingüística. Quanto mais diferenças entre as línguas,
mais difíceis de serem aprendidas, já que quanto maior a distância, maiores as
dificuldades e maior o esforço de mudança de hábitos.
Para esse modelo, como se viu, a língua materna sempre tinha um
papel na aprendizagem da língua estrangeira. Esse papel poderia ser o de facilitar
ou dificultar tal processo, conforme a distância entre as duas línguas, já que tanto
a facilidade quanto a dificuldade de aprendizagem de uma língua estrangeira eram
determinadas em relação à língua materna do aprendiz.
Pensando especificamente na aprendizagem do espanhol por
brasileiros, ao se proceder à comparação superficial proposta por tal modelo, feita
inicialmente por Nascentes, as duas línguas foram rotuladas como muito próximas
e, conseqüentemente, muito fáceis para os falantes de uma que quisessem
aprender a outra. Bastaria somente concentrar os esforços de estudo nas poucas
diferenças existentes entre essas duas línguas, com o intuito de evitar as
interferências. Esse gesto primeiro de interpretação do espanhol no Brasil estava
em perfeita conformidade com o tipo de pesquisa sobre aprendizagem de línguas
estrangeiras que estava sendo feito naquele momento. Até mesmo o fato de que
Antenor Nascentes professasse a grande semelhança entre o português e o
espanhol com base, em parte, em impressões do senso comum não submetidas a
teste se justificava por se tratar do primeiro gesto de interpretação do espanhol em
nosso país de que se tem notícia, mesmo sendo passível de tantas críticas
9
.
O que é interessante notar é que muitos trabalhos, nos dias de hoje,
fazem uso da análise contrastiva tal como se fazia em sua versão apriorística,
apesar das transformações pelas quais foi passando esse modelo, da não
confirmação de todas as suas hipóteses e do aparecimento de outros modelos
9
Cf. Celada & González (2000:4).
13
que, ao menos segundo aqueles que os praticam, teriam maior adequação
explanatória, maior rigor científico, etc.
As razões dessa manutenção são as mais diversas, como bem
apontam Celada & González (2000:7), e vão desde o status da língua espanhola
em nosso país, durante muito tempo tida apenas como meio de acesso a outras
áreas e não como objeto de estudo em si mesma, até o nosso atraso em ter
acesso ao que a lingüística produziu posteriormente a esse modelo, evolução que
permitiu a reformulação da Análise Contrastiva e do conceito de transferência.
10
Essa manutenção do primeiro modo de interpretar o espanhol no Brasil no âmbito
das pesquisas alimenta também o imaginário da maioria dos brasileiros a respeito
dessa língua estrangeira e de seu estudo, imagem essa que, ao menos no senso
comum, segue muito pouco alterada desde Nascentes. Para compreender melhor
por que estamos afirmando, a partir de estudos feitos, que não se justifica o uso
da Análise Contrastiva em sua versão forte até os dias de hoje, é necessário
explicitar as principais críticas a esse modelo. É interessante ressaltar que, como
se verá, os problemas atribuídos ao modelo têm grande semelhança com o
problema que é nosso objeto de estudo: a não confirmação, de modo pleno e
categórico, da hipótese de nossos alunos na prática.
II.2. As críticas ao modelo
A Análise Contrastiva possibilitou grandes progressos nos estudos
sobre ensino-aprendizagem de línguas estrangeiras, principalmente por consagrar
a consideração do aluno – e de sua língua materna
11
- como fator a ser levado em
conta em tal processo. Entretanto, ainda nos anos 60 e depois com mais força nos
anos 70, a versão forte desse modelo foi alvo de críticas importantes.
10
Para mais detalhes das razões da manutenção dessa imagem, cfr. Celada & González, 2000:7.
11
Lado, a partir do modelo comportamentalista em voga, afirmava que a área de aprendizagem de
idiomas poderia progredir muito se fosse levada em conta a importância dos hábitos da língua
materna que influem no estudante ao aprender um idioma estrangeiro. (Lado, 1972:14)
14
Uma das razões da consagração da Análise Contrastiva foi o fato de
que se instituísse a comparação da língua estrangeira a ser estudada com a
língua materna do aprendiz como um recurso essencial para a preparação de
materiais, pois essa aproximação ao lugar de onde sempre partiriam os
estudantes possibilitaria um ensino mais eficiente. Embora já se falasse que as
propriedades da língua materna pudessem influenciar a aprendizagem de uma
segunda língua
12
, foi esse modelo que colocou a consideração de seu papel como
imprescindível para qualquer processo de aprendizagem de línguas estrangeiras.
Por isso o fenômeno da transferência, visto por essa análise contrastiva forte
como a causa dos erros e também dos acertos na aprendizagem - conforme ela
fosse negativa ou positiva -, ficou tão estreitamente ligado a esse modelo.
Pode-se, inclusive, dizer que esse conceito foi um dos principais
responsáveis pela força que o modelo adquiriu, já que desde o lançamento das
bases para a primeira teoria da transferência, tal conceito foi constantemente
retomado, ainda que fosse para negá-lo ou para relativizá-lo, como se fez
posteriormente.
É possível pensar, parece-nos, que justamente pelo papel central que
esse modelo deu à língua materna e à questão da distância interlingüística é que
encontrou adesão especial quando se trata do contato português-espanhol no
Brasil, pois sua hipótese corroboraria cientificamente a crença de extrema
semelhança e, conseqüentemente, de facilidade de aprendizagem do espanhol
por brasileiros propugnada pelo senso comum. Daí ser tão difícil abandoná-la.
Esse mesmo conceito que parece ter sido um dos grandes
responsáveis pela consagração da Análise Contrastiva foi, entretanto, alvo das
grandes críticas que contribuíram para o abandono do modelo.
12
Segundo Sridhar (1981, apud González, 1994: 44), vários lingüistas importantes e pioneiros no
campo da pedagogia de segundas línguas, entre eles H. Sweet, H. Palmer e O. Jespersen, já
consideravam haver algum tipo de influência da língua materna na aprendizagem de segundas
línguas.
15
Como vimos, esse modelo se concentrou unicamente em comparar
sistemas, buscando predizer onde os erros, fruto da transferência de estruturas
diferentes nas línguas, se dariam. No entanto, pesquisas empíricas posteriores,
feitas já de outro ponto de vista teórico, observaram que nem todos os erros eram
causados por interferência da língua materna, e sim, que uma boa parte deles,
para alguns a maioria, eram causados pela própria língua estrangeira estudada,
em casos em que o aprendiz generalizava ou simplificava alguma regra da língua
alvo. Além disso, havia erros que apareciam na fala de aprendizes de línguas
estrangeiras cujas línguas maternas eram diferentes. Em muitos casos, também,
as semelhanças pareciam criar mais problemas do que as diferenças.
Ao revelar que nem sempre os erros eram conseqüência da influência
da língua materna na língua estrangeira, tal constatação acabou por questionar o
próprio papel central que havia sido atribuído a ela nesse modelo. Era impossível
fechar os olhos para a inadequação da hipótese da transferência, tida como o
mecanismo que produzia a aprendizagem. Assim, a transferência, antes tida como
a resposta para todos os comportamentos dos aprendizes, passou a ser vista com
reservas, sendo inclusive privada posteriormente, por alguns, de qualquer papel
nesse processo. Surgiu, então, a necessidade de mudar o modelo lingüístico, tão
apoiado no conceito de transferência.
Outra grande crítica que contribuiu para o abandono dessa versão forte
da Análise Contrastiva foi que muitas das previsões de dificuldades – e de
facilidade, supomos - feitas a partir da comparação sistemática das línguas não se
confirmavam na prática da aprendizagem. Como vimos, muitos desses trabalhos
se dedicaram a prever as dificuldades de aprendizagem encontrando as
diferenças entre as línguas, impulsionados pela afirmação de que os indivíduos
tendem a transferir
13
(Lado, 1972). A análise contrastiva julgou, assim, poder
13
Nas palavras de Lado (1972:2): “(…) os indivíduos tendem a transferir as formas e os sentidos e
a distribuição das formas e dos sentidos da sua língua e cultura nativas para a língua e a cultura
estrangeiras – tanto produtivamente, ao tentar falar a língua e agir dentro da cultura, como
receptivamente, ao tentar apreender e entender a língua e a cultura como efetivadas pelos
nativos”.
16
prever como o aprendiz lidaria com o seu processo de aprendizagem de línguas
estrangeiras.
No entanto, a maioria das previsões foi feita a priori, sem recorrer a
qualquer procedimento que as testasse com aprendizes reais da língua
estrangeira em questão. Também, com o fato de que se atribuíssem as
dificuldades às diferenças estruturais entre as línguas, acabava-se por conceber o
aprendiz como uma espécie de lingüista no enfrentamento da aprendizagem de
línguas. Como se mostrou posteriormente, já no âmbito da aplicação do
gerativismo à interpretação da aquisição de língua estrangeira, a diferença
objetiva entre construções é uma questão lingüística, mas a dificuldade é de
natureza psicológica. O resultado disso tudo foi que, quando por fim testadas,
muitas dessas previsões não se confirmavam na prática
14
.
É preciso ressaltar que Lado havia colocado como objetivo de tais
comparações a elaboração de listas de problemas hipotéticos, cuja validação
dependeria da checagem de seu aparecimento efetivo na fala dos alunos (Lado,
1972), o que poucas vezes se levou em conta. Essas previsões foram aceitas sem
qualquer tipo de verificação a posteriori, e vistas como a solução para as
preocupações dos professores com os erros e as dificuldades dos alunos.
Talvez essa aceitação sem questionamentos tenha ocorrido pela
possibilidade de “felicidade” e de controle que tais previsões representavam
15
.
Assim, ao dizer que os aprendizes tendem a transferir
16
, Lado deixava margem
para a possibilidade de que não transferissem, ou seja, aceitava a possibilidade de
que as previsões feitas com base na transferência não se dessem.
14
Retomando essa idéia que circula entre os nossos alunos de ELE a respeito das facilidades e
dificuldades de aprendizagem do espanhol, nota-se que ela apresenta similaridades com a
hipótese dessa Análise Contrastiva, tais como: as associações semelhança/facilidade e
diferença/dificuldade, o fato de que muitas vezes suas previsões não se confirmem na prática da
aprendizagem e o fato de que ambas fizessem previsões sem submetê-las a testes.
15
Pode-se dizer que o sujeito dessa representação é um sujeito pragmático (Pêcheux, 1990:33-54,
apud Celada, 2000:9) - movido pela necessidade uma homogeneidade lógica – a que nos
referiremos no capítulo V.
16
Gass & Selinker (1983, apud González, 1994:44) atentaram para que se considerasse com mais
rigor o valor do “tendem a” professado por Lado.
17
Essa afirmação e o baixo poder de previsão das comparações
forneceram o estímulo necessário para que se começassem a fazer pesquisas
experimentais do comportamento lingüístico real dos aprendizes de uma língua
estrangeira.
II.3. A solução para o impasse: o modelo lingüístico gerativista e as
pesquisas empíricas
A partir desse quadro que acabamos de explicitar, tornou-se imperiosa
a necessidade de substituir o modelo lingüístico da Análise Contrastiva - muito
vinculado ao conceito de transferência -, e de se proceder a pesquisas empíricas
da fala real dos aprendizes
17
.
A solução teórica encontrada nesse momento foi a utilização do
gerativismo chomskiano para a interpretação dos processos de aprendizagem de
línguas estrangeiras, que se opôs ao modelo estruturalista de base behaviorista e
estabeleceu o uso dos universais lingüísticos. Tal modelo lingüístico explica a
aquisição da língua materna – e, depois, das línguas estrangeiras - como um
processo interno ao aprendiz, o qual possui uma dotação genética que facilita a
aprendizagem de regras gramaticais abstratas (o Dispositivo de Aquisição de
Língua). Tal dispositivo inato entra em funcionamento quando o aprendiz é
colocado em contato com a língua alvo, a partir da qual seleciona dados e
constitui uma língua particular.
Esse modelo teórico postulava a existência de processos universais de
aquisição e atribuía à criança um papel ativo na aquisição de sua língua materna,
não sendo mais uma tabula rasa como queriam os comportamentalistas. Como
17
Parece-nos necessário ressaltar que o gerativismo não trabalha sobre dados de perfórmance e
sim sobre a competência (conhecimento lingüístico, não atuação, intuições que o falante tem sobre
gramaticalidade em sua língua). Esse foi e continua sendo um problema para a sua aplicação aos
estudos em aquisição de línguas estrangeiras e muito do que se fez e faz tem sido alvo de críticas,
pois trabalha-se muito com dados de produção para, a partir deles, tentar apontar quais são as
hipóteses que esse aprendiz tem. No entanto, dados de produção não são confiáveis para tal fim,
pois estão submetidos a condições de produção e não revelam o conhecimento implícito, isto é, as
hipóteses, até porque esses dados não são homogêneos, são variáveis.
18
participante ativa do processo, a criança vai formulando e testando hipóteses a
respeito das regras da língua alvo; conseqüentemente, os erros não mais eram
vistos como desvios a serem erradicados, mas apenas como indícios de que a
aquisição está se processando, pois, segundo essa teoria, eles deixavam
transparecer a existência de um sistema governado por regras, que vai evoluindo
gradativamente até a gramática plena adulta. Tais idéias foram adotadas
posteriormente também para a aquisição de línguas estrangeiras.
Essa teoria, como se vê, coloca a aquisição muito mais dirigida para a
nova língua, o que punha a visão comportamentalista adotada pela análise
contrastiva em xeque. E será esse modelo teórico que servirá de base para os
estudos que se fizeram em seguida dos erros dos estudantes com o intuito de
testar as previsões da Análise Contrastiva. Esse declínio dos estudos contrastivos
nos velhos moldes – que comparavam estrutura por estrutura, termo a termo - nos
anos 70 levou ao quase completo abandono do fenômeno da transferência nesse
momento. Posteriormente, no entanto, tal fenômeno foi retomado e reformulado.
Isso porque se passou a comparar línguas em outros moldes; mesmo que para
alguns a língua materna tivesse sido considerada como inoperante na aquisição
de línguas estrangeiras, sempre se retornava à discussão de seu papel no
processo e, por fim, pode-se dizer que prevaleceu uma visão equilibrada a
respeito de sua influência em tal processo.
O modelo gerativista permitiu, portanto, um aprimoramento das
comparações feitas até então, graças ao postulado dos universais lingüísticos, que
forneceram um sistema universal de referência para o contraste, antes feito nos
próprios termos das línguas.
A necessidade que se impôs, como vimos, de testar as previsões
elaboradas pelos estudos contrastivos, foi suprida, como diz González (1994:45),
por alguns pesquisadores, dentre os quais Selinker (1966, 1969), que foi um dos
primeiros a realizar estudos experimentais, com controles estatísticos, das
prováveis interferências previstas pelas análises constrastivas. Nesses estudos
ele chegou a perguntas ainda válidas hoje – O que pode ser efetivamente
19
transferido? Como efetivamente ocorre a transferência? Que tipos de transferência
lingüística ocorrem?–, o que significava aceitar a existência da transferência, mas
não que ela dirija toda a aprendizagem. Essas questões, entretanto, foram
deixadas de lado durante uma década devido à tendência que predominou nesse
período na pesquisa em aquisição de línguas estrangeiras de considerar similares
a aquisição da primeira língua e a de línguas estrangeiras. E nessa tendência a
língua materna não tinha nenhum papel sobre a aquisição de outras línguas.
II.4. A análise de erros (ou versão fraca da Análise Contrastiva)
18
Após esse período de declínio da Análise Contrastiva forte, em que o
gerativismo passou a ser o modelo lingüístico utilizado, os estudos em aquisição
partiram para a Análise de Erros. O interesse passou a ser estudar os erros dos
aprendizes, o que não deixa de ser uma resposta à necessidade de testar as
previsões da Análise Contrastiva. Nesta etapa, já se começava a recuperar a
importância da língua materna na aquisição de outras línguas, considerada pelo
menos um fator relevante nesse processo. Tais pesquisas, cujos trabalhos
clássicos são os de Corder (1967, 1971, 1975, apud González, 1994:47) e de
Richards (1971, 1972, apud González, 1994:47), voltaram-se para a classificação
dos erros dos estudantes.
Nessa linha de trabalhos houve duas tendências. Uma delas admitia um
trabalho conjugado com o modelo anterior, aceitando a tarefa de executar os
testes para as previsões feitas pela Análise Contrastiva, sendo, então, um
complemento para o primeiro modelo. A outra se colocou numa posição de
autonomia em relação ao modelo anterior, não partindo da previsão de áreas de
dificuldade feita pela Análise Contrastiva, ficando mais no âmbito das produções
dos aprendizes.
Os erros cometidos pelos aprendizes de línguas estrangeiras tinham
agora um novo status, a que já nos referimos anteriormente, reflexo da hipótese
18
Wardhaugh, 1970, apud Vandresen, 1988:80.
20
construtiva adotada. Começaram a surgir as provas da existência de processos
universais de aquisição, já que se observou a similaridade de certos erros
cometidos por estudantes de línguas nativas diferentes, e também a similaridade
de alguns erros cometidos tanto na aquisição da primeira quanto das segundas
línguas. Notou-se também que os erros, fruto do teste, por parte dos aprendizes,
de hipóteses sobre a língua estrangeira que não se confirmavam, apresentavam
mudanças no decorrer do processo, tanto na aquisição da primeira quanto das
segundas línguas. Esse caráter dinâmico levou a que fossem classificados de
erros desenvolvimentais, pois, para esse modelo, o processo de aquisição é
composto por estágios de desenvolvimento, e as alterações que os erros
apresentam ao longo do tempo refletem o grau de precisão que os estudantes
exibem ao usar certas estruturas da língua que está sendo aprendida. Essas
descobertas acabaram por originar posteriormente uma outra linha de análise da
produção dos aprendizes, que se consagrou como o nome de interlíngua.
A Análise de Erros divide os erros em duas categorias: erros de
interferência ou interlingüísticos e erros intralingüísticos. Os erros interlingüísticos,
embora supusessem uma influência da língua materna do aprendiz, não eram
considerados os mais importantes e nem eram vistos como os via a Análise
Contrastiva. Nesse quadro teórico, os erros não são interpretados como
conseqüência da transferência de hábitos da língua materna; quando os erros são
causados por influência da língua materna, isso se deve, para esse modelo, a uma
hipótese equivocada do aprendiz de que determinada regra que elaborou para
língua alvo seria igual à de sua língua nativa (Corder, 1967, apud González,
1994:49), o que significa uma redefinição da primeira teoria da transferência. Os
erros intralingüísticos, por sua vez, ocorrem quando o aprendiz testa hipóteses
sobre a língua estrangeira que simplificam ou generalizam regras da própria língua
a ser aprendida, por isso são impossíveis de serem previstos pelo contraste.
Como vimos, nesse momento em que se postularam os universais
lingüísticos, a tendência era a de considerar as similaridades na
aquisição/aprendizagem das línguas em geral. Assim, essas semelhanças
21
apareceram tanto na aprendizagem de uma língua estrangeira por estudantes que
tinham línguas maternas diferentes, quanto na aprendizagem da língua materna e
de línguas estrangeiras. Além disso, se havia um foco, esse era colocado na nova
língua, a partir da qual, na maioria dos casos, o aprendiz fazia suas hipóteses.
Assim, essas idéias e as críticas que sofreu o fenômeno da transferência levaram
a que ele fosse considerado apenas um entre outros mais importantes.
Posteriormente, entretanto, esse modelo também sofreu algumas
críticas, principalmente porque poucos trabalhos em análise de erros foram além
da taxonomia (Newmeyer & Weinberger, 1988, apud González, 1994:49), fato que
contrariava o modelo lingüístico que lhe dava suporte, pois não chegou a
conclusões teóricas importantes sobre os mecanismos que governam a aquisição.
Além disso, A Hipótese do Período Crítico, de Lennenberg (1967, apud González,
ibid.:50), que afirmava que o Dispositivo de Aquisição de Língua (que
posteriormente foi chamado de Gramática Universal) fica inativo a partir da
puberdade colocou outro problema para o modelo.
Vários pesquisadores desafiaram essa hipótese, entre eles Krashen
(1973, apud González, ibid.:50), que procurou demonstrar, a partir de dados de
língua estrangeira, que a Gramática Universal jamais se tornaria inoperante.
Nasce, ou pelo menos se explicita, nesse momento, a polêmica distinção/interface
entre aquisição e aprendizagem (o que é aprendido não tem efeito sobre a
aquisição, não se transforma em adquirido), que não é objeto deste trabalho, mas
que temos ao menos que mencionar neste breve percurso que estamos fazendo
pelos modelos que tratam de interpretar o fenômeno pelo qual um adulto aprende
uma outra língua. Tal distinção, aceita por alguns, negada por outros, modificada
pelo próprio Krashen (1982 apud González, ibid.:50) numa etapa posterior,
quando admite que, pelo menos em algumas circunstâncias, o que é aprendido
pode vir a se transformar em adquirido, também tem, ainda hoje, repercussões
sobre os estudos nesse campo.
22
II.5. O Papel da língua materna a partir dessas mudanças
A partir desse momento, em que o fenômeno da transferência já não
despertava mais tanto interesse, em função das idéias chomskianas e da crise na
Análise Contrastiva, tal conceito experimentou outros lugares nos estudos sobre
aquisição
19
.
O movimento que surgiu logo após essa rejeição à Análise
Contrastiva foi o de minimização ou negação quase absoluta do papel da língua
materna no processo de aquisição/aprendizagem de línguas estrangeiras. O
trabalho de Dulay & Burt (1974, apud González, ibid.:51), posteriormente muito
criticado, mas que foi um dos principais dessa tendência a rechaçar a influência da
língua materna, observou que crianças aprendizes de uma língua estrangeira que
vinham de diferentes línguas maternas seguiam uma mesma ordem aquisição de
morfemas gramaticais, o que provaria o efeito quase nulo da língua nativa no
processo de aquisição de uma língua estrangeira. Dulay & Burt (1974, apud
González, ibid.:51) lançaram a Hipótese das Construções Criativas e, ao
considerar que a aquisição de uma língua estrangeira é guiada por processos
universais de aquisição e que o aprendiz põe o foco no sistema da língua a ser
aprendida, a língua nativa perdeu quase que totalmente sua importância nesse
processo.
Posteriormente, Krashen (1974, apud González, ibid.:52), entre outros,
desenvolveu pesquisas semelhantes com adultos, sugerindo uma ordem de
aquisição similar para falantes de línguas diferentes e atribuindo uma importância
muito reduzida à língua materna. Embora se buscasse comprovar o mínimo papel
da língua materna na aquisição, isso não era uma unanimidade, já que Corder
(1975, apud González, ibid.:52) questionou os resultados dessas pesquisas,
19
É necessário advertir que nosso objetivo com esse breve percurso não é o de fazer um histórico
dos modelos teóricos que se seguiram a esse momento. Desejamos apenas colocar minimamente
dentro de um contexto o caminho que o papel atribuído à língua materna seguiu até voltar a ter
importância nos estudos de aprendizagem de línguas estrangeiras. Portanto, não abarcaremos a
complexidade total desses modelos.
23
mostrando haver uma proporção muito maior de erros de interferência entre
adultos do que entre as crianças da pesquisa de Dulay & Burt.
Um outro trabalho de Krashen (1982, apud González, ibid.:52), o
clássico Principles and Practice in Second Language Acquisition, em que o autor
considera a aquisição de línguas estrangeiras por adultos similar à aquisição da
primeira, contribuiu para a redução drástica do papel da língua materna. Nesse
trabalho Krashen lança suas cinco hipóteses sobre o processo, em que a
aquisição aparece totalmente focada na língua estrangeira (compreensão do
input)
20
, atribuindo à língua materna um papel irrelevante.
O movimento seguinte foi o de voltar a atribuir um papel à língua
materna no processo de aquisição de outras línguas. Nessa linha de pesquisa em
que se consideravam semelhantes a aquisição da primeira língua e de línguas
estrangeiras em vários aspectos, observou-se outra similaridade: os estudantes de
línguas estrangeiras, assim como uma criança aprendendo sua primeira língua,
passam por uma série de gramáticas intermediárias. O foco do processo de
aprendizagem de línguas estrangeiras, que até então havia sido colocado, num
primeiro momento, na língua materna, e posteriormente na língua a ser aprendida,
passou a ser a interlíngua
21
. Esse conceito se consagrou justamente por captar o
status indeterminado do sistema do aprendiz entre a sua língua materna e a língua
estrangeira, o que já representou uma abertura para a influência da língua
materna. Isso iniciou um movimento de retomada do fenômeno da transferência,
agora revisto, colocando o aprendiz numa posição influenciada tanto por sua
língua materna como pela língua estrangeira que está aprendendo. Assim, é
possível conceber a interlíngua como um deslocamento das posições anteriores,
pois ela seria uma gramática intermediária, que ainda não se pode considerar
20
As hipóteses de Krashen (1982) são: diferença entre aquisição e aprendizagem, ordem natural
da aquisição, monitor, input e filtro afetivo, que não vamos desenvolver aqui, por não serem de
maior relevância para o nosso objeto de trabalho.
21
Essas gramáticas intermediárias foram também chamadas: dialetos idiossincráticos (Corder,
1971) e sistemas aproximativos (Nemser, 1971). O conceito de interlíngua (Selinker, 1969) se
consagrou justamente por transmitir esse caráter intermediário da língua do aprendiz em relação a
sua língua materna e a língua estrangeira. Veja-se a esse respeito González, 1994:55.
24
totalmente compatível com a nova língua, sem considerar, no entanto, que seu
ponto de partida seja a língua materna. Desse modo, a interlíngua passou a
buscar compreender toda a língua do aprendiz, e não somente seus erros, além
de considerar a língua materna apenas um dos elementos a se levar em
consideração.
A partir daí, o interesse pelo fenômeno da transferência começa a
ressurgir, como prova a iniciativa de se realizar um evento dedicado ao assunto na
Universidade de Michigan em 1981, intitulado “Language Transfer in Language
Acquisition
22
. Num desses trabalhos, Roger W. Andersen (1983)
23
, ao introduzir
seu artigo, alerta para a importância de que a transferência tenha se tornado
novamente alvo de interesse e ressalta que, independentemente da posição do
pesquisador a respeito da relativa importância da transferência na aquisição de
segundas línguas, é preciso que se reflita a seu respeito. O autor ressalta o
percurso tortuoso que o conceito empreendeu até aquele momento, e afirma que
embora tivesse existido a tentativa de abandoná-lo, o conceito continuava a
retornar. Naquele momento, segundo Andersen (1983), o intento era o de delimitar
a transferência suficientemente para predizer quando, como e com que extensão
ela influenciaria a aquisição e o uso da íngua estrangeira.
Um dos objetivos desse evento foi o de provar, como fizeram Adjémian
(1983) e Rutherford (1983), entre outros, que a transferência não é incompatível
com a teoria que considera que a aquisição de línguas estrangeiras é norteada por
processos universais. A incompatibilidade que se criou historicamente, durante
pelo menos uma década, entre a Hipótese da Análise Contrastiva e a Hipótese
das Construções Criativas é desfeita.
22
Os trabalhos desse evento foram publicados num volume que tem o mesmo título, editado por S.
Gass & L. Selinker (1983). González (1994), em sua tese de doutorado, relata com detalhes o que
significou a realização dessa conferência naquele momento e seus desdobramentos, de onde
tomamos algumas das idéias que aqui utilizamos para fazer esse retrato do ressurgimento do
conceito de transferência.
23
Pesquisador da Universidade da Califórnia, Los Angeles, cujo artigo nesse Congresso foi
“Tranfer to Somewhere”, 1983.
25
Do mesmo modo, Gass & Selinker (1983) julgam que é realmente
possível ver a aquisição de línguas estrangeiras como um processo, ao mesmo
tempo, de testagem de hipóteses, em que os estudantes elaboram seus
conhecimentos a partir dos dados da nova língua com que entram em contato, e
de utilização do conhecimento da língua materna, de outras já aprendidas e até do
conhecimento assimilado até então da língua estrangeira que está estudando.
Newmeyer & Weinberger (1988) mostram que essa nova abordagem permite uma
redefinição da Análise Contrastiva, em que estruturas profundas das línguas
envolvidas são contrastadas, e não apenas as superficiais e facilmente
observáveis.
Voltam à tona perguntas semelhantes às elaboradas por Selinker
(1969) a respeito do que é transferido e o que determina essa seleção, o que só é
possível explicar conjugando uma teoria que leve em consideração a língua
materna do aprendiz e outra que procure entender suas hipóteses a respeito da
relação entre sua língua materna e a língua estrangeira que está aprendendo.
24
A partir dessas perguntas, refletiu-se a respeito dos elementos que
influenciam a tendência do aprendiz a transferir, elementos esses imprevisíveis e
que são de natureza diversa. Podem entrar aí dados da língua materna, de outras
línguas com que o aprendiz tenha tido contato, da língua estrangeira que está
estudando e até mesmo a imagem que tem dessa nova língua, entre outros.
Nesta fase, portanto, a transferência não tem nem um papel central na
aprendizagem, nem um papel nulo. O fenômeno é redefinido, já não é mais um
deslocamento mecânico de estruturas da língua materna para a língua
estrangeira, e sim reflete um mecanismo cognitivo de seleção ativa por parte dos
estudantes (Gass, 1988), que analisa as estruturas a serem transferidas.
24
Gass (1988) colocou como perguntas fundamentais: o que é transferido? Que elementos são
selecionados pelo aprendiz como transferíveis? E qual é a explanação necessária para dar conta
da diferente transferibilidade de elementos lingüísticos? Conforme González (1994: 58), essas
questões eram semelhantes às que tinham sido elaboradas por Selinker (1969) sobre o que pode
ou efetivamente é transferido, como ocorre a transferência e que tipos de transferência ocorrem.
26
II.6. Nossa abordagem do processo de aprendizagem de línguas estrangeiras
Parece-nos importante, neste momento, ao menos expor, ainda que
brevemente, nosso posicionamento a respeito da influencia que a língua materna
pode exercer no processo de aquisição de uma língua estrangeira. Em nossa
pesquisa, utilizaremos alguns conceitos de uma perspectiva teórica - a Análise do
Discurso - que, embora não se dedique a interpretar aquisição de línguas
estrangeiras, tem sido aplicada por alguns pesquisadores ao estudo desse
processo. Podemos destacar nessa tendência Serrani-Infanti (1997:66), que dá à
língua materna um papel importante no referido processo que, em vez de definir
como de “aprendizagem/aquisição”, considera “um processo de inscrição do
sujeito de enunciação em discursividades da língua alvo”. Segundo a autora,
nesse processo de inscrição do sujeito, a língua materna funciona como um filtro
perante os outros modos de estruturar as significações do mundo que a língua
estrangeira proporciona, pois “a relação com a nova rede de prevalências
significantes acontece filtrada pelas regularidades enunciativas preponderantes na
primeira língua” (ibid.:75).
González (1994), mesmo que de uma outra perspectiva teórica, já
considerava a língua materna um filtro, um elemento de intermediação no
processo, ao considerar o seu papel na aquisição das estruturas com pronomes
pessoais na aquisição do espanhol como língua estrangeira, filtro esse que
produzia os resultados os mais variados, inclusive aquilo que ela designa como
“uma espécie de transferência às avessas”.
Assumiremos também um outro “posto particular de observação” -
expressão com a qual González (2003:1) bem define, baseando-se em Franchi
(1992), esses lugares de onde se busca explicar o fenômeno da aquisição -, o de
que os processos de aquisição de línguas estrangeiras são complexos, por ser
também complexa a linguagem. É possível definir assim esse processo (e a
linguagem) devido à variedade de elementos lingüísticos e extralingüísticos que
27
comporta, com os quais o aprendiz terá que lidar na nova língua, conjugando-os
com aqueles que constituem a sua língua materna.
Diante da complexidade de nosso objeto de estudo, alguns concluem,
entre eles Larsen-Freeman (1997), que há que se buscar um paradigma – o da
complexidade, que tem suas origens na Física - que dê conta de explicar os fatos
da língua levando em consideração o todo que abriga a aquisição de uma língua.
O percurso de alguns modelos de análise que fizemos neste capítulo nos mostra
que também eles são diversos, mas em sua maioria utilizados de maneira isolada.
Um modelo transdisciplinar (González, 2003:8) permite que se recorra a modelos
de natureza diferente para tratar de problemas também de natureza diversa. Daí
conjugarmos, em nosso intento de observar os fatores que incidem na formação
de sentido nas línguas, pressupostos teóricos da Análise do Discurso a respeito
da memória discursiva a um conceito que permita abordar a dimensão social da
linguagem, o de representação social. Pensamos ser essencial observar as
restrições que esses elementos impõem à materialidade lingüística, ainda mais no
caso do contato português-espanhol, em que essa superfície material apresenta
diversos pontos de semelhança.
28
III. ORIGEM DOS CONCEITOS DE FALSOS AMIGOS, FALSOS
COGNATOS E HETEROSEMÁNTICOS E A TENDÊNCIA ATUAL DE
APLICAÇÃO DESSAS NOÇÕES EM ESTUDOS SOBRE E/LE
Embora o objetivo primeiro deste trabalho não seja a discussão das
definições de “falsos amigos”, “falsos cognatos” e heterosemánticos
25
, julgamos
necessário fazer um estudo a respeito desses termos, tanto para conhecer sua
provável origem, quanto para contrastá-la com a aplicação que se tem feito
desses conceitos atualmente em pesquisas lingüísticas no Brasil. Para fazer o
levantamento das origens desses conceitos e observar como vêm sendo utilizados
em trabalhos científicos nos dias de hoje, seguiremos as seguintes etapas:
1. As origens dos conceitos: buscaremos as possíveis definições originais, no
âmbito da Lingüística, dos conceitos de “falsos cognatos”, “falsos amigos” e
heterosemánticos. Para isso, recorremos a:
a) possíveis obras em que se originaram os conceitos;
b) dicionários de conceitos da Lingüística;
c) trabalhos sobre Lingüística Histórica e o Método Comparativo.
2. A aplicação desses conceitos ao estudo do espanhol como língua estrangeira
em nosso país: consultaremos trabalhos que, possivelmente, iniciaram a
utilização desses conceitos nesse tipo de pesquisas no Brasil e que,
consequentemente, parecem ter inaugurado uma tendência nesses estudos,
a de enfatizar o estudo das divergências léxicas - na maioria das vezes
representadas por esse tipo de vocábulos -, fruto da inspiração no modelo da
Análise Contrastiva em sua versão forte. Buscaremos:
a) Verificar quais os conceitos utilizados por Idel Becker em seu
Manual de Español (1967) e por Antenor Nascentes no artigo
25
Sempre que necessitarmos fazer referência a esse tipo de vocábulo que constitui o centro da
imagem de que tratamos, utilizaremos o termo “falsos amigos”, para evitar a utilização de “falsos
amigos”, “falsos cognatos” e heterosemánticos como sinônimos, entre outras razões que
explicitaremos mais adiante.
29
Esbozo de comparación del español con el portugués (1939) e
em sua Gramática para uso dos brasileiros (1934), além de
observar como esses autores os definem. Procuraremos, também,
buscar indícios do modelo teórico que norteia essas pesquisas;
b) Verificar como Lado (1972)
26
trata esses vocábulos, já que essa
obra, embora tenha sido publicada após os trabalhos de Antenor
Nascentes e Idel Becker a que nos referimos, foi um marco da
Análise Contrastiva em sua versão forte;
3. Tendência predominante atualmente da aplicação desses conceitos em
pesquisas sobre a aprendizagem do E/LE: buscaremos estabelecer algumas
regularidades para o uso atualmente mais freqüente desses conceitos nesse
âmbito. Para isso, consultamos: dois trabalhos acadêmicos
27
, uma
publicação para estudantes brasileiros do espanhol
28
e um dicionário de
“falsos amigos”
29
;
4. Como se trata de um tema que também está presente no imaginário do
brasileiro “comum” sobre o espanhol – que não o lingüista -, pareceu-nos
interessante também fazer um levantamento de sites brasileiros em que o
tema é mencionado, por considerarmos que aí poderemos recolher mostras
da visão do senso comum sobre esses conceitos.
26
Consultamos sua segunda edição brasileira, publicada em 1972.
27
Os trabalhos acadêmicos que consultaremos serão: a) artigo ROCHA, F. M. & DURÃO, A. B. de
A. B.“Consideraciones sobre algunos vocablos heterosemánticos del español en relación con el
portugués”.In: Anais das II Jornadas de Estudos Hispânicos: Problemas de Ensino/Aprendizagem
de Brasileiros Estudantes de Espanhol. Londrina, 2000. p. 104-109.
b) LEIVA, M.J.S. “Falsos Cognatos em Português e Espanhol”. Dissertação de mestrado defendida
junto ao Intituto de Estudos da Linguagem, UNICAMP, 1994.
28
ARIAS, S. Di L. Guia do Espanhol para quem só fala Portunhol. Rio de Janeiro: Campus, 1998.
29
HOYOS, B.L.F. Diccionario de Falsos Amigos. São Paulo: Enterprise, 1998.
30
III.1. As origens dos conceitos na Lingüística
III.1.1. Falsos amigos
O conceito de “falsos amigos” tem origem francesa, foi cunhado por
Maxime Koessler e Jules Derocquigny no livro Les Faux-Amis ou Les trahisons du
vocabulaire anglais, em 1928. Sua definição, segundo o Dictionnaire de la
Linguistique, de Georges Mounin (1974: 139), seria:
Faux-amis: empregado pela primeira vez por Koessler e Derocquigny (Les-faux
amis ou les trahisons du vocabulaire anglais, Vuibert, 1928), designa palavras de
etimologia e de forma parecidas, mas de sentido parcial ou totalmente diferente (...).”
Esse conceito, portanto, classificaria as palavras de duas línguas que
vêm de uma mesma raiz, que têm forma parecida, mas apresentam diferenças de
sentido, que podem envolver apenas algumas acepções ou todas as possíveis
para uma palavra
30
.
III.1.2. Falsos cognatos
Para o termo “falsos cognatos”, apesar de seu largo uso, não
encontramos nenhuma referência aos eventuais pesquisadores que o tenham
cunhado. O que existe na Lingüística é o termo “cognato”, do qual supomos
derivar “falso cognato”. Consultamos alguns dicionários de espanhol e português
para verificar as definições dadas a esse termo, de modo a tentar chegar
posteriormente a uma hipótese para “falso cognato”
31
. Todas as definições
encontradas coincidem em atribuir ao termo “cognato” o significado de
30
São citados alguns exemplos que consideram as línguas francesa e inglesa, como ingl. actual =
fr. réel, frente a fr. actuel = ingl. present. (Mounin, 1974:139).
31
No Diccionario de la Real Academia Española, disponível na página da Internet www.rae.es,
encontramos: “cognado,da. (Del lat. cognatus) ). 1. adj. Gram. Emparentado morfológicamente”
.
No Dicionário Aurélio (1999) encontramos:Cognato: Diz-se de, ou vocabulário que tem raiz
comum com outro(s)”. No Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa (1987):
Cognato. ‘cognado’ – diz-se de, ou voc. Que tem raiz comum com outro
(s). Do lat. Cognatus. (o
grifo é nosso)
31
“vocabulário que tem origem comum com outros”. Aplicado a línguas estrangeiras,
refere-se a palavras de línguas diferentes que procedem de uma mesma raiz.
Como não encontramos em nenhum dos dicionários consultados o
termo “falso cognato”, procuramos estabelecer uma definição hipotética a partir de
“cognato” e de indícios da definição desse termo no âmbito da Lingüística.
Encontramos uma pista dessa definição numa nota de rodapé da obra de Lado
(1972) traduzida ao português. Essa edição, como veremos mais detalhadamente
mais adiante, diferencia o conceito tal como é adotado pelo autor - “palavras que
são semelhantes na forma mas que diferem em relação ao significado” - da forma
como a “terminologia lingüística comum” o define, ou seja, “palavras em duas
línguas que, embora possam parecer, por sua forma, aparentadas na origem, não
apresentam esse tipo de relacionamento” (Id. Ibid.: 116-117) (o grifo é nosso).
Portanto, a retomada que o autor faz da definição do termo segundo a
“terminologia lingüística comum”, para posicionar-se em relação a ela,
proporciona-nos a informação de que os “falsos cognatos” eram palavras cuja
semelhança formal induziria a pensar em semelhança de valores e de origem.
Pode-se dizer, então, que “falsos cognatos”, envolvendo línguas diferentes, são as
palavras que, por sua semelhança formal, levariam a supor que são vocábulos de
mesma etimologia e que, conseqüentemente, possuem mesmos valores, quando
na realidade não possuem parentesco e divergem total ou parcialmente em
significação.
III.1.3. Heterosemánticos
Também para o termo heterosemántico não encontramos indícios de
sua criação. Acreditamos ser possível supor que sua origem esteja na Gramática
para uso dos brasileiros (1934, apud Celada & González, 2000: 20), de Antenor
Nascentes, por duas razões. A primeira delas, porque foi nessa obra que
encontramos a primeira referência a esse conceito. A segunda tem a ver com o
fato de que, em busca que realizamos na Internet, ao solicitarmos ocorrências
com heterosemántico(s), praticamente todos os casos encontrados eram de sites
32
sobre o ensino de espanhol elaborados no Brasil. Ao solicitarmos ocorrências em
que a palavra estivesse em português, o número de páginas encontradas foi muito
grande. Em função do fato de que o uso desse termo parece estar concentrado
em nosso país, como revela o levantamento que fizemos, parece-nos plausível
supor que o termo tenha sido cunhado no Brasil, na referida obra.
Nascentes (1934) define os homónimos heterosemánticos como
“palavras semelhantes com significados diferentes”, ou seja, esse conceito não
envolve nenhuma referência à origem dos vocábulos. Como veremos,
posteriormente, Becker (1967) retoma esse conceito em seu Manual de español,
divulgando-o em praticamente todo o Brasil.
III.1.4. Busca pelos conceitos em dicionários de Lingüística
Vejamos como se retratam esses conceitos em alguns dicionários
específicos de termos pertencentes à Lingüística. No The dictionary of historical
and comparative linguistics (Trask, 2000) definem-se os “cognatos” como:
“cognate: 1. Narrowly, and most usually, one of two or more words or morphemes
which are directly descended from a single ancestral form in the single common
ancestor of the languages in which the words or morphemes are found, with no
borrowing. For example, English father and German Vater ‘father’ are cognate, being
descended from Proto-Germanic *fader, and both are more distantly cognate with
Spanish padre, Irish athair and modern Greek patéras, all ‘father’, all of these being
descended from PIE *peter” (ibid.: 62) (o grifo é nosso).
Trask, pelo que se deduz dessa definição, concebe o termo “cognatos”
de maneira muito semelhante às definições que levantamos no subitem III.1.2., já
que se refere a palavras de línguas diferentes que têm origem numa mesma
língua ancestral. Do mesmo modo, sua definição para “falsos cognatos” é similar à
que propusemos para essa noção a partir do termo “cognato”:
“False cognates: Two or more linguistics forms which look for all world as though they
must be cognates but are in fact unrelated. An example is Old English habban ‘have’
and Latin hab-ere ‘have’, which are not connected even though the languages are
genetically related” (ibid.: 119) (o grifo é nosso).
33
Essa noção, portanto, leva em consideração a etimologia dos
vocábulos, ressaltando a falsa aparência de origem comum que esse tipo de
léxico pode produzir. Além dessas definições, parece-nos interessante retratar
outras duas que a obra oferece para o termo “cognato”. Uma delas, que o autor
afirma ser menos usual que a primeira, refere-se a palavras em línguas diferentes
que têm mesma origem, mas são resultado de empréstimos de uma terceira
língua. Trask (op. cit.) adverte, no entanto, que alguns lingüistas opõem-se a essa
definição para o termo. A terceira definição que Trask propõe para esse conceito
diz:
“3. [erroneous] A label improperly applied to items of similar form and meaning in
languages not known to be related, when these are presented as candidates for
possible cognation. Common among linguistic amateurs, this objectionable usage is
not unknown even among linguists, but it should be avoided; items cannot be labelled
‘cognates’ until a substantial case has been made that they genuinely are cognate”
(ibid.: 62) (o grifo é nosso).
Como se vê, o autor critica os que estendem a denominação de
“cognato” a palavras que tenham semelhança formal e de significado, mas que
não possuam origem comum. Tal crítica se justifica principalmente se se leva em
consideração que a questão etimológica parece constituir um aspecto
indissociável desse conceito, já que o próprio vocábulo “cognato”, que tem sua
origem no latim cogn-atus, é definido por Munguía (1985:124) como “unido por
lazo de sangre, pariente consangüíneo; emparentado, relacionado com; afín,
semejante, parecido”.
