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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG)
FACULDADE DE LETRAS (FALE)
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS LITERÁRIOS (PÓS-LIT)
CRÍTICA, POÉTICA E RELAÇÕES DE GÊNERO: UMA
RELEITURA DE MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE
MILÍCIAS
Edwirgens Aparecida Ribeiro Lopes de Almeida
Belo Horizonte, março de 2007
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Edwirgens Aparecida Ribeiro Lopes de Almeida
CRÍTICA, POÉTICA E RELAÇÕES DE GÊNERO: UMA
RELEITURA DE MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE
MILÍCIAS
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Estudos Literários, da Faculdade de Letras da
Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial
para a obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira.
Área de concentração: Literatura Brasileira
Linha de pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
março/ 2007
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Dissertação de mestrado intitulada “Crítica, poética e relações de gênero: uma releitura de
Memórias de um sargento de milícias”, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários (Pós-Lit), da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), e submetida à banca examinadora composta por:
Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques (UFMG)
(Orientador)
Profa. Dra. Constância Lima Duarte (UFMG)
(Titular)
Prof. Dr. Osmar Pereira Oliva (UNIMONTES)
(Titular)
Profa. Dra. Maria Antonieta Pereira (UFMG)
(Suplente)
Profa. Dra. Ana Maria Clark Peres
Coordenadora do Programa de
Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG
Belo Horizonte, 16 de março de 2007
DEDICATÓRIA
Dedico esta dissertação a Alessandro e a Júlia,
presenças essenciais em minha vida. Também,
à memória de meus pais, Dina e Gonzaga
Lopes, e de minha irmã, Dany, que sempre
iluminaram o meu caminho.
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Reinaldo Martiniano Marques, pelas prudentes, competentes e sensatas
orientações que, efetivamente, tornaram possível o desenvolvimento desta dissertação; e que,
sem a sua colaboração, o resultado teria sido menos compensador;
Ao professor Dr. Osmar Pereira Oliva (UNIMONTES), pelo incentivo à pesquisa, pela
constante disposição de material bibliográfico, e ainda, pelas sugestões que enriqueceram o
meu trabalho;
Às professoras Dra. Maria do Socorro Vieira Coelho (UNIMONTES), e Dra. Constância
Lima Duarte (UFMG), que dispuseram de tempo para lerem o projeto inicial que deu origem
a essa discussão;
Aos professores do Programa de Pós-Graduação da UFMG, Dr. Marcus Vinícius de Freitas,
Dra. Haidée Ribeiro Coelho e Dra. Maria Inês de Almeida, que ministraram as disciplinas que
tanto contribuíram para a minha formação e amadurecimento intelectual;
À minha família – Ms. Alessandro de Almeida, que incentivou a pesquisa, à minha filha Júlia,
e a Jeane e Gustavo que tornaram possível os estudos e a escrita deste texto, a meus pais,
especialmente a minha mãe Dina, pelo incentivo e esforço dedicados a fim de possibilitar a
concretização dos estudos;
Ao amigo Nilton, pela dedicação e disposição a mim atribuída;
A CAPES, que financiou parte desta pesquisa;
A “Deus”, pela força diante de todas as dificuldades encontradas nesta caminhada.
Finalmente, àqueles que, de alguma maneira, de forma direta ou indireta, participaram ou
contribuíram com o desenvolvimento dos meus estudos.
RESUMO
O presente exame das Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida,
propõe, a partir de leituras críticas e de teorias literárias contemporâneas, reinterpretar o
processo de construção ficcional do espaço, do tempo, das personagens e de suas ideologias.
Como a narrativa almeidiana intui, com “sentimento de realidade”, a sociedade carioca dos
primeiros anos do século XIX, este texto privilegia, ainda, o estudo das relações de gênero
engendradas nesse contexto patriarcal. Revelando ou negando os estereótipos de masculino e
feminino nas sociedades tradicionais, Manuel Antônio de Almeida dá voz a personagens
populares, de classes desprivilegiadas das páginas literárias e históricas. Reconstruindo essa
dinâmica social, as personagens ‘experimentam’ diferentes comportamentos sociais,
culminando em um dos pontos fundamentais para realçar a verossimilhança da obra, o que a
contempla, muitas vezes, como “realista”.
RESUMEN
El presente examen de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida,
propone, a partir de lecturas críticas de teorías literarias contemporáneas, reinterpretar el
proceso de construcción ficcional del espacio, del tiempo, de los personajes y de sus
ideologías. Como la narrativa almeidiana intuye, con “sentimiento de realidad”, la sociedad
carioca de los primeros años del siglo XIX, este texto privilegia, todavía, el estudio de las
relaciones de género engendradas en ese contexto patriarcal. Revelando o negando los
estereotipos de masculino y femenino en las sociedades tradicionales, Manuel Antônio de
Almeida da voz a personajes populares, de clases sin privilegio de las páginas literarias e
históricas. Reconstruyendo esa dinámica social, los personajes ‘experimentan’ diferentes
comportamientos sociales, culminando en uno de los puntos fundamentales para realzar la
verosimilitud de la obra, lo que la contempla, muchas veces, como “realista”.
ÍNDICE
Introdução
Um passeio pela ficção almeidiana ..........................................................................................10
Capítulo 1
Percorrendo o caminho da crítica .............................................................................................19
1.1. Sob o olhar do outro: a recepção crítica no século XIX .............................................20
1.2.. Memórias de um sargento de milícias e a crítica modernista.....................................27
1.3. Um romance malandro?...............................................................................................42
Capítulo 2
Desfiando o novelo ficcional ...................................................................................................51
2.1. A ilusão da mímesis e da representação.......................................................................52
2.2. O romance representativo e a construção do enredo....................................................60
2.3. O espaço no romance...................................................................................................65
2.4. A construção do tempo narrativo.................................................................................70
2.5. A construção das personagens.....................................................................................75
2.6. As vozes do romance e o discurso ideológico ............................................................83
Capítulo 3
As relações de gênero...............................................................................................................92
3.1. As relações de gênero na ficção do século XIX...........................................................94
3.2. A construção social dos gêneros..................................................................................98
3.3. As representações do feminino na literatura do século XIX......................................102
3.4. Amores e (des) amores de Leonardo-Pataca..............................................................107
3.5. Tal pai, tal filho: transgressões, conflitos e favores...................................................122
Conclusão................................................................................................................................134
Bibliografia
De e sobre Manuel Antônio de Almeida ..........................................................................139
Textos crítico- teóricos......................................................................................................141
CRÍTICA, POÉTICA E RELAÇÕES DE GÊNERO: UMA RELEITURA DE
MEMÓRIAS DE UM SARGENTO DE MILÍCIAS
Memórias de um sargento de milícias
Letra e música de Martinho da Vila
(Gravação de 1971)
Era o tempo do rei
quando aqui chegou
um modesto casal,
feliz pelo recente amor.
Leonardo, tornando-se meirinho
deu a Maria Hortaliça um novo lar,
um pouco de conforto e de carinho.
Dessa união nasceu um lindo varão
que recebeu o mesmo nome do pai
personagem central
da história que contamos neste carnaval.
Mas um dia Maria
fez a Leonardo uma ingratidão, mostrando que não era
uma boa companheira provocou a separação.
Foi assim que o padrinho passou
a ser do menino o tutor
a quem deu-lhe toda dedicação
sofrendo uma grande desilusão.
Outra figura importante em sua vida
foi a comadre- parteira popular.
dizia que benzia de quebranto,
a beata mais famosa do lugar. (bis)
Havia nesse tempo aqui no Rio
tipos que devemos mencionar:
Chico-Juca era mestre em valentia
e por todos se fazia respeitar;
o Reverendo, amante da cigana,
preso pelo Vidigal, o justiceiro,
homem de grande autoridade,
que à frente dos seus granadeiros
era temido pelo povo da cidade;
Luizinha, primeiro amor
que Leonardo conheceu
e que Dona Maria
a outro como esposa concedeu,
somente foi feliz
quando José Manuel morreu.
Nosso herói novamente se apaixonou
quando com sua viola a mulata Vidinha
esta singela modinha cantou:
Se os meus suspiros pudessem
aos seus ouvidos chegar
verias que uma paixão
tem poder de assassinar. (bis)
10
INTRODUÇÃO - UM PASSEIO PELA FICÇÃO ALMEIDIANA
Qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao
construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e de
personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. (...) todo texto é uma
máquina preguiçosa pedindo ao leitor que faça uma parte de seu trabalho.
Umberto Eco
Em meados do século XIX, Manuel Antônio de Almeida nos legou esta
preciosidade literária, a obra Memórias de um sargento de milícias. Publicada na forma de
folhetim, no suplemento dominical “Pacotilha” do jornal O Correio Mercantil do Rio de
Janeiro, os capítulos apareceram sem autoria e, em seguida, quando da edição em livro, em
dois volumes, entre 1854 e 1855, a autoria foi atribuída como sendo à de “Um Brasileiro”.
Nessa época, a limitada receptividade do público ao texto confirma o pouco
interesse do diminuto círculo de leitores. De acordo com parte da crítica oitocentista, o
desinteresse do público deveu-se à ausência da atmosfera romântica, das idealizações e do
lirismo presentes na literatura do período a que estavam acostumados os leitores. Ademais, a
obra, protagonizada não por um representante das elites, mas por um aventureiro, integrante
das classes populares, referia-se a um tempo anterior àquele da sua escritura, e parecia indicar
uma sátira à tendência sentimental da classe dominante, que se recusava a admitir uma vida
em sociedade diversa daquela exposta nos romances românticos. Devido a essa inovação
literária, sob a ótica de Manuel Antônio de Almeida foi apresentada uma nova forma de ver a
sociedade e o caráter dos representantes das classes sociais.
Essa nova leitura da sociedade carioca não foi fruto da inconsciência e do
descuido lingüístico e literário de um jovem estudante de medicina, mas advinda do
engajamento crítico e provocador de que o escritor e jornalista esteve imbuído, precedendo o
estilo de Machado de Assis, com quem teve breve contato nos bastidores da imprensa carioca.
Durante as décadas de 1860 e 1870, a obra foi reeditada, mas não conseguiu
atrair novamente grande público. Suscitou, no entanto, inúmeras discussões e revelou-se
11
como importante obra da literatura nacional a partir das leituras dos críticos do final do século
XIX e de todo o século XX. A fortuna crítica da obra a considera uma produção que valoriza
e torna pública a cultura brasileira, estimulando valioso acervo de interpretações.
Nesta direção, convém destacar que, no ano de 1894, José Veríssimo atribuiu à
obra relevância histórica, aproximando-a do romance de costumes e antecipando o realismo,
porém a acusa de ser mal escrita, já que não se ajusta às normas da escrita literária recorrente
na época. Destacam-se, também, os dois estudos de Xavier Marques, de 1920 e 1931, na
Academia Brasileira de Letras, enfatizando, no romance, a verossimilhança do registro de
tipos, ambiência urbana e costumes de época; a tese de Josué Montello, de 1955, propondo a
vinculação da narrativa à tradição picaresca, filiando-a a La vida de Lazarillo de Tormes, do
século XVI, e a Vida e hechos de Estebanillo Gonzallez, do século XVII; as abordagens
estilísticas e biográficas de Darcy Damasceno, de 1962 e 1963; e um estudo do crítico
Antonio Candido, de 1970, apresentando um painel das propostas classificatórias, que se
desdobra na hipótese de um “romance malandro”.
Além do ensaio de Mário de Andrade, em 1941, que nega a vinculação realista
da obra, mas a classifica como romance à moda picaresca espanhola, há as valiosas
contribuições de Astrogildo Pereira em 1952, que acredita ser difícil compreender a vida
carioca do começo do século sem ter lido as Memórias de Leonardo. Nelson Werneck Sodré,
em leitura de 1966, revela que a narrativa pode ser lida como documento histórico, uma vez
que documenta com propriedade um quadro dos costumes da época. Nesse sentido, o crítico
Araripe Júnior afirma ser Manuel Antônio de Almeida o romancista de costumes de mais
talento já nascido entre nós. Por sua vez, José Guilherme Merquior, em 1966, aproxima-o do
romance de aventuras. Sobre a estreita ligação entre ficção e realidade, culminando no caráter
documental do texto, comungam as idéias de Wilson Martins (1976), Temístocles Linhares
(1987) e Massaud Moisés (1985). A análise de Walnice Nogueira Galvão, em 1976, revela
12
que o texto apresenta perfeita harmonia entre os aspectos formais e o conteúdo, constituindo
uma visão do mundo em “estilo baixo”. Acresce, ainda, a avaliação de Maria José da
Trindade Negrão, em 1966, que vê, no romance, um precursor do romance moderno. Vale
registrar, também, o testemunho de Alceu Amoroso Lima, na resenha crítica de 1963 à
biografia de Manuel Antônio de Almeida, escrita por Marques Rebelo, que diz que, com o
passar do tempo, a obra de Manuel Antônio torna-se mais interessante para as novas gerações
que a leitura das obras de José de Alencar.
Em razão da sua importância, teve o seu enredo transformado em samba e em
peça de teatro, culminando na vasta produção crítica realizada acerca do romance. Isso ratifica
e deixa clara a sua relevância para o cenário artístico e literário nacional. Dessa forma, o
presente estudo procura revisitar a crítica acerca da obra com o propósito de levantar os
principais pontos ressaltados pela mesma, além de buscar um ponto de convergência com os
aspectos que iremos examinar.
Contudo, um fator importante observado por Antonio Candido é o de que,
dentre inúmeros estudos realizados acerca da narrativa, muitos são aqueles que se atêm ao seu
conteúdo. Voltados para a dinâmica classificação da obra quanto ao gênero literário,
propomos fazer um exame da poética do romance atentando para a compreensão da sua
verossimilhança interna.
Com esse propósito, partiremos para a compreensão das especificidades da
narrativa nas suas instâncias de personagem, enredo, tempo, espaço e ideologia. Como é
sabido, parte da crítica discute a oposição da escrita de Manuel Antônio de Almeida às
ideologias reinantes na literatura romântica da época. Assim, enviesamos o olhar para o
trabalho artístico desse autor na absorção dos dados da realidade a fim de construir o universo
do romance. Nesse processo de percepção artística, é possível perceber que as diversas vozes
que atravessam o tecido ficcional comungam de pontos de vista pertencentes às sociedades
13
tradicionais, e às vezes contrariam tal concepção. Desse emaranhado de vozes emerge a voz
do narrador que, de certa maneira, direciona o leitor e imprime sua própria visão de mundo no
discurso das personagens.
Como a narrativa é povoada por pessoas do povo, é mister discutir que, se o
autor dá voz aos excluídos, o discurso construído passa a ser o discurso do coletivo, gerando
um texto nutrido por diversas vozes enunciadoras, e que, portanto, pode ser pensado como um
texto polifônico. Para esta abordagem, apoiar-nos-emos nas contribuições da análise do
discurso, da sociologia e, especialmente, da teoria literária centrada na especificidade dos
textos narrativos. Nesse sentido, alguns teóricos como Bakhtin, Beth Brait, Benedito Nunes,
Antônio Dimas, Julia Kristeva, dentre outros, terão positiva colaboração para o
desenvolvimento desse estudo.
Desfiando o novelo das leituras críticas sobre a obra, revela-se um fato curioso.
A grande parte dos estudos realizados sobre as Memórias busca a compreensão do seu
conteúdo através do conhecimento do protagonista Leonardo e de suas aventuras. Nesse viés
analítico, percebemos que as relações de gênero presentes na narrativa não geraram
discussões e estiveram ausentes das análises dos críticos literários. Essa questão é sutilmente
tocada por Antonio Candido quando diz que Manuel Antônio de Almeida realizou “a obra
mais discretamente máscula da ficção romântica”. (1997: 199) Em todos os estudos críticos
revisitados, predominam análises histórico-sociológicas da obra e da realidade social nela
refletida. Quanto aos problemas da poética propriamente dita, estes, via de regra, são tratados
apenas de passagem, embora em alguns desses críticos haja observações valiosas dispersas de
aspectos isolados. Diante do exposto, o que propomos é fazer uma releitura das Memórias de
um sargento de milícias sob um olhar teórico contemporâneo, examinando como se articula,
no texto, a construção do romance e das relações de gênero.
14
Partindo dos estudos críticos que compreendem a narrativa almeidiana como
um panorama da história do Rio de Janeiro no século XIX, nossa abordagem propõe analisar
as relações de gênero na história de gente menor, sacrificada e escondida dos anais da
História. Relações reveladas por um narrador que, ao inovar a narrativa romântica, antecipa
algumas características que serão apresentadas apenas no pré-modernismo brasileiro. Vale
adicionar, aqui, as crendices, costumes e superstições, entre outros valores culturais que
compõem esse tecido histórico não valorizado no século XIX. Nesse sentido, podemos refletir
sobre questões tais como: Que imagens de Brasil o romance nos oferece? O que o autor
propõe como reflexão sobre a nossa identidade? Como o discurso romanesco pode interferir
nessa revisão da sociedade?
Com esta preocupação, o estudo das relações de gênero no contexto histórico
carioca oitocentista vale como uma análise transdisciplinar, à medida que perpassa diversas
áreas do conhecimento, tais como a história, a antropologia, a psicanálise, a lingüística, a
sociologia, permitindo-nos tomar o texto literário como elemento importante na articulação e
compreensão de nossa própria identidade sócio-cultural. Tendo em vista que as fronteiras
entre o discurso da ficção e o da história não são tão delimitáveis como se imagina, Dulce
Maria Viana Mindlin afirma que “[a] literatura, como representação da cena histórica, não é o
lugar das respostas, mas é certamente um lugar bastante privilegiado para provocar
interrogações, para fazer pensar”. (MINDLIN, 1997: 40)
Tendo em vista a ambiência da obra e centrados na discussão sobre gêneros,
intencionamos problematizar e discutir as relações amorosas da personagem Leonardo-Pataca
com Maria-da-Hortaliça, a Cigana, e Chiquinha, bem como toda a teia de relações envolvendo
o filho Leonardo e o Major Vidigal. Essas relações regidas por conflitos, transgressões e
favores, mesmo não sendo peculiares na história e na literatura da época, configuram uma
crise dos paradigmas nas sociedades tradicionais. Importante anotar que, sendo a narrativa
15
almeidiana produzida sob os ares patriarcais dos primeiros anos do século XIX, permite-nos
discutir em que as relações encontradas nas Memórias diferem daquelas comumente
estabelecidas numa sociedade patriarcal. Na obra, não encontramos homens provedores e
fortes, e, sim, mulheres ativas e transgressoras.
Todavia, neste estudo, procuramos abordar tais conceitos, de masculino e de
feminino, não como diferença física ou categorias fixas e universais, mas em uma perspectiva
relacional e cultural. Pensando nas relações estabelecidas no século XIX e influenciados pelas
reflexões pós-modernistas dos estudos de gênero, a idéia inconteste da supremacia do poder
homem sobre a mulher precisa ser mais bem ponderada, isso porque é vislumbrada a
possibilidade de uma mesma sociedade conceber diversos modelos de comportamento de
homens e de mulheres. Conforme Lia Machado (1992), essa oscilação nas relações é
decorrente da existência de distintas relações entre os gêneros, que podem ser regidas por
diferentes poderes, estabelecendo as relações complementares, de poder, recíprocas ou de
prestígio.
Nessa dinâmica das relações dos gêneros, ater-nos-emos às Memórias, de
Manuel Antônio de Almeida, procurando entender como essas se apresentam. Analisando a
agressão de Leonardo-Pataca à companheira após a traição, podemos argüir: Seria o uso da
força uma forma de justificação do poder do macho e um meio de ocultar a fraqueza
decorrente da perda? Diante deste ponto de vista, a perda transforma-se em um processo de
desconstrução da identidade? A respeito dessa flexibilização da identidade masculina,
comenta Sócrates Nolasco: “Perder era percebido quase como uma negação de ser homem”.
(NOLASCO, 1993:14) Isso nos leva a crer que as identidades de gênero são construídas
socialmente. Contudo, quais seriam os fatores que influenciariam nesse processo de
construção? Que privilégios a tradição patriarcal conferiu ao homem e até que ponto esses
privilégios contribuem para a manutenção de uma sociedade binária? Essas questões devem
16
ser discutidas no decorrer da análise da obra, enfocando-se as posturas femininas e a aparente
sensibilidade percebida na figura masculina.
No decorrer do nosso estudo do romance, iremos perceber que, ao se deparar
com este “ser homem” flexibilizado pelas transgressões femininas, começam-se a se
evidenciar as fraquezas masculinas através do ciúme, das lágrimas, do machismo representado
pelo uso da violência. Tais comportamentos masculinos nos possibilitam discutir se houve
uma ação efetiva das mulheres para a ocorrência dessa postura masculina, ou se a própria
inflexibilidade do homem permitiu essa inserção social feminina.
Temos, por conseguinte, o propósito de examinar, de um lado, o
comportamento atribuído à mulher, evadindo à tutela masculina, transgredindo as normas de
conduta impostas pela sociedade patriarcal, sobrepondo ao emocional suas atribuições
intelectuais, ausentando-se do ambiente doméstico para realizar-se afetivamente, e, de outro, a
reação do homem, permitindo ou resistindo a essa participação feminina. E buscar
compreender, assim, como se dá a construção de novas posturas, novas identidades e,
conseqüentemente, novas relações numa sociedade ainda sob a hegemonia do patriarcalismo.
Com isto posto, a presente pesquisa se propõe a discutir questões do tipo: a escrita
do romance frente à classificação de gêneros narrativos; a construção dos elementos da
mímesis como resultado do trabalho artístico do ficcionista; os fatores que interferem na
construção das identidades e das relações de gênero, e de que forma a evolução dos padrões
culturais e sociais transformaram essas relações. Ainda como a defesa dos privilégios
atribuídos ao homem numa sociedade patriarcal efetiva a exclusão do papel social da mulher;
o papel dos discursos, em especial do discurso romanesco, na construção das representações,
ao dar voz a uma determinada classe que resiste às conveniências burguesas e, a ausência do
maniqueísmo, denotando uma falta de culpabilidade que favorece certos arranjos,
transgressões e favores;
17
Desse modo, em termos de seu referencial teórico-crítico, esta pesquisa contará
com a contribuição de diversos teóricos e estudiosos, tais como: Bakhtin, Elisabeth Badinter,
Stuart Hall, Michel Foucault, Teresa de Lauretis, Mary del Priore, Roberto DaMatta, Sócrates
Nolasco, Michel Dorais, Pierre Bourdieu, Simone de Beauvoir, dentre outros relevantes para
os estudos que se propõe nesta dissertação.
Dentro dessa concepção, entendemos que nosso trabalho sobre as Memórias de
um sargento de milícias poderá contribuir para o estudo da literatura brasileira, uma vez que
procuramos reavaliar a crítica sobre a mesma, rediscutindo sua estética e principiando uma
nova discussão, no âmbito dos estudos de gênero. Nesse sentido, é sabido que o estudo sobre
os gêneros
1
é recente. Profissionais das mais diversas áreas, historiadores, sociólogos,
psicólogos, dentre outros, procuraram ressaltar, nesses estudos, especialmente a dimensão da
exclusão a que estava submetido o feminino por um discurso universal masculino. Por essa
voz masculina foi mostrada a trajetória das elites e dos heróis masculinos, permitindo também
o questionamento da universalidade no discurso histórico. Conforme as observações de Joan
Scott (1995), essas identidades de gênero são construídas historicamente por intermédio dos
discursos que legitimam as diferenças sexuais. Com a preocupação de abrir trilhas
renovadoras, promove-se a descentralização dos sujeitos históricos e permite-se a descoberta
das “histórias de gente sem história.” Nesse novo discurso novas vozes foram ouvidas. A
partir daí, revelaram-se outros perfis femininos e, ainda, masculinos, outras histórias foram
contadas e outras falas recuperadas.
Portanto, o estudo aqui proposto constitui um meio de reavaliar e reexaminar a
ficcional sociedade carioca dos anos 1800 sob outra vertente. Aquela de uma sociedade
dinâmica, que registra marcas históricas e que rompe com os protótipos de uma sociedade
tradicional. Logo, acreditamos que a interpretação dessa narrativa pode contribuir para a
1
Segundo Teresa de Lauretis (1994), a palavra gênero, em muitas línguas, não tem a denotação de sexo.
Entretanto, neste estudo fazemos uso da palavra gênero para designar a categoria sexo-gênero, portanto dotada
de tal sentido.
18
compreensão da construção das identidades e das relações entre o masculino e o feminino em
meados do século XIX, aproximando-se de questionamentos que se fazem presentes nas
sociedades pós-modernas. Assim, entendemos que o romance Memórias de um sargento de
milícias apresenta um espaço bastante apropriado para se analisar as relações sociais e de
gênero do período, ao mesmo tempo em que nos possibilita realizar uma nova leitura da
narrativa, a fim de ampliar nossos conhecimentos acerca da nossa literatura e daquilo que,
certamente, Manuel Antônio se propôs a nos revelar.
19
CAPÍTULO 1 – PERCORRENDO O CAMINHO DA CRÍTICA
Todo grande autor rompe com algo e introduz uma novidade
(...) o grande autor tem um papel didático: ele reorienta o vetor das
condutas de gosto. A grande obra inaugura, cria sua ascendência e
reinventa a literatura.
Ronaldo Costa Fernandes
Os textos críticos sobre Memórias de um sargento de milícias são bastante
dispersos e variados. Muitos deles são ensaios de maior ou menor valor que caminham na
tentativa de discernir a complexidade da obra. Como assegura Cecília de Lara (1978), poucos
são os estudos mais alentados.
Dentre os inúmeros estudos conhecidos, selecionamos aqueles mais difundidos
e com os quais a nossa pesquisa pretende dialogar, deixando de citar alguns outros de
inegável valor e de relevante interesse para as análises literárias. Com o propósito de dar
seguimento a algumas discussões, embasamo-nos no estudo do crítico Antonio Candido, o
qual consideramos um dos mais completos exames realizados da narrativa de Manuel Antônio
de Almeida. Outros críticos, como Walnice Nogueira Galvão, Mário de Andrade, Massaud
Moisés, dentre outros, em maior ou menor proporção, instigaram a reinterpretação de alguns
aspectos do romance.
Essa nossa revisitação à crítica sobre as Memórias tem fundamental
importância para os amantes da escrita do autor e da literatura brasileira em geral, já que,
como dissemos, os estudos realizados até o momento constituem-se de análises de aspectos
isolados, ou tomados como um todo, sem que tenha uma profunda investigação das partes do
romance. A maioria desses textos dispersos foi concebida no século XIX. Outros são apenas
prefácios a algumas edições da obra, e cujo acesso pelo leitor é mais difícil.
20
1.1. Sob o olhar do outro: a recepção crítica no século XIX
[Manuel Antônio de Almeida] esteve, como dissemos, perpetuamente
deslocado na sociedade, porque em verdade era antes um desses homens
que, por anacronismo da sorte, mais pertencem ao futuro do que ao
presente, que os desconhece.
Augusto Emílio Zaluar
2
É marcante o acervo de interpretações a respeito da obra Memórias de um
sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. Da variedade de leituras críticas
resultam classificações discrepantes da obra como romance de costumes, precursora do
realismo literário, antecipadora do modernismo, filiada à novela picaresca espanhola, com
traços do romance histórico do Romantismo, presa à tradição popular brasileira, ou às fontes
da novelística francesa do século XVIII ou XIX.
Em linhas gerais, o que se encontra a respeito da crítica do século XIX é que
ela não se deixou atrair pelo romance de Manuel Antônio de Almeida. Por outro lado, estudos
recentes demonstraram que homens das letras, como Augusto Emílio Zaluar, Quintino
Bocaiúva, Joaquim Manuel de Macedo, Bethencourt da Silva, dentre outros nomes,
pronunciaram-se, quando da morte do romancista, acerca da obra e do papel do autor para o
cenário literário e jornalístico nacional. Esses depoimentos foram compilados, na década de
1990, por Bernardo de Mendonça, e passaram a compor o manual intitulado Obra dispersa,
contendo também outros escritos de autoria de Manuel Antônio de Almeida. Essa reunião de
artigos e ensaios ampliou as discussões e possibilitou às novas gerações o conhecimento da
opinião dos contemporâneos de Manuel Antônio de Almeida sobre a obra Memórias de um
sargento de milícias.
2
Fragmento extraído do depoimento de Augusto Emílio Zaluar, no ano de 1862, ainda emocionado com a morte
do amigo. Editado juntamente com outros documentos, de e sobre o autor, por Bernardo de Mendonça, em 1991,
com o título de Obra dispersa: Manuel Antônio de Almeida.
21
Em artigo publicado em 1876, Joaquim Manuel de Macedo destaca o gosto do
romancista pelas letras e declara que, mesmo sendo médico, nunca se lembraram de chamá-lo
para visitar doentes, pois, naturalmente, já havia se nomeado literato, quando escreveu um
“estudo ameno e precioso de antigos costumes do país, e de coisas nele passadas, que mereceu
aplausos gerais, e brilhou como aurora promissora de fulgurante dia”. (MACEDO, 1991: 145)
Joaquim Manuel de Macedo destaca ainda que, além da ocupação de romancista e jornalista,
o papel de crítico literário exercido pelo autor teve muitos elogios do público. Esses textos,
segundo Bernardo de Mendonça, são de conhecimento recente; talvez, por isso, a crítica,
desinformada da existência desses escritos, tanto disseminou a concepção de desinteresse pelo
autor. Franklin Távora, na década de 1870, fazendo uma revisão dos talentos de 1800, aponta
que Manuel Antônio de Almeida a todos se avantajou, pois deixou “um só quadro, um só
painel, quadro brilhante, painel imenso, em que há vida, graça e colorido nativo”. (TÁVORA,
1991: 156)
No ano de 1880, Sílvio Romero admite que a obra Memórias de um sargento
de milícias é uma das mais enaltecidas das letras brasileiras. Para Romero, os elogios não são
infundados, porém dispensa o seu excesso, já que os méritos principais do livro são:
“naturalidade na exposição, viveza no diálogo e nas cenas descritas, graça, espírito no dizer, o
nacionalismo do assunto e das cores do quadro”. (ROMERO, 1991: 158) Neste ponto, afirma
que o livro sobreviveu graças ao talento do ficcionista em não se enveredar pelos meios mais
comuns de fazer uma literatura nacional, mas inovar o nacional descrevendo os usos e
costumes do povo do Rio de Janeiro do começo do século XIX. Acrescenta, também, que o
fundo semi-histórico das Memórias foi informado ao autor por um velho empregado do
jornal Correio Mercantil, que, com o talento da escrita, teceu a narrativa adaptando o narrado.
Tal discussão sobre a gênese das Memórias foi levada adiante por críticos modernistas, como
Mário de Andrade, Wilson Martins e Massaud Moisés. A questão da escrita e da linguagem
22
utilizada no romance constitui um dos principais pontos discutidos pela crítica oitocentista.
Sílvio Romero considera a escrita de Manuel Antônio um talento. Por outro lado, nessa
mesma ocasião, José Veríssimo, que será posteriormente discutido, elege o uso da linguagem
popular como uma das principais restrições da escrita almeidiana. Assim, completa
Bethencourt da Silva, nos anos de 1870, que, nos trabalhos do Autor, não há um estilo
burilado de frases. Contudo, admite os múltiplos talentos que o romancista revelou:
Manejando facilmente os raros dotes de sua fertilíssima aptidão, todos os
trabalhos literários lhe eram familiares, quer poetasse em doces endeixas,
num estilo fácil e ameníssimo, quer se lançasse em mais vasto horizonte,
escrevendo análises críticas literárias; quer historiando fatos de subido
alcance, quer ainda no quedo de colaborações humorísticas ou na travessura
do gracejo político, ou nas lutas acerbas e infinitas da imprensa, em escritos
perdidos ora aqui, ora ali, Manoel d’Almeida foi sempre original e único.
(SILVA, 1991: 147)
Percebe-se, nos fragmentos apresentados, que a literatura de Manuel Antônio
suscitou discussões e rendeu elogios entre seus contemporâneos. Apesar de alguns não se
atentarem para os detalhes da narrativa, os textos e depoimentos oitocentistas revelam
interesse e apreço pela escrita do autor. Aliás, conforme destaca Bernardo de Mendonça, o
conhecimento da crônica escrita por Machado de Assis, na ocasião da morte do Autor, sobre o
naufrágio do Vapor Hermes e sobre a perda do escritor e colega de trabalho na imprensa
carioca, desfez a idéia da indiferença de Machado de Assis quanto à morte e ao trabalho de
Manuel Antônio de Almeida.
3
De princípio, convém ressaltar que não se conhecem dados concretos sobre a
recepção do público leitor contemporâneo da escrita da obra. Por conseguinte, o que evidencia
o desinteresse dos leitores parece ser a diminuta vendagem da obra, tanto da publicação em
3
Contraditoriamente, Bernardo de Mendonça (1991) lembra que, como crítico, em seu “Instinto de
nacionalidade”, escrito em 1873, onde faz um balanço da poesia, do romance e do teatro nacionais, Machado
sequer cita o autor e suas Memórias, contudo, centraliza a atenção em outros autores da época, principalmente
em José de Alencar. A este, escolhe como patrono de sua cadeira, ao fundar a Academia Brasileira de Letras.
Bernardo recorda ainda que nenhum traço da literatura alencariana é percebido na escrita de Machado, enquanto
argutos críticos modernos, como Mário de Andrade, percebem, em seu legado, a influência do estilo inovado por
Manuel Antônio de Almeida.
23
folhetim, quanto da sua edição em livro. Um ano depois da morte de Manuel Antônio, foi
reeditada por Quintino Bocaiúva, que esclareceu ser raro alguém que tivesse um exemplar da
obra. Porém, não houve novamente sucesso e o livro ficou encalhado.
Os fatores eleitos pela crítica como limitadores da penetração das Memórias,
na época em que foi escrita, são sua originalidade com relação ao romance romântico, sua
postura de independência com relação à moda do sentimentalismo e a presença da linguagem
coloquial do tempo, simples, direta, praticamente sem metáforas ou refinamentos estilísticos.
Comentando a respeito dos métodos utilizados pelos críticos para classificar uma obra de arte,
José Veríssimo ressalta que o tempo, a escola, as influências sofridas pelos críticos são meios
que precisam ser adequados para que dêem precisão e justeza à sua classificação. Para
Veríssimo, o povo é, de fato, o grande e verdadeiro crítico. É com o povo que está a
psicologia do belo, tendo como critério de classificação, o gosto. Dessa forma, admite que o
gosto é variável entre as pessoas e, por isso, o belo definir-se-á como uma questão pessoal.
