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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA
INSTITUTO ECUMÊNICO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
HILDEGART HERTEL
ESPIRITUALIDADE E CRISE EXISTENCIAL NA VIVÊNCIA DO CÂNCER
São Leopoldo
2006
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HILDEGART HERTEL
ESPIRITUALIDADE E CRISE EXISTENCIAL NA VIVÊNCIA DO CÂNCER
Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de Mestre em
Teologia
Escola Superior de Teologia
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação
Teologia Prática
Orientador: Rodolfo Gaede Neto
São Leopoldo
2006
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Ficha elaborada pela Biblioteca da Escola Superior de Teologia
H573e Hertel, Hildegart
Espiritualidade e crise existencial na vivência do
câncer / Hildegart Hertel ; orientador Rodolfo Gaede
Neto. – São Leopoldo : EST/IEPG, 2006.
109 f.
Dissertação (mestrado) – Escola Superior de Teologia.
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação. Mestrado em
Teologia. São Leopoldo, 2006.
1. Câncer – aspectos psicológicos. 2. Câncer –
aspectos religiosos. 3. Mamas – câncer – pacientes –
vida religiosa. 4. Tillich, Paul, 1886-1965. 5. Drewermann,
Eugen, 1940- . I. Gaede Neto, Rodolfo. II. Título.
B A N C A E X A M I N A D O R A
Rodolfo Gaede Neto - Doutor em Teologia - EST
___________________________________________________________________
Marion Creutzberg - Doutora em Gerontologia Biomédica - PUC
Ênio R. Mueller - Doutor em Teologia - EST
“SE VOCÊ PENSA QUE PODE OU
SONHA QUE PODE, FAÇA. A OUSADIA
TEM GENIALIDADE, PODER E MAGIA.
OUSE FAZER E O PODER SER-LHE-Á
DADO”.
(Goethe)
GRATIDÃO
Ao refletir sobre a quem agradecer, após terminar a pesquisa, mestrado em
teologia, lembrei-me de imediato de minha e Rosa e meu pai Germano. Foram
eles que me ajudaram a conhecer e amar a Deus. Alegro-me por fazer parte de uma
família maior. Junto comigo cresceram e se desenvolveram mais cinco irmãos:
Helmuth, Herbert, Hugo (este, em memória) e minhas irmãs Helga e Hulda. É muito
bom ter uma família que se respeita e se ama.
Desejo, no entanto, igualmente destacar a Irmandade a qual integro. É uma
família de mulheres que se encontrou em grupo com um mesmo objetivo: Servir a
Deus na pessoa necessitada de cuidado, não importa a situação social, credo
religioso, cultura, grupo étnico. Foi este o grupo que me proporcionou realizar a
pesquisa. Sou grata a Deus por pertencer a esta comunhão.
Além disso, quero agradecer a muitas pessoas amigas que me incentivaram e
encorajaram a trilhar este caminho. Ninguém faz nada sozinho e por isso quero
ainda mencionar os meus mestres. Entre estes, destaco Marion Creutzberg e Ênio
R. Mueller como colaboradores na leitura da dissertação. De maneira especial eu
cito o orientador da pesquisa: Rodolfo Gaede Neto. Com certeza existem maneiras
distintas de receber orientação, mas construir um nculo de confiança mútua foi
para mim deveras importante. Agradeço a sua paciência e profissionalismo.
Finalizando, desejo voltar o meu olhar a Deus e reconhecer a diferença que
faz, poder confiar a vida e tudo o que a ela pertence a Deus como criador e doador
da vida.
RESUMO
O propósito desta dissertação é examinar como mulheres percebem e vivenciam a
experiência de serem diagnosticadas com câncer de mama. A pesquisa social de
campo envolve um universo de oito mulheres que passaram por esta trajetória
sendo uma delas a própria autora, que traça uma auto-análise de sua experiência
com este diagnóstico. Um aspecto específico com o qual a pesquisa busca se
ocupar é identificar o lugar que a espiritualidade ocupa na história das mulheres
entrevistadas. O câncer de mama apresenta um alto índice da doença no Rio
Grande do Sul. Conforme a Revista Gaúcha de Enfermagem, o câncer de mama é a
maior causa de morte de mulheres entre 30 a 50 anos de idade. De acordo com as
estatísticas do Instituto Nacional do Câncer, o câncer de mama é o segundo tipo
mais freqüente de câncer do mundo. Assim sendo, o câncer de mama ainda é uma
doença que leva à morte, mesmo com o enorme avanço da medicina. Mas, há quem
sobreviva o temido e assustador processo da descoberta e tratamento do câncer.
Com a doença do ncer vem também a angústia da finitude. O presente trabalho
baseia suas reflexões teóricas em Eugen Drewermann e Paul Tillich e como os
mesmos descrevem a angústia existencial do ser humano, diferenciando-a do medo
real, que tem o seu objeto definido, enquanto que a angústia existencial tem como
fonte de sua permanente ameaça o “nada”. A angústia e a culpa estão relacionadas,
estando a culpa ligada ao afastamento de Deus. A aceitação do ser finito, através da
coragem do ser, ato de fé por graça divina, substitui, em última análise, a angústia
por confiança no Deus da Vida. Os autores, ambos os teólogos, apontam para a
interdisciplinaridade. A proposta dessa pesquisa é de atuar em colaboração com
outras ciências, de maneira especial com a Psicologia Analítica. Uma pessoa em
crise, que trabalha seus processos interiores, poderá ter facilitado sua entrega
confiante a Deus. É ainda sucintamente apresentado, conforme Drewermann, como
o patológico se manifesta na vida de pessoas que, assim como todas as demais
pessoas, carecem da experiência da graça de Deus para sua libertação. A pesquisa
finaliza trazendo a abordagem de Erika Schuchardt, formulada no modelo de uma
espiral de oito fases, pelas quais passam as pessoas em crise.
ABSTRACT
The purpose of this dissertation is to examine how women perceive and live the
experience of receiving a diagnostic of breast cancer. Field research involves a total
of eight women who have experienced this situation, one of them being the author’s
self-reflection on a cancer diagnostic. A specific aspect of the present research is to
identify the place that spirituality takes in the life history of the interviewed women.
The State of Rio Grande do Sul presents a high rate of breast cancer. According to
the agency Revistal Gaúcha de Enfermagem, breast cancer is the death main cause
among women between thirty and fifty years old. Statistics of the National Cancer
Institute indicates that breast cancer occupies the second place among the different
sorts of cancer. Even though medicine has shown great advance in the last decades,
breast cancer still continues to be a deadly disease. However, there are people who
survive the fearsome and frightening fatal process caused by this disease. With
cancer comes along the human finitude anxiety. The present work bases its reflection
on how Eugen Drewermann and Paul Tillich describe the human existential anxiety
distinguishing it from real fear. According to the authors real fear has its object
defined, while existential anguish has as source of its permanent threat, the
“nothingness.” Anguish and guilt are connected, but guilt is associated to the
alienation from God. Acceptance of the existence as finite, through the courage of
Being, which is an act of faith by divine grace, replaces anguish by trust in the God of
Life. The authors above, both theologians, aim at interdisciplinarity. The purpose of
this research is to act in collaboration with other sciences, specially with Analytical
Psychology. A person in crisis working her/his interior processes might have
facilitated the confident surrender to God. It is also briefly presented, according to
Drewermann, how pathology evidences itself in the life of a person who, as all other
persons, lacks the experience of the grace of God to his/her liberation. Concluding,
the research approaches Erika Schuchartd’s theory formulated in the model for
working through crisis in eight spiral phases.
.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..........................................................................................................11
1 PESQUISA SOCIAL DE CAMPO .........................................................................24
1.1 Entrevista Narrativa Qualitativa....................................................................24
1.1.1 Introdução à entrevista qualitativa........................................................26
1.1.2 A coleta de dados através de entrevistas semi-estruturadas.............27
1.1.3 Análise de dados ....................................................................................28
1.2 Dados coletados ...........................................................................................29
1.2.1 Os medos reais e a angústia existencial na vivência de câncer
de mama........................................................................................................29
1.2.1.1 Exames de rotina como detecção precoce do câncer de mama..30
1.2.1.2 Angústia que o câncer desencadeia na humanidade em geral
e em especial nas pessoas que sofrem esta doença....................30
1.2.1.3 A importância de informações precisas sobre a doença
de seu próprio câncer e como lidar com a cura do mesmo .........32
1.2.1.4 Quimioterapia ...................................................................................33
1.2.1.5 Como vou reagir se o câncer reincidir? Chorar é permitido?
Não gosto de ser consolada............................................................34
1.2.1.6 Câncer na história familiar: uma constante ameaça.....................36
1.2.1.6.1 Apoio por parte de familiares diretos.......................................37
1.2.1.6.2 Conflitos familiares vivenciados por causa do câncer
de mama....................................................................................38
1.2.1.7 Como enfrentar o luto da perda da mama e do cabelo: vou
ser uma mulher mutilada?...............................................................40
1.2.2 Eu não estou sozinha. Jesus está no barco comigo ..........................42
1.2.2.1 que ajuda a superar a crise na doença do câncer?......................42
1.2.2.2 O câncer lembra a finitude. Um tabu na igreja cristã?.................44
1.2.2.3 A espiritualidade como presença constante na vida
do ser humano................................................................................46
2 ANGÚSTIA, CULPA E MEDO REAL DO SER HUMANO EM
CRISES EXISTENCIAIS........................................................................................49
2.1. Introdução.....................................................................................................49
2.2 A angústia e culpa em Drewermann............................................................51
2.2.1Quem é Eugen Drewermann..................................................................51
2.2.2 A angústia dos discípulos em meio uma tempestade
(Marcos 4. 35-41) conforme a interpretação de Drewermann............52
2.2.3 Analogia entre a angústia dos discípulos e as pessoas
em crise existencial...............................................................................52
9
2.2.4 O simbolismo do mar, na angústia dos discípulos,
conforme Drewermann.........................................................................53
2.3. Culpa.............................................................................................................55
2.3.1 A angústia como origem do desespero................................................56
2.3.2 O caráter único da psicoterapia e poimênica.......................................58
2.3.3 Pecado e neurose...................................................................................58
2.3.3.1 Compulsão.......................................................................................58
2.3.5.2 Histeria .............................................................................................59
2.3.5.3 Depressão........................................................................................59
2.3.5.4 Esquizofrenia/Esquizóide...............................................................62
2.4. angústia existencial em Paul Tillich...........................................................63
2.4.1 Aspectos da Biografia de Paul Tillich...................................................63
2.4.2 A angústia existencial frente à coragem do Ser..................................64
2.4.3
O ser humano e a sua finitude........................................................................
64
2.4.4 Como entender a coragem do Ser ........................................................66
2.4.5 A interdependência do medo e angústia..............................................67
2.4.6 A angústia do destino e da morte .........................................................68
2.4.7 A angústia da vacuidade e insignificação............................................68
2.4.8 A angústia da culpa................................................................................68
2.4.9 O significado do desespero...................................................................69
2.4.10 A coragem do ser como chave do ser-em-si......................................69
2.4.11 O Deus acima de Deus e a coragem de Ser .......................................70
2.4.12 Fé universal como superação da angústia existencial .....................70
2.4.13 Terminologia.........................................................................................70
2.4.14 Acomo ato da pessoa inteira..........................................................71
2.4.15 A fonte da fé..........................................................................................72
2.4.16 Avida na fé .......................................................................................72
2.5 A relação entre saúde e salvação em Léo Piccinini...................................73
2.5.1 Saúde, cura e salvação: um processo inseparável.............................73
2.5.2 Saúde e salvação....................................................................................73
3 AS TEORIAS DE DREWERMANN E TILLICH EM DIÁLOGO COM
OUTROS AUTORES E COM AS MULHERES ENTREVISTADAS.......................76
3.1 Introdução......................................................................................................76
3.2 Encontrar Deus nas ações ao próximo.......................................................76
3.3 A Importância da espiritualidade no cotidiano...........................................78
3.3.1 A experiência de acompanhar pessoas em situação de
crise ou mesmo em fase terminal..........................................................78
3.3.2 Como a fé se expressa nas falas das mulheres entrevistadas...........80
3.3.3 A fé entre a dúvida e a certeza na vivência com câncer de mama.....83
3.3.4 Fé como graça divina: como possuí-la.................................................83
3.4 A importância da família na vivência do câncer.........................................86
3.4.1Como ir ao encontro da “dor” dos familiares?.....................................86
3.5 Possíveis caminhos para superação de crises..........................................87
3.6 Estágios no processo de crises existenciais, com vistas a
novas perspectivas, conforme Erika Schuchardt .....................................88
3.6.1 Incerteza..................................................................................................90
3.6.2 Certeza.....................................................................................................92
3.6.3 Agressão .................................................................................................93
3.6.4 Barganha ou negociação.......................................................................93
3.6.5.Depressão ...............................................................................................93
10
3.6.6 Aceitação.................................................................................................94
3.6.7 Atividade..................................................................................................95
3.6.8 Solidariedade..........................................................................................96
CONCLUSÃO...........................................................................................................98
REFERÊNCIAS.......................................................................................................104
ANEXOS.................................................................................................................107
INTRODUÇÃO
Foi no dia primeiro de outubro do ano de 2003, às 17 horas. Havia voltado à
minha escrivaninha, após uma reunião de equipe do meu setor de trabalho no
Departamento de Diaconia da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
(IECLB). O telefone toca. Na outra ponta da linha está a minha médica. Ela disse:
precisamos conversar sobre o resultado da tua biópsia de mama. Como um raio
passou por minha mente a resposta. É câncer. A médica confirmou o diagnóstico. E
conversamos sobre a possibilidade, ou seja, sobre a necessidade da remoção total
da mama.
Após desligar o telefone eu estava bem confusa. Não conseguia racionar com
clareza. Não sabia o que de fato sentia. O que eu mais queria era conversar com
pessoas amigas da família. Liguei para a minha irmã e nós nos consolamos
mutuamente. Tudo parecia distante e perdido...
Havia em meu interior uma grande vontade de abraçar alguém. Ser acolhida.
Eu queria ouvir a mim mesma enquanto falava de meus sentimentos. Mas diante de
mim havia um convite para um jantar festivo dos dez anos da LUTERPREV. Ir ou
não ir estava diante de mim e acabei indo para o jantar festivo.
Uma experiência inédita foi encontrar as pessoas conhecidas. Das mais de
cem pessoas presentes, conhecia quase todas. Devo confessar que nunca ouvi com
tamanha atenção a costumeira pergunta: - como vais? Tudo bem? A minha
vontade foi dizer: - Não, não está tudo bem. Descobri hoje que tenho câncer. No
entanto, não consegui. Eu não estava à vontade para dizer neste momento o que
estava se passando comigo. Houve uma exceção: falei para uma pessoa o que
estava sentindo. Essa realidade me ensinou que pessoas que a gente conhece são
muitas, mas em quem confiamos são poucas.
12
Sentei-me à mesa com mais cinco pessoas. Algumas conseguiram ver a
tristeza em meus olhos. A foto do grupo não deixa negar esse fato. Depois do jantar
fomos para casa e eu estava apreensiva para chegar e entrar em casa. Na minha
imaginação, as colegas da casa estariam esperando por mim para conversar. Mas,
não era essa a realidade. Estavam dormindo devido ao adiantado da hora. Fiquei
muito decepcionada com esse fato. Mas outro dia chegou...
Tive que assumir e muito de frente a triste situação de ter a doença do
câncer. Fazer novos exames, buscar um cirurgião, marcar cirurgia, reorganizar as
tarefas no escritório e as viagens de campo. Tudo foi possível. Havia muita
compreensão e solidariedade.
A cirurgia ficou marcada para o dia 14 de outubro. Não havia espaço no bloco
cirúrgico e nem mesmo leito disponível no Hospital antes dessa data. O que me
marcou muito foi o apoio e a presença física de pessoas que para mim eram muito
especiais, antes da cirurgia. Fiquei num leito na emergência e ao meu redor,
pessoas especiais fizeram um círculo e oraram comigo. Esse momento foi
incrivelmente positivo e marcante para mim. Jamais esquecerei.
Pós-operatório. Qualquer intervenção cirúrgica tem o seu desconforto. A
minha recuperação foi boa, mas eu tinha um grande desejo que a minha irmã
ficasse comigo durante as noites. Uma coisa muito importante para mim foi que uma
colega me acompanhou para o bloco cirúrgico e permaneceu ao meu lado durante a
cirurgia. Ao despertar da anestesia foi o primeiro rosto que vi e a primeira palavra
que pronunciei foi o seu nome. Foi um alívio sem comparação. Um momento crucial
para mim foi ouvir o resultado do esvaziamento dos gânglios. O dico informou
que quase todos os gânglios retirados estavam com metástases. De doze, sete, e o
grau do câncer era o máximo na escala definida pela medicina: grau três. Foi como
tirar o chão debaixo dos meus pés.
Com esse resultado fui encaminhada para o oncologista e que é especialista
em quimioterapia. Tudo parecia correr bem. Falei ao cirurgião: - vou enfrentar a
quimioterapia de cabeça erguida. Ele respondeu a minha coragem com três
palavras: - Não ergue demais. Nem sempre a boa vontade e a força de vontade
resolvem tudo. Na primeira aplicação passei por um mal-estar muito grande. Enjôo
permanente. Os medicamentos não deram conta. A pretensão era fazer uma sessão
de quimioterapia a cada 21 dias. A primeira quimioterapia realizou-se no dia três de
13
novembro de 2003. Entre a primeira e a segunda aplicação, um casal de amigos me
buscou e me levou para a praia por quatro dias. A idéia era pegar sol, ar de praia e
novo ânimo. Depois de 21 dias foi a segunda. saí da emergência muito mal.
Acordei no outro dia com muitos vômitos, rosto inchado e alergia pelo corpo inteiro.
O quadro clínico estava bem crítico e voltei ao hospital para avaliação. Constataram
que eu era alérgica ao medicamento quimioterápico.
A cada 21 dias eu estava na expectativa para ver se dava para aplicar outra
dose. O resultado de um exame de sangue é que mostrava se seria possível ou não.
Mas agora eu deveria ser internada por quatro dias para observar como o corpo
reagia. Sempre foi necessário um tratamento paralelo com medicamentos
antialérgicos. A cada 21 dias eu tinha o desejo de que o meu corpo pudesse
suportar outra dose de medicamento da quimioterapia. Eu de fato acreditava que
estava parte da cura de meu câncer. Eu acreditava na equipe de saúde e eu via,
sentia essa equipe como a melhor para mim nesta área.
O quarto de três camas era o meu preferido. No segundo andar do hospital,
no setor da oncologia. Número 217. Esse quarto era espaçoso e tinha uma área
aberta para um bom refúgio.
As histórias de vida de minhas muitas companheiras de quarto foram e são
inesquecíveis. Muitas delas não pronunciavam a palavra câncer. Ficavam admiradas
que eu o “brigava“ o tempo todo com a minha doença, mas tentava aprender a
conviver com ela. Amar e respeitar o meu corpo mesmo que mutilado e fragilizado,
foi a minha opção.
Para cada sessão de quimioterapia, uma colega me trazia uma orquídea
florindo. As flores permaneciam no meio do balcão, ao alcance dos olhos de cada
mulher que compartilhava o quarto. Havia, porém, algumas vezes, manifestação da
parte das companheiras de quarto, de uma dor, um sentimento por não terem
recebido flores. Em uma internação chegou a tal ponto que comprei uma flor para o
quarto, ao levar a minha para casa.
O que aconteceu nessas sete internações, entre muitas outras
aprendizagens, foi constatar que brigar com a própria vida, com o seu corpo não
leva a nada. Isso faz mal e atrapalha o processo da cura. Com essa afirmação, não
digo que não podemos expressar os nossos sentimentos. Sejam eles de raiva, de
14
indignação, de angústia, de frustração, de dor física ou psicológica que passa pela
nossa razão ou emoção. Mas há formas diferentes de fazê-lo. Trago um exemplo: no
meu último banho de chuveiro, antes da mastectomia, eu me despedi de minha
mama direita. Agradeci a esta parte de meu corpo o que ela significou para mim...
Agora eu estava me despedindo dela, na certeza de que a remoção da mesma
poderia contribuir para a minha saúde e possível continuidade de vida.
Como e onde expressei a minha raiva? Conclui que não poderia fazer de
conta que tudo estava bom e certo. No entanto, aprendi que se me colocasse na
situação de vítima não contribuiria para o restabelecimento da saúde de forma
integral.
Passei sim, pelos passos de Kuebler-Ross (negação e isolamento; raiva;
barganha; depressão; aceitação), mas aprendi a enfrentá-los sempre que se
apresentaram de forma consciente para mim. As pessoas com as quais convivi na
mesma casa, foram compreensíveis para com a minha depressão, para o meu mau
humor e para minha raiva. Além disso, havia informado ao meu grupo de colegas
que se eu estivesse emocionalmente por baixo, que me ajudassem a sair dessa
realidade, tentando entender a minha situação ou estado de ser do momento. Em
resposta a isso eu recebi compreensão, através das muitas orações, visitas, apoio
logístico. Muitas vezes mostraram a sua criatividade em me restabelecer, reerguer
com “pequeno-grandes” gestos do dia-a-dia. Exemplos que poderia citar: traziam
tomatinhos, caldo de cana, frutas vermelhas, melado, frutas frescas, verduras verdes
escuras, flores, leituras, cartões com mensagens, me convidavam para passeios ao
ar livre, jogos para entreter, e tantas outras coisas que qualificaram a minha vida.
As visitas nem sempre foram positivas. É preciso saber fazer visitas para a
pessoa que se encontra em situação de crise. Como a outra pessoa está se
sentindo com a visita, que faço para ela, é necessária uma leitura correta do
momento. Como ela está se sentindo nesse momento precisa ser aprendido. Nem
todas as pessoas possuem por natureza o dom de visitar doentes. Como paciente a
gente aprende também que tipo de visita absolutamente não ajuda. Por exemplo:
fazer perguntas indiscretas, contar que tantas pessoas que conhece também têm
câncer que morreram e sofreram muito, ou então se recuperaram. Que Deus pode
fazer um milagre. Que é preciso crer. Ter fé. Você é forte. Eu sei que vais sair dessa.
15
O acompanhamento terapêutico especializado é o que ajuda a deixar as
frustrações e os dissabores no lugar certo. A prática terapêutica é uma opção muito
boa. Sabemos que não é nada fácil achar a pessoa que corresponde aos anseios do
paciente. Igualmente não é sempre possível ter os recursos financeiros que isso
implica. Aqui o que pesa muito é poder ter uma pessoa de confiança. Alguém que
saiba de fato escutar empaticamente e que, como paciente, eu posso desabar e
desabafar com coragem. O acompanhamento terapêutico que pude fazer me ajudou
muito. Não posso negar que lá na terapia a minha raiva apareceu muito forte. Eu tive
a liberdade de expressá-la. O profissionalismo da terapeuta me ajudou muito e tive
condições de entender o porquê da raiva.
Com quem dividir a carga e a dor da doença? Amigos não existem para
compartilhar alegrias, mas também as dificuldades. Durante as quatro décadas de
vida profissional/ministerial muitos vínculos foram construídos. Alguns
profissionalmente, outros em nível de uma profunda amizade. Na minha
compreensão e desejo eu queria muito informar essas pessoas o que eu estava
passando. Eu não estava querendo esconder a minha dor das pessoas que me
marcaram nos importantes espaços compartilhados na trajetória de minha vida. As
reações de apoio foram surpreendentes. Recebi mais de duzentas cartas por correio
eletrônico, as quais guardei para, quem sabe um dia, relê-las. Os telefonemas eu
não anotei. Hoje lamento por não tê-lo feito. Tudo isso fez parte de minha história.
História que me ajudou na cura do câncer. Com tudo isso, e uma enorme vontade de
viver, a minha vida interior foi-se fortalecendo e animando a cada novo dia que
passava. Uma amiga ligava cada dia para dar um “boa-noite”. Essa época me deu
uma grande oportunidade de olhar para trás e pensar na vida. A resposta pessoal
que sempre vinha foi: a vida foi e é muito generosa contigo. Valeu a pena viver.
Aliás, Fernando Pessoa disse: “tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Que lugar ocupa o sagrado nesses momentos? A espiritualidade na vida das
pessoas não deve ser apenas em momentos estanques. A vida toda deve trazer
essa marca, ou seja, ser um reflexo dessa realidade. Lutero diz: uma boa disciplina
externa é importante. Mesmo assim, podem existir momentos na vida de pessoas
onde uma parada maior é necessária para escutar Deus. Para escutar Deus
precisamos necessariamente parar e parar de falar. É preciso se aquietar, como
pessoa inteira. Nessa parada para mim voltaram algumas imagens de minha
16
infância. Uma de berço pode acompanhar a pessoa para a vida toda. Passarei a
citar duas: O primeiro quadro continha a figura do anjo da guarda que cuida das
crianças enquanto atravessam uma ponte esburacada. O Deus que protege no
diário, dos perigos externos (na minha infância não tinha pontes com buracos,
mas um rio perigoso, pelo qual se atravessava de bicicleta nas costas ou não, em
noites escuras e com enchentes). eu vivia e assim aprendi a confiar em Deus.
Aprender a confiar em Deus, por uma infantil, pode igualmente significar confiar
em si mesma. O segundo quadro, que influenciou minha em meu
desenvolvimento infantil encontrava-se no altar do templo onde eu participava do
culto infantil (eram quinze quilômetros de pés descalços achegar ao local). era
o lugar onde adorávamos a Deus, junto com outras pessoas, participando do ensino
confirmatório, das reuniões da juventude, dos cultos dominicais e outras
programações da comunidade. Esse quadro é inspirado na passagem bíblica de
Marcos 4.35-41, em que o evangelista narra como Jesus acalma uma tempestade
Imagens, representações, gestos de amor podem falar mais alto do que palavras.
Descobrir que tenho um câncer, que é considerado, pela maioria dos
humanos, uma doença que leva à morte, assusta muito. Mas, para quem acredita
que existe um outro lado da margem, para o qual navegamos, a crise pode ser
enfrentada de maneira diferente. Acreditar que Deus está no barco de minha vida e
que vai me dar forças para superar o que vier pela frente, é acreditar no AMOR
INCONDICIONAL DE DEUS, mesmo estando diante da inevitável finitude. Não de
forma milagrosa e não sem temor e tremor, mas na certeza de que Deus está no
barco. Esse outro lado é crer em alguém fora de mim, mesmo em meio à
tempestade e perigo, apesar de estar diante de angústia e perigo. No quadro, Jesus
está presente. Talvez muitas vezes também sintamos Jesus assim como os
discípulos o sentiram: dormindo. É preciso acordar em nós essa presença
constante de Deus e acreditar ou se dar conta, de que Deus está presente mesmo
em meio a tempestades de nossa vida.
Foi importante instalar uma rotina para as meditações. Após refletir com
angústia e gratidão sobre a minha vida, decidi ensaiar uma outra postura de mãos
nas meditações. Cruzar as os, como de costume, me parecia menos convincente
do que orar com as mãos abertas em atitude de estar disposta para receber algo
especial de Deus. O quebrar da rotina, também me ajudou na reflexão sobre o ouvir
17
Deus. Com isso não pretendo estabelecer um novo modelo para a oração. Esse
gesto, no entanto, se tornou importante para mim. Estar diante de Deus de mãos
vazias. Esperar dele a direção, mesmo em angústia e perigo, é uma maneira de não
viver uma crise sozinha. Esse passo não é algo mágico, pois sabemos o quanto
queremos dirigir as nossas vidas de forma autônoma. Gostamos de ser, por
natureza, auto-condutores de nossa vida.
Anjos na Vida e da Vida se fizeram presentes também. Citei o grande anjo
que cuida. Repito que tive muitos anjos que cuidaram de mim. Anjos bem perto e
anjos a longas distâncias. Nesse sentido existe algo surpreendente a respeito das
imagens de anjos que recebi. Poderia contá-los, o que talvez seria interessante, mas
desejo apenas trazer o que significaram para mim. Livros sobre anjos, artigos,
figuras de anjo de gesso, de bronze, de metal, de madeira, de papel, pintadas,
bordadas, de barro e de tantos outros materiais foram enviadas para mim. Não como
amuletos que pudessem substituir Deus, mas como representações legítimas da
presença de Deus. Deus não tem forma, mas podemos criar a nossa própria imagem
dele. Como O sentimos, O vemos, e como Ele se apresenta para nós. Nunca
imaginava construir, como eu mesma a chamei, uma galeria de anjos. No entanto,
ela existe. Por que cito isso? Para mim significou força, apoio, gratidão, esperança,
certeza do Deus presente.
