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Não há dúvida que as navegações deste reino, de cem anos a esta parte, são as
maiores, mais maravilhosas, de mais alta e mais discretas conjecturas, que as de
nenhuma outra gente do mundo. Os portugueses ousaram cometer o grande mar
Oceano. Entraram por ele sem receio. Descobriram novas ilhas, novas terras,
novos mares, novos povos e, o que mais é, novo céu e novas estrelas. E
perderam-lhe tanto medo, que nem a grande quentura da torrada zona, nem o
descompassado frio as extrema parte do sul, com que os antigos escritores nos
ameaçavam, lhes pode estorvar, descobrindo e passando o temeroso Cabo de
Boa Esperança, o mar da Etiópia, de Arábia, de Pérsia, puderam chegar à Índia.
Passaram o rio Ganges, tão nomeado, a grande Taprobana, e as ilhas mais
orientais. Tiraram-nos muitas ignorâncias e amostraram-nos ser a terra maior
que o mar, e haver aí antípodas, do que arte os santos duvidaram, e que não há
região que nem por quente nem por fria se deixe habitar. E que num mesmo
clima e igual distância da equinocial, há homens brancos e pretos e de mui
diferentes qualidades. E fizeram o mar tão chão, que não há quem hoje ouse
dizer que achasse novamente alguma ilha, alguns baixos ou sequer algum
penedo que por nossas navegações não seja já descoberto (NUNES, 1537, Apud,
DIAS, 1973:19).
As palavras de Pedro Nunes
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estruturam um registro, dentre outros, que indica o
movimento expansionista português e a glorificação criada pela atividade marítima e, por
conseguinte, pelos descobrimentos. A exaltação dos achamentos marítimos e terrestres,
mais do que pensada, foi incorporada pelo povo português afinal, na efervescência dos
acontecimentos e no movimento de descoberta não era possível avaliar teoricamente as
implicações e conseqüências dessas ações portuguesas: era preciso viver e
esse é, na verdade, um momento magnífico. Quem abrange do alto os fatos da
história universal, entre os fins do séc. XV e os meados do seguinte, tem a
impressão deslumbradora de que uma gigantesca e poderosa mão, num gesto
brusco, rasgou de alto e baixo o espesso véu que encobriu a terra, para a
entremostrar aos olhos assombrados dos homens, no esplendor da sua virgindade
e formosura. Dera-se o Descobrimento! É difícil para nós, contemporâneos do
avião e do rádio, para quem o planeta se desdobra todos os dias nas páginas de
jornais ou no écran do cinema, imaginar o que esse fato significou para os
homens daquela época, confinados, povo a povo, ao seu pequeno mundo. Dois
oceanos, o Atlântico e o Índico, cuja imensidade e intercomunicação eram
desconhecidas, são unidos entre si e rasgados, pela primeira vez, de alto a baixo
e de lado a lado. Humanidades novas, totalmente ignoradas, surgem aos olhos
dos navegantes, na orla ou no interior dos continentes. E, ao mesmo tempo,
plantas, flores, selvas, feras, aves, astros, povos, artes e religiões, desenrolam
formas, cores, sabores, aromas, esplendores, crenças ecreações do espírito,
inimaginadas! Não há na história maior deslumbramento! Em boa verdade, o
homem do século de Quinhentos realizou um espantoso romance a Julio Verne:
foi de súbito arrojado sobre um planeta novo e imenso. E essa torrente de vida
nova, o que o arrastou, havia fatalmente de abalar-lhe e fecundar-lhe o
pensamento, a moral e a fé. Só hoje começa a compreender-se, nas suas
diretrizes, amplitude e conseqüências, o movimento geral dos Descobrimentos,
em especial, dos portugueses (CORTESÃO, Apud, SILVA NETO, 1952:443-4).
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A afirmação citada encontra-se originalmente no livro
Tratado em defensão da arte de marear
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