Em razão deste fator, atribui o desinteresse dos leitores pela obra Memórias de um sargento
de milícias à inadequação ao gosto da literatura romântica da época.
A partir dos estudos feitos na década de 1890, José Veríssimo reexamina a
obra nos anos de 1900 e 1916. Nas primeiras análises, reitera que o conteúdo das Memórias é
rico, porém a sua forma é pobre. Dito isso, ele acredita que a riqueza da narrativa apresenta
restrições. Nessa acepção, entendemos que, na discussão de Veríssimo, encontra-se uma
valorização do conteúdo da narrativa. Inicialmente, declara: “eu considero-o um dos mais
característicos da nossa literatura, um dos mais nacionais que tenhamos, um dos que menos
intencional e mais naturalmente nos dão aquela impressão de nacionalismo a que no começo
aludi”. (VERÍSSIMO, 1978: 296)
Ora, nessa abordagem, é perceptível que há uma legitimação do conteúdo, já
que, de acordo com as palavras do crítico, talvez não tenha sido o objetivo do romancista
24
pintar a vida e a sociedade brasileira de uma determinada época, porém, mesmo assim o fez.
Entendemos, pois, que o nacionalismo presente na obra provavelmente foi intencional, uma
vez que ficou provada a criticidade e o engajamento social e político do escritor e jornalista
em meados de 1800.
Veríssimo postula que, para ser uma obra-prima, uma obra de arte necessita
apresentar harmonia entre a forma e o conteúdo. Sendo assim, argumenta que a linguagem
coloquial utilizada na narrativa é imperfeita e inadequada para uma obra literária. A
linguagem seria fruto do desconhecimento das regras da literatura vigente na época, assim
como seria, também, fruto da imaturidade de um escritor iniciante em seu ofício. Com vistas a
isso, declara: “para ser um dos mais belos da nossa literatura só lhe falta ser bem escrito”.
(VERÍSSIMO, 1978: 296) Contraditoriamente, José Veríssimo explica que o enredo ou fundo
do romance seja desinteressante. Por outro lado, constata que a atração pela leitura da
narrativa deve-se à riqueza de seu conteúdo. Segundo ele, as pessoas
que procuram no romance não a distração de uma ingênua narrativa com
que o homem, eterna criança, se diverte ou consola, mas a história
psicológica da sociedade, a representação da vida nos traços mais
verdadeiros, mais vivos e ao mesmo tempo mais conformes ao tipo que da
perfeição plástica se fazem, lerão este livro com simpatia.(VERÍSSIMO,
1978: 292)
Entende-se assim que os fatores destacados por Veríssimo como negativos no
romance tenham sido valorizados e enaltecidos pela crítica do século XX. Possivelmente, por
se tratar de contextos e de influências estéticas distintas, a crítica realizada por José
Veríssimo, no século XIX, adequa-se aos pressupostos românticos
4
.
A nosso ver, outro aspecto controverso, na interpretação de Veríssimo,
relaciona-se ao viés analítico sobre que nos propomos discorrer na presente pesquisa. A
4
José Veríssimo examinou a obra Memórias de um sargento de milícias em datas distintas, em 1894, 1900 e
1916. Segundo ele, o gosto pessoal é um juízo crítico na verificação da importância de uma obra. Nesse sentido,
acreditamos que, em virtude de contextos históricos e estéticos diferentes, a avaliação do mesmo sobre a obra
apresentou restrições quanto à linguagem, à escrita e ao conteúdo. Na última leitura realizada, Veríssimo
apontou maior quantidade de aspectos positivos que restrições na análise da obra. Acreditamos que esse fato se
deve às tendências decorrentes dos valores estéticos pré-modernos.
25
respeito das transgressões nas relações conjugais presentes na narrativa, vejamos a explicação
do crítico para a origem e a trajetória do herói Leonardo: “Desavindos os pais, por motivo de
mútua infidelidade de ambos que em amor não gostavam, como Camões: ‘de arder em uma só
chama’”. (VERÍSSIMO, 1978: 297) A afirmação de Veríssimo leva-nos a compreender que
tanto Leonardo-Pataca quanto Maria-da-Hortaliça cometem traições à procura de novas
relações amorosas. Entretanto, a nossa discussão baseia-se na evidência de que, na obra,
apenas as mulheres que se envolvem afetivamente com Leonardo-Pataca cometem a
transgressão. Assim, Leonardo-Pataca se entrega definitivamente às relações e persiste na
permanência delas, mesmo sendo traído, e por esse motivo passa por inúmeros outros
infortúnios. Divergindo do que, comumente, ocorre numa sociedade tradicional, é a mulher
quem está rompendo com a relação, ao revelar-se forte, decidida e insensível ao sentimento
do companheiro. Conforme explica o próprio narrador no capítulo intitulado “Fortuna”, logo
depois da fuga de Maria da Hortaliça, Leonardo-Pataca apaixona-se pela Cigana, que era feita
nos mesmos moldes da primeira,
mas o homem era romântico, como se diz hoje, e babão, como se dizia
naquele tempo; não podia passar sem uma paixãozinha. Como o ofício
rendia, e ele andava sempre apatacado, não lhe fora difícil conquistar a
posse do adorado objeto; porém a fidelidade, a unidade no gozo, que era o
que sua alma aspirava, isso não o pudera conseguir. (ALMEIDA, 1999: 19)
Pode-se verificar, no entrecho, que Leonardo Pataca era um homem vulnerável
aos sentimentos femininos e buscava um relacionamento estável. Dessa forma, não comete a
traição e, embora seja traído pelas companheiras, insiste no seguimento desses
relacionamentos.
Além do descuido da linguagem, José Veríssimo, para justificar as restrições
encontradas no romance, atribuiu-as à pouca idade do romancista e à sua imaturidade literária
ao escrever o primeiro romance. No entanto, enquanto Veríssimo considerava a inovação
literária de Manuel Antônio como um fator negativo, Bernardo de Mendonça elegia, nos anos
26
90 do século XX, a mesma característica como uma opinião manifestada diante de uma
conveniência conservadora. Por isso, os anacronismos cometidos pelo autor evidenciaram a
antecipação de temas modernos, assim como uma consciência das questões nacionais:
quando falavam em fundação da nacionalidade, o autor das Memórias de
um sargento de milícias falava de uma nação pré-existente; quando falavam
em pátria, ele falava da “grande república do mundo”; quando se elegia o
índio como símbolo heróico da nacionalidade, ele o decantava como vítima
de um massacre; quando se admitiam, como sinais mais que suficientes de
emancipação lingüística, as contribuições léxicas das linguagens indígenas e
africanas ou do francês ao padrão erudito português, ele ousava imprimir a
fala coloquial; quando se planejava a literatura brasileira com ambições de
fundador prescrevendo para a posteridade, ele simplesmente a praticou.
(MENDONÇA, 1991: XXXVII)
Enfim, os estudos de José Veríssimo, apesar de, às vezes, discrepantes e
controversos em alguns aspectos, consideram a obra Memórias de um sargento de milícias
como um romance histórico, ao aproximá-lo do romance de costumes, por descrever lugares e
cenas do Rio de Janeiro no tempo do rei D. João VI. Ao relatar os comportamentos da
sociedade carioca desse tempo, Manuel Antônio estaria praticando um realismo antecipado,
um romance da vida urbana ou mundana.
Portanto, cabe aqui reiterar que, embora alguns críticos apontem restrições à
literatura de Manuel Antônio de Almeida, é bem verdade que admitem a relevância da
permanência de Memórias de um sargento de milícias para a historiografia literária nacional.
Vê-se então que a crítica nos apresenta o texto como reflexo da ambiência e do contexto
social. Enfim, ao revisitar o pensamento de Antonio Candido, em Literatura e sociedade
(1973), cabe reafirmar que o aspecto social presente nesta narrativa torna-se um elemento
estrutural, portanto interno, já que é recriado e manipulado pelo ficcionista de modo a se
adequar às suas intencionalidades. Logo, o discurso romanesco torna-se palco de nossas
27
discussões acerca de alguns costumes e das relações de gênero numa sociedade que se mostra
machista
5
e patriarcal.
1.2. Memórias de um sargento de milícias e a crítica modernista
[As] Memórias serão tratadas como um romance realista a sério, em que
está em jogo o sentido da vida contemporânea. Noutras palavras, trata-se
da passagem da crítica de edificação nacional à crítica estética; da crítica
de função puramente local à crítica de sondagem do mundo
contemporâneo; da crítica em que o nacional é comemorado à crítica em
que ele é historicizado.
Roberto Schwarz
Nos primeiros anos do século XX, o crítico José Veríssimo, influenciado pelo
estilo da época, adota a obra como sendo muito positiva, com poucas restrições. Reitera, neste
momento, que o gosto pessoal constitui o grande crítico, uma vez que, conforme a tendência
pré-moderna, o público não está vinculado às pressões da norma literária ou lingüística.
Considerando essa perspectiva, a obra Memórias de um sargento de milícias, de Manuel
Antônio de Almeida, perde um dos mais reiterados bordões propagados por Veríssimo, o do
cânon lingüístico.
Sob a turbulência proveniente das rupturas características do Modernismo, Mário
de Andrade publica, em 1928, a obra Macunaíma, cuja personagem central se constitui na
mistura do índio romântico de José de Alencar e do sensualismo e ociosidade do herói de
Manuel Antônio de Almeida, intensificada pela falta de caráter. Compondo novas formas de
interpretar e de mostrar o Brasil, grande parte da crítica modernista vê em Manuel Antônio de
Almeida um antecessor deste estilo que veio florescer após a “Semana de Arte Moderna”, em
5
Neste estudo, entendemos machismo como um discurso derivado das relações numa sociedade patriarcal. No
dicionário Novo Aurélio Século XXI, o termo machismo é interpretado como “atitude ou comportamento de
quem não aceita a igualdade de direitos para o homem e a mulher, sendo contrário, pois, ao feminismo. É uma
qualidade, ação ou modos de macho”. Para a expressão machista, entende o mesmo autor: “Relativo ao, ou que é
adepto do machismo”. (FERREIRA, 1999: 1248) É seguindo essa mesma concepção que faremos uso de tais
termos no presente texto.
28
1922. Mário de Andrade resgata algumas características das Memórias para compor a obra
Macunaíma
6
. Nesse resgate, as analogias do texto de Mário com a narrativa do século XIX
como a musicalidade, o sincretismo religioso, alguns costumes, superstições, enfim, as
aventuras descomprometidas de um herói culminam na revelação do folclore originalmente
brasileiro.
No seu estudo, Mário de Andrade refere-se à obra Memórias de um sargento
de milícias como “um dos romances mais interessantes, uma das produções mais originais e
extraordinárias da ficção americana”. (ANDRADE, 1978: 303) Nesse ponto, a originalidade
consiste na versatilidade e autenticidade dos fatos, dos costumes, do retrato da sociedade
carioca e da clareza e naturalidade da escrita. Esse fator, tão repugnado pela crítica
contemporânea à escrita da obra, vem ressaltar que, conforme afirma José Veríssimo, os
gostos são pessoais e adaptáveis de acordo com o contexto. É certo que a relevância da obra
para o cenário artístico nacional advém desde a sua publicação em folhetim, no entanto,
pontos negativos foram apontados pelos leitores quando não compreenderam a inovação
proposta pelo autor.
No exame do romance, realizado por Mário de Andrade, origina-se a
concepção do “pícaro” para o memorando Leonardo. Aliás, para Mário de Andrade, o escritor
transferia a sua vida de moço aventureiro para o herói da narrativa numa “crônica semi-
histórica de aventuras”. Fica a impressão de que, ao atribuir um final feliz, nos moldes
burgueses, para a sua criação, o autor estivesse intencionando um fim igual para si mesmo.
Acredita-se que há duas explicações para a origem da obra. Filho de tenente,
de família pobre, a criação de Manuel Antônio de Almeida se deu entre as modinhas dos
cantadores do serviço de guerra e que ele, prontamente, expõe em sua obra. De acordo com
essa reflexão, o romancista estaria fazendo uso de sua realidade, de elementos biográficos,
6
Tais características comuns em ambas as narrativas podem ser percebidas no estudo das Memórias, realizado
pelo próprio Mário de Andrade, no prefácio da obra de Manuel Antônio de Almeida para a edição Martins, de
1941.
29
para compor a narrativa. Por outro lado, como estudante de medicina, recusa-se a utilizar os
conhecimentos científicos e prefere ver seus personagens por conta das parteiras, das sangrias
dos barbeiros e dos empirismos das ervas populares. Essa reflexão nos permite pensar que o
ficcionista parece desprezar seus conhecimentos científicos para se adequar aos costumes
populares, isto é, seu mundo pessoal não estaria caracterizando a tessitura do romance.
Contudo, as discussões acerca do título da obra parecem auxiliar na compreensão dessa
questão. Mário de Andrade questiona se o autor está relatando fatos da vida de um sargento
que lhe contava casos do tempo do rei, época em que se passa a história, ou se se refere à
personagem Leonardo, fruto de sua criação.
À medida que o narrador relata as festas da época, os costumes da cultura
brasileira se sobrepõem àqueles trazidos com a chegada dos portugueses. Logo, o romancista
deixa-nos pensar que, mesmo impregnada pela cultura estrangeira, nossa identidade insistia
em se afirmar através de elementos eminentemente nacionais. Nessa revelação de fatos
folclóricos, Mário de Andrade destaca: “Manuel Antônio de Almeida vem nos garantir, com a
nitidez de um verdadeiro folclorista de hoje, que nos últimos tempos coloniais o desafio era
dos costumes dos portugueses e o fado privativo de brasileiros”. (ANDRADE, 1978: 308)
Esse fator é um outro indicativo da atualidade da escrita de Manuel Antônio,
percebida pelo modernista e recriado por este na composição do seu Macunaíma. Em outra
observação, relevante para a presente pesquisa, o autor e crítico modernista refere-se a
Leonardo como o “sargento graduado pelo amor sacrificial de várias mulheres”. (ANDRADE,
1978: 306)
É com vistas a analisar essa postura anti-romântica que vai nossa discussão.
Leonardo é protegido pela maioria das mulheres da narrativa. Não pratica nenhuma ação para
se dar bem. Consegue um posto de sargento, a herança do padrinho, o casamento nos moldes
burgueses, além de se safar de várias confusões sem que tenha nenhum esforço. Apesar da
30
ausência da mãe legítima, as senhoras com as quais Leonardo convive, mesmo que por um
curto período de tempo, desenvolvem um verdadeiro instinto maternal em sua proteção. Há,
na obra, principalmente pela ação feminina, uma verdadeira facilitação dos acontecimentos
positivos na vida do gaiato. Ora, ao caracterizar a personagem, “o artista expõe o Leonardo
em sua personalidade curiosa de vadio perfeito e burro satisfeito”. (ANDRADE, 1978: 311)
Ainda nessa direção, acrescenta que o mesmo não falará umas dez frases em toda a narrativa
recheada de diálogos. Ele não precisa falar, falam por ele.
Por sua lógica, entendemos que, através da leitura do crítico, o narrador
destaca uma postura antitradicional de Leonardo, já que é submisso e passivo às mulheres, e
omisso quanto às situações. Em controvérsia, revela uma posição bastante tradicional, uma
vez que deixa claro que, para ser “macho”, não é suficiente pertencer ao sexo masculino e
mostrar para a sociedade um corpo forte e robusto, mas é preciso trabalhar, solucionar seus
próprios problemas, conquistar as mulheres, enfim agir com autonomia e determinação. Vê-
se, no excerto abaixo, o comentário de Mário de Andrade sobre a construção da identidade de
Leonardo pelas pessoas com as quais convive:
Não é um homem que se faz por si, os outros é que o fazem por ele, rabo-de-
saia com que todas as mulheres de todas as idades se engraçam, lhe fornecem
espontaneamente pão, guarida, amor, sacrifício e aquelas eternas especulações
de empenhos e cartuchos com que o macho apenas de corpo se livra de
castigos e trabalhos e atinge os seus galões de sargento no fim. (ANDRADE,
1978: 312)
Vale lembrar, no primeiro capítulo da obra Memórias de um sargento de
milícias, que o narrador nos revela que, dentre outros predicativos, os homens do tempo do rei
se faziam de imponentes e tinham influências derivadas de suas condições físicas. Entretanto,
a obra não trata de mostrar a superioridade desses homens, mas de caricaturá-los
demonstrando suas fraquezas e sensibilidades.
Seguindo essa mesma discussão, Mário de Andrade faz uma importante
menção aos costumes retratados por Manuel Antônio no que se refere à vestimenta com que
31
alguns são encontrados. O caricaturista denuncia o desmazelo e a falta de compostura com
que os homens dessa época costumavam se trajar. Algumas autoridades são flagradas em
trajes “menores”, compostos por “ceroulas e chinelas”. É o caso do major Vidigal, maior
autoridade policial da sociedade carioca do tempo, quando é encontrado em casa pela
Comadre, Dona Maria e Maria Regalada, ou o fidalgo que o tenente-coronel encontra “de
tamancos, sem meias, em mangas de camisa, com um capote de lã de xadrez sobre os ombros,
caixa de rapé e lenço encarnado na mão”. (ANDRADE, 1978: 310) Sob esse matiz discursivo,
fica a impressão de que, ao caricaturar essas personagens masculinas, que geralmente ocupam
um cargo oficial ou religioso, detentoras da ordem, o romancista estava revelando uma
sociedade em decadência no que concerne aos seus valores morais.
Nesse sentido, acreditamos ser relevante argüir acerca da construção das
identidades através das ideologias sociais, como a que se aplica à vestimenta, ou mesmo sobre
o que a produção do discurso romanesco nos revela acerca desta transformação na sociedade
que ainda era de costumes aparentemente patriarcais.
Isso posto, convém citar outro fator percebido por Mário de Andrade e que
será desenvolvido na presente pesquisa: é o que se refere ao anti-romantismo de Luisinha
7
, na
ocasião da morte de seu marido José Manuel. Eis o trecho citado pelo crítico:
Estavam presentes algumas pessoas da vizinhança, e uma delas disse
baixinho à outra, vendo o pranto de Luizinha: __ Não são lágrimas de
viúva... __ E não eram, nós já o dissemos: o mundo faz disso as mais das
vezes um crime. E os antecedentes? Porventura ante seu coração fora José
Manuel marido de Luizinha? Nunca o fora senão ante as conveniências;
para as conveniências aquelas lágrimas bastavam. (ANDRADE, 1978: 311)
Este fragmento nos faz levantar algumas questões: existe alguma cobrança
social para o comportamento feminino passivo e sentimentalista? A postura masculina diante
da mulher foi um fator desencadeador da mudança no comportamento feminino exigido pela
7
A variação na grafia do nome Luisinha deve-se às oscilações decorrentes das diferentes edições. Logo, em
nossas explanações, será utilizada a grafia com “s”, posto que é dessa forma que se encontra na 36ª. edição das
Memórias, nosso objeto de estudo.
32
sociedade tradicional? Que fatores levaram a mulher burguesa, representada na obra por
Luisinha, a se encobrir diante das ações masculinas? Seriam o preconceito social, a educação,
o interesse econômico meios de tornar passivas as mulheres numa sociedade tradicional?
Se, por um lado, o crítico modernista considera a obra como um romance de
aventuras filiado ao romance picaresco espanhol, por outro, concorda com a presença do
romantismo em vários trechos das Memórias. Romantismo coberto por senso de limite e de
consciência da existência de uma realidade permeada de mazelas sociais, e que a literatura
tem a missão de revelar. Sobretudo, através das formas literárias, o autor tem o poder de
destacar assuntos relevantes da sociedade. São palavras de Mário de Andrade:
As Memórias de um sargento de milícias são um desses livros que de vez
em quando aparecem mesmo, por assim dizer, à margem das literaturas. O
que leva os seus autores a criá-los é especialmente um reacionarismo
temperamental que os põe contra a retórica de seu tempo e antes de mais
nada contra a vida tal como é, que eles então gozam a valer, lhe exagerando
propositalmente o perfil dos casos e dos homens, pelo cômico,
pelo
humorismo, pelo sarcasmo, pelo grotesco e o caricato. (ANDRADE, 1978:
312-313)
Ainda sobre a questão do exame da sociedade, da autenticidade e da inovação
proporcionadas pela narrativa de Manuel Antônio de Almeida, Afrânio Coutinho acrescenta:
É saborosa a sua veia satírica aos costumes da sociedade do tempo
retratado, a época do rei, durante a qual sobrados motivos havia para a
análise cruel de um espírito sarcástico. Nada lhe escapa, nobres e burgueses,
policiais e funcionários, pequenos e grandes, padres e leigos, políticos e
serventuários da justiça. (ALMEIDA, 1999: 08)
Enfim, o aspecto mais pontuado pela crítica acerca da leitura de Memórias de
um sargento de milícias realizada por Mário de Andrade é a sua classificação estilística e as
características do “pícaro” Leonardo. Contudo, pretendemos ater-nos aos aspectos destacados
pelo crítico que podem tangenciar a nossa pesquisa, auxiliando-nos na análise e na
compreensão das relações de gênero ocorridas na sociedade mostrada na obra.
33
Além da interpretação de Mário de Andrade sobre a obra de Manuel Antônio,
na mesma década de 1940, encontramos as reflexões de Astrogildo Pereira. Em sua leitura,
Pereira revela que, como romance de costumes fluminenses da época, a obra nos fornece:
uma série de documentos de primeira ordem, em nada inferiores às famosas
aquarelas de Debret. Os tipos, os quadros, as cenas, as manchas, as
pequenas anotações vão marcando as páginas da narrativa, que se desdobra
em toda a sua naturalidade, às vezes não isenta de certa malícia. O desenho
é geralmente firme e exato, e o colorido é sempre delicioso. (...) Manuel
Antônio e Debret se completam, e eu não creio possível bem compreender a
vida do Rio no começo do século passado sem os ter lido e visto.
(PEREIRA, 1952: 103)
Conforme exposto por Astrogildo Pereira, a obra de Manuel Antônio de
Almeida é vista como um documento, portanto, entendemos que pode ser utilizada como
instrumento de análise e compreensão da sociedade carioca, em particular, e da sociedade
brasileira, em geral, no período retratado.
Nessa acepção, nos anos 60, José Guilherme Merquior constata: “O
costumismo das Memórias alcança sua dimensão mais profunda: capta não só os costumes do
Rio antigo, como o espírito, o ethos brasileiro”. (MERQUIOR, 1996: 103) É nessa extensão
de leitura, da verificação das características, organização e comportamentos intrínsecos do
brasileiro, que vai o nosso exame do texto. Merquior ainda reafirma o caráter documental da
obra quando aborda a fidelidade com que o autor narra os usos e práticas do começo do
século. Segundo ele, “já houve quem se valesse do romance para estudar os ritos religiosos e
o folclore musical do nosso primeiro oitocentos”. (MERQUIOR, 1996: 100)
Outro aspecto destacado pelo crítico reside na observação sobre o herói
Leonardo. Para ele, a visão picaresca é substituída pela “avacalhação” brasileira, numa
sociedade onde o imoralismo, a bisbilhotice, o compadrismo, a cupidez e a covardia
comandam o espetáculo. Nessa ambiência, as convenções sociais vão sendo ridicularizadas
pelo amoralismo complacente, a fim de garantir o bem-estar da família e dos membros desse
círculo de relações. Esse amoralismo é propiciado pelo “jeitinho” que movimenta a maioria
34
das ações na narrativa. Para exemplificar a ação do “jeitinho” sobre a moral, Merquior recorre
ao momento em que o terrível Major Vidigal destitui a punição de Leonardo, devido a uma
promessa amorosa, e desata-se em amores por Maria Regalada. Isso seria uma evidência do
controle feminino sobre os homens? Através dos ajeitamentos, da fraqueza masculina, ou do
uso do próprio corpo as mulheres estariam dominando as relações nos casos narrados?
À medida que investimos na leitura dos textos críticos, deparamo-nos, na
mesma década dos estudos realizados por Merquior, com a seleção de textos destacados por
Maria José da Trindade Negrão acerca da obra e do autor em estudo. Em meio aos debates
acertados por Negrão, interessa-nos apontar a justificativa para a classificação da obra como
romance romântico. Conforme essa autora, a intenção moralizante presente na narrativa a
aproxima esteticamente do romântico. Essa intenção moralizante, claramente expressa no
casamento de Leonardo e Luisinha, constitui uma forma de legitimar os tradicionais valores
burgueses e conferir ao desfecho da história o final desejado pelos leitores da época. Nesse
ponto, o papel do casamento, numa sociedade tradicional, é uma forma de legalizar os
relacionamentos e permitir o sexo, transformando Leonardo de vadio, aventureiro, em homem
sério e submisso à lei e à tradição. Por sua lógica, torna-se necessário determinarmos até que
ponto o casamento é importante numa sociedade patriarcal. Por que com as pessoas “do povo”
normalmente acontecem os amancebamentos, as relações ilegítimas e somente após a
ascensão social de Leonardo torna-se tão importante legitimar a relação? O casamento seria
uma forma de controlar e solidificar o relacionamento? Por que motivo apenas Luisinha,
sendo um protótipo da mulher burguesa, consegue concretizar o casamento?
Conforme observação de Massaud Moisés (1985), o casamento de Luisinha e
José Manuel representa o modelo de casamentos à moda romântica. De acordo com o próprio
narrador, o estilo de vida imposto à mulher casada da época fazia com que as transgressões
35
ocorressem, por isso era crescente o número de mulheres namoradeiras. Como pode ser
percebido no discurso do narrador da obra Memórias de um sargento de milícias:
Nunca mais Luisinha vira o ar da rua senão às furtadelas, pelas frestas
da rótula: então chorava ela aquela liberdade de que gozava outrora; aqueles
passeios e aquelas palestras à porta em noite de luar; aqueles domingos de
missa na Sé, ao lado de sua tia com o seu rancho de crioulinhas atrás; as
visitas que recebiam, e o Leonardo de quem tinha saudades, e tudo aquilo
enfim a que não dava nesse tempo muito apreço, mas que agora lhe parecia
tão belo e tão agradável. Tendo-se casado com José Manuel para seguir a
vontade de D. Maria, votava a seu marido uma enorme indiferença, que é
talvez o pior de todos os ódios.
Pois a vida de Luisinha, depois de casada, representava com fidelidade
a vida do maior número das moças que então se casavam: era por isso que
as Vidinhas não eram raras. (ALMEIDA, 1999: 111)
Ainda em relação à intenção moralizante da obra, Massaud Moisés constata
que o narrador condena as uniões ilegítimas e assegura que os casórios de arranjos
caricaturam a família, e defende como tônico da saúde pública o casamento por amor, afinal
realizado por Leonardo e Luisinha.
Dando continuidade a seus estudos sobre a obra, Massaud Moisés aborda a
classificação das Memórias como uma novela, sobretudo, uma novela picaresca. Para
esclarecer a natureza do pícaro, Massaud Moisés faz alguns apontamentos citando Ludwig
Pfandl. O pícaro
é um moço nascido quase sempre de pais pobres e de baixa extração,
raramente honrados, o qual, por culpa de más companhias, ou por falta de
instrução, ao ver-se lançado na confusão da vida e entregue a si próprio, cai
na vadiagem, afasta-se do trabalho e luta contra a vida como pode, com
ousadia e falta de escrúpulos, com enganos, malícias e más artes, querelas e
furtos. (...) Suas ocupações são o pedir esmola, os baixos trabalhos de
ocasião, o vagar preguiçosamente de cidade a cidade, o trato com
caminhantes, (...), o jogar baralho com vantagem, em uma palavra, o
exercício de toda classe de enganos e intrigas e de brincadeiras graciosas ou
de mau gosto. Mas não é de modo algum mulherengo nem beberrão. Seu
caráter foi envilecido pela ascendência umas vezes, sempre pelo meio
ambiente. A necessidade de viver o faz desavergonhado e inescrupuloso;
mas, apesar da fome e dos fracassos, do sol e dos aguaceiros em linguagem
real e figurada, não desejaria ser diferente do que é, e não trocaria sua livre
e despreocupada existência por uma sedentariedade honorável, por uma
cama e um teto. Isto é, em geral, um pícaro. (MOISÉS, 1985: 211)
36
Segundo esses esclarecimentos, o protagonista das Memórias não pode ser
considerado pícaro, já que a narrativa relata as aventuras de Leonardo até se tornar um
sargento de milícias, isto é, o mesmo ascende socialmente através da mudança de classe e de
comportamento. Isso não ocorre com o pícaro, que se mantém na mesma condição até o final
da história. O pícaro é vagabundo e aventureiro com o propósito da sobrevivência, enquanto o
herói almeidiano não sai do Rio de Janeiro. Suas características o aproximam do malandro
carioca que, por desamor ao trabalho, vive das artimanhas e não se parece com um marginal
que engana para matar a fome. Sendo um dos componentes básicos do pícaro, a fome não faz
parte da realidade das personagens da obra em questão. Leonardo, como diz o narrador das
Memórias, “era um moleque traquinas e guloso; quando não traquinava, comia”.
Ademais, acerca dessa herança picaresca das novelas espanholas, ressalta o
crítico que, à vista da tendência contemporânea para as narrativas sentimentais, é pouco
provável que Manuel Antônio as conhecesse. Nesse sentido, reitera que os tipos e as situações
das Memórias foram extraídos da realidade social do Rio de Janeiro, entre 1808 e 1820. Mais
especificamente, foram-lhe narradas pelo sargento Antônio César Ramos. Como comenta
Wilson Martins (1979), depois de assimilar as memórias do velho sargento, o ficcionista
sobrepõe a elas uma dose de fantasia. Sobre essas duas temperaturas cronológicas, discute
Massaud Moisés:
Baseada em memórias alheias, a novela de Manuel Antônio de Almeida é,
por conseguinte, uma biografia de Antônio César Ramos, ou autobiografia
deste escrita por mãos alheias: da perspectiva do autor, as memórias são
alheias; da perspectiva do biografado, o texto é alheio. Memórias de um
outro, não do prosador, como se este se limitasse, humildemente, ao papel
de escriba, não sem injetar no relato do interlocutor sementes de anarquia,
oriundas de sua fantasia criadora e seu agudo senso de observação. De
onde a sobreposição de memórias: o autor narra sua memória das memórias
alheias, talvez cônscio de as lembranças do sargento conterem um tudo-
nada de exagero ou distorção do tempo, assim permitindo-lhe o livre
exercício da imaginação. De qualquer modo, o conteúdo narrativo não lhe
pertence, a ser correta a informação de Melo Morais Filho, mas, sim, a
forma. (MOISÉS, 1985: 210)
37
Se Manuel Antônio apropria-se da memória de outrem para construir sua
narrativa, ele ainda faz uso da sua própria memória, da sua criação individual, uma vez que o
texto não foi escrito no momento em que as memórias foram relatadas, podendo o romancista
ter refletido e criado novas realidades sobre elas. Nesse ínterim, de assimilação e criação,
acreditamos que o mesmo deve ter adequado o conteúdo à sua forma particular de escrita.
Massaud Moisés discute, ainda, o realismo presente na narrativa. Para Moisés,
esse realismo seria aquela atitude estética presente praticamente em toda a história da arte
literária ocidental e não o realismo de “escola”. Segundo ele, encontramos nas Memórias o
realismo
de quem se volta para o mundo circundante e procura delinear-lhe o relevo
com a verossimilhança possível, não o Realismo que pretendeu aceder à
“verdade” por meio do catecismo positivista. Conquanto inegável a visão
realista que ordena as andanças de Leonardo e comparsas, falta-lhe o
suporte científico para identificar-se com as correntes literárias do fim do
século; falta-lhe ser literatura de tese, já que constitui literatura não
engajada, mais com vistas ao entretenimento que à edificação dos leitores e
à transformação do organismo social. (MOISÉS, 1985: 214)
Esse realismo constante do texto pode ser percebido, também, no tom de
crônica de costumes que contrasta com as narrativas da época. Como destaca Moisés, “ao
invés de heróis e heroínas, senhoras e senhores de alta roda, as personagens que povoam a
narrativa são fêmeas e machos atraídos pelo sexo, sem hipocrisia ou afetação. Não posam, não
fingem, são o que são, e assim desmascaram a imoralidade em que naufraga a sociedade da
época”. (MOISÉS, 1985: 206-219) Com esse esclarecimento, Moisés atribui uma perspectiva
moralista à escrita de Manuel Antônio de Almeida da qual discorda o crítico Antonio Candido
(1993). Este destaca que o que ocorre na obra é certo moralismo corriqueiro, mas pouca ou
nenhuma intenção realmente moral, apesar dos protestos constantes com que o narrador
procura dar cunho exemplar às malandragens de Leonardo.
Para Moisés, na construção desse universo particular, Manuel Antônio não
oferece às leitoras do tempo a imagem cor-de-rosa do que gostariam de ser, mas oferecia
38
aquela imagem que não queriam ser, através das caricaturas, do risível, do não ocultamento
das mazelas, dos defeitos físicos e de caráter. Na verdade, a novela chamava a atenção para
um tipo de comportamento crítico que os leitores se recusariam a atingir.
Conforme Massaud Moisés, o realismo presente em Memórias de um sargento
de milícias ainda se manifesta no registro das mudanças fisiológicas que o sentimento
amoroso provoca nas donzelas. Através de uma descrição anti-romântica, o narrador delineia
um retrato natural da personagem. Vejamos o seguinte trecho extraído das Memórias que
pode endossar a concepção do crítico:
Desde o dia em que Leonardo fizera a sua declaração amorosa, uma
mudança notável se começou a operar em Luisinha, cada hora se tornava
mais sensível à diferença tanto de físico como do seu moral. Seus contornos
começavam a redondar-se; seus braços, até ali finos e sempre caídos,
engrossavam-se e tornavam-se mais ágeis; suas faces magras e pálidas,
enchiam-se e tomavam essa cor que só sabe ter o rosto da mulher em certa
época da vida; a cabeça, que trazia habitualmente baixa, erguia-se agora
graciosamente; os olhos, até ali amortecidos, começavam a despedir
lampejos brilhantes; falava, movia-se, agitava-se. (ALMEIDA, 1999: 68)
Além do realismo destacado por Moisés, no fragmento acima citado, podemos
observar que o narrador nos revela o homem, representado pela personagem Leonardo,
facilmente transformado ou sensibilizado pelos sentimentos. Acreditamos que essa postura
masculina modifica ou reorganiza as relações de gênero próprias da sociedade patriarcal em
que se passa a história.
