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UNIVERSIDADE METODISTA DE PIRACICABA
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Português dos Quinhentos:
cultura, gramática e educação
em Fernão de Oliveira
Adriana Duarte Bonini Mariguela
PIRACICABA, SP
2006
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Português dos Quinhentos:
cultura, gramática e educação
em Fernão de Oliveira
Adriana Duarte Bonini Mariguela
Orientador: Prof. Dr. José Maria de Paiva
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Pós Graduação em Educação da
UNIMEP como exigência parcial para obtenção do
título de Mestre em Educação.
PIRACICABA, SP
2006
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BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. José Maria de Paiva
Prof. Dr. José Lima Júnior
Profª. Drª. MariaViviane do Amaral Veras
Dedico
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Esse trabalho e As Coisas tão mais lindas,
de Nando Reis,
Entre as coisas mais lindas que eu conheci
Só reconheci suas cores belas quando eu te vi
Entre as coisas bem-vindas que já recebi
Eu reconheci minhas cores nela e então eu me vi
Está em cima com o céu e o luar
Hora dos dias, semanas, meses, anos, décadas
E séculos, milênios que vão passar
Água-marinha põe estrelas no mar
Praias, baías, cabos, mares, golfos
E penínsulas e oceanos que não vão secar
E as coisas lindas são mais lindas
Quando você está
Hoje você está
Onde você está
As coisas são mais lindas
Porque você está
Onde você está
Hoje você está
Nas coisas tão mais lindas.
Ao Márcio, meu diamante do
amor e a Luana, meu pequeno
tesouro, por derramarem poesia
em minha vida.
Agradeço
5
especialmente a minha
querida mãe Jandyra
que em corpo se fez
presente
e na
saudade se faz memória !
José Maria de Paiva,
por acolher minha pesquisa e pelo sabor da geléia
de maçã;
José Lima Júnior, o Zé,
pelos encontros regados por deliciosas
conversas e pelas
preciosas contribuições;
Josiane Maria de Souza,
pela leitura e contribuições na qualificação;
Viviane Veras,
pela gentileza e disposição em conhecer meu texto;
Virgínia Célia Camilotti,
pelos apontamentos no início da escrita;
Maria Rita Salzano Moraes,
por nossos tempos de estudos e pela
delicadeza com que leu
esse trabalho;
Teresa Ferrer Passos,
de Portugal, pela gentileza e possibilidade de ler
seu livro sobre Fernão de
Oliveira;
Eliane Junqueira,
pela simpatia e pelo auxílio de material;
6
Adilson Roberto, Eduardo, Wagner, Sady,
pelas
conversas quinhentistas;
Juliana,
pelo auxílio na editoração desse trabalho;
Meu pai Itacir,
pelo incentivo ao estudo;
Tia Nazareth,
pelo carinho maternal;
Minhas irmãs Juliana e Fabiana,
pela cumplicidade e afeto;
Meus cunhados, André e Rafael,
pelo humor;
Minha sempre pequena Bianca,
por ser tão especial;
Meu querido afilhado Francisco,
pelo gostoso sorriso;
A Família Mariguela,
pelos anos de convivência;
Márcio,
meu marido, pelo apoio e por sua presença amorosa;
Luana,
minha filha, pela doçura;
Sandra,
pela beleza de nossa amizade;
Mileine,
por se tornar presente;
Silvana Pacola e Francisco Miranda,
pelo recente encontro;
Márcia Pechula e Sérgio Dalaneze,
pela afetividade;
Mariângela Máximo Dias
, pela transferência e escuta.
7
Resumo
O objetivo desse trabalho é investigar a concepção e a vivência de cultura e
educação na sociedade portuguesa, tendo como referência a obra de Fernão de Oliveira, A
Grammatica da Lingoagem Portuguesa, publicada em Lisboa no ano de 1536. A proposta
está centralizada na análise da construção das normas da língua portuguesa na Gramática:
para além da estrutura formal, investigar as questões culturais e históricas que levaram à
formalização da obra. Para estabelecer a relação entre cultura, educação e gramática em
Fernão de Oliveira, optei por dois recortes: os descobrimentos e o movimento da impressão
em Portugal no início do século XVI. A primeira gramática da língua portuguesa saiu dos
prelos no período em que Portugal e os portugueses começaram o movimento de se
afirmarem como nação. Nesse trabalho, sustento que a identidade nacional estava associada
ao desenvolvimento da arte da navegação, da arte da imprimissão e da arte da gramática. A
produção de conhecimento no século XVI e o alargamento da visão de homem e de mundo
são analisados a partir da episteme da semelhança e para tanto, utilizo como referência
Michel Foucault. Partindo do princípio foucaultiano de que no século XVI, conhecer é
estabelecer semelhanças analiso a experiência do homem português quinhentista. Concluo
sinalizando que através do uso da língua materna, a cultura, a educação e a gramática se
entrelaçam nas vivências do português renascentista e que Fernão de Oliveira fez-se um
educador à medida que através das diferenças anotou, analisou, desenvolveu e vivenciou a
identidade.
8
Palavras Chave:
Portugal; Português; Século XVI;
Cultura; Educação; Gramática; Fernão de Oliveira; Conhecimento.
Sumário
Do Prefácio 9
Dos Achamentos 27
Da Imprimissão 49
Da Notação 75
Dos Desdobramentos
110
9
Da Bibliografia
115
Das Imagens
122
Do
Prefácio
10
oda língua, toda codificação, possui um tempo e um espaço: um feixe
histórico a ser considerado. O objetivo desse trabalho está delimitado no estudo sobre a
língua em Portugal do século XVI; para ser mais precisa, o intuito é analisar a construção
das normas da língua portuguesa na Gramática de Fernão de Oliveira (1507-1582): para
além da estrutura formal, investigar as questões culturais e históricas que levaram à
formalização da obra A Grammatica da Lingoagem Portuguesa de 1536.
A construção das letras sociais no século XVI compareceu na formação da
Gramática em Portugal de Quinhentos. Analisar a posição social das Gramáticas e o código
social presente na normalização da língua portuguesa é importante para investigar a
concepção e a vivência de cultura e educação do homem português quinhentista – ponto de
chegada desse trabalho.
Na sociedade portuguesa do século XVI, o ensino gramatical da língua materna
começou a encontrar lugar e a fazer sentido. Nas palavras de Buescu (1978), “o termo
Gramática deixa de ser, por antonomásia, a gramática latina. Pela primeira vez, embora a
princípio timidamente, se preconiza a prioridade do ensino gramatical da língua materna”.
11
O percurso histórico de Portugal, nesse século, trouxe à luz a gênese da gramática
portuguesa; afinal, a gramática abarca a história de uma sociedade, de um modo de ser: as
regras de uso da língua e a disposição das letras dizem da organização social. No século
XVI, verifica-se a aparição de um novo objeto de estudo: os estudos sobre a língua. As
línguas nomeadas de modernas solidificaram-se e no final do século já se encontravam
codificadas: o contexto cultural demandava a normalização da língua. Com a emergência
da problemática da língua, as línguas vulgares - utilizadas no cotidiano, sem preocupações
literárias e, em sua maioria, utilizadas por pessoas comuns, não letradas, começaram a
penetrar a vida social
1
.
Nesse momento histórico se iniciou a reflexão sobre a diferenciação das línguas e as
línguas vernáculas - línguas selecionadas e de boa qualidade e correção, utilizadas por
letrados - foram pensadas em relação à cultura do povo em questão: “as línguas vernáculas
cobravam seu lugar na instrução gramatical em todo o Ocidente” (WEEDWOOD, 2002:
62).
A história européia passou por significativas transformações, tais como: a retomada
dos valores e modelos da Antigüidade greco-romana, seus confrontos e adaptações à
tradição medieval; as renovações nas letras, nas artes e na ordenação política e econômica
da sociedade; as articulações de vários aspectos do contexto social marcado pelo
humanismo, pela reforma, pelas idéias racionalistas, pelo avanço de um conjunto de
técnicas e por um mundo de descobrimentos, criando uma nova concepção de vida e uma
reformulação no modo de pensar o homem e seu mundo.
Esse período histórico marcado por uma mescla de elementos, representou grandes
modificações e reflexões na produção e vivência dos homens portugueses: a natureza se
apresentou como fonte de conhecimento e curiosidade; houve a busca pelo aperfeiçoamento
de técnicas e experiências; o resgate à herança clássica e as oportunidades de leitura e
releitura do mundo. A possibilidade do homem se perceber e se pensar como um agente foi
fundamental para a representação deste novo cenário e desse novo homem que buscará a
autenticidade: o re-nascer. Aconteceu uma nova articulação e construção de vida que não
1
“Na conceitualização do chamado latim vulgar consiste o equívoco precisamente em que nós partimos do
latim literário, tornando-o por base e ponto de referência. Na verdade, porém, devemos partir da língua falada,
do latim coletivo, de onde se forjaram os vários latins individuais que constituem a língua literária. A língua
12
negando o seu apriori teve como finalidade a elaboração de uma nova existência pautada na
própria idéia de restauração da relação homem-mundo, à procura de uma nova experiência
com si mesmo.
Nos finais de 1400, o Humanismo Italiano
2
, aos poucos, penetrou em Portugal,
tornando presente os ideais da revolução na Renascença. Interessante destacar que durante
o século XVI, alguns portugueses freqüentavam universidades italianas conhecendo seus
ideais e suas novidades e provavelmente difundiram as idéias do humanismo italiano entre
os portugueses.
O termo humanismo, em Portugal e sua derivação humanista, estavam associados,
nesse período, aos conhecimentos das línguas e literaturas antigas e clássicas. Joel Barrão
(s/d: 455) afirma: “até, então, desde o Renascimento, a idéia de Humanismo é traduzida
pelas expressões politiores litteae, liberrale artes, disciplinae humaniores, humaniores
litteare, humanitatis studia, artes humanitatis, letras de humanidade, humanidades.
O Humanismo, um dos elementos da Renascença
3
, fez um retorno à época clássica,
considerando os diversos elementos da Antiguidade: o gosto pelo saber foi reafirmado
através da literatura, da história, da arte e da filosofia. Textos e traços começaram a ser
estudados e interpretados e as linhas humanísticas passaram a incorporar o modo de ser e
de organização do povo português uma vez que de base teórica e intelectual, o humanus
assumiu o lugar de valor, de prática e vivência.
O humanismo é, pois, antes de mais, o conjunto de esforços no sentido de
ressuscitar a Antigüidade Clássica. Mas não é apenas uma disciplina erudita, não
se resume ao interesse e admiração constante pela cultura grego-latina. As letras
de humanidade passam em breve a ser consideradas a própria sabedoria antiga,
concebida como um instrumento de cultura geral, naturalmente indicado para
tornar a humanidade mais civilizada e a mais feliz e os homens mais humanos.
Ressuscitando o pensamento antigo, o humanismo é um conjunto de valores
estéticos, éticos, pedagógicos e filosóficos que variam de autor para autor; é um
novo estilo de vida, a exaltação do valor do homem e da sua obra individual ou
coletiva. O individualismo está na sua base. O homem é o centro de interesse
(BARRÃO, s/d: 456).
falada é o verdadeiro latim” (SILVA NETO, 1952:108). Importante ressaltar, que as nomeações latim clássico
e latim vulgar denotam que há dois modos de uso da mesma língua e não línguas distintas.
2
Vale lembrar que no final do século XV, a Itália com uma grande acumulação de capital, pretendia fazer
aplicações e expansões em todo continente e encontrava-se estruturada num novo modo de organização.
3
Não há consenso histórico na utilização do termo Renascimento ou mesmo Renascença, há diversas
interpretações sobre o período que o termo recobre. A palavra foi usada pela primeira vez num romance de
Honoré Balzac, em 1820.
13
Assim, uma nova organização foi se delineando a partir da metade do século XVI,
havendo uma transição decisiva para uma outra forma de civilização. Esse período de
inovações na história da civilização ocidental foi um tempo caracterizado por cortes,
revoluções, rupturas e descontinuidade: a História de Portugal e do Mundo Europeu foi
marcada pela multiplicidade e diversidade de interpretações e acontecimentos nos diversos
espaços e épocas.
Os descobrimentos
4
marítimos, tema a ser desenvolvido no Capítulo: Dos
Achamentos, as expansões e as mudanças sociais foram marcas de um novo modo de
organização. O deslumbramento e a afirmação do espírito crítico transbordaram no
contexto sociocultural dos Quinhentos: “Descobrimentos e Renascimento associam-se,
assim, na mesma concepção do homem e da cultura; interdependem-se, estão
profundamente relacionados, não raro, até, numa conexão de causa e feito” (MARTINS,
1998:180).
Já no século XV os portugueses se encontram em condições de poder praticar a
navegação astronômica, tendo bem consciência do que tal representava como
progresso, de acordo com o que escreve num dos sete documentos, existentes em
Portugal, sobre a viagem de Cabral ao Brasil. Esta viagem pode considerar-se
como o acne ou o ponto cimeiro do renascimento português, isto é, dos
Descobrimentos lusíadas. Descrições de terras, diários de bordo, roteiros. A
experiência adquirida e os conhecimentos armazenados e confrontados com a
realidade, controlados por uma inteligência vigilante e crítica – pelo
entendimento – estão na origem do progresso das navegações (MARTINS, 1998:
185).
O império ultramarino português delineou-se pelo alargamento de fronteiras e pelo
desejo de expandir o comércio com o intuito de obter lucros e ganhar mercado. Os planos e
interesses burgueses marcavam o território e a religiosidade nas terras de Portugal,
perpassando a atividade ultramar que em seu fim último objetivava edificar o Império:
atividades comerciais, conhecimento do espaço (domínio da geografia) e conhecimentos
das artes marinhas foram, neste período, preocupações e focos de interesse dos portugueses.
4
José V. de Pina Martins citando J. Barradas de Carvalho afirma: “a palavra
descobrimento
significa ‘acto de
pôr à vista o que se encontra escondido, de revelar à luz do conhecimento o que antes estava oculto’. Já foi
observado que as palavras descobrir e descobrimento aparecem em textos portugueses até pouco depois de
meados do século XVI mais de 3 mil vezes, enquanto as palavras
conquistar
e
conquista
, até 1507, não são
adoptadas senão umas escassas dezenas de vezes” (1998:179).
14
Eles compartilhavam dessa realidade pela prática vivida e pela elaboração de teorias que
enunciavam pelos conceitos: o português vivenciava o espaço político.
O alargamento da terra conhecida obriga também a ver e a interpretar de outro
modo o espaço físico.(...) A geografia não é apenas um conhecimento mais, a
somar a essa sede de novos saberes do renascido homem moderno. É um saber
indispensável (MAGALHÃES, s/d: 15).
Nasceu a necessidade de conhecer e definir com precisão os domínios das terras, as
artes náuticas e as atuações nas fronteiras territoriais. Para além da narração e do registro do
espaço e das riquezas naturais foi necessário descrever e conhecer a terra de maneira
detalhada, considerando suas características e transformações: suas riquezas naturais, seus
acidentes, suas guerras, suas alianças e as façanhas militares, monárquicas e diplomáticas.
Fez-se essencial ter ciência de quem vive e quem domina o espaço. Em suma, como afirma
Joaquim Romero Magalhães, é preciso saber “do conjunto do espaço, pois governar é
dispor de instrumentos de conhecimento do espaço e dos que o ocupam” (s/d: 14).
Todo o projeto de expansão comercial e extensão territorial, marcas do século XVI,
colocaram em evidência um homem que entrelaçado à sua religiosidade, vislumbrou um
novo olhar. O alargamento do mundo ecoou nas esferas econômicas, sociais, políticas e
culturais à medida que as descobertas marítimas convergiram para uma nova organização.
Lisboa é o porto, Lisboa é o mar Oceano. Por aí convergem de largos horizontes
por rotas de novo abertas as caravelas com ouro, malagueta, marfim e escravos
africanos nos fins do século XV. (...) Agora dois tipos de comércio se vão
desenvolver nessas longínquas paragens: um comércio que põe no seu centro o
embarque de mercadorias para Lisboa, ao serviço do rei de Portugal; uma
imensidade de tráficos, locais e de longa distância, velhas rotas e velhas
complementaridades em que os Portugueses passam a participar
(MAGALHÃES, 1975:336-43).
Os descobrimentos, as navegações e as novidades impuseram a necessidade de
conhecimentos para o funcionamento do governo e da ordem social. Este cenário
proporcionava e propiciava uma difusão de interesses e particularidades. No que concerne à
organização política: camadas sociais se organizavam; os nobres desejavam conquistar
territórios para potencializar seus poderes; a camada eclesiástica, na figura da Igreja,
almejava o poder e a difusão da religião pautada nos preceitos cristãos e a burguesia
ansiava lucros nas atividades expansionistas. Havia interesses na concentração dos
15
conhecimentos navais e nos domínios marítimos, nas palavras de Leonor Freire Costa, “na
abertura da Europa ao Mundo, o mar torna-se cenário de estratégias de poder” (s/d: 292) e,
portanto foco de atenção.
As relações dos portugueses com o mar, as promessas marítimas, as aventuras, a
crescente abertura dos portos e a devoção despendida a esse novo exercício transformavam
a vida e a prática marítima integradas à vivência da sociedade. As experiências
ultramarinas, para além de propiciarem as descobertas de terras, o alargamento de
fronteiras, o desenvolvimento comercial e os contatos culturais, de hábitos, costumes e
línguas, foram de grande valor para a construção subjetiva do povo português: o mar que
até os séculos anteriores simbolizava o desconhecido e por isso mesmo lugar de perigo,
ameaça e caos, transformou-se em sagrado e “o país que assim iniciava as Descobertas
fazia-o símbolo da possibilidade de dominar e exorcizar os medos, os receios e os perigos
do mar” (KRUS, 1998:105).
Os percursos e as experiências ocorridos em Portugal, o novo modo de ser e as
mudanças no cenário europeu podem ser testemunhados por acontecimentos históricos: as
cruzadas, do século XI ao XIII, trouxeram uma percepção notável do alargamento do
mundo até então concebido pelos Europeus; Fernão de Magalhães (1480-1521) deu a volta
ao mundo; Cristóvão Colombo (1451-1506), realizou diversas navegações para o Ocidente
nos finais do século XV; as revoltas religiosas cindiram a cristandade ocidental; o comércio
tornou-se intercontinental; as formulações de Nicolau Copérnico (1473-1543) anunciavam
a concepção geocêntrica do universo; as investigações de Galileu Galilei (1564-1642) e a
utilização do perspicillum, dentre outros.
No que tange às letras, António de Nebrija publicou a primeira gramática do
espanhol, Gramática sobre la lengua castelhana, em 1492 e Reglas de orthographia de la
lengua castelhana em 1517; Dom Máximo de Souza escreveu em 1535 sua gramática
latina; em 1536, saiu dos prelos A Gramática da Lingoagem Portuguesa do Padre Fernão
de Oliveira; A Gramática da Língua Portuguesa de João de Barros foi editada em 1540;
em 1572 o jesuíta Padre Manuel Álvares escreveu De institutione grammatica, sua
gramática latina, que atingiu várias edições sendo traduzida em várias línguas
5
e no mesmo
5
De acordo com a referência de Serafim da Silva Neto, a gramática latina de Padre Manuel Álvares foi
traduzida para o alemão, o inglês, o boêmio, o croata, o espanhol, o flamengo, o francês, o húngaro, o ilírico,
o italiano, o japonês e o polaco. O autor afirma também que “por este livro, até o séc. XVIII, toda a Europa
16
ano, 1572, foi impressa a obra de Luis Vaz de Camões, Os Lusíadas; em 1574, Regras que
Ensinam a Maneira de Escrever e a Ortografia da Língua Portuguesa com um Diálogo que
se segue em Defensão da mesma Língua de Pêro de Magalhães de Gândavo; e entre 1596-
1606 foi escrita Ortografia e Origem da Língua Portuguesa de Duarte Nunes de Leão.
A Imprensa, tema do Capítulo: Da Imprimissão, considerando o trabalho de
Jhonan Gutenberg
6
(1394-1468), no século XV, inseriu-se num processo de
desenvolvimento de circulação de idéias, fazendo circular livros e estimulando a produção.
“A invenção de Gutenberg deixou de ser uma maravilha local para se transformar em um
fenômeno internacional” (MAN,2004:219). O advento da imprensa e sua difusão
possibilitaram a difusão de novas idéias e de novas correntes de intelectuais.
O aumento do número de livros, suas disponibilidades assim como o aumento de
potenciais leitores possibilitou um diferencial no cenário das letras e a língua passou a ser
difundida em maior escala. O crescimento da produção tipográfica e da população letrada, a
difusão das bibliotecas permitiu pensar uma nova configuração cultural, onde ensino, letras,
autores, impressores, livreiros, distribuidores, experiências e projetos encontravam-se
imbricados.
A ampliação do horizonte europeu, ocorrida ao longo dos séculos XVI e XVII,
estimulou a elaboração de vocábulos e gramáticas, intensificando a problematização da
gramaticalização das línguas. Nas palavras de Eduardo de Almeida Navarro,
o Renascimento assistiu a gramaticalização maciça das línguas do mundo,
fossem elas mortas ou vivas, européias ou americanas e asiáticas, de povos de
tradição literária milenar ou de povos ágrafos, ao mesmo tempo em que se
voltou para as fontes da cultura européia, a saber, para o mundo grego-latino e
para o mundo judaico (2000:385).
Durante a Idade Média, os teólogos incorporavam o ideal de homem culto. A
Retórica, arte de bem falar e bem escrever, aliada à Gramática, foi escolhida pela Igreja. A
aprendeu o latim. Foi impresso mais de quatrocentas vezes e, ainda de 1869, se publicava em Xangai uma
versão chinesa!” (1952:446).
6
Segundo John Man, o início do sistema de impressão, o trabalho adotado por Gutenberg para produzir
baseava-se nas seguintes etapas e ferramentas: “uma punção de aço é usada para estampar uma impressão da
forma da letra em uma matriz mais mole, de bronze. Depois a matriz é deslizada até o fundo do molde de
tipos de duas partes, o molde é enchido com a liga derretida para moldar uma peça tipo. Depois que a liga
esfriar, o molde é aberto e o tipo, removido” (2004:137). Essa mecanização dos tipos demonstra o espírito
17
prioridade da Gramática estabeleceu-se pelo ensino das regras principais do latim e tornou-
se então, a arte por excelência: “é o verdadeiro fundamento da erudição medieval”
(BUESCU, 1978:8). A tradição gramatical na Idade Média foi formada na tradição latino-
humanística; ponto de partida e reflexão para os homens renascentistas
7
que produziram um
esquema gramatical com aplicação às línguas modernas.
No século XVI, em Portugal, a "Questão da Língua" começou a delinear-se e
estruturar-se tendo raízes no modelo conceitual italiano, Questione della Língua
8
: foi a
expressão emergente no período. Ao dirigir-se a "questão da língua", os renascentistas
estavam, conseqüentemente, diante de reflexões sobre os esquemas gramaticais, das
especulações do uso da linguagem e da ordem das letras. Esse conceito foi um fenômeno
social, a invenção de um problema e, portanto uma fonte de investigação: a história cultural
colocou em cena a questão sobre a língua que estava em relação com elementos da
estrutura social, havendo assim uma interrogação sobre o uso social da língua.
Na abordagem da "Questão da Língua" importa, pois, estabelecer, em primeira
instância, o conceito e o modelo. Em seguida, tentar detectar a estratégia ou o
percurso mental que, num determinado momento e lugar (o séc. XVI e em
Portugal) levou à colocação duma problemática complexa e até contraditória,
conduzindo, enfim, à invenção de soluções (BUESCU, 1983: 217).
Os Gramáticos Quinhentistas inseridos no cenário social, político, cultural e
estético, estudaram as relações da sociedade com a língua tendo esta como objeto de
investigação. A vivência do homem renascentista possibilitou a construção da identidade do
português, como povo e como língua.
Analisar as propostas, inovações e interpretações dos Gramáticos Renascentistas
sobre a questão da linguagem e dessa maneira nos aproximarmos dos fundamentos da
inventivo e o trabalho manual que Gutenberg despendeu à imprensa, proliferando a pertinência da invenção
estar em sintonia com a técnica.
7
Vale destacar que na Renascença, o homem de saber é representado pela figura do filólogo: o filólogo
entendido como homem de letras, erudito que se interessa por textos clássicos e pela língua literária-escrita.
Nesse período, a filologia é um tema e uma área de interesse e atenção tal como a retórica. Logo, o termo
filólogo não é utilizado para qualificar o estudioso, o cientista que “se preocupa primordialmente com o
desenvolvimento histórico das línguas tal como se manifesta em textos escritos e no contexto da literatura e
da cultura associadas a eles” (WEEDWOOD, 2002:10), pois tal conceito, definido como um estudo rigoroso
de documentos, surgiu por volta de 1860: “no que se refere à filologia científica ela foi introduzida em
Portugal na segunda metade do século XIX por Francisco Adolfo Coelho (1847-1909)” (TEYSSIER, 2001:
17); e como especialização entrará em cena por volta do século XX.
8
Sobre
"Questione della Lingua
", ver Maria Leonor Carvalhão Buescu.
18
língua e da cultura é fundamental para o estudo do modus vivendi do homem português,
pois o código lingüístico e a lógica que as gramáticas utilizam e aplicam vinculam-se a uma
determinada visão sócio-cultural.
A construção de uma identidade e de uma consciência nacional
9
é o grande projeto
político: o reconhecimento do modo de ser português é um projeto de particularizar a língua
portuguesa em relação à língua latina. Através das aventuras no mundo da linguagem, da
problemática da língua e das reflexões e investigações, os Gramáticos, percorreram um
caminho no mundo das letras que atravessou as esferas teóricas, construindo assim
respostas e articulações às questões de seu tempo.
Nesse período, o latim assumiu o lugar de objeto de estudo, sendo concebido como
um instrumento utilizado em prol do português, passando a ser um ponto de referência
para construção e articulação do uso da língua própria, a materna, a portuguesa. As
reflexões gramaticais evocavam o modelo latino para evidenciar as diferenças rompendo
assim com a hegemonia, ou seja, a estruturação das normas portuguesas foi demarcada
pela comparação às normas latinas requisitando caracteres e referências por vezes
diferentes no que diz respeito estrutura, função, distribuição de ícones e por ora,
semelhantes no que diz respeito aos empréstimos e à vivência. A utilização da língua
latina, no século XVI, e seu cotejo com a língua portuguesa encontravam-se associada ao
corpus da semelhança
10
. A questão da semelhança (abordada no capítulo I) e a primeira
gramática da língua portuguesa, de Fernão de Oliveira, serão abordadas no Capítulo: Da
Notação.
9
No decorrer do texto dessa dissertação, utilizo o conceito de nação e expressões como “consciência
nacional”, “identidade nacional”, “construção nacional”, “projeto nacional”, “língua nacional”. Esclareço que
a concepção de Nação está sendo utilizada como identidade, como coletividade, como o modo de ser de um
povo. Neste caso, nação portuguesa refere-se ao povo português, a uma comunidade unida por identidade de
origem, por costumes e quiçá por uma língua. Etimologicamente, Nação, do latim
.
natìo,ónis
'raça, espécie,
casta, gente, nação, povo
',
der. do v.lat
.
nascor, éris,nátus sum,nasci
'nascer, ser posto no mundo'
;
ver
nasc-
;
f.hist. sXIV nações, sXIV nacões, sXV naçom, sXV noçõoes, sXV naçoees, sXVI nação 'agrupamento
político autônomo', sXV
naçom
'nacionalidade' (Dicionário Houassis Eletrônico). A utilização do termo não
pretende ser anacrônica, pois não se trata de um equívoco na atribuição de idéias e conceitos. Entendendo
que a concepção e formação do conceito “nação” encontra nuances distintas no decorrer da história, o termo
é utilizado para designar “terra de nascimento ou grupo humano de origem”, tal como faz Joaquim Romero
Magalhães em seu texto O enquadramento do espaço nacional. Outra justificativa, está principalmente no
fato do gramático
Fernão de Oliveira,
1536, utilizar o termo nação: nas páginas 38 e 39 encontra-se a
expressão “outras nações”; na página 46, “mesma nação”; na 61 “algumas nações” e por fim, na página 116,
a expressão “nomes de nações”, referindo-se a identidade dos povos, seus costumes e seus hábitos.
10
Semelhança, no sentido foucaultiano: semelhança está associada à relação de vizinhança
, locus
onde as
coisas se avizinham.
19
Os laços entre as línguas conjugavam a ligação própria do Mundo Europeu: os
portugueses, tal como outros povos da Europa, se ativeram para a história da língua, suas
derivações, empréstimos e particularidades, pois conhecer e reconhecer sua formação
lingüística significava dizer de sua cultura, explicar suas vivências e significar sua
identidade como povo. Assim como o latim
11
, fonte das línguas românicas, e outras línguas
têm suas filiações, a língua portuguesa pode ser caracterizada e narrada no processo mesmo
de constituição de uma língua própria.
A língua popular utilizada pelos Romanos, representante da língua comum,
“caracterizada por pronuncia menos cuidada, emprego de numerosas expressões evitadas
pelos escritores, e certas frases e modos de dizer” (SILVA NETO, 1952:107), da qual
provêem os dialetos
12
, carregava em si a possibilidade de produção de novas línguas que se
estruturaram através do tempo e da história da oralidade e dos povos. As línguas românicas
desenvolveram-se da língua coletiva, expressa, falada, compreendida e cotidianamente
praticada.
É evidente que antes da constituição do registro lingüístico, dos textos e caracteres
escritos e formalizados, havia uma dinâmica em termos de práticas cotidianas que
envolviam a língua: as línguas vão se moldando na própria oralidade, na comunicação e
expressão das (nas) relações. O latim escrito foi considerado e mantido como língua de
cultura e o latim falado tomou nuances diversas, sofrendo transformações que resultaram
das preferências e opções que cada grupo realizou. Logo, mesmo havendo uma
padronização, um latim clássico - escrito, havia diversos discursos e expressões que se
encontravam para além de conceitualizações formais, explícitos nos contatos sociais.
11
Serafim da Silva Neto, na obra História da Língua Portuguesa, nos lembra que “nunca se abandonou o
estudo da língua latina. (...) mesmo nos períodos mais difícieis da Idade Média, com as incertezas e os
temores das guerras e convulsões sociais, sempre se ouviu a língua de Cícero”. O autor indica que no século
XV os estudos latinos estavam em pleno vigor, que se vivia em
signo de latim
e que “no século XVI era
enorme o desenvolvimento dos estudos latinos. O latim erguera-se à categoria de língua da ciência, uma
espécie, portanto, de língua franca entre os eruditos de várias nacionalidades” (1952:445).
12
Ismael de Lima Coutinho afirma que “quanto ao uso, classificam-se as línguas em vivas, mortas e extintas.
Vivas, as que estão servindo de instrumento diário de comunicação entre os indivíduos de uma nação, como o
português
, o
francês
, etc. Mortas, as que já não são faladas, mas deixaram documentos escritos, como o
latim
e o
grego
literários. Extintas, as que desapareceram, sem deixar memória documental, como o
indo-europeu
.
Dialeto é a modificação regional de uma língua”. E citando Marouzeau sustenta que “um dialeto se define por
um conjunto de particularidades tais que o seu agrupamento dá a impressão dum falar distinto dos falares
vizinhos, a despeito do parentesco que os une” (1976:27).