Qual o lugar da medicina nessa caminhada? Confiar em Deus, confiar em si
implica também confiar na equipe de profissionais da saúde à qual eu me entreguei.
Entregar-se significa confiar de que farão o melhor que podem. Deus capacita as
pessoas para as diferentes atividades, COM DONS ou VOCAÇÕES DIVERSOS.
Integrar uma equipe de saúde é ter vocação e amor à VIDA. Quero crer que
consegui passar para as pessoas da área da saúde, a minha em Deus e elas me
ajudaram a recuperar minha saúde. Senti muito carinho e respeito. Jamais
esquecerei o esforço de todos e de todas. Agora, no pós-câncer, é preciso ter
constante vigilância, porque uma vez câncer, sempre câncer, mas também a
confiança em Deus, de que Ele está no barco, é uma necessidade diária.
Precisamos cuidar de nosso corpo, tentando sempre viver um estilo de vida que
aponta e leva para a qualidade de vida. Uma vida, em que o corpo não é visto
apenas como um instrumento que produz, mas tem o seu valor no ser. Um ser
18
humano finito, porém, com perspectivas de uma vida após a finitude. Como? Não
sei, mas creio que estarei nas mãos do Deus da Vida.
Viver em comunidade e experimentar comunhão foram essenciais. Na crise, a
pessoa não pode se isolar. É preciso viver com outras pessoas e assim como dividir
a alegria é preciso também dividir a angústia. Essa convivência pode acontecer em
pequenos grupos ou em círculos maiores. Nesse sentido, eu fui e sou uma pessoa
privilegiada. Faço parte de uma comunhão de irmãs. Ali senti muito apoio, muita
força, muito carinho. Como é bom poder amar e sentir-se amada. Mas também
tenho uma família de sangue muito amada. Foi tão gratificante saber o quanto
estava se preocupando e interessada em meu bem-estar e na recuperação de
minha saúde. O isolar-se, o sofrer calado, conforme a minha experiência, não
contribui para a qualidade de vida. Não nascemos para viver em ilhas. A construção
da vida se através do outro. O arco relacional, ou seja, do início ao término da
vida, não se pode viver por si só. Martim Buber disse: “ICH WERDE IM DU” (eu me
construo no você). Além disso, posso ainda citar uma grande família que é a
comunidade cristã. De muitos lugares do mundo recebi apoio. Somente o amor é
capaz de criar espaços, solidariedade, confiança, enfim, espaços que contribuem
para a qualidade de vida de outras pessoas. O que significou a espiritualidade ou a
em minha crise existencial na descoberta do ncer de mama? Ninguém nasce
com ou com uma “carga” de espiritualidade “inata”. A fé é um processo cultural
que se aprende e que se ensina. E, em última análise, um presente do próprio Deus.
Na Igreja cristã também ninguém nasce cristão. O “Mito” no qual se baseia a nossa
é possível aprender, e isso quando ainda no berço. Assim creio ter sido a minha
aprendizagem e construção de crença. Existe alguém fora de nós, que chamamos
de Deus, que nos protege, nos cuida, nos ama, nos admoesta, e é uma constante
presença em nossa vida.
Essa palavra ouviu de minha mãe desde muito cedo. A elas foram se
somando os exemplos concretos de sua vivência do dia-a-dia. Se formos amados e
cuidados por Deus podemos cuidar e amar outras pessoas. Além disso, aprendemos
desde muito cedo, que podemos falar com Deus através de nossas palavras, nossos
sentimentos, mas também através de nossas ações ou atitudes. A nossa mãe nos
ensinou que podemos orar com orações que outras pessoas formularam, como por
exemplo, hinos, mas também com as nossas próprias palavras. É possível
19
comunicar-se com Deus através de várias formas, maneiras, lugares, jeitos e
línguas. Ao lado desta forma individual de se comunicar com Deus, aprendemos nos
primeiros anos de vida, a forma comunitária. Seja ela em pequenos grupos de
iguais, como o culto infantil, ensino confirmatório, juventude ou mesmo em
concentrações maiores. A vida, no entanto, continua. Nunca se sabe como vai ser o
dia de amanhã. Também a finitude continua nos lembrando de que é necessário
remir o tempo. Além disso, ela é inevitável. Uma colega nossa, no leito da morte
disse: “Queridas colegas, se tenho algo a dizer a vocês nesse momento é o
seguinte: Vivam cada dia como se fosse o primeiro, mas vivam também cada dia
como se fosse o último”. Que assim seja. A aqui, o compartilhar de minha
experiência pessoal. O meu caso de câncer de mama, todavia, insere-se num
contexto de um elevado índice da doença.
“O câncer de mama apresenta um alto índice no Rio Grande do Sul e é a
maior causa de morte entre mulheres de 30 a 50 anos”. Além desses dados
estatísticos, a estimativa, do Instituto Nacional de Câncer (INCA), é que para 2006, o
câncer de mama continua sendo a maior causa de morte entre mulheres e o
segundo tipo de câncer mais freqüente do mundo
1
. Mas as que sobrevivem ao
câncer, e é com estas que a presente pesquisa se ocupa.
O corpo de uma mulher é parte de sua identidade. Vivemos numa sociedade
excludente. Normalmente a sociedade exclui o diferente. A mulher que sofreu
mastectomia pode ser vista como diferente. A mesma deve entregar parte de seu
corpo para supostamente ganhar de volta a sua saúde integral. Considerando essa
realidade, descobrir que está com câncer de mama pode fazer parte de um
momento deveras crucial na vida de uma mulher. O processo de cura de um ncer
necessariamente implica em diferentes etapas, como por exemplo: o diagnóstico, ele
carrega por si só, um estigma negativo, assustador e muito temido em nossa
sociedade; o tratamento é longo e pode implicar a amputação parcial ou total da
mama, somando a isso as conseqüentes terapias, com as quais nem sempre é fácil
conviver. Resumindo a caminhada, poder-se-ia acrescentar um terceiro aspecto que
é a aceitação da nova imagem de corpo, agora mutilado.
1
Instituto Nacional do Câncer (INCA), 2006.
20
Diante desse quadro, afloram, na mulher com câncer de mama, vários
sentimentos, e entre estes também se encontram o medo de um futuro incerto ou
instável e a angústia existencial.
A motivação para a pesquisa parte de vivências comunitárias nas quais a
mulher com câncer de mama, muitas vezes, não mais encontrava o seu espaço,
seja na família ou sociedade. A mulher mastectomizada, neste contexto cultural,
com facilidade também se auto-exclui. Além da vivência em meio a este público, o
que corroborou para a concretização da pesquisa foi a experiência pessoal do
desenvolvimento e processo de cura do câncer de mama. Muitas perguntas ficaram
sem respostas, porém, caminhos e possibilidades de apoio se apresentaram de
forma evidente.
Todos esses fatores contribuíram para realizar a pesquisa de campo com sete
mulheres mastectomizadas. As entrevistas aconteceram após ter colocado no papel
parte de meus sentimentos de minha história do câncer de mama. Um dos aspectos
relevantes constatados nas entrevistas, entre o público em questão, foi a
espiritualidade. A mesma foi apontada como uma das forças para continuar na luta
de sobrevivência ao câncer. Amar a vida, também em meio à angústia e dor, é parte
do processo de cura.
Para ordenar e desenvolver o conteúdo da presente dissertação, optamos
pela metodologia da tríplice mediação, tão conhecida no âmbito da teologia latino-
americana: a mediação analítica, a mediação hermenêutica e a mediação prática
2
.
A mediação analítica tem, neste trabalho, o objetivo de analisar a realidade
que envolve a pessoa com câncer de mama. Esta pessoa, porém, não pode ser um
mero objeto de estudo ou de assistência, mas ela tem a contribuir, como sujeito ativo
desse seu processo histórico, para a pesquisa. É deveras importante que a sua
“dor”, sua angústia seja ouvida. Assim sendo, na mediação analítica a teologia
precisa unir-se a outras ciências que poderão ajudar a conhecer o processo de
angústia ou detectar os mecanismos que marginalizam e/ou excluem mulheres que
sofreram amputações de seio ou lutam para se tornarem sobreviventes de câncer de
mama.
2
RAMOS REGIDOR, José. Vinte e Cinco Anos de Teologia da Libertação. In: Boff, Leonardo (org). A
Teologia da Libertação: Balanço e perspectivas. São Paulo: Ática, 1996, p. 17-95.
21
Neste contexto, a reflexão se a partir do fato de que vivemos em uma
sociedade que rotula, que exclui, que marginaliza o diferente. Entre tantos grupos
encontramos também a mulher mastectomizada. Inúmeros fatores podem ter
contribuído para essa realidade. Não é a intenção deste método “resolver” para a
mulher que se encontra nessa situação, o seu dilema. Porém, como dito, em
conjunto buscar alívio e transformar em esperança a angústia existencial. Isso não
significa necessariamente cura física em todos os casos, mas a certeza da presença
de alguém para dividir a dor ou a alegria.
A mediação hermenêutica propõe uma leitura desta realidade de sofrimento,
encontrada nas entrevistas, à luz do Evangelho, interpretado por Eugen
Drewermann e Paul Tillich a partir da teoria da Psicanálise. O objetivo é observar
como esses pensadores julgam essa realidade a partir dos conceitos Angústia
(Angst), finitude não dissociada de pecado, culpa, cura e salvação. Entre muitos
textos bíblicos, interpretados por Eugen Drewermann queremos refletir sobre a
passagem do Evangelho de Marcos cap.4. 35-41
3
. Esta passagem pode oferecer
uma analogia entre a angústia dos discípulos no barco e a angústia existencial de
quem passa por um câncer de mama.
A mediação prática tem como base a mediação analítica e a hermenêutica.
Conforme o autor, esse comprometimento com a análise da realidade e a
interpretação da mesma à luz do Evangelho, levam à ação (diaconia). A diaconia, ou
seja, a PRÁXIS, não pode agir sem o conhecimento das outras duas mediações,
procurando assim respostas de atuação coerentes com a realidade verificada e o
plano global de Deus tendo em vista toda a criação
4
. As mediações não devem ser
consideradas de forma isolada. Os vários aspectos citados devem ser integrados e
interligados. Importa olhar a realidade, iluminá-la com um sólido referencial teórico e
depreender o compromisso prático que daí decorre para os diversos atores sociais,
engajados em dignificar vidas, aliviar “dor” e assim contribuir para a esperança de
que ninguém precisa sofrer calado e ser ou permanecer marginalizado.
E por que o celebrar a vida a exemplo da mulher da dracma perdida. “Qual
é a mulher que, tendo dez dracmas, e se perder uma, não acende uma candeia,
3
ALMEIDA, J. Ferreira de. Bíblia Sagrada. Novo Testamento. Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Evangelho
de Marcos, cap. 4. 35-40, p.50.
4
RAMOS REGIDOR, José, 1996, p. 31-32.
22
varre a casa e a procura diligentemente até encontrá-la? E, tendo-a achado reúne as
amigas e vizinhas, dizendo: Alegrai-vos comigo, porque eu achei a dracma que eu
tinha perdido”
5
.
Ainda na leitura da realidade, sob a Luz do Evangelho, pretendemos apontar
para semelhanças dos termos saúde e salvação como um processo integrado. O ser
humano não pode ser fragmentado em necessidades estanques, mas deve ser visto
e considerado como um Ser inteiro. Neste ser integral a salvação, a espiritualidade
deve ser vista como inseparável das demais demandas que apresentamos como
humanos.
Com base na visão integral do ser humano pretendemos trazer uma
experiência concreta apresentada por Roser
6
, na qual se refere à espiritualidade
individual como um fator a ser considerado numa equipe de saúde interdisciplinar. O
artigo de Roser faz menção de que a Organização Mundial de Saúde (OMS)
acrescentou em 2002, um quarto pilar à sua definição de saúde, que é a
espiritualidade.
O portador do câncer tem uma função, um espaço importante nesse processo
de diagnóstico, tratamento e aceitação da nova imagem de corpo. Neste contexto,
não podemos esquecer ou ignorar o lugar da espiritualidade apontada como uma
parte igualmente importante.
A equipe interdisciplinar da saúde só pode se considerar completa se a
espiritualidade individual é considerada integrante do processo global. Ciência e
religião se complementam na cura e na busca de qualificar a vida,
independentemente qual seja a situação da pessoa. Conteúdos da pesquisa
bibliográfica e os passos da vivência constatados nas entrevistas não o
antagônicos entre si, mas somam na visão integral do ser humano.
Pretendemos ainda, mesmo que de forma sucinta, apontar para uma suposta
neutralidade do pesquisador na pesquisa qualitativa, a partir de Smeke
7
. A autora diz
que a pesquisadora, na pesquisa qualitativa, precisa refletir e observar o trabalho
5
ALMEIDA, J. Ferreira de. Bíblia Sagrada. Novo Testamento. Sociedade Bíblica do Brasil, 1969. Evangelho
de Lucas, cap.15.8-9, p. 96.
6
ROSER, Traugott. Aconselhamento diante da morte e suas implicações para a competência pastoral. In:
HOCH, Carlos Lothar, WONDRACEK, K.,H., Karin (orgs.). Bioética: avanços e dilemas numa ótica
interdisciplinar.o Leopoldo: Sinodal, 2006, p. 61-76.
7
SMEKE, Elisabeth L. M. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1., 1993 (http: www
sciolops.org/scielo. Acesso em: 02/08/2006).
23
como alguém que olha de fora, “como um observador privilegiado”, mas deverá, no
processo interno, assumir a presença da subjetividade. Baseado nessas afirmações,
o pesquisador qualitativo mantém a devida distância de seu objeto pesquisado e ao
mesmo tempo não precisa negar a sua experiência pessoal.
Assim sendo, a partir das vivências relatadas pelas mulheres entrevistadas
com CA de mama e ainda com a experiência pessoal da pesquisadora, a presente
pesquisa poderá contribuir para a sensibilização e o apoio a outras mulheres
portadoras de câncer de mama, levando a público parte de suas histórias, suas
lutas, suas conquistas.
As informações colhidas não podem servir para indivíduos, mas também
para comunidades cristãs, sendo incentivo para ocupar-se no sentido de prestar
solidariedade, diaconia cristã, como parte de sua missão junto ao ser humano em
sofrimento.
No capítulo três, constarão idéias, observações, constatações ou mesmo
conclusões, que partem da análise dos conteúdos pesquisados através das
entrevistas bem como da pesquisa bibliográfica. Desta forma, o material colhido nas
entrevistas não serve apenas para obter dados, mas para, a partir da dor, da
vivência, da ”superação da angústia existencial pontual”, servir de força e incentivo
para que as pessoas não desistam da luta.
1 PESQUISA SOCIAL DE CAMPO
1.1 Entrevista Narrativa Qualitativa
A entrevista qualitativa é uma fonte que fornece dados básicos para o
desenvolvimento da pesquisa. Da mesma forma ajuda a compreender a
compreender as relações entre os atores sociais e sua situação. “Nas ciências
sociais empíricas, a entrevista é uma metodologia de coleta de dados amplamente
empregada”
1
. Os autores citados apontam para o pressuposto que o mundo social
não é uma realidade sem problemas, mas estes, os problemas, nem sempre são
constituídos ou estabelecidos somente pelas pessoas inseridas no lugar em que
vivem. Assim sendo, a entrevista qualitativa visa compreender, com o maior número
de detalhes possível, as “crenças, atitudes, valores, motivações” das pessoas que
se encontram inseridas em contextos e em situações específicas. “A compreensão
dos mundos dos entrevistados e de grupos sociais específicos é a condição sine qua
non da entrevista qualitativa. Tal compreensão pode contribuir para um número de
diferentes empenhos na pesquisa
2
.
“A compreensão dos mundos da vida dos entrevistados requer um “tópico-
guia”, isto é, o entrevistador deve ter clareza teórica no que deseja alcançar com as
entrevistas qualitativas”. O pico-guia ou a entrevista semidirigida irá contribuir na
construção de um referencial “fácil e confortável” para uma discussão. O
entrevistador deve estar ciente da necessidade de usar uma linguagem simples,
familiar e adaptada ao entrevistado. Além disso, o entrevistador deve ser flexível em
relação ao tópico guia e se no decorrer do processo uma outra ênfase se
apresentar, deverá ter abertura para alterações. “A finalidade real da pesquisa
1
BAUER, Martin W., GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som. Um manual
prático. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 46-88.
2
BAUER, Martin W., GASKELL, George, 2003, p. 65.
25
qualitativa o é contar opiniões ou pessoas, mas ao contrário, explorar espectros
de opiniões, as diferentes representações sobre o assunto em questão”
3
.
Como o objetivo da pesquisa qualitativa é apresentar diferentes opiniões, ou
diferentes modos de representar o assunto em questão, os autores escrevem não
existir um “método específico para selecionar os entrevistados das investigações
qualitativas”. Recomendam que o pesquisador deva usar sua imaginação social e
científica, montando assim a “seleção dos representantes”
4
.
Em relação à escolha, apontam para dois aspectos: a) um número limitado
de versões da realidade. Mesmo que as “experiências possam parecer únicas ao
indivíduo”, às representações de certa forma, são resultados de processos da
realidade social, pois nem sempre surgem das mentes individuais, mas existem
aspectos que o compartilhados pelas demais pessoas entrevistadas; b) deve-se
considerar o tamanho das entrevistas. Os autores chamam atenção que a entrevista
qualitativa vai além da “seleção superficial de um número de citações ilustrativas”.
Alertam para algo mais, que chamam de “essencial”, isto é, que pressupõe que o
pesquisador deve “viver e sonhar” as entrevistas. O mesmo deve ser “capaz de
relembrar cada ambiente entrevistado” e de trazer à memória o tom emocional do
entrevistado. Portanto, a entrevista individual em profundidade (qualitativa) consiste
numa entrevista semi-estruturada com uma única pessoa respondente. O objetivo
principal é maximizar o espectro de opiniões e experiências com um pequeno
número de entrevistas
5
.
Um dos questionamentos com os quais me confrontei nesta pesquisa foi
manter consciente a relação entre a “paixão” por esta pesquisa, a partir da
experiência própria, e o cuidado de não perder a visão crítica da realidade
pesquisada em campo ou ainda, manter a devida distância da pesquisa bibliográfica
estudada e pesquisada para a finalidade em questão.
Em Cadernos de Saúde Pública, artigo de Smeke
6
, a autora chama atenção
de que a pesquisadora precisa refletir e observar o trabalho como alguém que olha
de fora,”como um observador privilegiado”, mas no processo interno assumir partido
para que os resultados possam servir para novas interações. A autora cita Gramsci
3
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p. 68.
4
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p.70.
5
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p.71.
6
SMEKE, Elisabeth L. M., 1993 (http: www.scielops.org/scielo. Acesso em: 02/08/2006).
26
(1977), com a seguinte afirmação: não existem nas ciências por excelência, um
método em si. Cada investigação científica deve criar um método adequado, uma
lógica própria cuja generalidade ou universalidade deve consistir em ser conforme o
objetivo”
7
.
Durante as entrevistas de campo ou mesmo na pesquisa bibliográfica, as
duas realidades apontadas por Smeke, observador privilegiado por fora e
comprometido com os conteúdos, se mantiveram presentes, sem que uma
interviesse na outra de forma a prejudicar os resultados. Smeke ainda cita algo bem
concreto e objetivo, quando aponta para Nunes (1978), que argumenta sobre a
questão da suspeita neutralidade com as seguintes palavras: “Nunes ao referir-se à
versão qualitativa da pesquisa sociológica, valoriza a explicitação das relações
interpessoais e sentimentais entre pesquisador e pesquisado, as quais não constam
nos manuais, mas que considera essenciais“
8
.
Com base nestas afirmações, de que o pesquisador mantenha a devida
distância de seu objeto pesquisado e que ao mesmo tempo não precise negar a sua
experiência pessoal, fortalecendo assim a concretização dos objetivos, a pesquisa
foi realizada.
Passaremos agora a destacar alguns pontos que consideramos relevantes, a
partir da demanda apresentada pelas mulheres mastectomizadas, para poder
acolher e entender as mulheres em sua “dore crise existencial. Não pretendemos
identificar cada aspecto relacionando individualmente com a fala das mulheres
entrevistadas. Citaremos as questões de forma geral. Todos os pontos aqui trazidos
têm a sua base nas entrevistas de campo, pesquisa bibliográfica e experiência
pessoal.
1.1.1 Introdução à entrevista qualitativa
A coleta de dados será obtida através de entrevistas narrativas semi-
estruturadas. A proposta de BAUER e GASKELL é que não existe um método
específico para a escolha das pessoas a serem entrevistadas. Os autores apontam
para o bom senso do pesquisador, sua criatividade, seu saber social e científico em
relação à escolha das pessoas respondentes nas entrevistas. Como observado
7
SMEKE, Elisabeth L. M., 1993, p. 6.
8
SMEKE, Elisabeth L. M., 1993, p. 6.
27
anteriormente neste contexto, o objetivo das entrevistas qualitativas é obter o
máximo de informações e experiências possíveis a partir de pessoas entrevistadas
em suas vivências de câncer.
Quanto ao número de pessoas, esse método requer um pequeno grupo.
Optamos por entrevistar até oito pessoas, na idade de 40-59 anos que sofreram um
câncer de mama. A escolha foi intencional, seguindo assim a proposta dos autores
em questão. Trata-se de pessoas conhecidas pela pesquisadora ou indicados por
terceiros. Além desse público apontado, foi feito um contato com um Núcleo da LIGA
FEMININA DE COMBATE AO CÂNCER. A instituição visitada acompanha, no
momento, várias centenas de pessoas com câncer. O acompanhamento consiste
em apoio financeiro, psicológico, encaminhamentos mais rápidos ao sistema público
ou privado de saúde, bem como grupos terapêuticos, como arte-terapia e outros. De
um dos grupos existentes neste núcleo, após contato estabelecido com participantes
do mesmo, algumas mulheres se apresentaram como voluntárias para responder as
entrevistas.
Todos os requisitos legais, quanto à preservação da identidade foram
devidamente observados. Um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido,
oferecendo segurança em relação ao sigilo da identidade, foi assinado por ambas as
partes.
1.1.2 A coleta de dados através de entrevistas narrativas semi-estruturadas.
O primeiro passo é produzir uma transcrição com boa qualidade que deve
conter todas as palavras faladas. O objetivo amplo, desta análise de dados, é buscar
no texto transcrito sentidos e compreensão. O pesquisador, no entanto, deve ir além
da “aceitação deste valor aparente” e buscar temas com conteúdos comuns e refletir
a respeito dos possíveis significados destes temas.
Na medida em que as transcrições são lidas e relidas, é preciso segurar em
papel as analogias que vêm à mente. Importante nesse processo é estar atento a
eventuais contradições que aparecem no texto obtido com as entrevistas. Os
autores apontam para um dado importante, a meu ver, que é a subjetividade do
pesquisador, quando dizem que a “análise não é um processo puramente
mecânico”. A mesma, a análise, depende de intuições criativas, que podem ocorrer
em momentos diferenciados ao refletir sobre a questão em pauta e não somente
28
quando debruçados sobre a entrevista descrita
9
. Assim acontecendo, os autores
recomendam voltar ao texto da entrevista, seja na gravação e/ou transcrição para
estar atento a um “novo olhar” contido nas entrevistas e/ou confirmar a busca
feita, reforçando a análise em questão.
1.1.3 Análise de dados
A análise de conteúdo é um exercício onde os dados obtidos pelas entrevistas
são categorizados conforme o objetivo da pesquisa. Os objetivos que a pesquisa
pretende, são descrever as vivências de uma espiritualidade contextualizada, isto é,
não apenas uma relação vertical com Deus, que significa uma força além da própria,
mas também uma relação horizontal com outros seres humanos. O apoio, o
incentivo pode servir para permanecer na conquista constante em qualificar e amar
a vida, mesmo em meio a tempestades. Neste contexto, a espiritualidade é um fator
a ser observado no processo integral, não como algo mágico, mas como parte de
um conjunto de recursos e fatores.
Na categorização dos dados obtidos nas entrevistas, está implícita a
metodologia da tríplice mediação. A analítica, a hermenêutica e a prática. Olhar a
realidade, no caso da pesquisa social de campo com mulheres que desenvolveram
um câncer de mama, iluminá-la à luz da palavra de Deus, com base na angústia
existencial, buscando a interpretação em Drewermann e Tillich, e estando atento a
ações solidárias que se apresentam como pistas para o desenvolvimento de outras
intervenções, ou seja, ações diaconais no dia-a-dia das pessoas em questão.
O desafio é reduzir a grande quantidade de material, destacando certos
aspectos que se repetem ou não, de acordo com o projeto da pesquisa
10
. O
resultado dessa categorização possibilita ver as relações entre os diferentes atores
das entrevistas. Assim sendo, é preciso considerar, que as pessoas em suas
entrevistas revelam o que pensam, sentem, o que se encontra em suas memórias,
seus planos, e algumas vezes dizem mais do que imaginavam revelar. Esse material
oferece diferentes possibilidades de leitura, devendo ser observados os objetivos da
pesquisa, apresentados anteriormente nesta introdução. Na organização de uma
9
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p. 85s.
10
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p. 237ss.
29
análise de conteúdo, os métodos não substituem a clareza da teoria e o problema
sólido no corpo
11
.
Com base na teoria de BAUER e GASKELL passaremos a destacar idéias,
palavras, frases, sejam elas explícitas ou implícitas, a partir do material obtido pelas
entrevistas. Trata-se de sete entrevistas com mulheres que sofreram câncer de
mama. As mulheres entrevistadas pertencem a situações bem diversas no que se
refere ao tempo em que lidam com o ncer, realidade social, estado civil,
escolaridade, credo religioso, situação emocional e outras diferenças. Para facilitar a
leitura da análise de conteúdo das entrevistas vamos identificar às pessoas de “Aa
“G”, sendo que o “H” representa a pesquisadora. Os números ligados às letras,
como A1 e/ou H1 e seguintes se dão a partir de uma pausa, mudança de enfoque e
ou intervenção por parte da pesquisadora. Cada letra é uma pseudo-identificação de
uma mulher entrevistada. As entrevistas todas aconteceram na região da Grande
Porto Alegre, nos meses de novembro de 2005 até maio de 2006, com mulheres
mastectomizadas. A proposta é apresentar os dados colhidos em duas categorias
que se referem ao objetivo da pesquisa, a qual voltamos a frisar, é a angústia
existencial na vivência do câncer de mama e a espiritualidade como um fator que
ajuda no enfrentamento da angústia a partir de uma visão integral do ser humano.
As mencionadas categorias são: 1) Os medos reais e a angústia existencial
em tempestades na vivência do câncer. 2) Eu não estou sozinha, Jesus está no
barco no qual navego.
1.2 Dados coletados
1.2.1 Os medos reais e a angústia existencial na vivência de câncer
A categoria “os medos reais e a angústia existencial na vivência de câncer” foi
dividida, com base nas entrevistas, em vários enfoques como apresentadas pelas
mulheres entrevistadas. Sob a expressão de “medos reais” aqui neste contexto se
tem em mente a possibilidade da doença do câncer voltar a se manifestar no mesmo
corpo onde a doença foi tratada. O tratamento também assusta. Ele é um
processo demorado e em muitos caso sofrido. No medo real está igualmente
incluído o medo de morrer tendo como antecipação o medo de sofrer. Os pontos em
11
BAUER, Martin, W., Gaskell, George, 2003, p. 189ss.
30
seguida arrolados são conteúdos que apareceram nas entrevistas sob a
manifestação de medo real e não imaginário. Passaremos a trazer a seguir as falas
em que o medo se expressa na detecção precoce do câncer e outras ações que
podem minimizar este medo real. Ou também não.
1.2.1.1 Exames de rotina como detecção precoce do câncer de mama
A consciência de que é preciso e possível detectar precocemente o câncer de
mama foi algo que despontou em primeira linha. Como resposta à solicitação de
contar algo sobre o seu câncer de mama, em várias entrevistas foi relatado que o
câncer foi descoberto nos exames de rotina. Uma atitude que visava à
responsabilidade de cuidado do corpo se tornou em pânico. Vejamos:
Eu procuro cuidar bem de minha saúde já algum tempo. Fazia exames
regulares e em uma das mamografias, em dezembro de 1998, fiquei
surpreso, chocado quando foi descoberto um nódulo. Fui imediatamente
encaminhada para um ginecologista, mastologista. O resultado real foi
positivo. Foi algo inesperado em minha vida. Mudou totalmente a minha
vida. Fiz o tratamento. Aprendi muito para a vida. (A1).