Essa transformação nas relações sociais se dá, ainda, no comportamento
apresentado pela personagem Vidinha. Como tipificação de muitas mulheres modernas,
Vidinha é aquela que não camufla; ao contrário, desmascara, é ativa, enfrenta brigas, busca
seus objetivos e, de acordo com o narrador, é “uma formidável namoradeira”. Faz parte do rol
das mulheres atípicas para uma sociedade tradicional. Segundo Massaud Moisés, apenas essa
personagem não é ridicularizada pelo narrador, e torna-se o verdadeiro “elogio definitivo da
mulata nacional”. Eis o que diz o narrador:
39
Vidinha era uma mulatinha de 18 a 20 anos, de altura regular, ombros
largos, peito alteado, cintura fina e pés pequeninos; tinha os olhos muito
pretos e muito vivos, os lábios grossos e úmidos, os dentes alvíssimos, a
fala era um pouco descansada, doce e afinada. (ALMEIDA, 1999: 79)
Em sua análise, Moisés constata que, por ser retratada ao natural, Vidinha
roubou o papel da personagem principal, Luisinha. Nesse sentido, a personagem secundária
“se incorporou para sempre à galeria feminina da Literatura Brasileira, enquanto Luisinha se
perde no mare magnum das donzelas insossas que passeiam pela ficção romântica. (...)
Vidinha nos mostra a face oculta, e mais próxima da realidade dos fatos, das Isauras e
Rosauras”. (MOISÉS, 1985: 218) Acrescenta, ainda, que pode ser percebida, em Vidinha, a
antecipação da personagem Gabriela, de Jorge Amado, uma vez que emergem de mesmo
fundo social, trazidas por semelhante visão do mundo. A respeito dessa presença feminina na
obra, Ivete Walty identifica “duas faces das mulheres daquele tempo: a de vida livre e a de
comportamento recatado”. (WALTY, 1980: 56)
Nos anos de 1970, Walnice Nogueira Galvão, no ensaio crítico intitulado “No
tempo de rei”, analisa o conteúdo das Memórias através do estudo de sua forma. Nesse
estudo, aponta que, da postura de cronista de Manuel Antônio de Almeida, resulta um amplo
quadro de costumes da época do rei D. João VI. Conforme Galvão, tanto o conteúdo quanto a
forma apresentam fatores de diferenciação entre o romance de Manuel Antônio e a novela
picaresca. Nessa última, o herói é o fio condutor da narrativa, aparecendo em todos os
capítulos, enquanto nas Memórias, dos 48 capítulos do livro, Leonardo aparece apenas em 30.
Alguns são apenas acessórios. Diante dessas e outras análises, Walnice Nogueira Galvão
conclui que a obra Memórias de um sargento de milícias é mais romance que novela
picaresca.
Com maior ou menor ênfase, alguns críticos também têm aceitado ou rejeitado
o papel moralizante atribuído à obra almeidiana. Pelo levantamento da crítica de Walnice
Nogueira Galvão, pode-se acreditar que o texto não possui intenção de dar exemplos ou
40
corrigir os defeitos da sociedade. Ele entra no quadro geral da crônica de costumes, o autor
fala de dentro da obra participando apenas como cronista. Quando apresenta aspectos
negativos da época o faz com muita discrição. “Neste sentido, fica a meio caminho entre o
romance moral inglês do século XVIII e o amoralismo (antes moral pragmática) da novela
picaresca espanhola, mas bem mais próximo desta última”. (GALVÃO, 1976: 33)
Como expõe a autora, a mimesis da realidade carioca é revelada em perfeita
harmonia entre os aspectos formais e de conteúdo, de modo que “[a] ausência de personagens
íntegras positivas indica uma visão do mundo ‘em estilo baixo’”. (GALVÃO, 1976: 29) Essas
personagens íntegras positivas seriam caracterizadas por não apresentar nenhuma mácula no
caráter, dignidade quanto ao comportamento moral ou real, aparências, trajes, etc. Isto é, sob
este estilo baixo, Manuel Antônio de Almeida recusa-se a uma visão romanesca ou
embelezadora do real, encara resolutamente o ridículo do homem e de suas obras. Todos têm
seus pontos negativos, alguns apenas apresentam aspectos negativos, como é o caso de José
Manuel e de Maria-da-Hortaliça. O ponto fraco do Major Vidigal, do padre, de Leonardo, pai
e filho, é o mesmo: o “aguilhão da carne”. Essa fraqueza masculina decorrente das
sensibilidades amorosas é atribuída pelo narrador à herança portuguesa.
Conforme Walnice Nogueira Galvão, as personagens de Manuel Antônio
configuram-se como planas em baixo nível, cujas características, tanto do ângulo externo,
quanto interno, são acentuadas pelos aspectos negativos e risíveis. “Do ângulo interno, seus
móveis são invariáveis e sempre primários: luxúria, cobiça, vaidade, ou simplesmente tolice e
frivolidade. Do ângulo externo, sua caracterização é também constante e acentua os aspectos
negativos, cômicos ou grotescos”. (GALVÃO, 1976: 30) As personagens, sendo homens ou
mulheres, são mostradas demasiadamente gordas ou magras, muito altas ou muito baixas, os
trajes são cômicos, os rostos grotescos, os hábitos e costumes risíveis. Personagens do tipo de
José Manuel, feio, baixinho, ridículo, cara de velhaco, assim como Leonardo-Pataca, Maria-
41
Regalada, Luisinha, enfim, ninguém escapa às observações grotescas do autor. Manuel
Antônio é fiel ao estilo baixo quando se recusa a uma visão romanesca idealizadora do real
para encenar o ridículo do homem e de suas obras. O estilo baixo acontece também na
narração, nos diálogos, onde há a reprodução da linguagem carioca da época.
Outro aspecto, discutido por Walnice Nogueira Galvão, que vai ao encontro
deste estudo, é a depreciação e a comicidade representadas pelas figuras masculinas.
Leonardo-Pataca, o Major Vidigal, o mestre-de-cerimônias e Leonardo têm o seu ponto fraco
nos desejos carnais. O Vidigal, segundo Galvão, vai bem até “aparecer a imensa vaidade do
homem e seu fraco pela Maria Regalada”. Nesse sentido, o narrador “já o desceu do
pedestal”, isto é, evidencia que o homem não apresenta mais a característica fundamental da
sociedade tradicional, a insensibilidade e o controle sobre o feminino. Nessa transformação
das identidades, deparamo-nos com a herança atribuída a Leonardo por seu pai, Leonardo-
Pataca: o sentimentalismo, o fluido amoroso.
Apesar de, no decorrer da narrativa, Leonardo se deparar com a má-sorte no
amor, ele possui uma simpatia irresistível, de sorte que a maioria das mulheres o protege e
intercede por ele. São sua astúcia e malandragem o veículo que permite a sua ascensão ao
cargo de sargento de milícias. Sob essa perspectiva, Walnice Nogueira Galvão observa que
Manuel Antônio de Almeida é o primeiro a fixar, em literatura, o caráter nacional brasileiro,
“que resulta num herói sem nenhum caráter, ou melhor, que apresenta os traços fundamentais
do estereótipo do brasileiro”. Logo, a autora acredita que pode saudar em Leonardo o
ancestral de Macunaíma, já que a ficção, particularmente do século XX, tem atribuído ao
42
brasileiro as características de “vagabundagem, preguiça, sensualidade, indisciplina,
vivacidade de espírito - nossa modalidade de ‘inteligência’- e sobretudo simpatia”.
(GALVÃO, 1976: 32)
8
Galvão acrescenta ainda que, ao tecer essa crônica de costumes, o narrador
encanta por meio de dois elementos: o ambiente - “a cidade do Rio de Janeiro no tempo de
rei, com seus costumes pitorescos, como espaço constante em que se desenrola o enredo; [o]
estilo - o humor peculiar do autor, seu ângulo caricatural e grotesco, o tom de conversa ágil
em que se expressa”. (GALVÃO, 1976: 33)
1.3. Um romance malandro?
Eu ficaria embaraçado se houvesse de classificar este romance em uma das
escolas em que se dividem as concepções e as maneiras literárias.
José Veríssimo
Conforme postula Cecília de Lara (1978), praticamente não há rotulação que
não se tenha atribuído às Memórias de um sargento de milícias, que tem saído ilesa a essas
interpretações. Antonio Candido, em “Dialética da malandragem”, um dos mais relevantes e
difundidos estudos sobre as Memórias, de Manuel Antônio de Almeida, destaca, também, a
classificação da obra como um dos aspectos controversos apontados pela crítica literária.
A respeito da aproximação da novela picaresca, Candido concorda que
Leonardo Filho possui algumas afinidades com os tipos picarescos, mas não pode ser
classificado como tal, já que muitas discrepâncias existem entre ambos. Dentre as afinidades
com o herói espanhol estão: a humilde e marginal origem, "filho de uma pisadela e um
beliscão”; como eles, é largado no mundo, mas não abandonado, pois apesar de ser deixado
pelos pais, é acolhido pelas mais diversas personagens. Não se depara com a fome, que é um
8
Interessante a verificação da crítica às Memórias de um sargento de milícias realizada por Flávio Rene Kothe
(2000), em que ele reexamina a concepção da característica picaresca para o memorando Leonardo,
aproximando-o dos anti-heróis populares. Nesse estudo, Rene Kothe inaugura uma relevante interpretação para a
obra almeidiana quando relaciona o riso e a sátira presentes na narrativa ao texto tragicômico.
43
dos componentes básicos do pícaro, falta-lhe, ainda, o choque áspero com a realidade, que
leva à mentira, à dissimulação, ao roubo, o que constitui a desculpa das ações picarescas. De
acordo com Candido (1993), Leonardo não é transformado pelas circunstâncias, porém já
nasce “malandro feito”, sendo essa malandragem uma qualidade essencial em sua
personagem.
Outro fator destacado pelo crítico que distancia o herói almeidiano dos
protagonistas dos romances espanhóis é a ausência da condição servil, aspecto fundamental
nas novelas picarescas espanholas. Nesse sentido, Leonardo constitui um anti-pícaro, já que o
pícaro não é sentimental, mas o nosso memorando desenvolve um sentimento por Luisinha,
com quem termina casado, promovido ao cargo de sargento de milícias, afortunado devido ao
recebimento de cinco heranças que lhe vieram sem que fizesse o menor esforço. Além disso,
por ser narrado em terceira pessoa e não na primeira, como ocorre na novela espanhola, sua
situação é mais coerente com a condição de fantoche, manipulado pelo narrador e pelas outras
personagens, principalmente as femininas. Assim, não sendo nenhum modelo de virtude, é
leal e não procura agradar os “superiores”, o que constitui a meta do malandro espanhol.
Nesse exame dos aspectos picarescos no texto de Manuel Antônio, Candido
destaca ainda que o herói fica apenas na cidade do Rio de Janeiro, contrariamente ao que
ocorre com as andanças do pícaro pelos mais diversos espaços. Fica, então, a critério de
Oldrich Belic (1963), o esclarecimento acerca dos fundamentos básicos da composição da
novela picaresca: o da viagem, o da servidão e o do caráter autobiográfico da narração. Ora,
relacionando os estudos de Belic aos postulados de Candido, resta afirmar a arbitrariedade da
classificação picaresca do texto de Manuel Antônio, uma vez que nenhum desses aspectos é
percebido na obra.
Perpassando as classificações de romance picaresco, malandro, documentário e
representativo, Candido explica que, com isso, e por tudo isso, Leonardo não é um pícaro,
44
mas “o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira”. Evidenciando os traços
fundamentais do estereótipo do brasileiro, esse malandro seria elevado à categoria de símbolo
por Mário de Andrade em Macunaíma. Dito isso, cabe acrescentar que, na narrativa,
predominam traços folclorísticos, típicos de heróis populares. Candido explica que essa veia
folclórica manifesta-se no cunho arquetípico dos contos da carochinha. O princípio do texto:
“Era no tempo do Rei”, a presença de fadas boas (Padrinho e Madrinha), a fada agourenta
(Vizinha), todos cercando e servindo aos desígnios da “sina” do menino no curso da narrativa.
Esse laço com os modelos populares das personagens, pai e filho, é materializado pela tolice e
pela esperteza. Ambos acabam com a vida em ordem, apesar das tolices, espertezas e
subordinações. Esse viés analítico de Candido revela-nos que o narrador realiza a depreciação
da figura do homem, apresentando suas fraquezas, seus aspectos risíveis, tanto físicos quanto
comportamentais.
De fato, o crítico ressalta que, para se compreender uma obra como as
Memórias, convém lembrar a sua afinidade com a produção satírica e cômica da Regência e
primeiros anos do Segundo Reinado. O jornalismo, a poesia, o desenho, o teatro se ocupavam
da análise moral e política através da sátira de costumes e retratos de tipos característicos,
como o faz Manuel Antônio de Almeida. Ao tecer essa composição cômica e satírica, não se
pode dizer que o livro seja eminentemente documentário, revelando uma reprodução fiel da
sociedade em que a ação se desenvolve, mas que “sugere a presença viva de uma sociedade
que nos parece bastante coerente e existente, e que ligamos à do Rio de Janeiro do começo do
século XIX, tendo Astrogildo Pereira chegado a compará-lo às gravuras de Debret, como
força representativa”. (CANDIDO, 1993: 31)
Quando sugere essa sociedade carioca, Manuel Antônio traça um panorama
restrito, tanto no aspecto espacial, quanto social. A ação decorre, de modo geral, na região
central do Rio de Janeiro; apenas em um ou dois episódios a ação é deslocada para o
45
subúrbio. Socialmente, a ação se desenvolve em torno da pequena burguesia. Além dessa, há
na narrativa apenas uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia, e ausência de uma
camada bastante representativa do período em questão: os escravos. “Suprimindo o escravo,
Manuel Antônio suprimiu quase totalmente o trabalho; suprimindo as classes dirigentes,
suprimiu os controles do mando”, completa Candido. (CANDIDO, 1993: 45) Por esse, dentre
outros fatores, Antonio Candido acrescenta que a obra pode ser considerada um documento
restrito, já que ignora as camadas dirigentes, de um lado, as camadas básicas, de outro. Assim,
o crítico salienta que os dados reais, ou a documentação “precisam ser encarados como
elementos de composição, não como informes proporcionados pelo autor, pois neste caso
estaríamos reduzindo o romance a uma série de quadros descritivos dos costumes do tempo”.
(CANDIDO, 1993: 34) Ronaldo Costa Fernandes (1996) analisando as Memórias de um
sargento de milícias esclarece que foi nas descrições das relações familiares, dos costumes e
hábitos domésticos que Manuel Antônio de Almeida logrou a verossimilhança que não
conseguira com as descrições quase folclóricas das festas populares.
Para não corrermos o risco de tomá-la como documento, Candido explica que é
provável que a impressão de realidade comunicada pelo livro não venha dos dados extraídos
da sociedade do tempo do Rei, mas seja decorrente de uma “visão mais profunda, embora
instintiva, da função, ou ‘destino’ das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire
plena força quando é parte integrante do ato e componente das situações” (p.35). Sob esse
pensamento do crítico moderno, voltamos nosso olhar para a discussão das relações de
gênero, principalmente para a condição feminina na narrativa. Segundo essa interpretação, o
narrador revela que, numa sociedade tradicional, a mulher teria dois caminhos: tornar-se
namoradeira, prostituta, ou ser submissa aos mandos masculinos através do casamento.
Nessa sociedade, as relações sociais são constituídas pelos estratos da ordem e
da desordem, e “as Memórias são um livro agudo como percepção das relações humanas
46
tomadas em conjunto. Se não teve consciência nítida, é fora de dúvida que o autor teve
maestria suficiente para organizar um certo número de personagens segundo intuições
adequadas da realidade social”. (CANDIDO,1993: 37) Considerando-se as personagens
Leonardo Pai e Leonardo Filho, esses oscilam entre dois pólos, um positivo e outro negativo,
até serem absorvidos pelo pólo positivo no final da trama. Mesmo sendo um representante da
ordem, Leonardo-Pataca se envolve nos meandros da desordem por causa dos amores pela
Cigana, mas adquire a estabilidade através de uma união, embora ilegítima, situação habitual
segundo os costumes do tempo, com Chiquinha, a filha da comadre. Finalmente, Leonardo
Filho também oscila entre esses dois hemisférios, a ordem estabelecida e as condutas
transgressivas, para integrar-se na primeira, depois de passar pelas experiências das outras,
sem ser julgado pelos juízos morais. Esse amoralismo, também destacado por Merquior e
Walnice Nogueira Galvão, é relembrado por Candido, quando observa que:
O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na
aceitação risonha do ‘homem como ele é’, mistura de cinismo e bonomia
que mostra ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e
o da desordem; entre o que se poderia chamar convencionalmente o bem e o
mal. (CANDIDO, 1993: 39)
Nessa alternância entre ordem e desordem, está a relação de Leonardo Filho
com Luisinha e Vidinha. A primeira, no plano da ordem, e a segunda, no plano da desordem.
Nesse ângulo, comenta o crítico que, contrariamente ao que diz o narrador, Leonardo não tem
a mesma “fibra amorosa” do pai, por isso passa facilmente a outros amores. Reiterando a
concepção de que a obra apresenta dois tipos de mulheres da época, o autor destaca que:
Luisinha e Vidinha constituem um par admiravelmente simétrico. A
primeira, no plano da ordem, é a mocinha burguesa com quem não há
relação viável fora do casamento, pois ela traz consigo herança, parentela,
posição e deveres. Vidinha, no plano da desordem, é a mulher que se pode
apenas amar, sem casamento nem deveres, porque nada conduz além da sua
graça e da sua curiosa família sem obrigação nem sanção, onde todos se
arrumam mais ou menos conforme os pendores do instinto e do prazer.
(CANDIDO, 1993: 40)
47
O crítico discute, ainda, que Luisinha vem a ser uma esposa caseira e fiel, e
provavelmente Leonardo siga as normas dos maridos da época, formando um casal
suplementar com Vidinha ou outra mulher, como era o costume da sociedade tradicional, isto
é, inserindo-se na ordem, continua perpassando pela desordem. Vale lembrar que isso pode
ocorrer caso ele não adquira a mesma “sina” do pai, ou seja, ser traído pelas mulheres. Mas,
nesse universo, tudo é permitido:
Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por
caminhos inumeráveis, que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de
arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do
Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas
situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas.
(CANDIDO, 1993: 41)
Por um lado, o sentido profundo das Memórias encontra-se num balanço entre
a ordem e a desordem, revelando, em geral, um homem caricaturado e ridicularizado, seja
através de seu comportamento, seja de sua fraqueza ou sua aparência física. Por outro, é o
meio encontrado pelo autor para recriar a sociedade daquele tempo, vista através de um de
seus setores. Manuel Antônio constrói um romance “profundamente social”, chamado por
Candido de romance representativo, onde todos acabam circulando entre o lícito e o ilícito
“com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das
fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX”. (CANDIDO,
1993: 45) Ao abordar essa verossimilhança no discurso romanesco, o crítico ratifica que o
sentimento de realidade não depende do dado real, embora o pressuponha. A estrutura do
livro é constituída pelo cunho popular, introduzindo elementos irreais e lendários, típicos de
toda cultura, e pelo ritmo social, que representa uma sociedade historicamente limitada, o que
intensifica a presença do realismo. Entretanto, essa universalidade folclórica encobre grande
parte do realismo da obra.
Como pretendemos esclarecer neste estudo, em Memórias de um sargento de
milícias, a virilidade masculina, principalmente em seu lado emocional, enfrenta um período
48
de declínio ou flexibilização, e “o sentimento do homem aparece nele [no romance] como
uma espécie de curiosidade superficial”, pondera Candido (p.47).
Nessa trama, as relações sociais são regidas por comportamentos ora
reprováveis, ora louváveis que se compensam. Enfim, para explicar esse universo livre de
remorso, censura e culpabilidade, Antonio Candido recorre à nossa formação histórica. No
Brasil, nunca se deparou com “a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da
liberdade senão como capricho” (p.51). A sociabilidade se deu de forma espontânea, por isso
diminuíram-se os choques entre a norma e a conduta, resultando em conflitos de consciência
menos dramáticos. Nessa “terra-de-ninguém moral”, a transgressão é apenas um matiz que
transcende a norma e vai ao crime. Com esse estilo encantador e desvinculado da ideologia
das classes dominantes de seu tempo, Manuel Antônio reverte a neutralidade moral em
neutralidade social, e revela uma terra sem males. “Lá não se trabalha, não se passa
necessidade, tudo se remedeia. Na sociedade parasitária e indolente, que era a dos homens
livres do Brasil de então, haveria muito disto, graças à brutalidade do trabalho escravo, que o
autor elide junto com outras formas de violência”. (CANDIDO, 1993: 53-54)
Logo, conclui que, ao tecer essa fábula realista, o romancista nos faz
vislumbrar através das situações sociais concretas “uma espécie de mundo arquetípico da
lenda, onde o realismo é contrabalançado por elementos brandamente fabulosos: nascimento
aventuroso, numes tutelares, dragões, escamoteação da ordem econômica, inviabilidade da
cronologia, ilogicidade das relações”. (p.54) Enfim, por tudo isso devemos tomá-lo, com
reserva, como um panorama documentário do Brasil dos primeiros anos do século XIX.
Roberto Schwarz, no brilhante ensaio “Pressupostos, salvo engano de
‘Dialética da malandragem’”, reitera a relevância do estudo crítico realizado por Antonio
Candido acerca das Memórias. Nesse ensaio, Schwarz revela que o estudo de Candido,
preferencialmente, pretende demonstrar como é estabelecida, na ficção almeidiana, a relação
49
da forma com o processo social. Segundo ele, Antonio Candido procura estabelecer a forma
como ponto de partida. Nessa abordagem, designa o momento em que uma forma real é
transformada em forma literária, construindo um mundo imaginário. E acrescenta que
“conteúdos de romance não são conteúdos reais, e vê-los esteticamente é vê-los no contexto
da forma, a qual por sua vez retoma (elabora ou decalca) uma forma social, que se
compreende em termos do movimento da sociedade global”. (SCHWARZ, 2002: 142)
Schwarz destaca, ainda, que o crítico Antonio Candido examina a concepção documentária da
obra, atribuída pela crítica naturalista, mas afirma que o aspecto propriamente documentário
não pode ser considerado a medida crítica decisiva, já que essa documentação não é o aspecto
principal, apenas um dentre outros. Nesse sentido, em relação à obra de Manuel Antônio,
Schwarz acrescenta: “[t]rata-se da imitação de uma estrutura histórica por uma estrutura
literária. Quanto aos pressupostos desta posição, note-se que o país a que alude a forma de um
romance não é o mesmo a que alude uma passagem de intenção documentária”. (SCHWARZ,
2002: 135)
Segundo Schwarz, esse viés discursivo de Candido estabelece a conexão entre
literatura e sociedade, mais ainda, busca mostrar como o contexto histórico das Memórias foi
manipulado pelo autor na construção de sua forma literária. Dizendo o mesmo em outras
palavras, Schwarz conclui: “Está na firmeza com que Antonio Candido se deixa guiar pelo
discernimento formal, seja para discriminar as componentes de fatura do livro e estabelecer a
sua organização, seja para buscar o seu correlato social, que será construído para explicar a
forma”. (SCHWARZ, 2002: 145)
Outro ponto importante destacado por Schwarz, no estudo de Candido, diz
respeito à apresentação de uma linha inédita para a teoria literária, a “linha da malandragem”.
Após apresentar as controvérsias quanto ao caráter picaresco do herói Leonardo, o crítico
classifica-o como malandro. Deixemos a critério de Roberto Schwarz a explicação do que seja
50
essa “figura historicamente original, que sintetiza: a) uma dimensão folclórica e pré-moderna-
o tricster; b) um clima cômico datado- a produção satírica do período regencial; e c) uma
intuição profunda do movimento da sociedade brasileira”. (SCHWARZ, 2002: 131)
Com todas essas semelhanças e controvérsias constatadas nas leituras dos
críticos, interessa menos determinarmos uma classificação única, mas explicitar a riqueza de
interpretações e releituras que a obra nos proporciona à medida que vai sendo repensada. Por
isso, nossa proposta de reexaminar a estética, a crítica e investigar as relações de gênero na
obra converte-se numa outra forma de leitura e atualização da escrita do século XIX. Como
leitores e críticos, desde o período de sua escrita, as Memórias de Leonardo constituem uma
fonte inesgotável de interpretações. “E ainda hoje, apesar dos estudos que suscitou, não se
pode afirmar que o balanço crítico está realizado: sua riqueza intrínseca e a circunstância
meio insólita de ter vindo a público em 1852-1853 continuam provocando exegeses de vária
sorte”, conclui Massaud Moisés. (1985: 207)
9
9
Para um estudo mais amplo acerca da crítica sobre as Memórias de um sargento de milícias, aconselhamos a
verificação do material constante da bibliografia desta pesquisa, uma vez que procuramos, apenas, abordar os
aspectos mais relevantes para o nosso estudo, e aqueles mais reiterados pela crítica.
51
CAPÍTULO 2 - DESFIANDO O “NOVELO” FICCIONAL
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas
não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se
deve exigir do escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne
homem do seu tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos
no espaço e no tempo.
Machado de Assis
A partir do pressuposto machadiano, é possível pensar no papel do autor
enquanto tradutor de seu momento histórico. Em seu romance, Manuel Antônio de Almeida,
ao representar uma coletividade, de uma classe ainda anônima, reconstrói a vida social
carioca, convidando o leitor a rir dos costumes e da tradição social de seu tempo.
Desfiando o novelo narrativo, vamos evidenciando que, na escrita de Maneco
de Almeida não há, evidentemente, uma peculiaridade da sua concepção de mundo real, mas a
sua percepção artística do mundo. Desvendar esse processo de preparação artística implica
aproximarmos da poética do romance, procurando nela os elementos que compõem a sua
verossimilhança interna, como diz Antonio Candido. Assim, é certo que não se pode separar a
poética das análises histórico-sociais, assim como não se pode dissolvê-las no discurso
histórico.
Certamente, o ofício do ficcionista encontra-se, então, na seleção das
estratégias de convencimento a fim de criar a ilusão da existência dos aspectos narrados.
Assim o faz Manuel Antônio de Almeida. Com este intuito, procuraremos repensar a
construção do espaço, do tempo, da mímesis, das personagens e da ideologia presentes na obra
Memórias de um sargento de milícias com o desígnio de compreender o processo de sua
construção.
Nessa perspectiva, visamos elucidar menos a relação entre o romance e a
realidade social, com suas motivações psicológicas, referência ao histórico ou modelos
descritivos, do que a relação existente entre o romance e a construção do seu próprio discurso.
52
Logo, partiremos para o exame da representação do espaço, do tempo e das personagens
ficcionais como elementos fundamentais na concepção da mímesis.
2.1. A ilusão da Mímesis e da representação
O que parece verdadeiro não precisa, por isso, e em grau algum, ser
verdadeiro; mas deve positivamente parecer.
Schlegel
Uma das concepções destacadas pela crítica acerca do romance Memórias de
um sargento de milícias refere-se às marcas do real, isto é, à conformidade com os costumes,
comportamentos, lugares e personagens da época narrada por Manuel de Almeida.
Parte da crítica consultada — José Veríssimo, Astrogildo Pereira, José
Guilherme Merquior, Walnice Nogueira Galvão, dentre outros — reconhece o veio
documental presente na narrativa, e garante que nela há possibilidade de se conhecerem e de
se examinarem alguns aspectos do tempo do rei D. João VI.
10
Com o intuito de compreender acerca do papel documental e representativo da
ficção almeidiana, recorremos à prudente interpretação de Antonio Candido, em “Dialética da
malandragem”. Dada a sua relevância para a apreensão do proposto, antes de principiarmos o
exame de como essa documentação se dá na instância narrativa, é inevitável tratar do assunto
sem recorrer às primeiras discussões acerca da mímesis e da verossimilhança, conceitos
inicialmente pensados por Aristóteles, na Grécia antiga.
Como anota a epígrafe supracitada, o verossímil é algo subjetivo. Constitui
uma complexa fronteira entre o documental e o ficcional. Sob essa perspectiva, como constata
Luiz Costa Lima (2000), é óbvia a recusa de subordinar o poético a um modelo externo e
anterior. Na mímesis aristotélica, esse algo anterior adquire um alto grau de liberdade, seja por
10
Como constata Ronaldo Costa Fernandes (1996), as formas de narração embrionárias, a palavra novel do
inglês e novela do espanhol, tiveram origem no termo jurídico novella = novidade, no Código de Justiniano,
fazendo referência a um adendo ou complemento a uma lei anterior; portanto, o termo romance enquanto forma
narrativa nasce dentro do espírito do documento.
53
seu próprio ato de feitura, seja pela imitação que isto representa. Em outras palavras, uma
leitura mais profunda da Poética de Aristóteles aponta que a verossimilhança, como um traço
de atuação da mímesis, liga-se a dois fatores fundamentais: ao reflexo da sociedade na escrita
e aos elementos construídos que obedecem às leis do texto. Veja-se, no capítulo IX da
Poética, sob a tradução de Jaime Bruna, que a questão principal é exemplarmente mencionada
no momento em que o filósofo discute a distinção entre história e poesia:
É claro, também, pelo que atrás ficou dito, que a obra do poeta não consiste
em contar o que aconteceu, mas sim coisas as quais podiam acontecer,
possíveis do ponto de vista da verossimilhança ou da necessidade.
Não é em metrificar ou não que diferem o historiador e o poeta; a obra de
Heródoto podia ser metrificada; não seria menos uma história com o metro
do que sem ele; a diferença está em que um narra acontecimentos e o outro,
fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra mais filosofia e
elevação do que a História, aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos
particulares. (ARISTÓTELES, 2005: 03)
Temos, por conseguinte que, embora importante, a verossimilhança é apenas
um dos componentes da poesia. Aristóteles destaca, ainda, a tarefa do poeta diante da seleção
de aspectos da realidade e a forma que encontra para combinar possibilidade, verossimilhança
e necessidade. Situando a verossimilhança na esfera do possível, aproxima-a da filosofia sem
afastá-la da experiência comum de todo ser humano. E acrescenta que “imitar é natural ao
homem”.
Dito isso, seria arbitrário pensar a verossimilhança como mera imitação do
real. Como comenta Beth Brait, “não cabe à narrativa poética reproduzir o que existe, mas
compor as suas possibilidades”. (BRAIT, 1987: 31) Entende-se assim a obra mimética como
uma transposição que capta uma forma, isto é, como o resultado de uma seleção de elementos
oferecidos pela realidade, adaptados pelo poeta a fim de transformá-los em objeto artístico.
Neste parâmetro, acreditamos ser valiosa a interpretação de Luiz Costa Lima
(1986) a respeito da documentalidade face à literatura, quando aborda que as idéias devem ser
tratadas como motivos a serem estilizados, como um fundo a dissolver-se na forma. Com isso,
54
acrescenta que um texto literário não é documental, mas tem qualidade de documento. Esse
fato se deve à arte ser proveniente de uma realização possível, um sistema de signos que
significa a partir de seu receptor. Estreitando os limites entre o ficcional e o histórico, e
destacando o papel do interpretador na constituição do traço documental do texto, conclui
que, “se a literatura é um constructo ideológico, o documento, de sua parte, é um mito, i. e.,
não algo que por si testemunha a veracidade do que atesta, mas que apenas adquire
significação a partir da posição do analista”. (LIMA, 1986: 235) É nesse sentido que vai o
pensamento de Luiz Costa Lima, ao afirmar que a narrativa ficcional deve ser considerada
enquanto meio próximo e distinto da narrativa histórica. Enquanto documento, o sentido pré-
existe à instalação dos fatos: o real significa, denota os fatos, enquanto a ficção relata aquilo
que poderia ter acontecido.
Após essas breves considerações a respeito da mímesis enquanto manipulação
do conteúdo histórico para a composição do texto ficcional, fica fácil perceber que a íntima
relação entre a forma e o conteúdo constitui a base do conceito de verossimilhança interna de
uma obra. Sob esta perspectiva, instigados pela crítica que acredita que as Memórias de um
sargento de milícias documentam alguns aspectos do Brasil oitocentista, enveredamos pelo
universo narrativo da ficção almeidiana com o propósito de desvendar como o romancista
manipula esses elementos da realidade a fim de traduzi-los em obra de arte. Ángel Rama,
citado por Ronaldo Costa Fernandes, lembra que o discurso realista e verossímil marcou, na
ficção, a descrição de cidades como Buenos Aires, Montevidéu e Rio de Janeiro. Contudo,
Rama acredita não ser prudente tomar tais textos como referências históricas rigorosas.
Segundo Fernandes,
Mais adequado é lê-los como a parcimoniosa edificação de modelos
culturais que quer estabelecer uma nova época, respondendo ao
estranhamento em que vivem os cidadãos. Sua mensagem fundamental não
se encontrará nos dados evocativos, mas na organização do discurso, nos
diagramas que fazem a transmissão ideológica (tão intensa em livros que
aparentemente só querem testemunhar a objetiva realidade do passado), no
55
tenaz esforço de significação de que é capaz a literatura. Pois esta —
convém não esquecê-lo — não está submetida à prova da verdade, suas
proposições não podem ser enfrentadas com os fatos externos: só podem ser
julgadas interiormente, relacionando umas com as outras dentro do texto e,
portanto registrando sua coerência mais que sua exatidão histórica.
(FERNANDES, 1996: 23)
Configura-se a restrição para se pensar o texto literário como texto histórico,
assim como se ressalta a importância da harmonia entre forma e conteúdo na composição da
poética ficcional. Digamos então que, na obra de Manuel Antônio de Almeida, através da
verossimilhança interna, são refletidos alguns traços da sociedade fluminense de meados do
século XIX, ao mesmo tempo em que, através de comparações, o autor revela alguns
costumes da camada popular dos primeiros anos do mesmo século. Podemos perceber, no
romance, certa narratividade da história ao passo que o narrador nos chama a atenção para o
fato de “estar caindo na monotonia de repetir quase sempre as mesmas cenas com ligeiras
variantes: a fidelidade porém com que acompanhamos a época, da qual pretendemos esboçar
uma parte dos costumes, a isso nos obriga”. (ALMEIDA, 1999: 107)
Percebidas as intenções de documentação na obra, a partir das discussões sobre
o conceito de verossimilhança, seguimos a orientação de Antonio Candido para tomarmos
com reserva as Memórias como um panorama documentário do Brasil joanino. A explicação
de Candido para essa ressalva se deve ao fato de que, para ele, nelas, Manuel Antônio
combina gosto e análise, manipulando os elementos externos sem deixar que estes se
imponham sobre o objeto artístico.