20
Há, desde logo, que levar em conta uma oposição capital: as de língua escrita e
língua falada. Enquanto esta é apenas transmitida oralmente, aquela pressupõe
aquisição variavelmente longa e conctato com a escola. Por isso, enquanto a
língua escrita apresenta um caracter individual, pessoal, a língua falada é
propriedade colectiva. / O latim escrito consiste, no fundo, numa série de
estilizações, numa série de gostos pessoais e interpretações estéticas: por isso,
para uns, o verdadeiro latim é o de Cícero; para outros, é o de César (SILVA
NETO, 1952:109).
Nesse sentido, a língua como instrumento de simbolização do homem no mundo,
não é única e seus conflitos, desdobramentos e deslumbramentos se dão pela aliança que as
diversas formas de expressão e comunicação mantém entre si. Em outras palavras, é
necessário para o homem, ser de contato, aliar seus costumes, suas tradições, seus falares e
suas formas e modelos. O pólo essencial são as relações entre a língua falada e a língua
escrita, as permanências e alternâncias
13
: as raízes lingüísticas, as línguas faladas, seus sons
e usos assim como suas semelhanças e ocorrências soam como marcas no mundo. Na
estruturação da língua o contato é fator essencial na medida em que nele estão presentes as
interações e modificações dos povos e das línguas.
Nesse sentido são múltiplos os contactos lingüísticos que se podem referir:
entrechoque de línguas individuais dentro do mesmo grupo social, contactos
entre grupos sociais diferentes, com prevalecimento de uns e de outros, segundo
a estrutura social vigente, contacto das falas regionais com a língua comum,
contacto, através dos livros, ou através da Igreja, com a língua anterior, que no
caso é o latim (SILVA NETO, 1952: 366).
A formação da língua portuguesa, resultante de desdobramentos da língua latina, se
estabeleceu em Portugal por uma seqüência de contatos, relações e ações. Pode-se afirmar,
tendo como referências as obras sobre História da Língua Portuguesa
14
, que tal língua
nasceu do latim vulgar que os romanos inseriram na Lusitânia, região localizada ao
Ocidente da Península Ibérica logo, a história da língua portuguesa está assentada sob a
história da Península e sua romanização
15
.
13
Serafim Silva Neto,
História da Língua Portuguêsa
, faz uma bela análise da língua corrente (falada) e da
língua gramatical (literária-clássica), especificando cada caractere da língua latina nas duas facetas.
14
Ver: História da Língua Portugêsa, 1952, de Serafim Silva Neto; Pontos de Gramática História, 1976, de
Ismael De Lima Coutinho e
História da Língua Portuguesa
, de Paul Teyssier, 2001.
15
A romanização se deu a partir de 218 a.C., momento em que os romanos desembarcaram na Península. De
acordo com registros históricos, a chegada dos romanos integra um dos eventos da chamada Segunda Guerra
Púnica (218 – 202 a.C.). Por volta de 209 a.C., os povos da Península (exceto os bascos) adotaram o latim
como língua. Os povos que adotaram o latim serão os mesmos que, mais tarde, adotaram o cristianismo.
21
A formação histórica e cultural de Portugal e a estruturação de sua identidade
lingüística estão imbricadas em fatos e feitos próprios da convivência social de seu povo. A
língua proposta e elaborada pelos gramáticos está fundamentada na padronização da língua
e letras que dizem de uma língua política. A linguagem e as codificações para língua foram
tecidas sobre duas empreitadas: a linguagem associada ao meio urbano e ao povo e a
linguagem desprendida dos mestres de ensino das primeiras letras.
Esse trabalho intitulado Português dos Quinhentos: cultura, gramática e educação
em Fernão de Oliveira
16
tem por finalidade analisar a sociedade portuguesa de Quinhentos,
à luz da Gramática da Linguagem Portuguesa, primeira obra intelectual de Fernão de
Oliveira. Para tal empreitada, considerando a fantástica diversidade temática do século
XVI, dois recortes foram escolhidos, os Descobrimentos e a Impressa, direcionando meu
olhar para a sociedade portuguesa e para a Gramática.
16
Os créditos das imagens utilizadas no decorrer da dissertação constam no tópico “Das Imagens” p.122.
22
Imagem de Fernão de Oliveira, esculpida por Lagoa Henriques
a pedido da Biblioteca do Estado-Maior da Armada – Lisboa.
Fernão de Oliveira
17
, também conhecido como Padre Fernando Oliveira, homem de
letras e viagens, assumiu o humanismo difundido pela Europa durante a Renascença. Foi
17
As referências bibliográficas podem ser lidas nas obras:
Gramáticos portugueses do século XVI e
Historiografia da Língua Portuguesa de Maria Carvalhão Buescu;
Pronomes de tratamento do português do
23
filólogo, clérigo, cronista, conhecedor de arte da construção naval, professor de retórica e
mestre de filhos de alguns homens da coroa como filhos de João de Barros, do Barão de
Alvito e de D. Fernando de Almada
18
. Nasceu em Aveiro no ano 1507, filho de Heitor de
Oliveira, juiz dos órfãos em Pedrogão. Contemporâneo de Damião de Góis (1502-
1572)
19
, iniciou seus estudos no Convento Dominicano de Évora, em 1520, onde foi
discípulo de André de Resende (1495-4573)
20
.
Em 1532 encontrava-se na Espanha; nesse período, teve acesso à obra de Nebrija,
Gramática sobre la lengua castelhana de 1492, experimentando “o gosto pelo culto do
idioma pátrio” (PASSOS, 2000:32) que possivelmente trouxe à baila seu desejo de
sustentar a língua pátria, a língua materna, como identidade e sociabilidade de um povo.
No ano de 1536, em Lisboa, A Gramática da Lingoagem Portuguesa foi publicada.
Sua escrita gramatical foi construída e tornou-se pública na circunstância em que o Império
Português tinha como estratégia política à construção de identidade nacional. Para tal
empreitada de construção nacional, a língua ocupou lugar de identidade: é através da língua
que a identidade pode consolidar-se e, nesse sentido, faz-se necessário transpor à escrita,
uma ordem gramatical que caracterize um povo, transpor em letras o modo de organização
português.
Fernão de Oliveira reconheceu a importância das letras e do conhecimento na
lapidação do modo de ser e de viver de um povo: ser português é ser distinto, é ser diferente
do castelhano. As distinções culturais, espaciais e lingüísticas foram se desenhando nas
relações com a Península Ibérica.
Além de convívio com letrados, Fernão de Oliveira experimentou ao longo de sua
vida e de sua produção, descobertas e conhecimentos advindos de suas viagens. Dentre as
terras conhecidas, pode-se destacar as viagens à Espanha, Itália e Inglaterra. No contato
século XVI: uma gramática de uso
de Tânia Regina Eduardo Domingos; Fernão de Oliveira – 1º Gramático
de Língua Portuguesa
de Teresa Ferrer Passos; na
Introdução
de Amadeu Torres e Carlos Assunção, da
edição de 2000 da
Gramática da Linguagem Portuguesa
; e no
Dicionário dos descobrimentos portugueses
organizado por Luís de Albuquerque.
18
D. Fernando de Almada teve estreito contato com Fernão de Oliveira: a obra gramatical de 1536 é dedicada
ao nobre fidalgo. Nas leituras que realizei encontrei duas versões sobre sua presença na confecção da
Gramática
: há referências que afirmam ser a obra, sugestão de D. Almada e outras, que afirmam que a
Gramática
foi encomendada por ele.
19
Damião de Góis foi cronista encarregado de diversas missões diplomáticas nas principais cortes da Europa.
20
André de Resende, humanista português, foi mestre de retórica, estudou grego e latim, compôs músicas,
trabalhou com a arqueologia em Portugal e deixou obras manuscritas em latim e português.
24
com as terras, certamente deparou-se com idéias próprias da Renascença e do humanismo
italiano que marcaram suas reflexões e estudos de ordem gramatical, de técnicas de
marinha e seu apreço ao estudo clássico.
No ano de 1545, “com o nome de Capitão Martinho, alista-se a bordo de uma nau
francesa, sob comando do Saint Blancard, na frota de Antoine Escalin, Barão de La Garde”
(BUESCU, 1975:17), desempenhando o papel de piloto, graças a seu grande conhecimento
sobre náutica.
Na passagem por Londres, freqüentou a corte de Henrique VIII, obtendo a simpatia
e o reconhecimento por parte do rei que permitiu a Fernão de Oliveira expor suas opiniões
pessoais sobre vários assuntos. Diante desse espaço e da possibilidade de manifestar-se, fez
algumas considerações e críticas a determinados aspectos dos ritos e preceitos católicos.
Enquanto os laços de amizade entre Fernão de Oliveira e Henrique VIII se sustentavam, o
diálogo se articulava; no entanto, após a morte de Henrique VIII, Fernão de Oliveira voltou
a Portugal. Em 1547, ano em que a Inquisição definitivamente é implementada em
Portugal, Fernão de Oliveira foi julgado devido à acusação de ser partidário dos heréticos
protestantes. Três livreiros, João de Borgonha, Francisco Fernandes e Pedro Álvares foram
testemunhas.
Por descargo de consciência, todos vinham testemunhar uma ocasional discussão
travada sobre a fé católica e o protestantismo, à porta da livraria onde Fernão de
Oliveira procurava comprar o
Tratado da Esfera
de Pedro Nunes! Os
depoimentos acusatórios mostravam uma certa unanimidade: simpatia do réu por
Henrique VIII, a quem elogiara a desobediência ao Papa; defesa dos ingleses, ao
defini-los até como bons cristãos; conquista do paraíso pela simples crença em
Deus, etc... (Apud: PASSOS, 2000:76).
21
Fernão de Oliveira se manteve firme frente às acusações e no desenrolar do
Processo foi mantido encarcerado. Apesar de seus argumentos sólidos e articulados, seus
depoimentos não o inocentaram. Em 23 de dezembro de 1547, fez sua argüição e sua
defesa. Seu Processo estendeu-se até 04 de agosto de 1548; foi condenado e preso. O fato
curioso é que sua prisão foi decretada por tempo indeterminado logo, ficou a cargo de seus
21
Dentre às acusações sobre as posições de Fernão de Oliveira é interessante notar que a discussão aconteceu
à porta de uma livraria, na tentativa de compra de um livro. Este fato sinaliza a importância que Fernão de
Oliveira despendia aos livros e às letras assim como seu interesse por obras e escritos de autores
contemporâneos.
25
Inquisidores determinar o momento em que convinha dar-lhe novamente a liberdade.
Assim, cumpriu pena por três anos e por motivos de saúde foi transferido e recluso no
Mosteiro de Belém. Encontrava-se em liberdade condicional, em 1551, por intervenção de
um cardeal.
Em 1552, com o cargo de Capelão Real, participou da expedição organizada por D.
João III em auxílio do rei de Vélez, no Norte de África. Os passageiros da expedição foram
aprisionados e Fernão de Oliveira partiu para Lisboa a fim de intermediar as negociações,
ficando em Portugal.
Dois anos mais tarde, em 1554, foi nomeado revisor tipográfico da Universidade de
Coimbra, por D. João III e “segundo testemunho de D. Jerônimo Osório tira do
esquecimento o retórico romano Fábio Quintiliano” (BARRÃO, s/d: 815). Voltou à prisão
no período de 1555 a 1557, provavelmente pela emissão de alguns juízos que remeteu à
obra de Quintiliano. De acordo com as fontes bibliográficas que temos acesso, pouco se
sabe sobre seus feitos desde então.“Em 1565 sabe-se que lia casos de consciência na escola
dos espatários em Palmela e recebia uma tença de D. Sebastião (BUESCU, 1975:18)”.
Apesar de não haver exatidão quanto à data de seu falecimento é provável que tenha sido
por volta de 1582.
Fernão de Oliveira foi “um dos primeiros que, na esteira de Francisco de Vitória e
Bartolomeu de Las Casas, criticou abertamente a escravatura e o tráfico de negros”
(TORRES, 1989, Apud, COSERIU, 2000). Dentre os escritos produzidos, Fernão de
Oliveira abordou temas característicos às preocupações de seu tempo: ocupou-se de
gramática, de história, de cartografia, sendo também atraído por teorias de guerra e pela
construção naval. Sua “competência no campo da engenharia de construção naval, da arte
da pilotagem marítima e da estratégia da guerra no mar chegou a ser reconhecida
internacionalmente, destacou-se na escrita de obras pioneiras no quadro da cultura e da
ciência nacionais” (CONTENTE, 1985, Apud, FRANCO, 2000).
Além de A Gramatica da Lingoagem Portuguesa de 1536
22
, primeira obra do autor,
impressa pelo tipógrafo francês German Galharde
23
, escreveu:
22
Sua obra gramatical é a primeira a ser publicada em língua portuguesa: é a primeira proposta de uma
descrição gramatical do português, a primeira experiência de normalização da língua, precedendo a clássica
gramática de João de Barros, publicada em 1540.
26
Arte da guerra do mar, impressa em Coimbra por João Alvarez, em 1554-5,
reeditada por duas vezes em Portugal: em 1937 pelo Arquivo Histórico da Marinha e em
1969, pelo Ministério da Marinha;
Arte de Navegação, obra em latim e perdida;
Ars Náutica, manuscrito de 1570, que se encontra na Biblioteca de Leiden e tornou-
se conhecido através de Luís Matos em 1960;
Viagem de Fernão de Magalhães escrita por um homem que foi na sua companhia,
manuscrito, “autógrafo incluso na Ars náutica e composto a partir de relato oral, editado
sob a epígrafe Lê Voyage de Magellan [...] por Pierre Valière (Paris, Centro Cultural
Português, 1976)” (TORRES, 2000: 16);
O Livro da Fabrica das Naus, escrito por volta de 1580, compêndio que aborda com
profundidade questões relativas à arte náutica. Um registro teórico das façanhas marítimas
e das técnicas, dos avanços e da construção naval como resultados de vivências dos
portugueses. Fernão de Oliveira foi o primeiro português a escrever sobre construção naval.
Esse escrito foi editado em 1898 pela Academia Real das Ciências de Lisboa, devido ao
trabalho de Henrique Lopes de Mendonça
24
. Há também uma edição bilíngüe (português e
inglês), em fac-símile, publicada em 1991 pela Academia da Marinha, com estudos de
Francisco Contente e Richard Barker;
Livro da antiguidade, nobreza, liberdade e imunidade do reino de Portugal,
manuscrito de 1580-1, esboço do escrito da História de Portugal, se encontra na Biblioteca
Nacional de Paris, com a ausência dos sete primeiros capítulos;
A História de Portugal, manuscrito de 1580, é a primeira obra intitulada como
história de Portugal e que tem como projeto narrar e analisar a história do reino português.
Essa obra teve sua primeira edição crítica
25
no ano de 2000, realizada por José Eduardo
Franco e editada em Lisboa pela Fundação Maria Manuela e Vasco de Albuquerque d’Orey
e Roma Editora. A obra de Fernão de Oliveira demonstra que era um homem de posições
23
Germão Galharde (German Galharde), impressor francês tornado português, se estabeleceu em Lisboa no
ano de 1519, ano em que deu início a sua atividade como impressor que se estendeu até 1560. Entre 1530-1,
ensinou a profissão a Cônegos de Santa Cruz. Galharde foi um dos principais donos de casas impressoras em
Portugal.
24
O título do trabalho de Henrique Lopes de Mendonça é: O Padre Fernando de Oliveira e a sua obra
náutica – Memória comprehendendo um estudo biographico sobre o afamado grammatico e nautographo e a
primeira reprodução typographica do seu tratado inédito “Livro da Fabrica das Naus”.
27
definidas e públicas, pois tal escrito é a maneira que o mesmo encontrou para posicionar-se
frente a questões políticas de Portugal. FRANCO (2000) afirma que este é “um dos livros
mais significativos do proto-nacionalismo português, esta obra historiográfica edifica um
verdadeiro mito de Portugal, a fim de definir e afirmar a sua identidade como nação e a sua
missão no mundo, num contexto europeu mais alargado de afirmação das nacionalidades”;
E por fim, há o registro do escrito De re rustica, de Columela, interrompido no
início do capítulo IX
26
.
As obras e os escritos, assim como a biografia de Fernão de Oliveira faz
transparecer a diversidade temática e cultural de seu tempo: tal como o homem de
quinhentos, navegou por temas, lançou-se em aventuras, ancorou posições e fez circular
idéias. O primeiro gramático da língua portuguesa foi “entusiasta da gesta da Expansão e
possuidor de uma chama nacionalista que a Gramática manifesta claramente” (TORRES,
1989, Apud, COSIREU, 2000). Seus achamentos, seus pensamentos e sua vivência foram
marcados por uma paixão nacionalista manifestada em seus escritos: através das
semelhanças, Fernão de Oliveira mostrou a diferença!
25
Essa edição crítica recebeu o título de O Mito de Portugal. A Primeira História de Portugal e sua função
política.
26
Eugenio Cosieru (2001) afirma que Alfred Morel-Fatio organizou em 1892, um catálogo intitulado
Catalogue dês manuscts espagnols et dês manuscrits portugais
que se encontra na Biblioteca Nacional de
Portugal, onde os três escritos: Livro da antiguidade, nobreza, liberdade e imunidade do reino de Portugal,
História de Portugal
e
De re rustica
são atribuídos a Fernão de Oliveira.
28
Dos
Achamentos
“Maravilhosas cousas sam os feitos
do mar e assinadamente aquelles que
fazem os homes em maneira de andar
sobre elle per mestria e arte asy como
em naaos e gallés e em todos outros
navios mais pequenos ...”
29
Regimento dado por D. Affonso V
em 1471
aos almirantes de Portugal
s descobertas marítimas e os descobrimentos
27
foram práticas
constitutivas da subjetividade e da vida cotidiana do povo português. Através dos
descobrimentos, o mar transformou-se em elemento cimeiro nas relações dos portugueses,
pois “as descobertas são fundamentalmente uma explosão de vida” (DIAS, 1973:11).
Nos séculos XVI e XVII, as transformações culturais e as produções de
conhecimento no cenário europeu foram resultantes de um processo caracterizado pela
convergência de diversos acontecimentos, dentre eles, os descobrimentos e a afirmação de
contatos; a invenção da imprensa e a circulação de idéias e experiências.
O descobrimento, o achamento, a navegação e a expansão desencadearam nos
portugueses efeitos e sentimentos das mais diferentes ordens que em seu fim último
afloraram o sentimento pátrio. Deslumbramentos, medos, anseios, admiração, glória, temor
e orgulho são sentimentos e simbolizações que constituíram a alma portuguesa. O
português se percebe como povo assinalado por Deus e como nação desde o século XII -
século em que se iniciou a elaboração de um projeto político vislumbrado a partir do que é
ser português - no seu primeiro grito de nacionalidade representado pela Batalha de
Ourique (figura abaixo).
27
Os Descobrimentos que serão abordados nesse capítulo restringem-se a descobrimentos portugueses, no
entanto, faço a devida observação de que os descobrimentos não são ações e produções exclusivas dos
portugueses são também feitos dos espanhóis. A expansão e os descobrimentos tiveram lugar, importância e
desdobramentos na esfera européia. A empresa ultramarina portuguesa e os descobrimentos circularam no
momento em que as idéias da Renascença começaram a ecoar e a fazer sentir-se em toda Europa. Dessa
maneira, os descobrimentos foram um fator essencial na constituição da cultura européia e portuguesa. O fato
de ser salientado Portugal e os portugueses e não ser aprofundado as questões européias, nesse trabalho é
meramente uma opção consciente de limitação da discussão devido à temática e a proposta dessa dissertação.
30
A Batalha ocorreu em 1139 marcando no território de Ourique o confronto entre
homens portugueses liderados por D.Afonso Henriques
28
que instaurou confronto contra
cinco representantes mouros. Vale destacar a importância da vitória dos portugueses: ao
vencer, um grande território ficou sob domínio português, possibilitando que Portugal se
estabelecesse como reino e então, D.Afonso Henriques passou a ser reconhecido por sua
façanha militar e assumiu o título de rei.
Com Dom Afonso Henriques, Portugal restaura-se das fortes tentativas de
aniquilação por parte dos reinos vizinhos e começa a recuperar o fulgor da
primeira idade de ouro. Restauração que se efectua no cumprimento da missão
que dá sentido à fundação transcendente do reino: a dilatação da fé cristã. A
própria etapa da restauração de Portugal é também ela apresentada como sendo
fruto de uma disposição divina providencial. O próprio restaurador foi também
objecto de escolha divina, como afirma Fernando de Oliveira falando de D.
Afonso Henriques: Foi restaurador deste reino, escolhido por Deus em sua vida
(FRANCO, 2000).
29
Iniciou-se nesse momento, um processo de autonomia de Portugal que edificou
como projeto tornar-se Reino Independente e dessa maneira, estar além da Península
Ibérica. A Batalha de Ourique pode ser assinalada como o início da construção da
identidade do povo português que pretende construir-se de maneira distinta do castelhano.
28
D. Afonso Henriques (D. Afonso I), o primeiro rei de Portugal, nasceu em Coimbra no ano de 1109, filho
do Conde Henrique de Borgonha e D Teresa. Em 1126, com 17 anos, assumiu o governo do Condado
Portucalense sendo fiel às aspirações e aos desejos de seu pai em relação à Independência. Dentre lutas,
domínio de territórios e estratégias políticas, D. Afonso Henriques, faleceu por volta de 1185, reinou por
quase 60 anos e marcou a história de Portugal: o Condado Portucalense foi o primeiro território a estabelecer
sua identidade nacional.
29
A afirmação de Fernão de Oliveira citada pelo historiador José Eduardo Franco encontra-se na obra
História de Portugal. De acordo com as referências, tal afirmação encontra-se na página 12 da edição
atualizada (2000) do texto.
31
Histórias, contos, lendas e narrações marcaram os relatos e as interpretações atribuídas a
esse acontecimento, formas mitológicas evocavam a vitória dos portugueses assim como, as
crenças, os mistérios e as façanhas religiosas.
As batalhas foram entendidas como missão e em especial, na Batalha de Ourique
disseminou-se que Cristo estava presente através de D. Afonso Henriques. A presença
religiosa e a simbolização constituída pelos portugueses sinalizavam o modo como povo
português se via: como um povo de vocação. Em nome de Deus, Portugal liderou
confrontos, descobriu mares, conquistou terras e os portugueses assumiram o lugar de povo
eleito: Deus animou os portugueses. Esse povo por entender-se escolhido esteve imbuído
por um sentimento de universalidade: suas missões e seus achamentos deveriam ligar o
mundo a Portugal e através de missões e viagens dispersaram-se entre povos e pretendiam-
se presentes no mundo.
Portugal vive-se “por dentro” numa espécie de isolamento sublimado, e “por
fora” como o exemplo dos povos de vocação universal, indo a ponto de dispersar
o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro. Essa mitologia está inscrita na
bandeira portuguesa. Portugal é o único país que colocou no centro da sua
bandeira a esfera armilar, em suma, a representação do Universo (LOURENÇO,
1999:10).
As representações na bandeira portuguesa
30
demonstram a mentalidade: a Bandeira
é constituída por cores, quinas, castelos e esfera armilar. As quinas são cinco,
representando os cinco reis mouros que foram vencidos por D. Afonso Henriques, na
Batalha de Ourique. Dentro das quinas, há pontos simbolizando as chagas de Cristo –
também cinco. A conquista de D.Afonso Henriques sobre os Mouros é representada pela
figura de sete castelos indicando localidades conquistadas e fortalecidas. Há também, na
bandeira, duas cores: a cor verde indicando esperança e a cor do mar alto; a cor vermelha
apontando o ato de coragem; o sangue dos portugueses mortos em confrontos e “o sol
feérico e incandescente nascendo e declinando sobre as proas e as popas das valorosas
caravelas portuguesas, cujo império, pela primeira vez na história do mundo abrangia todo
30
A imagem da bandeira foi sendo constituída ao longo da história. De acordo com referências à história da
Bandeira de Portugal, inclusive com o comentário História da Bandeira de Portugal de Manuel Luciano da
Silva, a representação da bandeira portuguesa atual é resultante da composição de outras bandeiras. A
representação aqui descrita diz respeito à última bandeira portuguesa que retrata a nação desde o início da
32
o globo” (SILVA). A esfera armilar retrata as descobertas dos navegadores portugueses nos
séculos XV e XVI que permitiram a constituição de um novo mundo e contatos com
diversos povos. A esfera é ao mesmo tempo marca das viagens portuguesas e indicador das
relações entre os povos, com quem os portugueses intercambiaram conhecimento, técnicas,
idéias, costumes, vivências e relações comerciais
31
.
A forma de uma cruz em campo
branco foi adotada como a primeira bandeira por D. Afonso
Henrique.
República até nossos dias: em cada momento da história, em cada construção, um traço foi se moldando à
bandeira.
31
Fernão de Oliveira dedicou um capítulo da obra
História de Portugal
(1580) à Batalha de Ourique.
33
Após a Batalha de Ourique e a
vitória dos portugueses sobre os cinco reis mouros, a bandeira
portuguesa foi modificada:
“A pintura daquela vitória são cinco escudos de
cinco reis mouros que ele ali venceu. E porque os venceu com ajuda de Jesus Cristo
crucificado, que lhe a ele apareceu, mandou pintar aqueles cinco escudos sobre uma cruz
azul, a qual dizem ser a insígnia antiga deste reino. Mandou mais pintar em cada um
daqueles escudos cinco pontos que fazem número de vinte e cinco, e com cinco chagas
principais de Jesus Cristo, e o número de trinta significasse os trinta dinheiros por que ele
foi vendido” (OLIVEIRA, 1580, Apud, FRANCO, 2000).
Na terceira bandeira, além dos
escudos nacionais, há a inclusão de castelos: com a conquista
do Algarve aos Mouros, o rei Afonso III, em 1249, fixou as de
Portugal. Em prol das conquistas, nove castelos foram
acrescentados à bandeira nacional, dispostos em forma de U e
34
representativos do mesmo número de fortalezas tomadas aos
Mouros.
Na quarta bandeira, três
modificações ocorreram: quanto à representação dos escudos e
dos castelos e a presença da coroa, indicando a terra
portuguesa como um reino. No reinado de D. João I, se iniciou o
uso do escudo em forma de U, motivo pelo qual há uma
diferença na representação das armas portuguesas e
posteriormente, houve redução dos castelos, de nove para sete,
pelo rei D. João II.
35
D. Manuel I o
responsável pela inclusão da esfera armilar na bandeira,
demonstrando a esferidade e a circulação de terras e gentes,
mais tarde comprovadas pelas aventuras marítimas.
E por fim, a
bandeira atual, a mesma desde a implantação da República
Portuguesa em 1910: permaneceram os escudos e os castelos; a
coroa foi excluída e as cores verde e vermelha foram
acrescentadas.
36
Através da imagem da bandeira é instigante notar que os vencidos comparecem na
representação do símbolo nacional, ou seja, a presença do vencido retrata que o outro faz
também parte da constituição da identidade. Assim, os símbolos constitutivos da bandeira
apontam para um posicionamento do povo português de fazer transparecer que não é
preciso anular o outro para se afirmar: há uma mescla cultural que comparece através dos
empréstimos
32
e contatos de povos.
Portanto, na consciência e na organização da mentalidade, da vivência e da
sociedade portuguesa encontravam-se ligados o universal e o particular. Portugal entendia-
se tão privilegiado que desejava espalhar-se pelo mundo, levando à crença que tinha muitos
ensinamentos e preceitos a difundir e ao mesmo tempo, desejava que o mundo fosse
incorporado a ele.
A imagem missionária do português é referendada na própria organização social.
Havia uma hierarquia constituída e seguida na prática social: cada parte do corpus social
constituía-se por seus interesses, sempre envolta pelo sentido religioso estruturante da
sociedade quinhentista. O entendimento que o povo tinha de sua realidade, do mundo e de
suas vidas se arraigava sobre fundamentos teológicos cristãos que justificavam tanto a
ordem social como o poder político, moldando os valores, as experiências, os discursos, os
hábitos e a linguagem. A expansão de territórios, costumes e crenças estabelecidas pelo
movimento dos portugueses de lançar-se ao mar, tornam possível a difusão dos preceitos
cristãos por toda a Europa.
O português dos quinhentos identificava-se pela presença de Deus que assim como
a religiosidade estava manifesto em todos os homens: a doutrina explicitada pelos
representantes da Igreja de que os homens e sua sociedade são expressões da divindade,
encontrava efeitos diretos nas experiências sociais.
O pensamento social e político medieval são dominados pela idéia da existência
de uma ordem universal (cosmos), abrangendo os homens e as coisas, que
orientava todas as criaturas para um objectivo último, que o pensamento cristão
identificava com o próprio Criador. Assim, tanto o mundo físico como o mundo
humano não era explicável sem a referência a esse fim que os transcendia, a esse
“telos”, a essa causa final (para utilizar uma impressiva formulação da filosofia
aristotélica); o que os transformava apenas na face visível de uma realidade mais
global, cujo (re)conhecimento era indispensável como fundamento de qualquer
proposta política (XAVIER & HESPANHA, 1993:122).
32
A questão dos empréstimos entre os povos comparece o capítulo V, da
Gramática da Linguagem
Portuguesa
, de Fernão de Oliveira.
37
A mentalidade dos portugueses conquistadores, guiada por símbolos religiosos
marcava o discurso, a educação e a vida da sociedade lusitana. Eles vivenciam o sacro e o
sagrado em toda esfera de sua vida de tal modo que as conquistas territoriais também são
inscritas por esses valores. Em nome de Deus e do desejo mercantilista, através da
linguagem, organizavam as conquistas e o domínio dos espaços e povos.
A estrutura social e a ordem de Portugal no século XVI eram representadas pela
figura do rei
33
, reconhecido como detentor de autoridade, acumulava poder e símbolos,
aludindo a uma vontade política exercida militarmente e legitimada pela presença e
interferência de Cristo. O rei era a figura de representação do poder, da justiça e do divino,
cabendo a ele a promoção da justiça, da paz e o êxito da religião: o povo deveria encontrar
no rei um modelo, um padrão a ser seguido. A simbologia presente na figura do rei é
descrita no pronunciamento que Blackstone fez em ocasião da transmissão do rei:
O Rei possui duas capacidades, pois possui dois Corpos, sendo um deles um
Corpo natural, constituído de Membros naturais como qualquer outro Homem
possui e, neste, ele está sujeito a Paixões e Morte como os outros Homens; o
outro é um Corpo político, e seus respectivos Membros são seus Súditos, e ele e
seus Súditos em conjunto compõem a Corporação, como disse Southcote, e ele é
incorporado com eles, e eles com ele, e ele é a Cabeça, e eles os Membros, e ele
detém o Governo exclusivo deles; e este Corpo não está sujeito a Paixões como
o outro, nem à Morte, pois, quando a este Corpo, O Rei nunca morre, e sua
Morte natural não é chamada em nossa Lei (como disse Harper) a Morte do Rei,
mas a Transmissão do Rei, sem que a Palavra (Transmissão) signifique que o
Corpo político do Rei está morto, mas que há uma Separação dos dois corpos, e
que o Corpo político é transferido, para outro Corpo natural agora morto, ou
agora removido da Dignidade real, para outro Corpo natural. De sorte que
significa uma remoção do Corpo político do Rei deste Reino de um Corpo
natural para outro (Apud, KANTOROWICZ, 1998:25).
O rei vivia em corte e escolhia quem deveria auxiliá-lo no governo. Essa sociedade
de corte se constituía por uma hierarquia própria: nesse espaço, a aproximação ao monarca
estava marcada por rígidos traços. Já com o povo, no comportamento público, o rei
apresentava-se acessível, respeitável e amado, garantido assim sua popularidade. Além da
imagem do rei, na sua figura própria, era importante cuidar e estar atento às festas públicas,
onde o rei era personagem principal e deveria apresentar, nessa ocasião, uma boa relação
com a corte.