A grande expectativa pelos resultados dos exames e o “choque” pelo câncer
diagnosticado, aparecem de maneira muito forte no material levantado. Palavras
como: “surpresa, não imaginava que isso iria acontecer comigo, fiquei
decepcionada, foi um baque”. Mas também houve frases como essa: ”Todos nós
temos um câncer em s, quando s nos estressamos demais ele se manifesta”.
Mesmo cuidando do corpo, através de exames clínicos periódicos, o podemos
evitar que o ncer se instale no corpo da pessoa. A frase “todos nós temos um
câncer em nós”, acima citada, lembra da importância de que é preciso estar ciente
de como lidamos com o nosso corpo, com a nossa saúde física e emocional. Mesmo
assim, permanece a pergunta do POR QUE feita tantas vezes nas entrevistas.
1.2.1.2 A angústia que o câncer desencadeia na humanidade em geral e em
especial nas pessoas que sofrem esta doença
Uma das questões que apareceu sempre de novo foi a manifestação de
angústia diante da notícia do câncer. Frases como esta e outras apontam para esse
sentimento. Vejamos:
O meu primeiro pensamento foi que a minha vida estava no fim. Como me
pegou realmente de surpresa. Eu achava que iria morrer. Foi interessante
na minha mente a vida passou como um filme de trás pra frente. Olhei a
minha vida e pensei: só isso? É, a minha vida terminou... . Eu fui para casa
31
desesperada e a primeira coisa que fiz, foi me ajoelhar abri a bíblia e Deus
falou para mim de uma maneira muito especial. (A2).
A angústia e a revolta estão muito inter-relacionadas. O câncer parece muito
ameaçador para a vida. Está relacionado com o sentido da vida, quando se
pergunta: “A minha vida é isso”. O “câncer” o estava no projeto, “filme” de
minha vida. Além disso, o câncer está relacionado com a angústia e o sofrimento
das pessoas que vivem na mesma família (o envolvimento e o sofrimento de
familiares, apresentaremos num item posterior).
Eu me pergunto por que as pessoas precisam sofrer tanto com essa
doença? A minha relação com Deus foi muito tumultuada. Eu nunca
aceitava que tivesse algum câncer. Faz pouco tempo que fiz as pazes com
Deus. Minha mãe tinha câncer. Meu pai se tornou alcoólatra. Eu convivi
com ele e sofri muito nas mãos dele. Eu não aceitava que Deus fizesse isso
comigo. Lutei muito com isso e pouco tempo atrás que fiz as pazes
com Deus. E agora um novo choque... (D8-10).
A dor, a angústia e a revolta não se restringem ao âmbito familiar. Ela é
extensiva ao convívio com outras pessoas. Isso aparece na fala acima de D8-10)
mas aparece ainda mais forte na fala que segue. A dor da outra pessoa se torna
também a nossa dor. A angústia existencial nos lembra a nossa própria finitude. O
câncer é uma doença que ainda assusta muito a humanidade.
de pensar que via pessoas com a mesma doença que eu tinha,
morrendo, mexeu muito, muito, muito com os meus nervos. Das sete que
baixaram comigo sobraram três comigo. Uma colega de quarto, muito
querida, tinha 57 anos e uma filha de 28 anos. Ela trabalhou até ganhar a
doença. Então fez a quimioterapia e nada adiantou. Foi internada, deu uma
febre e morreu. (E2).
No artigo “Câncer de mama: encontro solitário”
12
, a autora cita Bland e
Copeland (1994), que apontam para cinco categorias que a mulher vivencia na
descoberta do câncer de mama. Passarei a citá-las:
1. Negação: quando a mulher rejeita aceitar a gravidade do caso e evita
discutir o problema. 2. Espírito de luta: quando a mulher apresenta uma
conduta positiva, esperançosa, solicitando todas as informações possíveis.
3. Aceitação estóica: quando a mulher recebe com tranqüilidade e frieza o
diagnóstico. 4. Aceitação ansiosa/deprimida: quando as mulheres reagem
com excessiva ansiedade ou depressão, vendo todos os resultados e
informações com pessimismo. 5. Desamparo/desespero: quando a mulher
o futuro com extremo pessimismo e sofre considerável disfunção
social.
13
12
COBELLINI, Valéria Lamb. Revista Gaúcha de Enfermagem. Porto Alegre, v. 22, n. 1, 2001. p. 50.
13
COBELLINI, Valéria Lamb, 2001, p. 50.
32
As falas acima descritas, das mulheres entrevistadas, apresentam de forma
direta ou indireta as categorias citadas por Copeland. O momento mais crucial foi
aquele ligado ao diagnóstico. Mas também é possível traçar semelhanças com os
estágios de Kuebler-Ross, que apresenta passos pelos quais passam pessoas que
se encontram em crises existenciais. Neste momento apenas queremos citá-los:
Negação; Raiva; Barganha; Depressão e Aceitação. Mesmo que seja por uma outra
ótica, visão, ou ciência, existem termos que representam as mesmas características.
Negar a realidade é semelhante em qualquer crise. A aceitação pode ser idêntica ao
espírito de luta. A depressão/desespero se iguala à depressão.
No capítulo dois, na reflexão sobre angústia em Tillich e angústia e culpa em
Drewermann, pretendemos voltar ao assunto, apresentando, quem sabe, pistas para
a superação desta angústia, mesmo que seja de forma pontual, mas também
existencial. Não pretendemos aprofundar essa temática nesse momento.
1.2.1.3 A importância de informações precisas sobre o câncer e sua cura
Um dos aspectos verbalizados por várias mulheres entrevistadas, foi a
necessidade de estar informada sobre a doença do câncer após receber o
diagnóstico. Conhecimentos, a respeito do próprio corpo, que antes não tinham
importância, e que não foram considerados como prioritários, agora se tornaram
indispensáveis. Para poder “contribuir” na cura da doença é preciso saber mais
sobre a mesma. A4 se pronuncia com as seguintes palavras:
O que me ajudou foram as informações a respeito do câncer. Passei a ler
muito e vi que era muito importante ter objetivos, metas a curto, médio e
longo prazo. Procurei seguir esquemas. E isso procuro passar para
pessoas: enfrentar tudo com ânimo e coragem. Tudo isso ajudou muito a
superar a doença. (A4).
A mesma aponta igualmente para a necessidade de ser autodidata, buscando
clarear as dúvidas que se tem a respeito do próprio câncer. Mais uma vez veio à
tona o cuidado do corpo, seja através de uma alimentação saudável, evitar stress,
planejar o futuro da vida. Ter perspectivas. Pode ser que a causa da finitude seja de
outra natureza, por outra razão, como pelo processo natural do envelhecimento e
não pelo câncer. Em outra entrevista foi apontado para o valor da verdade trazida
pelos profissionais da saúde.
Eu acho que o médico tinha razão. Ele o quis consolar, mas
conscientizar. O que é muito importante é a verdade. Desde o início saber a
33
verdade. É importante que os médicos expliquem as coisas para a gente
assim como elas são. Assim a gente pode confiar na equipe de saúde. É
indispensável para a cura do câncer saber o que se passa com a gente.
Também saber: uma vez câncer sempre câncer. O que para mim ainda foi
importante saber é que tipo de ncer eu tenho. Pode ser fulminante, pode
durar meses, pode ser anos. Preciso saber o que me resta da vida. (B14).
A fala sobre desejar estar informada a respeito do que se passa com a
paciente tem sua razão de ser. A dúvida cria paranóias e parece não contribuir para
cura de quem deseja estar informada a respeito do estado de sua doença A
confiança na equipe de saúde é algo indispensável para a cura do câncer ou de
qualquer outra doença que seja. A pessoa é que tem o câncer em seu corpo e por
esse e outros motivos é necessário saber o que se passa pelo e com o mesmo. Com
isso não se diz que a verdade pode ser dita de qualquer forma em qualquer
momento. A consciência que “uma vez câncer sempre câncer” é um fator que pode
ajudar no cuidado do corpo, seja através da equipe de saúde, seja através de uma
prevenção continuada a partir da pessoa com câncer.
1.2.1.4 Quimioterapia
O tratamento quimioterápico foi relatado ser mais agressivo ao corpo do que
parece ser visto de fora, ou seja, antes de passar pelo processo. A fala nas
entrevistas, como resposta à pergunta se houve algum momento no processo que
poderia ser considerado o mais sofrido, a quimioterapia foi apontada, pela maioria
das pessoas entrevistadas, como o momento mais difícil a ser superado.
Trabalhar as sessões de quimioterapia foi algo muito difícil
.
É uma situação
muito difícil quando não se tem condições de sentar, de deitar, de caminhar,
ou você tem fome e não consegue comer, ou você come e fica com dor de
estômago. Assim todas essas coisas, esses “contras” durante o tratamento
foi muito difícil, mas consegui de uma forma muito positiva passar por isso.
(B3).
Não se sabe como lidar com o desconforto que o corpo manifesta. Os
alimentos parecem um peso no estômago. Algo desconhecido passa por este corpo
e a paciente da doença de câncer precisa conviver com isso. Muito difícil se torna a
caminhada se a pessoa em questão está desinformada do processo global. “O
momento mais difícil em todo o processo do câncer para mim foi a quimioterapia de
mama com as internações no hospital” (E2). O mal-estar generalizado se soma à
resistência imunológica baixa. Na realidade, os pacientes de câncer que precisam se
submeter à quimioterapia, não sabem exatamente o que o medicamento aplicado
34
causa em seu corpo. As informações, se muito, referem-se aos sintomas desse
tratamento, conforme constatado nas entrevistas.
1.2.1.5 Como vou reagir se o câncer reincidir? Chorar é permitido? Não gosto
de ser consolada
Estas palavras Uma vez câncer, sempre câncer” (B14), foram pronunciadas
por várias mulheres entrevistadas. O conteúdo desta frase apareceu de forma direta
ou indireta, ou seja, de maneira explícita e implícita. Nela está contido o medo real
de que o câncer possa reincidir, e tudo vai começar do início: diagnóstico,
tratamento, quimioterapia e a luta para sobreviver o câncer. Mas não é isso,
também a angústia existencial de que o câncer possa levar à morte. E ainda, o
que se encontra atrás das palavras: Será que posso chorar a minha dor? Se não sei
se posso chorar a minha dor, podemos pressupor que existe culpa por ter
desenvolvido um câncer. Voltamos a observar como o sofrimento por ter um câncer
e a morte caminham de mãos dadas. Aqui aparece mais uma vez a idéia de que, ao
saber do diagnóstico, a vida passa como um filme: de trás para frente, de frente para
trás e do momento para o fim. O dilema aparece na fala a seguir:
Não sei o que me resta da vida ainda. Todo o tempo que me sobra eu vejo
como uma “sobremesa”. Vivi até hoje de forma rica, não em dinheiro, mas
uma vida de oportunidades de trabalho. Viver com objetivos e expectativas.
Às vezes muito difíceis. A gente já poderia ter morrido muito tempo... .
Tive muitos acidentes, mas os dias que estão pela frente, no fundo eles
ajudam a gente a se preparar, se organizar. Eu vejo assim que a morte é a
única coisa certa que a gente tem na vida. Eu acho a morte em si nem seria
o problema, mas o sofrimento que vem antes dela. (B14).
As palavras falam por si só. Elas apontam para o dilema “é ter que morrer”, a
inevitável finitude, e o sofrimento que o câncer eventualmente pode acarretar como
conseqüência da doença e a antecipação do final da vida. Quando “C” relata que
está “dividida” entre o sentimento da cura do ncer e reincidência do mesmo, veja
como se expressa:
Ao passar pela doença do câncer a gente começa a lembrar dos amigos.
Lembrei de L. Ela também morreu de câncer. Tinha carcinoma e depois de
oito anos apareceu no pulmão e nos ossos. Comecei pensar: não estou livre
disso. E pensei assim: se eu tiver mais uma vez um câncer, ai, ai. Não sei
como vou reagir. Aha... , é a minha história e a história de minhas amigas.
Vou pensar nas pessoas que começou assim, e que continua assim e
acaba morrendo cedo. Então eu penso, eu não sei como vou reagir, eu
acho que não vai ser desespero. Agora estou pedindo a Deus para me
preservar. Existe a possibilidade de uma reincidência. Então não sei como
vou reagir. Provavelmente com mais medo. (C4).
35
Nas falas de B e C aparece o medo real do câncer reincidir. A dor da cura foi
sentida
como muito intensa e agora se instalam dúvidas, questionamentos sem
respostas a respeito de um futuro incerto, onde a ameaça de o câncer poder
reincidir parece bater na “porta com freqüência podendo levar ao pânico. As
analogias com a história de pessoas amigas, que passaram pelo mesmo processo e
morreram, estão fortemente presentes e se manifestam como ameaça, levando ao
pânico. Este pânico se apresenta nas palavras “ai, ai não sei como vou reagir.
Provavelmente com mais medo“.
A pergunta que surge neste momento é como viver o presente da cura do
câncer, ou também se conscientizar da expressão: “sobreviventes de câncer de
mama” da constante ameaça ou fobia de que o câncer possa reincidir. Em C7 ainda
se agrega um outro fator que é uma suposta “culpa” por ter desenvolvido um câncer
quando diz: Eu acho que tive muitas fases na vida que contribuíram para que isso
acontecesse. O câncer não deixa de ser auto-destrutivo. Então, com certeza, tem a
ver com a maneira como a gente vive” (C7).
Mas, no mesmo momento, a entrevistada parece estar justificando “a auto-
participação” no desenvolvimento do câncer quando diz: Agora eu não culpo
ninguém. Nem a Deus e nem a ninguém por ter câncer ou por ter tido câncer”.
Creio que no “ninguém” a entrevistada pode estar incluindo a si própria,
contradizendo as palavras pouco antes pronunciadas, alegando que também
depende da forma de como vivemos para adquirir ou não o câncer. O que a
entrevistada quis dizer: “por eu ter ncer”. Isso, após vários anos de tratamento e
sem aparentes sintomas descobertos pelos exames periódicos. Pelo visto não
parece ter certeza do presente diagnóstico e permanece entre a dúvida e a certeza,
quem sabe até de forma inconsciente, em estar recuperada e se considerar
sobrevivente de câncer de mama ou “ter câncer”. Aqui se apresenta o ser humano
como inteiro e o inconsciente faz parte do ser humano integral. Não podemos
ignorar o lugar que o inconsciente ocupa na vida da pessoa.
A questão entre a dúvida e a certeza, também no que se refere à “fé” no Deus
da Vida, que ama e protege, abordaremos em outro momento. Aqui se confirma a
fala de “C” quanto ao que Tillich aborda no livro “Dinâmica da Fé” (1956). Parece
que as palavras: “Não gosto de ser consolada, pronunciadas por “C”, podem ter a
ver com uma suposta culpa e com a “crença” de que “consolo barato” não fecham
36
com fatos reais e/ou imaginários, porém, mesmo assim ameaçadores, dos quais
não é tão fácil se libertar de forma mágica. Consolo barato pode ser visto e
percebido como esta forma mágica. Não podemos esquecer que a angústia
existencial é, neste caso, uma aliada ao medo real.
A entrevistada em questão ainda nos lembra que é preciso ter certo cuidado
de não falar de “qualquer lugar”, ou seja, sem colocar-se no lugar de quem estamos
consolando. Veja como se expressa: Falar sobre o câncer eu não teria problema.
Eu poderia dizer: eu tive câncer, passei por isso e foi assim, assim, assim e
assim. Esta fala pode ter relação com as palavras: “eu não gosto de ser consolada”.
Quem já passou pelo mesmo processo tem certa “autoridade” para dizer como pode
ser ou como foi. Faz referência, de forma indireta, que para falar sobre a vivência de
um câncer, é necessário falar a partir de sentimentos, ou de experiência própria. A
boa vontade nem sempre é o suficiente por parte de quem deseja “consolar”. Ser
empático é o caminho. É preciso saber ouvir, e saber sentir o que se passa com a
pessoa em questão.
1.2.1.6 Câncer na história familiar: uma constante ameaça.
Nas mulheres entrevistadas a maioria apresentou histórias de câncer na
família. Isso apareceu na verbalização, nas entrelinhas e na motivação em realizar
os exames clínicos periódicos para detectar precocemente o câncer. A história de
câncer na família foi sentida como uma constante ameaça, mesmo que de forma
velada.
Minha mãe morreu de câncer. Parece que estou vendo o filme de novo:
minha mãe morrer de câncer. Eu tinha 15 anos, ela tinha 43. Eu hoje tenho
49 anos. Parece que estou vendo tudo de novo o que aconteceu na época.
Uma coisa que eu não queria que acontecesse, mas aconteceu. Sempre
pergunto pelo porquê de tudo isso? Ninguém me dá uma resposta. Têm
muitos fatores que influenciam. O câncer mata muita gente. Por que tudo
isso? (Choro). Não consigo acreditar. Parece que a vida não tem mais
graça. Fico com aquele medo. Será que vou ficar boa? Não vou? Está
sendo difícil. Não sou mais a mesma pessoa. O câncer derruba a gente.
(D7).
Na fala da entrevistada não é difícil constatar que a morte da mãe com
câncer, quando a filha tinha 15 anos, marcou profundamente a filha. Quando faz
menção que vê o filme passar novamente, dá para perceber que o acontecimento da
morte da mãe acompanha a filha, e, quem sabe, numa constante ameaça e medo de
que a história pudesse se repetir com ela. As palavras: “Eu não queria que isso
37
acontecesse, mas aconteceu”, indicam a ameaça velada que pode estar atrás
destas palavras. E o mesmo filme se repete.
Em outra entrevista a primeira fala foi a seguinte:
Minha mãe morreu de câncer. Ela falou para o meu pai quando estava
no fim. Depois ela faleceu e a gente pensou que deveria fazer os exames
porque a gente também poderia ter. Aos 40 anos eu tinha um nódulo e eu
achei que não era nada, mas foi aumentando e quando fui fazer exames
constatei, através de uma mamografia, que era câncer. (F1).
A mãe só falou ao pai quando estava no fim da vida. A filha pensou que
poderia ter câncer como a mãe, mas mesmo com o nódulo na mama achou que não
seria nada. Não se repete aqui a história da mãe? A história de câncer de F acabou
se alastrando para amputação das duas mamas, além de ter desenvolvido um
câncer no pulmão e um tumor maligno no cérebro. A mesma repetiu o tratamento
com todas as terapias e perdas significativas e não desistiu de lutar.
A entrevistada E relatou que uma irmã sua morreu aos 35 anos de câncer e
um irmão seu, com tumor de cérebro. Casos pregressos de câncer em familiares
diretos, como pais ou irmãos, são ainda uma ameaça mais concreta do que
estatísticas de pessoas não ligadas a familiares. Ao fazer o diagnóstico, um dos
questionamentos que a equipe de saúde faz é: existem membros da família que
desenvolveram um câncer e em que grau de parentesco?
1.2.1.6.1 Apoio por parte de familiares diretos
A relação entre familiares diretos como cônjuges, filhos, irmãos, pais
apareceu nas entrevistas em forma de apoio e de conflito. Os familiares foram
apontados por todas as pessoas entrevistadas como sendo o relacionamento mais
íntimo e de maior importância. Ao saber do diagnóstico de seu câncer, todas
escolheram os familiares como os primeiros a serem informados do fato. Trata-se
nestes casos de vínculos de confiança bem estabelecidos.
A primeira pessoa com quem eu quis compartilhar foi o meu marido. Eu não
lembrava de mais ninguém, em primeira mão, do que o meu marido.
Também tinha vontade de compartilhar com os meus filhos. Nunca tive
vontade de esconder dos filhos. Nunca senti vontade de esconder de
ninguém. (C3).
Com certeza é deveras importante que existam pessoas que se dispõem a
ouvir para aliviar a dor. Quando falamos e alguém nos escuta atentamente é
também o momento em que podemos nos ouvir a nós mesmos, e assim estar
38
processando a dor. Se a família puder ser este suporte, como desejado na fala de C,
isso pode significar muito para aliviar o primeiro impacto do diagnóstico. Este
suporte tem várias áreas que significam enormes forças, como acompanhar no
tratamento de saúde, na vivência espiritual, no apoio psicológico ou outras.
No exemplo relatado pela entrevistada E, é possível sentir um pouco do que
possa ter significado não estar sozinha ao receber o diagnóstico. No momento da
entrevista haviam passado sete anos da descoberta do câncer. Se a paciente ainda
se lembra de detalhes, como apresentado a seguir, podemos imaginar o quanto foi
importante para ela a presença do marido neste momento. Vejamos:
Então eu estava com a mamografia pronta e deveria voltar ao médico. Meu
marido quis ir junto e então fomos. O médico pediu para sentar no sofá e
ele disse: é coisa que a gente nunca espera que aconteça na família da
gente, mas é câncer que tu tens mesmo. Daí eu chorei. Meu marido chorou.
O médico disse: vocês podem chorar... . Então ele explicou o que deveria
se feito (E2) (Trata-se de um atendimento de saúde pública).
1.2.1.6.2 Conflitos familiares vivenciados por causa do câncer de mama
Não poderíamos deixar de abordar, ao lado do apoio dos familiares, também
os conflitos que foram desencadeados durante o tratamento do câncer e
manifestados nas entrevistas.
As minhas filhas foram comigo e souberam do diagnóstico na hora. Elas
sempre ficaram do meu lado. Quem ficou muito indiferente foi o meu
marido. Parece que não caiu a ficha ainda. Eu fiquei muito triste com a
indiferença de meu marido. Parece que ele não captou a mensagem. Ou,
parece que foge da sorte. Não está neme eu estou enfrentando tudo isso
sozinha. As minhas filhas estão aí e me dão muita força, mas elas também
estão muito assustadas. (D2).
Em seu artigo, Corbellini afirma que uma mulher, ao vivenciar que descobre
um câncer de mama, enfrenta dois momentos: O primeiro é a confirmação de que
está com essa doença e terá que enfrentá-la. O segundo é pensar em como dar a
notícia para as pessoas mais próximas e como elas vão reagir”
14
.
Na fala de D2 é possível observar que os familiares diretos também sofrem
com a doença do ncer de seus entes queridos. A forma de reagir difere entre
sentir-se muito assustado e a negação da doença através da queixa de que o
marido se mostra indiferente ao caso. Essa situação deixa a paciente muito triste, o
14
COBELLINI, Valéria Lamb, 2001, p. 52ss.
39
que ainda é uma carga a mais a ser carregada e processada. A mesma paciente
ainda apresenta detalhes dessa indiferença. Vejamos como relata:
Ele foge. Vai ao computador. Olha TV. Sempre fugindo. Cada vez que eu
quero tocar no assunto ele acha que estou fazendo teatro, que não é o
crítico assim e que eu estou exagerando e diz: isso vai passar. Não te faz
de vítima. Eu esperava mais de minha família. Isso me chateia muito e fico
triste. (D4).
Como entender e sentir essa realidade? Um aspecto que não pode ser
esquecido, neste contexto, é que a família também se angustia com a descoberta de
câncer em um familiar. A família nem sempre se sente preparada para corresponder
a tudo o que se espera dela. O medo real do sofrimento e a angústia de que o
câncer poderá levar à morte, passa também pelos familiares. O fato de que os
familiares nem sempre conseguem acolher ou apoiar, e sabemos que existem
muitas áreas em que esta força é necessária, se concretiza na fala de D4. Chorar
junto é também uma manifestação de apoio, pois pode simbolizar que a dor está
sendo entendida. O que parece como decepção na fala de D, é a indiferença que ela
sente. Esta, no entanto, é o que se torna possível, por parte do marido, e pode ser
considerado como defesa e auto-proteção.
Assim sendo, poderíamos arriscar em dizer, que após ter feito estas
considerações, que a doença do familiar com ncer também se torna a angústia
existencial de familiares. Esta lembra a própria finitude e ela, muitas vezes, pode
assustar muito. A equipe de saúde tem como foco principal o paciente. Mas
constatamos que os familiares também precisam de suporte e orientação. Via de
regra se espera mais dos familiares do que eles de fato podem dar. Para eles a
carga se torna maior do que eles conseguem suportar.
A pergunta que podemos fazer nesse contexto é: quem acaba sendo o esteio
ou suporte na família? Não pode também significar que a paciente com câncer
precisa ainda dar força aos que vivem ao seu redor? Veja como se expressa E:
Eu tinha instituto e trabalhava em casa. Além disso, eu tinha todo o serviço
a fazer. Ninguém me ajudava. Todos pensavam que eu não fazia nada.
Ninguém tirava a louça da mesa, ficava tudo para mim. Daí cheguei a um
desespero total. Quando a médica falou que eu tinha leucemia e o que
poderia acontecer comigo, então o meu marido sempre ficava comigo. Eu
dizia: tu não podes faltar no serviço, não podes faltar ao serviço. Meu
marido perdeu o emprego, entrou em depressão. E perdeu o carinho por
mim (E7).
40
1.2.1.7 Como enfrentar o luto da perda da mama e do cabelo: vou ser uma
mulher mutilada?
Em várias entrevistas, a perda de mamas, por mastectomia, e o cabelo, por
quimioterapia, foram vistas e sentidas como muito significativas. O corpo da mulher,
na cultura ocidental, ocupa um valor de destaque na sociedade. Para muitas
mulheres este saber é empírico. Nesta reflexão não queremos entrar no mérito da
questão, mas apontar com que peso estas perdas são sentidas e trazidas por
mulheres entrevistadas. Além do diagnóstico, tratamento, angústias e medos reais
as perdas “produziram” um luto que leva o seu devido tempo para ser administrado
ou processado para então chegar à superação do mesmo. Passaremos a citar
algumas falas a respeito.
Eu perdi o meu cabelo todo. O pior momento de toda a minha história de
câncer foi quando eu estava totalmente careca. Quando os cabelos
começaram a cair eu fui ao cabeleireiro e pedi para passar a máguina. O
cabeleireiro cortava um pedaço e perguntava: posso cortar mais? Eu dizia:
corta tudo. Quando se passa a máguina ainda sobram uns pontinhos pretos,
e eu até me achava bonita, e quando aquilo tudo caiu foi como se fosse a
pele de rosto, da testa. Aí me deu uma coisa muito ruim. Mas daí quando eu
não me quis enxergar assim eu colocava uma peruca. (C1).
Normalmente o ser diferente é que faz a diferença” e causa a estranheza. O
cabelo que caiu identifica que a pessoa desenvolveu um câncer. É interessante que
os sentimentos podem mudar no processo do tratamento. Numa fala anterior C
disse: Eu não queria esconder do meu marido, nem dos filhos e de ninguém que eu
estava com ncer. Eu não tinha vergonha que eu tinha um câncer”. A intenção
muitas vezes é outra do que a realidade vem mostrar ou desencadear. As palavras
“sentir-se mal sem cabelos” pode denotar que me sinto traída e todos vão saber que
desenvolvi um câncer.
Uma outra fala em relação à perda do cabelo encontramos nas seguintes
palavras: Foi na última radioterapia que a equipe médica me falou que o meu
cabelo não voltaria mais. havia perdido o cabelo três vezes. A tudo isso eu
sobrevivi”. A palavra: sobrevivi pode ser entendida de várias formas. Queremos
deixar a expressão falar por si. Olhando de fora é uma forma de ver. Estando no
processo é um outro lugar que ocupamos neste contexto e reflexão.
Em relação à perda da mama desejamos trazer os seguintes sentimentos,
expressos em palavras, como seguem:
41
O momento mais difícil para mim, durante o tratamento do câncer de mama
foi tirar a mama. Eu não queria aceitar tirar a mama. Se fosse por mim eu
ainda estaria com a mama hoje. O meu próprio marido o me deu apoio.
Fazia três meses que eu havia tirado a mama e o que derrubou quando o
meu marido me disse: devarde não é que tu estás trouxa assim desse jeito.
Ele olhou bem no fundo dos meus olhos e me disse isso. A senhora sabe
que eu nunca mais me esqueci disso? Daí mesmo eu cai de verdade. O
meu próprio marido me disser isso. (G4-5).
Cada pessoa tem a sua sensibilidade específica e áreas onde pode se sentir
mais vulnerável. Para algumas pessoas o luto mais forte foi a perda do cabelo, para
outras a mastectomia. De fora não para sentir o que se passou com G e C, mas
dá, quem sabe, para ser empático e acompanhar com o devido respeito, palavras
como estas: “Eu vou lhe garantir. Foi um fracasso. A senhora sabe a gente é
vaidosa. Daí eu pensava: uma mama normal e outra um buraco”.