Outra obra que consultamos foi o Diccionario de lingüística y fonética
(Cristal, 2000), em que consta apenas a noção de “cognato”, sem qualquer
referência aos outros termos que pesquisamos. Sua definição, no entanto,
abrange outros níveis, além do lexical:
“(1) Una lengua o forma lingüística que históricamente tiene el mismo origen que otra
lengua/forma, p. ej. El español/italiano/francés/portugués son ‘lenguas cognadas’ (o
simplemente ‘cognados’); père/padre, etc. son ‘palabras cognadas’ o cognados.
34
(2) Este término también se aplica a la descripción de algunos tipos de relaciones
sintácticas: un ‘objeto cognado’ es aquel que posee la misma derivación histórica
que el verbo que lo rige (o, de forma más general, depende semánticamente de la
acción del verbo), p. ej. correr una carrera, vivir la vida, caminar el camino; un
ejemplo de secuencia sujeto-verbo-objeto cognada sería una frase tipo Los
huéspedes hospedan a los huéspedes” (ibid.: 110-111) (o grifo é nosso).
Na definição de número (1), além de aludir a formas lingüísticas que
possuem mesma origem, estende-se o conceito de “cognatos” a línguas que
descendem de uma mesma língua ancestral. A definição de número (2) designa
também determinadas relações sintáticas entre elementos que possuem origem
comum; no caso, o autor refere-se ao objeto e ao verbo que o rege ou até a
seqüências cognatas do tipo sujeito-verbo-objeto.
Dubois (1992), em seu Diccionario de lingüística, apresenta somente o
conceito de “cognatos”, que também coincide com o levantamento que fizemos no
subitem anterior sobre as origens dos conceitos:
“Cognados: se denominan cognados dos formas semejantes en dos lenguas o
dialectos diferentes, cuya similitud es debida no al azar o a un préstamo de la una a
la otra, sino a un origen común. Así, los términos español mar e italiano mare son
cognados” (ibid.: 112) (o grifo é nosso).
Note-se que o autor alude a outras razões que podem fazer com que
palavras, em línguas ou dialetos diferentes, apresentem semelhança: o acaso
(coincidência) ou empréstimos.
No Longman Dictionary of Language Teaching & Applied Linguistics,
Richards & Platt (1992) apresentam uma definição de “cognatos” que também
coincide com a levantada por nós e, além disso, advertem para a existência de
palavras semelhantes em forma e significado que não são “cognatas”:
“a word in one language which is similar in form and meaning to a word in another
language because both languages are related. For example English brother and
German Bruder.
35
Sometimes words in two languages are similar in form and meaning but are
borrowings and not cognate forms.
For example, kampuni in the African language Swahili, is a borrowing from English
company” (ibid.: 59) (o grifo é nosso).
Justifica-se a semelhança – em forma e significado – entre esses
vocábulos pelo parentesco das línguas a que pertencem e, assim como Dubois
(1992), assinala-se a existência de similaridades entre palavras de línguas cuja
cognação é apenas aparente, já que tal semelhança se deve a empréstimo.
Já ao definir “falsos cognatos” e “falsos amigos”, Richards & Platt (ibid.)
se distanciam das definições que supomos serem as originais desses termos na
Lingüística e se afastam até mesmo do modo como definem ”cognatos”, já que
reconhecem a existência de palavras semelhantes que não possuem mesma
etimologia. Assim:
“false cognate:
(also faux amis, false friends)
a word which has the same or very similar form in two languages, but which has a
different meaning in each. The similarity may cause a second language learner to use
the word wrongly. For example the French word experiénce means ‘experiment’, and
not ‘experience’. French learners of English might thus write or say: Yesterday we
performed an interesting experience in the laboratory.
False cognates may be identified by Contrastive Analisys” (ibid.: 136) (o grifo é
nosso)”.
Os autores chamam “falsos cognatos”, portanto, os vocábulos que têm
mesma forma ou forma muito similar em duas línguas, mas que possuem
significados diferentes: a questão da origem dessas palavras, de que aparentam
ser cognatos mas não o são, não é mencionada. Os autores também traçam
comentários que nos remetem ao âmbito da aprendizagem dessas palavras pelo
estudante de uma língua como língua estrangeira, advertindo para as possíveis
dificuldades que ele terá para usar esse tipo de vocábulo. Com exemplos do
36
francês experiénce e do inglês experience, os autores exemplificam um mau uso
do segundo vocábulo pelo falante do francês, atribuindo a esses vocábulos o
papel de “armadilhas” em que os aprendizes, incautos, podem cair. A Análise
Contrativa é indicada como meio de identificar – e de certa forma, prever - que
palavras, em duas línguas determinadas, funcionam como “falsos cognatos”.
Observamos outra característica nas definições oferecidas por Richards
& Platt (ibid.): o tratamento das noções de “falsos cognatos” e “falsos amigos”
como sinônimos, como se constata na definição do primeiro termo e na que agora
transcrevemos do segundo: “faux amis: another term for false cognate” (ibid.:137).
Veja-se que o fato de que se desconsidere a questão etimológica dessas palavras
parece ser o que permite tratar esses conceitos como sinônimos, pois é esse
componente que permite a sua distinção.
Buscamos também, em todas essas obras citadas, o termo
heterosemánticos e em nenhum dos dicionários encontramos qualquer referência
a ele; tal fato parece reforçar nossa hipótese de que esse conceito tenha sua
origem no Brasil, provavelmente nos estudos de Nascentes (1934).
III.1.5. A Lingüística Histórica e o Método Comparativo
Seguindo nossa busca pelas origens dos conceitos de “falsos amigos”,
“falsos cognatos” e heterosemánticos, fomos a trabalhos de Lingüística Histórica
com o intuito de verificar se há referências, nesse modelo, a esses termos. Um de
seus métodos de estudo, o Método Comparativo, parte da confrontação de termos
cognatos de línguas que possuem parentesco, com o intuito de pesquisar a
mudança lingüística e deduzir as chamadas proto-formas ou proto-línguas,
constituindo, assim, as famílias lingüísticas. Embora a preocupação central dessas
comparações não fosse a de determinar as mudanças semânticas das palavras,
mas sua evolução fonológica, parece-nos possível encontrar nelas referências ao
tipo de palavras que pesquisamos, especialmente no primeiro passo desse
método, que consiste em selecionar palavras cognatas, tidas como palavras de
línguas diferentes que possuem mesma origem. Ao proceder a essas seleções, os
37
lingüistas deveriam necessariamente considerar o âmbito da significação dessas
palavras, verificando se havia ou não coincidência de significação entre elas e
entre elas e a proto-forma.
Vejamos, então, a que se propõe a Lingüística Histórica e um de seus
métodos, o Comparativo.
III.1.5.1. A Lingüística Histórica
A Lingüística Histórica se inicia no final do século XVIII com os estudos
de Sir William Jones, que, observando as semelhanças entre o latim, o grego e o
sânscrito, propôs que essas línguas apresentavam parentesco entre si. Sir Jones
demonstrou que tal afirmação podia ser confirmada com um método que
assinalava a correspondência de sons; além disso, hipotetizou que as três línguas
vinham de uma outra antecessora, possivelmente naquele momento já extinta –
hoje se sabe que se trata do proto-indo-europeu. Posteriormente, outros
pesquisadores, já no século XIX, dedicaram-se a entender as mudanças de som e
as relações entre as línguas indo-européias, sendo os principais Rasmus Rask,
Karl Verner e Jacob Grimm (Gabas Júnior, 2001:78).
Também se destacou nesse âmbito um segundo grupo de estudiosos
alemães, denominado neogramáticos, que se puseram contra os métodos então
vigentes da comparação lingüística e questionaram, basicamente, o fato de os
estudos comparatistas se basearem em dados de língua escrita e não de língua
falada. Posteriormente a esses estudiosos, outros importantes pesquisadores se
dedicaram a essa área e possibilitaram a sua evolução. Os estudos comparativos
com as línguas indo-européias nos séculos XVIII e XIX tiveram um outro papel
muito importante: contribuíram para o próprio estabelecimento da Lingüística como
ciência (Id. Ibid.: 79-80).
Pensando no principal objetivo da Lingüística Histórica, Campbell
(1998:5-6) ressalta que se costuma supor que o trabalho dos que se dedicam a
essa ramificação da Lingüística é o de reconstruir a etimologia das palavras. O
fato de que o lingüista histórico recorra à história das palavras, ou seja, trace sua
38
etimologia para entender as mudanças por que passaram, não faz com que esse
seja o seu primeiro objetivo; na verdade, esse constitui um importante instrumento
para o estudo da mudança lingüística.
III.1.5.2. A história das palavras e sua representação para os falantes
Poderíamos supor que uma das razões pelas quais se confunde um
procedimento desse modelo de pesquisa com o seu objetivo primeiro pode ser o
fascínio generalizado que a historia das palavras desperta, o que faz com que,
como afirma Campbell (ibid.), mesmo as pessoas que não se dedicam a estudos
lingüísticos, mostrem interesse pela etimologia dos vocábulos, o que se confirma
pela abordagem do assunto pelos mais diversos meios de comunicação. Vejamos
o que diz Campbell (ibid.:5):
“and many people are fascinated by word histories, as shown by the number of
popular books, newspaper columns and radio broadcasts dedicated to the topic,
more properly called etymology (derived from Greek etumon ‘true’ (neuter form), that
is ‘true or original meaning of a word’)” (ibid.: 5).
Essa observação de Campbell a respeito do fascínio que exerce a
historia das palavras nos chamou a atenção por parecer ter alguma semelhança
com a imagem de que tratamos, que coloca como centro de interessa os “falsos
amigos”. Embora, em geral, o interesse dos sujeitos dessa imagem não esteja
exatamente em conhecer o histórico desses vocábulos, tais palavras não deixam
de envolver um componente etimológico, pois colocam o falante em contato com a
influencia da história na significação, que promove, no decorrer do tempo, em
cada cultura, o distanciamento de palavras-irmãs em relação à sua significação
original.
Essa influencia que imprime singularidade às palavras (mas só a elas)
de cada língua, e que os sujeitos da imagem que abordamos atribuem apenas aos
“falsos amigos”, fascinam porque mostram aquilo que existe em sua língua – em
contraste com a outra - e aquilo que não é usual nela, mas poderia perfeitamente
sê-lo.
39
III.1.5.3. Método Comparativo ou Reconstrução Externa
Um dos métodos de que a Lingüística Histórica dispõe para estudar as
mudanças nas línguas é o Método Comparativo. Segundo Hockett (1971:451),
este seria o mais eficaz dos métodos de pré-história lingüística e se aplica no caso
de duas ou mais línguas diferentes que estão ou parecem estar aparentadas.
Assim, ocupa-se especificamente da comparação de línguas que possuem
parentesco, com o objetivo de extrair a maior quantidade possível de informação
sobre a etapa comum a todas elas. Línguas que pertencem à mesma família
lingüística são geneticamente aparentadas, ou seja, descendem de uma
mesma língua original, a protolíngua. De acordo com Hockett (ibid.:466), essas
línguas são prolongações mais tardias daqueles que, em uma época anterior,
foram dialetos de uma mesma língua.
Portanto, o objetivo da reconstrução pelo Método Comparativo é
recuperar o máximo possível da língua antecessora – a proto-língua - pela
comparação das línguas que dela descendem e pela observação das mudanças
por que elas passaram. O trabalho de reconstrução normalmente começa com a
fonologia, como uma tentativa de reconstruir o sistema de sons. Os estudos que
utilizam esse método se dedicaram, em sua maioria, a esse nível lingüístico,
embora houvesse intentos de recuperar o léxico – em que se buscavam
mudanças semânticas – e a gramática da proto-língua.
O português e o espanhol, assim como o francês e o italiano, entre
outros idiomas, pertencem a uma mesma família lingüística e descendem de
uma mesma língua anterior: o latim. A determinação do parentesco entre línguas
se dá pela observação, por meio de sua comparação, de diferenças e
semelhanças sistemáticas (Lehmann, 1973:4-5). A unidade de comparação para
reconstruir os sons da língua-mãe, para esse método, são palavras cognatas das
línguas com possível parentesco, vocábulos esses definidos como:
Cognate: a word (or morpheme) which is related to a word (morpheme) in sister
languages by reason of these forms having been inherited by these sister languages
40
from a common word (morpheme) of the proto-language from which the sister
languages descend” (Campbell, 1998:112).
As correspondências fonológicas existentes entre essas palavras
permitiriam deduzir os sons da proto-língua. Embora o objetivo dessas
comparações não seja o de reconstruir o significado das palavras na língua-mãe,
o pesquisador precisa considerar esse aspecto ao menos no primeiro passo do
método, que, como veremos em seguida, exige a seleção apenas de palavras
cognatas.
Segundo Campbell (ibid.:112), o primeiro passo para aplicar o método
comparativo é procurar potenciais cognatos entre línguas aparentadas (ou entre
línguas para as quais há razão para supor parentesco) e enumerá-los em uma
disposição ordenada (em linhas ou colunas). O autor adverte que, em geral, é
conveniente começar com cognatos do chamado “vocabulário básico”
32
, como os
que designam partes do corpo, termos de parentesco próximo, números baixos e
termos geográficos comuns, já que eles resistiriam às mudanças por empréstimos
mais do que outros tipos de vocábulos. Tal advertência se deve a que, para aplicar
o Método Comparativo, deve-se comparar estritamente o que Campbell (ibid.:113)
define como “cognatos verdadeiros” – true cognates –, palavras que estão
relacionadas entre as línguas filhas em virtude de serem herdadas de uma proto-
língua comum. Para uma reconstrução bem sucedida, segue o autor, o
pesquisador deve eliminar todas as outras séries de palavras semelhantes
que não o são devido à herança de um ancestral comum, tais como aquelas
que exibem semelhanças entre as línguas por serem empréstimos ou
simplesmente por acaso (coincidência).
Parece pertinente supor que o autor considera a existência de “falsos
cognatos” ao falar em “cognatos verdadeiros”. Os “falsos cognatos” seriam,
segundo nossa interpretação das palavras de Campbell (ibid.), vocábulos
32
O conceito de vocabulário básico vem da glotocronologia, outro método da Lingüística Histórica;
tal conceito supõe a existência de palavras que designam noções básicas, existentes em todas as
culturas. Mais adiante explicaremos melhor esse conceito.
41
semelhantes que parecem ter uma mesma origem, quando tal semelhança se
deve a outros motivos, ou a serem empréstimos que as línguas comparadas
fizeram de uma terceira língua ou entre si, ou meramente ao acaso
33
.
Hockett (1971:467) coincide com Campbell no que tange às razões
pelas quais palavras de línguas aparentadas apresentam similaridades de som e
de significado: pode dever-se à casualidade; pode ser um empréstimo ou se dever
à herança direta de uma palavra que foi antecessora comum às duas línguas.
Nesse último caso, as denomina cognatos, palavras com que o Método
Comparativo trabalha essencialmente. Também observa que podem surgir
dúvidas no momento de classificar palavras similares como sendo ou não
cognatos, o que se soluciona com os sucessivos passos do método comparativo.
O segundo passo do Método Comparativo, de acordo com Campbell
(1998:113), permite ao pesquisador, recorrendo a questões fonéticas, confirmar se
as palavras da série que vai utilizar são “cognatos verdadeiros”. Com ele, podem-
se evitar possíveis correspondências de sons que se devem ao acaso ou a
empréstimos. Determina-se se uma correspondência de sons é verdadeira pela
verificação de se tal correspondência se repete em outras séries de cognatos
34
.
33
Observe-se que essa definição de “falsos cognatos” coincide com a que propusemos
hipoteticamente para o conteúdo original desse termo no subitem III.1.2..
34
Hockett (1971: 468-471) ressalta que não é a semelhança fonética o que importa quando se
trata de determinar verdadeiros cognatos – note-se que Hockett, assim como Campbell, também
supõe a existência de “falsos cognatos”, em oposição a “cognatos verdadeiros” –, ou seja, que as
palavras tenham formas semelhantes nas línguas comparadas. O que é necessário é que haja
regularidade de correspondência. O autor exemplifica o método comparativo com línguas do
grupo românico: o espanhol antigo (esp. a.), francês antigo (fr.a.), italiano antigo (it. a.), romeno
antigo (rom. a.) e sardo antigo (sd. a.). Considerando um elemento lexical comum que significa
“mar”, teremos: esp. a. /már/; fr. a. /máer/; it. a. /máre/; rom. a. /máre/ e sd. a. /máre/
. A
semelhança de som e de significado existe, mas, segundo o autor, isso não é suficiente para dizer
que sejam cognatos, porque, ainda que fosse muita coincidência para dever-se a uma semelhança
acidental, poderia muito bem dever-se a empréstimo. Para confirmar se são cognatos, é
necessário buscar correspondências recorrentes em outros vocábulos dessas línguas. Essas
cinco palavras começam com /m/, de modo que essa correspondência pode ser representada
fonologicamente /m- m- m- m- m-/. Em cada uma das línguas, os fonemas /m/ respectivos, iniciais
ante vogal acentuada, eram foneticamente nasais bilabiais sonoras, esta mesma correspondência
pode ser representada foneticamente [m- m- m- m- m-]. Em muitas outras palavras se encontram a
mesma correspondência: “mão” /máno/; /máin/; /mano/; /mine/; /mánu/ ou para “mel” /miél/; /miél/;
/miéle/; /mjére/; /mele/ ou para “monte” /mónte/; /mónt/; /mónte/; /múnte/; /monte/. Assim podemos
proceder com os outros fonemas da seqüência de palavras para “mar” nessas línguas.
42
Para Hockett (1971:484), o descobrimento de correspondências recorrentes vem
confirmar a hipótese de que os possíveis cognatos o são realmente e, se elas se
repetem com suficiente regularidade, desaparece qualquer dúvida a esse respeito.
III.1.5.4. As diferenças e semelhanças entre as línguas românicas
Segundo Hockett (ibid.:468), o parentesco entre as cinco línguas
românicas que analisa (espanhol, romeno, italiano, francês e sardo) é obvio, já
que seus núcleos gramaticais são muito semelhantes, os sistemas fonológicos
são, em certa medida, similares e, continua ele, o que seria o mais importante:
possuem centenas de elementos lexicais comuns. Portanto, segue o autor, a única
conclusão possível é que essas línguas são formas divergentes de uma mesma
língua mais antiga, essa língua antecessora chamada proto-romance.
Veja-se o peso que o autor dá ao nível lexical no tratamento das
diferenças e semelhanças entre esses idiomas e na determinação de seu
parentesco. Do mesmo modo, como vimos, ainda que o alvo seja a reconstrução
fonológica, é o léxico que se observa para definir se há parentesco entre as
línguas: o léxico parece ser o nível visto como o mais produtivo para explicitar as
diferenças entre as línguas: se o vocabulário não é o foco, ele é o meio para
estudar o seu foco, que são os sons.
A necessidade de selecionar apenas vocábulos cognatos para esses
trabalhos de reconstrução fonológica levou os que utilizavam o Método
Comparativo a lidarem com a questão da origem das palavras, para que não se
Verificaremos que todas as correspondências sucessivas das palavras para “mar” se repetem em
muitas outras séries de palavras. A grande regularidade com que essas correspondências
reaparecem faz com que seja muito improvável que tais semelhanças se devam a empréstimos. O
autor afirma que se pode concluir que essas cinco palavras da serie são, sem dúvida, cognatos:
isso significa que em proto-romance havia somente uma palavra, a qual, por tradição direta em
cada uma das cinco línguas, se transmitiu até nós precisamente com as configurações que
aparecem nessa serie. A palavra originaria começava com um som consonântico que as línguas
derivadas herdaram todas como [-m]. O testemunho fonético das cinco línguas concorda. Supõe-
se que, se todas as línguas de um grupo aparentado compartilham um mesmo traço, [-m], nesse
caso, esse traço estava presente na língua mãe. Postulamos, portanto, que a palavra proto-
romance que significa “mar” começava com [-m].
43
corresse o risco de comparar unidades diferentes de duas línguas. Além da
referência que já mencionamos – ainda que não fosse explícita –, feita por
Campbell (1998:113) aos vocábulos “falsos cognatos”, encontramos outras que
tratam do que, em nosso levantamento das possíveis definições originais dos
conceitos, define-se como “falsos amigos”, embora também neste caso os autores
não explicitem o nome que dão a esse tipo de palavra.
III.1.5.5. As referências aos chamados “falsos amigos”
Nos autores que consultamos, encontramos algum tipo de menção, se
não ao conceito, ao tipo de vocábulos hoje com muita freqüência chamados
“falsos amigos”. Os dois primeiros autores tratam desse tipo de vocábulo ao
abordar a questão da mudança semântica, especialmente no nível lexical. No
terceiro pesquisador a que nos remetemos, a referência a palavras desse tipo se
dá no âmbito da glotocronologia, outro método da Lingüística Histórica.
As citações que trazemos desses autores tratam de palavras que,
embora tenham uma origem comum, no decorrer de sua história passaram a ter
valores diferentes em duas línguas aparentadas. Essas observações sobre as
palavras “falsas amigas” nos mostram, também, que o fato de que vocábulos
sejam cognatos não garante que sejam “amigos”.
a) Mudança semântica e mudança lexical segundo Campbell (1998)
Embora Campbell não utilize um conceito para nomear os “cognatos
verdadeiros” que assumem, com o tempo, significados diferentes em línguas que
apresentam parentesco, trata dos problemas que essas palavras podem causar na
aprendizagem de uma delas como língua estrangeira.
O autor recorda como os que aprendem outras línguas freqüentemente
perguntam como cognatos verdadeiros podem chegar a ter significados tão
diferentes em línguas aparentadas, como no caso do inglês-alemão town
“cidade”/Zaun “cerca”, timber “madeira”/Zimmer “cômodo”, bone “osso”/Bein
“perna”, write “escrever”/reissen “rasgar”. Recorda que também intrigam os
44
aprendizes as razões pelas quais uma palavra aparentemente inocente do francês
como baiser, que o dicionário diz significar “beijar”, mudou seu significado para
“copular” sem nenhuma advertência para salvar do embaraço o desprevenido
aprendiz da língua.
Campbell (ibid.) adverte, levando em consideração essas mudanças de
significação dos vocábulos, que a mudança lexical pode ser objeto de grande
preocupação, pois representaria perigo ao aprendiz inadvertido
35
. Além disso, o
autor ressalta que, para muitos, a mudança de significado é algo que se deve
deter, fato que se evidencia pela criação de academias e de comissões de língua
para proteger a pureza dos idiomas – como ocorre com o francês e o espanhol,
por exemplo -, e por cartas à imprensa, em vários países, que denunciam, por um
lado, a invasão de americanismos no vocabulário e, por outro lado, condenam a
degeneração do vocabulário dos jovens. A solução, segundo os que são
partidários desse pensamento, seria ter como modelo lingüístico escritores
consagrados, aos quais deveríamos aproximar o uso que fazemos da língua (id.
ibid.:255).
Outra observação interessante que Campbell (ibid.:256) faz e que
apresenta relação com o léxico é a de que trabalhos tradicionais em mudança
semântica têm quase que exclusivamente se preocupado com a semântica lexical
- mudança no significado de vocábulos individuais – tendência que é possível
encontrar também em muitos trabalhos de nosso país.
b) Mudança semântica Segundo Lehmann (1973)
Lehmann (1973:211-212), ao tratar dos procedimentos para se verificar
a mudança semântica, ressalta que um deles é a comparação de elementos
similares na forma. O autor alerta que propor mudança de significado com base
na origem das palavras ou na semelhança de forma pode levar a equívocos. Tal
advertência se aplica quando se busca reconstruir a mudança de significado de
35
Note-se como esse modelo já advertia para o grande perigo que essas palavras podem
representar para o aprendiz de uma língua estrangeira.
45
formas de línguas aparentadas. Seria necessário saber consideravelmente mais
do que o fato de seu parentesco
36
para decidir que do par inglês silly “tonto”:
alemão selig “abençoado”, a forma alemã preserva o significado original; ou seja,
a forma inglesa se tornou um “falso amigo” entre essas duas línguas, enquanto a
alemã segue “fiel” ao significado da palavra que as originou. Já no par inglês cup
“xícara”: alemão kopf “cabeça”, a palavra do inglês é que mantém o significado
original.
Lehmann (ibid.) propõe que a comparação de formas aparentadas que
diferem em significado permite concluir se a mudança de significado realmente
ocorreu. Para isso, deve-se estabelecer o exato percurso desses vocábulos,
utilizando textos em que o(s) significado(s) original(ais), assim como o(s)
posterior(es), possam ser estabelecidos, já que esse procedimento permitiria
maior segurança às conclusões.
Em outro ponto, Lehmann (ibid.:5) aborda o critério para atribuir-se
parentesco a línguas pela observação de diferenças e semelhanças sistemáticas,
em que procuram-se recorrências entre segmentos semelhantes e diferentes dos
sistemas. O autor adverte que ter como critério para atribuição de parentesco
entre línguas apenas palavras semelhantes pode levar o pesquisador a
conclusões errôneas, pois é possível encontrar vocábulos semelhantes em línguas
que são totalmente desprovidas de parentesco, como o caso de futbol do turco e
futobōru do japonês, que são empréstimos do inglês football; do mesmo modo bad
do persa e bad do inglês, que são semelhanças acidentais. Ou seja, aqui ele se
36
Tal advertência parece-nos ser pertinente também para questionar uma das estratégias de
leitura que muitos cursos instrumentais costumam oferecer aos alunos: a sugestão de que
busquem palavras cognatas. Em nosso modo de ver, essa dica pode ser improdutiva, já que, ainda
que o aluno consiga determinar quais palavras são cognatas nos idiomas em questão – o que não
se pode, às vezes, fazer sem contar com um dicionário etimológico, já que existem os “falsos
cognatos” e os empréstimos –, isso não representa nenhuma garantia de segurança para o leitor,
ou seja, não significa que essa palavra, por ser cognata, tenha ainda hoje os mesmos valores que
tinha em sua origem, já que pode, nos dias de hoje, ter se convertido em um “falso amigo”. Tal
reflexão parece também demonstrar como a distinção desses conceitos – de “falsos cognatos” e
“falsos amigos” - pode muitas vezes ser produtiva se se opta por trabalhar no modelo que os
abarca, já que, como exemplificamos na análise dessa estratégia de leitura, permitiu-nos uma
justificativa para nossa hipótese de que ela pode não ser muito produtiva para o leitor estrangeiro.
46
refere a palavras que apresentam semelhança formal e semântica, mas que não
têm uma mesma origem e que, portanto, não são cognatas
37
.
Lehmann (ibid.:5) recorda que a Lingüística Histórica se desenvolveu
somente depois que os lingüistas abandonaram as comparações de palavras
selecionadas aleatoriamente, que pareciam semelhantes de língua a língua, e
começaram a determinar semelhanças e diferenças recorrentes nos sistemas
fonológicos e sintáticos, procedendo do mesmo modo no vocabulário das línguas
que se consideravam relacionadas.
c) Hockett e a glotocronologia
Ao tratar da glotocronologia
38
, Hockett (1971:509-510) se refere a um
dos fundamentos desse método, que é supor a existência de um vocabulário
básico, tido como as palavras que qualquer grupo humano possui para referir-se
a coisas e situações recorrentes em todas as comunidades (palavras que
designam noções comuns a todas a línguas)
39
. Para construir essas listas de
vocábulos, devem-se escolher palavras que se correspondam semanticamente,
não sendo a semelhança formal – e nem mesmo a origem comum - o critério
primeiro a se respeitar. Ou seja, o pesquisador necessita rejeitar palavras que
apresentem semelhança formal, mas não se correspondam semanticamente nos
idiomas comparados. Ao construir essas listas, ficava evidente o fato de que
palavras cognatas não necessariamente garantem mesmo(s) valor(es) em línguas
aparentadas, já que muitas vezes o pesquisador se via obrigado a utilizar outro
37
Essa afirmação do autor reitera o que dissemos na nota anterior (13), já que nos parece que
sugerir a um aluno brasileiro, por exemplo, num curso instrumental, que procure palavras cognatas
num texto em espanhol, supõe o obstáculo inicial de saber se os vocábulos semelhantes são ou
não cognatos, já que podem existir palavras que tenham forma e valores semelhantes devido a
empréstimo entre idiomas. Assim, tal estratégia de leitura parece ser passível de questionamento.
38
A glotocronologia é um método da Lingüística Histórica utilizado para determinar a porcentagem
de palavras que se perdem e se mantêm nas línguas com o decorrer do tempo e para determinar
quando as mudanças ocorreram. Utiliza-se também para se estabelecer em que período a língua-
mãe foi falada e para propor uma data aproximada para a divisão de uma língua em línguas filhas
(Hockett, ibid.:509-511).
39
Esse fundamento da glotocronologia foi muito criticado pela grande dificuldade de se constituir
esse vocabulário básico. No entanto, não entraremos na discussão dessas críticas por parecer-nos
irrelevante para os objetivos que nos levaram à Lingüística Histórica, um modelo datado, que não
pode ser criticado à luz de outros mais recentes.
47
vocábulo – no lugar da que, em suas origens, continha determinada noção básica
– para poder seguir o critério de correspondência semântica entre as línguas.
Hockett (ibid.:512) ilustra tal situação com uma noção do vocabulário
básico, a de “animal”, no inglês. No inglês antigo, dēor significava “animal”; no
entanto, com o passar do tempo, essa palavra assumiu na língua o significado de
“cervo” – a qual também sofreu uma pequena mudança formal e sobreviveu no
inglês moderno como deer. Assim, para constituir a lista de vocabulário básico do
inglês atual, seria necessário utilizar a palavra animal, a qual passou a ser o
vocábulo com o significado que antes d-eor designava – a noção de “animal”. Ou
seja, essa noção no inglês passou a ser representada por outro vocábulo diferente
daquele que provinha de sua língua-mãe. Nessa lista, portanto, esses vocábulos
se correspondem somente semanticamente e não mais em termos etimológicos.
Para conseguir reunir noções semanticamente similares para a
elaboração dessas listas, o pesquisador que utiliza a glotocronologia necessita,
muitas vezes, recorrer a palavras que não são cognatas nas línguas, e sim às
que assumiram o(s) valor(es) que a palavra original designava.
Se pensarmos como se poderia constituir um vocabulário básico para
línguas aparentadas, como o português e o espanhol
40
, parece-nos, ficaria
evidente uma das questões que tratamos sobre os “falsos amigos”. Ver-se-ia
como as semelhanças formais de vocábulos, ainda que sejam cognatos, não nos
permitem dizer que nos dias de hoje expressem as mesmas noções. Como vimos
no caso da noção de “animal” para o inglês, a palavra inicial, derivada da língua-
mãe, pode sobreviver no idioma, mas com outro(s) valor(es). A noção que antes
ela designava, passa a ser assumida por outro vocábulo.
40
Novamente advertimos que não entraremos na discussão da produtividade ou não desse
método, por não ser esse o objetivo de nosso trabalho; apenas utilizamos um de seus aspectos
que julgamos interessante para ilustrar como, nesse modelo, tinha-se claro que mesmo palavras
de mesma origem podem sofrer mudanças semânticas no decorrer do tempo.
48
III.2. A aplicação desses conceitos ao estudo do espanhol como língua
estrangeira em nosso país
Vejamos alguns trabalhos que, possivelmente, iniciaram a utilização desses
conceitos nesse tipo de pesquisas no Brasil e que parecem ter inaugurado uma
tendência nesses estudos, a de enfatizar o estudo das divergências léxicas - na
maioria das vezes representadas pelos “falsos amigos” -, fruto da inspiração no
modelo da Análise Contrastiva em sua versão forte.
III.2.1. O Conceito de homónimos heterosemánticos em Antenor Nascentes
O modo de interpretar a língua espanhola que coloca os “falsos amigos”
como uma das principais dificuldades de aquisição do espanhol por brasileiros –
imagem que já circulava no senso comum na década de 30
41
-, foi retratado e
reforçado por uma linha de estudos acadêmicos, principalmente a desenvolvida
por Antenor Nascentes nesse período. Cabe, então, vermos como esse autor
define esses vocábulos e que lugar dá ao léxico na aquisição do espanhol por
brasileiros. Para realizar essa tarefa, utilizamos o artigo Esbozo de comparación
del español con el portugués”, da antologia Estudos filológicos (1939), e a análise
feita por Celada (2000) a respeito da Gramática para uso dos brasileiros (1934).
Ao analisar a Introdução da Gramática de Nascentes, Celada (ibid.)
mostra como se cria, no interior dessa discursividade, a seqüência metonímica:
língua parecida – língua fácil – estudo superficial. Conseqüentemente, o brasileiro
encontraria apenas dificuldades muito pontuais, constituídas pelas poucas
diferenças, sendo que o restante será facilmente compreendido, como se observa
no comentário de Nascentes: “quem conhece o português, com facilidade lê e
41
Ao dizer, em sua Gramática para uso dos brasileiros (1934:4), que “o espanhol é parecidíssimo
com o português, como toda a gente sabe”, Antenor Nascentes toma uma idéia em circulação e a
utiliza como um recurso para conferir maior credibilidade ao rótulo de parecidíssimo” que dá ao
espanhol. Aceitando-se essa premissa, justificam-se os seus estudos sobre o espanhol, nos quais
focalizará as diferenças entre essa língua e o português, dentre as quais os chamados
heterosemánticos têm um lugar especial.
49
compreende o espanhol, sentirá, é verdade, algumas deficiências” (1934: 4, apud
Celada, 2000:16).
Partindo dessas idéias, no referido “Esbozo de comparación” (1939:97),
o autor compara o português e o espanhol com o objetivo de apontar as
diferenças, já que as semelhanças são muitas, inclusive sendo possível “haber
frases portuguesas perfectamente iguales a frases españolas” (ibid.: 97). O autor
se propõe a examinar as três divisões clássicas da gramática: o sistema fonético,
a morfologia e a sintaxe, que considera muito semelhantes ao português, mas em
diferentes graus. Na sintaxe, considerada a que menos diferenças apresenta, o
autor inclui o léxico, onde afirma existirem “algumas palavras muito interessantes”,
ao lado das muitas palavras iguais, como se vê na divisão que propõe:
a) algumas palavras muito diferentes – que convivem com as “muchísimas
palabras iguales” -, como por exemplo: esp. silla = port. cadeira (ibid.: 117);
b) palavras iguais com significado diferente, que exemplifica com esp. largo =
port. comprido (ibid.: 117);
c) palavras espanholas que “não são decentes em português”, como por
exemplo borrar, que apresentam, segundo o autor, o mesmo tipo de
especificidade que o grupo b (ibid.:117);
d) palavras que prolongam sua vida nas duas línguas com formas parecidas,
mas com significados diferentes, sendo que enquanto algumas se tornam
arcaicas em uma língua, outras mantêm sua vitalidade dentro da outra
(categoria similar às categorias b e c). Ex.: esp. escoba = port. vassoura /
esp. cepillo = port. escova (ibid.: 117-118);
e) palavras parônimas, que “dão lugar a piadas”, pois essas palavras da língua
estrangeira têm forma parecida a palavra(s) do português cujos sentidos
seriam estranhos ou absurdos nos contextos possíveis na língua estrangeira.
O exemplo que dá Nascentes é: esp. ciruelas = port. ameixa, porque pode
remeter à palavra “ceroulas” em português (ibid.:118).
50
Com exceção da primeira categoria, pode-se dizer que todas as outras
poderiam perfeitamente se encaixar na definição mais corrente hoje do que
convencionamos chamar “falsos amigos” em nossa pesquisa – “palavras
semelhantes na forma e/ou na pronúncia, mas com significados diferentes” –, já
que tanto as categorias de Nascentes como a maneira como se concebem essas
palavras em muitos estudos nos dia de hoje não levam em consideração a origem
dos vocábulos. Na divisão proposta por Nascentes, a diferença entre os itens b, c,
d e e parece estar nas conseqüências a que leva cada um deles, seja a confusão
ou incompreensão sugerida em b e d, ou o constrangimento em c, e o riso em e.
Na imagem de que tratamos, todas essas conseqüências são possíveis para as
palavras que aqui chamamos de “falsos amigos”
42
.
Nas considerações finais do artigo, o autor afirma que “muy lejos me
podrían llevar estas comparaciones” (1939:118) e considera que esses exemplos
mostram o quão interessante seria um profundo estudo comparativo dos
vocabulários das duas línguas. De todas as divisões clássicas da gramática, o
vocabulário – que inclui, em uma delas, a sintaxe - é a única em que o autor tece
algum tipo de comentário a respeito da importância de que se continuem as
pesquisas, além de, parece-nos, ser também a única parte em que o autor
considera sua descrição apenas uma ilustração de alguns casos e não um estudo
que esgote o tema, pois propõe que se faça um “largo y profundo estudio
comparativo” (ibid.: 118).
Como é possível notar pelo que expusemos, é ao léxico que se atribuiu
importância para a realização de um estudo comparativo devido às semelhanças
que ocultam diferenças e pelas conseqüências que isso causaria ao aprendiz.
Além disso, dentro do léxico, das cinco categorias apontadas, quatro poderiam ser
42
Na análise feita por Celada (2000:20) da Gramática para uso dos brasileiros, a pesquisadora
mostra que também nessa obra há um capítulo dedicado integralmente ao léxico, chamado
“Noções de semântica”. Partindo da mesma idéia de que o léxico do espanhol é muito parecido ao
do português, o autor classifica da seguinte forma os grupos divergentes que descrevemos: o
primeiro pertence ao de “heterónimos”, o segundo, o terceiro e o quarto dos “homónimos
heterosemánticos” e o último ao dos “parónimos”.
51
classificadas hoje como “falsos amigos”, o que revela o destaque que essas
palavras recebiam na obra de Nascentes.
III.2.2. O conceito de heterosemánticos no Manual de Idel Becker
O Manual de Español, de Idel Becker
43
, foi o primeiro manual para
ensino do espanhol produzido no Brasil e acabou por consagrar a interpretação
sobre a língua espanhola feita por Antenor Nascentes (1934/1939), já que surgiu
num período em que o espanhol se tornou disciplina obrigatória no ensino médio,
em 1942. Celada cita uma frase de Amaral (1995: 9, apud Celada & González,
2000: 21) que retrata bem a dimensão que alcançou o Manual de Becker: “quem
não estudou, na época com o professor Becker estudou, certamente, com seu
Manual de Español”. O manual, seguindo uma perspectiva contrastiva, também
faz a comparação entre o português e o espanhol, considerando as divisões
clássicas da gramática: fonética, morfologia e sintaxe
44
.
Na primeira parte do Manual, chamada “Gramática y Lecturas”, o autor
inclui as “Divergencias Léxicas”, divididas em heterográficos,
heterotónicos/heterofónicos, heterogenéricos e heterosemánticos. Becker define
as Divergencias Léxicas como:
“(…) las diferencias – grandes o pequeñas, y a veces sutiles – que existen entre
ciertos vocablos parecidos de ambos idiomas (español y portugués). Son voces
semejantes, morfológicamente, que divergen, sea en la ortografía, sea en la
prosodia, en el género, o en la significación” (1967:42).
Becker adverte que essas Divergencias léxicas são, sem dúvida, as
maiores dificuldades para que um brasileiro ou um português dominem, com
precisão, o castelhano – ou, para que um indivíduo de fala espanhola conheça a
fundo o idioma português. Em seguida, o autor parte para a definição de cada um
dos tipos de palavras divergentes nos dois idiomas e, ao tratar dos
43
Consultamos a sua 51ª edição, publicada em 1967, para esta análise.
44
Não faremos aqui uma análise da obra, mas apenas dos fragmentos em que o autor faz
referência aos heterosemánticos.
52
heterosemánticos, afirma que eles são “la parte más difícil, en el conocimiento
simultáneo de castellano y portugués” (Ibid.: 43), e os define como “vocablos de
semejanza gráfica, prosódica y, sobre todo, semántica – cuya identidad de sentido
(homologia) no se realiza” (ibid.: 43).
É interessante notar que Becker atribui a essas palavras uma
similaridade semântica; a divergência estaria, segundo ele, apenas em uma ou
outra acepção principal da palavra, o que “complicará y dificultará la cuestión”
(Ibid.: 43) – parece haver uma certeza disso -, já que, continua, nem sempre o
sentido da frase chamará a atenção sobre possíveis erros de tradução e
interpretação.
Da definição que o autor dá a esses heterosemánticos é possível
depreender dois aspectos desse conceito: não se fala da etimologia dessas
palavras e deixa-se transparecer a crença de identidade semântica (homologia)
para as palavras que não pertencem a esse grupo. Um dos exemplos desse tipo
de palavra
45
que Becker oferece aparece na frase “La sopa tenía um gusto
exquisito (o sea, excelente, sumamente delicioso)(Ibid.: 43).
De fato, as palavras esp. exquisito e port. “esquisito” apresentam uma
semelhança gráfica e prosódica. A semelhança semântica a que Becker faz
referência se dá nas acepções “delicioso, excelente” e “primoroso, refinado”, que
constam em dicionários de português e espanhol
46
para esses vocábulos.
Entretanto, é bem provável que a maioria dos falantes do português do Brasil, se
perguntados sobre os possíveis valores de “esquisito”, não cite nenhuma das duas
acepções comuns às duas línguas para os vocábulos, já que, historicamente, foi
45
Os outros dois são “Todavía no ha llegado” e “Una joven de cabello rubio”.
46
A palavra exquisito, no Diccionário de la Real Academia Española (1992), consta como “de
singular y extraordinaria calidad, primor o gusto en su espécie”; no Diccionario Bilingüe de Uso
(2003) como: “1. delicioso, excelente, divino; 2. Refinado, delicado”. A palavra do português
esquisito”, no Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa (1999): (do latim) “1. Não usual,
fora do comum; singular, raro. 2. Delicioso, excelente. 3. Bem acabado, primoroso. 4. Farm.
Extravagante, excêntrico. 5. Bisonho, rabugento, impertinente. 6. Bras. Feio, de má aparência.
S.m. Bras. Lugar ermo, deserto.” No Diccionario Bilingüe de Uso (2003), “esquisito” recebe apenas
o sentido de raro, extraño (é o mais usual).
53
selecionado um valor que poderia ser um antônimo para “delicioso” e “primoroso”.
A divergência existe porque essa acepção que se tornou mais freqüente – a de
“algo ou alguém estranho”, como se pode comprovar em um dicionário de uso –,
dentre os potenciais valores de “esquisito”, não existe e provavelmente nunca
existiu em espanhol. Portanto, essa semelhança semântica que Becker propõe
para essas palavras em muitos casos pode ter sido apagada em uma das línguas
por seus falantes.
Também vale notar que, no “Apéndice Gramatical” (1967:85-86), o
autor disponibiliza uma lista de heterosemánticos, procedimento que talvez tenha
iniciado a tradição de se elaborar listas dessas palavras.
III.2.3. Linguistics Across Cultures (Robert Lado, 1957)
47
Essa obra de Lado (1972), como vimos, continuou o postulado de C.
Fries (1945) de que as línguas – a língua materna do aprendiz e a língua
estrangeira a ser estudada - deveriam ser comparadas, já que tal procedimento
permitiria a preparação de materiais e técnicas mais apropriadas ao ensino. Nessa
obra, que se tornou um clássico dos estudos contrastivos, ao menos em sua
versão forte, o autor fornece um modelo de comparação de línguas, que deve ser
feita nos níveis fonológico, gramatical, lexical, de escrita e cultural. Nesta parte de
nosso trabalho, abordaremos apenas os pontos que tratem da questão do
vocabulário nas duas línguas.
É bem interessante um comentário de Lado, ao citar E. Sapir
(1921:234, apud Lado, 1972:106), que adverte que o estudante de lingüística não
deveria nunca cometer o erro de identificar uma língua com seu dicionário, ou
seja, confundir uma língua com uma lista de palavras. Apesar da advertência
tomada de Sapir, Lado procede a uma supervalorização do léxico posteriormente,
quando afirma que é nas diferenças lexicais, responsáveis por grande parte das
47
Para a análise dessa obra, basear-nos-emos predominantemente na sua edição brasileira
(1972); no entanto, ao tratar especificamente das definições dadas aos “falsos amigos”,
recorremos, quando julgarmos necessário, à edição espanhola (1973).
54
dificuldades de aprendizagem de línguas estrangeiras, onde o aprendiz deve
concentrar o estudo.
Dos três aspectos das palavras que Lado afirma focalizar - sua forma,
seu significado e sua distribuição – cabe reproduzir algumas reflexões sobre o
segundo. O autor afirma ser uma grande ilusão pensar que os significados são os
mesmos em todas as línguas, que elas se diferenciam apenas nas formas que
empregam para expressar esses significados (1972:109):
“Na verdade, os sentidos em que classificamos nossa experiência são determinados
ou modificados culturalmente e variam consideravelmente de uma cultura a outra.
Alguns sentidos encontrados em uma cultura podem não existir em outra”.