33
Assim como o povo, o Rei também era eleito por Deus.
38
A distância que o rei deve manter em relação aos seus súditos marca-se mesmo
dentro dos templos. O rei está instalado dentro da cortina, junto do altar, tapado
das vistas dos demais crentes, mas vendo o oficiante. Em circunstâncias
especiais, a cortina é arredada, para que a régia pessoa possa participar, assim,
de uma parcela da veneração a Deus (MAGALHÃES, s/d:69).
O corpo do rei em sua unidade deveria portar qualidades que o tornasse digno e
merecedor de apreço, reafirmando-se como representante de Deus e conciliador da
hierarquia uma vez que a sociedade se constituía pelos fundamentos, regras e leis que
estruturavam o corpus social e político. As relações de organização e disposição das
funções e espaços; as relações do reino e suas determinações encontravam-se delimitadas
pela autoridade.
Através da percepção que o povo tinha de si mesmo e com o modo de pensar
fundamentado em valores sacros, míticos, missionários e hierárquicos, a constituição da
nacionalidade portuguesa foi se delineando. Nessa rede de significações, o português -
como povo - se solidificou através das aventuras marítima e os descobrimentos reforçaram
a questão da nacionalidade, sendo para eles, fonte de informações, conhecimentos e
relações. A circulação de pessoas, ideais e idéias desembocaram em novidades e notícias
que difundidas pela oralidade e por letras escritas, cartas e registros de viagens culminaram
na consciência e no conhecimento do mar e do homem, re-fazendo a cultura portuguesa.
Os Descobrimentos não foram apenas uma fonte da cultura vivida de alguns
extratos do povo português. Para os intelectuais ligados às coisas do mar, foram
também um estímulo poderoso de reflexão e rectificação de idéias feitas no
decurso da história. E a sua influência foi mais longe ainda, orientando os
espíritos no sentido das coisas e do conhecimento científico independente da
escolástica e até do próprio humanismo (DIAS, 1972:77).
As navegações lusíadas entrelaçadas a uma nova vida fizeram efervescer imagens
que antes eram sinônimos do desconhecido e do impossível e a expansão, propiciada pelas
atividades marítimas culminaram no alargamento da visão de homem e no acréscimo
cultural. Esse novo homem é ao mesmo tempo ativo e receptor: ativo porque participava de
uma cultura vivida e receptor porque descobriu que há mais terras e homens do que sua
imaginação poderia supor.
39
O homem era agora encarado como um elo favorecido na grande cadeia do ser.
Tomando parte na Graça Divina, era algo mais do que o recipiente passivo de
influências astrais. E, visto que havia simpatia geral entre todas as partes do
Universo, o homem podia afectar o mundo supralunar do mesmo modo que este
o podia afectar (DEBUS, 2000:13).
Imbuído de missão espiritual universal e do valor humanus, o homem começou a ter
segurança em sua capacidade de governar a natureza e sua própria sorte. O modo de olhar a
natureza altera o cosmo: a descoberta e a consciência de que a natureza podia ser conhecida
e pensada pela observação permitiu ao homem afirmar seu olhar como instrumento de
conhecimento e nomear a natureza não mais concebida simplesmente como explicação de
uma causa-efeito de poder divino, mas com um desnudamento humano. A natureza e sua
composição podiam ser empiricamente observadas.
A partir das observações e das experiências realizadas, as viagens marítimas
colocaram em cena a preocupação, já antiga, com o conhecimento da terra, suas
características, suas medidas, seus limites e sua extensão. Da estrutura mitológica e da
antiguidade clássica, o que efetivamente se alterou não foram às preocupações e os
interesses, mas a perspectiva: os grandes achamentos empreendidos pelos portugueses
foram, em quinhentos, a própria perspectiva, pois foi a partir dos achamentos que os
conhecimentos e os interesses foram olhados e pensados.
No elo entre Deus e o mundo, Portugal do quinhentos foi preenchido pela produção
de textos, relatos dos homens do mar, cantos de poetas, reflexões literárias e diários de
bordo que traziam narrações encarnadas de sensações e vivências, indicativas da exaltação
das aventuras lusíadas. Essa transposição das experiências e sentimentos para as letras
instalou a consciência dos feitos portugueses pelo ângulo dos descobrimentos e de suas
implicações, comparecendo na ampliação dos conhecimentos, das reflexões, das culturas e,
por conseguinte dos moldes de vida. Através das viagens, confirmaram-se hipóteses,
evidenciaram e criaram-se teorias: os avanços foram sentidos na produção, elaboração e na
própria experiência
34
do conhecimento refletindo no aperfeiçoamento das técnicas e da
ciência.
34
O destaque atribuído à experiência é bem ilustrado nas palavras do escritor das navegações Duarte Pacheco
Pereira “a experiência que é madre das cousas, nos desengana e de todas a dúvida nos tira” (Apud, Peixoto,
1993:81).
40
As navegações portuguesas tiravam-nos muitas ignorâncias e mostram-nos [...]
haver antípodos (coisa de) que até os santos duvidavam; e que não há região,
nem por quente, nem por fria, se deixa de habitar (NUNES, Apud, PEIXOTO,
1993:81).
As palavras de um português contemporâneo das navegações, citadas acima,
apontam o desenvolvimento e a ampliação que o conhecimento alcançou entre terras
portuguesas e turbulências marítimas. Para lançar-se ao mar, os homens portugueses
precisavam de um projeto: estar ao mar significava estar executando um projeto político
afinal, construir caravelas e desbravar os mares não são movimentos aleatórios e casuais.
Fez-se necessário planejar as viagens: vislumbrando o objetivo – a meta, o ponto de
chegada - foi preciso projetar e prever os pontos de paragem, os locais de abastecimento de
alimentação. Sendo assim, o mar transformou-se não somente em possibilidade, mas
também em objeto de conhecimento: conhecer o mar, as correntes oceânicas, a direção dos
ventos, as condições climáticas, as extensões de água e terras para aproveitar os recursos e
re-manejar conhecimentos foi condição fundamental para a sobrevivência dos viajantes
assim como para a acumulação e desenvolvimento do saber.
Nesse momento de aventuras lusíadas, o saber e o conhecimento se produziram de
duas maneiras: uma ligada ao retorno aos autores e textos clássicos, releituras e
interpretações teóricas despendidas pelos eruditos; e outra, relacionada ao conhecimento
empírico propriamente dito, associado aos fenômenos, fatos e observações da vida
cotidiana. É claro que esses conhecimentos encontravam correspondência, mas é possível
afirmar que os conhecimentos empíricos estão intimamente associados aos descobrimentos
ou, em outras palavras, os achamentos foram experiências geradores de um tipo de
conhecimento que se alastrou por terras e almas portuguesas.
As condições das viagens e as experiências, apesar dos conhecimentos teóricos e
dos planejamentos, apresentavam situações e emergência de soluções que estavam para
além de teorias e de previsões. A ação dos navegantes não era viabilizada pela teoria, mas
pelo empenho que despendiam para solucionar situações imediatas: estar no mar era estar
suscetível a situações e ocasiões inesperadas, muitas vezes de ordem vital. Nesse sentido, o
conhecimento teórico restringia-se aos gabinetes, onde os letrados, pertencentes à nobreza,
desenvolviam e interpretavam teorias e planejamentos de viagens enquanto o homem do
mar, o homem comum, pertencente ao povo, formulava e experimentava um conhecimento
41
prático. Para além do mundo das letras, os homens do mar produziam, expandiam e
difundiam seus conhecimentos através dos desafios cotidianos que vivenciavam ao som do
mar e nas rajadas de vento. Assim, os homens do mar, não letrados, passaram a ser,
também, mestres do conhecimento à medida que a eles competia transmitir, contar e
narrar
35
o que viram, ouviram, viveram e acharam: as histórias das aventuras marítimas
preencheram de maneira fantástica a alma do povo português. As experiências portuguesas,
originaram uma verdadeira Cultura dos Descobrimentos que se manifesta pelo
alargamento do conhecimento científico e técnico; pelo conhecimento de novas
terras e de novas gentes, com aculturamentos e organizações sociais tão
diferentes; pela análise e crítica objectiva do conhecimento clássico e medieval;
pelo predomínio do método observacional, empírico, em contraposição ao
argumento das autoridades (PEIXOTO, 1993:74).
A alma portuguesa durante séculos estruturou-se por sentimentos de orgulho e
encantamento patriótico emergentes das atividades expansionistas e do espírito aventureiro.
Em nome de sua nação e de sua missão, arriscam-se: laçam-se ao mar deixando para trás
suas referências temporais e espaciais, arremedando-se no imprevisível. As peripécias dos
homens do mar foram traçadas pelos projetos e objetivos de explorar mares e terras e pelo
desejo de encontrar – mesmo sem saber ao certo o que se ia encontrar.
Todo o movimento e o projeto português de se arremessar na imensidão das águas
desconhecidas do oceano estava amparado pelo desejo de achar: promover atos e descobrir
os efeitos dos achamentos era de ordem fantástica. As fantasias, as possibilidades,
hipóteses e previsões mobilizaram a aspiração e a satisfação pelo novo, por aquilo que
estava por ser conhecido. O encontro, além de estar carregado de interesses políticos –
poder e domínio de terras - e econômicos – atividades comerciais - de Portugal, era
constituído por uma mítica cultural: o grande desafio estava justamente em estar diante do
outro.
As aventuras lusíadas e os caminhos trilhados pelos achamentos foram norteados
pelos valores portugueses disseminados no Mundo Ocidental e na civilização européia. As
incidências sobre o comércio foram avultantes: a relação entre os descobrimentos e o
comércio se deu na gênese do processo de aculturação portuguesa. Ao mesmo tempo, que
35
As narrações assentadas na oralidade eram realizadas na língua cotidiana, ou seja, no
latim vulgar
,
posteriormente denominado português.
42
os descobrimentos alargaram as façanhas e as possibilidades do comércio
intercontinental
36
, o comércio impeliu as descobertas marítimas. A experiência mercantil
desde o século XII desencadeia um processo de novas vivências e experiências: a
racionalidade mercantil marcou um novo modo de organização e de pensamento; a unidade
característica do povo português foi ampliada pela internalização das diferenças e dos
distanciamentos.
Com mercadorias e presentes o Infante D. Henrique ia consolidando as vias dos
Descobrimentos e ao mesmo tempo estabelecia a penetração para o
desconhecido, tendo em mira o cerco destrutivo da hegemonia árabe do Oriente.
O espírito da Ciência numa alma de Cruzado. É natural que mais tarde, o
utilitarismo de comércio nos continuadores da sua obra, viesse por vezes
suplantar a pura sede espiritual da alma do Infante, e o seu pensamento político e
religioso. / Esse espírito de Renascença, mais utilitarista certamente em D. João
III, embora mais aparente na época do Venturoso, apenas tornaria mais intensiva
a actividade comercial dos descobridores, sem contudo lhes diminuir, pelo
menos em D. Manuel, o alto sentido espiritual (PINTO, 1948: 95).
Um vasto campo de novidades foi experimentado: novos povos, novas culturas,
novos costumes, novos trabalhos, novas terras, novos ares, novos produtos e novos
interesses tornaram-se elementares na construção da realidade. Desse modo, além do
aprimoramento da arte da navegação era importante organizar a estrutura social de maneira
que os interesses fossem controlados e as comunicações entre as metrópoles e as colônias
fossem garantidas: a sociedade deveria estar bem organizada e fundamentada, cada parte do
corpus social precisava conhecer e reconhecer sua função como elementar na formação da
identidade nacional.
A atividade dos Descobrimentos foi referendada principalmente por D. Henrique, D.
João II e D. Manuel, difundindo o clima intelectual e espiritual da época. O Infante D.
Henrique comparecia com seu espírito da fé, estimulando as cruzadas; D. João II, tinha
intenção nacionalista e ambição utilitarista em prol da coroa, símbolo da nação. D. João II,
projetou enriquecer e engrandecer Portugal e para tanto as caravelas foram instrumentos:
“tão zeloso do poder pessoal, que até a Cruz de Cristo arranca das caravelas para a
substituir pelas próprias insígnias individuais. O seu ideal é fazer de Portugal um estado
florescente e rico, à maneira dos Estados italianos” (PINTO, 1948:300); e, D. Manuel
mantinha viva a idéia de estado menos centralizador: com ele a Cruz de Cristo regressou às
36
As relações comerciais internas e muitas vezes externas e as comunicações entre mercadores também
aconteciam através da língua comum, cotidiana, o
latim vulgar
.
43
caravelas e essas, além da riqueza e do comércio além-mar, levavam os fundamentos
espirituais.
Porque é de crer que não ordenou o Senhor tão maravilhosa cousa como é esta
nossa navegação, para ser somente servida nos tratos e proveitos temporais de
entre nós, mas também nos espirituais e salvação das almas que mais devemos
estimar... (D. Manuel, Apud, Pinto, 1948:301).
Desenho de caravela portuguesa do século XVI.
Nas trilhas achadas e nos encontros, as próprias viagens marítimas assim como o
domínio de terras foram símbolos de vitória, poder e saber. Havia um triunfo reinante nas
atividades portuguesas do século XVI: o português via as novidades e empreitadas
marítimas como possibilidade de espalhar-se pelo mundo, celebrava suas vitórias e feitos
no desejo de abraçar o universal e de fazer valer para o outro os seus grandes feitos. A
mítica constituída em torno dos Descobrimentos foi de tal densidade, deixando transparecer
que o português sentia-se o “Povo”, a “Nação imprescindível” para o desenvolvimento das
formas de saber de toda a Europa: o alargamento do mundo como triunfo dos portugueses.
44
Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as
maiores, mais maravilhosas, de mais alta e mais discretas conjecturas, que as de
nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar
Oceano. Entraram por ele sem receio. Descobriram novas ilhas, novas terras,
novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas. E
perderam-lhe tanto medo, que nem a grande quentura da torrada zona, nem o
descompassado frio as extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos
ameaçavam, lhes pode estorvar, descobrindo e passando o temeroso Cabo de
Boa Esperança, o mar da Etiópia, de Arábia, de Pérsia, puderam chegar à Índia.
Passaram o rio Ganges, tão nomeado, a grande Taprobana, e as ilhas mais
orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior
que o mar, e haver aí antípodas, do que arte os santos duvidaram, e que não há
região que nem por quente nem por fria se deixe habitar. E que num mesmo
clima e igual distância da equinocial, há homens brancos e pretos e de mui
diferentes qualidades. E fizeram o mar tão chão, que não há quem hoje ouse
dizer que achasse novamente alguma ilha, alguns baixos ou sequer algum
penedo que por nossas navegações não seja já descoberto (NUNES, 1537, Apud,
DIAS, 1973:19).
As palavras de Pedro Nunes
37
estruturam um registro, dentre outros, que indica o
movimento expansionista português e a glorificação criada pela atividade marítima e, por
conseguinte, pelos descobrimentos. A exaltação dos achamentos marítimos e terrestres,
mais do que pensada, foi incorporada pelo povo português afinal, na efervescência dos
acontecimentos e no movimento de descoberta não era possível avaliar teoricamente as
implicações e conseqüências dessas ações portuguesas: era preciso viver e
esse é, na verdade, um momento magnífico. Quem abrange do alto os fatos da
história universal, entre os fins do séc. XV e os meados do seguinte, tem a
impressão deslumbradora de que uma gigantesca e poderosa mão, num gesto
brusco, rasgou de alto e baixo o espesso véu que encobriu a terra, para a
entremostrar aos olhos assombrados dos homens, no esplendor da sua virgindade
e formosura. Dera-se o Descobrimento! É difícil para nós, contemporâneos do
avião e do rádio, para quem o planeta se desdobra todos os dias nas páginas de
jornais ou no écran do cinema, imaginar o que esse fato significou para os
homens daquela época, confinados, povo a povo, ao seu pequeno mundo. Dois
oceanos, o Atlântico e o Índico, cuja imensidade e intercomunicação eram
desconhecidas, são unidos entre si e rasgados, pela primeira vez, de alto a baixo
e de lado a lado. Humanidades novas, totalmente ignoradas, surgem aos olhos
dos navegantes, na orla ou no interior dos continentes. E, ao mesmo tempo,
plantas, flores, selvas, feras, aves, astros, povos, artes e religiões, desenrolam
formas, cores, sabores, aromas, esplendores, crenças ecreações do espírito,
inimaginadas! Não há na história maior deslumbramento! Em boa verdade, o
homem do século de Quinhentos realizou um espantoso romance a Julio Verne:
foi de súbito arrojado sobre um planeta novo e imenso. E essa torrente de vida
nova, o que o arrastou, havia fatalmente de abalar-lhe e fecundar-lhe o
pensamento, a moral e a fé. Só hoje começa a compreender-se, nas suas
diretrizes, amplitude e conseqüências, o movimento geral dos Descobrimentos,
em especial, dos portugueses (CORTESÃO, Apud, SILVA NETO, 1952:443-4).
37
A afirmação citada encontra-se originalmente no livro
Tratado em defensão da arte de marear
.
45
Desbravar mares era para os portugueses, uma proeza que possibilitava conhecer o
mundo e a si mesmo. As terras vistas e achadas eram descritas e conhecidas a partir de
explicações comparativas às terras de Portugal, ou seja, terras e gentes eram caracterizadas
e percebidas com olhos portugueses. A comparação como referência e o corpus da
semelhança era um instrumento para pensar e provar o novo, o descoberto.
A necessidade de produzir e principalmente de interpretar as coisas vistas e os
conhecimentos não foi exclusiva do povo português, pois cada cultura ocidental criou seu
“sistema de interpretação, suas técnicas, seus métodos, suas maneiras próprias de supor que
há linguagem para além da própria linguagem” (FOUCAULT, 2000:40). No século XVI,
conhecer era estabelecer a semelhança entre as coisas: o homem era pensado como
representante do mundo na consciência e a expressão só era possível mediante a
semelhança que as coisas tinha umas com as outras. A representação e a episteme estavam
arraigada à semelhança, ou seja,
lá onde as coisas se assemelhavam, lá onde isso se parecia, alguma coisa queria
ser dita e podia ser decifrada; sabe-se bem o importante papel que
desempenharam na cosmologia, na botânica, na zoologia, na filosofia do século
XVI, a semelhança e todas as noções que giram em torno dela como satélites
(FOUCAULT, 2000:41).
Um símbolo refletia o outro, a palavra remetia à coisa e a semelhança era o meio, o
instrumento para remeter um símbolo a outro. Logo, os símbolos dispunham-se
homogêneos e integrados e a palavra simbolizava a coisa, estava no lugar da coisa. Essa
homogeneidade e integração só eram possíveis porque o próprio espaço era considerado
homogêneo e seus elementos integrados: um elemento, um objeto, uma coisa, um tema e
uma palavra remetiam sempre a alguma outra coisa. O conhecimento se constituía na rede
comparativa entre as coisas, o modo de pensar o novo estava sempre associado a uma
referência.
A decifração do mundo e a elaboração dos conhecimentos assentavam-se na
episteme da semelhança e as diversidades temáticas faziam elo entre si: vários estudos
apareceram no século XVI e o desenvolvimento dos saberes estava acompanhado pela
vizinhança. As espécies de animais e plantas achadas em novas terras eram estudadas em
comparação as espécies pertencentes às terras portuguesas assim como em comparação
entre si, ou seja, uma determinada espécie de animal ou planta era caracterizada e nomeada
46
a partir de outra espécie e “o desenvolvimento do saber sobre o reino vegetal foi
acompanhado pelo reino animal” (DEBUS, 2002:53).
Também, o estudo sobre o homem em quinhentos resultava de elaborações e
comparações, entre a concepção clássica de homem bem como na utilização da semelhança
entre o homem os demais animais: as descrições anatômicas das partes do corpo humano e
suas particularidades estavam assentadas na comparação com a anatomia de outras
espécies. Para ilustrar a atenção às cadeias semelhantes é importante considerar a o estudo
sobre anatomia comparada realizado por Pierre Belon (1517– 1564) “no qual representou
lado a lado os esqueletos de um homem e de uma ave, chamando a atenção para
semelhanças válidas”, tal como pode ser visto na figura abaixo.
Estudo comparativo, 1557, entre o esqueleto humano e o de uma ave
por Pierre Belon.
47
As semelhanças compareciam tanto nos diversos campos teóricos como no prático.
As diversas experiências vividas pelos homens quinhentistas a partir do valor do humanus,
das novas aventuras e dos encontros consolidados entre o clássico e o moderno e entre
gentes e terras propiciaram uma diversidade temática vivenciada teórica e praticamente.
Através da observação, as semelhanças emergiam e se transformavam em meios de
construir a identidade e nesse sentido, as semelhanças apontavam as diferenças. E voltando
ao que já foi comentado sobre a bandeira lusitana, através do corpus da semelhança e dos
descobrimentos e contatos, o português se nomeia e se pensa a partir do outro: inicia-se
uma afirmação do modo de ser português referendado no que ele tem de semelhante e
diferente do outro.
Até o fim do século XVI, a semelhança desempenhou um papel construtor no
saber da cultura ocidental. Foi ela que, em grande parte, conduziu a exegese e a
interpretação dos textos: foi ela que organizou o jogo dos símbolos, permitiu o
conhecimento das coisas visíveis e invisíveis, guiou a arte de representá-las. O
mundo enrolava-se sobre si mesmo: a terra repetindo o céu, os rostos mirando-se
nas estrelas e a erva envolvendo nas suas hastes os segredos que serviam ao
homem. A pintura imitava o espaço. E a representação – fosse ela festa ou saber
– se dava como repetição: teatro da vida ou espelho do mundo, tal era o título de
toda linguagem, sua maneira de anunciar-se e de formular seu direito de falar
(FOUCAULT, 1992:33).
Assim como a sociedade no século XVI estava organizada pelo corpus social, havia
uma rede organizada de semelhança. A análise de Michel Foucault aponta que o corpus da
semelhança encontrava-se sistematizada em pelo menos quatro formas ou noções: a
convenientia, a aemulatio, a analogia, a sympatheïa.
Através da convenientia as diferentes coisas, os diferentes seres se aglutinam, se
ajustam por conveniência, havendo uma concórdia e assim, “pelo encadeamento da
semelhança e do espaço, pela força dessa conveniência que avizinha o semelhante e
assimila os próximos, o mundo constitui cadeia consigo mesmo” (FOUCAULT, 1992:35).
Essa aglutinação e encadeamento dos espaços semelhantes são em Portugal presentificados
na ação dos descobrimentos que trazem a possibilidade de se fazer elo entre os espaços e
gentes. A noção de aemulatio definiu-se pelo esforço contínuo em igualar uma figura à
outra, no movimento mesmo de distanciamento, pois se constitui por uma semelhança sem
contato. A analogia, terceira forma de semelhança, é composta pelas duas formas
anteriores de similitude e tem a reversibilidade e polivalência como característica o que
48
“conferem a analogia um campo universal de aplicação” (FOUCAULT, 1992:38) e através
dela, todos os pólos do mundo se aproximam, pois o ponto central de aproximação é o
homem. “O espaço das analogias, é no fundo, um espaço de irradiação. Por todos os lados,
o homem é por ele envolvido; mas esse mesmo homem, inversamente, transmite as
semelhanças que recebe do mundo. Ele é o grande fulcro das proporções – o centro aonde
as relações vêm se apoiar e donde são novamente refletidas” (FOUCAULT, 1992:39). E
por fim, a quarta forma de similitude diz respeito às simpatias, princípio de mobilidade, de
deslocamento de transformação. Essa característica de metamorfose e acomodação à
transformação torna-se um perigo ao jogo de simpatias, pois se corre o risco de
homogeneizar as coisas e figuras. Logo, tem-se o seu contrário, a antipatia que através do
isolamento barra a assimilação e homogeneização. É nesse jogo entre simpatia-antipatia
que todas as outras formas de similitude se movimentam e representam o mundo.
Convenientia, acemulatio, analogia e simpatia nos dizem de que modo o mundo deve se
dobrar sobre si mesmo, se duplicar, se refletir ou se encadear para que as coisas possam
assemelhar-se” (FOUCAULT, 1992:42).
Como figuras de entendimento, essas noções inscrevem de maneira clara as diversas
formas de semelhança, onde as representações se alicerçavam e conhecimento se produz.
Os sinais cravados no mundo, pela semelhança, constituem-se no próprio valor do signo,
justamente na indicação de uma similitude instauradora de valor. Os caracteres são ao
mesmo tempo desveladores e enigmáticos: há na linguagem, assim como no saber, o visível
e o escondido,
e por isso, se duvida, que, no saber do século XVI, a semelhança é o que há de
mais universal; ao mesmo tempo aquilo que há de mais visível, mas que deve
entretanto, buscar descobrir por ser o mais escondido; o que determina a forma
do conhecimento (pois só se conhece seguindo os caminhos da similute) e o que
lhe garante riqueza de conteúdo (pois, desde que soergamos os signos e olhemos
o que eles indicam, deixamos vir às claras e cintilar na sua própria luz a Própria
semelhança) (FOUCAULT, 1992: 221).
Significar as coisas era desvelar as semelhanças que marcavam o espaço, a ligação, o
vínculo e a coerência entre o homem e o mundo. A observação e o conhecimento se
norteavam pela busca do semelhante. Contos, registros e letras constituíam o conhecimento
associado aos mares e à identidade do povo português: o humanus, o vivido e o encontrado
se entrelaçavam na gênese da produção do conhecimento. O conhecimento produzido e
descoberto, no século XVI, foi fruto da interpretação realizada pelos homens de letras e
49
pelos homens do mar. Os momentos de esplendor e o sentimento pátrio aflorado na
organização e nos ensaios dos descobrimentos foram freqüentemente colocados em letras e
absorvidos nas experiências e práticas cotidianas do povo português. As novas paisagens e
as novas humanidades achadas demandaram a transmissão das vivências para além da
oralidade, não bastava mais somente narrar e contar aos pares, o que se estava vivendo ou
se viveu, tornou-se necessário registrar os achamentos, os acontecimentos e os sentimentos.
Os registros além de contar e de deixar marcado a história era uma maneira de elaboração
das situações vivenciadas sob o mar.
As próprias narrativas de viagens desenvolveram a escrita da subjetividade:
A narrativa de viagens, tal como é conceptualmente designada, corresponde a
um modelo narrativo e hermenêutico específico, no qual justamente mundo e
discurso se aliam pela primeira vez na História de modo a que o mundo se
afirme literariamente num plano simultâneo de imanência (por oposição à
alegoria medieval), de experiência (pelo que o desenvolvimento da descrição no
modo narrativo passa a condicionar-se pela descrição, ou observação direta), de
confrontação intersubjetiva entre o ‘eu’ e o ‘outro’, o ‘aqui’ e o ‘lá’ (SEIXO,
1990:173).
As experiências e a euforia das descobertas foram referendadas em narrativas
preenchidas de metáforas que apontavam para questões subjetivas e vitais: a preparação
metódica para as viagens e roteiros assim como as dificuldades e problemas de
comunicação com o outro, transpareciam.
Mediante aos projetos e as rotas marítimas foi preciso formalizar a oralidade na
escrita. O homem comum aventureiro do mar era acometido de uma linguagem oral e toda
sua prática era expressa pela oralidade: a necessidade de registrar as experiências e as
coisas vistas para elaborarem o que viam e disseminar o conhecimento para outros viajantes
e principalmente para o povo português, marcou a inevitável formalização da língua. Os
conhecimentos precisavam ser contados e principalmente registrados de maneira que
propiciassem entendimento e interlocução. A formalização da língua
38
, o pensar sobre as
letras portuguesas se tornou imprescindível através da prática, sendo uma demanda da
expansão marítima.
38
A questão da formalização da língua será trabalhada no
Capítulo: Da Notação.
50
A partir do novo modo de viver e da elaboração das experiências por meio das
semelhanças, o português gozou de um momento histórico constituído por uma fantástica
gama de temas e impressões que circularam nos falares e nas letras escritas. Ao mesmo
tempo em que o acesso a textos clássicos e suas releituras impulsionaram o desejo de
conhecer e recontar o mundo de maneira própria, os descobrimentos incentivaram a
circulação de textos, pois era necessário fazer correr ao povo português e ao Ocidente as
aventuras lusíadas. O sentido da penetração do português, como povo e língua, “era
orientado mais por um ideal espiritual e civilizador, do que por um ideal guerreiro, o que
explica naturalmente a actividade precoce das oficinas portuguesas e o destino de muitas de
suas impressões” (PINTO, 1948:97).
As experiências políticas e sociais foram fixadas, através dos achamentos, nas almas
e na organização do Império Lusitano: os avanços e a disseminação da linguagem tiveram
desdobramentos na identidade nacional e na história do povo. A partir das idéias
renascentistas e dos valores as elas vinculadas, os descobrimentos foram uma ação dos
portugueses que alargou os campos teórico, técnico e científico, constituindo um modo de
vida. A arte de navegar e de interpretar encontrava-se, em quinhentos, imbricada ao
movimento de impressão em Portugal: a arte da imprimissão, tal como era nomeada a
imprensa, esteve a serviço dos descobrimentos.
51
Da Imprimissão
A escrita é mais que um instrumento.
Mesmo emudecendo a palavra, ela não apenas
a guarda, ela realiza o pensamento que até
então permanece em estado de possibilidade.
Os mais simples traços desenhados pelo
homem em pedra ou papel não são apenas um
meio, eles também encerram e ressuscitam a
todo momento o pensamento humano. (...)
Desse modo, a escrita é não apenas um
procedimento destinado a fixar a palavra, um
meio de expressão permanente, mas também
dá acesso direto ao mundo das idéias,
reproduz bem a linguagem articulada, permite
ainda apreender o pensamento e fazê-lo
atravessar o espaço e o tempo. É o fato social
que está na própria base da civilização.
52
Charles Higounet
cultura portuguesa assim como toda a cultura européia anterior à
descoberta da impressa, no século XV, e a larga divulgação das letras escritas, estruturou-se
predominantemente pela cultura oral. Nesse sentido, a época medieval estava assentada sob
oralidade e a renascença sob letras. O homem medieval difundia a cultura através das
formas e instrumentos orais: a popularização da arte, dos costumes, das idéias e das
experiências acontecia através da pregação, da recitação, das encenações, dos jograis, dos
cantos, dos pronunciamentos e das narrações públicas, tornando comuns os projetos, os
pensamentos e as artes.
A comunicação oral das letras acontecia pelo intermédio do clero que tinha a função
de transmitir os ensinamentos: essa posição do clero como leitor, o
instituía de prestígio,
possibilitando a fixação dos preceitos morais uma vez que os escritos eram interpretados. A
dimensão religiosa e mágica dos livros era infiltrada nas camadas mais largas da população
sendo os escritos essenciais para o trabalho eclesiástico. No entanto, a hierarquia
eclesiástica, apesar de seu saber e sua especialização, foi deixando de ter exclusividade da
propagação do ensino e no acesso aos manuscritos.
No século XII, alastrou-se o acesso aos escritos, desenvolveu-se a fabricação de
pergaminho, a escrita encontrava-se a serviço da população escolar que por sua vez
auxiliava no trabalho das cópias. A partir desse século, se intensificou os serviços, as
funções administrativas e diplomáticas; e a organização de uma aristocracia exigente,
regada ao luxo e interessada na cultura artística, iniciou a empreitada de criar e desenvolver
uma difusão da cultura cada vez mais ampla e por isso, houve o incentivo e a criação de
serviços para o alargamento do trabalho de cópias. As universidades assumiram o papel de
“laicização do livro” e os estudantes começaram a participar de tal atividade, realizando
53
várias cópias de códices, de maneira que o clero e seus conventos perderam o monopólio da
produção de livros e escritos.