Retomando os estudos de Candido sobre o romance, convém, ao nosso estudo,
destinar maior atenção às classificações da narrativa enquanto romance documentário e
romance representativo. Essa abordagem torna-se apropriada e relevante ao nosso estudo à
medida que a tomamos como objeto de discussão das relações sociais da época e,
especialmente, das relações de gênero.
56
Segundo o crítico que vimos acompanhando, a restrição das Memórias de um
sargento de milícias enquanto documento se deve ao fato de, em alguns capítulos, o conteúdo
histórico não se encontrar integrado ao fio narrativo, mas constituir uma visão paralela e
fragmentada de quadros isolados. Em outros capítulos, os dados históricos localizados
aparecem como parte constitutiva da ação, e aí o documento não existe em si mesmo, mas
incorporado à criação. Assim, o quadro descritivo de costumes do tempo presente na narrativa
deve ser visto como elemento de composição. Não é possível, pois considerá-la um
documento tendo em vista a sua totalidade, mas é prudente afirmar que Manuel Antônio
soube intuir o histórico e social e diluí-lo na construção literária.
Como indicação do próprio crítico, tomamos como exemplo o capítulo 17,
“Dona Maria”, para a explicação da desintegração dos elementos constitutivos da realidade na
construção do tecido ficcional. O capítulo principia com uma pormenorizada descrição de
costumes, a procissão dos Ourives. O narrador nos põe a par de que este costume era mantido
mais por ostentação do que por fé. Segue a descrição elogiando a beleza do “rancho das
baianas” que caminhava diante da procissão. Sem mais conversa, o narrador constata a
presença da Vizinha, do Padrinho e de Leonardo na casa de Dona Maria na Rua dos Ourives.
Segue a exposição fazendo a descrição física e moral da dona da casa. A conversa desenrola-
se entre explicações acerca das diabruras do memorando e culmina novamente com a
passagem da procissão. Embora possamos tomar conhecimento desse costume mediante a
riqueza de detalhes apresentada pelo narrador, como constata Candido, os dados da realidade
são revelados justapostos ao fio narrativo, e neste capítulo tudo está desconexo.
Apesar da precisão e do colorido da descrição, podemos, no capítulo 19,
“Domingo do Espírito Santo”, tomar conhecimento de outro momento em que essa simples
justaposição de fatos nem se combina e nem se completa no enredo. O narrador desenvolve o
capítulo inteirando o leitor a respeito de “uma das festas prediletas do povo fluminense”. Em
57
um exercício comparatista, esclarece a mudança de alguns hábitos decorrentes da ação do
tempo sobre os costumes, e com ar nostálgico, acrescenta:
Aquele que escreve estas Memórias ainda em sua infância teve ocasião de
ver as Folias, porém foi já no seu último grau de decadência, e tanto que só
as crianças como ele davam-lhe atenção e achavam nelas prazer; os mais, se
delas se ocupavam, era unicamente para lamentar a diferença que faziam
das primitivas. (ALMEIDA, 1999: 53-54)
O narrador prossegue seu depoimento explicando o que eram e como eram as
Folias, a presença do Imperador, e ainda nos revela uma das cantigas dos pastores: “O Divino
Espírito Santo/ É um grande folião,/ Amigo de muita carne,/ Muito vinho e muito pão”. (p.54)
Para, em seguida, acrescentar que essa era a Folia a qual encontraram no caminho o
Compadre e o afilhado. Assim, conclui o capítulo chegando à casa de Dona Maria e
combinando a visita ao “Fogo no campo”. Nesse capítulo, o real serviu apenas como informe,
não se diluindo na construção narrativa.
Todavia, em outras passagens da obra, podemos perceber a intuição do real
sugerido pelo romancista. “Quando o autor os organiza de modo integrado, o resultado é
satisfatório e nós podemos sentir a realidade”. (CANDIDO, 1993: 33) Para tornar clara a
citação, Candido faz uso do capítulo 15, “Estralada.” A fim de ratificar a proposição,
retornamos ao primeiro capítulo, “Origem, nascimento e batizado”, em que o narrador
principia descrevendo um tipo do tempo do Rei, o meirinho. Faz comparações de ordem física
e moral - trajes, feição, honra, respeito, costumes e prestígio – entre o tempo presente da
enunciação com aqueles dos primeiros anos do século XIX. Preocupa-se, também, com a
descrição das ruas e do ponto de encontro chamado “o canto dos meirinhos”. Ao passo que
vai esclarecendo as transformações pelas quais passou o exercício dessa profissão, apresenta
também a personagem Leonardo-Pataca.
Sendo meirinho, o mais antigo da corporação, a depreciação de suas
características físicas e morais vão pari passu entrando em conformidade com a degradação
58
observada acerca da época. E acrescenta o narrador: “Sua história tem pouca coisa de
notável”. (ALMEIDA, 1999: 11) Tudo, no capítulo, comunga de verdadeira perfeição. A
harmonia com que os elementos documentais, inclusive o espaço denotado, os trajes, os
valores, os costumes, vão servir como instrumentos de compreensão da depreciação da
personagem, dos costumes e valores que estarão gerindo a estrutura da narrativa. Nesse
sentido, a mímesis acontece como resultado da tradução ou absorção do objeto histórico pelo
objeto artístico. No fragmento citado, o documento pode ser percebido como parte
constitutiva da ação e não apenas como algo isolado. Assim, podemos concordar com
Candido (1993) que é a forma o esqueleto de sustentação da narrativa, embora esta tome
corpo quando se alimenta da redução estrutural de um dado social externo à literatura e
pertencente à história.
Dando maior ênfase a esta discussão, que constitui a gênese da narrativa,
passemos então ao capítulo 24, “A Comadre em exercícios”. Nele, o narrador expõe o
nascimento da filha de Leonardo-Pataca com Chiquinha. Após os primeiros sintomas
apresentados pela parturiente, Leonardo “andava de dentro para fora pretendendo fazer mil
cousas, e sem fazer cousa alguma, atrapalhado e tonto”. (ALMEIDA, 1999: 63) Mandou
chamar a comadre e começaram a arranjar os preparativos. Vejamos, pelo olhar do narrador:
Talvez alguns leitores tenham idéia do mundo infinito de arranjos que
naquele tempo se punha em giro em semelhantes ocasiões. A primeira
cousa a que Leonardo-Pataca providenciou foi que se mandassem dar as
nove badaladas no sino grande da Sé. Esta prática só costumava ter lugar
quando a parturiente se achava em perigo, porém ele quis prevenir tudo a
tempos e a horas. Mandou-se depois pedir à vizinha, pois por um descuido
imperdoável não havia em casa, um ramo de palha benta; a comadre trouxe
um par de bentinhos da Senhora do Monte do Carmo que tinham grande
reputação de milagrosos, e o lançou ao pescoço da Chiquinha. Pôs a palha
benta ao lado da cabeceira; na sala improvisou-se um oratório com uma
toalha, um copo com arruda e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição
de louça, enfeitada com cordões de ouro. Chiquinha, para nada esquecer das
regras estabelecidas, amarrou à cabeça um lenço branco, meteu-se embaixo
dos lençóis, e começou a rezar ao santo de sua devoção. A Comadre
assentou-se aos pés da cama em uma banquinha, e desunhava também em
um grande rosário, observando entretanto a Chiquinha, e interrompendo-se
a cada instante para dar ordens ao Leonardo-Pataca, e responder ao que fora
do quarto se dizia. (ALMEIDA, 1999: 63)
59
A larga citação é fundamental para que possamos endossar a incorporação dos
costumes à ação das personagens. O trecho continua dando forma ao hábito da realização do
parto em casa, sob a orientação da Comadre. O oferecimento de velas aos santos, a posição
em que se encontrava a parturiente, o nervosismo do pai, o consolo; sob justificativa de ser
tarefa da mulher, o uso de ervas, o assopro na garrafa, tudo delineado, com minúcias, a fim de
estabelecer um informe acerca de um quadro de costumes da época. Nesse capítulo, o quadro
de costumes é manipulado pelo autor a fim de integrá-lo à ação das personagens, resultando
em perfeita harmonia entre forma e conteúdo.
Dadas essas explicações, é possível compreender que a verossimilhança
interna presente na narrativa é resultado do arranjo entre quadros isolados da história e da
competência criativa do romancista. Portanto, advém do exercício poético do romancista em
combinar a relação existente entre a mímesis e a poiesis. Dessa forma, constata Benedito
Nunes que
[a] ficção combina o imaginário, como distanciamento do real imediato,
com o poético, que altera, modifica, reorganiza, sob nova perspectiva, as
representações da realidade. O nível ficcional do texto, fundado na
elaboração poética da linguagem, corresponde a uma variação possível do
mundo real. Em vez de demitir o mundo, a ficção o reconfigura. (NUNES,
2000: 74)
Portanto, para a elucidação desse processo criativo ficcional, deixemos a
explicação a critério do crítico Antonio Candido: “[o] primeiro passo é ter consciência da
relação arbitrária e deformante que o trabalho artístico estabelece com a realidade, mesmo
quando pretende observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre uma forma de
poiese”. (CANDIDO, 1973: 12)
60
2.2. O romance representativo e a construção do enredo
[A] ficção, por mais “inventada” que seja a estória, terá sempre, e
necessariamente, uma vinculação com o real empírico, vivido, o real da
história. (...) O enredo será sempre expressão de uma intimidade fantasiada
entre verdade e mentira, entre o real vivido e o real possível.
Samira Nahid de Mesquita
A palavra enredo é um vocábulo de conotação incerta, pois pode assumir
algumas variações de sentido. Porém, geralmente, apresenta o sentido essencial de arranjo de
uma história. Como esclarece Forster, lido por Massaud Moisés, é “uma narrativa de
acontecimentos encadeados rumo do desenlace arranjados em sua seqüência temporal”.
(MOISÉS, 1978: 173)
Samira Nahid de Mesquita (1994) acrescenta que, como categoria estruturante
da narrativa de ficção em prosa, o enredo compreende o plano da ação, as transformações das
situações que se sucedem, na ordem/desordem em que as apresenta o discurso que narra. Na
obra Memórias de um sargento de milícias, o memorialista obedece aos encadeamentos dos
fatos da vida do memorando Leonardo de forma linear, seguindo um tempo evolutivo.
Embora a tessitura narrativa principie reportando-nos aos primeiros anos do
século XIX, o narrador o faz com o propósito de nos situar a partir da origem do memorando.
O título do primeiro capítulo, “Origem, nascimento e batizado”, já indicia essa evolução
linear do tempo no desenvolvimento da ação. Mesmo com alguns cortes temporais, pelo
recurso da técnica do sumário, como se pode notar no segundo capítulo: “Passemos por alto
sobre os anos que decorreram desde o nascimento e batizado do nosso memorando, e vamos
encontrá-lo já na idade de sete anos”. (ALMEIDA, 1999: 12) Assim, a narrativa segue
contando as venturas e desventuras do pequeno Leonardo. Já no capítulo 12, “Entrada para a
escola”, relata o narrador: “É mister agora passar em silêncio sobre alguns anos da vida do
nosso memorando para não cansar o leitor repetindo a história de mil travessuras de
menino...” (ALMEIDA, 1999: 35) Seguindo a trajetória de Leonardo, no capítulo 18,
61
“Amores”, constata o narrador: “Os leitores devem estar fatigados de histórias de travessuras
de criança; (...) Agora vamos saltar por cima de alguns anos, e vamos ver realizadas algumas
dessas esperanças”. (ALMEIDA, 1999: 51-52)
Conforme destacamos, o discurso do narrador se organiza tendo em vista a
vida do memorando Leonardo. Seu nascimento, as travessuras de criança, as aventuras, as
desilusões amorosas, a malandragem e o estabelecimento da ordem por meio do casamento e
da profissão de sargento, na idade adulta. Os saltos temporais apenas reforçam a relação de
causa e conseqüência das ações e comprovam a linearidade do enredo.
Esse narrador em terceira pessoa que narra a vida do memorando Leonardo,
vez por outra apresenta-se na primeira pessoa do plural. Nesses momentos, o narrador
retrocede a um tempo passado fazendo referências a costumes, pessoas e lugares do Rio de
Janeiro dos primeiros anos do mesmo século. Para Antônio José Saraiva e Óscar Lopes
(1989), esse recurso, comum em narrativas do século XIX, pode ser pensado como um meio
utilizado pelo narrador para trazer o leitor para participar da história. Contudo, essa lembrança
do passado, esse retorno a um tempo anterior àquele em que se passa a ação não quebra a
linearidade da narrativa, já que o enredo se organiza em torno da passagem cronológica do
tempo e da vida do memorando.
Esse enredo reflete, de certa maneira, a vida de parte da coletividade carioca do
período retratado. Nesse sentido, o crítico Antonio Candido considera a escrita de Manuel de
Almeida como um romance representativo. Façamos uma breve explanação sobre a sua
classificação enquanto romance representativo.
Para Candido, na narrativa de Manuel Antônio de Almeida, o elemento social é
dissolvido na construção literária a fim de dar maior realce à construção do enredo. O autor
põe em cena personagens pouco recorrentes na literatura romântica: prostitutas, comadres,
62
parteiras, barbeiros, professores, feiticeiros, meirinhos; enfim, um contingente significativo
que povoava as ruas do Rio de Janeiro, no tempo do Rei Dom João VI.
Nesse universo, tudo é permitido. Assim, afasta-se da tensão maniqueísta
romântica do bem versus o mal, por meio de um nivelamento de classes sociais, quando põe
em cena um herói malandro, antípoda do mocinho Augusto da obra A moreninha, de Joaquim
Manuel de Macedo. Ainda o faz quando dá às personagens a voz da própria classe, uma
linguagem popular, como diz a Comadre pírolas, em lugar de pílulas. A linguagem popular e
coloquial pode ser ainda percebida nas expressões como “fora da chapa”, isto é, retirar José
Manuel da concorrência por Luisinha, e “curando com ouro as brechas que ele fazia na cabeça
de seus adversários”, sobre o Tenente-Coronel procurar compensar as diabruras de seu filho.
Isso pressupõe o senso da realidade e da representação da sociedade no romance. Graças a
isto, a ficção de Manuel Antônio de Almeida se aproxima das formas espontâneas da vida
social.
Essa dissolução do social no literário culmina em uma dialética apropriada
para se pensar a vida do brasileiro: a dialética da ordem e da desordem. O crítico ainda
ressalta que, nela, há um extrato de cunho universalizador e outro de cunho mais restrito, que
é o que se refere à formação do povo brasileiro.
Esclarecendo melhor este cunho universalizador na narrativa, façamos uso do
capítulo 33, “O agregado”. Nele, o narrador revela o fato comum de haver, em cada casa, dois
ou mais agregados. Nessa condição, Leonardo é hospedado na casa de Tomás da Sé, sob a
proteção das “donas da casa”. Leonardo inicia um relacionamento amoroso com Vidinha, a
filha da dona da casa. Um dos primos, sentindo a ameaça da perda da amada, desanca em
ameaças a Leonardo e declara: “— Aí está, minha tia, dissera enfurecido o rapaz dirigindo-se
à mãe de Vidinha; aí está o lucro que se tira de meter-se para dentro de casa um par de pernas
que não pertence à família”. (ALMEIDA, 1999: 86) A possibilidade do envolvimento afetivo
63
entre dois desconhecidos que habitam em uma mesma casa é concebível em qualquer
sociedade. Basta que esta mantenha o hábito de agregar outras pessoas nas residências
particulares. Assim como a “sina” que permeia toda a narrativa, esse costume que culmina na
relação afetiva é fato que pode ser fruto da imaginação de um amplo ciclo de cultura.
Contudo, o princípio estrutural do romance é o que se refere à dialética de
composição da vida do brasileiro, a malandragem, a desordem, a ausência da culpa, o
“interesse”, o “jeitinho”. Essas características são fundamentais para a compreensão das
relações sociais, e, especialmente, das relações de gênero na narrativa. O cerne da narrativa
constitui-se na relação entre ordem e desordem. Assim, há sempre um lado positivo que
contracena com um negativo e, no final, um neutraliza o outro, constituindo a dinâmica do
livro. Já que compõe a essência do livro, utilizaremos alguns momentos para exemplificar tal
questão.
No primeiro capítulo, deparamos com a presença de Leonardo-Pataca, um
meirinho e representante da lei, da ordem. A mesma personagem transita pelos caminhos da
desordem, quando mantém um relacionamento ilegítimo com Maria-da-Hortaliça, do qual
resulta o nascimento do herói, ou anti-herói, da história. Diante da traição da Maria reage com
violência física e moral à companheira e ao filho. Mas essa reação é abrandada pela
justificativa da infidelidade da Maria e das travessuras do filho, portanto ficando tudo em
ordem. Continua na mesma trajetória o relacionamento com a Cigana, e assim segue a
passagem de Leonardo-Pataca pelo romance.
Assim como o pai, a vida de Leonardo se desenvolverá seguindo a mesma
trilha. Servimo-nos do capítulo 14, “Nova vingança e seu resultado”, para tal exemplificação.
Ainda criança, Leonardo, servindo como sacristão da igreja, é incumbido de avisar ao mestre-
de-cerimônias a hora do sermão. Sua Reverendíssima “devia amar o seu sermão tanto que
quase rebentou de raiva em um ano em que por doente o não pôde pregar”. (ALMEIDA,
64
1999: 40) Leonardo então avisa que o sermão será uma hora mais tarde que o horário de
costume, para que o mestre-de-cerimônias não chegue a tempo. Logo, como o ato de
Leonardo foi decorrente de uma vingança pelo Reverendo ter-lhe pregado uma peça, fica tudo
ajeitado. Ademais, o Reverendo era amante da Cigana, “objeto dos últimos desejos” de seu
pai, Leonardo-Pataca. Assim, fica tudo entre a ordem e a desordem, e no final ninguém
merece censura.
Reiterando a presença desse universo desprovido de culpa, reportamo-nos ao
capítulo 25, “Trama”. Nesse capítulo, tomamos ciência do plano da Comadre para evitar a
união de Luisinha e José Manuel e garantir o relacionamento da moça com o memorando
Leonardo. A Comadre declara a Dona Maria, tutora de Luisinha, que “uma moça, que vivia
em companhia de sua mãe, velha, rica e devota, indo com ela rezar junto ao Oratório, na
ocasião da passagem da via-sacra, fugira, tendo levado consigo um pé de meia preta contendo
uma boa porção de peças de ouro”. (ALMEIDA, 1999: 66) Falsamente, a Comadre afirma ser
o moço o pretendente de Luisinha, José Manuel. Dessa forma, pensa ela ter garantido a
separação dos dois. Nisto, vê-se que a Comadre não é punida porque se o fez foi a bem de
Leonardo. Segundo ela, Leonardo era um bom menino e tinha sinceros sentimentos pela
moça. José Manuel, contrariamente, era um patife, e estava interessado na herança de
Luisinha. Pensando assim, ficava-se tudo arranjado.
Ainda, o “arranjei-me” do compadre, trapaceando uma promessa de entregar a
herança aos parentes do doente que viajava consigo no navio. Após a morte do doente, o
Compadre toma posse da herança e é com ela que se arranja na vida. Como diz o narrador,
“Eis aqui como se explica o arranjei-me, e como se explicam muitos outros que vão aí pelo
mundo”. (ALMEIDA, 1999: 30) Mesmo com tal comportamento digno de repreensão, devido
a sua proteção e afeto por Leonardo, o leitor abraça a personagem sem deixar que este
passado negro afete a sua simpatia por ele.
65
Além dessas passagens, poderíamos citar a descida do Major Vidigal às
fraquezas “da carne”, e daí aos relacionamentos de Leonardinho. Assim, inúmeras passagens
poderiam demonstrar aquilo que Antonio Candido chamou de “balanceio caprichoso entre
ordem e desordem”.
Essa dialética é o matiz estrutural da narrativa. E resulta na totalidade do
enredo com suas transgressões, conflitos, favores, amores e (des)amores. Diante da ocorrência
dessa dialética no curso do romance, nota-se que a estética da ficção é formalizada a partir de
circunstâncias de caráter social, o que permite pensar na dialética do brasileiro.
Portanto, constata-se que as tramas do objeto artístico não nascem da realidade,
embora a pressuponha, por meio da intuição do artista. Nesse sentido, através dessa intuição
da realidade presente na totalidade da narrativa, iremos pensar as relações de gênero
encontradas no romance a fim de observar em que medida elas se aproximam da natureza
social do Rio de Janeiro dos anos oitocentos.
2.3. O espaço no romance
O espaço num romance exprime-se, pois, em formas e reveste sentidos
múltiplos até constituir por vezes a razão de ser da obra.
Roland Bourneuf e Réal Ouellet
Uma primeira e rápida leitura pode revelar que a construção espacial de
Memórias de um sargento de milícias constitui um mero instrumento de composição do
romance. Entretanto, perfilando a estrutura poética da narrativa, por meio de um estudo mais
preciso, podemos perceber as estratégias do autor na configuração do espaço da obra
Memórias de um sargento de milícias a fim de inscrever o mundo real no mundo da ficção.
Como a maioria dos romancistas do século XIX, Manuel Antônio de Almeida,
conduz pela mão o leitor ao local principal em que se situará a ação, a cidade do Rio de
Janeiro. Como constata Candido, o espaço utilizado constituía o grosso da cidade, no que hoje
66
corresponde às áreas centrais. Ronaldo Costa Fernandes revela que a cidade a que pertence o
romance de Manuel de Almeida distancia-se daquela cidade onde o urbanismo serve para as
grandes obras arquitetônicas, onde brilha o esplendor real “O Rio de Janeiro do princípio do
século dezenove estava mais para a cidade nascida da desordem do que para a repressão
barroca”. (FERNANDES, 1996: 24) Como a realidade circundante ligava-se mais a primeira,
o que encontramos nas Memórias é o restrito espaço de uma pequena cidade, pouco
urbanizada, herdeira, como são algumas cidades brasileiras, de uma falta de planificação.
Neste construto, o autor não se preocupou em revelar um espaço romanesco
que percorresse cidades ou países, nem aprofundar a vida interior das personagens, mas narrá-
las ali no seu grupo, na sua rua, nas suas venturas e desventuras do cotidiano. O espaço
urbano precário do período, juntamente com a desagregação dos valores morais, contribui
para compor um retrato da sociedade. O elemento natural, fundamental na escrita romântica
da época, é substituído pelos costumes e pela tradição.
Para garantir ao discurso um efeito de realidade, assim como o fez com a
linguagem, Manuel Antônio se limitou a contar pequenas histórias das ruas do Rio de Janeiro
através do vai e vem da gente miúda. Pela voz do narrador, tomamos conhecimento de uma
sociedade livre, liberta das condenações morais. O autor não os aprisiona em castelos,
sobrecarregados por decoração sombria e colunas: no entanto, traça o perfil de um espaço
popular onde tudo é permitido. É sob os olhos das mesmas pessoas e no mesmo espaço
urbano que a narrativa se constrói. Mesmo livres, é ali que as personagens realizam seus
desejos, elas não cruzam o limiar do espaço urbano.
De acordo com Antônio Dimas (1987), a preocupação com o espaço narrativo
deve vir precedida da diferenciação entre espaço e ambientação. Para este teórico, o espaço é
denotado, explícito e contém dados da realidade que, numa instância posterior, podem
alcançar uma dimensão simbólica. A ambientação, entretanto, é conotada, subjacente e
67
implícita. Constitui o conjunto de processos conhecidos ou possíveis, destinados a provocar,
na narrativa, a noção de um determinado ambiente. É por meio do narrador, das personagens
ou do próprio ritmo narrativo que essa ambientação pode ser percebida.
Um primeiro passeio pela ficção almeidiana faz notar diversos espaços, como
propõe Dimas. A exemplo do navio, onde se inicia a relação de Maria-da-Hortaliça com
Leonardo-Pataca; da casa da Comadre, da barbearia do Padrinho, da Rua do Ouvidor, da
igreja, e do Paço. Enfim, é no espaço urbano do Rio de Janeiro em que a trama irá se
desenvolver.
Podemos perceber o recurso da ambientação já no primeiro capítulo, em que o
narrador, por meio da imaginação, desloca o leitor para os primeiros anos do século XIX.
Esse deslocamento nos conduz a um ambiente percebido pela via da memória do narrador que
não é, de fato, o espaço efetivo da ficção no presente da enunciação. Ao introduzir o enredo,
através da ambientação, o narrador nos dá ciência do espaço explorado para a construção da
ação. A princípio, a imaginação do narrador apenas desloca o leitor no tempo, não no espaço
que se situa entre a cidade imaginada e a cidade real da ficção: “Uma das quatro esquinas que
formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo
— O canto dos meirinhos — e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro
favorito de todos os indivíduos dessa classe...” (ALMEIDA, 1999: 10) É nesse mesmo espaço
que, no presente da enunciação, os fatos se desenrolam. Sob a voz do narrador, nota-se a
consciência de que os momentos passados, sob a forma de herança acumulada, continuam
agindo sobre o presente. Nesse sentido, podemos destacar que, embora diversos, os limites
espaciais impostos pelo romancista à ação são muito restritos.
Para aclarar o uso do mesmo espaço em tempos diferentes, recorremos ao
Capítulo 8, “O pátio dos bichos”, em que o narrador, pelo mesmo processo, revela o espaço
da ação: “Ainda hoje existe no saguão do paço imperial, que no tempo em que se passou esta
68
nossa história se chamava palácio del-rei, uma saleta ou quarto que os gaiatos e o povo com
eles denominavam o Pátio dos Bichos”. (ALMEIDA, 1999: 26) Nesse capítulo, o narrador dá
seqüência à descrição do local para apresentar o Tenente-Coronel, que era um oficial superior
empregado do serviço da guarda real. Essa personagem, no desenvolver do enredo, transitava
por este mesmo espaço, que ainda era existente em meados do século XIX.
No capítulo 4, “Fortuna”, podemos observar a riqueza de informações extraídas
a partir da descrição de um espaço restrito. Por meio deste fragmento, emerge um conjunto de
informações capazes de situar o drama da personagem Leonardo-Pataca. Pela voz do
narrador, a descrição da casa do feiticeiro:
Lá para as bandas do mangue da Cidade Nova, havia, ao pé de um charco,
uma casa coberta de palha da mais feia aparência, cuja frente suja e testada
enlameada bem denotavam que dentro o asseio não era muito grande.
Compunha-se ela de uma pequena sala e um quarto; toda a mobília eram
dous ou três assentos de pau, algumas esteiras em um canto, e uma enorme
caixa de pau, que tinha muitos empregos; era mesa de jantar, o que rodeava
de um certo mistério. (ALMEIDA, 1999: 19)
A descrição da casa, com os adjetivos “feia”, “enlameada” sugere a ilegalidade
do ato que está por vir. Pela exposição do narrador nos é revelado um ato de feitiçaria, em que
Leonardo-Pataca reclama a perda da amante, a Cigana. Pela precisão da descrição do espaço e
do ato, podemos perceber a degradação da própria personagem em seus valores morais. Esta
depreciação é constatada, ainda, quando Leonardo-Pataca é obrigado a “pôr-se primeiro em
hábitos de Adão no paraíso” e depois ser coberto por “um manto imundo que trazia” a mando
do feiticeiro. Seguindo a ação de punição do Major Vidigal à personagem, ficamos cientes da
repressão desse costume. O espaço, então, não pode ser pensado apenas como o palco onde se
materializam as ações, ele pode também constituir um relevante instrumento de compreensão
do enredo.
Conforme Julia Kristeva (1984), um mesmo espaço geográfico pode ser palco
para diversos tipos de encontros. Em Memórias de um sargento de milícias o mesmo espaço
agrega comportamentos tanto maléficos, quanto benéficos. Na mesma rua em que Leonardo-
69
Pataca é respeitado por ser o mais antigo dos meirinhos, ele também é ridicularizado pelo
povo quando é preso em trajes “menores” pelo Vidigal, após o ritual de feitiçaria. Isso
reafirma a ausência do maniqueísmo na narrativa, já que os pólos positivo e negativo se
mesclam gerando a neutralidade, inclusive no espaço em que as ações se desenvolvem. A
casa, a rua, o navio, a cadeia, a igreja, o paço, a casa de feitiçaria, enfim, em todo esse espaço
é permitido o afastamento considerável dos sistemas de valores morais e filosóficos. Nem
mesmo a mudança de espaços na obra marca pontos de ruptura ou inovação no enredo.
De acordo com os postulados de Roland Bourneuf e Réal Ouellet (1976), a
tessitura do romance pode se desenrolar sobre dois planos espaciais: a realidade da ficção e o
imaginário. Percebidas a existência dessas duas realidades na ficção de Manuel Antônio de
Almeida, segue um exame do capítulo 25, “Trama”. O espaço real da ficção pode ser
percebido no próprio desenrolar do enredo: a Comadre segue para a Rua do Ouvidor, onde
fica localizada a casa de Dona Maria. Lá, esta última está sentada na sua banquinha com sua
sobrinha Luisinha, ocupada em fazer rendas. Recebe a Comadre e principia uma conversa.
Porém, durante essa conversa, a Comadre se reporta a um outro espaço: o acontecimento no
Oratório de pedra que deu origem ao roubo de uma moça. Sobre esse fato, a Comadre arma a
sua trama contra José Manuel. (ALMEIDA, 1999: 65-67)
Esse espaço, criado a partir da reminiscência da personagem, constitui o
segundo plano, o plano do imaginário. Assim, há um deslocamento da ação do espaço “real”
do romance (a casa de Dona Maria), para um espaço “imaginário” (o Oratório de pedra). Este
último, como discutimos anteriormente, relaciona-se à ambientação. Ao ser tematizado no
romance, o espaço passa a ter sentidos conotados, tornando-se assim, ambientação. Enfim,
essa “ambientação”, espaço imaginário ou real, se completa na construção da pluralidade de
espaços que compõem o romance.
70
Percebida a oscilação entre esses dois planos, o imaginário e o real da ficção,
podemos pensar o conflito das personagens como sendo decorrente da constante comparação
entre esses dois planos. Já vimos anteriormente que o narrador, através de um exercício
comparatista, remete-nos constantemente a tempos passados, ressaltando os lugares e
comportamentos que vão sendo degradados. No espaço real da ficção, o narrador descreve a
depreciação, a fraqueza e a vulnerabilidade dos sentimentos, dos comportamentos e do
respeito entre algumas personagens. Enquanto no espaço da imaginação, o narrador retoma
esses mesmos elementos, destacando neles o respeito, a honra e o prestígio.
Logo, a questão do espaço em Manuel Antônio de Almeida não deve ser
estudada meramente como o lugar em que o enredo de desenvolve, mas como uma das
estratégias da mímesis, o espaço também se converte em um elemento de caracterização dos
fatos e das personagens, a fim de garantir a verossimilhança interna da obra.
2.4. A construção do tempo narrativo
Inútil procurar a origem das narrativas no tempo, é o tempo que se origina
nas narrativas.
Tzvetan Todorov
“Era no tempo do rei”. A paráfrase da célebre frase dos contos de fada “Era
uma vez” põe-nos diante de um indicador folclórico, ao mesmo tempo em que indica a
oscilação temporal com que vamos nos deparar no decorrer da leitura da obra. De fato, assim
como o enredo e o espaço, a tematização do tempo constitui um dos elementos mais
trabalhados no romance a fim de se reconstruir a realidade no universo ficcional.
Deste modo, se as variações do restrito espaço urbano do Rio de Janeiro
acontecem entre o espaço “imaginário” e “real” da ficção, fato semelhante acontece com o
deslocamento temporal. Este último em maior proporção, como postula Benedito Nunes, “o
temporal e o espacial nas artes formam domínios mutuamente permeáveis, que não se
excluem”. (NUNES, 2000: 11)
71
Dadas as premissas da íntima relação existente entre espaço e tempo ficcionais,
cabe constatar que a forma de apresentação de um ou outro existe em função da linguagem,
como resultante da intencionalidade do narrador.
A frase “Era no tempo do rei”, além de nos deslocar no tempo, confere
existência, dá ciência ao tempo e aos fatos narrados. Pelas estratégias de convencimento,
através dos elementos da linguagem, cria a ilusão da existência dos espaços, das personagens,
do enredo para a efetivação da mímesis. O narrador principia pelo verbo “ser”, no pretérito
imperfeito “Era”, a fim de estabelecer correlações entre um passado que, por vezes, é refletido
no presente, assinalando o caráter momentâneo de sua explanação. É o uso do tempo clássico
da narrativa “era uma vez”. Esse pretérito, como percebe Benedito Nunes (2000), é a marca
do recuo ao passado. Mais do que conectar os tempos verbais às divisões do tempo, a forma
gramatical exerce função de situar o leitor no processo comunicacional da linguagem. O
recurso ao artigo definido – no – determina a existência de um tempo específico, o tempo da
“imaginação” ficcional. Este consiste nos recuos feitos pelo narrador aos primeiros anos do
século XIX, como ficou explicitado na mesma oscilação referente aos espaços da narrativa.
Ao situar-nos no tempo determinado, podemos perceber um matiz da verossimilhança interna
da obra. Com isso, por meio dessa perspectiva temporal revelada na primeira frase da obra, o
autor nos situa na história.
Fato curioso, ainda, se dá na seleção do substantivo rei, visando ao
estabelecimento do tempo da história, através dos recuos no tempo, materializados pela
imaginação do narrador. Na edição que estamos utilizando, 36ª. da editora Ediouro, o
substantivo aparece escrito em letra minúscula. No entanto, em algumas edições, o mesmo
termo é grafado em letra maiúscula “Rei”, podendo ser pensado como um recurso de
legitimação do tempo e da pessoa real (no tempo do rei D. João VI). De certa maneira, essa
72
grafia oferece argumentos àqueles que utilizam a obra como documentação.
11
Isso posto,
como vimos reiterando, a narrativa pode, em certa medida, ser tomada como um instrumento
de análise de pontos isolados, já que o narrador transporta o leitor a um tempo real que ele
recriou ou reinventou.