Queremos ainda trazer um último fato relatado nas entrevistas. A
possibilidade de reconstruir a mama perdida. Sabemos que nem sempre isso
acontece na medicina, com todos os avanços tecnológicos, mas aqui foi o caso. Das
sete mulheres entrevistadas, uma apresentou essa realidade:
Depois das quimioterapias eu fiz a reconstrução da mama amputada. Eu
paguei particular. Deu rejeição com infecção generalizada. Todos da equipe
médica ficaram com medo, porque descolou todo o enxerto da mama.
Fiquei três semanas no hospital para me recuperar da infecção e rejeição
da mama. Eu não aceitava essa rejeição. Dormi e chorava. Pensei que não
iria me recuperar dessa. (E6).
Reconstruir a mama em forma de plástica é um direito da paciente. No caso
de E essa atitude, em vez de se tornar prazerosa, ela se tornou um fardo a mais e
uma ameaça de morte. E foi uma paciente que desenvolveu um ncer de mama,
com retirada total, e logo em seguida fez uma leucemia. Com a leucemia a
resistência imunológica deve ter se tornado muito baixa, o que pode ter dado
caminho aberto para a infecção generalizada da qual relata. Voltando ao apoio da
família, a entrevistada termina uma fala anterior dizendo: Meu marido perdeu o
emprego, entrou em depressão e perdeu o carinho para comigo”. Lembramos que
foi o marido de E que quis ir junto para receber o resultado da mamografia, e que
chorou junto com a esposa, na frente do médico, ao saber do diagnóstico. Este, o
médico, autorizou ao casal poder chorar a sua dor em público. A mulher com câncer,
além de ter que viver com a sua própria doença e seu sofrimento, também convive
com o sofrimento de seus familiares e o que, sem dúvida, torna o tratamento ainda
mais penoso para ela. Como essa realidade afetou toda a família para entender
42
pelas poucas palavras relatadas por E. Um questionamento que podemos levantar
junto a essa realidade é: quem sobra para dar apoio para quem nesta família? Qual
é o papel da sociedade ou da comunidade cristã nestes casos?
1.2.2 Eu não estou sozinha. Jesus está no barco comigo: a espiritualidade
Os aspectos que seguem integram o segundo bloco da categorização a partir
do conteúdo colhido nas entrevistas. Referem-se a possíveis passos que podem
ajudar na superação da dor da descoberta da doença de câncer e que foram
experimentados pelas mulheres entrevistadas. Passaremos a traze-los, como segue.
1.2.2.1 O que ajuda a superar a crise na doença do câncer?
O primeiro item na categorização da pesquisa de campo foi levantar crises e
como estas foram manifestadas por mulheres entrevistadas. O enfoque que
escolhemos foi apresentar os medos reais e a angústia existencial, bem como a
conseqüência dessa realidade na vivência do diagnóstico e tratamento de câncer de
mama. Esse conteúdo está trazido sob o título: os medos reais e a angústia
existencial em tempestades na vivência de câncer.
Como dito na introdução deste capítulo uma segunda categoria é buscar,
através do material das entrevistas, pistas que podem ajudar e que foram
experimentadas pelas mulheres entrevistadas, a superar a crise desencadeada na
doença do câncer. Qual é o lugar da fé, da confiança numa força além da própria,
que pode ser vital na esperança de continuar vivendo, apesar da doença do câncer.
“Todos nós, ao descobrir que estamos doentes, temos participação ativa na
recuperação da saúde. Através de nossas atitudes diante da vida, dos nossos
sentimentos, das nossas convicções de cura”
15
. As autoras trazem à reflexão que,
quando a pessoa com câncer “compreende que depende muito mais dela o resgate
de sua saúde, estará dando o primeiro passo importante na recuperação do seu
bem-estar”
16
.
A partir desta compreensão existem vários caminhos que podem ser trilhados.
Caminhos estes, que nem sempre se apresentam da mesma maneira. pessoas
que “lutam” em forma de desafio, como por exemplo: “vou sair dessa”; para outras
15
CORBELLINI, Valéria Lamb, COMIOTTO, Mirian Sirley. Câncer de Mama: da Solidão da Descoberta à
Construção de um Novo Caminho. O Mundo da Saúde - São Paulo, v. 24, n. 6, 2000, p. 510.
16
CORBELLINI, Valéria Lamb, COMIOTTO, Mirian Sirley, 2000, p. 510.
43
os caminhos que escolhem podem ser de confiança, pois na vontade de viver, a dor
e o sofrimento fazem parte do processo de vida. Exemplo: “Deus está onde a
gente está sofrendo e Deus está lá onde a gente está alegre”.
O ser humano como ser integral, precisa sair em busca e cuidar para que
todas as suas necessidades sejam atendidas, ou seja, as necessidades bio-psico-
sociais, mas também a espiritual. Nessa “visão de ser humano” o resgate da
espiritualidade, a confiança no Deus que a vida, que a protege, a acolhe ou
“recolhe” tem o seu lugar fundamental. Passaremos a citar como essa área na vida
das mulheres entrevistadas foi vivenciada e verbalizada. Trata-se de uma cristã,
que tem a sua base no trino Deus. O Deus criador, o Deus salvador em Jesus Cristo,
e o Deus Espírito Santo.
“O que me ajudou muito foi principalmente a minha fé” (A1). A mesma relata
que, ao saber do diagnóstico, entrou em desespero e a primeira coisa que fez foi ir
para casa e buscar um lugar para poder estar sozinha com Deus. Ao se ajoelhar, em
atitude de humildade diante de Deus, encontrou o alívio. A vida continua, foi a
ênfase da esperança. É preciso continuar vivendo e planejar o futuro na confiança
que Deus vai estar na caminhada. Deus também age através de outras pessoas que
deram mimo e marcaram presença positiva. Vejamos: “Quem me ajudou muito foi
uma massoterapeuta. Ela pertencia à Pastoral de Saúde da igreja Católica. Ela me
explicou como poderia cuidar melhor de minha saúde. Isso me deu ânimo e forças
para iniciar o tratamento. eu vi que poderia ter esperança. É preciso ir à luta. E foi
isso o que eu fiz” (A2).
Inúmeras e repetidas vezes o apoio e a força aparecem nas entrevistas
realizadas através de uma espiritualidade contextualizada. A verticalidade, a relação
individual com Deus, leva a uma horizontalidade. As pequenas ações solidárias, com
base no amor de Deus para conosco, podem significar a presença do próprio Deus.
Tudo o que fizerdes a de meus pequeninos irmãos a mim o fizestes (Mateus 25,40).
Aqui também pode valer o contrário, isto é: o serviço a Deus se manifesta na
diaconia para com o próximo. Ou ainda a frase de um hino: “Cristo não vive
escondido em salões, mas manifesta-se nas pequenas ações”. Não com a finalidade
de obter alguma graça especial é que estas pequenas ações solidárias são
realizadas, mas em gratidão a Deus pela sua presença constante ao nosso lado,
seja em momentos de saúde ou de doença.
44
Essa forma de apoio espiritual foi apontada pelas mulheres entrevistadas que
pertenciam ao núcleo da Liga Feminina de Combate ao Câncer. Ideologicamente, a
Liga não pertence a nenhum credo religioso específico, mesmo assim foi destacada
a importância do apoio espiritual de forma indireta e aconfessional. A Liga presta
ajuda em várias áreas e foi considerada como um refúgio (G1 e G3). As mulheres
entrevistadas que integram a Liga manifestaram que encontram um forte apoio na
área “humana”. Vejam como se expressam: “Eu me sinto muito bem aqui. Eu amo e
gosto” (D3). Em nenhum momento, durante as entrevistas, foi feito a mesma menção
em relação a uma comunidade religiosa confessional.
A espiritualidade, no entanto, também é expressa em forma de “luta” com
Deus. D10 expressa a sua revolta contra Deus, sua decepção em ter adquirido
câncer. Sente Deus como ausente, que o cuida, que não protege. Temos uma
analogia, no que se refere a uma fé que luta, e ainda corporal, em Gênesis, a luta de
Jacó com Deus, que termina com as seguintes palavras: Eu não te deixo se não me
abençoares (Gn. 32.26). Uma fé que luta não é uma fé indiferente.
1.2.2.2 O câncer lembra a finitude. Um tabu na igreja cristã?
A angústia existencial, o medo real da morte foi um tema verbalizado em
todas as entrevistas, seja direta ou indiretamente. Queremos trazer alguma fala a
respeito do impacto que causou a notícia de ter desenvolvido um ncer. “O meu
primeiro pensamento foi que a minha vida estava no fim. Eu achei que iria morrer”
(A2). Em B podemos observar a necessidade que a pessoa, após ter descoberto o
câncer, tem em compartilhar a sua dor. “Eu queria uma coisa: o esconder”. Eu
achei que para a cura, para a minha cura isso seria importante. Não esconder foi
para mim uma questão de vida e de morte. Ao sair do consultório a primeira coisa
que eu fiz foi um contrato comigo mesma (B7). Atrás dessas palavras estava: vou
vencer essa, mas para isso preciso de outras pessoas para me ajudar. Mas a
mesma relata também que são necessários momentos de solitude, onde o encontro
consigo mesmo e com Deus é deveras importante.
Portanto, existem momentos em que a dor é tão grande e a pessoa sente-se
incapaz de carregá-la sozinha. Mas também espaços que devem ser assumidos
por parte de quem tem a doença. Esta opção em desejar dividir o sofrimento e ao
mesmo tempo sentir a necessidade de retirar-se, assumindo assim a parte que lhe
45
cabe, é tão importante quanto o apoio de quem quer que seja. Ambos os espaços
são vitais para qualificar a vida e podem contribuir para a cura e por isso devem ser
assumidos e respeitados respectivamente.
Ainda relacionado com esse enfoque queremos apresentar mais uma fala que
apareceu na entrevista com E, quando diz que chorava muito, porque tinha medo
que iria morrer. O câncer é assustador e ainda carrega “uma cultura” que facilmente
leva à morte. Conforme apontado na introdução, é um fato real que o câncer de
mama leva muitas mulheres a óbito. Tanto a pessoa que desenvolveu a doença,
bem como os seus familiares passam por esse processo e são lembrados dessa
realidade e assim também de sua própria finitude.
A pergunta que surge é como esse tema da finitude está sendo tratado nas
atividades e metas da igreja cristã ou outras religiões não cristãs? Seque se trata
de um tema com o qual se tem “medo” de lidar porque oferece muita insegurança?
O que significa a finitude para cada ser humano? Por que não é um tema, como
muitos outros, e que então poderia ser abordado com mais liberdade na vida
comunitária? Ou seja, não relegado a um segundo plano.
Na entrevista com C me surgiu a pergunta: como sobreviver numa enfermaria
quando a finitude bate na “cama” da vizinha que está ao meu lado e tem a mesma
doença, conforme foi verbalizado. Vejamos como se expressa:
O momento mais difícil foi a quimioterapia de mama e as internações no
hospital. Só de pensar que ter que voltar e ver o pessoal morrer da
mesma doença minha. Uma semana em que eu estive tinha uma menina
de 20 anos morrendo. Isso mexeu, muito, muito, muito com os meus nervos.
A minha cunhada veio para cuidar de mim, mas ficou a noite inteira com
uma senhora de 57 anos, que não tinha ninguém. No outro dia desligaram
os aparelhos e ela morreu. Das sete que baixaram comigo, sobreviveram
apenas três comigo. (E2).
Em quem buscar alívio? Como equilibrar-se entre a esperança de uma
possível cura e o confronto constante com a finitude de colegas que têm a mesma
doença? Além da dor e da angústia própria ainda existe a da outra pessoa que está
ao lado. A solidariedade consiste em “ceder” a cunhada para quem está em situação
ainda mais difícil. Alguém que está agonizando, alguém que está se despedindo
desta vida e não tem ninguém ao lado. As pequenas ações diaconais não escolhem
cor, parentesco. Elas agem em favor do ser humano em sofrimento.
46
1.2.2.3 A espiritualidade como presença constante na vida do ser humano
A espiritualidade, como valor sagrado e como parte inerente e importante do
ser humano, foi trazida inúmeras vezes nas entrevistas. O objetivo da pesquisa foi
também observar se esse enfoque estaria presente como uma força que fazia
parte da vida ou se foi buscada como um poder “mágico” em momentos de crise ou
enfermidades. Apresentaremos algumas falas neste sentido a seguir.
Na fala de A, a entrevistada aponta a e a confiança em Deus como a
âncora mais forte que possuiu para enfrentar a doença do câncer. Foi a que deu
forças e esperança para ir à luta e sobreviver o câncer”. Faz menção de imagens,
com representações do sagrado, que lhe serviram de apoio em momentos quando a
comunicação verbal com Deus estava difícil ou “truncada”. Uma outra fala se
apresenta assim:
Em termos de fé eu vivia sempre a minha vida com uma fé muito
consciente. Todo o lado bom, como as dificuldades têm a ver com a minha
vida de antes. Deus não é tão pequeno como muitas vezes a gente o
coloca. Deus é grande. Se eu estou nessa situação difícil então isso faz
parte de minha vida. E Deus está lá onde nós estamos sofrendo e onde
estamos alegres. (B5).
A entrevistada diz que a superação dos momentos de crise tem a ver com a
sua vida e de antes de adoecer. Como Deus não tem uma forma de se
comunicar com ele e vice-versa, apareceram nas entrevistas também diferentes
formas de vivenciar e expressar a sua fé. Como apontado num contexto anterior
neste capítulo, apareceu muito forte a fé que luta com Deus. Na Sagrada Escritura
temos muitos exemplos, dessa natureza, nos salmos ou mesmo na vida de Jó. o
pretendemos agora entrar em detalhes sobre esta questão. O sagrado foi sentido
como um Deus que abandona, que não cuida, que não ama. Mesmo assim Deus
não é ignorado ou esquecido pela paciente. Ela clama: “Minha mãe teve câncer,
meu pai se tornou alcoólatra. E eu? Deus onde estás”? A mesma continua relatando
o quanto sofreu com o alcoolismo do pai. Após algum tempo de lágrimas e silêncio e
diz: Cheguei à conclusão que não mais vou me revoltar contra Deus. Em vez disso
vou dialogar (D10).
Aqui se confirma um pensamento de B5, isto é, que existem várias maneiras
de se comunicar com Deus. “Deus é grande”. Todas as mulheres entrevistadas
apontam o sagrado como algo indispensável na vida do ser humano. Algo para se
47
“agarrar”. Um porto seguro. Um lugar de luta, de apoio, de esperança, de sentimento
de pertença.
Uma imagem que não gostaríamos de deixar fora neste contexto foi trazida
por B. Trata-se da expressão: colo de Deus! Mas esta analogia o se com um
Deus abstrato. Não se trata de um Deus que está ausente na vida do dia-a-dia, mas
sim, um Deus presente que se manifesta e é sentido nas pequenas ações. Veja
como cita essa realidade:
As pequenas coisas são muito importantes. O que significava muito para
mim não foram os conteúdos das ações. Por exemplo: as fruitinhas frescas
colhidas no mato, ou outras coisas, mas o AMOR que estava por trás - E
QUE EU SENTIA. Eram muitas coisas. (B15).
Após algum tempo começa a explicar como surgiu a imagem do COLO DE
DEUS. Aqui se manifesta o que dito antes que Deus age de muitas maneiras e
que a espiritualidade não é sentida ou experimentada somente individualmente, mas
precisamos de outras pessoas que vivem no mesmo contexto. Estamos vendo
novamente o valor comunitário. A fé se vive também em comunidade. Para isso deu
a seguinte explicação:
O que eu comecei na época a pensar: O que é o COLO DE DEUS? Eu fui
fazendo a minha imaginação, tecendo uma rede - com todas as mãos que,
de uma ou outra maneira, me ajudaram. Concluí então: isso é o COLO DE
DEUS. Ele é tão grande. O COLO DE DEUS É TÃO GRANDE, o grande
como o AMOR é. (B15).
A questão de tecer redes aparece também em duas outras falas. Uma vez em
relação à Igreja Cristã e a outra em relação à Liga Feminina de Combate ao Câncer.
Na nossa reflexão, tanto o exemplo da rede, bem como a imagem do COLO DE
DEUS, ficou muito forte o sentimento de pertença. Em outras palavras: EU NÃO
PRECISO ESTAR SOZINHA NESSA.
Oxalá, que todas as pessoas em situação de crise pudessem ter uma
representação do colo de Deus. Através de outras pessoas que vivem ou convivem,
seja de longe ou perto. Pessoas que se dispõe a ser solidárias e a servir tendo a sua
motivação no sagrado invisível.
Para nós cristãos, encontramos a motivação na Boa Nova de Jesus Cristo.
Importa, porém, que a cada novo dia possamos buscar a consciência de que não
podemos apostar somente em nossas próprias forças, mas contar sempre com as
forças que Deus supre.
48
Concluindo esta parte, posso dizer que foi uma aprendizagem importante
fazer as entrevistas e refletir sobre os conteúdos trazidos. Além da obtenção dos
conteúdos para a pesquisa em questão foi igualmente importante ter tido a
oportunidade do encontro com pessoas que passaram por uma história semelhante
à minha. Esse olhar, de fora, como uma observadora privilegiada foi deveras
importante nessa caminhada de vida.
Neste momento não pretendemos traçar comparações entre a teoria estudada
e os conteúdos adquiridos através das entrevistas, mas estamos cientes de que
esse é um ponto a ser trabalhado em outras partes da dissertação. Analogias com a
minha própria história de câncer de mama, as crises e o valor da espiritualidade
serão vistas em outro momento durante o processo da pesquisa.
2 ANGÚSTIA, CULPA E MEDO REAL DO SER HUMANO EM CRISES
EXISTENCIAIS.
2.1. Introdução
O presente capítulo visa trazer uma interpretação de Drewermann
1
a respeito
do texto de Marcos 4.35-41. Esta narrativa tem como título: Jesus acalma a
tempestade. Um enfoque da categorização dos resultados obtidos nas entrevistas
com mulheres que desenvolveram um câncer de mama gira em torno dessa
temática: angústia e medos reais na vivência do câncer. Em analogia, poder-se-ia
observar a angústia existencial e os medos reais dos discípulos, com Jesus ao
barco, em meio a uma tempestade.
Além desse aspecto apresentaremos, nessa parte da dissertação, elementos
da teoria de Drewermann, com base no livro de sua autoria, escrito em língua alemã,
sob o título de: Psichoanalyse und Moraltheologie 1- Angst und Schuld (Psicanálise
e Teologia da Moral - Angústia e Culpa)
2
.
O sentimento de culpa na vida do ser humano é um tema muito conhecido na
igreja cristã. O autor busca relacionar a superação da angústia existencial com o
perdão da culpa. Sentir-se aceito por Deus, confiar em sua presença constante são
fatores importantes para que o ser humano possa substituir os seus medos e
angústia existencial pela aceitação da graça de Deus. Assim sendo, a acolhida de
Deus, possibilita o desespero se transformar em confiança.
Drewermann, nessa reflexão, aponta para a relação de pecado e neurose.
Pecado, na compreensão do autor, é o afastamento de Deus. O patológico desse
afastamento de Deus pode manifestar-se como transforma-se em neurose. O autor
descreve as seguintes neuroses: compulsão, histeria, depressão e esquizóide
relacionado-as com a cristã. O mesmo afirma que a interpretação do religioso não
1
DREWERMANN, Eugen. Psichoanalyse und Moraltheologie. Angst und Schuld. Mainz: Matthias-
Grünewald-Verlag, 1982, p. 132-168.
2
DREWERMANN, Eugen, 1982, p.132-168.
50
pode partir de fatos externos que desencadeiam os sintomas. Para Drewermann o
método de abordagem, para alcançar os objetivos de sua teoria é deveras
importante e por isso aponta para a interdisciplinaridade, nesse contexto a psicologia
do profundo e a teologia da graça. Assim sendo, a psicologia analítica, ou psicologia
do profundo se complementam e interagem.
Além da teoria de Drewermann, apresentaremos aspectos da teoria de Tillich
3
que constam em seus escritos em Teologia Sistemática. A leitura está centrada na
Angústia Existencial do ser humano. Este tema não é um assunto com o qual a
sociedade contemporânea se ocupa muito. O alvo da ciência é prolongar a vida a
partir dos avanços da medicina, bem como através dos recursos tecnológicos
existentes em diferentes áreas que contribuem para essa finalidade. Mesmo assim,
a angústia da inevitável finitude não pode ser substituída pela técnica moderna.
Na teoria de Tillich não encontramos a solução para evitar a morte, mas
aliviar a angústia que o ser humano tem em relação à mesma. O autor aponta para a
coragem do ser, que leva o ser humano a assumir a sua finitude a partir da graça de
Deus, que transcende a finitude. Algo que vai além de minha natureza de ser
humano. Assim sendo, também a fé é graça concedida por Deus. Aceitar que somos
aceitos pela graça e não por mérito próprio.
A é um elemento fundamental no processo da reflexão sobre a angústia
existencial. Neste contexto, ela, a fé, é considerada um recurso para o alívio da
mesma. A fé não como mérito pessoal, mas pela graça. Essa graça é dádiva da
presença incondicional de Deus.
Saúde e salvação são termos nascidos da mesma origem. Através de
Piccinini
4
, pretendemos trazer algumas idéias sobre a co-originalidade destes
termos. Neste contexto, qual é o lugar da universal na superação da angústia
existencial?
3
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5. edição. São Leopoldo: Sinodal., 2005.
4
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade. www. sbggrj.org. br/artigos/saúde. htm. Acesso em
23.09.05.
51
2.2 Angústia e culpa em Drewermann
2.2.1 Quem é Eugen Drewerman?
Eugen Drewermann nasceu em 1940 na cidade Bergkamen, na Alemanha.
Estudou Filosofia em Münster, Teologia em Paderborn e Psicanálise em Göttingen.
Além de teólogo católico, sacerdote, psicoterapeuta e escritor, é o representante
mais conhecido da Psicologia Analítica e Exegese
5
.
Em 1956 Drewermann teve o seu primeiro conflito com a Igreja Católica
Romana ao se negar a prestar o serviço militar obrigatório, devido às suas
convicções pacifistas.
Atuou como sacerdote em paróquias e na Pastoral Universitária em
Paderborn. Nesta mesma cidade foi professor de História da Religião e Dogmática.
Em virtude de suas posições críticas, em relação à Igreja Católica Romana, em 08
de outubro de 1991 foi cassada sua licença de lecionar e em 1992 foi suspenso de
seu sacerdócio.
A partir da influência de Carl Gustav Jung, Drewermann interpretou textos
bíblicos com enfoque psicanalítico. Dessas interpretações surgiu o livro Psicologia
Analítica e Exegese, gerando um dos principais conflitos com a Igreja Católica
oficial. Hoje atua como psicoterapeuta individual e divulga sua teoria através de
palestras, seminários e de vários livros de sua teoria.
No Brasil esteve como palestrante principal no III Simpósio Internacional de
Aconselhamento e Psicologia Pastoral, da Escola Superior de Teologia, em São
Leopoldo, Julho de 2004. Nesta ocasião foi lançado um livro: Religião Para Quê? em
língua portuguesa. Na orelha deste mesmo livro o professor Sidnei Noé apresenta
Drewermann como um profeta contemporâneo, que tem Jesus como fonte de
inspiração.
Ouvir este profeta significa abrir o coração a palavras que querem fazer
brotar de dentro de cada um de nós este novo ser, que habita o núcleo de
todos nós, mas que está encoberto pelo medo e pela angústia. É deixar-se
transformar pela brisa suave de uma energia eterna e infinita que quer nos
libertar daquilo que nos oprime em todos os sentidos.
6
5
DREWERMANN, Eugen, 150 Jahre, ethz.ch/program, p. 2. Internet. Acesso em: 25/09/05
6
DREWERMANN, Eugen. Religião Para Quê. Orelha do Livro.
52
Com base na teoria de Drewermann pretendemos averiguar como o autor
entende a angústia, e integra a psicanálise nesta reflexão. Como estas grandezas se
complementam e como apontam para uma possível cura.
2.2.2 A angústia dos discípulos em meio a uma tempestade (Mc 4.35-41)
conforme a interpretação de Drewermann
Entre os textos bíblicos interpretados por Drewermann queremos destacar a
passagem acima citada. Este relato traz a angústia de morte dos discípulos quando
eles se encontram com um barco em uma tempestade no lago de Genesaré. A
intenção é acompanhar a reflexão do autor no que se refere à confiança em algo
que está fora do alcance de nossa própria “humanidade”, ou seja, confiar numa força
que vai além da angústia do ser humano quando a sua existência, a sua vida está
ameaçada, ou em perigo.
Jesus acalma a tempestade
Naquele dia, à noite, Jesus disse aos seus discípulos: - vamos ao outro lado
do lago. Então eles mandaram o povo embora. Em seguida entraram no
barco em que Jesus estava e foram com ele; e outros barcos os seguiram.
Começou a soprar um vento muito forte, e as ondas batiam de tal maneira
contra o barco que ele já estava ficando cheio de água. Jesus estava
dormindo na parte de trás do barco, com a cabeça numa almofada. Então
os discípulos o acordaram e disseram: - Mestre nós vamos morrer! O
Senhor não se importa? Então ele se levantou e ordenou ao vento as
ondas: - Fiquem quietos! O vento parou, e tudo ficou calmo. ele
perguntou: Por que vocês são assim tão medrosos? Vocês ainda não têm
fé? E eles cheios de medo diziam: - Que homem é este que manda até no
vento e nas ondas? (Marcos 4.35-41).
2.2.3 Analogia entre a angústia dos discípulos e pessoas em crise existencial
Drewermann inicia a sua interpretação com a hipótese de que o milagre em
que Jesus acalma a tempestade pode ser interpretado sob vários enfoques do ponto
de vista da fé. Não pretendemos abordar possíveis fenômenos da natureza, mas
seguir o pensamento da teoria da Psicologia do Profundo ou também chamada de
Psicologia Analítica que o autor apresenta
7
. O questionamento de Drewermann é:
“O que um acontecimento desta natureza nos fala sobre Deus?”
Olhando sob uma perspectiva externa, podemos concluir que em nossa vida
passamos por momentos de profunda gratidão a Deus por nos guiar, proteger, amar.
No entanto, existem outras realidades onde a nossa existência está ameaçada e nós
7
DREWERMANN, Eugen. Das Markusevangelium. Markus 1.1-9.13. 9. ed. Düsseldorf and Zürick: Walter
Verlag, 2000., p.350-359.
53
nos sentimos angustiados diante de fatos sobre os quais não temos controle.
Também nesta situação vamos a Deus. Sim, ao mesmo Deus e clamamos por
clemência e por misericórdia. Os discípulos vêm de uma experiência gratificante.
Uma multidão está seguindo o Mestre, a qual foi despedida; entram no barco e lhes
sobrevêm uma tempestade e com ela ficam angustiados. Os discípulos gritam por
socorro e “acusam” o mestre de ele não se importar que todos vão morrer. Nas
entrevistas com mulheres com câncer aparece também a revolta e pergunta a Deus:
Por que eu estou passando por essa situação? Ou ainda: por que tanta gente tem
que sofrer com o câncer?
Não é também assim em nossa vida? Não temos também o sentimento de
que Deus está dormindo? Com o nosso grito por socorro, da mais profunda
angústia, parece que queremos “acordar” Deus. Mas como podemos acordar Deus
se ele está “em nós”? Será que não somos nós que precisamos acordar para Deus?
Deus sempre é um Deus presente, que em qualquer realidade, seja em momentos
de profunda gratidão ou de angústia está ao nosso alcance, mas nem sempre nós
nos damos conta disso.
2.2.4 O simbolismo do mar na angústia dos discípulos, conforme Drewermann
O comentário de Drewermann aponta o mar como uma imagem de precipício.
Um precipício no qual não temos como nos assegurar. Um espaço sem fundamento,
que nos mantém sob o domínio da incerteza. Uma analogia com a própria vida
humana que vive na certeza e ao mesmo tempo na dúvida, apesar de sua fé no
Deus da vida. A dúvida não é a negação da certeza, mas a confirmação da mesma.
Não poderia haver dúvida se não houvesse a certeza. A pergunta fica em aberto:
como sobreviver diante deste sentimento de crer e confiar e de duvidar e temer?
8
Jesus pergunta aos seus discípulos: Por que vocês são assim tão medrosos?