A dificuldade do acesso ao livro, dá origem a uma das feições mais
características da Idade Média: o prestígio do clero e a sua separação marcada do
resto da população. (...) Depois, sendo lento o processo de reprodução dos livros,
lenta e custosa era também a difusão de obras. Os livros que se copiavam, liam e
ensinavam eram número muito escasso e prestigiados por uma longa
antiguidade, ou então impostos pela autoridade da hierarquia eclesiástica. As
mesmas obras foram durante vários séculos lidas de um extremo ao outro da
Europa. Só o aparecimento das universidades modificou um pouco este estado
de cousas, estimulando a actividade intelectual de alguns professores e
divulgando o respectivo magistério através de grandes escolas de prestígio
internacional. Enfim, as condições próprias do livro manuscrito e o número
restrito de pessoas que a ela se dedicavam tornavam muito fácil o seu monopólio
pela classe sacerdotal e portanto o controle de todo o pensamento, que a Igreja
manteve sem dificuldade até a invenção da imprensa. Donde resulta a unidade de
pensamento que caracterizou a Idade Média (principalmente antes do século XII)
(SARAIVA, 1952:75).
À margem da Igreja, a oralidade era a principal fonte de cultura sendo um
instrumento de difícil controle e fácil acesso, ao contrário da escrita e das cópias que
possibilitam a fiscalização e o controle do que se escreve, a cultura oral podia ser
identificada por sua agilidade e maleabilidade: os conhecimentos e acontecimentos vão de
boca em boca e as transmissões devem se adaptar ao público
39
.
A arte manuscrita era mais restrita e custosa, devido ao alto preço para consumo,
pela dificuldade do acesso ao produto livresco e ao mesmo tempo, custosa pelo esforço e
árduo trabalho empreendido na confecção das obras. Dessa maneira, o produto manuscrito
estava confinado a ser de conhecimento e utilização dos nobres e ricos ou daqueles que
obtinham acesso à biblioteca monástica. Cabe à pequena parcela da sociedade o
conhecimento das letras escritas, das formas e caracteres moldados pela pena e pela arte, ao
restante da população sobejava afinar os ouvidos e ouvir o que se contava do que estava nos
livros, o que se podia reter dos livros era justamente o que se podia falar e ouvir sobre eles.
39
Nas sociedades marcadas pela oralidade, um dos instrumentos comuns era apresentação de jograis que
formavam as literaturas nacionais e locais.
54
Os manuscritos eram confeccionados durante anos e ao serem concluídos se
elevavam à categoria de obras de arte uma vez que o trabalho, os detalhes, a pena e os
cuidados lhe davam um caráter de preciosidade: o que se tinha nas mãos, não era um
simples escrito mas uma relíquia. O elemento precioso, tão acentuado, se fazia presente no
reconhecimento do trabalho persistente e vagaroso do escriba: os manuscritos eram
finalizados com ornamentos, mensagens, símbolos e assinatura do copista.
Trabalho individual do Copista
55
Vários Copistas trabalham no exercício das cópias.
Há quem dite o texto que deve ser transcrito.
As obras manuscritas, antes da invenção da imprensa e por conseguinte da invenção
e utilização do papel, era produzida com o pergaminho ou pele de carneiro e cabra. O
pergaminho era tratado e depois cortado e dividido em cadernos.
Diante do pergaminho cortado e dobrado o copista depois de riscar com um lápis
aquilo que hoje chamamos mancha (espaço destinado às letras) e as linhas,
tomando o raspador numa mão e a pena de ave em outra, traçava
minuciosamente os caracteres, deixando em claro as iniciais e o espaço para as
decorações (SARAIVA, 1952:76).
Para o trabalho das cópias, realizado em mosteiros e oficinas (sriptorium), havia
uma diversidade de funções e uma variedade de mãos que finalizavam as obras com traços,
ornamentos, molduras e cores. Diversos especialistas tocavam e mexiam nos livros, dando-
lhe uma imagem ímpar, de acabamento minuciosamente artesanal:
um fazia a cópia, outro as iniciais a cores, outro as iluminuras, outro a
pontuação, outro colocava as folhas; entretanto já alguém estava preparando o
couro para as capas, que outro se aprestava para lavrar com ferro quente. Sem
56
falar nos trabalhos que o copista encontra já feitos, como a preparação e
dobragem do pergaminho. / Recorria-se por vezes ao processo de ditar um
mesmo original para vários copistas; mas também se dava o caso de um único
artista efectuar toda a série de tarefas desde a preparação da pele de carneiro até
ao lavor das capas (SARAIVA, 1952:78).
Mediante aos moldes da fabricação dos livros, o custo dos mesmos era alto e as
obras e cópias não eram muitas, pois por vezes levavam-se anos para seu acabamento: a
circulação dos livros era restrita e vagarosa e as próprias bibliotecas não dispunham de
grande número de obras. No entanto, o trabalho com as cópias e o desenvolvimento de
técnicas continuava sem descanso e os manuscritos foram sendo escritos em português
40
,
latim vulgar, pois muitos não sabiam o latim clássico.
O fato de manuscritos serem redigidos por diversas mãos e por pessoas de distintas
posições sociais, facilitou a difusão dos escritos, da língua, a laicização da cultura e a
diversidade cultural presente na sociedade portuguesa do século XVI. A cada cópia, um
conjunto de técnicas foi sendo aprimorado e o conhecimento ganhou expressão avultante
após o conhecimento português sobre a invenção da imprensa.
As duas maiores obras da Renascença são o descobrimento de Novos Mundos e
a invenção da Imprensa. A primeira fizeram-na principalmente os Portugueses.
Da segunda, se lhes não cabe a invenção, cabe-lhes certamente a glória de terem
transformado um facto europeu num facto universal. E também a de terem posto
a Tipografia pela primeira vez no Mundo ao serviço da Civilização, utilizando-a
no ensino dos indígenas incultos e dos povos do Oriente. / Foi Portugal quem
revelou a Tipografia ao Continente Africano e Asiático, à Etiópia, à Índia, à
China e ao Japão. Foi também Portugal a primeira Nação do Mundo a fundir
caracteres exóticos nas línguas malabares, tipos japoneses e letras abissínias! / É
com os caracteres fundidos pelos missionários que Portugal ensina os povos do
Oriente a lerem na língua português, na língua latina, chave da cultura espiritual
do Ocidente, e nas suas próprias línguas! E ao livro didáctico dá-lhe, logo de
início, um esplendor e uma feição pedagógica jamais ultrapassados./ Faltavam
ainda séculos para o aparecimento da Tipografia nalgumas nações da Europa, e
já nós imprimíamos Virgílio, no Japão! E dávamos Cícero e Esopo, as primeiras
lições de Humanidades ao povo mais afastado do Mundo! (PINTO
41
,1948:11-2).
40
Escrevia-se manuscritos em português tempos antes da publicação da obra sobre as normas e características
da língua portuguesa. Antes dos Portugueses conhecerem as anotações de Fernão de Oliveira (1536), de João
de Barros (1540) e outros, já existia a comunicação e a utilização da língua nacional.
41
A obra de Américo Cortez Pinto,
Da Famosa Arte da Imprimissão: da imprensa em Portugal às
cruzadas d’além-mar
, publicada no ano de 1948, em Lisboa, pela Editora Ulisseia Limitada, caracteriza-se
por uma extensa e minuciosa investigação sobre a Arte da Imprimissão em Portugal. A obra é composta por
XII capítulos, subdivididos por partes, totalizando 507 páginas. Tive acesso a essa obra rara, da qual tirei o
máximo de proveito, graças à gentileza de Eliane Junqueira , responsável pela Biblioteca da Casa de Portugal
em São Paulo, SP. O exemplar que tive o prazer de ‘cheirar’ é de número 253 da tiragem de 1.500
exemplares.
57
A imprensa e a prensa, desenvolvida por Johann Gutenberg (1394-1468),
adentraram mundos e possibilitaram grandes mudanças nas culturas, nas ciências e nas
artes. Em Portugal, a Arte da Imprimissão, tal como era designada a imprensa, re-organizou
o conhecimento, sendo de importante auxílio ao movimento de descobertas de novos
mundos. Para além de novos mundos descobertos pela arte de navegar, novos mundos
descobertos nos livros, saídos de suas páginas e de seus traços.
Oficinas de impressão foram sendo espalhadas pela Europa e a imprensa
possibilitou a permanência do escrito, das experiências e das histórias. Através dos livros e
seus impressos, se garantia o conhecimento dos feitos e das façanhas. Aos poucos as trilhas
dos livros foram se ampliando e as temáticas foram sendo alargadas: com o movimento de
impressão, os livros não estavam mais restritos ao auxílio da fé e aos conhecimentos de
ordem transcendente, estando também a serviço dos conhecimentos das humanidades.
Dessa maneira, a abertura temática e a diversidade de interesses e escritos sinalizavam as
mudanças que estavam ocorrendo nas mentalidades e nas vidas dos homens quinhentistas
que passaram a se interessar além dos desígnios da fé, pela vida concreta.
No desabrochar da imprensa, através do contato com obras e circulação de idéias, os
homens de letras elaboraram as ciências e as letras humanas e fizeram re-nascer pensadores
e textos antigos - a história renasceu sobre nova ótica e o passado tornou-se presente. Ao
trazer a público os escritos e por conseguinte, trazer a cena à possibilidade de diálogo entre
teorias, conhecimentos e experiências, os homens de letras edificaram um novo modo de
comunicação. O retorno aos clássicos, a emergência de idéias instigantes e as possibilidades
de interpretações nasciam das páginas dos livros e as linhas marcavam um feixe de idéias,
caminhos, mitos e crenças: o tempo das palavras, suas disposições marcavam o “espaço
necessário para o leitor fazer-se e refazer-se, encontrar-se no que ali estava grafado,
impressso”.
Para o funcionamento das oficinas de imprimissão, além do conhecimento da Arte,
era preciso conhecer e ter acesso à matéria-prima. A base do fabrico dos livros assentava-se
na produção de papéis realizada artesanalmente, sobre os quais os tipos e os caracteres
deixavam suas impressões.
58
O molde em que se faziam as folhas de papel primitivo era constituído por um
tabuleiro com um fundo formado por uma rede quadrangular. Uma série de fios
de arame muito finos e encostados uns aos outros, era fixada de espaço por
outros arames de latão perpendiculares aos primeiros, que se iam inserir aos
lados do caixilho: - a frasqueta. Mergulhava-se este tabuleiro na tina, para colher
a massa do papel. Em seguida comprimia-se a massa com a tampa de encontro à
rede metálica – o tear. A água escorria por entre os fios de latão que ficavam
marcados na pasta, formando as vergaturas, cortadas de espaço a espaço pelos
arames perpendiculares: - os
pontusais
. Ao meio do tear colocava-se muitas
vezes um desenho feito de arame, que deixava na folha a
marca de água
ou
filigrama (filum, ganuum)
(PINTO, 1948:18-9).
Depois de prontos, os papéis eram acomodados na fôrma xilogravada
42
e
manuseados por gravadores. A imprimissão do livro respeitava uma organização ímpar, das
oficinas à obra, cada parte tinha sua função, cada técnica o seu detalhe: o rolo do prelo
comprimia lentamente a chapa sobre o papel e sobre ele surgia um desenho, tecendo as
palavras. O movimento de fuso da prensa era repetido por vezes até a impressão de várias
folhas que reunidas, eram dobradas formando os volumes que posteriormente eram
costurados e protegidos pela encadernação. Eis, o Livro!
Trabalho com a prensa em oficina de imprimissão.
59
O jeito do livro, sua ornamentação e presença ganhavam vida nas mãos do Mestre
Encadernador capaz de moldar os pormenores da obra: na moldura, constava o lugar para o
nome do autor, do proprietário e do livro.
Enfeita-lhe a cabeça e o pé da brochura com um requife de seda a debruar a gola
da lombada. A forrar o interior do
empaste
e a proteger as páginas exteriores,
colam-se as guardas de papel mais forte, onde policromamente ondeiam
coloridos riscos, caprichosamente manchados a tinta a óleo por arte e perícia do
pintor manual. / Cabe agora protegê-lo dignamente sob a custódia forte de
carneiras e marroquins. Peles de cor lisa ou nosqueadas de sombras, envolvem
todo o livro e circundam-lhe o dorso numa curva airosa, animando-se de espaço
a espaço com relevo os cordões. / O oiro e o fogo tomam agora lugar as artes de
doirador. E entre as nervuras encaixilham-se os rótulos a oiro nos espaços da
lombada, formando pequeninas molduras de filigrama. Suspensas de alto a
baixo, entre a cabeça e o pé, diríeis uma série de pequeninos quadros, onde se
pinta, como ressaibo de iluminura, um desenho delicado de pequenina flor:
alcachofra silvestre, ou rosinha de jardim, gracilmente entre duas folhas singelas.
(...) E o Livro por fim é como um cofre de joalharia saindo das mãos dum
ourives. Dir-se-ia na verdade um escrínio de oiro para guardar as jóias do
espírito! (PINTO, 1948:19-20).
Letras eram mescladas a caracteres, símbolos e desenhos e os pormenores do corpo
da obra demonstravam a beleza das impressões e os ornamentos gráficos saltavam aos
olhos: o livro saído dos prelos entrava na subjetividade do potencial leitor. A sensação e o
regojizo de folhear um livro impresso foi uma experiência nova que começou a fazer parte
da constituição do português quinhentista. De maneira poética, ao folhear as páginas de um
livro, o leitor encontrava-se com o tempo e despertava-se para idéias e letras capazes de
agitar a imaginação e mobilizar pensamentos.
Apesar de alguns acreditarem que a imprensa era uma Arte Diabólica, devido à
própria laicização da escrita e dos textos, muitos acreditavam ser a Arte da Imprimissão
uma Arte Divina. Houve uma aliança entre a Igreja e o Livro: o nascimento da imprensa
encontrou-se enlaçado ao incêndio de Constantinopla que destruiu e saqueou a cidade
Bizantina, reduto dos tesouros da literatura clássica. Manuscritos guardados
cuidadosamente foram destruídos e os antigos pergaminhos se foram sem piedade entre as
labaredas, somente alguns escritos foram recuperados. Nesse cenário, houve a
42
É, provavelmente, no período da xilografia que a arte da imprimissão inseriu-se em Portugal e a expansão
da imprensa não se iniciou por tipos, pois estes foram usados somente depois do 14º livro impresso, antes a
impressão era tabular –
aeneas formas
-, por fôrmas e não tipos.
60
conscientização da efemeridade dos manuscritos e do bem que a imprensa poderia fazer: a
Tipografia foi vista como forma de conservação dos textos e como meio de multiplicação e
distribuição de exemplares. Quase que como um milagre, a imprensa poderia levar as letras
e a história ao Mundo. Assim, se iniciava à proteção da nova invenção:
A introdução da imprensa em Portugal por intermédio de Religiosos tinha o seu
paralelo em vários outros Países. A aliança da Tipografia com a Igreja surge
logo de início, tendo a
divina arte encontrado nos eclesiásticos os grandes
Mecenas que promoveram a sua defesa e expansão. Podemos dizer que é a Igreja
quem nos primeiros tempos protege a Imprensa contra a suspeita popular de
diabolismo, lançada em vários países contra os Impressores (PINTO, 1948: 126-
7).
Por dádiva da impressa, as histórias, os contos, as epopéias e os conhecimentos
transmitidos pelos sons, de boca a boca, de geração para geração, puderam ser fixadas e as
letras puderam contar as tragédias e comédias da vida. As tradições orais foram fixadas e de
um traço a outro se foi da oralidade à letra, da sonoridade à imagem: o universo dos livros
retém a memória dos povos, é a manifestação gráfica da vivência e do pensamento, é o
santuário das idéias! A Arte da Imprimissão trouxe a chance de diminuir a quantidade de
escritos perdidos e desconhecidos, uma vez que várias cópias de escritos seriam feitas
simultaneamente, sendo distribuídas aos mais diversos lugares. No entanto, essas
facilidades proporcionadas pela impressão não garantiam o conhecimento de todas as obras,
sabemos que durante a história, por questões acidentais ou planejadas, muitos livros foram
perdidos ou destruídos sendo que alguns, nunca mais serão encontrados enquanto outros,
em situações muitas vezes inesperadas, vêm a conhecimento público.
Postos de lado os pergaminhos caros, inventado o papel e descoberta a
impressão, saiu o Livro do mundo das coisas raras para a intimidade da vida
comum, tomou o seu lugar na vida palaciana, e veio daí até o povo a colaborar
na vida quotidiana por mãos interessadas de leigos e curiosos./ Quase no
alvorescer da descoberta, veio até nós aquela invenção, que, no dizer dos
intelectuias maravilhados, mais parecia de origem divina do que obra humana.
E dir-se-ia em verdade que foi por desígnios e inspiração divina que a arte do
livro foi trazida tão cedo a este cantinho do Ocidente “
quase cume de cabeça da
Europa toda”, na frase camoniana, ao tempo em que uma raça de Nautas
embarcava nas caravelas para iniciar metodicamente o descobrimento geral do
Mundo. Chegava a hora própria para levar a civilização cristã nas páginas dos
primeiros livros aos povos do Oriente, ensinando-lhes a ler a nossa língua e
aprender a nossa fé, firmando sobre as ruínas da hegemonia árabe o triunfo
europeu da nova era. A história do Livro é a história da alma, da vida, dos
costumes e do pensamento humano (PINTO, 1948:30-1).
61
As experiências trazidas pela imprensa à Europa e a Portugal foram sendo
gradualmente recebidas e a sociedade portuguesa foi, aos poucos, incorporando e
elaborando suas expressões. O acesso às letras, propiciado pela nova arte, se iniciou
lentamente, demonstrando a acessibilidade ao conhecimento e à inserção no mundo da
palavra grafada. Gradativamente, os livros foram tendo lugar no modus vivendi do povo
português e abriu-se a chance das gentes mais distintas da sociedade ter contato com as
letras, privilégio até então exclusivo de nobres e letrados. Por volta de 1512, quase ninguém
sabia ler e a larga impressão e difusão de escritos abriu novos horizontes de entendimento:
a escrita passou a ser compreendida como manifestação e expressão e o ensino da língua
tornou-se essencial para que as letras e as idéias fossem entendidas. Os livros na
Renascença foram objeto de interesse e ferramenta da atividade intelectual e sua
legibilidade encantavam os ávidos por saber.
A invenção da imprensa, ou, para ser mais exato, da impressão com tipos móveis
de metal inicialmente gravados, depois fundidos, foi uma data capital na história
da escrita, pois ela fez nascer a grafia mecânica que permitiu a reprodução quase
ilimitada das letras sempre idênticas a si mesmas e fixou esses caracteres me
categorias de base que não mudaram até então. / As primeiras tentativas de
impressão tipográfica no Ocidente datam cerca de 1440, talvez na Holanda,
depois em Estrasburgo, e a invenção foi levada a cabo por João de Gutenberg,
por volta de 1450, em Mainz. É tocante constatar que essa nova técnica nasceu e
desenvolveu em um meio de ourives e de moedeiros. Operários de Mainz
levaram o procedimento para outras cidades do Império e da Itália (PINTO,
1948:159-160).
43
A valorização da escrita fez correr a notícia do fabrico de livros e as artimanhas da
imprensa: as cidades do Império e a Itália foram tomadas pela curiosidade e espanto frente
à nova arte e “a imprensa, introduzida em Roma na 2ª metade do século XV, abre,
43
A imprensa na Península, no Mosteiro de Subiaco, foi introduzida em 1465 por Higounet Conrad de
Sweynheim e Arnhold Pannartz; em Roma foi iniciada em 1467, com Ulrich Han; em Veneza, Nicolas
Jenson, o gravador campanense que trabalhara em Mainz, trabalhou na impressão a partir de 1470; e no
62
naturalmente, uma época nova. Começa, pois a fazer-se sentir o desejo de reproduzir textos
que falassem uma linguagem acessível a um público infinitamente mais vasto” (BUESCU,
1975:14).
Em Portugal, a tipografia e a nova arte se iniciaram em Leiria
44
por volta de 1465.
Segundo referência de Cortez Pinto (1948), José Anastácio de Figueiredo, ao publicar o
documento manuelino da concessão de honras e privilégios de Cavaleiros aos impressores,
em 1508, escreve:
Carta do Senhor Rei D. Manoel de 20 de fevereiro de 1508 porque se pretende o
promover e argumentar a Arte Typographica neste reino e seus domínios cujo
uso já nele tinha principiado e se acha muito antes em Leiria e Lisboa, ainda que
não me conste de livro impresso antes de 1489, concedendo aos Impressores o
grande privilégio e com a cláusula que nella se declara.
O documento manuelino
45
sinaliza a iniciação da tipografia
46
em Leiria e Lisboa e
os fortes indícios sobre a primeira infância da imprensa em Leiria se consolida pela
confirmação de que à terra de Leiria pertencia à fábrica de papel – Leiria era o único local
onde se fabricava o papel -, o que leva a crer que pela facilidade do acesso à matéria–prima,
a arte da imprimissão foi pioneiramente inserida em terras leirienses.
A introdução do papel é coincidente com o momento de esplendor literário
vivenciado pela Corte Dinástica. Já no tempo de D. Afonso III, o papel foi utilizado num
caderno de Inquirições em Portugal mas, é com D. Dinis que sua utilização se tornou mais
mesmo ano, em Paris, Michel Friburger, Martin Crantz e Ulrich Gering, chamados por Guillaume Fichet e
Jean Heynlin, gravaram e tiraram das prensas da Sorbonne, o primeiro livro francês.
44
A precedência da tipográfica de Leiria foi defendida por Pedro Nunes (1502-1577), autor de várias obras,
comógrafo-mor do Reino, professor universitário em Portugal e na Espanha, humanista, médico, filósofo e
matemático.
45
A introdução da imprensa em Portugal pode ser narrada por vários vieses e respaldada através de alguns
documentos. Em se tratando de uma narrativa histórica pautada em fontes é importante considerar que há
interpretações de documentos, sendo necessário escolher o interlocutor. Dessa maneira, não há apenas um
modo, um referencial que se possa tomar como base para legitimar os fatos e acontecimentos. No decorrer da
pesquisa, várias leituras foram feitas e recortes foram escolhidos na tentativa de re-constituir o vivido,
tornando presente o passado, no ato mesmo de dar vida à história.
46
A história da Tipografia é composta por fases distintas, marcando inovações e inventos que por muitas
vezes, se usavam simultaneamente em oficinas os diversos processos, não sendo um substituto ao outro. As
principais fases podem ser descritas como: 1. Invenção dos tipos de madeira; 2. Estampagem tabular, manual,
xilográfica e anapistográfica; 3. Impressão tabular xilogáfica bipaginal por meio do prelo 4. Invenção da
calcografia; 5. Substituição da xilografia pela plumbografia; 6. Invenção da matriz tabular metálica fundida
em fôrma negativa de areia obtida por recalque sobre a tábua de chumbo gravada com punções e; 7. O fabrico
das primeiras matrizes individuais e fundição dos tipos metálicos. Maiores detalhes podem ser verificados na
página 462 da obra de Américo Cortez Pinto.
63
freqüente. A distinção entre as propriedades e os usos do pergaminho e do papel foi de
grande importância, comparecendo inclusive em leis de utilização para tais matérias-
primas: D. Dinis institui quais tipos de documentos devem ser redigidos sobre o papel e
quais devem ser escritos em pergaminho e as ordenações de 1343 regulamentam penas a
escrivãs que não tomassem os devidos cuidados e descumprissem as prescrições legais.
Antes da difusão da indústria do papel, os papéis foram diversas vezes importados:
o Ocidente, antes do século XI, importou papel de Bagda e da Samarkanda e “esse papel
seria utilizado sobretudo pela actividade dos tradutores Judeus os centros florentíssimos da
cultura árabe na Península, particularmente de Toledo” (PINTO, 1948:148-9).
A partir do século XIV, a indústria de papel começou a se espalhar pela Catalunha e
Aragão, rumando à França, onde foi introduzida por volta de 1348. A nova matéria-prima,
o novo papel, trouxe a possibilidade da facilidade de manuseio e de trabalho e aos poucos
começou a conquistar a confiança dos letrados. No entanto, o uso do papel não substituiu o
pergaminho, por muito tempo eles foram utilizados lado a lado, pois apesar do triunfo que a
Tipografia deu ao papel, o pergaminho continuava a ter um valor incontestável: mesmo
com o preço do papel mais baixo e acessível, desde Gutenberg, havia receio e desconfiança
quanto à sua durabilidade e certa afirmação de sua fragilidade. Essa idéia de transitoriedade
e fugacidade do papel persistiu até os fins do século XV. Com a utilização do papel, os
cuidados foram redobrados e
El-Rei D. Manuel ainda manda imprimir em pergaminho um exemplar de cada
livro das Ordenações, certamente por não confiar na durabilidade do papel. E
como só tomou aquela resolução depois de impressos os dois primeiros volumes,
mandou-os novamente compor depois de terminada a edição, para os poder
guardar tranqüilamente em se arquivo./ Em vista destes receios, que só o futuro
poderia esclarecer, compreende-se bem que só mais tarde o fabrico do papel se
espalhasse entre as demais nações da Europa e se movessem entre nós os
primeiros Moinhos de Papel (PINTO, 1948:152-3).
Em Portugal, a indústria de papel foi introduzida através da licença, em prol e onra
dos regnos e da vila de Leirea, concedida por D. João I em 29 de abril de 1411, mantendo-
se a única no Reino, durante o séc. XV e parte do séc. XVI. A técnica despendida à
fabricação do papel se manteve sem grandes alterações durante séculos.
64
Como o tecido do papel, onde a mão rude do amoroso embevecidamente desliza
no decorrer da escrita, lhe evocaria sensualmente, ao sabor da inspiração e do
contacto leve, as camisas, e os linhos, e a branca pele das bem-amadas! / (...)
mal sonharia que talvez de verde pyno se fariam em Portugal, alguns séculos de
pois pela primeira vez no mundo, os primeiros papeis de pasta lenhosa .../ Como
era diferente do pergaminho!/ Agora sim! Que delicioso e fácil o deslizar da
pena sobre o papel, que se afeiçoa, todo acolhedor, a receber a graça do espírito,
sem a frieza esquiva do pergaminho oleoso, onde só a insistência perseverante
do cálamo logra fixar a tinta fugidia.../ Sim. O pergaminho era mais um serviçal
dominado do que um bom amigo ... Mas o papel, esse era verdadeiramente um
aliado da alma!...(PINTO, 1948:144-5).
A introdução da invenção e fabricação do papel e o desenvolvimento da arte das
cópias tiveram grande importância na vida portuguesa. O contato com a produção das letras
e da arte gráfica se deu, em Portugal, antes da introdução das prensas de Gutenberg e
talvez, justamente por esse contato prematuro, os portugueses tenham acolhido tão bem a
nova arte.
Os impressores alemães travaram contato com os portugueses e suas relações foram
de colaboração e interesse. Em 1494
47
, aconteceu a imprimissão, em Braga, do ‘Breviarium
Bracarense’, realizada pelo Alemão João Gherlinc: “se o latim era a lingua nacional
erudita, o primeiro livro impresso em latim era particularmente um livro português, porque
imprimia para um rito privativo da Igreja Portuguesa: ‘more Bracharensis ecce
celebrandu...’; um ano depois, em 1495, por ordem da Rainha D. Leonor, Valentim
Fernandes da Moravia
48
, e Nicolau de Saxônia imprimiram a 1ª edição da Vita Christi
"admirável monumento das artes gráficas, impressa em lingoagem portugues, e que
introduz pela primeira vez nos prelos lusitanos a novidade das estampas em gravura. Além
das estampas religiosas, provavelmente importadas da Alemanha, imprimiu a gravura tão
nacional do pelicano, emblema eterno da realeza”e; em 1496, o mesmo Valentim
Fernandes, publicou a Estoria do mui nobre Vespasiano Emperador de Roma, “o primeiro
livro em gênero de romance que sai dos prelos portugueses rescendendo àquele espírito da
cavalaria do ciclo de S. Graal, tão propício a conservar a atmosfera de abnegado
patriotismo e heroicidade cristã que convinha manter vivo e quente, num povo que se
47
As referências que se seguem sobre datas e escritos podem ser lidas nas páginas 170 a 172 da obra de
Américo Cortez Pinto.
48
Valentim Fernandes era um reconhecido proto-tipógrafo que ficou encantado com as coisas portuguesas e
foi tradutor do latim para a língua portuguesa.
65
preparava para o sacrifício heróico e místico das descobertas. Colabora no interesse de
Portugal pelas nações do Oriente vertendo do latim breves notícias acerca das províncias do
titulo de elRei D. Manuel, isto é, da Etiópia, Arábia e Índia”.
Com tais publicações, o cenário cultural e espiritual do homem português foi sendo
preenchido por obras de traços nacionalistas, contribuindo para as atividades intelectuais e
aventureiras do século seguinte. O ambiente nacionalista e o apego às coisas portuguesas se
mostraram pelas letras: num momento em que o latim era a língua por excelência, a língua
do povo português apareceu e compareceu não mais somente na oralidade mas também nos
textos. Essa inserção do português demonstra que a língua do povo, o latim vulgar, o
português, saiu das bocas populares para entrar nas linhas letradas.
Acontecimentos foram tecendo a construção da identidade portuguesa: por volta de
1496-7, houve um Decreto proibindo as imprimissões em caracteres hebraicos, iniciadas
com as tipografias hebraicas em Faro no ano de 1487, pois
metida em Portugal como um quisto perfeitamente isolado da tessitura
intelectual portuguesa, divorciada em absoluto não só de todas as actividades da
alma nacional, como de toda a vida intelectual e de todos os progressos
científicos da Renascença Européia, fica-se, retrógrada e fanática, cega e surda a
toda a eflorescência dum mundo novo em gestação, a ruminar o passado,
escrevendo em caracteres rabínicos ou hebraicos, indecifráveis a profanos
editando Textos Talmúdicos, Pentateucos, Provérbios, Orações, tenebrosos
‘Segredos de Penitencia’, Livros dos Receios ... É um gheto dentro do gheto!
(PINTO, 1948:175-6).
O que estava em questão era a não participação dos hebreus na cultura portuguesa
pois, eles, não compartilhavam coisas e conhecimentos com o português: estavam alienados
da vida, trabalhando enclausurados em suas oficinas, produzindo textos e letras
indecifráveis também a muitos judeus
49
.
Além de outras obras manuscritas, em Leiria foi publicado, em latim e castelhano,
no ano de 1496, o ‘Almanach Perpetuu’, extraído da obra Há-jibhur hagadol. A seleção, o
resumo e a tradução do ‘Almanach Perpetuu’ foi realizada por José Visinho, médico e
colaborador de D. João II, nos trabalhos científicos dirigidos aos Descobrimentos. De
acordo com Cortez Pinto (1948), “com a impressão desta obra, pode Leiria orgulhar-se de
49
Os Judeus tiveram, em Portugal, oficinas de impressão tabular, “só muito mais tarde usaram tipos, nos
finais do Século XVI, princípios do Século XVII, quando as Tipografias Cristãs os usavam desde o 3º quartel
do Século XV” (PINTO, 1948:178).