Vale ressaltar que, embora a Análise Contrastiva fosse estritamente
centrada na competência gramatical, já se vê aí uma percepção de que há
elementos extralingüísticos que participam na formação do sentido e que,
portanto, não é possível pensar que as palavras sejam simples nomes para
objetos, fenômenos, etc. que são sempre idênticos e possuem os mesmos valores
em todas as sociedades; em síntese, Lado pelo menos já deixa clara a relação
importante que há entre sentido e cultura e que a língua não é uma simples
nomenclatura.
No entanto, novamente cabe advertir que, o fato de que Lado coloque o
foco das diferenças semânticas nas palavras que, como veremos, chama de
“falsos cognatos”, representa uma consideração parcial das idéias acima
relatadas, já que ele parece considerar – ao menos é o que se pode depreender
da leitura - que essa significação diferente pode surgir apenas nesse grupo de
vocábulos. Ao tratar da importância da comparação sistemática de línguas e
culturas para a elaboração de exames de vocabulário, Lado (Ibid:20) fala na
existência de palavras na língua estrangeira que são fáceis porque se parecem às
palavras do idioma nativo, enquanto outras oferecem vários tipos de dificuldades
por diferir desta língua de vários modos. Ao afirmar que as palavras semelhantes
serão fáceis para o aprendiz, o autor parece supor uma homologia para essa parte
do léxico, segundo a qual culturas diferentes definiriam valores idênticos para
55
essas palavras. Apesar disso, é necessário ter em conta que suas reflexões estão
em conformidade com o modelo lingüístico estruturalista que está por trás de seu
pensamento, modelo esse vigente na época.
Ao estabelecer o que chama de “Padrões de dificuldade” do
vocabulário (Ibid.:115), Lado afirma que a semelhança ou a diferença que a língua
estrangeira possa ter frente à língua materna do aprendiz quanto à forma,
significado e distribuição gramatical determinará a facilidade ou a dificuldade em
adquirir o vocabulário do idioma estrangeiro
48
. Partindo da comparação do
vocabulário das línguas envolvidas, Lado (Ibid.) propõe a divisão do léxico em sete
tipos de palavras
49
, para as quais prevê o nível geral de dificuldade, classificando-
os como fácil, normal e difícil
50
. Os termos “semelhante” ou “parecido”, utilizados
nas categorias estabelecidas, são atribuídos por Lado a palavras que funcionariam
como “a mesma” nas duas línguas, no uso corrente; seriam, portanto, passíveis de
transferência da língua materna do aprendiz, embora anteriormente o próprio
pesquisador tivesse se referido à impossibilidade de identidade semântica
completa entre línguas
51
.
Desses sete grupos de palavras que Lado propõe, vamos nos deter
apenas nos grupos (1) e (2), já que o objetivo desta parte de nossa pesquisa é
48
Cabe lembrar que a Análise Contrastiva de Lado se insere dentro de um modelo
comportamentalista de aprendizagem de línguas e que o foco, neste caso, está no lingüístico e não
no aprendiz, como o farão outros modelos que se colocam o problema da aquisição de línguas
estrangeiras.
49
Os sete tipos de palavras são: (1) parecidas na forma e no significado; (2) parecidas na forma
mas diferentes no significado; (3) parecidas no significado mas diferentes na forma; (4) diferentes
na forma e no significado; (5) diferentes no seu tipo de construção; (6) parecidas em seu
significado primário mas diferentes em suas conotações e (7) parecidas no significado mas com
restrições quanto à distribuição geográfica. Para mais detalhes das categorias propostas por Lado
para o vocabulário, veja-se 1972:87-95.
50
Note-se que o critério de facilidade ou dificuldade é totalmente lingüístico, já que se baseia nas
diferenças ou semelhanças que as palavras de uma língua têm em relação a outra.
51
É interessante notar que se reiteram no texto algumas contradições. Embora o autor reconheça
que não se pode ver a língua como um dicionário, acaba por atribuir as maiores dificuldades e,
portanto, necessidade de estudo, às palavras parecidas na forma, mas diferentes no significado,
ou seja, ao âmbito lexical. Neste ponto, apesar das advertências iniciais de que não há uma
identidade completa de significados entre as línguas, já que culturas diferentes poderiam
determinar valores diferentes para as palavras, admite a existência de palavras que funcionariam
como “as mesmas”.
56
tratar dos conceitos que se relacionam aos “falsos amigos” na obra de Lado. Além
disso, acreditamos que esses dois grupos se assemelham aos dois pólos da
imagem a que nos dedicamos: o pólo da facilidade – as palavras semelhantes na
forma e nos valores – e o pólo da dificuldade – as palavras de formas parecidas,
mas que possuem valores diferentes. Para tratar dessas duas categorias de
palavras, consultamos duas traduções
52
do original em inglês Linguistics Across
Cultures (1957): uma em espanhol (1973), outra em português do Brasil (1972).
Seguiremos a edição brasileira, mas faremos referência a divergências
importantes entre os dois exemplares.
Na versão espanhola do livro, a primeira categoria recebeu o nome de
palabras similares en cuanto a forma y significado(1973:89), enquanto no texto
brasileiro o nome dado foi o de “cognatos (1972:115). As duas edições contam
com notas de rodapé que coincidem em alertar que a origem dessas palavras não
será considerada; apenas observarão se as palavras possuem semelhança de
forma e significado, o que será suficiente para colocá-las nesta categoria. A edição
brasileira se estende um pouco mais nesses comentários, trazendo o que define
como o “sentido comum” do termo – “aparentado em origem” - e explicitando seus
critérios classificação:
“(...) mesmo se duas palavras não forem aparentadas na origem, serão chamadas
cognatos se forem semelhantes em forma e sentido. Da mesma maneira, não serão
consideradas cognatos para nossos objetivos duas palavras que tiverem a mesma
origem mas forem agora tão diferentes que os falantes das suas línguas não as
identifiquem como semelhantes” (Lado, 1972:115).
A exclusão da etimologia dos vocábulos é, portanto, intencional,
promovendo uma redução do conceito de cognatos. Lado ressalta que,
independentemente da causa que levou a essa semelhança formal e semântica
das palavras em duas línguas, esse grupo normalmente constitui o de menor
52
São elas: LADO, R. Lingüística Contrastiva Lenguas y Culturas. Madrid: Ediciones Alcalá, 1973 e
LADO, R. Introdução à Lingüística Aplicada. Petrópolis: Vozes, 1972.
57
dificuldade e, portanto, são fáceis para o aprendiz, sendo compreendidas mesmo
por aqueles que nunca estudaram o idioma estrangeiro (1972:116).
O segundo grupo de palavras a que se refere Lado é o dos chamados
“Falsos Cognatos” (1972:116), na tradução ao português, e das falsas palabras
similares (1973:90), no texto espanhol. Ambos os definem como “palavras que
são semelhantes na forma, mas que diferem em relação ao significado”.
Novamente as duas edições trazem uma nota de rodapé em que advertem que o
termo usado leva em consideração somente a semelhança formal e diferença
semântica, ou seja, a discussão a respeito da origem das palavras é excluída
(1972:116-117/ 1973:90). Para esse conceito, a edição brasileira também é mais
extensa nos comentários, já que traz a definição da “terminologia lingüística
comum” para esses vocábulos: “palavras em duas línguas que, embora possam
parecer, por sua forma, aparentadas na origem, não apresentam esse tipo de
relacionamento” (ibid.:116-117). Na escala de dificuldades, essas palavras foram
rotuladas como difíceis:
“As palavras que são semelhantes na forma mas diferentes no sentido – a que
demos o nome de falsos cognatos – constituem um grupo especial situado bem alto
na escala de dificuldade. Daremos a essas palavras o rótulo de difíceis. (…) São
armadilhas infalíveis.”(id., 1972:117-118) (o grifo é nosso).
Como se vê, Lado considera esse grupo de palavras um dos elementos
mais difíceis para a aprendizagem de línguas estrangeiras, e adverte para as
“armadilhas infalíveis” que elas impõem ao aprendiz
53
.
Um último comentário parece-nos importante. A classificação que
propõe Lado nos faz ver com mais facilidade como a língua acaba por ser
reduzida ao seu léxico, e o próprio vocabulário da língua se reduz a uma
53
Note-se que essas palavras, nas três obras discutidas até o momento - as quais supomos ter
grande vínculo com a imagem que analisamos neste trabalho –, têm sempre um papel central: na
obra de Nascentes (1939), elas são as únicas a que o autor atribui interesse de estudo; em Becker
(1967), são “la parte más difícil, en el conocimiento simultáneo de castellano y portugués” e agora
Lado (1972) lhes atribui o rótulo de “difíceis”. A semelhança entre o imaginário do brasileiro a
respeito do espanhol – e do que é necessário para aprendê-lo – e a visão desses autores é
imensa.
58
categoria, a que Lado chama de “falsos cognatos”. Embora seu livro traga
instrumentos para que se faça a comparação da língua como um todo
54
, pode-se
dizer que é no nível lexical, no qual justamente apareceriam mais claramente as
diferenças culturais a que se refere, e mais especificamente nesses “falsos
cognatos”, onde o autor situa as dificuldades do aprendiz, pois é aí onde estariam
as maiores diferenças. Conseqüentemente, para esse modelo, é nesse conteúdo
que o professor e o aprendiz devem manter o foco, já que o restante do léxico – e
até mesmo da língua – seria muito parecido à sua língua materna, portanto
passível de transferência positiva.
III.3. Tendência predominante atualmente da aplicação desses conceitos em
pesquisas sobre a aprendizagem do e/le
Buscaremos estabelecer algumas regularidades para o uso atualmente
mais freqüente desses conceitos nesse âmbito. Para isso, consultamos alguns
trabalhos que nos parecem ilustrar bem essa tendência
55
.
III.3.1. Uma dissertação de Mestrado
A dissertação de Mestrado que consultamos se titula “Falsos Cognatos
em Português e Espanhol”, de Miriam Serey Leiva (1994). No resumo
56
do
trabalho, a autora apresenta o que chama de “uma definição sucinta de falsos
cognatos”: palavras de “formas idênticas ou muito semelhantes nas duas línguas,
porém, com sentido diverso”. Tal definição não inclui a questão da origem
diferente dos vocábulos, a qual será abordada no momento em que Leiva propõe
uma classificação para essas palavras, divididas em quatro classes diferentes de
acordo com a sua etimologia.
54
Lado propõe a comparação dos sistemas de som, das estruturas gramaticais, dos sistemas de
escrita, das culturas e do vocabulário das línguas.
55
Em todos os trabalhos a que faremos referência neste capítulo, verificaremos apenas como os
conceitos que interessam à nossa pesquisa são utilizados e, quando possível, analisaremos
também o papel que se atribui ao léxico em cada um deles. Portanto, não realizaremos uma
análise completa desses trabalhos.
56
A página em que está o resumo da dissertação não apresenta numeração.
59
A autora se propõe a discorrer sobre diferenças lexicais entre o
português e o espanhol; para isso conta com uma parte experimental, em que
coleta dados de três sujeitos falantes nativos de espanhol e aprendizes de
português como segunda língua com o fim de verificar a ocorrência de “falsos
cognatos” na comunicação do cotidiano. No resumo e depois no decorrer do texto,
Leiva parece identificar o conceito de “falsos cognatos” com os erros causados
pelo mau uso dessas palavras, como se vê na afirmação “coletamos dados (...) a
fim de verificar a ocorrência de ‘falsos cognatos’ na comunicação do dia-a-dia. (...)
Esses ‘falsos amigos’ foram tratados como casos de interferência tanto da
primeira língua na segunda, quanto da segunda na primeira.” Ou seja, um conceito
lingüístico passa a estar intimamente associado ao erro na produção do aprendiz.
Ainda no resumo, Leiva afirma ser necessário:
“(...) dedicar um tempo maior, em aprendizagem formal, a esses ‘falsos cognatos’,
muito usados na fala, a fim de resolver certos problemas, na conversação, surgidos
via interferência, de uma língua na outra, a nível semântico”.
Claramente, a autora afirma que, dedicando-se mais tempo a esse tipo
de palavras durante o estudo formal, serão resolvidos esses que são verdadeiros
problemas para uma comunicação de sucesso.
A pesquisa parte do pressuposto de grande semelhança entre o
espanhol e o português, o que possibilitaria transferências positivas, mais do que
no caso de falantes de línguas distantes (ibid.:5). Para que a transferência
aconteça, continua, com base nas idéias de Wode (1984, apud Leiva, 1994), basta
que as estruturas da língua materna e da língua estrangeira apresentem uma
certa similaridade tipológica, desconsiderando outros elementos que possam
participar dos fenômenos de transferência. Embora advirta que as semelhanças
também podem gerar interferência (ibid.: 6), a autora centra seu trabalho em uma
das diferenças entre o espanhol e o português:
“(...) uma classe especial de palavras que gera interferências de uma língua na outra,
dificultando a comunicação. Essas palavras se incluem nos 6% de diferenças lexicais
entre essas línguas e se denominam ‘falsos cognatos’.”
60
Como se nota, os “falsos cognatos” aparecem como um dos integrantes
desse pequeno grupo de diferenças lexicais entre as línguas portuguesa e
espanhola, que levam à interferência de uma língua na outra.
Mais adiante, a pesquisadora cita a afirmação de Richman (1965:89-
115, apud Leiva, 1994:8) de que mais de 90% das palavras entre o espanhol e o
português são iguais, sendo 60% de cognatos idênticos (port. casa; esp. casa) e
mais ou menos 30% de cognatos não idênticos (port. dente; esp. diente), devido
ao fato de serem as línguas românicas mais próximas. O critério dessa estatística
parece ser predominantemente formal, já que mesmo as raízes comuns não
garantem significação comum.
O modelo teórico de aprendizagem de línguas estrangeiras que
permeia todo o trabalho parece ser o da Análise Contrastiva em sua versão forte,
como fica evidente na afirmação de Leiva de que esse léxico muito semelhante
permitiria ao aprendiz transferir mais e aprender menos, afirmação essa que se
apóia em Carl James (apud Robinett & Schachter, 1990:96-97).
Após explicitar o ponto de vista do processo de aquisição de que
partirá, a pesquisadora revela a importância do objeto de seu trabalho - a minoria
de palavras aparentemente coincidentes que apresentam diferenças de significado
-, pois são pontos divergentes nas duas línguas em questão, os quais o estudante
deverá aprender e não transferir:
“Enquanto os falantes de línguas distantes (provenientes de uma cultura distante,
como os orientais) tentam entender a cultura brasileira e aprender a língua, os
falantes de espanhol só se preocupam com as diferenças
existentes entre sua língua
e sua cultura e a L2 e a cultura 2 (que não são tão amplas) (...). Assim, as
transferências se dão a nível lingüístico e cultural exatamente porque as
semelhanças entre o português e o espanhol são muito grandes.” (ibid.:13) (o grifo é
nosso).
A sinonímia entre “falsos cognatos” e “falsos amigos” também aparece
na pesquisa, já que esses conceitos se alternam, apesar da referência aos autores
do segundo conceito:
61
“No entanto, existem também as pequenas diferenças. Neste trabalho, trataremos de
uma delas: os falsos cognatos ou ‘falsos amigos’, como forma denominados por
Maxime Koessler e Jules Derocquigni, em 1928 (apud Downes, 1984).” (ibd.:13)
No Capítulo II, Leiva examina definições do termo “falso cognato” na
literatura e, em seguida, apresenta uma classificação para essas palavras
57
distinta das definições encontradas em seu levantamento, que será a que seguirá
em seu trabalho. Para cumprir o primeiro objetivo, a autora consulta vários
dicionários
58
e encontra em todos “palavras cognatas” como “palavras que têm
radical comum”, e apenas em um deles
59
encontrou “falsos cognatos”, com a
seguinte definição: “a word which has the same or very similar form in two
languages, but different meaning in each, que não faz nenhuma referência à
etimologia das palavras (Richards, 1985, apud Leiva, 1994:14). A autora segue
seu percurso por definições para o conceito de “falsos cognatos” e os resume
como “(...) interferências de uma língua na outra, a nível semântico, já que o
aprendiz usa essas palavras, na L2, com o significado que têm na L1, dificultando
a comunicação” (ibid.:15). Nessa definição, novamente, o termo “falsos cognatos”
designa os erros a que essas palavras podem levar.
57
As quatro categorias propostas por Leiva (1994:17-19) em sua dissertação de mestrado são as
seguintes: 1) Duas formações baseadas em duas palavras latinas diferentes, porém com radicais
idênticos. (ex.: esp. vaso < vas, vasis = utensílio de cozinha e port. vaso < vasum, i = vaso; navio;
veia; recipiente; vasilha). Hoje esp. vaso significa “copo” e o port. “vaso” significa recipiente para
plantas ou flores e vaso sanitário; 2) Uma única palavra de origem: as duas línguas conservam o
significado original, e ambas (ou uma delas) acrescentam um ou mais significados ou estreitam seu
campo semântico. (ex.: esp. exquisito/port. esquisito, do latim<esquisitus, a, um = aurado,
escolhido, distinto, elegante, excelente, requintado). Hoje esp. exquisito: distinto, elegante;
gostoso; raro, fino. / port. “esquisito”: raro, fino; por extensão, passou a “estranho”; 3) Uma única
palavra de origem com um ou mais significados, que são conservados por uma das duas línguas.
A outra conserva apenas um dos significados originais ou nenhum (e pode até criar, mais tarde,
um outro termo para suprir a falta do (s) outro(s). (ex. esp. sugestión/port. sugestão, do latim
<suggero, suggestionis = ação de contruir; adição sucessiva; pôr debaixo, levar, trazer debaixo;
fornecer; proporcionar, sugerir). Hoje esp.sugestión significa: indução hipnótica e port. “sugestão”:
proposta; insinuação; indução hipnótica; 4) Duas palavras semelhantes (ou idênticas), porém de
origem e significado diferentes. (ex. esp. rato, do latim<raptus, us = rapto; figurado, instante e port.
rato, do grego<ratte). Hoje esp. rato significa instante, momento e o port. “rato” significa mamífero
roedor.
58
A autora cita os dicionários Oxford (1987), Webster (1963), Aurélio (1975), a Enciclopédia
Britânica (não há referência no trabalho) e o Dicionário de Lingüística (1980) de David Crystal.
59
RICHARDS, J. et al. “Longman Dictionary of Aplied Linguistics”. Essex-England: Longman,
1985:103.
62
Leiva expõe, então, uma definição lingüística para “falsos cognatos” que
coincide com a definição que Koessler & Derocquigny (1928 apud Mounin,1974),
por sua vez, atribuem ao conceito que cunharam de “falsos amigos”, pois alude a
vocábulos de origem comum que se distanciam com o tempo:
“(...) são formas lingüísticas que pertencem a duas línguas cognatas, que
historicamente têm uma fonte comum, mas que tomaram caminhos diferentes na sua
evolução.” (ibid.: 15)
Leiva considera esse conceito de “falsos cognatos” insuficiente por não
incluir um grupo que intitula “Falsos Cognatos Acidentais” – do conceito de
“accidental cognates, de Rosa Nash (não se cita o ano) para o englañol
60
palavras que não têm uma fonte comum, mas são semelhantes ou iguais em sua
forma “e podem causar o mesmo tipo de mal entendido que o outro grupo de
falsos cognatos” (ibid.:16-17). Assim, a pesquisadora distingue “Falsos Cognatos
Propriamente Ditos”, aqueles que têm uma fonte comum, e como “Falsos
Cognatos Acidentais”, aqueles que não têm uma fonte comum, mas que também
são iguais ou semelhantes em sua forma ortográfica e/ou fonológica e que
possuem significados diferentes
61
. Apesar da divisão que propõe entre “Falsos
Cognatos Propriamente Ditos” e “Falsos Cognatos Acidentais”, a autora acaba por
chamar a categoria 1 de sua classificação (ver nota 59) de “Falsos Cognatos
Propriamente Ditos”, quando parecem ser, dentro da terminologia que propõe,
“Falsos Cognatos Acidentais”, já que se originam em “duas palavras latinas
diferentes” (ibid.:19).
Na Conclusão, Leiva reitera a idéia de que os “falsos cognatos” podem
ser “falsos amigos” ou “palavras amigas-da-onça” – esta, uma definição de
Downes (1984, apud Leiva, ibid.:133) -, porque:
60
Interlíngua resultante da mescla entre o inglês e o espanhol.
61
Pelo levantamento que fizemos das possíveis definições originais dos conceitos de “falsos
amigos”, “falsos cognatos” e “heterosemánticos”, os “Falsos Cognatos Propriamente Ditos” seriam
“Falsos Amigos” e os “Falsos Cognatos Acidentais” seriam “Falsos Cognatos”. Se fosse mantida a
distinção que supomos ser a original, talvez não fosse necessário criar novas terminologias.
63
“(...) não passam despercebidos e causam problemas de mal-entendidos, situações
embaraçosas e/ou hilariantes, apesar de não impedirem a comunicação. Daí, ocorre,
então, a necessidade de lhes dar maior importância, dedicando-lhes um tempo maior
na aprendizagem formal, do português ou do espanhol, como segundas línguas.”
(ibid.:133)
O que de pode depreender de sua pesquisa é que a parte do léxico – e
talvez da língua – que exigiria maior estudo formal seria, portanto, a constituída
por essas palavras, devido aos temidos mal-entendidos e situações embaraçosas
que podem originar. Além disso, a autora, ao associar situações hilárias e/ou
constrangedoras a esse léxico, as quais “denunciariam” que houve um mal-
entendido, afirma que os “falsos amigos” não passam despercebidos, já que os
sujeitos envolvidos na interlocução sempre se dariam conta quando o que se disse
adquiriu na sua fala sentidos diferentes do que pensou atribuir-lhe.
III.3.2. Um artigo científico
Um exemplo de artigo científico que trata dos que chamamos “falsos
amigos” se titula “Consideraciones sobre algunos vocablos heterosemánticos del
español en relación con el portugués(2000)
62
, que figurou, no evento em que foi
apresentado, entre trabalhos que tratavam de “Tópicos de gramática no ensino de
espanhol a brasileiros”. Nesse artigo, Rocha e Durão (2000) propõem esboçar “el
trayecto evolutivo de heterosemánticos de una lengua con respecto a la otra”, por
meio de pesquisa em dicionários etimológicos de espanhol e de português
(2000:104).
No início do texto, ao indicar uma das dificuldades dos estudantes
brasileiros de língua espanhola, os “falsos cognatos ou falsos amigos” (ibid.:104),
as autoras estabelecem uma sinonímia no uso desses termos. Em seguida,
62
Esse trabalho foi apresentado por Flordiniz Meira Rocha e Adja Balbino de Amorim Barbieri
Durão no evento “II Jornadas de Estudos Hispânicos: Problemas de Ensino/Aprendizagem de
Brasileiros Estudantes de Espanhol”, realizado em 1999 na Universidade Estadual de Londrina.
64
apresentam uma definição para “falsos cognatos” que, em função da sinonímia
proposta no início do artigo, abarcaria também os “falsos amigos”:
“(…) aquellas palabras que en un primer momento, parecen fáciles de comprender y
traducir, por la semejanza ortográfica y/o fónica
. Pero, la verdad es que no siempre
tienen el mismo significado en la lengua 1 y en la lengua 2” (ibid.) (o grifo é nosso).
Comparada à definição do conceito de “falso cognato” de nosso
levantamento, a que propõem as autoras se diferenciaria por não fazer alusão à
questão da origem dessas palavras. Mais adiante, ao citar uma diferenciação
estabelecida por Chuquet e Paillard (não se oferece a referência completa) dos
tipos de “falsos cognatos”, a sinonímia ressurge, já que Rocha e Durão acabam
por apresentar dois tipos de “falsos amigos”: os “falsos amigos parciales”, que
apresentam algum significado comum, e os “falsos amigos totales”, que não
compartilham nenhum significado comum (ibid.:104-105).
Posteriormente, a referência à origem dos vocábulos surge com o termo
“falsos cognatos totales”, em que as autoras citam a definição de Henriques
(1995:71-81, apud Rocha e Durão, 2000:105) de que esses vocábulos podem ter
formação baseada na mesma origem (latim, grego, etc.) ou em origens diferentes.
Veja-se que agora “falsos amigos” são substituídos por “falsos cognatos”; os
conceitos se alternam no texto corroborando a sinonímia instaurada em seu inicio,
além de admitirem mesma etimologia ou etimologias diferentes
63
.
Para proceder à análise do trajeto evolutivo de alguns
heterosemánticos
64
, as autoras se baseiam numa divisão de quatro categorias
básicas para essas palavras, apresentada por Leiva e Henriques
65
(1995, apud
63
Veja-se que este artigo não recorre à distinção dos termos que expusemos no subitem III.1.
64
Além das referências a “falsos cognatos” e “falsos amigos” como termos equivalentes no
decorrer do texto, as autoras utilizam outro conceito no título e no resumo do artigo, o de
heterosemántico”, estabelecendo a cadeia sinonímica: falso cognato = falso amigo =
heterossemântico.
65
Trata-se da mesma classificação que Leiva (1994) propõe em sua dissertação de Mestrado,
classificação essa descrita na nota 57 de nosso trabalho. Ocorre que, na dissertação, Leiva (1994)
propõe essa divisão para “falsos cognatos”; no trabalho de que tratamos agora, essas categorias
são utilizadas para os “falsos amigos”.
65
Rocha e Durão, 2000:105), divisão essa que observa a substituição ou
conservação do significado da palavra original (ou palavras originais, poderíamos
acrescentar, já que Rocha e Durão admitem palavras que tenham ou não mesma
origem). Consultando dicionários etimológicos, Rocha e Durão (ibid.) analisam a
evolução semântica de exemplos de palavras das quatro categorias, sendo que
dois desses grupos se dedicam a vocábulos de mesma raiz e os outros dois a
vocábulos de origem diferente
66
.
Se confrontarmos essa classificação com o levantamento que fizemos
das possíveis definições dos conceitos, seria possível dizer que as categorias 1 e
4 (que são muito semelhantes entre si) seriam “falsos cognatos”, pois supõem que
a origem dos vocábulos seja diferente, e as 2 e 3 (também muito semelhantes)
seriam “falsos amigos”, por se tratar de palavras de mesma origem. Novamente
vemos que a distinção original de “falsos cognatos”/”falsos amigos” parece ser
produtiva quando se opta por trabalhar com o léxico nessa linha, o que evitaria a
necessidade de elaborar novas classificação para essas palavras, caso o que se
deseje seja diferenciar palavras de mesma origem ou não.
Ao concluir o trabalho, as autoras expõem a imagem da língua
espanhola que norteia seu trabalho:
“Al considerar el gran parecido léxico existente entre el portugués y el español, se
subraya la importancia que los ‘falsos cognados’ adquieren exigiendo una atención
especial en el proceso de adquisición de la lengua 2 sobre todo cuando se tiene por
lengua materna un idioma tipológicamente próximo a esa lengua que se estudia. Es
fundamental crearse una conciencia lingüística para no caer en la trampa de lo que
los estudiosos llaman ‘falsos amigos’, esto es, de esos vocablos tan aparentemente
iguales y a veces tan lejanos semánticamente” (id.ibid.:109).
66
No trabalho de Rocha e Durão, a primeira categoria, embora baseada na classificação proposta
por Leiva (1994), recebe definição diferente: “vocablos basados en dos palabras latinas distintas,
pero com radicales distintos
(grifo nosso) (Rocha & Durão, 2000:105-106). Como vimos, Leiva
(1994) a define como “duas formações baseadas em duas palavras latinas diferentes, porém com
radicais idênticos
” (o grifo é nosso) (ibid.:17). Como os exemplos utilizados por Rocha e Durão
(ex.port. doce/esp. doce) cabem na definição de Leiva, supomos que tenha havido um problema de
digitação.
66
A premissa de que os vocábulos em espanhol e em português são
muito semelhantes – graças à tipologia próxima dessas duas línguas – e que o
que, nesse momento, as autoras chamam de “falsos cognatos” requerem uma
atenção especial é a que rege o trabalho. Para controlar essa parcela distinta do
léxico, propõe-se a criação de uma consciência lingüística por parte do aprendiz, o
evitaria que ele caia nas “armadilhas” que essas palavras representam para
falantes de línguas tipologicamente próximas.
III.3.3. Guia para Estudantes Brasileiros de Espanhol
Retratar os “falsos amigos” também é uma preocupação constante de
materiais destinados ao estudante brasileiro de espanhol ou ao grande público
consumidor, sobretudo aquele que viaja para países de língua espanhola. A
maioria desses materiais parte de uma abordagem contrastiva tradicional dessas
duas línguas, que se baseiam na descrição das escassas diferenças que essa
linha teórica prevê para o espanhol e o português. Muitos desses trabalhos
dedicam grande espaço às divergências/dificuldades do âmbito léxical, em sua
maioria representadas pelos “falsos amigos”.
Tomaremos como exemplo desse tipo de material o Guia do Espanhol
para Quem Só Fala Portunhol
67
, de Sandra Di Lullo Arias (1998). Na apresentação
do guia, a autora faz alusão ao comportamento que o brasileiro, em geral, tem
diante do espanhol devido à facilidade que a semelhança entre as duas línguas
provoca. Essa semelhança, segundo a autora, facilita a compreensão e a
comunicação, “mesmo quando não se tem pleno domínio da língua estrangeira”
(ibid.:IX), o que faz com que o brasileiro se sinta à vontade para utilizar o
espanhol, mesmo que não o tenha estudado. Essa tentativa de comunicação,
67
É interessante notar como o próprio título do Guia já indica o público que pretende atingir:
pessoas que tentam usar o espanhol - embora não o tenham estudado - e que vêem nesses
materiais a chave para solucionar os eventuais problemas que possam ter para comunicar-se.
Muitos desses manuais feitos para turistas deixam transparecer uma orientação muito mais prática
que reflexiva e, em função disso, muitas vezes acabam por reproduzir idéias do senso comum.
67
segundo Arias, recebeu o “apelido carinhoso” de “portunhol”, devido à mistura das
línguas.
Ainda na “Apresentação”, a autora afirma que o erro é algo “natural ao
portunhol” e que seus falantes normalmente não possuem a consciência de que
“estão se arriscando num terreno repleto de armadilhas” (ibid.:X), já que não
sabem onde é mais fácil errar. Esses equívocos poderiam ser causados por
palavras de gênero ou sílaba tônica diferentes nas duas línguas, por diferentes
usos de tempos verbais semelhantes nos dois idiomas, entre outros. No entanto,
mais da metade do livro é dedicada ao “caso de palavras que possuem o mesmo
significante mas significados diversos em cada um dos idiomas” (ibid.:X), como
por exemplo esp. rato/port. rato. Essas palavras, devido à sua semelhança
fonética ou gráfica e aos seus significados diversos, podem provocar a ocorrência
de “ruídos na comunicação capazes de gerar belas confusões” (ibid.:X).
Com o intuito de “contribuir para o aprendizado do espanhol de forma
simples, divertida e didática” (ibid.: XI) – observe-se como o discurso da autora
procura adequar-se às expectativas mais comuns do público não especializado-,
como informa na “Apresentação”, Arias (1998) dedica grande parte do Guia a
fazer uma coletânea dessas palavras que são dotadas de significados diferentes
em espanhol e português, apesar da semelhança do significante. Segundo Arias,
a coletânea conta com uma apresentação das palavras de forma “lúdica”,
ilustrando cada vocábulo com situações que mostram “a dissonância gerada pelo
uso inadequado ou mal compreendido do vocábulo” (ibid.:X).
Como se vê, esse tipo de palavras que são verdadeiras “armadilhas”
são tidas como um dos problemas centrais para o aprendiz brasileiro de espanhol
e para aqueles que, graças à semelhança e facilidade entre essa língua e o
português, tentam falá-la sem tê-la aprendido, o que se comprova pelo destaque
que esses vocábulos receberam nessa publicação em relação a outras questões.
Ao ler o Guia, ficamos com a impressão de que exclusivamente essas
“palavras que possuem o mesmo significante mas significados diversos em cada
68
um dos idiomas” (ibid.:X) podem ocultar sob a semelhança formal valores
diferentes, já que não há qualquer menção às palavras “semelhantes” ou “iguais”.
A elaboração de uma coletânea que agrupa em uma lista esse tipo de palavras,
que poderia ser consultada e/ou estudada, funciona como uma espécie de
precaução que o aprendiz e o falante acidental podem tomar para terem sucesso
na comunicação. É interessante notar também como se costuma atribuir a essas
palavras algo de diversão, como uma espécie de jogo de adivinhação, sempre
com efeitos cômicos.
A parte do Guia destinada a essas palavras recebe o título de “Parece
mas não é” (ibid.:7), o que demonstra a associação desse vocábulo ao mal-
entendido, onde “os adeptos do portunhol dão suas boas escorregadelas” (ibid.:7),
já que supõem saber, quando na realidade não sabem. Portanto, essa “(...) série
de palavras que são iguais em espanhol e em português e, no entanto, significam
coisas bastante diferentes” (ibid.:8) está indissociavelmente atrelada ao equívoco.
Por último, notamos que Arias não faz uso de nenhuma das
terminologias comumente atribuídas a esse tipo de palavra, o que deixa ainda
mais claro o público que a autora quer atingir, que não é, certamente, o de
especialistas nem de lingüistas, nem mesmo prioritariamente o de alunos de E/LE.
III.3.4. Um dicionário de “falsos amigos”
Outro material dedicado a esse tipo de palavra é o Diccionario de
Falsos Amigos
68
, elaborado por Balbina Lorenzo Feijóo Hoyos, com a colaboração
de Rafael Eugenio Hoyos Andrade. Esse dicionário é resultado de uma pesquisa
em grupo orientada pela autora do material e executada por um grupo estudantes
68
Utilizamos para esta análise a versão aumentada e corrigida desse dicionário, publicada em
1998. Conforme ressalta o Assessor Técnico Lingüístico da “Consejería de Educación de la
Embajada de Espana en Brasil”, Miguel Angel Valmaseda Regueiro, na parte de “Apresentação” do
dicionário, a primeira versão deste dicionário - que está totalmente esgotada – foi publicada pela
própria “Consejería”; já a segunda, faz parte da edição do livro Planet@, Libro de Referencia
Gramatical, publicado pela Editora EDELSA. Tanto o fato de que a primeira edição esteja
esgotada, como a combinação desse dicionário a um material dedicado ao ensino do espanhol
como língua estrangeira revela o grande interesse que os “falsos amigos” despertam nos
aprendizes brasileiros dessa língua estrangeira.
69
bolsistas do CNPq. Os alunos analisaram e elaboraram, conforme relata o
colaborador do dicionário no “Prólogo”:
“(...) fichas de todos los vocablos
69
, que presentaban algún síntoma de ‘falsa
amistad’, en dos grandes diccionarios: del lado español el de María Moliner (1970), y
del lado brasileño, el de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (1986)” (Hoyos
Andrade, 1998:5).
Vejamos, agora, a abordagem que se dá ao conceito de “falsos amigos”
na obra. Em todo o dicionário, o único termo utilizado para definir o léxico a que se
dedica o material é o de “falsos amigos”, definido na “Apresentação” como “(...)
vocablos de igual o parecido significante en las dos lenguas, pero de significado
distinto” (ibid.:3), em que a questão da raiz comum, presente no conceito cunhado
pelos franceses Koessler & Derocquigny (1928 apud Mounin,1974), não é
mencionada.
Um pouco mais adiante, o autor da “Apresentação” do dicionário,
Valmaseda Regueiro, fala da condição de “lenguas hermanas” (ibid.:3) do
espanhol e do português, conseqüência de sua origem comum e dos vários
momentos em que os idiomas estiveram em contato historicamente. Tal condição,
segundo o Assessor Técnico Lingüístico da “Consejería de Educación de la
Embajada de Espana en Brasil”, é evidenciada pela “persistencia a través del
tiempo de un léxico común abundante” (ibid.:3), fato que se comprovaria com
cálculos já feitos – não se indica a fonte desses cálculos - que concluíram que 90
por cento das palavras são comuns nessas duas línguas (ibid.:3). Portanto, o nível
lingüístico índice do parentesco entre essas línguas seria o lexical, já que há
palavras que são comuns às duas línguas; também, essas semelhanças lexicais
se estendem à grande maioria dos vocábulos desses dois idiomas.
69
Com o dicionário se busca, conforme se depreende das palavras do “Prólogo”, produzir uma lista
exaustiva das palavras que, para o brasileiro que aprende e espanhol e para o hispano-falante que
aprende o português, funcionariam como “falsas amigas”. Em função disso, o modelo teórico que
parece inspirar esse material é o da Análise Contrastiva em sua versão forte, já que há o intento,
pelo contraste de dicionários das duas línguas, estabelecer quais palavras apresentam algum
“sintoma de falsa amizade” e que, por isso, levam ao equívoco – por sua vez, evitável, se o
aprendiz dispõe desse tipo de levantamento das divergências lexicais.
70
Ainda na “Apresentação” do material, seguindo a linha de raciocínio
descrita, reitera-se a ênfase aos problemas que o nível lexical pode causar – único
nível a que se atribui semântica –, mais especificamente as palavras que são
apenas aparentemente iguais:
“Si bien es importante contrastar y conocer las muchas diferencias en el nível fónico
y las menos en el nível morfosintáctico, lo es aún mucho más dominar las existentes
en el nível semântico. Al fin y al cabo, la realización inexacta de un fonema o el
empleo de una estructura gramatical inusual o imposible en una lengua, no suelen
perturbar demasiado la comunicación; sí puede, en cambio, perturbarla – y mucho –
el uso indebido de un vocablo; sobre todo si es uno de estos falsos amigos, tan
aparentemente iguales y tan lejanos semánticamente a veces”. (ibid.:4)
A grande proximidade entre o espanhol e o português possibilitaria,
sem dúvida, continua Valmaseda Regueiro, um certo grau de comunicação entre
os falantes nativos dessas línguas, mas, por outro lado, obriga professores e
estudantes de cada uma delas como língua estrangeira a separarem bem o que é
verdadeiramente comum e o que somente o é em aparência (ibid.:4). Este parece
ser outro índice de que o modelo teórico que norteia as observações do autor é o
da Análise Contrastiva em sua versão forte, já que se ressalta a importância de
que se delimitem as semelhanças e as diferenças encobertas pelas semelhanças
existentes nessas duas línguas.
Também nos remete a esse modelo a relação
semelhança=facilidade/intercompreensão e diferença=dificuldade/mal-entendidos,
sendo aquelas estruturas passíveis de transferência positiva por parte do aprendiz
e estas – fundamentalmente situadas no âmbito lexical – onde o aprendiz
apresentaria erros, que podem ser prevenidos se se conhecem as divergências
entre sua língua materna e a língua estrangeira. Essas divergências muitas vezes
se ocultam na aparente semelhança, nessas “muchas palabras comunes en su
origen, que han tomado caminos semánticos diferentes”
70
(ibid.:4); mas, é possível
70
Vemos aqui uma segunda definição para “falsos amigos” existente no dicionário, na qual, além
dos aspectos formal e semântico dessas palavras, a etimologia também é considerada, estando,
71
evitar que se caia “en la trampa de lo que los autores llaman ‘falsos amigos’”
(ibid.), principalmente se o aprendiz, o professor ou o tradutor estiverem em posse
de um material como o referido dicionário.
Passemos agora ao “Prólogo”, em que o conceito de “falso amigo” é
abordado com mais ênfase. Já no início, os “falsos amigos” são definidos como:
“(...) aquellas palabras que por su semejanza ortográfica y/o fónica parecen a
primera vista fáciles de ser entendidas, traducidas o interpretadas, pero que de
hecho esconden peligrosas trampas de sentido para el incauto lector o traductor”
(ibid.:5).
Nesta terceira definição que se dá ao termo na obra, a questão da
etimologia comum volta a ser excluída – como na primeira definição citada –;
também, reitera-se a associação de perigos e armadilhas a essas palavras,
sempre ocultas para um “incauto” leitor ou tradutor.
Hoyos Andrade, que escreve o “Prólogo”, adverte que as armadilhas são
ainda maiores do que se imaginava, pois se descobriu que não há apenas um tipo
de “falsos amigos”: existem palavras que têm semelhança ou identidade formal,
mas que não possuem nenhum significado comum às duas línguas, e existem as
que têm algum ou alguns significados comuns e outros diferentes (ibid.:5).
Segundo o colaborador, os últimos são os mais freqüentes no caso do espanhol e
do português e, muitas vezes, o problema seria mais uma questão de freqüência
de uso, já que, em muitos casos, as acepções mais freqüentes são diferentes nas
duas línguas, o que não exclui a possibilidade de que em uma ou outra haja
acepções semelhantes, mas que se tornam pouco freqüentes O dicionário se
propõe a reunir as acepções mais freqüentes em cada uma das línguas.
Hoyos Andrade reconhece o “(...) inacabamiento histórico de la
diferenciación entre ambas lenguas” (Fanjul, 2003:6-7) quando adverte que o
problema é muito mais uma questão de diferente freqüência de seleção das
por isso, em conformidade com a definição que Koessler & Derocquigny (1928 apud Mounin,1974)
dão para o conceito.
72
acepções do que uma delimitação exata dos valores que pertencem a uma ou
outra língua. Parece haver, no entanto, duas posições um pouco distintas a esse
respeito na “Apresentação” e no “Prólogo”. Na primeira, Valmaseda Regueiro
adverte para a importância de se tentar delimitar “lo que es verdaderamente
común y lo que solamente lo es en apariencia” (ibid:5), ou seja, delimitar o que é
comum às duas línguas e o que pertence exclusivamente a cada uma delas
(apesar da aparência enganosa). Já no “Prólogo”, como acabamos de ver, seu
autor afirma que, no que tange a esse léxico, trata-se normalmente de uma
questão de freqüência de uso diferente, e não tanto de acepções atribuíveis
exclusivamente às palavras de um ou outro idioma.
É interessante também notar como no dicionário não se opta por adotar
a definição de “falsos amigos” dada por Koessler & Derocquigny (1928 apud
Mounin,1974) de palavras de mesma origem e de forma parecida que, com o
decorrer do tempo, passaram a divergir – total ou parcialmente – em seus valores
possíveis. Ao dar exemplos do primeiro dos dois tipos de “falsos amigos” que se
distinguem – os que não possuem nenhum significado comum às duas línguas –
são citadas algumas palavras, tais como taller/talher (ibid.:5), que, se contrastadas
com as possíveis definições originais que levantamos no subitem III.1., seriam
“falsos cognatos”, pois, apesar de sua semelhança formal, esses vocábulos
possuem origem distinta.
Do mesmo modo, consultando o dicionário, nota-se que não se adota a
distinção entre os termos “falsos cognatos” e “falsos amigos” que encontramos no
levantamento mencionado, pois se mesclam palavras “falsas amigas” – como, por
exemplo, esp. firmar/port. firmar, que vêm do latim firmare (ibid.: 69)e “falsas
cognatas” – como esp. doce, do latim duodecim e port. “doce”, do latim dulcis
(ibid.:51). Ou seja, ainda que implicitamente, os conceitos de “falsos cognatos” e
“falsos amigos” são tomados como sinônimos na obra, já que se incluem nele os
dois tipos de palavras.
Mais adiante, outra afirmação nos chamou a atenção, por parecer
retomar algo do modo de interpretação de Nascentes (1934/1939):
73
“no (sic)
71
parece innecesario subrayar la importancia de un diccionario de ‘Falsos
Amigos Español-Portugués y Portugués-Español’ pues no obstante todos los
progresos realizados en mutuo conocimiento de estas dos lenguas y de sus
respectivas culturas, no falta quien piense que la impresionante semejanza entre
ambas dispensa a lectores y traductores de mayores preocupaciones y cuidados,
olvidando que justamente ese parecido constituye un problema por tratarse
innumerables veces de semejanzas aparentes” (ibid.: 5)
O trecho citado deixa transparecer a inspiração na tradição iniciada por
Nascentes (1934/1939), primeiramente, ao evocar algo que é sabido por todos no
senso comum, ao dizer “nos parece innecesario subrayar la importancia”, em que
se parte de um conhecimento que já se encontra estabelecido e que confere
credibilidade ao que se diz, além de justificar a utilidade do manual. Também,
esse conhecimento já difundido é o mesmo a que se refere Nascentes: a
“impresionante semejanza” entre as duas línguas. A concepção de Nascentes
sobre a aprendizagem do espanhol por brasileiros se reitera no dicionário também
no tipo de contraste que enfatiza as diferenças de uma parte do léxico – e,
conseqüentemente, as dificuldades –, com as quais se deveria ter cuidado na
comunicação: esse léxico cujas semelhanças são apenas aparentes.
III.4. Mostras do imaginário do brasileiro “comum” sobre o espanhol
Recorremos a sites brasileiros em que o tema dos “falsos amigos” é
mencionado
72
por considerarmos que aí poderemos recolher mostras da visão do
senso comum sobre esses conceitos.
