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ocorressem, por isso era crescente o número de mulheres namoradeiras. Como pode ser
percebido no discurso do narrador da obra Memórias de um sargento de milícias:
Nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas, pelas frestas
da rótula: então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora; aqueles
passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de
missa na Sé, ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás; as
visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha saudades, e tudo aquilo
enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia
tão belo e tão agradável. Tendo-se casado com José Manuel para seguir a
vontade de D. Maria, votava a seu marido uma enorme indiferença, que é
talvez o pior de todos os ódios.
Pois a vida de Luisinha, depois de casada, representava com fidelidade
a vida do maior número das moças que então se casavam: era por isso que
as Vidinhas não eram raras. (ALMEIDA, 1999: 111)
Ainda em relação à intenção moralizante da obra, Massaud Moisés constata
que o narrador condena as uniões ilegítimas e assegura que os casórios de arranjos
caricaturam a família, e defende como tônico da saúde pública o casamento por amor, afinal
realizado por Leonardo e Luisinha.
Dando continuidade a seus estudos sobre a obra, Massaud Moisés aborda a
classificação das Memórias como uma novela, sobretudo, uma novela picaresca. Para
esclarecer a natureza do pícaro, Massaud Moisés faz alguns apontamentos citando Ludwig
Pfandl. O pícaro
é um moço nascido quase sempre de pais pobres e de baixa extração,
raramente honrados, o qual, por culpa de más companhias, ou por falta de
instrução, ao ver-se lançado na confusão da vida e entregue a si próprio, cai
na vadiagem, afasta-se do trabalho e luta contra a vida como pode, com
ousadia e falta de escrúpulos, com enganos, malícias e más artes, querelas e
furtos. (...) Suas ocupações são o pedir esmola, os baixos trabalhos de
ocasião, o vagar preguiçosamente de cidade a cidade, o trato com
caminhantes, (...), o jogar baralho com vantagem, em uma palavra, o
exercício de toda classe de enganos e intrigas e de brincadeiras graciosas ou
de mau gosto. Mas não é de modo algum mulherengo nem beberrão. Seu
caráter foi envilecido pela ascendência umas vezes, sempre pelo meio
ambiente. A necessidade de viver o faz desavergonhado e inescrupuloso;
mas, apesar da fome e dos fracassos, do sol e dos aguaceiros em linguagem
real e figurada, não desejaria ser diferente do que é, e não trocaria sua livre
e despreocupada existência por uma sedentariedade honorável, por uma
cama e um teto. Isto é, em geral, um pícaro. (MOISÉS, 1985: 211)