66
ter fabricado o papel e produzido a impresssão do livro que mais cientificamente colaborou
na epopéia dos Descobrimentos”.
Mais do que a obra ‘Almanach Perpetuu’ propriamente dita, a importância se deve
ao que os portugueses fizeram da obra: o livro marcado por profecias, uma espécie de guia
espiritual, escrita quarenta anos antes da primeira gramática da língua portuguesa, foi
transformado pelos portugueses em um livro para a cultura náutica, “o ‘Almanach
Perpetuu’ deixara assim de ser um livro astrológico para se transformar num almanaque
astronômico” (PINTO, 1948:187). A nova utilização do escrito demarcou o lugar que os
textos passaram a ocupar: além de compartilharem com a cultura portuguesa, passaram a
ser úteis ao movimento dos Descobrimentos, à ação empreendida pelos portugueses para a
propagação do reino e dos costumes.
Os efeitos das escritas, das traduções e o nascimento da imprensa e sua importância
para as descobertas e para a cultura portuguesa puderam ser também referendadas na Carta
de Nuremberg,
En 1460 quelques négociants de cette ville informaient lê gouvernent royale de
Porugal de la découverte et utilité de l’imprimierie, faile par Gutemberg et Faust
à Mayence. Un cardinal ou lê prieur dun grand couvent de Coïmbra, fit venir em
1465 les prémiers typographes de Nuremberg em Portugal, ou ils imprimèrent de
1465 a 1463 dans couvent, les auteurs grecs et latins, et pulsieurs livres
écclésiastiques, par exemple Tomas de Aquino, etc. / D’après une vieille
chronique, ces premiers imprimeurs venant em Portugal, étaient Emanuel
semons (Simon) de Nuremberg, et Christophe Soll, de Altdorf, um bourg pres de
Nuremberg... (BUCKMANN, 1881, Apud, PINTO, 1948: 80).
50
Portugal e Nuremberg fizeram trocam de mercadorias, executando o comércio e na
época dos descobrimentos estavam efetivadas as relações da corte com os nurembergueses.
Os representantes do comércio, os negociantes vindos de Nuremberg visitavam D. João
II
51
, levando as novidades ao reino e D. João II ávido pelo intercâmbio de notícias e por
novidades, pagava pelas informações que obtinha como uma maneira de garantir que as
50
Essas informações foram publicadas pelo Boletim da Sociedade de Geografia.
67
notícias não cessariam: “essa gente de Avis não se importava de empobrecer para levar
além o seu sonho e a glória da Nação” (PINTO, 1948:84).
Em 1484, Martin Behain, nuremberguês, chegou em Portugal onde encontrou
patrícios e comerciantes alemães e recomendou a D. João II a carta de Jerônimo Munzer, de
Nuremberg, cosmógrafo, “sobre o descobrimento do mar oceano e a província do Gran
Cam de Catay, tyrada do latim em lingoagem por mestre Álvaro da Torre” (PINTO,
1948:82) e publicada juntamente com o Tractado da Esfera do Regimento de Évora.
D. Afonso V, pertencia a uma família de letrados, estudioso dos problemas
astronômicos, nutria profundo encanto pelos livros e pelas artes, conduziu a política
peninsular, organizando o plano destinado à hegemonia de Portugal. Seu interesse pela
nação compareceu no interesse de fazer memória da nação e de sua história
52
. O seu
interesse pelos livros e pela boa divulgação dos mesmos, fez com que ele fundasse uma
livraria nos Paços da Alcáçova, “ellle foy o primeiyro Rey destes Reynos que ajuntou boõs
livros e fez livraria em seus Paços” (PINA, Apud, PINTO:1948:87)
53
.
A livraria
54
foi aberta ao público, integrando assim os livros e a cultura à vida da
nação portuguesa. A prática de abrir e difundir os livros através de bibliotecas era uma
prática desconhecida em outras cortes
55
.
51
D. João II dirigiu as empresas coloniais desde 1471, data da carta régia entregue por seu pai, herdou de seu
tio D. Henrique o sonho dos descobrimentos.
52
Segundo referência de Damião de Gois, D. Afonso V mandou chamar Frei Justo Baldino, da Itália, para
traduzir em língua latina as crônicas dos reis portugueses. Também por seu mando, Mateus Pisano escreveu,
em latim, o
Livro da Guerra de Ceuta
.
53
In: Chronica so Senhor Rey Dom Affonso V.
54
Grande parte da Livraria Real foi constituída por livros de fôrma.
55
Na França, a primeira biblioteca pública foi aberta, dois séculos depois, em 1643.
68
D.Afonso V, introdutor da imprensa em Portugal.
D. Afonso V popularizou as letras e as ciências: obras foram traduzidas e
encomendadas. Além de proporcionar acesso aos homens interessados pelo saber, el-rei
desejava difundir a cultura e para tanto se fazia necessário que os livros fossem até os
homens, não estando assim disponível somente àqueles que fossem a Alçávora. Dessa
maneira, iniciou-se a circulação de escritos e o intercâmbio cultural. Para efetivar sua idéia
e desejo, Afonso V, utilizou estratégias para garantir a circulação dos livros e de obras,
inclusive estrangeiras, decretando a isenção do pagamento dos direitos de sisa, aos livreiros
franceses Guilherme e Francisco de Montrete. Eis a Carta de Privilégio, na íntegra,
transmitida por Afonso V, em 19 de janeiro de 1479:
Dom Afoonso &. A quamtos esta carta virem fazemos saber que
comssirando nos ao bem comum que he em nossos regnos auer
muytos liuros e por darmos aazo de os trazerem a elle de fora da
terra, e querendo nos fazer graça e mercê a Guilherme de
Montrete e a Francisquo de Montrete seu irmaão vezinhos, e a
69
Guydo framces, estamtes em a nossa cidade de Lisboa, teemos
por bem e queremos e nos praz que de todolos liuros de forma
que elles em a dita nossa teuerem e trouuerem ou mandarem
trazer de fora da terra a estes ditos nosos regnos nom paguem
delles nenhu~ua sissa de sy e das partes a que os venderem
nem sejam obrigados a escpreuer no lugar onde chegarem. E
esto nos praz assy por três annos, s. ho. Anno seguinte iiijlxxxij,
iiijlxxxiij, iiijlxxxiiij, nom sedo já nossas redás, a que a dita a
sissa pertencente, arrendadas pêra os ditos três annos ou cada
huu delles ao tempo da prouicaçom desta nossa carta, porque
se o forem, pagallaham. E porem madamos ao nosso comtador
moor de Lisboa e a quaaes quer outros nosos comtadores
offeciaaes e pesoas a quem esta nossa carta foor mostrada e o
conhecimento della pertecer, que um durando os
ditos três
annos lhe deixem vender os ditos livros liuvremente em nossos
regnos sem delles pagarem nenhuua sissa nem lhe ser feito por
ello outro cõstrangimeto alguu, o que huus e outros asy
compriram sem outra duuida nem embargo que huus e outros a
ello porque assy he nossa mercee. E o dito comtador moor de
Lisbooa e assy os outros comarquas do nosso regno farom
registrar esta nossa carta em livros dos nossos comtos e
mandalaam pruuicar em cada hum lugar depois ao diante os
rendeiros que lançarem em nossas remdas nom poderem alegar
inorancia. Dada em a nossa vila d’Almeirim XIX dias do mês de
Janeiro – loham d’Afomseca a fez – de mil iiijxxxj (Apud,
CORTEZ PINTO, 1948:89).
Essa lei de incentivo aos livros e os privilégios concedidos foram renovados pelos
sucessores de D. Afonso V, até o final da Dinastia. O “Privilégio”, ao incentivar a
circulação de livros, difundiu e produziu conhecimentos: as ciências e as técnicas foram
sendo pensadas e efetivadas através das relações estabelecidas entre as diversas questões,
temáticas, considerações e interpretações emergentes dos escritos e das leituras. O vai e
vem de livros moveu o conhecimento, de tal maneira que um círculo intelectual se formou e
quanto mais se podia saber sobre um tema, mais se produzia sobre ele. A concessão
70
demarcou o valor dependido às letras assim como a liberdade de circulação de obras,
propiciando posteriormente a inserção da imprensa entre os portugueses.
A notícia da invenção da imprensa e da nova arte da imprimissão chegou ao reino e
Afonso V se encantou com a possibilidade de ter em Portugal um trabalho capaz de re-
produzir textos e assim, desejou inserir a imprensa. A introdução da imprensa em Portugal
foi precoce e a arte da imprimissão ganhou valor cultural.
O contato entre portugueses e alemães já estava presente: eram numerosas as
colônias de ricos mercadores alemães que tinham sua estadia em terras portuguesas e os
contatos entre os diversos povos se consolidavam por trocas de mercadorias. As
descobertas instigavam o comércio e o intercâmbio cultural e econômico.
Desde os primórdios das descobertas, o tráfico de africanos, por exemplo, iniciou-
se, a troca de mercadorias era ativa e o que importava era seduzir e agradar os gentios para
conseguir serviços de informações e utilizá-los para contato com Oriente. A relação entre
os povos e a conquista dos mesmos era essencial para entrar em terras do Oriente e assim,
executar os planos do Infante D. Henrique que tinha como objetivo a expansão e como
estratégia política, o controle e a conquista. Para alcançar tais objetivos, se fazia necessário
um cenário harmônico, à medida do possível, sem guerras e armas e logo, estabelecer
alianças era a estratégia mais eficiente. Um dos instrumentos utilizados para tal empreitada
foi à difusão de preceitos cristãos, o que impulsionou a expansão e a utilização do livro.
Levar a fé e ensinar os preceitos aos povos consistia em defender a Europa, a civilização e
o cristianismo.
A política de assimilação dos povos e pelos povos contou com o importante papel
da imprensa que pela produção e divulgação dos livros possibilitou o ensino dos
‘ignorantes’. A instrução dada aos gentios era transmitida por eles mesmos, uma vez que
indígenas instruídos regressavam a terra para civilizar os negros, facilitando a influência
portuguesa. Eis a grande conquista portuguesa: instruir e fazer ler! Seria ingênuo pensar
que as questões são tão somente de ordem cultural ou intelectual, há também alterações
importantes na economia e portanto na vida da sociedade em geral. A forma que os
portugueses tinham para se infiltrar estava alicerçada no comércio e a empresa dos
descobrimentos (continuada por D.João II) pressupunha o comércio e seus proveitos assim
como, o ensino e a instrução pressupunham o conhecimento das letras.
71
Por volta de 1460, se encontrava em descrédito os estudos gerais da Capital e se
iniciou um momento crítico para vida universitária portuguesa, apesar da acentuada vida
intelectual da Dinastia e da reforma proposta pelo Infante D. Henrique para reerguê-la. As
universidades e os estudos gerais, encontravam-se em declínio mas o Colégio de Santa
Cruz mantinha fortemente os estudos portugueses, fazendo emergir uma competição entre
colégios e universidades, “animando a história da cultura nos grandes centros intelectuais
da Europa” (PINTO, 1948:105).
56
Foi justamente no século XV, nesse período de declínio dos estudos gerais, que a
imprensa foi introduzida em Portugal e os Cônegos aprenderam a compor com Germão
Galharde
57
, no século XVI. Os tipos móveis foram inseridos em Portugal algum tempo
depois da imprensa e na proto-imprensa a operação de estampagem exigia a especialização
“no trabalho da xilogravura ou metalogravura tabular, isto é, a gravação em madeira
(geralmente buxo ou sorveira), ou em chumbo, das fôrmas completas de cada página”
(VITERBO, Apud, PINTO, 1948:126).
A inserção da imprensa e do trabalho da imprimissão contou, não apenas em
Portugal, com a participação e o empenho de religiosos: na França, a Imprensa foi inserida
pelo Padre Guillaut Fichet, então Reitor da Sorbone; na Itália, foi introduzida pelos
Beneditinos de Subio e um dos primeiros tipógrafos da imprensa manoelina foi o Padre
italiano, João Pedro Buonhomini, de Cremona.
É bem sabido que a influência do clero não se limitava exclusivamente à
produção de bulas, indulgências e livros litúrgicos, pois temos em Espanha como
no estrangeiro, mosteiros que estabeleceram imprensas dentro dos seus recintos,
e sabemos de bastantes indivíduos do clero secular que foram eles mesmos
impressores; porém conhecemos sobretudo membros do alto clero, abades,
bispos e arcebispos que, como autores, custearam eles mesmos a impressão das
suas obras ou tornaram a seu cargo fazer imprimir outras (HEBER, Apud,
PINTO, 1948:127).
O trabalho e a influência das ordens religiosas nas artes da imprimissão não se
limitavam aos prelos, os próprios instrumentos necessários para o bom desempenho da arte,
sofriam interferências. Para a boa produção e desdobramento de exemplares era necessário
56
E em regimento de 1547, se instituiu o ensino de línguas, filosofia, literatura e humanidades.
57
Como já foi citado no Prefácio dessa dissertação, Germão Galharde foi responsável pela impressão da
Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, tema abordado no terceiro capítulo.
72
à utilização de uma tinta de óleo que por muito tempo foi fabricada, tendo sua forma de
produção sob sigilo, pelos Monges de um convento de Nuremberg.
O estabelecimento da Tipografia em Portugal está associado à terra de onde
emergiram os primeiros impressores, permitindo o desenvolvimento das artes gráficas.
J’ ai donc l´honneur de remettre à la direction de votre Société scientifique les
notions suivantes que j’ ai été heureux de pouvoir recueillir dans nos bureaux
statistiques et dans les riches bibliothèques et archives de Nuremberg, ville de
prémière ordre et d’importance par sés relation de cinq siécles avec le Portugal
(BUCKMANN. Apud, PINTO, 1948:132).
A imprensa introduzida em Portugal no ano de 1465 por ação dos Crúzios (tal como
sinaliza a Crônica de Nuremberg) indica a precedência destes prelos sobre todos os da
Península. Portugal representou um papel importante na difusão da arte da imprimissão
pelo Mundo: “foi o grande pioneiro que fez irradiar a Tipografia e o Livro impresso pelos
outros continentes”
58
. Como já firmado, existiram em Portugal impressores alemães e
Nuremberg teve papel importante no trabalho da xilogravura pré-tipográfica assim como
em outras áreas do saber. Tal como Portugal e Nuremberg, a ciência e o comércio
encontravam-se intimamente ligados: na cidade de Nuremberg havia a indústria de
instrumentos de astronomia e entre os portugueses, a ciência náutica estava em plena
ebulição logo, manter relações com Nuremberg era também se atualizar na arte náutica.
Através dos instrumentos e dos estudos teóricos, transportados para a vida, a cosmografia
iniciou um novo momento, deslocando-se da ação especulativa para a observação ativa e
verificável.
O momento e o movimento da imprimissão em Portugal reverenciam a clarividência
do espírito português: ciência, conhecimento, letras e experiência interligavam-se na
constituição da sociedade lusitana moldando o modo de ser do povo português. A
identidade nacional perfazia-se nos elos entre experiência, letras e ensino: a vocação do
povo português e seu desejo de expansão tornavam presente o desejo do português, de
perpetuar a memória e os feitos da nação.
58
Para se ter idéia da precedência de Portugal, basta lembrar que o primeiro livro impresso na Rússia é datado
de 1563; a primeira tipografia em Constantinopla se deu em 1727; e a impressão na Grécia aconteceu em
1821.
73
Na época dos descobrimentos, os conhecimentos estavam associados às
experiências e também às letras, capazes de clarear teorias e conceitos no auxílio à ação. A
experiência, arte por excelência, estava relacionada às letras: em 1431, o Infante D.
Henrique, protetor da Universidade, incluiu à Escola dos Navegadores cursos de
Aritmética, Geometria e Astronomia
Toda a epopéia dos descobrimentos é fruto duma maravilhosa organização
cientifica experimental, montada pela celebração assombrosamente intelectual e
activa do Infante e seguida pelos seus continuadores. Às navegações de
aventura, individuais e sem plano, que até aí constituíam a história universal das
navegações, opõe-se pela primeira vez no mundo um plano cultural e um método
exacto./ Remodela-se a Ciência Antiga. O Infante Navegador toma em suas
mãos o leme das Naus e põe-as a seguir uma rota pré-estabelecida através da
ciência, sulcando os mares fora, em direção aos mundos ignorados. / Sob a
orientação e a dos príncipes que se lhe seguem, as concepções teóricas vão sendo
sujeitas à experiência e aperfeiçoamento, em expedições preliminares de pura
investigação cientifica (PINTO, 1948: 201).
Para o aproveitamento das experiências e das descobertas fazia-se necessário o
acesso às letras e portanto, o conhecimento da literatura escrita e da língua a ser lida e
interpretada. A grande inovação do homem português no século XVI assentou-se na
transposição que fez, através das descobertas e da impressa, das concepções teóricas ao
mundo da experiência. Essa transposição foi mais avultante do que se pode supor uma vez
que o homem de saber, o letrado, passou a se relacionar com o homem comum, não letrado:
o representante da ciência devia necessariamente manter contato com o homem da
experiência. Assim, em quinhentos já se percebeu a importância de cruzar conhecimentos e
fazer alianças para a construção da nação e a eficiência da ação.
Nesse contexto, ciência e experiência auxiliavam-se, corrigiam-se e completavam-se
e os grandes cientistas envolviam-se com os grandes aventureiros. Os aperfeiçoamentos
científicos e os descobrimentos contribuíram para a produção e circulação de livros
manuscritos e impressos entre o povo português assim como o intercâmbio com outros
povos. Muitos livros e escritos, nas freqüentes navegações e no achamento de novas terras,
circulavam e encontravam lugar nas missões, nas distrações e no ânimo do espírito.
Para que os livros cumprissem seu papel de estar, além do entretenimento, a serviço
das descobertas e portanto, da nação, fazia-se necessário que a produção fosse mais ágil e
que a língua que eles portavam estivessem acessível ao leitor. Assim como era preciso
74
navegar era preciso saber das letras. Dessa maneira, as impressões portuguesas destinavam-
se ao público nacional e “circunscritas a Portugal as tiragens cristãs, e impressas em língua
portuguesa, natural era que a Corte absorvesse a quase totalidade dos seus poucos
exemplares” (PINTO, 1948:215).
Também os livros, no dealbar de seu
fiat lux
, ao ensaiar os primeiros passos de
irradiação espiritual ecumênica, pagam com a vida o seu sacrifício de amor à
criação de novas almas. E por lá se consomem, uns na profundidade dos mares,
outros no serviço do espírito./ A caminho do Sol do Oriente, a bordo das naus,
marchava agora uma nova Luz. Chegam os Descobridores como uns magos do
Ocidente; e os Livros, em suas mãos, são como novas Estrelas (PINTO,
1948:298).
As “novas estrelas”, as descobertas e o início e desenvolvimento das impressões em
Portugal marcaram um diferencial cultural, pois Portugal preconizou o público nacional
59
.
A preocupação com a acessibilidade dos livros e seus conhecimentos teve influência direta
na articulação e nomeação da língua nacional. Para que os livros fossem utilizados em prol
das descobertas e dos interesses nacionais, fazia-se pertinente que a linguagem saísse da
exclusividade dos gabinetes, atingindo um público mais vasto. Os livros para alcançar o
público nacional deveriam estar formados pelos caracteres nacionais e portanto, através dos
livros a língua vulgar ocupou lugar de destaque.
Não obstante, o Humanismo português não teria sido o que foi se, em Portugal,
não tivessem operado impressores que se aprimoraram na elaboração gráfica de
textos humanísticos fundamentais, alguns de clássicos greco-latinos e de
humanistas estrangeiros, mas outros de ilustres latinistas nacionais, como André
de Resende e Damião de Góis (MARTINS, 1910:79).
Nesse cenário, muitos livros eram desviados de seus acervos e gabinetes para
estarem a serviço das descobertas. As impressões em português se desenvolviam de
maneira mais evidente que as impressões em latim e em hebraico. Após 1468, a obra
Imitação de Christo de Thomaz De Kempis, ganhou sua tradução portuguesa e o primeiro
exemplar foi enviado de Bruges (capital do Ducado de Borgonha) para o mosteiro Paço de
59
O direcionamento das publicações portuguesas se diferenciava das publicações judaicas que eram
destinadas ao público internacional. Nesse sentido, a dificuldade de difusão e acesso da impressa judaica foi
mais acentuada do que a portuguesa, pois além do preço elevado do pergaminho e do papel, que encarecia o
produto, e muitas vezes a não clarividência da língua, atingia um número restrito de leitores.
75
Sousa. Através do escrito e da compreensão de seus caracteres foi possível edificar a vida e
os costumes entre os portugueses.
Era necessário levar Tomaz De Kempis ao contacto das gentes simples que não
sabiam latim. E Frei João Álvares treslada a
Imitação de Christo
, na linguagem
da gente portuguesa de Quatrocentos. Não bastava porém traduzi-la. Era
necessário imprimi-la para levar aquele espelho aos homens de boa-vontade,
para que nele pudessem compor-se à imagem e semelhança do senhor. E na
primeira imprensa deste País que com tanto ardor se ocupava em dilatar a fé de
Cristo, imprime-se o livro milagroso que tamanho valor havia de ter para a
conversão dos Infiéis e dos ignorantes das Terras Missionadas (PINTO,
1948:230).
O interesse em despertar a civilização entre os gentios, propagar os costumes e a fé
portuguesa assim como em conquistar mais gentes e mais terras impulsionou a publicação,
em Leiria, da Imitação de Christo. Além de tocar os homens da terra, o livro proporcionava
conforto à alma do missionário cansado e do aventureiro. Os livros estavam presentes como
instrumento nas missões ultramarinas e os incunábulos religiosos propagavam a fé.
Os livros religiosos eram de grande procura e de fácil vendagem e muitas cartinhas
e cartilhas
60
passaram a serem produzidas para iniciar o povo português e os povos achados
nas primeiras letras. A inserção no conhecimento começou a ganhar vida não somente pela
experiência mas pelas letras. Portugal dos Descobrimentos foi a primeira nação responsável
pela impressão das Cartilhas de A B C
61
: as Cartinhas ensinavam a ler e a escrever,
ensinando o português e o latim.
Em Portugal dos quinhentos e no período manuelino (1495-1521)
62
, a imprensa
compareceu como um instrumento para a construção do império e a linguagem ganhou
maior expressão e força política. Os livros impregnados por preceitos religiosos e
nacionalistas, inserem-se na universalização da cultura. Assim, a arte da imprimissão
prestou serviço à língua pátria e seu ensino.
60
As
Cartinhas
e
Cartilhas
foram essenciais para o inicio da formulação das Gramáticas em Portugal de
quinhentos, no entanto nesse trabalho, por delimitação temática, não aprofundarei a formação e função das
cartinhas. A relação entre as cartinhas e as gramáticas poderá ser tema de um trabalho posterior.
61
O objetivo das primeiras cartinhas estava assentado no ensino das letras aos povos Asiáticos e Africanos.
62
Seguidor dos projetos da Política da Inteligência iniciada por D. João.
76
Com D. João II, ativo incentivador da instrução em Portugal, iniciou-se no mundo
os livros didáticos bilíngües que tinham como finalidade a aprendizagem das línguas vivas.
Com a ação portuguesa da imprensa,
a atividade nacionalista e missionária tinham resultado vários dialetos
portugueses que seguindo a orla marítima da península caminhavam ao longo da
Costa do Malabar e se alastravam e cantavam de boca em boca e de alma em
alma pela Índia fora. / A língua portuguesa, na sua marcha espiritual, dobra o Sul
por entre os pescadores de pérolas e espraia-se até Ceilão. Naturalizada pelos
Índios, caminha para o Oriente pela Costa de Coromandel. Navega ao longo dos
mares. Aproa a Malaca. Passa de boca em boca. E tão saboroso encanto ganha
música da língua portuguesa em ouvidos e bocas de malaios, que ali perdura
ainda um crioulo português, o
Pappyá Kiristan
como florescência exótica da
linguagem lusitana dos Descobrimentos (PINTO, 1948:385).
A crença de que a melhor forma para a propagação e fixação do espírito de uma
nação é o ensino da língua, estava presente desde D. Manuel intelectual da Renascença com
alto espírito nacionalista, entendia a língua como um instrumento eficaz para a atividade
colonizadora. Antes de haver imprensa em algumas capitais da Europa, em torno de 1515, o
rei D. Manuel enviou de presente ao Negus, uma tipografia e uma biblioteca contendo
cerca de 2.500 volumes, dentre eles, 2.000 cartilhas e catecismos.
As Cartinhas cumpriam o papel de ensinar as letras e a leitura, propagando a língua
portuguesa e os valores da civilização. No Oriente, as Cartinhas permitiam a eternidade de
Portugal, introduzindo a alma portuguesa e a doutrina cristã entre os povos. No início do
século XVI, imprimiam-se milhares de Cartinhas em língua portuguesa
para ensinar os meninos a ler, em vez do texto dos autores clássicos, latinos e
gregos. A campanha expansionista exigiu em primeira instância uma boa
funcionalização da língua vulgar. Quando o latim humanista chegou, já a língua
portuguesa gerava crioulos na África (VERDELHO, 1995:58).
Entre os livros com destino Além-Mar, as Cartinhas e Cartilhas foram os mais
freqüentes, a serviço da Fé e do Império:
como o Livro de Oiro iniciático, dando o melhor sinal do nosso humanismo
civilizador./ Contêm as
Cartinhas
os rudimentos da leitura e os rudimentos da
Fé. Ainda se não criara o mito abstracto duma civilização da inteligência
independente da civilização da alma. Catequizava-se a inteligência e o coração
para Portugal, e a alma para Deus (PINTO, 1948:299).
77
As Cartinhas possibilitavam o intercâmbio entre as metrópoles e os países recém-
descobertos e com D. Manuel, o prelo e a organização do império se desenvolveram
63
: “a
figura deste Rei nos impõe como o maior propagandista do livro do seu tempo. Dir-se-ia
que o Afortunado teve logo de início a compreensão nítida e larga de que a língua era a
melhor maneira de captar as almas e realizar a absorção dos povos” (PINTO, 1948:241).
Partindo de tais pressupostos, livros foram remessados a Ultramar: já em 1488 houve uma
expedição do Mestre Álvaro, com muitos livros eclesiásticos e morais; em 1490, a
expedição para o Congo em que foram muitos livros e dois impressores; em 1504, foram
para o congo Mestres de Ler e muitos livros; em 1512, envia-se um caixote de Cartilhas
para Cochim; e em 1514, foram 2.000 Cartilhas para Negus
64
.
Pela quantidade de cartinhas enviadas, fica evidente que os livros de doutrinas não
eram enviados àqueles que ainda não sabiam ler. No século XVI, a publicação de Cartinhas
apareceu intensificada a partir de 1534 apesar de já existirem por volta de 1513
65
. A difusão
das cartinhas aponta o caráter didático da imprensa, ou seja, o seu sentido pedagógico em
auxiliar ao ensino das primeiras letras assim como, na circulação e registro da língua falada,
o português. A vinculação das Cartinhas, em 1534, precede em dois anos a publicação da
primeira gramática da língua portuguesa, de Fernão de Oliveira, o que salienta que a
gramática não foi simplesmente uma imposição ou formalização de estrutura da língua mas
uma anotação do falar português. Marcada pelo registro dos moldes em que a língua
materna foi se constituindo: através da Gramática de 1536 é possível afirmar que a língua
não é uma entidade externa e estranha mas um elemento constitutivo do povo português,
marca da identidade nacional.
O desejo e o ato de expansão da língua simbolizou o desejo do português de
comungar novas almas e achar novas terras. A tipografia auxiliou a ação dos portugueses e
inspirou novas formas de escrita, possibilitando o acesso a qualquer pessoa que tivesse
interesse pelos impressos. Novos estilos foram inventados e os escritos não se restringiram
somente ao latim. Com o nascimento da impressa, o conhecimento das letras, o registro da
63
A obra de D. Manuel teve continuação com D. João III.
64
Referências sobre essas datas e o movimento dos livros podem ser encontradas na página 247 no livro
Da
Famosa Arte da Imprimissão
de Américo Cortez Pinto.
65
A primeira cartinha impressa foi A B C de D. Diogo de Ortiz Vilhegas, Bispo de Ceuta e Primaz da África
que fez a Cartinha para ensinar a ler os Indígenas do seu Primado.
78
história, dos sentimentos, das observações e dos costumes foi experimentado: o que antes
se experimentava essencialmente pela oralidade, pôde ser vislumbrado no desenrolar de
tipos e páginas. A língua portuguesa se fixou e alastrou-se: “ganhou também um perfume
de aventura” (ALBUQUERQUE, Mario, Apud, PINTO, 1948:391).
Da
Notação
... admoestando-nos que em cada língua
notemos o próprio costume dela, cá esta arte
de Gramática em todas as suas partes e
muito mais nesta da analogia, é resguardo e
anotação desse costume e uso, tomada
depois que os homens souberam falar, e não
lei posta que os tire da boa liberdade,
quando é bem redigida e ordenada por seu
saber, nem é divindade mandada do céu que
nos possa de novo ensinar o que já temos e
é nosso, não embargando que é mais divino
quem melhor entende. E, assim, é verdade
79
que a arte nos pode ensinar a falar melhor,
ainda que não de novo: ensina aos que não
sabiam e aos que sabiam ajuda.
Fernão de Oliveira
omo já abordado no capítulo anterior, a invenção e a inserção da
imprensa assim como a produção e propagação de textos impressos auxiliaram na
democratização da cultura. Com as inovações na produção de textos escritos, a atividade da
escrita e da leitura foi ampliada e do desenvolvimento do ensino das línguas vulgares
emergiu a necessidade de normalização da língua. Em quinhentos, em meio ao cenário do
humanismo, do cristianismo, da escolástica, do nacionalismo e dos descobrimentos,
gramáticas foram produzidas e o Mundo Ocidental presenciou as primeiras gramáticas das
línguas vulgares.
A “questão da língua” ocupou o foco de interesse e as codificações das línguas
ocorreram na Itália, na França, na Espanha e em Portugal. As teorizações e práticas
lingüísticas foram elaboradas nos centros da Europa
66
, principalmente na Itália, penetrando
em Portugal. “Mas deve acrescentar-se que os humanistas portugueses revelaram uma certa
capacidade criativa e produziram mesmo um trabalho cultural e nomeadamente lingüístico
inovador e decisivo, para a instituição do fundo patrimonial lusíada” (VERDELHO,
1995:59).
66
De 1444 a 1587, várias obras de cunho lingüístico foram escritas em Roma, Veneza, Milão, Salamanca,
Londres, Veneza, Paris, Basiléia, Lovaina, Alcala, Papiae, Lyon, Coimbra, Lisboa. A obra de Telmo
Verdelho,
As Origens da Gramaticografia e da Lexicografia Latino-Portuguesas
, 1995, traz uma bibliografia
sobre as Gramáticas, Comentários, Introduções e Compêndios, desse período.
80
A aventura lingüística traçada em Portugal dos Quinhentos é representada
principalmente pela figura de quatro
67
homens de letras que participaram ativamente do
espaço cultural e produziram as quatro primeiras gramáticas da língua portuguesa. Por
questão de escolha e por defender que em sendo o primeiro, Fernão de Oliveira foi
referência para as demais escritas, talvez não como modelo, mas como existência pois não é
possível anular sua precedência, a análise desse capítulo abordará exclusivamente a
anotação gramatical de 1536. “No esplendor do Renascimento e da nova idade de ouro,
Fernão de Oliveira jogou na diferença e marcou uma nova era na lingüística lusa, como de
resto jogaram os nossos pilotos e marinheiros abrindo ao mundo novos céus e novas terras”
(TORRES & ASSUNÇÃO, 2000:10).