71
Supomos que o que se quis utilizar aqui foi a palavra “nos” e não “no”, ou seja, trata-se de um
erro de impressão. Interpretamos dessa forma por parecer-nos mais coerente com o restante do
texto “nos” nessa posição e porque julgamos ser redundante a repetição dos termos “no” e
“innecesario”.
72
Fizemos um levantamento de como esses conceitos aparecem em sites brasileiros sobre a
aprendizagem de espanhol por meio do buscador www.google.com [04/02/2004]. Como nosso
objetivo não é o de realizar uma pesquisa quantitativa sobre esse tema, buscaremos apenas
observar as tendências para o uso de cada um dos conceitos fora do âmbito de especialistas.
74
a) Busca por “falsos amigos”
Solicitamos a busca pelos termos “falsos amigos” e, diante dos sites
encontrados, pudemos notar algumas tendências. A primeira delas foi a de que a
grande maioria dos sites que falavam em “falsos amigos” eram elaborados em
espanhol (a maior parte da Espanha) e abordavam essas “palavras semelhantes
na forma e diferentes no sentido” na comparação entre o espanhol e alguma outra
língua (italiano, alemão, francês e português – em sua maioria, o de Portugal). Ou
seja, em língua espanhola, a preferência parece ser pelo termo “falsos amigos”.
Já nos sites brasileiros encontrados, a tendência era outra: todos
usavam “falsos amigos” concomitantemente com “falsos cognatos”, ou seja,
atribui-se uma sinonímia aos termos. E o que permite essa sinonímia é a
eliminação de parte desses conceitos: a questão da raiz dos vocábulos. Apenas
um dos sites
73
, embora também estabeleça uma sinonímia entre “falsos cognatos”
e “falsos amigos” no decorrer do texto, ao definir “falsos cognatos”, usa a possível
definição original desse termo: “palavras que parecem cognatas, mas não são”. A
maioria das páginas, no entanto, coincide em definir esses vocábulos tidos como
sinônimos como “termos que enganam por terem forma semelhante ou idêntica
em duas línguas distintas, mas que adquirem sentidos diferentes (ou totalmente
diferentes)”.
Outras páginas que tentaram estabelecer a relação “cognatos”/”falsos
cognatos” o faziam de maneira insatisfatória. Uma delas
74
, que intitula seu texto
como “False Friends/Falsos Amigos”, acaba por tentar explicá-los por meio da
definição de “cognatos” - “palavras na língua estrangeira que são semelhantes ao
português” -, em que o critério parece ser a forma e não a origem comum. As
“falsas cognatas” seriam as “semelhantes na forma, mas não no significado”, que,
segundo a página, podem ser chamadas também de “falsos amigos”, este último
mais usado “na linguagem do dia a dia”.
73
http://www.executivosenegocios.com.br/portugues_eh_assim/portugues_eh_assim014.htm
74
http://topmasterenglish.com.br/dicas%202.htm
75
Outro intento
75
define os termos equivalentes “falsos cognatos” e “falsos
amigos” como “palavras normalmente derivadas do latim, que têm portanto a
mesma origem e que aparecem em diferentes idiomas com ortografia semelhante,
mas que ao longo dos tempos acabaram adquirindo significados diferentes.” Essa,
segundo o termo cunhado pelos lingüistas franceses, seria a definição de “falsos
amigos” e não seria possível para “falsos cognatos”, que supõem raízes
diferentes.
A maioria das páginas da Internet também alude às “armadilhas” que
essas palavras representam pela semelhança formal que oculta significados
diferentes, e alerta para as conseqüências que o falante pode sofrer ao utilizá-las
sem conhecer seus verdadeiros significados: situações embaraçosas, mal-
entendidos ou situações hilárias, o que, normalmente, acaba por transformar
esses vocábulos em fonte de piadas. A solução mais comumente oferecida por
esses sites é uma lista dessas palavras –muitas coincidem em vários vocábulos –
que o aprendiz deve conhecer para evitar essas situações tão embaraçosas.
b) Busca por “falsos cognatos”
Pelo fato de este termo e o anterior serem usados como sinônimos,
muitos dos sites encontrados na primeira busca voltaram a aparecer. Além das
tendências apontadas para “falsos amigos”, vejamos que outras é possível
observar.
Além da sinonímia já relatada, notamos que, nos sites brasileiros,
quando se optava por utilizar apenas uma terminologia, sem alterná-la com outras,
a opção era “falsos cognatos”. Um exemplo disso foi um site
76
que citava muito do
Guia do Espanhol para quem só Fala Portunhol (Arias, 1998), inclusive a definição
“palavras iguais com significados diferentes em cada uma das línguas”. No
entanto, preferiu chamá-las “falsos cognatos”, rejeitando o título proposto pela
autora do “Guia”: “palavras iguais com significados diferentes”.
75
http://www.sk.com.br/sk-fals.html
76
http://www.aprendaespanhol.com/layout.php?page=cognatos.htm
76
Outro site
77
brasileiro traz apenas uma lista dessas palavras em
espanhol e português e, embora não apresente nenhuma definição para o termo,
é outra página que utiliza “falsos cognatos” isoladamente. Uma página brasileira
que também só utiliza “falsos cognatos”
78
discute problemas de tradução de textos
científicos em inglês da área da psiquiatria
79
para o português e começa definindo
“cognatos” como “palavras que têm uma raiz comum”, o que está em
conformidade com definição dada a essa noção no âmbito da Lingüística. No
entanto, ao definir “falsos cognatos” como “palavras que parecem ser similares,
mas na verdade têm significado diferente” a questão da raiz é abandonada.
Houve uma outra ocorrência de site brasileiro, que aborda a
aprendizagem do inglês por brasileiros
80
, em que também se usa “falsos cognatos”
exclusivamente. Parte-se da advertência de que se tenha cuidado com os “falsos
termos cognatos”, que define como “aqueles que parecem, mas não são, pois um
"cognato" é uma espécie de "primo" de uma palavra, vem da mesma raiz
” (o grifo
é nosso). Não fica muito claro se seu autor considera esses “falsos termos
cognatos” de mesma raiz ou não.
Assim, além dos casos em que dois termos se alternam, a busca por
“falsos cognatos” revelou uma tendência em nosso levantamento: a do uso de
“falsos cognatos” quando se opta pelo uso exclusivo de um dos termos em sites
brasileiros, escritos em português – e não na língua estrangeira a que se referem.
Tal fato talvez se explique por influência de sites de “falsos cognatos” do inglês em
relação ao português, que também se encontram em grande quantidade. Basta
solicitar a busca por esse tipo de site e se verá como alguns fragmentos idênticos
se reiteram.
77
http://www.jeandrecastelon.pop.com.br/vocabulario/falsos.htm
78
http://www.polbr.med.br/arquivo/pub0599.htm
79
Embora a língua estrangeira contrastada não seja o espanhol, julgamos interessante citar esse
site por considerarmos importante observar qual foi a opção de um brasileiro diante dos três
conceitos. Por isso incluímos dois sites brasileiros que tratam do inglês: um sobre tradução e outro
sobre aprendizagem dessa língua estrangeira.
80
http://notitia.truenet.com.br/desafio21/newstorm.notitia.apresentacao.ServletDeNoticia?
codigoDaNoticia=1135&dataDoJornal=atual
77
c) Busca por heterosemántico(s)/heterossemântico(s)
Ao solicitarmos a busca por esse conceito, observamos algo
interessante: para “heterosemántico(s)”, a grande maioria da referências ao termo
encontradas - com exceção de dois sites de Portugal e um da Espanha – eram
páginas ou artigos científicos brasileiros redigidos em espanhol. Já ao
procurarmos pelo termo “heterossemântico(s)”, pode-se dizer que praticamente a
totalidade das páginas encontradas era também brasileira, com exceção de alguns
sites portugueses. Portanto, o conceito parece estar muito vinculado ao português
do Brasil, assim como “falsos amigos” é a preferência em espanhol.
Essa é uma das razões pelas quais supomos que a origem desse
conceito esteja em Antenor Nascentes, em sua Gramática para uso dos brasileiros
(1934), divulgado no meio de ensino-aprendizagem pela ampla adoção do Manual
de Idel Becker (1967). A definição recorrente para esse conceito nas páginas
encontradas é muito semelhante à utilizada por Nascentes e Becker: “palavras
que apesar de serem semelhantes na escrita têm significados diferentes no
espanhol e no português”. Por último, houve casos em que “heterossemântico”
também aparecia como sinônimo dos termos de “falsos amigos” e “falsos
cognatos”.
III.5. Regularidades constatadas e a nossa perspectiva de abordagem do
tema
Se pensarmos nos pontos principais do levantamento que executamos,
podemos afirmar que:
a) segundo as possíveis definições originais para os conceitos de “falsos
amigos” e “falsos cognatos” no âmbito da Lingüística, essas noções se
distinguiam pela questão etimológica dos vocábulos – aqueles se referiam a
palavras de mesma origem, estes a palavras que não provêm de mesma
raiz;
78
b) provavelmente foi Nascentes (1939) que iniciou a inclusão desse tipo de
palavra – com a noção de heterosemánticos – em trabalhos sobre a
aprendizagem do espanhol por brasileiros. Além disso, o pesquisador
inaugura uma interpretação sobre a aquisição do espanhol por lusofalantes
que se apóia teoricamente no modelo da Análise Contrastiva em sua versão
forte;
c) essa linha de estudos inaugurada por Nascentes (1939) está presente em
muitos trabalhos sobre esse léxico nos dias de hoje; inclusive podemos dizer
que se trata da tendência predominante
81
quando de aborda o que
chamamos de “falsos amigos”. Outra tendência nos trabalhos atuais é a
utilização dos conceitos de “falsos amigos”, “falsos cognatos” e
heterosemánticos como sinônimos;
d) a interpretação sobre a aprendizagem do espanhol por brasileiros iniciada
por Nascentes, que atribui as dificuldades especialmente aos “falsos amigos”
– em oposição à facilidade/semelhança que o restante dessas línguas tem
entre si –, supunha um movimento de retro-alimentação com as idéias que
circulavam no imaginário do brasileiro “comum” sobre o espanhol. É
interessante notar como, também hoje, o imaginário do senso comum segue
praticamente inalterado a esse respeito, o que faz com que a imagem sobre
as dificuldades de aquisição do espanhol também se concentrem nos “falsos
amigos”.
A nossa proposta nesta pesquisa é pensar esse léxico, bem como a
concepção sobre a aquisição do espanhol por brasileiros, de uma perspectiva
teórica transdisciplinar, que nos permita conjugar alguns fatores que, a nosso
modo de ver, influem na produção de sentido. Concebendo a significação de outra
maneira, também nos encontraremos com uma nova hipótese sobre as
dificuldades do espanhol para o brasileiro.
81
Advertimos que no propusemos observar a tendência principal nesses estudos, o que não
significa que não haja pesquisas sobre o tema que adotem outras perspectivas, tais como Humblé
(2004), Fanjul (2000, 2002, 2003, 2004), Celada & González (2000), Celada (1999).
79
Desse modo, partimos de uma hipótese de que a influencia desses
fatores que podem levar ao mal-entendido não estão reservados somente a parte
do léxico (e nem mesmo apenas a ele). Pensaremos os vocábulos como
elementos que possuem restrições constituídas histórica e socialmente, restrições
essas que funcionam nos enunciados, juntamente com outros fatores que
compõem as condições de produção dos mesmos, e produzem efeitos de sentido.
Partindo dessa perspectiva, a nossa pergunta principal é: pode-se dizer que há
“amigos” entre as línguas – em oposição aos falsos amigos –, essa grande porção
do léxico que não apresenta perigos para a intercompreensão?
Se aceitarmos que fatores histórico-sociais influem nas línguas,
imprimindo singularidade a seus modos de significar, parece difícil atribuir tal
influencia somente a uma porção do léxico (e da língua), supondo que a
materialidade lingüística semelhante pode ocultar significações distintas somente
nos “falsos amigos”. Buscaremos justificar teoricamente nossa hipótese por meio
das reflexões de Saussure (2002) a respeito da constituição dos valores das
palavras e as de Bosque (2004) sobre as possibilidades combinatórias dos
vocábulos, também recorreremos aos desenvolvimentos teóricos da Análise do
Discurso sobre a influencia da história na significação (especialmente Pêcheux,
2002) e ao conceito de Representação Social (especialmente Bourdieu,1990).
A justificativa empírica de nossa hipótese se fará por meio da análise de
dois casos: o primeiro, em que uma palavra não tradicionalmente considerada
“falsa amiga” leva a problemas de compreensão entre um brasileiro e um
espanhol; o segundo, em que uma construção sintática leva a um mal entendido
entre uma argentina e um brasileiro. Com ambos os casos, buscaremos ilustrar
como nem os vocábulos que não estão entre os “falsos amigos”, nem outros níveis
lingüísticos – no caso, a sintaxe –, embora materialmente semelhantes, estão
livres da influencia desses fatores que imprimem idiossincrasia às significações
em culturas distintas.
Por último, justificaremos a escolha que fizemos do termo “falsos
amigos” para fazer referência ao tipo de palavra considerado o centro dos
80
problemas do brasileiro com o espanhol. Julgamos necessário escolher uma das
terminologias para não alternar o uso de “falsos cognatos”, “falsos amigos” e
heterosemánticos. Além disso, é interessante notar como essa noção parece
trazer consigo algo da atitude do aprendiz com relação a esses vocábulos.
Embora seja um conceito lingüístico, acreditamos que “falsos amigos” aporta
também a informação de como o aprendiz pode se comportar segundo as
palavras estejam ou não na lista mais comum das “falsas amigas”. Assim, com
exceção das “falsas amigas”, com que o estudante deve “ter cuidado/atenção para
não cair nas armadilhas”, pois podem levar aos temidos mal-entendidos, as
demais palavras seriam “amigas verdadeiras”, muito facilmente compreendidas
pelo brasileiro que aprende espanhol, o que lhe permite “relaxar” e confiar.
Também parece estar implícita nele uma hipótese sobre a aquisição – a
da transferência, nos seus primeiros moldes –, segundo a qual, após a
comparação da língua materna do aprendiz e da língua estrangeira que deseja
aprender, estabelecem-se as diferenças, que causarão dificuldades, e as
semelhanças, passíveis de transferência positiva. Na concepção tradicional que
retratamos, as diferenças/dificuldades/mal-entendidos são essencialmente
atribuídas aos “falsos amigos” e as semelhanças/facilidade/intercompreensão
caracterizam o restante das línguas contrastadas.
81
IV. A IMAGEM DE QUE TRATAMOS E A CONCEPÇÃO DE
LINGUAGEM E SIGNIFICAÇÃO EM QUE SE BASEIA
Como vimos na apresentação deste trabalho, a previsão apriorística de
dificuldades com os falsos amigos presente na imagem que analisamos constitui,
segundo essa perspectiva, a principal razão pela qual um brasileiro deve estudar o
espanhol. Tratamos também de como o sujeito dessa imagem privilegia o léxico,
estabelecendo uma relação língua=lista de palavras. Além de destacar a visão
metonímica da língua aí embutida, seria interessante tratar mais detidamente de
como essa perspectiva vê o léxico e sua relação com a significação.
Celada (2000:9), conforme já citado, referindo-se às reflexões de
Mannoni (1982:84 apud Celada, 2000), observa que o sujeito dessa concepção
considera que o universo da linguagem coincide com o universo das coisas,
buscando o sentido do lado dos referentes. Ou seja, essa imagem não só
reduz língua a apenas um de seus níveis, como o vê de acordo com uma
concepção de linguagem que, como veremos, tem sido passível de críticas em
certos âmbitos dos estudos lingüísticos.
IV.1. A língua como nomenclatura: o referente como desencadeador da
significação
82
Existe uma concepção de linguagem para a qual a estruturação do
mundo em categorias seria algo previamente constituído nas próprias coisas, para
82
Na imagem de que nos ocupamos há vários indícios de que se vê a linguagem – e,
conseqüentemente, o léxico e a significação – segundo essa concepção linguagem-nomenclatura.
Em primeiro lugar, o procedimento recorrente, quando se fala do espanhol em nosso país e, mais
especificamente, dos falsos amigos, é o de oferecer listas de palavras (inexplicavelmente, quase
sempre as mesmas) que funcionam sempre como falsos amigos quando um brasileiro tenta usar o
espanhol (e vice-versa). Esse procedimento de listas parece conceber a linguagem como uma
nomenclatura ao oferecer simplesmente o novo nome com que o aprendiz deve chamar as coisas
do mundo (tidas como as mesmas), já que bastaria a ele “renomear” o mundo que conhece,
estruturado e interpretado conforme a cultura em que se insere. Embora suponhamos que esse
procedimento possa responder a uma tentativa de apresentar de maneira mais simplificada o
léxico, parece-nos muito problemático, porque acaba por alimentar a imagem existente em nosso
país de que o português e o espanhol são línguas exageradamente próximas, bastando adquirir
apenas alguns nomes diferentes para as coisas em alguns casos.
82
a qual a compreensão da realidade independeria dos signos criados para nomeá-
la. Assim, a segmentação do mundo em classes seria algo “já dado” pelas
próprias coisas, e não construído pelo homem por meio da linguagem (Pietroforte
& Lopes, 2003:113). Como nessa concepção se vê o mundo como algo
previamente organizado, as línguas naturais funcionariam, para essa tendência,
como nomenclaturas que se aplicam às coisas do mundo, e não uma forma de
categorizar, organizar e interpretar a realidade (Fiorin, 2004:55).
Segundo essa concepção de língua – que Pietroforte & Lopes
(ibid.:112) chamam de “tradicional concepção de linguagem-nomenclatura” -, o
signo funciona como uma ligação entre uma palavra e uma coisa do mundo. Ou
seja, o significado do signo depende de um referente fora da língua; o significado
seria, então, a coisa.
Tal modo de conceber a linguagem, portanto, escora-se no referente,
externo a ela, supondo que o homem tem acesso direto às coisas,
independentemente de quaisquer filtros interpostos pela sua inserção sócio-
histórica e cultural. Veja-se que se parte não só da idéia de que o homem é capaz
de relacionar-se diretamente com as coisas, sem nenhum tipo de elemento
intermediário – numa relação direta entre linguagem e mundo -, como também se
considera que há uma essência das coisas, uma única visão verdadeira, à qual o
homem teria acesso; a linguagem se basearia nessa verdade das coisas, a qual o
homem poderia conhecer.
Há uma semântica que se inspira nessa visão da linguagem, conhecida
como semântica do referente, cujos nomes mais destacados pode-se dizer que
são Carnap e Frege, na qual se reconhece a herança da tradição lógico-
gramatical. Nessa concepção, os estudiosos sempre acreditaram que as
palavras remetem aos conceitos e que estes, por sua vez, representam as
coisas.
Ver as coisas do mundo como a fonte da significação, tal como o faz a
tradição lógica, implica certos pressupostos filosóficos
. Se os signos apontam para
83
conceitos situados fora da linguagem e, portanto, concebidos como
independentes desta ou daquela língua natural, isso quer dizer que tais conceitos
são universais, logo imutáveis para todo e qualquer ser humano,
independentemente de sua cultura de origem. Assim, se os conceitos são
garantidos pelos referentes, seria preciso, então, assumir que o mundo é o
mesmo para todos
83
. Nesse raciocínio, como afirma Rastier (Rastier s/d: 18 apud
Pietroforte & Lopes, 2003:115), “as palavras teriam um sentido porque as coisas
têm um ser (como afirma Aristóteles em sua Metafísica)”.
Como só há um mundo “real”, essa concepção nos levaria,
conseqüentemente, a admitir que há também uma única “verdade”, garantida por
esse mundo. A semântica do referente trabalha com essa “essência” das coisas,
com o que elas “verdadeiramente” são, e, por isso, não admite qualquer cisão ou
multiplicidade. Eis a principal razão, prosseguem Pietroforte & Lopes (id.ibid.), pela
qual a semântica do referente não costuma trabalhar com essas “porções de
significados”, com esses “fragmentos” de coisas que são os semas da semântica
componencial. A significação, então, fundamentar-se-ia no “Ser” único que
possuiriam as coisas do mundo, o que não deixa margem a interpretações
múltiplas.
O conceito de língua que é a base desse modelo de semântica foi
colocado sob suspeita há algum tempo por muitas correntes dos estudos da
linguagem, principalmente porque implica um problema: como explicar que dois
observadores que pertencem a comunidades lingüísticas distintas não vêem
nunca exatamente o mesmo mundo?
84
Como é possível, de uma cultura para
outra, haver categorizações diferentes da realidade, se admitimos que a
estruturação do mundo já esta dada nas próprias coisas e, portanto, seria a
mesma em todos os lugares?
83
Pietroforte & Lopes, 2003:114-115.
84
Pietroforte & Lopes (ibid.:114).
84
Tal questionamento acaba por conduzir a uma concepção diferente da
linguagem: ela não seria uma simples nomenclatura para referir-se às coisas,
abordadas em sua essência, mas uma maneira de interpretar, organizar e
categorizar o mundo. A diversidade de caracterização, segundo distintas
comunidades lingüísticas, permite pensar que a significação não é fruto da relação
entre um nome e uma coisa, mas que é resultado de um processo de
interpretação da realidade, passível de variação.
IV.1.1. A linguagem como interpretadora e classificadora do mundo material:
o deslocamento do significado do referente para a linguagem
Como vimos, um dos aspectos polêmicos da concepção linguagem-
nomenclatura é o fato de considerar que a significação tem sua origem no
referente, tido como universal. Os signos seriam etiquetas colocadas às coisas do
mundo, etiquetas que variariam de uma língua para outra, mas que nomeariam as
mesmas coisas em todos os lugares.
No entanto, essa concepção foi alvo de críticas e muitos lingüistas se
insurgiram contra ela. Entre eles, podemos destacar Ferdinand de Saussure
(2002)
85
, cuja concepção de linguagem se opõe a vê-la atrelada ao referente: a
fonte da significação passa a ser a linguagem. O homem interpreta o mundo e, em
85
Saussure critica a concepção de língua como nomenclatura em várias passagens de seu Curso
de Lingüística Geral (2002). Numa delas, afirma que ver a língua como uma nomenclatura, como
uma lista de termos que correspondem a coisas, é criticável por várias razões. Dentre os motivos
que ressalta, interessa-nos citar especialmente dois: o primeiro, é que ver a linguagem como uma
nomenclatura supõe idéias completamente formadas, que preexistem às palavras; o segundo, é
que tal concepção supõe que o laço que une um nome a uma coisa é uma operação muito
simples, o que para ele não é verdade. Isso porque o signo não une uma coisa e um nome, mas
um conceito e uma imagem acústica. O conceito não é o referente, o que ele é em sua essência,
mas é fruto de interpretação das coisas do mundo; do mesmo modo, a imagem acústica não é um
som material, “o som real”, mas a imagem psíquica desse som, a representação que dele nos
oferecem nossos sentidos (ibid.:99-102). Em outra passagem, (ibid.:43), Saussure afirma que não
há nada mais idôneo que a língua para fazer compreender a natureza do problema semiológico,
mas para tratá-lo convenientemente seria preciso estudar a língua em si mesma, e não como se
havia feito até aquele momento, quase sempre abordando a língua em função de outra coisa, de
outros pontos de vista. O que ele chama de “concepção superficial do grande publico”, que não vê
na língua mais que uma nomenclatura, segundo ele, eliminaria toda pesquisa sobre sua verdadeira
natureza (Saussure já advertia sobre a necessidade de que se estudasse a significação dentro da
língua, e não em seu exterior).
85
função disso, o categoriza. Tal categorização do mundo deixa de ser vista como
da ordem do “já dado” – como algo previamente constituído nas próprias coisas - e
passa a ser vista como algo construído pelas diferentes maneiras olhar para o
mundo. Nessa concepção, a prioridade não é o objeto, mas o ponto de vista: dois
observadores de comunidades lingüísticas diferentes não vêem nunca exatamente
o mesmo mundo
86
.
Uma prova de que as palavras independem do que elas nomeiam, de
que sua significação é resultado de uma forma de interpretar o mundo é, portanto,
o fato de que línguas diferentes podem caracterizar o mundo de forma distinta.
Assim, a atividade lingüística ordena a realidade, categoriza o mundo, e não é um
reflexo, uma nomenclatura que se dá a uma caracterização preexistente. A
classificação da realidade não preexiste à significação (à interpretação pelo
homem), mas é ela que organiza a realidade em categorias, a partir da
interpretação que uma comunidade lingüística tem da realidade (id.ibid.).
Assim, como afirma Fiorin (2004:56), a atividade lingüística é uma
atividade simbólica, o que significa que as palavras criam conceitos e esses
conceitos ordenam a realidade, categorizam o mundo. Note-se como, agora, a
noção de “conceito” difere da concepção de linguagem-nomenclatura, já que esta
o vê como o próprio referente, como a essência das coisas, a sua única
representação possível, enquanto nesta concepção o conceito é fruto de uma
interpretação do homem das coisas do mundo, cujo acesso a elas é mediado por
um filtro sócio-histórico.
Fiorin (ibid.:56) aponta outro aspecto em que se coloca em dúvida a
concepção referencialista ao observar que a língua não é um sistema de
mostração de objetos, em que o signo corresponderia a um referente, pois a
linguagem humana não necessariamente fala somente sobre elementos existentes
no mundo físico, mas pode criar universos de coisas inexistentes. Além disso, um
objeto não designa tudo o que uma língua pode expressar, tal como as
86
Pietroforte & Lopes (ibid.:113-114).
86
propriedades de uma coisa (a classe a que pertence) ou as categorias gramaticais
(como singular ou plural).
Do mesmo modo que a concepção de linguagem-nomenclatura, essa
concepção também inspira uma semântica particular, no caso, de tendência
retórico-hermenêutica. Essa semântica não vê a produção de significação como
fruto da relação língua-coisas, mas enfatiza o papel que o homem tem nesse
fenômeno; conseqüentemente, essa semântica evita decidir sobre a natureza do
real, pois isso não lhe parece pertinente para a compreensão do significado. Já
não se deve buscar na verdadeira e única essência das coisas do mundo o
significado dos signos, pois ele se dá em outra instância, na linguagem. Também
a noção de “a verdade” é vista de maneira distinta à tradição lógica: ela é uma
construção dos homens e, por isso, tem um caráter múltiplo, em função de
distintos pontos de vista
87
(Pietroforte & Lopes, 2003:115-117).
A lingüística inaugurada pelo Curso de Saussure no início do século XX
se filia mais a essa tradição - a que Pietroforte & Lopes (ibid.:115), seguindo
François Rastier, chamam de “tradição retórico-hermenêutica” -, já que ela estuda
a linguagem humana pelo que se passa em seu interior e não numa instancia
exterior. Saussure foi contra a idéia de que as coisas do mundo seriam as
mesmas para todo observador e que já viriam discretizadas, bastando às línguas
dar-lhes rótulos designativos.
O lingüista genebrino contraria a opinião comum de que há um mundo
objetivo, dotado de referentes e de acontecimentos que são refletidos pela
linguagem. Para ele, dá-se justamente o contrário. A linguagem seria a fonte e não
o reflexo dessas coisas; o sentido emana da linguagem e não do referente.
87
Note-se que essa concepção de linguagem como nomenclatura, ao conceber a verdade como
única, não admite a multiplicidade de interpretações da realidade que caracteriza o conjunto das
culturas existentes no mundo. A conseqüência disso pode ser, por um lado, que a visão de uma
cultura se sobreponha às demais, como “cultura de prestígio”, por questões de outra natureza
(principalmente econômica), e que as que difiram dessa “visão de prestígio” sejam alvo de
intolerância e preconceito.
87
Cabe ressaltar, no entanto, que não se quer dizer com isso que o
mundo físico não exista fora da linguagem. Simplesmente, segundo a concepção
não-referencialista, não cabe ao estudioso da linguagem pronunciar-se sobre a
verdade ou falsidade absolutas. Saussure e aqueles que compartilham sua visão
sobre a linguagem não se referem ao mundo físico em suas considerações, mas
ao mundo do sentido construído pelo homem. Para eles, portanto, não é
pertinente estudar o mundo material, mas estudar como as línguas o
interpretam e categorizam, atribuindo-lhe significado. Daí parte uma
semântica lingüística preocupada com a diversidade de sentidos nas línguas
naturais e não mais subordinada à categorização ditada por instâncias como o
Real, o Pensamento, etc. (ibid.: 117-118).
De acordo com essa nova maneira de ver a linguagem, o “conceito”, da
tradição anterior, será para Saussure o “significado” e a “palavra”, será o
“significante”. Não se trata apenas de uma mudança terminológica, mas a
distinção entre “conceito” e “significado” está em que este tem um caráter
especifico (só vale no interior de uma determinada língua), - em oposição à
noção de “conceito” da tradição lógica, encarado como algo universal. Também, o
signo possui um caráter relacional (só se define na relação com significantes
semelhantes, por um lado, e com os demais significados de sua classe, por outro)
(ibid.: 116).
Para a lingüística de filiação saussureana, esse caráter específico do
significado é fruto de cada língua, pois cada grupo de falantes estabelece
diferentes estruturações do mundo, de acordo com como eles o concebem. Por
isso, nessa perspectiva, tanto o significado quanto o significante são variáveis
segundo a inserção sócio-histórica das expressões, o que, conseqüentemente,
dificulta a realização de traduções exatas (id.ibid.)
88
. Os signos são, portanto, uma
88
Parece-nos interessante notar que a arbitrariedade que Saussure (2002) atribuiu à relação entre
o significante e o significado do signo possibilita “associar qualquer idéia a qualquer seqüência de
sons” (ibid.:114), ou seja, o fato de que essa seja uma relação imotivada permite que, em cada
cultura, significantes e significados possam ser associados de maneira distinta. No caso da relação
português-espanhol, em palavras como os chamados falsos amigos, significantes comuns às duas
88
forma de apreender a realidade (Fiorin, 2004:55). Já o caráter relacional dos
signos faz com que seus significados (e significantes) se definam sempre em
relação com outros signos, relação por meio da qual se definem os valores de
uma palavra.
Vamos nos dedicar, a partir de agora, à noção de valor, proposta por
Saussure, abordando-a com mais ênfase para a face do significado do signo, pois
a significação nos interessa de maneira especial neste trabalho. Como vimos,
segundo essa concepção não-referencialista da linguagem, o significado é fruto da
interpretação que o homem faz do mundo, permeada por sua posição sócio-
histórica. Ao redefinir a relação do homem com o referente, a concepção de
linguagem que Saussure introduz considera a significação algo lingüístico. O
lingüista genebrino considera a língua um sistema, um conjunto organizado em
que um elemento se define pelos outros, que funciona por meio das relações
entre os signos, a partir das quais se determinam seus valores.
IV.1.2. O caráter relacional dos signos
Saussure, ao refletir sobre as perspectivas das quais se pode estudar o
signo lingüístico, propõe que se distingam “o sistema de valores considerados em
si, desses mesmos valores considerados em função do tempo” (2002:119). Neste
trabalho não nos interessa tanto a questão das mudanças históricas, ou seja, o
ponto de vista diacrônico; por isso, dedicaremos mais atenção a entender como se
dão as relações que definem os valores das duas faces dos signos num estado
determinado de língua, isto é, à perspectiva sincrônica.
Ao distinguir essas duas perspectivas, Saussure define um novo objeto
de estudos para a Lingüística. Vendo a língua do ponto de vista sincrônico, o
lingüista suíço a define como um sistema, ou seja, uma estrutura, em que um
elemento se determina pelos demais. Esses elementos são estudados não mais
línguas se associam a significados de maneira distinta, de acordo com a história da cultura a que
correspondem.
89
em suas mudanças históricas, mas nas relações que eles contraem, em um
estado de língua, uns com os outros. Portanto, reconhece-se que, para descrever
o uso da língua, é preciso situar-se em certo estado, tendo clara a distinção entre
os estados e as sucessões
89
(2002:121-122).
Os elementos que formam o sistema da língua, os signos lingüísticos,
são compostos por uma relação interna entre um conceito e uma imagem acústica
(e não entre uma coisa e uma palavra). Um conceito é uma idéia que modela um
determinado modo de compreender o mundo. Uma imagem acústica é a
impressão psíquica de uma seqüência articulada de sons (vogais, consoantes e
semivogais). Ao conceito, Saussure chamou significado e à imagem acústica,
significante (ibid.:81); essas constituem as duas faces do signo lingüístico.
Para Saussure, é necessário criar a noção de valor porque seria ilusório
considerar um termo simplesmente como a união de certo som com certo
conceito. Defini-lo assim seria separá-lo do sistema de que faz parte; seria pensar
que se pode começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma, quando
pelo contrario, é a totalidade solidária de que é preciso partir para obter, mediante
análise, os elementos que contém (id. Ibid:161-162). Para ele, portanto, a língua é
um sistema em que todas as suas partes podem e devem ser consideradas em
sua solidariedade sincrônica (id. ibid.:127).
Tanto o significante quanto o significado adquirem valor dentro do
sistema da língua a que pertencem em função da oposição que exercem com
elementos semelhantes, o que evidencia as diferenças de uma unidade em
89
Saussure (2002:128) faz uso de metáforas para ilustrar a diferença dessas duas ordens, em que
fica clara também a noção de valor. A que considera mais demonstrativa é a comparação entre o
jogo da língua e uma partida de xadrez. Em ambos os jogos, há um sistema de valores e
presenciamos suas modificações. Um estado de jogo corresponde perfeitamente a um estado da
língua. O valor de cada peça depende de sua posição sobre o tabuleiro, da mesma maneira que na
língua cada termo tem seu valor por oposição com todos os demais termos. Veja-se que as peças
assumem um valor dependendo de sua posição no tabuleiro, mas também possuem suas
possibilidades de movimento dadas pelas regras do jogo. Parece-nos que na língua se da o
mesmo: as palavras possuem significados, fruto da interpretação do homem, mas é no jogo
lingüístico, dependendo das palavras com que se opõem em cada língua, num dado momento de
sua história, que adquirem valor.
90
relação às outras. Assim, seja no âmbito do conceito, seja no da imagem acústica,
um signo só tem valor dentro do sistema, onde se opõem traços fonéticos e traços
semânticos entre si. Nem um nem outro independem da língua para definir-se.
Portanto, pensando especificamente na face do significado, podemos dizer que
Saussure considera que a significação das unidades é definida por relações com
outras de mesma natureza, ou seja, ela se produz internamente, na língua, no
sistema, de signo para signo, e não é algo “já dado” pelo referente, como propõe a
concepção de linguagem-nomenclatura (ibid., 2002: 159).
Quando se observa a língua do ponto de vista sistemático, o que se
reconhece nela é uma estrutura. Esse conjunto de relações que as unidades
lingüísticas mantêm entre si constitui uma forma e não substância. O sistema é
forma porque se estrutura em suas relações internas, e não em relação ao mundo
(Pietroforte, 2004:84). Para ilustrar isso, Saussure recorre novamente à metáfora
do jogo de xadrez. O que define o que é uma rainha não é seu formato, nem o
material de que a peça é feita, mas seu valor no jogo, sua oposição em relação às
demais peças: os movimentos que ela pode fazer e as outras não podem. Pode-se
até jogar xadrez sem as peças, de memória. O que tem relevância é o valor das
peças. Na língua isso também ocorre. O que importa é o valor das unidades, ou
seja, sua diferença em relação às demais. Os sons e os significados têm que
adquirir um valor diferencial, passando a distinguir signos diferentes.
Como a língua passa a ter um domínio próprio, a significação passa a
ser lingüística; o que significa são os signos em suas relações uns com os outros
e não a relação entre as palavras e as coisas do mundo. Conseqüentemente, nas
diferentes línguas, as palavras significam diferente, em função de como cada
cultura interpreta a realidade e pelos elementos que se opõem no sistema.
IV.1.3. O valor lingüístico considerado em seu aspecto conceitual
Saussure adverte que, quando se fala no valor de uma palavra, pensa-
se na propriedade que esta tem de representar uma idéia. Ele reconhece que esse
91
é um dos aspectos do valor lingüístico, mas afirma que este conceito difere do que
se denomina significação.
O valor, considerado em seu aspecto conceitual, é um elemento da
significação, e embora esta esteja sob a dependência daquele, não são elementos
coincidentes (2002:162). Costuma-se apresentar a significação apenas como a
contrapartida da imagem auditiva. Tudo ocorreria entre a imagem auditiva e o
conceito, nos limites da palavra, considerada um domínio fechado, que existe por
si mesma.
Saussure, entretanto, vê a língua como um sistema em que todos os
termos são solidários e onde o valor de um resulta da presença simultânea dos
outros. Por que o valor, assim definido, se confunde com a significação, com a
contrapartida da imagem auditiva? Para responder essa questão, o lingüista diz
que é preciso levar em consideração que todos os valores (até mesmo fora da
língua) estão regidos por um princípio paradoxal, pois estão sempre constituídos:
a) por uma coisa diferente, suscetível de ser trocada por outra cuja valor está
por determinar;
b) por coisas similares, que podem ser comparadas com aquela cujo valor está
em questão.
São necessários esses dois fatores para a existência de um valor
(Saussure, 2002:163).
Esse princípio paradoxal que rege os valores é o que faz com que uma
palavra possa ser trocada por alguma coisa diferente, ou seja, uma idéia, e possa
ser comparada com algo de mesma natureza, isto é, com outra palavra.
Para que se fixe o valor de um vocábulo, não podemos nos limitar a
buscar o conceito pelo qual pode ser “trocado”, ou seja, verificar que tem
determinado significado. É preciso, ainda, compará-lo com valores similares,
com as demais palavras que podem opor-se a ele. Seu conteúdo, portanto, só
está realmente determinado pelo conjunto do que existe fora dele. Como ele faz
92
parte de um sistema, possui não só significação, mas também, e principalmente,
valor, o que é muito diferente.
Para ilustrar esses dois passos que se deve seguir para chegar ao valor
de uma palavra, Saussure nos apresenta um exemplo. Afirma que a palavra
francesa mouton pode ter a mesma significação que o vocábulo do inglês sheep
(o conceito de “carneiro”, com tudo o que caracteriza esse animal: oferece lã,
carne, etc). No entanto, esses dois termos não têm o mesmo valor, porque o
inglês distingue, com a palavra mutton, o pedaço de carne preparada e servida à
mesa. A diferença de valor entre sheep e mutton se deve a que o primeiro tem
junto a si, opondo-se a ele, um segundo termo, dividindo o conceito de “carneiro”
entre dois vocábulos nessa língua, o que não acontece com a palavra francesa.
Portanto, podemos dizer que a palavra possui significação, que é o
conceito pelo qual uma palavra pode ser “trocada”, fruto do caráter específico do
signo; é a maneira especifica que cada cultura interpreta o mundo, o que se
define, segundo ele, por referência ao mundo material, à substância. Mas também,
e principalmente, possui um valor, que é lingüístico, fruto do caráter relacional do
signo, da sua comparação com outros signos de valor similar.
Com a noção de valor, portanto, Saussure não nega a existência da
significação, mas atribui um papel central à relação dos signos no sistema, algo
puramente lingüístico. Assim, afirma que, no interior de uma mesma língua, todas
as palavras que expressam idéias vizinhas se limitam reciprocamente: signos que
se consideram sinônimos como “recear”, “temer”, “ter medo” adquirem valor
próprio por sua oposição. Se um deles não existisse, todo o seu conteúdo iria
parar em suas rivais. Portanto, o valor de um termo qualquer está determinado
pelo que o rodeia, sejam os signos similares, sejam as palavras com que se
combina no sintagma. Um exemplo deste último tipo de relação, segundo ele,
ocorre com o signo soleil. Saussure afirma que não se poderia fixar seu valor
imediatamente se não se considera o que o rodeia, já que há línguas em que é
impossível dizer “sentar-se ao sol”. (ibid.:164).
93
Como as palavras não representam conceitos dados de antemão, de
uma língua a outra não há correspondências exatas de conteúdo. O francês diz
indistintamente “alugar” (uma casa) para “tomar” ou “dar em aluguel”, no entanto o
alemão emprega dois termos, um para cada caso: mieten y vermieten; não há,
portanto, correspondência exata de valores. Em todos os casos que Saussure nos
oferece como exemplos, encontramos, em lugar de idéias dadas de antemão,
valores que emanam do sistema.
Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-
se, portanto, que são puramente diferenciais, definidos não positivamente, por seu
conteúdo, mas negativamente, por suas relações com os demais termos do
sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são
90
(id.
ibid.:165). Veremos, agora, que o mecanismo da linguagem que produz os valores
se baseia em dois tipos de relações: sintagmáticas e paradigmáticas.
IV.1.4. Relações sintagmáticas e relações associativas
Como vimos, em um estado de língua, tudo se baseia em relações. As
relações e as diferenças entre termos lingüísticos se dão em duas esferas
distintas, e cada uma delas é geradora de uma certa ordem de valores (Saussure,
ibid.:172). Correspondem a duas formas de nossa atividade mental, ambas
indispensáveis para a vida da língua.
Por um lado, no discurso, as palavras contraem entre si, em virtude de
seu encadeamento, relações fundadas sobre o caráter linear da língua, que exclui
90
Cabe ressaltar a observação que Saussure faz a respeito dos valores serem puramente
diferenciais. Como vimos, ele diz que na língua não há mais que diferenças; seja considerando o
significado, seja considerando o significante, a língua não implica nem idéias nem sons que
preexistam ao sistema lingüístico, mas só diferenças conceituais e diferenças fônicas nascidas
dele. Mas dizer que tudo é negativo na língua só é verdade, segundo ele, no que se refere ao
significado e ao significante tomados separadamente (se comparamos duas imagens acústicas ou
duas idéias) (o grifo é nosso): se se considera o signo em sua totalidade, nos encontramos na
presença de algo positivo em sua ordem. O sistema de valores que o enfrentamento de sons e
idéias gera constitui o vinculo efetivo entre os elementos fônicos e psíquicos no interior de cada
signo. Os signos seriam, então, termos positivos, que não são diferentes, apenas se opõem. Todo
o mecanismo da linguagem (relações sintagmáticas e paradigmáticas) descansa sobre oposições
desse gênero e sobre as diferenças fônicas e conceituais que implicam (ibid.: 168-170).
94
a possibilidade de pronunciar dois elementos de uma vez. Eles se alinham uns
atrás dos outros na cadeia da fala. Essas combinações são os sintagmas
91
; estes
se compõem sempre de duas ou mais unidades consecutivas. Situado num
sintagma, um termo adquire valor só porque se opõe ao que precede e ao que
segue, ou aos dois. Quase todas as unidades da língua dependem, seja do que as
rodeia na cadeia falada, seja das partes sucessivas de que elas mesmas estão
compostas; essas são as solidariedades sintagmáticas.
A combinação de palavras (ou das partes que compõem uma palavra)
não une elementos independentes, mas é um produto de uma combinação de dois
elementos solidários que só têm valor por sua ação recíproca em uma unidade
superior. Essa relação mútua confere valor às unidades. Portanto, a totalidade
vale por causa das partes, e estas, por sua vez, valem também em virtude de seu
lugar na totalidade, e por isso a relação sintagmática da parte ao todo é tão
importante quanto a das partes entre si (id. ibid.: 178-179).
Por outro lado, à margem do discurso, as palavras que oferecem algo
em comum se associam na memória e formam grupos em cujo seio reinam
relações muito diversas. Assim, a palavra do espanhol enseñanza fará surgir
inconscientemente ante o espírito uma multiplicidade de outras palavras (enseñar,
enseñamos ou então templanza, esperanza, ou mesmo aprendizaje, educación)
que apresentam algo em comum (radical, sufixo e significado, respectivamente)
com o vocábulo em questão. Os grupos formados por associação mental captam a
natureza das relações que unem os signos em cada caso e cria tantas series
associativas quantas relações diversas existem (id. ibid.:175).
Saussure afirma que estas coordenações, que denomina relações
associativas, são de uma espécie completamente diferente das primeiras, já que
não têm por apoio a extensão. A sua sede está no cérebro; fazem parte do
tesouro interior que constitui a língua do individuo. A relação sintagmática é in
91
A noção de sintagma se aplica não só a palavras, mas também a grupos de palavras, a palavras
complexas, derivadas, membros da frase e frases inteiras (ibid.:174).
95
praesentia; se apóia em dois ou mais termos igualmente presentes em uma serie
efetiva. Pelo contrario, a relação associativa une termos in absentia em uma série
mnemônica virtual. Além disso, enquanto um sintagma apela imediatamente à
idéia de uma ordem de sucessão e de um número determinado de elementos, os
termos de uma família associativa não se apresentam em número definido, nem
em uma ordem determinada. Não se pode dizer de antemão qual seria o número
de palavras sugeridas pela memória, nem em que ordem aparecerão. O caráter de
número indefinido da série associativa pode falhar apenas em algumas poucas
situações, como ocorre com os paradigmas de flexão, que têm um número de
casos determinado (id. ibid.:176).