Vocês ainda não têm ? Drewermann aponta para possíveis momentos nos quais
podemos nos sentir na solidão e no abandono. Chama atenção para o fato de os
discípulos estarem sozinhos, após trabalho árduo com a multidão que seguia Jesus,
e que havia sido despedida. No silêncio interior, quando nós nos confrontamos
conosco, pode desenvolver-se uma grande “tempestade” em nós.
8
DREWERMANN, Eugen, 2000, p.350-359.
54
A pergunta, que podemos fazer para nós mesmos, é: em que momentos de
nossa vida estamos sozinhos conosco mesmos e a nossa “dor”? Não é a descoberta
de um câncer de mama ou do câncer em qualquer outro órgão do corpo, um
momento assim, no qual a nossa vida interior é como um mar revolto e agitado? E
perguntamos: Deus onde estás? Deus por que dormes? É neste momento que
temos a impressão de que o nosso fundamento se rompeu e que não conseguimos
nos equilibrar entre a dúvida e a certeza da fé.
O texto nos quer ajudar para que justamente neste momento não deixemos
que a insegurança tome conta de nossa angústia. Um exemplo a seguir e “treinar” é
tentar buscar a solitude interior de Jesus, que está no barco e dorme em meio à
tempestade e angústia de morte. Em verdade estamos limitados para contribuir em
tudo, para evitar que o barco de nossa vida sofra demais com os contratempos em
nossa história de vida, a não ser colocar a nossa “âncora” de forma mais segura e
profunda. Creio que não é por acaso que Jesus diz que quem não crê como uma
criança jamais poderá ver o reino de Deus (Marcos 10.131-16)
9
.
Somente uma criança pode entregar-se ao “sono” como Jesus o fez, por que
não teme - mas confia. O autor aponta novamente para a psicologia analítica e diz
que depende de nossa convicção interior, e nesta área a psicologia do profundo, ou
analítica nos pode servir de ajuda e ser uma aliada para que a âncora de nossa vida
encontre um lugar onde “ancorar e descansar”. Em outras palavras, buscar na
história de nosso desenvolvimento momentos de angústia existencial e trabalhar
com essas marcas, buscando-as do inconsciente para o consciente.
Na busca da cura do câncer é deveras importante ter a consciência, se dar
conta, de que a pessoa em questão saiba onde buscar forças para poder “ancorar”
sua vida em um “porto seguro”, isto é, saber-se “cuidado” por alguém que vai além
da sua própria força humana. Drewermann aponta novamente para o
questionamento de Jesus sobre a e a dúvida. Diz que, em ultima análise, é a
pequenez de e a angústia que decidem em que medida o mar se revolta em nós,
em momentos de crises. Afirma que é a e a confiança que m condições de
impedir que as ondas se avultem demasiadamente em nossa vida interior
10
.
9
A Bíblia Sagrada. Tradução na Linguagem de Hoje. Sociedade Bíblica do Brasil, 1988, p. 69.
10
“Am Ende ist es der Kleinglaube und die Angst, die darueber enscheiden wie sehr das Meer in uns tost und
tobt, und es ist allein der Glaube und dasVertrauen, die den Sturwinden einhalt zu gebieten vermögen“ (p. 357).
55
Afirma ainda, que a psicologia do profundo não a como superficial, mas
pelo contrário, mostra o quanto ela é absolutamente necessária para enfrentar a
angústia existencial. Inevitavelmente chegará o dia em que nenhum médico, ou cura
d´alma, nenhum consolo sábio, nenhuma ajuda externa poderá oferecer apoio, pois
sem sombra de dúvida alcançaremos o limite de nossa existência terrena e a finitude
espera por nós.
Neste momento de nossa finitude, é pela última vez muito importante
encontrar o descanso frente à angústia. Importa então decididamente encontrar em
Deus a âncora, em meio à tempestade, e aprender a “dormir”, a exemplo de Cristo
no barco e da criança que se confia nos braços de Deus, como a seu pai ou sua
mãe.
Assim sendo, a morte não é a nossa inimiga, mas nossa “irmã do sono”. Irmã
do início da eternidade
11
. Drewermann escreve que então as formas de
“salvamento”, de “redenção” com uma visão humana não mais são reconhecíveis,
pois pertencem à eternidade. A nossa aproximação desta eternidade é proporcional
à nossa PAZ interior, e significa graça. Graça, que temos em Deus. E continua
dizendo: que de fato é uma arte muito importante e é como um milagre único de
nossa existência, em meio à angústia, encontrar a Paz.
Este descanso que temos em Deus o mais nos pode ser “roubado” pela
turbulência que existe, agora, em nosso redor. É o presente da graça. O Deus
conosco, que dia após dia acalma a tempestade em s, e aproxima o barco de
nossa vida ao outro lado da margem
12
.
2.3 Culpa
Angústia e culpa são aspectos com os quais Drewermann se ocupa em seus
escritos relacionados com a fé cristã. Conforme o autor, a superação da angústia
consiste em um dos temas centrais do cristianismo. Afirma que a teologia não pode
privar-se deste reconhecimento, pois é o seu tema fundamental, porque a superação
da angústia é um caminho para alcançar a em Deus. O sentimento de culpa pode
ser um entrave para crer e se aproximar de Deus. O perdão liberta da culpa e
possibilita ao ser humano uma experiência de libertação através da graça de Deus.
11
DREWERMANN, Eugen, 2000, p.358ss.
12
DREWERMANN, Eugen, 2000, p.358s.
56
A partir desta constatação, o ser humano teria dois caminhos a seguir: viver na
angústia e/ou na confiança.
A respeito destas realidades, angústia ou confiança, Gerhard Lohfink
13
, ao
escrever sobre Drewermann, aponta para a importância da psicologia analítica que
trata da angústia e sua superação que é a libertação. O ser humano, quando
aliviado de traumas que o angustiam, pode estar mais aberto para confiar em Deus
e em si próprio. A Palavra de Deus se torna um poder libertador num ambiente de
confiança, sensibiliza e conscientiza o ser humano a respeito de sua angústia e
através da superabundância da graça divina anula a mesma. Cita como exemplo a
cura do paralítico de Jo 5.1-9 o que significa, conforme Drewermann cura de uma
permanente angústia que não arrisca um passo sequer em assumir a sua
individualidade. No momento em que a angústia é substituída por confiança, a partir
das palavras de Jesus como o Cristo, acontece a redenção. Conforme Drewermann,
somente o cristianismo possui, dispõe sobre este ensinamento libertador, o qual
aponta para a revelação de Deus em Cristo, que em sua própria angústia venceu o
poder da morte.
2.3.1 A angústia como origem do desespero
O desespero do ser humano é um comportamento equivocado consigo
mesmo, afirma Drewermann e continua questionando: de onde provém este
sentimento e como o mesmo se apresenta. Neste contexto, aponta para Kierkegaard
que afirma que o ser humano somente poderá ser ele mesmo um si mesmo, se for
capaz de reconhecer-se e aceitar-se como criatura espiritual.
A partir desta realidade, Drewermann chama atenção para a ambigüidade da
liberdade humana: ela é grande riqueza e, ao mesmo tempo, a maior carga, pois o
desejar de sua própria liberdade exige do ser humano uma força extraordinária.
Existe no mesmo uma constante saudade de entregar a sua individualidade e
desaparecer na massa, pois nada o aflige mais, em sua vida interior, do que a
liberdade de si mesmo. Portanto, o ser humano tem em si a capacidade para a
liberdade - mas ao mesmo tempo a idéia de se tornar livre o angustia de tal forma
que ele abre mão desta liberdade pela qual tanto anseia.
13
LOHFINK, Gerhard, PESCH, Rudolf. Tiefenpsychologie und keine Exegese. Olten: Walter Verlag AG,
1988, p. 36-38.
57
A liberdade do ser humano se justamente nisto: ele como ser finito precisa
se inserir na infinitude. Na medida em que o ser humano harmoniza estes opostos
entre si, ele se apropria de sua realidade, se concretiza como um ser em si mesmo.
Mas nisto também se encontra a razão pela qual uma pessoa pode chegar a uma
relação equivocada consigo mesmo: o querer a liberdade e ao mesmo tempo negá-
la, como dito anteriormente. internamente um poder que impede o ser humano
o tornar-se um si mesmo e estabelecer uma síntese de si, e nisto está o segredo e o
perigo da liberdade: a angústia. A finitude, portanto, é um aspecto da essência do
ser humano. Isso possibilita ao mesmo a aceitá-la, a partir da coragem do ser.
Analogicamente o autor coloca, em forma de síntese, como podemos hoje, a
partir de uma visão cristã, caracterizar a angústia. A comparação de Drewermann é
com uma casa de três andares. No primeiro andar estaria a angústia animal o
resultado de 200 milhões de anos de evolução. Neste sentido, a angústia é como um
sinal de alerta em situação de perigo. Seria como uma defesa ou estratégia de
sobrevivência.
No segundo andar da casa se encontra a angústia infantil, isto é, a criança
que se sente desamparada em relação aos pais. Esta angústia, conforme
Drewermann é objeto de pesquisa da Psicanálise, pois a mesma poderá levar a
pessoa a temer mais uma outra pessoa do que a própria morte. Afirma ainda que
todas as formas de neuroses psicológicas podem ser explicadas a partir dos
mecanismos da angústia infantil.
O terceiro aspecto aponta ao existencialismo de Sören Kierkegaard,
indicado anteriormente neste trabalho. Trata-se da angústia da auto-reflexão do
espírito e é o preço que se paga para poder ser um si - mesmo, ou seja, um ser
humano livre. As três dimensões de angústia, conforme Drewermann estão
interligadas
14
.
A teoria de Drewermann em relação à Psicoterapia e a Poimênica afirma que
a psicologia analítica e a teologia não formam uma unidade, ou não se relacionam
como deveriam a partir da origem do ser humano. Na compreensão do autor nem na
teoria e nem na prática isso acontece, ou seja, não formam essa unidade. Afirma
14
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 3.
58
que a divergência entre as duas grandezas é motivo de muito sofrimento e faz com
que o mesmo permaneça incurável
15
2.3.2 O caráter único da Psicoterapia e Poimênica
No que se refere a uma caminhada conjunta, das duas grandezas apontadas,
Psicoterapia e Poimênica, Drewermann faz referência ao envio dos discípulos por
Jesus com a tarefa de imposição de mãos aos doentes, expelir demônios, cf. Lc. 9.
2; Mt 10.7- 8; Mc 16. 17-18, e diz que em seu entendimento, esta é uma atividade
onde a Poimênica e a Psicoterapia deveriam atuar em conjunto. Aqui se trata de um
cuidado que protege. Saber que existe alguém que coloca a sua mão sobre a minha
dor, inicia o processo da cura. Saber-se acolhido por alguém - eis a questão. Na
interpretação de Drewermann: o reino de Deus está próximo quando as pessoas são
levadas a sério em sua dor e desespero e elas mesmas se apercebem do poder que
Deus poderá ter nelas.
Devido ao fato de o medo ser a origem de toda doença da alma
15
(Seelenkrankheit), a pode ser entendida, a partir do Novo Testamento, como a
força para a cura. Conforme o autor, a fé que cura é tão universal como o sofrimento
humano (miséria humana) e cada ser humano está vocacionado a reencontrar o
paraíso de sua própria vida. A consiste na superação da angústia pessoal e por
esta razão podemos ajudar outras pessoas a superar a sua angústia, a partir do
momento em que aprendemos a contrapor a confiança em Deus à nossa própria
angústia.
2.3.3 Pecado e neurose
Drewermann apresenta quatro formas de neurose como assimilação
equivocada da angústia existencial, as quais passaremos a descrever
16
.
2.3.3.1 Compulsão
Em seu texto sob o título de neurose compulsiva, ele levanta dois
questionamentos: a falta da religião leva o ser humano à doença? Contrapõe: a cura
da psique significa um amadurecimento em Deus? Caracteriza então a compulsão,
15
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 163.
16
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 167s.
59
que se expressa no desespero do ser humano o qual não se permite desejar, poder,
nem querer. Para o compulsivo não existe um espaço criativo/flexível, pois tudo
deve ser exato, definido. Vive obcecado pela necessidade pré-estabelecida. O mais
difícil para ele é aceitar que nós próprios, em nossa existência pessoal, não somos
necessários. O fato da eventualidade de nosso ser o ameaça profundamente. A sua
relação com outras pessoas será sempre sentida como concorrência e competição.
A realização de outros significa ameaça à idealização de suas iniciativas.
A imagem bíblica que ilustra essa realidade é Gn 4.1-16
a
,a história de Caim e
Abel. Para que o compulsivo possa encontrar-se consigo mesmo e com Deus é
necessário assimilar que não é necessário que ele seja, mas ele pode existir, porque
Deus quer que ele seja.
2.3.3.2 Histeria
O histérico, ao contrário do compulsivo, é aquele sujeito que gostaria de evitar
tudo que representa obrigação ou compromisso. Nada está definido. Ele acredita
que tem um poder extraordinário de transformar as situações. A origem está na
conhecida compreensão do Complexo de Édipo. Trata-se de uma resolução
equivocada com os seus genitores. Busca sempre nos outros um substituto para o
seu genitor.
Drewermann faz referência à imagem bíblica de Jo 4 (o diálogo de Jesus com
a mulher no poço) para compreender o processo que se desenrola no interior da
pessoa histérica. Ela somente encontrará o equilíbrio quando deixar de colocar nas
outras pessoas o absoluto e encontrar em Deus este poder Absoluto.
em Deus o amor entre as pessoas é possível. Portanto, o histérico precisa
encontrar-se a si mesmo em Deus para que possa chegar a uma convivência
autêntica com os outros.
2.3.3.3 Depressão
Conforme o texto de Drewermann existe uma identificação entre culpa e
sentimento de responsabilidade do depressivo, ligada a uma ilimitada disposição de
estar a serviço de outros e de se disponibilizar (sempre disposto e disponível).
O realmente depressivo poderá ser reconhecido a partir de sua postura, com
a qual se apresenta. Não quer ser incômodo, enfim, pensa poder resolver sozinho os
60
seus problemas. O medo monstruoso de ser considerado inoportuno passa como
um fio vermelho em sua vida. Como não permite expressar um desejo seu, nem a si
mesmo, nem a outros, ele se torna mestre em ler os desejos de outros, mesmo
antes destes serem pronunciados, fazendo da vida de outras pessoas a sua própria
vida. Identifica-se completamente com cada dor, com cada sofrimento alheio. Ao
apresentar uma superatividade ou servilidade, justifica a si mesmo de ter nascido e
por estar no mundo temporariamente.
O depressivo tem uma enorme dificuldade de dizer não a solicitações ou
desejos de outros, e isso faz com que se sobrecarregue com mais atividades,
pedidos que vêm de fora dele. Caso negar um pedido de outros, manifesta-se nele
um “medo de morte” correndo o perigo de ser destruído por alguém. Por isso, o
depressivo de alguma forma precisa ser perfeito como o próprio Deus, assumindo
assim a imperfeição do mundo como culpa sua. O autor cita o poema de Rilke
Horas rias, como típica realidade e sentimento de um depressivo. Passaremos a
descrever o poema
17
:
HORA SOLENE
Quem nesta hora chora algures no mundo,
sem motivo chora no mundo,
chora por mim..
Quem nesta hora ri algures na noite,
sem motivo ri-se na noite,
ri de mim.
Quem nesta hora anda algures no mundo,
sem motivo anda no mundo,
vem a mim.
Quem nesta hora morre algures no mundo,
sem motivo morre no mundo,
olha para mim.
Considerando que o depressivo só vive enquanto se sentir útil, isso não
significa que suas ações sempre foram benéficas aos outros. Pais depressivos, por
exemplo, que não conseguem dar limites aos filhos, roubam deles oportunidades de
desenvolvimento, tornando-os dependentes e inseguros.
Em relação à gênese, o autor escreve que a depressão pode ter sua origem
quando a criança, em fase de desenvolvimento, significou um “stress” muito
17
RILKE, apud DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 28.
61
acentuado à família. Em épocas de perdas importantes como morte de familiares,
perda de emprego, doenças familiares, guerra, fome, separação dos pais, entre
outras crises. A suposta culpa do depressivo se instala a partir desta realidade, do
stress sofrido no contexto familiar, na fase de seu desenvolvimento. Assim sendo, o
sujeito permanece com esta carga e não vê outra saída do que se adaptar às
exigências dos outros.
A adaptação e a autopunição chegam a tal ponto que o depressivo assume
características do histérico apresentando um falso humor e alegria a seu estado
depressivo. Existe, no entanto, uma diferença: o depressivo usa o disfarce para não
ser notado, enquanto que o histérico deseja ser visto e admirado em sua postura.
Pode ainda acontecer que o depressivo, em forma de resignação, invista tudo para
ser notado, mas sua postura se apresenta de maneira negativa, como masoquista.
Devido à culpa que o depressivo assume por ter sido o principal culpado do
stress familiar, ele tem dificuldades em permitir algo para si próprio, pois poderia ser
considerado algo supérfluo, algo que ele não merece. Em relação à espiritualidade,
o depressivo não consegue viver sem Deus. Ele deseja alcançar perfeição.
Drewermann afirma que muitas exigências do cristianismo, como por exemplo, a
entrega total e o amor absoluto ao próximo podem ajudar a intensificar a depressão.
A cura pela fé é um legítimo direito da criatura humana. A espiritualidade pode
curar o depressivo de seu sentimento de culpa por ele existir, se acreditar e aceitar
que o poder de Deus em sua infinita graça, o aceita em sua finitude limitada e
transforma essa finitude em valores, que ele mesmo não pode realizar por si só. Em
Deus, a vida tem dignidade plena. O autor chama atenção para o relato bíblico de
Gn3: queda do homem na “Sündenfallerzählung des Jawisten”
18
, observando que
um ato proibitivo pode reduzir a pessoa ao nada, digno de morte. Cita ainda a
narrativa do Novo Testamento de Lc 7.36-50 e Mc 14.3-9. Diz que a pecadora junta
toda a sensibilidade que possui (característica do depressivo) e deseja presenteá-la
a Jesus. Pois ela ouviu e sabe que Jesus a entende. Todas as suas atitudes, como:
ungir os pés, soltar os cabelos, chorar em público eram consideradas pela cultura da
época como impróprias e por isso foi criticada e condenada pelas pessoas de seu
contexto. Ela era uma prostituta e sem nome. Jesus a diferente. Ao
ultrapassar e romper com os costumes, nos quais estava inserida, e acreditar que
18
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 154.
62
em Deus ela será autorizada a ser considerada digna, ela se encontra no centro das
palavras de Jesus: “perdoados são os seus muitos pecados, porque ela muito
amou”
19
.
2.3.3.4 Esquizofrenia/Esquizóide
A esquizofrenia é uma psicose que se manifesta por distúrbios de afetividade.
O esquizofrênico se caracteriza através de uma postura fria, distante, mesmo
quando vivencia ou relata os mais dolorosos acontecimentos de sua vida. Em
analogia, o depressivo também pode contar uma tragédia com sorrisos, mas ele
sente profundamente a dor experimentada, no entanto, transforma-a ao oposto,
tendo como pano de fundo o medo de se tornar inconveniente. O esquizóide não
tem nenhum sentimento subjetivo. A emoção não o faz diferente. Falar da morte de
um familiar, da neve que cai ou do sol da primavera não o faz diferente em sua
postura. Quanto à dor pessoal, o depressivo tem condições de falar de sua dor e
sofrimentos, enquanto que para o esquizóide tudo é frio, distante e indiferente.
Os fatores psicogenéticos da esquizofrenia, a partir da psicanálise, reportam
às primeiras semanas de vida da criança. A infância se apresenta como fria e sem
vínculo afetivo com a figura de apego (mãe ou substituta) desenvolvendo-se, por
carência de carinho, a possibilidade de fantasiar, projetar, alucinar, com idéias
paranóicas de perseguição.
A cura pela fé se com o fim da automitologização. Também o
esquizofrênico tem o profundo desejo, a duvidosa vontade de ser igual a Deus.
Somente em Deus é possível clarear o pensamento onde o pensar e o realizar se
completa. O autor cita novamente Gn 3. onde o ser humano, após ser expulso do
paraíso, encontra um mundo totalmente estranho para ele. Os animais tornam-se
seus inimigos, e “no suor de teu rosto ganharás o pão”. A partir de uma infinita
aceitação e bondade de Deus, o ser humano pode parar de viver o medo esquizóide
de Deus, em relação ao seu mundo.
Ao fazer uma comparação entre a depressão e a esquizofrenia se fecha o
círculo onde existe a possibilidade de aprendizagem mútua. O depressivo pode
apoderar-se um pouco da distância da finitude do esquizofrênico e este do calor e da
infinitude do depressivo. Ambos podem encontrar-se somente na certeza de um
19
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 155.
63
Deus o qual pode suprir a visão da finitude, colocando limites nas obrigações e nos
deveres diários que escravizam, apontando ao infinito. Somente em Deus se fecha a
síntese da existência possibilitando assim evitar o medo unilateral do existir, da
razão de ser.
Conforme o texto em questão, a base para os conflitos da existência humana
gira em torno da questão: como o ser humano está diante de Deus? Uma vida é
unilateral, parcial quando vivida sem Deus. A partir deste ângulo pode ser entendido
que a vida afastada de Deus leva a uma busca inútil, sucumbindo no próprio
desespero.
Drewermann diz que em vez de pregar uma moral superficial de pecado, a
psicanálise leva a teologia para um conjunto existencial onde a força curadora da
em Deus pode ser reencontrada/encontrada. Como exemplo, o autor traz que: se
Jesus envia discípulos para curar doentes, leprosos e ressuscitar mortos,
supostamente conhecia, nestes males, uma forma de afastamento de Deus. Por
isso, a teologia deve reconquistar em si mesma o entendimento que a tem a ver
com a cura da pessoa
20
. Por este motivo e por outras argumentações colocadas,
trazidas por Drewermann, podemos entender a ênfase que o mesmo coloca na
interdisciplinaridade, na integração de saberes da ciência, ao lidar com o ser
humano em diferentes momentos de sua existência. Como as necessidades do ser
humano são muitas, se torna indispensável atuar em parceria com outras ciências.
2.4 Angústia existencial em Paul Tillich
2.4.1 Aspectos da biografia de Paul Tillich
Paul Tillich nasceu em 1886. Como teólogo e filósofo teuto-americano foi
considerado um dos mais expressivos pensadores do século 20. Doutorou-se em
Filosofia e em Teologia no ano de 1910 e 1912 respectivamente. Sua atuação
profissional foi em diversas áreas, como: capelão militar na Primeira Guerra Mundial,
professor de Teologia e Filosofia na Alemanha. Em Marburg teve um encontro com
Heidegger que, naquele momento, exercia a função de professor de Filosofia na
referida cidade. Por quatro anos atuou como professor de Filosofia em Frankfurt,
cargo do qual foi deposto em 1933 pelo regime nacional-socialista. No final deste
20
DREWERMANN, Eugen, 1982, p. 161.
64
mesmo ano foi forçado a emigrar para os Estados Unidos da América onde
permaneceu nas cidades de Nova York, Colúmbia Univesity, Universidade de
Harvard e Chicago até a sua morte em 1965.
A primeira preleção sobre Dogmática provém do período no qual esteve em
Marburg. nos anos de 1913 -14 tentou sistematizar seu pensamento teológico,
mas a obra maior, escrita em três volumes na língua inglesa, foi no período de 1951-
53.
O pensamento de Tillich é considerado por ele mesmo e por seus leitores
como algo escrito na “fronteira”, isso é, o espaço-limite entre as disciplinas e a
interface fecunda entre as mesmas. Considera-se o pensamento de Tillich como rico
e complexo, multidisciplinar e interdisciplinar, antecipando a atual discussão sobre a
interdisciplinaridade e transdisciplinaridade. Em 1923 em seu livro: Sistemas das
Ciências tenta organizar o conjunto das disciplinas científicas de forma nova e
criativa. A sua obra Teologia Sistemática é considerada uma das maiores obras
teológicas da história do cristianismo
21
.
2.4.2 A angústia existencial frente à coragem do ser
Conforme Tillich, a coragem do Ser é auto-afirmação em relação a tudo que
impede o eu de se afirmar. Se o ser é visto como vida - o não-ser é ontologicamente
tão fundamental como o ser. A ontologia é parte da filosofia que trata do ser
enquanto ser. Ser concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a
todos os seres. O ser é uma criatividade vivente, que se afirma de maneira criativa,
indo ao encontro de seu não-ser, sendo modelo da auto-afirmação de cada ser finito
e da fonte de coragem do ser.
2.4.3 O ser humano e a sua finitude
“Desafiar“ a finitude, tentando prolongar a vida é alvo da ciência
contemporânea, que se manifesta indiretamente através dos avanços tecnológicos
ligados às pesquisas em diferentes áreas da medicina humana ou de seu contexto.
Por isso, angústia existencial não é um tema comum com o qual a ciência se ocupa.
Como apontado, na introdução deste capítulo, Drewermann e Tillich trabalham
21
MUELLER, Ênio. Prefácio. In Teologia Sistemática. 5. edição. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 3-7.
65
com a idéia de uma caminhada conjunta com outras ciências, com a finalidade de
aproximar-se ou aprofundar a questão em pauta.
A presente reflexão sobre teoria de Tillich, tem como objetivo trazer a questão
da angústia existencial e como vivê-la para uma discussão aberta. Conforme o
autor, na reflexão sobre angústia é necessário tomar em consideração a idéia do
“ser e do não-ser”. Este pensamento está relacionado com a finitude do ser humano,
que é algo inerente ao mesmo, e não conseqüência da queda.
Somente pela graça de Deus o ser humano é capaz de viver em harmonia
com Deus. Aqui acontece a reconciliação entre Deus e o ser humano. Poder aceitar
que é aceito pela graça de Deus faz com o ser humano afirma a sua aceitação
incondicional em Deus. Pela através da graça divina o ser humano integra a
comunhão com Deus.
O ser humano e só ele, é capaz de olhar para além dos limites de seu próprio
ser, e de todo o ser que o cerca. Tanto o ser, como o não-ser, são grandezas que
andam juntas desde o início do pensamento humano
22
. Neste momento não é
intenção de aprofundar esse ponto da teoria de Tillich, a partir de sua origem, mas
citá-la como ponte para a questão da angústia. Tillich afirma que a única maneira de
lidar com essa dialética consiste na coragem do ser, isto é: assumir o não-ser, pois a
dialética entre o ser e o não-ser, não podemos evitar
23
. Vejamos como Tillich o
expressa com suas palavras:
A única maneira de lidar com ela consiste na coragem de assumi-la:
coragem! Como nos mostra este estudo, o problema da dialética doo ser
é inevitável. É o problema da finitude. A finitude une o ser humano com o
não-ser dialético. A finitude do ser humano, ou sua condição de criatura, é
incompreensível sem o conceito do não-ser dialético.
24
Assim sendo, somente somos algo, como seres humanos, se somos finitos. A
finitude é o ser limitado pelo seu não ser. Nas palavras de Tillich: “O não-ser se
apresenta como o ‘ainda não’ do ser e como o ‘não mais’ do ser“
25
. Tillich, no
entanto, prossegue em sua reflexão e diz que o ser humano, para poder
experimentar a sua finitude, “deve olhar para si mesmo do ponto de vista de uma
infinitude potencial”. O estar ciente de que caminha para a morte o capacita e
22
TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005, p. 195s.
23
TILLICH, Paul, 2005, p. 196.
24
TILLICH, Paul, 2005, p. 198.
25
TILLICH, Paul, 2005, p. 198.
66
possibilita a imaginar de forma abstrata a sua infinitude, participando dessa maneira
na universalidade transcendente do ser
26
.
O fato de o ser humano, conforme o autor, o se satisfazer com qualquer
estágio de seu desenvolvimento finito, nega dessa forma o não-ser, isto é: a sua
finitude. Ainda sob o título “o finito e o infinito”, Tillich diz que a “finitude na
consciência é angústia”, e que, tanto a finitude como angústia são qualidades
ontológicas. Descreve a angústia e a finitude como onipresentes. O objeto da
angústia é o “nada”, afirma.
Podemos temer um perigo, uma dor, um inimigo. Podemos vencer o temor
pela ação, mas não podemos vencer a angústia, pois nenhum ser finito
pode vencer a finitude. A angústia sempre está presente, embora, muitas
vezes, esteja latente. Ela pode, pois manifestar-se em todo e qualquer
momento, inclusive nas situações onde não há a temer
27
.
Cabe ainda chamar a atenção para a seguinte afirmação de Tillich: “A
Psicologia não pode remover a angústia ontológica, porque ela não pode mudar a
estrutura da finitude. Mas pode remover as formas compulsivas de angústia e
reduzir a freqüência e intensidade dos temores. Ela pode colocar a angústia “em seu
devido lugar”
28
”.