Em meio aos achamentos e imprimissões saiu dos prelos em 27 de janeiro de 1536 a
Grammatica da Lingoagem Portuguesa
68
cuja autoria pertence a Fernão de Oliveira,
dominicano temporário e depois clérigo secular, soldado e diplomata, marinheiro
e escritor, louvado de arquitectura naval, prisioneiro da Inquisição e mestre da
nobreza, humanista, professor de retórica, filólogo e gramático, - Fernão de
Oliveira, cavaleiro andante que, antes de mais ninguém e com alta perícia, terçou
armas por amor dessa dama de romana estirpe e presença transcontinental que é
a Língua Portuguesa (TORRES, 2000:77).
67
Fernão de Oliveira, autor da Gramática da Linguagem Portuguesa de 1536; João de Barros autor da
Gramática da Língua Portuguesa de 1540; Pêro de Magalhães de Gândavo autor da Regras que Ensinam a
Maneira de Escrever e a Ortografia da Língua Portuguesa com um Diálogo que se segue em defensão da
mesma Língua,
de 1574; e Duarte Nunes de Leão que em 1596-1606, escreveu
Ortografia e Origem da
Língua Portuguesa.
68
De acordo com as informações de Amadeu Torres e Carlos Assunção, 2000,
A Gramática da Língua
Portuguesa
teve cinco edições, sem contar a do ano 2000 organizada por eles. São elas: 1. Grammatica da
lingoagem portuguesa
, a primeira, publicada em Lisboa por Germão Galharde em 1536: “vol. De 185 X 135
mm., e 38 fóls., título do rosto cercado de uma tarja zoofitomorficamente não simétrica dos lados,
sobrepujando outra com o nome do impressor e encimado pelas armas dos Almadas, que tarja similar superior
enquadra”; 2.
Grammatica da linguagem portuguesa
, publicada em Porto pela Imprensa Portugueza, em
1871, através do trabalho de Visconde de Azevedo e Tito Noronha; 3. A terceira edição, Grammatica da
lingoagem portugueza,
editada em Lisboa por José Fernandes Júnior, em 1933, sob a direção de Rodrigo Sá
Nogueira, contendo estudo e glossário de Aníbal Ferreira Henriques; 4. Em 1954, foi publicada no Brasil (Rio
de Janeiro), A ‘Grammatica’ de Fernão d’Oliveyra, texto reproduzido da 1ª edição e apreciação de Olmar
Guterres da Silveira e; 5.
A Gramática da linguagem portuguesa,
editada em Lisboa no ano de 1975, com
introdução, leitura e notas de Maria Leonor Carvalhão Buescu, “a única em linguagem actualizada” (63-5).
81
Capa da primeira edição da Gramática.
A pequena obra, tal como pode ser lida na sua apresentação, dividida em 50
capítulos
69
, foi dirigida e dedicada ao Mui Magnífico Senhor D. Fernando de Almada, por
quem Fernão de Oliveira nutria profundo apreço devido a sua prudência, nobreza e seu
interesse por bons livros. Iniciando seu preâmbulo, ao solicitar a atenção do Senhor, o autor
fez considerações sobre seus impasses em oferecer-lhe a obra, demarcando a hierarquia
presente na sociedade de seu tempo - apresenta-se como um “homem baixo” frente ao
nobre senhor. Dirigindo-se a um homem nobre e de letras, Fernão de Oliveira esclareceu
seu objetivo em apresentar-lhe, a sua Grammatica da Lingoagem Portuguesa:
a notação em algumas coisas do falar português na qual ou nas quais eu não
presumo ensinar aos que mais sabem, mas notarei o seu bom costume para que
outros muitos aprendam e saibam quanto prima é a natureza dos nossos homens
porque ela por sua vontade busca e tem de seu a perfeição da arte que outras
nações adquirem com muito trabalho e nestas coisas se acabará esta primeira
69
Dos 50 capítulos, quase parágrafos, somente quatro foram nomeados pelo autor: o capítulo XIX,
Das
sílabas
; o XXVIII,
Do acento
; o XXX
Das dicções
e o
XL,
Da analogia
; os demais foram numerados. Dessa
maneira, para melhor visualizar o texto e também para fazer um jogo de palavras e interpretações, nomeei os
demais capítulos - as nomeações que fiz aparecem entre aspas. Importante destacar dois aspectos: para
desenvolver esse capítulo
Da notação
utilizei a gramática editada no ano de 1975, organizada por Maria
Leonor Carvalhão Buescu e só depois, conheci a edição crítica de 2000, organizada por Amadeu Torres e
Carlos Assunção. Ao entrar em contato com tal edição pude verificar que os organizadores optaram por
nomear os capítulos não intitulados por Fernão de Oliveira.
82
anotação em dizer não tudo, mas apontar algumas partes necessárias da
ortografia, acento, etimologia e analogia de nossa linguagem em comum e
particularizado nada de cada dicção, porque isto ficará para outro tempo e obra.
E, porém, agora primeiro diremos que coisa é linguagem e da nossa, como é
principal entre muitas. O que peço a sua mercê ouça com muita atenção e
vontade porque nisso favorecerá o partido de meu trabalho (OLIVEIRA,
1975[1536]:38).
Ao estabelecer a Gramática como uma primeira anotação da linguagem portuguesa
,
o autor demarcou o caráter de sua obra: apontamentos, registros e comentários sobre a
linguagem portuguesa. A escrita gramatical de 1536 moldou-se como uma notação do
modo de ser português: os capítulos foram sendo construídos e entrelaçados por reflexões
de cunho lingüístico e cultural, “a obra é um conjunto de ensaios sobre a linguagem e a
cultura portuguesa”
(DOMINGOS, 2000:16).
A Gramática não é uma sistematização
precisa e acabada, nem tão pouco uma formalização rígida de normas e regras do falar e do
escrever português, mas um registro dos moldes de linguagem, de falares, de impressões e
ações do povo português. O intuito de registrar o modo de vida de seu povo era, para
Fernão de Oliveira, a possibilidade de memorizar e perpetuar a história e a cultura.
Entrelaçando língua e cultura, a Grammatica da Lingoagem Portuguesa,
possibilitou o registro das letras e a reflexão sobre a importância e a necessidade de
normalização da língua portuguesa. Aproveitando as circunstâncias histórias de vida e os
valores que permeavam Portugal no século XVI, Fernão de Oliveira, em suas obras,
incorporou os traços da Renascença, construindo e organizando o pensamento, de tal
maneira que o conhecimento formava-se como um todo envolto ao pensamento analógico.
Considerando a ênfase que Fernão de Oliveira deu à questão da anotação, inclusive
afirmando que sua obra é uma “primeira anotação” pode-se verificar que o título de
Gramática não foi instituído no sentido restrito do termo, ou seja, como correspondente de
uma sistematização e ordenação. O título
70
reflete a posição medieval de denominar de
gramática as obras que abordam aspectos e conteúdos sobre a língua.
No capítulo I, “Da linguagem e suas vantagens”, Fernão de Oliveira apresentou um
preâmbulo sobre a linguagem, definindo-a como figura do entendimento e
assim é verdade que a boca diz quanto lhe manda o coração, e não outra coisa:
antes não devia a Natureza criai outro mais disforme monstro do que são aqueles
70
Américo Cortez Pinto (1948), Amadeu Torres e Carlos Assunção (2000) apresentam a hipótese da escolha
do título “
Gramática”
ter sido feita pelo editor Germão Galharde para maior difusão e aceitação da obra.
83
que falam o que não têm vontade, porque, se as obras são prova do homem,
como diz a suma verdade, Jesus Cristo, nosso Deus, e as palavras são imagem
das obras (...) cada um fala como quem é: os bons falam virtudes e os
maliciosos, maldades; os religiosos pregam desprezos do mundo e os cavaleiros
blasonam suas façanhas (OLIVEIRA, 1975[1536]:38).
A linguagem é o meio pela qual os homens expressam a maneira que têm de
entender o mundo, é a forma de entendimento doada por Deus. As obras se apresentam,
como confirmação de vontades e pensamentos: o homem se diz no que fala e esta por sua
vez, é delineada pelos aspectos morais de uma vida religiosa. As palavras, escritas ou
pronunciadas, referem-se às imagens que se constroem das coisas: as coisas estão aí e,
portanto “das coisas nascem às palavras
(1975 [1536]:39). E os homens são brindados, por
Deus, com suas almas racionais para poderem se comunicar e se relacionar e nesse sentido,
a língua deve seguir as leis do corpo que apresenta diversidade de vozes.
Para o autor, a formação de vozes e a construção das línguas edificam a identidade
do povo: a fala faz elo entre homens, simboliza um povo, caracteriza uma nação, é um
modo de entendimento. Através da fala e da sonoridade as relações se consolidam e o povo
falante se identifica. O modo de falar aponta o que é próprio dos povos e das nações, e
Fernão de Oliveira, imbuído de espírito nacionalista, faz referências a outras nações – por
exemplo, os Caldeus, Arábigos - como meio de aludir as vantagens do falar português.
Nós falamos com grande repouso, como homens assentados. E não somente em
cada voz por si, mas também no ajuntamento, e no som da linguagem pode
haver primor ou falta entre nós. Não somente nestas, mas em muitas outras
coisas tem a nossa língua vantagem, por que ela é antiga, ensinada, próspera e
bem conversada e também exercitada em bons tratos e ofícios (OLIVEIRA,
1975 [1536]:39).
A sonoridade do falar português e seus desdobramentos comparecem no enredo da
obra e nesse capítulo, para fazer considerações sobre a formação da língua, Fernão de
Oliveira faz referência a nomes clássicos tais como Diógenes Laércio, Sólon, Cícero,
Quintiliano
71
. COSERIU (2000) afirma que os Antigos citados por Fernão de Oliveira “não
diminui a originalidade do seu pensamento: a originalidade, no Renascimento, também
consiste em ‘quais’ idéias se adoptam dos Antigos, ou para ‘quais’ idéias se procura apoio
nos Antigos”, as indicações dos Antigos não se restringem à simples imitação e na
71
No decorrer da obra o gramático Quintiliano é citado vinte vezes.
84
Gramática, apontam as marcas humanistas presentes na concepção da obra. Os estudos das
letras humanas através dos textos antigos permitem fazer um resgate do humanus e utilizá-
lo em prol do objetivo de pensar a formação da língua.
Posteriormente à explanação sobre a maneira de falar dos portugueses, no capítulo
II, “Da edificação de Lisboa”; seguem-se referências sobre a origem e formação do nome
de Lisboa. A história de Portugal é apresentada por Fernão de Oliveira de forma
imaginativa,
a antiga nobreza e saber da nossa gente e terra da Espanha, cuja sempre melhor
parte foi Portugal, ainda que agora não é maior depois do dilúvio geral, que é o
mais antigo tempo de que se os homens lembram. (...) Hércule Líbio, filho de
Osíris, rei do Egipto, veio morrer em esta terra, desejando de viver sua velhice
descansada em ela pela virtude que dela conhecia, e os sucessores deste
edificaram, em memória e honra do nome de seu capitão, Libisona, Libisosa,
Libunca, Libura e Libisoca. (...) E se também quisermos mais antiguar a
edificação da nossa Lisboa, podemos dizer que é aquela das cinco cidades já
ditas a que eles chamaram Lisbisona. (...) E assim desta feição, já também este
nome de Portugal é antigo e agora, com a virtude da gente, muito enobrecido e
com muitos bons tratos e conversações, assim em armas como em letras
engrandecido (OLIVEIRA, 1975[1536]:40).
A nobreza da terra e da gente é exaltada nas linhas que registram o engrandecimento
de Portugal por suas armas e letras assim como pelo saber dos portugueses em conhecer,
servir e louvar a Deus. As marcas de nobreza e saber da gente portuguesa aparecem
também no capítulo III, “Da nobreza da terra portuguesa”, que aborda a formação dos
primeiros reinados e a virtude da terra portuguesa.
É tanta a nobreza de nossa terra e gente, que só ela com seu capitão Viriato pôde
lançar os Romanos da Espanha e seguí-los até a sua Itália. E só esta nossa terra
Portugal, na Espanha, quando os Godos com seus costumes bárbaros e viciosoa
perderam a Espanha, teve sempre bandeira nunca sujeita a Mouros, mas muitas
vezes contra eles vitoriosa, como foi a do santo abade D. João de Montemor, o
qual confessam todos que corria a terá dos Mouros como de inimigos, e não
como de senhores. E esta é a verdade que em Portugal sempre houve lugares e
terras próprios dos cristãos ... (OLIVEIRA, 1975 [1536]:41).
Os lugares de portugueses que ficaram em Portugal, foram rapidamente descritos a
partir da existência de vencedores e vencidos, marcas contínuas das guerras e as indicações
sobre a questão da língua, sua imposição e aceitação são postas como o marco da
manutenção da vitória que se delineava pelo uso da língua, ou seja, os vencedores
impunham sua língua aos vencidos.
Nesse sentido, no Capítulo IV, “Da língua e dos homens”, Fernão de Oliveira faz
um alerta da relação de mando com a utilização da língua: o aprendizado de língua pode ser
85
ferramenta de dominação. A partir dessa tese, analisa a posição de Roma e Grécia que
segundo o autor, “ainda vivem, porque quando senhorearam o Mundo mandaram a todas as
gentes a eles sujeitas aprender suas línguas” (1975[1536]:42).
A tarefa de Portugal, sobretudo para a afirmação nacional, estava justamente em
aprender e difundir sua própria língua. Para tanto, o gramático faz um alerta apontando que
a língua é formada pelos homens e, portanto, não está pronta a-priori, não sendo também
uma entidade: é preciso “formar vozes e falar”.
As fracturas e os confrontos dos diferentes modos de falar, que em grande
número afluíram a Lisboa, provenientes das várias partes do reino e do
estrangeiro, devem ter criado uma instabilidade e uma grande insegurança
lingüística. A situação era propicia ao aparecimento de novos modos de falar
capazes de assinalarem a superioridade e a distinção social. Esta conjuntura terá
facilitado a emergência de um português fortemente relatinizado, base essencial
do português moderno (VERDELHO,1995:57).
A partir desse capítulo, Fernão de Oliveira indica a função abrangente da língua e a
sua função social. A língua é registrada como produto social e pela primeira vez, nas
últimas linhas, o autor apresenta sua definição de gramática: “é a arte que ensina a bem ler
e falar, saibamos quem primeiro a ensinou e onde e como, para que também agora a
possamos usar na nossa antiga e nobre língua” (1975 [1536]:43). Destacando a necessidade
de se conhecer a origem e construção de tal arte que teve ter como proposta, ser um
exemplo para aprendizagem e estudo, em prol da língua materna.
O Capítulo V, “Da gênese da língua e da arte”, é iniciado com referências a textos
clássicos como Homero
72
, Arquíloco, Xenofonte, Apolodoro, o estóico Crates de Malos,
dentre outros, perpassando por um breve histórico sobre Grécia e Itália no que tange às
letras e escrituras. No tocante a Portugal, o autor cita o reinado de D.João, indicando os
bons tempos de sua terra e o trabalho que deve ser primordial para toda a gente.
... avivemos nós com glória de nossos tempos porque já os preguiçosos não têm
escusa nem se podem chamar remissos por falta de premio e, contudo
72
No diálogo
Crátilo
de Platão, para investigar a justeza do nome, Sócrates diz a Hermógenes ser necessário
aprender com Homero e outros poetas. De acordo com Sócrates há em vários escritos e passagens homéricas
investigações sobre os nomes, que Homero demarca com a distinção entre os nomes atribuídos pelos homens
e os nomes atribuídos pelos deuses para a mesma coisa. Há uma mesma existência, uma mesma coisa dotados
de nomes diferentes que indica quem legislou o nome. A questão comparece: todos os homens são capazes de
nomear? Donde Sócrates conclui que cabe aos judiciosos, seres dotados de prudência e com capacidade
legislatória, nomear, pois os insensatos não possuem justeza.
86
apliquemos nosso trabalho a nossa língua e gente e ficará com maior eternidade
a memória dele e não trabalharemos em língua estrangeira, mas apuremos tanto
a nossa com boas doutrinas, que a possamos ensinar a muitas e amados porque a
semelhança é causa do amor e mais em as línguas (OLIVEIRA,1975[1536]: 45).
Pode-se ver através da afirmação do autor que a memória é uma possibilidade de
eternizar o trabalho e a vivência do povo português, avivar o modo de ser português e que o
trabalho da língua nacional é um meio de se consolidar esta memória que já é interpretação,
fixação e história. Não há uma recusa à língua estrangeira e sim, um apreço por esta como
conhecimento e como referência à língua nacional: as línguas devem estar em relação tal
como os povos assim estão. Em suas palavras, “notemos o falar dos nossos homens e dae
ajuntaremos preceitos para aprenderem os que vierem e também os ausentes”
(1975[1536]:45).
A questão da semelhança lingüística toca profundamente o reconhecimento de cada
homem como parte de um grupo, de um povo: a semelhança da língua agrupa
73
..
FOUCAULT (1992) afirma que “buscar o sentido é trazer à luz o que se assemelha. Buscar
a lei dos signos é descobrir as coisas que são semelhantes. A gramática dos seres é sua
exegese. E a linguagem que eles falam não narra outra coisa senão a sintaxe que os liga”.
No sentido de exegese, a gramática tem por finalidade esclarecer e interpretar letras e suas
semelhanças, sendo a enunciação das propriedades dos seres à medida que elege e destaca
palavras, letras, sílabas e frases pertinentes ao cotidiano de um povo. A gramática espelha
relações de concordância, de subordinação e de ordem, tal como a sintaxe, presentes nos
seres e na linguagem. É através da linguagem que se dá a conhecer.
A utilização das línguas materna e estrangeira é pensada, por Fernão de Oliveira,
pelo viés da semelhança, “causa do amor”: é a partir do que nas línguas se assemelham que
as diferenças comparecem e as identidades se formam. Nos moldes da língua o que se
assemelha se torna presente e por isso, torna-se essencial entender e dar relevo à gênese da
língua. Assim, ao contemplar a semelhança Fernão de Oliveira insere-se no quadro de
conhecimento da Renascença: conhecer é estabelecer semelhanças.
O fechamento desse capítulo aponta para a tríade constitutiva da gramática e da
formação da língua, a saber, letras, sílabas e vozes, alertando para a relação e constituição
73
Para tratar dessa questão, Fernão faz citação aos países como África, Guiné e Brasil e suas relações com os
portugueses e a língua (ver p.45).
87
de cada uma delas em conformidade com a melodia própria da língua, da nação. É a partir
desse momento da obra que o autor trata propriamente das questões da gramática (formas
gramaticais, fonética, lexicologia, estudos etimológicos e sintaxe
74
), pois o que
encontramos desde a apresentação até este capítulo são alusões à língua feitas através de
históricos e considerações histórico-cultural: há um modo de olhar o português que está em
jogo, um enunciado do caminho que seguirá na sua obra.
O “português” aparece na Gramática em seu duplo sentido: como língua do povo de
Portugal e como o homem nascido em Portugal. Terra, gente e língua são adjetivadas como
português no decorrer da obra: a língua dos portugueses, as terras dos portugueses e as
virtudes dos portugueses ganham dimensão e o “português” desloca-se de mero adjetivo
para consistência de substantivo, de nome próprio.
A ênfase no “português” emerge na própria obra gramatical de Fernão de Oliveira
como a primeira tentativa de se fixar e normalizar a língua, os moldes de falar português.
Sua herança vernácula, “tem como primeira referência D. Dinis, ao instituir o português
como língua oficial, em substituição do latim, e uma das últimas, já no século XV, em D.
Duarte, que, no seu Leal Conselheiro, aconselha que se evite o uso de latinismos” (LOPES,
2003). Sua Gramática está a favor da língua e do espírito português, fazendo refletir sobre
o predomínio da língua latina e castelhana e registrando a mescla cultural que comparece
através dos empréstimos e contatos de grupos, povos e nações.
O capítulo VI, “Das letras e das vozes”, aborda o tema da letra definida como
“figura de voz” (1975[1536]: 46). A letra é dividida em consoantes e vogais: a voz vogal é
mais ativa e perfeita e a consoante só encontra voz em relação à vogal. Fernão de Oliveira
apresenta uma nomenclatura diferenciada para a concepção das letras: letras são sinais, “às
figuras destas letras chamam os Gregos caracteres, e os Latinos, notas, e nós lhe podemos
chamar sinais” (1975[1536]: 46). Esses sinais correspondem não somente a grafia e às
vozes, mas há um tempo e espaço próprios. Há uma diversidade de letras e vozes que
recebem sentido em contato: contato com o outro, com a história, com a cultura, com a
educação enfim, com um modus vivendi de um povo havendo, um fluxo de sinais.
74
No conjunto da obra, os capítulos dedicados à fonética e à ortografia contam 24, do VI ao XXIX; 13
capítulos, do XXX ao XLII, correspondem a lexiologia; 6 à morfologia, do XLII ao XLVIII, e somente um
capítulo enfoca a sintaxe (o XLIX). O enfoque despendido à fonética e à ortografia portanto ao modo de falar
e de escrever está associado à raiz oral de Fernão de Oliveira, aos resquícios medievais.
88
nós diremos que de nós aos Latinos há aí muita diferença nas letras, porque
também a temos nas vozes, e não é muito, pois somos bem apartados em tempos
e terras, e não somente isto, mas uma mesma nação e gente de um tempo a outro
muda as vozes e também as letras (OLIVEIRA, 1975 [1536]: 46).
A pronúncia é uma marca melódica da língua: conhecemos e reconhecemos a
identidade de um ser falante pela melodia, pelo sonoro de seu falar. Muitas vezes,
modificam-se as vozes que estão sempre em movimento, havendo necessidade de se rever
às letras
75
. Esse princípio e essa alternância indicam os cuidados necessários: para que um
homem se adapte a um outro lugar, a outra terra, não é preciso corromper sua própria língua
e seus costumes.
A preocupação com a preservação da língua e dos costumes sinaliza o apreço a terra
e à nação portuguesa: há algo a ser preservado que está para além da pronúncia e da letra,
ou seja, o modo de vida, a história, o ser português. Para fazer essas considerações, Fernão
de Oliveira utiliza o exemplo das pessoas que chegam em Toledo e
logo se não lembram de sua terra, a quem muito devem. E em vez de apurarem
sua língua corrompem-na com emprestilhos, nos quais não podem ser perfeitos.
Tenhamos, pois, muito resguardo nesta parte porque a língua e escritura é fiel
tesoureira do bem de nossa sucessão e são, diz Quintiliano, as letras para
entregar aos que vierem as coisas passadas (1975 [1536]: 47).
Na continuidade de sua explanação, há uma tese ortográfica fortemente marcada.
Pode-se afirmar que a grande preocupação de Fernão de Oliveira, tal como homem da
Renascença, é com a ortografia e sua problemática é contemplada de maneira eficiente. No
capítulo VII, “Da melodia portuguesa e da voz castelhana”, o foco de análise está na
melodia da língua portuguesa. O gesto, o som, a pronúncia e a articulação são mencionados
com o intuito de indicar o som melódico do falar português.
Examinemos a melodia da nossa língua e essa guardemos, como fizeram outras
gentes, e isto desde as mais pequenas partes, tomando todas as vozes e cada uma
por si e vendo em elas quantos diversos movimentos faz a boca com também
diversidade do som e em parte da boca se faz cada movimento, porque nisto se
pode discutir mais distintamente o próprio de cada língua (OLIVEIRA,
1975[1536]:47).
75
Para indicar a relação da mudança de vozes com a mudança de letras, Fernão de Oliveira faz referência aos
livros de
Etimologia
contidos na obra
De língua latina
de Marco Varrão.
89
Da melodia portuguesa, Fernão de Oliveira, chega à divisão da língua e das letras,
no capítulo VIII, “Das vogais”, abordando “o primeiro problema ortográfico e fonético de
capital importância: o da abertura e fechamento dos vocálicos” (BUESCU, 1975:131).
Fazendo referência aos Gregos e Latinos, relembra Plínio ao afirmar que “é pouco saber
escoldrinhar as coisas alheias não nos entendendo a nós mesmo” (1975 [1536]:48).
O saber do povo sobre si mesmo é de fundamental importância para o conhecimento
e para a utilização harmônica da língua. Fernão de Oliveira, nesse capítulo, fazendo alusões
aos gregos e latinos apontou a necessidade do povo português entender a formação da sua
língua para só depois examinar com propriedade as coisas das outras nações. O
entendimento das coisas próprias e alheias estava associado ao costume e a natureza que
manifestam e modificam a diversidade de vozes.
O esforço e o mérito da obra de Fernão de Oliveira situa-se justamente na sua
proposta de desprender os esquemas da gramática latina e delimitar o modo que os
esquemas e as categorias funcionam em português. “E devemos dizer que consegue traçar
em poucas páginas uma gramática portuguesa, em grande parte independente dos modelos
latinos” (COSERIU, 2000:50).
Dando continuidade a sua problemática, temos no capítulo IX, “Das consoantes
mudas e da necessidade do til”, o tema das semivogais (l, r, s, z) e das consoantes mudas (b,
c, d, f, g, m, n, p, q, t, x), perpassando pelas dicções e sons. Interessante a definição das
vogais mudas: “aquelas que não podem dar cabo às vozes (...) porque em si não têm voz
alguma nem ofício ou lugar que lha dê” (OLIVEIRA, 1975 [1536]:49-50).
O aspecto do ofício e do lugar está presente nas formas, nas letras, no som e na
gramática: cada componente deve estar assentado sobre sua formação e função. As marcas
da sociedade de Quinhentos comparecem na estruturação, no modo de pensar a formação
das letras e das consoantes, ou seja, há uma hierarquia constitutiva na organização da
língua, da gramática e da sociedade. Letras se transformam, se adaptam e se apresentam
imbuídas de sentido, em contato com o povo que fala.
Para fazer sua explanação, nesse capítulo, afirma que “costumam os gramáticos
repartir as letras consoantes em mudas e semivogais em qualquer língua, e é esta a principal
causa de sua repartição, que as semivogais podem estar no fim das vozes como as vogais”
(1975[1536]:49). A indicação de gramáticos demonstra o conhecimento que Fernão de
90
Oliveira tinha de obras gramaticais e de autores imbuídos de preocupação lingüística. Esse
contato com os textos gramaticais e outras obras foi possível devido à difusão dos escritos
e dos intercâmbios culturais e livrescos, ou seja, através dos achamentos e da arte da
imprimissão, idéias foram democratizadas possibilitando a produção de novas idéias.
Finalizando o capítulo, a letra grega é retomada para fazer referência à dicção e
escrita, ortografia e melodia, como pode ser lido na página 50:
tiramos de entre as nossas letras k porque, sem dúvida, ele entre nós não faz
nada, nem eu vi nunca em escritura de Portugal esta letra K escrita. Ora, pois as
dicções gregas, quando vêm ter entre nós, tão longe de sua terra, já não lhes
lembra a sua ortografia, e nós as fazemos conformar com a melodia das nossas
vozes, é com as nossas letras lhes podemos servir (OLIVEIRA,1975[1536]).
Há também, como apontado no capítulo X, “Das consoantes aspiradas e do sinal de
aspiração”, letras acostumadas que “são justificadas porque as vozes da nossa linguagem o
querem assim” (OLIVEIRA, 1975[1536]:51).
O querer das vozes é explicado pela
adaptação sonora e gráfica que do uso da língua decorre e nesse sentido, letras que a
princípio aparecem diferentes, nem sempre são novas mas sim acostumadas pela
necessidade.
Há um uso já dado através do qual se incorpora determinada sonoridade e
caracteres e a linguagem e seus desdobramentos só podem ser compreendidos em relação à
fala. A fala faz evolucionar a língua, produzindo-a e utilizando-a como instrumento de
expressão e disposição de indivíduos e de coletividade. A coletividade comparece, em
vários momentos, como o meio pelo qual a língua e o povo se expressam, ou seja, tal como
o corpus social, a língua tem um lugar social pautado num sistema de valores. Em sendo
um sistema de valores e, portanto de relações, a língua se consolida em ato antes de
encontrar-se em teoria. Foi com esse olhar, de ação e movimento, que o gramático
construiu sua obra: tal como o registro do mar e narrativas de viagens, Fernão de Oliveira
fez um registro da língua e dos falares.
Após versar sobre as divisões das letras e suas partes e sustentar a relevância da
particularidade de cada letra e do gênero, Fernão de Oliveira segue seu capítulo XI, “Das
semelhanças e diferenças na pronunciação”, demonstrando a necessidade de entender os
pormenores, os particulares e as regras de pronunciação e de escrita: a letra, a voz, o tom, a
91
forma, dão significados à língua. As figuras das letras são tomadas como instrumentos a
partir das quais pode-se construir e utilizar regras de escrever. As semelhanças e as
diferenças entre as letras devem ser observadas sendo de grande importância à medida que
as figuras das letras são instrumento para a constituição da língua e da identidade. A partir
das semelhanças se deslocam as diferenças: “o próprio de cada letra entendemos a
particular pronunciação de cada uma; e o comum chamamos aquela parte da pronunciação
e força em que se uma parece com a outra” (OLIVEIRA, 1975[1536]:52).
É preciso atribuir a devida importância à pronúncia e sua figuração, pois é
justamente pela melodia, pelo pronunciamento e sua imagem que há possibilidade de
“saber ler” uma articulação de vozes. Utilizando-se dos ensinamentos de Quintiliano,
Fernão de Oliveira afirma:
(...) nisto consiste o saber ler, e mais que saber ler. E é verdade que, se não
tivermos certa lei no pronunciar das letras, não pode haver certeza de preceitos
nem arte na língua, e cada dia acharemos nela mudança, não somente no som da
melodia, mas também nos significados das vozes, porque só mudar uma letra,
um acento ou som, e mudar uma de vogal grande ou pequena ou de pequena a
grande, e assim também de uma consoante dobrada em singela ou, ao contrário,
de singela dobrada, faz ou desfaz muito no significado da língua (OLIVEIRA,
1975 [1536]: 52).
Em referências constantes ao gramático Quintiliano, os capítulos XII, “Da
pronunciação e figura das vogais” e XIII, “Da pronunciação das consoantes”, levantam as
características próprias das letras. Tais capítulos são centros articuladores da preocupação
ortográfica de Fernão de Oliveira: a forma da letra, a figura, o nome e a pronúncia são
tratados de forma detalhada, com rigor e minúcia. São tecidas linhas que vão dos gestos
bucais às letras descrevendo o contorno das letras num belo movimento figurativo. As
pronúncias das vogais e consoantes são relatadas de maneira poética:
Esta letra u vogal aperta as queixadas e prega os beiços, não deixando entre eles
mais que só um canudo por onde sai um som escuro, o qual é a sua voz. A sua
figura é duas hastes alevantadas direitas, mas em baixo são atadas com um
alinha que sai de uma delas./ c pronuncia-se dobrando a língua sobre os dentes
queixais, fazendo um certo lombo no meio dela diante do papo, quase chegando
com esse lombo da língua ao céu da boca e impedindo o espírito, o qual por
força faça apartar a língua e faces e quebre nos beiços com ímpeto (OLIVEIRA,
1975[1536]:53-4).