A partir da revisitação da crítica sobre Memórias de um sargento de milícias, é
lícito ressaltar que, no que concerne ao estudo do tempo, o destaque está para a existência do
tempo cronológico, no texto. Podemos ainda perceber nele embriões do tempo psicológico,
que viria a assumir a total maturidade em Machado de Assis. Como comenta Benedito Nunes
(2000), o estudo do tempo deve ser pensado a partir de uma pluralidade temporal.
Nas Memórias, podemos perceber grandes saltos temporais. A obra inicia com
a vinda de Leonardo-Pataca de Lisboa ao Brasil. Segue o nascimento do filho, o batizado, a
meninice, cada etapa seguida de pequenos cortes temporais, para culminar nas malandragens
da vida de rapaz. Como observa Walnice Nogueira Galvão (1976), o tempo nas Memórias é
um fator mais trabalhado, embora não nas relações entre os diversos episódios intercalados de
quadros, mas dentro de cada episódio em si mesmo. Como evidenciamos anteriormente, no
primeiro capítulo, o narrador principia nos reportando ao período joanino: no capítulo 8,
retrocede-nos até o pátio do palácio; no capítulo 19, o narrador retoma a festa do Espírito
Santo. Assim o tecido narrativo é construído tendo como pressuposto o deslocamento espaço-
temporal para os primeiros anos do século dezenove. Esta estratégia narrativa, através de um
processo comparatista, situa-nos no tempo da enunciação.
De acordo com Galvão, o ritmo se altera muito. Em certos episódios se
precipita e adquire grande vivacidade. Visitemos o capítulo 36, “Escapula”. Nele, é contada a
fuga de Leonardo do Major Vidigal. Todo o capítulo é narrado no imperfeito do indicativo:
11
Na edição crítica de Cecília de Lara (1978), onde a mesma faz um levantamento das variações já encontradas
nas publicações da obra, o termo “rei” encontra-se, também em letra minúscula. Contudo, Cecília de Lara aponta
que inúmeras variantes ainda ocorrem, tendo em vista que o manuscrito original sofreu algumas supressões ou
ilegibilidades decorrentes da má impressão do jornal. Assim, não podemos precisar a grafia da palavra “rei” no
texto original.
73
“[o] Vidigal, a quem nada disto escapava, achava em todas estas ocasiões pretextos para dar
sinais de si: tossia, pisava mais forte, arrastava no chão o chapéu de sol...”, com exceção da
reflexão interior de Leonardo, feita no presente: “É agora; quebro por ali fora, e bato pernas.
(...) Embarafusto por ali adentro, e sumo-me”. No momento em que efetivamente empreende
a fuga, o narrador troca novamente o imperfeito pelo presente: “... sai dela Leonardo, e de um
pulo ganha a rua”. (ALMEIDA, 1999: 92) Conforme atesta Walnice Nogueira Galvão, a
adequação dos tempos verbais aos fatos atribui ao texto um grande efeito de atualização.
Como observa Benedito Nunes, é possível pensar a estrutura temporal de um
romance a partir de sua pluralidade. Em Memórias de um sargento de milícias, a
predominância é do tempo cronológico, porém em algumas passagens podemos sentir a
presença do tempo psicológico. No capítulo “Declaração”, o narrador apresenta os planos de
Leonardo para se declarar a Luisinha. Através do pensamento de Leonardo, tomamos ciência
do sentimento, das inquietações e, assim, vão se passando os dias até que ele tome a iniciativa
de se revelar a ela. No momento da declaração, sob a reflexão do memorando, sentimos o ato
de um minuto transformar-se em um longo período de tempo. A demora da passagem do
tempo e a delicadeza da situação tornaram o momento mais exaustivo para Leonardo. Quando
Luisinha “desapareceu, soltou um suspiro de desabafo e assentou-se, pois se achava tão
fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante”. (ALMEIDA, 1999:
62)
Como desdobramento do tempo cronológico percebido no romance, o tempo
litúrgico torna-se um veículo de expressão de algumas passagens. Norteando os
acontecimentos pelas festas religiosas populares do Rio de Janeiro, o narrador faz uso dos
eventos religiosos da época para pôr em ação as personagens. No episódio do “Fogo no
campo”, conforme haviam tratado, seguem para a casa de Dona Maria o Padrinho e o
74
afilhado, “pois era pouco depois de ave-maria
12
, e já se encontrava pelas ruas grande multidão
de famílias”. (ALMEIDA, 1999: 55) Ratifica-se a cronologia religiosa no capítulo 25
“Trama”: “Aquilo era a execução do plano concertado na véspera ao cair de ave-marias,
através dos postigos da rótula”. (ALMEIDA, 1999: 66) Essa recorrência a datas de festas
religiosas, dias de santos e horários religiosos é muito freqüente em todo o curso da narrativa
das Memórias de um sargento de milícias. Esse método também é uma das formas utilizadas
pelo narrador para dar ao leitor informações sobre alguns costumes da época.
Percebidas as nuances do tempo na ficção de Manuel Antônio, vale ressaltar
que o narrador inicia o relato contando fatos do passado para depois situar o presente da
narração. Essa retrospecção, denominada por Gerard Genette (1979) de analepse, constitui a
evocação de momentos anteriores, sem quebra da continuidade do discurso, de modo a
deslocar a atenção ora para o passado, ora para o futuro. A anacronia histórica, o salto
temporal reportando-nos a momentos históricos anteriores, deve-se às formas de discordância
entre as duas ordens temporais do discurso e da história, completa Benedito Nunes (2000).
Como ressalta o estudo de Candido, que nos tem servido de fio condutor, o
tempo da história ao qual se refere as Memórias, o período do rei Dom João VI no Brasil, em
certa medida, permite o cruzamento do conteúdo romanesco com o passado. Manuel Antônio
de Almeida, através da técnica da simultaneidade, intercala a fala do narrador em situações
temporais distintas, ora passado ora presente da enunciação, e, assim, justapostas, fundem
momentos de história com momentos do discurso, ressaltando as diferenças entre passado e
presente.
Desse modo, percebidos os desdobramentos do tempo das Memórias, pode-se
afirmar que é preciso considerar a junção de dois tempos, o real, do discurso narrativo, e o
imaginário, da história, pois como ficção que é o texto de Maneco de Almeida, sua poética,
12
Para o catolicismo as 18:00 h são chamadas de horas da Ave-Maria.
75
fazendo uso do pensamento de Benedito Nunes (2000), apresenta ou presentifica, num
momento do tempo imaginário, aquilo que representa.
2. 5. A construção das personagens
“O herói em literatura é, antes de mais nada um ser social...o que somente
fosse individual ou não expressasse nada típico não poderia produzir um
interesse duradouro. Não basta pintar um indivíduo, é necessário pintar
uma individualidade...”
Guyau
Como vimos analisando, o autor das Memórias de um sargento de milícias vai
erigindo os elementos que compõem o universo da ficção, a partir dos quais podemos
perceber a sua verossimilhança interna.
Conforme Beth Brait (1987), a concepção de personagem herdada de
Aristóteles e Horácio, em que a personagem deve ser a reprodução do melhor do ser humano,
tem suas raízes flexibilizadas pela crítica do século XIX. Os seres fictícios não mais são vistos
como imitação do mundo exterior, mas como projeção da maneira de ser do escritor. Essa
tradição só vai ser alterada nas primeiras décadas do século XX, quando a personagem, ainda
sujeita ao modelo humano, aproxima-se da especificidade da linguagem. Essa aproximação se
dá a partir dos estudos do crítico e romancista inglês E. M. Forster, que, em 1927, encara o ser
fictício como um elemento estrutural do romance.
Nessa perspectiva, a personagem, sendo um entre os elementos estruturais
essenciais à composição da narrativa, é criada pelo romancista a partir de uma seleção do que
a realidade lhe oferece. Essa seleção só pode ser conseguida a partir de recursos lingüísticos.
A partir desse pressuposto, vamos descortinando as formas que Manuel
Antônio de Almeida manipulou a fim de materializar as personagens, sendo elas encaradas
não como representação do homem, mas como produto do enredo e da estrutura específica do
romance.
76
Se o texto é produto desta ordenação de estruturas, interessa-nos estabelecer a
relação entre a personagem e as demais instâncias do discurso literário: o tempo, o espaço, a
construção ideológica e o narrador. Este último consiste numa instância narrativa que vai
conduzindo o leitor aos meandros do universo imaginário. Como percebe Ronaldo Costa
Fernandes (1996), o narrador é o muro da narração, é ele quem esconde e revela as
informações.
Em Memórias de um sargento de milícias, o narrador é predominantemente em
terceira pessoa. A postura desse narrador funciona como um ponto de vista capaz de
caracterizar as personagens. Podemos observá-lo no capítulo 10, “Explicações”, quando o
narrador procura esclarecer sobre o comportamento do Tenente-Coronel:
O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na
consciência um sofrível par de pecados, desse que se chamam da carne, e
que não hão de ser levados em conta, não de hoje, que a idade o tornara
inofensivo, porém do tempo de sua mocidade: o resultado de um deles fora
um filho que deixara em Lisboa, fruto de um derradeiro amor que tivera aos
36 anos. (ALMEIDA, 1999: 30)
Como é percebido, o narrador nos leva a conhecer algumas qualidades da
personagem, revelando o comportamento da mesma no passado e, prosseguindo a narrativa,
justifica a ajuda dada pelo Tenente a Leonardo-Pataca.
Esse narrador em terceira pessoa focaliza as personagens nos momentos que
interessam ao andamento da história, porém em alguns momentos deixa o leitor em dúvidas.
Para aclarar a questão, vejamos as pistas deixadas na narrativa. Seria Leonardo filho legítimo
de Leonardo-Pataca?
Inicialmente, no primeiro capítulo, “Origem, nascimento e batizado”, o
narrador nos revela que o herói da história nasceu sete meses após a pisadela e o beliscão de
Leonardo-Pataca e Maria-da-Hortaliça no navio vindo de Portugal para o Brasil. Nos
capítulos 10 e 11, intitulados, respectivamente, “Explicações”, e “Progresso e atraso”, o
77
narrador deixa-nos entender que o pai biológico de Leonardo é o filho do Tenente-Coronel,
que desvirginou Maria-da-Hortaliça em Lisboa.
O velho Tenente-Coronel, depois de ter posto na rua o Leonardo, informado
miudamente, como sabe o leitor, pela Comadre do destino da Maria, decidiu
tomar o menino sob sua proteção, e acreditou que, se conseguisse felicitá-
lo, lavaria seu filho do pecado de ter desonrado a Maria. (ALMEIDA, 1999:
35)
Em outras passagens da narrativa, revela a semelhança biológica entre os
Leonardos, pai e filho. No capítulo 30, “Remédio aos males”, refere-se à característica de
sensibilidade e vulnerabilidade amorosa de Leonardo como herança do pai: “O Leonardo
[filho], que talvez hereditariamente tinha queda para aquelas cousas, ouviu boquiaberto a
modinha, e tal impressão lhe causou, que depois disso nunca mais tirou os olhos de cima da
cantora”. (ALMEIDA, 1999: 79)
Acerca da personagem Chiquinha acontecem, também, algumas indefinições.
O narrador não se posiciona quanto ao vínculo familiar da mesma com a Comadre. Ora, no
capítulo 16, “Sucesso do plano”, declara ser ela sobrinha da Comadre. Vejamos: “A Comadre
tinha uma sobrinha que vivia em sua companhia, e que lhe pesava sofrivelmente sobre as
costas...” (ALMEIDA, 1999: 47) Em seguida, no capítulo 24, “A Comadre em exercício”,
afirma ser a mesma, filha da Comadre. “Chiquinha (era este o nome da filha da Comadre)
achou-se de esperanças e pronta a dar à luz”. (ALMEIDA, 1999: 62)
Ainda acerca de Chiquinha, o narrador nos põe em dúvida sobre a natureza de
sua relação com Leonardo-Pataca. Seria esposa ou amante? O narrador nos afirma, no
capítulo 29, “Pior transtorno”, que era “a amante de Leonardo-Pataca...” (ALMEIDA, 1999:
75) No mesmo capítulo, em meio a uma discussão com a “companheira” de seu pai, Leonardo
filho nos convence dessa nossa dúvida ao declarar: “- Se me diz mais meia palavra... perco-
lhe o respeito... eu nunca lhe dei confiança; e apesar de ser a senhora lá o que quer é de meu
pai... perco-lhe o respeito”. (ALMEIDA, 1999: 75)
78
Esse narrador, pouco digno de confiança, vez por outra, como
dissemos, apresenta-se em primeira pessoa. A condução da narrativa por um narrador que
“direta” ou “indiretamente” está envolvido com fatos narrados ocorre principalmente nos
momentos em que ele faz reminiscências acerca de lugares, situações e costumes dos
primeiros anos do século XIX. Embora intitule a obra como “Memórias”, é o narrador, ora em
primeira, ora em terceira pessoa, quem dá as pistas acerca do desenvolvimento da narrativa.
Rarísssimas vezes, o narrador dá a palavra ao “memorando” Leonardo.
No capítulo 17, “Dona Maria”, percebem-se as marcas desse narrador em primeira
pessoa: “Queremos falar de um grande rancho chamado das – Baianas – que caminhava
adiante da procissão... Para falarmos a verdade, a coisa era curiosa” e, “Os nossos costumes
nesse tempo a respeito de franqueza e hospitalidade não eram lá muito louváveis; nesse dia
porém sofriam uma exceção...” (ALMEIDA,1999: 48-49) E assim, no decorrer da narrativa,
em que, através da retrospecção, revelam-se os costumes, valores e tradições dos primeiros
anos de 1800, o narrador assume a sua voz e discorre em primeira pessoa. Para Ronaldo Costa
Fernandes (1996), esse recurso de revelar-se como um narrador-personagem deve ser
considerado como resultado da função de jornalista e cronista exercida pelo autor, a fim de
mostrar sua cidade e o seu tempo.
Como vimos discutindo, a construção da personagem constitui um outro fio
que enreda a verossimilhança interna da obra. Beth Brait (1987), discutindo acerca da
personagem, ressalta a importância da definição entre pessoa e personagem. A primeira é um
ser vivo, enquanto a segunda é um ser ficcional. A personagem não existe fora das palavras,
portanto é um problema lingüístico. Daí, o termo “criaturas de papel”.
Endossando a mesma concepção, recorremos ao crítico Antonio Candido
(2005) que, pensando acerca da gênese das personagens, ressalta que tanto as diferenças
quanto as afinidades entre o ser vivo e o ser fictício são importantes para criar o sentimento de
79
verdade na narrativa. O conhecimento que temos tanto do ser vivo quanto da personagem é
fragmentado. Na vida, submetemo-nos à visão fragmentada das pessoas, que é imanente à
nossa própria existência. No romance, essa fragmentação é criada racionalmente pelo escritor,
que delimita o conhecimento do outro. Essa delimitação é proporcionada na medida em que o
escritor nos permite formar uma idéia completa da criação fictícia por meio de gestos,
vestimentas, comportamentos, aspectos físicos.
Candido acrescenta que o ser fictício é mais lógico que o ser vivo, pois “o
escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência fixada para sempre, delimitando a curva
da sua existência e a natureza do seu modo-de-ser”. (CANDIDO, 2005: 59) Portanto, a
compreensão do ser que nos vem do romance, embora complexa, é mais precisa do que a que
nos vem da existência, pois conhecemos o sujeito do exterior, mas a personagem pode ser
vista de dentro, através da ação do romancista.
Em Memórias de um sargento de milícias, podemos constatar a
verossimilhança das personagens à medida que Manuel Antônio as trata “como seres íntegros
e facilmente delimitáveis, marcados duma vez por todas com certos traços que os
caracterizam”. (CANDIDO, 2005: 60) Esses traços vinculam-se à profissão (mestre-de-reza,
professor, tenente-coronel, mestre-de-cerimônias, major), à classe (o compadre, a comadre, a
cigana, a vizinha) e resultando em caricaturas (Toma-largura, Maria-da-Hortaliça, Leonardo-
Pataca, Major Vidigal).
Na técnica de caracterização das personagens, Antonio Candido define como
“personagens de costumes” aquelas personagens cômicas, pitorescas, invariavelmente
sentimentais ou acentuadamente trágicas, cujo processo de composição culmina em
caricaturas. Pode-se dizer que “o romancista ‘de costumes’ vê o homem pelo seu
comportamento em sociedade, pelo tecido das suas relações e pela visão normal que temos do
próximo”. (CANDIDO, 2005: 62) Na narrativa almeidiana, essas personagens de costumes, às
80
vezes chamadas tipos ou caricaturas, são construídas em torno de uma única idéia ou
qualidade, o que as classifica como planas. Leonardo-Pataca é caracterizado pelo hábito de
queixar-se, a todo momento, de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis.
Ainda seria, juntamente com outros meirinhos, a sombra caricata daqueles do tempo do rei.
Em todos os outros aspectos, como pai, esposo, amante e profissional, a personagem é
depreciada e caricaturada. Não nos surpreendem as desventuras pelas quais a personagem
passa.
Partindo da premissa de que a personagem seja um dos elementos reproduzidos e
inventados pelo ficcionista a fim de compor a verossimilhança interna de seu texto, passemos
então a averiguar algumas personagens que povoam o universo de Memórias de um sargento
de milícias.
Nessa obra, as personagens planas são arquitetadas como personagens-tipo.
Podemos interpretar essas personagens como aquelas que apresentam um conjunto de traços
físicos e psicológicos que as definem em sua individualidade. O tipo é uma figura singular, de
características marcantes que, por suas peculiaridades comportamentais, universaliza-se e
eterniza-se. Vejamos a caracterização da Comadre.
Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda, bonachona,
ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de
parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a
conheciam por muito beata e pela desabrida papa-missas da cidade. Era a
folhinha mais exata de todas as festas religiosas que se faziam...
(ALMEIDA, 1999: 24-25)
Pela voz do narrador nos é apresentado um retrato físico e psicológico da
personagem, o que nos leva a perceber a sua participação na narrativa por via dessas
características. A Comadre é quem arquiteta o plano para impedir a união do casal José
Manuel e Luisinha. É ela, também, quem realiza o parto de Chiquinha, companheira de
Leonardo-Pataca, e justifica o sofrimento feminino nesses momentos por meio da
81
religiosidade. Enfim, a sua presença no desfiar do novelo ficcional se dá por meio dessas
marcas, da religiosidade, do arranjo e da esperteza.
Passemos agora à longa apresentação da personagem José Manuel. O narrador
principia descrevendo a personagem pelos aspectos físicos e por seus trajes: “[f]igure o leitor
um homenzinho nascido em dias de maio, de pouco mais ou menos trinta e cinco anos de
idade, magro, narigudo, de olhar vivo e penetrante, vestido de calção e meias pretas, sapatos
de fivela, capote e chapéu armado, e terá idéia do físico do Senhor José Manuel, o recém-
chegado.” Segue a revelação da personagem decantando os seus vícios e seu comportamento
moral: “Quanto ao moral, se os sinais físicos não falham, quem olhasse para a cara do Senhor
José Manuel assinalava-lhe logo um lugar distinto na família dos velhacos de quilate. E quem
tal fizesse não se enganava de modo algum; o homem era o que parecia ser”. Ainda, a partir
da descrição pessoal de José Manuel, põe-nos a par de um costume do Rio de Janeiro do
tempo, ironizando suas qualidades: “Se tinha alguma virtude, era a de não enganar pela cara.
Entre todas as suas qualidades possuía uma que infelizmente caracterizava naquele tempo, e
talvez que ainda hoje, positiva e claramente o fluminense, era a maledicência”. A descrição
culmina com a degradação total da personagem quando afirma o narrador: “José Manuel era
uma crônica viva, porém escandalosa ...” (ALMEIDA, 1999: 58)
Como vimos, o narrador procura cercar-nos da maior quantidade de informações
possíveis sobre as personagens, o que nos conduz a simpatizar ou antipatizar com elas.
Contudo, como observou Candido, a maioria das personagens são cercadas pelos aspectos
grotescos e risíveis, da virtude e dos vícios, numa mistura que resulta num universo sem
culpa.
Como vimos discutindo, em meio às personagens planas de Memórias de um
sargento de milícias, encontramos, também, o Major Vidigal. Segundo as caracterizações do
narrador:
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era o rei absoluto, o árbitro supremo de tudo que dizia respeito a esse ramo
de administração; era o juiz que julgava e distribuía a pena, e ao mesmo
tempo o guarda que dava caça aos criminosos; nas causas da sua imensa
alçada não haviam testemunhas, nem provas, nem razões, nem processo; ele
resumia tudo em si; a sua justiça era infalível; não havia apelação das
sentenças que dava, fazia o que queria, e ninguém lhe tomava contas.
(ALMEIDA, 1999: 20)
Nesse trecho, podemos perceber que o narrador preocupa-se em nos revelar a
autoridade, a rigidez e a supremacia das ordens impostas pelo Major na sociedade
representada. Prossegue mostrando ao leitor as suas características físicas: “Era o Vidigal um
homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão; tinha o olhar sempre baixo, os
movimentos lentos, e voz descansada e adocicada”. (ALMEIDA, 1999: 20) Deste modo, o
narrador imprime a sua opinião: “[a]pesar deste aspecto de mansidão, não se encontraria por
certo homem mais apto para o seu cargo, exercido pelo modo que acabamos de indicar.”
(ALMEIDA, 1999: 20) Porém, por trás das sisudas e rígidas características reveladas pelo
narrador, através de promessas amorosas e do pedido feito por Maria-Regalada, o Major
Vidigal não só perdoa Leonardo como o promove ao cargo de sargento de milícias. Com essa
atitude, nos é mostrada outra face da personagem que a distancia da imagem ditatorial que lhe
é dada pelo narrador e faz com que comungue da dialética da “ordem e da desordem” que
permeia a narrativa.
Percebida a existência histórica de um certo “Major Vidigal”, representante da
lei na sociedade carioca dos anos retratados, reportamo-nos aos estudos de Beth Brait a fim de
esclarecer essa presença nas Memórias. Para a autora (1987), como mencionamos, a
personagem se distancia da pessoa porque ela é um ser ficcional, inventado, criado: portanto,
constitui um fruto da imaginação, montado a partir dos recursos oferecidos pelo código
verbal. Para maior esclarecimento desta diferenciação, recorremos aos estudos de Candido
com o propósito de distinguir o Homo fictus e o Homo sapiens (2005). O Homo fictus é uma
construção intencional do autor, já que diz pouco ou quase nada da complexidade do ser
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humano: pode ou não refletir algumas características do Homo sapiens. Como atesta Candido,
o Major Vidigal que encontramos em Memórias de um sargento de milícias é uma criação
como as demais personagens que interagem na obra.
E, para dar o sentimento de verdade, o autor manipula a realidade, reproduz ou
inventa a personagem a fim de construir a ficção. Dessa forma, é da memória que o
romancista extrai elementos da invenção, “e isto confere acentuada ambigüidade às
personagens, pois elas não correspondem a pessoas vivas, mas nascem delas”. (CANDIDO,
2005: 67)
Enfim, a natureza da personagem depende em parte da concepção que preside
o romance e das intenções do romancista. O panorama dos costumes expostos pelas
personagens de Memórias de um sargento de milícias se dá por meio da observação e
descrição de algumas características de pessoas cujo comportamento parece significativo, já
que é impossível descrever a totalidade da existência. O comportamento passivo masculino, a
vulnerabilidade feminina nos relacionamentos, a ação da mulher nos são revelados através de
traços dessas personagens. Portanto, o que garante o sentimento de realidade da obra é a sua
coerência e estrutura interna, resultando numa sociedade atípica e dinâmica para os padrões
tradicionais.
2.6. As vozes do romance e o discurso ideológico
Toda palavra de um texto conduz para fora dos limites desse texto. A
compreensão é o cotejo de um texto com os outros textos.
Bakhtin
Como constata Antonio Candido (1993), a ordem e as formas de sociabilidade
atuaram de maneira espontânea no Brasil. Os choques entre a norma e a conduta, decorrentes
dessa espontaneidade, foram abrandados, o que tornou menos dramáticos os conflitos de
consciência.
84
Essa sociabilidade resulta da incorporação do pluralismo racial, abrindo-se à
penetração dos grupos dominados ou estranhos. É essa camada da população que passeia
pelas ruas da ficção almeidiana. E é a ideologia dessa classe que permeia a construção
narrativa. Sendo matizado por diferentes nuances significativas, o termo ideologia é ainda
hoje uma noção confusa e controversa. Helena Nagamine Brandão (1998) destaca que, de um
lado, temos uma concepção geralmente ligada à tradição marxista, que apresenta o fenômeno
ideologia de maneira mais restrita e particular, entendendo-o como o mecanismo que leva ao
escamoteamento da realidade social, apagando as contradições que lhe são inerentes.
Conseqüentemente, preconiza a existência de um discurso ideológico que, utilizando-se de
várias manobras, serve para legitimar o poder de uma classe ou grupo social. De outro lado,
temos uma noção mais ampla de ideologia que é definida como uma visão de mundo de uma
determinada comunidade social numa determinada circunstância histórica. Nesse sentido, não
há um discurso ideológico, mas todos os discursos o são. Essa postura deixa de lado uma
concepção como “falsa consciência” ou dissimulação e volta-se para outra direção ao
entender tal termo como algo inerente ao signo em geral.
No romance de Manuel Antônio de Almeida, essas duas concepções de ideologia
não se excluem, pois vendo-a como um ponto de vista inerente à própria linguagem, ela pode
ser produzida intencionalmente ou não. E, nesta obra, a perspectiva marxista pode ser pensada
quando destacamos que o autor aparta-se da perspectiva da classe dominante. Como percebe o
crítico que vimos acompanhando, “[o] sentido profundo das Memórias está ligado ao fato de
não enquadrarem em nenhuma das racionalizações ideológicas reinantes na literatura
brasileira de então: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento, redenção pela dor,
pompa do estilo etc”. (CANDIDO, 1993: 51) Na estrutura e na visão geral da sociedade
decantada nas páginas literárias, a narrativa exprime a acomodação geral de uma sociedade
em que a ordem, a lei, o respeito e a fidelidade convivendo com seus opostos são meros
85
fatores de neutralidade moral. “Tudo isso porque, não manifestando estas atitudes ideológicas,
o livro de Manuel Antônio é talvez o único em nossa literatura do século XIX que não
exprime uma visão de classe dominante”, completa Candido. (CANDIDO, 1993: 51)
A partir das considerações de Raymond Williams (1979), independente de onde
emana o discurso, todos eles são considerados ideológicos. Para ele, o que se procura é
considerar as obras como variantes da ideologia tanto da classe dominante quanto daquela
subordinada. Rompendo com o modo de pensar da classe dominante de sua época, o autor,
como ser social, profere uma linguagem desvinculada da moda, carregada de conceitos e
conhecimentos do mundo que o rodeia, do mundo no qual está inserido. No capítulo 16,
“Sucesso do Plano”, para exprimir o castigo dado ao Mestre-de-cerimônia pelo Major
Vidigal, o narrador declara em tom popular: “não chegou ele ir à cadeia; o Vidigal quis dar-
lhe apenas amostra do pano...” (ALMEIDA, 1999: 46) Assim, poderia o autor repetir a mesma
linguagem e a mesma visão de mundo que comparte com seus contemporâneos. Mas Manuel
Antônio de Almeida inovou o estilo romântico inaugurando um estilo e uma visão da classe
desprivilegiada.
Como constata Candido (1993), esse rompimento com a estética da época é
evidenciado por sua tonalidade coloquial. A neutralidade com que constrói o universo
ficcional mostra o outro lado de cada coisa, a beleza, a imperfeição, a virtude, o vício de
certas personagens, a irreverência e a moralidade de certas expressões populares como
evidenciamos anteriormente. Este balanceio traduz a realidade para o corpo da narrativa. E
conclui o crítico que é “no plano do estilo que se entende bem o desvinculamento das
Memórias em relação à ideologia das classes dominantes do seu tempo -, tão presente na
retórica liberal e no estilo florido dos ‘beletristas’”. (CANDIDO, 1993: 52)
Por mais que o narrador procure atribuir a sua voz um cunho atemporal, sempre
deixará transparecer certa concepção ou ideário de sua época. Nas Memórias, de Manuel
86
Antônio, o que podemos perceber, em algumas passagens, é a reprodução da ideologia do
autor através da voz do narrador. Vejamos como o narrador se insere na história quando no
capítulo 19, “Domingo do espírito Santo”, revela: “[A]quele que escreve estas Memórias
ainda em sua infância teve ocasião de ver as Folias, porém já no seu último grau de
decadência...” (ALMEIDA, 1999: 53) Poderíamos pensar na infância do “memorando”
Leonardo, no entanto não é ele quem escreve e conta a história, mas um narrador, como
dissemos, predominantemente em terceira pessoa. Dessa forma, parece que o narrador faz
referência a um tempo real vivido pelo autor em que as folias, as procissões, os costumes
religiosos eram, ainda, respeitados. Enfim, conforme afirma Bakhtin (1997), a presença
dessas ideologias nas várias vozes do texto, seja pela voz do narrador, seja das personagens,
ou do próprio autor, conferem ao texto um discurso polifônico.
A partir de Dostoievski, Bakhtin formou o essencial de seu pensamento, o
conceito de polifonia, que é apenas um outro termo para dialogismo e para o conceito das
diferentes vozes instauradas num discurso. O pensador russo observa um princípio de
estruturação em que as idéias, os pensamentos, as palavras configuram um conjunto que se
instaura através de várias vozes, ecoando cada uma de maneira diferente.
Dialogismo e polifonia, termos muitas vezes utilizados como sinônimos nos
escritos de Bakthin, definem-se como um “tecido de muitas vozes”, ou de muitos textos ou
discursos, que se entrecruzam, se completam, respondem umas às outras ou polemizam entre
si no interior do texto. Nos textos polifônicos, os diálogos entre discursos mostram-se,
deixam-se ver.
Bakhtin (1997) concebe a literatura como um tipo especial de linguagem que
permite ver as coisas que estão obscurecidas em outros discursos. Assim, acredita que o
romance funciona como um órgão de percepção e através do literário torna-se possível
apreender o conceito de vozes e instituí-lo como princípio arquitetônico da prosa romanesca.
87
Essa linguagem romanesca remete então, não a um dialeto particular, mas às
múltiplas vozes sociais urdidas na tessitura da narrativa, que podem ser transportadas para a
esfera extraliterária a fim de compreender a ideologia da época.
Logo, sem querer conferir à obra de Manuel Antônio de Almeida a mesma
complexidade da escrita de Dostoiévski, é possível perceber nas Memórias de um sargento de
milícias a presença de um “embrião” polifônico. Essa pluralidade de vozes dá materialidade
ao tecido discursivo do romance. Vejamos a relação dialógica entre o narrador e o leitor do
romance de Manuel de Almeida. O narrador introduz o capítulo 9, “O - Arranjei-me- do
Compadre”: “[O]s leitores estarão lembrados do que o Compadre dissera quando estava a
fazer castelos no ar a respeito do afilhado, e pensando em dar-lhe o mesmo ofício que exercia,
isto é, daquele arranjei-me, cuja explicação prometemos dar. Vamos agora cumprir a
promessa”. (ALMEIDA, 1999: 28) Essa referência ao leitor é muito freqüente na introdução
dos capítulos, onde o narrador dialoga com ele chamando a atenção para alguns aspectos do
romance. Característica comum nos romances publicados em folhetim.
Nas Memórias, de Manuel Antônio de Almeida, esse diálogo se dá através de
uma linguagem popular, já que a narrativa comporta diversas vozes que mostram o segmento
ideológico de uma classe, pouco representada pelas páginas literárias. Dessa maneira, ao
tecido narrativo da obra almeidiana subjaz uma certa visão do mundo, que é fenômeno
coletivo na medida em que representa uma classe social, segundo o seu ângulo ideológico
próprio.
Conforme explicitamos, há no tecido narrativo do romance múltiplas vozes
enunciadoras, portadoras de distintas ideologias que se alternam conforme as intenções do
escritor. Como o romance aborda a vida de uma determinada classe social, excluindo a classe
dominante e a dos escravos, prevalece a ideologia existente nos estratos médios urbanos.
Conforme estamos explicitando, dentro do discurso dessa classe, há o discurso das profissões,
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da lei, dos gêneros masculino e feminino, do próprio autor, dentre outros. Nessas múltiplas e
diversas vozes é que estaria o embrião da polifonia. Essa construção discursiva entrecruzada
por múltiplos discursos exime o texto da característica de verdade única, incontestável e
confere a ele o aspecto ideológico e polifônico.
Então é essa presença dialógica que encontramos em Memórias de um
sargento de milícias. Vejamos como, no primeiro capítulo, o narrador nos apresenta a classe
dos meirinhos para depois apresentar um membro desse grupo, que consistirá num dos fios
condutores da história:
Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de
imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar; confundem-se com
qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os
meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram
originais, eram tipos: nos seus semblantes transluzia um certo ar de
majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana.
(ALMEIDA, 1999: 10).
Em seguida, o narrador nos apresenta Leonardo-Pataca, acrescentando que sua
história tem pouca coisa de notável. Por meio do fragmento supracitado, podemos perceber
em um mesmo enunciado que a voz do narrador manifesta posições ideológicas diferentes.
Esse narrador que coloca em cena e dá a voz aos estratos médios urbanos ressalta com certo
saudosismo a presença desta classe, seus costumes, o respeito imposto por sua presença na
sociedade carioca. Noutro plano, podemos sentir a mesma voz depreciando essa classe
representada pela personagem Leonardo-Pataca, quando decanta e ridiculariza esses
funcionários do rei.
Ao perfazer a trilha deixada pelas vozes enunciadoras, tanto do narrador quanto
das personagens, é fácil perceber a presença da ideologia do sistema patriarcal.
Principalmente pela voz das personagens masculinas, há uma reafirmação das diferenças entre
homem e mulher prescritas pelo período.
Vejamos como, no primeiro capítulo, a coragem, a força física, a valentia
masculinas são abordadas como predicativos essenciais para a caracterização da classe e do
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sexo. Conforme anota o narrador: “Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que
falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas”. (ALMEIDA, 1999:
10) Seguindo o mesmo raciocínio quando declara a postura do Chico-Juca, no capítulo 15,
“Estralada”: “ele tinha o vício da valentia; mesmo quando ninguém lhe pagava, bastava que
lhe desse na cabeça, armava brigas, e só depois que dava pancadas a fartar é que ficava
satisfeito; com isso muito lucrava: não havia taverneiro que lhe não fiasse e não o tratasse
muito bem”. (ALMEIDA, 1999: 44) Já que Leonardo-Pataca era sentimental, fora traído,
explicitamente, algumas vezes, não possuía esses predicativos, portanto o narrador nos
informa que “sua história tem pouca cousa de notável”. (ALMEIDA, 1999: 11)
Como é sabido, conforme a ideologia patriarcal e machista, à mulher é
facultada a condição de “objeto”, “coisa” passível de manipulação e dominação masculina.