Saussure recorre a outra metáfora para ilustrar esses dois tipos de
relações. Uma unidade lingüística seria comparável a uma parte determinada de
um edifício, uma coluna, por exemplo. Esta se encontra, por um lado, em certa
relação com a viga mestre que sustenta; assim como a relação sintagmática, trata-
se de uma disposição de duas unidades igualmente presentes no espaço. Por
outro lado, se essa coluna é de ordem dórica, evoca a comparação mental com as
demais ordens (jônica, corintia, etc.), que são elementos não presentes no
espaço: trata-se da relação associativa (id. ibid.:173).
O conjunto das diferenças fônicas e conceituais que constitui a língua
resulta, portanto, de duas classes de comparações: associativas e
sintagmáticas. Essas agrupações estão, em grande medida, estabelecidas pela
língua, e é esse conjunto de relações usuais o que a constitui e o que preside seu
funcionamento (id. ibid.: 178-179).
IV.1.5. As possibilidades combinatórias: podemos combinar as unidades da
língua de maneira livre?
Saussure, como vimos, afirma que as palavras adquirem valor pela sua
relação com termos semelhantes, por um lado (eixo paradigmático), e pela
influencia mútua das palavras combinadas na cadeia falada (eixo sintagmático),
96
por outro. Trataremos um pouco mais detalhadamente deste último tipo de relação
entre os signos a que Saussure já aludia.
Esse lingüista reconhecia a existência de certas combinações
recorrentes, fixas nas línguas, e até mesmo na fala, cujo caráter assistemático
suporia menor regularidade de combinações. Para ele, nem todos os sintagmas
são igualmente livres. Prova disso seria o grande número de expressões que são
locuções feitas, para as quais o uso proíbe qualquer mudança (id. ibid.:174).
Também afirma que é preciso atribuir à língua, e não à fala, todos os tipos de
sintagmas constituídos sobre formas regulares, ou seja, assevera que há
combinações queS fazem parte da língua, do que é sistemático e que, portanto,
podem ser descritas.
Atualmente, a Lingüística reconhece esse caráter sistemático de muitas
das combinações léxicas, o que, em parte, assemelha-se ao que Saussure já dizia
a respeito das relações sintagmáticas: a combinação das palavras contribui para
definir seu valor; não se trata de uma justaposição de elementos cujos valores
estão previamente definidos.
Desde então, a Lingüística vem desenvolvendo estudos sobre os
diversos tipos de combinações léxicas nos idiomas. Interessa-nos, neste trabalho,
observar as restrições lingüísticas que regulam as combinações léxicas, as quais,
a nosso modo de ver, podem ser descritas de maneira sistemática por meio de
traços semânticos. Baseamo-nos, para tanto, nas reflexões que Bosque (2004) faz
sobre o tema para oferecer um caminho possível para a explicação das distintas
possibilidades combinatórias nas línguas.
Esse autor, ao considerar questões da combinatória léxica, afirma que
em muitas das combinações de palavras é possível reconhecer restrições
semânticas que os predicados impõem a seus argumentos. E como essas
restrições, nesses casos, são de caráter lingüístico, podem ser descritas
objetivamente. Importa-nos fazer essa incursão pela questão da combinatória
léxica principalmente por esse fator, que imprime singularidade às línguas e,
97
conseqüentemente, o aprendiz de língua estrangeira deve conhecer. Isso porque
o fato de que determinadas palavras admitam combinar-se com outras
especificamente nem sempre, segundo Bosque, é algo que se possa deduzir de
nosso conhecimento de mundo, mas trata-se de uma construção que se dá no
interior de cada idioma.
Partiremos, portanto, dessa visão de que combinação léxica não é uma
simples justaposição de palavras fruto do “hábito”, mas uma relação entre
vocábulos que contribui à produção do valor dos signos, como dizia Saussure, e
que, portanto, possui um componente semântico. E isso se dá porque as palavras,
ao se combinarem, não seguem somente restrições sintáticas, mas também
restrições semânticas, e os paradigmas de itens léxicos selecionados pelos
predicados podem ser descritos por meio das clássicas restrições seletivas ou
com outras mais específicas que, como veremos, Bosque (ibid.) propõe que se
faça.
Ao considerarmos que a combinatória é regida por relações lingüísticas,
também ela está sujeita, em muitos casos, à interpretação, do mesmo modo que a
significação. Quem deseje aprender outras línguas deve conhecer também esse
aspecto do idioma, já que nem sempre as línguas coincidem nas restrições
semânticas que os predicados impõem a seus argumentos.
IV.2. A combinatória léxica
Bosque (2004:LXXIX), em um estudo introdutório ao seu dicionário
Redes, afirma que não se podem prever todas as combinações léxicas que as
línguas naturais permitem. Se isso fosse possível, a sintaxe se reduziria à
fraseologia ou à lexicografia. Da mesma maneira, segue o autor, é claro que as
combinações léxicas que podemos descrever e analisar de maneira sistemática –
ou seja, como parte objetiva do idioma – não se limitam às locuções e aos ditados.
Não podemos dizer que, com exceção dessas unidades fraseológicas, a língua
admita qualquer combinação de palavras, sem mais restrições que as leis da
sintaxe (tradicionalmente entendidas), nosso bom senso e nossas preferências
98
individuais. Se examinarmos as conexões entre as palavras com certa atenção,
comprova-se que o sistema lingüístico fixa muito mais opções do que costumamos
reconhecer de maneira explícita.
Bosque (ibid.:LXXX) se pergunta, então, que espaço existe as palavras
que escolhemos e combinamos em função de nossas intenções e as expressões
idiomáticas, aquelas palavras que se combinam em função das propriedades do
sistema gramatical e das características particulares das peças léxicas. Em suma,
o que o pesquisador se pergunta é como se estabelecem os limites entre o que o
idioma faz por nós e o que fazemos com o idioma. O dicionário Redes, que
Bosque dirige, dedica-se a esse espaço intermediário, o dessas combinações
sistemáticas de palavras que não constituem expressões idiomáticas,
descrevendo e analisando dados lingüísticos objetivos que permitem evidenciar
uma parte importante – não descrita nas gramáticas nem nos dicionários – da
estrutura do idioma. Abordaremos aspectos da concepção teórica de combinatória
léxica em que Redes se baseia para descrever essa estrutura, na qual nos
apoiaremos para as reflexões que desejamos desenvolver neste trabalho.
O autor (id.ibid.) recorda que existem obras que analisam a combinação
das palavras de variados pontos de vista, como as que tratam de expressões
idiomáticas com diversos critérios. Também contamos com dicionários de
valências
92
e de construção e regime, assim como com outros repertórios que
nos proporcionam informação sobre as propriedades sintáticas das palavras.
Esses dicionários não oferecem pistas que nos permitam restringir
semanticamente os argumentos dos predicados. Não nos dizem, por exemplo, que
possíveis sujeitos ou complementos um verbo transitivo pode ter, que verbos
podem ser modificados por um determinado advérbio ou que relação existe entre
o significado de um adjetivo e os substantivos que pode modificar.
92
Os dicionários de valências proporcionam informação gramatical de natureza categorial, já que
nos dizem, por exemplo, quantos argumentos os predicados têm e como se realizam
sintaticamente (se essas posições são ocupadas por sintagmas nominais ou preposicionais, ou por
orações às que correspondem distintas estruturas) (id.ibid.).
99
Uma pergunta que decorre disso é se é possível descrever
objetivamente esses aspectos da relação léxico-sintaxe. Eles não dependem por
completo de nossa escolha pessoal, inteiramente livre? Uma resposta freqüente a
esta pergunta se baseia no conceito de “hábito”. Consiste em lembrar que, junto
às expressões idiomáticas e aos resultados da chamada “livre combinatória”,
existem também no idioma certas “rotinas” e algumas “tendências” que nos levam
a colocar juntas certas palavras com uma “freqüência maior” do que se observa
em outras agrupações, sem que nos questionemos sobre qualquer tipo de relação
ou restrição semântica entre as palavras combinadas.
Embora muito difundido, esse ponto de vista parece considerar, como
afirma o autor, que temos claras as fronteiras que existem entre os sistemas e os
hábitos; entre as coordenadas que limitam as propriedades gramaticais e
semânticas das palavras e as rotinas. Sabemos realmente distinguir com tanta
nitidez o sistemático do habitual, a necessidade do costume? (id.ibid.:LXXXI)
Bosque (id. ibid.) afirma que não se oferecem muitas respostas a essas
perguntas na abundantíssima bibliografia sobre esses temas. Também não se
encontram análises que desenvolvam a possibilidade de que algumas dessas
“tendências” acabem sendo elementos integrados no sistema lingüístico.
Evidentemente que não todas podem ser sistemáticas, mas também é claro que,
muitas vezes, o que se costuma chamar “freqüente” se vê como algo “estendido
sem razão de sê-lo”, quando não o é. E, nesse caso, o termo “freqüente” desvirtua
um pouco sua natureza: todos os comportamentos que se ajustam a algum
sistema são, efetivamente, freqüentes, mas isso não é mais que uma forma de
dizer que estão sujeitos a ele.
Pode-se dizer que o que é sistemático constitui um subconjunto do que
é habitual ou repetido, mas se nos limitarmos a dizer que certos fenômenos são
freqüentes, não daremos mais informação sobre eles do que a que pode oferecer
um computador. O autor afirma que, ao mesmo tempo em que na lingüística
contemporânea se aperfeiçoam os recursos estatísticos, que permitem medir a
freqüência dos fenômenos, é preciso também refletir sobre a interpretação que se
100
deve dar a esses termos; sobre a diferença entre as rotinas e os sistemas, entre
as “formas habituais de combinar certas palavras” e “as propriedades
combinatórias de certas palavras”. O problema parece ser como distingui-los,
como estar seguros de que os fenômenos pertencem ao primeiro ou ao segundo
grupo
93
.
Bosque (LXXXII) considera que essas “preferências” não são resultado
de “rotina” e que é possível dar passos que permitam analisar os fatores
sistemáticos que se escondem em tais combinações e em centenas de fenômenos
similares de seleção léxica. O primeiro passo para analisá-las deve ser tentar
descrever essas agrupações e obter as primeiras generalizações que possamos
fazer sobre elas. É o que ele procura fazer em Redes.
IV.2.1. Existe relação entre essas combinações “habituais” e a fraseologia?
Bosque (LXXXIII) afirma que, em alguns aspectos, sim (há algo de fixo
nelas), em outros, não (não chegam a ser uma expressão idiomática). Antes disso,
retrata duas idéias freqüentes no trabalho dos fraseólogos sobre o conceito de
combinatória com que ele não concorda.
A primeira é a distinção, repetidamente usada nos estudos de
fraseologia, entre a chamada “combinatória livre” e a chamada “combinatória
restrita”. Para Bosque (id. ibid.), não está muito claro o que quer dizer “livre” na
expressão acima. Ele entende que se refere à ausência de restrições gramaticais
93
Bosque (LXXXII) afirma que atribuir essas combinações a “hábitos” ou mesmo a “normas” não é
muito esclarecedor, pois elas são alheias à descrição sistemática. Os domínios que
tradicionalmente conhecemos não ofereceriam a informação de que necessitamos. O gramático
tentará talvez buscar alguma restrição de tipo aspectual nessas séries, mas não é provável que a
encontre. Dirá então que o advérbio profundamente, por exemplo, agrupa-se com outros que
modificam o sintagma verbal, especificam a forma em que se realizam as ações e os processos e
funcionam sintaticamente como complementos circunstanciais de modo. É correto, mas não
responde a pergunta. O fraseólogo não se dedicará a isso, porque profundamente não é uma
locução e, portanto, não está dentro de seu campo de trabalho. O lexicógrafo pode nos dar uma
boa definição de profundamente (‘com agudeza, com intensidade, com profundidade’) e aí
realmente terminam suas obrigações. Todos se dedicaram a profundamente no que lhes compete,
mas não conseguimos esclarecer nossa questão sobre a combinatória de uma peça léxica como
profundamente.
101
que vão além das puramente categoriais na sintaxe. Toma como exemplo o verbo
saber do espanhol, para o qual não haveria mais restrições gramaticais que a
categorial. No entanto, ressalta que se pode saber una dirección, la forma de
llegar a um sitio, la altura de un edifício, um número de teléfono ou una canción,
mas não sabemos una virtud, una responsabilidad ou la ventana de un edificio.
Esta não parece ser uma combinatória livre, mas uma combinatória restrita.
Embora sua combinação se restrinja por fatores que vão além dos categoriais,
este fenômeno não pertence ao domínio da fraseologia.
As restrições são, como se reconhece geralmente, categoriais,
posicionais, semânticas, morfológicas, prosódicas, discursivas e de outros tipos.
Se a combinatória livre se refere à ausência de restrições semânticas entre as
palavras, é difícil especificar então quais são exatamente os predicados que não
impõem nenhum tipo de restrição semântica a seus argumentos (talvez “ver”,
imaginar, ter interesse e outros como esses) ou, em geral, as unidades léxicas que
carecem por completo de restrições sobre suas vizinhas ou sobre outras à
distancia. Pode não haver nada contra de que o domínio da fraseologia se defina
parcialmente em função do conceito de combinatória restrita, mas, dado que a
noção de combinatória livre é rejeitada pela maior parte dos sintaticistas, parece
que a diferença entre ambos os domínios está no tipo de restrições que se
consideram relevantes em cada um deles, e não na presença ou ausência de
restrições (id.ibid.: LXXXIV).
A segunda idéia que o autor considera problemática é a relação,
também enfatizada nos trabalhos de fraseologia, entre o conceito de “freqüência
de coaparição” e o de “idiomaticidade”. Para ele, a freqüência não é um fator que
garanta a idiomaticidade, o que se comprova, por exemplo, com a combinação do
verbo leer e o substantivo libro, que é muito freqüente (pode-se confirmar isso
num corpus). A alta freqüência dessa combinação, no entanto, não oferece
grandes descobertas, já que o que ocorre é que a natureza gramatical do verbo
leer o obriga a combinar-se com substantivos de informação (ou com substantivos
que designam textos), e o objeto de informação mais usado em nossa cultura é o
102
livro. Essa combinação de palavras é sumamente freqüente, mas essa freqüência
não a faz uma expressão idiomática. Ela é freqüente porque é sistemática, ou
seja, porque está dentro de algum sistema gramatical em que se completam os
requisitos categoriais dos verbos com outros requisitos selecionadores de
natureza semântica. Assim, há muitos casos da combinatória em que não há nada
de casual, porque atrás de elevadas freqüências pode haver sistemas, e não
hábitos. No entanto, Bosque (ibid. LXXXV) reconhece que existem combinações
que são resultado de criações literárias que passaram à língua comum, de modas
passageiras e de outros fatores que define como “escorregadios”, às quais não
nos dedicaremos.
No dicionário Redes, o pesquisador (ibid.: LXXXVI-LXXXVII) explora
sistematicamente os vínculos semânticos que se escondem nessas agrupações
de combinações sistemáticas. As colocações
94
e outras agrupações léxicas
freqüentes foram estudadas, em espanhol e em outras línguas, partindo
fundamentalmente da freqüência que essas combinações mostram em
comparação com outras possíveis. Em Redes, são exploradas as combinações
freqüentes tomando como ponto de partida os critérios semânticos que permitem
94
Bosque (id.:CLIII-CLVII) reconhece a utilidade do estudo das colocações, mas não exatamente
como o faz a corrente clássica que estuda essas unidades, provavelmente a mais difundida. Para
esta corrente, o conceito de colocação está guiado fundamentalmente pela freqüência de
coaparição de duas unidades léxicas. Para ele, a maneira como a segunda corrente vê esse
conceito é muito mais interessante: as colocações são o resultado de dar forma léxica a certas
relações semânticas que podem ser descritas formalmente. A segunda linha que estuda as
colocações desenvolve a teoria Sentido-Texto: as colocações são descritas através de conexões
semânticas entre as palavras que permitem estabelecer leques de relações variadas. Bosque
(ibid.) coincide com essa segunda linha ao tentar dotar de conteúdo as combinações léxicas que
na corrente clássica são apresentadas como combinações freqüentes. Isso porque, para ele, a
análise da seleção léxica é, fundamentalmente, um problema semântico e, para compreender
estas unidades, é preciso refletir sobre as relações que existem entre o significado dos predicados
e os vocábulos com que se combina, sobre a forma como os predicados restringem seus
argumentos e sobre a noção de “classe semântica sensível à combinatória sintática”. Para ele, a
primeira orientação substitui frequentemente essas reflexões por considerações sobre a freqüência
de coaparição das unidades e sua fixação na gramática. Em seu dicionário, Bosque afirma
coincidir com os dicionários de combinação por apresentar informação combinatória, mas opta por
uma concepção diferente dos mecanismos semânticos que a sustentam. Reconhece o valor
didático desses dicionários, mas centra sua pesquisa na relação predicado-argumento e no
conceito de “classe léxica”, que permite restringi-la. A freqüência de coaparição, para ele, é um
fator menos importante que a relação semântica restritiva que se estabelece entre a palavra
selecionadora e a selecionada.
103
agrupar conceitualmente estas palavras, e especialmente as formas em que os
predicados restringem seus argumentos. Esta perspectiva introduz um ponto de
vista diferente do que parece ser predominante nos estudos fraseológicos sobre o
conceito de “colocação”.
IV.2.2. A proposta de Bosque (2004): a análise das restrições semânticas que
os predicados impõem a seus argumentos
Bosque (2004) trata de restrições léxicas, mais exatamente, trata de
delimitar as restrições significativas que os predicados impõem a seus
argumentos, os quais podem, por sua vez, ser agrupados conceitualmente em
classes léxicas. E como um predicado restringe seus argumentos? Pode-se
pensar na chamada “seleção categorial
95
” ou em “seleção semântica”
96
, sendo
esta última a que nos interessa especialmente neste trabalho. Os conteúdos aos
quais a seleção semântica atende são de natureza distinta aos da seleção
categorial; um predicado pode selecionar noções muito diversas: objetos físicos,
lugares, eventos, ou proposições que contêm incógnitas, entre muitas outras.
Bosque (ibid.:XCVI), no entanto, adverte que as respostas que a teoria gramatical
contemporânea oferece para a seleção semântica não são tão precisas. Embora a
seleção de categorias tenha sido estudada com mais detalhe que a seleção
semântica, o autor afirma que é possível propor vias para delimitar esta última.
A primeira reflexão que o autor (ibid.: XCVII) faz para atingir esse
objetivo é se as chamadas “restrições seletivas
97
proporcionam uma via de
95
A seleção categorial é a que as gramáticas de valências geralmente abordam. Um verbo
transitivo selecionará um objeto direto, mas este complemento poderá estar representado por um
sintagma nominal, como em dar, uma subordinada substantiva, como em opinar, ou por qualquer
dessas duas unidades, como em pedir (id.:XCVI).
96
Bosque (id. ibid.)afirma que a distinção entre esses dois tipos de seleção se remonta, no âmbito
da gramática gerativa, a Grimshaw (1979). Depois foi retomada por Pesetsky (1982), Chomsky
(1986) e muitos outros autores.
97
Segundo Pietroforte (ibid.: 118-119), para descrever as relações entre os signos pode-se utilizar
um procedimento metódico de decompor suas unidades
em traços distintivos. Tal tipo de
descrição se realizou primeiro no plano do significante, ao descreverem-se os fonemas das
unidades decompondo-as em seus traços distintivos. Dessa maneira pode-se organizar o sistema
fonológico de uma língua, evidenciando suas classes internas. Esses métodos, aplicados com
104
análise apropriada para delimitar a “seleção semântica”. Segundo Bosque, a
resposta que se sugeria nos anos 60 a essa pergunta era afirmativa; na
atualidade, são vários os argumentos que sugerem uma resposta negativa.
As restrições seletivas (em inglês selectional restrictions) foram
introduzidas na gramática gerativa há quarenta anos. No entanto, não foram
pesquisadas com muito detalhe, em parte porque se suspeitava que sua natureza
era extralingüística e porque seu lugar na teoria gramatical não estava
inteiramente claro. Trata-se de traços semânticos como “humano”, “animado”,
“concreto”, “abstrato”, “objeto material”, “objeto liquido”, “artefato”, “instrumento” e
outros similares. Esses traços semânticos apareceram em Katz e Fodor (1963) e
Katz e Postal (1964), e mais tarde em Chomsky (1965). Embora Katz (1966 e
1967) persistisse no uso dessas informações como parte de diversos marcadores
semânticos, McCawley (1968) e Fillmore (1970) sustentaram com argumentos
importantes que estas restrições constituem informação pressuposicional dos
predicados, do que se deduzia que não são parte essencial da análise sintática
(id.ibid).
Como observaram D. Bolinger (apud Bosque, 2004), E. Coseriu (apud
Bosque, 2004) e outros lingüistas americanos e europeus de posições teóricas
diferentes, o problema fundamental das restrições seletivas é que na maior parte
dos casos aportam informação de natureza extralingüística. Bosque (ibid.:XCVII)
ilustra tal problema com um exemplo. Suponhamos que queiramos restringir os
êxito nesse plano, foram transpostos à descrição das unidades de conteúdo. Cada
unidade,consideremos seu significante ou seu significado, comporta pelo menos um traço em
comum com o restante da série e também ao menos um traço que a diferencia. A descrição do
valor conceitual do signo, que é o que nos interessa mais especificamente em nosso trabalho,
pode ser feita descrevendo-se os traços distintivos próprios do conteúdo, os chamados semas.
Pietroforte (ibid.) afirma que esse tipo de descrição se denomina Análise Componencial ou
Sêmica, uma análise que ordena de maneira mais explícita os conteúdos focalizados dentro de um
campo lexical, e põe à mostra o que esses itens lexicais têm em comum, bem como aquilo que faz
a especificidade de uns e outros. No entanto, reconhece que esse método tem suas limitações, já
que, por exemplo, traços como “de matéria flexível” não se prestam bem a uma análise binária,
sendo notoriamente uma questão de gradações ao longo de um eixo contínuo. A análise em
termos de “presença (+)/ausência (-)” dos traços distintivos é, na verdade, um expediente útil para
introduzirmos categorizações em grandes linhas, mas deve ser refinada com ajuda de ferramentas
descritivas aptas ao processamento continuo.
105
substantivos com que podemos construir possíveis sujeitos do verbo cantar.
Sabemos que essa ação se restringe aos seres humanos e a alguns animais
(certos pássaros e, ao que parece, às baleias), mas não temos essa informação
porque ela constitui uma parte do significado do verbo cantar, mas porque
conhecemos as entidades do mundo que têm a propriedade de cantar. Ou seja, a
informação a que nos referimos não tem relação com nosso conhecimento do
idioma: diz-nos algo a respeito da realidade e de nossa experiência em relação
a ela, mas não nos diz nada sobre o significado das palavras.
O autor segue seu raciocínio (ibid.:XCVIII) afirmando que podemos
tentar construir um paradigma com os possíveis sujeitos de cantar, mas essa lista
não atenderá a nenhuma propriedade lingüística. Essa relação não nos diz nada
sobre o conhecimento do idioma, mas, sobre nossa experiência com as coisas do
mundo que têm a propriedade de cantar. Para saber quais são elas, segundo ele,
não é preciso olhar as palavras, basta olhar ao redor no mundo. Portanto, segue o
autor, se as restrições seletivas nos aportam propriedades dessa natureza, pode-
se colocar em dúvida sua contribuição objetiva ao conhecimento do idioma
98
.
Bosque vê esse raciocínio como correto no fundamental. E em função
disso, ressalta que é necessário reconhecer que devem ficar fora da gramática, e
também da semântica léxica, uma série de traços (por serem do conhecimento
extralingüístico) sobre os quais as bases semânticas da combinatória gramatical
se apoiaram durante muitos anos. Entretanto, reconhece que podemos buscar
outros traços léxicos que não sejam tão claramente extralingüísticos, já que o fato
de que os traços mencionados acima (“objeto físico” “humano”, “instrumento”, etc.)
não sejam inteiramente úteis como recursos seletivos não quer dizer que não
existam outros que não possam sê-lo.
Em outros trabalhos seus, Bosque (1999, 2000a) oferece um exemplo
de análise baseada em novos traços. Segundo suas reflexões, é esperável que os
98
Quando se contrastam culturas diferentes, no entanto, acreditamos que esses conhecimentos,
que Bosque chama de extralingüísticos, necessários para estabelecer essas seleções, também
podem, em alguns casos, variar no tempo e no espaço.
106
nomes coletivos (muchedumbre) e os contínuos (maleza) aportem lexicamente a
noção de pluralidade que se pode conseguir com a morfologia (árboles) ou com a
sintaxe (Juan y María). Excluindo-se as orações, os únicos complementos que a
preposição entre, do espanhol, admite são sintagmas nominais formados com
substantivos em plural (entre los árboles), construídos com substantivos
coordenados (entre Juan y María), com nomes contínuos ou não contáveis (entre
la maleza) ou com nomes coletivos (entre la muchedumbre). Só existem, portanto,
quatro possibilidades. O autor afirma que os traços [coletivo] e [não contável] são
traços léxicos e desempenham um papel importante em um grande número de
construções sintáticas. No entanto, reconhece que a análise lingüística necessita
traços mais específicos que esses. Isso porque, por exemplo, os nomes contínuos
ou não contáveis que designam líquidos rejeitam a construção com entre (não se
diz *entre el agua, mas sim entre el barro), seguramente porque estas não são
matérias compactas. A mesma restrição explica o contraste entre el humo vs.
*entre el aire, o que é inesperado se o traço pertinente é [não contável] no lugar de
[compacto].
Note-se que a informação que traz o traço hipotético [compacto] é
lingüística, não extralingüística. A irregularidade da seqüência *entre el água não
é paralela à das seqüências que poderíamos formar atribuindo ao verbo cantar
sujeitos que designem serem que cantam. Uma prova disso é o fato de que as
propriedades léxicas dos complementos da preposição entre (ibid.:XCIX) estão
sujeitas a variação histórica e dialetal na gramática espanhola. Na língua do Siglo
de Oro, os substantivos que designam tecidos aceitavam a preposição entre
construídos em singular e sem coordenação, talvez porque se entendia que as
dobras dos tecidos trazem consigo a noção de pluralidade que entre necessita
satisfazer
99
. No espanhol do México esta propriedade permanece viva
100
, mas
99
Bosque (ibid.: XCIX) oferece os exemplos: Traía en las manos un lienzo Delgado, y entre él, a lo
que pude divisar, un corazón de carne momia (Quijote II 23); La última, que traía el corazón entre
el lienzo, era la señora Belerma (ibid.).
100
Bosque (id. Ibid.) ilustra esse fato com os exemplos: …con disimulo, entre su falda guardó cinco
pedazos (E. Abreu Gómez, Canec).
107
para muitos hispanofalantes as combinações entre el lienzo, entre su falda ou
entre la manta (no singular e sem coordenação) são anômalas no espanhol de
hoje; estes falantes usariam en ou en medio de no lugar de entre.
Interessa ressaltar o fato de que não se tem acesso a essas
informações analisando o mundo, ou seja, considerando as propriedades objetivas
das multidões ou das saias, mas examinando a estrutura do idioma e as classes
lingüísticas que se reconhecem nele. Os traços que estão em jogo são, portanto,
propriamente lingüísticos, estão sujeitos a variação histórica e dialetal e sabemos
que não coincidem com os que outras línguas manifestam. Não estão entre as
restrições seletivas tradicionais (humano, etc.), mas são traços semânticos
sensíveis à seleção léxica.
Para Bosque (ibid.), isso deixa evidente que necessitamos um sistema
de traços mais articulado que o que nos sugerem as restrições léxicas. O autor
propõe, por exemplo, o traço [compacto], ou alguma variante dele, entre outros
similares, que não aparecem atualmente em nenhuma classificação ou
subclassificação dos nomes comuns.
Assim, se voltarmos à pergunta que o autor se fez anteriormente sobre
se as restrições seletivas proporcionam uma via apropriada para delimitar a
seleção semântica, obteremos uma resposta negativa a ela se se interpretam
essas restrições em seu sentido clássico, pois ele as considera insuficientes
muitas vezes. No entanto, ele adverte que dar essa resposta negativa a essa
pergunta não significa negar o fato de que a relação predicado-argumento pode
ser restringida mediante informações semânticas objetivas que não devem
considerar-se extralingüísticas, mas parte de nosso conhecimento do idioma
(ibid.:C).
Segundo ele, há vários exemplos que comprovam essa possibilidade,
em boa parte obtidos da análise dos chamados “usos figurados”, os quais o
dicionário aborda com muitos detalhes. Como exemplo, ele cita o verbo planear
em uma de suas acepções e em relação com seus possíveis sujeitos. Sabemos
108
que esse verbo designa certo tipo de ação física para que estão capacitados
aviões, gaivotas, águias e seres humanos que tenham a habilidade e os aparelhos
que essa ação requer.
Podemos supor que esse paradigma é extralingüístico e que deve ser
descartado com argumentos semelhantes aos que o autor oferece para cantar. Se
deixarmos de lado essa lista, nota-se que qualquer pessoa que fala espanhol sabe
que nessa língua não planean só os sujeitos que mencionamos, mas também las
sombras, las dudas, las sospechas, las incógnitas, las amenazas, los mistérios, lo
peligros, los riesgos, los temores, los miedos (que denomina noções imateriais) e
umas poucas noções mais. Podemos descartar também esta segunda lista por
estarmos também ante uma informação extralingüística? Bosque afirma que não,
pois, se o fizéramos, admitiríamos que é possível partir das definições das
palavras para obter o conjunto de seres a que planear se aplica de maneira
natural
101
. Mais ainda, os falantes não nativos do espanhol chegariam a elas de
forma igualmente automática aplicando o bom senso. Mas parece que nenhuma
dessas coisas é possível. As propriedades fundamentais de paradigmas como
este são quatro:
a) não são obtidos a partir do conhecimento da realidade, mas da análise do
idioma;
101
Isso fica patente também com o que Bosque (ibid.:CVIII) afirma sobre as definições que os
dicionários trazem dos vocábulos. Ressalta que tais definições dão cabida frequentemente a muito
mais usos do que efetivamente o idioma admite. É muito simples encontrar exemplos desse fato
conhecido. Segundo o DRAE, o adjetivo sumo significa “muy grande, enorme”, mas é claro que
não dizemos em espanhol Tenía suma hambre, El sumo ódio que sentia ou Esta lámpara es suma.
Deduz-se que as coisas que são muito grandes constituem um conjunto muito maior que o que
formam os substantivos que admitem com naturalidade o adjetivo sumo. Não podemos dizer que
essa definição do vocábulo seja inapropriada, mas é claro que o paradigma de combinações
possíveis é muito mais restrito do que o que se deduz indiretamente dela. Este não é, segundo o
autor, um problema do DRAE nem de nenhum outro dicionário, mas um traço conhecido da
lexicologia clássica, já que não é objetivo fundamental dos dicionários ocupar-se da combinatória
léxica. Por isso, embora muitas vezes o aprendiz veja o dicionário como a fonte a que recorrer para
resolver todos os problemas lingüísticos, nem sempre alcança seu objetivo, pois não se deve vê-lo
como uma obra que contém “toda a língua”. Os lexicógrafos, no entanto, contam com um poderoso
instrumento restritivo que os auxilia nessa tarefa de restringir os usos: o contorno. Os contornos
das definições podem apresentar grande precisão (Dícese de las personas que...; Referido a un
ave,...; Dicho de un lugar,...), mas nem sempre é tão simples delimitá-los (ibid.:CIX).
109
b) não se estendem indefinidamente, por isso podem ser descritos, restringidos
e caracterizados adequadamente;
c) não se deduzem da definição da palavra; ou seja, não procedem da definição
dos vocábulos;
d) devem ser aprendidos especificamente por quem adquire o idioma como
primeira ou como segunda língua.
Bosque (ibid.:CI) afirma que o primeiro paradigma, que ele chama de
“designativo”, não costuma oferecer grandes dificuldades na hora de deduzir as
combinações. Uma prova disso seria que se desejássemos traduzir o sentido
físico
102
de derrumbarse a outro idioma (cf. por exemplo o inglês collapse),
obteríamos praticamente o mesmo paradigma de combinações: rascacielos, casa,
pared, muralla, castillo, cielo.... No entanto, não se poderá usar a definição de
derrumbarse que se usou no primeiro caso e construir com ela uma lista de
noções imateriais com que se combina. Em espanhol, mas não necessariamente
em outras línguas em que existam equivalentes aproximados de derrumbarse, se
derrumban los sueños, las esperanzas, las expectativas, los planes, las ilusiones e
outras noções similares a estas. Novamente se trata de uma lista limitada e
bastante restrita: las dudas, por exemplo, não se derrumban, mas se disipan,
dispersan o desvacen.
Essa informação não aparece nos dicionários, mas é objetiva e deve
ser aprendida especificamente por quem estuda espanhol. Se um hispanofalante
tenta reproduzir em inglês, em alemão ou em russo os usos figurados de acariciar
(acariciar el éxito, un proyecto), é possível que tenha alguns problemas que
102
Bosque utiliza várias vezes a expressão “uso físico”. Nesse seu estudo da combinatória léxica
ele o vê como abreviatura de um conceito um pouco mais complexo: “restrições que os predicados
impõem a seus argumentos baseadas unicamente em noções de natureza física, como são as que
denotam a maior parte das restrições seletivas. Assim, um verbo cujo sujeito designe pessoas ou
cujo complemento designe objetos materiais não será um verbo ‘sem restrições’, mas um verbo
cuja combinatória estará restrita por paradigmas que se podem construir, em grande medida, em
função do conhecimento que os falantes têm do mundo, não do idioma” (ibid.:CXV). Esses
paradigmas, para ele, têm escasso interesse lingüístico.
110
possivelmente não surgiriam se se limitasse ao uso estritamente físico (acariciar
um gato) (ibid.:CII).
Portanto, pensando na aplicação mais direta da questão da
combinatória léxica a nossa pesquisa, aceitando que as combinações de usos
figurados não são fruto da capacidade dedutiva do falante, estamos ante o
conhecimento de um sistema lingüístico compartilhado. Nesses usos não físicos,
não devemos olhar ao nosso redor, mas olhar para o interior do idioma.
Conseqüentemente, nesses casos da combinatória léxica, o aprendiz deve entrar
com contato não apenas com os valores dos vocábulos, mas também com as
restrições que os predicados impõem a seus argumentos na outra língua que, por
definirem-se lingüisticamente, podem divergir de sua língua materna. Trata-se,
assim, de pensar o léxico também por meio da relação que existe entre os valores
das palavras e a maneira como as combinamos.
111
V. COMPLEMENTANDO O CORTE SAUSSUREANO: O
TRATAMENTO DO SENTIDO NO ACONTECIMENTO ENUNCIATIVO
No capítulo anterior, ao tratarmos da significação para Saussure e da
questão da restrição semântica da combinatória léxica, ressaltamos as razões
pelas quais a visão da significação no léxico (e na língua) em que a imagem que
analisamos se sustenta não nos parece abarcar a complexidade do funcionamento
semântico. Além disso, tais desenvolvimentos teóricos contribuirão para análise
final de casos em que palavras “amigas” levam a mal entendidos, o que faremos
com o intuito de ilustrar nossa hipótese de que não há propriamente “amigos” nas
línguas.
No entanto, parece-nos importante conjugar os pressupostos teóricos
sobre o sistema lingüístico do capítulo anterior a uma perspectiva que considere a
participação de outros fatores, excluídos por Saussure, na produção de sentido.
No entanto, essa reintrodução do que era exterioridade para Saussure não supõe
que o sentido será tratado como algo puramente extralingüístico, fruto, por
exemplo, da intenção do sujeito ou da sua verificação na realidade. Trata-se de
conjugar o lingüístico com fatores exteriores a ele na produção de sentido, mas
não negamos as determinações/restrições que a ordem da língua impõe.
Partindo da Análise do Discurso, incluiremos em nosso aparato teórico
as determinações que a história impõe à produção de sentido. Veremos, como
afirma Guimarães (2002:65-66), a questão do sentido como uma questão
enunciativa em que a enunciação é vista historicamente. Partiremos do
pressuposto de que a significação é histórica, mas não como algo temporal,
historiográfico, e sim a produção de sentido como determinada pelas condições
sociais de sua existência. Sua materialidade é essa historicidade. Tal concepção
de significação aborda o sentido como algo discursivo e definido a partir do
acontecimento enunciativo. A inclusão da influencia da historicidade se faz
especialmente importante quando se aborda a produção de sentido num contexto
de duas línguas em contato, já que se supõe que se cruzarão determinações
112
sócio-históricas diferentes. Para tanto, dos desenvolvimentos teóricos da Análise
do Discurso, basear-nos-emos especialmente no conceito de interdiscurso.
Seguindo esse intuito de complementar a perspectiva saussuriana no
que tange à significação, operaremos com o conceito de representação social.
Tal noção, como veremos, retrata a percepção da realidade que norteia um
determinado grupo social e é a base das chamadas identidades sociais (e de uma
de suas dimensões, as identidades culturais). A constituição da percepção do
mundo que caracteriza um grupo social determinado se faz entre o homem e a
realidade natural e social, intermediada pela linguagem (Orlandi, 2003:15). Essa
mediação, que é o discurso (e seu trabalho simbólico), torna possível tanto a
permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do
homem e da realidade em que ele vive. Dessa forma, consideraremos a relação
das “coisas do mundo” com a significação
103
também capital no contato entre duas
identidades. No entanto, para nós, essa relação não é algo que já “está pronto”,
não é unívoca nem direta, mas intermediada pelo filtro do olhar de um grupo
social.
Buscaremos recolher vestígios dessas determinações na materialidade
lingüística e, se possível, estabelecer algumas regularidades, espaços de
repetição dentro dos grupos sociais a que nos dedicaremos.
Finalmente, neste capítulo, procuraremos pensar a significação das
palavras e qual o papel delas na construção dos efeitos de sentido quando
participam de um enunciado. Veremos que elas são resultado de um processo de
“moldagem” que se produz historicamente e, por isso, possuem restrições sócio-
históricas.
103
Saussure (2002), ao criticar concepções que consideravam as línguas nomenclaturas, etiquetas
coladas aos referentes, atribuiu grande peso ao sistema, às relações dos signos entre si como
fonte da significação, destituindo as “coisas do mundo” de quaisquer relações com valores das
palavras, por considerá-lo extralingüístico (cfr. capítulo anterior).
113
V.1 Sentido e interdiscurso
104
Guimarães (2002:11) propõe o tratamento do sentido
105
a partir do
funcionamento da linguagem no acontecimento da enunciação. A enunciação é
vista, deste modo, como um acontecimento de linguagem perpassado pelo
interdiscurso, que se dá como espaço de memória no acontecimento. O
acontecimento, portanto, é constitutivo do sentido, mas enquanto configurado pela
relação do presente com a memória do interdiscurso e as regularidades da língua
que são regularidades históricas. Uma semântica histórica da enunciação, tal
como esse autor a vê, constitui-se tratando a significação ao mesmo tempo como
lingüística, histórica e relativa à identidade do sujeito que enuncia. É quando o
individuo se encontra interpelado como sujeito e se vê como identidade que a
língua se põe em funcionamento (ibid.:70 e 86)
106
.
104
Inserimos este quadrinho de Mafalda por considerar que, a modo de epígrafe, ilustraria de
maneira lúdica a relação do sentido com o já-dito, com a memória discursiva: como a personagem
afirma, para entender o que dizem seus pais, precisa conhecer esse já-dito dos adultos de que ela
não participou. Do mesmo modo, o aprendiz de língua estrangeira deve inserir-se no interdiscurso
da outra língua para compreender os efeitos de sentido que se produzem.
105
Guimarães (ibid.: 85), ao tratar de uma semântica histórica da enunciação, dialoga com a
Análise de Discurso, especialmente com Pêcheux, Orlandi, Authier e Henry.
106
Não vemos o sentido como algo pronto, mas como efeito, como resultado de condições de
produção determinadas, o que não supõe unicamente a influência de determinações históricas.
Como afirma Orlandi (2003:30-31), o analista de discurso põe em relação o dizer com suas
condições de produção para compreender os sentidos produzidos. Considera, portanto, os sujeitos
envolvidos, o contexto imediato (condições de produção em sentido estrito) e o contexto sócio-
histórico, ideológico (condições de produção em sentido amplo). Daremos ênfase, em nosso
trabalho, à memória, no que tange ao discurso, ou seja, ao interdiscurso (juntamente com as
determinações sociais), por considerá-lo de importância singular para o tema de que nos
114
Para tal proposta de trabalho com a semântica, portanto, Guimarães
(ibid.) se baseia especialmente na concepção de enunciação como
acontecimento, em que o interdiscurso tem um papel central na produção de
sentido. Vejamos com mais detalhes essa noção de acontecimento tal como a
propõe Pêcheux (2002).
Pêcheux (2002:16-23), ao tratar o discurso como acontecimento, o vê
como ponto de encontro de uma atualidade e uma memória, ou seja, o
acontecimento trabalha em seu contexto de atualidade e no espaço de memória
que ele convoca e organiza. Tratar o discurso como acontecimento lhe confere
uma opacidade, pois imerge o que se diz em uma rede de relações associativas
implícitas – paráfrases, implicações, comentários, alusões, etc -, isto é, em uma
série heterogênea de enunciados, produzindo uma estabilidade lógica variável.
Em função disso, a Análise do Discurso vê como seu objeto explicitar e descrever
montagens, arranjos sócio-históricos de constelações de enunciados. A
interpretação, conseqüentemente, não é vista como uma proposição estabilizada,
que designa um acontecimento localizado como um ponto em um espaço de
disjunções lógicas.
Esse modo de ver a interpretação se distingue de como a vê o domínio
das matemáticas, das ciências da natureza e a gestão social dos indivíduos, que
lidam com a existência do “real”, tido como pontos que determinam aquilo que não
pode não ser “assim”, o impossível que seja de outro modo. São espaços que
apresentam as aparências da coerção lógica disjuntiva, norteados por um
raciocínio “é isto ou aquilo”. Esses espaços repousam, em seu funcionamento
discursivo interno, sobre uma proibição de interpretação, implicando o uso
regulado de proposições lógicas (Verdadeiro ou Falso) com interrogações
disjuntivas (“o estado de coisas” é A ou não-A?).
ocupamos, já que tratamos do contato entre línguas e identidades culturais, o que supõe o
cruzamento de determinações sócio-históricas distintas.
115
Nesses espaços discursivos logicamente estabilizados, supõe-se que
todo sujeito falante sabe do que se fala, porque todo enunciado produzido
nesses espaços reflete propriedades estruturais independentes de sua
enunciação: essas propriedades se inscrevem, transparentemente, em uma
descrição adequada do universo (esse universo é tomado discursivamente nesses
espaços). Há, portanto, uma “cobertura” lógica de regiões heterogêneas do real,
considerada por Pêcheux (ibid.:29-32) como falsa-aparência de um real natural-
social-histórico homogêneo coberto por uma rede de proposições lógicas.
No entanto, o autor (ibid.:33-35) não considera que os espaços
estabilizados são impostos do exterior, pelo poder dos cientistas, especialistas e
responsáveis administrativos, como coerções ao sujeito pragmático. É algo
intrínseco a esse sujeito a busca por uma homogeneidade lógica. O sujeito
pragmático – isto é, cada um de nós, os “simples particulares” face às diversas
urgências de sua vida – tem por si mesmo uma imperiosa necessidade de
homogeneidade lógica (o que se verifica pela existência de uma multiplicidade de
pequenos sistemas lógicos portáteis, que vão da gestão cotidiana da existência
até as “grandes decisões” da vida social e afetiva, passando por todo o contexto
sócio-técnico dos “aparelhos domésticos”).
Essa necessidade de fronteiras, de um “mundo semanticamente
normal”, coincide com a construção de laços de dependência com as múltiplas
“coisas-a-saber”, consideradas como reservas de conhecimento acumuladas,
máquinas-de-saber contra as ameaças de toda espécie – o Estado e as
instituições, em nossa sociedade, funcionam como lugares privilegiados de
resposta a essa necessidade. O projeto de um saber que unificaria esta
multiplicidade heteróclita de “coisas-a-saber” em uma estrutura homogênea
representável, a idéia de uma possível ciência da estrutura desse real, capaz de
explicitá-lo fora de toda falsa-aparência e de lhe assegurar o controle sem risco de
interpretação (uma auto-leitura científica, sem falha, do real) responde a uma
urgência humana, de forma que o fantasma desse saber, eficaz, administrável e
116
transmissível, não podia deixar de se materializar historicamente em todos os
meios
107
.