92
A descrição das letras, de todas as vogais e consoantes, acompanha o estilo de
escrita ilustrado acima. Em alguns argumentos, a pronúncia, a tonalidade e o movimento
bucal são relacionados com o espírito. Há uma alusão à maneira grega de constituição do
conceito e da pronúncia à medida que a definição de “espírito” comparece nos compêndios
de gramática grega, referindo-se a um nível de tonicidade, de intensidade da aspiração na
pronúncia. Nas descrições de Fernão de Oliveira, “espírito” é utilizado na sua materialidade
de sopro e não na sua conotação abstrata.
Através de boca, do sopro e da pronúncia, o som ganha mais ou menos entonação,
mais ou menos ímpeto, mais ou menos espanto e assim por diante. Não é só a letra, a sílaba,
que é pronunciada: há um nós. Tal como o autor, em várias passagens de sua obra, há a
“nossa letra”, “nossa língua”: o nós denomina e identifica o que é próprio do português, do
coletivo. Pelo espírito, pelo sopro é possível identificar se a letra e a melodia são
portuguesas (“nossas”).
O assunto da pronunciação percorre o capítulo seguinte, “Das consoantes e dos
sinais”, no comentário sobre as consoantes, abordando os traços de identificação do povo
com o seu tom, sua melodia. O que é próprio dos portugueses, de “nós, portugueses” e dos
latinos, “deles” é discernido nesse capítulo em especial no trato da pronúncia da letra h,
se é letra consoante, como alguns quiseram e o traz Diomedes gramático, há
mister própria força e se atem ou não, ou se á boa a pronunciação que lhe dão
alguns Latinos, eles o vejam. Nós, portugueses, não lhe damos mais que um
pouco de espírito, o qual esforça mais as vogais com que se mistura. E dizem os
Latinos que se pode misturar com todas as vogais. Mas, entre nós, eu não vejo
alguma vogal aspirada senão nestas interjeições:
uha
e
aha
e nestoutras de riso:
há-há
,
he
, ainda que não me parece este bom riso português, posto que o assim
escreva Gil Vicente nos seus
Autos
. Também achamos poucas vogais com sinal
de aspiração na escritura, e não na voz. E me parece que se não faz mais que só
para mais certo conhecimento de quem são, como homem, o qual segue ainda a
escritura latina, haver, outro tanto. Mas hum e alghum, hi e ahi, advérbios de
lugar, honra, honrado, só de nosso costume os escrevemos, sem mais outra
necessidade (OLIVEIRA, 1975[1536]:57).
76
76
Assim como a referência aos clássicos, Fernão de Oliveira utiliza também referências de contemporâneos
como Gil Vicente, João de Barros e Nebrija. No capítulo XIV, tal como indicado nessa citação, o autor faz
alusão aos Autos de Gil Vicente. Em nota, da edição de 1975 da Gramática da Linguagem Portuguesa, Maria
Leonor Carvalhão Buescu cita o escrito de Gil Vicente intitulado
Auto da Índia
, onde comparece um diálogo
entre a Moça e a Ama, apontando grafia do riso,
Ah! ah! ah! ah! ah! ah!
. Vale destacar também, tal como
afirma Rosa Virgínia Mattos e Silva, que o ano da publicação da Gramática, 1536 é também o ano do último
Auto
de Gil Vicente,
Floresta dos Enganos
.
93
Aqui se consolida a proposta de Fernão de Oliveira de pensar a língua para além dos
modelos latinos, ou seja, de articular registros e propriedades dos moldes portugueses. A
indicação sobre a escritura e a voz clarifica as situações de correlação: entre latinos e
portugueses assim como entre “nós”, e “eles”. Ao tratar do costume e da necessidade da
escrita, o autor sinaliza a possibilidade de se encontrar na escritura nuances distintas do
sinal da voz. Essas distinções demonstram a presença da flexibilidade da língua assim como
das exceções: nem só de regras se estrutura a língua, há casos peculiares, exceções que
comparecem no próprio movimento da oralidade, nas relações e na sociedade.
Sendo a Gramática mais do que uma teoria e um modelo, um registro dos modos de
escrita e fala do povo português, a utilização do “nós e nosso” expressa a concepção e a
vivência do português. O “nosso” demonstra ao mesmo tempo a forma coletiva de
organização da sociedade em quinhentos como também, a formação do povo como
identidade. Portugal e os portugueses pretendem consolidar-se como nação: há um projeto
político de unificação de costumes, gentes, crenças e terras. Os achamentos, os
conhecimentos e as imprimissões vinculam projetos de cunho nacional e nesse sentido,
como povo e como língua o português almeja consolidar-se, fortificar-se e experimentar o
elixir de suas descobertas e ações, sendo a língua um instrumento capaz de imprimir a
identidade.
A inscrição do português apresenta-se no “nosso a b c”, assunto do final do capítulo,
com trinta e três letras sendo elas, vogais e consoantes. Segundo Fernão de Oliveira as
letras do “a b c” são de identidade portuguesa: “são todas nossas e necessárias para nossa
língua”
(1975[1536]:57)
.
As letras líquidas são tema do capítulo XV, “Das letras que se fazem líquidas”:
Quer dizer
líquido
, aqui,
brando
, ou diminuído de sua força. Das vogais, nós
fazemos u líquido algumas vezes depois de g e q, como quando e língua. Mas,
se o meu sentir é acertado, eu sinto nos tais lugares
o
pequeno, e não já
u
, e
assim escreveria, se me atrevesse, desta maneira:
língoa
,
qoando
, porque assim
me soa a mim, nas minhas orelhas. E, se outra coisa fazem para imitar os
Latinos, não é nosso o que seguem (OLIVEIRA, 1975[1536]:58).
Em mais uma passagem, além de apresentar as comparações entre letras, escritas e
sons em português e em latim, Fernão de Oliveira deixa nas entrelinhas a forma da sua
Gramática, um registro com toques de meditação. Ao dizer “assim escreveria, se me
94
atrevesse”, o autor escreve tal como quem pensa em voz alta, fazendo uma reflexão sobre
como é (registro) e como poderia ser (meditação) as formas, os sinais e a melodia da língua
materna. De maneira sutil, o gramático deixa claro que sua apresentação, sua anotação, não
corresponde ao que ele gostaria que fosse ou como as coisas e letras soavam a ele, mas
como elas circulavam e estavam presentes, no início do século XVI, entre os portugueses.
Mais uma vez, uma demonstração de que sua obra tem como principal mote fazer memória
do povo português através de sua língua.
No trato das identidades nacionais, o capítulo XVI
77
, “Das letras consoantes
aspiradas”, Fernão de Oliveira estende-se sobre as letras aspiradas, dando relevo a algumas
nações, tal como a grega e a latina, nos usos do til. Ao tratar do til como símbolo de
algumas letras, consoantes aspiradas, expressa, diante da utilização e convenção do til, as
vantagens da língua portuguesa logo, a vantagem de ser português:
Isto digo, porque tampouco têm os Latinos vozes aspiradas, como nós, e os
Gregos poucas mais, porque as gentes da Europa falam todas com os beiços,
dentes e ponta da língua, com a qual, pondo-a em diversas partes da boca,
formam diversas letras. E nós, mais que todos, com a boca mais aberta, e as
nossas vozes são mais fora da boca, o que não têm os Hebreus e Arábigos, cuja
própria aspiração, porque eles formam suas vozes dentro quase na fressura,
donde, falando, lançam muito espírito (OLIVEIRA, 1975[1536]:61).
A vantagens da língua refletem mais do que condições de espírito, de sopro e de som,
o privilégio de ser português afinal, um povo aventureiro, desbravador e escolhido por
Deus foi também privilegiado na língua e no costume. A própria escrita é enriquecida pelo
costume, tal como afirma no capítulo XVII, “Das letras excedentes”.
O costume, palavra recorrente na argüição de Fernão de Oliveira, em sua etimologia
latina significa hábito e uso, donde podemos nos referir à prática freqüente, regular.
Mapeando o percurso do autor, é possível notar que estes significados se confirmam, mas
estão enlaçados a um outro modo de olhar:
o costume é a maneira de agir e de pensar
característico de um povo e de uma nação, portanto aponta um modo de ser.
Através do
costume elabora-se e transformam-se a língua, as experiências, as identidades e
diversidades: “e não somente a ortografia é diversa em diversas línguas, mas também em
uma mesma língua se muda com o costume. E, porém, o costume vale muito, sem o qual a
77
Nesse capítulo, são citados: Probo gramático, Plínio e Quintiliano.
95
escritura, porventura, ficaria duvidosa”
(OLIVEIRA, 1975[1536]:63-5).
A linguagem e o
costume se entrelaçam
de tal maneira que não é possível determinar quem ocupa o lugar
central: o costume dá autenticidade à língua que ao ser utilizada, por sua vez, inova os
costumes. A diversidade lingüística não é percebida somente entre línguas distintas mas há
numa mesma língua diferenças de tons e formas: dependendo do hábito e da necessidade a
língua vai se ajeitando ao costume.
78
Continuando a discussão sobre o acolhimento e a formação da língua, no capítulo
XVIII, “Da comunicação das letras”, Fernão de Oliveira discorre sobre a semelhança e a
proximidade de algumas vozes e após enunciar e desenvolver as noções de características e
funções que cada letra possui, aponta para a comunicação e a relação entre elas. As
questões de semelhança e vizinhança de vogais e consoantes são expostas assim como, as
mudanças que podem ocorrer entre elas: “também em se mudar umas em outras, têm as
letras comunicação e guardam a razão de seu parentesco ou vizinhança, como todo u dia
por todo o dia. E isto assim entre as vogais como entre as consoantes” (OLIVEIRA,
1975[1536]:64).
Ao ocupar-se da comunicação das letras, o autor torna a tratar das diferenças
existentes numa mesma língua afirmando: “e não somente a ortografia é diversa em
diversas línguas, mas também em uma mesma língua se muda com o costume”
(OLIVEIRA, 1975[1536]:65) e reafirmando que se os hábitos e as vivências dos homens e
da sociedade não são estáticas. Além das transformações e dos movimentos da sociedade e
da língua, com tal afirmação, o autor indica a diversidade ortográfica de seu tempo: durante
séculos, não houve um padrão, um modelo fixo de regras de escrever.
Da formação e das letras, Fernão de Oliveira passa, no capítulo XIX (o primeiro
intitulado pelo autor) Das sílabas, às sílabas. Continuando o modo de exposição dos
enunciados, da maneira como é corrente em sua gramática, antes de adentrar na exposição
sobre as sílabas propriamente ditas, apresenta a definição do conceito. O sentido grego é
novamente evocado: “sílaba, dizem os gramáticos, é vocábulo grego e quer dizer
ajuntamento de letras” (1975[1536]:65). Segundo o autor, os gramáticos fazem uso da
etimologia grega para definir o conceito de sílaba e é justamente essa identificação do
78
Essa relação da língua com o costume talvez possa ser um bom instrumento para pesquisar a emergência de
dialetos.
96
vocábulo que o autor retoma afirmando: “nós, deixada a interpretação do vocábulo, seja
cujo for, podemos dizer que sílaba é uma só voz, formada com letra ou letras (...)” (1975
[1536]:65).
Para explicar e definir as sílabas, para os portugueses, novamente a utilização do
“nós” comparece, tal como ilustrado na afirmação acima. A escrita gramatical, dialoga o
tempo todo com o leitor, incluindo-o nas reflexões e apresentações: a escrita não se dá no
singular afinal, o português quinhentista ainda não se entende como um singular e seu
modo de entendimento pode ser referendado na utilização do uso do plural, do “nós”, do
“nosso”. A coletividade constitui, a língua portuguesa, o som português, o espírito
português e por fim, o modo de viver português. O português, o “nosso”, adjetiva a ação, a
escrita, a nação: é um qualitativo de identidade que se estabelece nas diferenças e
semelhanças necessárias para moldar uma nação e construir referências - pelo que se
assemelha, uma nação se compõe como tal se distinguindo de outras nações.
Ao definir a sílaba entre os portugueses, o gramático discorre sobre os ditongos; as
particularidades da harmonia e sobre a experiência e propriedade das sílabas portuguesas:
Ditongo dizem ser dicção grega e quer dizer ou significa e diz “dobrado do
som”. Haveis de entender em uma voz com um só espírito: ou é sílaba, na qual
são duas vogais, porque isto queremos entender da sílaba, que sejam em ela
todas as letras que tiver unidas com um só espírito. E destes temos muitos na
nossa língua, mais, cuido eu, que em qualquer outra pode haver, ao menos das
que eu conheço. E esta é uma das particularidades da nossa harmonia
(OLIVEIRA, 1975[536]:65-6).
Suas reflexões são assentadas nos exemplos e comparações em relação aos Latinos,
Castelhanos e Gregos: as semelhanças comparecem e o tom da língua é apresentado como
condição melódica que personifica a língua, fazendo com que se reconheça um povo por
sua sonoridade apresentada como harmônica.
A questão da semelhança perpassa a escrita gramatical referendando o modo de
conhecimento e articulação presentes no século XVI, onde a episteme se dá pela
semelhança. Em Quinhentos, as novidades, as elaborações e os conhecimentos são dizeres
sobre o já dito, desdobramento que através da escrita se inclui ao mundo e como num jogo:.
“a linguagem do século XVI – entendida – não como um episódio na historia da língua,
97
mas como uma experiência cultural global - foi sem dúvida tomada nesse jogo, neste
interstício entre o Texto primeiro e o infinito da Interpretação” (FOUCAULT, 1992:57).
Há desdobramentos de vivências e discursos que revestem a linguagem e o mundo.
Dentre outras expressões, o homem se constitui pela linguagem e os discursos, para aquém
das normas lingüísticas, encontra abrigo nas relações de saber-poder. O enlaçamento da
linguagem com o mundo requerer à escrita que ocupa, no Ocidente, lugar fundamental.
Assim, contemplando as experiências de seu tempo, Fernão de Oliveira, soube
resgatar, em sua primeira obra, o entendimento sobre na linguagem como uma experiência
cultural para além de normas e regras. Talvez nisso consista o fato da Gramática não ser
um esquema normativo e seu objetivo centrar-se no registro de costumes e não na
imposição de regras.
No capítulo XX, “Das letras finais das sílabas”, Fernão de Oliveira aponta para as
condições da língua demarcadas pelo espaço, situação geográfica do povo, pelas vozes,
pelo movimento bucal e por privilégios:
as nossas vozes acabam sempre em voz perfeita e desimpedida, o que não
consentem as letras mudas, mas, ao contrário, atam a boca e cortam as dicções,
que é próprio de mudos e grosseiros, como vemos quase nas gentes de terras
frias, os quais Diudo virgiliana, respondendo a Ilioneu, quer entender que pela
pouca participação do sol são menos perfeitas, e assim vemos que os latinos,
poucas vezes, e aos Gregos, mais poucas ou nunca, fazem o fim de suas dicções
em letra muda. Seja, logo, esta uma condição de nossa língua e não de pouco
primor, que os vocábulos nem sílabas deles, entre nós, nunca acabem em letra
alguma das que por essa e não outra razão chamamos mudas (OLIVEIRA, 1975
[1536]:67).
Após tratar das letras mudas, da dicção ou sílaba de algumas letras e de alguns
ditongos, o autor continua sua explanação no capítulo XXI, “Da ordenação das letras nas
sílabas”. Destacando letras e junções, no capítulo seguinte, “Do início das sílabas”, e no
XXIII, “Dos elos entre as vogais”, salienta que “a nossa língua é mui comprida no
pronunciar das letras e sílabas” (OLIVEIRA, 1975[1536]:69), ressaltando novamente o que
é próprio do português.
O capítulo XXIV, “Das dicções que trazemos de outras línguas”, é de grande
importância, pois aponta para o cenário de contatos e encontros entre povos. Nele é
possível observar, os empréstimos, os aperfeiçoamentos e as utilizações dos sons, da
pronúncia, das letras e da língua. Há um elo entre povos e língua e uma transposição da
98
dicção para a escrita no mínimo interessante para pensar a elaboração gráfica de uma
língua.
As dicções que trazemos de outras línguas escrevê-las-emos com as nossas letras
que nelas soam, como ditongo, filósofo e gramática, porque tudo o mais é
impedimento aos que não sabem essas línguas donde elas vieram, senão quando
ainda forem tão novas entre nós que seja necessário pronunciá-las com a melodia
de seu nascimento; mas nós trabalhemos quanto pudermos de as amansar e
conformar com a nossa (...) (OLIVEIRA, 1975 [1536]:70).
Com um toque de humor, Fernão de Oliveira trabalha não apenas as dicções de
outras línguas como indica a domesticação e o exercício do poder presente entre os povos e
refletidos na língua. “Amassar” e “conformar” são tomados como instrumento e
necessidade: é preciso tornar o outro dócil para configurar a língua e identificá-la com o
povo.
Das semelhanças e diferenças entre Latinos e Portugueses, comparecem no capítulo
seguinte “Das dicções e vogais”, e abordando as particularidades da língua portuguesa,
exemplificando as mudanças de consoantes, no capítulo XXVI, “Da mudança de algumas
consoantes”, o gramático faz novamente uso dos conceitos de necessidade e costume.
Primeiramente afirmando que algumas mudanças “se faz de necessidades em que nos o
costume pôs” (1975[1536]:71), para reafirmar que os costumes são próprios e particulares à
língua.
Fernão de
Oliveira demonstra que a composição e os cortes das sílabas, por muitas
vezes são necessários para responder aos costumes da língua, ou seja, às vezes faz-se
necessário mudar sílabas para obter melhor melodia. Salienta que há mudanças que
ocorrem no campo das representações: mudam-se representações gráficas, mas mantêm-se
os significados.
Também somos amigos de cortar as vozes onde se escrevem
l
ou
r
, quando
depois destas letras se havia de escrever vogal, como silba por sílaba e fizerdes
por
fizeredes
. E nos verbos, nas derradeiras sílabas das segundas pessoas do
plural que acabavam em
des
, agora mudamos o
des
em
is
e ajuntamo-lo em
ditongo com a vogal que ficava antes, como
fazeis
por
fazedes
e
amais
por
amades
. (...) Todos estes são costumes próprios, assim como outros já dissemos
e particulares da nossa língua. E algum tanto parecem compostos, ainda que não
de todos afirmarei ser composição, senão que estas sílabas se mudam ou cortam
para melhor melodia, como neste vocábulo
convém a saber,
ao qual podemos
dividir e dizer como vem a saber, porque assim o ouvi pronunciar, poucos dias
99
há, no púlpito, ao mui reverendo Padre Mestre Baltasar, da Ordem do Carmo,
cuja língua eu não tenho em pouco entre os Portugueses (1975[1536]:72).
Segundo o autor, em seu argumento no capítulo XXVII, “Da quantidade das sílabas
e das vogais”, o conhecimento das sílabas da língua portuguesa é de fácil percepção devido
à boa distinção de voz e clareza melódica. “A quantidade das sílabas da nossa língua é mui
fácil de conhecer, porque as vogais em si dão certa voz distinta as grandes das pequenas, e
as pequenas das grandes” (OLIVEIRA,1975[1536]:72).
As alterações rítmicas e as funções
das vogais são demarcadas por suas vizinhanças que acrescentam ou diminuem as vozes,
tem mais ou menos presença, gastam mais ou menos tempo.
Nesse detalhe, Fernão de Oliveira compara o lugar das vogais portuguesas, latinas e
gregas: os latinos julgam a quantidade de todas as suas sílabas pelas consoantes enquanto
os gregos e portugueses a julgam pelas vogais, pois para gregos e portugueses as vogais
tem diferenças e entre os latinos esta diferença não está presente.
Assim como o soar da letra tem dependência com sua vizinhança e função, o
costume tem relação com o consentimento: se o costume desenha determinadas pronúncias,
não há porque recusá-las.
Estes nomes, eu não os pronunciaria nesta forma, cidadoa, capitoa, viloa, rascoa
e aldeoa, mas pronunciá-los-ia assim: aldeã, vilã e cida. Verdade é que rascã
nem capitã não são muito usados, e contudo zamboa e padoa e quaisquer que o
costume consentir, não vejo outra razão para os escusar, senão a que dei de
correia
e
lampreia
(OLIVEIRA, 1975[1536]:75).
Este capítulo encerra-se com a definição das sílabas e de seus nomes, sinalizando
para o tema do próximo capítulo
79
, o acento:
é necessário que digamos que coisa é sílaba última, penúltima e antepenúltima,
cujos nomes já tratamos e havemos de repetir.
Última
quer dizer derradeira, é
claro;
penúltima
, quase derradeira; e
antepenúltima
, outra antes dessa quase
derradeira. Em qualquer destas se pode assentar o acento das dicções da nossa
língua (OLIVEIRA, 1975[1536]:76).
Para tratar do acento das dicções e suas normas, o capítulo XXVIII definindo seu
entendimento sobre o sentido de acento e alertando que o acento tem correspondência
direta com as dicções e não com a linguagem. Em suas palavras,
79
O capítulo XXVIII foi nomeado pelo autor como
Do acento
.
100
acento quer dizer principal voz ou tom da dicção, o qual acaba de dar sua forma
e melodia às dicções de qualquer língua, digo às dicções somente, porque a
linguagem ainda no ajuntamento das dicções e no estilo e modo de proceder tem
suas particularidades ou propriedades (...) (1975 [1536]: 76).
O acento é concebido como forma das dicções e segundo o gramático, é necessário
que haja apenas um acento em uma dicção. Esta particularidade do acento-dicção da língua
portuguesa marca um diferencial em relação às línguas grega e latina, pois os gregos
“deram em uma dicção dois acentos e, ao contrário, as duas dicções um acento” (1975
[1536]:76) e os latinos, bem os seguiram misturando as dicções chamadas enclíticas com a
dicção precedente, ligando-as, na pronúncia, por um acento. Já os portugueses, consentem a
pronúncia melódica do acento em situações precisas, referendadas na norma própria de sua
língua:
... é verdade na nossa língua que não há dois acentos, senão onde há duas
dicções e não compostas ou juntas em uma. Os lugares deste acento de que
falamos são, entre nós, a última sílaba ou penúltima ou antepenúltima. Daqui
para trás, o nosso espírito nem orelhas não consentem haver acento e a nação ou
gente que outra coisa pode sentir e consentir não se conforma conosco, nem a
música do nosso ouvido e do seu é uma e conforme (OLIVEIRA,
1975[1536]:77).
Após sinalizar a melodia e uso próprio do acento português, há o trato das regras e
das exceções pontuando regras do acento para grupos específicos, como verbos e nomes,
bem como para as dicções terminadas em til e em ditongo. Regras próprias e exceções
80
precisas direcionam um olhar sobre o jeito próprio de ser e fazer da língua materna: trata-se
de caracteres da língua de homens de terras portuguesas. É tão própria e tão comum a
acentuação e a pronúncia portuguesa que por costume se tende a adaptar as outras línguas à
voz e ao ouvido português. O gramático deixa evidente que seu trabalho, sua Gramática,
tem por finalidade elucidar e ensinar as normas da língua para o seu povo assim interessa-
lhe ensinar homens de sua terra.
80
O autor não abordou todas as possibilidades de exceções, mas elegeu algumas. Esta escolha de não
esmiuçar todas as exceções e seus desdobramentos deve-se ao fato de afirmar que “nesta pequena obra não há
lugar para mais particularidades (1975[1536]:81)” e que basta avisar na Gramática, o que os portugueses
fazem em relação aos acentos e suas pronúncias. O autor, em vários momentos de sua obra, refere-se a sua
Gramática
como uma pequena obra dando indícios de questões a serem tratadas em uma obra maior.
101
É tão próprio a nós darmos o acento na última, que muitas vezes corrompemos a
melodia das línguas estrangeiras que aprendemos, querendo-as conformar com a
nossa. E se assim o fazem também outras gentes, eles o vejam: eu falo com os
homens da minha terra (1975[1536]:79).
Têm-se então, confrontos e adaptações melódicas que permeiam a relação entre as
línguas estrangeira e nacional, explicitando um apreço à língua nacional. A língua materna
deve ser mantida e preservada frente a outras terras e gentes e através da voz e da oralidade,
o homem deve explicitar a que nação pertence.
Após dispor dos acentos das dicções, no capítulo XXIX, “Do acento das dicções”, o
autor destaca a importância de trabalhar as próprias dicções considerando três aspectos
essenciais, a saber, em termos de etimologia, ou seja, da sua origem e seus fundamentos; de
analogia que segundo os gregos significa proporção ou semelhança; e da relação entre as
partes da oração. Inicia assim, seu capítulo XXX - Das dicções
81
, explicitando a concepção
de dicção com a qual elabora suas regras e normas.
Dicção, vocábulo ou palavra, tudo quer dizer uma coisa. E podemos assim dar
definição: palavra é voz que significa coisa ou acto ou modo: coisa, como artigo
e nome; acto, como verbo; modo, como qualquer outra parte da oração, as quais,
como significam e que coisas, actos ou modos são estes que significam, di-lo-
emos em outra parte onde falaremos das partes da oração (1975[1536]:81-2).
Como se lê, Fernão de Oliveira não só define dicção-vocábulo-palavra como voz,
coisa e modo como esmiúça os conceitos fazendo relação entre os significados e a língua. O
objetivo desse capítulo é trabalhar as palavras como vozes e, portanto abordar “as
condições das vozes e escritura dessas palavras” (OLIVEIRA, 1975[1536]:82). Retoma-se
a concepção de palavras como ajuntamento de sílabas, bem como de sílabas como
ajuntamento de letras.
82
Referente ao primeiro aspecto, da etimologia, o autor divide as dicções que julga de
interesse para o trato etimológico como “nossas próprias”, objeto do capítulo XXXI,
“alheias”, tema do capítulo XXXII, e “comuns”, explicitada no capítulo XXIII.
As dicções denominadas como “nossas” são, como parece óbvia, dicção que fazem
parte do universo português e que por exigência gramatical devem ser estudadas. É digno
81
Nomeação dada pelo autor.
82
Definições já tratadas em capítulos anteriores.
102
de consideração que as “nossas dicções” são, segundo o autor, “aquelas que nasceram entre
nós ou são já tão antigas, que não sabemos se vieram de fora” (1975[1536]:82-3) e,
portanto, dicções que ou são originárias entre os portugueses ou incorporadas a eles de tal
maneira que se tornam parte integrante do português.
Ao colocar a possibilidade de origens diversas a alguns vocábulos portugueses,
marca-se a presença de línguas estrangeiras na formação da língua portuguesa. Esta
presença é tida por Fernão de Oliveira como uma referência modificada, ou seja, há
expressões e termos antigos que atravessam a história e os contatos dos povos, sendo
adaptadas por um povo, no caso o português, criando uma identidade. Uma vez, tomados os
vocábulos, “havemos de tratar e pronunciar e conformar ao som da nossa melodia e ao
sentido das nossas orelhas” (1975[1536]:84).
Ao afirmar a existência dos empréstimos entre povos e línguas, o gramático
83
afirma
que não só os portugueses utilizam-se de vocábulos emprestados como também emprestam
seus vocábulos. Há uma relação ativa entre vozes e não uma dívida: “eu não quero ter baixo
espírito e cuidar que devo tudo” (OLIVEIRA, 1975 [1536]:84).
A Europa, no século XVI, encontra-se no centro do mundo e as identidades foram
se constituindo no embate das diversidades. As descobertas de terras, os encontros entre
povos, costumes e cultura interagem da formação da nação e da língua: o que é da língua do
outro, torna-se intrínseco a própria língua portuguesa, a ponto de se fazer difícil escavar a
origem primeira do vocábulo, pois os portugueses utilizam-se de raízes latinas e os latinos
apropriam-se de raízes gregas, fazendo seu próprio ajuntamento de letras e sílabas. Além
desse circuito de vocábulos, a dificuldade de escavar a etimologia está no fato de ser
necessário ler, estudar e observar as nuances vocálicas, como também considerar cada
tempo e terra em relação à história de suas dicções.
Fernão de Oliveira questiona o que é próprio do Luso, explicitando referências a
povos anteriores: “Perguntarei: então, que nos fica a nós? Ou se temos de nosso alguma
coisa? E os nossos homens, pois são mais antigos que os Latinos, porque também não
ensinariam? Porque seriam em tudo e sempre ensinados?” (1975[1536]:84).
83
Citando o gramático Quintiliano: “os Latinos usavam de vocábulos emprestados, quando lhe os seus
faltavam, que também da nossa língua tomaram alguns, como nós tomamos da sua” (1975[1536]:84).
103
As questões levantadas ultrapassam o tema da língua fazendo eco na experiência e
na história do homem português logo, a questão nacional é colocada através de uma
inquietação lingüística. Questionar sobre o que fica aos portugueses e o que estes têm de
peculiar, excede o campo da linguagem para um contexto nacional.
As dicções alheias “são aquelas que doutras línguas trazemos à nossa por alguma
necessidade de costume, trato, arte ou coisa novamente trazida a terra” (OLIVEIRA,
1975[1536]:85). Os empréstimos, o alheio, são justificados pelos costumes que se
modificam assim como os vocábulos: “o costume novo traz à terra novos vocábulos”
(1975[1536]:85). O novo é visto como a possibilidade de inserção das diferenças. Neste
sentido, o novo chega a um povo através de contatos e ao impacto da novidade, o português
incorpora vocábulos, cria sons e empenha-se na construção de uma língua que caracterize
sua terra como nação. Aqui, é necessário destacar a expansão marítima como marca de um
comportamento novo: a expansão traz novas possibilidades e novos horizontes ao modo do
português se pensar.
Nenhum povo foi jamais tão longe através dos mares, como o lusitano, cujas
naus percorriam os oceanos em todos os sentidos e cuja bandeira tremulava em
todas as cinco partes do mundo, porque em todas elas Portugal possuía colônias
(COUTINHO, 1976:58).
Diante da expansão territorial e lingüística, da elaboração do império, algumas
dicções alheias tornam-se pouco a pouco comuns. Ao tratar das dicções alheias, Fernão de
Oliveira demonstra que é necessário referir ao gênero e especular se os nascimentos dos
gêneros são portugueses, estrangeiros ou tornam-se comuns, sendo inoportuno procurar a
origem e fonte de todas as dicções, pois os costumes as transformam. Faz-se necessário
selecionar algumas dicções que possuam sentido e utilidade na língua portuguesa.
As dicções comuns, tema do capítulo XXXIII, caracterizam-se pela multiplicidade
de usos e de utilizações das mesmas dicções em várias línguas, de tal maneira, que estas
incorporam em seu repertório as dicções como próprio da língua,
chamamos aquelas que em muitas línguas servem igualmente e o tempo em que
se mudaram de uma língua para outra fica tão longe de nós, que não podemos
facilmente saber de qual língua se mudaram, porque assim as podiam tomar as
outras línguas da nossa, como a nossa delas (...) (OLIVEIRA, 1975[1536]:87).
104
Neste capítulo, no trato das dicções comuns, o autor posiciona-se frente à relação de
outras nações e os empréstimos vocálicos, considerando que estes empréstimos tem
implicações no valor da língua própria e salientando que Portugal não se encontra em
posição subalterna na língua, pois assim como sua terra fez empréstimos de vocálicos,
também construiu os seus próprios. Há então, uma reclamação pelo reconhecimento do
saber português, uma defesa da língua portuguesa.
E assim também dizem ser não somente latinas as nossas palavras e castelhanas
e doutras nações nossas vizinhas, mas de Grécia e doutras gentes mais apartadas
de nós e com quem nunca conversamos, dizem estes curiosos ser muitas dicções
das nossas. E de tal feição se levantam contra a nossa língua e a fazem pobre e
toda emprestada, que lhe não deixam nada próprio, como se não houvera
homens da nossa terra antigos e nobres e sabedores (OLIVEIRA,
1975[1536]:88).