Vejamos alguns fragmentos da narrativa que podem endossar essa conotação. No capítulo 15,
pela voz de um dos rapazes que tocavam viola: “- Isto passa demais... varro... menos essa,
Senhor Chico-Juca; nada de graças pesadas com essa moça, que é cá cousa minha...”
(ALMEIDA, 1999: 45) No capítulo 28, “Transtorno”, há a reiteração desse ponto de vista,
agora de acordo com o narrador, sobre a companheira de Leonardo-Pataca: “para falar a
verdade, desde a primeira vista não simpatizara muito o moço Leonardo com a cara do objeto
dos novos e últimos cuidados de seu pai”. (ALMEIDA, 1999: 74)
Se as relações de Leonardo-Pataca com as mulheres ativas, transgressoras não
foram estáveis, a partir da voz narrativa, podemos pensar que, se os relacionamentos nesse
período se ajeitavam, poderia ser devido à aceitação e passividade das mulheres. Essa
estabilidade e sucesso na relação eram materializados e garantidos pela procriação. Como
revela o narrador, no capítulo 24, “A Comadre em exercício”: “Leonardo-Pataca apertara-se
em laços amorosos com a filha da Comadre, e que com ela vivia em santa e honesta paz. Pois
este viver santo e honesto deu em tempo oportuno o seu resultado. Chiquinha achou-se de
90
esperanças e pronta a dar a luz”. (ALMEIDA, 1999: 62) E podemos observar, a partir da
enunciação feminina, as justificativas da Comadre para a “tarefa árdua” da mulher: “— Com
força, menina, com bem força e Nossa Senhora não desampara os fiéis. Ânimo, ânimo; isto o
mais que sucede é uma vez por ano. Desde que nossa mãe Eva comeu aquela maldita fruta
ficamos nós sujeitas a isto. Eu multiplicarei os trabalhos do teu parto. São palavras de Jesus
Cristo”. (ALMEIDA, 1999: 64)
Como esclarecemos, as personagens planas confirmam a impressão deixada
pelo narrador. A Comadre ratifica a devoção descrita pelo narrador como um dos informes
essenciais na caracterização de sua personagem, imprimindo em seus atos essa ideologia
religiosa. Assim, como representante deste grupo social, o das beatas, certamente, sustenta a
mesma ideologia. Nesse âmbito, a Comadre, enquanto voz feminina que nutre a ideologia
tradicional, assenta-se no discurso religioso para justificar a condição feminina.
Conforme exemplificado, tanto no discurso do narrador quanto no discurso das
personagens masculinas e, às vezes femininas, pode-se comprovar a concepção ideológica
patriarcal presente no século XIX. Por vezes, o mesmo narrador nos põe em contato com
outras enunciações que entrecruzam, atravessam a voz da narrativa dando “ares” de
modernidade. No capítulo 15, as mulheres enfrentam a si mesmas e aos homens em uma
briga, deixando ver o caráter simbólico da força e da supremacia masculina e denotando a
participação feminina na esfera social. “O Chico-Juca foi acometido por um pouco; porém
ligeiro e destemido, distribuía a cada qual o seu quinhão de cabeçadas e pontapés; algumas
mulheres meteram-se na briga, e davam e levavam como qualquer; outras, porém desfaziam-
se em algazarra”. (ALMEIDA, 1999: 45)
Nesse mesmo sentido, no capítulo 39, “Ciúmes”, Vidinha mostra-se decidida a
brigar com a esposa do Toma-largura, após a traição de Leonardo filho: “Depois de gritar,
chorar, maldizer, blasfemar, ameaçar, rasgar, quebrar, destruir, Vidinha parou um instante,
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concentrou-se, meditou, e depois, como tomando uma grande resolução (...) Quero ir à
Ucharia”. (ALMEIDA, 1999: 98) Podemos pressupor que, de acordo com o ponto de vista
narrativo, a mulher para ser “mulher”, precisa se adequar ao modelo de passividade e
submissão, enfim, adequar-se aos moldes tradicionais, conforme insinua a voz narrativa: “Não
há cousa mais eminentemente prosaica do que uma mulher quando se enfurece. Tudo quanto
em Vidinha havia de requebro, de languidez, de voluptuosidade tinha desaparecido; estava
feia, e até repugnante”. (ALMEIDA, 1999: 98) A partir desse apontamento, pode-se deduzir
que o narrador condena ou recrimina a postura ativa feminina diante da sociedade.
Assim, a multiplicidade de vozes que constroem e delineiam as ideologias
evidentes na tessitura do romance reafirmam o seu caráter dialógico e polifônico. Portanto,
essas vozes que negam a ideologia da classe dominante e imprimem no texto o ritmo popular,
fazem do romance de Manuel Antônio de Almeida o porta-voz de uma coletividade. E são por
esses artifícios poéticos que Memórias de um sargento de milícias vai proporcionando outras
leituras, novas interpretações permitidas ao leitor pela marcas da ação do narrador e das
personagens masculinas e femininas.
92
CAPÍTULO 3 – AS RELAÇÕES DE GÊNERO
A norma básica para se lidar com uma obra de ficção é a seguinte: o leitor
precisa aceitar tacitamente um acordo fccional, que Coleridge chamou de
“suspensão da descrença”. O leitor tem de saber que o que está sendo
narrado é uma história imaginária, mas nem por isso deve pensar que o
escritor está contando mentiras. (...) Aceitamos o acordo ficcional e
fingimos que o que é narrado de fato aconteceu.
Umberto Eco
Dadas as articulações da construção da verossimilhança interna de Memórias
de um sargento de milícias, pode-se registrar que a obra encena um movimento dinâmico das
relações de gênero, na sociedade destacada, estreitando-se a fronteira entre o real e a ficção.
Como resultados do trabalho com os códigos lingüísticos, literários e
ideológicos, personagens, espaço e tempo enredam o tecido narrativo dando “ares” de
realidade ao narrado. Como postula Candido, essa aproximação com o real, sendo fruto da
intuição do romancista, permite-nos examinar as relações sociais, incluindo-se as de gênero,
da época. Antonio Candido e Ronaldo Costa Fernandes comungam da idéia de que é nas
relações humanas, na percepção do cotidiano da coletividade do Rio de Janeiro que se
materializa o desígnio do romancista de construir uma crônica de costumes.
Como são “feitas de papel”, as personagens que circulam pelas ruas da cidade
são inscritas numa sociedade que também é fruto de uma representação. Se a exibição dessa
sociedade se dá pela dialética da ordem e da desordem, as relações de gênero também oscilam
entre esses dois opostos. A diversidade das condutas das personagens do romance em questão
é percebida por meio dessa dialética.
Com relação aos comportamentos das personagens femininas, é necessário
esclarecer que, mesmo sendo apresentados por um narrador masculino, às vezes se
assemelham, às vezes se diferenciam das tradições patriarcais. Assim, as várias faces que o
homem e a mulher podem apresentar são mostradas ora pela intervenção do narrador, ora pela
ação das próprias personagens.
93
Sendo o narrador quem conduz o leitor pelos meandros da narrativa, ele
também, em grande medida, revela essa dinâmica social. Embora, no romance almeidiano, as
memórias contadas sejam de uma personagem masculina, podemos perceber que são as
personagens femininas quem, de fato, protagonizam a história. Essa obra rompe, em parte,
com a tradição de uma sociedade falocrática, patriarcal, que pressupõe um pensamento
binário e valoriza a totalidade e a pureza e mostra que, na realidade, existem homens e
mulheres singulares vivendo com suas marcas culturais e sociais. Centrada em uma sociedade
administrada por homens e em que os discursos são especialmente masculinos, os homens se
tornaram coadjuvantes dessa história que tem as ações femininas como fio condutor. Nas
relações estabelecidas na narrativa, os triângulos amorosos, geralmente, configuram-se sob a
forma masculino-feminino-masculino, estrutura menos comum nessas sociedades. Podemos
exemplificar com as relações existentes entre o Capitão do navio/ Maria-da-Hortaliça/
Leonardo-Pataca, também entre Leonardo-Pataca/ Cigana/ Mestre-de-cerimônias, e ainda
Leonardo/ Luisinha/ José Manuel.
Enfim, atentando para a literatura como um discurso que se revela tecido por
vozes, que se sobrepõem ou que se calam, nossa via de pesquisa propõe investigar como as
vozes masculinas e femininas, sendo construções lingüísticas e ideológicas, permitem a
realização de uma leitura sociológica. Logo, sem perder de vista a ficcionalidade, faremos
uso dessa verossimilhança para pensar acerca das relações de gênero na sociedade urbana do
Rio de Janeiro nos primeiros cinqüenta anos do século XIX.
94
3. 1. As relações de gênero na ficção do século XIX
[C]omo num filho devem se inscrever hereditariamente as características
familiares e numa obra o perfil de quem a escreve, também de uma
literatura se exige que exiba semelhanças com a tradição nacional a que
pertence.
Flora Süssekind
É pela presença de fatos cotidianos, pelo levantamento de questões sociais
que parte da crítica sobre as Memórias de um sargento de milícias a considera um texto
“genuinamente” nacional. Para alguns, nessa obra, o autor registrou, com maior sentimento de
realidade, a identidade brasileira que os romances de José de Alencar.
Dentro desse raciocínio, Ruth Silviano Brandão aponta que “[o] que se espera
é que haja uma preferência pelo documental, pelo fatual, em detrimento do ficcional, para que
se registre uma nacionalidade, que se quer idêntica a si mesma, livre de contradições ou
fraturas que negariam sua integridade”. (BRANDÃO, 1993: 217) Sem perder de vista o status
documental das Memórias, estamos examinando como, por mãos masculinas, e em aspecto
ficcional, foram configuradas as relações de gênero na sociedade brasileira no século XIX.
Percebidas a íntima relação entre ficção e realidade, cumpre acrescentar a
observação do historiador Luiz Carlos Soares (1992) de que, no século XIX, as mulheres
“públicas”, “fáceis”, vulneráveis à prostituição na cidade do Rio de Janeiro foram recrutadas
não só entre as mulheres nacionais, como também entre as mulheres estrangeiras, sobretudo
as africanas libertas e aquelas vindas da Europa. A prostituição se alastrou pelo Rio de Janeiro
tornando-se uma questão de preocupação médica e legal.
13
A obra Memórias de um sargento
13
Interessante, para a presente investigação, é a observação da capa da obra Rameiras, ilhoas e polacas, de Luiz
Carlos Soares, em sua edição citada nesta pesquisa. Ela traz a sugestiva imagem de dois meirinhos, em frente a
uma porta, que observam dentro da casa por entre as rótulas. Esse observatório tanto do feminino de dentro de
casa para fora, quanto do homem, da rua para dentro de casa, é constantemente ressaltado pelo narrador das
Memórias, a fim de demonstrar uma das formas das mulheres olharem “o proibido”, a rua. De acordo com o
narrador, Leonardo-Pataca: “[h]avia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe muitas
vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o
vira encostado à janela. Isto porém passou sem mais novidade”. (ALMEIDA, 1999: 13) Muitas passagens como
essa podem ser encontradas no curso da narrativa. Com essa exemplificação, fica registrado que a ficção busca
elementos na realidade para compor a sua verossimilhança.
95
de milícias foi uma das primeiras obras do período a alimentar-se desse contexto para compor
suas páginas literárias. As personagens Maria-da-Hortaliça e a Cigana encarnam esse
protótipo que, conforme o narrador, veio para o Brasil com os emigrados de Portugal. Essa
“facilidade amorosa” nos foi comunicada pela ótica do narrador, ou talvez, do autor, já que
este exerceu, por anos, a profissão de jornalista, sempre engajado nas questões sociais.
Como nos anos oitocentos surgiu numerosa produção ficcional, podemos
apontar essas e outras recorrências da condição social do momento histórico em outras
narrativas da época. Destinando um breve olhar sobre algumas produções desse mesmo
período, notamos que, em maior ou em menor medida, estas obras põem em questão as
relações de gênero e, especialmente, evidenciam a crise do modelo hegemônico da
masculinidade.
Perfazendo essa temática, iniciada por Manuel Antônio, Adolfo Caminha, em
seu romance Bom Crioulo, (1956), narrou a vida de uma prostituta portuguesa, Dona
Carolina, que mais tarde largaria o “ofício”, vivendo do aluguel de quartos da sua casa na Rua
da Misericórdia. Nessa mesma obra, Caminha instiga-nos a pensar na problemática da
sexualidade quando relata a história do relacionamento amoroso mantido pelo marinheiro
Amaro, o bom-crioulo, com o grumete Aleixo, antes da abolição da escravatura. Amaro, antes
de conhecer Aleixo, jamais havia se apaixonado, chegando até aos 30 anos praticamente
virgem, tendo tido apenas duas mal-sucedidas experiências com mulheres: uma rapariga, com
quem dormira em Angra dos Reis, e uma prostituta francesa, que uma vez procurou no Largo
do Rocio.
Nessa mesma direção vai O Cortiço (2004), romance de Aluísio de Azevedo,
que também, nos anos 1880, relata as aventuras da personagem Pombinha, antiga moradora
do cortiço do português João Romão. Não suportando mais a vida monótona ao lado de seu
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marido, foge de casa e vai viver com a sua madrinha, a prostituta Léonie, que a inicia no
meretrício de luxo.
Na obra Memórias póstumas de Brás Cubas (2004), Machado de Assis ressalta
a presença de prostitutas européias na cidade do Rio de Janeiro já nas primeiras décadas do
século XIX. Relata o episódio do jovem Brás Cubas, que, no início dos anos 1820, fora
mandado por seus pais à Europa, para estudar direito em Coimbra. Lá, apaixona-se por
Marcela, uma espanhola encantadora e devassa que já tinha seduzido muitos homens. A
paixão de Brás Cubas por esta cortesã levou-o a cometer desatinos, fazendo muitos gastos
com presentes caros e até mesmo sustentando a sua amada.
Em Memórias de um sargento de milícias, o romancista Manuel Antônio de
Almeida preocupa-se em narrar as relações ilegítimas ou a vulnerabilidade amorosa sem
atribuir a elas o peso do termo “prostituição”. Essas relações não são apresentadas como
profissão, talvez como resistência do feminino à dominação masculina ou como mecanismo
de realização pessoal possível ferindo a normalidade, dentro de uma sociedade dinâmica.
Típico do seu estilo psicológico, Machado de Assis mergulha mais
profundamente na questão da sexualidade no conto “As academias de Sião”. Nele, o autor
conta a necessidade das academias, de resolver o singular problema:
por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? E o que as
induziu a isso foi a índole do jovem rei. Kalafangko era virtualmente uma
dama. Tudo nele respirava a mais esquisita feminilidade: tinha os olhos
doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um cordial horror às
armas. (ASSIS, 1994: 01)
Uma das academias, que trazia consigo toda a sabedoria do universo, aponta a
solução do problema: “Umas almas são masculinas, outras femininas. A anomalia que se
observa é uma questão de corpos errados”. (ASSIS, 1994: 01) Negaram as outras academias,
ao afirmarem ser a alma neutra, e nada ter com o contraste exterior.
A bela Kinnara, “a flor das concubinas régias”, questiona em que crê o jovem
rei. Este declara não crer em nenhuma outra teoria, mas naquilo que disser Kinnara. Neste
97
caso, decretou, enfim, legítima e ortodoxa a alma sexual. Assim como o rei era o homem
feminino, Kinnara era a mulher máscula: “Um búfalo com penas de cisne”. (ASSIS, 1994: 02)
Depois de um beijo, Kinnara convence o rei de que trocassem as suas almas, restituindo cada
uma ao corpo.
Feita a metamorfose, Kalafangko, “daqui em diante entenda-se que é o corpo
do rei com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com alma do Kalafangko”
(ASSIS, 1994: 03), cuidou da fazenda pública, da justiça, do culto e do cerimonial. A nação
começou a sentir o “peso grosso” das atitudes do Rei, que melhorou a justiça e a legislação.
A reflexão do conto machadiano põe em discussão a sexualidade. Assim
procedendo, coloca-nos diante de algumas suposições. Dentro do pensamento binário
masculino/feminino próprio da ideologia patriarcal, tanto o corpo quanto o comportamento
são critérios de definição da sexualidade. O masculino seria o elemento ativo, racional,
enquanto o feminino seria o elemento passivo, emocional, intuitivo. A partir do conto
supracitado, podemos pensar que as ações, o engajamento social, o ato político seja
decorrente do binômio corpo + comportamento masculinos. Contudo, veremos no decorrer
deste estudo que, em Memórias de um sargento de milícias, o grupo social, a profissão, a
origem, a educação, o espaço são fatores que influenciam nessa redefinição de posturas do
feminino e do masculino ao longo da narrativa. Portanto, são construídas culturalmente, pelas
relações sociais e de classe. Assim, o conto de Machado tematiza a ambigüidade quando põe
em questão a alma, como construção cultural, que altera seu comportamento, e que se aloja
num corpo definindo pela aparência física o gênero, o masculino ou o feminino.
Disseminando semelhante temática, nas primeiras décadas de 1800, José
Joaquín Fernández de Lizardi escreve a novela La Quijotita y su prima. Nela, o escritor
mexicano insiste na veracidade dos fatos narrados e atesta uma suposta igualdade espiritual
entre os gêneros masculino e feminino. Assim, referindo-se à leitora, o narrador declara: “[a]
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inferioridade da mulher em relação ao homem reside na debilidade de sua constituição física,
ou seja, em seu corpo; no que concerne ao espírito, ela não é mais débil que o homem, uma
vez que a alma não é nem masculina nem feminina: espiritualmente, vocês são nossas iguais”.
(LIZARDI, 1942: 72-73)
Podemos observar que, no contexto do século XIX, pelas obras citadas, o
masculino e o feminino alteram suas posições sem, contudo, romperem com a lógica
patriarcal. Logo, à medida que as mulheres parecem despertar dentro de si um comportamento
dito “masculino”, as relações de gênero se superpõem àquelas relações de classe.
3.2. A construção social dos gêneros
O gênero não existe no vácuo, mas é moldado por experiências que
desestabilizam a noção de identidade como unitária, fixa e coerente. É
preciso buscar novas tecnologias de visualização.
Teresa de Lauretis
Em Memórias de um sargento de milícias, Manuel Antônio de Almeida
recusa-se a separar a obra literária das normas que regem os comportamentos em sociedade.
Com esse desígnio, o autor representa o caráter, a linguagem, o posicionamento ideológico, os
valores e as tradições que traçam o ethos popular. Como confirma Maingueneau (2006), a
escrita literária só é eficiente quando associada ao ethos que lhe corresponde.
Matizado por essa representação popular, o romance de Manuel de Almeida
põe em questão os pilares fundamentais do patriarcalismo como a identidade fixa, a estrutura
binária, bem como a supremacia do masculino sobre o feminino.
Trazendo o dinamismo do histórico, a narrativa em estudo registra o habitus, a
maneira de agir de um grupo social, pois nela, “o estilo articulatório das classes populares
seria inseparável de toda uma relação com o corpo dominada pela recusa das ‘afetações’ ou
dos ‘fricotes’ e pela valorização da virilidade”, afirma Maingueneau apoiando-se no discurso
de Bourdieu. (MAINGUENEAU, 2006: 281) As constatações de Bourdieu nos levam à
99
interpretação de Michel Foucault (2003) de que o gênero seja uma representação ou auto-
representação decorrente das práticas culturais, portanto uma construção.
Por esse viés investigativo, Teresa de Lauretis (1994) critica o fato de que, nas
culturas tradicionais, o masculino é pensado como sinônimo do universal, e comunga do
pensamento foucaultiano de que o gênero seja uma representação e auto-representação
construída por discursos e tecnologias sociais. Assim, ao formular seu pensamento, conclui
que o gênero é a representação de uma relação construída, dessa forma: gênero não é sexo,
mas a representação de cada indivíduo numa relação social. Por isso, a estrutura conceitual
passa a ser denominada “o sistema de sexo-gênero”, em que o sexo passa a ser relacionado a
conteúdos culturais.
Pensando a obra com base nessa conceituação, observa-se que a mesma
principia destacando a figura masculina através de sua profissão, a de meirinho, e de seus
trajes: “[t]rajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado
esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja
significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado”. (ALMEIDA,
1999: 10) O narrador segue caracterizando a figura masculina por meio da profissão e das
vestimentas, e ressaltando a sua importância na sociedade. Em outro capítulo, essa mesma
categoria, a masculina e a de meirinho, é depreciada pela nudez de Leonardo-Pataca, na casa
do feiticeiro, e da presença do Major Vidigal, em trajes “menores”. A personagem Maria-da-
Hortaliça desqualifica a postura masculina, ou do grupo dos meirinhos quando, após a traição,
ironiza: “– Honra!... honra de meirinho... ora!” (ALMEIDA, 1999: 14)
A identificação dos sexos, percebida pela vestimenta, pode ser observada ainda
quando o narrador destaca a importância da mulher pelo traje, expondo os modos de Dona
Maria, que “trajava nesse dia o seu vestido branco e muito engomado ao pescoço; estava
penteada de bugres, que eram dous grossos cachos caídos sobre as fontes; o amarrado do
100
cabelo era feito na coroa da cabeça, de maneira que simulava um penacho”. (ALMEIDA,
1999: 49) Pelos trajes e o excesso de ornamentos descritos pelo narrador como de mulheres
abastadas, podemos destacar a classe dessas mulheres e sua importância na construção
narrativa.
A mantilha era outro acessório feminino importante na caracterização dos
hábitos dessa classe descrita nas Memórias: “a mantilha era o traje mais conveniente aos
costumes da época; sendo as ações dos outros o principal cuidado de quase todos, era muito
necessário ver sem ser visto. A mantilha para as mulheres estava na razão das rótulas para as
casas; eram o observatório da vida alheia”. (ALMEIDA, 1999: 25) Os meios de “olhar o
proibido” eram necessários, pois o espaço representado pelo privado e pelo público, ou
respectivamente, a casa e a rua “não designavam simplesmente espaços geográficos ou coisas
físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de ação social, (...)
capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens esteticamente
emolduradas e inspiradas”. (DAMATTA, 1997: 15)
O narrador ainda distingue as características do gênero feminino a partir de sua
origem étnica ou social. Maria-da-Hortaliça, por ser uma saloia (camponesa) de origem
portuguesa, é apontada como o centro da desagregação da vida sentimental de Leonardo.
Deprecia o gênero feminino pela classe social a que pertence. É o caso da Cigana, nova
companheira de Leonardo-Pataca. Sobre essa “gente”, acrescenta o narrador:
[c]om os emigrados de Portugal veio também para o Brasil a praga dos
ciganos. Gente ociosa e de poucos escrúpulos, ganharam eles aqui
reputação bem merecida dos mais refinados velhacos: ninguém que tivesse
juízo se metia com eles em negócios, porque tinha certeza de levar
carolo.(...) As mulheres trajavam com certo luxo relativo aos seus haveres:
usavam muito de rendas e fitas, davam preferência a tudo quanto era
encarnado, e nenhuma delas dispensava pelo menos um cordão de ouro ao
pescoço; os homens não tinham outra distinção mais do que alguns traços
fisionômicos particulares que os fazia conhecidos. (ALMEIDA, 1999: 23)
101
Convém reiterar que a construção dos gêneros e seu papel em Memórias de um
sargento de milícias vão sendo tecidos pelas características do grupo ao qual essas pessoas
pertencem. Nesse sentido, podemos notar o olhar preconceituoso do narrador em relação ao
diferente, ao outro, já que, pela ótica patriarcal, é construído um modelo homogêneo do que
seja o homem e a mulher. Como adianta o narrador, sendo imigrantes portuguesas não nos
surpreende a traição da Cigana e de Maria-da-Hortaliça a Leonardo-Pataca.
Como destaca Lauretis, centrando-se na crítica do patriarcado ocidental, o
pensamento machista produziu um discurso reduzindo as mulheres à Mulher, isto é,
uniformizando as práticas culturais, os costumes e transformando essas diferenças culturais
em sexuais. Nesse sentido, estar-se-ia formando um estereótipo feminino, em detrimento das
diversidades sociais e culturais. Desse ponto de vista, entende-se “a construção do sexo em
gênero como a representação de uma relação sócio-cultural constituindo, enfim, uma instância
primária de ideologia”. (LAURETIS, 1994: 212) Com base nesse pensamento, nas Memórias,
de Manuel de Almeida, os perfis dos gêneros são definidos em detrimento dos grupos aos
quais essas personagens pertencem.
Em Memórias de um sargento de milícias, a diferenciação entre os gêneros é
definida pelo ethos, pelo grupo social ao qual essas personagens pertencem. Desse modo,
fatores como a ideologia, a vestimenta, os costumes, a origem, o espaço, a educação vão
dando forma aos gêneros numa relação social caracterizando, assim, as diferenças sexuais. É
nessa perspectiva que se pensam o masculino e o feminino como construções sociais.
102
3. 3. As representações do feminino na literatura do século XIX
A identidade se constrói, se desconstrói e se reconstrói num processo
interminável de negociação e conflito entre masculino e feminino.
Ítalo Moriconi
As obras literárias do período romântico procuraram representar a mulher de
forma idealizada e virtuosa, em que os sentimentos se sobrepunham, com freqüência, à razão.
Como a sociedade oitocentista ainda reproduzia a ideologia do patriarcalismo, em grande
medida essas mulheres tiveram suas vozes silenciadas pela ação e pelo discurso masculinos.
Em termos gerais, o que a historiografia nos revela é que a maioria das
mulheres, nas sociedades tradicionais, vivia sob a tutela masculina, do pai ou do marido.
Nessas condições, ajudava a mãe nos deveres do lar, a fim de se preparar para os cuidados
com a casa, o marido e os filhos, após o matrimônio. Contudo, registros históricos e literários
têm demonstrado a desconstrução desses modelos estáveis de organização social. Fugindo a
essa normalidade, Manuel Antônio teceu a dinâmica da sociedade presente nas Memórias.
Perfilando a nossa discussão, é fácil perceber que a desestabilização das relações
de gênero é oriunda do próprio dinamismo do grupo retratado. Maria Ângela D’Incao (1997),
discutindo essa presença popular na obra de Manuel de Almeida assegura que, nesse período,
as mulheres do povo eram as mais livres para amar pessoas de sua condição social, já que
nessas relações não havia interesses econômicos. Elas poderiam fazer e desfazer as relações
conforme suas próprias vontades. Com base na inscrição da autonomia e da liberdade dessa
classe, Manuel Antônio de Almeida deixou de lado a representação da classe predominante
para revelar os diversos modos de comportamentos que uma mesma sociedade pode agregar.
Assim, neste cenário carioca dos anos de 1800, mesmo sendo uma construção
masculina, as mulheres já citadas, Maria-da Hortaliça e a Cigana, são representações da
desestabilização das relações de gênero, pois abandonam o ambiente familiar para realizarem
seus desejos, uma vez que, naquela época, à esposa caberia apenas o papel de recato,
103
submissão e acolhimento da família. É bom ressaltar que a busca de satisfação pessoal
descrita na narrativa ainda tem a mediação da intencionalidade masculina, pois são registros
feitos pelo masculino. Então, essas mulheres não são de todo livres. Como ressalta Ruth
Silviano Brandão, “[p]resa de um sistema de representações viris, a mulher se lê anunciada
num discurso que se faz passar pelo discurso de seu desejo”. (BRANDÃO, 1993: 230)
De acordo com as constatações do historiador Emanuel Araújo (1997), as
mulheres deveriam estar sujeitas às ordens de seus maridos, agindo estes apenas como
maridos porque, como prescrevia São Jerônimo, não há nada mais imundo que o marido amar
sua esposa como a uma amante. Fica evidente, aqui, a distinção de tratamento atribuído à
esposa, cuja sexualidade deveria estar submetida aos desejos do marido que não poderia, de
modo algum, realizar fantasias sexuais. Esse papel de sexualidade desinteressada da
procriação e voltada para os prazeres carnais seria atribuição da amante e não da esposa. A
esposa era como uma santa, com papéis específicos que não maculassem sua condição de
esposa e mãe. Assim, sua sexualidade era vigiada pela sociedade, inclusive pela igreja, que
encontrava fundamentos simples para justificar essa repressão.
Da mesma forma, é comum encontrarmos a voz feminina endossando as
características de recato e de subordinação da mulher no imaginário mundo das Memórias.
Como se pode depreender da afirmação da beata, na obra em análise, a respeito da atitude
agressiva de Leonardo-Pataca com a Maria-da-Hortaliça, após a traição desta:
— É o que lhe digo: a saloiazinha era da pele do tinhoso!
— E parecia uma santinha... e o Leonardo o que lhe fez?
— Ora, desancou-a de murros, e foi o que fez com que ela abalasse mais
depressa com o capitão... pois olhe, não teve razão; o Leonardo é um
rapagão; ganhava boas patacas e tratava dela como de uma
senhora!...(ALMEIDA, 1999: 25)
Nota-se que, embora sejam biologicamente mulheres, reproduzem o discurso, a
ideologia do masculino, do patriarcalismo. Como manifestação desse discurso e dessa
ideologia masculina, a personagem ratifica o tratamento de violência de Leonardo-Pataca
104
sobre Maria-da-Hortaliça e ameniza a ilegalidade da agressão pelo amparo dado por Leonardo
à companheira. Na expressão “tratava dela como de uma senhora”, a beata reafirma a
depreciação da conduta feminina atrelada a seu grupo de origem, o de imigrante portuguesa e
de camponesa. A discussão nos remete a pensar que o tratamento dado a Maria por Leonardo
era melhor que aquele que ela merecia.
No caso da personagem Luisinha, pode-se afirmar que ela se enquadra dentro
dos padrões de normalidade de feminino no contexto tradicional. Ela sequer denota alguma
intenção, pretensão ou desejo. É um verdadeiro fantoche nas mãos de Dona Maria, de José
Manuel e do próprio narrador. Sobre essa conduta impotente, pusilânime e inoperante da
mulher em relação ao masculino, comentam Branca Moreira Alves e Jacqueline Pitanguy: “A
mulher, ainda uma escrava, permanece em silêncio (...) Subjugada pelo domínio masculino,
ela nem sequer aspira à sua própria libertação, o homem é que deve libertá-la”. (1983: 39)
Da mesma forma, é visto que a desigualdade nas relações de gênero reafirma
uma construção social, pois a educação familiar fez com que homens e mulheres se
distanciassem e exercessem funções definidas. Assim, desde crianças, homens e mulheres iam
se habituando ao que era “certo ou errado” para cada sexo. Sendo menino, era preciso buscar
sua independência, e não expressar tristeza através do choro, pois poderia ser compreendido
como sinal de fraqueza. Para as meninas, a afetividade e a doçura eram imprescindíveis, pois
simbolizavam a obediência.
Quanto às mulheres da obra Memórias de um sargento de milícias, percebe-se
que há aquelas desejantes e autoconfiantes, assim como também encontramos aquelas que
reproduzem os ditames tradicionais. Vidinha, Dona Maria, Maria-da-Hortaliça, dentre outras,
podem ser pensadas como as verdadeiras protagonistas da história. Sejam ações legítimas ou
ilegítimas, são elas quem as promovem. Em relação à Luisinha, o mesmo não pode ser
pensado, pois esta se sujeita ao poder e ao controle do masculino. É fácil notar que, devido à
105
diversidade de funções que essas mesmas mulheres exercem na sociedade, elas são
fundamentais para o desenrolar do novelo narrativo.
Como exemplo desse sinal de poder feminino no enredo romanesco,
recorremos a Dona Maria, uma velha rica que tinha os costumes das demandas judiciais. Não
havia homem que pudesse enganá-la; conhecia todos os termos jurídicos e deles fazia uso
sempre que necessário. Em seu discurso emerge uma voz feminina reafirmando as
convenções da sociedade tradicional e em sua conduta é revelado um perfil antitradicional.
Apresentava argumentos convincentes, havia clareza e determinação em suas decisões,
enfrentava o poder masculino e, inclusive, aqueles representantes da justiça, sem que as
faculdades afetivas predominassem sobre as intelectuais.
Consideramos essa personagem distinta do estereótipo dado às mulheres nos
costumes patriarcais, porque o narrador a destaca como conhecedora das questões da lei de
seu tempo. Suas ações não se limitavam à esfera doméstica e, merecendo o respeito, a
aceitação e a estima dos homens ao se envolver no meio público. Era uma mulher de classe
social superior àquelas mencionadas no texto, sua presença era sempre marcada por forte dose
de razão. Assiste-se, assim, ao tratamento diferenciado dado a Dona Maria pelas outras
personagens da narrativa, sejam elas masculinas ou femininas. Tal postura revela-nos que,
além do pertencimento ao gênero masculino, o status socioeconômico é um relevante
elemento utilizado no desequilíbrio das diferenças entre os gêneros na sociedade encenada nas
Memórias. Vejamos a descrição dessa personagem, pela voz do narrador:
era benfazeja, devota, devota e amiga dos pobres, porém em compensação
destas virtudes tinha um dos piores vícios daquele tempo e daqueles
costumes: era a mania das demandas. Como era rica, Dona Maria
alimentava este vício largamente; as suas demandas eram o alimento da sua
vida; (...) pelo longo hábito que tinha da matéria, entendia do riscado a
palmo, e não havia procurador que a enganasse; sabia todos aqueles termos
jurídicos e toda a marcha do processo de modo tal, que ninguém lhe levava
nisso a palma. Essa mania chegava nela à impertinência, e aborrecia
desesperadamente a quem a ouvia, falando nos últimos provarás que lhe
tinha feito o seu letrado nos autos da sua demanda de terras... (ALMEIDA,
1999: 49)
106
Conforme destacamos, nas culturas tradicionais, a participação das mulheres
do povo, no ambiente público, é motivo de descrédito da sua imagem. Contrariamente, o
mesmo não ocorre com as mulheres de “elite”. Esclareçamos, ainda, que as transgressões e
ações das mulheres populares, aqui comentadas, são ridicularizadas pela população, enquanto
aquelas demandas e ações propostas por Dona Maria são respeitadas e aplaudidas pelos
homens e mesmo pelas outras mulheres. Como pode ser visto no fragmento acima citado, o
narrador deixa-nos entender que essas ações públicas constituem um vício. No entanto, entra
em conformidade com a atitude de Dona Maria quando ressalta que, “como era rica”, ela
poderia alimentar-se dessa condição ativa na sociedade. Com base nessa interpretação,
estamos evidenciando que, durante o patriarcalismo, a supremacia de um gênero sobre o outro
se dá, também, por meio da condição econômica.