Pêcheux propõe suspender a posição do espectador universal como
fonte da homogeneidade lógica e interrogar o sujeito pragmático. Para ele
(ibid.:43-44), interrogar-se sobre a existência de um real próprio às disciplinas de
interpretação exige que o não-logicamente-estável não seja considerado a priori
como um defeito, um simples furo no real. É preciso supor que possa existir um
outro tipo de real, diferente do que acaba de ser evocado, e também um outro tipo
de saber, que não se reduz à ordem das “coisas-a-saber”. Trata-se de um real
constitutivamente estranho à univocidade lógica, e um saber que não se
transmite, não se aprende, não se ensina, e que, no entanto, existe
produzindo efeitos.
Segundo o autor, o estruturalismo pode ser considerado uma tentativa
anti-positivista de levar em conta este tipo de real, sobre o qual o pensamento
vem dar, no entrecruzamento da linguagem e da história. Novas práticas de
leitura aplicadas de início aos monumentos textuais surgiram desse movimento: o
princípio dessas leituras consistia em multiplicar as relações entre o que é dito
aqui (em tal lugar), e dito assim e não de outro jeito, com o que é dito em outro
lugar e de outro modo, a fim de se colocar em posição de “entender” a presença
de não-ditos no interior do que é dito.
Pêcheux (ibid.:49) propõe que se faça uma aproximação entre a
“análise da linguagem ordinária” e as práticas de “leitura” de arranjos discursivo-
textuais, ou seja, trabalhar sobre as materialidades discursivas através de suas
relações com o cotidiano, com o ordinário do sentido.
107
Pêcheux (ibid.:39-42) fala da “temática aristocrática da boa leitura” oposta às “más leituras”
banais e falaciosas ao comentar o fato de que Marx tivesse se recusado a se reconhecer nos
efeitos iniciais associados à “recepção” sócio-histórica de sua obra, algo que de fato significava da
seguinte maneira: “Eu, Karl Marx, sou efetivamente marxista... mas não no sentido em que se
entende comumente”. Vemos a questão da interpretação justa, sempre em reserva quanto às
interpretações errôneas. Supõe-se, assim, um “verdadeiro” marxismo de reserva, que não admite
interpretação que não seja a “verdadeira”, que também deixa entrever a idéia de uma
homogeneidade lógica.
117
No entanto, essa maneira de trabalhar impõe algumas exigências: a
primeira delas consiste em dar o primado aos gestos de descrição das
materialidades discursivas. Uma descrição, nessa perspectiva, supõe o
reconhecimento de um real especifico
108
sobre o qual ela se instala: o real da
língua
109
. A pesquisa lingüística começaria assim a se descolar da obsessão da
ambigüidade (entendida como lógica do “ou...ou”), para abordar o próprio da
língua através do papel do equívoco, da elipse, da falta, etc. Esse jogo de
diferenças, alterações, contradições não pode ser concebido como o
amolecimento de um núcleo duro lógico. Isto obriga a pesquisa lingüística a
construir procedimentos capazes de abordar o fato lingüístico do equívoco como
fato estrutural implicado pela ordem do simbólico. Isto é, a necessidade de
trabalhar no ponto em que cessa a consistência da representação lógica inscrita
no espaço dos “mundos normais”.
108
O objeto próprio da Lingüística, segundo Gadet & Pêcheux (1984:12 e 17), é a língua, e
chamam-na o real da língua. Esse real, seguem os autores (ibid.: 27), inscreve-se dentro de uma
disjuntiva principal entre a noção de uma ordem própria à língua, imanente à estrutura de seus
efeitos, e a de uma ordem exterior que se remete a uma dominação que é preciso conservar,
restabelecer ou derrocar. Advertem também que para os que asseguram que a língua está ligada à
existência de uma ordem própria, o real da língua reside em tudo o que nela Uno, no que a
sustenta dentro do Mesmo e do Idêntico e que a opõe a tudo o que dentro da linguagem fica fora
dela, esse inferno ininteligível que os antigos designavam como termo de “barbarismo
(designação arcaica do exterior à língua): o campo do proibido na linguagem fica assim
estruturalmente produzido pela língua, emana de seu interior. Milner (1989:9-11) analisa o real da
língua tido como da ordem do calculável. Mas, segue ele, para chegar a esse axioma, é necessário
constituir a língua como um real, rejeitando qualquer causa que não seja de sua própria ordem,
não o fazendo causa mais que de sua ordem. Isso seria o que se denomina o arbitrário do signo,
com o que o signo não deve ter nenhum amo fora dele mesmo, e que não é amo mais que de si
mesmo. O conceito de signo e o princípio de distintividade servem para constituir a língua como um
real representável para o cálculo. Essa rede do real, construída de cálculo em cálculo, tem no o
impossível entendido como o agramatical princípio de pesquisa. Milner (ibid.) adverte para o
“assombroso” dessa concepção do real da língua, já que o real em que a Lingüística se sustenta
não está suturado, está percorrido por falhas, as que são perceptíveis para a própria ciência.
Essas falhas são registradas pelo cálculo como o que lhe é irredutível; esse autor considera sua
natureza e sua lógica aclaráveis pelo discurso freudiano: em lalangue, entendida como não
representável para o cálculo, essas falhas são os retratos de onde o desejo irrompe e o gozo se
assenta.
109
Advertimos que o componente do inconsciente (desejo) que o conceito de real da língua supõe
não figurará em nosso trabalho, pois nos centraremos na relação paráfrase/polissemia, ou seja, na
relação de permanência e deslocamento como produtora de equívocos e no desconhecimento, por
parte do aprendiz, da memória discursiva como agravante desse efeito.
118
O objeto da lingüística (o próprio da língua) aparece, assim,
atravessado por uma divisão discursiva entre dois espaços: o da manipulação de
significações estabilizadas, normatizadas por uma higiene pedagógica do
pensamento, e o de transformações do sentido, escapando a qualquer norma
estabelecida a priori, de um trabalho do sentido sobre o sentido, tomado no
relançar indefinido das interpretações. O registro do ordinário do sentido tem um
caráter oscilante e paradoxal.
Conseqüentemente, toda descrição está intrinsecamente exposta ao
equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se
outro, diferente de si mesmo, deslocar-se discursivamente de seu sentido para
derivar para um outro (a não ser que a proibição da interpretação própria ao
logicamente estável se exerça sobre ele explicitamente). Todo enunciado, toda
seqüência de enunciados é, pois, lingüisticamente descritível como uma série
(léxico-sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo
lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a Análise de
Discurso.
E é porque há o outro nas sociedades (outras posições) e na historia (o
interdiscurso), correspondente a esse outro próprio ao linguajeiro discursivo, que
aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma
relação abrindo possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as
filiações históricas podem se organizar em memórias, e as relações sociais em
redes de significantes. Assim, “as coisas-a-saber” são sempre tomadas em redes
de memória dando lugar a filiações identificadoras e não a aprendizagens por
interação: a transferência não é uma “interação”, e as filiações históricas nas quais
se inscrevem os indivíduos não são “máquinas de aprender”. A descrição de um
enunciado ou de uma seqüência coloca necessariamente em jogo (através da
detecção de lugares vazios, de elipses, de negações e interrogações, múltiplas
formas de discurso relatado...) o discurso-outro como espaço virtual de leitura
desse enunciado ou dessa seqüência (ibid.:50-55).
119
Pêcheux (ibid.) adverte que, no limite, uma concepção estrutural da
discursividade desembocaria em um apagamento do acontecimento, através de
sua absorção em uma sobre-interpretação antecipadora. Isso porque o gesto que
consiste em inscrever um discurso dado em uma série determinada, a incorporá-lo
a uma filiação identificadora, corre sempre o risco de absorver o acontecimento
desse discurso na estrutura da série, na medida em que esta tende a funcionar
como grade de leitura ou memória antecipadora do discurso em questão. A noção
de formação discursiva derivou muitas vezes para a idéia de uma máquina
discursiva de assujeitamento dotada de uma estrutura semiótica interna e por isso
mesmo voltada à repetição.
O que o pesquisador francês propõe não é que todo discurso seja como
um aerólito miraculoso, independente das redes de memória e dos trajetos sociais
nos quais ele irrompe, mas sublinha que, só por sua existência, todo discurso
marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes e
trajetos: todo discurso é o índice potencial de uma agitação nas filiações sócio-
históricas de identificação, na medida em que ele constitui, ao mesmo tempo, um
efeito dessas filiações e um trabalho de deslocamento no seu espaço: não há
identificação plenamente bem sucedida. Pêcheux propõe que, por meio de
descrições regulares de montagens discursivas, podem-se detectar os momentos
de interpretações enquanto atos que surgem como tomadas de posição,
reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não
negados. Ele é contra as interpretações nas quais o intérprete se coloca como um
ponto absoluto, sem outro nem real (ibid.:55-57).
120
A determinação que o interdiscurso
110
impõe ao que se diz o torna uma
dimensão essencial a considerar-se na produção de sentido em língua
estrangeira. Esta, como afirma Serrani-Infante (1997:76), do mesmo modo que a
língua materna do aprendiz, “não é independente das redes de memória ou das
filiações sócio-históricas de identificação”. Conseqüentemente, a nosso modo de
ver, o processo de aprendizagem de uma língua estrangeira deve considerar o
processo de produção em língua estrangeira como “processo de inscrição do
sujeito de enunciação em discursividades da língua alvo” (Serrani-Infante, ibid.:
68). Esse processo de inscrição numa língua estrangeira não se faz, entretanto,
sem um estranhamento por parte do aprendiz, que se depara com “outros modos
de estruturar as significações ‘do’ mundo, que se apresenta ‘tangivelmente’ como
múltiplo e construído” (ibid.:77)
111
. Trataremos mais detalhadamente, no subitem
seguinte, dessa questão da significação como fruto da construção de grupos
sociais e, por conseguinte, da variabilidade a que está sujeita.
No entanto, como ressalta Pêcheux (ibid.) em suas reflexões que
mencionamos sobre o acontecimento do discurso, o sentido não é algo já pronto,
pré-determinado pela ação da memória. Há essa inscrição do que se diz no
interdiscurso, mas isso não quer dizer que não haja espaço para o novo, para a
desestruturação dessas redes de filiações a que o dizer remete. O sentido é
resultado de um jogo entre paráfrase e polissemia, ou seja, entre manutenção e
subversão. Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais, em todo dizer, há
sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória, a condição para
110
Gadet & Pêcheux (1984:170) afirmam que a discursividade não se reduz ao efeito de
intradiscurso, mas evoca a existência de um interdiscurso como efeito constitutivo, sobre a
seqüência “dada”, das seqüências exteriores, independentes e anteriores. O “exterior radical”
residiria na ordem específica do interdiscurso, a modo de efeitos discursivos inscritos em campos
de arquivos (reais ou virtuais), segundo os termos de Foucault. A existência histórica das
“materialidades discursivas” desloca ao mesmo tempo a questão do sujeito e a dos dados, já que
tende a ir além da análise sintática da seqüência, substituindo a interpelação semântica pela
prática que consiste em interrogar os textos referindo-os a sua posição dentro de um terreno
histórico. A tese resultante é que o sentido não pré-existe a sua constituição nos processos
discursivos (os grifos são nossos).
111
Serrani-Infanti (ibid.) trata também de um estranhamento do sujeito em relação a si mesmo
nesse processo. Entretanto, não desenvolveremos essa questão por estar fora de nossos objetivos
nesta pesquisa.
121
significar. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado que,
por conseguinte, estão do lado da estabilização (Orlandi, 2003: 36).
Já a polissemia representa o deslocamento, a ruptura de processos de
significação. Toda vez que tomamos a palavra, produzimos uma mexida na rede
de filiação dos sentidos. Ela joga com o equívoco, com a não-estabilização. A
polissemia é também condição de existência dos discursos, pois se os sentidos
não fossem múltiplos, não pudessem ser outros, não haveria necessidade de
dizer. O discurso se faz nessa tensão entre o mesmo e o diferente, porque se o
real da língua não fosse sujeito à falha e o real da história não fosse passível de
ruptura, não haveria movimento possível. Por isso, nem os sentidos (nem o
discurso) já estão prontos, esperando apenas que o sujeito recolha o “sentido
verdadeiro”. Por se constituírem nessa relação tensa entre paráfrase e polissemia,
por serem efeitos de um jogo entre a manutenção e o deslocamento das regras, a
intervenção do diferente, os sentidos sempre podem ser outros: depende de como
são afetados pela língua, de como se inscrevem na história (Orlandi, ibid.:36-38).
Esse jogo de diferenças, alterações, contradições é, portanto, próprio
da produção de sentido e, conseqüentemente, e segundo Pêcheux (2002), o fato
lingüístico do equívoco deve ser tomado como fato estrutural, já que toda
descrição está intrinsecamente exposta ao equívoco da língua: todo
enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, de deslocar-se
discursivamente de seu sentido para derivar para um outro. Todo enunciado,
como já dissemos, é lingüisticamente descritível como uma série (léxico-
sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à
interpretação.
Embora Pêcheux (ibid.) não tratasse da produção de sentido em
línguas estrangeiras, parece-nos que, da mesma forma que o equívoco é
intrínseco à “nossa língua”, pode-se dizer que isso também é verdade para as
enunciações em quaisquer idiomas estrangeiros, já que neles também se dá o
jogo de paráfrase e polissemia. Além desse aspecto estrutural do equívoco
lingüístico a que estão sujeitas as línguas naturais, há um fator que pode propiciá-
122
lo ainda mais no caso da aprendizagem de línguas estrangeiras - talvez mais
recorrente em aprendizes brasileiros ao enunciar em espanhol: a primazia da
superfície lingüística em detrimento de outros fatores que participam na produção
de sentido. A representação recorrente em nosso país de que o espanhol é muito
semelhante ao português normalmente desconsidera a necessidade do processo
de inscrição na rede de memória da outra língua pelo qual o aprendiz deve passar
para significar.
Se, por um lado, portanto, equívoco é constitutivo das línguas naturais,
por outro, ele pode, na produção em espanhol do aprendiz brasileiro, tornar-se
excessivamente recorrente quando o componente histórico não é considerado
nesse processo.
V.2. As representações sociais
Aprender sobre o outro sempre é árduo; enxergar o
mundo do outro e, principalmente, o mundo segundo o outro
parece-nos essencial na aprendizagem de qualquer língua
estrangeira, mas é algo capital no contato português-espanhol
(Fanjul, 2000:155) (grifo nosso).
Dentre os fatores excluídos pelo corte saussureano que pretendemos
conjugar à análise lingüística, está o que Bourdieu (1985:7-8) define como
“natureza social de uma língua”, tida como uma de suas características internas, já
que o autor vê a heterogeneidade como intrínseca às línguas.
Pode-se captar essa faceta social do lingüístico por meio do conceito de
representação social, ou seja, a visão que os agentes constroem do mundo
social, visão essa que caracteriza uma identidade social, nos termos de Bourdieu
(1990):
“La teoría más resueltamente objetivista debe integrar la representación que los
agentes se hacen del mundo social y, más precisamente, su contribución a la
construcción de la visión de ese mundo y, por lo tanto, a la construcción de ese
mundo por medio del trabajo de representación (en todos los sentidos del término)
que efectúan sin cesar para imponer su propia visión del mundo o la visión de su
propia posición en ese mundo, de su identidad social” (Bourdieu,1990:287).
123
Para o autor (ibid.:288), essa percepção está socialmente estruturada,
principalmente porque os esquemas de percepção e apreciação suscetíveis de
funcionar em um momento dado, e em particular aqueles depositados na
linguagem, são o produto de lutas simbólicas anteriores e expressam, de maneira
mais ou menos transformada, o estado das relações simbólicas de força.
Todas as formas de identidade coletiva reconhecidas são o produto
de uma larga e lenta elaboração coletiva: cada um dos corpos representados
dotados de uma identidade social conhecida e reconhecida existe graças a um
conjunto de instituições que são outras tantas invenções históricas. As divisões
sociais e a visão social dessas divisões são fruto de um trabalho histórico. Na
identidade social se engendra um habitus, ambos produtos da historia, suscetíveis
de serem transformados com maior ou menor dificuldade pela história (ibid.:304-
305).
Assim, a visão e percepção do mundo social predominantes em cada
cultura - que permitem às pessoas reconhecerem as diferenças sociais -
produzem as representações sociais, cujo mecanismo de aquisição e reprodução
é o habitus. Esses conhecimentos não são adquiridos por meio de estudo, e sim
pelo contato com uma determinada sociedade. Essas representações que os
agentes sociais têm da realidade, portanto, participam na produção e conservação
das identidades sociais e de uma de suas dimensões, a identidade cultural.
Fanjul (2002:30) afirma que, para que as representações identitárias se
reproduzam e funcionem, necessitam materializar-se em signos de algum sistema
semiótico. Em sua pesquisa, aborda essa materialização discursiva com base no
sistema lingüístico, o que também procuraremos fazer em nosso trabalho.
Tratando da aprendizagem do espanhol por brasileiros (e vice-versa) em outra
publicação, o pesquisador (2000:156) sustenta que, para que esse processo seja
eficaz, devem-se explicitar as representações e os implícitos culturais para “correr
os véus idiomáticos” que ocultam contextos históricos passados e presentes, já
que nossas línguas, estruturalmente próximas, são a base material em que se dá
um jogo de alteridades e identidades lingüístico-culturais.
124
Isso porque, segue o autor (2000:160-163), é previsível que grupos que
falam línguas diferentes e vivem em países diferentes expressem representações
carregadas de conteúdos semânticos alheios entre si. Assim, a produção de
sentido na outra língua entrecruza as representações sociais e os
posicionamentos ideológicos nos quais o aprendiz se inscreve. Quando se
ignoram as representações da outra cultura, o que pode haver são problemas de
interpretação, já que haverá algo do sentido que o estrangeiro não captará.
Conseqüentemente, a possibilidade de equívocos se multiplica, indo além do
equívoco estrutural que Pêcheux (2002) considera constitutivo das línguas.
Proliferam-se as situações grotescas – que Revuz (2002:229-230) denomina
“diálogos de surdos” – em que o aprendiz não compreende o suficiente para
compreender que não compreendeu o que foi dito.
A nosso modo de ver, portanto, as representações sociais não devem
ser vistas como conteúdos inatingíveis, cujo “monopólio” esteja de posse dos
nativos da língua que se deseja aprender. É possível, ao menos, estabelecer
regularidades
112
de traços que caracterizam as representações de grupos
lingüístico-culturais e suas formas diferentes de representar as coisas do
mundo
113
. A consideração dessa alteridade constitutiva do que se diz, dessas
112
Advertimos que o fato de que se possam estabelecer regularidades para as determinações
dentro de identidades lingüístico-culturais não significa negar o caráter múltiplo dos espaços
sociais. Conseqüentemente, como ressalta Fanjul (2002:28-30), se considerarmos a dimensão
social a partir da singularidade, é possível que encontremos determinações muito diferentes das
encontradas no grupo social, ainda mais se o que delimita esses grupos são, como no nosso caso,
línguas e nações. Em função disso, Fanjul considera mais adequada a denominação “processos
identificatórios” que “identidades”. Por causa de seu dinamismo e de seu caráter conflitivo, aborda
as representações identificatórias de qualquer grupo social como articulação de tensões entre a
identidade e a alteridade.
113
Fanjul (2000:164-169), ao analisar sueño e “sonho”, tidos como “amigos verdadeiros” pelas
pedagogias que desatendem à discursividade - em oposição a sueño e “sono”, considerados
clássicos falsos amigos -, ressalta que aqueles referem-se à produção onírica e também têm
possibilidades conotativas similares em ambos os idiomas. O pesquisador, ao perceber que, no
espaço discursivo político brasileiro, “sonho” tem uma relação muito mais forte com o esperável,
começa a questionar tal amizade conotativa. A partir daí, fez um teste em que solicitava a
argentinos e brasileiros que oferecessem equivalências para um trecho de um texto em que sueño
remetia à produção onírica, com o intuito de recolher regularidades. O que ele pôde notar foi que a
esmagadora maioria dos argentinos que participaram da pesquisa reformularam sueños e
soñábamos remetendo-os ao utópico, enquanto a maioria dos brasileiros as reformularam
apontando para o atingível. Em ambos os casos, confluíram as representações sobre o trecho
125
falas sociais povoadas por representações do imaginário coletivo que significam a
partir do passado, deve participar do trabalho de interpretação, já que, como
afirma Gregolin (2000:23), interpretar é construir uma representação coletiva, uma
percepção de um grupo social sobre o mundo, é construir “o” senso comum
fundado na sua memória.
Pode-se estabelecer uma comparação, a nosso modo de ver, entre o
que Fiorin (2004) define como “caracterização do mundo”
114
, como o olhar que dá
a idiossincrasia de sentido às “coisas do mundo” dentro de um grupo social, ao
que Bourdieu (1990) chama de representações sociais. A relação entre os
referentes e a significação, portanto, é intermediada pelas representações
construídas em cada sociedade, fruto da memória. Ou, nas palavras de
Guimarães (2002:72), “não é o mundo físico que está em questão, mas o mundo
historicizado, um mundo já como sentido, um mundo interpretável”. E é passível
de interpretação porque os sentidos não estão totalmente na estrutura, nos termos
de Pêcheux (2002), mas também na memória social, o que provoca a atribuição
de significações diversificadas ao mundo.
Daí atribuirmos grande importância a esses implícitos culturais na
produção de sentido na outra língua, porque eles oferecem uma pauta para a
interpretação dentro de uma identidade cultural, em que se revela a relação entre
língua e interdiscurso na enunciação.
Finalmente, gostaríamos de comentar a epígrafe que introduz este
subitem. Ela nos parece ilustrativa da importância de não nos limitarmos à
materialidade lingüística, em vários pontos semelhante, das línguas portuguesa e
espanhola. Por tudo o que foi visto, muitas vezes essa aparente semelhança, essa
superfície similar que salta aos olhos, oculta diferenças no plano da significação.
reformulado, o que Fanjul atribui à ação de um implícito cultural, ligado à necessidade maior dos
argentinos, por um lado, de delimitar o factual e o não factual como estratégia pragmática. Por
outro, o predomínio do atingível nas reformulações dos brasileiros se deve, segundo ele, ao
sincretismo vontade–verificação que se espalha por muitos aspectos da linguagem desses
enunciadores. A desconsideração desse “a mais” de significação que são as representações é o
que permite atribuir a sueño e “sonho” a classificação de amigos verdadeiros.
114
Veja-se capítulo anterior.
126
Daí ser algo capital no contato português-espanhol, como afirma Fanjul (2000), ir
além da materialidade lingüística ao abordar a produção de sentido por aprendizes
brasileiros do espanhol (e vice-versa). A consideração dos fatores extralingüísticos
que intervêm na produção do sentido permite explicar essa sensação de estranho
familiar que muitas vezes provoca o contato dos brasileiros com o espanhol.
Também permite desmistificar a sensação de compreensão mútua automática que
muitas vezes age nas interlocuções entre os falantes dos dois idiomas, como bem
aponta Celada (1999).
V.3. As palavras têm sentidos ou valores? Pensando as palavras dentro e
fora dos enunciados
A Análise do Discurso, como vimos, dedica-se à formação de sentido
nos enunciados, nos discursos. Vê o discurso como acontecimento, e não apenas
como estrutura, como filiação a redes de memória para a produção de efeitos de
sentido. Estes, por conseguinte, não são algo “já-dado”, mas derivam da
confluência de diversos fatores que remetem um enunciado determinado a
filiações que o fazem significar: fatores lingüísticos, históricos e relativos à
identidade do sujeito que enuncia. Portanto, num enunciado, as palavras
participam, com outros elementos, da formação do sentido; elas são a
materialidade lingüística que sustenta o processo discursivo. Por isso, dentro
dessa tendência, não se pode dizer que as palavras têm sentidos - já que os
efeitos de sentido irrompem no acontecimento discursivo-, mas são o suporte
material para ele.
Entretanto, dizer que as palavras não têm sentidos não quer dizer que
elas estejam desprovidas de semântica. As palavras possuem uma semântica não
estabilizada – já que essa semântica não está pré-fixada às palavras, é suscetível
de mudança -, que são os traços que a historia foi deixando, os que se retiveram
dos enunciados por que passou:
“A memória da língua é uma memória latente, pois para significar precisa confrontar-
se sempre com a memória discursiva e o presente do acontecimento. E assim, por
127
ser latente, pode sempre ser outra coisa, para isso bastando que outras enunciações
a façam derivar, mesmo que imperceptivelmente. Deste modo uma forma na língua
não é nem soma de seus diversos passados, nem deriva de um étimo, nem algo em
si: senão uma latência à espera do acontecimento enunciativo, onde o presente e o
interdiscurso a fazem significar” (Guimarães, 1996:32).
É no acontecimento enunciativo, como afirma Guimarães (ibid.), que a
semântica potencial de que dispõem as palavras significa, despertada pelo
presente e pelo interdiscurso do acontecimento em que se insere. Da mesma
forma que as palavras necessitam inserir-se em enunciados concretos para
significar, é da participação nesses dizeres que se constitui a gama de seus
valores possíveis; nos termos de Guimarães:
“Para mim a enunciação é o lugar de funcionamento da língua movimentada pelo
interdiscurso, pela memória do dizer. A língua aparece, assim, como exposta ao
interdiscurso, isto é, a língua está exposta a uma memória dizível. Pode-se dizer,
então, que as formas da língua são o que são pela historia de suas enunciações.
Uma forma é na língua o que ela se tornou pela historia de seus funcionamentos na
enunciação. Deste modo, devemos considerar que a língua tem em si a memória
desta história, ou seja, a língua carrega na sua estrutura as marcas de seu passado“
(ibid.:27).
Por outro lado, embora a potência significante das palavras somente se
realize nos enunciados, podemos dizer que, fora deles, é possível descrever essa
latência em termos de valores diferenciais e possibilidades combinatórias,
conceitos que nos permitem aproximar-nos dos parâmetros de sua significação,
fruto da moldagem histórica.
No capítulo seguinte, analisaremos alguns casos que, a nosso modo de
ver, ilustram nossa hipótese de que não se pode falar em “amigos verdadeiros”
nas línguas. Para isso, contaremos com as noções de valor, de Saussure (2002) e
as reflexões sobre as possibilidades combinatórias das palavras de Bosque (2004)
no que se refere à descrição lingüística. Além disso, procuraremos observar outras
restrições, de cunho extralingüístico, que incidem na produção de sentido dos
enunciados analisados: determinações históricas e sociais.
128
VI. CASOS EM QUE SUPOSTOS “AMIGOS” SE REVELAM
“FALSOS AMIGOS”
Neste capítulo, analisaremos alguns casos em que palavras que
normalmente não figuram em listas de “falsos amigos” provocam mal-entendidos.
Tais análises nos permitirão ilustrar empiricamente por que nos parece que não há
propriamente “amigos” nas línguas - em oposição aos “falsos amigos” –, tidos,
como a representação que analisamos sobre o espanhol em nosso país leva a
crer, como lugar seguro para o aprendiz brasileiro de espanhol. Nosso
questionamento reside não em negar que as palavras que costumam compor tais
listas, como já ressaltamos neste trabalho, possam causar desencontros de
sentido em interlocuções entre lusofalantes e hispanofalantes, mas na percepção
que tal imagem promove de que, para o brasileiro, os esforços de estudo do
espanhol se resumem a algumas palavras que podem provocar mal-entendidos,
palavras essas que podem ser isoladas das demais e ser recolhidas em listas, a
fim de que, com elas, o aprendiz se previna de situações embaraçosas.
Isso, a nosso modo de ver, explica-se porque, como também já
mencionamos, essa metonímia do espanhol (González, 2000: 6) deixa entrever
uma concepção de língua e de significação que excluem a dinamicidade e
complexidade de seu funcionamento. Conforme já expusemos, para nós, a
formação de sentido se dá de maneira processual e complexa, já que conta com
diversos fatores que incidem no acontecimento discursivo e que produzem efeitos
de sentido. Em função disso, mesmo se o que se considera é a semântica
potencial das palavras, fora de discursos concretos, não se pode atribuir-lhes uma
semântica fixa, uma relação necessária entre significante e significado, já que isso
seria desconsiderar a possibilidade de deslizamento que pode haver entre essas
duas dimensões, segundo o grupo social em que se inserem.
Partindo dessas premissas, parece-nos difícil isolar palavras que a
priori levariam a mal-entendidos, já que os efeitos de sentido se produzem no
acontecimento; do mesmo modo, atribuir a todo o restante do léxico semelhante a
designação de lugar seguro, livre de mal-entendidos, parece complicado.
129
Além desse modo de conceber a produção de sentido, outro aspecto
que nos chama a atenção é o papel central (se não de exclusividade) que o léxico
ocupa quando se fala em significação, como se somente esse campo lingüístico
estivesse submetido a esse processo. Assim, se não podemos determinar lugares
aprioristicamente livres do equívoco para as palavras, livres de determinações
lingüísticas e sócio-históricas, também não o podemos fazer no que tange à
sintaxe. E é por essa razão que incluímos neste capítulo a análise de um caso em
que ocorrem desvios de sentido em um enunciado que contém construções
sintáticas que revelam trajetos lingüísticos distintos nas culturas envolvidas. O
resultado desses percursos distintos são recortes lingüísticos diferentes nas duas
línguas em questão, fator que, juntamente com as referidas questões sócio-
históricas, vão determinar significações também distintas.
Os casos analisados, que nos foram relatados por alunos e por
professores de espanhol no Brasil, parecem ser índices de que as semelhanças
superficiais não incluídas nas clássicas listas de falsos amigos não são
necessariamente e a priori “amigas”, ou seja, não se pode atribuir dificuldades ou
problemas de interpretação de maneira apriorística a nenhum nível da
materialidade lingüística, do mesmo modo que não se pode atribuir previamente
às diferenças o rótulo de “inimigas”.
VI.1. Caso 1: o léxico e o deslizamento de sentido
O primeiro caso que analisaremos é o de uma palavra supostamente
“amiga” que, segundo a imagem de que tratamos, poderia pertencer ao grande
grupo de palavras muito semelhantes no português e no espanhol. Veremos que,
no enunciado em que se insere esse vocábulo, os efeitos de sentido produzidos
levam a um desencontro de interpretação por parte dos falantes envolvidos, pouco
130
importando a grande semelhança de valores diferenciais possíveis dessa palavra
com a suposta ou mais provável correspondente do português
115
.
VI.1.1. Descrição e análise da situação
A situação que analisaremos ocorreu com um aluno de um curso livre
de espanhol – no qual, já no primeiro semestre, faz-se um trabalho de
conscientização com os alunos sobre algumas das imagens da língua espanhola
que circulam no Brasil, entre elas a da extrema facilidade – que estava no nível
intermediário do curso. Como o aluno já havia estudado espanhol por um ano,
seria possível supor que, com esse tempo de contato com a língua estrangeira,
pudesse já ter percebido que a hipótese de transparência para parte da língua não
se confirma por inteiro.
No verão seguinte, esse aluno foi estudar espanhol na Espanha e um
dia, depois de conversar alguns minutos com um policial na rua, despediu-se
dizendo-lhe: “¡Buen servicio!”. A reação do policial foi uma grande gargalhada e,
graças a isso
116
, o brasileiro pôde perceber que a interpretação que o espanhol
dera à expressão não correspondia ao que ele havia querido (e pensado) dizer, e
perguntou-lhe por que o que ele tinha dito era engraçado. O policial lhe disse,
então, que,TIRAR naquela frase, para ele, servicio parecia se referir a “banheiro” e
que o enunciado lhe soara como se o brasileiro lhe estivesse desejando uma boa
ida ao banheiro...
Como se vê, trata-se de uma situação em que houve um desencontro
de sentidos; situação, aliás, muito semelhante às de mal-entendidos que as
propagandas sobre o espanhol feitas por escolas de idiomas costumam explorar,
115
Neste trabalho, baseamo-nos no português falado no Brasil, mais especificamente na região de
São Paulo. Do mesmo modo, não desconsideramos a heterogeneidade da língua espanhola, de
modo que apontaremos o país de procedência do hispanofalante envolvido em cada um dos casos
analisados.
116
Nesse caso, a reação do policial com o riso ofereceu ao brasileiro o indício de que o que disse
não havia sido interpretado como ele desejava; no entanto, em muitos casos, a situação não alerta
para a incompreensão mútua em que os falantes não têm conhecimentos suficientes para perceber
que não compreenderam o que foi dito. A esse respeito, veja-se Revuz (1998: 229-230).
131
como forma de justificar a necessidade de estudo dessa língua. No entanto, nesse
caso, o mal-entendido se deu com uma palavra “amiga” ou que ao menos não
consta das listas mais freqüentes de “falsos amigos”.
Vejamos como a imagem de que tratamos permeia a fala do estudante.
A idéia de grande semelhança entre as duas línguas alimentou, como diz Celada
(2000: 42), “(...) la sensación de competencia inmediata, o sea, de apropiación
espontánea de la lengua del Otro”, pois o brasileiro se sentiu à vontade para
utilizar uma expressão que se utiliza muito freqüentemente no português do Brasil
em uma conversa em espanhol. Baseando-se na suposta transparência das
palavras que não estão na “lista negra” mais freqüente dos “falsos amigos”, o
estudante utilizou a palavra “servicio” num enunciado cujos efeitos de sentido não
puderam ser reconhecidos pelo espanhol – ao menos não as idiossincrasias de
sentido que “bom serviço” pode ter em português, como já veremos -, que, além
disso, associou-o a outros que provocaram riso.
Pode-se supor que o conceito de língua que norteia a relação do
estudante com o idioma estrangeiro é o de língua como lista de palavras (Celada,
2000:9). Nesta visão, para aprender a nova língua, basta conhecer uma nova
nomenclatura que se atribui às coisas do mundo, em tese sempre as mesmas, já
que se parte do suposto de que a interpretação que se dá a estas últimas é
mesma nas duas culturas envolvidas. Assim, os vocábulos são vistos fora do
funcionamento discursivo, já que se supõe a existência de sentidos – e não
valores – que pré-existem à enunciação e lhes são fixos, o que permitiria distinguir
os “falsos amigos” de “amigos verdadeiros”, esse léxico que estaria livre dos mal-
entendidos e que constituiria um lugar seguro para o brasileiro que fala o
espanhol.
Faremos a análise do caso a partir de uma perspectiva discursiva, pois
ela nos permite abordar fatores que se excluem nessa concepção de língua como
nomenclatura. Para a Análise do Discurso, as palavras são o suporte do sentido,
que se dá, em cada cultura, sempre em enunciados concretos, fruto da posição de
132
sujeito e da memória a que ela remete, de restrições lingüísticas e sociais que
determinam os efeitos de sentido que irromperá.
Seguindo essa perspectiva, buscaremos as causas desse desencontro
de sentidos verificando a que remetem “serviço” e servicio na memória social e na
historicidade de cada uma das culturas e grupos de falantes envolvidos no
contexto dado. Analisaremos, portanto, a materialidade lingüística desse
enunciado e tentaremos explicitar algumas possíveis determinações histórico-
sociais que acreditamos existir na diferença entre esses dois termos.
VI.1.2. As possíveis causas do desencontro de sentidos
Como vimos, a reação do policial – com o riso - permitiu que se
percebesse que o que foi dito não foi interpretado com o sentido que o brasileiro
pensou dar ao enunciado.
A palavra servicio possui diversos valores, mas, nesse contexto, o que
predominou para o hispanofalante foi o de “banheiro”. Por que o sentido que o
brasileiro quis e pensou dar à expressão não foi o mesmo atribuído pelo policial?
Parece-nos que influem questões específicas do acontecimento
enunciativo em que surgiu, mas também se cruzam determinações sócio-
históricas distintas na materialidade lingüística desse enunciado.
No que respeita ao que Orlandi (2003:30-31) define como contexto
imediato, o policial deixa sua interpretação ser “invadida” pelo sentido mais
chocante e fora de propósito dentre os possíveis (o fato de que alguém deseje
uma boa ida ao banheiro a uma pessoa), provavelmente buscando o efeito de
humor com o jogo de sentidos – algo que fazemos constantemente em nossa
língua quando queremos “distorcer” as palavras de nosso interlocutor, atribuindo
ao que foi dito um sentido jocoso, sentido esse permitido de alguma maneira pelo
enunciado, que nos aparece em forma de ambigüidade, de efeitos de sentido que
confluem no que se diz –, porque se supõe que o tipo de interlocução que estava
mantendo com aquele brasileiro assim o permitia.
133
Ou seja, como veremos, esse enunciado poderia perfeitamente ser
interpretado como se o brasileiro lhe estivesse desejando uma “boa jornada de
trabalho, de serviço à comunidade”; entretanto, esse não era o único efeito de
sentido possível: embora chocante, embora não fosse o mais adequado para
aquela enunciação, de alguma maneira o sentido “desejar uma boa ida ao
banheiro” era permitido pelo interdiscurso em que se inseria o que foi dito. No
entanto, o brasileiro não compreende o porquê de seu enunciado soar engraçado
ao policial (e nem o policial pôde reconhecer de todo os efeitos de sentido que o
brasileiro vê no que foi dito), porque, no que Orlandi (ibid.) define como contexto
em sentido amplo, cruzam-se distintas determinações sócio-históricas. Cada um
dos falantes, portanto, insere a materialidade lingüística desse discurso em redes
de memória distintas.
Consultamos três dicionários de língua espanhola
117
e três de língua
portuguesa do Brasil
118
, no intuito de comparar os valores potenciais desses itens
nas duas línguas e compreender quais poderiam ser as restrições que cada uma
delas oferece para esse enunciado.
Nos dicionários de língua espanhola, buscamos acepções para servicio
que se aproximem a “serviço=trabalho” – como é possível no português
119
–, com
o objetivo de verificar se esse valor constitui uma possibilidade em espanhol.
Encontramos acepções muito semelhantes
120
, principalmente com a preposição
117
Diccionario de uso del español, de María Moliner (2000) (MM), el Diccionario del español actual
de Manuel Seco, Olimpia Andrés y Gabino Ramos (1999) (MS) y el Diccionario de la Lengua
Española de la Real Academia Española (1992) (RAE))
118
Grande Dicionário Larousse Cultural da Língua Portuguesa (1999) (L), Dicionário Aurélio (1999)
(A), de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e o Dicionário Houaiss (2001) (H).
119
Nos dicionários de língua portuguesa, buscamos essa acepção de “serviço” que é quase um
sinônimo de “trabalho”, e a encontramos no Larousse como “emprego, trabalho (L, A)“, “duração
desse trabalho”, “estar de serviço, estar trabalhando” (L). No Dicionário Aurélio, “desempenho de
qualquer trabalho, emprego ou comissão”, “duração desse desempenho”, “estado de quem serve
por salário” e ”duração desse desempenho”.
120
de servicio. loc. adv. que con los verbos entrar, estar, tocar, salir y otros semejantes, se refiere
al desempeño activo de un cargo o función durante un turno de trabajo (RAE)”, “acción de realizar
(alguien o algo) el cometido que le es propio. Tb el tiempo establecido para esta acción. Ej. Delibes
Siestas 13: Conrado regresaba al pueblo después de su servicio en la Central. Cuevas Finca 98:
Se había casado con un carabinero que vino de servicio al pueblo” (MS) y “(de). estado de alguien
134
“de”, sempre remetendo a “desempeño activo de un cargo o función durante un
turno de trabajo (RAE)”. Embora haja nos dicionários acepções muito semelhantes
a “trabalho” para o vocábulo servicio (principalmente com a preposição de), não foi
esse valor que funcionou na primeira interpretação que surgiu. Inclusive é possível
que falantes nativos de espanhol nem mesmo reconheçam essa como uma
acepção possível em sua língua para referir-se a “trabalho”, já que ela não
constitui a seleção mais freqüente. Acreditamos que isso pode ser explicado pela
influência dos processos históricos na língua: por alguma razão, essa acepção
que se aproxima a “trabalho” passou por um processo de enfraquecimento no uso
por parte de seus falantes
121
.
Quais seriam, então, os valores possíveis, enquanto usos freqüentes,
para servicio? Poderíamos dizer que são
122
:
a) atividade de quem ocupa cargos que consistem em servir à comunidade, tais
como policiais, funcionários públicos, governantes, etc
123
;
o algo que está sirviendo en la cosa para que está destinado o a que está obligado: ‘El lunes entro
de servicio”.(MM)
121
Reconhecemos que seria necessário fazer uma pesquisa empírica para comprovar tais
hipóteses. No entanto, tendo em vista os objetivos centrais de nosso trabalho, não nos parece
necessário aprofundar-nos nessa questão.
122
Em consulta ao Corpus de Referencia del Español Actual (REAL ACADEMIA ESPAÑOLA:
Banco de datos (CREA) [en línea]. Corpus de referencia del español actual. <http://www.rae.es>
[23/10/2005]), solicitamos ocorrências da expressão buen servicio em meios (livros, jornais,
revistas, miscelânea e oral) da Espanha (país de procedência do interlocutor hispano-falante) e de
todos os países hispanofalantes de que dispõe esse corpus. Constituem a absoluta maioria das
ocorrências em todos os países os valores de servicio como “áreas de comercio que se dedicam
ao setor de prestação serviços” e o de “de profissionais que de dedicam a servir à comunidade”, do
que se pode depreender que, em termos de freqüência, buen servicio costuma remeter a esses
valores. Além disso, há outro dado interessante sobre a freqüência desses usos: a maioria das
ocorrências pertenciam a textos que tratavam de “comércio e finanças”, seguidos por “ócio”.
123
Alguns exemplos (año, autor, país, tema): 1. “No tengo todos los datos, pero creo que Felipe
González es ya una figura histórica que tiene (…) muchos aciertos que soy capaz de ver, a pesar
de que yo fui su derrotado en 1982. A lo mejor podría hacer un buen servicio a España (…)”
(1990, Prensa, España, Política). 2. “La Dirección de Tránsito ascendió a personal de suboficiales y
agentes de acuerdo a méritos y capacidad de cada uno de sus miembros, todo con el propósito de
motivarlos e incentivarlos para que sigan brindando un buen servicio a la ciudadanía a lo largo y
ancho del territorio nacional” (1996, Prensa, Honduras, Actualidades).3. “Nunca más, pues la
llamada era para comunicarle el relevo de su cargo de rector, que había cumplido a conciencia
durante cinco años en el liceo, y al cabo de toda una vida de buen servicio” (1982, Carlos Rangel,
Venezuela, Política).
135
b) atividade comercial de prestação de serviços, tais como serviço telefônico, de
água, esgoto, hoteleiro, etc
124
;
c) banheiro, provavelmente derivado de servicio sanitario
125
.
No enunciado que analisamos, o valor (a) para o termo servicio seria
perfeitamente plausível, o que permitiria parafrasear buen servicio como se o
brasileiro estivesse desejando ao policial “uma boa jornada de servir à
comunidade” e não soaria tão absurdo como “desejar uma boa ida ao banheiro”
126
.
Não nos aprofundaremos aqui nas possíveis razões pelas quais o
policial optou pelo sentido absurdo no enunciado
127
. O que nos parece essencial
neste momento, tendo em vista o objetivo central de nosso trabalho, é comparar
os valores a que remetem mais freqüentemente servicio e “serviço” em cada uma
das línguas, já que aquele termo não costuma referir-se a trabajo, e, como
veremos em seguida, este não é freqüentemente usado com o valor de “banheiro”.
Estas diferentes freqüências revelam restrições distintas, o que levou às
interpretações desencontradas que relatamos.
Vimos que servicio passou a remeter, mais freqüentemente, no campo
da atividade laboral, a valores que definimos como “atividade de quem ocupa
cargos de servir à comunidade” ou “atividade comercial de prestação de serviços”;
houve, portanto, um recorte de designação desse vocábulo no que se refere ao
âmbito laboral.
124
Alguns ejemplos: 1. “Marina Contarina, de las agencias de viaje Arestur e Iberatur, confirmó que
los hoteles se mantienen con muy buen servicio (…)” (1996, Prensa, Cuba, Turismo). 2. “¿Quién
hubiera podido imaginar sólo hace un lustro tal vez, que, en medio de semejante escasez de
servicio telefónico convencional, contaríamos con un buen servicio telefónico celular?” (2001,
Prensa, Nicaragua, Informática). 3. “Ristorante La Bussola. ($$$) Abrió sus puertas en 1984 y
desde entonces supo hacerse una firme clientela con su ambiente elegante (pisos de mármol,
sillas tapizadas) y buen servicio” (1999, Horacio de Dios, Argentina, Turismo).
125
Não houve nenhuma ocorrência no corpus consultado com esse valor.
126
O fato de que seja insólita a aparição do valor de “banheiro” para o policial se comprova, além
do que já mencionamos com relação ao contexto, por não termos encontrado nenhuma ocorrência
desse valor ao buscarmos o enunciado buen servicio no Corpus de Referencia del Español Actual.