Pode-se notar a referência aos nobres e sabedores demarcando a própria função
social: cabe aos nobres e letrados estabelecer regras, normas e formular conhecimentos. O
próprio Fernão de Oliveira é um homem letrado e por ocupar este lugar social é que redigiu
sua Gramática, dirigida aos letrados que poderiam ensinar os preceitos gramaticais aos
outros homens que tivessem acesso aos estudos e às letras. Prosseguindo sua argumentação,
Fernão de Oliveira indica que a língua é unidade, ou seja, é a unidade da terra responsável
pelo nome do reino, do senhor e da fraternidade entre os vassalos. A unidade lingüística
reflete o desejo de unificação que movia Portugal dos quinhentos.
Finalizando o capítulo, há exaltação da língua própria e defesa do nacionalismo. Por
um lado, marca a representatividade interna do Português e por outro, afirma o Português
como modalidade nacional autônoma, em relação ao Latim e ao Castelhano. Fernão de
Oliveira posiciona-se em relação ao bilingüismo, apontando que respeitar a língua e a
melodia da nação é o único meio do senhor perpetua-se no poder.
E o rei ou senhor, ainda que fosse estrangeiro e viesse de fora senhorear em
alguma terra, havia de apartar sua língua e não deixar corromper com alguma
outra: assim, para ele viver em paz, como também para que seu reino fique e
persevere em seus filhos. Quanto, de minha parte, segundo eu entendo, eu juraria
que quem folga de ouvir língua estrangeira na sua terra não é amigo de sua
gente, nem conforme à música natural dela (OLIVEIRA, 1975[1536]:88).
105
Segue-se assim, no capítulo XXXV, “Das dicções apartadas” uma exposição sobre
as dicções juntas ou compostas fazendo referências ao latim e aos autores Garcia de
Resende, João de Barros e o Mestre Baltasar
84
. O capítulo seguinte, “Das velhas dicções”,
aborda as dicções velhas que “são as que foram usadas, mas agora são esquecidas”
(OLIVEIRA, 1975[1536]:93).
Ao tratar dessas dicções, o autor faz correspondência e
reflexão entre os novos e os velhos, novos e velhos costumes; novas e velhas palavras;
novos e velhos homens. Ressaltando que assim como os homens, os costumes e as palavras
envelhecem e é necessário considerar a duração: as falas têm um tempo e uma história,
estão envolvidas por conceitos, juízos, entendimentos, diversidades e necessidades. Sendo
imprescindível afinar a língua e a voz à um tempo e lugar.
Mas não é muito de maravilhar, diz Marco Varrão, que as vozes envelheçam e as
velhas alguma hora pareçam mal porque também envelhecem os homens cujas
vozes elas são . E isto é verdade que a formosa meninice depois de velha não é
para ver. E assim como os olhos se ofendem, vendo as figuras que a eles não
contentam, assim as orelhas não consentem a música e vozes de seu tempo e
costume. E mui poucas são as coisas que duram por todas ou muitas idades em
um estado, quanto mais as falas, que sempre se conformam com os conceitos ou
entenderes, juízos e tratos dos homens; e esses homens entendem, julgam e
tratam por diversas vias e muitas, ás vezes segundo quer a necessidade, e às
vezes segundo pedem as inclinações naturais (OLIVEIRA, 1975[1536]:94-5).
“Das novas dicções”, no capítulo XXXVII, o autor alerta para o perigo de se
estabelecer vocábulos de todo novos. “Das dicções usadas”, tema do capítulo XXXVIII,
próprias do tempo e da terra, são necessárias e atuais, pois dizem respeito a todos, todos
falam e sendo assim é de uso habitual e harmônico. Essas dicções são denominadas gerais,
correspondentes a todos ou particulares, cada terra e tempo criam seus conceitos e suas
condições.
Existem diferenças dos vocábulos devido ao próprio uso da língua e do lugar social
que esta ocupa. Fernão de Oliveira traz à cena a questão da permissão de deslocar
vocábulos, ao remeter aos vocábulos latinos à impossibilidade de adaptações pelos
portugueses, considerando à relação dos homens e da língua. De acordo com o autor, as
questões não são próprias da língua ou dos vocábulos, mas dos homens.
84
Contemporâneos de Fernão de Oliveira.
106
O que me espanta muito é que na língua latina, na qual, depois que os Latinos
acabaram, não temos nós, que não somos Latinos, licença de pôr nem tirar, nem
mudar nada, nesta língua latina, digo, vejo entre os letrados dela, assim como
são diversas faculdades, haver diversos vocábulos e jeitos de falar, e, dizendo
todos uma mesma coisa, não se entendem entre si. Mas os gramáticos zombam
dos lógicos e os sumalistas apupam aos retóricos, e assim de todos os outros. O
qual defeito não sei cujo é, ainda, porém, que não sei se lhe chamam eles defeito,
mas eu julgo-o ser grande, e não da língua: será, logo, dos homens (OLIVEIRA,
1975[1536]:98).
Ao colocar em evidência seu mal estar em verificar desentendimentos entre homens
de uma língua e de uma nação, Fernão de Oliveira define a função primordial da língua
como elo de comunicação e entendimento entre os homens.
... a primeira e principal virtude da língua é ser clara e que a possam todos
entender, e para ser bem entendida há-de ser a mais acostumada entre os
melhores dela e os melhores da língua são os que mais leram e viram e viveram ,
continuando mais entre primores sisudos e assentados, e não amigos de muita
mudança (OLIVEIRA, 1975[1536]:98-9).
A clareza dá acesso à comunicação e ao entendimento. Ao explicitar a virtude da
língua o autor marca um momento importante da sua Gramática apontando não somente o
fundamento da língua, mas também a necessidade de haver regras para se obter clareza. De
acordo com o autor os que mais leram ditam as regras e, portanto a clareza vocálica. Neste
sentido, os letrados são os que lêem, participam das experiências sociais e sabem olhar,
sendo os responsáveis pelo fazer da língua normativa.
O assunto das dicções é encerrado no capítulo XXXIX, “Das dicções próprias”,
onde são tratadas as dicções próprias, as dicções mudadas, dicções primeiras e dicções
tiradas. Iniciando assim, no capítulo XL
85
o tema da analogia do grego análogos,
proporcional, semelhante, que é pertinente, segundo Fernão de Oliveira, para mostrar que
os portugueses “sabem falar e têm concerto na sua língua” (1975[1536]:102).
A analogia situa-se no lugar mesmo em que através da diferença se faz semelhante.
Nomes e verbos são diferentes, mas pelos nomes é possível conhecer os verbos assim
como dos verbos conhece-se os nomes e de verbos e nomes diferentes em si pode-se
extrair coisa e voz semelhantes. Para abordar as diferenças e semelhanças o autor adverte
que é necessário tratar da declinação e deixar claro o que se entende por esse conceito.
85
Intitulado pelo autor como
Da analogia
.
107
Essa advertência é dirigida: “... saberemos agora primeiro que coisa é declinação
para que alguns fracos gramáticos se não enganem” (1975[1536]:102).
86
A declinação é
concebida como uma variação possível dos nomes e das conjugações verbais, onde
semelhanças e diferenças apontam para a significação das coisas. A saber, a declinação se
dá sempre de uma raiz vocálica, ou seja, de um princípio donde vozes declinam.
“Declinação é diversidade de vozes, tiradas de um primeiro e firme princípio, por respeito
de diversos estados das coisas” (OLIVEIRA, 1975[1536]:102).
Ainda sobre as declinações, o capítulo XLI, “Das dicções derivadas”, faz referência
à divisão de Marco Varrão
87
que nomeia as declinações como naturais e voluntárias.
Fernão de Oliveira aborda as regras e as leis de formação de tais declinações e da língua,
preocupando-se com as derivações e diferenças entre os nomes e os verbos, reafirmando
que em todas as línguas, as diferenças, semelhanças e declinações se fazem recorrentes. Ao
tratar dos usos e aprimoramentos de vozes, com o intuito de tratar da analogia lingüística,
o autor utiliza-se de analogia, em moldes de escrita literária:
e tudo isto não é muito fazer-se assim, porque entre os filhos de um só pai, uns
são mui feios e outros parecem melhor; e parece-se um com seu pai e outro com
sua mãe e outro com nenhum deles; e na lã de uma só ovelha se acha alguma boa
e outra não tanto, e na de muitas juntamente se tira uma para bons panos e outra
para não tão finos; e, por conseguinte, umas terras e árvores sob uma mesma
constelação dão fruto e outras não aproveitam para coisa alguma; e umas por si
multiplicam, e outras regadas e curadas, depois de muito trabalho, não querem
crescer ou se secam. Outro tanto é nas vozes, porque umas não forma de si nada,
e outras se podem multiplicar; e algumas parecem a suas primitivas ou primeiras
de onde descendem, e outras não, e outras muito, e outras menos, e algumas
formações têm melhor som e música que outras e são mais usadas (OLIVEIRA,
1975[1536]:106).
As analogias e declinações são partes integrantes de todas as línguas, pois todas são
formadas por costumes que devem ser respeitados e rigorosamente considerados. É
justamente, neste rigor que Fernão de Oliveira define o intuito da Gramática. Pela primeira
vez, a gramática é citada e nomeada como arte, “arte de gramática
88
”, que deve conter além
86
Ao fazer a referência aos “gramáticos fracos”, Fernão de Oliveira indica que a sua
Gramática
é consistente
e não se enquadra entre gramáticas superficiais.
87
Marco Varrão é citado por Fernão de Oliveira, oito vezes no decorrer de sua obra.
88
Nota-se aqui a utilização da denominação clássica grega.
108
de regras e formas, usos e costumes de uma nação. Segundo o autor, a parte da analogia é
de fundamental importância para essa arte porque é justamente na parte analógica da
gramática que os costumes serão tratados, de maneira mais direta, como elo entre homens e
letras. A gramática não deve ter como finalidade última impor as maneiras de falar como
formas externas, mas deve através de regras (de bons costumes) e normas transmitir a
linguagem de homens com intuito de aprimorar sua melodia e se conhecimento.
.... admoestando-nos que em cada língua notemos o próprio costume dela, cá
esta arte de Gramática em todas as suas partes e muito mais nesta da analogia, é
resguardo e anotação desse costume e uso, tomada depois que os homens
souberam falar, e não lei posta que os tire da boa liberdade, quando é bem
redigida e ordenada por seu saber, nem é divindade mandada do céu que nos
possa de novo ensinar o que já temos e é nosso, não embargando que é mais
divino quem melhor entende. E, assim, é verdade que a arte nos pode ensinar a
falar melhor, ainda que não de novo: ensina aos que não sabiam e aos que
sabiam ajuda (OLIVEIRA, 1975[1536]:106).
O capítulo XLII, “Das dicções e exceções”, trata das declinações naturais, “comum
a todos”, citando regras gerais e exceções particulares. Para só depois trabalhar os casos
particulares de tais dicções como artigo, nomes e verbos. Os artigos são tratados em suas
diversidades de vozes, números e casos da língua portuguesa, pois não interessa ao autor
defini-los uma vez que o cerne de sua gramática está nas “formas ou figuras de vozes ou
dicções” (OLIVEIRA, 1975[1536]:109).
A exposição inicia-se explicitando as nomeações atribuídas aos artigos pelos
Latinos e pelos Portugueses seguindo-se a defesa aos usos portugueses e a necessidade de
um nome próprio. Retorna-se aqui a questão da consonância melódica e da identidade da
língua como marco entre homens e terra. O poder e o lugar que o rei ocupa é eixo para
pensar o nome próprio como sinalizador da diferença e faz eco no modo de organização
social portuguesa.
Aqui quero lembrar como em Portugal temos uma coisa alheia e com grande
dissonância, onde menos se devia fazer, a qual é esta: que a este nome rei
damos-lhe artigo castelhano, chamando-lhe el-rei. Não lhe devíamos de chamar
senão o rei, posto que alguns, doces de orelhas, estranharão este meu parecer, se
não quiserem bem olhar quanto nele vai. E com tudo isto, abasta para ser a
minha melhor música que há destes, porque o nosso rei é senhor, pois tem terra e
mando: tenha também nome próprio e distinto de si, e a sua gente tenha fala ou
linguagem não mal misturada, mas bem apartada. Para que seja
o rei
mais nosso
109
dizer del-rei, ajuda-me muito o natural da nossa língua, o qual imitam os
castelhanos, quando nos querem arremedar, dizendo: manda o rei de Portugal, e
não dizem
Manda el-rei de Portugal
, que a eles era mais próprio dizer, mas isto
fazem cuidando que assim falam mais português, e, de feito, não se enganam
(OLIVEIRA, 1975[1536]:111-2).
Depois de exemplificar a organização e a melodia da língua através do exemplo do
El-rei, Fernão de Oliveira inicia o capítulo XLIII, “Do artigo” afirmando que:
Não dizemos ainda agora neste lugar nem livro que coisa é artigo, nem
tampouco mostramos qual ofício tem, porque aqui não falamos senão das formas
ou figuras de vozes ou dicções e para isto só abasta saber que os artigos na nossa
língua diversificam ou variam a forma de sua voz em gêneros, números e casos
(1975[1536]:109).
O capítulo seguinte, “Dos gêneros”, tem como tema os nomes e suas declinações em
gêneros e números. O autor, através de exemplos, discorre sobre o tema com a intenção de
compreender apenas algumas variações de gênero e números. O fato de não ser minucioso e
de não fazer um tratado sobre a temática está justificado ao afirmar que “o intento desta
parte da Gramática não é mais que dar notícias das vozes, e não definições ou determinadas
declarações das coisas” (OLIVEIRA, 1975[1536]:114).
Este argumento é válido também para o capítulo seguinte, XLV, “Dos nomes e dos
números”, que corresponde ao tema das vozes dos nomes. Fernão de Oliveira trata dos
nomes e seu plurais considerando suas terminações e concluindo que
Visto como variam nos nomes seus lugares, podemos dizer que temos dito
quatro declinações, como vem a saber: a primeira, que somente acrescenta letra,
e a Segunda, que acrescenta sílaba; a terceira muda letra e a quarta também
muda sílaba.(OLIVEIRA, 1975[1536]:118).
Ao finalizar o capítulo, o autor novamente enaltece a língua portuguesa revelando a
sua proporção vocálica e melódica em comparação às línguas gregas e latinas.
Qualquer forma ou genero que os nossos nomes têm no singular, esse guardam
também no plural, porque nisto, assim como em outras coisas, guarda a nossa
língua as regras da proporção, mais que alatina e grega, as quais têm em suas
dicções muitas irregularidades e seguem mais o sabor das orelhas que as regras
da razão. Assim como nós também às vezes deixamos as regras gerais, porque o
bom costume e sentido nos mandam tomar algumas particularidades
(OLIVEIRA, 1975[1536]:119).
110
Citando Marco Varrão, o capítulo XLVI, “Das coisas e dos pronomes” é composto
por um breve comentário sobre a declinação de casos nas línguas latina e grega. O capítulo
seguinte, “Dos verbos”, tem como assunto a analogia dos verbos, havendo referência a João
de Barros, preocupando-se com as diversas vozes verbais e não com a definição e
explanação minuciosa sobre os verbos em si.
Sobre as conjugações, no capítulo XLVIII, “Das conjugações”, as define
como“ajuntamento de diversas vozes que, segundo boa ordem, se ordenam, seguindo-se
umas atrás das outras em os verbos” (1975[1536]:122). O autor finaliza seu capítulo
lembrando que não há na língua portuguesa um caderno de verbos e que não cabe à sua
obra, neste momento, formular este caderno, esta obra tem como finalidade maior “apontar
os princípios da Gramática que temos na nossa língua” (OLIVEIRA, 1975[1536]:123).
O penúltimo capítulo, XLIX, “Da composição”, diz respeito à composição da língua
ou “concerto que as partes ou dicções da nossa língua têm entre si, como em qualquer outra
língua” (Oliveira, 1975[1536]:123).
No que tange às mudanças de gêneros e números, o
autor ocupa-se da questão da proporção e desproporção presentes nas línguas, fazendo uma
apologia, à língua, permeada pela exaltação nacionalista, própria do Renascimento.
Acontece muitas vezes e são essas línguas havidas por boas, porque dizem que
nem sempre é virtude seguir as proporções da arte, mas que usarem de algumas
suas propriedades em particular as afermosenta. Também a nossa tem o mesmo,
portanto não nos desprezemos dela, a qual foi sempre e agora é tratada por
homens que se entendem e sabem o que falam, cuja imitação nos fará galantes e
primos a nós e a nosso falar, se a quisermos seguir (OLIVEIRA,
1975[1536]:124).
Este capítulo encerra as articulações gramaticais e nacionais de Fernão de Oliveira.
Em sua anotação, nada mais resta a dizer sobre a formação da língua e suas vicissitudes.
O capítulo L
89
, “Da constituição e originalidade da obra”, último da obra
,
configura-
se por um posicionamento explicativo do autor sobre a constituição da sua gramática. Além
de ressaltar as características e funções de um homem letrado, Fernão de Oliveira deixa
89
Seu último capítulo pode ser também o início de uma discussão ou o início da própria obra.
111
transparecer seus estudos e leituras trabalhosas para a confecção de sua Gramática.
Adverte,
eu não dou licença que alguém possa ser meu juiz, senão quem ler os livros que
eu li, e com tanto trabalho, e tão bem ou melhor entendidos. E ainda assim, a
sentença há-de-ser que para emendar meus erros escrevam da mesma maneira
outras obras melhores. E senão, tudo o que mais fizerem é murmurar, que não
cabe entre homens sabedores, pois quanto à dos ignorantes não faço conta
(1975[1536]:125).
O saber, o conhecimento e os escritos impressos, autenticam a escrita de Fernão de
Oliveira. É digna de atenção à observação que o gramático faz de seu trabalho, consciente
de que não é um tratado acabado e que há possibilidades de erros ou superficialidades. Em
suas palavras,
Ser eu curto em meu escrever e não ser mui ordenado com bons exemplos, e a
falta de algumas coisas que devera escrever e não fiz, e a dissonância de alguns
termos novos nesta arte que pus, usando vozes próprias da nossa língua, tudo
ante quem não folga de dizer mal terá escusa com olhara novidade da obra, e
como escrevi sem ter outro exemplo antes de mim (OLIVEIRA, 1975[1536]:
125-6).
Encerra-se assim nas palavras de Fernão de Oliveira a sua primeira obra, início de
um percurso no mundo escrito que terá desdobramentos em solo português através também
de obras posteriores.
A escrita gramatical de 1536 é a primeira descrição articulada sobre a melodia e
identidade da língua entendida como um sistema de possibilidades que constrói suas
regularidades a partir do contato e do desenvolvimento cultural. Suas superficialidades e
equívocos quanto à etimologia
90
, não desmerecem nem diminuem a grandeza de sua obra.
O autor é cônscio de algumas debilidades de sua Gramática, da necessidade de
aprofundamento de alguns temas mas ao mesmo tempo esclarece que o aprofundamento de
assuntos não ocorreu porque há uma previsão de uma obra maior - que acaba por não ser
escrita.
A escrita ensaística de Fernão de Oliveira já é em si uma novidade e uma abertura
para a reflexão lingüística de seu tempo. O autor escreve sem ter em língua portuguesa
90
Os equívocos quanto à etimologia podem ser ilustrados no capítulo XXXI, onde Fernão de Oliveira afirma:
“Ora, pois, se, como adivinhando, dissermos que homem se chama porque é o meio de todas as coisas, ou
porque está no
meio
do mal e do bem; e se dissermos que
mulher
se chama porque é
mole
; e
velho
porque
viu
muito; e
antigo
porque foi a
ntes
de agora; e
tempo
porque
tempera
as coisas (...)” (1975[1536]:83).
112
nenhum exemplo que o anteceda e das mãos de Germão Galharde sai dos prelos, o texto
inaugural do período moderno. Em meio à Renascença, a obra de Fernão de Oliveira, a
primeira de cunho lingüístico sobre o falar português configura-se como o estudo pioneiro
sobre a língua enraizada à cultura e ao modus vivendi da nação portuguesa.
Para além de regras do bem falar, o primeiro gramático da linguagem portuguesa fez
um registro e uma aclamação da língua corroborando com o momento de construção e
consolidação da identidade nacional portuguesa. Sua obra gramatical pode ser considerada
um documento histórico de rica importância para o estudo da sociedade portuguesa de
quinhentos, uma vez que nela o autor conseguiu com grande competência cumprir o seu
objetivo de fazer memória do povo português e de Portugal, através da língua.
113
Escrita e timbre do impressor Germão Galharde na finalização da
Gramática.
114
Dos
Desdobramentos
s achamentos e a arte da imprimissão, associados à notação do
português, realizada por Fernão de Oliveira compõe o cenário de Portugal do século XVI,
115
explicitando a complexidade e a diversidade estruturante do período da Renascença. Sem
dúvida, esse é um dos períodos mais complexos da história: muitos elementos, novidades e
possibilidades se imbricaram na ampliação do horizonte do português quinhentista;
numerosas relações entre poder, política, sociedade, hábitos e costumes se consolidaram
nos valores do humanus moldando a mentalidade do povo português.
Todo o projeto de emancipação da Europa ao mundo contou com instrumentos e
estratégias desenvolvidas através do mar, da arte, do livro impresso e da utilização desses
elementos como mecanismos de constituição da nação. O desejo de abertura e expansão
territorial desembocou no alargamento do pensar e do ser português, uma vez que o homem
português desejou e trabalhou para perpetuar seus traços nas mais diferentes regiões e entre
os diferentes povos.
A máxima aceita e difundida entre os portugueses fixava-se em ensinar seus
costumes e assim, possibilitar a aproximação e as semelhanças entre os povos achados e os
moldes do português. Ensinar a outros povos, mais do que civilizar significava instaurar um
elo entre ‘as gentes’ e demarcar o modo de ser do português, consolidando assim a
identidade da nação.
Entre homens letrados, a língua de cultura era designada pelo latim e este ensinado
nas Universidades e Colégios, no entanto como já citado nesse trabalho, o latim foi
perdendo seu estatuto hegemônico e aos poucos, foi deixando de ser a única possibilidade
de produção, construção e assimilação de conhecimento e saber. Dentre outros fatores, um
dos elementos de revisão da utilização e da necessidade do latim se deve ao fato de que o
latim não circulava no cotidiano português, ou seja, o latim não era falado. O falar natural
do povo português estava associado ao que se convencionou chamar de latim vulgar,
portanto a um tipo de linguagem constituída no próprio cerne das relações.
A língua falada e vivida foi tomando dimensão, ultrapassando as relações de contato
para aos poucos ganhar lugar de língua de ensino e ser reconhecida como um elemento
próprio da nação. A língua portuguesa, o português, travou relação entre a fala e a escrita.
Essa acepção da língua tem intrínseca relação com fatos sociais que dinamizaram Portugal
de Quinhentos como: o encontro entre os povos, através dos achamentos; a necessidade de
comunicação e entendimento para a expansão colonial; do desenvolvimento das relações e
do comércio intercontinental; a invenção dos tipos móveis – por Gutenberg - e a difusão da
116
imprensa; o alargamento da língua literária; e “o transbordamento da língua portuguesa dos
limites da comunidade em que inicialmente era usada” (MATTOS e SILVA).
No século XVI, com a fixação da imprensa, embora os manuscritos ainda
circulassem, houve ampla divulgação da produção de textos, produções clássicas
reapareceram, escritos atuais floresceram, facilitando a elaboração de estudos e teorias das
mais diversas ordens, culminado numa certa democratização da cultura. Aos poucos, a
cultura letrada experimentou a laicização; o português começou a ocupar lugar de
prestígio
91
como língua; e a escrita em vernáculo passou a ter mais receptores.
Diante desse cenário, começaram a surgir registros, investigações e reflexões sobre
o português, desencadeando a abertura da história lingüística e a normalização da língua. O
texto escrito e a oralidade mantiveram-se em relação e aos poucos, no decorrer do século
XVI, foram tomando caminhos próprios, ou seja, a escrita começou a fixar regras e formas
para a utilização da língua enquanto a oralidade continuou a se formar por uma diversidade
de vozes e moldes. Importante ressaltar que, tal como foi apontado no Capítulo: Da
Imprimissão, antes da normalização da língua portuguesa, o português já era escrito (por
volta do século XIII), ou seja, a língua portuguesa escrita aparecia como um registro da
língua falada e ouvida. Portanto, A Gramática da Lingoagem Portuguesa de 1536, é
resultante das questões culturais e históricas que propiciaram a elaboração da obra.
Nesse sentido, a língua teve um lugar de grande importância à medida que
compareceu como instrumento de difusão de cultura e de educação. Entendendo educação
como toda aprendizagem e todo ensinamento acolhido e desenvolvido pelas relações e,
portanto como um exercício de vivência, é possível afirmar que cultura, educação e língua
coexistem na organização da sociedade. Essa coexistência deixou sua presença no registro
de 1536 de Fernão de Oliveira, primeira anotação feita sobre a língua portuguesa e escrita
em português demonstra o modus vivendi do povo português quinhentista, fixando a
importância da identidade e das peculiaridades, marcas que diferenciam os povos uns dos
outros. A Gramática além de fazer memória do que estava acontecendo na língua e nas
relações em Portugal dos Quinhentos, saiu dos prelos no momento em que o projeto
91
Apesar do prestígio do português, a cultura latina assim como a língua e o conhecimento do latim
continuaram a ser de grande valia, influenciando a sociedade portuguesa.
117
político de expansão territorial, comercial e de construção da nacionalidade estava em plena
efervescência.
Especificamente na Grammatica da Lingoagem Portuguesa, 1536, de Fernão de
Oliveira, a voz comparece no texto escrito: o autor enfoca a oralidade e os aspectos
fonéticos da língua, demonstrando a identidade e as particularidades do povo pela estrutura
melódica do falar. A partir dessa obra de cunho inaugural dos estudos gramaticais sobre o
português, outras reflexões e outros escritos foram desenvolvidos com o intuito de se
pensar e fixar a língua portuguesa, já entendida como elemento de identidade nacional.
Em meio ao cenário de consolidação nacional, o primeiro registro da língua
materna apresenta-se como uma descrição cuidadosa do modo de ser português e a
elaboração que Fernão de Oliveira faz demonstra a língua como expressão da educação: a
língua é instrumento para educar!
Através da língua, constroem-se identidades e consciências e o projeto de
particularizar a língua portuguesa em relação à língua latina estava associado ao próprio
reconhecimento do português como povo e como língua. O registro da língua e a
construção das reflexões teóricas encontravam-se associados às questões vivenciadas em
Portugal no século XVI: as aventuras nos mares, nas terras, nos contatos e no mundo das
letras evocavam a experiência do português renascentista.
No âmago dos achamentos e das imprimissões, o trabalho descritivo de Fernão de
Oliveira trouxe uma proposta de aprendizagem da língua com o objetivo de difundir sua
compreensão e sua utilização para que fosse possível ensinar a “muitas gentes”. É
justamente a partir do registro e dos primeiros ensaios sobre a linguagem portuguesa,
depreendido pelo autor que as normas e o rigor da língua foram pensadas e articuladas.
Apesar de sua Gramática não ter um caráter normativo, Fernão de Oliveira aponta a
necessidade de normalização da língua para a formação da identidade e transmissão do
modo português de falar e pensar.
Sua preocupação acentuada na fonética demonstra a relevância da fala e da
comunicação para a constituição da identidade: a notação de 1536 é um ensaio sobre a
língua, a cultura e a educação do homem português quinhentista. Através das letras, o autor
apresenta uma larga definição do costume e do entendimento: a língua é abordada como um
118
sistema de possibilidades e estabelecendo semelhanças entre os povos e as línguas, Fernão
de Oliveira apresenta a cultura portuguesa do século XVI como uma cultura da analogia.
No século XVI, século das novidades, conhecer significava “estabelecer
semelhanças”, instrumento pelo qual o homem português quinhentista pôde se pensar e
articular uma metalinguagem do português. Portanto, a obra de Fernão de Oliveira é
expressiva e atenta à realidade de seu tempo, demonstrando a importância da instrução para
o modo de organização da sociedade.
Pelo viés das teorias sobre a natureza das línguas e da linguagem - “característica da
alma racional”; das apresentações sobre a mudança lingüística e às variações da língua
histórica, Fernão de Oliveira faz uma defensão da língua associada ao desenvolvimento
cultural. A língua é constituída historicamente e sua articulação diz respeito aos costumes e
às normas sociais. A função elementar da língua é ser expressão do pensamento e meio de
comunicação e como instrumento de educação deve ser clara de maneira que todos possam
entendê-la e ter acesso à aprendizagem e ao conhecimento.
Assim, a Gramática apresenta as semelhanças e diferenças entre línguas, povos e
vozes demonstrando que através das semelhanças entre as línguas, os povos e os
conhecimentos, as diferenças comparecem e ao serem incorporadas, transformam-se em
identidades. Fernão de Oliveira fez-se um educador à medida que através das diferenças
anotou, analisou, desenvolveu e vivenciou a identidade.
Fernão de Oliveira está entre os autores renascentistas portugueses que ligados à
vida prática, enalteceram e fixaram o sentimento pátrio. Através do uso da língua materna,
os homens se comunicavam e se constituíam, através da reflexão sobre a língua, autores
elaboravam teorias. Na questão da língua, idéias, ideais e valores comparecem na educação,
sendo esta elemento constitutivo da cultura e da língua, uma vez que através das
semelhanças e diferenças, consolida a cultura da analogia.
119
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Das Imagens
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Créditos
Do Prefácio:
P.21 - Imagem de Fernão de Oliveira foi esculpida por Lagoa Henriques a
pedido da Biblioteca do Estado-Maior da Armada – Lisboa: Disponível em:
www.marinha.pt/.../revista/ra_jul2003/fig2_3.jpg
Dos Achamentos:
P.28 - Batalha de Ourique: Disponível em:
http./1 oslusiadas.no.sapo.pt/foto40.gif
Pp.31 a 33 - Bandeiras portuguesas: Disponível em:
www.lusotopia.no.sapo.pt/indexPTbandeira.html
P.33 - Desenho de caravela portuguesa do século XVI: Disponível em:
www.inet.sitepac.pt/caravela.jpg
P.44 - Estudo comparativo, 1557, entre o esqueleto humano e o de uma ave
por Pierre Belon./ Planche comparant lê esuqlete d’um être humain et
d’um orseau. Extraite de l’Histoire des oyseaux de Pierre Belon.. In: DEBUS,
Allen G. O Homem e a Natureza no Renascimento. Tradução de Fernando Magalhães.
Portugal: Porto Editora, 2002, p.39.
Da Imprimissão:
P.52 - Trabalho individual do Copista: Disponível em:
http://ar.geocites.com/el_observador_del_sur/copista.jpg
Vários Copistas trabalham no exercício das cópias. Há quem dite o texto
que deve ser transcrito:
www.edicionesemileanenses.com/jpg/copistas.jpg
P.56 - Trabalho com a prensa em oficina de imprimissão: Disponível em:
www.universia.pr/memoriapapel/grafdicas/map_gutenberg.jpg
P.65 - D.Afonso V, introdutor da imprensa em Portugal: Disponível em:
http://couramagazine.blogs.sapo.pt/
Da Notação:
128
P.77 - Capa da primeira edição da Gramática: Disponível em:
www. bn.pt – Arquivo
da Biblioteca Nacional
P.109 - Escrita e timbre do impressor Germão Galharde na finalização da
Gramática: Disponível em:
www. bn.pt – Arquivo da Biblioteca Nacional.
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