2.4.4 Como entender a coragem do ser
Tillich diz: se a coragem é considerada uma chave para entender o ser em si,
“ao abrir esta porta do ser, encontra ao mesmo tempo o ser e a negação do ser,
bem como a unidade deles”
29
.
Se o ser é visto como vida, o não ser é ontologicamente tão fundamental
quanto o ser, afirma o texto. A coragem é assim a auto-afirmação em relação a tudo
que impede o eu de se afirmar. O autor descreve ainda a coragem do ser como
poder da mente para vencer o medo e aponta para a diferença entre o medo e a
angústia. Passaremos a citar o que o autor traz sobre a origem deste termo, como e
quando foi que a palavra ansiedade recebeu a conotação de angústia. Importante é
observar como os termos: temor (medo) e angústia são diferenciados por Tillich.
A palavra inglesa anxiety (ansiedade) recebeu a conotação de Angst
durante a década passada. Tanto Angst como angústia são derivadas da
palavra latina angustiae, que significa “estreitos”. A angústia é
26
TILLICH, Paul, 2005, p. 199.
27
TILLICH, Paul, 2005, p. 200.
28
TILLICH, Paul, 2005, nota de rodapé, p. 200.
29
TILLICH, Paul. A Coragem do Ser. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 6, 1972, p. 25-48.
67
experimentada nos estreitos do nada ameaçador. Portanto, o termo
“angústia” não deveria ser substituído pela palavra “temor”, que indica uma
reação súbita a um perigo, mas não à situação ontológica de quem
enfrenta o não-ser.
30
A consciência de nossa finitude gera angústia. Diferenciando a origem dos
termos, angústia e temor, Tillich diz que angústia não tem objeto, ela vem de
“dentro” do ser humano, enquanto que o temor é de fora, externo. O autor diz que a
angústia suscitada pela existência temporal é contrabalançada por uma coragem
que afirma a temporalidade. Sem essa coragem o ser humano não suportaria viver o
presente.
Graças a uma coragem ontológica se torna possível viver essa presença do
aqui e agora. O passado já foi e o futuro ainda não é. Em outras palavras: a angústia
é um estado no qual um ser humano tem consciência de um possível não-ser, ou
seja, a consciência existencial de um possível não-ser. A palavra existencial deve
ser entendida no sentido de que angústia é a consciência de que o não-ser é uma
parte do próprio ser. Não na visão da transitoriedade universal, nem tão pouco se
refere à vida de outros, mas à consciência de nosso próprio “ter que morrer”
31
.
2.4.5 A interdependência do medo e angústia
Em relação à interdependência entre o medo e angústia Tillich chama
atenção que existe uma diferença entre medo e angústia, onde os termos, apesar
de terem a mesma raiz ontológica, diferem no sentido e origem. O medo tem um
objeto definido e pode ser enfrentado, analisado, atacado, tolerado. É possível agir
sobre ele mesmo na intenção de combatê-lo. A angústia ao contrário, não tem
objeto e por isso não tem participação seja na luta ou no amor. “A fonte de sua
permanente ameaça é o nada”. Medo é estar assustado com alguma coisa,
enquanto que angústia é o desconhecido absoluto. A angústia de o ser capaz de
preservar o próprio ser, que jaz sob cada medo e constitui nele o elemento
assustador
32
.
A angústia se esforça para se tornar medo, com o intuito de ser alcançada
pela coragem, pois um ser finito não suporta por muito tempo enfrentar a angústia.
Tillich cita Calvino com os seguintes argumentos: a mente humana é não uma
30
TILLICH, Paul, 2005, nota de rodapé à p. 200.
31
TILLICH, Paul, 1972, p. 28.
32
TILLICH, Paul, 1972, p.30.
68
fábrica permanente de ídolos é também fábrica permanente de medos, a primeira
visa evitar Deus, a segunda escapar da ansiedade” (angústia)
33
.
2.4.6 A angústia do destino e da morte
A auto-afirmação do ser é ameaçada pelo não-ser, por isso é impossível
escapar da angústia universal do destino e da morte. Mesmo que a “imortabilidade
da alma tivesse poder argumentativo” não convenceria existencialmente. A mente
humana o sabe por intuição. Conforme o autor, a angústia da morte aumenta com o
aumento da individuação. Culturas coletivistas são menos ansiosas a esse respeito.
Isso não significa que a angústia não exista nestas culturas, mas a coragem que
caracteriza o coletivismo alivia a angústia da morte, mas não sem preço. A coragem
deve ser criada por meio de atividades e símbolos, sejam estes internos ou externos
(psicológicos e rituais).
2.4.7 A angústia da vacuidade e insignificação
Vacuidade é a qualidade ou estado de vazio. O ser humano é ameaçado pelo
não-ser (angústia do nada). Tanto na auto-afirmação espiritual bem como na ôntica.
A auto-afirmação espiritual é a transformação criadora com a qual o ser humano
participa em seu contexto. Assim sendo, ama-se a si mesmo devido à auto-
realização que produz com o seu ato criativo
34
.
2.4.8 A angústia da culpa
A ameaça, por parte do não-ser, atinge também a auto-afirmação moral do ser
humano. O ser humano é responsável por ele próprio. Quem exige essa “prestação
de contas” é seu juiz, a saber, ele próprio, e que ao mesmo tempo se opõe a ele. A
angústia da auto-rejeição ou condenação é produzida por esta dualidade. A
dualidade aponta para a liberdade, porém uma liberdade finita.
Em cada ato de auto-afirmação moral o homem contribui para a realização
de seu destino, para a concretização de que ele é potencialmente. É tarefa
de a ética descrever a natureza desta realização, em termos filosóficos e
teológicos. Porém, embora, a norma esteja formulada o homem tem o poder
de agir contra ela, de contradizer o seu ser essencial, de perder o seu
destino.
35
33
TILLICH, Paul, 1972, p.31.
34
TILLICH, Paul, 1972, p.39.
35
TILLICH, Paul, 1972, p.40.
69
O sentimento de culpa advém da incerteza entre o bem e o mal, que
perpassa tudo o que o ser humano faz, apresentando as características da
angústia, o sentido da vida. As angústias são imanentes entre si, isto é,
inseparáveis de seu próprio ser ou objeto. Tillich cita a passagem de 1Cor.15,56: O
aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei.
2.4.9 O significado do desespero
Desespero significa “sem esperança”. Nenhum caminho de saída se
apresenta nesse exato momento. Estamos no limite no qual podemos chegar. No
entanto, há um limite para a vitória do não-ser, que é o sentir. Sentir pressupõe ser.
Conforme Tillich existe um porém. Vejamos: “Se a ansiedade fosse só ansiedade do
destino e da morte, a morte voluntária seria o caminho para sair do desespero”
36
.
O desespero, no entanto, é também desespero em relação à culpa e
condenação. Para os estóicos que têm rigidez moral e não se abalam diante da dor
e do infortúnio, o suicídio libertaria da angústia do destino e da morte, mas essa
realidade não vale para os cristãos. Para estes o suicídio não pode libertar da culpa
e condenação, afirma Tillich. A partir dessas afirmações é compreensível que vida
do ser humano consiste na contínua tentativa de evitar o desespero. Assim
refletindo, deve-se considerar que não temos sempre presente em nossa
consciência “o ter que morrer”, ou seja, a angústia de desespero não está sempre
presente
37
.
2.4.10. A coragem do ser como chave do ser em si
Sob o título acima descrito, Tillich diz que a coragem do ser, em todas as suas
formas, tem caráter revelador. A auto-afirmação do ser supera a negação. A
Teologia, ao tomar a idéia do Deus vivente a sério, simboliza a compreensão
trinitária sobre Deus. Na idéia de Spinoza, citado por Tillich,”Deus é o mundo, a
natureza toda é Deus” e unindo as idéias filosóficas e místicas, diz que Deus ama e
conhece a si mesmo através do amor e do conhecimento dos seres finitos. “O não-
ser faz de Deus um Deus vivente”. Onde não-ser, finitude e angústia. “O
infinito abrange ele mesmo e ao finito, o sim inclui ele mesmo e o o que ele
incorpora”.
36
TILLICH, Paul, 1972, p.40.
8
37
TILLICH, Paul, 1972, p.43.
70
A coragem de ser e a auto-afirmação do finito é possível devido à auto-
afirmação divina. Esse poder se recebe através de um ato de fé, da mística e
somente assim o ser finito tem consciência da fonte de sua coragem de ser. O ser
humano nem sempre tem consciência dessa fonte, mas a fonte está presente
quando o mesmo tem coragem de tomar a angústia sobre si. “Não é possível
argumentar a presença, a existência de Deus a não ser através de atos de coragem,
nos quais nós afirmamos a potência do ser”.
2.4.11 O Deus acima de Deus e a coragem de ser
A fonte básica da coragem de ser é o Deus acima de Deus, diz Tillich. Com a
transcendência do Deus do teísmo, a doutrina que admite a existência de um Deus
pessoal, pode ser incorporada a dúvida e a insignificação.
A coragem de incorporar em si a ansiedade da insignificação é a linha limite
até onde pode chegar a coragem de ser. Além dela é mero não-ser. Dentro
dela todas as formas de coragem estão reafirmadas na potência de Deus
acima de Deus no teísmo. A coragem de ser esenraizada no Deus que
aparece quando Deus desaparece na angústia da dúvida.
38
No coração do Ser, o Deus acima do Deus do teísmo está presente, embora
oculto, em todo o encontro divino-humano. O autor afirma que tanto a religião
bíblica, quanto a teologia protestante não é nem objeto, nem sujeito. Deus é
personalizado no equilíbrio de uma presença transpessoal do divino. Com isso o
perdão divino somente pode acontecer se a potência da graça é efetiva no ser
humano. Esse e outros paradoxos conduzem à consciência religiosa para um Deus
acima de Deus, isto é: um Deus acima do Deus pessoal.
2.4.12 Fé universal como superação da angústia existencial
2.4.13 Terminologia
é um termo muito usado e por isso sujeito a várias interpretações. O
Vocabulário Bíblico traz a seguinte definição: “A palavra ‘fé’ ou o verbo ‘crer’
reaparecem em quase todas as páginas do Novo Testamento. Entretanto, ali
encontramos apenas uma definição de fé”.
Ora a fé é a certeza de cousas que se esperam, a convicção de fatos que
se não vêem. Isto significa que, pela fé, o crente aceite como verdadeiras as
realidades que são mantidas invisíveis, seja porque elas são futuras - neste
38
TILLICH, Paul, 1972, p.146.
71
sentido ela é igual à esperança - seja porque elas escapam ao
conhecimento experimental, em virtude de sua própria natureza.
39
Refletir sobre o tema fé, neste lugar na dissertação, tem como objetivo olhar
para a interpretação que Paul Tillich tem a respeito de fé. O autor define com as
seguintes palavras: “Fé é estar possuído por aquilo que nos toca
incondicionalmente
”.
Com essa afirmação aponta para a que se manifesta na
religião do Antigo Testamento (AT). Na opinião de Tillich, a tem este caráter
incondicional “na exigência, na ameaça e na promessa
”.
O alvo incondicional é o Deus da justiça, o Deus de toda a criação. Ao judeu
devoto essa realidade é proclamada no mandamento do amor: “Amarás o Senhor
teu Deus de todo o coração, de toda a tua alma e de toda a tua força”. O AT traz
inúmeros exemplos onde mostra que a fé é estar ligado de forma incondicional ou
ser possuído da mesma maneira por Deus e por tudo aquilo que “ele representa
através de seus mandamentos, ameaças e promessas”
40
.
2.4.14 Acomo ato da pessoa inteira
A pessoa humana exerce todas as suas funções como pessoa integral. A
também se integra nessa realidade. Quando cremos expressamos a nossa fé
através de um corpo que tem mais necessidades. Quando se fala de como ato da
pessoa inteira estamos dizendo que não vivemos com um corpo
departamentalizado. Tillich diz que “a é o ato mais íntimo e global do espírito
humano”. Nessa compreensão a ultrapassa todas as áreas da vida do ser
humano.
Do ponto de vista da Psicologia, a está relacionada tanto com o consciente
bem como, com o inconsciente. Esses elementos sempre estão presentes e
determinam em alto grau o conteúdo da fé. O outro lado da questão é que a é um
ato consciente. Ambas devem estar presentes, pois se as ações determinassem de
forma estanque a constituição interior da pessoa, o resultado não seria , mas “atos
obsessivos”.
Se fé é um ato de liberdade, então, entende-se que e liberdade não o
opostas entre si, mas ações integradas que partem do mesmo centro da pessoa que
39
ALLMEN, Jean Jacques von. Vocabulário Bíblico. São Paulo: ASTE, 1972, p. 143.
40
TILLICH, Paul. Dinâmica da Fé. São Leopoldo: Sinodal, 1957, p. 6.
72
expressa e vivencia a sua . Assim sendo, a fé não é um ato de forças “irracionais”,
assim como também não é um ato do inconsciente de forma estanque. “A
transcende os elementos racionais como os não racionais da vivência humana
41
.
2.4.15 A fonte da fé
Quando Tillich descreve a fé a partir do ser humano como um ser total, no
centro desse ser pessoal percebemos o “incondicional, o infinito e por ele somos
possuídos”. Ter é estar tomado por esse incondicional. O que fundamenta a
divindade na idéia de Deus, é o elemento do incondicional que tem a validade
última, e isso determina o caráter do divino.
2.4 16 Avida na fé
A fé é ao mesmo tempo um elemento que não tem certeza, mas está
também permeado de dúvidas. Esse elemento “de insegurança não pode ser
anulado”. O ser finito tem ambos os lados: a certeza e a dúvida. Aceitar os dois
elementos é um ato de coragem. “Coragem, como elemento de fé, é arriscar afirma-
se a si mesmo diante dos poderes do não ser, pelos quais todo o ser finito está
ameaçado”
42
.
Ao arriscar-se na coragem da auto-afirmação contra o não ser, deparamo-nos
também com a possibilidade do fracasso, o que está presente em todo o ato de fé.
Nessa reflexão a coragem também serve para manter-se fiel à intenção de crer.
O risco do ato de crer, porém, não pode ser eliminado. Existe uma só
atitude que o encerre risco e contenha certeza imediata: a do homem
ficar em sua própria finitude e a possibilidade de alcançar o infinito. Nisso se
resumem a grandeza e a dor da existência humana.
43
Tillich diz, se a fé é acreditar em alguma coisa, então não é possível que a
dúvida e a se reconciliem. Mas ao mesmo tempo, a dúvida é a confirmação da fé.
Finalizando, voltamos a citar as palavras de Tillich, a respeito de fé, quando diz: “fé é
estar possuído por aquilo que nos toca incondicionalmente”. DEUS.
41
TILLICH, Paul, 1957, p. 8.
42
TILLICH, Paul, 1957, p 11.
43
TILLICH, Paul, 1957, p 16.
73
2.5. A relação entre saúde e salvação em Léo Piccinini
2.5.1 Saúde, cura e salvação um processo inseparável
A intenção desta abordagem visa trazer argumentos de como os termos são
similares em sua raiz. Mas não é isso, queremos apresentar também, com base
no autor que segue como as duas grandezas se integram e complementam. Nesta
reflexão se mostra novamente como o ser humano é um ser integral e que não é
possível fragmentá-lo. Afirmações nas entrevistas não separam saúde, cura e
salvação. Na teoria de Drewermann e Tillich aparece também a importância da
integração destas grandezas e por este motivo estamos trazendo este enfoque para
o diálogo com os referencias trabalhados nesta dissertação. No capítulo três este
diálogo está sendo feito com maior ênfase.
2.5.2 Saúde e salvação
Na indagação sobre o que é saúde, sem sombra de dúvida, estão integradas
outras perguntas como: De onde viemos? Para onde vamos? Por que nascemos?
Por que morremos? Questionamentos como estes são milenares e fazem parte das
dúvidas inerentes ao ser humano, com as quais se ocupa e faz a si mesmo e a seu
contexto. Ao refletir sobre saúde se torna necessário considerar outras dimensões
ou necessidades humanas. “Saúde evoca salvação” diz Piccinini
44
, em seu artigo
Saúde religião e espiritualidade. O autor aponta para a co-originalidade destes
termos, nascidos de um mesmo conceito e que por muito tempo partilharam o
mesmo significado global. Este, o significado, provém do “sânscrito” de “svastha”,
que quer dizer bem-estar, plenitude. A forma nórdica assumida foi ”Heil” em língua
alemã e “whole” na ngua inglesa. Ambas as expressões indicam integridade e
plenitude.
Em relação ao termo “salvador“ o autor diz que é a partir do significado do
termo “soteria”, na língua grega, que “Asclépio” é considerado soter, isto é, aquele
que cura e significa salvador.
Na língua latina, a palavra “salus” é a expressão que incorpora o significado
de saúde e salvação. Piccinini ainda faz referência ao termo em outras línguas,
como a palavra “shalom” no hebraico, que expressa paz, bem-estar, prosperidade.
44
PICCININI, Léo. Saúde, Religião e Espiritualidade. Disponível em: www.sbggrj.org.br/artigos/saúde.
(Acesso em 23.09.05).
74
Aponta igualmente a forma egípcia - “sub” - que indica bem-estar físico, vida, saúde,
integridade física e espiritual.
Estas várias expressões exprimem salvação como integridade da
existência, como totalidade das situações positivas, não tocadas pelo mal,
doença, sofrimento e desordem. Neste sentido na antiguidade era
impossível distinguir entre salvação e felicidade, uma vez que uma confluía
na outra.
45
A reflexão do autor em questão continua na afirmação de que não é possível
dissociar a salvação da saúde, nem isolá-la dos contextos concretos da existência
humana. A salvação começa no “aqui e agora” de nossa existência, e significa se
sentir bem, gozar sentimento de “plenitude e de integridade”. Aponta para definição
da Organização Mundial de Saúde (1946) e chama atenção para a correlação
existente entre saúde e integridade da vida. Vejamos: “Saúde é o estado de
completo bem-estar físico, psíquico, social e não apenas ausência de doença e de
enfermidade”
46
.
Apesar dessas afirmações chama atenção para o perigo de se “naturalizar” o
conceito saúde a tal ponto de entendê-lo como a não existência da doença. Por
outro lado, diz o autor, o podemos mistificar o conceito salvação, transpondo-o
para um céu distante, longe da realidade do dia-a-dia, para um futuro que não se
relaciona com a vida e história presente da humanidade. Conceituar saúde para
além do físico-biológico remete a um sentido de integralidade, estendendo-se à
plenitude, a realização total de ser humano.
Boff (1999), citado por Piccinini, assinala que talvez uma das transformações
culturais mais importantes do século XXI será a volta da dimensão espiritual na vida
humana. Afirma ainda que a espiritualidade ajudará a humanidade a ser mais co-
responsável com seu próprio destino, com o destino do planeta e mais solidário com
aqueles que sofrem
. “
A espiritualidade dará leveza e faque os seres humanos não
se sintam condenados a um vale de lágrimas, mas se sintam filhos e filhas da
alegria de viver juntos neste mundo, sob o arco-íres da graça e da benevolência”
47
.
A partir desta citação a espiritualidade e a mística, conforme o autor citado,
são a grandes gestoras da esperança, dos grandes sonhos, de um futuro
transcendente do ser humano e do universo. Sem estas gestoras a ética se
45
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade, p. 2.
46
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade, p.2.
47
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade, p.3.
75
transforma em normas e dogmas e as normas morais em processos de controle
sociais e assim domesticando a humanidade culturalmente. “A espiritualidade faz
com que a ética tenha mais a ver com sabedoria do que com a razão fria; e do bem
viver feliz do que com o julgar e condenar”
48
.
O ser humano devido à sua indiferença, sua desintegração despersonalizante
se torna cada vez mais vulnerável às doenças. Importa, a partir desta constatação,
trabalhar conscientemente a visão integral do ser humano e não fragmentada. Assim
sendo, o mesmo poderia viver mais “feliz” e equilibrado, estendendo-se essa
realidade para a humanidade toda, bem como para o seu contexto. Quando se
pensa humanidade não se trata de um milagre instantâneo, mas uma tomada de
consciência, o que resulta em benefício de todo o planeta.
Mais uma vez aparece a necessidade de trabalhar e ver o ser humano, ou
seja, cada pessoa a si mesma, como um ser integral. Vivemos em um mundo só e
com este precisamos nos ocupar. Viver de acordo que possamos encontrar o
equilíbrio pelo qual o ser humano tanto anseia e com isso a Paz interior. A Paz maior
se a partir do que cada pessoa está fazendo com a sua própria vida. A paz
interior se dá com o encontro com Deus.
48
Leo, PICCININI. Saúde, Religião e Espiritualidade, p.3.
3 AS TEORIAS DE DREWERMANN E TILLICH EM DIÁLOGO COM OUTROS
AUTORES E COM AS MULHERES ENTREVISTADAS
3.1 Introdução
O terceiro capítulo desta dissertação inicia com uma curta definição do que se
entende por diaconia cristã na prática. Em outras palavras, como as mulheres
entrevistadas interpretaram ações de misericórdia que receberam durante a sua
crise existencial, sem citar a palavra diaconia. No relato apareceu em diferentes
momentos o quanto significou a presença física de alguém com pequenos gestos de
amor. A expressão verbalizada trouxe sentimento da grande valia e de ânimo para
continuar a luta. Uma entrevistada faz referência ao fato de que nem sempre o
conteúdo da ação foi o mais importante, mas o fato da lembrança, do bem-querer,
do apoio e da solidariedade.
Com toda a certeza o público em questão, as mulheres entrevistadas, não
conhece como os autores pesquisados descreveram a sua teoria. No entanto,
conhecem a sua própria fé e dúvida ligada à mesma, onde e como buscaram
“âncoras” para não sucumbir em suas crises existenciais.
Os exemplos citados nas entrevistas poderiam ajudar a indicar caminhos para
ações comunitárias nas comunidades junto às mulheres, ou pessoas em situação de
crise. As experiências vividas de forma positiva poderão servir de exemplo em
situações análogas. A cristã também se expressa através da ação concreta e não
apenas na palavra ou mensagem falada. Tillich diz: “é preciso experimentar Deus
também de forma não verbal”.
3.2. Encontrar Deus nas ações feitas ao próximo
Foi-nos ensinado a buscar Deus através da Palavra, mas também
aprendemos que é possível encontrar Deus nas ações que praticamos ou que
recebemos. Aqui se concretizam as palavras de Mateus 25: Tudo o que fizerdes a
77
um de meus pequeninos irmãos, a mim o terão feito. Ações pelas quais Deus
expressa a sua misericórdia e o seu amor incondicional pela humanidade. O Deus
presente em solidariedade com o próximo sofredor, no qual também se incluem as
mulheres em sua crise existencial, quando com câncer de mama. Tivemos a
oportunidade de sentir, através das entrevistas, o quanto estas ações diaconais são
importantes em situações de crise.
Nestes momentos é como se o próprio Deus, com o seu amor incondicional,
estivesse nos acolhendo e dando esperança de alguma coisa, em alguma área e
que nem sempre estava definido de forma clara. Normalmente o ser humano torna-
se mais sensível ou vulnerável em situações de crise. Neste momento, a
comunidade cristã tem oportunidades múltiplas de transformar seus princípios em
pequenas ações, que podem significar muito, e muito mais do que às vezes
imaginamos.
A diaconia não atua por “conta própria” em seus gestos ou ações, mas ela
tem sua motivação na vontade de Deus, isto é, naquilo que traz PAZ e equilíbrio,
também nos momentos de crise existencial. Aqui podemos fazer uma relação com o
método da Tríplice Mediação. A mediação prática busca a sua base na mediação
analítica, isto é, na avaliação da realidade na qual está inserida. Estas, em contato
com a mediação hermenêutica, que é a LUZ que a Palavra de Deus lança sobre a
realidade e sobre a prática, impulsionam sempre para novas ações concretas.
A cristã e a espiritualidade também são impulsionadas, preferencialmente
quando se vive em grupos, em comunidade. Muito antiga é a expressão: “Uma brasa
isolada se apaga mais fácil”. Precisamos de outras pessoas para nos manter
integradas, pessoas que compartilhem os mesmos objetivos. É nessa convivência
que acontece o crescimento contínuo, o apoio mútuo, a divulgação do que cremos e
a possibilidade de celebrar a vida.
78
3.3 A importância da espiritualidade no cotidiano
3.3.1 O acompanhamento a pessoas em situação de crise e fase terminal
A importância de estar ao lado da pessoa em crise, ou mesmo em fase
terminal, foi muito bem descrita por Roser em seu artigo sobre aconselhamento
diante da morte e suas implicações para a competência pastoral. O mesmo faz
menção da definição da Organização Mundial de Saúde de 1946, que diz: “Saúde é
o estado de completo bem-estar físico, psíquico, social e não apenas ausência de
saúde”. A Organização Mundial de Saúde em 2002 ainda acrescenta, com vistas a
uma definição de medicina paliativa, um quarto pilar da saúde que é a
espiritualidade. Passaremos a citar a definição da OMS de 2002, na íntegra:
A medicina paliativa busca a melhoria da qualidade de vida dos pacientes e
dos seus familiares, a enfrentarem uma doença que constitui ameaça à
vida. Para tal se previne e mitiga o sofrimento mediante reconhecimento
precoce, competente avaliação e tratamento das dores e de outros
problemas de natureza física, psicossocial e espiritual
1
.
Roser, em sua palestra, aponta para a parte que cabe à Psicologia Pastoral,
numa equipe multidisciplinar. Faz referência ao fato de que não se trata de um
serviço feito a determinadas religiões específicas, mas se considera a individual
do paciente, sua espiritualidade pessoal. Mesmo assim sendo, o aconselhamento
pastoral cristão tem a sua base nos ensinamentos e exemplo que o próprio Cristo
deixou, em relação à temática e público, para a construção de sua Igreja neste
mundo. No que se refere às pessoas doentes e/ou terminais é necessário integrá-las
e fortalecê-las, vendo-as como pessoas inteiras, ou seja, com várias necessidades.
Apesar de que, na sociedade ocidental, fé e saúde são duas grandezas
interligadas, Roser constata que a ligação não é tão pacífica. Aponta para duas
razões: que a não pode ser vista como uma droga milagrosa e que não existe
uma fundamentação religiosa para o sofrimento
2
. As pessoas que desenvolveram
um câncer, considerando o avanço da medicina, têm uma boa possibilidade de
serem curadas, no entanto, a cura não se estende a todos os casos. Por este
motivo, a medicina e a poimênica não se ocupam somente com a cura, mas
contribuem para que o paciente possa conviver com a sua doença, usufruindo da
1
ROSER, Traugott. Aconselhamento diante da morte e suas implicações para a competência pastoral. In: HOCH,
Carlos Lothar, WONDRACEK, K.,H., Karin (orgs.). Bioética: avanços e dilemas numa ótica
interdisciplinar.o Leopoldo: Sinodal, 2006, p.61-76.
2
ROSER, Traugott. 2006, p.63.
79
melhor qualidade de vida possível, levando em conta a sua subjetividade. Se o
paciente tiver as suas necessidades espirituais atendidas, diz Roser, o seu quadro
geral de saúde pode ser favorecido. Isso aponta novamente para o fato de que a
espiritualidade é parte integral da saúde humana.
Não é mais possível fragmentar o ser humano em saúde e doença ou corpo e
alma. Somos, como humanos, um ser inteiro. O autor cita uma pesquisa realizada
por profissionais da medicina e por profissionais do acompanhamento pastoral a
respeito da abordagem espiritual junto ao paciente oncológico, e diz que o resultado
desta pesquisa revelou como altamente positivo o acréscimo do pilar espiritual pela
OMS, em 2002, ao seu conceito de saúde
3
.
Um dos aspectos manifestados pelas pacientes entrevistadas, foi o desejo de
que a religiosidade e a espiritualidade encontrassem o seu espaço no ambiente, ou
seja, junto ao leito do paciente. Roser coloca, num segundo momento em sua fala,
que os termos religiosidade e espiritualidade precisam ainda ser mais bem definidos
para esta área da saúde. Apresenta uma definição com as seguintes palavras: “A
espiritualidade é entendida como uma força vital que permite a participação numa
vida experimentada e como dotada de sentido e sentido abrangente”
4
.
O autor chama atenção, neste contexto, que o cuidado espiritual é “cuidar da
participação individual da pessoa doente numa vida que ela mesma experimenta
como tendo sentido”. Concluindo, mais uma vez podemos constatar que a maneira,
o método da abordagem implica no envolvimento, na vontade e na pessoal da
pessoa em questão.