127
No subitem VI.1.3. analisaremos um pouco mais detalhadamente as possíveis causas da
atribuição de um efeito de sentido cômico ao enunciado por parte do policial.
136
Fora dessa esfera servir/servidor, servicio, designando outros tipos de
trabalho (e não apenas o de atividades que consistem em servir e/ou oferecer
serviços), não apresenta alta freqüência em espanhol, como pudemos notar no
levantamento que fizemos. Assim, podemos dizer que, excluindo-se esse âmbito
de servir/servidor, em espanhol a seleção mais freqüente para designar atividades
laborais é o vocábulo trabajo.
Já em português, nota-se que “serviço”, além desses dois valores que
são freqüentes hoje para servicio, costuma possuir um “a mais” de significação em
relação a este termo, pois notamos a ocorrência de usos também em outros
contextos. Esse “a mais” que detectamos para “serviço” em relação a servicio
permite lançar uma hipótese sobre o porquê da manutenção de dois termos em
português – “serviço” e “trabalho” - para designar atividades laborais que vão além
das de prestação de serviço, enquanto o termo espanhol se restringe mais
freqüentemente a elas.
Recorreremos a Saussure (2002) para refletir sobre essa diferença. Em
espanhol, pode-se dizer que o valor de servicio semelhante a trabajo, com o
tempo, tornou-se menos freqüente porque o sistema não necessitava dois
vocábulos com valores tão semelhantes, de modo que os dois termos tenderam a
especializar-se, como forma de distinguir-se: trabajo assumiu, com maior
freqüência, o valor de atividade laboral em geral, enquanto servicio passou a estar
reservado para atividades comerciais ou para profissionais que se dedicam a
prestar serviços ou a servir, respectivamente.
Já em português, “serviço” possui esses valores delimitados por
servicio, mas continuou a definir outras atividades laborais que vão além da
prestação de serviço, competindo com “trabalho” em alguns pontos. Ou seja, em
relação a “trabalho”, “serviço” passou a designar com maior freqüência uma
determinada parcela de significação, obedecendo a uma restrição e
especialização semântica. É esse valor distintivo de “serviço” em relação a
“trabalho” que tornou pertinente e relevante a sua permanência até hoje no
português do Brasil.
137
Essa hipótese para a manutenção dos dois termos em português se
baseia teoricamente nas reflexões de Saussure (ibid.) a respeito do valor
conceitual dos signos, já que estes adquirem valor dentro do sistema da língua a
que pertencem, em função da oposição que exercem em relação a elementos com
valores semelhantes aos seus, o que evidencia as diferenças de uma unidade em
relação às outras. Os signos de um sistema, portanto, caracterizam-se por traços
de semelhança e de diferença, e estes últimos são o que permite que duas formas
próximas semanticamente coexistam. Se os traços distintivos dessa relação se
debilitam, um dos dois termos tende a cair em desuso, já que ele perde sua
singularidade e produtividade no sistema.
Veremos, agora, alguns enunciados em que se insere “serviço”, com o
intuito de buscar descrever os traços semânticos de seus usos mais freqüentes, o
que nos permitirá aproximar-nos às restrições que regulam tais usos. Como
somos conscientes dos problemas e da complexidade de propor tais delimitações
– ainda mais nesse caso, em que questões de identidade social estão implicadas
–, apoiar-nos-emos na análise da materialidade lingüística das ocorrências para
propor essas restrições.
Procuramos ocorrências de “serviço”, entre 24 e 25/10/2005, por meio
do buscador www.google.com.br, solicitando a consulta apenas a páginas do
Brasil, porque nos interessa analisar a especificidade desse termo no português
de nosso país. Na absoluta maioria dos enunciados encontrados, “serviço” se
referia a “servir/prestar serviço”. Em seguida, com o objetivo de refinar a busca e
encontrar casos em que se dê esse “a mais” de significação de “serviço”,
solicitamos ocorrências com “muito serviço”. Dos 57 casos que analisamos, 23 se
referiam ao já mencionado valor de “servir/prestar serviço” e 27 se relacionavam
ao valor desse vocábulo que queremos estudar.
Transcreveremos alguns dos 27 exemplos encontrados nesse
levantamento porque parecem corroborar as restrições hipotéticas que
proporemos a seguir. Pode-se dizer que esses 27 casos obedecem a dois tipos de
restrições, pois designam:
138
a) “atividades laborais em que o esforço físico é a característica predominante”;
e
b) “atividades laborais em que o esforço intelectual é a característica
predominante”.
a) Atividades laborais em que o esforço físico é a característica
predominante
Dos 27 enunciados que analisamos, 20 podem inserir-se nesta
categoria, como se comprova pelos exemplos que transcreveremos em
seguida
128
. Cabe, apenas, destacar também outro tipo de bifurcação desta
categoria em: (a.1) atividades laborais no âmbito doméstico e (a.2) atividades
laborais fora do âmbito doméstico. Estes valores – (a.1) e (a.2) – aparecem com
freqüência muito similar entre si nos casos analisados.
a.1) Atividades laborais no âmbito doméstico
É interessante notar a alta freqüência em português da combinação
entre “serviço” e “doméstico”/“da casa”/”dentro de casa”. Portanto, podemos dizer
que “doméstico”/“da casa”/”dentro de casa” selecionam mais freqüentemente o
vocábulo “serviço”, o que constitui uma restrição combinatória da língua
portuguesa.
1. Minha mãe trabalhava em serviços domésticos e meu pai era sapateiro,
consertava sapatos... (http://www.museudapessoa.com.br/hotsites/oldnet/miri.htm)
2. “Tínhamos horário para brincar. Só podíamos brincar nos domingos ou à noitinha.
Durante a semana tínhamos que ajudar a mãe na cozinha, lavar roupas, capinar,
pegar café no pé e trabalhar na roça. Tinha muito serviço”. (JULIETA, 75 anos)
(http://www.ced.ufsc.br/~zeroseis/entrev4.html)
3. Eu era filha única, era só eu e o meu irmão, então eu ajudava muito a minha mãe,
minha mãe exigia, fazia o serviço da casa, e como eu tinha vontade de estudar eu
128
Mantivemos a ortografia original dos exemplos.
139
dava um tempo, né? (...) O serviço de casa era muito mais difícil.
(http://www.museudapessoa.com.br/hotsites/msjdelrei/deplurd.htm)
4. “Uma vez que o trabalho do homem é visto como fundamental para o sustento
dos filhos, as justificativas em relação a quem deve cuidar das crianças foram dadas
em função desse trabalho. Assim, muitos homens disseram que ajudam a cuidar dos
filhos quando tem tempo, quando não estão trabalhando, quando a mulher está
trabalhando ou quando ela está com muito serviço dentro de casa”.
5. “Sempre quando eu chego eu procuro ajudar, que nem foi ontem a hora que ela
chegou, já estava a comida pronta já, já tinha dado banho nos moleques, já estavam
assistindo televisão, já tinham jantado, já estava tudo em ordem. A hora que ela
chegou o serviço já estava pronto”.
6. “Da mesma maneira que o entrevistado acima, outros homens que referiram
cuidar dos filhos e dividir o serviço doméstico ressaltaram que alguns serviços não
faziam. Cada homem se referiu a um tipo de serviço, podia ser cozinhar, limpar a
casa, lavar ou passar roupa (...)”. (http://www.desafio.ufba.br/gt2-002.html)
a.2) Atividades laborais fora do âmbito doméstico
Transcrevemos praticamente a totalidade do exemplo nº 1 por parecer-
nos muito interessante o contraste que a enunciadora faz entre “trabalho” – que
ela utiliza para referir-se a sua atividade laboral, provavelmente de gerente do
hotel – e “serviço” – que ela utiliza para definir as atribuições da camareira. Veja-
se que esse exemplo parece apontar para as restrições que existem entre
“trabalho” e “serviço”. Podemos supor, portanto, que “serviço”, como demonstra a
grande freqüência desse valor nos enunciados consultados, predominantemente
se refere a “atividades laborais em que o esforço físico é a característica
predominante” (como nos revela, por exemplo, a combinatória de “serviço” com
“pesado” no exemplo nº 2), e “trabalho” designa “atividades laborais em que o
esforço intelectual é a característica predominante” – valor menos freqüente no
uso de “serviço”, como veremos.
7. “O que me questiono muitas vezes é o desgaste que o trabalho as vezes me
causa, antes do Yuri nascer eu estaria totalmente enquadrada no perfil de
140
"workaholic" (...) Tenho uma equipe de funcionários, alguns que trabalharam comigo
em outro hotel e outros que estão trabalhando pela primeira vez (...) acreditem ou
não, uma das camareiras reclamou que tinha muito serviço e não poderia ficar 15
minutos limpando uma área social pois atrasaria o serviço dela (...) e queria deixar
apartamentos sem limpar para o outro dia serem limpos (...) ou seja, as colegas iriam
limpar o serviço que ela não fez!!!!” (http://www.bebeyuri.blogger.com.br/)
8. “Sempre quando eu posso eu faço. Eu tenho dó dela porque trabalha fora, serviço
pesado, né? Então o que eu posso fazer, que depende de mim eu faço.”(E7)
(http://www.desafio.ufba.br/gt2-002.html)
9. “Os pais não “paparicavam” os filhos porque não tinham tempo. Eles tinham muito
serviço na roça, os irmãos cuidavam uns dos outros”. (JULIETA, 75 anos)
(http://www.ced.ufsc.br/~zeroseis/entrev4.html)
10. “Conta-se que empresários enviavam ônibus e mais ônibus para cidades
interioranas do Paraná a procura de empregados que se sujeitassem a muito
serviço com salário inversamente proporcional”.
(http://www.mdig.com.br/index.php?itemid=97)
11. Já a creche do Parque Belém, na zona norte, ainda há muito serviço pela frente.
Atualmente, os funcionários estão limpando e pintando a casa e os muros para no
futuro colorir a creche com belas gravuras.
12. Chico Bento diz para Conceição que vem pensando em embarcar pro norte, pros
seringais do Amazonas. Mais Conceição convence o compadre a mudar de idéia e ir
para São Paulo, onde tem muito serviço e um clima sadio.
(http://www.adorocinemabrasileiro.com.br/filmes/quinze/quinze.asp)
13. Saí do laboratório e comecei a amolar faca. Era a profissão que meu pai tinha e
na qual trabalho até hoje. (...) Quando ele aposentou e parou de trabalhar, os
fregueses dele passaram para mim. Naquela época, dava muito serviço.
(http://www.escritoriodehistorias.com.br/histviva_francisco.htm)
14. No centro comercial da cidade, observei que muitas lojas estavam fechadas, e
aquelas que continuavam abertas não pareciam ter muito serviço.
(http://www.chamada.com.br/mensagens/index.php?id=389)
141
b) Atividades laborais em que o esforço intelectual é a característica
predominante
Dos 27 casos analisados, em apenas 7 “serviço” estava ligado a algum
tipo de atividade laboral em que o esforço intelectual é a característica
predominante. Vejamos alguns dos exemplos:
15. “Mas, alegando que tinha muito serviço, o procurador-geral, ao invés de mandar
para a 10ª Vara Federal arquivar o processo, ele manda para outro procurador, para
apresentar a tal da ação penal contra mim.”
(http://www.fazendomedia.com/novas/politica050805a.htm)
16. “A falta de espaço físico não permite acolher mais estagiários para trabalhar no
prédio, por exemplo. “Temos muito serviço, mas em especial, na Promotoria, não
temos lugar para nada”, reclama o promotor Washington Luiz Rodrigues Alves”.
(http://www.noticiasforenses.com.br/comarcas/nf-190/boituva/boituva-190.htm )
17. “Foram dois, na verdade. Lois e Clark. Mas como eles estão com muito serviço,
decidi passar a matéria para outro jornalista, e acho que você é o indicado. —
responde ele”. (http://www.hyperfan.com.br/tits/hulk01.htm)
Assim, o que podemos inferir dessa análise, é que não se trata de
afirmar que não possam ocorrer usos de “serviço” com esse valor que destacamos
em (b), mas sim muito mais o fato de que, em português, esse vocábulo remeta
mais freqüentemente aos valores descritos em (a). E como, em contrapartida,
servicio não costuma referir-se a atividades laborais além das de “prestação de
serviços” ou “realizadas por servidores”, poderia haver problemas de
intercompreensão se se tenta recompor em espanhol esse uso de “serviço”.
Além dessas restrições, “serviçoobedece, em alguns enunciados, a
outra restrição semântica: a que designa o próprio espaço físico em que se realiza
tal trabalho
129
. Como na busca por “serviço” encontramos apenas uma ocorrência
129
Parece-nos interessante pensar como, nesse caso, não se pode desconsiderar os distintos
valores constituídos historicamente para “serviço” e servicio. Isso se evidenciaria se, por exemplo,
se tentasse passar para o espanhol um enunciado como “Vou para o serviço” - que poderíamos
142
desse valor, solicitamos a busca por “para o serviço” e praticamente a totalidade
dos casos remetia ao valor de “servir”. Decidimos, então, buscar por “pro serviço”,
seguindo uma intuição nossa de que esse valor se dá normalmente em
enunciados em que se utiliza linguagem coloquial. Podemos dizer que
praticamente a totalidade das ocorrências de “serviço” remetiam a esse valor, que
ilustramos com os seguintes exemplos:
18. “Outro entrevistado, também migrante e com três filhos disse que: “De manhã eu
sou o primeiro que acordo, eu preparo o café da manhã. Eu levanto já vou ajudar
eles, preparo eles pra ir pra escola, tomo café da manhã e vou pro serviço. (...)
(http://www.desafio.ufba.br/gt2-002.html)
19. “Apesar de achar os ônibus da Eroles um pouco antigos, eu nunca me atrasei
pro serviço”. (http://www.eroles.com.br/forum/messageboard/1817.html)
20. “A noite quando minha mãe chegava do serviço ela perguntava pras crianças se
eu fui ver ele. (...) Ligou pro serviço da minha mãe, ela disse q eu tava indo pra
Recife”. (http://www.poemasdeamor.com.br/historias/historia.asp?id=1411)
Também não encontramos ocorrências desse valor de “servicio” no
levantamento que fizemos no Corpus de Referencia del Español Actual.
Encontramo-nos, portanto, com outro traço semântico distintivo de “serviço” em
relação a servicio.
Encontramos em Celada (1999) uma hipótese explicativa para um
desses valores distintivos de “serviço” em relação a servicio – o valor descrito em
a) - e que também parece apontar as origens da distinção entre “trabalho” e
“serviço”. Pode-se dizer que a distinção desses dois termos e, conseqüentemente,
a “construção” desse valor de “serviço” se deve a acontecimentos que exigiram
em nossa sociedade a distinção entre “trabalhos” e “serviços”. A hipótese que
parafrasear como “vou trabalhar” ou “vou para o trabalho”. Se o critério seguido nessa transposição
for o de manter a semelhança material dos termos, poderia haver problemas de interpretação, já
que, normalmente, o enunciado Voy al servicio remete a outros efeitos de sentido completamente
diferentes - um hispanofalante, ao menos os peninsulares, normalmente lhe atribuiriam o sentido
de “Vou ao banheiro”. Tal exemplo ilustra, a nosso modo de ver, a importância da inclusão de
reflexões sobre as restrições sócio-históricas que funcionam nos dois idiomas.
143
exporemos para o surgimento dessa necessidade se baseia nas reflexões que
tece Celada (1999), ao analisar a distinção entre “empregado” e “funcionário”.
A autora (ibid.:315), ao analisar as ressonâncias
130
da palavra
“empregado” no português do Brasil, observou que esse vocábulo remete – por
intermédio da inevitável associação com o significante “escravo” – ao domínio do
serviçal no âmbito do doméstico. A autora recorre a Roberto DaMatta (1991:8
apud Celada, ibid.), o qual lembra que a casa (o espaço doméstico) está, “(...)
conforme disse Gilberto Freyre, relacionada à senzala e ao mocambo” (1991, p. 8,
apud Celada, ibid.). A remissão de “empregado” a “escravo” e de “escravo” ao
âmbito doméstico fica reforçada ainda mais pela carga de “desigualdade” que este
faz ressoar. Esse espaço, segue a autora (ibid.), distingue-se do ocupado por um
“funcionário assalariado”. Isso é tão verdade que, com muita freqüência, patroas
brasileiras preferem referir-se às suas empregadas domésticas, sobretudo em sua
presença, como “secretárias”; da mesma forma, no âmbito da organização
trabalhista, a categoria se autodesigna das “domésticas”.
Ressoa, portanto, em “funcionário” e “empregado”, a distinção entre
esses dois âmbitos descritos por Celada (ibid.), e o confronto existente entre
esses termos – assim como o que, a nosso modo de ver, existe entre “trabalho” e
“serviço” – é de natureza social, pois envolve os mecanismos de identificação dos
indivíduos de uma sociedade. Existe, portanto, em nossa cultura, uma
representação social ligada a “serviço” – e também a “empregado” –, que se
originou, provavelmente, em que o trabalho do escravo estava ligado a “serviços”
(maiormente realizados no âmbito doméstico) e, apenas em casos muito raros, a
profissões (ibid.). Essa representação – que ressalta uma necessidade social de
distinção de dois tipos de atividades de natureza diversa – é a responsável por
esse “a mais” de significação que traz “serviço” em relação a “trabalho”, e só se
130
Tomamos esse termo de Serrani-Infante (1994:80), que define as ressonâncias de significação
como “o efeito de vibração semântica entre duas ou mais unidades específicas ou modos de dizer,
que tende a construir, na discursividade, a realidade (imaginária) de um sentido”.
144
explica pela idiossincrasia do processo sócio-histórico de nosso país, cujos efeitos
de sentido reverberam em nossa língua até hoje.
Novamente recorreremos a enunciados concretos, agora para buscar
ressonâncias, no português brasileiro atual, dos acontecimentos que
possivelmente motivaram a distinção que mencionamos, vendo, como Orlandi
(2003: 31), a história atuando enquanto produção de acontecimentos que
significam.
Como vimos com Guimarães (1996), uma forma da língua é resultado
dos enunciados em que, historicamente, ela funcionou; assim, o que um vocábulo
é hoje numa língua, as possibilidades semânticas que abarca, provém dessa
moldagem histórica, que elimina e mantém traços semânticos. Vejamos se é
possível encontrar em formas do português atual ressonâncias da possível origem
da distinção entre “serviço” e “trabalho”, em forma de traços semânticos que se
mantiveram.
Parece-nos que “serviço”, ainda hoje, deixa ressoar os ecos dessa
distinção que se fez em nossa cultura entre “trabalhos” e “serviços”, e da
realização destes últimos predominantemente no âmbito doméstico: a alta
freqüência - como constatamos no levantamento efetuado – da associação de
“serviço” a atividades domésticas parece corroborar tal hipótese. Obviamente, não
pretendemos aqui realizar nenhum tipo juízo de valor, muito menos dizer que
“serviço” designe “trabalhos escravos” ou atividades “menos nobres”.
O que propomos, apenas, é que parece existir algum tipo de distinção
entre os dois termos, o que se sustenta pelo próprio fato de sua coexistência. E
uma maneira de “sondar” essas diferenças é recorrer à materialidade lingüística,
observando os enunciados em que esse termo aparece.
Obviamente, “serviço” não se manteve imune à historia, já que hoje
seus valores potenciais vão além da designação de atividades domésticas, o que
parecia predominar em suas origens, segundo nossa hipótese. Mas, se por um
lado “serviço” deixa de restringir-se ao âmbito doméstico, numa ampliação
145
semântica do termo, por outro, mantém algo de sua distinção com “trabalho”.
Vejamos alguns itens que remetem a essa manutenção.
O vocábulo “serviçal”, por exemplo, encontra-se fortemente
estigmatizado em nossa cultura, justamente por remeter a uma condição de
submissão e inferioridade. Pode-se supor que essa palavra reteve mais
fortemente a sua associação aos “serviços” realizados no âmbito doméstico,
normalmente por escravos.
Já a expressão “elevador de serviço”
131
, em oposição a “elevador
social/principal”, retém, em menor grau, essa memória de servilismo e sua
conseqüente estigmatização, já que é corrente a distinção desses dois tipos de
elevadores em edifícios de nosso país. No entanto, o tipo de uso a que o “elevador
de serviço” está reservado não parece deixar de remontar à distinção entre
“serviço” e “trabalho”: é utilizado, principalmente, por profissionais que se dedicam
a atividades de manutenção e limpeza do local, para mudanças ou por moradores
carregando grandes volumes, como compras. Além disso, é extremamente pouco
freqüente a combinação “elevador de trabalho”; a impossibilidade de alternância
dos termos nessa expressão nos revelam a distinção dos vocábulos em questão.
Cabe apontar brevemente, embora não estejamos realizando uma
pesquisa de cunho exclusivamente sociológico, que essa necessidade de
distinção dos vocábulos e, conseqüentemente, das atividades que designam,
parece responder a uma representação social a respeito das atividades em que
predomina o esforço físico. No Brasil, a necessidade social de distinção entre os
131
Exemplos: 1. “Naturalmente, pessoas com deficiências e funcionários carregando objetos
precisam pegar o elevador (ainda que seja mais sensato o uso do elevador de serviço para os
últimos, o que nem sempre acontece)”. (retirado de http://www.medicina.ufmg.br/acs/opiniao/2004/
opiniao_raphael_nescon.htm, em consulta em 30/10/2005); 2. O trânsito de qualquer pessoa em
serviço ou portando carrinho de compras ou transportando volumes diversos, far-se-á,
naturalmente, pelo elevador de serviço. Pessoas usando trajes de banho (indo ou vindo da sauna,
ducha ou piscina) também deverão usar o elevador de serviço a partir do nível -3 de garagem
evitando, com isso, a circulação pelo nível 0 (Pilotis). Exceção será admitida no caso de
paralisação do elevador de serviço.
146
que têm “serviço” e os que têm “trabalho”, por assim dizer, parece muito maior que
em outros países, inclusive aos pertencentes ao chamado “primeiro mundo”.
Na Europa e nos Estados Unidos, por exemplo, os “serviços” e os
“trabalhos” estão normalmente “mesclados” em seus habitantes, já que, mesmo os
que se dedicam a atividades de cunho predominantemente intelectual, costumam
realizar em suas vidas também o que chamamos “serviços”: encarregar-se das
tarefas domésticas, cortar a grama, pintar a casa, realizar pequenos reparos, etc,
já que pagar um profissional para fazê-lo costuma ser muito mais caro que em
nosso país.
Provavelmente, essa necessidade de distinção que existe entre nós,
fruto da atribuição de uma certa “inferioridade” aos “serviços” – sejam domésticos
ou não – tenha sua origem na já mencionada hipótese de Celada (ibid.), já que
estes eram realizados por escravos, por pessoas em condição de servilismo e
inferioridade.
No que queremos chegar é que não é preciso aprofundar-se muito
nessa questão para reconhecer que residem nessa distinção complexos
processos de identidade, que podem conduzir a preconceito e discriminação.
VI.1.3. Por que houve problemas para a intercompreensão?
Podemos dizer que isso ocorreu devido ao fato de que atuaram
restrições distintas, filiações a redes de memórias distintas nessa interlocução. Por
um lado, “serviço” apresenta valores que vão além dos possíveis para servicio, os
quais também influíram na formação de sentido do enunciado, mas o policial não
pôde reconhecer. Por outro lado, o brasileiro não compreendeu o efeito cômico
que o policial via no enunciado. Isso porque “serviço” perdeu um outro valor
132
, o
132
Dizemos que perdeu esse valor porque nos parece que ele se tornou pouco freqüente para o
vocábulo do português. Um indício de sua existência, em algum momento, no português do Brasil,
são as acepções que encontramos nos seguintes dicionários para “serviço”: no Larousse (1999)
“vaso para excrementos”, no dicionário Houaiss (2001), “vaso sanitário” e no dicionário Aurélio
(1999), “Vaso para excrementos”.
147
de “banheiro”, que se manteve para servicio. Nos dicionários de língua espanhola
consultados
133
, encontramos esse valor de “banheiro” para servicio que participa
no jogo de efeitos de sentido que irrompem para o policial: a maioria deles
coincide na palavra retrete, que é um componente do cuarto de aseo, ou seja,
servicio é uma metonímia, já que um componente do banheiro nomeia a sua
totalidade. Na Espanha, é comum utilizar servicios, no plural, para fazer referência
a “banheiro”, especialmente os públicos, mas também é possível tal palavra no
singular, numa provável redução da expressão servicio sanitario.
Embora os valores que perderam força não sejam freqüentes nas
línguas em questão, é possível encontrar rastros de sua existência. Isso porque,
como afirma Fanjul (2003:12), o contato com o espanhol sempre mostra ao falante
do português (e vice-versa) sentidos potenciais em sua língua que não foram
selecionados por seus processos históricos. E a evidência disso, dessa “(...)
inacabada diferenciación que las une y las separa desde los comienzos de la
delimitación política de cada una de ellas como ‘una’ lengua” (ibid.; 12) é a “(...)
peculiar percepción de ‘entenderse’ entre hablantes de las dos lenguas” (Fanjul,
2004: 3).
Assim, não seria uma surpresa se, ao pedirmos a brasileiros que
parafraseassem “serviço”, o valor pouco freqüente de “banheiro” aparecesse em
algum(ns) dos informantes
134
. O mais provável, no entanto, seria que a maioria
deles não reconhecesse esse como um valor atribuível a “serviço” em sua língua.
133
Servicio: “vaso que sirve para excrementos mayores”, “retrete, escusado. U. t. en pl.con el
mismo significado que en sing.”, “servicio sanitario. Col. sanitario, retrete, letrina” (RAE); “retrete.
Frec. en pl. y esp. referido a los de lugares públicos./Delibes Parábola 15: Luego, en el servicio
(caballeros), Jacinto se frotaba las manos con polvos de jabón.” (MS)
134
Fanjul (2003: 6), ao consultar falantes nativos do português sobre as acepções possíveis em
português para “provar”, constatou que, em determinados contextos e com pouca freqüência, as
acepções que perderam força para esse verbo - “tentar” ou “experimentar” - seriam possíveis.
Como julgamos que tal caso se assemelha ao que aqui analisamos com relação a ”serviço”,
parece-nos ser possível lançar uma hipótese similar.
148
VI.1.4. Houve transferência por parte do brasileiro?
Fanjul (2003:6) afirma que não é tão simples determinar quando há
transferência entre o português e o espanhol, pois, para que isso se dê, é
necessário pressupor que tais línguas são ”(...) dos objetos homogéneamente
ajenos y delimitados” (ibid.); ou seja, para atribuir a um enunciado uma
interferência, é preciso considerar que o que foi transferido pertence a apenas
uma das línguas. Em função disso, ainda segundo o autor (ibid.), em muitos casos
dos supostos heterosemánticos entre as duas línguas, a diferença entre essas
palavras não é a de uma barreira nítida que separe os dois idiomas.
Por esse motivo, Fanjul (ibid.: 6-7), baseando-se nos estudos
sociolingüísticos de Elizaincín (1997) sobre o contato de zonas de fronteira, atribui
um certo “(...) inacabamiento histórico de la diferenciación entre ambas lenguas”,
razão pela qual é difícil atribuir uma determinada forma com determinado valor a
apenas uma das duas línguas. Elizaincín (1997) propõe critérios de freqüência e
funcionalidade para a descrição contrastiva do português e do espanhol, que
podem ser mais adequados do que a tentativa de estabelecer uma diferenciação
absoluta. Compartilhamos de tais reflexões e, por isso, optamos, na análise que
realizamos, por abordar as divergências que encontramos para “serviço” e servicio
em termos de freqüência.
E é também em função do exposto que é tão difícil delimitar até onde
opera o efeito de sentido de “desejar uma boa jornada de serviço à comunidade” e
onde servicio se deixa entrever com o valor de “serviço” que expusemos,
governado pelas determinações sociais idiossincráticas descritas. O que parece
seguro dizer é que, nos intercâmbios lingüísticos entre brasileiros e
hispanofalantes, cruzam-se distintas determinações, que se não podem ser
exclusivas de uma ou outra cultura, pode-se ao menos reconhecer, em muitos
casos, distintas freqüências de uso em cada uma delas.
Há um último efeito de sentido de que gostaríamos de tratar, pois nos
parece que o enunciado do brasileiro funciona também como um ato de fala de
149
despedida, o que é muito comum em nossa cultura ao enunciarmos “bom serviço”
no final de uma conversa.
VI.1.5. Buen servicio: buscou-se dar-lhe a força de uma expressão de
despedida?
Pode-se cogitar a hipótese de que o estudante brasileiro proferiu buen
servicio com uma força que o espanhol parece não ter reconhecido, o que
provavelmente também contribuiu a que emergisse o efeito de sentido jocoso. Isso
porque, no Brasil, é comum utilizar-se essa expressão como una fórmula de
despedida, para finalizar uma conversa. Constatamos, portanto, que entra em jogo
nesse enunciado, por parte do brasileiro, uma restrição pragmática bastante mais
freqüente em nossa cultura associada a “bom serviço”.
Em função disso, lançaremos mão das reflexões de Austin (2004), que
nos permitirão associar o “dizer algo” com o “fazer algo”. Ao dizer buen servicio,
além de realizar o ato de emitir esse enunciado, o brasileiro executou uma outra
ação, a de despedir-se. Utilizaremos, para analisar buen servicio nesse
acontecimento discursivo como um ato de fala, a classificação de Austin (2004)
dos três tipos de atos a que recorremos quando dizemos algo e, simultaneamente,
fazemos algo: I) ato locucionário; II) ato ilocucionário e III) ato perlocucionário
135
.
O primeiro tipo de ato que Austin define é o locucionário; trata-se do
ato que consiste em expressar determinada oração com um sentido e referência
determinados, o que, segundo esse autor, equivaleria aproximadamente ao
‘significado’ no sentido tradicional (ibid.:142). O ato locucionário é composto por
outros três atos:
“El acto fonético consiste meramente en la emisión de ciertos ruidos. El acto
‘fático’ consiste en la emisión de ciertos términos o palabras, es decir, ruidos de
ciertos tipos, considerados como pertenecientes a un vocabulario y en cuanto
pertenecen a él, y como adecuados a cierta gramática y en cuanto se adecuan a ella.
135
Evidentemente, quando se diz algo, esses três atos ocorrem simultaneamente; isola-se cada
um deles para fins de análise.
150
El acto ‘rético’ consiste en realizar el acto de usar esos términos con un cierto
sentido y referencia, más o menos definidos” (ibid.).
Portanto, a dimensão locucionária do enunciado buen servicio seria a
sua materialidade, ou seja, o ato de emitir sons que pertencem à língua
espanhola, sons esses que, agrupados, remetem a certos sentidos. Também, o
dito obedece a um modo de organização (uma gramática, no caso, a do espanhol)
e a um léxico, que disponibiliza palavras (e seus valores) nessa língua. Buen
servicio é resultado da combinação de um léxico dessa língua – um adjetivo e um
substantivo –, com sua pronúncia específica e com suas leis de formação e
colocação (deve-se realizar a apócope de buen e obedecer a uma ordenação das
palavras: o adjetivo deve ser anteposto ao substantivo).
O segundo tipo de ato a que Austin se refere é o ato ilocucionário;
esse ato se refere à força que um ato locucionário assume ao ser dito. Para
melhor defini-lo, o autor (ibid.:145) recorre à diferença entre uma expressão
constatativa e uma expressão realizativa
136
. Por exemplo, no enunciado “Está
prestes a atacar”, Austin afirma que muito provavelmente teríamos claro “o que
estamos dizendo com ela”, mas o que pode causar dúvidas é se, ao emiti-la,
estava-se realizando ou não o ato de advertir, ou outro qualquer. Pode, portanto,
faltar clareza sobre se o enunciado foi formulado como uma expressão
constatativa (que descreve uma realidade, a de que alguém está prestes a atacar)
ou realizativa (ao dizer isso, o emissor está, além de realizar a ação mesma de
dizer, também está realizando a ação de advertir).
É muito diferente que estejamos aconselhando ou somente sugerindo,
ou realmente ordenando, ou que estejamos prometendo em um sentido estrito ou
somente anunciando uma vaga intenção, etc. Discutimos essas questões
perguntando se certas palavras (uma determinada locução) tinham a força de uma
pergunta, ou deviam ter sido tomadas como uma apreciação, etc. Assim, realizar
136
As expressões realizativas indicam que emitir uma expressão é realizar uma ação, além da
ação mesma de dizer algo (ibid.: 51). As constatativas descrevem algum estado das coisas ou
enunciam algum fato e podem ser verdadeiros ou falsos (ibid.: 45).
151
um ato nesse sentido seria realizar um ato “ilocucionário”. Trata-se de levar a cabo
um ato ao dizer algo, como algo diferente de realizar o ato de dizer algo.
Conseqüentemente, pode haver diferentes “forças ilocucionárias” (ibid.:146).
Vejamos, agora, o componente ilocutivo do enunciado buen servicio, ou
seja, buscaremos determinar a força que o dito pelo brasileiro pode ter assumido.
Por um lado, teríamos um dos efeitos de sentido desse enunciado – desejar um
bom dia de trabalho ao interlocutor, o que constitui uma expressão cortês que
reforça a imagem positiva do interlocutor
137
– e, por outro, o componente ilocutivo,
cuja força é a de uma despedida. Neste último aspecto, mesmo que “bom” e
“serviço”, como itens léxicos, como constituintes de um ato locutivo, não
constituam fórmulas de despedida prototípicas em português –como “tchau”, “até
amanha”, entre outras –, juntos, podem utilizar-se como uma fórmula de
despedida.
Analisemos com mais detalhes essa classificação de ato de fala de
despedida que atribuímos ao uso de buen servicio pelo brasileiro, pois isso nos
permitirá compreender melhor por que a reação do policial foi tão inesperada para
ele, já que não compreendeu o que permitia o efeito cômico que o policial atribuiu
a um ponto tão ritualizado da interlocução.
Segundo Haverkate (1994), as fórmulas de saudações e despedidas
têm uma estrutura fossilizada e são de uso estritamente convencional; são
fórmulas estereotipadas restritas a situações pré-estabelecidas. São utilizadas
para denotar cortesia positiva, ou seja, para reforçar a imagem positiva do
interlocutor – a imagem positiva que este tem de si mesmo –, o que demonstra
cortesia por parte de quem a diz (ibid.: 88)
138
.
137
Haverkate (1994: 28), citando Brown e Gilman (1989:162), afirma que a expressão have a nice
day, que se costuma usar diariamente, supõe um ato de cortesia que reforça a imagem positiva do
interlocutor. Haverkate (ibid.) recorda que essa imagem se baseia no desejo de cada indivíduo de
que outras pessoas desejem para ele o que ele deseja para si mesmo, como por exemplo, saúde,
liberdade e honra.
138
O conceito de imagem, da pragmalingüística (Brown e Levinson, 1978 apud Haverkate, 1994:
18), tem um papel primordial na análise da cortesia verbal. A imagem de cada ser humano se
152
Esse mesmo autor (ibid.: 84) define as saudações e despedidas como
atos de fala universais, pois existem em todas as culturas. Sua função como ato
de fala não é a de transmitir informação proposicional, já que não se intercambiam
para expressar uma descrição do mundo extralingüístico. Algumas saudações e
despedidas (ibid.: 85), no entanto, possuem uma diferença semântica em relação
às expressões anteriores: têm algum conteúdo proposicional, como fórmulas que
literalmente especificam perguntas sobre a vida pessoal do interlocutor,
particularmente sobre sua saúde ou bem-estar, como por exemplo ¿qué tal?,
¿como te va?. Claro que convencionalmente estas perguntas se interpretam
principalmente em um sentido simbólico; não se costuma esperar uma resposta
concreta para elas
139
. Estas fórmulas também podem surgir combinadas com as
primeiras.
Levando-se em consideração o conceito de força ilocutiva e o uso
convencional que supõe um ato de fala de despedida, poderíamos analisar a
situação a que nos dedicamos da seguinte maneira: o brasileiro emitiu uma
expressão que, em sua língua materna, no ponto da interlocução em que se deu
nessa situação, costuma ter a força de um ato de fala de despedida – e nessa
situação específica o objetivo parece ter sido o de despedir-se de maneira cortês
do policial, que certamente tinha muito serviço pela frente. Como se trata de um
ato de fala de uso estritamente convencional, exige também reações pré-
estabelecidas por parte do interlocutor; ou seja, há reações mais aceitáveis e mais
pertinentes que outras.
Entretanto, no caso que analisamos, o policial não teve uma reação
“prototípica” com relação a esse ato de fala. Sua reação foi totalmente inesperada
e insólita para o estudante, já que o riso não está entre as reações preferidas para
compõe de dois fatores complementares, denominados com os termos positivo e negativo. O
primeiro designa a imagem positiva que o individuo tem de si mesmo e que aspira que seja
reconhecida e reforçada pelos outros membros da sociedade. O segundo se refere ao desejo de
cada indivíduo de que seus atos não se vejam impedidos por outros.
139
Haverkate (1994: 85) cita um adágio inglês que ilustra bem isso: “Don’t tell your friends about
your indigestion: ‘How are you!’ is a greeting, not a question.
153
esse momento da interlocução. Por ser um ato marcado por reações e respostas
preferíveis e, inclusive, esperadas, pois nesses atos de fala estereotipados não há
muito espaço para a inovação, o surgimento do inesperado fez com que o
brasileiro não compreendesse o riso de seu interlocutor, já que não encontrou
sentido possível dentro de sua cultura para aquela reação não prototípica. Entram
em jogo, portanto, questões lingüísticas e pragmáticas das línguas e culturas
envolvidas.
Vejamos como funcionaria nessa situação o terceiro tipo de ato que
Austin (2004: 167) atribui a quando dizemos algo e fazemos algo ao mesmo
tempo: o ato perlocucionário.
Quando realizamos um ato locucionário, que possui sentido e, com ele,
um ato ilocucionário, que possui certa força, também executamos um ato de outro
tipo:
“En tercer lugar, también realizamos actos perlocucionarios; los que producimos o
logramos porque decimos algo, tales como convencer, persuadir, disuadir e incluso,
digamos, sorprender o confundir “. (ibid.:155)
O ato perlocucionário consiste em atingir certos efeitos pelo fato de
dizer algo. Normalmente, dizer algo produzirá certas conseqüências ou efeitos
sobre os sentimentos, pensamentos ou ações dos ouvintes, ou de quem emite a
expressão, ou de outras pessoas. E é possível que, ao dizer algo, o façamos com
o propósito ou intenção de produzir tais efeitos
140
. A realização de um ato desse
tipo seria a realização de um ato perlocucionário (ibid.: 148).
Portanto, sempre que realizamos o ato de dizer algo – neste caso o ato
de pronunciar buen servicio, que possui um significado (ato locucionário) –,
realizamos também um ato ao dizer algo – o que dizemos possui uma força, no
140
Conforme já expusemos, a perspectiva que seguimos neste trabalho a respeito da formação do
sentido é a discursiva, a qual não considera que os efeitos de sentidos produzidos sejam fruto da
intenção dos sujeitos. No entanto, a distinção dos três tipos de atos que Austin (ibid.) oferece nos
parece produtiva como instrumental para identificar os efeitos produzidos na interlocução
analisada. Além disso, como se verá mais adiante, o próprio autor reconhece que podem produzir-
se efeitos indesejados, o que revela a percepção de que o sujeito não é tão “senhor” de seu dizer.
154
caso que analisamos, foi a de um ato de fala de despedida (ato ilocucionário) – e,
finalmente, há um ato que executamos porque se diz algo – são os efeitos que
causam o que dizemos, no caso analisado, o efeito da fala do brasileiro naquela
situação. O efeito que o estudante buscava com seu ato de fala era despedir-se
com uma fórmula cortês, com o objetivo de reforçar a imagem positiva de seu
interlocutor. No entanto, o efeito que se produziu foi um mal-entendido – cujo
índice foi o riso do espanhol –, já que este não captou a força que o brasileiro
pensou dar ao que disse.
Austin reconhece que podem produzir-se conseqüências ou efeitos
desejados ou não desejados. Por isso, afirma que devemos ter presente: I) que
mesmo que quem usa uma expressão se proponha a alcançar com ela um certo
efeito, isso pode não acontecer; II) mesmo que não queira produzir determinado
efeito, isso pode ocorrer (ibid.: 152). No caso que analisamos, essa observação é
ainda mais importante se considerarmos que se trata de duas línguas em contato,
cujos falantes não dominam determinados conhecimentos lingüísticos e
pragmáticos da cultura do outro, os quais incidem nessa conversação.
Cabe, por último, voltar um pouco à pergunta que nos fazíamos sobre o
que permitiu ao policial atribuir um efeito cômico a buen servicio. Além do que já
dissemos, parece ter influído também o contexto imediato em que se deu a
conversação, o que permitiu ao policial deixar emergir o sentido mais absurdo, não
cooperando intencionalmente com seu interlocutor. Porque, mesmo se
considerarmos que o policial não identificou a força de um ato de fala de
despedida que o enunciado do brasileiro teve, não lhe seria impossível interpretá-
lo como uma expressão cortês do estudante – que lhe desejava uma boa jornada
de trabalho.
Para justificar essa hipótese, é importante considerar o “Princípio de
Cooperação” de Grice (1975 apud Escandell Vidal, 2003: 78). Esse princípio geral,
que se supõe aceito tacitamente pelos participantes de uma interlocução, propõe a
cada participante que:
155
“Haga que su contribución a la conversación sea, en cada momento, la requerida por
el propósito o la dirección del intercambio comunicativo en el que está usted
involucrado”. (id. Ibid.)
Esse princípio se desenvolve em outras normas, às que Grice dá o nome
de categorias de quantidade, qualidade, relação e modalidade. Cada uma delas,
por sua parte, subdivide-se em máximas mais específicas. Dessas categorias,
acreditamos que o policial não se submete de maneira intencional principalmente
a duas delas: à de relação e à de quantidade.
A primeira contém uma única máxima: “diga coisas relevantes”; espera-se
dos participantes da interlocução que suas intervenções se relacionem com aquilo
de que se está falando (Grice, 1975 apud Escandell Vidal, 2003: 79). Para o
brasileiro, a reação do policial não parecia ter nada a ver com o que ele tinha dito,
já que se trata de una resposta não preferida para uma despedida. Nesse caso,
também para o policial, a expressão do brasileiro rompia com essa máxima, pois
parecia descabida naquela circunstância.
A segunda categoria, a de quantidade, relaciona-se, como seu nome
indica, com a quantidade de informação que se deve dar e compreende as
seguintes máximas: a) que sua contribuição seja tão informativa quanto requeira o
propósito do diálogo; mas b) que sua contribuição não seja mais informativa que o
necessário. Se virmos a situação da perspectiva do estudante brasileiro, pode-se
dizer que, para ele, seu interlocutor não lhe deu a quantidade de informação
suficiente para que pudesse compreender o que queria dizer (id. Ibid.). Para o
policial, no entanto, a fala do brasileiro pareceu excessiva, descabida, fora de
lugar.
Entretanto, muitas vezes descumprimos as máximas com o objetivo de
tentar produzir certos efeitos; esses efeitos de sentido costumam surgir na forma
de conteúdos implícitos, que Grice define como implicatura. Esse autor propõe
uma caracterização dos diferentes tipos de incumprimento das máximas, e dos
efeitos e resultados que produzem (Grice, 1975: 45-49 apud Escandell Vidal,
2003: 80-82).
156
Na situação que analisamos, parece dar-se o tipo de incumprimiento
chamado “Descumprimento ou violação aberta” (Grice emprega o termo float,
“engano, desdém, desprezo”), em que se incumpre uma das máximas, mas há
sujeição às demais. A única diferença com relação à situação que analisamos é
que se descumprem duas máximas, e não somente uma. Quando ocorre esse tipo
de descumprimento que Grice (ibid.) define, se alguém parece querer cooperar,
mas despreza abertamente uma (no nosso caso, mais de uma) das máximas, os
interlocutores, para tentar reconciliar o dito com o princípio de cooperação,
costumam inclinar-se a pensar que o emissor queria dizer algo diferente do que na
verdade está dizendo.
Voltando ao mal-entendido, o policial parece descumprir mais de uma
máxima, mas seu desejo não é o de não ser cooperativo, mas de optar pelo efeito
de sentido jocoso. O problema está em que, se seu interlocutor não é capaz de
entender as implicaturas, muito provavelmente, como afirma Escandell Vidal
(2003: 82-83), não conseguirá reconstruir o conteúdo que se comunicou e também
não conseguirá restaurar a vigência das máximas. As implicaturas surgem para
estender a ponte necessária entre a aparente violação de uma máxima e a
presunção de que, apesar disso, o princípio de cooperação continua vigente.