Diante desta exposição, é valido ratificar que tanto o discurso histórico quanto
o discurso literário têm, comumente, questionado a existência de modelos rígidos de
sociedades. Essa diversidade de comportamentos sociais na narrativa em questão é
determinada pela influência cultural e histórica, assim como pelo aspecto situacional e pelo
caráter biológico, não exibindo, em todas as circunstâncias, os protótipos de gêneros, como
indiciam as tradições patriarcais.
Temos, por conseguinte, que o contexto histórico ao qual nos referimos, da
independência política do Brasil em relação a Portugal, é um tempo de formação de
identidades, de novas conquistas e de busca da autonomia da nossa sociedade. Pela ótica do
escritor nos foram reveladas “personagens de papel” que desfilam distintos modelos de
comportamentos, e por isso mesmo representam com certo sentimento de realidade, o vaivém
da sociedade fluminense dos primeiros anos do século XIX.
107
3.4. Amores e (des) amores de Leonardo-Pataca
O Homo Sapiens, a única criatura dotada de razão, é também a única que
sujeita sua existência a coisas irracionais [...]O coração tem razões que a
própria razão desconhece
Henry Bergson
Amancebamentos, demandas, concubinatos, malandragens, favores e
transgressões. Esses são alguns dos principais aspectos traçados por Manuel Antônio de
Almeida da sociedade fluminense nos primeiros cinqüenta anos de 1800.
Na intenção de discutir a postura e os costumes das tradições patriarcais,
Elisabeth Badinter (1993) argumenta que as diferenças entre os gêneros pareciam inscritas na
própria natureza. O homem deveria ajustar-se a um ideal de virilidade que, desde o
surgimento do sistema patriarcal, colocou-o como superior à mulher. No entanto, essa velha
identidade parece se redefinir na medida em que a mulher interfere mais efetivamente no
meio social. Essa redefinição de papéis é facilmente percebida à medida que investimos na
leitura da obra Memórias de um sargento de milícias. Como antípoda dessa dominância
masculina preestabelecida pela cultura patriarcal, deparamo-nos com a personagem Leonardo-
Pataca.
Ao chegar de Lisboa “não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e
sobretudo era maganão”. (ALMEIDA, 1999: 11) O narrador prossegue a história decantando
a figura grotesca e risível em que se transforma Leonardo-Pataca: “Chamavam assim a uma
rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano
da corporação,... A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza
atrasava o negócio das partes...” (ALMEIDA, 1999: 11) A partir dos termos utilizados pelo
narrador para descrever a passagem da juventude à velhice do meirinho, podemos notar a sua
depreciação. Os adjetivos “rotunda”, “gordíssima”, “decano”, “moleirão” e “pachorrento”,
108
assim como os substantivos “carão” e “vagareza” nos põem diante de um processo de
degradação física e moral.
O apelido que juntaram ao seu nome vinha do hábito de queixar-se a todo o
instante de que só pagavam 320 réis por seu ofício. Em viagem de navio de Portugal ao
Brasil, conhecera Maria da Hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia, rechonchuda e
bonitona que, ao descer do navio, já sentia enojos porque se encontrava grávida. Passaram a
viver juntos desde o primeiro encontro e Leonardo assumindo-a como esposa, entregou-se ao
relacionamento e lhe dedicou muita atenção e afeto. Mas, como afirma o narrador, “[a]final de
contas a Maria sempre era saloia, e o Leonardo começava a arrepender-se seriamente de tudo
que tinha feito por ela e com ela”. (ALMEIDA, 1999: 13) Com a exposição do narrador,
vemos como à luz da teorização foucaultiana, a construção do gênero é decorrente de práticas
culturais, já que no romance em questão, sob o discurso narrativo masculino é apontado que,
por ser portuguesa e saloia, pertencente a um grupo popular, não surpreenderia a transgressão
de Maria-da-Hortaliça. Com a introdução “afinal de contas a Maria sempre era saloia”, o
narrador parece reduzir, como constata Lauretis, as diferenças das mulheres a um estereótipo
de mulher, a infiel. Portanto, todas aquelas pertencentes a este grupo e que fossem uma
imigrante portuguesa estariam destinadas a trair seus companheiros.
Como tinha sérias suspeitas sobre a fidelidade de Maria-da-Hortaliça,
Leonardo-Pataca havia se arrependido de assumi-la como companheira.
E tinha razão, porque, digamos depressa e sem mais cerimônias, havia ele
desde certo tempo concebido fundadas suspeitas de que era atraiçoado.
Havia alguns meses atrás tinha notado que um certo sargento passava-lhe
muitas vezes pela porta, e enfiava olhares curiosos através das rótulas: uma
ocasião, recolhendo-se, parecera-lhe que o vira encostado à janela. Isto
porém passou sem mais novidade.
Depois começou a estranhar que um certo colega seu o procurasse em
casa, para tratar de negócios do ofício, sempre em horas desencontradas,
porém isto também passou em breve. Finalmente aconteceu-lhe por três ou
quatro vezes esbarrar-se junto de casa com o capitão do navio em que tinha
vindo de Lisboa, e isto causou-lhe sérios cuidados. Um dia de manhã entrou
sem ser esperado pela porta adentro; alguém que estava na sala abriu
109
precipitadamente a janela, saltou por ela para a rua, e desapareceu.
(ALMEIDA, 1999: 13)
Conforme explanamos anteriormente, a rótula era um dos meios de “olhar o
proibido”, a rua, o espaço público. Mesmo que, na obra em questão, algumas mulheres
transitem pelas ruas sem serem censuradas ou reprimidas, fica a impressão de que o espaço
destinado a elas é a esfera doméstica. Pela citação acima, notamos que a rótula, também,
servia como observatório de fora para dentro de casa, de forma que prenunciava uma ação
“proibida”. A partir desse longo fragmento, podemos deparar com a passividade e a
depreciação da figura masculina que dará forma ao curso da narrativa. A freqüência com que
Leonardo-Pataca encontrou o capitão do navio perto de casa, seguido pelo alerta “isto causou-
lhe sérios cuidados” denota certa inquietação da personagem diante do outro.
Seguindo o relato do narrador:
À vista disto nada havia a duvidar: o pobre homem perdeu, como se
costuma dizer, as estribeiras; ficou cego de ciúme. Largou apressado sobre
um banco uns autos que trazia embaixo do braço, e endireitou para Maria
com os punhos cerrados.
— Grandessíssima!...
E a injúria que ia soltar era tão grande que o engasgou... e pôs-se a tremer
com todo o corpo.
A Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda, pois também não era das
que se receava com qualquer cousa.
— Tira-te lá, ó Leonardo!
— Não me chames mais pelo meu nome, não me chames... que tranco-te
essa boca a socos...
— Safe-se daí! Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?
Isto exasperou o Leonardo; a lembrança do amor aumentou-lhe a dor da
traição, e o ciúme e a raiva de que se achava possuído transbordaram em
socos sobre a Maria, que depois de uma tentativa inútil de resistência
desatou a correr, a chorar e a gritar:
— Ai; ai ... acuda, Senhor compadre. (ALMEIDA, 1999: 13)
A voz da personagem e as intervenções do narrador comprovam a tensão –
“engasgou e pôs-se a tremer com todo o corpo” – e o desapontamento de Leonardo
procurando afastar a intimidade entre ambos: “[n]ão me chames mais pelo meu nome”. Sobre
a ação e reação da mulher, interessa-nos ressaltar que a mesma parece ser insensível ao
110
acontecimento e demonstra estar com Leonardo porque a ação partiu dele “— Safe-se daí!
Quem lhe mandou pôr-se aos namoricos comigo a bordo?” A exposição de Maria-da-
Hortaliça, parece, sutilmente, endossar a ideologia do narrador de que, sendo ela quem é, seria
provável a ocorrência desse fato. Na edição crítica de Cecília de Lara (1978), onde ela
examina as variações existentes entre a publicação da obra em folhetim e a sua primeira
edição, em livro, ela constata que, no folhetim, há uma pequena variação e acréscimo nesse
fragmento que anteriormente citamos: “tranco-te essa boca com um par de murros... Dizem
que os da tua raça dão couces depois de mortos, e tu deste-m’o me[s]mo em vida, e foi
mesmo na cara, nas minhas barbas!” Nesse trecho, ausente nas edições que chegaram até nós,
a voz da personagem confirma a perspectiva que temos indicado de que, a raça, o grupo social
a que pertence constituem um fator que estereotipa a conduta nas relações de gênero.
Nessa cena, mostramos ainda a coragem feminina diante da ruptura dos
costumes e da ilegitimidade de seu ato: “[a] Maria recuou dois passos e pôs-se em guarda,
pois também não era das que se receava com qualquer cousa”. Já Leonardo-Pataca recorre à
violência como forma de justificar seu poder de macho, fragilizado pela transgressão
feminina.
Embora procure disfarçar seus sentimentos pela Maria diante da sociedade,
apesar da traição, Leonardo entra na loja do Compadre aflito e triste. O Compadre com um
sorriso conciliador disse: “— [o] passado passado”. No semblante de Leonardo “via-se que
ele estimara as palavras do Compadre, e que seria o primeiro a pronunciá-las se ele não o
precedesse”. (ALMEIDA, 1999: 15) Vê-se o sentimentalismo e a fraqueza de Leonardo, pois
embora tenha sido traído, é ele quem busca a reconciliação.
Chegando à porta da casa fez uma pequena parada como quem tinha
tomado a resolução de não entrar; mas o que ele queria era algumas súplicas
do Compadre, que pudessem ser ouvidas pela Maria; a fim de fazê-la
acreditar que se ele voltava era arrastado, e não por sua vontade. O
Compadre percebeu isto, e satisfez o pensamento de Leonardo...
(ALMEIDA, 1999: 15)
111
Nos atos de Leonardo percebe-se a tentativa de não revelar o envolvimento
afetivo, o sentimentalismo, pois o discurso patriarcal decanta a insensibilidade do masculino.
Nesse sentido, vale ressaltar o esclarecimento de Badinter a respeito de que, na busca
incessante da identidade masculina, o homem deve ser “rude, barulhento, beligerante;
maltratar e fetichizar as mulheres; procurar somente a amizade dos homens, mas detestar os
homossexuais; falar grosseiramente; denegrir as ocupações das mulheres”. (BADINTER,
1993: 39) Chamando a Maria em voz alta e não obtendo resposta, o Compadre acrescenta:
“— Há de estar aí a chorar metida em algum canto...” Fica a impressão de que o homem
credita à mulher essa fragilidade e atribui a ela o sofrimento decorrente da separação. Porém,
o “Leonardo, supondo que ele tinha achado a Maria, e que sem dúvida a trazia pela mão
contrita e humilhada, quis fazer-se de bom: ergueu-se, meteu as mãos nos bolsos, e pôs-se de
costas para o lugar donde vinha o compadre. (...) o dito por não dito... mudei de resolução!...”
(ALMEIDA, 1999: 15-16)
A partir da ideologia masculina, seja da personagem, do narrador ou do autor,
podemos deduzir que era comum a mulher arrepender-se e aguardar o “perdão” do
companheiro após o ato de transgressão, como confirma a opinião do narrador: “sem dúvida a
trazia pela mão contrita e humilhada”. E Leonardo se preocupa em impor-se diante do pedido
de reconciliação, demonstrando sua indiferença. Leonardo dizendo está tudo acabado, “ia
dando as costas ao compadre quando se lhe queria pôr de frente”. Quando escuta o Compadre
dizer que a Maria havia fugido, “Leonardo foi fulminado por estas palavras; voltou-se então
todo trêmulo. Não vendo a Maria desatou a chorar”. (ALMEIDA, 1999: 16)
Socialmente, é permitido à mulher exprimir sentimentos de insegurança diante
de uma situação nova e isto não a desqualifica enquanto mulher. Diferentemente do que
ocorre com os homens, que crescem aprendendo que, para se tornarem homens de verdade,
devem excluir de suas vidas a experiência e a expressão de certas emoções. Logo, “homem
112
não chora”. Sob essa perspectiva, o choro aponta a fraqueza da personagem Leonardo, já que
o sentimentalismo e a emoção se relacionam mais ao feminino do que ao masculino.
Em todas essas considerações presentes no segundo capítulo da narrativa
almeidiana, podemos notar a ideologia do período patriarcal em que o homem precisa impor-
se diante do feminino e da sociedade, nunca se revelando emotivo. Como esclarecemos que
uma mesma sociedade agrega diferentes perfis de masculino e feminino, ao longo desta
exposição evidenciaremos que muitas outras passagens vão pôr em questão essa mesma
ideologia.
Sobre a atitude agressiva exercida por Leonardo sobre a Maria, entende-se
como uma tentativa de resgatar o conceito másculo diante da sociedade construtora deste
caráter viril, e quanto ao choro, pode ser pensado como sensibilidade que parece estar
encoberta sob essa máscara da aparência social. No entanto, em Memórias de um sargento de
milícias, o que temos são homens em crise com as suas características “viris” de seres
insensíveis, fortes, guerreiros, conquistadores. Homens que vão pari passu se adequando a
uma nova realidade proporcionada por uma nova companheira em um novo tipo de relação.
A reação de Leonardo-Pataca à traição, o uso da força na justificação do poder
do macho estende-se aos membros da família, como indica-nos o narrador, ao se referir à
reação que teve com o seu filho Leonardo, que rasgava as folhas do auto:
Quando esmorecida a raiva, o Leonardo pôde ver alguma cousa mais do que
seu ciúme, reparou então na obra meritória em que se ocupava o pequeno.
Enfurece-se de novo: suspendeu o menino pelas orelhas, fê-lo dar no ar uma
meia-volta, ergue o pé direito, assenta-lhe em cheio sobre os glúteos
atirando-o sentado a quatro braços de distância:
És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te
acabe a casta. (ALMEIDA, 1999: 13)
A última frase pronunciada por Leonardo, nesse excerto, parece condenar o
comportamento do filho por ele ser fruto de uma união ilegítima entre grupos desprestigiados
na sociedade retratada, o de saloia e o de meirinho. A agressividade exercida sobre a Maria-
113
da-Hortaliça, e posteriormente sobre o filho Leonardo constitui um recurso de dominação do
homem sobre a mulher, do mais forte sobre o mais fraco, ou ainda do pai sobre o filho. Essa
atitude representa também uma exposição ao público de uma relação de imposição do
dominador sobre o dominado. Joan Scott (1995) partilha com Michel Foucault a idéia de uma
imposição, em nível discursivo e social, de um poder masculino sobre o feminino, nessas
tradições, inserida num mesmo contexto social.
Vale acrescentar a interpretação de Badinter, ao observar que “[s]er homem se
diz mais no imperativo do que no indicativo”. (1993: 03) Dessa forma, a violência passa a
simbolizar uma forma de imposição masculina, pois a ruptura de alguns valores, como
fidelidade, honra, caráter, respeito ao masculino pelo feminino, põe em descrédito a
organização social nas culturas tradicionais, já que, nelas, o equilíbrio entre os gêneros é
mantido através da dominação do homem sobre a mulher. Sobre o uso da força como forma
de domínio sobre o feminino, postula Sócrates Nolasco que “os homens tornam-se crédulos
de que sua força física, definida pela massa muscular, os manteria eternamente senhores do
mundo”. (l993: l8)
Essa desestruturação familiar provocada pela ação feminina e reação
masculina, em seus diversos meios, o feminino pela traição e o masculino pela violência,
prenuncia a desagregação de alguns valores sociais. Dessa forma, torna-se evidente que a
traição está duplamente associada à perda, tanto da pessoa desejada quanto da virilidade,
assim como a violência é, para a mulher, uma “punição” pela sua transgressão e, para o
homem, uma forma de reclamar a sua superioridade. Pelas constatações de Foucault, Lauretis
e Hall, essa definição dos gêneros é uma construção da sociedade em que homens e mulheres
agem. A respeito dessa identidade masculina construída via costumes sociais, diz-nos
Nolasco: “Perder era percebido quase como uma negação de ser homem”. (l993: l4)
114
Na cultura patriarcal, comumente, a sociedade “autoriza” a prática sexual
masculina fora do casamento. Para a Igreja, esse fato pressupunha a garantia da tranqüilidade
do casamento e da família. Nesse sentido, rompendo com essa generalização, a obra
Memórias de um sargento de milícias retrata bem que havia, nessa mesma sociedade, essa
quebra da conduta moral provocada pelo feminino. Essas atitudes femininas denotam que vão
se esvaindo as diferenças de poderes e valores entre homem e mulher. Diante disso, a mulher
começa a ocupar o espaço social antes destinado apenas ao exclusivismo do homem no
ambiente público. Isso posto, postula Badinter: “Na escala social, os homens se sentem
ameaçados em sua identidade por essa criatura que quer agir como eles, ser como eles. Para
eles é a verdadeira dissolução de sua especificidade”. (l993: l6)
Desse modo, não estamos mostrando a supremacia de um gênero sobre o outro,
mas questionando o uso dos conceitos “homem” e “mulher” como categorias fixas e
universais, buscando compreender como homens e mulheres de tempo, espaço e culturas
diversas constroem diferentes sentidos para o masculino e o feminino. Assim, podemos
perceber os diversos perfis masculinos e femininos engendrados no interior de uma mesma
sociedade tradicional, tendo em vista a idéia da imposição do poder do homem sobre a
mulher, e se as relações de gênero devem, necessariamente, ser fundamentadas em relações de
poder.
Sob esse prisma, atentos à sociedade representada nas Memórias, de Manuel
Antônio, voltemos nossa atenção à personagem Leonardo-Pataca. Apesar das contrariedades
que vinha sofrendo pelas “paixões” mal-sucedidas, este inicia um outro relacionamento, dessa
vez, com uma cigana:
O Leonardo a vira pouco tempo depois da fuga da Maria, e das cinzas ainda
quentes de um amor mal pago nascera outro que também não foi a esse
respeito melhor aquinhoado; mas o homem era romântico, como se diz hoje
e babão, como se dizia naquele tempo; não podia passar sem uma
paixãozinha. Como o ofício rendia, e ele andava sempre apatacado, não lhe
fora difícil conquistar a posse do adorado objeto; porém a fidelidade, a
unidade no gozo, que era o que sua alma aspirava, isso não o pudera
115
conseguir: a cigana tinha pouco mais ou menos sido feita no mesmo molde
da saloia. (ALMEIDA, l999: 19 )
Entende-se assim que o fragmento revela o sentimentalismo de Leonardo e
deixa implícita a crítica a essa postura masculina numa sociedade tradicional quando faz uso
dos termos “romântico”, “babão”, “paixãozinha” e “adorado objeto”. Dizendo o mesmo em
outras palavras, o envolvimento afetivo torna o homem fraco, pois o conduz à vulnerabilidade
e à passividade diante do feminino. Ainda, considera o fato de Leonardo andar sempre
“apatacado” como uma maneira de conseguir novos relacionamentos, contudo admite que ele
não se torne objeto de desejo da companheira. Fica assim ratificada a presença do “interesse
econômico” que permeia as relações no período.
Com tantas desventuras amorosas, Leonardo persiste na conquista de uma
companheira. Sobre essa constante busca masculina e a instabilidade nas relações, salienta
Nolasco: “poderemos perceber que uma das vulnerabilidades do mundo masculino reside no
fato de que os homens têm dificuldades para manter ou sustentar as relações que conquistam”.
(l993: l00)
As cenas se repetem e Leonardo é novamente traído pela Cigana. Recorrendo a
meios “sobrenaturais” de reconquista da Cigana, Leonardo-Pataca é preso pelo Major Vidigal.
A prisão e a tentativa de reconquista transformam-se em motivos de zombaria e repreensões
por parte da sociedade. Segundo observações do narrador, Leonardo: “[a]creditara que tinha
acabado de passar pelo pior dos suplícios, porém insuportáveis torturas começaram para ele
no dia em que saiu da cadeia: a mofa, o escárnio, o riso dos companheiros seguiu-o por
muitos dias, incessante e martirizador”. (ALMEIDA, l999: 33) O riso dos companheiros fez
com que Leonardo-Pataca se sentisse mais ofendido que a própria traição. O riso constituiu
algo público, desse modo revelou a sensibilidade masculina diante da sociedade. Nesse
pensamento, podemos concordar com Margareth Rago (1995) quanto ao fato de que a questão
116
dos perfis de gêneros se dá por meio de uma história relacional, o masculino e o feminino não
se afirmam isoladamente, e sim um em relação ao outro e à sociedade.
Evidencia-se que, através do conhecimento social da traição vivida por
Leonardo-Pataca, este é publicamente ridicularizado, pois o desejo pelo feminino, suas
fraquezas, bem como seus sentimentos pela Cigana e a vulnerabilidade de sua condição
máscula se tornam públicas. Como observa Bourdieu:
Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é
porque ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre
o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria,
organiza, expressa e dirige o desejo de posse, como dominação erotizada, e
o desejo feminino como desejo de dominação masculina, como
subordinação erotizada, ou mesmo, em última instância, como
reconhecimento erotizado da dominação. (BOURDIEU, 1999: 31)
Esse “princípio de divisão fundamental entre o masculino ativo e o feminino
passivo” é rompido na medida em que o romance revela a mulher que age, enquanto o homem
transforma-se em escravo de seus desejos. O fragmento que se segue indica como a
personagem Leonardo-Pataca é manipulado pelo sentimentalismo em detrimento das
faculdades intelectuais. Passado o riso dos companheiros, veja-se o que relata o narrador:
Apesar de tudo quanto havia já sofrido por amores, o Leonardo de modo
algum queria emendar-se; enquanto se lembrou da cadeia, dos granadeiros e
do Vidigal esqueceu-se da Cigana, ou antes só pensava nela para jurar
esquecê-la; quando porém as caçoadas dos companheiros foram cessando,
começou a renovar-se a paixão, e teve lugar uma grande luta entre a sua
ternura e a sua dignidade, em que esta última quase triunfava, quando uma
descoberta maldita veio transtornar tudo. Não sabemos por que meio o
Leonardo descobriu um dia que o rival feliz que o pusera fora de combate
era o reverendo mestre-de-cerimônias da Sé! ...
— Pois um padre!?... dizia ele; é preciso que eu salve aquela criatura do
inferno, onde ela se está metendo já em vida...
E começou de novo em tentativas, em promessas em partidos para com a
cigana, que a cousa alguma queria dobrar-se. (ALMEIDA, 1999: 43)
O mestre-de-cerimônias, por ser o padre local, possuía facilidade de adentrar
pelas casas, assim adquiriu o posto de amante da Cigana. No discurso do narrador, o leitor
pode entender certa reprovação da persistência de Leonardo no relacionamento com a Cigana.
Quando destaca que a dignidade quase triunfava, acrescenta que uma descoberta “maldita
117
veio transtornar tudo”. Parece que o narrador tende a defender a dignidade, o orgulho de
Leonardo por serem ambos do gênero masculino. Posteriormente, dá a voz à personagem que
busca novos argumentos para se aproximar da cigana. A procura desses argumentos por
Leonardo constitui maneiras de justificar a sua ação diante da sociedade. Em si mesmo, não
restava dúvidas acerca do pedido de reconciliação. Assim, o leitor vê novamente a
personagem a implorar pela volta da cigana e ser negado por ela.
Nesta obra, a personagem feminina principia o desequilíbrio dos modelos
rígidos de feminino e de masculino encontrados na ficção romântica do período, assim como
nos remete a novos perfis sociais dos gêneros. Segundo Badinter, essa postura feminina, esse
surgimento de um outro tipo de mulher ameaça as fronteiras das ações masculinas e aproxima
o rompimento da divisão binária que caracteriza o patriarcado. Então: “[p]roximidade,
similitude e confrontação despertam horror entre eles e suscitam reações autoritárias, até
mesmo ameaçadoras”. (BADINTER, l993: l4-l5)
Efetivado o plano para separar a Cigana e o Mestre-de-cerimônias, “o
Leonardo deu-se de todo por satisfeito, e renasceram-lhe as esperanças de conquistar o antigo
posto, uma vez que o principal inimigo o tinha abandonado. A cigana, desprezada, não
quereria sem dúvida ficar por muito tempo devoluta”. (ALMEIDA, 1999: 46) Com base nesse
discurso, é vista a autonomia da mulher a respeito da reconciliação. É ela quem aceita ou
rejeita o relacionamento. Leonardo apenas cria os motivos para que ela o aceite de volta,
mesmo sendo ela quem oferece motivos para a separação. Ressalte-se também que a
construção da feminilidade, do “poder” feminino, nesta obra literária, é resultado de uma
disputa entre os homens. É interessante destacar que essa disputa vem encenada nas trapaças,
na violência, no sentimento de piedade que Leonardo-Pataca promove a fim de reconquistar
sua amante.
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Posteriormente, percebida a possibilidade da reconciliação, “[c]omeçou o
sentimental Leonardo a rondar a porta da sua antiga amante: se a via na janela, ora parava na
esquina a dirigir-lhe olhares suplicantes; passando por junto dela deixava ora escapar um
magoadíssimo suspiro ou uma queixa amargurada”. (ALMEIDA, 1999: 47) O uso dos
adjetivos “sentimental”, “suplicantes”, “magoadíssimo” e “amargurada” vai decantando a
hegemonia masculina dessa personagem. O uso de tais termos, pelo narrador, somado às
atitudes da personagem, contrastando com o seu aspecto físico, culminam na sua
ridicularização e na de seus sentimentos. Fica enfim exposto pelo narrador: “[t]odas estas
cenas, desempenhadas por aquela figura do Leonardo, alto, corpulento, avermelhado, vestido
de casaca, calção e chapéu armado, eram tão cômicas, que toda a vizinhança se divertiu com
elas por alguns dias”. (ALMEIDA, 1999: 47)
Essa cena nos leva a deduzir que a ideologia tradicional elege os aspectos
físicos, a vestimenta – aqui destacada a do grupo dos meirinhos – a firmeza, a autonomia e a
insensibilidade como fatores de determinação, de diferenciação entre os sexos. Prosseguindo a
leitura dessa cena, encontramos Leonardo com os olhos rasos d’água nos braços da antiga
amada, embora isso tenha lhe custado “uma tremenda caçoada de todos, e sérias repreensões
de alguns”. (ALMEIDA, 1999: 47) Pelo que expõe o narrador, a sociedade repreende o
comportamento transgressor feminino e rejeita a atitude de Leonardo em aceitá-la de volta.
Como ressaltamos, nas sociedades tradicionais, a distinção de gêneros, a classe
social e o poder aquisitivo constituem fatores que delegam alguns privilégios sociais. Em
Memórias de um sargento de milícias, apesar da depreciação evidente na narrativa, por andar
sempre “apatacado” e pertencer a um grupo pouco superior àquele a que pertenciam as
mulheres de seus relacionamentos, Leonardo tem certos privilégios na sociedade, como trocar
constantemente de parceiras, agredir a companheira e o filho sem ser punido pela violência,
ser ajudado por pessoas influentes devido à posição social que ocupa.
119
Mas a imagem do “patriarca” começa a ruir, desestabilizando uma estrutura em
que o homem é superior, levando à perda de alguns valores ao longo da narrativa. Podemos
exemplificar a questão na cena em que Leonardo-Pataca é preso e recorre aos “ajeitos” da
comadre para ser libertado. Essa inversão de posturas, do feminino passivo ao feminino ativo,
confessa, em termos ficcionais, a dinâmica da nova conjuntura social e cultural da sociedade
fluminense nos primeiros anos do século XIX. Dessa forma, desencadeia uma perda gradual
da condição de “macho”, uma vez que, para realizar-se em várias situações, o homem precisa
recorrer aos favores e aos “jeitinhos” femininos.
Ao reagir agressivamente à traição, Leonardo-Pataca afirma que perdeu “não
(...) o juízo... mas a honra”. (ALMEIDA, l999: l4) Nesse sentido, a traição fere literalmente o
orgulho masculino, uma vez que culmina em descrédito de toda uma categoria social, a de
meirinho. Sobre a mesma perspectiva da traição como transgressão à norma de conduta moral,
enfatizando a infidelidade acometida por Maria-da-Hortaliça, constata o narrador: “não
ofendia só um homem, porém uma classe inteira! Injúrias e murros à mistura caíram de novo
sobre a Maria das mãos e da boca de Leonardo”. (ALMEIDA, l999: 14)
Na sociedade da obra que vimos examinando, as características de Leonardo-
Pataca parecem uniformizar o perfil do gênero masculino. Importante registrar que, nas
Memórias, o autor denomina as mulheres ativas como “Maria”, são elas: Maria-da-Hortaliça,
Maria-Regalada e Dona Maria. Parece querer atribuir uma unidade identitária a elas. Às
outras, ora as identifica pelos diminutivos, Luisinha e Vidinha, ou pela ocupação social.
Como ressaltamos, nessa narrativa é comum encontrarmos a voz do narrador defendendo as
personagens masculinas ou censurando as ações ou transgressões do feminino. A mulher age
e o narrador lhe dá a voz, contudo, a voz masculina emerge constantemente marcada por
certos elementos característicos.
120
Discutindo os efeitos de significado e as auto-representações produzidas pelas
práticas, discursos e instituições socioculturais destinados à produção de homens e mulheres,
Lauretis constata que oferecem um modelo de construção de gênero na diferença sexual e o
mapa que traçam entre a subjetividade e a sociabilidade “deixa o sujeito feminino
desesperadamente atolado nos pântanos do patriarcado”. (LAURETIS, 1994: 229).
Com os privilégios que lhes são inerentes desde o nascimento, os patriarcas
efetivam a exclusão do papel da mulher na sociedade. Como destaca Ruth Silviano Brandão
(1993), o patriarca funciona como princípio de identidade para a família. O homem tem o
poder de mandar e a mulher deve obedecer. O homem deve ser forte, valente, vencedor,
decidido, conquistador e insensível a fim de garantir a masculinidade na sociedade patriarcal.
Ainda assim, é submetido a situações em que precisa provar que é um homem, por meio de
certas provas iniciáticas. Recorda-nos que, desde a infância, os meninos são cercados de
questionamentos como: “Prove que você é homem!” Ou “Você não é homem, não?” Para a
mulher, não são tão evidentes tais imposições. Sobre essa questão, Elisabeth Badinter,
parafraseando Simone de Beauvoir, diz: “[o] homem não nasce homem, ele se torna homem”.
(BADINTER, 1993: 29)
Mas, retomando Memórias de um sargento de milícias, Leonardo-Pataca
preocupa-se com a opinião social porque a infidelidade de suas companheiras permite que vá
se esvaindo o respeito, a honra e sua masculinidade diante da sociedade. A esse respeito,
questiona Badinter: “Quando desonra o poder do homem sobre a mulher, o que resta da
masculinidade?” (l993: 27) Reagindo à perda do controle sobre a mulher, muitos homens
tentam possuir várias mulheres e nunca se envolver afetivamente com nenhuma delas, como
nos esclarece um entrevistado de Michel Dorais :
Como sempre fui tímido e complexado, fiquei tão orgulhoso ao arrumar a
minha primeira namorada que acabei por me casar com ela alguns anos
mais tarde. No começo, tudo correu bem. Mas, depois de uma briga entre
nós, minha mulher foi se consolar com outro homem. Quando soube que ela
me traíra, fiquei tão abalado que disse a mim mesmo que nunca mais uma
121
mulher me faria sofrer. Pelo contrário, em minha sede de vingança, era eu
que queria fazê-las sofrer. Passava um bom tempo com as mulheres, mas
nada mais que isso. Tinham acabado as histórias de amor! Esse foi o
começo de um período da minha vida em que acumulei aventuras; assim
que uma garota começava a se apegar a mim, eu me mandava! Percebo hoje
que nem por isso eu era mais feliz. Ao fugir das garotas, era de mim mesmo
que eu fugia. (DORAIS, l994: 26)
Percebe-se, nesse excerto, que o homem, além de preocupar-se com a
estabilidade das conquistas, tem medo de envolver-se afetivamente, perder sua
individualidade e o controle de suas emoções.
A traição, a ação ativa feminina e a desonra ferem a virilidade e levam o
homem a sentir insegurança e vergonha de sua fraqueza. Como afirma José Paulo Paes, “no
relato de gênesis, após comer do fruto proibido do bem e do mal por indução de Eva, Adão se
envergonha pela primeira vez da sua nudez e se esconde dos olhos do senhor”. (l990: 15)
Observa-se que o homem, na ideologia cristã, é apresentado como fraco e susceptível à
dominação feminina. Foi Adão quem se deixou dominar pela tentação de Eva. Examinando a
sociedade da narrativa de Os sinos da agonia, Reinaldo Marques (1984) destaca que, de
acordo com a ideologia masculina no contexto patriarcal, a apreensão do feminino como
elemento transgressor, vislumbrando os seus traços negativos, é relacionada à figura de Eva.
Esta seria a figura simbólica responsável pelo pecado e pela decadência do gênero humano.
A primeira mulher de Leonardo-Pataca é quem sai de casa, quem sustenta, na
traição e na fuga, a tentativa de realização dos desejos. Assim, demonstra autonomia e
coragem para ausentar-se do ambiente familiar. O termo “fuga” já prenuncia a renúncia a algo
preestabelecido, àquela postura legada à mulher. Ocorre, assim, a perda do espaço de
dominação masculina, estreitando as diferenças entre os gêneros.
Enfim, revestidos da intencionalidade de revelar as diversas roupagens do
masculino e do feminino na construção literária, reportamo-nos ao conto “As academias de
Sião”. Nele, tendo em vista os perfis tradicionais, no que se refere ao aspecto emocional,
122
Machado de Assis, de certa forma, reencarna em Kalafangko a personagem Leonardo-Pataca
(corpo de homem e alma de mulher), e, em Kinnara, reinterpreta a personalidade das
personagens Dona Maria, Maria-da-Hortaliça e a Cigana (corpos de mulheres e almas de
homens).
3.5. Tal pai, tal filho: transgressões, conflitos e favores
Um filho é uma porção de nós que se destaca para formar outro eu.