A arte do aconselhamento pastoral e psicológico é saber escutar e observar
qual é o meio que mantém a melhor qualidade de vida, em todos os momentos, da
existência humana. A internação do paciente oncológico é um destes momentos. O
ser humano sempre é um ser inteiro, com várias necessidades que precisam ser
atendidas e respeitadas.
Como observado em vários momentos nesta dissertação, o ser humano
tem muitas áreas, ou seja, demandas diferentes que devem ser consideradas para
que a qualidade de vida possa ser alcançada e da melhor forma possível. Neste
3
ROSER, Traugott, 2006, p 66.
4
ROSER, Traugott, 2006, p .68s.
80
contexto e a partir do que apareceu nas entrevistas, queremos apontar para um
conceito ainda mais abrangente sobre saúde. A VIII Conferência Nacional de Saúde,
realizada em 1986, acresce ao conceito saúde novos enfoques, integrando o sujeito
da saúde ao seu processo histórico, social, cultural, como ser produtor e
transformador da realidade. Essa declaração remete à intenção de uma prática que
permita às pessoas melhor qualidade de vida, longe de restringir-se a alterações
biológicas; a proposta visa a integrar saberes sociais, culturais, ecológicos; ela pode
encontrar sua concretização na educação, em hábitos de alimentação saudável, em
moradia adequada aos princípios de saneamento básico, entre outros, aproximando
os níveis de atenção primária, secundária e terciária.
Com um conceito mais abrangente, a saúde passa a ser concebida como:
resultante das condições de alimentação, habitação, educação, renda, meio
ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade, acesso e posse
da terra e acesso a serviços de saúde(...) O resultado das formas de
organização social da produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida.(...) Define-se no contexto histórico de
determinada sociedade e num dado momento de seu desenvolvimento,
devendo ser conquistada pela população em suas lutas cotidianas.
5
Em várias entrevistas apareceram as dificuldades de transporte para as
internações, a falta de leitos para internações urgentes ou planejadas, a perda do
emprego de familiares, o cansaço físico devido ao transporte coletivo com longas
viagens para quimioterapias, e outros desconfortos apresentados pelas mulheres
implicadas com a doença do câncer e dependentes do serviço público de saúde.
Este, mesmo sendo um direito de cidadania, muitas vezes está aquém das
necessidades das pessoas com câncer.
3.3.2 Como a fé se expressa nas falas das mulheres entrevistadas
É a fé uma “crença cultural”, que as mulheres entrevistadas aprenderam em
sua infância? Este já foi um questionamento feito em outro momento nesta parte da
pesquisa. Queremos agora apontar para semelhanças que eventualmente existem
entre a fala das mulheres e a teoria de Tillich e/ou outras que passaremos a citar.
Todas as mulheres apontaram a como elemento fundamental para a superação
da angústia na crise do câncer de mama. O objetivo não é analisar a através das
5
BRASIL. Ministério da Saúde. In: Conferência Nacional de Saúde. 8. ed. Brasília: Centro de Documentação
do Ministério da Saúde, 1986, p.430.
81
respostas dadas nas entrevistas, mas refletir sobre possíveis semelhanças entre a
teoria e a “prática colhida”.
O que me ajudou muito foi principalmente a minha fé. Minha confiança em
Deus. Olhei a minha vida e pensei: isso? É, a minha vida terminou...
(lágrimas). Eu fui para casa desesperada e a primeira coisa que fiz foi me
ajoelhar e abrir a bíblia e Deus falou comigo de uma forma muito especial.
Foi pela doença de Ezequias e vi que isso não foi por acaso
”.
(A1 e A2).
Aqui aparecem a que duvida e a que tem certeza. “A” repete muitas
vezes a palavra coragem e esperança. Faz menção de uma espiritualidade e
aplicada. Aponta para o valor dos mbolos e imagens para o momento em que a fé
ou a dúvida não podem ser verbalizadas. A relação com o incondicional parece estar
vinculada com alguma coisa que não se pode expressar em palavras, ou em ações
conscientes.
A imagem ou os símbolos podem desencadear ou evocar algo que se
encontra no inconsciente. Aqui se confirma o que foi dito por Tillich: a fé parte tanto
do consciente como do inconsciente. Chama ainda atenção da importância de
pessoas que “emprestam o ouvido” como um suporte para a fé. Refere-se a
emprestar o ouvido de forma empática.
“B” diz: “essa caminhada tem a ver com a minha fé de antes. Em termos de fé
eu vivia sempre uma vida muito consciente. Deus não é tão pequeno como muitas
vezes a gente o coloca. Deus é grande. Se eu estou nessa situação difícil, então
isso faz parte de minha vida. E Deus está onde nós estamos sofrendo. Deus está
onde nós estamos alegres. Cada pessoa expressa a de sua forma e isso me
ajudou a superar a situação”.
Um outro aspecto que desejamos trazer, o qual foi verbalizado por “B”, é a
ajuda solidária, a diaconia. A mesma ênfase é também trazida por “A”, quando fala
da escuta empática. Aqui as ações diaconais são comparadas com o “colo de Deus”.
Faz questão de citar como essas “pequenas” ações diaconais foram tão
significativas. Destaca que não se refere tanto aos conteúdos das ações, mas ao
gesto em si. A mesma e sente que a motivação para estas atitudes tem a sua
base no AMOR de Deus em relação ao seu povo em sofrimento.
As citações que seguem, desejamos apresentá-las assim como foram
relatadas. Na realidade, elas falam por si e o necessitam de muita
82
interpretação. Não poderiam servir para apontar caminhos para ser igreja cristã hoje,
a partir da realidade de dor e sofrimento em que vivemos em nossa sociedade? Qual
é a voz profética que hoje é falada ou ouvida? A quem damos voz de anúncio e de
denúncia? Vejamos como as falas são argumentadas, repletas de dor e de
esperança.
Uma noite eu não conseguia dormir e então comecei a me perguntar: O que
é o colo d Deus? Então eu fui fazendo a minha imaginação, tecendo uma
rede com todas as mãos que de uma ou outra maneira me ajudaram.
Pensei: Isso é o colo de Deus. Ele é tão grande. O colo de Deus é tão
grande, tão grande, tão grande como o AMOR o é”.
A fala de “C”4 se apresenta de um outro ângulo. Veja como inicia:
e pensei assim: se tiver mais uma vez um câncer, ai, ai, não sei como vou
reagir. Agora estou pedindo Deus para me preservar. Os amigos vão orar a
confiança em Deus... e esperaria pelo que iria acontecer.
Em “C” 7 volta mais uma vez ao assunto e diz:
Entrego a Deus. Revolto-me? Não, não é revolta. Quando tenho medo
então eu peço que eu não gostaria de ter medo. Então isso passa e eu me
sinto melhor".
Nesta fala de “C” aparecem vários aspectos da fé. Uma vez a confiança em
Deus, mas ao mesmo tempo a dúvida. O medo aqui é um medo real e não
imaginário. A reincidência do câncer é algo que pode acontecer em qualquer
momento. Se isso acontecer, a entrevistada deseja contar com outras forças além
de sua própria.
“C” não atribui a um castigo de Deus ter adquirido câncer, mas usa a num
sentido consciente e racional apontando igualmente para uma auto-responsabilidade
de zelar pelo bem-estar físico, psíquico, social e espiritual. Em sua fala aparece a
visão integral do ser humano, quando diz: O câncer não deixa de ser auto-
destrutivo, com certeza tem a ver com a maneira como a gente vive”. (C7).
Nas falas das mulheres entrevistadas não aparece somente a fé como algo
pacífico. Em parte, isto já foi relatado anteriormente, onde se teme a reincidência do
câncer, na fala de “C”. Aqui, no entanto, nesta fala de “D”, é manifestado
novamente. Aparece de forma explícita a dúvida e a luta com Deus. Vejamos o
contexto:
Minha mãe tinha câncer. Meu pai se tornou alcoólatra. Eu convivi muito
tempo com ele e sofri muito tempo com ele e sofri muito nas mãos dele. Eu
não aceitava que Deus fizesse isso comigo. Lutei muito com isso e só
pouco tempo fiz as pazes com Deus. Coloquei a cabeça no lugar, não
83
culpando mais Deus por isso. Agora quando fiquei sabendo de meu câncer
eu quis me revoltar novamente. Então eu disse: Não, não vou me
revoltar. Em vez disso vou conversar com Deus
.
Novamente aparece a que é regida pela razão. Uma reflexão a partir da
consciência. Mas aparece também a esperança da vitória: Sei que vou ficar boa.
Vou conseguir. Vou vencer isso. Vou me segurar na mão de Deus. Ele é o único que
vai junto comigo sempre”. (D19). Nesta fala está presente uma fé que duvida e se
revolta e uma que tem esperança. Este é o ser humano integral. Ele tem
consciência de sua finitude (a dúvida e a revolta), mas também manifesta a que
tem esperança e que confia na presença constante de Deus.
A fé e confiança em Deus perpassam todas as entrevistas. Às vezes de forma
implícita e agressiva. Em palavras de revolta, de raiva, de dúvida, de barganha, mas
também de esperança e de confiança total em Deus. Sem precisar forçar, aparecem
os conhecidos passos de Kuebler-Ross, quando fala nos seguintes estágios:
Negação (por que eu?); Raiva; Pacto; Depressão; Aceitação.
3.3.3 A fé entre a dúvida e a certeza na vivência com câncer de mama
Voltando à crise existencial, essa “equilibrada” ou “desejada” nem sempre
se concretiza. Mesmo com uma base de de berço, vivência comunitária e prática
espiritual a crise existencial pode roubar-nos o chão debaixo dos pés. A certeza da
fé, de que Deus está sempre ao nosso lado, pode vacilar e avida se instalar. Aqui
se confirma o que diz Tillich: A é ao mesmo tempo um elemento que não tem
certeza, mas está também permeado de dúvidas
6
. Este elemento de insegurança
não pode ser anulado no ser humano. O ser finito tem ambos os lados: a certeza e a
dúvida da fé.
3.3.4 Fé como graça divina: como possuí-la?
Passaremos a trazer uma interpretação de Tillich a respeito do assunto.
Como tulo temos os seguintes termos: Silêncio solidão - solitude diante de Deus.
As entrevistas mostraram também que silêncio, solidão e solitude não são a mesma
coisa. Foi verbalizada a necessidade de que existem momentos em que é preciso
buscar resposta para as dúvidas que surgem, a partir do silêncio interior, combinado
ao exterior, que proporciona momentos de solitude. Passaremos a trazer a reflexão
6
TILLICH, Paul, 1957, p. 8.
84
de Tillich, em sua pregação sobre Mateus 14.22-23: Depois que despediu o povo,
Jesus subiu sozinho a um monte para orar. Quando chegou a noite estava ele
7
.
Tillich diferencia entre solidão e solitude. A solidão serve para expressar a dor
de estar e solitude é a expressão da glória de ser só. Tillich diz que a forma mais
comum de solidão é aquela que resulta do abandono dos que nos ajudaram a
vencê-la, ou seja, as pessoas que nos deixaram e morreram. Tillich não se refere
aos mais próximos, mas aos grupos em geral, as relações sociais havidas, e
pergunta: Será que as pessoas que vivem rodeadas de familiares, vizinhos, grupos,
amigos não sentem a dor da solidão? E nós? Tillich continua perguntando: será que
podemos dizer: Eu nunca me senti tão só como em momentos em que estive
rodeado de pessoas?
Retirar-se para estar é perceber a solidão última. Também os
supostamente fortes e bem sucedidos sentem a solidão. É então que se encontram
mergulhados na profundidade da condição humana. Concretamente o autor aponta
para duas formas de solidão (ambas as formas apareceram nas entrevistas), as
quais o ser humano não pode ocultar, nem evitar, a saber: a solidão da culpa e a
solidão da morte. Em relação à culpa, Tillich aponta para aquela que cometemos
contra nós mesmos. Somente nós mesmos somos responsáveis pelo que fazemos
ou deixamos de fazer (aqui se trata de algo pessoal, pois pelo pecado coletivo não
somos responsáveis sozinhos). Essa culpa não podemos evitar nem mesmo ocultar.
A solidão da morte - a derradeira solidão, do ter que morrer. Estamos sós na
angústia de nossa morte (Mateus 14. 23). Diante deste fato estamos privados de
tudo. A presença dos que nos cercam não pode negar de que se trata de nossa
morte.
Em relação à solitude, Tillich diz que em todos os seres humanos existe o
ardente desejo por ela. É a expressão da glória de estar só. O autor aponta
caminhos, formas de buscar a solitude, ou seja, encontrar-se consigo mesmo e com
Deus. A partir de sua ótica, o religar-se com Deus e consigo mesmo, também pode
acontecer através do contato com a natureza, da sica, da literatura, da
meditação, da oração, do silêncio e isso até pode ser possível em meio à multidão.
7
TILLICH,Paul. The Eternal Now. Nova Iorque: Scribner´s, 1963, p.15-25 (Manuscrito, tradução de Getúlio
Bertelli).
85
A solitude nos protege, conforme Tillich, sem nos isolar. No texto citado de
1963, afirma que grande parte da solidão da humanidade, diferente de solitude, é
fruto da época. Afirma, sem justificar, que o ser humano contemporâneo sente mais
solidão do que no passado. Atualiza a sua fala e coloca responsabilidade nos
detentores do controle dos meios de comunicação social que não se ocupam em
proporcionar condições favoráveis à solitude.
Deus provoca em nós, diz Tillich, a pergunta pela verdade e pela justiça que
pode ser formulada na solitude. Diz ainda que a criatividade, e quem é criativo
pode amar, encontramos na solitude. Afirma que uma hora de solitude consciente
enriquecerá mais a criatividade do que aprender teoricamente o processo criativo.
Na solitude é que se o encontro do ser humano consigo mesmo. Faz
menção à oração e indaga se não estaria o segredo de transformar a solidão em
solitude. Recomenda ficar em silêncio, permitindo assim que a nossa alma (vida),
suspira Deus de forma não verbal. Vejamos como se expressa:
Se alguém perguntar: qual é a característica constitutiva da solitude,
devemos responder: é a presença do Eterno na turbulência de nossos
caminhos temporais. É a experiência de ser só, mas não solitário, em vista
da Eterna Presença que brilha através da face de Cristo. Ela inclui tudo e
todos aqueles de quem estamos separados. Na pobreza da solitude estão
presentes todas as riquezas. Oxalá tenhamos coragem para suportar a
solitude - e assim encontrar o Eterno, descobrir o próximo e vermo-nos a
nós mesmos.
8
Tillich não esqueceu de olhar para a realidade, pois ao perguntar pela
verdade e pela justiça é necessário olhar e analisar o contexto. Lembra da luz que
precisamos buscar em Deus para iluminar a realidade, indicando para a
hermenêutica. Ao fazer menção da criatividade, está se referindo à mediação
prática, isto é, o agir concreto, com base na mediação analítica e hermenêutica.
Solitude é ação.
A reflexão de Tillich confirma as palavras de Boff, citada por Piccinini
9
, que em
síntese diz que talvez uma das transformações culturais mais importantes do século
XXI será a volta da dimensão espiritual na vida humana. Afirma ainda, que a
espiritualidade ajudará a humanidade a ser mais co-responsável com o seu próprio
destino, com o destino do planeta e mais solidário com os que sofrem.
8
TILLICH, Paul, 1963, p.15-25.
9
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade.wwwsbggrj.br/artigos/saúde.htm. Acesso em 23.09.05,
p.1-3.
86
A espiritualidade dará leveza à vida e fará que os seres humanos não se
sintam condenados a um vale de lágrimas, mas se sintam filhos e filhas da
alegria de viver nesse mundo, sob o arco-íris da graça e da benevolência.
10
Sob esta perspectiva, a espiritualidade e a mística, conforme Boff seriam as
grandes gestoras da esperança de um futuro transcendente do ser humano e do
universo. Conclui que estas gestoras farão com que a ética tenha mais a ver com a
sabedoria, em vez da razão fria e do bem viver feliz do que o bem julgar e condenar.
3.4 A importância da família na vivência do câncer
A família é a primeira instância procurada pela pessoa que descobre um
câncer de mama em seu corpo. É nos familiares que ela mais confia, mais se apóia
e dos quais mais espera. Muitas vezes, a exigência vai além do que os familiares
são capazes de dar. Também eles sofrem com a doença e com a crise existencial
que a mesma desencadeia. Em várias entrevistas aparece o “cansaço” da família, a
impotência diante da doença, o medo, o sofrimento da perda, seja ela parcial ou
total.
O câncer assusta também os familiares, que procuram “proteger-se“, à sua
maneira, para sofrer menos. Este proteger-se apareceu de várias maneiras, como
fugir da realidade também fisicamente, procurando viver “afastada” da pessoa
doente. Palavras para minimizar a “dor” física ou psíquica foram citadas, como por
exemplo: “não exagera, vai melhorar”. A fuga foi constatada no entretenimento
constante com o computador, jogos, televisão ou outros.
Um outro aspecto que também apareceu como manifestação dos familiares,
foi a rejeição física, devido à mutilação do corpo da mulher. Neste caso, aparece
muito a vergonha da mulher mastectomizada. Nestes momentos de grande
vulnerabilidade, ela, a mulher em questão, assume a culpa por sua doença, como se
fosse ela a única culpada desse seu processo de doença ou saúde.
3.4.1 Como ir ao encontro da “dor” dos familiares?
Várias vezes apareceu nas entrevistas o desgaste quase absoluto da família,
como esgotamento físico, perda de emprego, depressão, entre outras
conseqüências. O que acontece nas comunidades cristãs, de modo geral, é a
atenção voltada à pessoa doente. Ela é a visitada, e muitas vezes por
10
PICCININI, Leo. Saúde, Religião e Espiritualidade.wwwsbggrj.br/artigos/saúde.htm. Acesso em 23.09.05,
p. 1-3.
87
recomendação da família. É com ela que as lideranças das comunidades se
ocupam. Os demais familiares, via de regra, ficam esquecidos. Não existem “receitas
prontas”, mas, quem sabe, fazer grupos de iguais com outros familiares que passam
por processos semelhantes poderia ser um caminho a perseguir, sobretudo em
momentos de crise profunda.
Deve-se considerar que a família está envolvida todo o tempo e o tempo todo
com a pessoa doente. Ela também precisa de apoio e ajuda pessoal. A ajuda deve
basear-se nas necessidades dos familiares, e ela é tão importante quanto a ajuda
que visa a paciente. Devemos considerar que todo o contexto está sensível e
enfraquecido pela dor e angústia existencial. As forças, de qualquer natureza, se
esgotam também nos familiares. A carga, a culpa, seja ela real ou imaginária, pode
se tornar pesada e ir além das capacidades existentes.
3.5. Possíveis caminhos de superação de crises existenciais
Nas entrevistas realizadas com as mulheres que passaram pela doença do
câncer de mama repetidas vezes apareceu a necessidade de uma reorganização na
vida familiar. A rotina anteriormente estabelecida teve que ser alterada. Além dessa
mudança, que foi apontada com nem sempre fácil, foi manifestado também um
desconforto por parte da paciente como o abandono ou a super-proteção. Ambos os
extremos o conseqüência da crise que se instalou e da insegurança diante da
mesma. Uma crise dificilmente pode ser planejada. Como não é possível fazer isso
com um ncer de mama ou outras realidades semelhantes, também não existem
“receitas prontas” ou caminhos certos para serem seguidos. Cada caso ou cada
realidade tem o seu contexto e este deve ser considerado. Mesmo assim fica a
pergunta: quem se dispõe a ajudar? A quem mais cabe esta tarefa além da família?
É função de o estado cuidar de direitos e deveres de cidadania do povo de uma
nação? Faz parte da solidariedade dos vizinhos e amigos? É dever das
organizações não governamentais, como a Liga Feminina de Combate ao Câncer?
Qual o papel e lugar da diaconia cristã nesta realidade de dor e sofrimento? Como a
igreja cristã concretiza o seu discurso nas ações concretas em favor do ser humano
sofredor e o seu contexto? Estes e outros questionamentos surgem ao se deparar
com a realidade trazida pelas mulheres em questão através das entrevistas.
88
Queremos neste momento trazer a definição das fases de Erika Schuchardt, e
lembrar como esta realidade foi apontada nas entrevistas, e ou na pesquisa
bibliográfica. Nem sempre os familiares, ou líderes de comunidades se dão conta,
ou conseguem entender o que se passa pela pessoa em crise existencial, seja uma
mulher com câncer de mama ou uma pessoa em crise existencial por outros
motivos.
Um aspecto muito desejado e verbalizado foi o respeito pela situação na qual
a pessoa se encontra. O respeito necessariamente passa pelo AMOR. Este, o amor,
pode ser o melhor aliado. Não precisamos ter respostas para todas as perguntas
nem solução para todas as dúvidas, mas o que não pode faltar é tentar compreender
como a pessoa se sente. Ser empático significa ter refletido sobre a sua própria
finitude e angústia existencial. O amor empático é um dos fatores muito
mencionados pela igreja cristã. Não seria hoje o momento, diante de tanta dor e
sofrimento da igreja cristã repensar as suas ações em coerência com o seu discurso.
Tillich diz que o amor e a criatividade acontecem na solitude. É que o ser humano
se encontra consigo mesmo e com Deus a assim encontra respostas para o ser
igreja hoje. Uma igreja mais voltada para a ação concreta, a diaconia cristã,
encontrando-se voltada ao próximo num cuidado tuo. A teoria de Erika
Schuchardt pode nos ajudar nesta reflexão.
3.6 Estágios no processo de crises existenciais, com vistas a novas
perspectivas, conforme Erika Schuchardt
Como citado anteriormente, temos conhecimento de estudos significativos
no que se refere às fases pelas quais o ser humano passa ao se confrontar com
acontecimentos inusitados em sua vida. Estamos nos referindo a Elisabeth Kübler-
Ross e Erika Schuchardt. Ambas as autoras se ocupam em estudar os estágios de
crises existenciais e suas possíveis implicações.
A intenção, nesta reflexão, é olhar para a proposta de Schuchardt
11
, que
amplia e subdivide a sua teoria, em relação à de Kübler-Ross e apresenta a mesma
em oito estágios, enquanto que a proposta de Kübler-Ross se compõe de cinco,
finalizando com a aceitação do momento final da existência humana.
11
SCHUCHARDT, Erika. Warum gerade ich...? Geilhausen: Burkhardthaus - Laetare Verlag GmbH, 1981.
89
Schuchardt tem como ponto de partida a pessoa com deficiência e, com toda
a razão de ser, inclui ainda dois aspectos, além do estágio final da teoria de Kübler-
Ross, que são a atividade e solidariedade. Embora o foco principal de Schuchardt
seja pessoas em crise devido a uma deficiência, ela aponta para outros
desencadeadores de crises que podem acontecer na vida da pessoa humana. A
teoria da autora é apresentada em forma de espiral e, representada em forma de
pirâmide, onde o ponto mais elevado da espiral, ou seja, a última fase a ser
alcançada, é a solidariedade.
Ao descrever a teoria de Schuchardt, pretendemos observar onde e como
características de possíveis estágios aparecem na fala das mulheres entrevistadas.
Sabemos que os estágios não se manifestam de forma linear ou seqüencial, na vida
das pessoas, como são citadas pela autora em questão, mas como ela mesma
disse, difere de pessoa para pessoa. É possível reprimir passos, repetir outros
anteriormente vivenciados e manifestados, ou mesmo vivê-los sem necessariamente
observar a ordem cronológica.
Ao fazer a analogia, com os estágios da teoria de Schuchardt e conteúdos
das entrevistas, não pretendemos provar “nada”, apenas trazer como aspectos
dessa teoria foram manifestados no pequeno mundo de sete mulheres que
vivenciaram uma crise em sua vida, a partir de um câncer de mama.
Schuchardt
12
, em sua pesquisa, constatou que “ser diferente”, o que já foi dito
nesta pesquisa em relação a mulheres mastectomizadas, é sinônimo de exclusão
social. A pergunta: “por que justamente eu” é muito comum. Esta mesma pergunta
leva ao isolamento social: por um lado, a sociedade exclui; por um lado acontece a
auto-exclusão.
A autora aponta para a superação desta realidade a partir de um longo e
permanente processo de aprendizagem por parte de quem vivencia a crise
existencial e por parte de quem rodeia pessoas nesta situação. Pensando assim,
deveria ser a sociedade toda, porque em qualquer faixa etária, raça, cor, cultura e
nação se encontram pessoas em crise existencial. Não importa a causa que
desencadeou o processo, pois atrás de cada crise existencial sempre um ser
humano em busca de alívio ou superação.
12
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p. 21s.
90
Schuchardt
13
continua esta temática questionando a cada um e a cada uma
de nós, como supostamente fora de uma crise existencial, como seria se fizéssemos
a nós mesmos a pergunta: como nós reagiríamos recebendo o diagnóstico de um
câncer em nosso corpo? Assim sendo, mais cedo ou mais tarde faríamos a mesma
pergunta: Por que justamente eu...?”, e continua dizendo que, quem sabe muito
raro ou nunca, faríamos a pergunta inversa: “Por que não eu...?”. A autora continua
motivando os leitores de sua teoria para arriscarem a auto-reflexão iniciando com o
primeiro questionamento: “Por que justamente eu...?”, encontrando-se, quem sabe,
antecipadamente nas fases do processo dos diferentes estágios, dos quais
passaremos a falar a seguir.
Em seu livro, Aconselhamento com pessoas portadoras de deficiência,
Müller
14
traz, em língua portuguesa, os estágios nas seguintes palavras: 1.
Incerteza; 2. Certeza; 3. Agressão; 4. Negociação; 5. Depressão; 6. Aceitação; 7.
Atividade; 8. Solidariedade. A representação gráfica é dada em forma de espiral,
sendo a solidariedade o último estágio a ser alcançado. Passaremos a descrever os
estágios traçando analogias com falas nas entrevistas.
3.6.1 Incerteza
A autora apresenta o primeiro estágio
15
, ao receber o diagnóstico, como
incerteza. É como um choque que paralisa. Como um raio que vem de repente, está
presente e desorganiza a vida. Sem poder preparar-se, o ser humano se encontra
numa crise que resulta em angústia frente ao desconhecido. De forma instintiva,
automática, lança o de mecanismos de defesa, e a partir de várias tentativas
racionais, busca afastar, reprimir o motivo desencadeado da crise. A pessoa não
suporta reconhecer que se trata dela mesma, e por isso está em constante negação
do processo. Vejamos como se expressa uma entrevistada:
A gente acha que acontece com as outras pessoas. Foi interessante, na
minha mente passou como um filme de trás para frente (Lágrimas) A1. Para
mim foi algo que eu nunca tinha pensado. Foi uma surpresa muito grande
(lágrimas). B1.
13
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p.24.
14
MÜLLER, Iára. Aconselhamento com pessoas portadoras de deficiência. Experiência de um grupo na
comunidade. São Leopoldo: Sinodal, 1999, p. 35.
15
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p.24s.
91
Nas duas falas aparece, a meu ver, de forma clara a pergunta que Schuchardt
traz em sua teoria e afirma que é feita em primeira mão ao saber de um
acontecimento que leva o ser humano a uma crise existencial. A teoria de
Schuchardt cita três fases intermediárias, ligadas à incerteza. A primeira se
apresenta em forma de dúvida, negação. Pode ser que sim, pode ser que não. Este
mecanismo de proteção contra a forte dor é necessário para que o sofrimento seja
amenizado, evitando um desgaste esmagador que poderá resultar em pânico e
eventualmente dificultar a passagem para outro estágio. Uma pergunta que surge
neste momento é: o que afinal está havendo...?.
Neste segundo momento a pergunta é um pouco menos duvidosa e pode
ser entendida assim: se que de fato isso tem algum significado? Esta reflexão
indica por um lado, que as dúvidas surgidas não podem mais ser negadas, mas
existe a labilidade psíquica que necessita de seu tempo para aprender a processar o
fato. Surge sempre de novo a pergunta pela certeza. Aqui a verdade precisa ser
interiorizada. Veja o que diz a entrevistada B: O que é muito importante é a verdade.
Desde o início saber a verdade. Importante é saber o que se passa pela gente.
A autora constata que a dúvida vai cedendo espaço para a certeza que é
trazida de “fora”, seja pela equipe de saúde, da vizinha de quarto, ou por alguém que
passou por uma realidade semelhante. Uma entrevistada reage com as seguintes
palavras:
Eu acho que o médico tinha razão. Ele não quis consolar, mas
conscientizar. Que os médicos expliquem as coisas como elas são para a
gente. Isso é muito importante. A gente então pode confiar nos médicos
(B14).