Portanto, o que o brasileiro não pôde fazer foi reinterpretar a reação do policial
recorrendo aos mecanismos de uma implicatura conversacional, o que lhe
ofereceria um novo conteúdo significativo não contraditório com o principio de
cooperação.
Finalmente, podemos dizer que essa situação aponta, entre outras
coisas, para o fato de que o aprendiz de uma língua estrangeira precisa ser
sensibilizado também para questões de pragmática que regulam as interlocuções
da sociedade cujo idioma deseja aprender, já que essa constitui uma maneira
mais de compreender a percepção de mundo da outra cultura.
157
VI.1.6. Algumas reflexões sobre a combinatória léxica
Existem expressões em que a combinatória léxica é muito similar em
português e em espanhol, como em buen apetito e “bom apetite”. No entanto, para
desejar a alguém que desfrute de uma refeição, é mais freqüente o uso, em
espanhol, de ¡Qué aproveche! (e suas variantes, conforme esteja em segunda
pessoa do singular – tú/vos - ou do plural – vosotros - terceira do plural – ustedes),
que encontra um correspondente próximo em português em “bom proveito”.
Assim, não podemos falar em uso exclusivo da expressão que indica “desejar um
bom apetite a alguém” no português, mas em maior freqüência de “bom apetite”
em relação a buen apetito.
Parece-nos que o mesmo ocorre com “bom trabalho/bom serviço” – que
se costuma usar em português para desejar uma boa jornada de trabalho/serviço
a alguém – frente a buen trabajo e buen servicio: não podemos atribuir ao
português a exclusividade dessas expressões; no entanto, parecem ser muito
mais freqüentes nessa língua em comparação com o espanhol. Nesta, quando se
deseja usar uma expressão com esse sentido (o que não é tão freqüente quanto
no português), Qué tenga un buen día (e suas variantes) parece ser a opção que
predomina sobre buen trabajo e buen servicio. Em função disso, buen servicio ou
buen trabajo podem remeter a outros efeitos de sentido mais freqüentes em
enunciações em espanhol.
Para confirmar tal hipótese, solicitamos a busca no CREA
141
por buen
trabajo, e não encontramos nenhum caso, dentre os 130 analisados, em que essa
combinatória remetesse ao sentido de “desejar um bom dia de trabalho a alguém”.
Abundavam as ocorrências em que buen trabajo se referia a uma constatação da
realização de um bom trabalho, de um trabalho satisfatório. Também encontramos
ocorrências em que essa combinatória remetia a “alguém que tenha um bom
141
As consultas que mencionaremos a partir de agora foram realizadas em 03/11/2005 e
solicitamos parágrafos em que aparecessem buen trabajo e buen servicio em textos de todos os
países, todos os meios e todos os temas de que dispõe o Corpus.
158
emprego”. Portanto, a combinação buen e trabajo, no levantamento que
realizamos, apresentou freqüência de 0% com o sentido que buscamos.
Já em busca por buen servicio no referido Corpus, de 171 ocorrências
encontradas, apenas duas parecem produzir esse efeito de sentido (sendo as
duas ocorrências pertencentes à mesma obra):
21. – Muy bien, muy bien. Como usted decida. Bueno -dijo mirando a Villalba-, aquí
está todo en orden. Será mejor que volvamos al cuartelillo, a ver si ha vuelto García.
Por cierto, sargento: cuando enganchen la locomotora, recuerde comunicárnoslo.
– A sus órdenes, comisario. Así se hará.
– Gracias. Espero que tengan buen servicio”.
(1981, José María del Val, España, Novela)
22. “(…) – Bien, iré para allá. La verdad es que, con este tiempo, sí que apetece
darse un garbeo por el campo.(…)
– Sí – fue la lacónica respuesta de Arenas ante la paradoja-. Pues buen servicio,
cabo. Voy a acercarme a Aizpún, a ver qué tal van las cosas por la vía”.
(1981, José María del Val, España, Novela)
Buscamos também por Que tenga un buen día (e suas variantes), mas
não encontramos nenhum caso. Então solicitamos a busca por un buen día e
foram localizados mais de 300 casos. No intento de refinar um pouco mais nossa
busca – já que, na maioria das ocorrências encontradas no primeiro intento, un
buen día se utilizava em narrações, com o sentido de “um belo dia” – mantivemos
a busca por todos os países e em todos os meios, mas limitamos o tema a
“ficção”. Isso porque, como a expressão Qué tenga un buen día parece ser mais
usada em interlocuções, supomos que as obras de ficção nos proporcionariam
maior quantidade de diálogos. Dos 175 casos localizados, encontramos 4 com o
efeito de sentido que buscávamos que, além do sentido que já nos referimos de
“desejar uma boa jornada de trabalho a alguém”, funciona também como um ato
de fala de despedida nos enunciados localizados – como “bom serviço” e “bom
trabalho” em português:
159
23. “Despierto. Prefiero no pensar. Debo dar una clase a las siete de la mañana en el
hospital. Me apresuro. Me despido de Carolina rápidamente, como si nada, y me
marcho.
– Que tengas un buen día -me disculpa al fin, sonriente”.
(1994, Jorge Volpi, Mexico, Novela)
24. “- ¿Desea alguna cosa más, señor?
– No, yo... no...
– Que pase un buen día, señor”.
(1995, Jordi Sierra i Fabra, España, Novela)
25. “– Que tengas un buen día – responde Zoe, descorazonada, como si no quisiera
estar allí, en esa cama, en ese matrimonio.
– Te quiero – dice él.
(…) Zoe oye el motor de la camioneta alejándose y es un alivio para ella”.
(2002, Jaime Bayly, Perú, Novela)
26. “– En sus manos está, maestro.
– Muy honrado, Excelencia.
– Que tenga un buen día.
– Igualmente. Mis respetos a la señora condesa”.
(1988, Arturo Pérez-Reverte, España, Novela)
Novamente nos deparamos com a inacabada distinção entre os dois
idiomas a que se refere Fanjul (2003.:6-7), o que nos levou a contrastar as formas
dessas línguas – no que se refere às suas possibilidades combinatórias – em
termos de freqüência e não de exclusividade.
VI.2. Caso 2: a sintaxe atuando como “falsa amiga”?
O segundo caso de mal-entendido que analisaremos envolve o
funcionamento de uma construção sintática do espanhol, gustarle alguien a
alguien, comparada com “gostar de alguém”
142
do português do Brasil. A hipótese
142
Esses verbos, tanto no espanhol quanto no português, admitem também construções com,
respectivamente, sujeito e objeto indireto que não sejam [+humano], de modo que poderíamos
esboçar assim suas construções possíveis: gustarle algo/alguien e “gostar de algo/alguém”. Nesta
160
de que partimos de que não somente o léxico daria margem a mal-entendidos,
estes vistos como fruto do cruzamento de distintas determinações sócio-históricas
num acontecimento discursivo, parece comprovar-se no caso que relataremos a
seguir.
Veremos como a materialidade semelhante dessas estruturas oculta
distintas organizações sintáticas nas duas línguas consideradas, o que,
evidentemente, não deixa de afetar a significação dos enunciados de que elas
participam. Além dessa questão do modo de coordenação dos elementos dessas
estruturas, elas parecem comportar também restrições semânticas distintas,
moldagens históricas diferentes no que tange a suas possibilidades de
significação mais freqüentes. Portanto, em discursos em que estão envolvidos
gustarle alguien a alguien e “gostar de alguém”, é preciso considerar essas
determinações divergentes que regulam sua significação no espanhol e no
português.
Assim, se a materialidade lingüística similar não pode ser vista como
garantia de facilidade/transparência, como lugares aprioristicamente livres do
equívoco para as palavras, também não o podemos fazer, como veremos, com
relação à sintaxe. A memória sócio-histórica permeia todos os níveis lingüísticos e,
em função disso, não podemos isolar “porções de língua” que estejam livres dessa
influência. Parece-nos mais produtivo fazer da aprendizagem do espanhol pelo
brasileiro um processo de inscrição na rede de memória da outra língua, de modo
a que o aprendiz esteja capacitado para reconhecer as distintas determinações
que povoam as nossas línguas e significam nelas.
VI.2.1. Descrição e análise da situação
A situação que analisaremos se deu numa aula sobre o verbo gustar
durante um curso de atualização para professores de espanhol, com a presença
análise nos dedicaremos somente a esse componente [+humano], razão por que optamos por não
mencionar a outra possibilidade de construção de gustar e “gostar”.
161
de inúmeros falantes nativos do espanhol, de diferentes procedências, além de
professores brasileiros. Durante uma das aulas, uma das alunas, uma professora
de nacionalidade argentina que havia sido casada com um brasileiro de Minas
Gerais, disse, em voz alta: lo entendí, por fin lo entendi. Claro que a reação da
aluna causou surpresa (e curiosidade) na professora e nos demais alunos a
respeito do que ela havia finalmente entendido. A aluna respondeu que havia
entendido por que havia se separado do marido, o que causou ainda mais
perplexidade nos que a ouviam. Ela seguiu explicando que ela e seu marido se
davam mal, não se entendiam; até que um dia, quando a situação se tornou
insuportável e ela disse que não era possível continuar daquela maneira, que era
melhor se separarem, no meio da acalorada discussão, seu marido repetiu várias
vezes: “mas eu te gosto”, o que ela interpretou como pero yo te gusto. Vejamos
algumas possíveis determinações lingüístico-históricas que influíram nessa
interlocução e que podem ter provocado o mal-entendido.
VI.2.2. As possíveis causas do desencontro de sentidos
Pode-se dizer que se cruzam nessa interlocução dois tipos de
determinações divergentes das línguas envolvidas: uma de organização sintática e
outra que tem que ver com a seleção histórica das possibilidades semânticas mais
freqüentes para gustar/”gostar”.
VI.2.2.1. A sintaxe
Vejamos primeiramente a questão sintática. “Gostar” e gustar
apresentam organizações sintáticas distintas, já que, naquele, o experienciador
143
tem o papel temático de nominativo e exerce a função de sujeito, enquanto a
pessoa que desperta o sentimento (tema) se projeta no dativo (objeto indireto). Já
143
Temos consciência de que os papéis temáticos têm recebido diferentes nomes, porém não são
o objetivo deste trabalho, para cujas finalidades adotamos uma nomenclatura bastante comum
(experienciador e tema), apenas para fazer referência à questão. O que importa observar, no
entanto, é que o que estamos chamando de tema em ambas as línguas, qualquer que seja a sua
função sintática em cada uma, é o desencadeador de um processo, neste caso uma experiência
de natureza psicológica ou um sentimento.
162
no espanhol ocorre o contrário, ou seja, o experienciador se projeta no objeto
indireto e a pessoa que provoca o sentimento/sensação (tema) se projeta no
nominativo, exercendo a função de sujeito. Portanto, em português, a
concordância verbal se faz com o experienciador e, em espanhol, com o
desencadeador do sentimento/sensação; em ambas as línguas, a concordância
verbal se faz com o nominativo sujeito, mas em cada uma delas esse lugar
sintático é ocupado por elementos diferentes.
González (1994), baseando-se em reflexões de Lorenzo (1980), fala de
uma tendência da língua espanhola à preferência por essas construções oblíquas,
o que, segundo a autora, constitui uma característica que reforça a diferente
assimetria em relação ao português brasileiro. O uso preferencial dessas
estruturas sintáticas no espanhol, prossegue González, contrasta com o atual e
progressivo empobrecimento do sistema de clíticos do português do Brasil.
Diante do exposto sobre a distinta atribuição dos papéis sintáticos de
sujeito e objeto - ao experienciador ou à pessoa que desencadeia o
sentimento/sensação - na materialidade lingüística semelhante dessas línguas,
vemos que “gostar” e gustar podem provocar problemas de interpretação se o
aprendiz se fia dessa semelhança superficial.
VI.2.2.2. Restrições semânticas distintas
Além da distinta organização sintática de gostar/gustar, há outro
aspecto em que divergem essas construções: as possibilidades semânticas que
possuem nas respectivas línguas a que pertencem. Historicamente, podemos
dizer que esses verbos se distanciaram semanticamente (em termos de
freqüência), já que:
163
a) “gostar” parece se referir mais freqüentemente, quando seu objeto é
[+humano], a sentimentos de amor, carinho, simpatia por outra pessoa
144
;
b) gustar, quando seu sujeito é [+ humano], parece remeter com muita
freqüência a atração física entre pessoas
145
.
Devemos advertir, uma vez mais, que buscaremos propor algumas
regularidades de uso para essas construções em cada um dos idiomas, e não
atribuir exclusividade de valores para esta ou aquela língua. Nosso intuito é,
partindo de enunciados concretos, observar a quais das possibilidades semânticas
de que dispõem essas estruturas se associam estes, de maneira mais recorrente,
o que procuraremos fazer a partir de agora.
Vejamos, primeiramente, o verbo “gostar”. Para procurar estabelecer
possíveis regularidades semânticas para o uso de “gostar” em que o objeto fosse
[+humano], recorremos ao buscador www.google.com.br, optando somente por
páginas brasileiras. Em consulta realizada em 04/11/2005, solicitamos a busca por
“gosto” – optamos por manter a conjugação do verbo em primeira pessoa do
singular como aparece no enunciado “mas eu te gosto” que analisamos que
analisaremos -, e excluímos ocorrências em que o objeto da construção não fosse
[+humano].
Feito esse primeiro recorte, podemos dizer que dos 42 casos
encontrados, 38 remetiam predominantemente a sentimentos de amor, simpatia
ou amizade entre pessoas. Transcrevemos alguns exemplos que são
representativos dessa tendência:
1. “Você duvida de meus sentimentos... /Como dar-lhe uma certeza? /Falo, grito,
escrevo: EU GOSTO DE VOCÊ! (http://www.sokarinhos.com.
br/ak/ak.eugostodevc.htm)
144
No Dicionário Houaiss, em sua versão eletrônica (2001), dentre as acepções possíveis para
“gostar”: “transitivo indireto e pronominal. 3. dedicar amor, amizade ou simpatia a (alguém); amar,
querer, estimar Ex.: <gosto dos parentes> <eles se gostam muito>.
145
No Diccionario de Uso del Español, de María Moliner, dentre as possíveis acepções de gustar,
encontramos: “Ejercer atractivo sexual una persona en otra”. No Diccionario de Lengua Española
(RAE), também há uma acepção similar: “dicho de uma persona: resultar atractiva a otra”.
164
2. “(...) eu gosto de minha família, dos meus irmãos, da minha mãe e do meu pai.
(...) A minha mãe gosta de mim. Eu gosto de matemática e de geografia. (...) eu
gosto de jogar bola. Eu tenho 12 anos. Eu amo a minha mãe d ++++”.
(http://www.proinfo.es.gov.br/ntecolatina/projetosnte/hpeam/textos/nos.htm)
3. “Lia, me da um conselho, o vizinho da minha avó é muito meu amigo, nós nos
conhecemos desde que eu nasci, eu estou apaixonada por ele, mas eu sou muito
tímida! Como faço para dizer para ele que gosto dele?”
(http://www.justlia.com.br/pr_conselhos.php)
4. “Entendam, não há mensagem secreta em eu te amo, porque eu te amo é amor,
assim como eu gosto de você é eu te amo em doses menos narcóticas. Eu te amo
alucina e eu gosto de você só tonteia. Mas é tudo feito da mesma substância.”
(http://anamangeon.mus.br/arquivo/2005_03_01_macabeah_archive.html)
5. “Gostar, vocês pessoas que não são eu podem não saber o que quero dizer com
“gostar”. Os homens que não são eu, em particular, podem pensar que estou falando
de sexo: “tenho tesão por várias pessoas mas não quero magoar quem eu gosto”,
um dilema clássico. Não é disso que estou falando, não é este o meu problema. (...)
“Gostar”, gostar em que sentido? Sabe aqueles cartõezinhos überbregas tipo “amar
é”? Querer estar junto, querer conversar? Ficar feliz o resto do dia só de tê-la visto?
Desejar mais o bem dela do que o seu próprio? Ter sede de toque, de andar de
mãos dadas no parque, de assistir cinema abraçados, deixá-la dormir no ombro?
Sorrisão na cara, pernas bambas, agir feito bobo, ficar ouvindo música romântica?
Pois é, este gostar (...) O que não consigo é não me apaixonar, e Deus sabe como
me apaixono fácil (o Deus protetor dos ateus, naturalmente)”.
(http://diary.leoboiko.8x.com.br/2005/06/28/o-problema-todo)
6.“Eu simpatizo com o Lula. Eu sei que dizer isso numa época em que estrelas
pretas enfeitam carros é arriscado, mas tenho que ser sincero comigo mesmo. Eu
gosto do presidente Lula. É coisa de coração”. (http://www.tipos.com.br/item/28841)
7. “– O que você achou do desempenho do Shogun?
– Eu já tinha falado pra você mesmo há um tempo atrás, que o Shogun estava à
espera de um clássico. Quando ele fizesse um clássico ele ia mostrar o tão
preparado que ele é. (...) Eu gosto do cara pra caramba, ele é super gente boa,
super humilde, não tem como”. (Entrevista com o lutador de vale tudo Wanderlei
Silva retirado de http://www.portaldovaletudo.com.br/entwanderlei11.php)
165
Parece-nos possível propor as seguintes regularidades semânticas para
o uso de “gostar” com objeto [+ humano]: é mais freqüentemente usado para
denotar sentimentos de amor (entre um casal – exemplos 1, 3, 4 e 5 – e entre pais
e filhos – exemplo 2), amizade e/ou simpatia (exemplos 6 e 7). Veja-se que há
uma variedade de sentimentos que “gostar” pode denotar; dentre essas
possibilidades semânticas, a que irromperá em um enunciado concreto dependerá
dos diversos fatores que compõem as condições de produção desse
acontecimento específico, em especial de quem são o enunciador e o
enunciatário.
Também é interessante ressaltar, como evidenciam os exemplos 2 e 4,
que há uma espécie de gradação entre os verbos “gostar” e “amar” com objetos
[+humano], ambos de uso corrente no português do Brasil. Poderíamos pensar em
uma escala imaginária de “intensidade de sentimento” – no caso, de amor -, em
que “gostar” estaria abaixo de “amar”:
+ “amar”
- “gostar”
Cabe, no entanto, ressaltar que o valor de atração física também parece
ser uma possibilidade semântica de “gostar” – encontramos 4 exemplos nos quais
parece funcionar esse valor; no entanto, diferentemente do espanhol, esse efeito
de sentido surge em enunciados que, em geral cumprem, principalmente, a
restrição de que esse complemento [+humano] esteja no plural (exemplos 8, 9 e
10) ou, então, seja um genérico (exemplos 11, 12 e 13). Neste último, o registro
parece ser mais coloquial que naquele:
8. Se o Criador inventou no mundo alguma coisa melhor que o tal do bicho-homem,
está muito bem escondido em regime de segurança máxima. A figura masculina
mexe comigo de tal forma, que se torna difícil explicar isso em palavras. Fascina.
Vicia. Enlouquece. Seja pelas atitudes fortes, seja pelo ar de dominação. Gosto dos
166
de menor estatura, me olhando direto nos olhos, encaixando perfeitamente no meu
corpo, com acesso livre ao alcance das mãos e de todo o resto. (...) Gosto dos
branquinhos de cabelos escuros, traços delicados quase andrógenos, mas
enlouqueço diante de uma barba por fazer, um rosto quadrado, uma boca grande
pronta pra me devorar. Gosto dos educados que me pegam em casa e me puxam a
cadeira pra sentar, mas não resisto aos mais rudes que me deixam marcas na pele,
puxam meu cabelo, me colocam fogo nas veias”.
(http://proteus.limeira.com.br/tiroequeda/noticia.php?nnot=1816)
9. “Gosto de mulheres casadas. Olá bom, boa tarde ou boa noite...tudo bem
doutora? O lance é o seguinte, eu ja tenho 49 anos, sou casado e tenho três filhos e
tbem, não sei se chega a ser um problema, mas de certa forma me preocupa...como
o meu casamento não vai mto bem, procuro relacionamentos fora de casa, e eu
prefiro me relacionar com mulheres casadas, aliás, sou fascinado por elas...nos bate
papos desta página, procuro sempre e dou preferência pelas casadas...pq? Chega a
ser um desvio de conduta? Abraços, Obrigado. R.”
(http://yahoo.parperfeito.com.br/ThaisResponde/opshow/id8032/p-1/f-1/n-1)
10. Aliás, em relação à existência da inteligência feminina, Einsten costumava dizer:
“Eu gosto das morenas, como as loiras. E gosto das loiras, como as morenas!”
(http://www.fabricadequadrinhos.com.br/indexo.php?conteudo=antimateria&id=1)
11. “Repentes: Minha Preferência
Quando cheguei nessa festa
me perguntaram se eu gosto de loira
ou se eu gosto de morena,
se eu gosto de mulher grande
ou se eu gosto de mulher pequena,
eu respondi que preferência pra mim
é só no cavalo,
cavalo bom tem que ser
quarto-de-milha de preferência castanho
mais mulher pra beijar na boca
e fazer amor comigo pode ser de qualquer jeito
e de qualquer tamanho!!!!”
(http://www.vaquejadas.com.br/index.php?Fa=rep.infRepente&REP_ID=307)
167
12. “Eu sei o que vocês estão pensando sobre mim agora: “esse cara é um
machista!”. Acertou quem pensou isso. Errou quem pensou isso. Explico: ok, eu sou
machista pra cacete, mas eu gosto de mulher pra cacete, o que faz com que meu
machismo seja nulo.
(http://www.fabricadequadrinhos.com.br/indexo.php?conteudo=antimateria&id=1)
11. “ – Você namoraria um gay afeminado?
– Não namoraria pq se gosto de homem, não quero uma mulher falsificada. Creio q
ter tesão e gostar de homem não significa q virei mulher ou tenho q me portar como
tal. (...)”
(http://hosting.pop.com.br/glx/pesquisa/infos.php?pesquisa=37)
Tratemos agora de gustar. No intuito de verificar a hipótese
146
de que
esse verbo do espanhol remeta mais freqüentemente, com sujeito [+humano], a
“atração física”, fizemos um levantamento no Corpus de Referencia del Español
Actual (RAE). Em consulta realizada em 20/10/2005, solicitamos a busca por
gusto em textos de todos os países, em todos os meios e sobre todos os temas de
que dispõe o corpus e obtivemos 12486 casos. No intuito de refinar um pouco a
busca, solicitamos ocorrências com te gusto e excluímos dos enunciados
encontrados construções cujo sujeito não fosse [+ humano]. Dos 58 parágrafos
analisados, em 49 deles te gusto remetia claramente a atração física, tendência
que ilustramos com os seguintes exemplos:
12. “– Yo tampoco me entiendo. Nunca me he entendido. Sólo te pido que no te
molestes conmigo.
– ¿Cómo se te ocurre que me podría molestar contigo? Sólo me da pena verte tan
confundida. Yo creo que deberías atreverte a dejar un tiempo a Ignacio y a hacer
conmigo lo que te provoque, sin tantas culpas en la cabeza. Soy un hombre, soy tu
amigo. Si te gusto, si crees que puedes ser feliz conmigo, ¿por qué privarte de eso?
No soy tu cuñado, ésas son tonterías. Mírame como un hombre. Yo te miro así. Eres
146
As hipóteses que expomos aqui de que “gostar”, em construções em que o objeto é [+humano],
parece estar mais freqüentemente associado a sentimentos de amor e simpatia, enquanto gustar,
em construções cujo sujeito é [+humano], parece remeter predominantemente a atração física
foram inicialmente discutidas com Andréa Ponte Silva, Fernando Legón Galindo e Hélade Scutti
Santos, a quem agradecemos enormemente as interlocuções sobre o tema.
168
una mujer, mi amiga Zoe. Me gustas. Quiero llevarte a mi cama. Quiero hacerte el
amor. Quiero dormir contigo.” (2002, Bayly, Jaime, Perú, Novela)
13. “M.ª Teresa: – Oh, sí, claro... Con lo fácil que resulta decir las cosas a la cara: tía,
quiero follar contigo. (Pausa. Daniel no responde.) Tía, quiero follar contigo. Venga,
dilo.
Daniel: – ¡Que no! Que no quiero.
M.ª Teresa: – ¿No quieres? ¿No quieres decirlo, o no quieres follar conmigo? (Se
quita el sujetador.) ¿No te gusto?
Daniel: – ¡Qué tontería! ¡Pues claro que me gustas!
M.ª Teresa: – ¿Entonces? ¿No era eso lo que deseabas? Tener tu aventura en
América. Poder extraer una historia de esto, escribirla. ¿No es cierto? Por eso me
has estado buscando desde el primer día, desde el día de la fiesta en mi casa. ¿Te
habían dicho que me los tiro a todos? Claro. Así, todo ligaba: un buen remedio contra
la soledad y, de paso, un argumento para un libro. Buena manera de aprovechar el
tiempo. (1991, Rodolf Sirera, España, Teatro)
14. “Catalina, abrazada a sus piernas y apoyando el mentón en las rodillas, veía el
rompimiento de las olas con reposada felicidad. Raúl, de medio lado, parecía aspirar
la fragancia natural del cuerpo de su prima.
Sabía que era el momento oportuno para hablarle del Banco Atlántico pero, al mismo
tiempo, temía romper el hechizo.
En vez de abordar el tema, su deseo habló por él:
– ¿Por qué no nos vemos más seguido, Cati, como en los viejos buenos tiempos?
Sin quitar la mirada del horizonte, entrecerrando los ojos, como para espantar
recuerdos, Catalina respondió:
– Eso se acabó, Raúl. Ahora estás casado.
Raúl se arrimó más y le pasó un dedo por el brazo.
Catalina sintió un estremecimiento de temeroso placer, pero se sacudió la caricia:
– Por favor, estate quieto.
– ¿Ya no te gusto?
– No es cuestión de que me gustés o no. Parecés un chiquillo. El hecho es que estás
casado. Además, me simpatiza tu mujer.
Como si no la hubiera oído razonar, Raúl continuó el asedio:
– Catalina, creo que me estoy enamorando. Te lo digo en serio.”
(1986, Cabrera Infante, Guillermo, Cuba, Novela)
169
15. “Lidia: – Mira, Fernando Berrugón, no me apetece discutir; de modo, que ¡basta!
El hecho concreto es que no te gusto... ¡Ya no te gusto!
Fernando: – Sí me gustas. Cuando te veo cambiar de ropa, por ejemplo, me excitas.
Lidia: – Ah, cuando me ves cambiarme de ropa, te excitas.
Fernando: – Sí. ¿Soy un depravado porque me gusten los ligueros negros, las
braguitas transparentes y los sujetadores con puntillas?
Lidia: – No sabía.
Fernando: – Pues sí, me gustan. ¿Pasa algo?
Lidia: – Nada, no pasa nada.
Fernando: – Sólo que tú no te pones ligueros negros ni braguitas transparentes ni
sujetadores con puntillas.” (1992, Marsillach, Adolfo, España, Teatro)
16. “– Pero no seas tonta, mi linda... -decía la voz del novelista.
– No.
– Gocemos juntos, Ruby.
– No quiero, te digo.
– No sabes lo que te pierdes... Mira que soy capaz de hacerte gozar hasta que me
pidas perdón de rodillas.
– No veo por qué te voy a suplicar por nada, oye.
– Tontita, es un decir no más. Déjame, mi amor...
– No, te digo... ¡quita tu mano de ahí!
– ¿Por qué, mi linda? ¿No te gusto?
– Me encantas... Pero no.
– Dime al menos por qué no.” (1995, Donoso, José, Chile, Novela)
17. “– Oye Morenote... ¿te gusto?
– Sí, mucho, pero estás más buena que bonita. Lupe Lupe, ¿Lupe Pelupe?
– Y si estoy muy buena ¿qué?
– Alguno de ellos, ¿es tu novio?
– No mames Morenote... son mis padrotes, pero yo cojo con quien yo quiero.
– Entonces... ellos no...
– Nada, no te fijes prieto, yo soy muy cabroncita y ellos me consienten. Dame un
beso de reina... a ver prietito, ven pa'cá.” (1976, Martín del Campo, David, México,
Novela)
Nos demais casos, ou havia textos em que participava te gusto nos
quais o efeito de sentido de atração sexual não ficava bem claro – ou pelo menos
170
não era o único sentimento a que remetia, mesclando-se com amor e/ou carinho -,
como no exemplo 18, ou, como apontavam várias ocorrências de um mesmo
documento, ao menos em nossa interpretação, não era esse efeito de sentido que
se produzia (exemplos 19 e 20)
147
:
18. “Clara: – ¿Qué?
Pablo: – Tú sabes que nuestros viejos siempre se han llevao bien, ¿no?
Clara: – Sí.
Pablo: – Y que nosotros dos nos hemo críao casi juntos.
Clara: – Sí.
Pablo (decidiéndose): – Mira, Clara, yo quiero decirte una cosa que yo siempre
pensé decirte cuando yo saliera del Servicio: Clara, tú me gustas; yo quiero que tú
seas mi novia.
Clara (levantándose de un salto): – ¡Muchacho, pero tú te has vuelto loco!
Pablo: – ¿Loco, por qué? ¿Porque tú me gustas?
Clara: – ¡No, no, es que yo...!
Pablo: – ¿Que yo no te gusto?
Clara: – ¡No es eso! Es que... acabas de llegar y..., y mamá...
Pablo: – ¡Ah, bueno, mira, si tú quieres yo voy y Pablo con los viejos tuyos...!
Clara: – ¡No, con los viejos no!
Pablo: – Entonces es que no te gusto.
Clara: – No, no es eso... Es que, Pablo, las cosas así de sopetón, sin pensarlo..., yo
no sé qué decirte, Pablo.
Pablo: – Clara, ¿pero por qué to'este lío ahora, si nosotros siempre pensamos
hacernos novios cuando creciéramos?
Clara: – Eso eran boberas de muchachos, Pablo. Ahora las cosas son más serias.
(Recoge la palangana con la ropa.)” (1975, Sergio González, Cuba Teatro)
19. “Abel (como si sacara la cabeza del agua): – Con una barbilla así, por lo menos
podría ser capitán.
General: –¿Qué...? Así es. O mayor... Y también la boca parecida como un tajo, esos
tajos de navaja, sin comisuras, distante, sin ser ceremoniosa. Todo tenemos igual:
los labios, los ojos. Potrillo... Mi hijo. Sos mi hijo (le da unas cachetaditas sombrías y
147
É interessante notar como nessas construções com gustar cujo sujeito é [+humano], quando
são negativas, parece haver uma certa alteração ou neutralização do sentido de atração física que
essa construção assume mais freqüentemente, em que, inclusive, parece entrar em jogo algo de
sentimento de antipatia.
171
despreocupadas). No sé por qué no te gusto (se sonríe). ¿Ni el día de mi
cumpleaños te gusto?
Abel: – Hago lo posible.
General: –¿Te cuesta mucho?
Abel: – No demasiado. Pero cuando te ponés así...
General: –¿Te doy miedo?
Abel: – No tanto.
General: – ¿Agredido te sentís?
Abel asiente en silencio.
General (retama su bonachonería): – Si bromeo, Abel. Juego un poco. Nada más
que eso... juego, juego... ¿A vos no te gusta jugar acaso?
Abel: – Hasta en eso nos parecemos.” (1985, David Viñas, Argentina, Teatro)
20. “General (marcando): – Papá.
Abel (aceptando): – Tenía que hacer, papá.
General (inesperadamente): – ¿Yo no te gusto, no?
Abel: –¿Cómo?
General: – Si yo no te gusto.
Abel: – Sos mi padre.
General Lo supongo (lo encara de cerca sin dureza): – Pero no te gusto, ¿eh?
Abel (recula y logra mantener su ironía): – Bandera blanca, papá. Acordate.
General: – Nunca te gusté ¿hum?
Abel: – Tregua de luna nueva, papá.
General: – No te gusto. Yo sé que no te gusto (entusiasmado
con su juego. Alegremente despiadado). Sin embargo, tenemos la misma frente ¿no,
Beatriz?
Beatriz (molesta pero controlada): – Sí, papá.
General (juguetonamente lo agarra a su hijo Abel y lo pone frente al espejo): – Y la
misma nariz: aguileña, casi insolente, con un promontorio en el medio, agujeros
anchos, como un potrillo. Un potrillo zaino. Para oler todo de un saque. ¿No es
cierto, Beatriz?
Beatriz: Sí, sí: cierto, un potrillo zaino.
General (lo toquetea a Abel y se toquetea): – Hasta la misma barbilla: concentrada.
Perentoria te diría. ¿Borbónica? No. Bolivariana.” (1985, David Viñas, Argentina,
Teatro)
172
Os valores mais freqüentes de “gostar” – amar, simpatizar ou ter
amizade – normalmente se associam em espanhol a outros verbos, como querer
(para amar) e caerle bien alguien a alguien (simpatizar e/ou ter sentimento de
amizade)
148
. Numa escala de intensidade de sentimento, embora não corresponda
completamente à que propusemos para “gostar”, poderíamos afirmar que, em
espanhol, querer estaria numa posição mais alta que caer bien:
+ (Amar)*
Querer
- Caer bien
* nas variantes do espanhol em que seu uso é freqüente.
148
O verbo amar - embora apareça freqüentemente como modelo dos verbos da primeira
conjugação em materiais sobre conjugação dos verbos do espanhol – é usado pouco
freqüentemente com objeto [+humano] na variante peninsular. Parece haver uma representação
social sobre esse verbo como algo exclusivamente de uso poético, ou exagerado e até mesmo
“brega”, conforme o contexto. Assim, normalmente, para transmitir a carga semântica que em
português possui “amar” - como um sentimento de amor forte por alguém –, em espanhol
peninsular se costuma utilizar querer. Isso, evidentemente, parece ser uma tendência e, portanto,
não pode ser visto como uma regra geral nem mesmo na variante peninsular, e muito menos nas
outras variedades do espanhol, em que seu uso parece ser muito mais generalizado. De qualquer
modo, o que podemos dizer de “amar” na língua espanhola é que, independemente das
representações que haja sobre essa forma em cada sociedade hispanofalante, esse verbo remete
ao máximo amor, e que, por isso, não é algo que se diz em qualquer situação,para qualquer
pessoa. Para justificar essas tendências que apontamos, reproduzimos aqui consulta que fizemos,
aproveitando que estávamos na Espanha neste ano de 2005, a duas hispanofalantes (uma da
Costa Rica e outra da Espanha) a respeito do uso de amar em sua variante: 1. (falante da Costa
Rica (San José) - 40 anos): “Pues te diré que yo amo a mi esposo y así se lo digo, hay gente que
piensa que es mejor decir querer que amar, pero cuando se ama de verdad, nadie escatima en
decirlo. Así que en CR, todos amamos. También puedo decir que amo a mis hijos, amo mi
profesión, amo mi trabajo, amo la naturaleza, etc. como ves, no tenemos ninguna restricción con
este verbo. 2. (falante da Espanha (Andalucía) - 23 anos): “Como suponías, el verbo "amar"
apenas es empleado en las personas de mi edad para trastimitir sentimientos. Es mucho más
común "querer" tanto entre iguales de edad como entre personas de diferente sexo (novio-novia;
amigos e incluso entre padres e hijos). Mi madre no nos dice ni a mi hermano ni a mí: "os amo"
sino "os quiero". Tampoco se lo he oído decir a mis padres entre ellos. También emplean la forma
"querer". El uso del verbo "amar" aunque implica mucha connotación afectiva pesa sobre él una
considerable carga de cursilería que hace que apenas se pronuncie. Para expresar ese grado de
empatía que encierra el significado de "amar" por mi parte queda solventada con la expresión de
"querer" seguido de una adverbio de cantidad ["te quiero mucho", por ejemplo]”.
173
Já o valor de atração sexual, que parece ser mais freqüente para
gustar, não é completamente impossível para “gostar”, mas é mais
freqüentemente expresso por “excitar”, “atrair”, “querer”, “ter tesão por”, “ser
fissurado por”, “estar a fim de”.
Novamente fica patente que a especificidade do contato de falantes de
línguas como o português e o espanhol, muitas vezes, exige a inserção do
aprendiz em novas redes de predominâncias semânticas e não tanto a busca por
significações exclusivas ou divergentes. O conhecimento de a que remete a
materialidade lingüística semelhante desses idiomas na memória discursiva da
sociedade em que se inserem parece ser essencial para que o aprendiz de uma
dessas línguas se aproxime das significações da outra.
Também podemos notar que, do ponto de vista dos sentidos que
podem assumir os enunciados em que gustarle alguien a alguien/”gostar de
alguém” aparecem, existe o peso das restrições que impõem a sintaxe e a
semântica dessas construções; no entanto, muitas vezes, para dar conta dos
efeitos de sentido produzidos, especialmente quando o tema dessas construções
é [+humano], é preciso extrapolar o campo estrito da gramática, pois aqueles
dependerão de quem enuncie e a quem o faça. Além disso, no caso que
relatamos, um uso muito particular de “gostar” no português do Brasil, em que a
sua estrutura sintática se confunde mais ainda com a do verbo em espanhol, trará
questões adicionais, como veremos a seguir.
VI.2.3. O cruzamento de distintas restrições sintáticas e semânticas
O desencontro de sentidos que se deu no caso que analisamos poderia
ser explicado pela incidência de distintas organizações sintáticas e restrições
semânticas nesse acontecimento discursivo, o que, por sua vez, produziu efeitos
de sentido diferentes para o brasileiro e para a argentina. Vejamos como
poderíamos explicar essas divergências que se ocultam sob a semelhança
material do enunciado.
174
O brasileiro parece ter usado “te gosto” como uma variante de “gosto de
você”, já que sua variedade do português do Brasil se caracteriza pelo uso
alternado desse pronome átono com a forma tônica “você”. Ainda que no
português, do ponto de vista da sintaxe normativa, as formas “de ti” ou “de você”
não possam ser substituídas por um pronome átono (“te”), essa substituição é
usada na linguagem coloquial e até mesmo em letras de canções e poemas. Ou
seja, na linguagem coloquial, “te” equivale a “de ti” e “de você”, daí que um
brasileiro não interprete o “te gosto” do português como “eu agrado a você”, mas
como “você me agrada”.
Embora anteposto ao verbo, o desencadeador do sentimento (“te”)
funciona como dativo (objeto), e o nominativo (sujeito) seria o experienciador
(“eu”), o que fica evidente pela concordância do verbo “gosto”. Assim, o efeito de
sentido de “mas eu te gosto” que o brasileiro pensou produzir pode ser
parafraseado por algo como: “mas não podemos nos separar porque eu gosto de
você”.
Já para a argentina, que, pela semelhança formal, associou “eu te
gosto” com yo te gusto, o efeito de sentido produzido foi bem diferente. Temos,
por um lado, os papéis sintáticos de nominativo (sujeito) e dativo (objeto)
ocupados, respectivamente, pelo desencadeador do sentimento/sensação (yo) e
pelo experienciador (). Além disso, influi a predominância semântica que gustar
tem quando seu sujeito é [+humano]: o valor mais freqüente de “atração física”.
Desse modo, podemos imaginar – evidentemente como uma hipótese que não
podemos comprovar, embora a julguemos provável – e, então, parafrasear o efeito
de sentido que provavelmente irrompeu para a argentina, como se o seu marido
brasileiro lhe estivesse dizendo: “mas nós não podemos nos separar porque você
sente atração por mim”. Não é necessário nos alongarmos nas explicações para a
indignação da argentina ante o dito pelo brasileiro - que, segundo ela, foi a “gota
d’água” para a separação do casal -, já que, de seu ponto de vista, não só ele teria
atribuído a ela a necessidade de estar com ele (e não o contrário), mas também
175
teria dito que ela sentia uma atração física forte por ele, a ponto de não permitir
que ela o deixasse.
O que esse exemplo ilustra, portanto, é como a sintaxe também não
está livre de ocultar, sob a materialidade semelhante, determinações semânticas
diferentes e preenchimento distinto das categorias sintáticas. Este caso também
nos permite pensar que não se pode atribuir todo o peso das diferenças entre
línguas, ainda mais entre o espanhol e o português, à materialidade lingüística, já
que o percurso percorrido historicamente pelas formas nos discursos em que
funcionaram em cada sociedade imprime a elas idiossincrasias.
176
VII. CONCLUSÕES
Nossa pesquisa nos permitiu chegar a algumas conclusões a respeito
da imagem que circula em nosso país nos dias de hoje a respeito do espanhol e
das dificuldades de sua aprendizagem. A primeira delas foi a de que as definições
que se deram originalmente aos conceitos de “falsos amigos” e “falsos cognatos”,
no âmbito da Lingüística, distinguiam-se pelo componente etimológico: aqueles se
referiam a palavras de mesma origem, semelhantes formalmente, mas que se
distanciavam semanticamente, com o decorrer do tempo, em línguas irmãs; estes
designavam vocábulos em duas línguas que, apesar de sua semelhança formal,
não apresentam parentesco nem semelhança semântica. Já o conceito de
heterosemánticos pode ter sido cunhado por Nascentes (1939), em seus trabalhos
sobre a aprendizagem do espanhol por brasileiros, pois foi em sua obra que
encontramos as primeiras ocorrências desse termo; além disso, o fato de que o
uso dessa noção, ainda hoje, apareça predominantemente em pesquisas e em
páginas da Internet do Brasil sobre a aprendizagem do espanhol por brasileiros
também reforça essa hipótese.
Pudemos constatar, também, que essa linha de estudos iniciada por
Nascentes (1939) inaugura uma interpretação sobre a aquisição do espanhol por
lusofalantes que se apóia teoricamente no modelo da Análise Contrastiva em sua
versão forte. O autor parte do pressuposto de que o português é muito parecido ao
espanhol, bastando ao lusofalante, para aprendê-lo, conhecer as poucas
diferenças que apresenta em relação à sua língua materna, em sua maioria
divergências lexicais. “As palavras semelhantes em forma que possuem
significados diferentes” são, segundo Nascentes (ibid.), o ponto de maior interesse
nesse contato, já que essas palavras podem levam a mal-entendidos e a
situações embaraçosas. O restante dessas línguas é muito parecido, portanto,
passível de transferência positiva de uma para a outra.
Também pudemos constatar que essa linha de estudos iniciada por
Nascentes (1939) segue norteando muitos trabalhos sobre essas duas línguas no
177
Brasil atualmente. Inclusive, podemos dizer que, quando o tema de que se trata
são os que chamamos de “falsos amigos”, a abordagem que se dá às pesquisas é
predominantemente a de Nascentes (ibid.). Outra tendência nos trabalhos atuais é
a utilização dos conceitos de “falsos amigos”, “falsos cognatos” e
heterosemánticos como sinônimos, o que se faz prescindindo, ao menos nos dois
primeiros conceitos, da questão de mesma origem ou não dos vocábulos.
Pudemos notar também que a interpretação sobre a aprendizagem do
espanhol por brasileiros, iniciada por Nascentes, que atribui as dificuldades
especialmente aos “falsos amigos” – em oposição à facilidade/semelhança que o
restante dessas línguas tem entre si – estava também presente no imaginário do
brasileiro “comum” em sua época. Do mesmo modo, hoje, as idéias que circulam
no senso comum a respeito dessa língua estrangeira seguem praticamente
inalteradas.
Encontramos também explicações para o fato de que nem sempre esse
léxico seja tão problemático, ou de que nem sempre o restante do léxico (e da
língua) esteja livres dos mal-entendidos. Por um lado, porque importa muito mais a
distancia percebida pelo aprendiz e a maneira como ele lida com a aprendizagem
do espanhol, do que a verdadeira distancia entre as línguas espanhola e
portuguesa, mensurável pelo lingüista. Por outro, atribuir facilidade e transparência
ao restante do léxico e da língua supõe desconsiderar que há uma diversidade de
fatores que incidem nos discursos para a produção de sentido. Entre os
componentes das condições de produção de enunciados, ressaltamos fatores
histórico-sociais que determinam restrições semânticas para as línguas, restrições
essas desenvolvidas pelos usos que os falantes desses idiomas deram a eles nas
sociedades a que pertencem.
Partindo dessas premissas, a resposta à nossa pergunta de se
podemos dizer que existem “amigos” entre as línguas – tidos como “porções de
língua” que funcionam como lugar seguro para o aprendiz brasileiro do espanhol
como língua estrangeira, livres do equívoco – é negativa. A influência da memória
discursiva não está reservada somente a parte do léxico (e nem mesmo apenas a
178
ele). O conhecimento dessas determinações e a inserção do aprendiz nessas
novas redes de memória parecem ser essenciais, ainda mais num contato cheio
de idiossincrasias como é o do português com o espanhol. E isso fica patente com
os casos que analisamos, em que uma palavra e uma construção que não
constam das tradicionais listas de “falsos amigos”, embora fossem materialmente
semelhantes, levaram a mal-entendidos.
179
VIII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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