José de Alencar
Seja homem! É o que escutam os meninos criados numa educação tradicional.
Como ficou esclarecido, a sociedade da época exigia o estereótipo de homem viril, corajoso,
esperto, conquistador, autônomo, forte, imune à fragilidade, às inseguranças e às angústias.
Pela proteção e acolhimento diante de seus erros, especialmente pelo padrinho, Leonardo
filho
14
tornou-se um vadio completo, “malandro”, vadio típico.
Sobre a tal proteção do afilhado relata o narrador: “[o] compadre, que no meio
de tudo tinha sempre pintado a história do menino com cores muito favoráveis, não cessando
de gabar a sua mansidão, boa índole, e dourando sempre as diabruras com o título de
inocências, ingenuidade ou cousas de criança...” (ALMEIDA, 1999: 50) E após as propositais
diabruras, exclama Dona Maria: “ele estava descuidado, foi sem querer...” (ALMEIDA, 1999:
51)
Apesar de ter encontrado sempre em sua trajetória “protetores” por toda a
parte, Leonardo depara-se com os mesmos infortúnios sentimentais do pai. A princípio,
apaixona-se por Luisinha, que vem a se casar com José Manuel, um homem maledicente e
“esperto”. Em seguida, precisa estabelecer uma disputa com outros homens para se envolver
com Vidinha. A vulnerabilidade e os (des)amores permeiam a vida de Leonardo assim como
14
Tendo em vista a mesma denominação para as personagens pai e filho, para referirmos ao pai utilizaremos o
termo utilizado na obra, Leonardo-Pataca, e para referirmos ao filho, ora utilizaremos Leonardo filho, ora apenas
Leonardo.
123
estão presentes na vida de seu pai. A esse respeito, ressalta o narrador: “convém lembrar que
se pela sorte de um pai se pode augurar a de um filho, o Leonardo em matéria de amor não
prometia de certo grande fortuna”. (ALMEIDA, l999: 57)
Leonardo via em Luisinha uma moça esquisita, feia e sem simpatia. Porém,
com as observações de seu Padrinho que falava constantemente nela, percebeu que era
verdade a presença do pensamento a respeito da moça. Neste momento, uma mudança de
conceitos acerca da moça começou a se operar em Leonardo. O narrador comenta “que para
nenhum dos leitores será ainda duvidoso que chegara ao Leonardo a hora de pagar o tributo
de que ninguém escapa neste mundo, ainda que para alguns seja ele fácil e leve e para outros
pesado e custoso: o rapaz amava”. (ALMEIDA, 1999: 57) Veja-se, no comentário do
narrador, um certo pessimismo, medo, temor ao envolvimento sentimental.
Entretanto, Luisinha ignorava a tudo, e a tudo era indiferente. Já Leonardo,
[n]as horas de sossego entregava-se às vezes à construção imaginária de
magníficos castelos, castelos de nuvens, é verdade, porém que lhe pareciam
por instantes os mais sólidos do mundo; de repente surdia-lhe de um canto o
terrível José Manuel com as bochechas inchadas; e soprando sobre a
construção, a arrasava num volver d’olhos. (ALMEIDA, 1999: 61)
No excerto acima, o narrador revela o sentimentalismo à moda romântica de
Leonardo. Assim como o seu pai Leonardo-Pataca, Leonardo se entrega às paixões, aos
sonhos e aos devaneios. Porém, a presença do “inimigo”, do “outro”, põe em questão a
efetivação do relacionamento. Ainda como seu pai, Leonardo pensa em usar a violência para
tirar o rival da disputa por Luisinha: “a idéia mais pacífica que teve foi que podia mui bem,
quando fosse visitar Dona Maria, munir-se de uma das navalhas mais afiadas de seu padrinho,
e na primeira ocasião oportuna fazer de um só golpe em dous o pescoço de José Manuel”.
(ALMEIDA, 1999: 59) Veja-se como a violência, ou mesmo a intencionalidade violenta, tem
marcado a trajetória e a índole dos homens na narrativa.
No afã de se declarar a Luisinha, o memorando esteve “por longo tempo
calculando se devia falar em pé ou se devia ajoelhar-se”. Tem-se presente nessa reflexão a
124
importância do momento para Leonardo. Ajoelhar-se implica creditar ao outro a superioridade
denotando a sua submissão. Porém, Luisinha a nada responde e Leonardo não de todo
descontente “[q]uando ela desapareceu, soltou o rapaz um suspiro de desabafo e assentou-se,
pois se achava tão fatigado como se tivesse acabado de lutar braço a braço com um gigante”.
(ALMEIDA, 1999: 62)
Diante da indiferença de Luisinha, em seus primeiros encontros na casa de
Dona Maria, Leonardo depara-se com as primeiras contrariedades do amor, por não se tornar
objeto de atenção da mesma. Nesse momento, “quando se viu assim tratado quase desatou a
chorar: só o conteve o receio de não poder justificar o seu pranto com qualquer pretexto”.
(ALMEIDA, l999: 58) Ratifica-se, conforme o pensamento de Leonardo, vindo à tona pela
observação do narrador, que a masculinidade é uma construção social. Discorrendo acerca do
paradigma de masculinidade, afirma Nolasco:
O estereótipo do macho exclui estas diferentes dinâmicas subjetivas, fazendo
crer ao indivíduo que um homem se faz sob sucessivos absolutos: nunca
chora; tem que ser o melhor; competir sempre; ser forte; jamais se envolver
afetivamente e nunca se renunciar. (NOLASCO, 1993: 40)
Nas sociedades patriarcais, são necessários certos pré-requisitos para a garantia
do gênero. No caso apontado, o choro masculino precisa ser justificado e essa justificativa não
pode ser pelas questões sentimentais, pois isso aproximaria a conduta masculina da conduta
feminina. Nessa ação, ainda encontra-se a preocupação em dar satisfações à sociedade, em se
provar que é homem, pela conquista feminina.
Por essa ótica, a construção das identidades de gênero valorizam as relações
criadas em sociedade, tendo em vista que são marcadas por conflitos, diversidades e pela
influência cultural e histórica em que são articuladas. Essas relações sociais são fundamentais
para a compreensão do significado das palavras homem e mulher. Como menciona Saffioti:
Os fatos biológicos nus da sexualidade não falam por si próprios; eles
devem ser expressos socialmente. Sente-se o sexo como individual ou, pelo
125
menos, privado, mas estes sentimentos sempre incorporam papéis,
definições, símbolos e significados dos mundos nos quais eles estão
construídos. (1992: 187)
Como construção social, é em relação ao “outro” que se determina o perfil de
homem e de mulher. Para se apresentar másculo, precisa-se de uma “autorização social, pois a
masculinidade não é própria do homem, mas uma convenção que dá sustentáculo à
superioridade do gênero”. Diante disso, comenta Badinter, “a masculinidade não é uma
essência, mas uma ideologia que tende a justificar a dominação masculina”. (l993: 27)
Relendo as travessuras do memorando Leonardo, convém lembrar que o
destino o havia separado de Luisinha, quando esta se casara com José Manuel. Nesse ínterim,
Leonardo conhece Vidinha. As distintas características dessas mulheres fazem o herói
Leonardo pensar acerca do sentimento nutrido pela primeira. Vidinha se fazia encantar. Era
uma mulher desejante, dotada de grande poder de sedução, sensualidade e autonomia. Ao
contrário de Luisinha, ela tocava modinhas, cantava, falava alto, enfim, participava do meio
social. Leonardo então admirava-se “de como é que havia podido inclinar-se por um
instante a Luisinha, menina sensaborona e esquisita, quando haviam no mundo mulheres
como Vidinha. Decididamente estava apaixonado por esta última”. (ALMEIDA, 1999: 81)
Vidinha era o oposto de Luisinha e seu encanto pelos homens era muito
efêmero. Vejamos a descrição do narrador:
Vidinha era uma rapariga que tinha tanto de bonita como de movediça e
leve: um soprozinho, por brando que fosse, a fazia voar, outro de igual
natureza a fazia revoar, e voava e revoava na direção de quantos sopros por
ela passassem; isto quer dizer, em linguagem chã e despida dos trejeitos da
retórica, que ela era uma formidável namoradeira, como hoje se diz, para
não dizer lambeta, como se dizia naquele tempo. Portanto não foram de
modo algum mal recebidas as primeiras finezas do Leonardo, que desta vez
se tornou muito mais desembaraçado, quer porque já o negócio com
Luisinha o tivesse desasnado, quer porque agora fosse a paixão mais forte...
(ALMEIDA, 1999: 86)
126
Pode-se perceber, também, no excerto acima, que a recepção dos galanteios de
Leonardo foi diferente com uma e com outra pretendente. Como Vidinha tinha uma vida mais
livre, trocava de companheiros com muita facilidade. Então, recebia com atenção e interesse
as “finezas” masculinas, enquanto Luisinha, na ocasião dos primeiros olhares de Leonardo,
saiu sem nada dizer, de cabeça baixa, indiferente aos acontecimentos. Contudo, essa
indiferença não simbolizava a ausência de sentimento, mas a timidez e o comedimento diante
da situação. Luisinha era uma moça manipulada e dominada, em que o casamento com José
Manuel havia sido um “arranjo” da sua tia.
Na escrita de Manuel Antônio de Almeida, a personagem Luisinha constitui o
ideal romântico da mulher passiva. Ela não deseja, não opina, não age. É calada pelo discurso
do narrador e das outras personagens que pensam e agem por ela. Constitui o protótipo da
mulher submissa e angelical das narrativas românticas. Sua submissão a converte em objeto
de desejo masculino. Como constata Reinaldo Marques, nas sociedades tradicionais, “a
postura da mulher há de ser sempre a de objeto de desejo do patriarca, ou marido, abdicando
dos próprios desejos e interesses; isto é, esimpedida de se colocar como termo diferente,
como o outro na sua radical diferença, conformando-se tão somente em ser reflexo”.
(MARQUES, 1984: 186) Estudando a construção do feminino pela mão masculina na obra
Encarnação, de José de Alencar, Ruth Silviano Brandão conclui que “[s]e o trajeto é
masculino, manter-se indefinidamente no lugar da fantasia do homem é, entretanto, aí se
alienar, provocando seu próprio naufrágio, enquanto sujeito desejante”. (BRANDÃO, 1993:
54)
Teresa de Lauretis, discutindo sobre o conceito e o processo de significação da
feminilidade, alerta-nos que tal feminilidade “é puramente uma representação, um
posicionamento dentro do modelo fálico de desejo e significação; não se trata de uma
qualidade ou de uma propriedade da mulher. O que significa dizer que a mulher, como sujeito
127
do desejo ou da significação, é irrepresentável, a não ser como representação”. (LAURETIS,
1994: 230)
Como representação do feminino pelo masculino, contrariamente ao que
expusemos sobre Luisinha, encontramos a personagem Vidinha que, como esclareceu o
narrador, trocava constantemente de namorados. Era disputada por seus primos e, com a
chegada de Leonardo, havia outro motivo para as brigas entre eles. Porém, nas discussões,
Vidinha sempre tomava partido de Leonardo. Mas Leonardo era dotado, também, do fluido
amoroso do pai, e se envolveu com a mulher do Toma-Largura. Então, Vidinha sente-se
enciumada e ofendida pela traição. Relata o narrador:
Vidinha era ciumenta até não poder mais; ora, as mulheres têm uma
infinidade de maneiras de manifestar este sentimento. A uma dá-lhe para
chorar em um canto, e choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas: isto é
muito cômodo para quem as tem de sofrer. Outras recorrem às represálias, e
nesse caso desbancam incontinenti a quem quer que seja: esta maneira é
seguramente muito agradável para elas próprias. Outras não usam da mais
leve represália, não espremem uma lágrima, (...), resmungam um calendário
de lamentações. (...) Outras entendem que devem afetar desprezo e pouco
caso: essas tornam-se divertidas, e faz gosto vê-las. Outras enfim deixam-se
tomar de um furor desabrido e irreprimível; praguejam, blasfemam,
quebram os trastes, rompem a roupa, espancam os escravos e filhos,
descompõem os vizinhos: esta é a pior de todas as manifestações, a mais
desesperadora, a menos econômica, e também a mais infrutífera. Vidinha
era do número destas últimas. (ALMEIDA, 1999: 97/98)
O longo trecho apresentado desmitifica a existência de um padrão de
comportamento da mulher nas sociedades tradicionais. Em um mesmo contexto social e
histórico constata-se a presença de diversas reações femininas diante da traição. Nessas
reações, podemos identificar a manifestação da ideologia patriarcal da época. O fato de que
“choram aí em ar de graça dilúvios de lágrimas: isto é muito cômodo para quem as tem de
sofrer,” denota a preferência masculina pelas mulheres de comportamento recatado, ou seja,
aquelas mulheres que, mesmo nos momentos de ciúme, raiva ou tristeza, guardam o
sofrimento para si próprias, não o transformando em fator de vingança, ou incentivo para
promover as ações. Às que agem com desprezo ao masculino, o narrador declara tornarem-se
128
divertidas. Com Leonardo-Pataca, o desprezo da Cigana tornou público o seu desejo de
reconquista, e converteu-se em zombaria da sociedade. Relendo esse fragmento, ainda
podemos reafirmar a concepção machista da época, uma vez que o narrador censura ou
deprecia a postura de Vidinha, “esta é a pior de todas as manifestações”. Essa voz narrativa
masculina parece apontar como negativa e danosa a ação violenta feminina, porém, quando
Leonardo-Pataca agride sua companheira e o filho, o narrador não emite nenhum juízo
negativo. Com isso leva-nos a conhecer uma atitude comum e “aceitável” da época, pelo
menos no que concerne à ideologia do masculino.
Ciente da traição, Vidinha se enfurece, mesmo com as promessas de Leonardo
“de comedir-se dali em diante, e de lhe não dar mais motivos de desgosto. Vidinha, porém a
nada atendia, e caminhava sempre. O Leonardo recorreu a ameaças; Vidinha redobrou os
passos: voltou de novo a rogativas; Vidinha caminhava sempre”. (ALMEIDA, 1999: 99)
Como uma mulher desejante, Vidinha provoca o temor masculino diante da ação feminina.
Temor ainda revelado diante da sociedade, construtora do caráter viril. Mesmo sendo Vidinha
um registro feito pelo masculino, o narrador lhe dá a voz, mas vez por outra emite a sua
opinião acerca de seus atos. Através desse artifício narrativo, descortina-se o desejo da
personagem e imprime sempre o desejo do outro, do sujeito falante, narrador ou autor,
conforme discute Brandão (1993).
Decidida a vingar-se da atitude de Leonardo, Vidinha vai até a casa do Toma-
Largura. Deparando-se com ele, “Vidinha não recuou um passo, não desfez uma ruga da testa,
antes pareceu mostrar que a sua presença ali favorecia suas intenções; tanto que dirigindo-se a
ele o foi apostrofando também pela seguinte maneira: — É vossemecê um homem que eu não
sei para que traz barbas nessa cara...” (ALMEIDA, 1999: 100) Na explanação “não recuou um
passo, não desfez uma ruga da testa”, parece surpreso o narrador já que, tradicionalmente, é a
mulher quem teria que se intimidar e temer o homem. É fácil perceber que, diferentemente da
129
passividade de Luisinha, Vidinha interfere nas ações a fim de transformá-las a serviço de seus
próprios interesses. E ainda, questiona a repreensão de que teria feito alguma asneira: “—
Asneira... qual... fiz o que faz qualquer mulher que tem sangue na guelra...” (ALMEIDA,
1999: 101) Neste ponto, configura-se o temor, a aversão e a impotência de Leonardo diante do
feminino.
Como reação à traição de Leonardo, Vidinha se envolve com o Toma-Largura,
marido da amante de Leonardo. Pois o Toma-Largura, após ser ofendido e agredido por
Vidinha, interessa-se por ela. Essa seria uma evidência de que muitos homens se sentem
atraídos pelas mulheres que ferem a normalidade ditada pela sociedade tradicional. As trocas
amorosas não constituíam, normalmente, relações legitimadas, uma vez que, para a realização
do casamento, segundo os costumes do tempo, os homens buscavam as mulheres mais
submissas e adaptáveis aos interesses masculinos. Com seu sentimento ferido por Leonardo,
Vidinha buscava, em sua atitude, vingar-se da traição: “Em certos corações o amor é assim,
tudo quanto tem de terno, de dedicado, de fiel, desaparece depois de certas provas, e
transforma-se num incurável ódio”. (ALMEIDA, 1999: 102) Comentando a respeito dessas
resistências femininas, Simone de Beauvoir, constata: “Ela [a mulher] se irrita por ser freada
pelas regras da decência, embaraçada por suas roupas, escravizada aos cuidados da casa,
detida em todos os seus impulsos”. (BEAUVOIR, 1980: 37) Então, logo que se seguiu a
viuvez de Luisinha, a preocupação de Dona Maria em casá-la de novo denota que o propósito
do casamento, nessa época, era uma forma de proteção e amparo às mulheres. Durante a
missa do sétimo dia, já passava por Dona Maria a idéia de “casar de novo a fresca viuvinha,
que corria o risco de ficar de um momento para outro desamparada num mundo em que
maridos, como José Manuel, não são difíceis de aparecer, especialmente a uma viuvinha
apatacada”. (ALMEIDA, 1999: 119)
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A mulher ideal como companheira seria aquela adequada ao casamento, uma
forma de “arranjar-se” na vida. O padrinho, então, “enxergava na sobrinha de Dona Maria um
meio de vida excelente para o seu rapaz”. Porém, como a sociedade exigia algumas ocupações
sociais do homem, lembra o padrinho que “Dona Maria podia com muito justa razão, se as
cousas continuassem do mesmo modo,... recusar sua sobrinha a um rapaz que não se ocupava
em cousa algumas, e que não tinha futuro”. (ALMEIDA, 1999: 59) No fragmento “com muito
justa razão”, o narrador, por meio da imaginação do Compadre, endossa a existência de
alguns requisitos para ser considerado um “homem”, nesse caso o exercício do trabalho.
Constância Lima Duarte, em “História da Literatura Feminina: nos bastidores
da construção de gênero” (2002), esclarece-nos que a educação atribuída à mulher, no período
colonial e início do século XIX, sempre esteve calcada em valores morais e religiosos,
visando apenas preparar a futura mulher para assumir suas funções junto à família, o papel de
esposa e de mãe. Ao longo de seu enquadramento na ordem dos gêneros, a menina aprendia a
ser simples, natural, modesta, amável, obediente, respeitosa, para então se transformar no
estereótipo exigido pela sociedade patriarcal: educada, meiga, acomodada, isto é, sem
iniciativa, medrosa, tímida e insegura.
Sobre essa questão, chama-nos a atenção o fato de que, na obra, as mulheres
não representam esses papéis, apenas Luisinha é uma moça com tais predicativos. É a única
personagem feminina que se assemelha às heroínas românticas, dotada de características
burguesas, de um ser abúlico e fraco. Configurando o lado passivo do feminino, é com ela que
se realiza, por duas vezes, com José Manuel e posteriormente com Leonardo, a oficialização
da união, segundo a estética romântica.
Delineando a dinâmica social das Memórias, algumas mulheres agem,
seduzem, direcionam através do uso dos “arranjos” e das “oportunidades”, em que
demonstram ter a capacidade de controle sobre os homens. Podemos citar a Comadre, que
131
manipulava a situação conforme ser-lhe-ia vantajosa: “Era ingênua ou tola até certo ponto e
finória até outro”. (ALMEIDA, 1999: 24) Sendo forte, se fazia de fraca a fim alcançar os
seus propósitos. Isso dependia de sua necessidade.
Por meio dessa dinâmica social, a lei, o vício, o lícito, o ilícito, os perfis sociais
de masculino e feminino se alternam a ponto de materializarem a dialética da ordem e da
desordem, como constatou Candido (1993). Essa ordem e desordem, assim como a
desestabilização das condutas de gênero, exposta na narrativa, é exemplificada pela ação do
Major Vidigal, representante da ordem, diante de Maria-Regalada, metáfora da desordem,
quando esta “o chama de lado e lhe segreda qualquer coisa, com certeza alusiva a alguma
relação apetitosa no passado, quem sabe com possibilidades de futuro”. (CANDIDO, 1993:
43)
Dessa forma, o rompimento dos limites e a subversão final de valores revelam
o mundo hierarquizado na aparência, “quando os extremos se tocam e a labilidade geral dos
personagens é justificada pelo escorregão que traz o major das alturas sancionadas da lei para
complacências duvidosas com as camadas que ele reprime sem parar”. (CANDIDO, 1993: 43)
Com essa atitude do Vidigal, convencido por uma prostituta a elevar Leonardo
da condição de malandro ao posto de sargento, fica evidente a sobreposição do sentimento à
razão. Embora se apresentasse como autônomo, decidido e autoritário para a sociedade, o
Major demonstrou-se susceptível e sentimental diante da presença feminina. Conforme diz o
narrador:
Se estas lhe davam então no fraco, se lhe faziam um elogio, se lhe faziam
uma carícia por mais estupidamente fingida que fosse, arrancavam dele tudo
quanto queriam; ele próprio espontaneamente se oferecia para o que podiam
desejar, e ainda em cima ficava muito obrigado. (ALMEIDA, 1999: 114)
Esses acontecimentos vêm explicitar que a mulher, também, tem o poder de
conquista, de realização dos desejos e de manipulação dos homens, embora o homem procure
demonstrar-se superior a elas. Segundo José Paulo Paes, “[o] homem exige, mas a mulher tem
132
o poder de conceder ou recusar. Desde o esboço de seu primeiro empenho de conquista da
fêmea, o homem se desviriliza”, (l990: l6) porque, ao apaixonar-se, torna-se objeto de
realização de desejos femininos, flexibilizando, assim, sua identidade. Completa Roland
Barthes (2000): apaixonar-se é desvirilizar-se.
As comunidades patriarcais, impregnadas de uma ideologia moralizadora,
vêem no casamento uma forma de “autorização social” para o sexo. Nesse sentido, o sexo visa
à reprodução. Assim, o casamento, bem como a sexualidade, especialmente a feminina, são
sacralizados e vigiados pela Igreja, pelo Estado e pela sociedade. Sob esse pensamento, a
traição indicia a impureza da mulher ao mesmo tempo em que desonra o homem, centro de
referência da família.
Sabido é que, na colônia, ocorria um maior número de casamentos por
conveniência econômica que casamentos por amor. Principalmente para as mulheres, o
casamento era uma tarefa a ser suportada. Esse, dentre outros motivos, fazia com que a
maioria da população vivesse em concubinato ou em relações consensuais, não legitimadas
pela Igreja. Foram nessas circunstâncias que se formou a família brasileira, pela presença
masculina no campo do confronto e da vingança e a mulher moldada para a passividade e
subserviência. Porém, por trás dessa máscara de honra e respeito, está o declínio do próprio
instituto do casamento e da ideologia da superioridade masculina patriarcal, até então
sustentados por canais da hipocrisia social.
Nessa educação de subserviência, Luisinha aceita as escolhas de sua Madrinha,
sua tutora e representante de seu pai, e não luta para mudar o seu destino. Como já nutria um
sentimento por Leonardo desde a adolescência, com o amadurecimento, passaram a se ver de
forma diferente. Como já havia passado pelos “deleites” e “sufocos” com uma mulher ativa,
autônoma, Leonardo, neste momento, busca a estabilidade através do casamento com
Luisinha, já que essa possui todos os atributos de uma companheira legítima: passividade,
133
doçura, acolhimento. Esse casamento, por amor, ainda é contemplado pelas heranças dos dois,
fator que, também, aproxima essa união dos padrões burgueses.
Reafirmando a ideologia tradicional e assumindo a concepção romântica,
constata o narrador que “a idéia de uma união ilegítima lhes repugnava”. A respeito do
casamento no patriarcado, comenta o narrador: “Esse meio de que falamos, essa caricatura da
família, então muito em moda, é seguramente uma das causas que produziu o triste estado
moral da nossa sociedade”. (ALMEIDA, 1999: 120) O casamento torna-se, assim, uma forma
de normalizar a sexualidade, principalmente para o sexo feminino.
Na obra de Manuel Antônio de Almeida, são mais complexos e flexíveis os
paradigmas dos gêneros preestabelecidos pela sociedade patriarcal. Seja como traidora, seja
como controladora das ações dos homens, dominando-os por meio de seus corpos ou através
da arte da sedução, a mulher torna o homem vulnerável em seus relacionamentos afetivos ou
sociais, assim como o homem, também, revela posturas e ideologias que, muitas vezes se
distanciam daquilo que foi decretado pelas tradições. Acreditamos que essa obra representa
bem a sociedade fluminense do século XIX, já que tece o fio da narrativa a partir de um olhar
masculino “atento” sobre a sociedade, especialmente sobre as relações de gênero nos
ambientes públicos, lugar das “máscaras sociais”. Nessa construção, as personagens se
assumem como são, sejam elas masculinas ou femininas.
134
4- CONCLUSÃO
Toda obra de arte é criada paralelamente e em oposição a um modelo.
Chklovski
O presente exame das Memórias de um sargento de milícias desmente um
dos mais reiterados artifícios com que a historiografia literária despistou a surpresa e a
inquietação em face da habilidade mimética, do despojamento narrativo e do humor crítico: o
de ser obra apenas da inconsciência, escrita descuidadamente por um jovem autor
desinformado dos códigos ideológicos, literários e lingüísticos.
Como observou José Veríssimo, é embaraçoso classificar a obra Memórias de
um sargento de milícias em uma escola literária. Entretanto, encontramos afinidades e
diferenças entre as vertentes estilísticas apontadas pela crítica: romance de costumes, realista,
representativo, documental e malandro; ou novela picaresca. Diante desse impasse, Antonio
Candido (1993) concorda com Mário de Andrade (1945) a respeito de que o que se acha na
ficção de Manuel Antônio de Almeida é algo mais vasto e intemporal, que transcende os
modelos estilísticos próprios da comicidade popularesca.
Como sabemos, a publicação das Memórias em folhetins se deu em
substituição à folha em francês que antes integrava o Jornal Correio Mercantil. Se a maior
parte dos brasileiros não sabia ler a língua estrangeira, o registro da linguagem nacional
parece convidá-los a tomar parte da literatura, já que, na obra almeidiana, apresentavam-se os
traços fundamentais do estereótipo brasileiro. Como postula Mário de Andrade, esse autor “é
o primeiro a fixar em literatura o caráter nacional brasileiro”. É no registro do cotidiano, no
comportamento desregrado, na ausência de repreensões e censuras que parte da crítica sobre
as Memórias de um sargento de milícias a considera um texto “realista” e, conseqüentemente,
nacional.
Trazendo em si as marcas do passado histórico, sem deixar de preocupar com a
poética do romance, Manuel Antônio, por meio de uma aguçada intuição, dá forma a
135
personagens, lugares, os saltos no tempo, e traduz, com sentimento de realidade, a identidade
brasileira dos anos oitocentos. Por meio de um trabalho lingüístico, literário e ideológico que
marca uma época, Manuel Antônio de Almeida constrói a verossimilhança interna de sua
obra.
O mundo ficcional de Manuel Antônio de Almeida não era o mesmo de
Alencar. Também o de Alencar não era o mesmo de Machado de Assis. Maneco de Almeida
foi um recriador do espaço em que ele se inseriu. Através do texto pode-se ver, também, a
circunstancialidade do autor. É desse ponto de vista que se destaca o papel de documentação
das Memórias. Documentação resultante da mímesis, enquanto manipulação do conteúdo
histórico para a composição do texto literário.
Em seu romance, Manuel Antônio de Almeida apropria-se do dinamismo do
histórico a fim de traduzi-lo em obra de arte. Procedendo dessa forma, reescreve a cidade do
Rio de janeiro, com a sua estrutura urbana, as festas tradicionais, a proibição das festas
noturnas e dos rituais de feitiçaria, as vestimentas, as procissões religiosas, os hábitos das
demandas e da maledicência, enfim, o vaivém do povo pelas ruas, lugar onde habita tanto o
bem quanto o mal, e ninguém é censurado por suas ações. O narrador, por meio das
digressões e descrições espaço-temporais, remete o leitor aos costumes dos primeiros anos do
século XIX, já que narra em meados do mesmo século.
O romancista constrói, então, uma grande metonímia. Com este intuito, tece a
cidade do Rio de Janeiro como uma alegoria do Brasil da época. A propósito, revela a
desorganização do país, que, com a chegada da família real portuguesa, trouxe consigo
numeroso e diverso contingente humano. Desestabilizaram-se as estruturas e as relações
sociais da cidade, e da colônia, que eram mantidas por meio das ideologias patriarcais.
As relações sociais e amorosas eram regulamentadas pela orientação ética, pela
catequese e pela educação espiritual. A mentalidade patriarcal, de superioridade do homem
136
sobre a mulher, foi intensificada pela ação da Igreja, que explorou as relações de dominação
entre os sexos. Essa relação de poder marcou o convívio familiar e condenou “a esposa a ser
uma escrava doméstica exemplarmente obediente e submissa. Sua existência justificava-se
por cuidar da casa, cozinhar, lavar a roupa e servir ao chefe da família com seu sexo”, explica
Mary Del Priore. (2005: 22)
Contudo, o que a recente historiografia tem demonstrado é que, nem sempre, a
mulher e o homem ocuparam esses papéis predefinidos. No romance de Manuel Antônio de
Almeida são destacadas as várias particularidades que ganharam forma com o surgimento dos
primeiros centros urbanos, e redefiniram as relações sociais e de gênero. O hibridismo
cultural, a vida rural da maioria da população, a ausência de escolas e de bibliotecas, os
valores e hábitos diversos de famílias mestiças agiram sobre os afetos e amores. Livre para
transitar pelas ruas, a maioria da população vivia em concubinato ou em relações consensuais,
não legitimadas pela Igreja. É certo que, nessa época, apenas membros de classes subalternas
tinham liberdade para escolher seus companheiros. O fluido amoroso nessa camada da
população era intenso, isto é, trocava-se facilmente de amores. Esse mundo isento de culpas e
de censuras é que enreda a escrita de Manuel de Almeida.
Na obra almeidiana, as relações de gênero ressaltam as contradições que se
estabelecem em uma cultura patriarcal. Embora tais relações sejam construções masculinas, o
texto ganha forma a partir, principalmente, da voz mediadora feminina. Portanto, na narração
é fácil constatar que a pluralidade de discursos quebra a totalidade de uma voz unívoca e põe
em cena os valores culturais, as relações e as transformações promovidas juntamente com o
masculino. Não é a identidade pessoal dos gêneros que são colocados em questão, mas os
valores culturais, as relações e as transformações promovidas nas relações de gênero.
Analisando essas relações de gênero, percebemos que há a inversão e quebra
das imagens do masculino, visto como violador e ativo, provedor responsável, orgulhoso e
137
respeitado pai de família, e do feminino, representado como sujeito passivo, mãe submissa,
impotente e dócil, comum nas sociedades tradicionais. Na sociedade representada nas
Memórias, encontramos o masculino em descrédito quanto a sua conduta viril.
Exemplificamos com as traições de Maria-da-Hortaliça e da Cigana a Leonardo-Pataca, o
choro deste diante da perda da amada, o riso público diante da prisão de Leonardo quando
recorre a rituais de feitiçaria tentando reconquistar a Cigana, também a uso da violência como
forma de demonstrar a sua superioridade e força diante da sociedade, fatores que revelam as
fraquezas da personagem.
Quanto ao Major Vidigal e Leonardo filho, encontramos semelhantes posturas,
que nos permitiram perceber novos perfis de masculino numa sociedade tradicional. O Major
Vidigal, apresentado pelo narrador como a personagem mais temível, sagaz, firme e
invulnerável da narrativa, retira Leonardo filho da prisão, exime-o dos castigos e ainda o
promove a sargento, a fim de corresponder ao pedido de sua ex-amante, Maria-Regalada, e
assim, reatar o seu namoro com esta.
Do lado feminino, encontramos Dona Maria com suas manias de demandas,
agindo no ambiente antes permitido apenas aos homens. A Comadre que, recorrendo aos
jeitinhos femininos, consegue tirar Leonardo-Pataca da cadeia e arranjar o casamento de
Leonardo com Luisinha. Maria-da-Hortaliça e a Cigana, duas mulheres infiéis, que usam os
seus corpos em favor de seus desejos. São mulheres que, sendo desejadas por Leonardo-
Pataca, não deixam de afirmar seus próprios desejos. Envolvem-se e desfazem-se dos
relacionamentos sem se fragilizarem ou se entregarem aos sentimentos. Elas detêm um poder
que escapa ao homem. Por isso, são consideradas negativas ao estabelecimento da ordem nas
relações conjugais.
Como mulher desejante e vulnerável em seus relacionamentos, Vidinha é
considerada, pela voz do narrador, como um exemplo de anormalidade. Troca de amores
138
constantemente e, interfere nas ações a fim de torná-las a seu serviço. Por outro lado,
encontramos Luisinha como exemplo da normalidade. É o indício de que, em uma mesma
sociedade, diferentes perfis de feminino coexistem mutuamente. É o protótipo de mulher ideal
nas comunidades patriarcais. Passiva, submissa, sem voz, tímida, indecisa, dócil, inoperante,
enfim, o modelo exigido para um casamento em que a mulher assume-se, unicamente, como a
mãe e esposa, ao preço da repressão de seus desejos. Depois de passar por outras relações
amorosas, é com ela que, por meio de “ajeitos”, Leonardo termina por se casar.
Como vimos, apesar de ser uma escrita masculina, em grande medida é a
mulher quem transgride, direciona e manipula as normas de conduta na narrativa. O homem,
desde o momento em que se apaixona, torna-se vulnerável às ações femininas, existindo em
função delas. Também vale ressaltar como o narrador ainda nos deixa perceber, em seu
enunciado, a naturalidade de certas ações masculinas, como a violência sobre a mulher, típica
da ideologia patriarcal.
Esse discurso ideológico, principalmente os termos do não-dito, cabe ser
melhor estudado na ficção de Manuel Antônio de Almeida, já que a nossa interpretação se
limitou, em grande medida, ao âmbito do enunciado, do dito. Por fim, como a atenta leitura do
romance de Manuel Antônio de Almeida confirma a gama de interpretações possíveis que
podem ser realizadas acerca da obra, esperamos que outros leitores se interessem em
reexaminar a obra, sobretudo, no que se refere às relações de gêneros, aspecto que
privilegiamos nesta discussão.
139
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