Assim sendo, quem tem a certeza do diagnóstico, assume com o paciente
uma responsabilidade, construindo vínculos de confiança entre a equipe de saúde e
outras pessoas que acompanham o processo da crise da determinada pessoa. No
entanto, não se trata de um passo de mágica. Quando a certeza do conscientizar-se
se aproxima, por outro lado aparece a tentativa de resistir à verdade, indicando para
uma próxima fase intermediária que é a incapacidade de aceitação da verdade. A
pergunta que surge: deve ser um engano, caracteriza a dificuldade de aceitar as
possíveis perdas de viver a vida, dos sonhos, dos planos.
Nesta terceira fase intermediária, mais uma vez, através de ações concretas,
se instalam tentativas de afastar as ameaçadoras certezas, já interiorizadas. No final
92
destas fases intermediárias chegou o momento, do não pronunciado desejo, de dar
um fim a esta tensão. Na ausência de apoio, esta fase pode permanecer latente por
um bom período de tempo.
Conforme Schuchardt
16
, neste momento existem dois caminhos que se
oferecem: a) ruptura em trabalhar a sua crise e cair no isolamento social; b) ou
através de um processo de aprendizagem, olhar as perspectivas de conviver com a
realidade.
3.6.2 Certeza
A palavra certeza, no caso de uma crise existencial, não pode ser entendida
como absoluta para todos os momentos. Apesar de a pessoa ter reconhecido a sua
crise, descoberto que ela está com câncer, a mesma, de tempos em tempos, precisa
negá-la para poder continuar vivendo. Existe uma disposição e disponibilidade por
parte da razão de levar adiante toda a verdade, mas emocionalmente permanece a
negação. Esse processo pode ser um período mais ou menos prolongado e pessoa
acometida pela doença do câncer precisa desta etapa que vai entre o negar e
aceitar para que possa recuperar-se e ter um novo início nessa caminhada.
Essa ambivalência, entre o “sim” da razão e o “não” da subjetividade
caracteriza a certeza. A pergunta pela verdade o é dúvida pela veracidade
objetiva do resultado do diagnóstico, ou se as informações passadas a seu respeito
são verídicas. Trata-se, no entanto, das condições emocionais em processar as
informações a seu respeito, sem ter que continuar reprimindo-as através de
diferentes mecanismos de defesa. Não podemos entender essa fase como um ato
somente racional. Também a emoção procura ocupar o seu lugar nesse processo e
procura contribuir para a continuação da busca de clareza neste estágio.
Importante é frisar que nesta fase todo o dialogo poimênico tem a sua enorme
importância, pois poderá servir para clarear dúvidas que estão entre o racional e o
emocional. Fundamental neste momento é que a pessoa verbaliza onde estão as
suas dúvidas e que ela mesma oriente o assunto sobre o qual ela quer o diálogo.
Somente assim se abre um caminho para a descoberta da aceitação da verdade
sobre a sua realidade. Devemos considerar que a pessoa diretamente envolvida, ou
16
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p. 26..
93
seja, que tem a doença do câncer, e também seus familiares podem se encontrar na
mesma situação. Não é dito que por parte dos familiares todas as dúvidas estejam
resolvidas e que a certeza sempre esteja presente. Uma analogia poder-se-ia traçar
um paralelo com a dúvida e a certeza da fé. Para que possa existir a certeza da a
dúvida também se instala. Portanto a dúvida é vista como a confirmação da fé.
3.6.3 Agressão
A fase da agressão é expressão daquilo que não mais pode ser negado
através da razão. Nesta fase a razão entra em “sintonia com a emoção, ou
sentimentos e a pessoa em crise se conta de como a vida está sendo
transtornada. Foi algo inesperado em minha vida. Mudou totalmente a minha vida.
(B1). Esse sentimento de mudança expressa a raiva, a insegurança, o ódio, o
pranto, a agressão verbal ou física. Essa postura manifesta-se em relação ao
contexto, às pessoas que a rodeiam. Na realidade é contra tudo e todos e ao mesmo
tempo contra nada e ninguém.
De forma inconsciente a pessoa está em busca de saídas que possam ajudá-
la a se libertar e/ou aliviar a sua “dor psíquica”. É deveras importante, que neste
momento, a pessoa em crise, seja compreendida a partir de seu estado emocional
abalado e não pode ser visto como uma afronta pessoal ou indireta aos que a
cercam. A sua raiva não é contra terceiros, como se manifesta, mas contra os
espaços e as oportunidades perdidas e que eventualmente deixou de viver em sua
plenitude.
Nesta fase existe o risco de um isolamento social, ou ainda o de sucumbir em
sua agressão a partir de uma autodestruição ativa ou passiva. O alívio da agressão
é parte e a ponte para o desenvolvimento da crise no processo de um outro estágio.
3.6.4 Barganha ou negociação
No estágio agressivo são mobilizadas forças que levam à ação. A negação, o
isolamento foi deixado de lado e a “raiva”, a agressão também não levaram a
nada. Agora é preciso buscar alternativas para reverter o processo, reflete a pessoa
em crise. Este estágio é o momento de fazer as pazes consigo mesmo e com Deus.
A negociação com Deus, muitas vezes, permanece segredo entre a pessoa que a
fez e o próprio Deus. Trata-se de súplicas, promessas, reconhecimento da proteção
e cuidado, agradecimento pela vida ou até a espera e pedido de um milagre.
94
Nesta fase também se vai em busca de novas e diferentes áreas de
“profissionais”, sejam na área da medicina convencional, mas também se olha para
terapias alternativas, “milagreiros”, tratamento com ervas medicinais, alimentação
alternativa e muitas “receitas” que são indicadas por pessoas conhecidas, que
trabalham com ervas medicinais. Schuchardt
17
aponta que, dois terços do público
entrevistado em sua pesquisa, buscam caminhos alternativos, neste estágio de sua
doença, ou seja, em sua crise existencial. Neste período também são tomadas
decisões no que se refere a doações em favor de instituições necessitadas, ou à
Igreja da qual faz parte, entre outras realidades análogas.
Schuchardt chama atenção de que é possível diminuir decepções pessoais se
a pessoa implicada se conta de suas próprias reações e aprende a lidar ou
conviver com as mesmas. Na realidade a barganha é uma forma de ”adiamento” de
seu estado de ser. É nesta fase que o paciente se manifesta dócil, reflexivo porque
não para “negociar” com Deus que é bom e ser agressivo com quem o rodeia.
Vejamos como se manifesta uma mulher entrevistada:
Fiz uma lavagem cerebral. Coloquei a cabeça no lugar, não culpando Deus
por isso. Agora que fiquei sabendo de outro câncer eu já quis me revoltar de
novo. Então eu disse: Não. Não vou me revoltar. Em vez disso, vou
conversar com Ele (D10).
3.6.5 Depressão
Os estágios são vistos como um processo progressivo. O tempo de
permanência em cada estágio depende de pessoa para pessoa. Nesse processo é
possível também voltar para estágios anteriores. Quando a pessoa que está em
crise se der conta de que tudo pelo que passou, foi sem aparente resultado, então
vem a pergunta: ”Para que..., nada faz sentido”. A resignação e a desesperança
levam a pessoa à depressão. Surge na consciência o sentimento da grande perda.
O sofrimento e a “dor psíquica”, resultado dos sentimentos de perda absoluta
levam ao silêncio. É preciso abrir mão das “utopias” construídas. É preciso aprender
a “soltar” o que contribuiu para o sentido da vida. Junto ao silêncio, consigo mesmo
e com o contexto, a depressão assume as características de desânimo,
desinteresse, apatia, tristeza, lágrimas... . Tudo isso, no entanto, é necessário para
17
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p. 28s.
95
sair do quadro de luta e de luto no qual a pessoa se encontra. Müller descreve essa
realidade nas seguintes palavras:
Tudo perde o sentido, o prejuízo sofrido ocupa todo o seu ser, despede-se
das falsas esperanças... . Este sofrimento todo contém o embrião da
transformação, do encontro consigo mesmo. É sinal de que pessoa está
viva e o se resignou totalmente às perdas sofridas. Necessita deixar para
trás o que realmente está perdido e começar a reconhecer o que sobrou
para passar para a sexta fase do espiral que é a aceitação.
18
3.6.6 Aceitação
No estágio da aceitação o paciente o mais experimenta o desespero e
nem precisa mais negar a realidade. Aqui a pessoa se confronta com o seu limite.
As suas forças físicas e psíquicas, investidas nos estágios anteriores, esgotaram a
sua resistência. Instala-se um “vazio” uma quase que inércia, mas como que
“libertado”. Liberto de não mais precisar investir, para querer recuperar “perdas
irrecuperáveis”, mas pronta para uma nova experiência. A experiência de um novo
contato consigo mesma, que implica na aceitação da realidade como ela se
apresenta. A consciência dessa nova fase é dizer “sim”, aceitá-la e fazer dessa fase
um novo período do processo de aprendizagem e “entrega diária”.
Isso não significa que alguém deva agradecer pelo câncer que desenvolveu e
concordar com a doença, mas ao vivenciar a crise e amadurecer com ela se torna
possível aceitar o inevitável e “aprender” com ele. Assim sendo, se o
reconhecimento racional do limite humano.
Em se tratando da finitude é deveras importante que o paciente alcance este
estágio de aceitação em PAZ, com dignidade e bem-estar espiritual, emocional e
físico. Desta forma experimentará a morte em clima de serenidade, e isso também
poderá servir de consolo aos que ficam.
3.6.7 Atividade
A atividade é o resultado de uma decisão pessoal do paciente, que agora, em
busca de um novo sentido de vida, coloca as energias, antes centradas em suas
perdas significativas, numa ão fora de si mesmo. Apresentaremos algumas frases
que colhemos nas entrevistas, em relação a este aspecto. A intenção é apresentá-
18
MÜLLER, Iára, 1999, p. 38.
96
las como seguem, mostrando assim como as fases de Schuchardt se encontram nas
falas das mulheres entrevistadas.
Fiz o tratamento, mudei a minha vida. Aprendi muito para a vida. Hoje estou
sendo bastante requisitada para ajudar pessoas que estão em dúvida a
respeito de seu câncer (A1). Estar aberta e estar bem consigo mesma.
Estar bem e ajudar outras pessoas. Fico contente em poder ajudar outras
pessoas. (A10).
Fui assistir uma palestra num grupo de mama. Foi importante para mim. É
isso que um dia eu quero fazer. Vou voltar para e ser voluntária. Havia
mulheres que nem câncer tinham, mas estavam para buscar
informações. (D18).
Eu tenho vontade de fazer um grupo de iguais. Acho que isso não existe
onde moro. É tão importante conversar sobre as coisas com um grupo de
iguais. Também seria bom fazer um grupo terapêutico de informação e
formação. (B12).
Nas três entrevistas aparece a vontade de se engajar em atividades
voluntárias. Buscar um sentido novo, para a nova fase. Vislumbram-se
antecipadamente possíveis caminhos a seguir. Aqui a pessoa constata que em
última análise, não importa tanto o que desencadeou a crise, mas o que afinal
fazemos dela e com ela. Com esta vontade de se mostrar e sentir útil estamos,
conforme a teoria de Schuchardt
19
, entrando na última fase, que é a solidariedade.
Assim a pessoa que passou pela crise, podecom a sua experiência, contribuir
para que outros sofram menos ou tenham uma compreensão diferente de valores de
vida em qualquer situação ou realidade de vida.
3.6.8 Solidariedade
A autora faz menção de que a solidariedade pode nascer a partir do apoio
que a pessoa em crise recebeu, nos diferentes estágios progressivos do
desenvolvimento de sua doença. Após o reconhecimento da importância do
acompanhamento recebido ela mesma, a pessoa, quer fazer a sua parte. Não é
possível esperar que todas as pessoas que passam por uma crise, chegam ao
estágio de solidariedade. Schuchardt
20
, em sua pesquisa, conclui que apenas um
terço das pessoas entrevistadas chegaram ao estágio de solidariedade.
O agir solidário é a conseqüência de um “bem sucedido” processamento da
crise pela qual a pessoa passou. Essa postura não representa uma “solução” em
relação ao havido, mas o ganho está em não mais necessitar resistir e viver em
19
SCHUCHARDT, Erika,.1981, p. 30s.
20
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p. 31s.
97
oposição à sua crise, mas ter interiorizado que é possível conviver com o inevitável.
A aprendizagem mostra que a vida vale a pena ser vivida também com limitações e
diferenças.
Concluindo a reflexão, sobre os estágios de Schuchardt, podemos constatar
que se trata de um período que a pessoa humana, quando está em crise existencial,
irá passar. A maneira como cada indivíduo enfrenta e como exterioriza a sua dor
psíquica ou física, difere de pessoa para pessoa. Isso também tem a ver com a sua
conduta de vida antes do início de seu estado de doença e vulnerabilidade diante do
acontecido. De como passo por essa caminhada tem a ver com a minha vida de
antes. Essa realidade faz parte de minha vida (B8).
Schuchardt
21
aponta para a cruz e ressurreição de Cristo como uma fonte e
esperança que contribui para a aceitação, bem como para a ação e a solidariedade.
O elemento é parte importante na transformação que se no processo de uma
nova fase de aprendizagem para a vida, com um novo sentido. Que assim possa ser
para muitos seres humanos, independente de seu credo religioso, cultura, raça, cor
ou situação social.
21
SCHUCHARDT, Erika, 1981, p. 32.
CONCLUSÃO
As palavras de Fernando Pessoa, de que “tudo vale a pena se a alma não é
pequena”, representam parte do que sentimos ao iniciar a conclusão da dissertação.
Poder realizar essa pesquisa foi uma oportunidade ímpar. Vários motivos poderiam
ser arrolados para justificar o colocado, mas queremos apenas apontar alguns: ter o
privilégio de participar das aulas teóricas, com temas atuais e altamente
interessantes para o tema da pesquisa, bem como integrar um universo acadêmico
diversificado, contribuiu muito para uma troca de saberes, crescimento pessoal e
coletivo.
A pesquisa social de campo com as entrevistas de mulheres com câncer, sua
história na vivência da doença, nem sempre foi uma tarefa cil. No papel de
pesquisadora, fazíamos as entrevistas como uma observadora privilegiada, olhando
de fora, mantendo a devida distância do objeto pesquisado. No entanto, a partir da
vivência pessoal de câncer de mama contribuímos no processo interno, com base
na experiência própria da descoberta e cura de câncer.
Esse processo, de observar com a devida distância, mesmo tendo passado
por uma vivência semelhante, exige constante ciência, para não confundir-se e
trocar o lugar que nos diferentes momentos ocupamos. É necessário saber
diferenciar entre o ouvir objetivamente e o sentir, a partir da própria experiência.
Para que assim se proceda é preciso ter clareza teórica e paixão existencial a fim de
responder, com qualidade, à necessidade da produção da dissertação.
A pesquisa bibliográfica sobre a contribuição de Drewermann e Tillich foi
muito importante para a temática em questão. Os conteúdos foram próprios para
traçar comparações entre a teoria e aspectos colhidos a partir da fala das mulheres
entrevistadas.
99
Na tentativa de resignificar suas vidas, as mulheres contatadas buscaram a
espiritualidade como um instrumento, uma força ou âncora, considerada por elas,
como muito valiosa. A espiritualidade na vivência da doença representa um conjunto
de valores, crenças culturais, complementam, apóiam esta fase na vida das
pessoas. Fase esta que nem sempre é fácil por se tratar de um tratamento
prolongado e duvidoso.
A fonte da espiritualidade difere de pessoa para pessoa. Para os seguidores
da religião cristã, ela é buscada no trino Deus. Deus como criador, Deus em Jesus
Cristo como salvador e o Deus Espírito Santo que representa, que é a presença
constante de Deus ao lado do ser humano em qualquer situação de sua vida.
Sendo o câncer uma doença que ainda leva à morte, mesmo podendo contar
com os avanços da medicina, a espiritualidade torna-se um aspecto importante. Ela
é e representa força para enfrentar a angústia de morte. A Angústia da morte estaria
sendo substituída pela confiança em Deus, possibilitada pela graça através da fé,
que igualmente temos como presente de Deus.
O capítulo, dois dessa dissertação, traz argumentos para essa confrontação e
aponta para possíveis caminhos a serem seguidos. As idéias que seguem sobre
Drewermann e Tillich m a intenção de clarear, trazendo, em forma de síntese,
analogias entre teoria e a prática.
O que é possível concluir, sobre os autores Drewermann e Tillich sem repetir
o que foi dito nos capítulos e na introdução? o seria esse o momento de
levantar apenas questionamentos? Ou então relacionar algumas respostas onde
dúvidas foram redimidas ou clareadas? É preciso achar um caminho e trilhar por ele.
Eugen Drewermann, como teólogo contemporâneo, tornou-se mais conhecido
para s. O objetivo previsto foi alcançado. Poder olhar para um outro método de
interpretação de textos sagrados foi um constante desafio que pretendíamos seguir.
Como profissional na área da Psicologia, esse interesse se apresentou de
maneira mais intensiva. Perceber a aproximação das grandezas Psicologia e
Teologia foi algo gratificante. Chegou-se assim à teoria de que não é possível ver o
ser humano de forma estanque, fragmentando-o em diferentes áreas. É
imprescindível ver o ser humano como um ser único e relacional, ou seja, ter a
capacidade de relacionar-se consigo mesmo e com o seu contexto. O presente
100
estudo da teoria de Drewermann confirmou essa realidade, e aponta para a
necessidade de atuar com outras ciências, ou seja, ser interdisciplinar.
No mundo contemporâneo não é mais possível atuar de forma isolada e
distante ou paralelamente a outras ciências. A complementaridade é a chave para
encontrar pistas, caminhos para a “dor” da humanidade - do ser humano enquanto
ser existencial. Assim, a teoria de Drewermann, tem a sua relação com várias
ciências, como a Filosofia Existencialista, a Medicina, a Psicologia e os Estudos
Comparativos das Religiões entre outros.
A Psicologia Analítica serviu de base para a interpretação teológica do
religioso. Um aspecto importante que foi observado é a inquietação de Drewermann
a respeito dos motivos que levam o ser humano a fazer guerras e produzir a
violência. O mesmo constata que a partir de seus conhecimentos adquiridos, como
teólogo de uma formação acadêmica convencional e ocidental, não se sentiu apto a
responder aos questionamentos por ele levantados em relação à angústia
existencial do ser humano como ser finito.
Neste contexto, a categoria do medo ou angústia não pode ser ignorada na
teoria de Drewermann. Ela, a angústia, através do conflito que essa estrutura gera,
desestabiliza o ser humano, como ser finito. Para re-estabelecer o equilíbrio é
necessário substituir a angústia pela confiança em Deus. A tentativa da auto-
justificação afasta o ser humano cada vez mais de Deus. Pois é inútil o esforço de
superar a realidade do afastamento de Deus, por forças próprias. Somos justificados
por graça e fé. O ser humano vive na ambivalência em conquistar desta forma a sua
liberdade, mas ao mesmo tempo, teme-a. Diante desta ambivalência desejamos
citar uma idéia que Drewermann pronunciou no seguinte sentido: “Se estou diante
do ser humano com a possibilidade de julgá-lo ou de entendê-lo, optarei POR
ENTENDÊ-LO”.
Ao escrever sobre um aspecto dos escritos teológicos de Paul Tillich, a
angústia existencial, constatamos que não se trata de uma tarefa fácil. Sem sombra
de dúvida, trata-se de uma excelente contribuição para o estudo da Teologia, de
maneira especial para o cristianismo, ou seja, para a das pessoas que seguem a
Cristo, bem como para a humanidade em geral.
101
Um ponto de grande relevância que pode ser encontrado nos escritos de Paul
Tillich é a visão de ser humano que o autor apresenta. Trata-se de um ser total,
integral e integrado em seu contexto, seja ele político, social, espiritual, psicológico.
Tillich, em sua época, foi considerado um escritor de “fronteira”, assim, sendo, não
foi possível desconsiderar o contexto no qual vivia. Sua coragem teve
conseqüências duras para ele mesmo, como a exclusão dos seus direitos de
cidadania.
Conforme o autor, a área psicológica é considerada parte integral do ser
humano, também em relação à fé. Isto não fragmenta as capacidades humanas,
pelo contrário, valoriza-as como um ser humano holístico em todas as atitudes e
atividades da vida.
Ao ler Tillich não é possível ignorar o quanto ele se preocupava em integrar a
sua teoria com outras ciências. Foi precursor de um tema contemporâneo, que é a
dimensão da multi, inter e transdisciplinaridade. O que era uma visão um culo,
hoje praticamente é “lei”, ou seja, indispensável de ser considerada.
O conteúdo pesquisado, na presente dissertação, é um tema central para o
ser humano que é a sua angústia existencial relacionada à sua dimensão finita. A
finitude é universal, tanto do ser humano bem como do seu contexto, porém, o que
diferencia o ser humano do seu contexto é a consciência de sua finitude, o que não
é o caso de todos os outros seres.
Conforme Tillich, nós existimos porque somos finitos e temos consciência
dessa realidade. O autor, no entanto, não encerra essa sua reflexão com esta
afirmação. Ele aponta para a possibilidade transcender a finitude e deixar acolher-se
pela infintude a partir, como já foi dito da graça do Deus da vida.
Como aprendizagem pessoal e interiorização da teoria de Tillich constatamos
que a angústia existencial é um aspecto inerente da humanidade, da qual também
eu faço parte. Em muitas oportunidades, durante o estudo, os conteúdos me
tocaram, não apenas como um saber cognitivo, mas também como forma de
conscientização de minha própria finitude.
Questionamentos chegaram ao meu íntimo, como por exemplo: como será o
meu não-ser e de onde vem a coragem para enfrentar o meu finito. Se crer é
fortalecer a consciência da intenção de crer, eu desejo buscar mais vezes a
102
consciência de que o meu sentido de ser é ser é Deus e não eu mesma. Aquele
Deus que se manifesta e revela através do novo ser em Jesus, como o Cristo,
sempre estará presente, mesmo que eu não me conta disto em todos os
momentos.
Outro aspecto que clareou dúvidas e confirmou a minha visão de ser humano,
foi o fato de a fé, seja ela universal ou tenha sua base no cristianismo, ao qual me
confesso, ser um processo na minha existência como pessoa inteira. Tanto o
consciente como o inconsciente constitui a base da fé.
Estar possuída por momentos de dúvida não é uma negação da fé, mas
confirmação da mesma. “Ter fé é estar possuído por aquilo que nos toca
incondicionalmente”, diz Tillich, conforme já citado nesta pesquisa. Refletir, escrever,
filosofar sobre a finitude universal do ser humano e seu contexto, pode ser muito
importante e pode aprimorar o conhecimento cognitivo. Pensar, porém, como e
aonde buscarei a coragem de ser para enfrentar a minha própria morte e angústia
de minha finitude é e poderá ser deveras diferente.
A contribuição de Tillich para a história da humanidade também enriqueceu a
minha história. Paul Tillich ao pregar sobre as palavras de Mt 14. 23: Depois que
despediu o povo, Jesus subiu a um monte para orar. Quando chegou a noite, estava
ele ali só, recomenda ficar em silêncio e deixar que nossa alma suspire a Deus de
modo não verbal. Essa postura ninguém nos pode roubar, e, nesse momento, algo
por nós mesmos está sendo feito. Tillich termina sua pregação: “se alguém
perguntar qual é a característica constitutiva da solitude, devemos responder: é a
presença do Eterno na turbulência de nossos caminhos temporais”.
Finalizando, queremos ainda trazer um aspecto, que é a teoria de Erika
Schuchardt. Somos alertados, através da mesma, de como a crise existencial se
processa em estágios progressivos. A representação, que ela apresenta, se dá em
formato de pirâmide, como uma espiral.
A autora, através de sua pesquisa, concluiu que a pessoa no
desenvolvimento de uma crise existencial, passa por oito estágios até alcançar o
equilíbrio o qual tanto busca. As manifestações do que a pessoa passa em cada
estágio, não precisam necessariamente ser por ordem cronológica, mas de forma
consciente ou inconscientemente aparecem durante o processo da crise.
103
As três últimas fases: aceitação; atividade e solidariedade se encontram no
final da pirâmide e é, quem sabe, o desejo de muitas pessoas em crise alcançarem
o topo. Conforme pesquisa de Schuchardt, somente um terço do público
entrevistado, chega a este patamar. É neste ápice que se um novo encontro
consigo mesmo e a PAZ se estabelece. Paz e equilíbrio não são sinônimos de cura,
em todos os casos, mas trata-se da aceitação do inevitável buscando assim um
novo sentido para a vida. Inicia uma nova fase, um novo momento da existência
temporal. Após eu ter passado por todas as terapias e encontrado condições físicas
e psíquicas, com liberdade aceitei convites para assessorar voluntariamente. Isso
me gratificou e oportunizou continuar a viver com alegria. Agora com um novo olhar
para o mundo que me cerca.
A autora coloca que para os cristãos, a cruz de Cristo pode ser um fator que
integra uma espiritualidade que não é vazia, mas aponta, através da , pela graça
de Deus, para uma esperança de vida que ultrapassa a temporalidade. Que assim
pudesse ser para muitos seres humanos: aceitar a finitude com a visão da infinitude.
Três coisas... De tudo ficaram três coisas: A certeza de que estamos sempre
começando... A certeza de que precisamos continuar... A certeza de que seremos
interrompidos antes de terminar... Portanto, devemos: fazer da interrupção um
caminho novo... Da queda um passo de dança... Do medo uma escada... Do sonho,
uma ponte... Da procura um encontro...”. (Fernando Pessoa).
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TILLICH, Paul. The Eternal Now. Nova Iorque: Scriber´s 1963 (Tradução de Getúlio
Bertelli - Manuscrito).
ANEXO 01
Formulário para as entrevistas de histórias de vivência de câncer
de mama. Conteúdo para dissertação de mestrado na EST.
1 - A senhora poderia contar algo sobre a sua história de seu câncer de
mama?
2 - Que sentimentos e pensamentos passaram por sua mente e a quem
procurou para conversar em primeiro lugar?
3 - Como conseguiu lidar com esses pensamentos e sentimento?
4 - A senhora se lembra de algum momento que poderia
considerar o mais difícil nesse processo da doença?
5 - Poderia citar alguma coisa que ajudou a superar o
desconforto da doença do câncer?
6 - Existe para a senhora algo em que se “agarra” em momentos
difíceis?
7 - Na situação em que a senhora se encontrava, o “sagrado”.
desempenhou algum papel?
8 - Existe algum aspecto que a senhora ainda gostaria de
compartilhar comigo?
ANEXO 02
Termo de consentimento livre e informado
Nome:
_________________________________________________________
___
Meu nome é Hildegart Hertel. Sou Irmã aposentada da Igreja Evangélica
Luterana no Brasil (IECLB).
Minha residência situa-se na Rua Wilhelm Rotermund 395, Morro do
Espelho. Telefone para contato: 3588 3011. Ramal 615.
A presente pesquisa tem como objetivo colher dados para uma
dissertação de mestrado.
Esse estudo será realizado na Escola Superior de Teologia.
Especificamente no Instituto de Pós Graduação em Teologia de São
Leopoldo, que fica situado na Rua Amadeu Rossi 467, Morro do
Espelho, Cep: 93001 São Leopoldo, RS.
O objetivo da entrevista é obter informações qualitativas sobre
mulheres que passaram por câncer de mama, o seu confronto com a
doença e a superação da mesma.
A colaboração das mulheres que desejam participar consiste em
entrevista pessoal (uma ou mais) com hora, data e local marcado de
comum acordo.
As entrevistas serão gravadas com o objetivo de manter a sua
autenticidade. Após a descrição a pessoa entrevistada, caso desejar,
poderá ler os conteúdos da mesma.
As fitas serão destruídas após a descrição das mesmas.
A identidade das pessoas (como telefone, nome, endereço, entre
outros) não será revelada, apenas o conteúdo das informações
prestadas.
109
Depois de lido o termo de consentimento e desejar participar da
pesquisa e concordar com os termos acima descritos, peço o favor de
assinar, dando assim o seu consentimento.
Data: _______/ _______/______
Assinatura da
Participante_________________________________________
Termo de compromisso
A pesquisadora compromete-se a cumprir fielmente todos os itens
que constam nos termos do presente Consentimento Informado.
Data: _______/_______/_________
Assinatura da
Pesquisadora______________________________________
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